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8/22/2019 Francis Hamon, Michel Troper e George Bodeur - Direito Constitucional - Manole - 27º Edição - Pesquisável - Ano 2…
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à _
Manole
Constitucional
FRANCIS HAMON
MICHELTROPER
GEORGES BURDEAU
8/22/2019 Francis Hamon, Michel Troper e George Bodeur - Direito Constitucional - Manole - 27º Edição - Pesquisável - Ano 2…
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DIREITOCONSTITUCIONAL
27âedição
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DIREITO
CONSTITUCIONAL
27âedição
FrancisHamon
Professor da Faculté Jean Monnet (Université de ParisXI)
Diretor do Centre d'Études de Droit Constitutionnel (CEDC)
MichelTroper
Professor da Université de ParisX-Nanterre
Diretor doCentre de Théorie du Droit
Membrodo Institut Universitaire de France
GeorgesBurdeaut
A
Manole
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Título do original em francês: Droit Constitutionn el - 271’ édition Copyright © Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, E.J.A., 2001
Tradução: Carlos Souza
Formado em Letras pela PUC/SP
Especializado em Traduçã o pela Universidade de Sào PauloEditoração eletrônica: José Luis Guijarro Revisão científica: Ari Marcelo Solon
Professor Associado da Universidade de São Paulo
Professor de Pós-graduação da Universidade MackcnzieCapa e foto da capa: Hélio de Almeida
ClP-BRASIL. CATALOGAÇÂO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
H 193d
Hamon> Francis
Direito constitucional / Francis Hamon, Michel Troper, Georges Burdeau; [tradução de
Carlos Souza]. - Barueri, SP: Manole, 2005
Tradução de: Droit constitutionnel, 27e éd.Inclui bibliografiaISBN 85-204-1704-3
1. Direito cons titucional - França. 2. França - H istória constituciona l.I. Troper, Michel, 1938-. II. Burdeau, Georges, 1905-1988. III. Título.
03-2603.CDU 342(44)
Todos os direitos reservados.
Nenhuma par te deste livro poderá ser reproduzida, por qu alque r processo, sem a pe rm issão expressa dos editores.É proibida a reprodução por xerox.
Direitos em língua portuguesa adquiridos pela:
Editora Manole Ltda.Avenida Ceei, 672 - Tamboré06460-120 - Barueri - SP - Brasil
Fone: (0 11) 4196-6000 - Fax: (0 11)4196-6021
www.manole.com .br [email protected]
Impresso no BrasilPrinted in Brazil
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Su m á r i o
Pre fá cio ..................................................................................................................xi
I n t r o d u ç ã o ........................................................................................................... xiii
Principai s A b re v ia ç õ e s ...................................................................................... xv
Ca pít ulo Pr elim ina r - O Dire ito C o n s ti tu c io n a l...................................1
Seção 1 - 0 d ir ei to co n st it uc io n al co n ju n to d e n o r m a s .............2
1. O direito co mo sistema de n orm as ............................................... 2
2. O di re ito con st ituc io nal co m o sub si st em a ..................................9
A. Definiç ão mate ria l .........................................................................9
B. Defin ição fo rm al .........................................................................16
Seção 2 - 0 direito co nstituc iona l com o c iê n c ia .........................17
1. Ju snatu ra li sm o e po sit iv is mo ........................................................17
A. O jusnaturalism o .........................................................................17
B. O posi ti vi sm o j u r í d i c o ................................................................18
2. Di re ito co ns ti tu cion al e ciên cia p olí tic a ....................................22
Bibliografia ..............................................................................................26
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vi D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Primeira Parte - Teoria Geral do Estado
Cap ítulo 1 - A Con sti tuição .................................................................... 33
Seção 1 - As fon tes do direito cons ti tucion al ............................. 33
1. A hi er ar qu ia das fon tes da co ns tit ui çã o materi al ..................35
A. A consti tuiç ão fo rm al ................................................................35
B. As leis orgânic as ........................................................................... 44
C. Os re gula m en to s da s as sembléias .........................................45
D. As leis ordinárias .........................................................................46
2. Os t ipos de fatos p ro du to re s de direi to ....................................47
A. O costu m e const it ucio nal .........................................................47
B. A interpreta ção ..............................................................................52
Seção 2 - 0 contro le da supremacia da cons ti tu ição /
O c ontrole da co nsti tucionalidad e das leis ............... 58
1. Leg itimi dad e do c on tro le de co ns titu cio na lid ad e ..................59
2. As formas do controle de constitucionalidade.........................62
A. Ó rg ão po lít ico ou ó rg ão jur isdi ci on al ..................................62
B. Sistema descentralizado e sistema centralizado ............... 63
C. Con trole a priori e controle a posteriori .............................64
D. Co ntrole po r via de ação e contro le po r via de exceção 65
Bib liograf ia ............................................................................................ 66
Capít u lo 2 - 0 Poder .................................................................................. 69
Seção 1 - O qu adro: o Est ado ........................................................... 69
1. O Esta do e o direito .........................................................................702. O E stado e o espaço, as formas de organiz ação d o Estado .74
3. O Est ado un itá rio ..............................................................................75
4. O Est ado com posto .........................................................................77
Seção 2 - As formas de organização do p o d e r ............................ 80
1. As form as de governo ....................................................................... 81
A. A classi ficação antiga ...................................................................81
B. As class ificações c o n t e m p o r â n e a s ...........................................842. O princípio da separação dos poderes ...................................... 87
A. A do u tr ina t r a d i c i o n a l ................................................................88
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S u m á r io
B. As cr íti cas à d o u tr in a t ra dic io nal ...........................................89
C. A se pa raçã o dos p od er es n o séc ulo XVIII ...........................913. Os re gim es polí ti co s .........................................................................95
A. Exposição da classificação tradicio nal ................................. 96
B. Crí ti ca ........................................................................................... 108
Seção 3 —As técnicas de exercício do poder .............................113
Subseção 1 - As funções do Estado ............................................. 113
1. A função legislativa .........................................................................115
2. A função exec utiva .........................................................................128
A. O conteúdo da função executiva ........................................ 128
B. Os ó rg ãos da fu nção execut iva ..............................................131
3. A função judic iá ri a ......................................................................... 143
A. Diferentes concepções da função judiciária ....................143
B. As solu ções .................................................................................. 145
4. Os poderes de cr ise .........................................................................149
Subseção 2 - A designação dos governantes:
os m odos de escrut ín io ...........................................152
1. O dire it o ao voto ............................................................................. 152
2. Os diferentes tipo s d e esc ru tínio ................................................153
A. O escrutínio com plu ralidad e de vozes (tu rn o único ) .153
B. O escrutín io ma joritá rio (dois turn os de escrutínio ) .155
C. A repr es en ta çã o pro porc io nal .............................................158
Seção 4 - As justi ficativas do poder .............................................163
1. A represe ntação ................................................................................165A. A teo ria da r ep re se nta çã o ...................................................... 165
B. O m andato represen ta tivo .................................................... 168
C. Significação moderna de governo representativo ......... 172
2. A soberania .......................................................................................175
A. A oposição tradicional entre a soberania nacion al
e a soberania po pula r ............................................................. 177
B. Crít ic a ........................................................................................... 179
C. Dete rm in aç ão do ti tu la r da sobe ra nia ................................181
Bibl iografia ........................................................................................... 185
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VIII D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Segunda Parte - Os Regimes Políticos Contemporâneos
Capít u lo 1 - O s Regime s Parl amenta re s ............................................193Seção 1 - O re gime bri tâ nic o ..........................................................193
1. Os órgãos ............................................................................................200
A. O Parlam ento ..............................................................................200
B. A Coroa ......................................................................................... 206
C. O Gabinete .................................................................................. 208
2. O fu ncio nam ento do sist ema ...................................................212
A. Relações jurídicas entre os órgãos: a fachada parlam entar 212
B. O papel do sistema de partidos: o bipartid arism o . . . .213
3. O parla me nta rism o no Co m mo nw ealth britâ nico ............216
Seção 2 - Algumas formas continentais do parlamentarismo .219
1. A conciliação do pluripartidarismo com a estabilidade
do governo: o parlamentarismo escandinavo ...................... 220
2. O regime par lam entar na Alemanha ....................................... 221
3. O regime parlamentar na Itália .................................................. 229
4. O regime p arl am en ta r na E s p a n h a .............................................237
Bibliografia ............................................................................................242
Capítulo 2 - 0 Sistema Constitucional dos Estados Unidos .. .249
Seção 1 - Os órgãos ........................................................................... 250
1 . 0 Congresso .................................................................................... 251
A. Organização ...............................................................................251
B. Competências ............................................................................ 253
2. O presidente ................................................................................... 258
3. A Suprem a Corte .......................................................................... 265
A. Com posi çã o da Supre ma Cort e ..........................................265
B. Competê ncia s da Su pr em a Cort e .........................................266
Seção 2 - As relações pol ít icas .........................................................270
1. O federa li sm o .................................................................................. 270
2. As re lações entr e os órg ãos ......................................................... 272Bibliografia ............................................................................................274
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Cap ítulo 3 - Os Antigos Regimes Socialistas e sua
T ra n s fo rm a ç ã o ....................................................................277Seção 1 - O regime socialista ......................................................... 278
1. A URSS .............................................................................................. 278
2. As democracias popula re s ............................................................283
3. Os sina is da dete rio ração ..............................................................284
Seção 2 - As transfo rma ções depois de 1985:
da Perest roika ao desm oro nam ento da URSS . . .287
1. A Pere stroik a .....................................................................................287
2. As tran sfor ma çõe s políticas e instituc iona is da URSS .. .288
3. O fim da URSS ................................................................................ 289
Seção 3 - A si tu aç ão atua l ................................................................ 290
1. A situaç ão atual da Rússia ............................................................290
2. A situação nas antigas democ racias p opula res e
re pú bl icas da an tiga U R S S ............................................................296
Bibl iograf ia ............................................................................................ 300
Bibliografia G e r a l ............................................................................................ 303
índice R em issivo .................................................................................................307
S u m á r i o ix
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Os autores agradecem imensamente àqueles que aceitaram colaborar
com seus conhecimentos e reler algumas passagens deste livro, principal
mente Geoffrey Marshall e John Bell, pelo capítulo sobre a Grã-Bretanha,Pasquale Pasquino, pelo da Itália, David Wirth e Charles Baron, pelo dos Es
tados Unidos, bem como Raphael Paour, pelas bibliografias e Frédéric Mar-
sac, pela correção das provas.
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P r e f á c i o
Durante a vida de Georges Burdeau, este livro tornou-se um clássico.
Georges Burdeau nos havia dado a grande honra de pedir a preparação de
uma 21- edição. A morte o impediu de conhecer nosso trabalho.Desde a 21a edição, a ciência do direito constitucional e o próprio di
reito constitucional sofreram um a evolução bastante significativa, da qual ti
vemos de dar conta. Este livro, portanto, não se apresenta apenas como uma
mera atualização, mas como uma obra profundamente reformulada.
No entanto , realizamos esta reformulação p reo cup an do-nos em ser
fiéis ao espírito que norteou Georges Burdeau na concepção deste manual e
que ele expôs no prefácio da 20a edição: construir uma teoria suscetível de
servir como instrumento para a análise do direito constitucional positivo.
Francis Hamon Michel Troper
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In t r o d u ç ã o
Os ma nuais de direito constitucional são muitos e variados. Se as ques
tões tratadas são as mesmas, as abordagens e as doutrin as p od em ser signifi
cativamente diferentes.Essas diferenças se explicam: o qu e realmente cha ma mo s ciência do d i
reito constitucional não é apenas uma soma de conhecimentos, é também
um conjunto de problemas aos quais podem ser dadas as mais diversas res
postas. A pert inência e a coerência das respostas dependem do rigor do racio
cínio que as justifica. Tão imp ortan te q uanto adquirir o dom ínio do raciocí
nio é conhecer as características dos sistemas constitucionais.
Um dos meios de se chegar a isso é confron tar cada questão co m as teses
de vários autores. No entanto, esse confronto só pode ser proveitoso quando
considerados todos os pressupostos explícitos ou implícitos dos raciocínios.
Os mais importantes estão ligados à linguagem. Diferenças doutrinárias po
dem se esclarecer ou problemas se dissipar, a partir do momento em que
percebemos que tais pressuposto s estão diretamente ligados aos usos lingü ís
ticos. Logo, o domínio do raciocínio pressupõe o domínio de uma lingua
gem e é por isso que, na primeira parte da presente obra, um cuidado espe
cial foi dado à definição dos conceitos fundamentais.
Se o direito constitucional era formado, como às vezes imaginamos, por
um pequeno número de princípios fixos e estabelecidos, que poderíamos
combinar de várias formas e dos quais poderíamos deduzir todas as regras
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x iv D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
part ic ulares, a dif ic uld ade residir ia principalmente na exposi ção e na com
preensão dos princípio s, e bastaria partir de algumas definições para em se
guida proced er de forma linear. Mas não é assim que ocorre, e o conteúd o dos
princípios nutr e-se das regras que supostamente deles decorrem. Os estudan
tes podem constatar que a ordem dos capítulos tem algo de arbitrário e a
compreensão dos primeiros pressupõe, às vezes, o conhecimento dos outros.
Não aconselharíamos, no entanto, voltar aos prim eiros capí tu los após a le itu
ra do todo.
Os estudantes deveriam também se esforçar para complementar o es
tudo deste manual com a leitura de outras publicações, pelo menos daquelasàs quais ele se refere. Para facilitar a pesquisa, escolhem os usar as convenções
do Chicago Manual ofSlyle , que possibilitam limitar o volume das referên
cias contidas no texto. Cada uma das referências é dada conforme o seguinte
modelo:
(K e l s e n , 1962, p. 2 37).
Repo rtar-no s-em os en tão à bibliografia que consta no final de cada ca
pítulo , para encontrar as indicações comple ta s ou, no caso de obras gerais, à
bibliografia geral .K e l s e n Hans (1962) Théorie pure d u droit , Paris, Dalloz, trad. fr., Ch.
Eisenmann.
Isso significa que, para efetuar um a pesquisa bibliográfica sobre u m de
terminado assunto, é necessário primeiramente procurar as referências nas
partes do texto onde este é abordado.
No entanto, nós nos dis ta nciamos dessa convenção no que se refere ao
tratad o de ciência política de G. Burdeau, ao qual nos rem etemo s várias ve
zes, sem men ção de data, mas indicando o núm ero do volume e o dos parágrafos.
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P r i n c i p a is A b r e v ia ç õ e s
A A . W .
A.J.D.A.
C.
c.c.c.c.c.
C.C.F.P.
C.E.
C.E.D.H.
C. élect.
C.S.M.
D.
G.A.
G.D.
Auteu rs divers [Vários Autores]
Actualité Juridique Droit A dm in is tr a ti f [A tualidade Jurídica de
Direito Administrativo]Constitution [Constituição)
Conseil Constitutionnel [Conselho Constitucional]
Cahiers du Conseil Constitutionnel [Cadernos do Conselho
Constitucional]
Commission des Comptes et Campagn e et des Financements
Politiques [Comissão de Contas e Campanha e dos
Finan ciame ntos Políticos]
Conseil d’Etat [Conselho de Estado]
Conv ention E urop éenn e des Droits de 1’H om m e [Convenção
Européia dos Direitos Humanos]
Code électoral [Código Eleitoral]
Conseil supé rieur de la Magistrature [Conselho Superior de
Magistratura]
Dalloz
Long, Weil e Bra ibant, Les grands arrêts de la Jurisprudence
Admin istrative, Paris Sirey, 1996
Favoreu e Philip, Les grandes décisions du Conseil
Constitutionnel, Paris, Sirey, 9. ed., 1997
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J.C.P.
J.O.
L.
L.O.
N.E.D.
P.F.R.L.R.
P.F.S.P
R.
R A .
R.D.P.
R. F. D. A.
R. F. D. C.
R.FS.P.
R J. P.
R. P. P.
Rec.
S.
T.C.E.
T.U.E.
Jurisclasseur Périodique - La Semaine Juridiq ue [Classificador
Jurídico - A Semana Jurídica]
Journal Officiel [Jornal Oficial]
Loi [Lei]
Loi organique [Lei Orgânica]
Notes et Études Documentaires [Notas e Estudos
Documentais]
Principes fondamentaux reconnus par les lois de la
Republique [Princípios Fundam entais Reconhecidos pelas Leis
da República]Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques
[Publicações da Fundação Nacional das Ciências Políticas]
Règlement [Regulamento]
Revue adminis trative [Revista Administrativa]
Revue du Dro it Public et de la Science Politique [ Revista do
Direito Público e da Ciência Política]
Revue Française de Dro it adm in is trati f [Revista Francesa de
Direito Adm in is trativo] Revue Française de Dro it constitutionnel [Revista Francesa de
Direito Constitucional]
Revue Française de Science politique [Revista Francesa de
Ciência Política]
Revue Juridique et Politique [Revista Jurídica e Política]
Revue Politique et Parlementaire [Revista Política e
Parlamentar]
Recueil des décisions du Conseil d yEtat ou des décisions du Conseil Constitutionnel [Coletânea das decisões do Conselho de
Estado ou decisões do Conselho Constitucional]
Sirey
Traité sur la Com mu nau té europ éenne [Tratado da
Comunidade Européia]
Traité sur PUnion européenne [Tratado da União Européia]
D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
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C a d ít u Io Pr eIím ínar
O DIREITO CONSTITUCIONAL
O termo “dire ito” - O termo “direito” é empregado em numeroso s sen
tidos diferentes. Podem os, simplificando, distin guir três deles. Afirmamo sfreqüentemente que os homens têm direitos. O direito de que se fala aqui é,
então, u ma faculdade de realizar algumas ações. Assim, qu an do dizemos que
um cidadão tem o direito de voto, expressamos a idéia de que este cidadão
pode parti cipar da escolha dos govern antes e q ue é p roibido impedi-lo disso.
Em um segundo sentido, por exemplo na expressão “o direito de um
país” o u “o direit o civi l”, “o direit o constitucional”, designa-se pela palavra
direito um conjunto de normas.
Finalmente, em um terceiro sentido, a palavra “direito” se refere à ciência que estuda essas normas, como nas expressões “a faculdade de direito” ou
“o estudante de direito”. Nessas faculdades não se estuda diretamente todas
as normas que formam o direito de um país e que são muito numerosas p a
ra serem conhecidas. Estudam-se somen te as principais e os alunos são in
troduzidos sobretudo no método que permite compreendê-las e descobrir
aquela que é aplicável a esta ou àquela situação particular.
Neste capítu lo , a pa lavra “direit o” será empregada no segundo e no ter
ceiro sentidos. Tudo indica, realmente, desde já, que o direito co nstitucional pode ser concebid o, de um lado, como um conjunto de normas, uma parte
do direito em geral, e de outro , com o a disciplina que estuda esse conjunto.
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2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Seção 1
O direitoconstitucional conjunto de normas
1. 0 DIREITO COMO SISTEMA DE NORMAS
Proposições e normas. - De maneira geral, denom ina-se “no rm a” o sig
nificado de u m a frase pelo qual se declara que algo deve ser , por exemp lo que
uma certa conduta deve ocorrer. A norma se opõe assim à proposição, que é
o significado de uma frase pelo qual se indica que algo é. “Os homens não
devem m entir ” expressa uma norm a. “Os hom ens m ente m” expressa um a p ro
pos ição. Essa oposiç ão corresponde a duas fu nções da linguagem humana:
de um lado, comunicam-se informações que descrevem a realidade; de ou
tro, tenta-se influir no comportamento de outrem, levando-o a fazer algo. A
primeira função é dit a indicat iva ou descritiva ou ainda assert iva, a segunda,
prescri tiva ou norm ativa.
As proposições p od em ser expressas por frases cujo verbo está no in di
cativo; as norm as, p or frases no imperativo ou co m o auxílio de form as ver bai s como “d eve” ou “é preciso”. M as nem sempre ocorre assim , e a forma
lingüística de uma frase é somente um índice dentre outros da função indi
cativa ou prescritiva que ela desempenha. Uma frase aparentemente norma
tiva pode ser na verdade indicativa. Dessa forma, a frase “para ferver a água,
devemos levá-la a 100°C” não visa, apesar da p resença do verbo “dev er”, a pres
crever uma conduta qualquer. Indica apenas que, aquecendo-se a água até
100°C, ela entrará em ebulição. Informa-se, portanto, apenas uma realidade
objetiva. Da mesma forma, uma frase aparentemente indicativa pode ser naverdade prescritiva. Assim, a frase “estamos em um congestionamento” diri
gida a um motorista significa obviamente que ele deve reduzir a velocidade
de seu veículo.
É por isso que se ressaltou na definição da norma que ela não é uma
frase, mas som ente o significado de uma frase. A forma gramat ical de um a fra
se não permite por si só dizer que se está diante de uma proposição ou de
uma nor m a e, intuitivamente, servimo-nos sempre do contexto. O que é ver
dade para a moral e o direito, freqüentem ente en uncia dos n o indicativo, já quetodos compree ndem que “Não matarás ” não expressa um a predição, mas um a
ordem.
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0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l 3
Significado dessa distinção . - A dist inção entre norm a e proposição é
imp orta nte po r diversas razões:
a) Ela correspon de à oposição e ntre funções psíquicas diferentes. As pr o
posições são enunciadas para expressar um conhecimento do mundo, e as n or
mas, para expressar uma vontade.
b) Norma e proposição têm propriedades diferentes. A proposição é
suscetível de ser verdadeira ou falsa, a no rma, não. Pode mos resp ond er “é fal
so” a “todos os hom ens me nte m”, mas não a “não m inta” Poderíamos o bjetar
que bastaria, em vez de “não min ta”, dizer “não se deve m en tir ”, para que fos
se possível responder “é falso que não se deve mentir”. Mas, respondendo assim, não contestamos a descrição de um fato que conheceríamos melhor que
nosso interlocutor; con tenta mo -no s em o por nossa vontade à sua e em tentar
substituir a norma “não minta” pela norma “minta às vezes".
Se a norma não pode ser nem verdadeira nem falsa, é possível dizer en
tretanto que ela é válida. Dizer que uma norma é válida significa que ela está
em vigor e que devemos nos comportar conforme o que ela determina. É
preciso obse rvar que a validade não é uma propriedade da norma equivalente
à verdade da proposição. Uma proposição desprovida de verdade ainda assimé uma proposição, ao passo que u ma norm a desprovida de validade não é de
forma alguma um a nor ma. Assim, uma proposição que seria refutada uma só
vez deveria ser considerada como falsa. Assim, a proposição “todos os cisnes
são brancos” é falsa logo que encontramos apenas um cisne de uma outra cor.
Ao contrário, uma norma continua válida, mesmo se os comportamentos
determinados não são seguidos. Podemos continuar dizendo “os homens não
devem m ent ir” mesmo se constatamos que eles mentem freqüentemente.
Essas características servem de índices para reconhecer que estamos na presença de um a norma. Se ela expressa um a vontade, se ela não pode ser
verdadeira ou falsa, se ela não deixa de ser válida quando é violada, trata-se
de uma norma.
c) Enfim, não pod e existir entre as norma s e as proposições ne nh um a
relação lógica. Essa impossibilidade é conhecida sob o nome de lei de Hume.
Daquilo qu e algo é não po dem os d eduzir que algo deva ser. Por exemplo, se
todos os homens mentem, disso não podemos deduzir que os homens de
vem m entir, tamp ou co q ue eles não devem mentir. Simetricamente, se existe
um a nor ma segundo a qual não se deve mentir, dela não pode mos d eduzir que
os homen s não mentem.
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4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
A hierarquia das norm as . - Nem toda ordem ou com ando é uma norma.
Um ladrão que ordena “dá o dinheiro” emite um comando e não uma nor
ma. Esse com and o não é válido e pode ser desobedecido. Por o utro lado, se o
percepteur* emite uma ordem parecida, estamos na presença de uma norma
e devemos obedecer a ela. Qual é a diferença entre estes dois comandos? Ela
não reside no conteúdo, pois o comportamento prescrito é o mesmo, dar o
dinheiro. Ela está na validade. Mas po r que d izemos que a o rdem do percep
teur é válida e a ordem do ladrão não o é?
O percepteur só emite seu comando aplicando uma lei, que lhe ordena
receber os impostos. Seu coma nd o é um a no rm a válida em razão de sua co nformidade com a lei. Dizemos que ele encontra na lei o fundamento de sua
validade. A lei foi emitida pelo Parlamento e, aliás, ela é por si mesma uma
norma válida, porque uma outra norma, a consti tuição, ordena ao Parla
mento adotar leis. Acima da constituição, não existe nenhuma norma. Se
considerarmos que a constituição é antes de tudo uma norma e que, assim,
está apta a fundamentar a validade da lei, e indiretamente a do comando do
percepteur , é simplesmente porque pressupomos que ela é válida. Esse pres
suposto chama-se norma fundamental. Essa norma fundamental não existe.Ela nem mesmo é propriamente uma norma. É somente o pressuposto sem
o qual seria impossível tratar a constituição como uma norma e fazer a dis
tinção entre a ordem do percepteur e a do ladrão.
É preciso observar a esse propósito que a validade em questão é a vali
dade formal. Em contrapartida, a norma fundamental não permite de forma
alguma justificar o fundamento das normas. Essa função está relacionada à
ideologia ou, segundo a terminologia de Georges Burdeau, à idéia de direito,
ou seja, à representação da ordem social desejável (v. infra).Sabemos que um a n orm a é válida em razão de sua conformidade com
um a n orm a superior, que é em si mesma válida porque está de acordo com uma
norma ainda superior. Em outras palavras, uma frase qualquer tem a nature
za de uma norma somente por sua inserção dentro de uma hierarquia. Essa
hierarquia forma um sistema. Dizer que se trata de um sistema é dizer que o
conjunto não é composto de uma justaposição ou de uma soma de elemen
tos. Aqui, os elementos têm a natureza de norma somente pelo fato de per
* (N.T.) Fun cionário do tesouro encarregado de receber os impostos diretos, uma gran de variedade de produtos não-fiscais e pagar numerosas despesas públicas.
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0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l 5
tencerem ao sistema. É ele que, daquilo que foi dito, atri bu i a esses elem entos
o valor de norma.
Em última análise, identificamos uma n orm a qu and o constatamos que
um a dete rminad a frase adquire um sentido prescritivo segundo u m sistema
normativo. Simultaneamente, definimos o tipo de norma em questão. De fa
to, existem no rm as jurídicas, morais, religiosas, sociais etc. Se exam inásse
mos isoladamente um a frase, como, po r exemplo, “é proibido con sum ir be
bidas alcoól icas”, ser ia imposs ível dizer se esta mos tratando de uma norma,
e, na afirmativa, se estamos tratando de uma norma jurídica, moral ou reli
giosa. Por outro lado, podemos verificar se essa frase foi enunciada de acordo com uma norma superior, se, por conseguinte, ela se insere em um siste
ma no rmativo. Descobriremo s então qu e ela se insere em um sistema religioso,
o do Islã, no sistema jurídico deste ou daquele país do Oriente Médio, mas
não no sistema jurídico francês. Na França, não existe a obrigatoriedade de
se conformar a tal norma ou, em outras palavras, tal norma jurídica não é
válida ou ainda não existe.
Dispomos agora de uma definição simples da n orm a jurídica: é aquela que
pertence ao sistema jurídico . No en tanto, não resolvemos completa mente o p ro blema da identificação das normas jur ídicas, pois se elas perte ncem ao sistema
jurídico , é necessário, ainda, de finir o sistema jurídico em si mesmo.
O direito e os outros sistemas normativos. - Existem vários sistemas no r
mativos: além d o direito, as diversidades morais, as regras de bon s mod os, os
códigos de honra, as boas maneiras à mesa etc. Podemos tentar distinguir o
direito ou sistema jurídico de todos os outros sistemas normativos, conside
rando que ele possui duas séries de características específicas. Essas caracte
rísticas serão chamadas de critérios de distinção. Podemos considerar carac
terísticas materiais, ligadas ao conteúdo das prescrições, ou características
formais, ligadas à form a ou à estrutu ra d o sistema.
a) Consid eramo s, algumas vezes, que o direito possui u m caráter mate
rial específico: ele não se limitaria, como os outros, a prescrever comporta
mentos, mas acrescentaria sanções a essas prescrições. Se o comportamento
prescri to não ocorre, então o direi to determina que uma sanção seja aplica
da. Ao contrário, os outros sistemas normativos não comportariam sanções. No e ntanto , existem várias n ormas juríd icas que não c omportam sanções,
por exemplo, “se um estu dante é b em-sucedido em seus exames, receberá um
diploma” ou “o Parlamento pode votar as leis”. Para dar conta dessa possível
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6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
objeção, os adeptos da tese de características formais ampliaram a noção de
sanção. Em alguns sentidos restritos, como também 110 sentido comum , a
sanção é um mal imp osto a alguém, autorizado pela coerção. Em um sentido
amplo, a noção compree nde tam bém as recompensas (no caso da conduta pres
crita acontecer de fato). No sentido mais amplo, deno min arem os sanção toda
conseqüência, boa, má ou neutra, que o direito vincula à condu ta prescrita ou
permitida. Dir emos, por exemplo , que, se a constituição permite ao Parla
mento votar a lei, então a conduta permitida é o voto e a sanção é a conse
qüência desse voto, ou seja, a circunstância em que um a lei foi adotada.
Essa explicação não é, entretanto, muito satisfatória, pois, se empregamos o termo sanção em um sentido tão amplo, é necessário afirmar que os
outros sistemas normativos ta mb ém com por tam sanções. Nos sistemas reli
giosos ou morais, o termo diz respeito a castigo ou recompensa do além ou
ainda ao arrependimento. Nos sistemas de normas sociais, a sanção (no sen
tido mais amplo) é o sentido que a sociedade vincula ao comportamento: se
a no rm a p ermite aos pais educ ar os filhos e proibi-los de se alimen tar exclu
sivamente de doces, será necessário de no m ina r “sanção ” o fato que tal inte r
dição será considerada não como um mau tratamento à criança ou comoum atentado às liberdades individuais, mas como um ato de educação. Nes
sa perspectiva, não há muita diferença concreta entre os sistemas normati
vos.
b) Em contrapartida, podem os considerar que o direito possui caracte
rísticas formais específicas. O sistema jurídico, com o todo sistema no rm ati
vo, é hierarquizado. Mas podemos conceber dois tipos de hierarquia: uma
hierarquia estática e uma hierarquia dinâmica. Podemos raciocinar median
te um exemplo simples: um tribunal emite uma sentença, que é uma norma,“Dupont, o ladrão, deve cumprir uma pena de cinco anos de prisão”. Natu
ralmente, essa norma é válida porque está em conformidade com uma nor
ma superior. Mas se buscarmos a norma suscetível de fundar sua validade,
podemos encontrar duas.
A primeira é a lei penal, que ordena punir todos os ladrões com uma
pena de cinco anos de prisão. A sentença proferida pelo tribunal é válid a
porque seu conteúdo está em conformidade com aquele, mais geral, da lei e
essa conform idad e p oderia ser expressa pelo silogismo bem simples:
1) premissa maior: todos os ladrões devem ser pun idos com cinco anos
de prisão;
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2) premissa men or: Du po nt é um ladrão;
3) conclusão: Dupont deve ser punido com cinco anos de prisão.
A relação entre as duas no rmas, a lei e a sentença, é então some nte uma
relação entre dois conteúdos (dos quais um é geral e outro particular). Ela é
dita estática. O tribunal tem, nesse caso, um poder muito restrito, já que a
sentença está predeterminada. Logo que ele constata que Dupont é um la
drão, só lhe resta pun i-lo co m cinco anos de prisão.
A segunda n orm a q ue pod e fundar a validade da sentença é “o tribunal
está autorizado a decretar penas de prisão”. Ela não especifica em quais hipó
teses, nem a duração da p ena e se limita a conferir ao tribuna l u m poder, queele não teria de outra forma, de emitir sentenças. Não há aqui nenhuma re
lação de conteúdo entre a n orm a sup erior e a sentença. Dizemos que a n or
ma superior regula a produção das normas inferiores e a relação é, por essa
razão, c ham ada “dinâmic a”.
O sistema jurídico é caracterizado por um a dupla relação, estática e dinâ
mica, enquanto os outros sistemas consistem somente em relações estáticas ou
em relações dinâmicas entre as normas. Na moral, por exemplo, a norma “não
faça mal ao próx imo ” é válida não porqu e foi enunciada de um a certa maneira,mas porque ela é extraída do conteúdo de uma norma mais geral “ama ao pró
ximo com o a ti mesmo ”. As duas norm as são válidas ao mesm o tempo. A moral
é um sistema estático. Ao contrário, o sistema de poder dentro de u m a quadri
lha de ladrões pode corresponder ao seguinte esquema: o líder maior atribui
um território a cada chefe de quadrilha, o qual, por sua vez, orienta seus ho
mens para esta ou para aquela missão. A ordem dada pelo chefe de quadrilha
não é válida pelo fato de seu conteú do corresponder ao de um a norm a geral, ou
por se ap resen ta r como a aplicação de uma ordem mais geral de seu superior ,mas somente porque o chefe de quadrilha está habilitado a dar ordens em seu
território. Essas ordens são válidas somente em razão da autoridade da qual eles
emanam, independentemente de seus conteúdos. As ordens do líder maior fo
ram emitidas antes das do chefe local. O sistema é dinâmico.
Estamos agora em vias de distinguir o sistema jurídico de out ros siste
mas normativos e de defini-lo por suas características formais. Tal definição
é uma definição estipulativa e não uma definição real ou lexical. Uma defini
ção real é uma definição que se refere a uma coisa e que a descreve sumaria
mente como ela é. Diz respeito à essência da coisa. No entanto, bons autores
consideram que não existe essência do direito ou, se existe alguma, que não
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8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
podemos alcançá- la . Por co nseguin te , não poderemos apresentar um a defi
nição real de direito. Mas tal definição não é de fato necessária. Necessitamos
em primeiro lugar conhecer o sentido da palavra “direito” em u m a deter mi
nada língua e em um determ inado contexto. Buscaremos, então, um a defini
ção lexical. A definição lexical não se confunde com a definição real, como
podemos constatar abrindo um dicionário, porque para a mesma palavra ,
haverá necessariamente várias definições lexicais, dado que essa palavra tem
vários sentidos, e que podemos perfeitamente definir o sentido em que em
pregamos a palav ra em uma determinada língua, sem para tanto falar da na
tureza da coisa.Pode haver a necessidade de escolhermos um a definição que não corres
ponda nem à essência da coisa, nem ao uso da palavra em uma determinada
língua. Este é notadamente o caso, se quisermos estudar um objeto, cujos li
mites, se nos mant ivermos no uso lingüístico, seriam bastante imprecisos. As
sim, um historiador que quisesse estuda r a realeza na Idade Média n ão p ode
ria evidentemente enc ontra r u ma definição real da Idade Média, que é a palavra
que damos ao resultado de um corte cronológico e que não tem existência
objetiva. Ele também não poderia se satisfazer com uma definição lexical, porque se atribuem dete rminadas da tas muito var iadas para o início e o final
desse período, e porque, segundo as definições lexicais, nosso historiador de
veria incluir o reinado de Isabel, a Católica ou, ao con trário , excluí-lo em seu
estudo. As conclusões às quais ele chegará tanto num quanto no outro caso
serão evidenteme nte bem distintas. É a razão pela qual se op tou por d en om i
nar “Idade Média” este ou aquele período a ser estudado. Tal definição é cha
mada estipula tiva> porque ela é estipulada ou convencionada no início do es
tudo. Uma definição estipulativa não é nem verdadeira nem falsa. É somenteútil ou não. É nesse sentido que dizemos que as definições são livres.
Com efeito, a definição formal que acabamos de dar ao direito é uma
definição estipulativa. Não p retend emo s revelar a verdadeira natureza d o di
reito, mas somente dar um instrumento prático. Essa definição parece de fa
to prática e isso por duas razões principais: de um lado, ela permite evitar to
dos os problemas com os quais nos deparamos diante de uma def inição
material fundad a na sanção, quand o procu ramo s distinguir o direito, a mo
ral e a ordem da quadrilha de ladrões. De outro, ela leva a definir um objeto
ao qual pode mo s aplicar um méto do único, a dogmática jurídica, que será exa
minada na seção seguinte.
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0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l 9
Aliás, essa explicação reflete a idéia de qu e tod a ciência delimita seu ob
jeto. O direito, como todos os outros objeto s científicos, não é um a real idade
que seria objetivame nte definida e delimitada. Cabe à ciência delinear os li
mites de seu objeto em um m un do que se apresen ta caótico e esse objeto se
rá aquele ao qual ela pode aplicar seu método. Portanto, é o método que é
aqui o elemento primordial e determinante. Ora, especificamente o método
da ciência jurídica, a dogmática, consiste em utilizar as relações entre as nor
mas, para estabelecer quais são as norm as em vigor. A única definição do di
reito sobre a qual ela pode fundar-se é u m a definição f orm al1.
2.0 DIREITO CONSTITUCIONAL COMO SUBSISTEMA
Tudo indica que o direito constitucional é uma parte do sistema jurídi
co, como, aliás, o direito civil ou o direito penal. No entanto, se ele represen
ta o objeto de um estudo específico, distinto dos de outras partes do sistema
(a que chamamos também ramos do direito), é porque ele possui algumas
características específicas.
Assim como para o sistema jurídico em geral, podemos procurar defi
nir o direito constitucional baseado em suas características materiais ou em
suas características formais. Em ambos os casos, trata-se do direito relativo à
constituição, mas no primeiro caso, diremos que a constituição é um con
junto de normas carac terizadas por seu obje to ; no segundo, que elas são de
finidas pelo nível em qu e se situam den tro da hierarquia da ord em jurídica.
A. Definição material
Podem os conceber várias definições materiais.
1 .0 direito constitucional, direito do Estado
É fato que as constituições apareceram somente com o Estado moder
no. De um lado, assistimos no século XVIII ao desenvolvimento de um mo
1Existe um a literatura imen sa sobre a questão da definição do direito. Para uma p rimeira abor
d agem >ver a revista Droits de 1989 e 1990 c o Dictionnaire d *Êgtiilles.
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10 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
vimento ideológico poderoso, o constitucionalismo, que concebia a liberda
de e o pode r com o antagônicos. Para ga rantir a liberdade, era preciso limitar
o pod er po r meio de algumas regras de organização juridicamente c om bina
das. Con venc iono u-se c ha ma r essas regras de “con stituiçã o”, ter mo sin ôni
mo na época de “organização” ou de “estrutura ”, com o a inda vemo s hoje qu an
do nos referimos a um hom em que tem um a constituição robusta. De outro
lado, o poder a ser limitado não é qualquer poder, não é o que se pode exer
cer na família, no exército ou na Igreja, mas somente o poder político mais
impo rtante, precisam ente o que se desenvolveu no século XVII, princ ipal me n
te na França, e que chamamos de Estado.Portanto é natural considerarm os que a constituição e o direito consti
tucional têm po r objeto o Estado e os limites de seu pod er e que, assim, pr o
curemos defini-los. A constituição (ou o direito constitucional), no sentido
material, é então o conjunto das regras relativas à organização desse Estado , ou
seja, relativas à designação dos homens que exercem esse poder, a suas com
pe tênc ias, a suas relações mútuas. Mas, se racio cinarmos assim, somente des
locaremos o problema, pois é necessário definir o Estado.
É preciso então c onsiderar qu e existe um Estado desde que três requisitos sejam preenchidos: que haja um território, um povof um poder.
a) O território
Ainda que a questão tenha sido discutida, podemos dizer que não há
Estado sem território. N ão que o território seja, com o po r vezes se acredita,
um elemento constitutivo do Estado; mas porque ele é uma condição indis
pensável para que a autoridade pública se exerça de m odo eficaz.É verdade que a história nos dá exemplos de Estados reconhecidos co
mo tais antes mesm o de suas fronteiras serem totalm ente delimitadas - foi o
caso da Polônia depois da guerra de 1914-1919; mas trata-se de uma situação
excepcional que não pode ocorrer senão no caso de um Estado antigo em
vias de reconstituição e que, anteriorme nte, era constituído sobre um a base ter
ritorial.
A idéia de encerrar um a coletividade huma na em limites lineares estáveis
- as fronteiras - é relativamente recente. Na Grécia Antiga não há nem linha
aduaneira, nem linha militar; em Roma, os limes do Império são espaços onde
se exerce a vigilância das legiões. Foi somente no século XVI que os trabalhos
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0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l 11
cartográficos, viabilizados pelo avanço dos estudos matemáticos e geográficos,
trouxeram a noção mod erna de fronteira. Ora, não é por acaso que aproxim a
dam ente n a me sma época surge o conceito de Estado para definir algumas for
mas de poder político (A n c f .l , 1936, t.I; F è b v r e , 1962, p. 11 e s.; A l l i è s , 1980).
Função política do território. - De fato o território representa um papel
imprescindível no exercício da função política:
1) Pela deter min ação de u m espaço territorial, o poder inscreve a nação
no plano das realidades concretas: ele permite realizar isso por um solo e uma
idéia que são a própria essência da nação. Símbolo e proteção avançada daidéia nacional, o território é, por excelência, o fator da unidade do grupo,
permitindo-lhe tomar consc iênc ia de si por sua diferenciação em re lação aos
grupos vizinhos. Compreendemos, nessas condições, esse dever de unifica-
do r de territórios a que se atribu íam os reis. De seu resultado dep endia o su
cesso de toda sua responsabilidade governamental, pois a autoridade é sem
pre um deve r da unidade de visão dos que são chamados a apoiá- la .
2) O terri tório é também para o poder uma condição de sua indepen
dência. Para ser senhor, é necessário que se esteja em sua própria casa e omelh or m eio de o ser é traçar os limites de sua propriedad e.
É essa idéia que traduzim os juridicamente qua ndo dizemos que o terri
tório é um âmbito de competência. Todos aqueles que nele vivem estão su
bordinados ao regulamento das autoridades do país. Uma determinação das
competências que admitisse a plena liberdade das pessoas talvez fosse mais
prá tica , mas ela iria de encontro ao fa to r da sedenta rie dade das popula ções e
também poderia provocar graves atri tos em detrimento da boa harmonia
das relações internacionais.O território é, portanto, o quadro natural no qual os governantes exer
cem suas funções.
Se o poder dispõe, dentro de sua soberania terri torial , do direito de
submeter a suas decisões todos os indivíduos que se encontram no território
nacional, esse direito com po rta com o resultado a obrigação de proteger, nos
limites do território, os direitos dos outr os Estados e principalm ente aqueles
que seus cidadãos podem exigir.
3) Politicamente, o papel do territó rio não se reduz a essa função n ega
tiva de delimitação de uma esfera de competência. É também, positivamen
te, um meio de ação do Estado. De um lado, a autoridade, confiante na estabi
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12 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
lidade de seu domínio, pode imprimir mais facilmente uma direção na ativi
dade do grupo; de outro, quem dirige o solo dirige o habitante. Podemos
controlar melhor os indivíduos quando mantidos no território no qual eles
vivem.
A natureza do direito do Estado den tro de seu território (SCHOENBORN;
Sc e l l e , 1948, p. 67; R o u s s e a u , 1987, p. 224).
Essa questão é obviamente o efeito de u ma metáfora an tropomórfica:
na med ida em que o Estado é considerado com o uma pessoa, consideramos
que ele possui um território e nos pergu ntam os sobre a natureza de seu direito sobre esse território. Essa metáfora é or iun da de algumas semelhanças en
tre as normas do direito internacional relativas às mudanças territoriais e as
normas do direito interno relativas à propriedade. Mas essa maneira de pen
sar a questão leva-nos a dificuldades relevantes: não pod em os reconhecer es
se direito à propriedad e, porq ue se o Estado fosse o prop rietár io do solo seu
direito seria exclusivo e os particulares não po de riam ser proprie tário s ao mes
mo tempo que ele. Não podemos tampouco associá-lo à soberania, que é
considerada como um direito sobre os homens e não sobre as coisas. Procuramos, então, uma terceira via e consideramos que esse direito deveria ser
entendido como um direito real institucional, real para marcar que ele opera
diretamente no solo nacional, institucional para indicar que seu conteúdo é li
mitado e determ inado por aquilo que exige o serviço da instituição estatal. Mas
não po dem os esquecer que se trata apenas de um mo do simples de apresen
tar as coisas, de uma forma de falar: o Estado produz normas que são obri
gatórias em uma determin ada p orção de espaço, referindo-se a um determ i
nado gru po de homen s. É irrelevante pen sar que existiria de fato um vínculoconcreto e ntre o Estado e esse espaço, cuja natu reza tentaríam os descobrir.
Dito isso, é necessário ressaltar que o território é um espaço com três
dimensões: não é apenas terrestre, mas se estende igualmente às porções m a
rítimas que ba nha m a costa (mar territorial) e à camada atmosférica situada
acima do solo.
b) A população
Em segundo lugar, podemos falar em Estado apenas quando um certo
núm ero de homens é submetido a uma determinada orde m jurídica, excluin
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0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l 13
do-sc qualquer outra. Esse conjun to de hom ens é denom inad o população do
Estado. É possível - e isso ocorre freqüent emen te - que os hom en s que inte
gram esse conjunto não possuam nenhuma outra característica comum a não
ser a de estarem submetidos a urna determinada ordem jurídica. Podem existir
entre eles diferenças bem consideráveis do ponto de vista lingüístico, étnico,
religioso, econômico e também no que se refere ao sentimento de pertencer
a essa população ou à submissão ao Estado. Não formam, entretanto, do
ponto de vista estrit amente juríd ico, a população do Estado.
No entanto, podem os considerar que o Estado só pode funcionar de
forma satisfatória quando a população apresenta outras características comuns, notadamente a adesão a valores fundamentais e ao próprio Estado, a
consciência de pertencer a um mesm o povo e a vontade de preservar sua
unidade. O povo estr utura do pelo Estado ou pelo desejo de instituir um é tam
bém chamado “n ação”
Disso decorre que a nação é às vezes an terio r ao Estado, como ocorre pr e
cisamente nas reivindicações nacionais, mas ela também pode ser criada pe
lo próprio Estado, como aconteceu na França, durante a antiga monarquia.
Mas pode tamb ém ocorrer - o que, aliás, é o caso mais freqüente - queum Estado tenha uma população que não apresente nenhuma homogenei
dade, nem lingüística, nem étnica, nem cultural e que não possu a ne nh um sen
timento patriótico. Nem por isso deixa de ser um Estado. Não é, portanto, a
existência de uma nação, mas somente a de uma população, que é uma con
dição do Estado.
c) O poder
Bem, para que exista um Estado, não basta que exista em um território
determinado um a população submetida a um mesmo conjunto de normas.
Não e mpregamos habitu almente o t ermo Estado para falar das sociedades sem
história, ditas “primitivas”, ou da Europa ocidental da sociedade feudal; é
preciso ainda que essa população e esse território es te jam submetidos a uma
forma específica de poder político. Essa terceira condição de existência é ge
ralmente chamada de poder público ou ainda soberania.
Confunde-se, às vezes, a questão jurídica da especificidade do poder, p ró
pria do Estado, com as questões sociológicas ou polí ticas do consenti mento
e da legitimidade.
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14 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Ê verdade, de u m po nto de vista sociológico, que o Estado não pode exer
cer o pod er pelo simples uso da força. Necessita, para exercê-lo de form a d u
radoura, do consen timento dos sujeitos ou, ao menos, de u ma parte deles.
É igualmente verdadeiro que ele precisa de uma legitimidade , ou seja,
de um con junto de razões que justifiquem aos olhos dos sujeitos ou do s pró
prios govern ante s a atribuição do poder àqueles que o exercem e o deve r de
obedecer-lhes. Max Weber d istinguiu, assim, três tipos de legitimidade, segu n
do os quais o poder é tradicional (governo do príncipe), carismático (gover
no do chefe qualificado po r seu prestígio) ou racional (governo de au tori da
des agindo em conformid ade com o direito).Mas de um ponto de vista jurídico, o consentimento ou a legitimidade
não podem ser elementos de definição do Estado, pois há muitos Estados
onde não existe o consentimento dos sujeitos ou cuja legitimidade é contes
tada, mas que nem por isso deixam de ser Estados.
Dizemos, então, que o que caracteriza o Estado é o fato de ele exercer
um pod er de um a essência específica, um pod er sup erior a todos os outros, a
que chamamos soberano. No entanto, q uan do se trata de definir o Estado por
sua soberania, não pode mos considerá-la como u ma supremacia de fato, umasupremacia real. Podem existir, efetivamente, em alguns países, instituições
ou grupos na verdade mais poderosos que o Estado. O p oder em questão é, por
tanto, um pod er que não é superio r de fato, mas somen te de direito.
Con statamo s, dessa forma, que os três elementos da definição do Esta
do correspo ndem a fenômenos que não são nem naturais, tampouc o sociais
e culturais. Podem existir Estados onde não há nem população nem territó
rio homogêneos, cujo poder não é real e materialmente superior. Portanto,
esses três elemento s devem ser definidos juridic ame nte e apenas desse mod o.Mas uma definição jurídica do Estado - e po r conseguinte um a definição
material do direito constitucional - ocasiona novas dificuldades.
2. Insuficiên cia dessa definição m aterial
A insuficiência repousa em uma definição de Estado. Ora, esta sofre de
uma inexatidão grave. A crítica, muito simples, foi feita por Hans Kelsen. De
fi n ir o Estado pela reunião de três condições é afirm ar que tão logo constatamos
que essas três condições são realizadas, verificamos imediatamente que existe um
Estado. Mas, objeta Kelseny é impossível fazer essa constatação, po is as três con
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0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l 15
dições não correspondem a fatos empíricos que poderíamos encontrar na natu
reza. Co mo saber, por exemplo, que existe um povo? Um povo não é um fenô
meno natural. É um grupo de homens, que muito freqüentemente não têm
em comum nem a língua, nem a religião, nem laços étnicos, nem outra carac
terística. O único laço que os une é o fato de estarem submetidos ao mesmo
Estado. Mas percebemo s com isso que se o povo se define pelo Estado, torna-
se impossível definir o Estado pelo povo. Da mesma forma, o território não
existe “naturalmente”. É somente a porção de espaço na qual o Estado exerce
sua autoridade. Quanto ao poder piiblico, não se trata também de um poder
polít ic o qualquer, é o do Estado. A definiç ão clássica de Estado apresenta, porta nto, um cará ter tautológico: existe um Estado quando há um povo, um
território e um p ode r público e existe um povo, um território e um p ode r pú
blico quando existe um Estado (K e l s e n , 1962, especialmente, p. 2 7 5 - 3 1 0 ) .
Em contrapartida, o direito constitucional conheceu desde o século XVIII
uma evolução importante. Ele não tem mais apenas por objeto a organiza
ção do Estado e não tem mais apenas como finalidade a limitação do poder
e a garantia da liberdade, mas abrange questões constantemente mais varia
das e mais numerosas. Essa evolução se explica na tura lme nte pela hierarq uiadas normas (cf. supra): cada norma encontra o fundamento de sua validade
em uma norma superior, com a qual deve estar em conformidade. Isso im
pl ica obviamente que a primeira não pode modif icar a segunda. Aplicada às
relações da constitui ção e da lei, essa idéia significa que a lei não pode m od i
ficar a constituição. Essa idéia é rica de conseqüências práticas, pois quando
queremos d ar um grande valor a uma regra, quando queremo s protegê-la de
qualquer modificação pela lei, a ela damos a forma constitucional, exprimi
mo-la por um texto constitucional e assim ela se torna em si mesma umano rm a constitucional. Ela poderá ser alterada somente m ediante um proce
dimento especial, geralmente mais difícil de ser realizado. Há dois séculos
anunciaram-se com efeito numerosas regras, principalmente para garantir
liberdades fundamentais, entre outras questões (F a v o r e u , 1988) .
3. A constituiçã o, sistema de órgãos
Os homens que exercem o poder político não exercem um poder pró
prio , mas uma competência. Dizemos q ue eles t êm, individualmente o u quan
do estão reun idos em colégios, a qualidade de órgãos do Estado, porque seus
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16 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
atos são considerados como realizados pelo Estado e são a ele atribuídos.
Nós os chamamos também de autoridades ou poderes públicos. Nos Estados
mo derno s, existem vários órgãos como esses, de form a que o pod er seja pa r
tilhado entre eles. A constituição é, então, a organização geral do poder, re
sultante da divisão das competê ncias entre os órgãos.
B. Definiçãoformal
Mas podemo s dar tam bém uma definição formal do direito constitucio
nal: é o conjunto de normas que têm um valor superior ao de outras normas ,que podem servir de fun da m en to de validade a outras normas e que não se fu n
dam em nenhum a norma jurídica.
Algumas dessas normas são enunciadas em um texto ou documento
denominado “constituição fo rm a l . No entanto, em vários países, a constituição
formal é aplicada e interpretada pelos juizes, de m od o q ue o co njun to dessas
interpretações, que forma o que cham amo s jurisprudência, é também uma par
te do direito constitucional.
O direito constitucional não mais se define materialmente por seu ob jeto, mas por sua forma: tr ata-se das normas que ocupam o to po da hierar
quia do sistema jurídico, que não podem ser modificadas pela lei e que po
dem incidir sobre campos bem variados.
É necessário ressaltar que as definições formal e material não coinci
dem. Uma norma contida em um texto constitucional pode ser constitucio
nal formalmente, mas não materialmente. O exemplo mais conhecido é o de
um a disposição da constituição helvética que proibia o abate dos an imais se
gundo o costume judeu. De modo contrário, uma norma relativa à eleiçãodos deputados que, como na França, não está contida no texto constitucio
nal mas dentro da lei, é constitucional materialmente, não formalmente.
Na maioria dos Es tados modernos, privilegia-se a defin ição formal . Es
sa preferência indica que o objetivo é proteger princ ipalm ente as liberdades,
asseguradas pelas normas formalmente constitucionais contra infrações ou
modificações que possam ocorrer de forma excessivamente fácil. Daí porque
um número cada vez maior de matérias tem encontrado seu fundamento no
direito constitucional, na medida em que elas são em parte regidas por nor
mas form almen te constitucionais, cuja supremacia é assegurada em razão do
controle de um tribunal constitucional.
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Seção 2
O direitoconstitucional comociência
Em um segundo sentido» a expressão “direito constitucional” designa a
disciplina, a ciência que estuda o c on junt o de regras que ch am am os “direito
constitu ciona l” ou “constituição”. Sobre a natu reza e os m étod os dessa ciên
cia, existem concepções muito diferentes, que refletem, aliás, as grandes di
vergências relativas à ciência do direito em geral, a do positivismo e a do jus-
naturalismo, a da ciência do direito ou dogmática jurídica e a da sociologia.
1. JUSNATURALISMO E POSITIVISMO
A.0jusnaturalismo
Alguns acreditam que não existe um só direito, mas dois. O primeiro é
aquele de que tratam os até o mo men to, o direito em vigor, tam bém cham ado
“direito positivo”, porque é a expressão da vontade de alguns homens e quefoi “posto” por eles. O outro seria um direito que não seria produzido pela
vontade hum ana, mas imanente à sua natureza (de onde provém o nom e di
reito natural) ou produzido pela vontade de Deus. O direito natural existiria
antes do direito positivo e se situaria acima deste. Deveria notadamente de
term inar qual autoridad e política é legítima, ou seja, habilitada para produ zir
o direito positivo, e em quais condições esse direito é válido e obrigatório.
Serviria, po r conseguinte, como fund ame nto de validade para o direito posi
tivo. O conteúdo desse direito natural (o que ele prescreve) é simplesmente a
justiça: os homens devem produzir um di re ito posi tivo que faça a justiça.
Como é de se esperar, existem muitas variantes dessa doutrina. As dife
renças referem-se antes de tudo à fonte do direito natural, que alguns fu nda
me ntam na vontade de Deus, outros n a natureza das coisas, outros, ainda, na
natureza humana ou na razão. Dizem respeito também às concepções de jus
tiça. Finalmente, há diferenças quanto às conseqüências que estão ligadas a
uma contradição entre o direito natural e o direito positivo. Segundo alguns
autores, que evocam o belo mito de Antígona, um a n orm a d o direito positi
vo que seria con trária ao direito natu ral, logo, à justiça, não seria obrigatória
e seria justo desobedecer a ela. Haveria até mesmo um dever de desobediên
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18 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
cia. Outros autores vão mais longe e consideram que o direito natural forne
ce um critério de identificação do direito: um direito positivo contrário ao di
reito natural não seria nem mesmo um direito. Outros, por fim, são mais m o
derados; consideram que um direito posit ivo contrário ao direito natural
contin ua sendo um direito, e que inclusive deve ser obedecido, mas que o di
reito natural pode servir de instrumento para julgar e para sugerir avanços.
Em t odo caso, o jurista que adota essa concepção não se conten ta em des
crever o direito com o ele é. Acredita que lhe cabe tam bém falar do dire ito co
mo ele deveria ser. Essa concepção tende naturalmente a se aplicar a várias
áreas, por ém de form a mais específica em relação ao p ode r público. Qual é o poder legí timo, quais são os limites do poder e quais são os direit os naturais
do homem que esse poder deve respeitar? Eis algumas das questões tratadas
pelas doutrinas do dir ei to natural. Em se tratando de forma específica do di
reito constitucional, essa concepção se manifestaria da seguinte forma: de
um lado, uma definição material desse direito; haveria um direito constitucio
nal por natureza, que teria por objeto o Estado; de outro, podemos vincular
ao jusnatura lismo a idéia de que existiriam fo rmas jurídicas puras, po r exem
plo os regimes parlamentar ou presidencial , cu jas insti tu ições concre ta s deveriam aproximar-se. Mas essa concepção se manifesta sobre tudo na idéia atual
dos direitos humanos, segundo a qual os governantes devem respeitar esses
direitos, inscritos na natureza do Homem e que prevaleceriam mesmo quan
do não expressamente formulados no texto da constituição.
B.0positivismojurídico
1 .0 mo delo das ciências empíricas
O positivismo jurídico caracteriza-se antes de tudo pela vontade de cons
tru ir um a ciência do direito baseada no mod elo das ciências da natureza. Essas
ciências consistem em uma descrição de mundo com o auxílio de proposições
verificáveis. Os juízos de valor não são suscetíveis de serem verdadeiros ou fal
sos. Correspondem somente às emoções e aos gostos daqueles que os expres
sam. Portanto, não são obviamente verificáveis e a ciência somente se desen
volveu renunciando a eles. Ora, as teses sobre o direito natural, sobre o que é
justo e injusto, são apenas juízos de valor. Eles não corre spondem a nenhuma
realidade objetiva, mas somente a opiniões subjetivas e relativas. Basta, aliás, exa
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0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l 19
mina r as doutrinas do direito natural p ara constatar que, se todas pretendem
sub mete r o direito positivo a u ma exigência de justiça» elas diferem pro fun da
mente no conteúd o do conceito de justiça. Ao contrário, um a ciência autên ti
ca será “pura” de todo juízo de valor e se limitará à descrição de seu objeto.
Existe uma crítica clássica ao positivismo jurídico: se nos abstemos de
tod o juízo de valor, de acordo co m o ideal de pureza, não v amos aceitar con
siderar como direito qualquer sistema jurídico, seja ele a mais atroz tirania?
O sistema jurídico nazista seria direito, exatamente com o o da Suíça. O posi
tivismo acaba assim p or leg itimar qualq uer sistema. A essa crítica, os adeptos
do positivismo opõem dois argumentos: de um lado, dizer que um sistema é ju ríd ico, que forma um dire ito, não significa consid erá -lo como bom ou de
terminar sua observância. Não há recomendação nem para obedecer, nem,
aliás, para desobedecer, mas apenas a identificação de um objeto para a ciên
cia do direito, o reconhecimento de que ele pertence a uma certa classe de
objetos. De outro lado, o positivismo não proíbe qualquer juízo de valor,
mas apenas aquele que seria enunciado em nome da ciência. Uma ciência
pode apenas descrever o real com o auxíl io de proposições e é logicamente im
possível derivar regras. Aquele que enunciaria ju ízos de valor e que pretenderia fazê-lo em virtude de suas habilidades científicas cometeria simp lesme n
te uma fraude intelectual. Em contrapartida, é perfeitamente legítimo emitir
um juízo de valor baseado em outro ponto de vista que não o da ciência. É
possível, por exemplo, considerar , do ponto de vista da ciência ju rídica, que
o sistema nazista é um direito, que pode ser estudado e descrito como tal, e,
ao m esmo tempo, do ponto de vista moral, sustentar que se trata de um di
reito abominável e que é necessário se esforçar para destruí-lo por todos os
meios. Na prática, aliás, vários positivistas tiveram essa dupla atitude.
2 .0 objeto da ciência do direito é o direito
O positivismo jurídico se apresenta sob duas variantes: de acordo com a
primei ra , talvez exista um direito na tura l, mas ele não é cognoscível pela ciência
e ela dele nada pode dizer. De acordo com a segunda, mais radical, os únicos
objetos existentes são objetos empíricos, ou seja, acessíveis aos sentidos, e as
doutrinas do direito natural servem apenas para que seus autores apresentem
opiniões políticas sob uma aparência de objetividade. Não há dois direitos, mas
um só, que é o direito positivo. De qualquer modo, tanto para uns como para
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20 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
outros, uma autêntica ciência do direito deve se limitar a descrever o que ela
pode conhecer. Ora , o direito positivo é c omposto de normas que são a signifi
cação de determinadas frases, med iante as quais alguns indivíduos expressam sua
vontade; existe aí uma realidade empírica que pode ser conhecida e descrita.
3 .0 conteúd o da ciência do direito, as proposições de direito
Uma ciência verdadeira do direito deve se com po r de proposições. Nós
as cham am os “proposições de direito”. Cada um a dessas proposições descre
ve uma norma. Ela é suscetível de ser verdadeira ou falsa. Ela é verdadeira sea norma descrita existe de fato, falsa, em caso contrário. Assim, a proposição
“existe na França uma norma segundo a qual se alguém comete um assassi
nato, deverá ser condenado à morte” é falsa, pois essa norma foi ab-rogada
na França e não existe mais.
A distinção entre n orm as e proposições de direito é imp ortan te, mas às
vezes delicada. É impo rtan te, p ois elas têm prop riedad es diferentes. As nor
mas são um produto da vontade , enquanto as proposições de direito são um
produto do conhec imen to. As normas não podem ser nem verdadeiras nemfalsas, enquanto as proposições de direito, por sua vez, são suscetíveis de se
rem verdadeiras ou falsas. A distinção é, entretanto, delicada, porque fre
qüen temen te enunc iamos a proposição de direito não sob a forma completa
que acabamos de indicar (“no sistema jurídico do país X, existe uma norma
segundo a qual se alguém cometeu um assassinato, deverá ser condenado à
mo rte” ), mas sob uma forma sintetizada que reproduz pura e simplesmente
o conteúdo da norm a. Um professor de direito, por exemplo, que não e nu n
cia nor mas , mas apenas proposições de direito, não precederá a descrição decada norma pela fórmula “no sistema jurídico X, existe uma norma segundo
a qual...” e dirá simplesmente “se alguém cometeu um assassinato, deverá ser
condenado à morte” Compreendemos, contudo, que se trata não de uma
norma , mas de uma proposição, porque a frase não eman a de uma a utorid a
de juridicamente autorizada a colocar normas, mas de um professor, e ela é
logicamente suscetível de ser falsa.
Segundo o exemplo sobre o qual raciocinamos, poderíamos crer que a
ciência do direito se limita a reproduzir pura e simplesmente as normas e
que ela não é, por conseg uinte, de mu ita utilidade. No entanto, nã o pod em os
esquecer que as norma s n ão são enun ciado s que não são acessíveis aos senti
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0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l 21
dos. A ciência do direito precisa somente de enunciados, qu e expressam n or
mas, mas não das normas em si. Cabe a ela, portanto, desvendar quais são
essas normas expressas pelos enunciados, ou seja, depreender seu sentido e
descrevê-lo com o auxílio de um a proposição de direito.
Essa descrição não se limita, aliás, a uma indicação do conteúdo da
norma, daquilo que ela prescreve. Faz-se necessário, ainda, para descrevê-la
completamente e explicá-la, interpretá-la com o auxílio do conjunto das
normas a que ela pertence. Esse ponto se esclarecerá se raciocinarmos mais
particularmente sobre a ciência do dir eito consti tucional.
4 .0 conteúdo da ciência do direito constitucional
A ciência do direito constitucional é simplesmen te u m ram o da ciência
do direito. Ainda qu e seu objeto seja específico - a constituição - sua função
é idêntica: enun cia r proposições de direito. Ela se faz presente p or textos. Su
ponham os, po r exemplo, esta frase bem conhecid a: “a lei é a expressão da
vontade geral”. É evidentemente possível, mas pouco útil, enunciar a propo
sição de direito: “existe uma norma segundo a qual a lei é a expressão davontad e geral”. Mas pod em os c om preen dê-la e assim descrevê-la inteira
mente no sistema a que ela pertence. Isso pode ser entendido ao menos de
três maneiras diferentes.
Em primeiro lugar, do ponto de vista formal, essa norma se situa em
um determinado nível da hierarquia da ordem jurídica. O texto que a ex
pressa está conti do na Declaração dos Dire itos do Homem e do Cidadão de
1789, à qual remete o preâmbulo da constituição francesa de 1958. Portanto,
ela integra hoje a constituição formal, o que significa que ela se impõe a todos e principalmente ao legislador.
Em segundo lugar, do po nto de vista material, devemos indicar o que sig
nifica “a lei é a expressão da vo ntad e geral”. Ora , essa frase pode ser com pre
endida apenas considerando-se uma concepção global do poder polí t ico,
elaborada no século XVIII, mas que ainda inspira o direito francês. Essa fra
se, redigida no mo do indicativo, adquir e u m significado prescritivo some nte
qu an do esclarecida den tro de seu contexto. Ela significa, então, que aquele que
enuncia a lei não tem o direito próprio de exercer o Poder Legislativo, que a
vontade que ele expressa não é a sua mas a vontade geral, que ele não é o so
berano do povo, mas apenas seu representante .
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22 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Em terceiro lugar, ainda de um po nto de vista material, é preciso deter
min ar o con teúd o preciso da prescrição. O en uncia do “a lei é a expressão da
vontade geral” pode de fato significar uma prescrição, mas essa prescrição só
pode ser consid erada como uma norm a um a vez es tabelec ida qual conduta
deve ocorrer. Poder-nos-íamos perguntar, por exemplo, se a fórmula do art.
6o implica que tudo o que faz o detentor do Poder Legislativo deve ser consi
derado como a expressão da vontade geral ou se, além disso, determinadas
condições devem ser respeitadas. Evidentemente, a leitura, me smo atenta, do
art. 6o não fornece a resposta a essa questão. Portan to, a ciência do direito co ns
titucional nã o p ode, po r si me sma, fornecê-la, mas cabe-lhe, antes, colocá-la(in abstracto, fora de qualquer dificuldade particular, na ausência de qual
quer litígio concreto) e expor as diversas soluções possíveis, e em seguida,
descrever a solução apresentada pelo direito positivo. Assim, no caso em
questão, durante a Terceira República, a solução era: “tudo o que faz o Poder
Legislativo é a expressão da vontade geral, é uma lei”; durante a Quinta Re
pública, a solução , que resulta da jurisprudência do Conselho Constitucional, é
ao contrário: “o que fo i adotado pelo Poder Legislativo é a expressão da vontade
geral som ente se estiver em conformidade com a constituição”.Con statam os assim que existe um a relação estreita entre o texto em ques
tão e a organização geral do poder. É por ser a constituição um sistema de
órgãos, que o conte úd o do art. 6o da Declaração adquire um sentido pa rticu
lar de acordo com o sistema no qual o interpretamos, um sentido diferente
durante a Terceira ou durante a Quinta República.
2 . D i r e i t o c o n s t i t u c i o n a l e c i ê n c i a po l í t i c a
A distinção reflete aquela entre ciência do direito e a sociologia. Essas
duas disciplinas foram concebidas tanto como uma única e mesma ciência,
como duas disciplinas, opostas ou complementares.
a) A unidade do direito constitucional e da ciência política
Até o início do século XX, direito constitucional e ciência política formavam some nte um a única disciplina. Essa situação se explica po r dois fato
res principais.
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0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l 23
Por um lado, a distinção de inspiração positivista entr e a perspectiva des
critiva e a perspectiva normativa não estava claramente estabelecida e a ciên
cia política se incu mb ia de des cobrir o me lhor sistema de governo. Ela tinha,
portanto, um conjunto de prescr ições. É nesse sentido que, por exemplo , as
histórias da ciência política publicadas no século XIX diziam respeito ao que
chamaríamos hoje filosofia ou teoria política. Quando essas prescrições eram
precisas, podiam tomar a aparência de regras consti tucionais .
Por outro lado, mesmo d entro de u ma perspectiva mais próxima da co n
cepção positivista, descrever a organização e o funcionamento do poder era
descrever as regras efetivamente aplicadas, da mesm a form a qu e descrevemos e explicamos um jogo enunciando suas regras.
b) A distinção do direito constitucional e da ciência política
As duas disciplinas se separaram qu an do esses fatores se enfraquece ram.
Por um lado, adm itiu-se que era necessário distingu ir dentre as regras aquelas
que efe tivamente estavam em vigor, que faziam parte do direito positivo, e em
contrap artida, aquelas que se desejava introduzir, que pod iam ser preconizadas, mas que nã o p odiam ser descritas. De onde vem u ma primeira distinção
entre a teoria política, norm ativa, e a ciência do direito e a sociologia, descri
tivas. Por out ro lado, era possível constatar facilmente que o efetivo fun cion a
mento do poder político não poderia ser entendido como o resultado de uma
simples aplicação de regras de direito, e que existiam situações, cada vez mais
freqüentes, no século XIX, nas quais aquele que o direito designa como o
principal detentor do poder, o monarca, não estava mais em condições de
exercê-lo, a não ser de forma parcial, ou de fo rma alguma. É necessário, então, procurar ante s descrever a efetiva divisão do poder, e em segu ida explicá-la, o
que ev identemente só pode mos fazer colocando em evidência as relações so
ciais. Constitui-se, então, ao lado de uma disciplina propriamente jurídica, o
direito cons tituciona l que estuda as regras, uma disciplina sociológica, a ciên
cia política preocupada em descrever a realidade.
Essa dualidade provocou na França, logo após a Segunda Guerra Mun
dial, um a rivalidade e um declínio da ciência do direito constitucional, que pa
recia definitivamente inapta para descrever o real e se achava restrita às tare
fas tradicionais: descrever as no rm as em vigor e esclarecer seus fun dam ento s
com o auxílio das grandes doutrinas. Na verdade, a descrição das regras
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24 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
constitucionais acrescentava somente poucos elementos novos à simples lei
tura dos textos da constituição, e, em contrapartida, as grandes doutrinas da
época revolucionária e a relação destas com as regras do direito positivo ti
nham sido em geral muito bem apresentadas de forma completa pelos juris
tas das gerações anteriores com o Esmein ou Carré de Malberg.
Admitiu-se, porta nto, nessa época que, já que a ciência do direito con s
titucional não propiciava um conhecimento da política, era necessário com
plementar a exposiç ão das regras com a descri ção do funcionamento real.
Foi assim que os currículos dos estudos de direito foram modificados a fim
de fazer constar n o título dos cursos, ao lado da expressão “direito con stitucio na l”, a de “ciência polít ica” ou de “instituições po líticas”.
Essa mu da nça era, entretanto, some nte u ma maq uiagem superficial. Sal
vo algumas notáveis exceções, as obras de direito constitucional posteriores à
Segunda Guerra Mundial, na França, se apresentavam como obras pedagógi
cas, úteis, mas sem gr ande originalidade, en qu ant o os mais ilustres dentre os
juri stas de direito públi co se dire cionavam para o dir eito adminis trativo ou
para a ciência polí tica .
c) O avanço do direito constitucional
O declínio parece hoje definitivamente estacionado em razão de dois con
juntos de fatores, alguns deles ligados à in fluência da ciência polí tica, outro s,
às transforma ções essenciais do direito constitucional.
Em primeiro lugar, a ciência do direito constitucional começou a mo
dificar sua metodologia emprestando da ciência política dois instrumentos
que ela mesma, aliás, havia importado de outras disciplinas e que se revelaram particularmente eficazes: a análise estratégica e a análise sistêmica. A
primeira consiste em explicar as ações das auto ridades públicas concebendo-
as como condutas organizadas em vista de um determinado objetivo, em
função das condutas efetivas ou prováveis das outras autoridades. Construí
ram-se, por exemplo, modelos teóricos, para dar conta dos c omp ortam entos
dos poderes públicos constitucionais dura nte a Quin ta República, em diferen
tes hipóteses de concordância ou, ainda, de divergência entre a maioria par
lamentar e a maioria presidencial. A análise sistêmica em si encara o poder
como um conjunto de interações entre os elementos, que não são invariá
veis, mas que assume m sentido e se modificam em função dessas interações.
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0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l 25
Não podemos, portanto, nos limit ar a ra cio cin ar como se o direito constitu
cional positivo consistisse em uma série de regras, logicamente deduzidas de
alguns princípios fundamentais. Os princípios se modificam em função dos
sistemas constitucionais nos quais estão inseridos e em função de suas rela
ções com os outros elementos desses sistemas.
Mas o avanço da ciência do direito constitucional resulta também em
grande parte das transformações que afetam o direito constitucional em sua
essência. Trata-se principalmente do extraordinário desenvolvimento da jus
tiça constitucional. Em vários países foram criados tribu nais constitucionais.
Eles produziram jurisprudências de grande im portância e de grande com plexidade. Esses tribunais são na verdade levados principalmente a controlar
a validade das leis nas mais diversas matérias e a verificar se elas estão de
acordo co m os princípios c ontidos na constituição. É necessário, portanto , ad
mitir primeiramente que todos os ramos do direito, o direito civil, o direito
penal ou o direito comercial têm as bases na const ituição, e em segundo lu
gar que são os tribuna is constitucionais, encarregados de interp retar seu tex
to, que c ontr ibue m para de term ina r suas bases. A ciência do direito cons titu
cional desempenha, assim, um papel essencial: expor e comentar essa juris prudência.
Hoje, identificamos na ciência francesa do direito constitucional duas
correntes principais. A primeira estuda um objeto tradicional, as institui
ções, adotando, contudo, métodos novos. A segunda aplica o método jurídi
co clássico, a dogmática, a um objeto novo, a justiça constitucional.
d) As relações entre o direito constitucional e a ciência política hoje
Essas relações são diferentes para as duas correntes que acabamos de
indicar: a ciência institucional está sem dúvida mais próxima da ciência po
lítica. Existe entre elas não apenas uma influência metodológica, mas tam
bém obje to s em parte comuns. O exemplo mais conhecido é o dos parti dos
polí ticos: são abordados em várias const itu ições modernas e são considera
dos, às vezes, como órgãos de Estado, de m od o q ue a ciência do direito con s
titucional pode então fazê-los constar dentre os elementos dos sistemas
constitucionais e estudar suas relações com os outros componentes: as auto
ridades e suas competências. Por sua vez, a ciência política, que procura
com pree nde r os sistemas de partidos, ou seja, seu nú mero , suas relações m ú
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2 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
tuas, suas estruturas, reconhece a importân cia de um elemento pro pria me n
te jurídico, o escrutínio.
As relações entre a ciência política e a segunda corrente da ciência do di
reito constitucional, a que estuda a justiça constitucional, são menos estreitas
por razões evidentes: tr ata-se de entender o sentido e a importância de uma
jurisprudência , o que não pode ser feito por um método emprestado da socio
logia, mas apenas por meio da ciência própria dos juristas, a dogmática.
É preciso notar, en tretan to, u m recente interesse pela ciência política, não
exatamente por parte do direito constitucional em si mesmo, mas por parte
da ciência do direito constitucional e dos juristas, a partir de agora considerados atores do jogo político (G a x i e , 1989; P o i r m e u r e R o s e n b e r g , 1989).
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P r ím e í r a P a r t e
TEORIAGERALDO ESTADO
O que é a teoria geral do Estado? - As instituições não são mero s aglo
merados, mas sistemas. Entre as noções de aglomerados e de sistemas exis
tem grandes diferenças. Para que se tenha um aglomerado, como por exem plo em mecânica, escolhemos e montamos uma determinada ordem de
peças fabr icadas pre via mente. Ao contr ário , um sistema apresenta pelo me
nos a proprie dad e pela qual o sistema não apenas atribui funções a seus ele
mentos, mas também os modifica.
É por isso que não é possível expor uma teoria geral do Estado que te
ria por objeto o estudo isolado de alguns elementos invariáveis (a soberania,
a representação, a separação dos pod eres etc.) e que precederia o estu do dos
diferentes regimes políticos, reservado à ciência do dire ito consti tucion al. Tal
tentativa repousaria na idéia de que cada tipo de regime é somente um ar
ranjo diferente desses mesmo s elementos. Mas isso seria ign orar q ue os ele
mentos na verdade nunca são os mesmos.
A teoria geral do Estado não é, portanto, a análise dos elementos inva
riáveis de todo e qualquer sistema político.
Na verdade, o que se expõe comum ente sobre esse assunto não é uma
“teoria geral do Estado”. Uma teoria geral é um con junto coo rden ado de pro
posições tidas por verdadei ras e que tê m não um objeto parti cula r, não este
ou aquele Estado, mas todos os Estados existentes ou mesmo todos os Esta
dos possíveis. Ora, a teoria geral do Estado ou não é u ma teoria, ou en tão não
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30 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
é geral e não se refere realmen te ao Estado. O que ela contém de com um p o
de efetivamente ser agrup ado em dois itens.
Nela encontramos primeiramente não proposições, mas prescr ições
mu ito genéricas, de nom inad as “princípios”. Por exemplo, “os po deres devem
estar sep arados ” ou “para que a lei seja a expressão da vo ntade geral, é neces
sário que ela seja adotad a pelos representantes do s obe rano ”. Cert ame nte es
sas prescrições, diferentemente dos comandos, se apresentam, às vezes, não
como a expressão da vontade de seus autores, mas como a indicação de meios
próprios para realizar um determinado fim. A separação dos poderes seria
um meio para preservar a liberdade, e o controle de constitucionalidade ummeio para garantir a supremacia da constituição. Tratar-se-ia, portanto, não
efetivamente de prescrições, mas de leis científicas. No entanto, é preciso
constatar que a relação entre meios e fins é aqui muito vaga. Essas “leis” só
podem ser reconhecidas quando especi ficamos o sentid o que damos às ex
pressões pelas quais designamos os fins (liberdade) ou os meios (separação
dos poderes). Segundo o se ntido qu e da mo s a essas palavras, os meios perm i
tem o u não realizar os fins almejados, de mo do que a teoria geral do Estado
diz respeito, na verdade, não ao Estado, mas à língua.Encontramos também na teoria geral do Estado verdadeiras proposi
ções. Trata-se aqui não do en unc iado de princípios, mas de afirmações de que
esses princípios existem em um ou em o utro sistema constitucional, ou seja,
de que elas são respeitadas. Esse enun ciado forma realmente u m a teoria, mas
esta nada tem de geral.
Assim, qu an do a teoria geral do Estado trata da separação dos poderes,
não enun cia, apesar das aparências, um a teoria segundo a qual os poderes es-
tariam separados em todos os sistemas constitucionais ou mesmo em algunsdesses sistemas. Ela se limita a afirmar que alguns sistemas têm sido construí
dos de acordo com uma prescrição geral nomeada “o princípio da separação
dos poderes”. Mas é necessário que ela então examine o que é assim prescri
to concretamente e constate que o conteúdo das prescrições é bem variável,
conforme as constituições. Igualmente, da afirmação de que os poderes são
separados neste ou naquele sistema constitucional, nada podemos inferir so
bre o núm ero de autoridades, suas relações mútuas ou suas competências. A
teoria clássica conclui que existem diversas interpre tações do princípio, o que
significa que nenhuma teoria geral é possível.
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T e o r ia G e r a l d o Es t a d o 31
No entanto, é imposs ível compreender e descrever as regras do direit o
constitucional positivo sem o auxílio dessa teoria geral do Estado. Aqueles
que elaboram uma constituição e adotam as regras constitucionais positivas
devem justificar as escolhas. Não podem fazê-lo exclusivamente co m base em
considerações técnicas, porqu e não existe tecnologia constitucional. Devem,
portanto, dar justi ficativas embasadas em prin cíp ios, variáveis de acordo com
os países e as épocas, ainda que recebam o mesmo nome. Podemos, portan
to, compreender a teoria geral do Estado simultaneamente como o inventá
rio, em diferentes contextos no s quais eles se colocam, dos pro blemas consti
tucionais práticos, dos modos como eles se apresentam, das espécies desoluções que lhes são dadas e dos princípios pelos quais se justificam.
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CApÍTulo
ACONSTITUIÇÃO
Seção 1
Asfontesdodireitoconstitucional
Situação do problema. - Só é possível afirmar q ue um a regra existe e jus
tificar essa asserção quando se indica onde essa regra pode ser encontrada,
com o ela foi prod uzid a ou descoberta e expressa. Dizer, po r exemplo, que o
Presidente da República francesa é eleito pelo sufrágio universal eqüivale a
dizer que existe um a regra, intro duzid a na constitu ição, pela revisão de 1962.
Indicou-se assim a “fonte” da regra.É preciso ressaltar que, uma vez diferenciadas a constituição material e
a constituição fo rm al1, a ques tão refere-se apenas à constituição material: co-
nhece-se a existência de uma regra tendo como objeto a organização do po
der e procura-se conhecer sua origem.
O termo “fontes” tem evidentemente origem em uma metáfora, que se
explica por si mesma, à luz de uma teoria do direito implícito. Uma fonte é o
ponto de onde a água sai das profundezas da te rra e emerg e para a luz. Falar
de fontes do direito é, portanto , pre ssupor que, com o a água, o direito existia
1Cf. o capítulo preliminar.
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34 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
antes de aparecer para os homens. Estes, que aparentemente produzem re
gras, na verdade não as criam, nada fazem a não ser descobri-las e explicitá-
las. As doutrinas de inspiração jusnaturalista ou sociológica, quando exami
nam as fontes do direito, colocam na verdade duas questões diferentes: a
primeira concern e à orig em da regra, antes que ela seja expressa; é a qu es tão
das fontes materiais. A segunda concerne à expressão em si mesma, é a ques
tão das fontes formais. Segundo essa concepção, a questão das fontes formais
é menos importante. Trata-se apenas de técnica. As respostas à primeira
questão, aquela das fontes materiais, são muito diversas. Podem referir-se ao
direito natural, à História ou à consciência coletiva.Com preen dem os que a questão das fontes não abrange apenas a origem
das regras, mas muito freqüentemente trata de seu fundamento ou de sua le
gitimidade. Afirmar que tal regra do direito positivo expressa na lei (a fonte
formal) tem com o fonte material o direito natural, é tratar de sua origem, é di
zer que o legislador se inspirou em uma doutrina do direito natural, mas é
afirmar ta mbé m que a regra positiva está em co nform idad e com o direito na
tural e que é necessário a ela obedecer.
Tal posição é inaceitável do ponto de vista de uma teoria positivista, que considera, quanto a elayque existe somente o direito “posto”. Portanto, o direi
to contido nessas fontes materiais não é direito. Ele se torna rá direito s om en
te após ter sido “posto”, ou seja, expresso por uma autoridade competente.
Dessa perspectiva, existem somente fontes formais. É preciso acrescentar duas
observações: inicialmente, a questão do fundamento do caráter obrigatório
das regras de direito não é uma questão jurídica, mas uma questão moral. A
ciência do direito se limita a identificar e a descrever as regras; não prescreve
que as obedeçamos e, portanto, não procura o fundamento de uma prescrição que ela não formula. Em contr apartid a, é verdade que a questão das fon
tes nem sempre trata do fundamento da obrigação. Para a sociologia do di
reito, pode se tra tar apenas de identificar as representações da regra desejável
na qual o legislador pôde se inspirar. Tal questão apresenta um interesse ci
entífico evidente. No entanto, ela não pode ser tratada pela ciência do direi
to, pois ela não diz respeito efetivamente às normas, mas aos fatos psicosso-
ciais. Então, ela apenas vem de uma disciplina que tem esses fatos como
objeto e que usa um a metodologia diferente, a sociologia jurídica.
Uma teoria positivista se atém, por conseguinte, apenas às fontes for
mais, ou seja, às técnicas mediante as quais são produzidas as normas jurídi
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A C o n s t i t u i ç ã o 3 5
cas. Dizem os que um a norm a fo i posta quando um determinado fa to (por exem
plo ,, um ato de vontade) foi instituído por uma norma superior como significado
de uma prescrição. Existem, porta nto, tantas fontes quan tos forem os fatos ins
tituídos dessa maneira. Todavia, é possível agrupá-las em tipos e são esses ti
pos que a teoria posi tivista denominará “fontes formais”. É possível, outros-
sim, agrupá-las de du as form as diferentes. Podemos, primeiro, considerar que
toda no rma é posta em conformidade com um a norm a superior e que ela pró
pria auto ri za a cr iação de uma norma inferior, o que nos leva a dis tinguir as
fontes de acordo com o seu nível na hierarquia da o rdem jurídica. Enu me ra
remos então a constituição, a lei, o ato do poder executivo. Podemos tambémclassificá-las considerando que o fato instituído como significação de uma
norma é um ato de vontade ou outro tipo de fato, por exemplo, um costume.
Compreendemos, assim, toda a importância das fontes: é por meio de
las que podemos identificar um ramo do direito. O direito constitucional é
uma parte do sistema jurídico, um subsistema. Distinguimo-lo dos demais
ram os em virtude de ele possuir um con junt o de fontes específicas. Falamos,
então, de autonomia do direito constitucional. Essa autonomia provém antes
de tudo do nível no qual se situam as fontes, notadamente na constituiçãoformal, mas ela resulta também do papel específico que desempenham a lei,
o costume ou a jurisprudência.
Trataremos em seguida da hierarquia das fontes e do tipo de fatos pro
dutore s de direito.
1.A HIERARQUIA DAS FONTES DA CONSTITUIÇÃO MATERIAL
A.Aconstituiçãoformal
É o conjunto cie regras, independentemente de seu objeto, que são
enunciadas na forma constitucional: elas estão em geral contidas em um do
cum ento especial, mas sobretudo têm u m valor superior ao de todas as ou
tras normas positivas e somente podem ser modificadas conforme um pro
cedimento especial, mais difícil de ser implementado do que aquele que
permite modific ar alg uma outra norma, como por exemplo uma lei ordinária. Essa qualidade da constituição formal é denominada “rigidez”. Estudare
mos, então, a rigidez da constituição formal antes de examinar seu conteúdo.
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3 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
1. A rigidez constitucional
a) O fundamento da rigidez: a separação do poder constituinte e dos po
deres constituídos
O autor da constituição é chamado “poder constituinte”. Os procedimen
tos de escolha e de aplicação são muito variáveis. O texto pode ser adotado por
uma assembléia, que se denomina assembléia constituinte ou “convenção”, ou
por um gove rno. Ele pode ainda ser apenas preparado por uma assembléia
ou um governo, depois submetido ao referendo. De qualquer forma, o poder constituinte é aquele cujo consentim ento permitiu colocar em vigor o texto.
Essa constituição tem sempre po r objeto - e por conteúd o m ínim o -
instituir autoridades ou órgãos ou ainda “poderes constituídos” e dividir
comp etências entre eles. É a essa divisão que c ham am os separação dos po de
res. Ora, está claro que se uma dessas auto ridades pudesse m odificar a const i
tuição, ela ampliaria suas próprias competências em detrimento das outras e
destruiria assim o conjunto dos equilíbrios que o poder constituinte pro cu
rou estabelecer. Então, a separação dos poderes só pode ser preservada se os poderes constituídos não dispuserem do poder constituinte, ou seja, se a constituição
fo r “rígida”
Ao contrário, a constituição seria “flexív el” se pudesse ser fac ilm ente alte
rada por um dos poderes constituídos, po r exemplo, pelo P ode r Legislativo, nos
termos do processo legislativo ordinário. É notadamente o que ocorre quan
do não existe constituição formal, ou então quando a constituição é costu
meira, como na Grã-Bretanha ou ainda qu and o ela é essencialmente expres
sa dentro das leis ordinárias, como em Israel.
b) A expressão da rigidez: a distinção do poder constituinte originário e
do poder constituinte derivado
A rigidez não significa que a constituição nã o p oderá ser modificada ou
revisada, mas que ela pode rá sê-lo apenas segun do alguns p rocedim entos, or
ganizados por ela mesma e pelos órgãos que ela instituiu para esse fim. De
nominamos “poder constituin te der ivado” o poder dos órgãos competentes pa
ra modificar a constituição, em oposição ao “poder constituin te originário”, o
dos órgãos que adotaram a constituição. Na prática, empregamos também
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A C o n s t i t u i ç ã o 3 7
essas expressões para designar nã o apena s o pod er desses órgãos, mas os ó r
gãos em si.
O princípio da separação do poder constituinte e dos poderes constituí
dos veda confiar inteiramente o pode r constituinte derivado a um dos pode res
constituídos, mas não proíbe atribuir-lhes um papel no processo de revisão
constitucional. Assim, o Parlamento pode intervir nesse procedimento de
vár ias maneiras: para elaborar uma proposta de revisão, para discut i - la
e adotá-la, desde que ele não o faça dentro do processo legislativo ordiná rio e
que ele não decida dentro dessa mesma configuração.
O poder constituinte derivado é assim circunscrito dentro de limites,relativos à forma da revisão, mas tam bé m algumas vezes ao conteúd o.
Os limites ou condições referentes à forma po dem ligar-se aos m om en
tos nos quais o processo pode ser iniciado, às hipóteses nas quais ele pode
ocorrer ou ao procedimento.
Desse modo é possível que uma constituição proíba qualquer revisão
dura nte um determ inado prazo subseqüente à sua entrada em vigor. Ela po
derá ser modificada somente q uan do alguns anos de experiência apon tarem
defeitos para a revisão. A constituição de 1791, por exemplo, proibiu qualquer revisão durante os dez primeiros anos após sua aplicação.
Em segundo lugar, a constituição pode proibir qualquer revisão em al
gumas hipóteses, como por exemplo quando uma parte do território nacio
nal é ocupada por forças estrangeiras em tempos de guerra ou em períodos
de crise.
Em terceiro lugar, ela pode prever um processo de revisão obrigatória.
Podemos assim distinguir a adoção de um desejo de revisão e a revisão pro
priamente di ta , com essas duas operações confiadas a do is órgãos diferentes.Podemos, de forma geral, atrib uir um papel, no processo de revisão, seja a al
guns poderes constituídos, mas que decidem no termo de um processo espe
cial, seja a um órgão especialmente instituído para esse fim, por exemplo,
uma assembléia de revisão. No último caso, essa assembléia poderá apenas
exercer o poder de revisão ou então assumir funções normalmente exercidas
pe lo Parla mento. A constit uiç ão pode ainda exigir que os pro je tos sejam ado
tados pela maioria qualificada (mais importante que a maioria simples) ou
que eles sejam ratificados por referendo ou ainda por um determinado nú
mero de Estados dentro de um Estado federal. Pode-se, evidentemente, co m
binar todas essas limitações de difer en tes modos.
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3 8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Os limites de conteúdo consistem na proibição de modif icar a constitu ição
em determinados aspectos. Na França, por exemplo, é proibido modificar a
forma republicana do regime. Mas pode-se proibir també m atentar contra o
caráter socialista da economia, contra determinados direitos fundamentais,
ou contr a o caráter federal do Estado.
Essas condições também não são obrigatórias. Os limites de conteúdo
não limitam verdadeiramente o poder derivado, porque ele sempre está su
je ito a revisar em um primeiro momento as disposições da consti tuição, que
fixam esses limites, para, em um segundo momento, implementar a revisão
desejada. Na França, poder-se-ia, po r exemplo, revisar a constituição para su primir a proibição de cometer atentado à forma republic ana e revisá-la uma
segunda vez para instituir uma monarquia. Essas restrições representam,
pois, ante s de tudo, limites morais .
Os limites de forma, por sua vez, não pod em ser alterados tão facilmen
te, pois seria necessário, para modificá-los, se forem considerados muito se
veros, revisar a constituição dentro das formas previstas.
É necessário, entretanto, menc ionar a dou trina da supraconstitucion a-
lidade, que encontra sua origem em C. Schmitt. Ela supõe a existência dedois níveis de regras constitucionais: o das leis constitucio nais e o da con sti
tuição pro pria me nte dita. As leis constitucionais co ntêm regras técnicas rela
tivas à organização dos poderes públicos, a suas competências ou a suas re
lações mútuas. Elas podem ser modificadas em conformidade com o
procedimento previs to pela revisão. Em contrapartida, a constituição p ro
priamente dit a (chamada às vezes “constituição material’', em um sentido
bem diferente do que nós empregamos nesse volume) compreende os p r in
cípios fundam entais do Estado. Os adeptos dessa dout rina sustentam que o poder constituinte deriv ado, porque é instituído pela consti tu ição, é na rea
lidade um poder constituído. Assim, não haveria mais que uma competên
cia limitada: ele só poderia modificar “leis constitucionais”, mas não a pró
pria constituição.
Em sua variante modern a, a do utrina da supraconstitucionalidade leva
a atribui r ao juiz constitucional o pod er de an ular as leis de revisão const itu
cional relativas a determinados princípios fundamentais. Estima-se, por
exemplo, que se a constituição proíbe ate ntar co ntra a forma republicana, ela
pro íbe implic itamente in frin gir alguns princípio s ligados a essa forma repu
bl icana, como o caráte r democrático ou o Estado de dir eito ( T r o p e r , 1994a).
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A C o n s t i t u i ç ã o 39
Essa dou trin a inspira alguns aspectos da jurisp rudê ncia dos tribunais c onsti
tucionais na Alem anha e na Itália.
É necessário acrescentar ainda uma questão central: a constituição for
mal, como qualquer texto jurídico, não se transforma apenas pela revisão
constitucional. Ela sofre uma evolução, que pode ser considerável, em razão
da maneira como é aplicada, ou seja, interpretada2.
2. Função da constitu ição
A função da constituição é complexa e, além disso, variável. Nem todasas constituições têm as mesmas funções. Dentre as que ela pode desempe
nhar, é preciso distinguir funções jurídicas e políticas.
Do ponto de vista jurídico , a função da con stitui ção pode ser tríplice: em
primeiro lugar, ela é o fu ndam ento da validade da ordem jurídica como um to
do. É porque uma lei foi adotada em conformidade com a constituição que
ela pode ser considerada um a norm a jurídica e pode servir de fundam ento a
outras normas. A constituição é, pois, o fu ndam ento último de cada uma das
nor ma s que fazem parte do sistema jurídico.
Em segundo lugar, a constituição determina as modalidades de designação
dos governantes e lhes atribui competências, ou seja, ela define as hipóteses nas
quais as vontades dos indivíduos são separadas das de seus autores para serem
imputadas ao Estado. Esses indivíduos são chamados então órgãos do Estado.
O que eles desejam, o que fazem, reflete o querer e o fazer do Estado.
Em terceiro lugar, a constituição enuncia princípios, como por exemplo
aqueles relativos à soberania, à representação ou à separação dos poderes, que
justi fi cam as regras posi tivas q ue ela contém, as quais permitirão, por sua vez,
justi fi car poste rio re s interpretações part ic ulares do texto.
Do ponto de vista político, a função da constituição é igualmente com
plexa.
1) Inicialmente, a constitu ição organiza a transm issão e o exercício do
poder . As const ituições modernas se es forçam para organizar o poder - ou
pretendem fazê-lo - de maneira que ele não possa ser exercido visando ao in
teresse pessoal dos governantes, mas somente objetivando um interesse geral,
2 Cf. infra, p. 69 c s.
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40 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
que pode, aliás, ser concebido de várias maneiras. Historicamente, as primei
ras constituições fo ram redigidas no século XVIII, não para ga ranti r o interes
se do povo, no sentido que lhe dará mais tarde Abraham Lincoln, que definia
a democracia como “o governo do povo, pelo povo, para o povo”, mas para
proteger a liberdade. Denominar-se-á, então, “consti tu cio nali smo” a ideologia
que almeja organizar o poder para preservar a liberdade, notadamente por
meio da separação dos poderes e da representação. O constitucionalismo sus
cita dois difíceis problemas. O primeiro é um problema técnico: qual é o tipo
de organização que p ermitirá alcançar efetivamente o fim almejado? O segun
do prob lema é teórico: se o ideal liberal implica que o p od er seja dividido en tre várias pessoas, como é possível conciliar esse ideal com a teoria democráti
ca, que objetiva, por sua vez, conferir ao povo um pod er indivisível?
2) Em segundo lugar, a constituição é o fundamento da legitimidade
dos governantes. Estes pod em jus tificar seu pod er e suas decisões pelo fato de
serem designados em conformidade com a constituição e de exercerem com
petência s que lhes são atribuídas pela lei fundamental.
3) Aqueles que redigem as constituições pertencem a forças políticas que
reclamam concepções diferentes da liberdade, dos direitos fundamen tais a preservar ou da democracia. Procuram também defender interesses ideológicos
ou materiais. A constituição tem por função, nesse sentido, traduzir os com
promissos entre essas forças polí ticas e preservar o equi líbr io assim obt ido.
4) Por fim, ela é um e lemento de integração nacional e de pro duç ão da
cidadania. Freqüentemente, os cidadãos de um mesmo Estado não têm em
comum nem a ligação étnica, nem a língua, nem a religião, nem os valores,
mas somente o fato de estarem submetidos à mesma constituição e assim
usufruírem das mesmas garantias e dos mesmos direitos fundamentais. Àsvezes, o patriotismo se define puramente pelo amor à constituição.
A tendência ideológica das constituições contem porâneas . - Se houvesse a
necessidade de ilustrar a proposição segundo a qual a constituição tem por
objetivo fixar a idéia de direito estático, bastaria remeter-se à análise das
constituições contemporâneas. Observamos que em seu texto o número de
artigos dedicados à técnica governamental é pequeno, enquanto, inversa
mente, as disposições relativas à filosofia do regime são de uma prolixidadeimpressionante. Parece, aliás, que q ua nto me nos os constituintes estão segu
ros dos alicerces do Estado, mais eles multiplicam os textos que o definem.
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A C o n s t i t u i ç ã o 41
Enquanto as constituições francesas de 1946 e de 1958, a italiana de 1948 e
a Carta de Bonn são relativamente discretas nesse ponto, as dos Estados-mem-
bros da Alemanha Federal, de alguns países do Or iente Médio e da África, que re
centemente alcançaram a independência, e também aquelas das democracias po
pulares se aproxim am mais do estilo dos programas eleitorais que do estilo das
constituições clássicas. Por meio de toda um a série de prescrições - a constituição
bávara chega mesmo ao ponto de prever a regulamentação das rotas turísticas
pelo Estado (art. 141, al. 3) - elas desenham os contornos, não da ordem social
existente, mas do que deve ser a sociedade do futuro. Elas demarcam o lugar do
indivíduo, da família, dos grupos intermediários; enunc iam as normas que devem presidir a atividade econômica, determinam a função e os limites da pro
pr iedade; indicam ao Estado as tarefas que ele deve assumir, as necessidades que
ele deve satisfazer; especificam a natureza e a extensão da ajuda que o ho me m po
de esperar da coletividade bem como os deveres que lhe cabem.
3. Con teúdo da constituição formal. A questão dos Preâm bulos e das
Declarações dos D ireitos
a) Declarações dos Direitos e constituição material
A constituição formal tem como conteúdo principal a constituição (no
sentido material), ou seja, a organização e o funcionamento dos poderes pú
blicos e a divisão das competência s entre eles.
Sabemos, entretanto, que ela pode ter tamb ém conteúdos muito diferen
tes, pelo me nos na aparência. Nela encontramos , por exemplo, disposições so bre a cor da bandeir a ou o hino nac ional . As razões que levam a in ser ir na
constitu ição disposições dessa na tureza são simples: elas estão ligadas pa rticu
larmente à rigidez da Constituição. Adotar essas regras na forma constitucio
nal é impedir que elas sejam facilmente modificadas. Em alguns países, os
cidadãos têm o direito de iniciativa, em matéria constitucional, mas não em
matéria legislativa. Eles superam, então, esse óbice propondo, via constituição,
por me io de emen das, medidas que, aliás, são do domínio da lei ord inár ia .
Alguns autores concluíram, sem razão, que essas medidas não são materialmente constitucionais e, dentre elas, são mencionados, às vezes, os P reâm
bulos e as Declarações dos Direitos.
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4 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Estas são disposições agrupadas em um texto colocado no início de al
gumas constituições. Apesar da Declaração dos Direitos do Homem e do Ci
dad ão de 1789 não ser a primeira - a primeira é a de Massachussets, de 15 de
junho de 1780 - , ela é in conte stavelm ente a que tem maior repercussão. Co
mo sugere o título, esse texto não foi concebido pela Assembléia Nacional,
que o adotou , como um conjunto de direitos conferidos aos cidadãos por u m
ato de vontade política, mas como direitos que todos os hom ens possuem na
turalm ente, basta ndo reconhecê-los e declará-los. Tratava-se, segundo a con
cepção do min an te na época, de direitos e de liberdades individuais.
A esses direitos individuais acrescentaram-se, em seguida, direitos humanos ditos de segunda geração, cujo objeto é econômico e social e que po
dem ser coletivos. Uma terceira geração está, aliás, em via de gestação (dir ei
to ambiental, direito ao desenvolvimento etc.) e os direitos novos se revestem
do prestígio dos antigos.
Nessas condições, pode-se dizer que esses textos não são materialmen
te constitucionais? Tal afirmação pode, em verdade, conter três significados
distintos.
Pode significar primeiramente que as Declarações de Direitos não têmnen hum valor obrigatório e constituem apenas o enun ciado de u ma filosofia
ou de u m pro gram a político. Nesse caso, não se trata de fato da organização
e das competências dos poderes públicos e o conteúdo das Declarações é es
tranho à constituição material.
No entanto, é possível que esses textos tenham de fato um valor obriga
tório, mas que se pressuponha uma concepção estreita da constituição mate
rial, que abrangeria as regras relativas aos órgãos, a suas competências e aos
procedim entos a serem seguidos, mas não as regras que obrig am esses órgãosa tomar medidas deste ou daquele conteúdo. Assim, as Declarações de Direi
tos não seriam constitucionais, por mais que elas estabeleçam diretrizes aos
poderes públicos (os poderes consti tu ídos) . Nada justifica uma concepção tão
limitada e na verdade as competências dos poderes públicos não podem ser
definidas sem referência ao conteúdo e aos limites de sua ação. Não podemos
dizer que o Parlamento terá o direito de fazer leis sem dizer em que consiste
esse direito, o que são as leis, a quais matér ias elas devem c oncernir e quais são
os direitos e liberdades individua is que o legislador terá de respeitar.
Em terceiro lugar, é igualmente possível que, mes mo tend o u m valor ju
rídico, esses textos sejam, porém, concebidos primeiramente como instru
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A C o n s t i t u i ç ã o 43
me nto s dos cidadãos, ou de forma mais genérica, dos sujeitos, para po der fa
zer valer seus direitos em algum as situações, sem a interm ediação dos p od e
res públicos constitucionais, e mesmo contra estes. Podemos, então, pensar
que as Declarações não fazem parte da constituição material porq ue elas não
dizem respeito aos poderes públicos. Mas isso seria esquecer que os direitos
podem ser compreendidos somente como a outra face das obrigações e que
pode-se dizer indiferente mente que o cid adão tem direitos contra os poderes
públicos ou que os poderes públicos têm obrigações em relação a ele. Enun
ciar direitos é, então enunciar também as obrigações dos poderes públicos, o que
é bem tratado pela constituição material.Assim, a partir do mo m en to em que as Declarações de Direitos apresen
tam caráter obrigatório, elas integram não somente a constituição material,
mas também a constituição formal e o estudo de seu conteúdo pertence de
fato à ciência do direito constitucional.
b) Valor juríd ico das Declarações
Durante muito tempo, a questão do valor jurídico das Declarações foicontroversa. Convém, entretanto , precisar o objeto dessa controvérsia, um tan
to quanto obscurecido pela ambigüidade da expressão “valor jurídico”. O d eba
te pode ficar mais nítido se com preend erm os que essa questão recobre, na ver
dade, outr as duas, as quais é preciso distinguir cu idadosamente: as Declarações
são juridi camente obrigatórias? Se sim, para quem elas são obrigatórias?
1. As Declarações são juridicamente obrigatórias? Quando nós nos in
terrogamos sobre o valor jurídico de uma regra, perguntamo-nos primeira
mente se essa regra é jurídica ou se pertence a algum outro sistema de normas que não o direito. Podemos pensar, por exemplo, que uma regra
constitucional é obrigatória, mas que ela é apenas política ou moralmente
obrigatória. Assim, o preâmbulo da constituição na Grã-Bretanha é conside
rado como politicamente obrigatório (cf. infra). A questão do valor jurídico
das Declarações diz respeito, pois, a seu caráter juridicamente obrigatório.
Uma regra jurid icam ente obrig atória é uma regra cuja violação pod e ser san
cionada de um modo ou de outro, por uma pena, mas também pela anula
ção de um a ou tra regra em descon fbrmidade com a primeira.
2. Para quem as Declarações são obrigatórias? O valor jurídico, como
todo valor, aliás, é sempre relativo: uma regra não apresenta necessariamen
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44 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
te um caráter universalmente obrigatório; ela pode apresentar um valor jurí
dico aos olhos de algumas autoridades, mas não aos olhos de outras. Se re
presenta mos, como é cômodo fazê-lo, o sis tema jurídico como um conjunto
de n orm as hierarquizadas, falar então de valor jurídico relativo de um a regra
é falar do nível em que ela se situa dentro dessa hierarquia. Poderia se dizer,
também, que as declarações têm valor jurídico superior ao dos atos, que po
dem ser anulados por ter violado alguma de suas disposições e que elas têm
um valor jurídico igual ao dos atos pelos quais se pode modificá-las.
Compreendemos nessas condições que a questão só pode conceber res
postas variáveis seg undo o país e o momento cons iderados. Na França , por exemplo, durante a Terceira e a Quarta Repúblicas, a violação da Declaração
dos Direitos podia ser sancionada quando era cometida por um ato adminis
trativo, mas não quando isso ocorria por uma lei. Podia-se pensar, pois, que seu
valor jurídico era igual ao das leis e superior ao dos atos administrativos. D u
rante a Quin ta República e mais particularmen te desde 1971, a violação pela lei
é igualmente sancionada (cf. infra). Concluímos em geral que o valor jurídico
da Declaração é desde ent ão superio r ao da lei e igual ao da constituição.
B.As leis orgânicas
Pela expressão lei orgânica pod em os designar dois tipos de textos dife
rentes por seu lugar na hierarquia das normas. Pode se tratar primeiramente
de leis ordinárias, cujo conteúdo é materialmente constitucional, porque são
relativas à organização e ao funcionamento dos poderes públicos. Elas po
dem ser implementadas pelo legislador espontaneamen te ou então p or solicitação do constituinte. O em prego da expressão lei orgânica decorre simples
mente da prática e não tem conseqüências jurídicas. Como se trata de leis
ordiná rias elas serão estudadas mais adiante (no item D).
Pode se tratar também de leis que se colocam em uma escala intermediá
ria entre a constituição e a lei ordinária. É nesse segundo sentido sobretudo
que a expressão é empre gada na França atualm ente. Elas apresentam três ca
racterísticas:
- são, com o as anteriores, materialm ente constitucionais;- é a constituição que, imp edida de enun ciar regras tão específicas
quanto seriam necessárias, prevê essas leis orgânicas para complementar e
precisar o texto. A consti tu ição de 1958 o tez em várias maté ria s im portan
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A C o n s t i t u i ç ã o 4 5
tes, como por exemplo, para a organização e o funcionamento do Conselho
Con stituciona l o u da Alta Corte de Justiça;
- elas são adotada s ou modificadas segundo um processo particular, sen
sivelmente mais rigoroso que o processo legislativo ordinário. Na França, po r
exemplo, o traço mais marcante desse processo foi o exame pelo Conselho
Constitucional quanto à conformidade com a constituição de qualquer projeto ou
proposição da lei orgânica, ou seja, sem que tenha sido necessário submetê-lo
à apreciação. Trata-se eviden teme nte de imp edi r que a lei orgânica, a pretexto
de com plem enta r a constituição, coloque em discussão seus princípios.
C.Osregulamentosdasassembléias
Amplitude do regulamento. - Os regulamentos das assembléias parla
mentares complementam a constituição em tudo o que diz respeito à organi
zação interna das assembléias e ao trabalh o parlamentar, co mo po r exemplo,
as minúci as do processo legislativo, o papel das comissões, o do gabinete ou a
ordem de fala. Trata-se de questões muito importantes3. Elas são material
mente constitucionais, bem como aliás as que são objeto de leis orgânicas, e
várias dentre elas poderiam ser tamb ém adotadas na fo rma constitucional, ou
seja, tratadas na constituição formal, ou, ainda, em um a lei ordin ária. Assim a
constituição da Quinta República contém regras relativas ao voto pessoal ou
ao estabelecimento da ordem do dia, que em o utros regimes, com o po r exem
plo a Terceira República, perte nciam ao regula mento das assembléias. É, en
tão, a constituição que delineia a extensão do dom ínio regido pelo regu lamen
to. Se ela se abstém de entrar nos pormenores e confere ao regulamento umdom ínio muito extenso, isso acarretará um a conseqüência prática (u ma maior
flexibilidade, porque o regu lamento é mais fácil de modificar que a constituição)
e um a conseqüê ncia política (u ma a uto no mi a mais ampla das assembléias, se
estas desempenham um papel na elaboração do regulamento).
Dur ante a Terceira República, dota da de um a constituiçã o mu ito suc in
ta, a importância do regulamento era considerável. Ele comportava, por
exemplo, regras tão fund ame ntais q ua nto as relativas à verificação dos po de
3 Esses regulamentos não devem ser confundidos com aqueles que têm por objeto precisar ecomplementar as leis e que emanam do poder executivo.
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4 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
res ou à interpelação do governo (ou seja, o controle de sua responsabilida
de), ao pon to que se pôde escrever sobre o regu lame nto qu e “ele tem mais in
fluência que a própria constituição no andamento dos negócios públicos”
(PlERRE, 1902, p. 490).
Mas m esm o se a constituição co ntém efetivamente regras relativas a um
grande núm ero das matérias as quais seria conveniente aband ona r ao regu
lamento, ela não pode, entretanto, ir muito longe nos pormenores. Um regula
me nto é, então, necessário em qua lque r situação.
Adoção do regulamento. - Vários sistemas são possíveis, segun do o graude au ton om ia q ue a constituição visa conferir às assembléias.
O sistema que lhes atribui a mais ampla autonomia é naturalmente o
que lhes dá competência para adotar seu regulamento. Tal era o sistema da
Terceira República, em que cada assembléia elaborava seu regulamento e po
dia modificá-lo a qualquer m omen to.
O segundo sistema é o do Poder Executivo, que tem o poder de adotar
os regulamentos das assembléias. Este era o caso, durante o Consulado e o
Império.Um sistema intermediário consiste em permitir às assembléias adotar
seus regulamen tos respectivos, mas sob o controle d o juiz para evitar que elas
atentem contra os princípios constitucionais. Foi a solução da Quinta Re
públ ica.
D.Asleisordinárias
São leis que durante a Terceira República na França eram chamadas de
leis orgânicas e que são relativas à organização e ao funcionamento dos po
deres públicos. A mais imp orta nte se referia ao mo do de escrutínio. A Qu ar
ta e a Quin ta Repúblicas conservaram essa matéria n a lei ordinária. A vanta
gem eviden temente reside no fato de que é possível modificar rap idam ente a
lei eleitoral, sem ter de reformar a constituição, evitando o risco de que as
maiorias parlam entare s sucessivas fossem tentad as a modificar a regra d o jo
go para ampliar suas chances e se manterem no poder.
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A C o n s t i t u i ç ã o 4 7
2.OsTIPOS DE FATOS PRODUTORES DE DIREITO
Definição: A expressão “fatos produ tores de d ireito” é enganosa, pois, na
verdade, daquilo que alguma coisa é, não podemos concluir que alguma coi
sa deva ser, de modo que um fato nunca pode produzir direito. O que se de
signa por essa expressão é simplesmente um fato instituído por uma norma
superior, como a condição para que uma norma nova seja produzida. Assim,
dizemos que o voto do Parlamento produziu uma lei, mas, nesse caso, trata-
se somente de um atalho. Na verdade, o voto de uma assembléia é um sim
ples fato de onde só decorreri a que se deve acei ta r esse voto. Existem muita sreuniões de homens capazes de emitir votos. Nada diz que devemos obede
cer aos resultados de todos esses votos. Se devemos nos submeter a eles, se
existe uma regra, é porq ue a constituição habilita o P arlamen to a ado tar leis.
Em outras palavras, a constituição define o produto dos votos emitidos pelo
Parlame nto co mo um a lei validável. A fórmula freqüente nos textos constitu
cionais e que consta, p or exemplo, na constituição francesa atual, “a lei é vo
tada pelo P arlamento”, é aquela pela qual a constituição atribui a um fato, o
voto, o significado de que uma norma foi produzida. Examinar as fontes dodireito constitucional do ponto de vista desses fatos é, portanto, procurar
quais são os fatos que indicam que uma norma constitucional foi produzida.
Podemos distinguir três tipos: o primeiro é evidentemente a expressão da
vontade de um órgão competente. Não será necessário abordá-lo novamente, já
que esse tipo de fato é o que produziu as regras materialmente constitucionais estu
dadas anteriormente, a constituição formal, a lei orgânica etc. Os dois outros tipos
de fatos suscetíveis de ter significado de no rma são o costume e a interpretação.
A. 0 costumeconstitucional
1. Definiç ão
Em direito constitucional, como nos outros ramos do direito, falamos
de costume quando dois requisitos estão presentes:
1. quando uma prática foi repetida durante um longo período;
2. qua nd o existe o sen time nto de q ue essa prática é obrigatória. É a opi-
nio juris.
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4 8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Esses requisitos às vezes são chamad os inad equ ada men te de elementos
do costume e nós os designamos p or termos acoplados: o prime iro e o segundo
elementos são qualificados respectivamente de m aterial e de psicológico, de
objetivo e de subjetivo4.
Diante disso, existem sobre a questão do costume importantes discus
sões. Deve ter sido observado o caráter extr ema men te vago das palavras uti
lizadas para definir os requisitos do c ostum e e os autores divergem qu ant o a
saber, po r exemplo, quantas vezes um a p rática deve ser repetida para que es
tejamos na presença de um costume ou qu anto à duração - basta um a vez ou
é necessário transpor para o direito constitucional o adágio popular segundoo qual u ma vez não é costum e -, ou ainda no qu e se refere às pessoas que de
vem ter o sentimento do caráter obrigatório - os homens políticos ou os pro
fessores de direito?
2. Situação do problem a
Na verdade, essas discussões, relativas exclusivam ente à iden ti fi cação deum costume, são a expressão de imp orta ntes dificuldades teóricas.
A primeira está ligada à posição que ocupa a constituição no ápice da
hierarquia das normas. Um fato só pode gerar direito quando for previsto
por um a norm a superior como condição suficiente para a ed ição de uma
no rm a nova. Podemos, então, facilmente com pree nde r a existência do costu
me em direito civil ou comercial, porq ue, nesses ramos, u ma lei pode te r o se
guinte conteúdo: “se um a prática foi repetida dur ante um determ inado p erío
do e se existe um sentimento de que essa prática é obrigatória, então, temosde nos con form ar a ela”. Nesse caso, o cos tum e é instituído com o fonte do d i
reito pela lei. Poderíamos, portanto, conceber da mesma maneira um costu
me instituído como fonte do direito pela constituição, mas esse costume es
taria subordinado à constituição. Não se trataria de uma regra formalmente
constitucional. Tal regra poderia ser criada por via do costume somente se
existisse um a n orm a acima da constituição. Ora, tal regra não existe.
A segunda dificuldade está ligada ao papel da vontade dentro do direi
to. Se é verdade que só existe o direito positivo, ou seja, posto por um ato de
1Encontraremos uma crítica às definições po r elementos cm T r o p e r 1994a, p. 127 e s.
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A C o n s t i t u i ç ã o 49
vontade, como explicar que uma regra apareça sem nunca ter sido desejada?
Mais um a vez, o pr oblem a p ode ser resolvido de m anei ra mais fácil em d irei
to civil ou em direito comercial, porque podemos admitir, primeiramente,
como acabamos de ver, que é a lei que institui o costume como fato produ
tor de direito, e que, por conseg uinte, a regra costumeira nasce da vonta de do
legislador. Um a ou tra explicação leva em conta o papel do juiz: o costu me so
mente é obrigatório quando o juiz constata sua existência e fixa o conteúdo
da regra. Mas trata-se de uma constatação apenas na aparência. Na verdade,
o juiz deve necessariamente inte rpreta r os fatos constitutivos de um costu me
e conciliar a regra com outras regras, estas escritas. Ora, o conjunto dessasoperações é uma função da vontade (cf. infra a interpretação). No entanto,
nem um nem outro desses raciocínios é aplicável ao costume constitucional,
pois não há nem vonta de supraconstitu cio nal, nem juiz capaz de constatar a
existência e o conteúdo de um costume constitucional.
A terceira dificuldade consiste na necessidade de conciliar uma norma
costu meira com as norma s escritas em vigor. Obse rvam os aqui a hipótese em
que a prática repetida seria contrária a uma norma escrita. Essa prática seria,
portanto, simple smente um a violação do direito e nos perguntamos como ela poderia ser criadora do di reito. Mais uma vez, as so luções admitidas pe lo di
reito civil e o direito comercial parecem impossíveis de ser aplicadas. Pode
mos c onsider ar nesses ram os do direito que, se a lei autoriza a criação de di
reito por via do costume, ela o faz com a ressalva implícita de que o costume
não seja diretamen te co ntrár io a alguma lei em vigor. Dizemos, então, que o
costume não existe contra legem, mas somente praeter legem , ao lado da lei e
para complementá-la . No entanto, a criação de uma norma consti tu cional
por via do costume não é autoriz ada da mesma forma por uma norm a su praconstit ucio nal, que preve ria costu mes praeter const itutionem . Do mesmo
modo, para considerar que um costume é prae ter legem , é necessário admitir
que existiam lacunas dentro da lei e que é possível e necessário complemen
tá-la. A lei, ao au toriza r a criação co stumeira do direito, admite por si próp ria
tal pressuposto. Mas não é possível admiti-lo em direito constitucional, pela
mesma razão: não existe norma supraconstitucional. Todo comportamento
é, ainda, necessariamente, ou conforme ou então contrário à constituição. Se
ele é proibido por uma norma constitucional escrita, não poderia ser criador
de direito, mas se não está contrário a tal norma, se ele não é expressamente
proibido, então é forçoso admitir que ele é permitido e, nesse caso, ele não
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poderia dar origem a uma regra costumeir a porque, por de finição , o que é
simplesmente permitido não é obrigatório. Não existe, portanto, lugar para
um costume praeter constitutionem .
3. As ob rigações con stitucionais
Tudo parece, portanto, levar à conclusão de que não há lugar em direi
to constitucional para um a fonte costum eira e, de fato, vários autores conc or
dam com essa tese. No entanto, é preciso reconh ecer eviden temente que exis
tem práticas repetidas, que não estão previstas pela constituição e que sãosentidas como obrigatórias. Algumas dessas práticas se mostram até mesmo
como contra constitutionem. Vejamos dois exemplos. O primeiro é extraído
do direito constitucional britânico. Na Grã-Bretanha, quando a maioria da
Câm ara das Com un as expressa sua desconfiança ao gabinete, o Primeiro-m i-
nistro envia sua demissão à Rainha. Não existe norma escrita que o obrigue
a isso. Poderíamo s, porta nto, pensa r que, já que essa con duta não é expressa
mente escrita, nem sequer proibida, ele tem tanto a faculdade de fazê-lo co
mo de se abster. No en tanto, há mais de dois séculos, quan do essas circunst âncias se verificam, o Pri me iro -minis tro se mpre apresenta sua demissã o e existe
um sentimento universalmente difundido de que se trata para ele não de uma
simples faculdade, mas de uma real obrigação.
O segundo exemplo pertence à história constitucional francesa: as leis
constitucionais de 1875 conferiam ao Presidente da República o direito de
dissolver a Câmara dos Deputados, com o consentimento do Senado. O Pre
sidente exerceu efetivam ente esse direito só um a vez, em 1877. Após essa da
ta, ele nem me sm o solicitou o parecer do S enado e, porta nto, nun ca mais decretou a dissolução da Câmara. Aos olhos de vários autores da época, em
razão das circunstâncias infelizes em que tinha sido pronunciada a dissolu
ção de 1877, não teria sido, desde então, proibido ao Presidente dissolver e,
aliás, a ausência de dissolução efetiva constituiria ao mesmo tempo a prática
repetida e o sinal de uma crença na existência de uma regra. Tratar-se-ia de
uma espécie particular de costume, um costume negativo ou desuso, o qual
não dá origem a um a regra nova, mas faz desaparecer um a regra antiga. Aqui,
o costu me teria feito desaparecer a no rm a escrita o Presidente tem o direito de
pro nunciar a dissolução substituindo-a por uma nova norma contrária, o Pre
sidente não tem o direito de pronun ciar a dissolução.
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A C o n s t i t u i ç ã o 51
Um exemplo parecido pode ser tirado da aplicação do art. 11 da consti
tuição francesa de 1958, que foi duas vezes utilizado para uma revisão cons
titucional, de m odo que vários autores eminentes - e François M itterrand
qu an do era Presidente da República - conside ram q ue essa prática, antes jul
gada contra constitutionem , deu origem, entretanto, a um costume. Para dar
cont a desses fenôme nos, é necessário distinguir cuidado sam ente dois probl e
mas: um problema causai, o da emergência dessas práticas, e um problema
juríd ico, o do seu caráte r obrig ató rio .
No que se refere ao primeiro problema, observamos que a maioria das
prát icas aparece em um contexto parti cula r: existe uma norma constit ucional autorizan do um a de terminad a con duta, o que significa que é igualmente
permitido dela abster-se. Mas os autores da doutrina const it ucio nal não usam
igualmente essas duas possibilidades: ou usam freqüe nteme nte dessa permis
são ou então se abstêm do uso por um período razoavelmente longo. Dize
mos, então, que no lugar da norma antiga, que era uma norma de habilita
ção, colocou-se uma norma nova e que essa conduta que era permitida
tornou-s e, n o p rim eiro caso, “obriga tóri a”, e no segundo, “proib ida”. Assim, o
Prim eiro-m inistro britânico, que tinha a faculdade de pedir demissão, teria a partir de então a obrigação de fazê-lo; o Presidente da Terceira Repúbl ica , que
tinha o direito de dissolver, vê-se proib ido de fazê-lo. Mas po r que e com o es
ses sujeitos foram levados a adotar mais uma conduta que outra? Sem dúvi
da porque eles não podiam agir de outra forma: as primeiras demissões do
Primeiro-ministro britânico, no século XVIII, foram apresentadas para esca
par de uma acusação. O Pres idente da Terceira República nunca se e ncontrou
em uma situação política tal que ele pudesse esperar ganhar eleições legisla
tivas, de modo que, provavelmente, ele não teria jamais dissolvido a Câmara,mes mo se não tivesse tido necessidade da an uência do Senado. Assim, pod em
se explicar suas condutas.
Observaremos, entretanto, que foram explicados somente fatos e não o
aparecimento de uma regra. Podemos dizer que existe uma pressão social,
mas n ão obrigação. É que, como vimos, uma regra é um sollenyum dever-ser,
que não pod e ser “causad o”, mas so mente “pos to”. A conc lusão é então, sim
ple smente, que não há regra enquanto não houver in te rfe rência de um ato de
vontade, cujo conteúdo é que deve se conformar com a prática anterior. Se
não se verificar a interferência de tal ato, essa prática não será obrigatória, o
que significa que uma prática contrária não poderia ser sancionada. O pre
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tenso costu me vai du rar ta nto qu ant o a coação. Mas se esta desaparece, então
pode nascer uma prática diferente.
É, aliás, o que às vezes de fato ocorre. O exemplo mais conhecido se re
fere ao direito constitucional americano. O mandato do presidente é de qua
tro anos. Em sua redação de 1787, a constituição não limitava o nú me ro dos
mand atos que um mesm o h om em podia exercer. No entanto, o primeiro pre
sidente, George Washington, após ter concluído dois mandatos, renunciou a
disputar um terceiro e nisso foi imitado por todos os seus sucessores. Estava-
se, portanto, na presença de uma prática repetida, combinada com o senti
mento do caráter obrigatório de modo que vários comentadores consideravam que existia um a nor ma constitucional costumeira, que tinha ab-rogado
e substituído a norm a escrita: ele teria sido proibido de dispu tar mais de dois
mand atos. Isso não impe diu de forma alguma qu e Franklin D. Roosevelt dis
putas se com sucesso um terceiro e até mesmo um quarto . Para introduzir
uma norma constitucional com o conteúdo do pretenso costume, foi neces
sário revisar a constituição.
Um o utro exemplo é emp restad o da Qu arta República francesa. Acredi
tava-se que o costume que tinha ab-rogado o direito de dissolução durante aTerceira República persistisse apesar da entra da em vigor de um a nova con s
tituição, de modo que o Presidente do Conselho, que dispunha desde então
desse poder, não pudesse efetivamente exercê-lo. Isso não impe diu de forma
alguma a dissolução de 1955.
B.Ainterpretação
Necessidade da interpretação. - Antes de aplicar um texto jurídico, qual
que r que seja, é necessário dete rm ina r seu sentido. O sentido de um texto ju
rídico, na verdade, é o que o texto ordena ou permite, é a forma que ele ex
pressa. Em outros te rmos, segundo o sentido que lhe atribuímos, o texto
ordena u m ou outro comportamento. Denominamos interpretação a operação
pela qua l atribuím os um sentido ao texto ( T r o p e r , 1994a, p. 293 s.).
Afirmamos, algumas vezes, que a interpretação só se faz necessária
quando o texto é obscuro e que, em contrapartida, ela é supérflua quando
o texto é claro, o que expressamos pelo adágio latino in claris cessat inte-
preta tio. Essa tese conduz, na verdade, a um paradoxo, pois para poder
afirmar que o texto está claro e que não há lugar para interpretá-lo, é pre
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A C o n s t i t u i ç ã o 53
ciso saber qual é sua significação, ou seja, é preciso que ele tenha sido in
terpretado.
A necessidade de interpretar o texto está ligada a três fatores principais. O
primeiro é sua indeterminação you seja, o fato de ser portador de vários sen
tidos. Essa indeterminação é, em si mesma, ligada às propriedades da lingua
gem natural, por meio da qual se expressou o constituinte, como legislador,
inclusive. A linguagem é n ecessariamente vaga e ambígua. A amb igüid ade é a
propriedade de uma palavra designar vár ios obje tos possíveis: na linguagem
comum a palavra “homens” designa os seres humanos ou então apenas osadultos do sexo masculino. Do mesmo modo, a expressão “organização dos
podere s públi cos”, c ontida no ar t. 11 da constit uição francesa de 1958 desig
na a organização das autoridades então instituídas pela constituição ou en
tão a própria constituição. Em contrapartida, uma expressão pode muito
bem não ser ambíg ua, p orque se sabe ao menos aproximadamente o que que
rem dizer as palavras que ela contém , mas vaga porqu e não se sabe exatamen
te se ela se aplica a algum objeto concreto. Assim, todos sabem o q ue que r di
zer careca, mas não sabemos se o homem que tem ainda alguns cabelos podeser qualificado com o careca. A linguagem jurídica, particul arm ente a das De
clarações dos Direitos, contém numerosas expressões vagas. Assim, a Decla
ração dos Direitos do Homem de 1789 dispõe no art. 17 que ninguém pode
ser privado de sua propriedade, salvo quando a necessidade pública o exige
“e sob condição de uma justa e prévia indenização” Compreendemos o que
significa essas palavras, mas qual é a indenização que deverá ser considerada
“justa”? Isso é evidentemente caso de apreciação.
É necessário ressaltar que essa indeterminação é, às vezes, involuntária,
mas freqü entem ente ela é totalmente deliberada. Na falta de pod er prever to
das as situações que se apresentarão, o autor de um texto é levado a empre
gar palavras suscetíveis de cobrir uma grande variedade de situações. A flexi
bil idade de uma constit uição te m seu preço. Assim, o célebre art . 16 da
constituição francesa de 1958 autoriza o Presidente da República “quan do as
instituições da República [...] são ameaçadas de um a ma neir a grave e imedia
ta [...] a adotar medidas exigidas pelas circunstâncias”; ninguém pode dizer
evidentemente o que o constituinte entende por “grave e imediata” e por
“me didas exigidas pelas circunstâ ncia s”. Ele próp rio não o sabia. Ele poderia,
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54 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
certame nte, su po r algumas situações, mas se as tivesse descrito com precisão
e se tivesse indicado as medidas a adotar, ele poderia temer os eventos im pre
vistos, que permitiriam ao Presidente adotar medidas adequadas. Ficando na
imprecisão, é permitido-lhe reagir a uma ampla variedade de situações im
previsíveis com uma gama de poder muito grande.
O segu ndo fator está ligado à natureza do pró prio significado. Podem os
acreditar que o significado de um texto é aquilo que o auto r quis expressar e
que pod eríam os desvelar. O significado de um texto seria, portanto , a inte n
ção do autor. Mas um texto jurídico não tem um único autor, mas vários.
Considerando que dentre os constituintes alguns tenham tido a idéia precisa- apesar do caráter vago e ambíguo das palavras que eles empregaram - , c on
siderando que seja possível conhecer essa intenção de uma determinada ma
neira, é evidentemente impossível que todos tenham tido a mesma idéia.
Uma constituição é adotada por um número muito grande de pessoas. O
pro jeto é preparado por grupos e freqüentemente dis cutido nas assembléias
ou submetido ao referendo. Dentre as pessoas que o adotam, algumas não o
leram e todas as que o fizeram não o compreenderam da mesma maneira.
Descobrir a intenção de um constituinte pode ser um interessante exercíciode psicologia histórica, mas não há n en hu m a razão para valorizar essa inte n
ção mais do que qua lquer outra.
O terceiro fator está ligado à evolução das concepções políticas e sociais.
A Declaração dos Direitos do Homem, que faz parte do direito constitucio
nal francês atual, tem mais de dois séculos. Poderíamos, nos termos de uma
análise histórica, resgatar o sentido que os autores da Declaração atrib uíram
a suas principais disposições. Descobriríamos então que a maioria dos ter
mos que eles empregaram significava certamente para eles algo distinto doque pod em representar para nós.
Assim, quando proclamavam o princípio da igualdade, esse princípio
não implicava a seus olhos a igualdade dos hom en s e de mulheres, n em o di
reito de voto para todos os homens. Se, por conseguinte, considerássemos
que o sentido da Declaração é aquele que lhe atribuíra m seus autores, deverí
amos necessariamente admitir que uma lei que privasse as mulheres de al
guns direitos ou que reservasse o direito de voto aos mais ricos estaria con
forme o princípio da igualdade. Não apenas tal solução seria política e
moralmente inaceitável para a maioria de nossos contemporâneos, como
também seria difícil fundamentá-la racionalmente. Dizer que estamos sub
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A C o n s t i t u i ç ã o 55
metidos à Declaração dos Direitos significaria na verdade que estamos sub
metidos à intenção, ou seja, à vontade de seus autores. Mas como justificar
que estejamos ainda submetidos à vontade de homen s mo rtos há tanto tem
po? Se quisermos evita r essa conseqüência absurda, é preci so adm itir que o
texto possui um sentido independente do que lhe atribuíram seus autores.
Esse sentido é o que nós podemos lhe atribuir hoje, síntese da evolução po
lítica e social.
Natureza da interpretação.
Duas concepções se opõem. De acordo com a primeira, a interpretação é um ato de conhecimento, de acordo com a segunda, um ato de vontade.
A primeira concepção é a mais difund ida. Assenta-se na idéia de que o
texto possui um sentido e somente um. Se esse sentido está claro, não é ne
cessário interpretar, mas se está oculto, então é preciso encontrá-lo e, para is
so, aplicar certos métod os, q ue a ciência do direito e laborou e que ela é capaz
de ensinar.
Essa tese não é aceitável por várias razões. Primeiramente, como vimos,
é impossível afirmar que um texto possui um sentido claro, sem tê-lo inter pretado previa mente . Em contrapartida, supondo que os auto res de um tex
to tenham tido uma intenção clara e única, não é possível reduzir o sentido
do texto a essa intenção. Em terceiro lugar, se cada texto tivesse um sentido
único, ent ão a in terpretaçã o seria suscetível de ser verdadeira o u falsa e deve
ríamos dispor de procedimentos de verificação. Ora, afirmar que uma inter
pretação é verdad eira é a firmar que ela enunciou o verd adeiro sentido do tex
to. Mas para saber de que se trata realm ente do verdadeiro sentido, é preciso
proceder por conta própria a uma interpretação e essa segunda in te rpreta çãosó poderá ser considerada como verdadeira nos termos de uma terceira e as
sim por diante.
A quar ta razão, a mais relevante, diz respeito à concepção o posta, dita
“realista”. Está ligada à importância da interpretação quando ela emana de
certas autoridades, às quais a ord em jurídica atrib ui o pod er de interpretar. A
interpretação que emana dessas autoridades é dita autêntica , ou seja, presu
me-se ter o texto somente o sentido que lhe foi atribuído, qualquer que seja
o conteúdo da interpretação, mesmo se ela contradiz tudo o que se acredita
saber do texto. A interpretação a utêntica se distingue da interpretação cientí
fica ou de doutrina , aquela que emana de pessoas privadas, mesmo técnica-
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men te qualificadas, como advogados o u professores de direito. A interpre ta
ção científica não pro du z n en hu m efeito jurídico e é som ente a expressão de
opiniões, que, aliás, podem ser divergentes, como freqüentemente o são. Ao
contrário, a interpretação autêntica não é a expressão de uma opinião dentre
outras. É o resultado de uma decisão pela qual um debate é resolvido. Ela se
inco rpor a ao texto, no sentido de que este a par tir de então só pod e ser co m
preendido à luz da in terpretação autêntica. Esta é um ato de vontade, pois o
intérprete pode dar ao texto o sentido que ele quiser. Essa teoria é chamada
realista por qu e ela descreve não a man eira c om o o direito funcion aria, se ele
funcionasse de maneira ideal, mas aquela como ele realmente funciona. Elatem conseqüências mu ito impo rtantes.
Conseqüências cia teoria realista da interpretação.
Antes de tudo, a interpretação não pode ser verdadeira ou falsa, mas so
men te válida ou não válida. Sua validade não de pende em n ada dos mé todos
empregados, mas apenas das condições nas quais ela foi emitida. É possível
que um a norm a superior confie expressamente a um a autorida de o pod er de
interpretar. É o caso, por exemplo, da lei que remete ao Tribunal de Cassaçãoo p ode r de decidir em assembléia plenária. Mas, em geral, o pod er é atrib uí
do de maneira implícita, dado que não se institui nenhum controle sobre a
interpretação dada por um a autoridade. Assim, as decisões pelas quais um juiz
constitucional interpreta a constituição não são suscetíveis de nenhum con
trole e são interpretações autênticas.
Mas as auto ridad es jurisdicionais não são as únicas a dispo r desse poder.
As interpretações que emanam de órgãos, cujas decisões não são submetidas
a nen hu m controle, tam bém são autênticas. Assim, para re toma r um exemploque já foi visto, du ran te a Quinta República, é o Presidente da República, que,
qu an do se trata de aplicar o art. 16, analisa se as instituições estão ameaçadas
de m ane ira “grave e imediata”, e que decide o sentido que convém d ar a essas
palavras. Aliás, é comum em dire ito consti tucional que a in te rp retação seja
dada de maneira coletiva por várias autoridades. É o que pode ocorrer no
exemplo citado. O Presidente da República pod e ser acusado pelo P arlame n
to de “alta traição”. Esse crime não está definido pela constituição, de modo
que o Parlamento deve interpretar as palavras “alta traição” antes de acusar o
Presidente. É possível ao Parlamento, porta nto, co nsiderar que u ma interpre
tação abusiva por pa rte do Presidente das expressões do art. 16 constitua p re
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A C o n s t i t u i ç ã o 57
cisamente esse crime. O Presidente, por sua vez, obviamente tem consciência
dessa possibilidade. Supondo que ele esteja tentado a dar uma interpretação
mu ito am pla dessas expressões, com o objetivo de se am pa rar nos poderes que
lhe dá o art. 16, ele deve levar em conta a possível atitud e do Parlamento. Tam
bém a in te rpretação defini tiva é somente a resultan te de todas as in terpreta
ções que diferentes auto ridad es são suscetíveis de dar.
A conseqüência mais im porta nte da interpretação, segund o a teoria rea
lista, é que o intérprete detém um po de r equivalente ao da auto ridad e da qual
ele interpreta os textos. O intérpret e da lei det ém um po der legislativo, e o in
térprete da constituição, um poder constituinte. Realmente, se ele pode determinar livremente o sentido do texto, então é ele quem determina o que o
texto prescreve. Em o utros term os, se a no rm a é o sentido de u m texto, então
aquele que determina o sentido, enuncia a norma. A norma constitucional
não é o texto escrito da constituição, ma s é esse texto como ele é interpre ta
do po r todas as autoridad es qu e dele são os intérpretes autênticos. Estes não
aplicam realmente normas constitucionais. Eles não são apoiados por elas.
Eles as criam.
Podem os ser tentados a objetar que eles aplicam ao m enos u ma espéciede normas: as que lhes dão o poder de interpretar. Mas no número de textos
que eles interpretam, constam, na verdade, também os que determin am suas
competências, de modo que eles são capazes de determinar suas próprias
competências. O exemplo mais célebre é fornecido pela Corte Suprema dos
Estados Unidos. A constituição de 1787 não lhe conferia expressamente o po
der de controlar a constitucionalidade das leis. Foi por uma interpretação à
qual a corte se dedicou em 1803, relativa ao caso M arbury v. Madison , qu e ela
interpretou a constituição para decidir que ela compo rtaria u ma norm a instituindo um controle de constitucionalidade. O Conselho Constitucional
francês procedeu, aliás, da mesma maneira em 1971, quando se considerou
com peten te para con trolar a constitucionalida de das leis em sua essência em
relação ao preâmbulo da constituição, enquanto que os redatores da consti
tuição tinham recusado inscrever esse poder no texto.
Isso não significa, entretanto, qu e os intérpretes sejam realmente c apa
zes de perturbar a constituição a todo momento. De um lado, eles não estão
isolados e devem, como vimos, tomar conta uns dos outros; de outro lado, a
ideologia à qual aderem os intérpretes os leva a exercer seu poder com mo
deração. Segundo essa ideologia, o detentor do p ode r deve dispo r de um a le
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5 8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
gitimidade; é preciso, em out ros termos , que exista um a justificação política
e moral, para o exercício de um poder. A justificação geralmente aceita nos
sistemas políticos modernos repousa em uma delegação, expressa ou tácita,
da nação ou do povo soberanos. Nem todas as autoridades capazes de inter
pretar podem se pr ivilegiar de tal delegação e a maio ria se esforça, por con
seguinte, para exercer suas competências de boa fé, ou seja, de maneira que
suas decisões sejam aceitáveis por pelo menos uma parte de seus destinatá
rios. Por fim, algumas de suas interpretaçõe s são colocadas em u ma situação
part icula r. São as jurisdições .
Uma modalidade particu lar de interpretação, a jurisprudência. - A juris prudência é o conjunto de regras re su ltan te s da atividade das jurisd ições . Um
dos procedimentos pelos quais elas produzem as regras é naturalmente a in
terpretação. No entanto, as jurisdições se encontram em uma situação sensi
velmente diferente da dos outros intérpretes. Realmente, suas interpretações
são escritas e freqüen temen te fund amen tadas . Disso resultam obrigações im
portantes. Por di fe rentes razões - notadamente porque a eficácia da jurispru
dência dep ende disso - as interpretações devem ser coerentes: não devem se
contradizer e devem ser motivadas da mesma maneira, ou seja, pela invocação de procedimentos de interpretação existentes.
Seção2
0 controleda supremacia da constituição
0controledaconstitucionalidadedasleis
A supremacia das leis constitucionais seria uma expressão vã se elas pudessem ser impunemente violadas pelos órgãos do Estado. Como vimos a
respeito das Declarações dos Direitos, pode mos afirmar que um a nor ma pos
sui um valor jurídico superior ao de ou tra norm a somente se a edição de uma
segunda norm a contrária à primeira puder ser sancionada. A sanção mais c o
mum e mais facilmente aplicada nos sistemas jurídicos modernos é a anula
ção da nova norma.
A constituição po de ser violada po r n orm as de diferentes níveis, emiti
das pelo poder executivo (a administração), pelos tribunais e naturalmentetam bém pelos particulares. A emissão dessas norm as pode, porta nto, ser ob
je to de um contro le e ser sancio nada, mas essa questão é objeto dos outros
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A C o n s t i t u i ç ã o 59
ramos do direito, notadamente o direito civil e o direito administrativo. No
que tange ao direito constitucional, a questão concerne principalmente às
sanções da edição de leis contrárias à constituição. É a do controle da consti
tucionalidade das leis.
O princípio de tal controle é hoje objeto de quase unani mid ade entre os
ju ris ta s e os homens pol ít icos dos Estados liberais, que vêem nele um elemen
to essencial do Estado de direito\
1. Le g i t i m i d a d e d o c o n t r o l e d e c o n s t i t u c i o n a l i d a d e
Não podemos escapar da questão da legit imidade do controle da consti
tucionalidade das leis por força de um dilema muito simples: por um lado,
não existe ne nh um controle, o que significa dizer que o legislador pode violar
a constituição e que esta não é nem superior às leis, tampouco obrigatória.
Mas por ou tro lado, em um sistema político democrá tico, as leis são fei
tas pelo povo soberano. A instituição de tal controle, confiado a um a a uto ri
dade q ue nã o é o povo, significa então que essa auto ridad e contro la a vonta
de do povo e, portanto, que o sistema não é realmente democrático.Todo constituinte deveria, portanto, escolher e renunciar seja à supre
macia da constituição, seja à democracia.
Tentou-se, entretan to, escapar desse dilema e afirma r a legitimidade do
controle de constitucionalidade dentro de um sistema democrático. Essas
tentativas se chocaram com uma série de críticas.
a) Tese da legitimidade do controle dentro de um sistema democrático
Todas as tentativas para escapar do dilema implicam uma investigação
das duas noções de democracia e de controle de constitucionalidade para
mostrar que elas não são antinômicas.
1. No que concerne à democra cia, pod em os sustentar que ela não se re
sume ao poder da maioria do Parlamento. Partindo disso, podemos adotar
uma definição mais restritiva de democracia ou então uma definição mais
ampla, que ambas legitimarão o controle de constitucionalidade.
3 Cf. infra, os desenvolvimentos consagrados ao Estado de direito; uma opinião hostil ao controle de constitucionalidade foi expresso na França por R. d e L a c h a r r i è r e (1980).
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60 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Segundo a concepção mais restritiva, a democracia é o poder do pró
prio povo; a única democracia é a democracia direta e os si stemas po lí ticos
que conhecemos não são democracias. Na melhor das hipóteses, o povo ele
ge os governantes, mas ele mesm o não governa; e controlar a vontad e dos go
vernantes não é, portanto, controlar a vontade do povo.
Segundo a concepção ampla, admite-se que a democracia representati
va é um a forma de democracia, mas ela não se reduz ao único pod er da maio
ria, que seria somente o pod er da força. Ela consiste tam bém nas garantias da
mino ria, que não deve ser op rimi da pela maio ria e que deve dispor das liber
dades que lhe permitem almejar tornar-se, um dia, maioria. O controle deconstitucionalidade é assim o instrum ento da proteção da m inoria.
2. No que concern e ao controle, faz-se saber, prim eiram ente , que nem
toda lei é necessariamente a vontade do povo ou a vontade geral. É, na verda
de, a constituição que d eterm ina as competências do legislador e que o h abi
lita a elaborar leis em algumas matérias, em conformidade com alguns pro
cedimentos, determinand o-lhe observar alguns princípios. Qu and o o legislador
respeitou o conjunto de condições fixadas pela constituição, nesse momento
e somente a partir de então, é que ele expressou a vontade geral. Se, em contrapartid a, essas determ inaçõ es não foram observadas, não se está na prese n
ça da vontade geral, mas da vontade particular do legislador e o controlador
pode perfeitamente anular a lei, sem se opor à vontade do povo.
Adiantamos, também, que o controle tem uma importância essencial
mente formal. O órgão de controle não se pronuncia sobre o fundamento da
lei, sobre as medidas que elas contêm, sobre a oportunidade dessas medidas.
Estas são questões políticas, que somente ao legislativo pertencem. Ele se limi
ta, por sua vez, a indicar que a constituição não permite adotar as medidas li-tigiosas na forma legislativa. Para adotá-las, é necessário fazê-lo na form a cons
titucional, ou seja, revisando a constituição. É por isso que as decisões do juiz
constitucional sempre po dem ser reformadas mediante um a revisão da consti
tuição. Essa possibilidade revelaria de forma clara o caráter democrático do
controle de constitucionalidade, porque este manifesta a subordinação do juiz
constitucional ao poder constituinte, que representa o soberano. Mas essa jus
tificação do controle desaba se adm itirm os a idéia, conforme a dou trin a da su-
praconsti tucionalidade, de que algumas disposições const ituc iona is fogem do
poder const it uin te der ivado e que os tr ibunais const itucionais podem contro
lar a conform idad e das leis de revisão segundo princípios supraconstitucionais.
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A C o n s t i t u i ç ã o 61
b) A teoria realista da interpretação
Os argumentos se chocam com uma séria crítica: eles estão todos fundados no pressuposto implícito de que a violação da constituição é um fato
objetivo que pode ser constatado por um juiz. A anulação da lei inconstitucio
nal não seria mais do que a conseqüência dessa constatação. Mas podemos
pensar que a violação da constitu ição não é comparável a um fato objetivo.
Para afirmar que uma violação foi cometida, é preciso, de fato, determinar
previamente o que exata mente prescreve a const ituição.
Mas na verdade o texto da co nstituição é vago e ambíguo.
Ele deve necessariamente ser objeto de uma interpretação jurídica. É
preci so determinar seu sent ido. Mas, como vimos, esse sentido não está em
butido no texto, a in te rpreta ção não é uma consta tação, mas um a verdadeira
decisão. Po demos dizer que, quando uma lei é interpretada, o verdadeiro legis
lador não é aquele que, originalmente, fez a lei; o verdadeiro legislador é o in
térprete. O mesmo vale para a constituição. Por conseguinte, instituir um con
trole da constitucionalidade de uma lei adotada pelo povo ou por seus
representantes, é submetê-la à vontade do controlador.
Segundo essa tese, o controle de constitucionalidade não é, portanto,
conciliável com ne nh um a form a de democracia. Trata-se, na verdade, de um
modo de governo diferente, o governo dos juizes.
c) As teorias modernas da interpretação
É por isso que os autores c onte mpo râne os, desejosos de justificar a exis
tência do controle de constitucionalidade e, de maneira mais geral, o papel
do juiz nos sistemas jurídicos m oderno s, devem tentar m ostrar que esse pa
pel não é polí tico. Esses autores não consideram que o texto constit ucio nal
encerraria um sentido único; admitem que ele deve ser interpretado, mas
contestam a teoria realista da interpretação e sustentam que a interpretação
não de pende da vontade soberana do juiz.
Existem diversas variantes dessa posição: para uns, diferentemente da
decisão do legislador ou do constituinte, a interpretação dada pelo juiz deve
ser justificada mediante um raciocínio específico. A forma desse raciocínio
determina em grande medida o conteúdo da interpretação, ou seja, o senti
do que será dado ao texto. Portanto, não se pode dizer que o controle de
constituc ionalida de é um freio ao pod er político do legislador.
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6 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Para outros, o pap el do juiz constitucional deve ser apreciado levando-
se em conta, efetivamente, a situação na qual ele se encontra. Ele pode dese
ja r dec larar que uma lei, cu jo conteúdo lhe desagrada, é contrá ria à consti tui
ção e decidir anulá-la, mas deve levar em conta vários fatores: o legislador
frustrado poderia mandar adotar a mesma medida na forma constitucional,
solicitando rever a constituição; poderia também exercer pressões sobre as
pessoas dos juizes ou elevar o número dos membros do órg ão de controle , de
forma a influenciar a maioria em seu meio. Alguns membros podem intencio-
nar preparar decisões futuras e procurar ganhar a simpatia de seus colegas
etc. (MURPHY, 1962; MEUNIER, 1994).Para out ros , a inda, o ju iz exerce uma função to ta lmente d i ferente da
função do legislador , mas que deve ser comparada à do cr í t ico l i terár io. Co
mo o cr í t ico, ele deve dar uma interpretação ao texto, que não expresse suas
convicções, mas que apresente pelo m eno s dua s caracter íst icas: por um lado,
deve apresentar o texto a ser in terpre tado, na sua forma mais c lara ; por ou
tro , deve estar compatível com o ma ior n úm ero de dado s possíveis (D w o r k i n ,
1986).
2.AS FORMAS DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
Em todo lugar em que é instituído, o controle de constitucionalidade
pode ser descri to por propriedades que definimos com base em várias distin
ções e classificações: ele pode ser efetuado por um órgão político ou por um
órgão jurisdicional: um sistema de controle de constitucionalidade pode ser
descentralizado ou centralizado, po r via de ação ou po r via de exceção, a prio- ri ou a posteriori.
A.Órgãopolíticoouórgãojurisdicional
A primeira distinção é usualmente a mais empregada, apesar de ser a
menos clara, ou talvez justamente por causa disso. Podemos, na verdade, dis
tinguir os dois tipos de órgãos pelo mo do com o eles são compostos: o órgão ju ri sd ic ional é composto de ju ri stas prof issionais e o órgão político, de nâo-
juristas . Mas, juri stas prof issionais podem evidente mente te r ligações polí ticas
e mesmo partidárias. O mod o como são nomead os os mem bros da autorida
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A C o n s t i t u i ç ã o 63
de de controle também não é um critério satisfatório porque mesmo juizes
profiss ionais podem ser escolhidos - e são, aliás, freqüentemente de fato esco
lhidos, na Itália ou na Alemanha, por exemplo - por autorid ades políticas
(Parlamento ou Presidente) por razões políticas. Voltamos a atenção, então,
aos critérios tirados do processo e admitimos que uma autoridade é jurisdi
cional se ela age nos moldes de um processo, que parece em alguns aspectos
com aquele conduzido em geral diante dos tribunais. Mas é preciso observar,
primeiramente, que se invoca, às vezes, o cará te r jurisdic ional de uma autori
dade, como é, aliás, o caso da França, não após ter observado o desenvolvi
mento do processo, mas para sustentar que, já que a autoridade é jurisdicional, o processo deveria ser modificado e equiparado ao processo jurisdicional
habitual. Bem, afirmamos que uma autoridade é política quando ela funda
suas decisões nas preferências políticas e que ela é jurisdicional se ela as fun
da exclusivamente nos motivos de direito. Mas não existe nenhum critério se
guro qu e perm ita distinguir o motivo de direito do motivo político.
É, port anto , compreensível que a Suprema Corte dos Estados Unidos, a
Corte Constitucional italiana ou o Conselho Constitucional francês puderam
receber uma ou outra qualificação. Para uma determinada instituição em umdeterminado país, a questão do caráter político ou jurisdicional não pode,
portanto, ser resolvida e parece que na ve rdade temos a tendência de chamar
de “política” uma autoridade cujas decisões são reprováveis. As demais clas
sificações apresentam mais rigor.
B.Sistemadescentralizadoesistemacentralizado
Em um sistema descentralizado, nos Estados Unidos, por exemplo, o
controle de constitucionalidade é considerado uma extensão natural da fu n
ção do juiz e todos os trib unais pod em exercê-lo. Eles po dem - e até devem
- recusar-se a aplicar um a lei inconstitucional e pode m e xam inar eles pr ó
prios, a pedido das par tes, se ela está em conformidade ou em desconformi-
dade com a constituição. O te rmo “descentralizado” é, aliás, um pou co a mb í
guo, pois ainda assim existe centralização no nível da Suprema Corte.
A esse sistema se opõe o que c hama mo s de “centr aliza do”, no qual ocontrole de constitucionalidade é reservado a uma jurisdição especialmente
criada para esse fim; é o que inspira o modelo europeu, notadamente adota
do na Alemanha, na Itália, na França e na Espanha. Os me mb ros dessa juris
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64 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
dição são escolhidos principalmente por autoridades políticas, mas, com ex
ceção da França, eles devem possuir u m a qualificação jurídica.
Existem duas razões para a escolha desse sistema na Europa:
a) na maioria dos países europeus, existe pluralidade das ordens de ju
risdição e não unid ade com o nos países anglo-saxões, de m od o que, se os tri
bunais ordinários pudessem interpretar a consti tu içã o, haveria vá rias juris
prudência s constit ucio nais divergentes;
b) os juizes nos países de tradição romano-germânica não gozam do
mesmo prestígio que nos países anglo-saxões e nunca desejaram assumir a
responsabilidade de censurar a atividade do legislador, solicitado a expressar a vontade soberana da nação.
Diante disso, em vários países europeus , os tribunais ordinários, se não
puderem examinar por eles próprios a conformidade com a constit uição das
leis que estiverem encarregad os de aplicar, podem , entreta nto, submetê-las ao
tribunal constitucional quando, diante de um litígio a eles submetido, colo
car-se uma questão de constitucionalidade.
C.Controlea priori econtrole a posteriori
O controle a priori é aquele exercido antes da en trad a e m vigor da lei, às
vezes antes mesmo de ela ser promulgada, como é o caso da França. Após a
adoção da lei pelo Parlamento o controle não é exercido de imediato, mas cer
tas auto ridad es têm o poder, se elas considera rem que a lei é con trária à cons
tituição, de subme ter a questão ao órgão de controle. Evidentemente, à med i
da que esse poder, o direito de submeter à apreciação , seja conferido de formamais ou men os ampla, o controle será exercido de maneira mais ou meno s in
tensa.
O controle a posteriori é aquele exercido depois que a lei entrou em vigor.
O controle a priori apresenta a vantagem da segurança jurídica porque
todos os problemas contenciosos serão solucionados quando a lei entrar em
vigor. Os cidadãos sabem qu e ela não p ode mais ser anulada e po r consegu in
te conhecem seus direitos e suas obrigações. Esse controle apresenta, entre
tanto, do ponto de vista de sua eficácia e das condições nas quais ele se exerce,dois inconvenientes:
1. O juiz é levado a se pro nu nc iar em um mom en to em que as paixões
polí ticas motiv adas pe la lei ainda não estão apaz iguadas, porque a lei acaba
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A C o n s t i t u i ç ã o 65
de ser votada, de mo do que q ua nd o o juiz censura a lei, ele é logo acusado de
hostilidade política aos olhos da maioria política que votou a lei. É o que
ocorreu na França várias vezes, por exemplo qu and o o Conselho Constitucio
nal foi criticado pela esquerda, quando ela era majoritária antes de 1986, e
depois pela direita durante a coabitação de 1986 a 1988.
2. O juiz se pronu ncia no mo me nto em que não se conhecem ainda to
das as virtualidades da lei, virtualidades que serão reveladas somente na sua
aplicação.
Ao contrário, com o o controle a posteriori intervém no mom ento de di
ficuldades provocadas pela aplicação da lei, ele permite ao juiz perceber hi póteses que o legislador não havia vislumbrado.
D. Controleporviadeaçãoecontrole porvia deexceção
No controle por via de ação, aborda-se a lei (exerce-se uma ação) solici
tando à jurisdição constitucional que impeça sua promulgação o u sua anu la
ção. Essa ação não é exercida durante um processo. É por isso que também
cham amo s de controle a título principal ou in abstracto. É preciso notar queo controle por via de ação pode ser exercido a priori como na França ou a
posteriori como na R.F.A. (República Federal Alemã).
O controle por via de exceção é aquele que existe nos Estados Unidos,
mas tam bém nos países da E uropa co mo a Alemanha, a Itália, a Espanha, on
de é instituída um a jurisdição constitucional especial. Nesse caso, entretan to,
o tribunal encarregado do litígio principal não decide por si mesmo a exce
ção. Ele espera até que a jurisdição constitucion al decida a questão da co ns
titucionalidade da lei. Essa questão é chamada por essa razão de questão pre
judicial. O controle por via de exceção só pode ser exercido a posteriori.
Podemo s assim cotejar distinções par a caracterizar o sistema de con tro
le instituído em um ou em outro país. Descreveremos por exemplo o sistema am e
ricano como descentralizado, a posteriori, po r via de exceção e o sistema fra n
cês com o centralizado, a priori, por via de ação.
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CApílulo
O PODER
Diferentemente da ciência política, a ciência mo der na do direito con sti
tucional não estuda o fenômeno do poder sob todas as suas formas e em to
das as sociedades, mas som ente aquele q ue é exercido na f orm a jurídica e que
é chamado de Estado.
Será examinado neste capítulo o quad ro no qual se movimenta este poder,
as formas nas quais ele se manifesta, e as técnicas com as quais ele é exercido.
Seção 1
0 quadro: o Estado
Definição. - A forma estatal se caracteriza po r alguns t raços essenciais.
O poder é exercido na forma jurídica, ou seja, não mediante comandos
isolados, mas mediante regras que são criadas e aplicadas segundo procedi
men tos regulares e relativamente estáveis, de tal man eira qu e cada c om and o
individualmente dirigido a um sujeito se apresenta sempre como a aplicação
de uma regra geral anterior.
O poder deve ter como titular não os homens que o exercem de fato,mas u m ente distinto, a quem os atos são atribuídos.
Esse ente é chamado Estado. O Estado não pode querer e agir por si
mesmo. Igualmente, há necessariamente ho me ns para q uere r e agir, mas pre
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70 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
sume-se que seus atos sejam os do Estado. Usamos freqüentemente uma me
táfora: eles são órgãos do Estado. Da mesma forma que dizemos que um ho
mem fala quando sons articulados saem de sua boca, dizemos que o Estado
quer quando alguns homens, que são seus órgãos, expressam uma vontade.
Esse conjunto é freqüentemente considerado c omo uma pessoa jurídica
ou moral, um ente análogo a uma pessoa física. Ele possui, portanto, um pa
trimônio, direitos e obrigações, e até interesses, distintos dos interesses de
seus órgãos, distintos dos interesses dos sujeitos.
O Estado é também distinto da sociedade, denominada sociedade civil.
Ele exerce seu poder sobre ela, assumin do-lhe u m certo núm ero de funções. Essas funções podem ser naturalmente percebidas como funções sociais: o Esta
do promove a justiça, garante a direção da econ omia d o país, a educação dos
jovens, a defesa do te rrit ório etc. Mas essas funções são exercidas de uma fo r
ma jurídica: o Estado emite regras, que têm como objeto essas diferentes ati
vidades. Em outras palavras, o Estado se apresenta como “produtor de direito”
Essa produ ção ocasiona dois tipos de problemas:
- se o Estado é pro du tor de direito, po dem os con ceber que ele mesm o
está su bme tido ao direito?- o pode r do Estado se exerce para um grupo de homens, mais ou menos
importante, a que chamamos, se os observamos individualmente, os sujeitos, e,
se os consideramos coletivamente, o “povo do Estado”. Ele se exerce também em
uma determinada porção de espaço geográfico, o território do Estado.
1. O Es t a d o e o d i r e i t o
As ordens de um governo regularmente instituído se impõem porque,
consideradas em si mesmas, elas podem ser imputadas ao Estado. Concebe
mos, nessas condições, que o valor de um sistema constitucional dep ende dos
mecanismos ou procedimentos que ele prevê para impedir que fiquem no
Poder indivíduo s cuja ação é totalme nte co ntrária aos anseios da nação: a in
vestidura regular não é tudo para um governo, já que sua autoridade não so
breviverá à sua subst ituição igualmente regular.
Isso não significa dizer, entretanto, que enquanto não forem formalmente destituídos de suas funções, os governantes podem fazer tudo. Eles
são os órgãos do Estado, certamente, mas o Estado em si mesmo não é oni-
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0 Po d e r 71
potente, ou ainda que o seja, não é ele o único que determina a exte nsão de
seu poder.
O p roblem a das relações entre o Estado e o Direito foi um dos que não
deixaram de despertar a atenção dos juristas e mesmo de suscitar a paixão
das multidões quando elas ainda acreditavam em seus ideais (F e r r y , 1999) .
O dualismo do Estado e do direito. - Qua ndo abordamos esse problema,
pressupomos em geral que o Estado e o dire ito são duas enti dades di st in tas.
Duas soluções são, então, concebíveis: a primeira é a posição jusnaturalista
que consiste, como vimos, em a dm itir que acima do direito positivo, ou seja, posto pelo Estado, existe um direito natural, que a ele se im põ e1. O Estado d e
ve, portanto, estar submetido ao direito e é necessário instituir mecanismos
que garantam essa submissão.
Ao contrário, segu ndo a concepção positivista, não existe ou tro direito
senão aquele que foi posto pelo Estado, expressão de sua vontade. Portanto,
o Estado nunca pode estar submetido ao direito, porque, assim, ele estaria
simplesmente submetido à sua própria vontade. Nessa perspectiva, podemos
apenas conceber uma autolimitação do Estado. Nesse ponto, os adepto s das duas posições, resp ectivamente , trocam ar
gumentos ligados ao significado político das duas doutrinas. Aos olhos dos
jusnatu ra lis ta s, o posi tiv ismo não seria mais que um a forma de id ola tr ia ao
Estado, e, po r conseguinte, um a m era justificação do auto ritarism o, até mes
mo do totalitarismo. Como afirma que o Estado é o único produtor de direi
to e que o primeiro não pode estar submetido ao segundo, o positivismo não
chega de fato a recomendar a obediência a qualquer ordem, por mais despó
tica que ela seja, já que ela emana do Estado, e isso é “o direito”? Essa acusação foi formulada com um rigor muito particular após a Segunda Guerra
Mun dial e os positivistas foram considerad os p or alguns de seus adversários
com o claros aliados ou cúmplices dos nazistas.
Os positivistas contestam que não há grande diferença entre um a defini
ção de direito e uma justificação de seu conteúdo ou um a incitação à subm is
são. Os comandos emitidos pelo Estado pertencem de fato ao direito, de acor
do com a única definição possível do direito. Mas o positivismo é uma postura
científica e não m oral ou política e essa qualificação não é um julgam ento m o
1Cf. supra o capítulo preliminar.
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72 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
ral: é possível nomeá-las como “direito” sem que seja necessário pregar sua
obediência. São os jusnaturalistas que confundem erroneamente o ponto de
vista científico e o ponto de vista mora l e que na verdade propa gam um a ideo
logia: como é impossível provar a existência de um direito natural ou conhe
cer o que ele determin a, o que os jusnaturalistas cham am de “direito n atura l”
é apenas a expressão de suas próprias convicções subjetivas. Se eles afirmam
que o Estado deve estar submetido ao direito natural, portanto isso significa
apenas uma coisa: que o Estado deve estar submetido aos valores que são
compartilhados pessoalmente por seus sujeitos. Em outras palavras, aos olhos
dos positivistas, o jusnaturalismo não expressa mais do que a pretensão de alguns autores de supervisiona r a administração d o Estado.
Essas duas concepções são inconciliáveis e a adesão dos au tores a uma ou
a outra permite com preend er um grande nú mer o de debates teóricos em direi
to. É por isso que qua ndo alguns autores procurar am um a resposta para o p ro
blema das relações entre o Es tado e o direito, isso se deu necessariamente par
tindo de um ponto de vista jusnaturalista ou de um ponto de vista positivista.
A un idade do Estado e do direito. - De acordo com a doutrina de HansKelsen, conhecida c omo a Teoria Pura d o Direito, o problema das relações en
tre o Estado e o direito e apenas um falso problema ( K e l s e n , 1962, p. 275-310) .
Ele pressupõe, com efeito, que o Estado e o direito sejam duas entidades d istin
tas, e que, na verdade, trata-se de algo único designado po r dois nom es diferen
tes. Uma das demonstrações dessa unidade recai na definição tradicional do
Estado. Vimos, segundo Kelsen, que os três elementos que devem ser emprega
dos para definir o Estado, o povo, o território e o poder público, só pode m ser de
finidos pelo Estado em si mesmo. Mas isso significa que eles só podem ser definidos pelo direito: o povo, com efeito, é o conjun to de ho mens, submetidos
às normas ligadas a uma determinada ordem jurídica; o território é o espaço
dentro do qual essas normas são aplicáveis; o poder público é aquele que se
exerce mediante as normas. Definir o Estado é, na verdade, defin ir o direito.
Disso decorre ev idente mente q ue a questão das relações entre o Estado
e o direito não faz mais sentido. Como se trata de um fenômeno único, um
não pode estar submetido ao outro.
O Estado de direito. - Entre as ideologias cont emp orân eas referentes às
relações entre o Estado e o direito, figura a chamada doutrina do Estado de
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0 Po d e r 73
direito ( C i i e v a l i e r , 1999). Ela se desenvolveu a part ir dos tra balh os dos juris
tas alemães do século XIX. Essa do utri na, hoje m uito difun dida - a ponto do
Secretário Geral do Partido Comunista da União Soviética ter declarado sua
vontade de instaurar um “Estado socialista de direito” (v. Le Monde de 28 de
maio de 1988) -, comporta, na verdade, várias idéias diferentes.
Em primeiro lugar, ela admite que o Estado age exclusivamente de for
ma jurídica, o que não significa “em conformidade com o direito”, mas “por
inter méd io d o direito”. Essa forma se caracteriza, com o vimos, pela su bor di
nação das normas umas às outras, cf. supra o capítulo preliminar.
Ela se apresenta como um a proteção c ont ra o risco da arbitrariedad e, jáque os órgãos inferiores do Estado não podem nun ca agir de outro mo do se
não aplicando uma norma mais geral e anterior, portanto, conhecida pelos
sujeitos. Com efeito, o p rimeiro p rincípio prote tor da do utri na do Estado é o
denominado princípio da legalidade.
Mas esse primeiro princípio não protege evidentemente contra leis que
seriam em si mesmas opressivas. A doutrina do Estado de direito procura,
portanto, um segundo prin cíp io. A esse respeito, manif estam-s e alg umas di
vergências. Alguns idealizam processos legislativos complexos, incidindo noequilíbrio dos poderes, e capazes de impedir, pelo simples jogo de oposição
de interesses, a adoção de leis tirânicas. Outros depositam sua confiança no
exercício da democracia . Outr os ainda, hoje mais nu meros os, enxergam a so
lução na submissão da lei a princípios superiores, ou seja, praticamente no
controle da constitucionalidade das leis (cf. supra).
Diante disso, existe no cerne desse último grup o um a tensão pe rm an en
te entre duas concepções possíveis, bem diferentes e incompatíveis reciproca
mente ( V e d e l , 1988). Segundo a primeira, os princípios supralegislativos sãoaqueles inscritos na constituição pelo constituinte originário; são princípios
do direito positivo. Disso resulta que já que esses princípios foram postos na
constituição, eles podem ser modificados de acordo com o proced imento pre
visto para a revisão constitucional. A instituição do c ontrole de c onstituc iona
lidade pode, portanto, achar nessa concepção sua justificação, pois a anulação
de u ma lei por inconstitucionalidade significa, pois, não que o juiz constitucio
nal se opôs à vontade dos representantes do povo, mas simplesmente que ele
indicou que essa lei só poderia ser adotada mediante a modificação dos pri n
cípios constitucionais. O juiz se limitou, portanto, de alguma forma, a indicar
o processo a ser seguido. Mas está claro que, segundo essa concepção, se o legis
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74 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
lador se vê limitado, o Estado em sua totalidade não o é, já que p or u m lado o
ju iz di spõe de uma ampla margem de poder discricionário para decid ir se os
princíp ios fo ram ou não violados e por outro lado, o Estado pode, mesmo que
seja somente no final de um procedimento mais ou menos difícil de ser reali
zado, modificar os princípios aos quais ele deve se submeter.
De acordo com a segunda concepção, os princípios supralegislativos
não são apenas princípios do direito positivo. São princípios do direito n at u
ral. Certame nte eles pud eram ser objeto de uma proclamação nos pre âm bu
los das constituições ou nas declarações dos direitos, mas não tiram sua for
ça e seu valor da promulgação desses textos. Estes são apenas “declarações”,como seu nome indica freqüentemente. Eles só fazem constatar de maneira
solene direitos que lhes preexistem e que os homens possuem naturalmente.
Essa concepção comporta duas implicações muito importantes: primeira
mente, mesmo se não houvesse nenhuma declaração dos direitos ou se os
princípio s não estivessem mencionados no preâmbulo da consti tu ição, mes
mo assim eles se imp oriam ao Estado, notad am ent e ao legislador; em co ntr a
parti da, mesmo que eles se jam obje to de uma dec laração, o que o ju iz aplica
quando controla a conformidade da lei aos princípios, não é o texto da declaração, ao qual ele não está ligado, mas os princípios do direito natural, que
ele é chamado a descobrir median te m étodos apropriados.
Os adeptos da segunda concepção pod em, p ortanto, sustentar que ela é
a única na qual o Estado está realmente sub metid o a um direito superior, mas
isso se choca evidentemente com a objeção dos positivistas, que sustentam que
a exatidão de uma concepção não se mede em função das justificações que ela
fundamenta. Resta saber se ela repousa em idéias reais e que se prove, o que
é impossível, que os princípios do direito natural realmente existem.
2. 0 Es t a d o e o e s p a ç o , a s f o r m a s d e o r g a n i z a ç ã o d o Es t a d o
Primeiramente, é importante evitar uma confusão freqüente entre a
forma de organização do Estado e a forma de seu governo. A forma de gover
no é determinada pelo número dos titulares do poder e pela maneira como
eles são designados. A forma de organização do Estado é a forma da ordem
jurídica do Estado, o espaço de validade te rr itori al de suas normas e a manei
ra como elas estão postas. Em uma ordem jurídica, salvo quando se trata da
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0 Po d e r 75
ordem jurídica de um Estado minúsculo, nem todas as normas têm a mesma
esfera de validade territorial. Algumas são válidas e se impõem sobre todo o
território nacional, outras apenas em uma porção desse território. Na Fran
ça, por exemplo, as leis se impõem em todo o território, mas algumas deci
sões se impõem apenas no território do dep artam ento ou no da comuna . Por
convenção e para facilitar a explicação, denominaremos as primeiras “nor
mas nacionais” e as segundas “normas locais”. A questão da forma de organi
zação do Estado se refere, prim eiram ente , à divisão das matérias entre aq ue
las que são regidas pelas normas nacionais e aquelas regidas pelas normas
locais, bem como a maneira como as últimas normas são postas.A distinção entre a form a de organização do Estado e a forma de seu go
verno permite com preende r - ainda que a forma do Estado influa em certa
medida na de seu governo - que Estados com forma de organização seme
lhante sejam regidos por processos governamentais diferentes e - de mo do
inverso - que Estados com forma de governo ou com regime político seme
lhantes apresentem formas de organização diferentes. Por exemplo, antes de
1940, a França e a Itália eram dois Estados unitários (mesma forma de orga
nização), mas a primeira era uma democracia representativa e a outra umaditadura fascista (duas formas de governo diferentes). Há pouco tempo, a
União Soviética e a Polônia eram dois Estados socialistas, mas o primeiro era
um Estado federal e o segundo um Estado unitário.
Assim, acabamos de contrapor duas formas de organização: o Estado
unitário e o Estado composto.
3. O Es t a d o u n i t á r i o
É aquele no qual as normas locais podem ser criadas somente como a
aplicação de normas nacionais prévias. Dizemos que elas são “condiciona
das”. Há, portanto, um único centro de poder e, em última análise, é a mes
ma autoridade nacional que estabelece diretamente as norm as nacionais e in
diretamente as normas locais.
Por exemplo, na França, as leis são nacionais e as normas locais só po
dem ser criadas qua nd o um a lei nacional disciplina as matérias nas quais elas podem intervir . É também a lei que inst itui a autoridade local compete nte,
que lhe atribui objetivos e limites, que det erm ina proce dime ntos e que orga
niza um controle do conteúdo das decisões; de modo que se pode imaginar
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76 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
que, num determinado Estado, as normas locais são tão somente a concreti
zação, dadas as situações locais, das normas nacionais.
Existem, entretanto, diferenças importantes entre os Estados unitários:
alguns são chamados centralizados, outros descentralizados. Nos Estados
unitários do prime iro tipo, todas as norm as são adotadas por autoridades n a
cionais, denominadas também centrais. Nos Estados unitários descentraliza
dos, as normas locais são adotadas pelas próprias pessoas que a elas estarão
submetidas ou por pessoas eleitas por elas. É por isso que se fala nesse caso
de autonomia.
Não devemos confundir a descentra lização e a desconcentração: numEstado desconcentrado, as normas locais são adotadas, por delegação, por
agentes nomeados pelas autoridades centrais. Esses agentes integram uma
hierarquia e estão submetidos ao controle de seus superiores, de mo do que
os sujeitos não p articipam em nada da criação das normas. A desconcentra-
çâo é, portanto, n ão u m a form a de descentralização, mas um a forma de cen
tralização.
Compreendemos, assim, o fato da descentralização estar ligada à idéia
democrática. Com efeito, a população de um Estado não é homogênea dentro do território do ponto de vista étnico, lingüístico, religioso ou simples
mente político. Freqüentemente acontece de um grupo ser minoritário em
escala nacional, mas majoritário em algumas regiões. Em um Estado centra
lizado, esse gru po estaria sempre sub met ido a norm as que não desejou e que
lhe são impostas pela maioria. Em u m sistema descentralizado, ao contrário,
está submetido a n orma s que ele próprio a dotou, direta ou indiretamente pe
las autoridades eleitas ( M é n y , 1974; M o r e a u , D a r c y , 1984).
Centralização e descentralização são tipos-ideais, ou seja, categorias co ncebidas pelos juristas. Na verdade, nunca enc on tram os esses tipos em estado
puro, mas si tuações intermediárias mais próximas de um ou de outro. A des
centralização é mais acentu ada n a me dida em qu e as nor ma s locais trata m de
assuntos mais importantes; as normas nacionais deixam, nesses assuntos,
um a m argem mais ampla de liberdade às autorida des locais e o controle exer
cido pelas autoridades nacionais é, nesses casos, menos estrito.
O grau mais elevado de descentralização é o do Estado regional, no qual
os sujeitos das normas locais, agrupados em regiões relativamente vastas, de
vem a autonomia não à lei, mas à própria constituição nacional e isso de duas
maneiras: por um lado, ela lhes atribui uma lista de matérias, que a lei nacio
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0 Po d e r 77
nal não pode modificar; por outro, em certos casos, como o da Espanha, a
constituição pode até permitir às regiões que determinem, elas mesmas, de
forma limitada, a organização e o modo de funcionamento das autoridades
regionais. Distanciam-se, assim, bastante do Estado federal.
4. O Es t a d o c o m p o s t o
Ele apresenta estruturas diferentes conforme a rigidez do laço que une
suas partes integrantes. Dessa forma, parte-se da confederação de Estados até
o Estado federal.
A confederação de Estados, - Vários Estados podem se agrupar me dian
te um tratado internacional e constituir uma c omu nidade organizada, den o
min ada “confederação de Estados”. Os Estados-partes no tratad o são os Esta-
dos-m emb ros da confederação. O tratado constitutivo da confederação pode
instituir um órgão central competente para exercer um determinado núme
ro de funções enum erad as de fo rma limitativa no tratado. Em geral, esse ó rgão não é composto por deputados eleitos, mas por representantes dos Esta
dos, nomeados por seus respectivos governos. A maior parte das decisões é
tomad a de forma un ânime , mas algumas delas podem ser tomada s pela maio
ria, quando não se referirem às questões consideradas essenciais. Assim, a
soberania nã o é do do mín io da confederação, que não é em si mes ma um Es
tado, mas reside nos Estados-membros (KELSEN, 1945).
A História mostra vários exemplos de confederação: Confederação ameri
cana, Confederação helvécia, Confederação da Alemanha do Norte. Cabia, prin cipalmente, aos Estados-membros exercerem em comum competências diplo
máticas e militares. Mas ne nh um a Confederação d uro u muito tempo: ou elas se
dissolveram ou os laços entre os Estados-membros se fortaleceram e a Confede
ração se transformou num Estado federal, como é, aliás, o caso americano, ou
mesmo em um Estado unitário, como na Holanda. Essa forma de organização,
entretanto, não remonta necessariamente ao passado. Ela sofreu u m avanço na
época contemporânea, primeiramente, com as tentativas de promover a desco
lonização sem romper completamente os laços entre o antigo poder colonial eos Estados que chegaram à independência, e em seguida, com os processos de
integração econômica, notadamente com as Comunidades Européias.
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78 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
O Estado federal. - ( M o u s k i i é l i , 1931; H é r a u d , 1968; R i a l s , 1986) .
Ele apresenta u ma característica tota lmente diversa. Nesse caso, a comun i
dade que foi instituída é de fato um Estado e isso sob dois pon tos de vista. Pri
meiramente, de acordo com o direito internacional, é o único Estado que sub
siste. Somente ele, excluindo-se Estados-membros, pode manter naturalmente
relações internacionais. Em seguida, de acordo com o direito interno, o Estado
federal é do tado de constituição e exerce as três funções de to do Estado, as fu n
ções legislativa, executiva e judiciária. Quanto aos Estados-membros, eles pos
suem igualmente uma constituição e exercem também as três funções.
Convém analisar o Estado federal como um a com binação de dois pri ncípios:
a) o princípio de participação: os Estados-membros participam na for
mação das decisões do Estado federal. Existe notad am ente em todos os Esta
dos federais uma segunda câmara na qual se estabelecem representantes dos
Estados-membros;
b) o princípio de autonomia: os Estados-membros estabelecem sua
própria const itu ição, adotam suas próprias leis, executam-nas, d esignam seus
governantes, dispõem de um aparelho judiciário. No en tanto , n ão se pode acreditar que as estrutu ras dos Estados-membros
e as do Estado federal formem duas instâncias sobrepostas, e claramente estan
ques. Isso não é verdade: não somente, no plano orgânico, a constituição federal
organiza, como vimos, a participação dos Estados-membros na formação das
normas federais, mas a autonomia em si mesma só existe em virtude das nor
mas federais. Na verdade, o ord ena men to jurídico do conju nto é hierarquizado.
1. É a constit uição do Estado federal que det ermina as competênci as dos
órgãos federais, notadamente do órgão legislativo e, portanto, a contrario asdos Estados membros. A constituição federal enumera as matérias ligadas à
competência federal; todas as que nã o co nstam da lista estão ligadas aos Esta
dos-membros. É preciso ressaltar que, entre os poderes que se atribui ao Es
tado federal, consta o de arrecadar impostos. Ele não depende, portanto, da
ajuda financeira dos Estados-membros. Pelo contrário, freqüentemente são
eles que recebem subvenções do Estado federal.
Os Estados-membros recebem, portan to, as competências de uma no r
ma federal, como as autoridades locais em um Estado unitário as recebem de
uma norma nacional. Os conflitos de competências, inevitáveis, são decidi
dos po r um a jurisdição federal. Mesmo q ua nd o decididos em favor dos Esta
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0 Po d e r 79
dos-membros, o que aliás é raro, eles terão de qualquer forma recebido seus
podere s de um órg ão federal.
2. O Estado-membro não tem, portanto, como o Estado federal, o po
der de determ inar as matérias de sua própria competência, a que chamamos,
às vezes, de “comp etência da com petê nci a”. Ele não é soberano. Os autores que
fazem da soberania a característica distintiva do Estado concluem, por con
seguinte, que o Estado-membro não é de fato um Estado (R i a l s , 1986).
3. É verdade que os Estados-membros podem se dotar de uma consti
tuição, mas a constituição federal pode estabelecer limites para seu poder
con stituinte e lhes proibir, p or exemplo, alguns tipos de disposições.4. As leis dos Estados-membros devem estar em conformidade não so
mente com suas próprias constituições, mas também com a constituição do
Estado-membro.
Nessas cond ições, é ce rto suste ntar que existe entr e o Estado unitá rio
descentralizado e o Estado federal somente uma diferença de grau e não de
natureza. Isso não significa que essa diferença não seja importante. Ela apre
senta obviamen te um grand e sentido político, pois está claro que um a região
que dispõe de um poder administrativo autônomo não é tão livre quanto oEstado-membro que pode, mesmo quando em virtude da constituição fede
ral, legislar sobre o direito das pessoas ou sobre a po lítica escolar. É bem po r
isso que o federalismo se apresenta freqüentemente como uma solução pos
sível para os problemas dos Estados multinacionais. Mas do ponto de vista
especificamente jurídico, é preciso de fato constatar qu e tan to no caso do Es
tado Federal como no do Estado unitário descentralizado, as normas locais
são emitidas pelas autoridades autônomas de acordo com as normas centrais
(K e l s e n , 1945, p.316).
A União Européia. - (BEAUD, 1998, LEBEN, 1991)
A União Européia não pode ser classificada nem na categoria das con
federações, nem na dos Estados federais.
Provavelmente ela apresenta alguns traços do Estado federal: o leque de p o
deres muito amplos nas matérias de importância capital, a existência de órgãos
“supranacionais”, de um Parlamento europeu eleito pelo sufrágio universal
direto, a aplicação direta das nor ma s com unitária s no territór io dos Estados,
a jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, que
afirma a primazia da ordem jurídica européia sobre os direitos nacionais.
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80 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Falta-lhe, entretanto , para ser um Estado federal, um a característica es
sencial: ela não é de forma alguma um Estado. O fundamento de seus pode
res reside não em um a constituição, mas nos tratados internacionais, que ela
não pode modificar e que só podem ser revisados pelos Estados que os rati
ficaram. Ela não é soberana, na medida em que ela não tem comp etência p a
ra determinar sua própria competência, nem a dos Estados em que ela pode
exercer somente os poderes que lhe são transferidos pelos Estados.
Estes permanecem soberanos. Eles não obtêm seus poderes da União,
mas de sua soberania e é em virtude de seu poder soberano que eles pude
ram transferir competências à União e que pode riam retomá-los denun cian do os tratados. Aliás, na prática, toda a logística da ação política, inclusive os
meios administrativos e a força política, permane cem em suas mãos.
No entanto, a União também não é uma confederação . Provavelmente
ela está, como uma confederação, fundamentada em tratados e dispõe so
men te das competên cias que lhe foram atribuídas; provavelmente, os Estados
permanecem soberanos do ponto de vista do direito inte rn acional, mas eles
aprovaram limitações de competências muito importantes, incompatíveis
com as disposições de suas constituições que afirmavam o princípio da sobe rania nacional. Foi assim que o Conselho constitucion al afirmo u várias vezes
que os tratado s atentava m con tra “condições essenciais de exercício da so be
rania nacional”, notadamente referindo-se aos Tratados de Maastricht e de
Amsterdã. Nessas condições, eles pud eram ser ratificados some nte depois da
revisão da constituição. Isso significa que uma vez implementada essa revi
são, as condições essenciais do exercício da soberania nacional foram de fato
modificadas.
Porém, elas não foram modificadas a ponto de provocar o aparecimento de um novo soberano. É necessário, portanto, considerar que a União é
ainda um a organização internacional, mesmo qua ndo seus poderes superam
os poderes das outras organizações internacionais.
Seção2
As formasdeorganização do poder
Se em todas as sociedades humanas existem fenômenos de poder, nem
sempre ele é organizado por uma constituição. É por isso que é necessário
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0 Po d e r 81
distinguir du as noções: a forma de po der o u de governo, o regime político. A
primeira noção é mais geral: já que todas as soci edades são gove rnadas, po-
dem-se distinguir tipos de poder que a teoria política denom ina tradicional
mente “ formas de governo”.
Em contrapartida, qu and o o poder está organizado de acordo com regras
jurídicas, ou seja, quando existe uma const ituição material , falamos de “regi
mes políticos”. 'Iodas as sociedades modernas estão hoje dessa form a organiza
das. Essas regras tem po r objeto a divisão das competências e pode mo s classi
ficar os regimes de acordo com a divisão das competência s que eles promov em.
Exam inaremo s, portant o, sucessivamente as formas de governo, o prin cípio moderno segundo o qual as competências devem ser divididas, e os
modos de divisão, ou seja, os regimes políticos.
1.AS FORMAS DE GOVERNO
Existe um a classificação simples, utilizada com algum as varian tes desde
a antiguidade até o século XVIII, mas que de fato não é mais usada hoje.
A.Aclassificaçãoantiga
As três form as de governo. - Essa classificação geralm ente é apresen tada
não com o objetivo de puro conhecimento, um objetivo teórico, mas com um
objetivo prá tico , para tentar pro var a superi oridad e de uma das formas de go
verno2 sobre as outras.
Nessa perspec tiva, descrever a forma de governo é indic ar quem é o de
tento r do poder, distinguindo, assim, a mon arqu ia, a oligarquia e a de mo cra
cia. A distinção mais freqüente é fundamentada no número dos que gover
nam, um único, todos ou alguns. Ela se apresenta de maneira semelhante da
antiguidade ao século XVIII3. Chama-se, então, monarquia o governo de um
único, democracia o governo de todos e oligarquia o governo de alguns. Mas
2 A palavra “governo” é empregada aqui no sentido mais amplo de “governo dos homens", de poder po lítico, e não, obv iamen te , no sent id o que lhe dará R o u s s f . a u , de “poder executivo”.3 Pode-se comp arar p or exemplo P l a t à o (Política), A r i s t ó t e l e s (Política) e f. J. R o u s s e a u , Contrato social.
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8 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
é tam bé m possível ado tar um critério qualitativo e cha ma r de mo nar quia não
todo governo no qual um único governa, mas aquele no qual o governo per
tence a um homem designado pela hereditariedade ou que o exerce de uma
determ inada maneira; oligarquia o governo dos nobres ou aquele dos me lho
res, aos quais nom eam os aristocracia, e democracia aquele do povo.
Cada um a dessas formas de governo pode ser recomend ada pelas van
tagens específicas que lhe são atribuídas ou criticada em razão de seus incon
venientes. Os argumentos são muito variáveis, mas eles podem tomar a se
guinte forma: se o po der per tence a um único, a decisão pode ser mais rápida
e a execução mais eficaz. Mas é também possível que o monarca aja somente para atender aos seus caprichos. Na aristocracia, o poder será bem exercido,
já que, por definição , são os melh ores que o farão. No entanto, não podemos
ignora r que os governantes ajam exclusivamente visando seus interesses egoís
tas, que não coincidem com o interesse geral. Na democracia, aqueles que
compõem o povo refutarão as decisões que violem a igualdade ou atentem
contra a liberdade. Em contrapartida, pode-se temer a duração das discus
sões, a ineficácia, as divergências e as guerras civis.
É a razão pela qual vários autores, de Políbio (201-120 a.C.) a Montes-quieu, preconizam um governo misto que não teria nenhum dos inconveni
entes presentes nas formas simples, mas que reuniria as vantagens de cada
um a delas.
Um governo misto seria um governo no qual o poder, notadamente o
poder legislativo, seria part ilhado, o u melhor, exercido em comum por um rei,
pe lo povo e pelos me lhores. No século XVIII, essa fo rma mista pôde ser efeti
vada pela harmonia entre poderes (cf. infra p. 97 e s.). Na época contempo rânea,
todos os governos se apresentam com o democráticos e a forma mista nunca éreivindicada. No entanto, alguns autores analisam os sistemas nos quais exis
tem tribunais constitucionais como avatares do governo misto. Com efeito, na
medida em que os tribunais têm o poder de anular leis, eles participam com
os parlam entos d o pod er legislativo. Por conseguinte, ou continua-se susten
tando que o sistema é democrático e é necessário adm itir que os tribunais, po r
mais que seus membros não sejam eleitos, representam o povo soberano, ou
admite-se que o governo é misto porque o poder legislativo é exercido em co
mum pelos representantes do povo e por aqueles que costumeiramente são
cham ados de sábios, ou seja, por um elemento aristocrático, no sentido origi
nal do termo, que designa uma elite fundamentada na competência.
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0 Po d e r 83
Defeitos dessa classificação. - É certo que essa distinção não é mu ito utili
zada hoje e isso por várias razões. A principal é que nos Estados de u ma dete r
minad a dime nsão física, é impossível enc ontra r a m onarq uia ou democracia.
Com efeito, é mater ialmen te impossível que um a única pessoa exerça a totali
dade do Poder, como é impossível que o pod er seja efetivamente exercido pelo
povo em sua totalidade. Se persist íssemos em empregar a d is tinção clássica, se
ria necessário considera r que todos os governos que existem de fato são, na me
lhor das hipóteses, aristocracias, na pior das hipóteses, oligarquias.
Diante disso, é necessário optar por subdividir a classe das oligarquias e
con stituir subclasses, ou co nsidera r que um governo exercido po r alguns po de, entretanto, ser uma aristocracia ou uma democracia. A primeira solução
se choca com uma dificuldade importante: encontrar critérios satisfatórios
para distinguir subclasses de oligarquias . A segunda é mais fácil de ser ap lica
da, basta considerar que a monarquia não é o governo de um único, mas
aquele no qual todos os governos derivam seus poderes de um homem ou
que a democracia nem sempre é o governo do povo, mas tamb ém aquele no
qual os governantes derivam seus poderes do povo. Seremos levados, então,
a distinguir duas formas de democracia: a democracia direta na qual o pró prio povo exerce o poder e a democracia indir eta ou represen ta tiva, na qual
aqueles que detem o poder o exercem em nome do povo e são, pelo menos
em parte, eleitos pelo povo. Na democracia representativa, digamos, os go
vernantes são os representantes do povo e a vontade qu e eles expressam não
é sua própria vontade, mas a do povo ou ainda o que se convencionou cha
mar de “vontade geral”.
No enta nto , essa concepção tem sido ob je to de fervorosas críticas. A mais
radical foi form ulada po r J. J. Rousseau. Ela se baseia na impossib ilidade de re pre senta r a vontade. Posso dizer, com efeito: “o que este homem deseja hoje,
eu tam bém desejo. Expressando sua vontade, ele expressará, po rtan to, ao mes
mo tempo, a m inh a von tade”. Mas não posso dizer: “o que este hom em dese
ja rá amanhã, eu desejarei tam bém ”, porque eu ignoro , no momento em que
falo, o que nós desejaremos ama nhã , um e out ro 4. A vontade q ue ele expres
sará am an hã não será, porta nto, a mi nha. “A vontade não se representa de for
ma alguma: ela é a mesma , ou ela é outra; não há po nto intermediário.”5
4 Do con trato social.? Do contrato social.
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84 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Diante disso, a representação é somente u ma ficção, pois, supo ndo q ue o
povo possui uma vontade, não há nenhum meio de garanti r que ela seja efeti
vamente expressa pelos representantes. Não se pode comparar a vontade dos
representantes à do povo, porque não é possível conhecer a segunda indepen
dentem ente da primeira. A vontade dos representantes é presumida ou deve ser
a do povo. Mas a realidade é que a vontade expressa pelos representantes é, de
fato, sua própria vontade e, por conseguinte, a democracia representativa não
é um a espécie de democracia, m as um a espécie de aristocracia ( G a x i e , 2000).
Além disso, é preciso observar que, falando-se de democ racia represen
tativa, abandonou-se durante o trajeto a concepção inicial da “forma de governo”: uma forma de governo não é mais definida pelo número ou pelo gê
nero dos detentores do poder, mas pela maneira como eles são nomeados ou
simplesmente pelo tipo de fundamento dado ao sistema de legitimação do
poder. A nova classificação desempenha, dessa maneira, uma função não cien
tífica, mas ideológica: ela não serve ao conhecimento, mas desempenha um
papel polí tico. Ela prete nde que a d emocracia representa tiva seja aceita fazen
do-a passar por um a forma de democracia.
B.Asclassificaçõescontemporâneas
Autocracia e democracia. - A classificação mais estru turad a é a de Han s
Kelsen ( K e l s e n , 1945, p. 283 e s.). Ela é hoje amplamente divulgada6. Kelsen
ressalta que ela decorre de u m a opos ição feita pela teoria do dire ito entre dois
tipos de relações entre os homens: ou as normas são produzidas pelos pró
prios homens, que a elas estão submetidos - é a autonomia - ou elas são pro duzidas por outros, qualquer que seja seu n úm ero - é a heteronomia. No âm
bito constitucio nal, as normas em questão são sobretudo as leis, o que leva a
distinguir a democracia da autocracia. Há, portanto, duas formas de governo
e não mais três. Essa classificação adota como critério a liberdade. Um ho
mem é livre qua ndo faz o que quer, qua ndo se submete à sua própria vo nta
de. Portanto, ele é livre quando está submetido somente a leis que ele ajudou
a elaborar. A democracia é, nesse aspecto, um sistema de liberdade, porque as
leis são feitas po r tod os aqueles que a elas se subm etem. Con traria men te, no
6 A classificação proposta por Georges B u r d e a u nas edições anteriores deste manu al é mu ito semelhante a esta.
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0 Po d e r 85
sistema da autocracia, as leis são feitas p or o utro s e não há coincidên cia en
tre a vontade daqueles que fazem as leis e a daquele que deve obedecê-las.
Democracia e autocracia são apenas tipos ideais, ou seja, sistemas que
nunc a enc ontr am os con cretame nte na realidade. São construções intelectuais,
mas p ode mo s delas nos servir para descrever a realidade, porq ue os governos
reais se aproximam mais ou menos de um ou de outro tipo. Podemos, por
tanto, falar de democracia representativa, como uma forma intermediária
entre a au ton om ia e a heteron omia. Ela apresenta traços com uns c om os dois
tipos ideais. Co m a hetero nom ia primeiram ente: de u m lado, raram ente exis
te uma unan imida de absoluta, mas, em quase todas as questões, uma ma ioria e uma minoria, de tal modo que, para a minoria, as leis são necessaria
mente heterônomas; de outro lado, as leis são feitas não pelos sujeitos, mas
por seus repre sentantes e v imos que a representação é uma ficção. Em segun
do lugar, possui alguns traços em comum com a democracia, notadamente
na med ida em que aqueles que emitem as norma s são eleitos e consid eram a
vontade real dos eleitores, que são também os sujeitos.
Totalitarismo e liberalismo. - Trata-se aqui não mais de opor as formasde governo adotan do como critério a maneira c omo as normas, especialmen
te legislativas, são produzidas, mas, em extensão e profundidade, as matérias
que regem essas normas. Os sistemas liberais são aqueles em que essas nor
mas se referem apenas a algumas matérias e, nestas, apenas aos princípios
fundamentais, deixando o restante à autonomia das pessoas privadas. Esses
sistemas preservam, portanto, a liberdade desses indivíduos. A liberdade de
que se trata aqui é um a pa rte do con junto das liberdades, denom inad a “liber
dades públicas” ou “direitos hum an os ”, e em pa rte, a liberdade econômica. Nos sistemas to ta li tá rios, ao contr ário, existe um grande número de
nor ma s prod uzidas pelo pod er político e que regem todas as esferas da vida,
de modo que a margem deixada à autonomia, ou seja, à liberdade dos indi
víduos, é be m frágil.
Vários autores con trap õem o Estado e a sociedade civil. O Estado é, nes
se contexto, o conjun to das instituições produtoras de norm as heterô noma s de
alto nível. É o Estado stricto sensu. Quanto à sociedade civil, é o conjunto dos
homens, vistos de mane ira d istinta do Estado. O liberalismo é, então, o sistema
que mantém a distinção entre o Estado e a sociedade civil, enquanto no siste
ma totalitário, o Estado invade completamente a esfera da sociedade civil.
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8 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
A distinção entre o totalitarism o e o liberalismo não coincide com a da
democracia e da autocracia. Não devemos confundir democracia e liberalis
mo, nem sociedade totalitária e autocracia. Podemos, com efeito, conceber
um sistema ao m esmo tem po d emo crático e totalitário, no qual a lei adotada
pe lo povo limi ta as liberdades indiv iduais . No entanto, tal sistema não é m ui
to en con trad o na realidade, por mais que se tenha, às vezes, analisado dessa
forma o sistema soviético. Em contrapartida, podemos não apenas conceber,
mas também encontrar no mundo real um sistema autocrático e liberal, no
qual as leis são implem entad as de forma h eterô nom a, mas prese rvando as li
berdades indiv iduais. Esse si stema corresponderia ao ideal polí ti co de algunsfilósofos iluministas, adeptos do “despotismo esclarecido”.
Governo pluralista e governo m onístico. - Em algumas formas de gover
no, a com petiçã o pelo exercício do p ode r é permitid a e até organizada. Esta
mos falando de governos “pluralistas”. Em outras situações, essa competição
é proibida. Trata-se de governos “monísticos” ou mo noc rático s”.
Os governos pluralistas, deno min ado s ta mb ém “abe rtos”, são sistemas
nos quais vários home ns ou vários grupos de ho mens p articipam da co mp etição pelo po der de forma legítima, ou seja, não c landestin amen te e pela for
ça, mas abertamente. Aqueles que a empregam deterão o po der some nte po r
algum tempo, ao final do qual a competição será retomada. Nesse intervalo,
eles não eliminam seus rivais, que gozam de alguns direitos, notad am ente pa
ra lhes permitir um novo engajamento na luta política.
Esse sistema não se confund e com a democracia. Cer tame nte várias de
mocracias representativas mod erna s são pluralistas, mas alguns governos que
se apresentam também como democracias não são pluralistas. Ele tambémnão se confunde com o liberalismo, como mostra mais uma vez o exemplo
do despo tismo esclarecido.
De modo inverso, o governo monístico ou “poder fechado” é um siste
ma no qual nen hum a competição para o poder é permitida. Nos Estados m o
dernos, o tipo mais difundido do poder fechado, mas ele está longe de ser o
único, é praticad o med iante o pa rtido único. O p ode r fechado não é necessa
riamen te totalitário, nem autoritário, apesar dele freqüente mente o ser.
Concentração ou divisão do poder. - Podemos ainda dividir os sistemas
nos quais o poder está concentrado nas mãos de um homem ou de um gru
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0 Po d e r 87
po e aquele no qual ele é partil hado, div id ido ou separado - todos esses ter
mos são equivalentes - entre vários, que p odem se opo r uns aos outros.
Mais uma vez estamos diante de uma classificação que não coincide
com as outras, mas pode com elas se combinar. Assim, constatamos primei
rame nte que, em cada u ma das três formas de governo, de acordo com a clas
sificação antiga, o poder estava concentrado nas mãos do rei na monarquia,
nas dos melhores na aristocracia e nas do povo na democracia. É apenas no
governo misto que o poder é partilhado.
O mesm o ocorre na oposição autocracia-democracia, pois o pod er está
concentrado nas duas formas de governo. A distinção entre o totalitarismo eo liberalismo também não coincide com a oposição concentração-partilha
do poder. De fato a partilha do pod er é freqüen temente justificada de man ei
ra instrum ental e apresentada co mo um meio de garantir e de preservar as li
berdades. Mas não existe aí nenhum a relação necessár ia e, como vim os no
exemplo do despotismo esclarecido, é possível que um poder concentrado
nas mãos de uma pessoa só seja exercido de forma liberal, enquanto pode
mos conceber um pod er totalitário sendo partilhado entre vários grupos.
Constatamos, dessa forma, ser possível, combinando as classificações,definir um regime concreto. Pod emos dizer, po r exemplo, que no sistema na
zista, o poder era concentrado, autoritário e totalitário, que no mundo oci
dental de hoje ele se afirma seja com o partilha do e liberal, seja como de m o
crático e liberal, ao passo q ue o gove rno do s Estados socialistas se apresentava
como democrático, concentrado e antiliberal.
A última distinção é, entretanto, a mais importante do ponto de vista
do direito constitucional, pois é a única que adota como critério as compe
tências nor mativas d os órgãos do Estado. Ela é difu ndid a na ciência do direito constitucional sob o nome de princípio da separação dos poderes.
2.0 PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES
“A separação dos poderes” é antes de tudo um princíp io de técnica con s
titucional destinada a evitar o despotis mo e a garantir a liberdade. Portan to,
todos os autores hostis ao despotismo preconizam sua aplicação, mas nemtodos concebem da mesma forma essa aplicação, e podemos distinguir duas
interpretações bem diferentes, a po nto de que devemos con siderar que se tra
ta, na verdade, de dois princípios e até mesm o de duas do utrin as rad icalme n
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8 8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
te diferentes. Vamos expor, primeiramente, aquela que foi professada pelos
juri stas modernos, desde a segunda metade do século XIX, e que vamos de
nomin ar, para fins práticos, pois ela é aceita por um grande nú me ro de a ut o
res, de doutrina tradicional, em seguida as críticas que podem ser formula
das contra essa tese e, finalmente, a doutrina do século XVIII, que marcou as
constituições da época revolucionária.
A.Adoutrinatradicional
Segundo essa doutrina , o princípio é em si mesmo co mposto por duas
regras distintas, a regra da especialização e a regra da independência, cuja
combinação deve proporcionar o resultado desejado, a liberdade.
1. A regra da especialização
O Estado exerce ou deve exercer três atividades: ele faz a lei, ele a execu
ta e ele decide os litígios. Ele tem, portanto, três funções, legislativa, executivae jurisdicional. De acordo com uma variante dessa doutrina, essas funções
perfazem o núm ero de duas somente, com a função execut iva sendo subdivi
dida nela mesma em um a função administrativa e uma função jurisdicional.
De qualquer forma, haverá três autoridades ou órgãos do Estado (ou apenas
dois se admitimos apenas duas funções) e cada um deles será especializado
no exercício de uma dessas funções. Essa especialização significa que cada
um a das autorida des deverá exercer um a função, e que ela só deverá exercer
um a delas, mas exercê-la inteiramente. Em contr apartid a, ela não deverá interferir de modo algum em outras funções.
Numa versão forte da doutrina, considera-se que cada autoridade ou
órgão é dota do de u m pod er específico, necessário ao exercício de sua função
e que será designado pelo nome desse poder. Haverá, portanto, um poder le
gislativo, um pod er executivo, um po der judiciário.
2. A regra da indepe ndê ncia
Mas os poderes não p erman eceriam muito tem po especializados, se al
gum deles pudesse exercer pressões sobre o titular do outro. Se, por exemplo,
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0 Po d e r 89
o poder executivo pudesse nomear e revogar a seu modo os titulares do po
der legislativo, seria ele que exerceria ind iret am ente esse poder e não mais h a
veria especialização. É necessário, por tanto , que as auto ridades o u órgãos sejam
mutuamente independentes, o que significa, na prática, que os indivíduos
que compõem cada uma dessas autoridades não devem ser nomeados por
outros órgãos e sobretudo que eles não devem ser arbitrariamente revogá-
veis por eles. Isso proíbe, portanto, notadamente a responsabilidade minis
terial e a dissolução. Agrega-se, às vezes, a essa regra, a proibição de contatos
físicos entre os órgãos - assim, a proibição p or um me mb ro do Executivo de
tom ar a palavra nas assembléias - e a independência financeira - nen hum aautoridade deve esperar seus créditos da boa vontade de alguma outra -, e
mesm o uma prescrição de segurança militar, cada autorid ade deve dispo r de
uma guarda armada distinta para se proteger contra as tentativas violentas
de outrem.
3 .0 resultado esperado
O resultado esperado pela combinação das duas regras é que, de acordo com um a fórmula retomad a de M ontesquieu pela maioria dos autores, “o
poder refreia o poder”: a tenta tiva de uma das autoridades de se tornar des
pótica se chocaria imediatamente com a oposi ção de alguma outra autorida
de. O poder legislativo e o poder executivo promoverão mutuamente o equi
líbrio de m od o que a liberdade dos sujeitos será preservada.
B.Ascríticasà doutrina tradicionalA doutr ina tradicional se chocou, p rimeira men te, com críticas diversas,
aliás, incompatíveis entre elas, ligadas à teoria da soberania: a separação dos
podere s assim entendida é contrária ao princípio fundamental da indiv is ib i
lidade da soberania. Por conseguinte, ou a un idad e da soberania se reconstitui
necessariamente em benefício de um ou de ou tro desses poderes e o objetivo
é definido, ou as tentativas para quebrar a soberania só fazem destruí-la e,
como não há Estado sem soberania, tem-se a anarquia.
Outros dão a suas objeções um a aparência mais instrum ental e susten
tam que os conflitos se resolverão por golpes de Estado ou que os conflitos
entre os poderes acabarão por paralisar o Estado. Veremos, entretanto, que
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90 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
essa última objeção não procede, considerando-se a crítica decisiva de Ray-
m on d Carré de Malberg.
A explicação de Carré de Malberg é bem simples: primeiramente, de
que forma poderes especializados e indep ende ntes e, por assim dizer, sem ne
nhum contato uns com os outros, poderiam deixar seu exercício, tanto um
como o outro, e promover equilíbrio? Tal equilíbrio seria de imediato dificil
mente concebível se as funções que eles exercem fossem equivalentes. Mas
elas não o são e seria até totalmente absurdo pretender que a atividade que
consiste em fazer as leis pudesse ser equivalente à que consiste em executá-
las. Na verdade, a execução é evidenteme nte, pela pró pria definição, subo rdinada à legislação. Mas então, se as funções são de tal modo hierarquizadas e
os órgãos especializados, disso decorre natu ralm ente que aquele que exercer
a função mais elevada é superior aos outros. De acordo com a fórmula de
Carré de Malberg, a hierarquia dos órgãos segue a hierarquia das funções e
jamais um poder subordinado poderá impedir um poder superior (C a r r é d e
M a l b e r g , 1922, t. II, p. 109-142).
A essas críticas, é importante acrescentar outras duas: em primeiro lu
gar, a separação dos poderes descrita pela doutrina tradicional é geralmenteimputad a a Montesquieu, po r mais que alguns autores procure m as origens
em outros, como Locke ou Bolingbroke. Ora, como mostrou Charles Eisen-
mann, de maneira irrefutável, o sistema preconizado por Montesquieu é na
verdade completamente diferente e até radicalmente oposto ao da separação
dos poderes (E i s e n m a n n , 1933; T r o p e r , 1980).
Resta, entretanto, acha r no texto de várias constituições ou das Declara
ções dos Dire itos referências à “separação dos poder es”. A mais famosa e mais
importante é a do art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem de 1789:“Nenhuma sociedade, na qual a garantia dos direitos não esteja garantida
nem a separação dos poderes determinada, possui constituição”. Como com
preender nessas condições que um princípio tão absurdo tenha podido achar
uma consagração tão solene? Como se pode conceber que um princípio, es
tranho a Montesquieu, tenha sido grosseiramente inventado e erigido ao ní
vel de um dogma de política constitucional?
Dois tipos de explicação podem, então, ser dados: de acordo com a pri
meira, os homens da Revolução Francesa teriam entendido mal o Espírito das
Leis; enqu anto Montesquieu entendia o princípio de u ma forma maleável, os
revolucionários teriam dado, po r força do sistema, um a interpretação rígida.
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0 Po d e r 91
De acordo com a segunda explicação, vista do ângulo histórico, a sepa
ração dos poderes de que tra ta a Declaração dos Direitos do H om em de 1789
não tem nen hu m a relação com a separação dos poderes da doutrin a tradicio
nal. Os termos são os mesmos, mas trata-se de u ma d ou trin a diferente. A ex
pressão sim plesmente mudou de sen tido , desde essa época.
C. Aseparação dos poderes noséculoXVIII
Na verdade, o que se e ntende por separação dos poderes no século XVIII
- e isso de maneira unânime - é um princípio completamente negativo. Q uan
do se recom enda a separação dos poderes, não se indica de que mane ira as fun
ções devem ser divididas, mas so mente de que forma elas não devem ser.
Os autores do século XVIII partem de uma distinção das funções e em
seguida formulam o princípio den tro dos term os análogos.
1. A distinção das funç ões legislativa e executiva
Ela é antiga, de qualqu er form a an terior a M ontesquieu, pois consta da
obra de Locke, form ulad a em te rmo s semelhantes. Ela provém, na verdade, de
um a metáfora antropomorfa: do mesmo mo do que se diferencia, no homem ,
a cabeça e os braços ou a vontade e a ação, da mesma forma se distingue no
Estado o poder legislativo, que é a vontade, e o poder executivo, que é a ação.
Às vezes distingue-se u ma terceira função, a função jurídica, às vezes deno mi
nada também “judiciário” e que se apresenta como uma espécie de função
executiva; é a execução das leis com o objetivo de decidir litígios.É essa distinção que formula mais ou menos Montesquieu quando ele
escreve: “existem em cada Estado três tipos de poder: o poder legislativo, o
poder executivo das coisas que dependem do direito das pessoas e o poder
das coisas que dependem do direito civil. Com o primeiro, o príncipe ou o
magistrado cria leis por u m tempo ou para sempre e corrige ou anula aq ue
las que forem feitas. Com o segundo , ele promove a paz ou a guerr a, envia ou
recebe embaixadas, instaura a segurança, previne invasões. Com o terceiro,
ele castiga os crimes ou julga litígios de particulares. Chama r-se -á a esse último de po der de julgar e ao outro simplesmente o po der executivo do Esta
do” (Esprit des lois, Livro XI, cap. 6).
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92 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Mas é Rousseau quem a apresenta de maneira mais clara. “Qualquer
ação livre tem duas causas capazes de produzi-la, uma moral, saber a vonta
de que determina o ato, a outra física, saber o poder que a executa. Quando
caminho em direção a um objeto, é preciso primeiramente que eu queira ir;
em segundo lugar, que meus pés me conduzam . Qu er u m paraplégico quei
ra correr; quer um homem ágil não o queira; ambos permanecerão no lugar.
O corpo político tem as mesmas faculdades, distingue-se da mesma forma a
força e a vontade, esta com o nome de poder legislativo, aquela com o nome
de poder executivo. Nada se faz e nada deve ser feito sem a colaboração de
les” (Contrat social Livro III, cap. 1).Essa distinção implica claramente no reconhecimento de uma hierar
quia entre dua s funções, já que a execução está eviden temen te sub ordin ada à
criação.
2 .0 conteúdo do pr incípio da separação dos poderes:
a regra negat iva ou a proibição do acúmulo
Ele é extrema men te simples: é proibid o a tribu ir todos os poderes a ummesmo indivíduo ou a um mesmo grupo de indivíduos. É esse princípio que
enuncia Montesquieu: “Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de ma
gistratura, o poder legislativo é agregado ao poder executivo, não há mais liber
dade, porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado faça leis
tirânicas para executá-las tiranicamente”.
Montesquieu não o tinha inventado, tampouco descoberto. Isso já era
encontrado no pensamento de Locke: “Confiar às próprias pessoas que já têm
o poder de fazer as leis o poder de m andar executá-las, seria provocar uma ten
tação dem asiadam ente forte para a fragilidade hum ana , sujeita à ambição”.
Alias, é surpreendente constatar que Rousseau, freqüentemente consi
derado hoje como um adversário de Montesquieu e da separação dos pode
res, enuncie uma fórmula semelhante: “Não é bom que aquele que fa z as leis
as execute, nem que o corpo do povo desvie a atenção das vistas gerais para dá-
las aos objetos particulares
Essa é, portanto, uma doutrina geral aceita no século XVIII e é preciso
ressaltar três aspectos.
Em prime iro lugar, o princípio é simplesme nte negativo: não se pode dar
todos os poderes a um só indivíduo porque ele abusaria disso. É necessário
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0 Po d e r 9 3
evitar a tod o custo o acúmulo, que seria o próprio despotismo. Em outra s pa
lavras, é extrem amen te necessário que os poderes sejam repartidos - ou, na
linguagem do século XVIII, “separados” ou “divididos” ou ainda “distribuí
dos” - entre várias autoridades. Pouco im porta de que man eira eles vão estar
separados - isso será objeto de ou tro princípio - desde que eles assim o sejam.
Em segundo lugar, o princípio não se confunde de forma alguma com
a regra da especialização. De fato, se existem duas autorid ade s especializadas,
um a na função legislativa e out ra n a função executiva, a proibição do ac úm u
lo será respeitada, mas ela também o será quando se adota um outro modo
de divisão, se, por exemplo, se atribui a uma autoridade uma parte de umafunção e um a parte de outra . A especialização é, portanto, um a das mane iras
mediante as quais se pode satisfazer ao princípio, um dos procedimentos
possíveis de divisão das funções, mas apenas um deles.
Em terceiro lugar, não se trata evidentemente aqui de independência,
nem de equilíbrio, mas a partir do mo me nto em que os poderes são dividi
dos entre várias pessoas, independentemente do modo como eles o são, o
despo tismo é impossível, pelo simples fato que aquele que executa não pode
modificar a lei a bel-prazer. Ele pode apenas executar uma lei anterior. Aquele que obedece, definitivamente o bedece apenas à lei, o que corres pon de à d e
finição de liberdade.
Separação dos poderes e classificação dos regimes políticos. - Pode-se uti
lizar o princípio da separação dos poderes para classificar os regimes políti
cos. Pode-se, primeiramente, opor aqueles nos quais o poder está totalmente
concentrado nas mãos de um homem ou de um grupo de homens e aqueles
nos quais existe uma separação dos poderes. As dificuldades surgem qu an dose trata de fazer a distinção en tre os regimes de separaç ão dos poderes.
1) A dou trina mod erna, como vimos, compree nde a separação dos p o
deres como um sistema no qual órgãos especializados e independentes pro
movem equilíbrio. Ela opõe, então, os sistemas nos quais o princípio é apli
cado de maneira rígida e os que admitem alguma flexibilidade ou algumas
exceções. Na primeir a categoria, ela coloca a cons tituição am ericana de 1787,
as constituições francesas de 1791 e do ano III e, algumas vezes, a de 1848; na
segund a categoria, todas as outras.
Essa classificação apresenta vários inconvenientes. Primeir amente ela está
fund amentad a em um a concepção discutível da separação dos poderes, já que é
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impossível promover u m equilíbrio entre um pode r legislativo e um poder exe
cutivo especializados. Em segundo lugar, ela exclui da classificação os sistemas
que rejeitam o princípio da separação dos poderes assim entendido, por exem
plo o sistema soviético, como ele existia até a Perestroika, o u que se assentam em
qualquer outra concepção desse princípio, como a constituição francesa de
1793. Em terceiro lugar, ela impede qualquer classificação rigorosa porque a se
paração rígida, na prática, não é exercida em nenhum regime político, de modo
que todos os sistemas apresent am necessariamente exceções e podem , po r con
seguinte, ser indiferentemente colocados tanto em u ma com o em outra catego
ria. Isso é notório no qu e se refere ao regime americano, considerado tanto como um sistema de divisão flexível nos manuais de direito americano, quanto
como um sistema de divisão rígida dos poderes, nos manuais franceses.
2) No século XVIII, com o o princípio era ente ndido apenas de forma ne
gativa - ele se limita a indicar de que forma as funções não devem ser atribuí
das - compreendia-se que ele deveria ser compleme ntado po r um princípio
positivo. Quando existia um aco rd o muito geral no princíp io negativo, dois
processos positivos de divisão das competência s t inham cada um seus adeptos.
O primeiro e o mais simples consistia em especializar as autoridades,uma na função legislativa, outra na função executiva. Disso deveria resultar,
cm razão da hierarquia das funções, um a subordinação da autoridad e execu
tiva ao poder legislativo. Esse sistema é preconizado pelos democratas, por
que o poder legislativo deveria, em essência, ser o povo em si mesmo ou seus*
representantes. E, portanto, este que é proposto por Rousseau e seus sucesso
res. Na linguagem do século XVIII, ele é de no mi na do po r um termo, que ho
je tem um sentid o ra dic almente diferente: “separação absolu ta dos poderes”.
O segundo sistema, denominado equilíbrio dos poderes, é mais complexo: seus adeptos criticam o procedimento da especialização por ser instável.
Efetivamente, eles sustenta m, o p ode r legislativo exercerá uma pr ed om inâ n
cia tão forte sobre a au toridad e executiva, que ele estará em via de conc entra r
em suas mãos o exercício das duas funções, ou seja, de tornar-se despótico.
Esse sistema poderia se manter somente pela virtude dos governantes. Mas,
conh ecen do os hom ens e suas paixões, não se pode confiar racionalme nte na
perenidade de suas vir tudes. É necessário, portanto, eles consideram, cons
truir um sistema estável, um sistema tão bem construído de forma que ele
não possa ser destruído, independentemente das paixões dos homens. Me
lhor ainda, esse sistema deve ser fund ado não na virtude, mas nos vícios.
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0 Po d e r 9 5
A solução se inspira na constituição inglesa, uma constituição inglesa
idealizada como é descrita por vários autores, após Montesquieu. Ela consiste
em promover u m equilíbrio, não entre um poder legislativo e um pode r execu
tivo, o que é obviamente impossível, mas entre várias autoridades , que partici
pam de forma unânime da função legislativa. Essas auto ridades são, portanto ,
órgãos legislativos parciais. Na constituição inglesa, essas três autoridades são
uma câmara eleita, a Câmara dos Comuns, uma câmara nobiliária, e, graças a
um direito de veto, o rei, que po r ou tro lado, exerce sozinho a função executiva.
Nesse sistema não existe especialização, já que o rei exerce uma função
plena e participa do exercício de um a outra, mas o prin cíp io da separaçãodos poderes é preservado, já que nen hu m a autoridad e exerce todos os pod e
res. O equilíbrio estará mantido entre os três órgãos legislativos, cujos inte
resses políticos e econômicos estão opostos. Será impossível, por exemplo, às
duas câmaras usurpar o poder executivo, porque se elas propõem uma lei
nesse sentido, o rei, titular de um poder executivo que ele intentará defender,
segur amen te a isso se oporá.
Pode-se portanto, classificar as constituições do final do século XVIII e
do início do século XIX confo rme elas prom ovem um a especialização ou umequilíbrio dos poderes. Na prim eira categoria tem-se, aliás, a constituição de
1793, na segunda a constituição a meric ana de 1787, a constituição francesa
de 1791, as chartes, a constituição belga de 1830 e várias outras. A constitui
ção francesa do a no III, que pre tende u pro mov er um equilíbrio, mas entre as
câmaras apenas, pertence a um tipo intermediário.
Essa classificação não é, entretanto, válida para os regimes mo dernos, no
tadame nte po rque estes, qua ndo pretendem promov er um equilíbrio, não mais
pretendem fazê-lo por in termédio da divisão do poder legislativo, mas mediante técnicas de ação recíprocas, que a classificação do século XVIII não levava
em consideração. É necessário, portan to, conside rar as classificações mod ernas.
3. O S REGIMES POLÍTICOS
A classificação dos regimes políticos não deve ser confu nd ida com a dis
tinção entre as formas de governo. Certamente, é possível criticar a teoriaclássica das formas de governo pelo fato de ela empregar critérios jurídicos e
achar desejável integrar aos esquemas ou tros elementos que não são própria-
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96 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
mente constitucionai s, mas sociais e políticos. Nesse caso, estamos fa lando de
“regimes políticos”, para designar formas políticas, definidas por esses ele
men tos políticos. Regimes políticos são, então, sinô nim o defo rm as de governo,
concebidas de acordo com uma ou outra classificação contemporânea7.
Quando se emprega a expressão nesse sentido, classificam-se os regimes po
líticos de acordo com critérios extraídos da estrutura social, da relação entre
o Estado e a sociedade, das concepções relativas ao papel do Estado ou ainda
do g rau de desenvolvimento econôm ico8.
No entanto , é hábito, na linguagem do dir eit o consti tucio nal, falar de
regimes políticos princip alme nte p ara designar subclasses no seio da categoriados governos nos quais o poder é partilhado9. Tal distinção se faz necessária,
pois o poder pode naturalmente ser partilhado de várias maneir as. Pode-se
conceber, como para qualquer forma de partilha, que ele seja igual ou desi
gual. Con siderad o de for ma igual, pode-se tenta r prom ove r essa igualdade de
várias maneiras. Co nsider ado desigual, pode-se desejar atribuir a supremacia
a um a ou out ra a utoridad e. Mas é preciso ainda avaliar as conseqüências que
a partilha pode causar no funcionamento efetivo do poder.
Pode-se considerar a questão, ainda, sob o ângulo do constitucionalis-mo, que visa a limitar o pode r mediante o estabelecimento de uma constitui
ção. Ora, como vimos, uma constituição não é mais do que uma divisão das
competências. As constituições, todas elas, devem, portanto, estar sujeitas a
um a classificação, de acordo c om o tipo de divisão de pod er que elas pr om o
vem. É por isso que todas as classificações jurídicas adotam como critério di
ferentes interpretações do princípio da separação dos poderes e as classifica
ções dos regimes políticos estão ligadas, na verdade, às constituições. Vamos
expor a classificação mais corrente antes de proceder à crítica.
A. Exposiçãoda classificaçãotradicional
Ela é objeto de apresentações m uito variadas, que obviam ente seria mo
nóto no detalhar, mas pode-se considerar que se trata antes de tudo de uma
7 Cf. supra p. 84 e s. Para um a apresen tação m ode rna, cf. Badie e H erm et, 1990.8 De onde vem a distinção dos sistemas ocidentais, dos sistemas socialistas e dos sistemas doterceiro mundo .9 Cf. supra no item 1, sobre formas de governo.
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0 Po d e r 9 7
classificação dualista. Distinguem-se as constituições, em primeiro lugar,
considerando o fato delas visarem promover um equilíbrio dos poderes ou
atribuírem a preeminência a um deles; em seguida, são feitas as distinções no
interior de cada uma dessas classes.
l .A preeminência de um órgão
Evitar-se-á uma confusão terminológica freqüente que consiste em
designar as constituições que atribuem a preeminência a um dos órgãos
que elas instituem, como regimes de “confusão dos poderes”. De fato, existem regimes políticos nos quais todos os poderes estão concentrados nas
mãos de um único homem ou de um único órgão, mas não se deve querer
classificar esses regimes de acordo com um critério extraído da separação
dos poderes. Esses sistemas correspon dem à definição que Mon tesquieu da
va ao “de spoti sm o” 10 e, de acor do com a classificação tradicio nal das fo rma s
de governo, são monarquias ou aristocracias. Supõe-se, aqui, ao contrário,
que existe de fato uma sep aração dos poderes, ou seja, um a constituiç ão m a
terial. Portanto, não há fusão de poderes, mas apenas preeminência dada aum dos órgãos. Pode-se agir seja por uma assembléia, seja por um colégio
eleito.
a) Preeminência de uma assembléia
Esse sistema é cham ado de “governo co nvencional” ou de “regime de as
sembléia” (B a s t i d , 1956). Ele compreende, na verdade, pelo menos três tipos
bem diversos.
Trata-se primeiramente do regime efetivamente praticado na França,
pela Convenção Nacional de 1792 a 1795 e é dele que provém a expressão
“governo convencional”. É por isso inclusive que essa expressão é inadequa
da. O regime p raticado nesse m om en to é, de fato, atípico, pois é o único re
gime de assembléia no qual foi realizada uma real“fusão dos poderes”. De on
de provém a tendência, errônea, como vimos, de considerar que o regime de
assembléia é sempre um regime de fusão dos poderes.
10 Cf. supra, no item 2, sobre o princípio da separação dos poderes.
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9 8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
A conce ntração efetiva dos poderes du ran te esse períod o era justificada
de duas formas. De um lado, a Convenção era uma assembléia constituinte,
e no vazio institucional, os poderes que ainda não tinham sido divididos es-
tavam ainda em suas mãos e deveriam de fato ser exercidos. De outro lado, a
França estava em um a situação de perigo extremo e era possível almejar en
frentá-lo apenas por meios excepcionais. A Conven ção con siderou, porta nto,
que lhe cabia exercer a ditadura no sentido romano do termo.
Coloca-se, às vezes, na categoria dos regimes de assembléia aquele que
estava previsto pela constituição francesa de 1 7 9 3 , adotado pela Convenção
Nacional. É um erro entender que essa const ituição inst ituía uma fusão dos p o deres, pois o constituinte de 93 proclamava ser simpático à separação dos pode
res, quando, de fato, promovia a separação ( T r o p e r , 1 9 8 0 ) . Se em con trapa r
tida “regime de assembléia” significa apenas p reem inência de um a assembléia
sobre ou tros órgãos, entã o a qualificação está correta.
Existe um terceiro regime que os autores colocam ou não nessa categoria,
de acordo com os critérios empregados. É o da Suíça. Qu ando nos atemos ao tex
to da constituição, podemos constatar que a Assembléia Federal é o órgão pre
ponderante, nota damente porque ao mesmo te mpo que é ela que designa e controla o Conselho Federal, este, em contrapartida, é independente. De acordo com
o que se atribui a um ou a outro traço, dir-se-á que ela organiza um regime de
assembléia ou que ela promove u ma variedade de separação dos poderes, den o
minada regime “diretorial” (L a u v a u x , 1998). Se é a prática que se examina, então,
pode-se dizer que a consti tuição helvécia não pertence de fo rma alguma a essa
categoria e que é de fato o Conselho Federal o órgão preponderante, o que leva
ria a classificá-lo ou nos sistemas de separação dos poderes e até de separação rí
gida, ou na categoria seguinte, a dos sistemas com preeminência do governo.Cha mam os, às vezes, de regimes de assembléia os sistemas par lam ent a
res, concebidos como sistemas de equilíbrio, mas nos quais uma assembléia
tem, na prática, um a prep onderância muito grande, com o p or exemplo a Ter
ceira ou a Qua rta Repúblicas da França.
Finalmente, deveríamos, evidentemente, en con trar nessa categoria os re
gimes dos países socialistas, cujas constituições rejeitavam o princíp io “burguês”
da separação dos poderes e atribuíam efetivamente a preeminência às assem
bléias. No entanto , a maio ria dos autores repudia essa classificação, porque a
verdadeira sede do po der evidentemente nunca residia nas assembléias, de for
ma que alguns consideram se tratar de um caso de preeminência d o governo.
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0 Po d e r 99
b) Preeminência do governo
Com o n o caso anterior, a doutri na coloca em uma mes ma classe todos os
tipos de regimes nos quais o governo ou, mais freqüentemente, o chefe de Es
tado (rei ou presidente) dispõe dos poderes mais importantes. Essa pre eminê n
cia pode resultar dos mais diversos fatores: os textos constitucionais, o sistema
dos partidos, a tradição ou a força militar e compreende-se que essa categoria
é significativamente heterogênea. Assim, existem, segundo alguns autores, dife
rentes regimes fascistas, as ditaduras militares, os regimes de partido único, as
monarquias tradicionais ou simplesmente sistemas, como o da Quinta Repú blica Francesa, em que se consta ta que o Presidente é a figura central.
Essa diversidade é causa de algumas confusões sobre os nom es da dos a
esses regimes: “preponderância do executivo” ou do “órgão governamental”
ou “presidencialismo”. O primeiro não convém porque justamente a prepon
derância desses órgãos só é possível desde que eles não sejam órgãos de exe
cução; o segundo, porque se o órgão preponderante é um presidente, não faz
parte necessariamente do governo, que, em várias const ituições, é considera
do u m órgão distinto; o terceiro porque o órgão prepo nderan te nem sempreé um presidente e esse termo pode dar a entender que esses regimes são ne
cessariamente deformaçõ es do regime presidencial.
2. Equilíbrio dos órgãos: as moda lidades da separação dos poderes
Os constitucionalistas franceses admitem que o equilíbrio pode ser pro
movido de acordo com duas modalidades diferentes, o regime parlamentar e
o regime presidencial, às vezes caracterizados, respectivamente, co mo um a se
paraç ão flexível ou colaboração dos poderes, ou como uma separação rígida.
a) O regime parlam entar
1) Estrutura do regime parlamentar
É a dou trina que, no século XIX, construiu um modelo de regime par
lamentar. Na versão mais corrente, existem três órgãos, um Parlamento
(composto de uma ou de duas assembléias), um chefe de Estado, um gover
no ou gabinete. Esses órgãos são especializados: o Par lame nto exercerá a fun-
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100 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
cão legislativa, enqu anto que a função executiva será atribu ída de acord o com
o caso, seja ao conjunto chefe de Estado-gabinete, seja somente ao gabinete.
O que caracteriza o regime parlamentar é a maneira como estão organizadas
as relações entre esses órgãos, que dispõem de meios de ação recíprocos: o
Parlamento, ou pelo m enos u m a das assembléias parlamentares, pode impo r
a demissão ao gabinete - é a responsabilidade política o Parlamento, ou
mais freqüentemente uma das câmaras do Parlamento, pode ser dissolvida
pe lo chefe de Es tado ou pe lo gabine te .
Constata-se, entretanto, um a divergência doutrin ai: alguns autores co n
sideram que o único critério realmente determinante é a responsabilidade polí tica do governo. Eles vêem nessa responsabil idade um traço essencial, de
modo que um regime que compreenderia a responsabilidade política, mas
não o direito de dissolução, deveria de qualquer forma, ser considerado, se
gun do eles, com o parlam entar. Eles definem, porta nto, o regime parla me ntar
como aquele no qual os ministros são politicamente responsáveis.
Outros autores sustentam, ao contrário, que o verdadeiro regime parla
mentar resulta da combinação dos dois critérios: é necessário que a respon
sabilidade política e o direito de dissolução estejam ambos presentes. Nessecaso, sustentam , qua nd o o executivo não dispõe do direito de dissolução, ele
fica à mercê do po der legislativo, que se torna órgã o d om inan te, e assim ap re
senta-se não um regime parlamentar, mas um regime de assembléia.
2) Técnica do regime parlam entar, a responsabilidade política do
gabinete, definição
Na linguagem do di re ito, a re sp onsabil idade no sentid o amplo é a obrigação de arcar com as conseqüências de alguns atos. Em se tratando dos mi
nistros, distinguem-se hoje três formas de responsabilidade: penal, civil e po
lítica. É necessário ressaltar um ponto central: a distinção não diz respeito à
natureza dos atos que dã o lugar à responsabilidade ou ao objetivo 110 qual ela
pode estar engajada, pois, tratando-se de min is tro s, os atos e os obje tivos são
sempre políticos. Essa distinção se aplica apenas ao processo empregado e ao
tipo de sanção que pode ser imposta.
A responsabilidade penal é aquela que é praticada por intermédio de
um processo semelhante ao que está em vigor nas jurisdições criminais. Ela
com por ta n otad am ente a distinção de uma fase de acusação e de uma fase de
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0 Po d e r 101
julgamento e a possibil idade dada ao acusado de apresentar sua defesa. Ela da
lugar a uma sanção, que é uma sanção penal, ou seja, uma pena.
A responsabilidade civil é aquela que é praticada mais freqüentemente
diante das jurisdições civis ordinárias, de acordo com o processo civil ordi
nário e que dá lugar a um a sanção civil, a condena ção ao p agam ento de uma
indenização.
A responsabilidade política é aquela que é praticada de acordo co m u m
processo puramente polí tico, ou seja, ela dá lugar a um simples v oto por uma
assembléia. A sanção é, nesse caso, política em si mesma, é a obrigação de p e
dir demissão. A responsabilidade política se apresenta, porta nto, c om o o p o der, de que dispõe uma assembléia, de forçar um ministro a pedir demissão
ou, em outras palavras, como um poder de revogação. Ela pode ser indivi
dual, qua ndo exercida contra um ou mais ministros, mas não contra o con
junto do governo, ou coletiva - é o caso mais fre qüente - quando os minis
tros são solidários e quando um voto hostil da assembléia leva o chefe do
governo a apresentar a demissão da totalidade da equipe.
Emprego da responsabilidade. - A responsabilidade pode ser empregadaou realizada, seja pela iniciativa de um parla mentar , seja pela iniciativa do ga
binete .
No primeiro caso, um ou vár ios parlamentares propõem a seus colegas
o voto de um texto, designado de forma variável, por exemplo, “moção de
censura” ou de “desconfiança”. Quando esse texto é adotado, o governo tem a
obrigação de apresentar a demissão. Diz-se que ele foi “derrubado”.
A responsabilidade pode também ser empregada pela iniciativa do gabi
nete, quando este submete um texto, um projeto de lei, por exemplo, ao votode uma assembléia e ameaça pedir demissão, se o texto não for adotado. Essa
técnica é chamada de “questão de confiança”, porque o governo solicita à As
sembléia que manifeste sua confiança mediante a adoção de um texto, que ele
julga indispensável à continuação de sua política. A questão de confiança é e m
pregada como um modo de pressão, quando o gabinete cons idera que o texto
que ele deposita não seria adotado espontaneam ente. Se a ameaça não o btém
sucesso, ou seja, se a assembléia rejeita o texto, então o governo deve conside
rar que ela manifestou sua desconfiança. Ele é obrigado a pedi r demissão.
Algumas constituições, principalmente desde a Primeira Guerra Mun
dial, tentaram evitar as conseqüências qu e provocaria, para a estabilidade do
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102 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
governo, o empre go mu ito fácil e muito freqü ente da responsabilidade. Esti
pula ram-se, assim, condições ao depósito, à discussão ou ao vo to de um a m o
ção de censura. Exige-se que o texto seja proposto por um número mínimo
de parlamentares, que u m dete rmi nad o prazo separe o depósito e a discussão
ou ainda que se determ inem modalidades particulares para o voto, no intui
to de evitar que uma moção de censura seja facilmente adotada. Da mesma
forma, pode-se s ubm eter a recusa da confiança a certas condições, po r exem
plo, no caso de uma maioria qualificada (uma maioria mais importante que
a maioria simples) se pro nu nc iar contra o governo. O regime parla me nta r es
tipulado po r essas constituições é cha ma do “ parla menta rism o racional izado”
A dissolução é a decisão mediante a qual se põe um fim nos poderes de
um a assembléia antes da expiração do m and ado de seus memb ros (Alber t in i ,
1978; Lauvaux, 1 9 8 3 ) .
O direito de dissolução pertence, conforme o caso, ao chefe de Estado
ou ao governo. Ela é aplicada seja a uma câmara apenas, que é o caso mais
freqüente, seja a duas (com o na Itália). As teorias do regime parla me ntar a tri
buem à disso lução vár ias funções, muito di fe rentes, e, inclusive, parcialmente conciliáveis. Ela pode ser concebida, primeiramente, como um meio do
Chefe de Estado de se livrar de u ma câm ara hostil, no in tuito de que as elei
ções tragam um a nova maioria. Em segund o lugar, ela pode ser enten dida co
mo um meio simétrico da responsabilidade política do gabinete, permitindo
promover o equil íb rio de uma câmara, notadamente a câmara baixa. Em te r
ceiro lugar, considera-se, às vezes, que o regime par lam enta r dá lugar a co n
flitos entre a câmara e o gabinete ou entre a câmara e o chefe de Estado. Em
ambos os casos, esse conflito se traduz pela aplicação da responsabilidade dogabinete, e a dissolução é o meio de provocar a arbitragem do corpo eleito
ral, que poderá ou renovar a maioria hostil ou, ao contrário, substituir essa
maioria hostil por outra que apoiará o governo. Em quarto lugar, uma as
sembléia p ode ser dividida em vários grupos, com vistas totalmente incon ci
liáveis, a tal pon to que pareceria impossível fo rm ar um a m aior ia suscetível de
apoiar o governo, ou seja, de votar os textos que ele necessita. Tal assembléia
é denominada ingovernável e a dissolução pode parecer um meio de operar
um a redistribu ição das cartas, na esperança de qu e as eleições criarão as con
dições para que se forme uma maioria. Em quinto lugar, pode-se considerar
que a ameaça da dissolução é suscetível de dissuadir os parlamentares a rejei
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0 Po d e r 10 3
tar a confiança ao governo, porque eles sempre po dem temer não enco ntrar
seu lugar nas eleições legislativas.
A constituição pode submeter a dissolução a determinadas condições.
De acordo com a função que se lhe atribui, pode-se torná-la mais difícil ou
ao contrário mais fácil, torná-la inclusive automática, autorizar o exercício do
direito de dissolução em algumas circunstâncias apenas, fixar prazos nos
quais devem ocorrer as eleições, determinar as modalidades de exercício do
poder executivo quando a disso lução foi pronunciada etc.
3) Nascimento do regime parlamentar
Já ressaltamos que essa categoria foi construída pela doutrina, que se
fundamentou em um pequeno número de exemplos históricos, principal
mente na Inglaterra e na França da monarquia constitucional. Em ambos os
casos, o regime não resulta da aplicação de uma constituição, mas de uma
transformação das instituições, teorizada posteriormente. O elemento essen
cial foi, tant o na França com o na Inglaterra, o nascim ento da responsabilida
de política, que se efetivou de acordo com dua s m odalidad es diferentes. Na Inglate rra, ela resulta da transformação da re sponsab il idade penal.
Co mo vimos, a responsabilidade dos ministros sempre foi política, mas ela era
exercida de acordo com um processo penal: os ministros po diam ser acusados
pela Câmara dos Comuns e eram, então, ju lgados pela Câmara dos Lordes. No
entanto, co mo os crimes pelos quais os ministros podia m ser acusados e jul
gados não eram definidos por nenhum texto e tampouco as penas aplicáveis,
as câmaras dispunham de um poder totalmente arbitrário e podiam mandar
cond enar os ministros a qualq uer pena, po r qualqu er ato que elas decidissemconsiderar como crime, por exemplo, por uma política julgada ruim. É com
preensível que a partir da meta de do século XVIII, bastava a simples ameaça
de exercer a acusação para provocar a demissão dos ministros e, no final do
século, nem era mais necessário expressar essa ameaça, e um único voto de
desconfiança era suficiente. Nasceu a responsabilidade política. A França pas
sou po r u ma evolução semelhante, du ran te o prim eiro semestre de 1792.
No entanto, foi um processo difer en te que se efet ivou durante a m onar
quia p arlam enta r francesa. A via inglesa não era praticável porq ue os minis
tros poderiam ser acusados pela câmara do s representantes apenas “por trai
ção ou concussão” e sobretudo porque a charte previa que “leis particulares
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10 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
especificarão essa natureza de delito e determinarão os encaminhamentos”.
Com o essas leis nunc a foram votadas, a maioria da Câm ara ra pidam ente des
cobriu outro meio, ainda mais simples, de obrigar os ministros a pedir de
missão: a “recusa de concurso”, ou seja, a recusa em votar as leis e especial
mente a lei de finanças, o orçamento. Diante da ameaça de uma recusa de
concurso, os ministros não po deriam evidentemente perma necer na função.
4) O funciona m ento do regime parlamentar
A doutrina do direito constitucional tem o hábito de distinguir doismo dos de func iona me nto do regime parla mentar, que, aliás, ela apresenta, às
vezes, como variantes do parlamentarismo, o parlamentarismo dualista e o
parlamentarismo monís tico.
O pa rlamenta rismo dualista é definido como um sistema no qual o go
verno responde diante de duas autoridades, à câma ra ou às câmaras, de um
lado, cio chefe de Estado, de outro. O exemplo mais importante é a monar
quia de Julho na França. O rei herdava da charte o direito de revogá-lo e a câ
mara tinha o mesmo poder graças à ameaça da recusa de concurso. O ministério só poderia, portanto, permanecer na função enquanto conservasse a
confiança do rei e da câmara. A conseqüência mais importante é que a no
meação do ministro e o conteúdo de sua política poderiam ser apenas o re
sultado de compromisso entre as duas autoridades das quais dependia o mi
nistério e que prom ovia m, assim, o equilíbrio.
Esse sistema é obviamente instável. Se a oposição é demasiadamente
forte entre o rei e a câmara, o co mpro misso não p ode ser realizado e o min is
tério cai. A dissolução nem sempre permite colocar um fim no conflito, poisse os eleitores demitem a mesm a m aioria, o rei deve ou corr er o risco de re
corr er à força, com o Charles X em 1830, ou ceder. Mas se ele ceder, ou seja,
se ele aceitar no me ar e m an ter u m ministério cuja política ele desaprova, is
so não mais depen de da câmara , e, assim, tem-se o sistema monístico.
O parlamentarism o monístico é um sistema no qual o governo depende de
apenas uma única autoridade, a câmara, que pode revogá-lo a qualquer mo
mento e que, portan to, de term ina a composição e a política. Na prática, isso sig
nifica que essa composição e essa política refletem aquelas da maioria. No en
tanto, esse sistema não pede necessariamente a predominância da câmara. Duas
variações podem ser encontradas, as quais depen dem do sistema dos partidos.
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0 Po d e r 105
Na primeira variação, existem vários parti dos no seio da assembléia , de
mo do q ue a constituição e a manuten ção do governo de pendem sempre da es
tabilidade de uma coligação. Existe a predominância da câmara, ou mais fre
qüentemente dos partidos. É a situcição francesa durante a Terceira e Quarta
Repúblicas. É a da Itália hoje, denom inada, às vezes, um a “partido cracia”.
Na segunda variação do parla mentarismo moníst ico, existe um parti do
majoritário homogêneo, estável e submisso à câmara, de modo que o governo
é formado pela equipe dirigente desse partido. É, então, o gabinete que exerce
a predominância, pois é ele que exerce o p ode r sobre a maioria. Ele está segu
ro de pe rman ecer na função e de conseguir a aceitação de seus projetos de lei.É, a grosso modo, a situação da Inglaterra desde a metade do século XIX.
b) O regime presidencial
O regime presidencial é descrito pela dou trina principalmente - pode
ríamos me smo dizer quase que exclusivamente - com base no exemplo dos
Estados Unido s e pela oposição ao regime parlamentar.
1) Estrutura do regime presidencial
Nos Estados Unidos, a função legislativa é exercida por um Congresso,
composto por duas assembléias, pela Câmara dos Representantes e pelo Se
nado, e a função executiva pelo presidente. O presidente não é escolhido p e
lo Congresso, mas eleito pelo sufrágio universal. Ele nomeia ministros com o
consentimento do Senado e os revoga livremente. Ele não pode dissolver as
câmaras. Essas não podem revogar nem o Presidente nem os ministros. Dessa forma, concluímos, contrariamente ao que pode ocorrer em um regime
parlamentar, cada um a dessas autoridades exerce sua fu nção com toda inde
pendência, mas ela exerce apenas essa função.
Do pon to de vista da divisão do poder, considera-se geralmente que, em tal
sistema, o órgão mais importante é o Presidente, mas nem por isso o Congresso
é rebaixado e impedido de exercer seu poder legislativo de form a plena. Por isso
é freqüente reclamar, em outros países além dos Estados Unidos, na França, por
exemplo, a instauração de um regime presidencial, quando se intenta ampliar o
papel do chefe de Estado, ou mesm o o contrário, quando se quer restaurar as
prerrogativas de um parl am ento considerado demasiadamente frágil.
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2) Variações doutriná rias do modelo presidencial
Part indo da noçã o de regime presidencial, assim cons truída baseada no
exemplo americano, não muito praticada alhures, descrevem-se, às vezes, duas
outras noções: o regime presidencial e o regime semipresidencial.
A primeira categoria agrupa um núm ero muito grande de regimes, na
verdade bem variados, existentes em sua ma ior parte n o terceiro m un do, ins
pirados mais ou menos no si stema americano, mas nos quais o Presidente
dispõe de direito ou efetivamente de poderes mais impo rtante s ainda que nos
Estados Unidos (MOULIN, 1978).Os regimes semipresidenciais são aqueles nos quais o Presidente é elei
to pelo sufrágio universal, mas nos quais existe também um ministério res
ponsável , como nos regimes parlamenta res ( D u v e r g e r , 1986).
3) O critério do regime presidencial
Qu and o os autores procuram não mais apenas descrever em linhas ge
rais o regime americano, mas erigi-lo em tipo, eles devem indicar o caráter significativo que lhes permite, primeiramente, identificar esse regime e, em
seguida, compree nder seu funcionam ento.
Vários são aqueles que o caracterizam pela separação rígida dos pode
res. Na verdade, as duas regras que cola boram para o pr incípio da separação
dos poderes, como ele é apresentado pela doutrina tradicional, ou seja, a es
pecial ização e a independência , também não são respei tadas. Na verdade, até
existem no sistema americano numerosas e importantes exceções ao princí
pio da especialização. É dessa maneira que o Presiden te, ti tu la r do poder executivo, colabora de forma determinante na função legislativa mediante um
direito de veto parcial. O Congresso, por sua vez, participa da função execu
tiva de várias maneiras: pelo voto do o rçam ento, graças ao papel das comis
sões. Além disso, o Senado deve aprovar os trata dos pela m aioria de dois ter
ços, e a nomeação dos ministros e dos altos cargos, pela maioria simples.
Em contrapartida, a independência é garantida de forma rigorosa: os
dois g rupo s de órgãos, executivo e legislativo, são designados se parad amen te
(o Presidente, como o Congresso, é eleito pelo povo, de acordo com um sis
tema semelhante ao sufrágio universal direto); eles não dispõem de meios
mútuos de ação, característicos do regime parlamentar: o Presidente e seus
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0 Po d e r 107
ministros não são politicamente responsáveis: o Presidente não pode dissol
ver o Congresso, nem mesm o u ma única Câmara.
Assim, cada órgão parece dispor de uma autonomia considerável no
exercício da função. O executivo porque ele está livre da revogação pelas câ
maras, as câmaras, porque o presidente dispõe de po ucos meios de influir na
deliberação legislativa. A expressão “separação dos poderes”, portanto, não é
muito conveniente para caracterizar o regime, porque nele se encontra so
men te u ma das regras exigidas pelo princípio.
Parece, então, mais simples falar apenas de ind epen dência ou, com o fa
zem alguns autores, “isolamento” dos poderes. Na verdade, essas expressõesnão são muito satisfatórias e isso por duas razões.
A primeira é que, apesar da ausência de responsabilidade e de dissolução, a
independência está longe de ser garantida. Se, de fato, a independência é a facul
dade de exercer uma função, sem nenhuma ingerência por parte de outra auto
ridade, é necessário reconhecer que essas ingerências são constantes: as câmaras
dispõem de meios múltiplos, constitucionais e não-constitucionais (por exem
plo, financeiros) de influir na polít ica do Presidente; o Presidente pode , tam bém ,
influir nas discussões legislativas mediante procedimentos constitucionais (ameaça do veto) ou não-constitucionais (o prestígio que ele obtém de sua eleição por
toda a nação, seu papel em um dos grandes partidos, as diversas ajudas com as
quais ele pode beneficiar a circunscrição eleitoral de um ou de outro me mbro do
Congresso etc.). Assim, certamente é falso dizer que cada um dos órgãos pode fa
zer o que bem entender, no exercício de suas funções. É exatamente o contrário,
ele deve constantemente levar em conta o utros e, aliás, foi bem isso que deseja
ram os constituintes americanos, o que se expressa pela fórmula dos checks and
balances: os poderes não são “independentes”; cada um pode imped ir ou frear aação do outro (check ) e, assim, promover-lhe o equilíbrio (balance).
A segunda razão é que, concretamente, o Presidente não pode, de fato,
dissolver as câmaras; em contrapartida, as câmaras podem muito bem, mes
mo na ausência de responsabilidade política, forçar o Presidente ou seus mi
nistros a pedir demissão. Elas podem, com efeito, em caso de um importante
desacordo político, aplicar sua responsabilidade penal (ou apenas ameaçar
fazer isso) ou recusar o voto do orça mento (a recusa de concurso). O p rim ei ro
desses procedim entos foi usado nos Estados Unidos contr a o Presidente Nixon
em 1974. Graças ao segundo, o regime “presidencial” chileno funcio nou no sé
culo XIX como um regime parlamentar (M o u l i n , 1978, p. 330 e s.).
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108 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Definitivamente, a maneira mais segura de caracterizar o regime presi
dencial é, portan to, referir-se ao m od o de eleição do Presidente e à ausência
de responsabilidade política. Isso, entretanto, não coloca a oposição entre os
regimes parlamentar e presidencial livre de qualquer crítica.
B. Crítica
Categorização e classificação. - A d is t inção en t r e o r eg ime par l am enta r e
o regime presidencial é a mais f reqüen tem ente em pregad a - a liás , essas ex
pressões fazem parte do vocabulár io consti tuc iona l usual - e é a ela que se faz
referência quando se quest iona a natureza de um regime pol í t ico , como é o
caso da Quinta República. Ela, no entanto, apresenta defei tos muito graves
(Eisenmann, 1968; M o u l i n , 1978).
Devem ser distinguidas de forma cautelosa duas operações intelectuais:
a categorização e a classificação. A categorização consiste em determinar de
forma abstrata categorias o u classes, indicand o as características ou qua lida
des a serem apresentadas por todos os objetos ordenados em cada classe.
Qu alqu er objeto, um a constituição p or exemplo, apresenta várias qualidades:
ela pode ser escrita, comportar um número ímpar de artigos, ter sido redigi
da antes de 1991, men cion ar a cor da bandeira, instituir u m rei etc. Catego
rizar as constituições é, antes de tudo, escolher uma dessas qualidades, de tal
m od o que se possa colocar em u m a classe todas aquelas que apresentem uma
determin ada qualidade e em o utra todas as que não a apresentem ou, em ou
tras palavras, que apresentem a qualidade oposta. Essa qualidade, que serve
para constituir as classes, é o “crit ério ” da categorização. A classificação é a penas a atribuição de um objeto a um a classe.
Essa distinção é importante: uma classificação ruim não afeta a quali
dade de uma categorização. Assim, é possível que se tenha falsamente consi
derado um regime como parlamentar, em bora ele desconheça a responsabi
lidade política. Obviamente, isso não quer dizer que a oposição entre os
regimes parlam enta r e presidencial seja ruim. N ão se pode, porta nto, criticar
um a categorização, alegando qu e de term inad as classificações seriam ruins. É
necessário examiná-la em si mesma. Em contrapartida, uma categorização éruim qu an do ela imped e um a classificação racional, seja porque seria imp os
sível classificar todos os objetos, seja po rqu e d eterm inad os objetos perte nce
riam a duas classes simultanea men te.
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0 Po d e r 109
Valor lógico cia categorização. - Uma categorização pode apresentar de
feitos lógicos e defeitos científicos. Os defeitos lógicos dizem respeito, primei
ramente , aos critérios. A princípio, é possível que as duas classes estejam cons
tituídas mediante o auxílio de critérios que não se opõem. Esse seria o caso,
por exemplo, se categorizássem os as cidades em “cidades com mais de 100 mil
hab itantes” e “cidades localizadas no litoral”, porque, po r u m lado, algumas ci
dades não poderiam ser categorizadas (as com menos de 100 mil habitantes e
que não estão localizadas no litoral), enquanto outras satisfazem aos dois cri
térios e pertencem, portanto, às duas categorias (as que têm mais de 100 mil
habitantes e que estão situadas no litoral). Em uma de suas versões, a categorização dos regimes políticos apresenta um defeito: se o regime parlamentar é
aquele no qual existe a responsabilidade política e o regime presidencial é aqu e
le no qua l o pre sidente é eleito pelo sufrágio universal, alguns regimes que não
com portam nem um nem outro elemento, como alguns sistemas do terceiro
mun do, não pod em ser de forma alguma categorizados, enqu anto outros, como
a Quinta República, pertencem às duas categorias.
Em outros casos, ainda, chegaríamos a uma classificação esdrúxula. As
sim, em Israel, durante um curto período e até a reforma de 2001, era o Primeiro-ministro e não o Presidente da República que era eleito pelo sufrágio
universal direto, ao m esmo tempo em que continuava politicamente respo n
sável perante a assembléia ( K l e i n , 1997). Aplicando-se estritamente o crité
rio da responsabilidade, seria necessário inserir o sistema dentre os regimes
parl amenta re s puros, em bora a intr odução desse m odo de designação do Pri
me iro-m inistro tivesse p or objetivo especificamente distanciar as instituições
polí ticas do funcio nam ento habitual do modelo parlamenta r.
Do mesm o m odo, em outra versão, o critério é a separação dos poderes.Mas sabe-se que o princípio comporta duas regras, a especialização e a inde
pendência , de tal m odo que o regime parla menta r é aquele no qual é respei
tada a regra da especialização, mas não aquela da independência (porque os
órgãos são mutuamente dependentes), enquanto que o regime presidencial é
aquele no qual é aplicada a regra da independência, mas não a da especializa
ção. Os dois critérios não se opõ em e há regimes que com por tam especialização
e independência e outros que não comp ortam nem um nem outro.
É tam bém possível que o critério da categorização seja dem asiad am en
te vago e que seja difícil reconhecer sua presença num objeto. Em sua versão
mais difundida, o critério é extraído da responsabilidade política. No entan
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110 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
to, esta não é muito fácil de ser identificada: pode-se, certamente, dizer que é
poder de uma câmara pro vocar a demissão do gabinete, mas sabe-se que, em
determinadas condições políticas, ela sempre pode adquiri-lo, ainda que ele
não esteja inscrito na constituição, com o é o caso da França, dura nte as chartes.
Não há, portanto , regime representa tivo que não seja suscetível de to rnar-se
parlamenta r. Assim, no Chile , onde a consti tu ição imitava, no século XIX, a
dos Estados Unidos e onde o regime era dito “presidencial”, os m inistros to r
naram-se politicamente responsáveis. Dir-se-á, então, que, se o exercício des
se po der não é efetivo, o regime é apenas poten cialmen te parlam entar? T oda
via, existem, de fato, sistemas em que esse direito nã o é contestado , mas on deele nunca é utilizado, porque o gabinete dispõe sempre de uma maioria e a
Grã-Bretanha, a esse respeito, não é um regime parlamentar. Sustentou-se,
até de forma bem séria, que se tratava “de fato” de um regime presidencial
(M a r x , 1969).
Valor científico da categorização. - Considerando os fatos expostos, não
basta que um a categorização apresente qualidades lógicas. É preciso, ainda, que
o critério escolhido seja significativo, ou seja, que sua presença seja uma indicação cientificamente interessante. Uma categorização das constituições, con
siderando que elas comportam um número par ou ímpar de artigos, seria lo
gicamente irreprovável. Ela não apresentaria, entretan to, ne nh um interesse.
Para apresenta r interesse científico, um a categorização deve ser capaz de
fazer progredir o conhecimento, permitindo revelar algum fenômeno desco
nhecido. Isso é possível qu and o os objetos ordenado s em um a mesm a catego
ria, já que possuem uma mesma característica aparente (o critério), possuem
também uma outra característica, esta mais difícil de ser percebida, mas sem pre associada ao primeiro, cu ja presença poderá ser descober ta , assim que se
tenha constatado a característica do critério da categorização. É dessa forma
que procede, por exemplo, a medicina, quando ela categoriza as doenças pelo
conjunto de sintomas, porque ela pressupõe que a esse conjunto de sintomas
corresponda uma mesma causa e que, a partir dela, seja possível prescrever
um tratamen to. A classificação permite um a ec onom ia intelectual, porq ue le
va a conhecer imediatamente - ou de qualquer m odo investigar - a causa.
No entanto , no que se refere aos regimes pol íticos , a classificação de um
determinado regime em uma ou outra das duas categorias, parlamentar e
presidencial, não pode trazer nenhum conhecim ento novo, porque não exis
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0 Po d e r 111
te nenhum elo entre a característica aparente que conduz à classificação e
um a característica desconhecida. Poderíam os ima ginar que ao critério da ca
tegorização, o direito da assembléia de derrubar o governo, corresponderia
um certo m odo de funcionam ento (o governo seria efetivamente derrub ado
de tempos em tempos) ou ainda que a assembléia seria o órgão politicamen
te predominante. Uma análise jurídica muito simples forneceria assim uma
informação política complexa. Mas, na realidade, tal elo não existe e não po
de existir, pois o direito nunca é a “causa” de um comportamento político,
nem a política um “sintoma” do direito. Uma regra jurídica pode ser ou não
aplicada e trata-se de um a regra de habilitação, com o é o caso mais freq üente no direito constitucional, a habilitação pode ser emprega da ou não, de m o
do que o conhecimento da regra não pode informar sobre as condutas que
ocorre rão realmente. Assim, por mais que se saiba que existe um a respon sa
bil idade polí tica , disso não se pode ti ra r nenhum a conclusão sobre a m anei
ra como o regime funcionará.
Na verdade, a categorização não é de fato usada com objet ivo científico,
mas com objetivo normativo. Qu ando se preconiza uma refo rma constitucional
em um regime que não se assemelha nem totalmente ao regime parlamentar,nem ao regime presidencial, pode ser proveitoso sustentar que ele funcionará
corretamente apenas se obedecer à lógica de um regime puro. Assim, lêem-se
na França, de tempos em tempos, declarações de políticos, que sustentam que
o regime francês deveria tornar-se um “verdadeiro” regime presidencial ou,
mais raramen te, u m “verdadeiro” regime parlamentar. O que eles preconizam,
na verdade, é, no primeiro caso, simplesmente que se suprima a responsabili
dade política e a dissolução, e no segundo, que se volte à eleição do Presidente
da República pelo sufrágio universal, e eles procuram justificar suas proposições referindo-se à categorização. Mas os “verdadeiros” regimes são apenas
aqueles que a do utrin a idealizou e não existe nenh um a razão válida para tor
nar os regimes reais conformes a construçõe s do utrinárias.
É necessário concluir que a categorização proposta pela maioria da
do utrin a n ão ap resenta n em valor lógico, nem interesse científico.
Para definições lexicais. - Não se pod e evitar uma constatação. Quais
quer que sejam os defeitos científicos e lógicos da classificação, as expressões
regime parlamentar e regime presidencial integram efetivamente o vocabulá
rio usual tanto dos juristas como dos políticos. É que, como acontece fre
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112 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
qüe ntem ente na linguagem d o direito, a função dessas palavras não é apenas
designar categorias opostas de sistemas políticos, tampouco objetos facil
me nte identificáveis. A linguagem da ciência do direito, com o a do dire ito em
si mesm o e com o a linguagem c om um , se satisfaz perfeitamente com termos
vagos. Aqueles que conhecem essa linguagem conhecem o sentido desses ter
mos, ou seja, mesmo quando eles não podem lhes dar uma definição precisa
ou contrapor esses termos a outros, eles sabem quando e como é convenien
te empregá-los na m aioria das situações. Esses term os n ão pod em ser objeto
de u ma definição real, mas ap enas de um a definição lexical pela qual se ind i
ca em qual sentido eles são habitualmente empregados.É exatamente o q ue oc orre com expressões de que se fala. Q ua nd o se fa
la de um país, que ele possui um sistema parlamentar, não se pretende reve
lar tud o sobre a realidade desse país, mas cada um com preen de qu e existe em
seu território uma forma qualquer de responsabilideule política do ministé
rio. Essa indicação nada diz sobre a situação real do poder, nem sobre o fun
cionamento efetivo do sistema, mas apenas sobre a existência de uma regra.
Da mesma forma, dizer que se introduzirá o regime parlamentar é dizer que
se introdu zirá u m a regra segund o a qual o gabinete é obriga do a pedir dem issão por solicitação das câmaras.
Dizer que um regime é presidencial é dizer que existe um chefe de Es
tado eleito pelo sufrágio universal, que ele não é politicamente responsável e
que ele não pode dissolver as câmaras. Mais uma vez, mesmo que não se te
nha co mun icado inform ação sobre o funcion amen to efetivo do sistema, nem
se tenha descartado qualquer possibilidade da câmara provocar por um meio
qualquer a demissão do presidente ou dos ministros, assinalou-se a existên
cia de duas ou três regras simples.Evidentemente, será impossível classificar todos os regimes em uma ou
ou tra categoria, já que elas não se opõe m. Tam pouc o se sabe, quan do um re
gime é dito parlamentar, se está se descrevendo uma estrutura ou um modo
de funcionamento, uma regra propriamente jurídica ou o resultado de uma
com binaçã o de forças. Às vezes, será até difícil dizer se um de term ina do regi
me é ou não parlam entar, po rque não será possível saber com certeza se o seu
governo é politicamen te responsável. Essas definições não decorrem , po rta n
to, de um a classificação lógica ou cientificam ente satisfatória. No en tanto , es
ses termos são efetivamente empregados e são úteis, como instrumentos que
permite m um a comunicação ru dim enta r.
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0 Po d e r 113
Seção3
Astécnicasdeexercício do poder
O Estado não é um ente físico, mas uma entidade abstrata. É o nome
que se dá a essa entidade à qual são imputados os atos de determinados ho
mens, os governantes.
Essa imputação é necessária. É ela que permite distinguir, no conjunto
dos atos que executam esses hom ens, aqueles executados em seu p róp rio b e
nefício, para satisfazer suas necessidades pessoais, com cujas conseqüências
financeiras eles devem arcar, e aqueles que eles adota m , pelo m enos a p rincí pio, no interesse comum . A im puta ção te m, portanto, conseqüência s patri
moniais.
O q ue a justifica é precisamen te o fato de os governantes agirem o u se
rem cham ados a agir com vistas à coletividade. Diz-se, então, que eles cu m
pre m as funções do Estado.
Duas questões devem, portanto, ser examinadas: quais são essas fun
ções? Como esses homens são designados?
Subseção 1
As funçõesdoEstado
Definição (E i s e n m a n n , 1964). - A expressão funções do Estado, como o
termo Estado, é o produto de uma construção intelectual. Na verdade, po
dem-se observar apenas atos particulares, em nú m ero mu ito grande, executa
dos pelos governantes por conta do Estado. Mas freqüentemente é necessário,notad ame nte qua ndo se trata de um constituinte atribuir competências, racio
cinar não sobre u m ou outro ato particular, mas sobre categorias de atos.
A teoria das funções é, portanto, o produto de uma categorização dos
atos. As funções não são mais do que categorias de atos. Poder-se-ia nom ear
essas categorias mais como atividades do que como funções, mas este último
termo permite ressaltar que a execução dos atos é necessária para um bom
funcionamento do conjunto do sistema.
Considerando isso, há duas maneiras de conceber as atividades ou fun
ções do Estado; ou seja, duas maneiras de categorizar os atos. Pode-se, pri
meiramente, categorizá-los de acordo com seus fins. Eles são, de fato, execu
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11 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
tados com vistas ao Estado, porque este preenche o conjunto de missões re
lativas à sociedade civil: a natureza e a extensão dessas missões são natural
mente variáveis de acordo com as épocas e as ideologias. Todos os Estados
têm pelo me nos algum as atribuições: con duz ir as relações internacionais, de
fender o território, promover a justiça, emitir moeda, garantir a manutenção
da ordem. Mas os Estados m oderno s cum prem também outras tarefas: asse
gurar um certo número de serviços públicos (educação, transportes, saúde),
dirigir a economia, redistribuir os ganhos.
Mas é possível considerar esses atos não mais do ponto de vista político-
social, mas exclusivamente do p on to de vista jurídico. Quaisquer que sejam osfins empregados, esses atos são, de fato, sempre atos jurídicos, ou seja, atos cria
dores de normas. Ora, classificam-se as normas não segund o seus fins ou seus
objetos (as matérias às quais elas dizem respeito), mas segundo outros critérios:
seja seu valor, isto é, seu lugar na hierarquia, seja seu grau de generalidade. É
desse po nto de vista, exclusivamente jurídico, que nos colocarem os aqui.
A controvérsia sobre o número de funções. - As categorizações mais sim
ples são dualistas: elas opõem duas funções. A prim eir a, a função legislativa,consiste em fozer leis, a segunda, a função executiva, em executá-las. Natu ral
mente, a idéia que se tem de um a e de outra varia consideravelmente, mas d e
claramos ser impossível conceb er um a terceira.
No entanto , a categorização mais complexa dist ingue três funções: ao lado
das funções legislativa e executiva, distingue-se uma terceira, denominad a juris-
dicionaly porque ela consiste em promover a justiça, estipular o direito aplicável a
um caso em litígio (do latim jurisd ictio), portanto em julgar processos, ou ju d i
ciária>porque ela é mais freqüentemente garantida por juizes (do latim judex).A riqueza da categorização trialista se explica não po r seu valor lógico ou
científico, mas p or sua im po rtânc ia ideológica. Do p on to de vista lógico, com
efeito, ela apresenta um defeito muito grave: se for adotado por critério da
distinção o fato de colocar regras ou de aplicá-las, podem-se conceber so
men te duas funções e não três. A terceira consistirá somen te na aplicação das
leis ao processo. Ela é apenas uma variação da função executiva.
No enta nto, a categorização das funções serve para justifi car um a cer ta
divisão de competências. É assim que se pode temer as implicações da teoria
dualista. Se por exemplo se admitisse que cada função deve ser exercida por
um grupo de órgãos especializados, a teoria dualista parece conduzir a sub
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0 Po d e r 115
meter a fun ção jurisdicional ao jugo das au toridad es executivas. Para gar an
tir uma justiça indep ende nte, procura-se, po rtanto , estabelecer que ela disp o
nha de uma terceira função, radicalmente distinta da função executiva.
As teorias dualistas só podem evitar submeter os juizes aos titulares da
função executiva distinguindo, antes, duas funções, legislativa e executiva, e
em seguida, no seio da função executiva, uma execução contenciosa (a apli
cação da lei para a solução dos processos) e uma execução não contenciosa
ou função administrativa (na ausência de processo).
A maioria das constituições modernas adota, portanto, com conse
qüências práticas semelhantes, seja a teoria trialista, seja a teoria dualistacom plem entad a pela distinção entre a execução contenciosa e a execução não
contenciosa. A escolha de uma ou de outra representa não mais que uma di
ferença de vocabulário: para designar os juizes, a teoria trialista falará de po
der judiciário, a teoria dualista de autoridade judiciária.
Ambas, entretanto, dividem as competências de modo que os processos
sejam decididos por agentes distintos daqueles que garantem a execução não
contenciosa das leis, e de maneira relativamente autônoma. Por razões de expo
sição e apesar dos defeitos, adotaremos aqui, portanto, a apresentação trialista.
1.A FUNÇÃO LEGISLATIVA
1. Definição
A função legislativa consiste evidentemente na criação das leis, mas o
conteúdo dessa função depende da concepção que se faz da lei. A esse respei
to, é necessário opor duas concepções ou definições da lei.
A lei pode, primeiramente, ser objeto de uma definição material: cha-
mar-se-á lei toda norma cujo conteúdo apresenta algumas características:
por exem plo , a de ser geral (o u seja, a de presc rever um a conduta não a in di
víduos de termina dos, m as a categorias de indivíduos, definidas de forma ab s
trata) ou a de se aplicar a algumas matérias.
Ela pod e tam bém ser o objeto de um a definição formal: cham ar-se-á lei
toda norma que foi posta em uma determinada forma, ou seja, por um de
terminado órgão, o Parlamento por exemplo, nos termos de um processo
part icular. A definição fo rm al às vezes é tam bém chamada orgânica.
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116 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Como no caso da constituição, essas duas concepções são profunda
mente diferentes: uma norma que emane do Parlamento, mas que não seja
geral, será considerada uma lei de acordo com a concepção formal, mas não
de acordo com a concepção material. De modo oposto, uma norma geral que
em ane do governo será uma lei de acordo com a concepção material, mas não
de acordo com a concepção formal.
Ora, os desafios pode m ser muito imp ortantes. Eles se referem, prim ei
ramente, à competência dos órgãos. Assim, é freqüente que a constituição
atribu a o p od er de fazer leis a um Parlam ento e o po der de executá-las a um
governo. Essas disposições não perm item unica me nte a ela conhecer a extensão das competências desses dois órgãos. O Parlamento teria o direito de
em itir norm as individuais? O g overno o de em itir norm as gerais? A resposta
a essas duas perguntas é afirmativa quando se adota uma definição formal.
Ela é negativa no caso contrário.
Eles dizem respeito também ao que se chama de regime jurídico dos
atos, ou seja, o conjunto das regras que lhes são aplicáveis, por exemplo, pa
ra mo dificá-los ou para anu lá-los. É freqüente qu e as leis gozem de u m regi
me jurídico especial, m uito mais favorável do q ue aquele ao qu al estão sub metidos outros atos. Na França, por exemplo, é vedado aos juizes interferir
na função legislativa11, de modo que não é possível solicitar-lhes a anulação
de u ma lei. É, portan to, im po rtan te saber quais são os atos que se beneficiam
dessa im unidad e: se a definição é material, são todas as norm as gerais ou to
das aquelas relativas a determinadas matérias; se é formal, somente as nor
mas que emanam do Parlamento.
É necessário ressaltar que não cabe nem à teoria constitucional nem à
ciência do d ireito constitucional op tar e ntre as duas concepções. Elas devemse limitar a descrever a concepção escolhida pelo dire ito positivo. As soluções
são obviamente variáveis. Vamos nos contentar em observar que, no direito
pos itivo francês, a concepção da lei é formal : to dos os atos adota dos pelo Par
lamento em conformidade com o processo legislativo são leis, sejam ou não
gerais e quaisquer que sejam as matérias às quais eles se relacionam. Disso
decorre que eles só podem ser modificados por uma outra lei e que eles não
11 Lei cie 16 a 24 de agosto de 1790, art. 10: “Os tribun ais não pod erão tom ar ne nh um a pa rtedireta ou indiretamente no exercício do poder legislativo, nem impedir ou suspender a execução dos d ecretos do corpo legislativo, sanciona dos pelo Rei, sob p ena de infração”.
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0 Po d e r 117
podem ser anula dos por um tr ib unal. Essa concepção estava em vigor na Ter
ceira República, na qual ela traduz ia a supremac ia do Parlamento.
É necessário afirmar, mesmo se for preciso aplicar algumas nuances a
essa afirmação, que a Qu inta República se liga tam bém à concepção form al12.
Se o P arlamen to nela não goza de fato da m esma su premacia, é em razão das
condições de exercício da função legislativa.
2 .0 órgão da função legislativa
O que é um órgão legislativo. - O exercício da função legislativa ou po der legislativo pode ser atr ib uído pela consti tu ição a um a variedade bem
grande de órgãos. Nem sempre é fácil determinar quais são esses órgãos, pois
ocorre freqüentemente da constituição não os designar de forma expressa.
O caso mais simples, mas não o mais freqüente, é naturalmente aquele
em que a constituição institui um órgão legislativo único ou simples. É o das
constituições francesas de 1793,1848,1946. Em razão da supremacia da fun
ção legislativa, esse órgão do m ina natu ralm ente todos os outros.
Mas é freqüente o poder legislativo ser confiado a uma pluralidade deórgãos, que concorrem na produção da lei consentindo sua edição. Eles são
nomeados coletivamente como órgão legislativo complexo e individualmente
como órgão legislativo parcial. Um órgão legislativo parcial é, portanto, um
hom em ou u m grup o de home ns cujo consentimento é necessário para a edi
ção da lei e cuja oposição a imp ede. Em con trapa rtida, n ão se deve conside
rar como órgão legislativo parcial aqueles que participam da formação da lei
sem que seu consentimento seja realmente necessário, como por exemplo os
especialistas, que co laboram com um a co mpe tência apenas técnica. O que le
va a instituir um órgão legislativo complexo é naturalmente o temor da su
premacia de um órgão único .
É possível distinguir vários tipos de órgãos legislativos parciais.
a) As assembléias parlam entares
Uma assembléia parlamentar é uma assembléia composta por deputa
dos eleitos. Ela é órgão legislativo parcial em dois casos: quando o Parlamen
12 Cf. infra.
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118 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
to comporta duas (ou várias assembléias), ou quando outros órgãos, por
exemplo, o pode r executivo, participam tam bém de form a decisiva da criação
das leis.
O primeiro caso é o do bicameralismo ou bicameral. Uma das assem
bléias ou câmaras, pelo menos, é eleita pelo sufrágio universal direto. A se
gunda câmara, chamada às vezes de câmara alta, pode, por sua vez, ser for
mad a de várias formas.
Pode-se tratar, primeiramente, em uma monarquia constitucional, de
uma câmara aristocrática cujos membros são hereditários ou nomeados pelo
rei. É o caso da Câmara dos Lordes na Inglaterra ou da Câmara dos Pares daRestauração, na França. Encontram-se vários exemplos disso nas constituições
do século XIX, mas nos Estados modernos, seu papel declinou consideravel
mente.
Pode-se tratar, ainda, em u m Estado federal, de u ma câ mara q ue rep re
sente os Estados-membros (cf. supra).
Em terceiro lugar, a câmara alta pode ser, também, eleita, mas de acor
do com mo dalidades diferentes daquelas empregadas para a câm ara baixa, de
m od o qu e ela seja mais conservadora em sua compo sição: o sufrágio pode ser restrito ou indireto, organizado em outras bases territoriais ou ainda subor
din ado a condições diferentes de elegibilidade.
Existem ainda câmaras secundárias de caráter econômico, cujos mem
bros são escolhidos nas organizações prof issionais.
As câmaras secundárias são órgãos parciais somente quando elas po
dem realmente se opor à formação da lei. Isso é quase sempre raro. É eviden
te que as câmaras altas aristocráticas, po r exemplo, perdera m seu poder. Fa
la-se, nessas situações, de bicameralismo imperfeito ou desigual. No entanto , a ausência de poder legislativo não significa necessaria
men te a ausência de todo papel político: de um lado, essas câmaras po dem às
vezes não se opor, mas retardar a ado ção definitiva de um a lei. Esse pode r p o
de dissuadir o legislador principal de dar à lei um conteú do dem asiadam en
te radical, se ele desejar que a lei entre em vigor rapidamente. De outro lado,
princip alm ente , uma segunda câmara , mesmo sem gra ndes poderes, pode
con tribu ir com seus debates para m elho rar o con teúdo da lei. É nessa melh o
ra que se enco ntra hoje a m elho r justificação para a existência de uma câm a
ra alta, a que se chamará, então, de câmara de reflexão.
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0 Po d e r 119
b) O povo
O governo direto é um a curiosidade histórica. - O governo direto supõe
que o povo se governe diretamente, por si mesmo. É a aplicação integral da
idéia de democracia. Os indivíduos se reúnem em praça pública ou num
campo e decidem sobre os interesses públicos.
Esse procedimento idílico de governo hoje não é mais que uma curio
sidade histórica. Ele existe ainda em alguns cantões suíços (Glaris, Unterwal-
den, Appenzell), onde a cada ano os cidadãos desses Estados se reúnem em
Landsgemeinde (conselhos regionais) para votar as leis, designar funcionários e no m ear os de puta dos nas assembléias federais.
O governo semidireto (Quermonne, 1985; Hamon, 1995) .
Mas se a experiência do go verno direto puro não é mais concebida, a ex
periência consti tu cio nal nos mostr a a vitalidade das in sti tu ições do governo
semidireto, que c om bina a idéia representativa e a dem ocracia pura. A nação
institui representantes, há, po rtanto , assembléias, mas nas questões mais im
porta ntes, e n otadam ente em maté ria legislativa, o povo se reserva o poder dedecisão. Os proce dim ento s pelos quais ele o exerce são o veto, a iniciativa e o
referendo.
1 .0 veto. - Ele permite u ma intervenção bem atenuada do povo na elabo
ração da lei. Esta é a obra de uma assembléia, mas ela poderá ser aplicada so
mente quando, diante da expiração de um certo prazo, o povo não solicitou que
ela fosse submetida a seu voto. Nos casos em que a votação popular ocorresse e
chegasse a uma recusa da lei, poderia se cons iderar que ela nun ca existiu.
2. A iniciativa . - Ela oferece ao povo a possibilidade de ob ter leis que lhe pareçam oportunas, mesmo que o parlam ento fosse contr a. Ela obriga o par
lamento a fazer as leis, pois, se um determinado número de cidadãos o soli
cita, um projeto de lei específico será sub metido à assembléia que deverá exa
miná-lo e emitir um voto a respeito.
Pela iniciativa, os cidadãos po de m se limita r a solicitar à assembléia pa
ra fazer uma lei sobre certa questão, sem sequer especificar. Mas eles podem
também apresentar um projeto completamente formal; diz-se então que há
um a iniciativa formu lada. Se a assembléia aceita o projeto, a lei torn a-se pe r
feita, salvo a possibilidade de um referendo; se ela a rejeita ou a modifica, a
constituição pode decidir que o projeto será submetido à votação popular.
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12 0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
A constituição pode até ir mais longe e prever que um referendo deve
rá obrigatoriamente ser organizado assim que um determinado número de
cidadãos o solicitar. Esse tipo de referendo é chamado de referendo de inicia
tiva popular.
O referendo ab-rogativoycomo aquele que existe na Itália, constitui uma
variedade: nesse sistema, um determinado número de cidadãos pode solici
tar a organização de um referendo não para adotar uma nova lei, mas para
ab-rogar uma lei existente.
Chega-se, assim, a uma aplicação mais ou menos perfeita da idéia de
democracia, já que a lei poderá ser feita ou desfeita sem nenhuma intervenção das assembléias representativas.
Várias modalidad es de iniciativa estão em vigor na Suíça. A iniciativa po
pula r é admitida no cantão , não apenas para a revisão da constituição, mas tam
bém para as leis ordinár ias. É, então, a assembléia que é submetida à apreciação.
Na Confederação, ela só é aplicável em matéria constitucional, mas evita-se a
proibição da iniciativa em matéria de legislação ord inária dando-lhe a form a de
uma revisão à constituição. Se a iniciativa for formulada, o projeto é submetido
diretamente à aceitação do povo, a assembléia tem somente a possibilidade de propor um contrapro je to paralelo ao que emana da iniciativa popular.
A iniciativa popu lar existe também nos Estados Unidos em maté ria cons
titucional, não para a legislação da União, mas para aquelas dos Estados parti
culares. Ela foi adotad a também , após a guerra de 1914-1918, por um determ i
nado número de Estados europeus, notadamente pela constituição de Weimar.
3. A aceitação (vide D h n q u i n , 1976). - Nas antigas Dietas das Co nfede
rações germânicas e helvécia, os representantes dos Estados confede rados deci
diam apenas ad referendum , ou seja, sob reserva da con firmação de sua decisão por seu governo . Hoje, o sentido do te rm o se ampliou: há re fe rendo sempre
que um ato é submetido à aceitação popular.
Seu em preg o norm al é em ma téria legislativa. Ele pode in tervi r antes ou
após o voto da lei. Antes, a assembléia consulta o povo sobre o princípio da
lei, para aplicá-lo caso ele seja aceito. Mas é quando ele é posterior à adoção
do texto pelos representantes que o referendo é mais enérgico, já que o valor
ju rídic o da lei estará subordin ado à sua acei tação pelo povo. Os poderes da
assembléia se limitam à emissão de uma proposta, e a condição de um voto
popula r não somente suspende a aplicação da lei na hipótese do veto; ela im
pede até a formação da lei.
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0 Po d e r 121
Evidentemente, a a doção do referendo é suscetível de diversas m od ali
dades. A constituição pode torná-lo obrigatório; é assim que, na Suíça, uma
modificação na constituição só é definitiva quando aprovada pelo povo. Ela
pode ta mbém torná-lo fa cultativo , no sentido de que é a Assembléia repre
sentativa que decidirá se haverá a consulta p opular. Em co ntrap artida, o c am
po de ação desse procedim ento será mais ou menos amplo se seu desencadea-
mento for mais ou menos facilitado, ou se a iniciativa de provocar a votação
do povo estiver reservada ao P arlamento, ou se pertenc er ao povo, ou, final
mente, se a constituição se remeter a um órgão especial, o chefe de Estado,
por exemplo, com o fez a const ituição alemã de 1919. Nesse caso, há o que sechama de referendo de arbitragem, já que o chefe de Estado submete o pro ces
so que o opõe à assembléia ao arbítrio do povo ( C a r r é d e M a lb e r g , 1931a).
Aplicações do referendo. - Até a constituição atual, a França só conheceu
teoricamente o referendo em matéria de legislação ordinária, pois a constitui
ção de 24 de junho de 1793, que o previa, nunca foi aplicada.
A constituição de 1958 introduziu de forma bem modesta o referendo
em matéria de leis ordinárias, pois ele só foi possível para os textos ligados à
organização dos po deres públicos (art. 11).
A decisão de consultar o povo foi tomada pelo Presidente da República
mediante proposta do governo ou das duas assembléias.
No ex terior, o re ferendo é amplamente uti lizado, mesmo para as leis o r
dinárias. Na tura lme nte, ele existe na Suíça, que é o país de eleição - se assim
podemos dizer - do govern o semid ireto . Nenhum a disposição consti tu cio nal
federal ou cantonal pode entrar em vigor enquanto não for ratificada pelo
povo. No que se refere às leis o rd in árias, o re ferendo, que a prin cíp io era apli
cado apenas à legislação cantonal, foi estendido às leis federais desde a cons
tituição de 1874. Mas trata-se, em geral, de um referendo pu ram en te faculta
tivo. A freqüência das consultas populares resulta em uma mobilização
perm anente dos cidadãos. No enta nto , seu fervor cívico é moderado quando
avaliado pela alta porcentage m de abstenções nas votações.
O referendo existe tam bém na Suécia e na Noruega, mas a título consu l
tivo. No entanto, essa característica não impede que o Parlam ento se considere
vinculado à decisão popular. Isso foi observado de fato na Noruega, ond e a re
cusa oposta pelo povo à adesão à Comunidade Européia foi sancionada pela
nâo-assinatura do Tratado e provocou a demissão do governo. Na Dinamarca,
desde a reforma de 1953, um terço dos membros do Parlamento pode exigir
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122 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
que uma lei já adotada seja objeto de referendo. Este se revela como o último
recurso aberto à minoria. Na Áustria, o referendo é obrigatório para as leis
constitucionais; para as leis ordinárias, ele deve ser solicitado pelo Parlamento.
Nos Estados Unidos, o re fe rendo se desenvolveu como um instrum en
to destinad o a limitar a on ipotênc ia das assembléias, mas ele existe apenas no
âmbito dos Estados particulares onde é obrigatório para determinadas leis.
Finalmente, após a guerra de 1914, as constituições dos Estados novos ou re
novados (Alemanha, Áustria, Checoslováquia, Estados bálticos, Grécia, Espa
nha etc.) deram-lhe amplo espaço em suas instituições. Apesar da vasta ex
periência que nos é assim fo rnecida, é difícil emit ir um ju lgamento geral arespeito do referendo, pois o valor de seus resultados depend e essencialmen
te do grau de m aturid ade política do povo levado a intervir po r causa dele. É
significativo que na Inglaterra, país de regime representativo puro, o governo
tenha decidido recorrer ao referendo para que o povo decidisse sobre a ade
são da Grã-Bretanha ao Mercado Comum. Constata-se que o referendo in
terveio a respeito de uma questão sobre a qual a divisão da opinião não cor
respondia à clivagem entre os partidos. A consulta de 5 de junho de 1975
testemunhava os limites do princípio representativo. No entanto , hoje parece que a admiração pelas instituições da d em ocracia
direta após a Primeira Guerra Mundial está sensivelmente reduzida. Prova
velmente, ainda podem ser encontrados textos que prevêem o voto popular,
mas seu nú m ero foi reduzido. Foi assim, po r exemplo, que na Ca rta de Bonn
a iniciativa e o referendo desapareceram . O fato é tão significativo que seu lu
gar era relevante na República de YVeimar. Na Itália, em cont rap art ida , a co ns
tituição de 1948 (art. 75) introduziu o referendo (R y n g a e r t , 1982). Na URSS
ele foi utilizado pela prim eira vez em 1991.
c) O pod er executivo
O órgão encarregado da função executiva pode ser ao mesmo tempo
órgão legislativo parcial, quando seu consentimento é indispensável para a
formação da lei. Essa hipótese pode se concretizar de duas maneiras.
O caso mais conhecido é aquele do direito de veto. Uma regra constitu
cional permite ao chefe do executivo opor-se à adoção de uma lei. Tecnica
men te, esse pod er tom a a seguinte forma: o texto da lei, ado tado po r um a ou
várias assembléias parlamentares, é transmitido ao chefe do executivo, que
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0 Po d e r 123
deve dar sua aprovação - diz-se tam bém , “dar sua sanção” Ele pode recusar
esse deferimento; nesse caso, diz-se que ele opôs seu veto. Esse veto será ab
soluto, qu and o ele não pud er ser derru bad o. Foi o caso da constituição ingle
sa do século XVIII ou da Carta de 1814. Ele será relativo ou parcial, qua ndo
puder ser derrubado por um a ou pelas câmaras com maio ria qua lificada, co
mo nos Estados Unidos. Ele será suspensivoyqua ndo a lei puder en trar em vi
gor, apesar da oposição do chefe do executivo, após o fim de u m dete rm ina
do prazo, com o na co nstituição francesa de 1791.
Quando o poder executivo não dispõe de direito de veto, mas da iniciati
va das leis, ou seja, de apresentar p rojetos de lei, ele deve ser con side rado comoórgão legislativo parcial? É preciso dis tinguir dois casos.
Trata-se de um direito de iniciativa partilhado, ou seja, quando outros
que não ele próprio, por exemplo, os memb ros do Parlamento, têm igualmen
te a iniciativa, então um a lei pode ser feita sem o d eferimento do pod er execu
tivo. Se ele não a apresenta, um deputado o fará e nada impedirá o Parlamen
to de adotar a proposta. O executivo não é, portanto, órgão legislativo parcial.
Tudo m ud a q ua nd o ele dispõe do m on op ólio da iniciativa. Tal era a si
tuação durante a Carta de 1814: somente o rei poderia apresentar um projeto de lei. Além dos deputados não poderem apresentar a proposta, eles nem
mesmo dispu nha m do direito de revisão, ou seja, do direito de p ropo r m od i
ficações no projeto que e man ava do rei. Nesse caso n en hu m a lei pod eria en
trar em vigor sem a vontade do rei.
Verifica-se, durante a Q uinta República, um a situação comparável. Deputa
dos e senadores tinham , de fato, a iniciativa das leis e pod iam apresentar pro
postas. No entanto, o governo se beneficiava de uma pr ioridade para inscrever na
ordem do dia os projetos e as propostas aceitas por ele, o que significa que poderia im ped ir que fossem inscritas, discutidas e votadas as propostas cujo con
teúdo desaprovasse. De putad os e senadores só exerciam seu direito de iniciati
va pela apresentação de emendas, mas com o eles não deveriam estar desprovidos
de qualquer ligação com o projeto em discussão, o governo dispunha de fato
de u m monopólio de iniciativa. Era um órgão legislativo
d) O ju iz constitucional
Q uan do existe um juiz constitucional, ele deve ser considerad o tam bém
com o um órgão legislativo parcial. Mesmo qu and o não orientad o por crité
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124 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
rios de oportu nid ade , com o as assembléias parlame ntares, ele dispõe, porém ,
de um pod er de interpretação que lhe permite contribuir na determinação do
conteúdo das regras legislativas e isso de duas maneiras diferentes.
Em p rime iro lugar, ele pode interpre tar a constituição de tal form a que
um a lei se revele con form e ou contrária, e, conseqüentem ente, é possível que ele
se op on ha à sua aplicação. Esse pod er de interpretação resulta do c aráter va
go e ambíguo das várias disposições do texto constitucional, notadamente
dos preâ mb ulos e declarações dos direitos. De qualqu er forma, existem sem
pre contradiç ões ou conflitos entr e os direitos e a liberdade garantidos pelas
declarações, de tal mo do que a lei será julgada de acordo com a constituiçãosomente quando ela garantir entre esses direitos um justo equilíbrio. Mas o
ju iz dispõe de um a margem de apreciação considerável na resposta à questão
de saber se a lei que ele controla realizou ou não um justo equilíbrio.
A esses argu me ntos objeta-se, às vezes, que o juiz constitu cional n ão é em
si mesmo avaliado e que ele não é submetido a todas as leis. Essa objeção não
é determinante: nas razões de suas escolhas, o juiz dá interpretações gerais das
constituições com base nas quais se podem deduzir previsões de suas atitudes
futuras. Esses motivos são, po r conseguinte, objeto de diretrizes gerais, as quaiso governo, qu ando prepara um projeto de lei, ou as assembléias parlamentares,
quando deliberam, devem necessariamente levar em consideração. Em alguns
casos, o juiz constitucional, na justificativa de suas decisões, chega até a dita r as
grandes linhas de uma legislação futura, que somente assim será considerada
em c onformid ade com a constituição. Os outro s órgãos legislativos são obriga
dos a to mar decisões de acordo com tais diretrizes e o juiz constitucional ava
liará o conteúdo da lei, mesmo se ele não for com unicado disso.
Em contrapartida, os tribunais constitucionais devem também interpretar alei que lhes for submetida. Eles pod em, então, determinar que elas só estarão em
conformidade com a constituição com a condição de receberem tal significado, e
que elas são contrárias a ela com um significado diferente. Assim, se a lei é aplica
da em conformidade com as diretrizes de interpretação dadas pelo juiz, é porque
ele indiretamente determ inou o conteúdo das obrigações que ela prescreve.
Em alguns casos, o juiz chega até a mo dificar ou c om plem enta r o texto
da lei, ou seja, a reconhecer abe rtam en te que ele contrib ui para o exercício do
poder legislativo. Assim, o trib unal consti tu cio nal da África do Sul, seguindo,
aliás, o exemplo da Suprema Corte do Canadá, decidiu por unanimidade
complementar uma lei que dava alguns direitos aos cônjuges, acrescentando
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0 Po d e r 125
os termos “ou parceiros do mesmo sexo em uma relação estável” Ele justifi
cou essa decisão pela idéia de que não havia nenhuma diferença entre o fato
de suprimir ou acrescentar termos de uma disposição13.
Ocorre qu e a oposição de um tribunal a um a política legislativa provo
ca uma crise política séria. Foi o que ocorreu, por exemplo, nos Estados Uni
dos na época d o New Deal (cf. infra). De acordo com os sistemas constitucio
nais, pode ser mais ou menos difícil superar essas crises. Em alguns casos,
pode-se te r a in te nção de revisar a consti tu ição ou de m udar o esta tu to do tr i
bunal, ou sim plesm ente de modif icar o texto e criar, dessa fo rm a, conformi
dade com uma lei julgada contrária, a princípio. No entanto, essa soluçãoapresenta limitações. O processo de revisão pode, como nos Estados Unidos,
ser muito trabalhoso de modo que é quase impossível realizá-lo. Mas mesmo
qu an do o tribu na l é ágil, ele pode desejar exa min ar a validade da revisão cons
titucional em si mesma. Esta pode ser feita violando-se o processo de revisão
ou a tentand o-se co ntra princípios considerados superiores à constituição. Vá
rios tribunais, como o da Alemanha ou o da Itália, afirmaram sua com petê n
cia para proceder ao controle de constitucionalidade de uma lei de revisão
(T r o p e r , 1994b). Em outras situações, como na Romênia, a constituição reconhece que o tribunal dispõe de um real poder legislativo e que este deve ser
superado como um veto parcial. Ela prevê, portanto, que o parlamento pode
adotar novamente o mesmo texto com uma maioria reforçada.
3 .0 exercício da função legislativa
a) A organização do trabalho legislativo
A função legislativa é de importância capital, não apenas do ponto de
vista jurídico - a lei se encontra no ápice da hierarquia das norm as - mas
também do ponto de vista político: em razão do desenvolvimento considerá
vel do papel do Estado, as leis são cada vez mais numerosas e complexas. Na
maioria dos Estados modernos, constata-se uma evolução muito profunda
das condições de exercício da função legislativa.
13 Decisão CCT de 2 de dezembro de 1999, trad. dos Cahiers du Conseil constitutionnel, n.9/2000, p. 66, com o comentário de Didier RIBES,“Le juge constitutionnel peut-il se faire légis-lateur?” mesma revista, p. 84.
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12 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Mesmo qua nd o essa função é confiada a vários órgãos, existe, entre eles,
pelo menos um a assembléia parlam entar eleita. Em alguns casos, as assem
bléias parla menta res chegam até a obte r a to ta lidade do poder legislativo. To
dos os constituintes, sem exceção, são conscientes dos riscos que poderia
apresentar um poder tão importante. O próprio Robespierre declarou que
duvidava tanto da tirania de seiscentos déspotas quanto da do rei. Aos olhos
dos constituintes do século XVIII, o risco mais evidente é que as assembléias
podem empregar a força e a auto rid ade para decid ir questões referentes à
função executiva e à função judiciária. Qu an do não se tem controle de co ns
titucionalidade, na da im pede ao legislador de fazer leis particulares pa ra co nceder privilégios ou impor medidas mais severas, de poupar determinadas
pessoas da ação da just iça, de decid ir litígios etc. Esse acúmulo de funções se
ria a negação da separação dos poderes e correspond eria exatam ente ao des
potismo, como ele é definid o no sécu lo XVIII. Em contr apartid a, essas as
sembléias seriam muito provavelmente submetidas às pressões populares,
dilaceradas pelas facções, relegadas aos demagogos e finalmente reduzidas à
anarquia e à impotência.
Para dim inu ir esses riscos, os constituintes valeram-se de alguns p rocedimentos simples: limitar a duração do m andato, o nú me ro de m anda tos parla
mentares que um mesm o ho me m tem o direito de disputar sucessivamente, re
novar as assembléias por frações (por exemplo, um terço a cada ano, como
ocorre no Senado americano), proibir o acúmulo do mandato parlamentar
com outras funções, mas sobretudo encerrar o exercício da função legislativa
nos processos obrigatórios. Não se trata, aliás, somente de evitar o perigo do
acúm ulo das funções, mas também de m elhorar a qualidade do trabalho legis
lativo. Considera-se prin cipalm ente que é necessário organ izar o deba te de talmane ira que a troca dos argum entos p ermita con duzir às melhores soluções.
As assembléias com porta m, portanto, comissões, grupos de parlam enta
res encarregados de preparar o exame dos projetos e das proposições de lei.
De acordo com os sistemas constitucionais, essas comissões pod em ser espe
cializadas (como na F rança) ou não especializadas (co mo na Inglaterra). Elas
podem ser ta mbém permanente s ou ad hocyou seja, constituídas apenas para
o exame de um projeto e dissolvidas posteriormente.
Os projetos ou proposições são freqüentemente enviados a uma comis
são, em seguida são objeto de um a o u de várias deliberações (ou leituras) em
sessão plenária.
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0 Po d e r 127
b) As dificuldades
Ocorre freqüentemente nos Estados modernos que os parlamentares
enfrentem algumas dificuldades na garantia da função legislativa. Isso se de
ve a múltiplos fatores, à crescente tecnicidade dos projetos, à demora e à bu
rocracia excessiva dos processos, quando se faz necessário agir rapidamente,
às reticências dos parlamentares em adotar medidas úteis, mas impopulares,
às divisões políticas e à ausência de maioria, que tornam cada decisão o re
sultado de compromissos laboriosamente negociados.
Para essas dificuldades, existem alguns remédios. O mais freqüente hoje éo desenvolvimento da iniciativa do executivo. Considera-se que, na maioria dos
sistemas representativos modernos, um a proporção bem imp ortante (isso chega
até a 90%) das leis é oriunda de projetos apresentados pelo governo. É o que
tamb ém ocorre nos Estados Unidos, onde, entretanto, o Presidente não tem a
iniciativa das leis. Basta-lhe inspirar um membro do Congresso. Esse fenôme
no se explica na turalmente: o po de r executivo tem essa capacidade, porque ele
dispõe da administração, do conhecimento das necessidades e do poder de
m and ar prep arar projetos; em contrapartida, ele pode tam bém agir de diversosmo dos com os parlamentares a fim de agrup ar m aiorias que os votarão.
Um outro tipo de procedimento, também bem difundido, consiste em
am pliar as competências do ó rgão executivo. Isso corresp ond e a dois tipos de
técnicas. O Parlam ento pode, em prim eiro lugar, limitar-se a enun ciar na lei
prin cípio s ou regras muito gerais e deixar ao governo a tarefa de precisá- las
e de complementá-las por outras regras com um grau de generalidade menos
elevado. A essas regras, que emanam do governo, dá-se o nome, no direito
francês, de règlements (regulamentos). Ele, po r sua vez, pode se abster de editar as leis em determ inada s áreas ou matérias, que estarão reservadas ao regula
mento. Assim, na França, a lei de 17 de agosto de 1948 elaborou um a lista de
matérias regulamentares. Quando se deseja evitar que o Parlamento não re
tome por uma lei a área que concedeu ao governo por uma lei anterior, essa
lista de matérias p ode ser estabelecida não n a form a de u m a lei, mas na cons
tituição formal. Foi a solução da constituição francesa de 1958: o art. 34 enum e
ra as matérias reservadas ao legislador; nos termos do art. 37, todas as demais
matérias são reservadas ao poder regulamentar.
Em segundo lugar, o Parlamento pode autorizar o governo a adotar re
gulamentos nas matérias reservadas à lei. Esses regulamentos, que levam o
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128 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
nom e, d ura nte a Terceira República, de decretos-leis e a que a constituição de
1958 dá o nome de ordonnances (portarias), poderão, eventualmente, mo di
ficar uma lei adotada anteriormente na mesma área e serão submetidos ao
Parlamento para ratificação. A ratificação tem como conseqüência transfor
mar esses textos em leis e faz com que eles se beneficiem do regime jurídico
da lei: eles não poderão ser contestados diante de um tribunal e só poderão
ser modificados mediante uma nova lei. Nesse caso, existe uma simples apli
cação do princípio segundo o qual a lei é objeto de uma definição formal: é
lei um texto ado tado pelo órgão que a constituição designa com o o órgão le
gislativo, e apenas tal texto.Essa última técnica é, às vezes, chamada de delegação legislativa. A ex
pressão é, entr etanto, errônea, porque o executivo não recebe o poder de fa
zer leis. Os atos que ele adota são atos de execução, atos fo rm alm ente regula-
men tares e, po r conseguinte, subm etidos ao regime jurídico d o regulam ento.
N o en tan to , os rem édios não passam apenas pela am pliação d a a tuação
do execut ivo. É também possível procurá- los em uma melhora dos métodos
de t rabalho do Par lamento em si mesmo. Pr imeiramente , é possível ampl iar
seus meios, nota dam ente na área do pessoal , para faci li tar a preparaçã o dostextos . Pode-se , também, pensar em modif icar e amenizar o processo , pelo
me nos p ara a lguns t ipos de leis. O exemplo qu e cham a m ais a a tenção é aque
le da consti tuição i tal iana, que permite confiar o poder legislat ivo às comis
sões par lamentares .
2.AFUNÇÃO EXECUTIVA
A.0conteúdodafunçãoexecutiva
A idéia que se faz da função executiva variou consideravelmente d ur an
te os tempos. Passou-se de um a concepção b em estrita a uma concepção bem
ampla de forma que o termo executivo parece hoje totalmente inadequado.
1. A função executiva str ic to sensu
No início da Revolução Francesa, a função executiva era concebida co
mo uma função de execução estrita das leis. O papel das autoridades execu
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0 Po d e r 129
tivas consistia apenas em fazer os atos materiais e em dar as ordens necessá
rias para que a lei fosse executada. A função compreendia, portanto, a dire
ção da adm inistração, mas n enh um poder regulamentar. As norm as gerais só
podia m ser emit idas pelo legislador e em fo rm a de lei. Por conseguin te , essa
função nã o era um a função política e aqueles que a exerciam não pod iam de
forma alguma tomar parte na determinação de uma política. Mais ainda,
qu alqu er tentativa de se exercer um papel político se apresentava, de acordo
com essa concepção, como uma tentativa de fugir da execução estrita da lei,
e portanto, como uma extrapolação da função legislativa e um crime contra
a constituição.
2. A função executiva lato sensu
Essa concepção não podia prevalecer por muito tempo por três razões.
A primeira é que o legislador não tem, com o vimos, a possibilidade m a
terial de prod uz ir todas as regras necessárias. Se, nos prime iros tem pos da Re
volução» chegou-se até a determinar pela lei o estilo dos uniformes militares
e a forma de seus botões, é evidente que se trata, nesse caso, de detalhes, cu ja re sp onsabil idade não pode ser por muito te m po confiada a assembléias . A
partir da consti tu ição do ano III , os órgãos execut ivos receberam , porta nto,
um poder regulamentar.
A segunda razão é que o órgão ou os órgãos executivos, também chamados
de “governos”14, são encarregados do encaminhamento das relações internacio
nais. Existe aí de fato uma contradição com a idéia de que eles exercem apenas
um a função subordinada. Evidentemente, essa atividade não pode ser entendida
com o a execução das leis e ela não pode, entretanto, ser retirada do governo po r
que ela exige o segredo na concepção e na rapidez da ação e, portanto, ela não
poderia ser exercida por uma assembléia numerosa . Diante disso, torna-se im
possível cons iderar a função executiva como subalterna e e stranha à política.
A terceira razão é que os órgãos executivos gan hara m tam bém , a partir
do ano VIII, a responsabilidade de iniciativa das leis e, algumas vezes, o mo
nopólio da iniciativa. O que justificava essa competência era que o executivo
dispunha da administração e podia, graças a ela, reconhecer as dificuldades
11 Esse term o n ão den ota p or si mesm o n enh um pod er real. É aquele empregado po r Rousseau para des igna r o órgão executivo estri tamente su bord in ad o.
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13 0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
de aplicação das leis em vigor, as necessidades de nova legislação e preparar
pro je tos de lei apto s a ap licar o poder regula m entar para que, em seguida,
houvesse entre os projetos uma coerência mínima e até uma coerência entre
a legislação e os regulamentos, ou seja, para que eles se revelassem, em seu
conjunto, como a implementação de u m a política.
Nesse Estado, a função executiva compre ende, porta nto , a execução m a
terial e a direção da administração, o encaminhamento das relações interna
cionais, o poder regulamentar e a iniciativa das leis. Mas a essas competên
cias que os governos extraem da con stituição, acrescenta-se necessariamente
um papel político de modo que se fale, às vezes, em função governamental.
3. A função executiva latissimo $ensuya função governamental
Na concepção anterior, a função executiva perm anece subord in ada: o
governo pode fazer regulamentos, mas apenas para aplicar leis. Ele pode ela
borar uma po lítica, que se tr aduzir á pela apre se ntação de pro je to s de lei, mas
será imprescindível de fato que as leis sejam votadas.
No entanto , o governo francês dispõe rapidam ente , desde o início do século XIX, de um con junto de proced imentos para tentar a adoção desses proje
tos. Alguns são jurídicos e decorrem da constituição: o direito de entrada e de fa
la nas câmaras, a pressão sobre os deputados pela questão de confiança, a ameaça
de dissolução; nas constituições modernas, algumas intervenções no processo
legislativo. Mas outros procedimen tos, extremamen te variados, não estão pre
vistos pela constituição: eles são, entretanto, empregados por qualquer governo
e pode-se designá-los globalmente como a direção da maioria parlam entar.
Q ua nd o se fala, ainda, de “função executiva”, é nu m sentido totalmen tediferente. Evidentemente, não se trata de execução das leis, mas do conju nto
das atividades exercidas pelo órgão encarregado, pela constituição, da função
executiva. Em outros termos, passou-se de uma concepção material (estrita
ou am pla) para um a concepção bem am pla, que é formal. Como o órgão en
carregado da fu nção executiva é freqüentem ente cha m ado de “governo”, essa
função é geralmente designada como função governam ental.
A vontade do governo de conceber e implementar uma política se ma
nifesta desde o Consulado, mas é a constituição de 1958 que a consagra pela primeira vez, em seu art . 20, como um a real pre rrogativa do governo: ele “de
termina e conduz a política da nação”.
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0 Po d e r 131
Ê nesse contexto que se pode com preender a teoria da separação dos po de
res, na apresentação que fazia a doutrin a tradicional. Qua ndo se distingue a fun
ção legislativa para opô-la à função executiva, em um de seus primeiros sentidos,
esta evidentem ente está subord inada e é impossível conceber um equilíbrio entre
dois órgãos especializados. Em con trapartida, quando se com param os poderes
de dois órgãos responsáveis, um da função legislativa, outro da função executiva,
no terceiro sentido, aqueles do governo estão longe de serem inferiores àqueles
do órgão legislativo e a idéia de um equilíbrio entre eles volta a ter sentido.
Alguns autores - e em primeiro lugar Georges Burdeau - foram ainda
mais longe: conceberam a função governamental como aquela mediante aqual se exerce a totalidade do poder do Estado. Ela abrange, assim, a função
legislativa. Mas essa concepção “não leva de forma alguma... à concentração
da totalidade da autoridade governamental nas mãos de um órgão único. Ao
contrário, é necessário que vários órgãos estejam associados ao papel gover
namental, de modo que ao lado do titular do poder de decisão, esteja uma
autoridade encarregada do controle” (B u r d e a u , 1945).
Pode-se, então, substitu ir a classificação das funções po r ou tra classificação:
no centro da função governamental, encontram -se um a função de decisão e um afunção de controle. Alguns dos redatores da constituição de 1958 se inspiraram,
aliás, nessa classificação, distinguindo não a função legislativa e a função execu
tiva, mas a função governamental (a função de decisão de Burdeau) e a função
de deliberação e de controle, confiada ao Parlamento (J.-L. Q i j e r m o n n e , 1982).
B.Osórgãosdafunçãoexecutiva
Em um sistema jurídico m oderno , tudo o que não é nem constituição,
nem lei, é um ato de execução e, tomando a expressão em sentido literal, to
dos os órgãos que não o Parlamen to, são órgãos da funçã o executiva. No en
tanto, na prática, reserva-se essa expressão e a de poder executivo aos órgãos
supremos dessa função. Esse uso é justificado pelo fato da execução estar ga
rantida em essência sob a autoridade e o controle dos órgãos supremos.
1. Os órgãos supremos
O po der executivo pod e as sum ir m uitas formas, sujeitas a várias classi
ficações.
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132 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
a) Executivo m onístico e executivo dualista
Chama-se dualista um poder executivo que com porta dois órgãos, um
chefe de Estado e ministros, e monístico um executivo que comporta um ór
gão único. A maioria das constituições francesas instituiu u m po der executi
vo dualista. O executivo americano é monístico.
Em sua origem, o dualismo tinha uma função específica: quando o chefe
de Estado era um rei e era órgão parcial da função legislativa, sua ind ep en dê n
cia deveria ser garantida. Ele deveria, portanto, ser irresponsável e inviolável.
A inviolabilidade é a proibição d e prendê -lo, a irresponsabilidade, a de mover,contra ele, processos. Mas também era necessário evitar que o rei se refugias
se atrás da irresponsabilidade, valendo-se de sua participação no po der legis
lativo, a fim de violar a lei, com o pretexto de a estar executando. A solução
enc on trad a foi a da instituição dos ministros. Os atos executados pelo rei na
função executiva deviam ser endossad os pelos ministros, que são penalm en
te responsáveis por isso (cf. supra, no Capítulo 1, a classificação dos regimes
políticos). Dessa fo rm a, os minis tros recusarão o endosso de um a ord em ilegal,
a fim de evitar incorrer em altas penas. O dualismo garante simultaneamente a irresponsabilidade do rei e uma boa execução das leis. Compreende-se
que o dualismo facilitou o advento do regime parlamentar.
Nos sistem as m odernos, o duali smo tem outras funções: por um lado,
ele permite, graças à permanência do chefe de Estado, garantir, apesar das
mudanças de ministério, a continuidade, pelo menos simbólica, do poder;
por outro lado, ele propic ia uma divisão das funções: ora o chefe de Estado
garante uma função de representação enquanto o governo detém a realidade
do poder; ora o chefe do Estado determina as grandes diretrizes para relegar ao governo a gestão rotineira.
O sistema do executivo monístico se encontra no sistema presidencial.
No entanto , dizer que o executivo é monís tico não significa que não existam
ministros - até mesmo a m ona rquia absoluta conhecia a instituição dos m i
nistros - , m as que eles estejam estritam ente sub metid os ao chefe do executi
vo, que é quem os nomeia, lhes dá instruções e pode destituí-los. Como ele
não é responsável, seus atos não precisam ser endossados e os ministros não
adquirem n enhum poder autônomo.
b) Indivíduo ou colégio
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0 Po d e r 133
A qualidade de órgão pode ser atribuída a um indivíduo ou a um gr u
po de indiv íd uos, ou seja, a um colégio. Assim, em se trata ndo de um execu
tivo dualista, o chefe de Estado pode ser tanto um indivíduo (rei ou presiden
te) quanto um colégio. Dessa forma, o Diretório, na constituição do ano III,
ou o Praesidium do Soviete Supremo nas constituições soviéticas antigas, eram
chefes de Estados colegiados. Os minis tros nem sempre são um órgão colegia-
do. Em alguns sistemas, por exemplo, na constituição francesa de 1793, eles
“não formam de maneira alguma um conselho”, de modo que eles devem ser
considerados apenas como uma série de órgãos individuais.
c) Estatutos
1) Designação
Vários procedimentos de designação são concebíveis: além do sorteio,
que não é mais em pregado , a hereditariedade, a eleição, a nom eação, a coop-
tação. A hered itariedade só diz respeito aos chefes de Estado. Os outros siste
mas são empregados tanto para os chefes de Estado como para os ministros.Cada um desses procedimentos comporta muitas variações. Sabe-se, por
exemplo, que um chefe de Estado pode ser eleito pelo sufrágio universal ou
por um colégio restri to , e que esse colégio pode ser o Parlamento , como na
França durante a Terceira e Quarta Repúblicas, ou um colégio que não tem
ou tra função senão a de eleger o Presidente, como 110 início da Quinta Repú
blica. A d uração de seu m andato pode ser mais ou menos longa. Ele pode ser
autorizado a exercer um número ilimitado de mandatos, como na França, ou
limitado, como nos Estados Unidos. Quando o executivo é dualista, o chefedo governo, que pode ter diversos títulos, Primeiro-ministro, Presidente do
Conselho, Chanceler etc., pode ser designado de várias maneiras, por exem
plo, pelo chefe do Estado, por um a ou duas assembléias ou ain da por acord o
entre o chefe do Estado e as assembléias. Ele pode até, com o em Israel du ra n
te um curto período, ser eleito pelo sufrágio universal (K l e i n , 1997). Todos
esses procedimentos são, aliás, combináveis de várias maneiras. Por
o chefe de Estado pode nomear ministros, mas essa nomeação deve ser con
firmada pelo Parlamento ou por um a câmara do Parlamento ou, ainda, um a as
sembléia elege o chefe de Estado, mas ele deve ser escolhido a partir de uma
lista de pessoas eleitas.
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13 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
2) Extinção das funções
Os textos constitucionais nem sempre especificam a maneira como as
funções se findam. Em alguns casos, como a morte do titular, a expiração do
mandato ou ainda a demissão, uma regra explícita não é necessária. Em ou
tros casos, a ausência de uma regra pode criar sérias dificuldades. Daí, o im
pedimento (que não se pode confundir com o impeachment , palavra inglesa
que significa acusação no contexto constitucional, ou seja, o poder de uma
câm ara de expor algumas pessoas diante de um tribun al especial). O imp ed i
mento ocorre quando um membro do executivo se vê impedido de exercer suas funções, seja por razões de saúde física (quando ele está em coma) ou
men tal (ele perdeu o uso de suas faculdades), seja porq ue o país está em guer
ra ou em crise e essa personalidade é mantida afastada do exercício do poder.
No entanto , não se pode evitar si tuações em que o im pedim ento seria usado
como um meio escuso para se realizar um golpe de Estado15.
Algumas constituições com po rtam regras específicas, por um lado, pa
ra constatar o impedimento, por outro, para determinar as modalidades de
sua substituição.O órgão competente para constatar o impedimento é com freqüência
uma autoridade do tipo jurídica. Trata-se, com efeito, de evitar que um con
corrente político fraude a constatação do impedimento de um chefe de Esta
do, que é, na verdade, perfeitam ente capaz de exercer suas funções. Um a au
toridade jurídica pode ser considerada neutra e objetiva. Mas, em geral, ela
não pode proceder a essa constatação por conta própria, ou seja, ela deve ser
convocada para esse fim. Assim, na França, é o Co nselho C onstitucional, su b
metido ao governo, que constata o im pedimento.Qu anto à substituição, as constituições podem distinguir o im ped ime n
to temporário e o definitivo. Em ambos os casos, a substituição é, em geral,
garan tida nos sistemas presidenciais pelo vice-presidente, nos sistemas parla
mentares pelo presidente de um a ou de outra câmara. Mas qua ndo há o im
pedim ento def initivo, duas soluções são possíveis: ou a autorid ade re sponsá
vel pela substituição do chefe do Estado exerce suas funções até a expiração
do período norm al do m anda to - é a solução americana; ou novas eleições
devem ser realizadas, como na França ou na Itália.
1’ Dessa maneira, na Tunísia, o presidente Bourguiba foi demitido de suas funções em razão dasenilidade que, justa ou injustam ente, lhe atribuíam , enqua nto ele se recusava a pedir demissão.
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0 Po d e r 135
3) A responsabilidade
• Os chefes de Estado
- A ausência de responsabilidade política
Na maio ria dos sistemas consti tu cio nais modern os, o chefe de Estado
não é politicame nte responsável. Em o utras palavras, ele não é obrigado a pe
dir demissão m ediante o pedido de um a m aioria parlam entar. Isso se explica
por razões históricas: nas primeiras consti tu ições dos séculos XVIII e XIX, ochefe do Estado, monarca ou presidente, exercia uma função executiva con
siderada bem estrita, que não implicava na condução de uma política. Por
tanto, não poderia ser questão de sancionar uma divergência de políticas, já
que ao chefe de Estado não cabia conduzi-las, nem mesm o p rop or alguma.
Hoje, essas razões desapareceram parcialmente, já q ue o po der executivo é de
fato um po de r e a irresponsabilidade do chefe de Estado tem o utras justifica
tivas, bem variadas, aliás.
Nos regimes parlamenta res, existe um gabinete, dis tinto do chefe de Estado, que dispõe da realidade do po der executivo e que p or ele é responsável.
O chefe do Estado é, portanto, irresponsável porque ele não tem poder.
Nos regimes presidenciais, em que o pre sidente dispõe da realidade do
poder executivo, de m odo contr ário , objetiva-se perm it ir -lh e o pleno exercí
cio e evitar que esse poder seja exercido indiretamente pela maioria parla
mentar. É o que perfeitame nte pode ria oco rrer se essa maioria pudesse desti
tuir o presidente tão logo ele conduzisse uma política que ela desaprovasse.
Mas existem também sistemas, cada vez mais numerosos, como naFrança, nos quais o governo é responsável e o chefe de Estado pode ser leva
do a tam bém exercer um pod er considerável, inclusive fixar as grandes dire
trizes políticas, mesm o perm ane cen do irresponsável. Diante de tais sistemas,
várias posturas teóricas são possíveis.
Pode-se, prim eiram ente, conside rar que esses sistemas são em essência
sistemas parlamentares: o Presidente da República não pode nada sem o go
verno, de mod o que, po r interméd io deste, a maioria parlam entar dispõe de
meios de interferir na política do poder executivo.
No enta nto , em algumas si tuaçõ es a maio ria parlam enta r declara ao go
verno - e, portanto, ao Presidente, de forma indireta - um apoio constante.
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136 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
O governo tem, então, uma função política tríplice: ele aplica as grandes di
retrizes da política definida pelo Presidente; garante a direção da maioria
parlamentar; finalm ente , ele desempenha a função de um fusível. Quando o
Presidente se encon tra imp edido de realizar o pro gram a pelo qual ele foi elei
to ou quando ele se arrisca a se tornar impopular, pode-se mudar a equipe
governam ental. O sistema que acabam os de descrever é aquele que existe na
França nos períodos de concordância das maiorias. Ele foi reproduzido em
várias das antigas repúblicas socialistas, nas quais se podia teme r que um pre
sidente eleito pelo sufrágio universal e politicamente irresponsável entrasse
em desacordo ou com a maioria hostil que o paralisaria, ou com a opinião pública , que teria outr os recursos além da força.
Mas alguns autores sustentam que, se esse tipo de dualismo se explica
por razões his tóricas (dese jou-se um regime parla menta r), ele não mais se ju s
tifica: o chefe de Estado deveria, portanto, ser considerado politicamente res
ponsável, mesmo que a const ituição não estipulasse essa responsabilidade. Na
Itália, uma parte da doutrina considera que incide sobre o Presidente da Re
pública um a re sponsab ilidade “difusa”. Na França, idéias semelhantes foram
pro posta s por René Capitant. Segundo ele, num sistema democrá tico, não éaceitável que u m hom em dispon ha de p oderes imp ortante s e que ele não seja
obrigado a prestar contas ao povo do uso que faz desse poder. É por isso que
alguns votos importantes devem representar para o chefe de Estado o pivô da
responsabilidade política perante dos eleitores. Foi assim que o general De
Gaulle, notadamente no momento de um referendo, advertiu o corpo eleito
ral de que ele se retiraria, caso fosse desacreditado, o que fez em 1969.
A tese da responsabilidade difusa, como aquela de Capitant, por mais
sedutora que seja no âmbito da teoria democrática, é, entretanto, juridicamen te inaceitável. A dupla obrigação do Presidente da República, de colocar
em jogo seu ma ndato no m om ento de um voto imp ortante e de se retirar em
caso de insucesso, nad a mais é que u m a obrigação política ou mo ral e de m o
do algum uma obrigação jurídica. Não se pode dizer que um Presidente que
se comporte de outra forma viole a constituição. De resto, o exemplo do ge
neral De Gaulle não foi seguido po r n en hu m de seus sucessores.
O chefe de Estado é, porta nto , m uito responsável. Mas existe, na reali
dade, sobre essa responsabilidade política, um aspecto importante: a res
ponsabil id ade penal não é tã o difere nte da responsabil id ade polí tica em
questão.
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0 Po d e r 137
- A responsabilidade penal
Vimos que, nas constituições m onárq uicas, o chefe de Estado não é pe
nalmente responsável, que essa irresponsabilidade é a garantia de sua inde
pendência com o autoridade legislativa parcial e que ela leva ao dualismo do
executivo. Uma vez instituído o dualismo, a irresponsabilidade se justifica
ainda nesses regimes, por mais que o rei tenha perdido seu direito de veto;
um rei que fosse penalmente con denado não poderia perm anecer na função
e se qualquer condenação o forçasse a renunciar ao trono, perder-se-ia o
principal benefício da monarquia : a aplicação auto mátic a de um a regra im utável de sucessão.
Mas essa justificação desaparece nos regimes republicanos; quer o exe
cutivo seja monístico ou dualista, o presidente é sempre penalmente respon
sável. Não será considerada aqui a respon sabilidade penal que incide sobre os
governos do p on to de vista do direito internacional. Da perspectiva do direi
to constitucional, a responsabilidade po de assum ir diversas formas.
- Do ponto de vista do processo: o privilégio de jurisdição
A responsabilidade penal se define antes de tudo pelo processo: logo
que a responsabilidade política é adotada por um simples voto de uma as
sembléia política, a responsabilidade penal implica duas fases e, portanto,
duas decisões distintas que devem ser tomad as po r duas autoridad es diferen
tes: a acusação e o julgamento. Pode-se, então, distinguir dois tipos de pro
cessos penais.
No prim eiro tipo, a acusação e o ju lg amento são anunciados pe las assembléias políticas. É o que ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos, onde a
câmara dos representantes vota a acusação, o impeachment , e encaminha ao
Presidente ao Senado, que o julga. O mesmo ocorre na França, o Presidente
da República é acusado pelas duas assembléias e julgado pela Alta Corte,
com posta de parlamentares.
Em outras situações, teme-se que as câmaras exerçam os poderes de
acusação e de julgamento de maneira política e, por isso, remete-se o julga
mento, pelo menos, a autoridades jurídicas, a uma corte suprema ou a um
tribun al constitucional. É o que ocorre u na Itália, na Áustria e em Portugal.
Seria inadmissível, em contrapartida, que uma acusação fosse exercida por
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138 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
um a autoridad e jurídica nas condições do direito com um , porqu e o chefe de
Estado ficaria à mercê da autorida de q ue m ovim enta a ação pública, incluin
do particulares quando esses não têm o direito de instaurar processos.
- Do p onto de vista das infrações
Nem todos os poderes do chefe de Estado são suscet íveis de instaurar
processos penais , mas apenas os crim es mais graves. O presid ente alemão
só pode ser acusado “por violação deliberada da Lei fundamental ou de
um a lei federal”, o presiden te am erica no a penas p or “traição, conc ussão ououtros crimes e delitos”, o presidente da República francesa e o presidente
da República italiana por atos ocorridos dentro do exercício de suas fun
ções e no caso de “grave traição”. Essas disposições dão lugar a dois tipos de
dificuldades.
Em p rim eiro lugar, as expressões “ou tro s crim es e delitos”, “violação de
liberada”, “grave traição”, são suscetíveis de serem interpretadas de várias for
mas e podem, de acordo com a interpretação dada, levar ou não à instaura
ção do julga me nto de um chefe de Estado. É necessário ressaltar, por exemplo,que o crime de grave traição n ão está definido pelo código penal francês, de
modo que qualquer ato ocorrido no exercício das funções e julgado relativa
mente grave poderia ser qualificado como “grave traição”. Da mesma forma,
questionou-se em 1998, sobre o presidente Clinton, se o simples fato de o
pre sidente menti r no quadro de um processo civil puram ente provado pode
ria ser considerado como um desses “outros crimes e delitos”, suscetíveis de
justi ficar um a acusação ou se a in fração deveria ser, como a traiç ão ou a c on
cussão, suscetível de cometer atentado à constituição dos Estados Unidos(Z o l l e r , 1999). Percebe-se que a escolha de um a ou de ou tra interpretação é
inevitavelmente política ou até mesmo partidária. No caso do presidente
Clinton, po r exemplo, ele pôde ser acusado, antes de tudo, porq ue os re pub li
canos ocup avam a maioria dos lugares na câ mara dos representantes, e ele foi
absolvido, porque eles não d ispu nh am dos três quintos das vozes no Senado.
A responsabilidade penal é, portanto, necessariamente política. No entanto,
em alguns sistemas constitucionais, foram previstos processos para tentar
evitar que uma simples intriga política pudesse dar lugar, de maneira extre
mam en te fácil, à aplicação da respon sabilidade. Assim, na F rança, um a lei or
gânica previu que um presidente acusado pelas câmaras pudesse ser chama
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0 Po d e r 139
do diante da Alta Corte somente depois que uma comissão de instrução,
com posta d e mag istrados, se pronunciasse sobre as queixas oferecidas con tra
ele. A Rússia possui um sistema análogo.
A segunda dificuldade diz respeito aos atos que não provêm do exercí
cio das funções, ou seja, aqueles que são de natureza p ura m ente privada, um
crime passional, uma fraude fiscal ou uma simples violação do código de
trânsito ou aqueles que, de natureza pública ou privada, são anteriores ao
exercício da função. Três soluções são teoricamente possíveis. A primeira es
tá fundamentada no princípio de igualdade: o chefe do Estado deve, prova
velmente, estar protegido no exercício de suas funções e nessa qualidade, masapenas nessa qualidade. De resto, ele não deve, portanto, gozar de nenhum
privilégio que o co loca ria acima das leis. Deveria ser possível, portanto , p ro
cessá-lo como qualquer outro sujeito diante das jurisdições ordinárias.
Segundo a tese inversa, o chefe de Estado não poderia exercer livremen
te suas funções caso pudesse ser facilmente processado, tendo de se defender
constantemente contra acusações que visassem atos da vida privada ou ante
riores a seu mandato. Sua condição especial justifica, portanto, que se abra
uma exceção temporária ao princípio de igualdade. Ele será, portanto, res ponsável apenas por alguns atos particularm ente graves cometidos no exer
cício das funções. Outros atos oriundos de suas funções mas que não apre
sentam gravidade extrema, não dão lugar a nenhuma responsabilidade.
Q ua nto aos atos provados e aos atos anteriores ao início de seu ma ndato , eles
podem ser motivo de processo, mas somente após o fim do mandato .
A terceira tese é intermediária: o ato provado ou anterior ao mandato,
mas ocorrido no decorrer deste, poderia ser de extrema gravidade e obvia
mente seria chocante que um grande criminoso não pudesse ser processadoantes do final de seu mandato. Ele não deve, portanto, se beneficiar de ne
nh um a irresponsabilidade. Mas como a decisão de processá-lo e de conde ná-
lo por esses crimes provado s ou antigos apresenta u m caráter político, não se
pode perm itir o exercício da competê ncia das ju risdições de direito com um
e, assim, protege-se o chefe de Estado com um a im unid ade de jurisdição. Es
sa terceira tese leva, portanto, a distinguir para esses atos a irresponsabilida
de, que é recusada, e a imun idad e de jurisdição, que é consen tida. Essa é pre
cisamente a solução americana e a que adotou, na França, o Conselho
Con stitucional, em u m a decisão de 22 de janeiro de 1999 (98-408 DC, trata
do a respeito do estatuto do Tribunal Penal Internacional).
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14 0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
• 0 5 ministros
A questão da responsabilidade política já foi vista no capítulo anterior
e as considerações seguintes são referentes apenas à responsabilidade deno
minada penal. Os problemas são análogos mas não idênticos aos que se co
locam em relação ao chefe de Estado, e análogos mas não idênticos nos regi
mes parlamentares e nos regimes presidenciais.
A responsabilidade penal dos ministros é sua razão de ser. Por isso, di
ferentemente do chefe de Estado, nunc a são pe nalm ente irresponsáveis. Mas,
como no caso do chefe de Estado, a questão é saber se, para os atos ligados asuas funções, eles devem ser submetidos a uma responsabilidade de direito
comum ou a um regime particular. Concebem-se três soluções, cada uma
com seus adeptos.
a) Eles são subme tidos a um regime particular. É o que oc orre na Fran
ça. Antes da reforma de 1993, eles provinham da Alta Corte de Justiça, como
o Presidente da República. Desde 1993, é o Tribunal de Justiça da República
que é competente para julgá-los, mas trata-se ainda de uma jurisdição espe
cial. É essa jurisdição que, em 1999, julgou os ex-ministros no caso do sangue contaminado. É também o sistema americano. A principal justificativa é
que somente uma jurisdição especial, composta pelo menos parcialmente,
por hom ens políticos, é capaz de pro fe ri r um ju lg amento necessariamente
político . A principal cr ít ica dir ig id a a essa so lução está pre cisamente ligada a
essa justificativa: uma jurisdição composta por homens políticos pode ser
motivo de d esconfiança de parcialidade.
b) Eles são submetidos a uma responsabi lidade de direi to comum diante
dos tribunais ordinários (D u h a m e l e V e d e l , 1999). É o que ocorre, por exem plo, na Itália. A justificativa dessa so lução reside no princíp io de igua ldade e na
neutralidad e dos juizes ordinários. O risco, assim como pa ra o chefe de Estado,
é a incapacidade técnica dos juizes ordinários de apreciar as condições nas
quais os ministros exercem seus poderes e a tentação das auto ridades jurídicas
de interferir na instauração dos processos ou no julgamento das preferências
políticas, embora não tenham a qualidade de representantes do soberano.
c) Para os atos relativos a suas funções, eles são submetidos exclusiva
mente a uma responsabilidade política. Essa solução é preconizada por al
guns juristas, notadamente porque os critérios do direito penal se mostram
inadequ ados, qu an do se trata de apreciar os atos emin entem ente políticos, li
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0 Po d e r 141
gados ao func ionam ento do Es tado (Bé a u d , 1999). Mas essa solução é clara
men te inad equ ada aos s is temas nos quais a responsabi l idade pol í tica dos m i
nistros nã o existe e, ond e ela existe, no caso dos ex -ministros.
Para os atos exter iores às funções, na ma ioria dos sistemas, os min istros
estão subordinados a uma responsabi l idade de d i re i to comum.
2. Os órgãos subordinados
O chefe de Estado e os ministros só podem exercer suas atribuições e
notada me nte executar as leis por m eio de um a adm inistração, composta defuncio nários qu e eles nom eiam e dirigem. Na prática, os funcioná rios são le
vados a toma r um núm ero muito g rande de decisões e dispõem, no caso dos
altos funcionários, de um poder importante de apreciação. Mas o que confe
re a unidade ao poder executivo é que esses funcionários pertencem a uma
hierarquia e só devem usar seus poderes em co nform idade com as instruções
que recebem.
A submissão dessa administração é o elemento que permite designar o
chefe de Estado e os m inistros co m o “o po der executivo”.Aliás, os próprios ministros são um elemento dessa hierarquia. Eles são,
com efeito, freqüentemente colocados à frente de uma administração espe
cializada, um dep artam ento ministerial, e nesse sentido, devem aplicar as de
cisões tomadas pelo poder executivo supremo, dando as ordens necessárias
aos funcionários que se encontram sob sua autoridade. Em contrapartida,
eles são, às vezes, me m bros desse pod er executivo supre mo qu an do têm o di
reito de se reu nir em conselho e de tom ar decisões coletivamente. Fala-se, en
tão, de desdobramento funcional para ressaltar que o ministro é, simultanea
mente, membro do governo e chefe de serviço e que, na qualidade de chefe
de serviço, ele deve aplicar as decisões tomadas coletivamente pelo governo,
das quais ele participou.
No entanto , existem casos em que a execução das leis escapa ao poder exe
cutivo supremo. Fala-se, nesse caso, de desm embramento do pod er executivo.
3 .0 desmembramento do poder executivo
Essa expressão é na verdade ina dequ ada porq ue ela dá a enten der qu e o
poder execut ivo te ria sido, em um prim eiro m om ento , perf eitamente unif i
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14 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
cado, para em seguida ser dividido. Na verdade, muitas vezes a constituição
ou o legislador desejam garan tir a execução das leis por auto ridade s in de pen
dentes do poder executivo supremo, seja pela desconfiança em relação a ele
ou simplesmente porque se crê necessário preservar em algumas áreas uma
margem de auton om ia. Isso correspo nde a dois casos, a descentralização ter
ritorial e a criação de autoridades administrativas independentes.
a) A descentralização territorial é um procedimento de organização ad
ministrativa. A execução das leis pela produção de normas locais é confiada
não a funcionários que dependem do p oder executivo supremo, mas a auto
ridades eleitas pelos habitantes das circunscrições que elas administram. Adescentralização se revela, dessa forma, como uma forma de auto-adminis-
tração.
As decisões dessas autoridades devem, em todo caso, estar em confor
midade com a lei. Essa conformid ade é garantida pelos tribuna is, pelo governo
ou por u m a com binação das duas esferas. Mas, mesm o q uan do ela é garan
tida pelo governo, este não pod e da r instruções às autoridade s descentraliza
das, como o faz em relação a seus funcionários.
b) As autoridades admin istrativas indep en den tes (cf. C o l l i a r d e T i m s i t ,1988).
Nos sistem as políticos m odernos existe, como vim os, um núm ero cres
cente de áreas nas quais a lei não é capaz de administrar tudo e deve se limi
tar a enu nciar p rincípios, de m odo que os sujeitos fiquem subm issos ou a re
gulam entos, ou a decisões tom adas caso a caso. No Estado tradicional, esses
regulamentos e essas decisões eram adotados pelo poder executivo. Ocorreu
que essa solução poderia apresentar inconvenientes em algumas situações,
seja porq ue se suspeitava que o p od er executivo nã o possuía a im parcialidade necessária nas m atérias relativas a liberdades fu ndam entais, seja po rqu e o
poder execut ivo poderia temer , p or covardia , tom ar decisões difíceis, seja ain
da porque, por preocupações corporativistas, algumas profissões tenham re
clamado e obtido o poder de administrar a si mesmas.
Criaram-se, p ortanto, em vários países, autoridades de nom inadas auto
ridades a dm inistrativas independentes, bem diferentes umas das outras, mas
que apresentam uma característica comum importante: elas não estão sub
metidas à hierarquia administrativa e não recebem ordens do governo. Elas
são comp ostas de mod o a garan tir simultaneam ente a neutralidade e a impa r
cialidade, a competência técnica e a proteção dos interesses dos destinatários
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0 Po d e r 143
das decisões. É po r isso que elas com pree nde m freqü entem ente m agistrados,
membros das profissões envolvidas, representantes dos usuários, das perso
nalidades escolhidas em razão de suas competências ou de seu valor moral.
As técnicas de designação são variadas: eleição po r m em bros de um a profis
são ou de um grupo de magistrados, cooptação, nomeação por autoridades
polí ticas ou combin ação desses procedim ento s.
3.A FUNÇÃO JUDICIÁRIA
A função judiciária consiste em decidir os litígios. O exercício da fun
ção judiciária levanta graves problemas práticos e políticos que se tenta, às
vezes, resolver me dian te discussões teóricas. Qu estiona-se, assim, se a justiça
constitui ou não um terceiro poder para te ntar de duz ir da resposta a essa per
gunta conseqüências pa ra a independência dos juizes ou a autoridade da ju
risprudência.
Para essa questão, não é possível dar respostas porque não existe essên
cia da justiça ou da função judiciária. Apenas pode-se examinar quais concepções da justiça serviram para justificar um ou outro tipo de solução prá
tica e qual é a extensão do poder do qual dispõem, de fato, as autoridades
ju rídic as para essas soluções.
A. Diferentesconcepçõesda funçãojudiciária
1 .0 julgamento-silogismo
Primeiramente, pode-se considerar que a função judiciária consiste em
decid ir litígios, aplicando u ma regra legal geral a um caso particular. O julga
men to se revela, então, com o o p rodu to de um silogismo den om inado “prá
tico”, porque é conduzido em relação à ação, diferentemente do silogismo
“teórico”, que fundamenta o conhecimento. O silogismo teórico leva, a par
tir de uma premissa maior, “todos os hom ens são mo rtais”, e um a premissa
menor, “Sócrates é homem” à conclusão segura “Sócrates é mortal”. As pre
missas, como a conclusão, são proposições. Quando as premissas são verda
deiras, a conclusão é necessariamente verdadeira. O silogismo prático apre
senta uma estrutura idêntica:
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14 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
- premissa maior : “todos os ladrões devem ser pu nido s com cinco anos
de prisão”;
- premissa menor: “Du pon t é um ladrão”;
- conclusão: “D up on t deve ser pun ido com cinco anos de prisão”.
A única diferença é que, nesse caso, a premissa maior e a conclusão não
são proposições, mas prescrições.
Foi a concepção adotada pela Revolução Francesa. Ela ainda é ampla
mente dominante, porque é perfeitamente compatível com o princípio de
mocrático: não há outro poder senão aquele da lei.
Disso resulta que a função judiciária é apenas um a pa rte da função executiva: ela consiste, na verdade, na aplicação da lei. Mas disso não resulta que
a função judiciária deva ser exercida pelo poder executivo, tampouco pelo
poder legislativo. É exata mente o contr ário , as funções devem ser separadas.
Se elas não o fossem, haveria o risco do julga mento não ser a estrita execução
da lei, mas a expressão dos caprichos do legislador ou do executivo. Conside
ra-se, por co nseguinte, que existem dua s funções, a funç ão executiva prop ria
mente dita ou fu nção admin is trativa e a fu nção executiva contenciosa ou fu n
ção judiciária , cada uma delas sendo exercida não por um poder, mas por um a autoridade . Essa terminologia não desapareceu e a constituição de 1958
emp rega a expressão autoridade judiciária.
Está claro que, de acordo com essa concepção, a função judiciária não é
a aplicação de um po der real, pois a premissa m aior se enc ontra de ntro da lei,
enquanto que a premissa menor descreve um fato objetivo. O papel do juiz
consiste, portanto, em apenas deduzir uma conclusão e pode-se dizer, então,
que o poder de julgar é, segundo uma fórmula célebre de Montesquieu, “de
certa maneira, nula”.Disso deco rrem várias conseqüências.
A primeira é que os juizes devem ser independentes. Particularmente,
eles não devem ser revogáveis, nem pelo poder legislativo, nem pelo poder
executivo. Em alguns sistemas, acrescentam-se exigências complementares:
eles não devem obter sua nomeação de um ou de outro, o que significa, na
prá tica, que eles devem ser eleitos ou cooptados; de fo rma se melhante , suas
carreiras não devem depender dos outros poderes.
A segunda conseqüência é que, de forma inversa, os juizes não devem
exercer outras funções senão a função judiciária. Isso coloca um problema
delicado, o da interpretação.
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0 Po d e r 145
2 .0 juiz criador
A teoria do silogismo jurisdicional repousa totalmente na idéia de que
a premissa maior é para o juiz um dado, uma premissa sobre a qual ele não
tem nenhum poder. Mas, na verdade, existem numerosas situações em que
o juiz po de e nc on trar vários textos aplicáveis a um me smo litígio, levando a
diferentes soluções, e outras situações em q ue ele não enc ontra nen hu m tex
to. É tam bé m possível e freqüente que o texto aplicável conten ha vários sen
tidos. Em todos os casos, torna-se necessário fazer escolhas e não mais é ver
dade afirmar que os juizes não dispõem de nenhum poder. Somos levados,ao con trário, a deixar claro que julgar é exercer um real po der de criação do
direito.
Essa concepção, que se difundiu a partir do final do século XIX, impli
ca também um certo número de conseqüências: a função judiciária não mais
é vista como uma variedade de execução, já que, efetivamente, ela não mais
consiste na execução das leis. É uma terceira função, reivindicada em provei
to daqueles que exercem o título de “poder judiciário”. Ela deve ser exercida
por um poder neutro: juizes pro fiss ionais in dependente s. Esse terceiro poder pode servir de contr apeso aos dois outros: ele pode contro lar os ato s do p o
der executivo e até os do poder legislativo.
B.Assoluções
As soluções adotadas nos diferentes sistemas constitucionais são ex
tremamente variáveis e se inspiram em uma ou outra concepção com umrigor variável. Pode-se, simplificando, considerar que a Revolução Francesa
aplicou rigorosamente a concepção do julgamento-silogism o e que as soluções
adotadas posteriormente, na França ou em outros países, nutrem-se dos
dois modelos.
1. As soluções francesas da época revolucionária
Elas se caracterizam pela vontade de especializar o juiz na produção desilogismos. É importante, portanto, que as premissas sejam para ele um da
do sobre o qual ele não terá nenhum controle. Para a premissa menor, que
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146 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
descreve um fato, a solução é simples: não é o juiz, mas um júri, que a esta
belecerá. Q uanto à premissa maio r, a regra geral a ser aplicada é q ue só se p o
de tratar de uma lei, ou seja, de um ato adotado pelo Parlamento. Portanto,
é preciso proceder de modo que o juiz não tenha nenhum controle sobre a
lei. Isso implica duas proibições.
A prim eira se refere às portarias de regulamentos. Tratava-se de decisões
dos Parlamentos do Antigo Regime, que não decidiam um litígio específico,
mas continham o enunciado de uma regra geral e abstrata. A proibição des
sas portarias, que co nstituíam um a imisção no exercício do p od er legislativo,está formulada na lei de 16-24 de agosto de 1790, e novamente no art. 5 do
Código Civil. E, porta nto , contin ua em vigor.
A segunda se refere à interpretação. Sobre esse ponto, um dilema se
apresenta: por um lado, considera-se que a interpre tação das leis lhes pe rm i
te atribuir à vontade este ou aquele significado e, definitivamente, como as
porta ria s de regulamentos, é apen as um a usurpação do poder legislativo. É
por isso que se recusa a idéia de que a j uris prudência possa ser um a fonte do
direito. Mas, po r outr o lado, se o juiz nun ca pu de r interpretar, dado que a lei pode ser obscura , alguns litígios nunca poderão ser resolvidos. A solução, en
genhosa mas de difícil adoção, consistiu em distinguir dois tipos de in terp re
tação. Em p rime iro lugar, é necessário pro ibir rigorosame nte aos juizes qu al
que r interp retação po r via de disposições gerais e abstratas, que eqüivaleriam
a mandados de regulamento. Porém, em segundo lugar, é necessário permi
tir-lhes e até obrigá-los à interpretação da lei, qu an do essa interpretação é ne
cessária a fim de resolver um litígio concreto (interpretação denominada in
concreto). Esse dever está fo rmulad o de forma clara no art. 4 do Código Civil.A dificuldade prové m da existência de um a m ultiplicidade de tribunais,
que p ode m levar ao receio de que u m a lei seja interpretad a de um a form a em
Bordeaux e de outra em Lille. Se organizarmos uma hierarquia de jurisdi
ções, no intuito de garantir, mediante recursos, uma unidade de interpreta
ção, veremos a formação de uma ju risprudência , ou seja, um conjunto de re
gras gerais que emanam dos juizes, exatamente o que se deseja evitar. É por
isso que os revolucionários im aginar am a m edida cautelar legislativa: criou-
se um tribunal de cassação, estabelecido em h arm on ia com o corp o legislati
vo que cassará as decisões assentad as em u m a falsa interpretação da lei e p ro
nunciará uma interpretação in concreto correta. Mas, no caso de divergências
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0 Po d e r 147
repet idas ent re o t r ibunal de cassação e os t r ibunais de segunda instância ,
pre su me-se que u ma in te rp re tação geral , den om inada in abstrato>se torna ne
cessária e, como se trata, nesse caso, de 11111 ato de legislação, é o próprio po
der legislativo que emitirá essa interpretação (HUFTEAU, 1965).
Na prá tica, essa so lução não logrou os re sultad os esp erados. De um la
do, os juizes, apavorados, especialmente durante o período revolucionário,
pela pro ib ição de in te rpretar in abstracto, se abstiveram de interpretar, mes
mo in concreto, o que resultou em verdadeiras denegações de justiça. De ou
tro lado, o processo que deve permitir ao legislador a interpretação da lei é
tão trabalho so qu e ele nun ca chegará ao fim. Foi po r isso que a med ida cau-telar foi definitivamente abolida em 1837. A partir desse m om ento , coube ao
tribunal de cassação dar à lei uma interpretação que se impôs a todos. Con
sidera-se assim o estabelecimento da jurisprud ênc ia com o fonte do direito.
2. As soluções contemporâneas. A teoria do poder judiciário
Dado que a jurisprudência é uma fonte de direito e que os juizes não
mais são conside rados exclusivamente como a autorida de de aplicação da lei,fala-se, às vezes, de um terceiro poder, o poder judiciário. No entanto, se da
mos à expressão um significado não apenas funcional, mas orgânico, pode
mos falar de um real poder judiciário somente mediante um certo número
de condições, que raramente são preenchidas.
Notemos, prim eir am ente , que não é necessár io se ate r aos te rm os em
pregados pelo texto consti tu cio nal. Ocorre , de fato, que um capítulo seja in
titulado “poder judiciário”, como na constituição francesa de 1791, embora
os juizes não disponham de real poder e sejam até mantidos em situação su
bordin ada ou, ao contr ário , quando dispõem de competê ncias bem reais são,
ao mesmo tempo, designados como simples “autoridade judiciária”.
É, portan to, a organização dos tribu nais e a extensão de suas atribuições
que deve ser examinada. Na verdade, é útil distingu ir dois sentidos, bem di
ferentes, da expressão “poder judiciário”
No sentido amplo, a expressão designa simplesm ente a independência e
especialmente a inamovibilidade dos juizes, que podem exercer a função judiciá
ria sob a proteção de qua lquer influência do pod er legislativo ou do po de r exe
cutivo. O essencial é que eles não possam ser destituídos por outros poderes.
Mas podem existir variações consideráveis nos procedimentos de seleção, de
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148 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
nomeação, no avanço ou 110 exercício do poder d isciplinar sobre os juizes. Nos
países de Comm on Law, os juizes são designados de acordo com diversos pro
cedimentos, eleição ou nomeação: eles são escolhidos dentre os juristas já expe
rientes, advogados ou professores de direito, mas eles não formam um grupo
único no seio do qual fariam carreira. Se estamos falando, entretanto, de um
poder judiciário, é em razão de sua independência. Nos países da Europa conti
nental, a independência está diferentemente organizada: existem gru pos de ma
gistrados, recrutados por concurso, com o os ou tros funcionários. Sua carreira se
dá n o seio desses grupos e seu desenvolvimento é adm inistrado po r um conse
lho da magistratura, composto pelo menos em parte po r representantes eleitosdos magistrados. É esse conselho que também exerce o poder disciplinar.
É preciso chamar a atenção para o problema particular do ministério
púb lico . Cham am os assim o conju nto dos magis trados que exercem nota da-
mente processos em matéria penal. Eles reivindicam, às vezes, como na Fran
ça 16, um estatuto an álogo ao do s juizes de investidura e no tada m ente as mes
mas garantias de independência. Esse estatuto lhes é, em geral, reconhecido
som ente q uan do, co mo na Itália, a lei não lhes confere o livre po der de a tuar
ou não os processos. No sentido rest ri to , que tam bém é o sentido forte, fala-se de poder ju
diciário quando ele é concebido como um contra-poder. Isso implica, por
um lado, que, para que os tribunais sejam capazes de fazer con trapeso ao p o
der legislativo, eles possam con trolar a constituciona lidade das leis e, por o u
tro, que a carreira dos m agistrados em nada de pen da d o po der executivo, que
não deve poder nem promovê-los, nem sancioná-los, tampouco a fortíori
destituí-los. Essas duas propo sições pod em , aliás, ser objeto de u m a interp re
tação radical, a primeira para significar que o controle de constitucionalidade não deve ser exercido po r um tribuna l constitucional especializado, com o
em geral ocorre na Europa, mas pelos tribunais ordinários, sob a autoridade
de um tribunal suprem o, e a segunda de m odo que não são apenas os juizes,
mas também as autoridades de processo, os procuradores, que deveriam ser
considerados integrantes do poder judiciário e gozar de total independência.
No entanto , essa idéia de um poder ju dic iá rio no sentido forte dificil
mente é compatível com as teorias democráticas proclamadas por todas as
constituições contemporâneas. Em uma democracia, com efeito, se o poder
16 Cf. infra.
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0 Po d e r 149
legislativo é exercido pelos representantes do povo soberano, é difícil conce
ber que possa existir um contra peso na pessoa de ju izes não eleitos.
4. OS PODERES DE CRISE
Podem ocorrer situações nas quais os poderes constituídos sejam incapa
zes de agir, seja porque eles são mater ialmen te im pedidos por essas circunstân
cias, seja simplesmente porque a lentidão dos processos, o respeito aos direitos
e liberdades fundamentais ou a divisão das competências os impedem . Qu er se
trate de guerras externas ou internas, ou de catástrofes naturais, compreende-
se que se torna difícil e mesmo impossível o respeito à constituição, diante des
sas situações. Pode até m esm o ocorre r que a crise ameace a constituição em si
mesma. Pode-se considerar, então, que é preciso poder agir e decidir rapida
mente fora das formas constitucionais, ou seja, concentrand o por algum tem
po todos os poderes nas mãos de um único indivíduo. É por isso que se pode
escrever que os períodos de crise demanda vam um soberano e, por via de con
seqüência, que esses períodos propiciavam um verdadeiro teste que permitiarevelar aquele que, no Estado, era um verdadeiro soberano: é aquele que “deci
de uma situação excepcional” (SCHMITT, 1988). De um ponto de vista jurídico,
duas situações podem ocorrer: a constituição não contém nenhuma regra re
lativa às circunstâncias excepcionais ou, ao contrário , ela procura organ izar os
poderes permit in do, assim, enfrenta r o problema.
Caso o texto constitucional não contenha nenhuma disposição para
tempos de crise, o próprio legislador pode, se necessário, adotar medidas
apropriadas ou conferir poderes excepcionais a uma autoridade distinta, oexecutivo, um a parte do executivo, o exército. Esses poderes excepcionais ex
cederão aqueles que n orm alm ente são exercidos por essas autoridades e mes
mo o poder atribuído pela constituição ao legislador, se eles encerram, por
exemplo, competências jurídicas. No entanto, justifica-se essa violação da
constituição por um princípio não escrito, salus pop uli suprema lex, a salva
ção do povo - da república ou da constituição - é a lei suprema. Em outros
termos, seria permitido su spender - por um temp o - a constituição, se for o
único meio de salvá-la.Tal solução com po rta du as dificuldades principais: a prime ira está liga
da ao estatuto do princípio salus pop uli..., que evidentemente não é um a n or
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15 0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
ma jurídica positiva. Já que a transferência dos poderes excepcionais é, por
hipótese, desprovida de base legal, o princípio salus popu li... pode ser facil
men te evocado não ape nas pelo órgão legislativo, mas p or qualq uer o utra a u
toridade, por exemplo, pelo exército. Em contrapartida, não há nenhuma
medida objetiva da necessidade de recorrer a essa transferência de com pe tên
cias e pode-se conceb er facilmente que um a auto ridad e qualq uer adote o pre
texto de um perigo imaginário para justificar a usurpação do poder.
A segunda dificuldade se refere às constituições que tentam prever e ad
m inis trar esses tipos de situações. As constituições se vêem dian te de dois ob
jetivos contra ditó rio s: ou te nta m fixar limites aos poderes, por te mere m umuso arbitrário, arriscando po rém prescrever regras que em determ inado m o
mento se revelarão inadequadas; ou privilegiam a eficácia, com o risco inver
so ao uso arb itrário. D iante disso, as técnicas e as regras são extrem am ente va
riadas e podem ser classificadas de acordo com vários eixos, relativamente ao
que elas prevêem quanto à adoção dos poderes de crise, à determinação do
benef ic iá rio e aos poderes que lhe serão conferidos.
a) A adoção
A constituição pod e se abster de definir as circunstâncias que justificam
a adoção desses poderes, porqu e se considera q ue essas circunstâncias são p or
natureza imprevisíveis e que uma definição demasiadamente estrita impedi
ria o seu enfrentamento ou obrigaria a uma violação do direito.
Ela também pode tentar tal definição. As circunstâncias visadas são, en
tão, externas ao sistema constitucional (guerra no exterior, insurreição, catás
trofe natural17), ou internas ao sistema, ou seja, uma paralisia do sistemaconstitucional em si mesmo , ou, com o na França, com o art. 16, um a com bi
nação desses dois fenôme nos.
Quer um a definição conste ou não do texto constitucional, este deve desig
nar a autorid ade com petente para c onstatar oficialmente se as circunstâncias
que justificam a adoção dos poderes se encontram realizadas. Essa autorida
de pode ser, como na França, a mesma que exercerá os poderes excepcionais,
com o risco evidente de uso abusivo. Mas pode se tratar também de uma au
toridade diferente, o Parlamento ou uma jurisdição, neste caso, com duplo
17As novas constituições do Leste Europeu acrescen tam catástrofes ecológicas do tip o Chernobyl.
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0 Po d e r 151
risco: conivência com o beneficiário dos poderes de crise ou, ao con trário, ri
validade com esse beneficiário e a possibilidade de nunca adotá-los.
b) D eterminação do beneficiário
- Pode se tratar de um a autoridade especialmente criada para exercer
esses poderes durante o período de crise (como na ditadura romana) ou de
um a autorid ade instituída, por exemplo, o exército ou um dos poderes púb li
cos constitucionais, freq üen teme nte o chefe de Estado.
c) Os poderes conferidos a essa autoridade , que podem ser definidos quanto:
- A seu objeto (garan tir de todas as formas a cond uta da guerra, a m a
nutenção da ordem ou simplesmente, como na França, adotar as medidas
exigidas pelas circunstâncias) o u à natureza das no rm as que seu deten tor es
tá habilitado a editar: normas de nível legislativo com ou sem possibilidade
de derrog ar à constituição, notad am ente para limitar o exercício dos direitos
e liberdades, norm as adm inistrativas ou até jurídicas, po r derrogação às com petên cias normais .
- Às suas modalidade s de exercício: todos os poderes pod em estar con
centra dos nas mãos de um único sujeito, para serem exercidos sem ne nh um a
formalidade, mas a constituição pode também exigir o respeito a determina
dos procedimentos, notadamente a obrigação de consultar organismos, e até
mesmo de receber seu consentimento.
- Ao prazo dura nte o qual eles pod em ser exercidos. Esse prazo po de ser
fixado pela própria constituição. Ele pode ser estipulado de acordo com avontade do próprio beneficiário ou de um terceiro, seja a autoridade compe
tente para fazer vigorar esses poderes excepcionais, seja alguma outra.
- À decisão e às competências das ou tras auto ridades. A aplicação dos
poderes de crise pode esta r ligada a uma suspensão to ta l da consti tu ição, o
que proíbe os outros poderes públicos constitucionais de se reunir ou, ao
contrário, determina uma convocação imediata desses poderes públicos. No
segund o caso, eles pod em con trolar e sancionar o con teúdo das decisões que
forem tomadas ou a pessoa do autor, dar rumo a suas atividades ordinárias,
ou ainda exercer essas duas funções simultaneamente, controlar e dar rumo
a suas atividades.
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15 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Subseção2
Adesignaçãodosgovernantes:osmodosdeescrutínio
Em se t ra tan do das insti tu ições da democrac ia d i reta , o prob lema da ex
pressão da soberan ia não apresen ta d if iculdade particular. A ún ica ques tão é
a da qual i ficação necessár ia para que o indiv íduo possa par t ic ipar da votação
popu lar , da iniciativa, d o veto o u d o referendo. O p rob lem a é resolvido pela
legislação relativa às condições necessárias para o gozo e o exercício dos di
rei tos polí t icos: idade, sexo, nacion alidade , capac idade intelectual e moral .
Q uan do o povo é chamad o a expressar sua soberan ia p or in t e rmédio derepresentantes , t ra ta-se de f ixar a m anei ra com o estes serão designados. Pro
vavelmente , no espí r i to democ rát ico , um único p roced ime nto é aceitável, é a
eleição. Mas a eleição em si mes m a é suscetível de mo dalida des be m diferen
tes que inf luem no resul tado do escrut ín io e, po r conseguinte , na im po r tân
cia do voto em it ido pelos c idadãos (G o g u e l e D u v e r g e r , 1950).
1. O DIREITO AO VOTO
A extensão do direito ao voto . - Os avanços da idéia de dem ocracia fo
ram marcado s, dura nte o século XIX, pela progressiva extensão do direito ao
voto. Sua atribuição a categorias cada vez mais nu me rosas de indivíduo s foi
objeto central das lutas políticas. Primitivamente reservado a um número
restrito de privilegiados, seja porque ele estava subordinado ao pagamento
do impo sto efetuado pelo cidadão (sufrágio censitário), seja porq ue estava li
gado a determinados títulos ou capacidades intelectuais, ou então, porque,como na Inglaterra, os critérios de sua atribuição dependiam de situações
históricas as mais diversas, o direito de voto foi generalizado somente por
etapas cuja duração foi variável de acordo com os países ( B u r d e a u , t. VI, n.
184 e s.). Consid erando -se que o sufrágio universal foi intro duz ido na Ingla
terra apenas em 1918, que, na França, foi necessário esperar até 1945 para
que as mulheres fossem às urnas, que nos Estados Unidos apenas há pouco
mais de uma década a Suprema Corte e a constituição (24- emenda) proibi
ram as taxas eleitorais (poli taxes) e os testes de seleção que, em certos países,excluíam do esc rutínio até 15% dos cidadãos (os negros) que tinha m só teo
ricamente o direito de voto, pode-se dizer que o sufrágio universal é um a ins
tituição relativamen te recente.
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0 Po d e r 153
Admitido em todas as democracias contemporâneas, ele significa que,
se o exercício do direito de voto pode ser regulamentado, a regulamentação
não pode, em nenhum caso, estar baseada na condição social, na riqueza, na
na raça ou na hereditariedade do indivíduo. No entanto, sem deixar
de ser universal, o voto pode ser indireto , ou seja, ao invés de ser designado
pelo eleitor, são as pró pria s personalidades eleitas pelo sufrág io universa l que
elegem os representantes. Esse voto indireto ou de dois graus é, por exemplo,
aquele utilizado na França a tualmen te, para eleição dos senadores.
2.OS DIFERENTES TIPOS DE ESCRUTÍNIO
A histór ia das inst i tuições elei torais permite dist inguir t rês t ipos de es
crutínios: o escrutínio com plural idade de vozes, o escrutínio majori tár io e o
escrut ín io proporcional (P à SSELECQ, 1995).
A. 0 escrutíniocom pluralidadedevozes (turnoúnico)
É aquele que consiste em proclam ar eleito o cand idato que obteve mais
votos em sua circunscrição. Se existem várias cadeiras a ocupar, serão eleitos
os candidatos que obtiveram mais vozes. No primeiro caso, existe o escrutí
nio un ino m inal (um único ca ndida to a ser eleito), e no segundo, existe o es
crutínio de lista (vários candidatos a serem eleitos embora eles não sejam
obrigados a se filiar para disputar os votos dos eleitores).
Em sua forma uninominal, esse escrutínio é tradição nos países anglo-
saxões. Na Inglaterra, a legislação eleitoral sofreu muitas variações desde aampliação do corpo eleitoral pelo Lorde Grey, em 1832, até as leis de 1884,
estabelecendo o sufrágio universal dos hom ens, e de 1918, introd uzin do o vo
to feminino. Mas o m odo de escrutínio perm aneceu imutável: cada circunscri
ção dispõe de uma sede na qual é eleito o candidato que conseguiu mais vo
zes, independentemente da porcentagem que lhe foi destinada, e mesmo na
ausência de outros concorrentes. Nos Estados Unidos, onde o processo de
eleição é usado pa ra recrutar não apenas os dep utados e senadores, mas tam
bém os juizes e os governantes de Estado, a mesma regra contin ua em vigor:escrutínio uninominal com eleição de pluralidade de vozes. Há somente ex
ceção para o Presidente e o Vice-Presidente dos Estados-Unidos, aos quais a
constituição impõe a reunião de vozes da maioria absoluta dos grandes elei-
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15 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
torcs. O escrutínio m ajoritário com turn o único é aquele també m praticado
na URSS; um segundo turno de escrutínio está previsto apenas para o caso
improvável da maioria absoluta não ser alcançada no primeiro turno.
A França tamb ém conheceu o esc rutínio com p luralidade de vozes, mas
na fo rma de escrutín io de lista, em 1848 e em 1871. O decreto de 5 de m arço
de 1848 que estabeleceu o sufrágio universal dispunha que, na circunscrição
eleitoral formada pelo departamento, seriam eleitos os candidatos que, com
pelo menos 2 mil cédu las, tivessem obtid o o maio r núm ero de votos. A c ons
tituição de 4 de novembro de 1848 conservou o mesmo regime com a dife
rença de que o mínimo de 2 mil vozes foi substituído pelo do oitavo dos inscritos (L. de 15 de maio de 1849). A quantid ade de vozes para cada eleitor era
proporcio nal à quantid ade de deputados a serem eleitos. Ab-rogado pela
constituiçã o de 1851, esse sistema foi recolocado em vigor pelo decre to de 29
de janeiro de 1871.
Servindo-no s desse mo do de escrutínio, cujo exemplo m aior é o anglo-
saxão, invocamos imp ressionantes argum entos. O escrutínio com pluralida
de de vozes, que ob riga as opiniõe s a se agru pare m , garante um grand e eq ui
líbrio aos partidos; força-os a se desligarem da influência dos grupos deinteresse quando estes desejam aliciar uma ampla clientela; desvia-os das
pre ocupações puram ente ideológicas e os leva a apre senta r, e posteriorm en
te aplicar, um pro gram a de realizações práticas por meio das quais o país se
torna melhor do que se ele estivesse relegado às controvérsias dos místicos.
“Nã o há lugar para a ideologia em um partido que somen te pode viver qu an
do tem chances de conseguir a maior ia dos eleitores na ma ioria das circunscri
ções.” Pelo sistema dos dois grandes partidos ao qual conduz necessariamentey
o escrutínio com pluralidad e das vozes garante en fim a coesão e a estabilidade dos governos.
Esse fato se explica porque o escrutínio com um turno incita o eleitor a
“votar útil”, ou seja a dar seu voto ao candidato que, sem responder exata
mente ao que ele almeja, está, entretanto, mais próximo de suas convicções.
Co mo existe som ente um a chance de jogar, o eleitor serve-se dela para afas
tar o candidato que lhe é indesejável. Conscientes dessa atitude psicológica,
as diferentes forças políticas se agrupam de tal maneira que a competição
eleitoral se reduz a um combate entre apenas dois partidos. É assim que o es
crutínio com um turno único leva a uma bipolarização da opinião que en
contra sua expressão no bipartidarismo.
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0 Po d e r 155
Essas vantagens são irrefutáveis, e são condições necessárias para ser ad
quirido de fato um ambiente de lealdade no jogo das instituições representati
vas de modo que a maioria respeite os direitos da minoria e que, de maneira
inversa, esta, em seu combate para ganhar a opinião, utilize apenas as armas
condizentes com o devido respeito às vontades po pulares na forma que lhes foi
proporc io nada pelo voto. Na Inglaterra , após as eleições de 28 de fevereiro de
1974, Wilson formou o ministério graças a um sistema eleitoral majoritário
que, com 37,2% das vozes, deu 301 deputados aos socialistas, enquanto que
com 38,1% dos votos os conservadores obtiveram apenas 296 lugares. É difícil
imaginar os franceses se acomodando a tal ilogismo. É portanto mais que umsistema eleitoral que está em jogo, é o problema fundamental, tanto para a li
berdade política quanto para o fu ncio namento da democracia representativa ,
das relações e dos direitos respectivos da maioria e da minoria (F a v r e , 1976).
B. O escrutínio majoritário (doisturnos de escrutínio)
O escrutínio majoritário repousa na idéia de que a autoridade do eleito é
legítima somente qu and o ela pode se apoiar em um núm ero suficiente de votos. Será exigida, portan to, a maioria absoluta dos votos, calculada seja pelo n ú
mero dos inscritos, seja apenas pelo dos votantes ou votos expressos. No e nt an
to, com o é preciso, po r ou tro lado, chegar a um a designação, atenuam -se após
um determ inado núm ero de turno s as exigências majoritárias, ou porque está
previsto que a parti r de tantos tu rnos sem resultado a eleição será adquir id a
com maioria relativa, ou porque se especifica que somente permanecerão na
disputa os dois candidatos m ais beneficiados no turno anterior.
O esc rutínio m ajoritário se caracteriza, desse mo do, m enos pela exigência de maioria qualificada do que pela pluralidade dos turnos de escrutínio.
Não será estr anho encontr ar na origem desse sistema uma prá tica do direito
canônico, codificada pelo Concilio de Latran: na ausência de unanim idade a re
gra eclesiástica considera que somente a maioria absoluta pode traduzir a
vontade do colégio eleitoral concebido como um corpo autônomo. A Igreja
não é uma sociedade democrática? Mas o que é mais surpreendente, numa
prim eira abord agem, é consta tar que a exigência da maio ria absolu ta , com
seus corolários, o segund o tu rn o e o ballottage (numa eleição com escrutínio
majoritário de dois turnos, resultado negativo em que n enh um dos candida
tos obtém maioria dos votos expressos; segunda votação), foi restabelecida
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15 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
por Luís Nap oleão em 1852, quando a Segunda República a havia afastado
em proveito da maioria relativa. No entanto, essa medida se explica quando
se tem conhecimento de como o Príncipe-Presidente soube explorar as pos
sibilidades oferecidas pelo segundo turno às transações e às pressões oficio
sas. O ballottage se introduziu, dessa forma, nos hábitos eleitorais como um
remédio para o sufrágio universal.
Certamente, com o estabelecimento da República, o ballottage perdeu
esse estatuto an tidem ocrático , mas ele não se despojou de seu caráter de ins
trum en to de exploração do voto em benefício dos partidos. Para estes, o p ri
meiro turno é somente um meio de avaliar suas forças; o que é decisivo é osegundo turn o, e é com esse propósito que, pelo jogo de alianças e desistências,
o corpo eleitoral desorientado corre o risco de designar uma representação
que expresse menos a vontade popular que a dos partidos.
De fato, de nada adianta, entretanto, comparar de forma abstrata os
méritos e os respectivos inconvenientes do escrutínio com um tur no e do es
crutín io com dois turno s. É evidente, com efeito, que se o prime iro é tolerá
vel em um país onde há apenas dois partidos, ele deixa de ser nos casos em
que a multiplicidade dos partidos, responsável pela disseminação dos votos,corre o risco de resultar em eleições nas quais os candidatos eleitos represen
tarão apenas u ma mino ria de votos.
Escrutínio u ninom ina l e escrutínio de lista. - Qua ndo cada circunscrição
elege um único candidato, existe o escrutínio uninominal. Quando ela elege
vários candidatos, existe o escrutínio p lurino m inal e, com o os candida tos dos
diferentes partidos se agrupam por listas, diz-se que existe escrutínio de lista. A
circunscrição eleitoral é naturalmente maior quando há escrutínio de lista,contrariamente cioescrutínio de distrito.
A controvérsia entre os partidá rios de um e outr o sistema é clássica. O
unin om inal perm ite, digamos, ao eleitor conhecer seu candidato e, por con
seguinte, redu zir a influência dos com itês eleitorais. Ao que os adep tos da lis
ta respondem que com o uninominal a eleição acaba em brigas locais nas
quais são esquecidos os grandes interesses do país. O escrutínio de lista ga
rantiria, ao contrário, o enfrentamento das idéias e acabaria com os feudos
eleitorais. “Pode-se env enenar u m copo de água, dizia Lama rtine, mas n ão se
envenena um rio”; um pequeno colégio eleitoral pode ser corrompido de
modo mais fácil. A independência do eleito torna-se, também, mais protegi
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0 Po d e r 157
da pelo escrutínio de lista. Nenhum desses argumentos, em um sentido ou
em outro, parece decisivo, pois o tipo de escrutínio depende essencialmente
dos dados reais da circunscrição. O que se observa no es crutínio u nino min al
em uma circunscrição rural não vale necessariamente para uma circunscri
ção urbana.
Em contrapartida, é fato que o escrutínio de lista agrava a inexatidão da
representação majoritária. Considere-se os três distritos de um departamen
to que conta com 110 mil eleitores e ond e se opõ em o pa rtido X e o partido
Y. No d istr ito A, X consegue 25 mil vozes co nt ra 16 mil de Y; no dis trito B, X
tem 18 mil votos contra 17 mil de Y; no distrito C, Y tem a maioria com 21mil vozes, X obté m som ente 18 mil. Com o escrutínio un ino min al, o partido
X obtém um lugar em A e um lugar em B; mas Y possui um eleito em C. Com
o escrutínio de lista, os três lugares vão para X que tem a maioria (56 mil),
enquanto que Y, com 54 mil votos, não tem nenhum representante.
Panachage e voto preferencial. - Na medida em que a lista dos candida
tos é estabelecida pelos partidos e ao eleitor não é permitido modificá-la (lis
ta fechada), o escrutínio de lista impede a liberdade de escolha. Com efeito,os lugares aos quais a lista dará direito serão atribuídos aos candidatos em
sua orde m de apresentação pela lista. Foi para evitar esse autom atism o q ue se
idealizou o voto preferencial, que perm ite ao eleitor indicar os candid atos aos
quais ele deseja que sejam atribuídos os lugares constantes da lista. Com a
possibil idad e de altera r a ordem de apresentações , a liberdade do eleitor ga
nha aquilo que perde a autoridade do partido.
O reordenamento prático do voto preferencial pode resultar em diver
sos procedimentos. Aquele que foi adotado pela lei de 5 de outubro de 1946,que introduziu o voto preferencial, era o seguinte: os eleitores inscreviam um
núm ero de ordem diante do no me de um , de vários, ou de todos os candida
tos da lista. Nas situações em que o nú m ero das cédulas de voto não mo difi
cadas ultrapassar a metade do total dos votos colhidos po r um a lista, a comis
são de recenseamento atribui os lugares seguindo a ordem da lista como foi
pro posto aos eleitores. Se, ao contr ário , o núm ero das cédulas modif icadas
predomina, a comissão estabelece um a classificação entr e os candidato s con
siderando o número das cédulas nas quais eles receberam o n. 1, o n. 2, o n.
3 etc. O cand ida to que obteve mais vezes o n. 1 (seja no começo da lista não-
retrógrada, seja pelo número que lhe foi atribuído pelos eleitores) é classifi
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cado primeiro, e assim por diante (art. 16). Em caso de empate nessa classi
ficação, o candidato mais velho é proclamado eleito.
Evidentemente o voto preferencial não tem sentido quando se trata de
um escrutínio de lista majoritário já que, de qualquer modo, se a lista tem a
maioria, todos os candidatos da lista serão eleitos. O voto preferencial só é
útil em caso de escrutínio de lista com representação proporcional (vide in
fra). No entanto, quando foi previsto pela lei eleitoral, não foi muito utiliza
do e não alterou a divisão dos lugares.
O panachage é a opera ção q ue consiste, por parte d o eleitor, em riscar
um ou vários nomes de uma lista e substituí-los por nomes de candidatos provin dos de outr as listas, e é ta mbém um procedim ento que perm ite resti
tuir ao eleitor a liberdade de escolher seus candidatos.
C.Arepresentaçãoproporcional
A representação proporcional (R. R) é um modo de sufrágio que tende
a garantir a cada partido uma representação ligada à importância numérica
das vozes que ele conseguiu. Considerand o um dep artam ento que com porte100 mil eleitores e cinco lugares a serem ocupados, dois partidos se apresen
tam: o vermelho, que consegue 60 mil vozes, e o branco, que reúne 40 mil.
Com o escrutínio majoritário, o partido vermelho ganhará todos os lugares:
com a proporcional, o partido branco para o qual se pronunciaram dois
quin tos dos votos terá dois lugares e o p artido vermelho, três. A R. R perm i
tirá, assim, a representação da min oria. Ela supõe o esc rutínio de lista nas cir-
cunscrições que possuem vários lugares a preencher.
Fundamento teórico. - O escrutínio proporcional repousa num a visão teo
ricamente exata que Stuart Mill expunha à Câmara dos Comuns: “Em uma
democracia que aplique realmente o princípio de igualdade, cada tendência
deve ser representada de maneira proporcional. A maioria de eleitores sempre
deve ter a maioria de representantes, mas uma minoria de eleitores deve ter
uma minoria de representantes: homem a homem, eles devem ser tão ampla
mente representados quanto a maioria. Se essa condição não for respeitada,
não há um governo igual, mas um governo de privilégios e desigualdade”.
O fundamento teórico da R. R é, portanto, essencialmente um argu
m ento de justiça, pois somen te ela perm ite rep resentar o país de acordo com
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0 Po d e r 159
todas as diversidades que ele com porta. O sistema ma joritário, ao contrário,
resulta freqüentemente apenas na representação efetiva de uma minoria de
eleitores. Com a R. P. não são apenas os direitos das minorias que são garan
tidos, são tam bém os da verdadeira maioria, pois essa maio ria resulta não de
uma vitória em algumas circunscrições, mas do total dos votos em todas as
circunscrições. Ora, quando os partidos são razoavelmente numerosos, esse
total pode ser considerável e, no entanto, o escrutínio majoritário provoca,
para o parti do que dele dever ia se beneficiar , apenas a obte nção de um n ú
mero de lugares inferior àquele obtido por outros partidos, totalizando me
nos vozes, mas bastante conc entrada s em algumas circunscrições. Nesse caso,ainda, o argum en to de justiça é irrefutável já que a R. R, por si só, garante aos
eleitores a igualdade de seus votos.
Está claro que, em seu princ ípio, a R. R apresenta u m valor indiscutível,
já que ela substi tu i o sistem a majo ritário, no qual a min oria não é nad a, por
uma representação justa. Além disso, ela combina melhor com a própria
idéia do regime representativo, pois ela permite ao Parlamento refletir com
exatidão as diferentes tendências do corpo eleitoral. Finalmente, garantindo
um lugar a cada p artido sério, ela torn a inúteis as alianças que, com o escru tínio m ajoritário u nino min al, desvirtuam o sentido das eleições e conduzem
ao Pa rlamento m aiorias cuja coerência e disciplina n ão sobrevivem ao perío
do eleitoral.
Apenas é preciso observar que a exatidão e a justiça não são as únicas
qualidades que deve apresentar um sistema eleitoral. É necessário, também,
que ele seja eficaz, ou seja, que ele permita a constituição de uma maioria de
governo. Ora, em um país dividido em múltiplas tendências, a R. P. não pre
enche esse requisito. “A bo m ba atô mica é um a arm a incerta com para da a tal procedim ento , que m ata o Estado, subtrain do-lhe to do e qualq uer poder”
(Michel Debré). Ou, se ela autorizar a formação da maioria, isso resultará em
transações en tre os partido s apó s as eleições e, diante disso, retom am os a crí
tica dirigida contra o escrutínio de ballottage, agravado pelo fato que os en
tendimentos dos partidos é realizado após o escrutínio, portanto, fora do
controle dos eleitores (B u r d e a u , t. V, n. 172 e s.).
Israel dá um exemplo esclarecedor das conseqüências que pode produzir
a representação proporcional. O sistema, nesse caso, é de fato levado ao extre
mo, já que o país como um todo form a um a única circunscrição. Basta, po rtan
to, a um partido obte r 2% das vozes para ter direito a um lugar no Parlamento.
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160 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
O resultado é evidentemente um a multiplicação dos partidos, a necessidade de
formar coligações e a possibilidade para os pequenos partidos “conectores”,
aqueles que fornecem com plemento às coligações, de desempenhar uma função
política desproporcional à sua força eleitoral (K l e in , 1997).
Dificuldades de aplicação. - Contra a R. R existe também um a séria obje
ção referente a dificuldades de aplicação. Primeiram ente ela reduz a liberdade de
escolha dos eleitores. Co m efeito, a operação eleitoral se realiza m ediante listas
de candidatos estabelecidas pelos partidos, o eleitor deve aceitar os nomes que
lhe são propostos, pois se este estivesse autorizado a substituí-los por outros, a panacher sua cédula, iríamos ao encontro da própria idéia da R. P., que é tornar
a eleição um debate entre doutrinas e não uma luta entre homens. E o eleitor
poderá, portanto , no máxim o riscar alguns nomes , mas ele não poderá acres
centar outros extraídos de outras listas. Ele está submetido à disciplina do par
tido.
Além disso, a fórmula técnica que garante u m a prop orcion alidad e igual
na distribuição dos lugares é plenamente satisfatória apenas se ela for com
plexa. Ora , to da comple xidade é um vício em matéria eleitora l. Existe de fato uma fórmula simples, a do quociente, mas ela resolve o problema apenas
de form a imperfeita, pois existem sobras.
O quociente. - Três tipos de quocientes pod em ser usados: o quociente
po r circu nscrição, o quocie nte fixo e o quocie nte nac ional.
a) O quociente por circunscrição ou quociente propriamente dito é o
resultado da divisão do núm ero dos votos expressos pelo núm ero dos lugaresa ocupar. Cada lista obtém tantas cadeiras quantas vezes o número de votos
recolhidos contiver o quociente.
b) O quociente fixo, ou número uniforme, é o número de vozes, fixado
pre via mente para o conjunto do te rritório , que cada lista deve possuir para
ter direito a um deputado. Quantas vezes a soma dos votos da lista contiver
esse núm ero, tantos lugares lhe serão atribuído s.
c) O quociente nacional é o resultado da divisão do total dos votos ex
pressos em todas as ci rcunscrições pe lo total dos deputa dos a serem eleitos. O
quociente assim obtido é usado como núm ero uniforme. É o sistema mais jus
to, já que ele permite propo rcionar o n úm ero dos ma ndatos obtidos por p arti
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0 Po d e r 161
do graças à resposta que cada um obteve dos eleitores de todo o país. Mas essa
vantagem é anulada pela lentidão do sistema. Com efeito, só é possível deter
minar o quoc iente nacional me diante os resultados definitivos das eleições.
As sobras. - É praticamente impossível que os procedimentos de divisão
que acabam de ser descritos não deixem sobras, ou seja, votos inutilizados. Su
ponhamos que numa circunscrição onde 100 mil votos dis tr ib uídos entre cin
co listas, A, B, C, D, E, tenha sido utilizado o quoc iente de circunscrição. Vamos
admitir a existência de 5 lugares a serem ocupados. O quociente é: 100 mil / 5
= 20 mil. A lista A com 36 mil vozes terá um depu tado, a lista B com 28 mil vozes terá outro, mas as listas C (19 mil vozes), D (10 mil vozes), E (7 mil vozes)
não terão nenhum. Há 36 mil votos inutilizados e restam três lugares a serem
ocupados. Mede-se, com isso, a importância do problema das sobras.
Várias soluções são concebíveis para utilizá-las.
Geralmente, quando se empregou o quociente de circunscrição, distri
buír am-se as sobras no âm bito da circunsc rição.
Pode-se recorrer ao procedimento de maiores sobras. Ele consiste em
atribu ir os lugares em suspe nso às listas que têm ma ior nú m ero de votos inu tilizados. Retom and o nosso exemplo, os três ma nda tos restantes irão respec
tivam ente para as listas A (36 mil - 20 mil = 16 mil votos restan tes), C (19
mil sobras) e D (10 mil sobreis). Para um escrutínio que pretende ser propor
cional, o resultado não é muito justo, já que a lista B com 28 mil vozes terá
obtido um lugar, como a lista D com 10 mil votos.
É para co rrigir essa injustiça que se imagin ou o proc edim ento da média
mais alta. Cada uma das cadeiras restantes é atribuída à lista para a qual a di
visão do número de votos obtidos pelo número de cadeiras atribuídas mais um der o quociente maior.
Retom emo s o exemplo anterior. O cálculo da média mais alta dá os re
sultado s a seguir:
Lista A, 36 mil / 2 (1 lugar ocupa do + 1 acrescentado hipoteticam ente)
= 18 mil; lista B, 28 mil / 2 (1 lugar ocup ad o + 1 acrescentado) = 14 mil; lis
ta C, 19 mil / 1 (1 lugar acrescen tado hip otet icam ente ) = 19 mil; lista D, 10
mil / 1 = 10 mil; lista E, 7 mil / 1 = 7 mil. A lista C tem o m aio r nú m ero de
sobras e a ela será atribuído um dos lugares restantes e recomeçar-se-á a op e
ração para os dois lugares dividindo, desta vez, os votos da lista C por 2, já
que ela acaba de obte r um lugar. Ê a lista A que obterá um lugar a mais. O ú l
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16 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
timo irá para a lista B que, considerando-se as duas distribuições anteriores,
terá o número maior de sobras.
O sistema de H ond t . - Existe um p rocedim ento que permite determinar,
mediante uma única operação, o número total dos lugares que devem ser
atribuídos a cada lista. É o sistema idealizado pelo matemático Hondt, e que
é usado na Bélgica.
Divide-se sucessivamente por 1, 2, 3, 4, 5..., o número de vozes obtidas
em cada lista e ordenam-se os quocientes na ordem de importância até atin
gir a quantia de um número total de quocientes igual ao número de lugaresa serem atribuídos. O último quociente (o men or) cham a-se núm ero divisor
e serve de divisor eleitoral. Cada lista recebe tantas cadeiras quantas vezes o
seu nú m ero de votos contiver o valor do divisor.
Considerando seis lugares a serem ocupados e três listas: A (23 mil vo
zes), B (20400 vozes), C (16600 vozes). A divisão p or 1 dá: A = 23 mil, B =
20400, C = 16600; a divisão por 2 dá: A = 11500, B = 10200, C = 8300; a di
visão por 3 dá: A = 7665, B = 6800, C= 5533.
A classificação dos quocientes fica assim estabelecida: 23 mil, 20400, 16mil, 11500,10 200,8300, 7665,6800, 5533. O nú mero divisor é 8300, já que ele
é o sexto da classificação e que existem seis lugares a serem ocupados. Eles são
assim atribuídos: A obtém 23 mil / 8,3 mil = 2 lugares; B obtém 20,4 mil / 8,3
mil = 2 lugares; C obtém 16,6 mil / 8,3 mil = 2 lugares.
A representação proporcional “person alizada”. - É o sistema que é aplica
do na Alemanha Federal. O Bundestag compreende atualmente 662 deputa
dos. A R.F.A. está dividida em 328 circunscrições; cada eleitor dispõe de duascédulas de voto. Com a primeira ele vota para um candid ato de sua circunscri
ção; a eleição ocorre com escrutínio u nino m ina l em um só turno. Assim, são
ocupados os “lugares diretos”, que correspondem apenas à metade dos man
datos parlamentares. A segunda cédula de voto de que dispõe o eleitor é re
digida por ele, nome por nome de candidato, mas em nome de um partido.
Este segundo sufrágio permite calcular de forma proporcional o número de
lugares que deve obter cada p artido. Esses lugares são ocu pado s p or perso na
lidades cujo nome consta das listas estabelecidas, em cada Land> pelos parti
dos políticos. As atribuições dos manda tos nessas listas foram efetua das de tal
forma q ue cada pa rtido dispõe, entre lugares diretos e mand atos de lista adi
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0 Po d e r 163
cionados, do número de eleitos que lhe voltaria de acordo com uma distri
buição proporcio nal pela média mais alta.
Com o p ode acontecer que um partido receba mais lugares diretos do que
poderia ter de mandatos pelo jogo da representação proporcional , a lei prevê que
ele conserve todos os lugares que obteve pelo voto personalizado e, para que a
proporcional ocorra, cr iam-se lugares para servir os part idos que têm direito
conforme os resultados da segunda votação. Portanto, o número de deputados
no Bundestcig não é fixo; ele depende dos resultados do dup lo escrutínio. Nas elei
ções de 2 de dezembro de 1990, a C.D.U. obteve, desse modo, seis lugares a mais.
Esse sistema tem a vantagem de permitir aos partidos colocar no Bun- destag personalidades que repudiam a deterioração de um a cam panh a eleito
ral, ou especialistas cujos eleitores correriam o risco de desconhecer o valor.
A intenção de favorecer as grandes formações políticas provém das disposi
ções da lei eleitoral (várias vezes enrijecidas desde 1949) que, para evitar que
as forças de dissipem, estipula que só têm direito à representação p rop orc io
nal os partidos que obtiveram pelo menos 5% das vozes no âmbito nacional
ou que conseguiram, no mínimo, três lugares diretos.
As eleições parciais não existem na R.F.A. Quand o um lugar fica vago, ele éocupado por uma personalidade que consta da lista do partido ao qual perten
cia o deputad o a ser substituído, mesmo que este tenha tido u m ma nda to direto.
Existem, de fato, outros sistemas de representação proporcional que
não podem ser analisados aqui. Mencionaremos, entretanto, aquele que é
usado na Irlanda (voto único transferível ou sistema de Hare, do nom e de seu
inventor) que, garantindo a justiça da representação proporcional, permite
evitar os inconvenientes desse mo do d e escrutínio co mo ele foi praticado na
Europa continental.
Seção4Asjustificativasdopoder
A divisão das competências que acabamos de examinar se fundamenta
prim eir am ente em razões pol ít icas e técnicas . Esforça-se para atribuir a to ta
lidade ou alguma parcela do poder a um ou outro grupo. Adota-se ou rejei-
ta-se uma ou outra regra, porque se considera que ela contribuirá para um
funcionamento eficaz. Em outras palavras, as constituições são feitas de acor
do com uma lógica sobretudo instrumental. Tal lógica é entretanto insufici
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16 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
ente quando se deseja não apenas organizar o poder, mas também torná-lo
aceitável e é preciso, ainda, m ostra r que a organização ado tada não é apenas
eficaz, mas também que ela é justa.
Natura lm ente , a just if icação só pode ser convincente quando as solu
ções adotadas se revelam deduzidas de alguns princípios incontestáveis. É por
isso que os princípios são na maioria das vezes apresentados no início dos
textos constitucionais antes do enun ciado das regras que supo stam ente deles
decorrem . Mas n ão se deve esquecer que eles têm sido, na verdade, descob er
tos como evidências, mas forjados a posteriori. Aliás, é o que explica que os
próprios princíp ios (por exem plo , o da soberania nacional ou da soberania popula r) possam apresenta r sentidos bem diferentes de acord o com as cons
tituições nas qua is eles estão inseridos e as regras que eles têm po r função ju s
tificar.
À questão fu ndam ental “com o se pode funda me ntar o direito de alguns
hom ens de governar outros? ”, que em termo s sociológicos se de no m ina tam
bém de questã o de legitimidade, existe, na verdade, apenas um pequeno nú
mero de respostas possíveis. Pode-se sustentar que aqueles que governam
têm o direito de coma nda r porqu e eles pertencem a um a natureza diferentedos outros homens, por exemplo porque eles são divinos. Ou então, pode-se
afirmar que eles são homens como os outros, mas que eles foram escolhidos
por uma auto ridade incontestável , Deus, o povo ou a nação, que delegou um
poder do qual ela é o verd adeiro ti tu la r e determ inou que seus govern ante s
fossem obedecidos. Obedecendo-lhes, conseqüentemente obedecer-se-á a es
sa autoridade. O primeiro tipo de justificação é mais freqüente nas socieda
des antigas, o segundo nas sociedades modernas. Aliás, ele se realiza de várias
formas, pois cada uma dessas teorias deve responder a duas questões: a primeira se refere à natureza da união entre a autoridade do poder e os gover
nantes; a outra, à naturez a dessa autorida de em si mesma.
À primeira questão as monarquias tradicionais davam uma resposta
simples: Deus era a fonte do p od er e ele designava um ho m em ou um a fam í
lia para exercê-lo como ele o concebia. O poder era legitimado apenas pelo
modo de designação daqueles que o exerciam. Ele não o era em seu conteú
do. O constitucionalismo traz uma resposta diferente: a legitimidade não
provém da maneir a como os govern antes fo ram designados, mas de algo cu
ja vonta de eles têm de expressar, que não é a sua vontade. Em outr as palavras,
qualquer que seja a maneira como foram escolhidos, cada uma de suas deci
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0 Po d e r 165
sões é justificada porque ela não é a sua decisão, mas aquela do legítimo titu
lar do poder que eles representam.
A segunda questão se refere à natureza desse legítimo titular, a que se
denomina soberano.
1 .A REPRESENTAÇÃO
A.Ateoriada representação
1. A noção de representação
Na linguagem comum , fala-se de representação quando um obje to pos
sui algumas características principais semelhantes às de outro objeto, de tal
modo que se possa reconhecer essa semelhança e identificar o primeiro co
mo um a imagem do segundo. Diz-se que ele torn a presente esse segund o ob
jeto, que ele o re-presenta. Por exemplo, uma imagem pictórica em relação a
um objeto físico ou os atores que representam um a peça de teatro. O que caracteriza essa representação é que se pode a qualquer momento comparar a
representação ao ob jeto rep resentado - ou à idéia que se faz dele - e julgar se
a representação é fiel ou exata.
O direito utiliza essa metáfora para ilustrar e designar uma relação entre
duas pessoas18. Assim, adm ite-se no direito privad o que um a pessoa represen
te um a o utra, qu and o ela pode desejar e agir em seu lugar e em seu nome . Ela
é o representante, a outra é o representado. A representação pode resultar, nes
se caso, da vontade d o representado, que outorg a um mandato ao representante, ou da lei, como, por exemplo, no caso da representação de menores.
É portanto compreensível que os governantes também se sirvam dessa
con strução e justifiquem o po de r que eles exercem apresen tando -se como re
pre senta nte s de seu legít im o titu la r, o sobera no, que pode ser o povo, a nação
ou qualquer outra entidade. Esse tipo de justificação, que não é de modo al
gum ligado à democracia representativa, é hoje universalmente difundido e
utilizado, inclusive nas m ais horríveis ditaduras. O pró prio Hitler se apresen
tava como o representante do espírito do povo alemão.
18 Cf. Miaille, art. “Représentation”, in Dictionmirc d’Éguilles.
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16 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Todas as doutrinas da representação obedecem ao seguinte esquema:
existe um soberano, distinto dos governantes, mas que não pode exercer por
si mesmo o poder, a soberania. Ele também não pode transferi-la a outro,
porque deixar ia de ser soberano - é nesse sentido que se diz que a soberania
é inalienável. Estabelece-se, por tanto , um a distinção e ntre a essência ou p rin
cípio da soberania e seu exercício. A essência da soberania permanece no so
bera no, a nação ou o povo, e seu exercício pode ser delegado a representa n
tes. É o que proclam am vários textos e notad am ente o art. 3o da Declaração
dos Direitos do Ho me m de 1789: “O princípio de toda sob erania reside essen
cialmente na nação ”. Fórm ula retomada e desenvolvida n os arts. I o e 2o do título III da constituição de 179119, e que inspirou a maioria das constituições
francesas posteriores, inclusive a de 1958.
Constata-se entretanto que a teoria da representação, tal como ela é
concebida no direito privado, levanta alguma s dificuldades e não p ode ser in
tegralmente transposta ao direito público.
2. Dificuldades da teoria da representação
Elas dizem respeito à impossibilidade de representar a vontade. Jean-
Jacques Rousseau colocou perfeitamente em evidência essa impossibilidade
med iante u m esquem a simples, já expo sto20.
Ressaltamos também o paradoxo da representação. Se o representante
expressa uma vontade que coincide exatamente com aquela do representado,
então essa vontade não é representada, mas apenas expressa por meio de ou
tro homem. Mas se o representante expressa uma vontade que não coincide
com aquela do representado, como se pode ainda dizer que ele o representa
( P i tk i n d s. P e n n o c k - C i i ap m a n , 1968, p. 38 e s.)?
O utra causa de perplexidade refere-se à dificuldade de trans por essa teo
ria para o direito público.
19 “Art. Io. A Soberania é un a, indivisível, inalienável e impresc ritível. Ela perten ce à nação; ne
nhu ma seção do povo, tamp ouco nenh um indivíduo, pode se atribuir o exercício dela.Art. 2o. A nação, da qual exclusivamente emanam todos os poderes, só pode exercê-los por delegação. A constituição francesa é representativa: os representantes são o corpo legislativo eo rei.”20 Cf. supra, p. 85.
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0 Po d e r 167
3. Especificidade da teoria da representação no direito público
A prime ira e mais importan te particularidade da representação no d i
reito público é que não há, nesse caso, com o no direito privado, duas pessoas.
Só existe representação quando há uma pessoa representável, detentora de
uma vontade com a qual o representante deve estar em conformidade e a
quem ele deverá prestar contas. Ora, nesse caso, de um lado, o representan
te, ou seja, aquele que exerce a soberania, a autoridade legislativa, não é
uma pessoa, já que ela é composta de indivíduos que mudam em interva
los mais ou menos regulares e que não é a ela, mas ao Estado, que são im putados esses atos. De outro lado, o representado, o soberano, também não
é uma pessoa, já que ele não tem outra vontade senão aquela expressa pe
los representantes. Pode-se até afirmar que o representado, o povo ou a n a
ção, só existe a partir do m om en to em que um a vontad e é expressa em seu
nome , ou seja, a par tir do m om en to em que ele é representado. O represen
tado não cria o representante. Ao contrário, é ele que é constituído pela re
presentação (C a r r é d e M a l b e r g , 1922, especialmente t. II, p. 227 e s.; Ja u m e ,
1986).
4. Teoria da soberania e teoria do órgão
É por isso que uma corrente doutrinária importante, representada na
França por Raymond Carré de Malberg, considera que não se trata de uma
legítima representação. Ressalta-se no tada me nte que se trata, antes de tudo,
de dar conta de um fenômeno político: a vontade expressa por alguns ho
mens não precisa ser a sua vontade, m as a do soberano. Ora, po r todas as ra
zões que acabamos de expor, efetivamente não damos conta desse fenômeno
mediante a teoria da representação. Daremos melhor conta com a ajuda de
uma teoria do órgão: existe um ente, o soberano ou o Estado, que como um
ho me m, deseja e age med iante seus órgãos. Da mesm a forma que as palavras
que saem da boca de u m h om em a ele são imputad as, igualmente os atos que
ema nam do governo ou do Parlamento são impu tados ao Estado. Do mesmo
modo que não se afirma que uma boca representa um homem, não se deve
dizer que o Parlamento representa o soberano. Ele é seu órgão. O soberano
não p ode ter ou tra vo ntade senão aquela que seu órgão expressa e pode-se di
zer até que ele só existe porque possui órgãos.
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168 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Essa do utri na é incontestavelmente mais coerente do que uma teoria da
representação intempestivamente im port ada tal qual do direito privado. No
entanto, é preciso ressaltar alguns pontos importantes.
A teoria da representação é precisamente diferente no direito público e não
é a transposição pura e simples do direito privado. Muito pelo contrário, na m e
dida em que ela afirma que o soberano só pode expressar-se por seus represen
tantes, ela é idêntica, exceto nas palavras, à teoria que afirma que o Parlamento
não é o representante, mas o órgão do soberano. A partir do mo me nto em que a
palavra “representante” é util izada em um sentido específico, equivalente ao de
“órgão”, não há nenhum interesse em substituir uma palavra pela outra.Haveria até m esm o alguns inconvenientes , caso isso fosse feito. A teoria
da representação, na verdade, não preenche totalmente a mesma função po
lítica que aquela do órgão. Esta admite que todos aqueles cujos atos são re
portados ao Estado são seus órgãos : o Parlamento, mas também o governo
ou os funcionários. Ao contrário, de acordo co m a teoria da representação, o
representan te é apenas aquele que pode exercer a soberania, ou seja, expressar
a vontade do soberano; é o legislador. As outras autoridades não são repre
sentantes. A teoria da representação permite, assim, ressaltar a hierarquia dasfunções e legitimar apenas o exercício da função legislativa.
Em terceiro lugar, a teoria que é eficaz, aquela que na prática é utiliza
da nos sistemas políticos modernos para justificar a divisão das competên
cias, é a teoria da representação. Isso não tem nada de surpreendente. Dizer
que o Pa rlamen to é um órgão só justifica seu po de r se o ente, do qual se afir
ma q ue ele é órgão, possui um po der incontestado. Ora, dizer que ele é órgão
do Estado não é de mo do algum um a justificativa, porq ue resta ainda justifi
car que se deve obedecer ao Estado. Ao contrário, a teoria da representaçãoremete a um ente, a nação ou o povo, cuja autoridade é admitida co mo uma
evidência.
Finalmente, a teoria da representação não serve apenas para justificar o
poder do legislador; ela serve também para justi fi car um determinado n úm e
ro de regras específicas relativas ao mandato.
B. 0 mandato representativoO mandato é a relação entre o representante e o representado. Diz-se
que o representante recebeu e exerce um mandato.
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0 Po d e r 169
1 .0 objeto do mandato
O objeto do man dato , aquilo que é transferido ao representante, é o exer
cício da soberania. Não se trata port anto de todas as funções jurídicas do Esta
do, mas apenas da função legislativa. É com efeito a lei que, nos termos do art.
6o da Declaração dos Direitos do Homem, é “a expressão da vontade geral”, ou
seja, da vontade do soberano. Seguem-se duas conseqüências importantes.
Em primeiro lugar, segundo essa teoria, apenas as autoridades legislati
vas são representantes e não as autoridades executivas ou judiciárias. Com
efeito, se a função consiste na execução da vontade do soberano, aquele quea exerce não pode ser o próprio soberano ou seu representante. Ele encontra
sua legitimidade precisamente no fato de que ele executa a vontade geral.
Mas, em contrapartida, todas as autoridades legislativas devem ser represen
tantes . É por isso que a const itu ição francesa de 1791 declarava que <(os repre
sentantes são o corpo legislativo e o Rei”21. É necessário ressaltar que o rei
não é representante em sua qualidade de chefe do Estado ou de chefe do po
der executivo, mas apen as po rque ele participa com seu veto do exercício do
poder legislativo.Em segundo lugar, como mostra claramente o caso do rei em 1791, a
qualidade de representante é totalmente indepen dente do mo do de designa
ção. Ela não é notadamente ligada à eleição. De acordo com essa teoria, são
representantes todos aqueles cujo consentimento é necessário para a forma
ção da lei, todos aqueles que têm uma parte no poder legislativo. Assim, as
câmaras do Parlamento, independentemente da maneira como são designa
das, o po der executivo qua nd o dispõe seja do m ono póli o da iniciativa seja de
um direito de veto, e, de acordo com algumas teorias, um órgão de controleda co nstitucionalid ade das leis.
2. As características do mandato
Elas decorrem do que foi dito anteriormente.
a) Caráter coletivo do mandato
21 Título III, art. 2°.
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170 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Co m efeito, o man da to n ão é exercido po r um a pessoa individualizada,
mas p or um a autorid ade. No caso de uma Assembléia, por exemplo, não é re
almente o deputado que é um representante, mas toda a Assembléia. Dificil
mente isso poderia ser diferente, pois um deputado pode se achar na mino
ria. Se ele fosse representante, seria necessário, então, compreender porque
ele deixa, nesse caso, de expressar a vontade geral. Ao contrário, se o repre
sentante é a Assembléia, cada um dos depu tado s que a com põe m expressa sua
vontade própria ou a idéia que ele tem da vontade geral e esta resulta apenas
do processo legislativo.
Desse modo , qua nd o se diz, como às vezes ocorre, que o dep utad o é re presenta nte, essa pa lavra revela um outro sentido : significa, em síntese, que o
deputado é membro de uma Assembléia que em si mesma tem a qualidade
de representante.
Se o deputado, considerado individualmente, não é o representante do
soberano, ele não pode evidentemente ser o representante de sua circunscri
ção ou d aqueles que vo taram em seu favor. Estes o designara m, mas não lhe
puderam confi ar o exercício da soberania , que não lhes pe rtence, já que ele
só pertence ao soberano. Essa idéia é expressa na constituição de 1791: “Osrepresentantes nomeados nos departamentos não serão representantes de
um departamento particular, mas de toda a nação”, disposição encontrada
em um grande número de constituições22.
Daí algumas vezes se extraiu a conseqüência de q ue o destino dos d ep u
tados não deve ser afetado pelo da circunscrição na qual eles foram eleitos. As
sim, em 1871, quando a França cedeu à Alemanha os departamentos da Alsá-
cia e de Lorena, os deputados desses departamentos permaneceram em suas
funções e só deixaram a Assembléia depois de terem ped ido demissão por in iciativa própria .
No entanto , em 1962, quando a Argélia se tornou independente, ado
tou-se uma solução diferente: foi dado fim, por disposição legislativa, ao
ma nd ato de parlam entares franceses eleitos nos dep artam ento s argelinos. Es
sa solução foi forteme nte criticada e consid erada po r grande parte da dou tri
na como um atentado ao princípio. Ela pode, entretanto, ser justificada de
forma b astante simples à luz da teoria da representação. O titular da so bera
22 Constituição francesa de 1791, título III, cap. 1, seção 3, art. 7o; constituição do ano III, art.52; Constituição de 1848, art. 34.
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0 Po d e r 171
nia confia seu exercício a representantes . A designação dos representante s, ou
seja, das autoridades legislativas, resulta da constituição. No entanto, quanto
ao modo de designação dos indivíduos que compõem essas autoridades,
quando ele pode resultar também da constituição, pode também provir de
outra s fontes. Na prática, ele decorre freqüe nteme nte da lei, já que, na Fran
ça, por exemplo, é uma lei que determina o modo de escrutínio. Com efeito,
o soberano não tem outra vontade senão aquela que expressa o legislador. O
ato mediante o qual ele confia um mandato representativo é a expressão da
vonta de geral. É um a lei. Assim, uma lei pode pe rfeitamen te decidir nu m sen
tido em 1871 e em sentido inverso em 1962.
b) Proibição do mandato imperativo
O m anda to imperativo seria um man dato análogo ao manda to de direi
to privado, o qual seria confiado pelos eleitores aos eleitos e que teria como
conseqüência pa ra estes a obrigação de se confor mar co m as instruções rece
bidas, prestando conta s e sendo responsáveis em relação a seus eleitores. O
ma nda to imperativo foi formalmente proibido pela maioria das constituiçõesfrancesas e implicitamente por todas. Essa proibição se explica naturalmente
e decorre do fato de que o deputa do não é o representante de sua circunscri
ção, mas, juntamente com seus colegas, o de toda a nação e de todo o povo.
Politicamente, ela se justifica também de várias maneiras: a maior com
petência dos eleitos, as vantagens de uma decisão que se alcançou ao final de
uma deliberação, a liberdade dos eleitos em relação aos grupos e aos partidos.
É o que Co ndorcet explicava de forma clara à Convenção: “Manda tário d o p o
vo, eu farei aquilo que acredita r estar em conformid ade com seus interesses. Eleme enviou para expor minhas idéias, não as suas; a independência absoluta de
minhas opiniões está em prim eiro plano nos meu s deveres em relação a ele”.
O de put ado é, desse modo, irresponsável. Ele não tem de p restar contas
a ninguém e não é pressionado por nenhuma obrigação em relação a seus
eleitores. As promessas eleitorais em si mesmas estão desprovidas de qual
quer valor jurídico. Disso resulta a nulidade da demissão em branco que os
candidatos às eleições remetem, às vezes, a comitês eleitorais ou a seus parti
dos, para que estes a enviem ao presidente da Assembléia na hipótese em que
estes considerem que o mandato foi violado. Diante de tais cartas, os presi
dentes das assembléias tomarão as medidas cabíveis.
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17 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Ao contrário, as democracias do tipo marxista, que denunciavam a mis
tificação existente no conceito de soberania nacional, descartavam tam bém o
ma nd ato representativo. O art. 4o da antiga constituição checoslovaca dispu
nha o seguinte: uO povo s obera no exerce os poderes do Estado m ediante c or
pos de re presentante s que são eleitos pe lo povo, controlados pelo povo e res
ponsáveis perante o povo”
C.Significação modernade governo representativo
a) Governo representativo e democracia
A teoria clássica das formas de governo distinguia a m ona rqu ia, a aris
tocracia e a democracia. A teoria da representação permite justificar qual
quer uma dessas formas, pois pode-se perfeitamente admitir que o povo so
berano exerça em si mesmo a sobera nia ; nesse caso, o govern o será
democrático, ainda que delegue esse exercício a um rei ou aos melhores. Per
cebe-se que a democracia se promove somente no primeiro caso e que, de
acordo com essa concepção, o sistema representativo moderno não é uma
democracia, mas um a aristocracia, já que o po der co ntem porâ neo é delega
do a um Parlamento. Aliás, cabe ressaltar que nem a constituição americana
de 1787, nem a constituição francesa de 1791 foram apresentadas como
constituições democráticas. Como era embaraçoso designá-las como cons
tituições aristocráticas, a primeira se denom inava um a constituição republi
cana e a segunda ora c omo mista >ora, de forma tautológica, com o represen
tativa.
No entanto, a evolução dos sistemas polí ticos levou a reconsiderar esse
esquema, em razão de dois fenômenos principais, aliás intimamente ligados:
o aparecimento do sufrágio universal e a concentração do poder legislativo
nas câmaras eleitas em detrim ento do chefe de Estado e das câmaras here di
tárias. A partir do final do século XIX, na maioria dos Estados, a lei tem como
autor principal ou exclusivo uma ou duas câmaras oriundas direta ou indire
tamente do sufrágio universal. Nessas condições, a teoria da representação le
vou a justificar o poder dos parlamentos tentando relacioná-lo não mais àaristocracia ou ao governo misto, mas à democracia.
A tese dominante atual é, portanto, a de que a democracia comporta
duas variações: a democracia direta e a democracia representativa. A demo
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0 Po d e r 173
cracia direta é o sistema no qual o povo exerce por si mesmo a soberania. Al
guns e nten dem que isso apresen ta alguns inconvenientes, ligados ao risco de
demagogia ou à incompetência do povo. De qualquer forma, isso é imprati
cável nos grandes Estados modernos. Assim, o povo delega o exercício da so
berania a homens que escolhe para represen tá-lo . Portanto, o regime re pre
sentativo é de fato, um tipo de democracia, já que está associado à eleição
pelo suf rágio universal.
Essa tese é atribuída a Montesquieu. “A maior vantagem dos represen
tantes - ele escreve - é que são capazes de falar de negócios. O povo não está
de forma alguma apto a isso, o que representa um dos grandes inconvenientes da democracia... Havia um grande vício na maioria das antigas
cas: o povo tinha o direito de tom ar decisões ativas, o que d em and a algum es
forço, coisa da qual ele é totalm ente incapaz. Ele só deve ingressar no governo
para escolher seus represen tante s, o que está de fato a seu alcance. Pois, se há
poucas pessoas que conhecem o verdadeiro grau da capacidade dos homens,
cada um é, entretanto, capaz de saber, em geral, se o escolhido é mais escla
recido do que a maioria.”23
Ela é bastante criticada por vários autores, posteriores a Jean-JacquesRousseau. O argumento é simples: na democracia representativa, o povo se
limita a escolher representantes, mas ele lhes transfere o exercício da sobera
nia. Uma vez feita a escolha, é a vonta de do s representan tes qu e faz a lei e não
a vontade d o povo. “Toda lei que o Povo não ratificou pesso almente - escre
ve Rousseau - é nula; não é mais um a lei. O povo da Ingla terra pensa ser li
vre; ele está m uito enganado, ele o é somente d ura nte a eleição dos me mb ros
do Parlamento; assim que estes são eleitos, torna-se escravo, torna-se nada.
Nos raros momentos de liberdade, o uso que dela faz mostra que bem merece perdê-la.”24 Existe, portanto, apenas uma ilusão de democracia.
Tanto uma como outra concepção negligenciam, entretanto, um ele
men to essencial: os eleitores não mais escolhem atu alme nte os depu tado s de
pois de terem feito um simples julgamento das capacidades respec tivas des
ses candidatos. A eleição não é u m tipo de exa me profissional e a escolha não
se fundamenta nas competências técnicas, mas nas orientações políticas. Os
candidatos se apresentam com um programa ou, pelo menos, sob a égide de
23 Do espírito das leis, Livro XI, ca p. 6.24 Do contrato social> Livro III, cap. 15, “Dos deputados ou representantes”.
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17 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
um partido. O que os eleitores escolhem é, portanto, mais uma política do
que homens (B i r n b a u m , H a m o n , T r o p e r , 1977).
A essa influência do corpo eleitoral mediante a escolha dos programas,
acrescenta-se aquela que pode ser exercida no intervalo entre duas eleições
pelos contato s que o eleito pode manter com os elei tores ou pelas pesquisas
de opinião. Mesmo com um mandato representativo, mas submetidos à reelei
ção, os deputados e os partidos estão, na verdade, submetidos a um controle
difuso, mas permanente.
b) A qualidade de representante
A teoria da representação teve como função exclusiva, em sua origem,
ou seja, du ra nt e a Revolução, justificar a posteriori o exercício do pode r legis
lativo. Foi a razão pela qual a qualidade de representante era completamente
independente do m od o de designação. O debate que fund ame ntou essa ques
tão oc orre u em 10 de agosto de 1791. Ele opôs Barnave a Robespierre e Roe-
derer. Estes sustentavam que somente o corpo legislativo eleito poderia estar
qualificado c om o rep resentante. Barnave, ao contrário, de fendia a tese de queo representan te era aquele que contribu ía para a expressão da vontade geral,
como ocorria com o rei em razão de seu direito de veto. O fato de o debate
ter ocorrido em 1791 mostra que ninguém procurava, partindo de princí
pios , deduzir regras de divisão das competência s.
Foi a tese de Barnave que venceu e se impôs, não apenas para a consti
tuição de 1791, mas tam bém no curso da história constitucional francesa. Foi
assim que o direito público da Terceira República reconheceu a qualidade de
representante apenas ao parlamento, não porque ele era eleito, mas porqueera a única autoridade legislativa.
No enta nto vários fatores contr ib uíram para mudar os dados do prob le
ma. O primeiro é essa dupla característica do parlamento, ao mesmo tempo po
der legislativo e eleito. O segundo é o novo papel des empen hado pelo princíp io,
um a vez que foi admitido . Ele serve para justificar toda lei que se apresenta, com
efeito, como a expressão da vontade coletiva. Mas ele pode servir também para
justificar porq ue se atr ibuiu o poder legislativo a tal órgão e não a outro. Em
1791 podia-se dizer: “se um órgão é legislativo, então ele é representante”. Pre-
tende-se de agora em diante p oder dizer: “Ele é representante , então deve ser le
gislador”. Mas para poder desempenhar esse novo papel, o princípio deve evi
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0 Po d e r 175
dentemente ser modificado. É preciso naturalmente dispor de outro critério
além da participação no pod er legislativo para afirmar a qualidade de represen
tante. Esse outro critério será a eleição. E isso tão naturalmente de forma que a
teoria da representação deve se combinar com o princípio democrático: é pre
ciso que aquele que foi eleito pelo povo seja seu representante e que ele exerça a
mais alta função. O terceiro fator é o novo papel desemp enha do pelo pode r exe
cutivo2"'. A partir do momento em que ele não se limita à estrita execução das
leis, mas que contribui de forma determinante para as principais orientações
políticas e que ele é, t ambém, eleito pelo povo, ele pode encontr ar nessa eleição
a justificação de suas decisões. É por isso que reivindica para si mesmo a qualidade de representante, como se pode perceber claramente du rant e a Quinta Re
pública.
Os Estados Unidos sofreram uma evolução análoga. Enquanto os auto
res da constituição consid eraram que era o Congresso o rep resentante legíti
mo, o presidente Jackson sustentava no século XIX que ele também era o re
presenta nte do povo, o qual lhe havia confiado um mandato para adotar um a
dete rmin ada política. Mais tarde, Wilson irá ainda mais longe e afirmará que
o presidente não apenas é um representante, mas que ele é um melhor representante qu e o Congresso, porqu e ele representa não um a série de circunscri
ções, mas o povo como um todo (D a i i l , 1990).
2.ASOBERANIA
A noção de soberania. - No sistema representativo, os governantes exer
cem um a soberania da qual eles não são os titulares. É preciso, portanto , dete rminar quem é o verdadeiro titular e em que consiste esse poder. Existe, sobre
esse assunto, um debate muito antigo, considerado confuso pela imprecisão
do vocabulário.
É necessário, para esclarecê-lo, distinguir quatro acepções das palavras
soberania e soberano.
Em p rime iro lugar, a soberania é um a característica do Estado, que é su
perior a qualquer outra entidade inte rna (uma igreja, por exemplo) e que não
está submetido a nenhuma entidade externa (outro Estado). Algumas vezes
2:1Cf. supra, p. 133 e s.
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176 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
se fala nesse sentido de soberania internacional e se considera que se trata de
uma qualidade essencial do Estado e, nesse sentido, que uma entidade que
não possui essa soberania não seja um verdadeiro Estado. No caso, o Estado-
membro de um Estado composto.
Em segundo lugar, é a característica, o poder de um órgão, que, estan
do situado no topo de uma hierarquia, não está submetido a nenhum con
trole e cuja vontade é fonte de direito. Fala-se, nesse sentido, da soberania do
Parlam ento e diz-se, da m esma maneira, que a Corte de Cassação é um a cor
te soberana.
Compre ende-se que a soberania nos dois primeiros sentidos seja indi- visível, pois se a soberania é a qualidade daquele que é supremo, s omente um
pode te r essa qual idade. Caso se quisesse cria r duas entid ades supremas, ne
nhuma o seria.
Em terceiro lugar, a soberania é o conjunto dos poderes que esse ente
pode exercer. Isso pode, aliás, ser entendido de dois modos. Diz-se, primeira
mente, que a soberania compreen de, por exemplo, o direito de imp rimir mo e
da, o de fazer leis ou de pro mo ver a justiça. Todos os poderes que estão co m
preendidos na soberania , a esse respeito, são, às vezes, denominados atributos da so berania e fala-se, então, de p od er do Estado. Essa soberania, contra ria
men te à anterior, não é de form a algum a individual e pode-se de fato dividir
os atributos entre várias autoridades.
Mas está claro que esses atributos não se situam todos no mesmo pla
no. Um deles implica o exercício de um po der superior, que perm ite a seu ti
tula r do m in ar os outro s. É obv iamente o po de r de fazer leis. Se as decisões de
justiça são apenas a aplicação da lei, a so bera nia consis te não no exercício da
função judiciária, mas no exercício da função legislativa. Portanto, é precisoconsiderar que ela é de fato indivisível, pois se duas autoridades fossem si
multane amen te detentoras do pod er legislativo, nen hum a delas seria sobera
na. Em co ntrap artida, pode-se perfeitam ente confiar esse pode r a duas ou vá
rias autoridades de maneira indivisível, ou seja, para que elas o exerçam
con junta me nte. Isso ocorre, por exemplo, qua nd o se confia o p ode r legislati
vo a um Parlamento bicameral ou quando se delega ao poder executivo um
direito de veto.
Em quarto lugar, a soberania é a qualidade do ente, real ou fictício, em
nome de quem é exercido o poder do órgão soberano na segunda acepção. É
nesse sentido que se afirma q ue som ente a nação ou o povo são soberanos.
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0 Po d e r 177
A confusão se deve em parte às particularidades da língua francesa. O
alemão, po r exemplo, possui palavras distintas para designar as diferentes es
pécies de soberania . Ela pro vém, também, do fato de o rei te r sido, durante a
mo na rqu ia absoluta, o soberano, em todos os sentidos da palavra. Ele se con
fundia com o Estado e era, portanto, soberano nos assuntos internacionais
(“o rei é imperador de seu reino”). Ele era soberano enquanto autoridade,
que comandava todas as outras em seu interior. Ele dispunha da totalidade
do poder do Estado e a lei, notadamente, procedia exclusivamente de sua
vontade. Finalmente, ele não era o representa nte de ning uém, pois ele herd a
va seu pode r u nicam ente de Deus. Podia-se dizer que a soberania lhe perte ncia po r completo.
Foi som ente a par tir da Revolução que esses diferentes sentidos se disso
ciaram. Assim, duran te a Terceira República, à pe rgunta: “quem é soberano?”,
podia -se também resp onder: “a França, o Parlam ento , a Corte de Cassação, a
lei, a nação”, e todas essas respostas eram não apenas justas, mas t am bém pe r
feitamente compatíveis.
No processo de just if icação, é principalmente da soberania no quarto
sentido de que se trata. Já que o legislador é apenas um representante, quenão faz mais do que exercer a soberania (n o terceiro sentido), a que m pe rten
ce de fato essa soberania? Já que o exercício da soberania foi delegado a re
presentante s, a quem pert ence sua essência?
Nesse ponto, opõem-se tradicionalmente duas doutrinas, a soberania
nacional e a soberania popular.
A.A oposição tradicional entrea soberanianacional e a soberania popular
1. A soberania popular
De acordo com essa tradição, a doutrina da soberania pop ular ensina
ria que a soberania pertence ao povo, concebido como o conjunto dos ho
mens que vivem em um determinado território. Esse povo seria, portanto,
um ente real. Ele próprio pode, portanto, exercer sua soberania. A doutrina
da soberania popular seria, portanto, compatível com a democracia direta.
No entanto, caso essa democracia direta parecesse pouco praticável, o povo
poderia delegar o exercício da soberania .
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178 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Mas como o povo é um ente real, ele é perfeitamente capaz de ter e de
expressar uma vontade distinta daquela dos governantes. Todos aqueles que
compõem o povo podem e têm o direito de escolher esses governantes e de
controlar suas ações. Por conseguinte, a doutr ina da soberania p opular im
plica três conseqüênc ias:
- o princíp io do eleitorado-direto, ou seja, o sufrágio universal;
- elementos de dem ocracia direta, ou seja, a instituição do referendo;
- o man dato imperativo.
2. A soberania nacional
Ao contrário, a doutrina da soberania nacional postularia que o titular
da soberania é a nação, ou seja, uma entidade totalmente abstrata, que não é
composta apenas por homens que vivem sobre o território em um determi
nado mo mento, mas que é definida considerando-se a continuidade das ge
rações ou um interesse geral que transcende ria os interesses particulares. Co
mo se trata de u ma entidade abstrata, ela não poderia, evidentemente, exercer
a soberania. A democracia direta é impossível. Ela só pode desejar por meiode seus representantes. Ela, não pode, aliás, nem escolhê-los, já que ela não
tem, como elementos, homens reais. Ela é, portanto, obrigada a confiar esse
cuidado a alguns homens. O voto não é um direito, mas uma função confia
da pela nação. Ela não deve, aliás, ser confiada a todos, mas àqueles que são
capazes de exercê-la e pode ocorrer que apenas alguns sejam capazes disso,
notadamente aqueles que possuem bens ou exercem uma profissão, ou pa
gam impostos, têm interesses a defender. Uma vez eleitos, os representantes,
que não representam seus eleitores, mas essa nação abstrata, não devem ob
viamente ser submetidos a nenh um controle.
A soberania nacional provocaria, portanto, conseqüências simetrica
men te inversas àquelas que se supõe pertence rem à soberania popular:
- recusa da democrac ia direta ou semidireta;
- teoria do eleitorad o-funçã o e possibilidade do sufrágio restrito;
- proibição do mand ato imperativo.
Assim, os constituintes proced eriam sem pre a um a escolha funda mental
entre as duas doutrinas da soberania. Essa escolha apresentaria, aliás, um ca
ráter ideológico marcado: a dou trina da soberania p opu lar seria democrática
e progressista, a doutrina da soberania nacional seria conservadora. Poder-se-
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0 Po d e r 179
ia, portanto, classificar as constituições francesas conforme estão ligadas a
um a ou o utra d outrina : soberania nacional em 1791, popular em 1793, naci
onal novamente no ano III etc. Na Assembléia Constituinte de 1946, as duas
dou trinas teriam tido seus adeptos, de mod o que teria sido necessário pro m o
ver um comprom isso: “A soberania nacional pertence ao po vo”. Essa fórmula,
repro duz ida n o art. 3o da constitu ição de 1958, implicaria assim algumas co n
seqüências da soberania nacional e algumas conseqüências da soberania po
pular.
B. Crítica
A oposição tradicional apresenta graves falhas. Vamos nos limitar aqui
às duas principais: ela é incapaz de levar em conta a realidade histórica; ela
repousa sobre um pressupo sto inaceitável.
1. Crítica histórica
Aparentemente o esquema funciona relativamente bem quando se tratade contem plar a constituição de 1791, que proc lama que a soberania pe rten
ce, de fato, à nação e comporta todas as regras que a doutrina agrega a esse
princíp io : o sistema represen ta tivo , o su frág io re st ri to e o mandato represen
tativo. Pode-se, porém, rapidamente concluir, como se faz habitualmente,
que as regras decorrem do princípio. Pode se tratar, seja de uma justificação a
posteriori, seja de uma simples coincidência. Vale a pena notar que outras
constituições, que comportam as mesmas regras, por exemplo a Charte de
1814, não se referem, porém, ao princípio da soberania nacional.
A constituição de 1793 proclama que “a soberania reside no povo”26.
Espera-se, porta nto, nela encon trar o sufrágio universal, o referendo e o m an
dato imperativo. Ora, se as duas primeiras regras estão lá de fato, embora o
referendo que ela institui seja na verdade impraticável, existem pelo menos
duas disposições que, de acordo com a teoria tradicional, estão ligadas mais
ao princípio da soberania nacional: “nen hu m a porção do povo pode exercer
o pode r do povo como um todo”27e “cada dep utado pertence à nação como
26 Declaração dos Direitos do Ho me m e do Cidadão, art. 25.2/ Ibid.y art. 26.
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180 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
um tod o”28. Esses textos têm du plo sentido: de um lado, trata-se de um a pr oi
bição do mandato impera tivo; de outro, disso resulta que os te rmos povo enação são, de acordo com essa constituição, obrigatoriamente sinônimos.
A ausência de qualquer laço entre soberania popular e as três institui
ções a ela ligadas habitualmente é ainda demonstrada pelo exame da consti
tuição do ano III. O princípio da soberania popular está proclamado nos
mesm os termos que e m 1793: “a soberania reside essencialmente na univ er
salidade dos cidadãos”29. Encontram-se, aí, porém, todas as conseqüências li
gadas habitualmente não à soberania popular, mas à soberania nacional: o
sufrágio restrito e indireto30, a recusa da democracia direta ou semidireta, arecusa do mandato imperativo31.
A proclamação da soberania nacional ou da soberania popular não
apresenta, portanto, o sentido que lhe atribui a doutrina tradicional. Esta só
lhe investe sentido p orque concebe o processo constituinte co mo um a d ed u
ção lógica.
2 .0 pressuposto implícito: a concepção dogmática das constituições
A oposição tradicional só faz sentido quando existe um laço lógico tal
que a aceitação dos princípios leve necessariamente a todas as conseqüências,
de maneira que os constituintes começariam por colocar um ou outro dos
dois princípio s para deles deduzir as conseqüência s. Essa idéia não foi de for
ma alguma d em ons trad a e várias considerações incitam a pensar o contrário.
Vimos, em primeiro lugar, que pode ocorrer que se redijam, primeira
mente, as disposições que e nun ciam as regras e, em seguida, apenas os pr in
cípios e que se pode e nco ntra r u m dos dois princíp ios com as regras que sãoa conseqüência da outra.
Em segundo lugar, não seria possível estabelecer um Uiço lógico senão
com a condição de atri bui r às palavras o mesm o sentido. Ora, os sentidos são
variáveis. Assim, “povo" e “nação” pod em de fato ter dois sen tidos diferentes
na linguagem política e constitucional do século XX e terem sido sinônimos
em 1793.
28 Con stitu ição , art. 29.29 Declaração dos Direitos e dos Deveres do Homem e do Cidadão, art. 17.30 Títulos II, III, e IV.31 Declaração dos Direitos do H om em e do Cida dão, art. 18; constituição, art. 52.
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0 Po d e r 181
Em terceiro lugar, quando houvesse de fato no espírito dos constituin
tes de uma determinada época um laço entre soberania nacional e recusa do
referendo ou do m an dat o imperativo, não tratar-se-ia de um laço lógico, mas
puramente contingente , de modo que a p roclamação da soberania não tem o
mes mo se ntido em out ra época. É igualmente possível que o constituinte lhe
atribu a um dete rmi nad o sentido e que, no decorrer do processo de aplicação,
os intérpretes da constituição lhe atribuam outro, diferente.
Em qu arto lugar, a oposição tradicional desconsidera o uso retórico que
os constituintes podem fazer de fórmulas como soberania nacional ou sobe
rania popular. É possível e ocorre freqüentemente que elas sejam proclamadas sem outra preocupação senão a de obter uma adesão popular, mas sem
nen hum a intenção de extrair disso a mín ima conseqüência.
Por conseguinte, é preciso examin ar essas questões de um pon to de vis
ta estritamente histórico e dar a essas fórmulas uma interpretação não se
mântica, mas sistêmica. É preciso, em o utra s palavras, não pro cu rar en tend er
a constituição a partir desses princípios, mas os princípios a parti r da consti
tuição.
C. Determinaçãodotitularda soberania
Vamos nos limitar a qu atro constituições francesas.
1. A constituição de 1791
É necessário observa r a crono logia. Até 1791, os dois term os povo e na
ção são empregados um pelo outro. A escolha do sistema representativo não
decorre, por tant o, da preferência pelo termo nação, mas, co mo vimos, da fór
mula da Declaração dos Direitos do Homem de 1789: “O pr incípio de qual
quer soberania reside essencialmente na nação”. A distinção entre povo e na
ção resulta da necessidade de justificar a atribuição do poder legislativo ao
corpo legislativo e ao rei. Com efeito, pode-se justificar mediante a soberania
popular qualquer forma simples de gove rno, já que é perfeitamente conve
niente qu e o povo so beran o exerça, po r si mesmo, a soberania, ou delegue seu
exercício a um rei ou a um corpo de nobres. Em contrapartida, é impossível
justif icar, desse modo, um govern o misto, po is não se pode conceber que o
exercício da soberania seja ao m esm o te m po delegado e conservado. Não se
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182 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
ria possível afirmar, por exemplo, que o sistema é uma democracia, porque
não seria possível explicar que o rei participe pelo veto do exercício da sobera
nia e seria ainda mais impossível dizer que o exercício foi delegado a um rei,
porque não seria possível explicar por que existe, também nesse caso, um ele
mento de democracia.
Supõe-se, portanto, chamar o soberano não de povo , mas de nação. O
advento desse conceito apresenta várias vantagens: p ode-se c onceber a nação
com o um a entid ade abstrata, comp osta p or dois elementos: o povo e o rei. Já
que ela é abstrata, não pode obviamente exercer a soberania, mas deve dele
gá-la a representantes. Como o soberano é composto, o poder legislativotamb ém o será e com portará dois elementos, correspo nden do àqueles da na
ção: haverá um rei e um corpo legislativo. No entanto, cada um representará
não o elemento correspondente, mas a nação como um todo.
2. A constituição de 1793
A mona rqu ia foi abolida em 1792. Portanto, a nação não ab range mais
que u m único elemento, o povo, de mo do que os dois termos pod em tornar-se, mais uma vez, sinônimos. Substitui-se, portanto, a expressão soberania
popular por soberania nac ional na Decla ração dos Direitos , mas sem aban
donar, pa ra tanto, a palavra naçãoyque consta do texto da constituição.
É preciso ressaltar que o povo em questão, a partir desse mom en to, não
é, como considera a doutrina clássica, um ente real, que existe no mundo
concreto, independentemente da representação. Trata-se, como no caso da
nação, de u m a no ção constr uída pelo direito. Dificilmente isso poderia ser de
out ra forma, pois não se trata de um fato natural. É, portanto , a constituição
que define o povo so bera no com o a universalidade dos cidadãos franceses32,
e que deve, por conseguinte, definir o cidadão francês33. É ainda a constitui
ção que determina as competências desse povo, a maneira como ele procede
durante a eleição ou como ele participa no exercício do poder legislativo. Co
mo vimo s, o ma nda to imperativo é proibido. Os eleitores exercem, portanto ,
uma função, exatamente da mesma forma que na pretensa doutrin a da sobe
rania nacional.
32 Art. 7°.33 Isso c objeto do Títu lo II.
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0 Po d e r 183
Quanto à idéia de que o povo exerceria diretamente a soberania, ela é
apenas parcialmente exata, já que a constituição só organiza um sistema de
voto popula r para determina das leis, mas so bretudo ela não decorre do pri n
cípio da soberania popular, porém, mais da maneira como ele é formulado:
“a soberania reside no povo”. Com efeito, não é mais somente o princípio da
soberania, como em 1789, mas a soberania em si mesma, que reside no p o
vo. Este pode, po rtant o, exercê-la diretame nte, pelo men os de fo rma parcial,
nos limites fixados pela constituição, também podendo exercê-la por repre
sentação.
3. A constituição do ano III
O exame da co nstituição do an o III confirma essa análise. Está claro que
os constituintes remet em ao sufrágio universal direto e ao referendo. Mas is
so não implica de mo do algum, com o às vezes se acredita, que o princípio da
sobera nia nacio nal se estabeleça. Vimos, ao con trário, que o princíp io da s o
berania popular está mantido. Ncio é necessár io empregar novamente o con
ceito nação, já que a mo na rqu ia n ão foi restaurada.Para dar uma justificação adequada às regras concretas enunciadas na
constituição, basta recorrer a duas técnicas: em primeiro lugar, definir de ou
tro modo os cidadãos; se o povo é a universalidade dos cidadãos, como em
1793, basta que a categoria dos cidadãos seja definida de man eira restrita, pa
ra que, por exemplo, o sufrágio restrito se revele justificado pela soberania
popula r. Em segundo lugar, sobretudo, restabelecer na formação do prin cí
pio o advérbio essencialmente, que constava já em 89, com o vimos, mas que
tinha sido abandonado em 1793: “a soberania reside essencialmente na uni
versalidade dos cidadãos”.
4. A constituição de 1958
A obscura fórmula do art. 3o, “a soberania nacional pertence ao povo”,
deve ser interpretada da mesma maneira. A ela dá-se habitualmente a inter
pretação a seguir.
Em primeiro lugar, essa fórmula é retomada literalmente do art. 3° da
constituição de 1946. Na Assembléia Constituinte, uma controvérsia havia
oposto Coste-Floret, partidário da soberania popular, e Paul Bastid, adepto
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18 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
da sob erania nacional. O texto do art. 3o resultava, porta nto , simplesm ente de
um comprom isso com as duas concepções.
Em segundo lugar, o compromisso significaria que a constituição sanci
onava algumas das conseqüências decorrentes da sobe rania nacional e outras
decorrentes da soberania popular. O art. 3° de 1958 afirma, com efeito “[...]
pertence ao povo, que a exerce por seus representantes e por via do referendo”.
Entretan to, essa interpretação nã o é nem um pou co satisfatória. O co m
pro misso de 1946 não pode te r ti do esse sentid o na época. Com efeito, a As
sembléia Constituinte debatia depois que um primeiro projeto tinha sido re
jeitado pelo povo francês. Ora, esse primeiro proje to que proclamava o princípio da soberania popular não contemplava de forma alguma as conse
qüências prescritas pela doutrina e não comportava n otada men te nem m an
dato imperativo tampouco referendo34. O compromisso não poderia signifi
car, portanto, que iria ser privilegiada uma ou outra dessas instituições e,
aliás, a constituição de 1946 previa o referendo somente para a revisão. Dis
so resulta que se podia perfeitamente usar a fórmula do compromisso sem
que desse fato decorresse nenhuma outra conseqüência além daquelas decor
rentes, em princípio, da única so berania nacional.É necessário ir até mais longe: em 1946, co mo mais tarde, em 1958, era
possível usar uma das d uas fórmulas puras, sem renunciar a n enhum a das re
gras que se desejava inscrever na constit uição. Era possível, po r exemplo, p ro
clamar a soberania popular e ter todas as conseqüências habitualmente liga
das à soberania nacional. É o que fazia, por exemplo, o primeiro projeto de
1946, que acrescentava imediatamente após a proclamação da soberania po
pular que “a lei é a expressão da vontade nacional... Essa vontade se expressa
pelos representante s eleitos pe lo povo”. Era possível, de m odo inverso, proclamar a soberania nacional e decidir que a nação confiava o exercício da sobe
rania não apenas a representantes, mas também ao corpo eleitoral para que
ele aprovasse dete rmin ado s projetos de lei por referendo.
Em outra s palavras, se é verdade que o compromis so de 1946 estava apto
a justificar o direito positivo de 1958, era possível também justificar regras
bem diversas, e as regras adotadas em 1946 ou em 1958 te ri am sido, também,
justi ficadas por outras fórmulas.
34 Ele remetia, aliás, às fórmulas de 1789 e do ano III e, em particular, ao uso do advérbio essencialmente: “O princípio de qualquer soberania reside essencialmente no povo" (art. 2o).
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0 Po d e r 185
A redação precisa do art. 3o encontra uma utilidade, quando se procu
ra nela fundamentar não uma outra disposição da constituição, mas alguns
comportamentos ou algumas interpretações dadas pelos poderes públicos.
Tomaremos apenas um deles: para justificar o uso do art. 11 em matéria de
revisão constitucional, no qual ela não estava expressamente prevista, o gene
ral de Gaulle e seus partidários fizeram valer em 1962 que o art. 3° privilegia
va, ao mesmo tempo, a expressão indireta e a expressão direta da soberania
ou a democracia representativa e a democracia direta. Como a segunda deve
sobrepor-se à primeira, o art. 3o deveria conduzir a u ma interpre tação am pla
do art. II35 ( C a p i t a n t , 1982, espec ialmente p. 422-429).
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SEquNck P a r t e
OS REGIMES POLÍTICOS
CONTEMPORÂNEOS
Durante muito tempo, o estudo dos principais regimes políticos con
temporâneos pôde ser feito no quadro de uma classificação dualista: de um
lado, os regimes de “ poder aberto” que são designados também pelo nom e de“regimes pluralistas ocidentais” - nos quais os partidos políticos produzem e
exercem sua atividade livremente e a escolha dos governantes depende do re
sultado de eleições competitivas. De outro, os regimes de “poder fechado” -
muitas vezes qualificados como “monocráticos”- ou de partido único, que ge
ralme nte se dizem inspirados no marx ismo -lenin ismo , e nos quais as eleições,
cujos resultados são conhecidos antec ipadame nte, só servem, de fato, para le
gitimar a dominação do partido. A oposição desses dois tipos de regimes era
extremamente clara não apenas do ponto de vista da prática política mas
também do ponto de vista da ideologia e da doutrina constitucional. Segun
do as concepções pluralistas, o poder estatal constitui sempre uma ameaça
para as liberdades , e é necessário, portanto, limi tá-lo, ou controlá-lo. Ao con
trário, de acordo com a filosofia marxista, uma vez que a divisão da sociedade
em classes fo i abolida, se o Estado não se deteriora imediatamente, o poder está
a serviço do povo como um todo e os cidadãos nada mais têm a temer.
Mas essa classificação dualista não mais corresponde à realidade atual.
Certamente, sempre é possível distinguir regimes que são autenticamente
plural is tas e outros que o são em m enor grau, ou mesmo que não o são de
forma alguma. Mas, há alguns anos, vários regimes de a poder fech ado” deixa
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19 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
ram comp letamen te de pertencer a essa categoria, ou fizeram relevantes con
cessões ao pluralismo. Mesmo nos países onde o pod er ainda não se encon tra
aberto, como na China, no Vietnã, ou em Cuba, a ideologia da qual ele tirava
sua legitimidade é cada vez mais contestada e ela não mais forma um sistema
coerente. Não seria possível afirmar no entan to que o pluralismo tornar-se-á
geral, tampouco que ele está instaurado de forma durável em todo lugar ou
que ele é atualmente praticado. O “poder fechado” pode renascer das cinzas,
com formas e justificativas mais ou menos diversas das que conhecemos no
passado. Mas é necessário constatar que atualmente ele está recu ando.
Dentre os regimes pluralistas ocidentais, os mais numerosos são do tipo parlamentar, no sentido que demos ao termo na prim eira parte (Capítulo 1).
O regime dos Estados Unidos, que é mais ou m enos exclusivo dentr o de
sua categoria, e com base no qual foi elaborado o arquéti po do regime presi
dencial, merece evidentemente um estudo particular (Capítulo 2).
Qu an to ao Leste Europeu, ele está atualm ente em u m a fase de transição.
Antes de descrever a situação atual dessa região, vamos começar pela recapi
tulação dos grandes traços do regime monocrático que, há apenas alguns
anos, era ainda adotado (Capítulo 3).
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CApííulo
OS REGIMES PARLAMENTARES
Os regimes agrupados neste capítulo apresentam duas características
comuns: por um lado, o governo é responsável diante do Parlamento; por o u
tro, o chefe de Estado pode ser um monarca hereditário ou um presidente da
República, mas, qualquer que seja o caso, ele não é eleito pelo sufrágio uni
versal. Resulta disso que a equipe de gov erno é sempre de term inad a ind ireta
mente pelos resultados das eleições legislativas. Mas o modo de funciona
mento dos regimes parlamentares varia de acordo com o estado das forças
pol ít icas e segundo as regras inscr itas na const ituição .
Seção 10 regimebritânico
O regime britânico apresenta para a ciência do direito constitucional
um interesse triplo. Prime iram ente é o mais antigo, se cons iderarm os a anti
guidade de suas fontes escritas ou o aspecto externo das autorida des políticas
que se mantiveram quase imutáveis desde o século XVIII. Além desse fenô
meno da antiguidade e da permanência das instituições e dos ritos, que por
si só impress ionam os espectadores, é preciso n ota r que essa estabilidade não
foi obstáculo p ara p rofun das transformações . Essa evolução sofrida pelo sis
tema explica por que a Grã-Bretanha pôde, em diferentes épocas, servir de
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19 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
modelo ou fonte de inspiração para constituições tão diferentes quanto a
constituição am erican a de 1787 ou a C arta Francesa de 1814.
Por outro lado, baseado no sistema inglês é que foi elaborado o mode
lo do regime parlamentar que habitualmente hoje se opõe ao regime presi
dencialista. Mas o sistema inglês ao qual nos referimos é aquele que funcio
nava no século XIX, en qua nto o sistema atual é mui to diferente.
Finalmente, a Inglaterra é freqüentemente citada como um dos raros
exemplos de país no qual não há constituição formal. Isso não significa, é cla
ro, que não exista constituição alguma - há um a constituição material - nem
me smo que nã o existam regras constitucionais escritas, mas tão some nte queas regras não estão compiladas em u m do cum ento único e sobretudo que elas
não possuem valor supralegislativo, de tal modo que elas podem, em princí
pio, se r faci lmente modif ic adas por lei ord inária .
As origens. - O sistema político britânico origina-se na Idade Média. Pe
la Magna Carta de 1215, João Sem Terra concedia u m certo nú m ero de direi
tos e privilégios e colocava o princípio essencial segund o o qual ne nh um im
posto podia ser cobrado sem o consentimento do Grande Conselho, no qualtomavam assento os vassalos do rei. É esse Grande Conselho, que no século
XIX recebe o nome de Parlamento, que se separará cm duas câmaras, numa
das quais deliberam os barões e os representantes da Igreja, a ou tra com po s
ta pelos delegados dos Co mun s. Em troca de seu cons entime nto, o rei foi ra
pidamente levado a sancionar , ou seja, a aceitar, as novas leis que as câmaras
propunham . No entanto, o Parlamento só se reunia quando o rei necessitava
de novos recursos e este, de qualquer modo, reservava para si o poder de im
por as novas leis ou de revogar as exis tentes (p re rrogativa real).É esse po de r que desaparece ao final das guerra s civis do século XVII: a
Declaração dos Direitos (Bill ofRights) de 1688 consagra o princípio da anui
dade do voto do imposto e suprime o essencial da prerrogativa real. Daí em
diante as câma ras deveriam se reun ir todos os anos, e as leis só pode riam ser
adotadas após terem sido votadas nas câmaras e sancionadas pelo rei, que
não pode fazê-las sozinho nem suspender sua execução. Denomina-se então
Parlamento o órgão complexo formado pelo rei e pelas duas câmaras e é o
Parlam ento - e não mais o rei - que é soberano. Esse sistema é considera do
tam bém um governo misto, uma vez que o pod er essencial, o po der legislati
vo, é exercido conju ntam ente pelo rei e por seus ministros. É um sistema m is
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Os Reg im es P a r la m e n ta re s 195
to, também chamado de balança dos poderes, porque os três poderes legisla
tivos parciais se equilibram, cada qual po den do refrear as leis requeridas pe
los dois outros. Sabe-se que a partir desse modelo foi elaborada a doutrina
cha ma da “separação do s pod eres”, que não significava que as autoridad es de
vessem ser especializadas e independentes mas que uma única e mesma au
toridade não pode exercer sozinha todos os poderes. Foi também em função
das condições de funcionamento no século XVIII que se estabeleceu o regi
me parlamentar.
O estabelecimento do regime parlamentar. - No sistema misto, só o p oder legislativo é exercido coletivamente pelos três elemen tos do Parlamento,
com o poder executivo continuando a ser exercido pelo rei. No entanto, a
atribuição do pod er legislativo ao Pa rlamen to teria sido eviden temente esva
ziada de sent ido se o rei tivesse podido se livrar, no exercício do po de r execu
tivo, da obediência à lei. Não era possível controlá-lo em razão de sua irres
ponsabili dade expressa pelo princípio “o rei, mal não pode fazer”. As c âmaras
retomaram então um antigo procedimento, o do impeachment . Consistia
num ato de acusação contra os ministros votado pela Câmara dos Comuns por conduta julgada crim in osa. Os ministros eram então ju lg ados pela Câ
mara dos Lordes. Como nem o crime dos ministros, nem as penas aos quais
estavam sujeitos eram definidas, os ministros podiam ser facilmente acusa
dos e condenados por qualquer conduta do rei com a qual tivessem colabo
rado, notadamente, mas não exclusivamente, endossando seus atos.
Disso resultou rapidamente que os ministros que incidiam na respon
sabilidade só aceitavam endossar os atos que aprovavam. O rei podia então
mudar de ministro mas este ficava na mesma situação, de sorte que o poder do rei passou para as mãos dos ministros. Essa evolução foi facilitada e ace
lerada pela chegada ao tron o da dinastia dos príncipes de Han nov er em 1715:
o prim eiro deles não conhecia suficientemente bem a língua inglesa para po
der p articipar eficientemente das reuniões de gabinete, enqua nto que o utro
era fraco de espírito. Dessa forma, o procedimento de acusação era aberto
não só nos casos de crime cometido, no sentido ordinário do termo, mas
tam bém qua ndo a maioria da Câmara dos Co mu ns deliberava contra a polí
tica adotada pelos ministros. Como ela podia facilmente se concretizar, os
ministros tin ham interesse em se demitir assim que u ma am eaça de acusação
pesasse sobre eles. A primeira demissão desse tipo foi a de Walpole em 1742.
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196 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Mas trata-se de um a de missão individual. O processo foi encerrad o em 1782,
qua ndo Lord North se demite com todo seu gabinete mesm o na ausência de
qualquer ameaça de impeachment. Considera-se que essa data marca o nasci
mento do sistema parlamentar, já que por um lado a responsabilidade é, daí
em diante, realmente política, não só porque ela entra em vigor por razões
polí ticas - é quase sempre o caso - , mas porque o procedimento e a sanção
são políticos, e por outro lado, essa responsabilidade é coletiva e, dessa for
ma, é a política de todo o gabinete que recebe a sanção.
Finalmente, como o gabinete pode a qualquer m om ento ser compelido
pela Câmara dos Comuns a abandonar o poder , ele só será duradouro se reunir a maioria que o apoiará. A liderança exercida pelo primeiro-ministro re
pousa a princípio principalmente sobre a corrupção. Esta é favorecida por
um sistema eleitoral arcaico que perm ite qu alque r manipulaçã o: sufrágio res
trito - men os de 5% da p opula ção - , condiçõe s de elegibilidade restritivas,
divisão irrealista das circunscrições, candidaturas oficiais.
As fortes pressões por reformas levam, em 1832, à ampliação do corpo
eleitoral. Essa reforma tem conseqüências consideráveis: um corpo eleitoral
ampliado é menos vulnerável às manipulações e só candidatos organizadosem partidos têm chances de ganhar as eleições. O final do século XIX assiste
assim ao desen volvimento de p artidos políticos estrutur ado s e disciplinados.
Qu and o um desses partidos possui a maioria na Câmara dos Com uns, o ga
bin ete é todo composto por seus dir igente s e desfruta de apoio permanente.
As fontes. - Co mo a Grã-Bretanha não possui constituição formal, torna-
se necessário identificar ao men os os tipos de fontes do direito constitucional.
1. A soberania do Parlamento e da Lei
Existem antes de tudo fontes escritas. Pode se tratar de alguns docu
men tos fu nda men tais com o a Magna Carta de 1215, a Petição de Direitos de
Carlos I (1628), o Ato de Habeas C orpus (1679), a Declaração de Direitos (Bill
o f Rights) (1688), o Ato de Sucessão (1701) ou leis relativas a algumas insti
tuições específicas; bem como os Atos do Parlamento de 1911, 1949 e 1999
que restringem o poder da Câmara dos Lordes. A esses textos acrescenta-se
agora a lei pela qual a Grã-Bretanha adere à Europa, o Ato da Comunidade
Européia (European C om m unity Act) de 1972 e, por conseqüência, o Tratado
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Os Reg im es P a r la m e n ta re s 197
de Roma, o Ato Ünico Europeu e o Tratado de Maastricht. Até o século XVIII
considerava-se que os textos fundam entais e o costume antigo se imp un ha m
ao rei e às câmaras. Mas essa idéia foi abandonada quando se constatou que
o Parlam ento - ou seja, as câmaras e o rei - podia a dota r qualq uer lei e que
era, por essa razão, soberano. Assim, não existe norma superior à lei e cada
uma das suas regras pode a qualquer momento ser modificada por uma lei
ordinária. Diz-se freqüentemente que aquilo que faz a rainha em seu Parla
men to é o direito, em outra s palavras, que nã o há limites ao que p ode fazer o
Parlamento. Dessa forma, para os tribun ais é impossível recusar a aplicação
de uma lei sob pretexto de que ela seria inválida. Esse princípio foi algumasvezes questiona do m as nu nca foi abalado, mesm o com os progressos mais re
centes.
O Human Rights Act de 1998
Existe um movimento favorável à adoção de uma Declaração de Direi
tos nos mesmos moldes daquelas que acompanham as constituições escritas.
A Declaração seria a codificação dos direitos e liberdades dotada de um valor supralegislativo, suscetível cons eqü entem ente de servir de fu nd am ent o a um
controle de constitucionalidade das leis. No entanto, esse movimento é mi
noritá rio e um a tal declaração de direitos seria incompatível com o princípio
de soberania do Parlamento. Por isso, o Human Rights Act (Ato dos Direitos
Humanos) só foi adotado em 1998, o que torna a Convenção Européia dos
Direitos Humanos diretamente aplicável. Ela não possui valor superior ao
das leis mas os ministros que entram com um projeto na Câmara dos Co
m un s devem fazer uma declaração sobre a comp atibilidade dessa com a C on venção. Por outro lado, os tribunais que, por causa da soberania do Parla
mento, não podem anular as leis, deverão em caso de conflito entre a lei e a
Convenção, como para as regras européias segundo a jurisprudência Factor-
tame , dar às leis uma interpretação de tal forma que elas fiquem de acordo
com a Convenção e a jurisprudência d a Corte Européia dos Direitos Huma nos.
Se for constatado que apesar de tudo uma lei é incompatível com a Conven
ção, a incompatib ilidade deve ser declarada. Em c ompensa ção, diferen temen
te do que resulta da jurisprudência Factortame> o juiz não pode afastar a lei
parlamentar no caso em litígio. É o ministro competente que pode emendar
a lei para pôr fim à incompatibilidade, sem, aliás, voltar ao caso particular.
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198 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Trata-se então de u m controle m uito diferente do controle de con stitu
cionalidade pratic ado em out ros países europeus: o texto de referência é um a
convenção internacional; os tribunais devem se conformar com a jurispru
dência de uma corte internacional; enfim, a decisão de incompatibilidade
tem p or efeito transferir para o m inistro um verdadeiro p ode r legislativo; en
fim, os tribunais não têm o direito de privar uma lei parlamentar de sua va
lidade. Por causa desse últim o traço, estima-se geralmente que o princ ípio da
soberania do Parlamento continu a teoricamente intacto (E l l i o t t , 1999).
A construção da Europa
A evolução do direito europeu também não é suscetível de abalar a so
bera nia do Parl amento. Se é verd ade que alg umas normas euro péia s têm apli
cação direta nos territórios dos Estados-membros e que os britânicos têm
uma ação ativa diante da Corte Européia dos Direitos dos Homens, isso não
quer dize r que o direito euro peu t enh a u m valor sup erior ao deis leis. E, se em
certos países como a França, o direito internacional tem uma autoridade su
perior à das leis, a Grã-Bretanha, quanto a ela, possu i um sistema dual is ta: odireito internacional só integra o direito nacional graças a uma lei adotada
pe lo Parlamento. Pode-se então consid erar que um tratado domina uma lei
anterior, mas unicamente porque, ratificando o tratado, o Parlamento m ani
festou o desejo de m odifi car essa lei anterior. A questão é mais delicada q uan
do se trata de contradiçã o en tre um tratad o e um a lei posterior a ele. Até re
centemente, considerava-se que, adotando uma lei contrária a um tratado, o
Parlamento estaria sem dúvida violando um a norm a internacional, mas não
uma norma interna. Ele pode ser condenado por uma corte internacional,mas a lei po r ele votada en trará em vigor e não po derá ser descartada po r um
tribunal britânico, no caso de ser claramente visível que o Parlamento deci
diu anular um tratado. Entretanto, a Câmara dos Lordes, estatuindo como
juri sdiç ão suprema, decidiu recente mente, com relação a uma lei contr ária
aos tratados europeus, que se a vontade do Parlamento de anu lar os tratados
não fosse explícita, os tratad os deve riam ser respe itado s1. Essa juri sp rud ência
deixa assim intacto, ao menos no plano formal, o dogma da soberania do
1 R.v. Secretary o f State for Transport , ex. parte Factortame (n. I) 119901 2.A.C. 85yR.v. Secretary o f State fo r Transport, ex. parte Factortame (n. 2) [1991] l.A.C. 603 c R.v. Sccrctary of State for Emplo yment , ex parte Equal O pp ortu nitie s Co mmiss ion [ 1994) 2 W.L.R., 409.
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Os R e gim e s P a r la m e n t a r e s 199
Parlamento, pois ele pode sempre declarar explicitamente que deseja, pela
nova lei, anular a regra internacional.
2. As convenções da constituição
Existem também regras não escritas, entre as quais se faz uma distinção
fundamental entre os costumes no sentido estrito e as convenções da consti
tuição. Em ambos os casos, trata-se de práticas repetidas acrescidas do senti
mento do caráter obrigatório. A diferença reside no fato de que um costume
pode ser constatado e s ancionado pe los tr ib unais , o que não ocorre com umaconvenção.
À luz das concepções dom ina ntes sobre a juridicidade, as convenções da
constituição colocam um problema teórico difícil. Estima-se em geral que
um a regra jurídica é aquela cuja violação é sancionada. Seria então necessá
rio concluir que as convenções da constituição não são verdadeiras regras de
direito. Ora, elas representam um papel importante. A obrigação de um pri
meiro-ministro apresentar a demissão ou solicitar perante o rei a dissolução
da Câmara, no caso de ter sido objeto de uma moção de desconfiança explícita da Câmara dos Comuns ou se a moção de confiança que apresentou foi
rejeitada; a obrigação do monarca de sancionar as leis votadas pelas câmaras,
sem opor-lhes o veto; a obrigação ainda do mo narca de nom ear para o po s
to de primeiro-ministro o líder do partido majoritário ou de dissolver a Câ
mara dos Comuns acatando o pedido do primeiro-ministro; todas essas re
gras são apenas convenções.
Para explicar que elas são fielmente cump ridas, po de-se p rimeir ame nte
sustentar que, se não são direta mente sancionadas, elas o são indiretamente.
Não se pode processar um primeiro-ministro se ele não pedir demissão, mas
o P arlamento não votaria a lei de finanças, de sorte que os impostos não p o
deriam legalmente ser arrecadados, nem os gastos serem efetuados. Podemos
fazer duas objeções a essa tese. Em primeiro lugar, ela não leva em conta as
convenções que não podem ser sancionadas indiretamente, por exemplo, a
obrigação da rainha de aceitar as leis. Por outro lado, a sanção indireta não é
ju ríd ic a mas política, de tal m odo que será necessário consid erar as conven
ções não como verdadeiras regras jurídicas, mas com o simples regras políticas
que não são obrigatórias, mas que são conservadas, seja pelo medo das conse
qüências políticas, seja pelo receio do fair play ( M a r s h a l l , 1987).
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200 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Mas tam bém se pode pensar que, m esmo sendo justa essa explicação do
com por tam ento dos h omen s políticos, disso n ão resulta que as convenções
devam ser consideradas como essencialmente diferentes das outras regras
constitucionais, mesmo as escritas. De início, efetivamente, não se deve con
fundir a submissão a uma regra com uma tese sobre o caráter obrigatório ou
o caráter jurídico dessa regra; a existência da sanção pode explicar a existên
cia de um fenômeno psicológico segundo o qual os homens se conformam à
regra; ela não explica que eles devam a ela se conformar. Conseqüentemente,
se as convenções não comportam as sanções, pode-se deduzir que elas não
são obrigatórias. Por outro lado, há muitas regras, cujo caráter juridicamente obrigatório jamais é contestado, que são desprovidas de sanção e que são
obedecidas pelas mesmas razões e do mesmo modo que as convenções da
constituição: é o caso principalmente da constituição formal quando não
existe controle de co nstitucionalidade. Para ela, com o para as convenções da
constituição, é preciso dizer que é um a regra jurídica na med ida em que é in
terpretada como regra jurídica.
1. OS ÓRGÃOS
A.O Parlamento
Vimos que em seu sentido tradicional a palavra Parlam ento designa um
órgão complexo da função legislativa, ou seja, o conjunto das três autorida
des cujo consentimento é necessário para que as leis sejam adotadas: as duas
câmara s e o rei. Entretan to, na medid a em que o mo narc a perdeu o direito de
veto, denom ina-se norm alme nte Parlamento, no sentido estrito, o conjunto
formado pelas duas câmaras.
1. A Câmara dos Comuns
A eleição da Câm ara dos Com uns. - Desde 1983, a Câm ara dos Com uns
conta com 650 mem bro s eleitos em princ ípio p or 5 anos. Na realidade, a Câ
mara rara mente chega ao términ o do m andato, po rque é dissolvida no rm almente durante o último ano da legislatura.
A lei eleitoral tem uma importância considerável. Vimos de que modo
o sistema se modificou a partir da reforma de 1832, graças à ampliação p ro
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Os R e gim e s P a r la m e n t a r e s 201
gressiva do corpo eleitoral. O voto universal masculino só se estabeleceu em
1918, mas o voto feminino, a partir de 1928. No entanto, a regra de maior
amplitude é aquela que fixa o tipo de escrutínio. Trata-se do escrutínio ma
joritário de turno único. Em cada circunscrição só existe um candidato a ele
ger e aquele que obtém o maior número de votos é eleito. Esse sistema, extre
ma me nte repressor, é um fator de concentração de partidos, p orqu e incita os
eleitores ao voto útil e a não votar em candidatos cujas chances sejam fracas
(cf. supra, p. 160 e s.). Os candida tos, p or seu lado, são for temente dissuad i
dos a aban don ar seus partido s ou mes mo a infringir a disciplina, porque suas
chances seriam ínfimas se eles fossem sós para a batalha. Por ou tro lado, o sistema c ond uz a um a forte distorção da representação, um a vez que as eleições
são ganhas por formações que obtiveram o m aior núm ero de votos no maior
número de circunscrições, mesmo que em cada uma dessas circunscrições a
diferença de votos seja pequena. Assim, há super-representação do partido
majoritário. Em 1883, por exemplo, o partido conservador pôde obter 61%
das cadeiras com 42% dos votos. É até mesmo possível obter a maioria das
cadeiras com minoria de votos, como se produziu em 1951, quando os con
servadores obtiveram 321 cadeiras com 48% dos votos, enquanto os trabalhistas só obtiveram 295 cadeiras com 48,8% dos votos. O me sm o fe nôm eno
ocorreu em 1974, privilegiando desta vez os trabalhistas.
Por causa da conce ntração dos p artidos políticos, o m od o de escrutínio
tem efeitos importa ntes sobre a vida política: primei ram ente, haverá sempre
nas vésperas das eleições um partido majoritário na Câmara dos Comuns e
os eleitores sabem que o líder desse partido será nomeado primeiro-minis-
tro. Pode-se dizer então que tudo se passava como se o primeiro-ministro
fosse eleito pelo sufrágio universal ( M a r x , 1969). Por outro lado, o gabineteassim nom eado desfruta no rmalm ente de grande estabilidade, porque só po
de ser derruba do pelo próprio partido, quer dizer, por u ma revolução de pa
lácio. Finalmente, a partir do momento em que o avanço relativo do partido
majoritário sobre o principal partido de oposição é pequeno, basta uma pe
quena migração de votos para provocar a alternância de poder. Os dois par
tidos têm interesse em adular os eleitores indecisos, quer dizer, aqueles que
podem votar tanto para um quanto para o outr o, pois serão eles que fa rão a
diferença. Assim, ambos têm tendência a apresentar programas políticos cu
jo objetivo é seduzir o eleitor, e dessa forma, apresentam programas polí ti cos
que não se opõem radicalmente.
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202 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Naturalmente os outros partidos que sofrem com o sistema majoritário
reclamam o estabelecimento de uma certa dose de representação proporcio
nal. Foi o caso especialmente do partido liberal depois de ter sido superado
pelos trabalhis tas. Atualm ente é o caso do partido liberal democrata. Mesmo
que essa exigência seja contrária aos interesses dos dois grandes partidos que
se beneficiam do escrutínio majoritário, o partid o trabalhista, nas eleições de
1997, para ob ter os votos dos simpatizantes do p artid o liberal dem ocrata, te
ve de prometer, caso chegasse ao poder, colocar em discussão o m od o de es
crutínio que talvez pudesse ser subme tido a referendo.
No entanto, após as eleições essa reforma deixou de ser prioritária, contentan do-s e com a instituição da representação propo rciona l para as eleições
ao Parlamento Europeu.
A bem da verdade, ninguém pode prever os efeitos que terá a legisla
ção relativa à Irlanda do Norte, à Escócia e ao País de Gales sobre o sistema
dos partidos. Mesmo que as eleições de maio de 1999 não tenham sido
muito favoráveis aos partidos nacionalistas escoceses e galeses, é possível
que a longo prazo esses partidos se reforcem não somente no plano regio
nal mas també m no plano nacional, de tal forma que nen hu m dos grandes partidos obtenha a maioria. Por outro lado, é im poss ível prever todos os
efeitos que pod eriam ocorrer, inclusive sobre os grandes partido s nacionais,
com a introdução de uma dose de representação proporcional no escrutí
nio regional.
A devolução. - Os trabalhistas, no pod er desde 1997, têm emp reen dido
uma série de reformas constitucionais de grande amplitude, as mais impor
tantes desde o início do século XX.Destas, as principa is re formas dizem respeito à Escócia e ao País de Ga
les, fazendo da G rã-Bretan ha u m Estado quase federal. O pro cedim ento pelo
qual elas foram adotadas merece ser descrito. O governo submeteu um pro
je to a re ferendo, mas só podiam vota r os elei tores escoceses e galeses. Um
francês ficaria espantado ao ver que em seu conjunto os eleitores britânicos
tenham sido privados do direito de consentimento à restrição de sua sobera
nia. Mas o soberano na Grã-Bretanha não é o corpo eleitoral, nem mesmo o
povo brit ânico, mas o Parlamento. Aliás, os elei tores escoceses e galeses não
podem também adotar um texto por re ferendo e foi necessár ia um a lei vota
da pelo Parlamento em 1998, o Scotland Act.
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Os Reg im es P a r la m e n ta re s 2 0 3
Examinaremos aqui somente a lei sobre a Escócia, dita de devolução. Essa
lei institui um Parlamento escocês que se reuniu pela primeira vez cm 1- de ju
lho de 1999. A maioria dos deputados é eleita em circunscrições de dimensões
reduzidas, por votação uninominal e de turno único, tradicional na Grã-Breta
nha, mas nas circunscrições maiores, os outros são designados pela representa
ção proporcional. Co mo na Alemanha para a eleição do Bundestagycada eleitor
dispõe de dois votos para participar da eleição das duas categorias de deputados.
O Parlamento escocês vota leis que a rainha, em princípio, pode vetar,
com o as adotada s pelo P arlamen to de Westminster. Esse pode r legislativo po
de ser exercido som ente nas matérias descritas no Scotland Act e não pode so brepor- se às competências do Parlamento bri tânico. Essas leis devem estar de
acordo com a Convenção Européia dos Direitos Hum ano s e o direito co mu
nitário. O Conselho Privado analisa a co nform idad e às leis de Westminster.
Haverá um poder executivo escocês, tendo como chefe um primeiro-
ministro (First Minister para distinguir do Prime Minister britânico), nom ea
do pelo Parlamen to escocês e responsável p erante ele, encarregad o de execu
tar as leis escocesas e também de aplicar, na Escócia, as leis britânicas.
Pode-se pensar que o po de r das instituições escocesas é limitado, pri ncipalmente em razão da insistência da soberania do Parlamento de West
minster, que em princípio, pode a qualquer momento retomar certas maté
rias, ou mesmo todas, delegadas à Escócia. Primeiramente, é possível que o
Parlamento de Londres se abstenha de legiferar para os negócios escoceses, e
como não haverá no interior do gabinete britânico nenhum ministro encar
regado desses assuntos, o Parlamento se absterá da mesma forma de exercer
sobre essas matérias sua função de controle. Tudo se passará como se o poder
legislativo estivesse dividido, como num sistema federal, entre dois Parlamentos: o de Londres e o de Edimburgo. Por outro lado, ainda como no sis
tema federativo, os conflitos de compe tência são resolvidos po r um a jurisdi
ção, o Conselho Privado, que interp retará o Scotland Act.
No entanto, apesar desses traços que o aproximam do sistema federa ti
vo, o sistema de relações entre a Grã-Bretanha e a Escócia dele se distingue
em vários aspectos. Primeiro, se existe um Parlame nto separado para a Escó
cia, o me smo não oco rre para a Inglaterra. O Parlam ento de Westminster tem
um papel duplo, ou seja, ele legisla para a Inglaterra e para o conjunto da
Grã-Bretanha. Por outro lado, o Conselho Privado controla as leis do Parla
mento escocês, mas não do Parlamento britânico. Pode-se argumentar que
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2 0 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
são conhecidas formas de federalismo não igualitárias, mas há uma diferen
ça essencial: a divisão das competências e a existência de uma entidade esco
cesa não são o resultado de uma constituição mas de uma lei, que pode ser
modificada a qualquer m om ento pelo Parlamento inglês.
A organização da Câmara dos Comuns. - A Câmara dos Com uns esco
lhe seu presidente, o speaker , que fica na função durante toda a duração da
legislatura. Esse personagem desfruta de um prestígio considerável, que aliás
é devido à sua neutralidade e imparcialidade. Se ele é freqüentemente, mas
nem sempre, escolhido no interior do par tido majoritário, a oposição se abstémem geral de apresentar em sua circunscrição um candidato que se opon ha a
ele e ele é reeleito a seu posto, mesmo ocorrendo mudança de maioria. Mas
seu prestígio se deve também a seus poderes: ele designa os presidentes das
comissões, assegura a organização cios debates e pode tom ar medidas pu nit i
vas contra os deputados.
As comissões permanentes da Câmara dos Comuns não são especiali
zadas, com o ocorre com as comissões do Parlam ento francês ou d o Co ngres
so americano. Aliás, elas possu em um papel men os imp ortan te. São designadas po r ord em alfabética e é o speaker que divide os assuntos entre elas.
Na Câmara dos Comuns, os deputados são fortemente controlados por
seus respectivos partidos. No interior de cada partido, certos deputados, os
whips, são encarregados de transmitir as recomendações de voto e assegurar
a disciplina. Como os deputados devem sua eleição ao partido e esperam a
investidura para as eleições seguintes, são obrigados a se curvar às recomen
dações. Disso resulta um a con seqüênc ia im portan te: exceto em caso de crise
interna no interior do partido majoritário, os textos apresentados pelo gabinete serão necessariamente adotados.
2. A Câmara dos Lordes
Ela constitui incontestavelmente um resquício de uma época que não
mais existe e, no en tan to, se sua elimina ção foi mu itas vezes pensada, ela ain
da subsiste embora profundamente reformulada.
Até o House o f Lords Act de 1999, havia três categorias de lordes ou pa
res: os pares hereditários, em nú me ro de 758 em l ü de nov emb ro de 1999, os
pares vitalícios (542) e 26 pa res espir itua is , bispos da igreja anglicana .
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Os Reg im es P a r la m e n ta re s 2 0 5
A rainha nome ia os lordes e ela podia, depen den do da vontade, no mea r
pares hereditários ou vitalícios. No século XX as nomeações eram feitas a tí
tulo honorífico para rec omp ensar políticos e profissionais de m uito destaque,
tratando-se de nomeações vitalícias até que, sob influência de Margareth
Thatcher, as nomeaç ões voltaram a ser feitas a título hereditário. Há m uito es
se poder da rainha está efetivamente nas mãos do primeiro-ministro, como
todos os outros, o que representa um a impo rtância política considerável, uma
vez que a rainha podia nomear um número ilimitado de lordes alterando a
maioria conform e desejasse, dispond o desse mod o de u m pod er de pressão ir
resistível sobre a Câmara . Isso perm itiu p ressionar a Câm ara dos Lordes a votar as leis que restringiam seu poder ou modificavam sua composição.
A Câmara dos Lordes foi profundamente modificada pelo House o f
Lords Art de 1999, que co nstitui a primeira etapa de um a refo rma mais geral
anu ncia da pelo governo trabalhista. Ela consiste principa lmente na supressão
dos pares hereditários. Os titulares perderam assim suas cadeiras com exce
ção de 92 deles selecionados a partir de eleição e que se tornaram pares vita
lícios. A Câm ara contava em março de 2000 com 670 membro s.
Os trabalhistas anunciara m sua intenção de proceder pos teriormente aum a reforma do sistema de designação dos pares vitalícios e à instituição de
uma categoria de pares eleitos. O objetivo seria o de criar uma segunda câ
mara moderna, na qual haveria ao mesmo tempo membros eleitos e lordes
vitalícios. Seu papel seria o de um a câ mara de discussão e de contribuiç ão pa
ra a qualidade da legislação. O procedimento legislativo não seria dessa for
ma perturbado.
A Câmara dos Lordes exerce dois tipos de poder. Em primeiro lugar, ela
intervém na adoção de leis. Até 1911, ela dispunha de poder idêntico ao daCâmara dos Comuns, mas, após o Parliament A ct , adotado naquele ano, ela
conservaria somente um direito de veto suspensivo de dois anos (porém so
mente de um mês no caso de matéria financeira). Em 1949, um novo texto
veio reduzir aind a mais os poderes da câm ara alta e isso com efeito re troati
vo, a fim de que não pudesse se op or ao projeto de nacionalização do aço já
apresentado pelo governo trabalhista. O veto não dura mais de um ano. Por
ou tro lado, ela é a jurisdição su prem a da Grã-Bretanha, aquela que decide em
última instância e estabelece a jurisprudência. Quando a Câmara dos Lordes
se reúne para atuar como jurisdição, só tomam parte pares vitalícios de um
tipo especial, os Law Lords, que de fato são magistrados.
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2 0 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
A man uten ção da seg unda câma ra de nobres se explica e se justifica de
várias maneiras: pela ligação com a tradição, pela alta qualidade técnica dos
debates. Não se trata de qualq uer m od o nem de salvaguardar privilégios nem
de realizar um equilíbrio dos poderes, salutar para a liberdade política. O
centro dos conflitos e dos equilíbrios políticos não está mais na rivalidade en
tre as duas assembléias, mas nas relações da maioria e da oposição e sobretu
do nas relações no interior da própria maioria. Mas a Câmara dos Lordes
mantém aos olhos de muitos observadores sua razão de ser. Sem dispor de
um verdadeiro poder legislativo, ela tem um papel importante no procedi
mento legislativo, por um lado porque seu poder de retardar a adoção deum a lei não p ode ser negligenciado e acontece às vezes de um projeto qu e não
passa em final de sessão não ser reapresenta do na sessão seguin te e assim ser
enterrado; por outro lado, porque a proporção cada vez maior de pares vita
lícios, escolhidos entre as personalidades mais com peten tes do país, confere
aos debates um a grande qualidade técnica, conduz a emenda s e permite m e
lhorar numerosos projetos de lei.
B.ACoroa
A Inglaterra é um a mo nar qui a na qual a sucessão da Coroa se faz segu n
do as regras de hereditariedade do direito com um . As mulheres alcançam sua
posição segundo o grau de parente sco com o monarca precedente . El izabeth
II é hoje a rainha regente (Queen regnant) porque ascendeu diretamente à
Coroa. A esposa do rei é somen te a ra inha consorte.
A despeito de uma redução sensível dos poderes teóricos da Coroa no
decorrer da história, eles ainda são consideráveis. Eles constituem a “prerro
gativa” real. Fazem parte deles o direito de nomeação a numerosos empregos,
o direito de conceder o título de lorde, os títulos e condecorações, o direito
de convocar, prorro gar ou dissolver a Câmara dos Com uns , o direito de guer
ra e de paz, o direito de negociar etc.
Todavia, além do Parlamento poder restringir o alcance da prerrogati
va, as competências que ela comporta só pertencem ao rei nominalmente.
Seu exercício é do gabinete ou do p rimeiro -minis tro.
Dessa maneira, não é pela autoridade jurídica que a Coroa é uma peça
importante para o sistema político britânico. Até recentemente, a rainha e a
família real simbolizavam a grandeza do Império britânico e as virtudes da fa
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Os Reg im es P a r la m e n ta re s 2 0 7
mília inglesa. Por outro lado, a rainha era ma ntid a in form ada das decisões do
gabinete e pod ia exercer uma certa influênc ia pessoal. Finalm ente, a Igreja da
Inglaterra não está separa da do Estado - o que justifica a presença dos bispos
na Câ mar a dos Lordes - e a rainha é seu chefe.
Hoje, no entanto, a mo nar quia não é mais inquestionável. A crise apre
senta dois aspectos. De um lado, a rainha possui uma enorme fortuna priva
da, uma das maiores do mundo, e uma parte da opinião pública ficou choca
da quando soube que não só ela era isenta de impostos mas que todos os
membros da família real recebiam pensões públicas (a “lista civil”). O segun
do aspecto diz respeito aos costumes da família real. Nos anos do pós-guerra, ela tinha um papel simbólico importante e
oferecia a imagem de um a família ideal. Ora, um a série de escândalos de ne
griu e contin ua a de negrir essa imagem. O divórcio do príncipe de Gales e da
princesa , no mês de agosto de 1996, não foi suficiente para colocar um fim a
esses escândalos.
As dificuldades não são constitucionalmente intransponíveis. A rainha
decidiu pagar impostos voluntariamente, assim como colocou em funciona
men to u m comitê para refletir sobre o futuro da mona rquia. Entre as soluções propostas, a supressão da lista civil v ota da pe lo Parlamento . A rainha ti ra ria os
proventos das propriedades reais. Finalmen te , as ligações pr ivilegiadas com a
igreja anglicana cessariam, o que permitiria a um príncipe de Gales divorcia
do se casar novamente. En tretanto, uma vez que o com po rtam en to da família
real não é mais exemplar, alguns pensam que a função simbólica da unidade
da Grã-Bretanha poderia ser preenchida de outra forma.
O monarca é acompan hado p or um Conselho Privado composto por to
dos os seus conselheiros. Originalmente sua influência era considerável, masseu papel dim inuiu a partir do m om ento em que o Gabinete, que dele se ori
ginou, teve sua autorida de acatada pelo Parlamento. Ele é sob retud o o órgão
pelo qual devem passar certas decisões do gove rno, principalmente a convo
cação ou a dissolução da Câmara e o exercício do poder regulamentar. Por
sua forma, os regulamentos ingleses são Orders in CounciU quer dizer, orde
name ntos tomados em Conselho Privado. Com o os principais ministros de
le participam, seu papel é reiterar as medidcis adotadas pelo Gabinete. O
Conselho Privado tem também um papel de Corte Constitucional para cer
tos países do Commomvealth e será instado a examinar a validade das leis do
Parlamento escocês (v. supra).
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2 0 8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
C. O Gabinete [C h a r l o t , 1998)
O surgimento do Gabinete está ligado à evolução do regime parlamen
tar. Antes da Revolução de 1688, o rei escolhia entre os Privy Councillors
aqueles que fariam parte de um círculo mais restrito, o In ner Circle. Investi
do da confiança do monarca, ele era senhor para designá-los ou demiti-los.
Foi somente a partir do ministério Walpole (1721-1742) que a necessidade
dos membros desse conselho privado de desfrutarem da confiança dos Co
muns retirou-o da livre fantasia do soberano de fazer dele um gabinete no
sentido parlamentar do termo. Inicialmente instrumento do rei, depois ins
trumento do Parlamento, o Gabinete terminou sua mutação adquirindo a
forma atual de organismo do p artido majoritário.
O G abinete possui poderes consideráveis; não só exerce o po der execu
tivo propriamente dito e uma parte das competências devidas à prerrogativa
real, mas também detém o poder considerável de produzir uma “legislação
delegada”. Como em vários países e por razões similares, o Parlamento tem
dificuldades de adotar todas as leis necessárias: matérias muito técnicas, len
tidão dos procedimentos, ordem do dia sobrecarregada. Ele vota então uma
lei de habilitação pela qual autoriza o governo a baixar regulamentos. Estes
serão objeto de ratificação expressa ou tácita, pode ndo, mes mo após terem si
do ratificados, sofrer modificações sem necessidade de nova habilitação.
A composição do ministério é extremamente complexa por causa da
sobrevivência de antigas práticas. Compreende o primeiro-ministro, os mi
nistros, os secretários de Estado. Os ministros perte ncem a diferentes catego
rias. Há os ministros propriamente ditos que estão à frente do ministério, e
outras personalidades cujas funções, tanto honoríficas (por exemplo, Lordedo Tesouro Privado) quanto efetivas (Lorde Chanceler, Lorde presidente do
Conselho Privado) têm valor para fazer parte do ministério. Em relação aos
secretários de Estado (Foreign secretary,; Home secretary etc.), são personali
dades que estão à frente de uma antiga repartição pública que conservou o
nome de office. Entre eles e os m inistros p rop riam ente ditos não existe dife
rença a não ser a da antiguidade na criação da repartição.
Os secretários de Estado, ministros plenos, em bo ra sem o título, não de
vem ser confundidos com os parl iamentary secretaries que acompanham oschefes das grandes repartições ministeriais. São subministros investidos das
competências delegeidas pelos ministros aos quais estão ligados. Seu título
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Os Reg im es P a r la m e n ta re s 2 0 9
vem da função que exercem e que compreende a ligação entre a repartição à
qual pertencem e o Parlamento.
A complexidade d o órgã o foi acrescida pelo apare cimento , em 1941, de
ministros de Estado que, ao contrário do que ocorre na França, possuem pas
tas e são encarregados de acompanhar certas categorias de problemas ou de
coo rden ar as atividades de várias repartições.
Com exceção do prime iro-minis tro, teoricamente escolhido pela rainha,
e os ministros ès qua titéy todos os ministros e secretários de Estado são desig
nados pelo primeiro-ministro. O costume exige que os ministros pertençam
ao Parlamento (a proporção dos que pertencem à Câm ara dos Com uns e osque fazem parte da Câ mar a dos Lordes é da alçada do primeiro -ministro , re
servado o respeito ao Minis ters o fthe Crown A ct de 1937 que prevê para o Ga
binete ao menos três pares, não contando o Chancele r que é obrigatoriamen
te um lorde). Houve exceções para a origem p arlam enta r dos ministros, mas
elas se transformaram em aborrecimento para o Gabinete. De fato, como os
ministros só têm acesso às câmaras de origem, um ministro não par lame ntar
é um peso morto para o governo, uma vez que não pode assegurar a ligação
entre ambos. A liberdade de escolha do prim eiro-m inistro é limitada evidentemente pelo princípio da confiança necessária da Câmara, mas ela o é tam
bém pelo costume, que deixa poucas chances de acesso ao min is té rio para
uma personalidade que de início não obtenha a aprovação dos Comuns.
A retração da autorid ade govern amenta l. - O ministério é um organis
mo bem amplo (mais de 100 membros) para adaptar-se às exigências do
exercício da autoridade política. Assim, tradicionalmente, o Gabinete não
com preend e todos os ministros, mas só aqueles que o prime iro-m inistro d esignou para dele participar. Naturalmente, alguns deles têm o lugar assegu
rado pela importância de suas funções (Lorde Chanceler, ou seja, Ministro
da Justiça; Chanceler do Tabuleiro de Xadrez, ou seja, Ministro das Finan
ças; Secretário de Estado de Relações Exteriores), os outro s são c ham ado s de
acordo com a conju ntura. A organização dos trabalhos do Gabinete é recen
te: antes da guerra de 1914, não havia nem secretário permanente, nem
agenda (ordem do dia). Hoje, o procedimento foi racionalizado, mas foi
man tido o costume segundo o qual a discussão deve ser ma ntida até a un a
nimida de. Seg undo 1. Jennings, a pa rtir de 1880 o pro ced ime nto do v oto não
foi mais utilizado.
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210 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
O Gabinete se mostrou muito pouco flexível. Desde a Primeira Guerra
Mundial, Lloyd George reservou a tarefa de fixar a política do governo a um
gabinete de guerra que era composto somente cie cinco membros. O sistema
foi retom ado po r Winsto n Chu rchill em 1940. Desde então, um Gabinete In
terior ( Inner Cabinet) representou um papel discreto mas decisivo durante o
governo trabalhista de Attlee (1943-1951). Enfim, a prática dos Comitês do
Gabinete, comitês interministeriais incumbido s do e studo de u m certo tipo
de problemas, por exemplo o ajuste dos projetos de lei, tornou-se uma insti
tuição regular. Acresça-se a isso, para concentrar esforços, a atuação dos mi
nistros especialmente encarregado s da coor denaç ão e que são verdadeiros su- perminis tros.
Os comitês interministeriais são bem melho r estruturado s que na F ran
ça. Eles se reúnem sob a presidência do primeiro-ministro ou, na sua ausên
cia, de um ministro por ele indicado entre os ministros que não possuem
pasta, o que facil ita o tratamento de assunto s da ordem do dia; o que não
ocorre com os colegas encarregados de repartições. Certos comitês, com o os
da defesa, dos assuntos econômicos e dos negócios administrativos são per
manentes. São os standing committees.Dessa retração da a utorid ade governa mental alguns au tores ingleses de-
duzem a extinção do Gabinete como verdadeira autoridade governamental.
Ele seria apenas um a instância de recurso; o pod er efetivo pertenceria ao pri
meiro-ministro ajudado pelos Juniors Ministers e pela administraç ão.
O primeiro-m inistro. - Para caracterizar a situação do prim eiro-m inis
tro inglês, não faltam clichês: ele é o pivô, a alma do Gabinete. De fato, histo
ricamente, o Gabinete não teria se estabelecido sem sua ajuda, do mesmomo do que, politicamen te hoje, não sobreviveria à sua extinção.
Atualmente, o primeiro-ministro é o líder do partido majoritário. Essa
situação política condicion a seu estatuto jurídico. Mes mo q ue escolhido teo
ricamen te pela rainha, ele é imposto pela con jun tura política; prati cam ente é
escolhido diretamente pelos eleitores, uma vez que é o chefe do partido que
triunfou na competição eleitoral. Teoricamente representa o prim us inter pa
res diante dos colegas de ministério; de fato, seu título de líder do partido lhe
assegura o comando do Gabinete. É juridicamente responsável diante da Câ
mara dos Com uns, mas praticam ente existem poucas chances de que venha
a ser derrubado, pelo menos en quan to não for desautorizado pelo partido. Se
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Os R e gim e s P a r la m e n t a r e s 211
não corre riscos no plano parlamentar, deve, 110 entanto, preocupar-se com a
futura consulta eleitoral. O fracasso de seu partido nas eleições pode tirar-lhe
o título de líder, co mo foi o caso de E. Heath após a derrota eleitoral dos con
servadores em 1974. É assim necessário para o prime iro-m inistr o ao m esmo
tem po governar e governar de tal form a que seu partid o seja vitorioso nas fu
turas eleições.
Essa dupla tarefa implica poderes tão gra ndes que algun s autores ingle
ses não hesitam em chamar o primeiro-ministro de “monarca eleito” (B e -
nemy, 1965). Essa tese foi no e ntan to contes tada p or o utros que n egaram es
sa preeminência do primeiro-ministro e afirmaram a autoridade colegiadado Gabinete, tomando como base o governo Wilson. Mas, pelo menos após
o governo de Margaret Thatcher, assistiu-se novamente a uma grande con
centração de poderes nas mãos do primeiro-ministro. Isso se deve não só à
personalidade do chefe de govern o como também à sua preeminência no in
terior do partido majoritário e às exigências do exercício do poder num Es
tado moderno.
Considera-se que hoje existam realmente poucas limitações ao poder
do primeiro-ministro. Elas não existem fora do Gabinete, porque a maioriao apóia sem restrições, enq uan to q ue a oposição nã o dispõe realmente de ne
nh um poder, men os ainda no interior do Gabinete. As decisões mais imp or
tantes são preparadas por comissões acl hoc nomeadas pelo primeiro-minis-
tro e alguns ministros impo rtantes. Alguns autores pensam que a idéia de um
governo de gabinete é ilusória. Na realidade os ministro s têm um papel po u
co relevante na determinação da política do gabinete e agem sobretudo em
suas respectivas repartições, onde, ao co ntrário, parecem desfrutar de g rande
autonomia ( W e i r S. e B e e t h a m D., 1998).Disso resulta que o papel do Parlamento n o exame d a legislação é muito
pequeno e que os projetos d o governo são adota dos sem dificuldades e sem um
exame muito minucioso. Aliás, os ministros dispõem de um poder regulador
tão importante que é considerado hoje um poder legislativo paralelo.
O Cabinet Office. - Em seu trabalho , o Gab inete ministerial é auxiliado
por um órgão admin istr ati vo, o Cabinet Office, composto por funcionários
oriun dos da categoria superior da adm inistração (Administrative class) e co
locados sob com and o de u m secretário per ma nen te que auxilia as sessões do
Gabinete ministerial. O Cabinet Office tem um papel importante: preparar o
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212 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
trabalh o do governo estabelecendo os dossiês, estudar as questões que o pr i
meiro-ministro decide colocar na ordem do dia do Gabinete ou dos comitês
restritos, formular as decisões tomadas, conservar os documentos que asse
guram a continuidade do trabalho governamental, e finalmente, verificar se
as decisões do gabinete são respeitadas pelos ministérios encarregados de sua
implementação. O secretário permanente do Cabinet Office pode informar
ao primeiro-ministro os atrasos e resistências que encontra para a conclusão
da política do governo.
Sem dúvida, o Office não tem poder de decisão mas a importância de
seu papel logístico explica a preocupação do primeiro-ministro em manter o Office sob seu controle. Embora nomeie o secretário perman ente, sua ne u
tralidade fica comprovada pelo fato de ser imune às mudanças de equipe
ministerial.
2.0 FUNCIONAMENTO DO SISTEMA
A. Relaçõesjurídicas entreosórgãos:a fachada parlamentar
Se abstraíssemos o bipartidarismo e nos detivéssemos apenas na análi
se das relações entre os órgãos com base em suas prerrogativas e nos meios
de ação mútuos, seria necessário considerar que a Grã-Bretanha vive em re
gime parlamentar.
De fato, encontram-se na Inglaterra todas as características que se atri
buíam ao regime parlamenta r. Trata-se em primeiro lugar da especializaçãodos órgãos - alguns diriam m esmo da separação dos poderes - um a vez que as
câmaras exercem a função legislativa e o gabinete, a função executiva. Por ou
tro lado, trata-se de meios de ação m útuo s. Por um lado, o gabinete é politica
mente responsável diante da Câmara dos C omu ns que tem o poder de de rru
bá-lo. Por outro, o rei pode dissolver a Câmara a pedid o do primeiro-minis tro.
O co njun to dessas prerrogativas poderia ser objeto de dua s análises di
ferentes.
Primeiro, pode-se interpretar o regime parlamentar como um sistema deequilíbrio entre o poder legislativo e o poder executivo que dispõe de meios de
ação simétricos: a responsabi lidade e a dissolução. Dessa forma, em caso de con
flito, a Câmara derr uba o Gabinete, que em contrapartid a pede sua dissolução
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Os Reg im es P a r la m e n ta re s 2 1 3
pe lo rei. Uma variante dessa interpretação: um confli to que se produz quando o
Gabinete é derrubado deve ser submetido à arbitragem do corpo eleitoral. Se
gun do essa variante, a dissolução não é vista com o u ma arm a nas mãos do pri
meiro-ministro mas como um mo do de recurso do árbitro. Se na primeira va
riante o sistema parlamentar é um sistema de equilíbrio, na segunda é um
sistema democrático, um a vez que é o povo quem decide em últim a instância.
Segundo outra interpretação, o sistema parlamentar não se caracteriza
pelo equilíbrio mas sim plesmente pela supremacia do Parl amento. Pode-se
então considera r que, com o aliás ocorreu na França d a Terceira República, o
Parlamento, ou seja, a Câm ara dos C om uns reúne em suas mãos a totalidadedo poder. Dispõe sozinha do poder legislativo, uma vez que a rainha e a Câ
mara dos Lordes não estão aptos a participar realmente d o seu exercício. Por
ou tro lado, ela exerce o po der executivo através do Gabinete, que é a em an a
ção da maioria. Qualquer tentativa do Gabinete de fazer outra política que
não a da Câmara, n ão seria um conflito entre dois poderes mas u ma rebelião
do subordinad o contra o superior. Nesse caso, a Câmara dos Com uns d err u
ba o Gab inete, que é substituído por outro. Tal era a polí tica no século XIX.
Nessa perspect iva o dir eito de di sso lução não parecia um a arm a sim étrica deresponsabilidade mas somente um meio do subordinado se dar um novo
mestre. Naturalmente tal sistema só funciona se os membros da Câmara dos
Comuns se mantêm independentes dos partidos políticos. Se seguirem as di
retrizes partidárias ou se existir um partido majoritário, o cenário muda.
Ora, a realidade é hoje muito diferente daquela do século XIX por causa de
um fenôme no de importância capital: o bipartidarismo.
B. 0 papeldosistema de partidos: obipartidarismo
As origens do bipartidarismo. - Essas origens são m uito antigas. A pri
meira metade do século XVIII vê a disputa dos whigs e dos tories, partidário s
e adversários da dinastia de Hannover. Não se trata, no entanto, de partidos
no sentido mod erno, mas de grupos pa rlamentares sem estrutura nem disci
plina. Mas, no início do século XIX, os clubs se formam para organizar a pro
paganda em favor de uma reforma eleitoral. Quando isso ocorre em 1832, esses clubs serão utilizados para as campanhas eleitorais dos deputados e estarão
ligados aos dois grupos de deputados, conservadores (antigos tories) e liberais
(antigos whigs). Conservadores e liberais, que têm à sua frente fortes perso
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2 1 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
nalidades como Disraeli e Gladstone, se alternarã o no pod er du ran te a segun
da m etade do século XIX.
O desenvolvimento da classe operária e a ampliação do voto c ontrib uem
para produzir uma grande mudança polí tica. Os novos eleitores operário s
começaram votando nos liberais, mas como estes não se decidiam a tomar
pol ít icas favoráveis aos tr abalhadores, os sindica tos acabaram fundando um
novo partido, o partido trabalhista. Este apresentava a originalidade de ser
um partido indireto: uma vez que ele foi fundado por sindicatos, seus mem
bros se tornavam indiretamente membros do parti do. O novo partido tor-
nou-se de início uma grande organização com 900 mil membros. O caráter indireto era ainda marcado pelo fato de que o congresso dos sindicatos (o
Trade Union Congress) era - e ainda é - o órgão dirigente do partido e que o
líder e os candidatos ao Parlamento são escolhidos por um colégio eleitoral
no qual os sindicatos detêm 40% dos votos.
O rápido desenvolvimento do novo partido trabalhista, acrescentando
as divisões no interior do partido liberal e o escrutínio majoritário de turno
único, levará, após 1922, à substituição do c onfro nto Conserva dores e Libe
rais pelo novo c onfr onto entre Conservad ores e Trabalhistas.Além das oposições ideológicas, os partido s apres entam certas caracte
rísticas comuns importantes: são fortemente centralizados e o poder está
con cen trado em círculos restritos nos quais o líder, sub meti do t odo an o à re
eleição, tem um papel importante.
Há alguns anos a supremacia do bipartidarismo tem sofrido ameaças
do partid o liberal demo crata e dos par tidos nacionalistas escocês e galês.
As conseqüências do bipartidarismo. - O bipartidarism o altera as relações entre os órgãos. Já assinalamos um a conseqü ência do bipartid arism o: os
eleitores sabem que um partido será majoritário após as eleições e que o lí
der desse partido será o primeiro-ministro. Votam assim indiretamente para
escolher o primeiro-ministro. Mas o bipartidarismo afeta o funcionamento
de todo o sistema parlamentar.
Primeiramente, uma vez que o p rimeiro-ministro é o líder da maioria,
há poucas chances de ele vir a ser derrubado. Mesmo que seja colocado em
min oria a respeito de um projeto de lei particular, por exemplo após desaco r
dos no interior da maioria, ele não é obrigado a pedir demissão e só o fará
caso o voto coloque em dúvida sua política geral. Ele se mantém dessa forma
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Os R e g im e s Pa r l a me n t a r e s 2 1 5
até o final da legislatura, exceto no caso, muito raro, de dissidentes do parti
do se alinharem com a oposição, como ocorreu no mês de março de 1979.
Em segundo lugar, o Gabinete, formado p or dirigentes do partido, dispõe
de autoridade suficiente sobre seus membros para que a maioria adote os pro
jetos que submete aos Comuns. Aliás, aproxim adamente 90% das leis são de ori
gem governamental. Tudo se passa como se o Gabinete dispusesse não só do po
der executivo mas também do poder legislativo. Estamos assim muito longe do
esquema do regime parlamentar: não há nem predominância do Parlamento
sobre o Gabinete nem mesmo equilíbrio dos poderes, mas efetivamente supre
macia de fato do Gabinete sobre o Parlamento. Também não existe separaçãofuncional entre os três poderes, mas ao contrário, uma concentração de poder
enorme nas mãos do Gabinete e especialmente nas do primeiro-ministro.
Em terceiro lugar, a dissolução não pode preencher todas as funções
que lhe atribui a teoria clássica do regime parlamentar e principalmente
aquela de provocar a arbitragem do c orpo eleitoral em caso de conflito entre
poderes, porque o bipartidarismo impede que tais conf li tos ocorram. Em
contrapartida, pod e acontecer que a ameaça de dissolução induza os depu ta
dos a colocar o governo em minoria.Certos autores acreditaram ter descoberto um a nova função da dissolu
ção: ela seria um substituto do referendo. De fato, diziam, se o referendo não
existe na Grã-Bretanha, a dissolução permite consultar o povo sobre uma
questão importan te. Votando por um partido, o povo aprova a posição ado
tada e rejeita a posição do partido oposto. Essa tese, que se chocava com uma
série de críticas, parece hoje aband onad a: a razão principal é que o Pa rlame n
to, sendo soberano, pode perfeitamente organizar um referendo consultivo e
efetivamente o fez em 1975 com relação à renegociação da adesão da Grã-Bretanha à Comunidade Econômica Européia e novamente em 1998, na Es
cócia e no País de Gales, sobre a devolução dos poderes.
Mas, no essencial, a dissolução é somente um meio de provocar as elei
ções e de fixar sua data no m om en to que as pesquisas revelam ser o mais fa
vorável à maioria que deixa o governo. É a rainha que pronuncia a dissolu
ção, mas uma convenção da constituição faz com que ela sempre acate o
pedido do prim eiro-ministro.
Concentração de poder , democracia e liberdade. - Para o constitucionalis-
mo clássico, a concentração do po der nas mãos de um único hom em ou de um
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2 1 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
único g rup o é a própria definição do despotismo: aquele que pode fazer as leis
e executar pode efetivamente mudar a lei no momento de executá-la e segun
do sua vontade. No entanto, embora essa concentração seja incontestavelmen-
te realizada na Grã-Bretanha, é forçoso no tar que o po der não é despótico.
Isso se explica claramente. O fato de o poder estar concentrado não im
plica que o grupo que o detém seja homogêneo. Esse grupo é a maio ria parla
mentar, compreende o prime iro-ministro , o Gabinete, os deputados da base. Se
são incontestavelmente o prim eiro -minist ro e o Gabinete que exercem o poder,
eles são controlados não pela oposição, mas pelo próprio partido. O interesse
do partido é co ntinua r majoritário. Se ele estimar que a opinião pende pa ra aoposição, se a política do p rimeiro -min istro o levar à derrota eleitoral, o parti
do tentará de todos os modo s fazer com que ele se curve. Se não conseguir m u
dar a política do primeiro-ministro, só lhe restará mudar de líder, ou seja, de
primeiro-minis tro , como a cruel experiência de Marga re t Thatcher em 1990.
3. O PARLAMENTARISMO NO COMMONWEALTH BRITÂNICO
Todos os regimes políticos ocidentais, com exceção da Suíça, dos Esta
dos U nidos e dos Estados da América Latina, se dizem parlame ntaristas. Por
cobrir sistemas políticos tributários de circunstâncias locais tão diversas fica
claro que esse rótulo perde muito de seu significado.
No en tanto , ele conserva um sentido muito preciso nos ant igos Dominions
nos quais a presença de um a população de origem inglesa teve muita influência
na imitação das instituições britânicas. Todavia, à medida que os elos com a In
glaterra se afrouxam, esses países se orientam para fórmulas mais originais.O caso mais típico é o da índia . Sua constituição, proclamada em 27 de
janeir o de 1950, é sem dúvida, do ponto de vista fo rm al , uma const it uição
parla mentar. Ela inst itui um Presidente da República eleito pe lo Parlamento
federal e pelas assembléias dos Estados; um governo cujos me mb ros são desig
nados pelo Presidente da República e que é coletivamente responsável diante
do P arlamento; finalmente, um Parlam ento que, po r causa do caráter federal
da índia, comporta duas câmaras: a Câmara do Povo, eleita segundo o siste
ma inglês pelo escrutínio majoritário, e um Conselho dos Estados, cujosme mb ros são eleitos pelas assembléias locais. Mas some nte a C âm ara do Po
vo pode derr uba r o governo.
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Os R e g im e s Pa r l a me n t a r e s 2 1 7
No Canadá, na Aust rá lia e na Nova Zelândia , o regime se aproxima
muito mais do regime inglês. O Canadá é um Estado federal. O Parlamento
compreende assim duas câmaras: a Câmara dos C omu ns e o Senado. No ent an
to, a igualdade entre as províncias, as Provinces, não está assegurada pelo Sena
do: Quebec e Ontário têm direito a mais senadores que as outras províncias.
Por outro lado, o Senado não é uma Assembléia democrática, porque seus
mem bros não são eleitos, mas nom eado s pelo governador-geral. Isso explica
porque a in fluência dessa câmara conservadora é menor que a dos Comuns.
Até 1982, a cons tituição canad ense, que datava de 1867, era apenas u ma
lei do Parlam ento britâ nico e só pod eria ser mod ificada p or ele. Nessa época,o Parlamento de Westminster adoto u o Constitution Ac t , que dá ao C anadá o
poder de emendar sua const ituição, o que foi chamado de repatriamento.
Uma das primeiras manifestações dessa soberania constitucional foi a ado
ção, em 17 de abril de 1982, de uma Carta dos Direitos e Liberdades, dotada
de valor supe rior ao das leis e que pe rmi te, diferença capital com o direito in
glês, um controle de constitucionalidade. Todavia, o sistema canadense pos
sui uma característica que o distingue das outras formas de controle de cons
titucionalidade e se aproxima do direito inglês: o Parlamento se mantémsoberano e pode, da mesma forma que a legislatura de uma província, anu
lar expressamente certos artigos da C arta (art. 33).
O lugar ocupado pelo Canadá d entro da comun idade britânica é simboli
zado pela rainha da Inglaterra, que é formalmente o chefe de Estado. Ela é re
presentada por um governador-geral , que é n omeado de fato pelo primeiro-mi
nistro do Canadá. O Gabinete canadense é a réplica do Gabinete inglês: ele é
responsável. O primeiro-ministro é designado pelo governador que se limita a
investir o chefe do partid o majoritário: atualmente, o partid o liberal. Uma dassimilaridades do regime canadense com o regime britânico era a existência de
dois par tidos: os conservadores e os liberais. Mas, após as eleições de 1993, o pa r
tido conservador se enfraqueceu muito: os liberais dispõem da maioria absoluta
de cadeiras na Câmara dos Co mu ns e nen hu m outro partido tem condições de
suplantá-lo. Além disso, a influência dos partidos varia muito se considerada no
âmb ito federal ou no dos Estados-membros, chamados de “províncias”.
Há alguns anos o Canadá enfrenta graves problemas constitucionais li
gados à autonomia das províncias. É sobretudo o Quebec, única província
francófona nesse continente anglófono, que pede uma modificação na cons
tituição qu e permita obte r a indepe ndên cia pur a e simples, com o deseja uma
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2 1 8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
parte da popula ção ( W o e i i r l i n g , 1994). Essa população, consultada por meio
de referendo por duas vezes, em 1980 e 1995, rejeitou a independência por
uma pequena maioria. Os independentistas todavia não abandonaram a
idéia e consid eram a possibilidade de um novo referendo. Mas a questão que
se coloca é saber se, caso o r esultado desta vez seja diferente, o Que bec po de
ria decidir unilateralmente pela secessão. Acontece que uma constituição fe
deral dá aos Estados-membros o direito de se separar. Foi o caso da constitui
ção soviética. Mas a constituição canadense nada dispõe a esse respeito. O
governo fecieral então submeteu a questão à Corte suprema. Esta respondeu
pela negat iva2 (Gêly, 1999). A Corte julgou que, já que a constit uiç ão nãoconcede o direito de secessão, o referendo nã o p oderia pro duz ir po r si só ne
nh um efeito jurídico. A secessão eqüivaleria então a u ma modificação u nila
teral da constituição somente pelo povo do Quebec, enquanto que a revisão
só pode ser feita por todo o povo canadense. Contudo, no caso do povo do
Quebec exprimir claramente sua vontade de secessão, resultaria para as ou
tras províncias e para o governo federal u ma obrigação de ab rir negociações.
Isso evidentemente não impede, como reconheceu a corte, uma secessão de
factOy que r dizer, um a secessão pu ram ent e unilateral, contrária à constituição,mas que se beneficiaria do reco nhec imen to da ma ioria das outras províncias.
No quadro geral do parlamentarismo, a Aus trália se distingue por um
triplo p on to de vista. Primeiro, a igualdade de pod eres entre as duas câmaras.
O Senado eleito pelo sufrágio universal pelos Estados tem as mesmas prerro
gativas que a Câm ara dos Representantes. Disso resulta que, em caso de co n
flito com ela, ambos podem ser dissolvidos. As instituições australianas dão
um grande espaço ao referendo que é obrigatório para qualquer revisão da
constituição federal. Finalmente, as eleições para a Câm ara do s R epresentantes acontecem segun do u m sistema original, o voto preferencial, que con sis
te no fato de cada circunscrição só eleger um único deputado, e de que os
eleitores pode m apresentar vários candidatos, enu me rand o-os na cédula de
votação de acordo com a ordem de sua preferência. Na contagem dos votos,
o candidato “preferido” da maioria absoluta é eleito; no caso de não haver
maioria absoluta elimina-se o candidato que obteve menos votos e seus vo
tos passam aos candidatos que continuam no páreo. Reinicia-se a operação
até que um candidato ob tenha a maioria absoluta.
2 Nota relativa à secessão de Quebec (1998) 2 R.C.S. 217.
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Os R e g im e s Pa r l a me n t a r e s 2 1 9
O governador-geral, representante da rainha, preside um Conselho exe
cutivo, formado pelos ministros, que se reúnem na ausência do governador-
geral, sob a presidência do primeiro-ministro; esse órgão recebe o nome de
Gabinete. Ele não possui ne nh um a com petênci a oficial mas, na realidade, de
termina o conteúdo das decisões adotadas pelo Conselho executivo.
Mesmo que seja formalmente uma monarquia constitucional, a Austrá
lia rompeu com a maioria das amarras que ainda a prendiam à monarquia
bri tânica. Após 1986, como para o Canadá, os Australia Acts suprimiram os
poderes residuais do governo britâ nico sobre a Austrália . Assim, os processos
não são mais providos em recurso ao Conselho Privado. Além disso, haviaum forte mov imen to em direção ao estabelecimento da República. No e nta n
to, o projeto de reforma constitucional, que foi submetido a referendo em
novembro de 1999 e que necessariamente se referia à formalização das regras
do parlamentarismo, foi rejeitado por uma pequena margem. Segundo a
maioria dos comentaristas, o projeto fracassou não em virtude do apoio à
mo narq uia mas p orqu e previa eleições para Presidente da República via Par
lamento e não pelo sufrágio universal direto.
Foi a África do Sul quem mais se afastou do modelo britânico. Ela nãoreconhecia mais a autoridade da rainha desde a condenação do regime do
Apartheid pelas instituições do Commonwealth e se tornou uma República.
Hoje, ela é uma República federal, embora a palavra “federal’” não figure no
texto da nova constitu ição adotada em 1996, após o fim do Apartheid. O regi
me é do tipo parlam entar, apres entand o algumas características originais, en
tre as quais um executivo dualista, composto po r um presiden te eleito pela As
sembléia Nacional, a câmara baixa, e um Gabinete. Composto por um
prim eiro-min is tro, o Deputy President> e ministros, o Gabinete é escolhido pelo presidente entre os membros da Assembléia. A inovação é que tanto o pre
sidente quanto o Gabinete são responsáveis perante a Assembléia Nacional.
Seção 2
Algumasformascontinentaisdoparlamentarismo
Analisar, mesmo que sumariamente, as diferentes formas de governodos Estados europeus é quase impossível. Entretanto, como todos se decla
ram regimes parlamenta res e aplicam efetivamente, em linhas gerais, os pr in
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220 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
cípios do parlamentarismo, gostaríamos de chamar a atenção para as várias
configurações possíveis do parlamentarismo.
1. A CONCILIAÇÃO DO PLU RI PARTIDARISMO COM A ESTABILIDADE
DO GOVERNO: O PARLAMENTARISMO e s c a n d i n a v o
Em relação ao sistema britânico considerado como base de referência, a
diferença essencial dos regimes continentais é o pluripartidarismo. Todos os
países nórdicos praticam a representação proporc iona l, o que explica o grande
número de partidos representados no Parlamento. Por hipótese, o pluripartida
rismo con duz a governos de coalizão, ou seja, ministérios que não se apó iam so
bre maiorias homogêneas. Imedia tamente um dos elementos do sucesso do par
lamentar ismo britânico desaparece. O regime parl ame ntar seria ainda viável?
- A considera r pela vida política dos países escandinavos, a resposta é
sem dúvida afirmativa. Na Suécia, na Noruega ou na Dinamarca, das quatro
tendências que dividem a opinião (conservadores, liberais, socialistas e rura-
listas), nenhuma consegue a maioria absoluta, salvo exceções (como a Suécia
nas eleições de 1956). Duas soluções são então possíveis: u m gabinete de co a
lizão ou um gabinete minoritário. As duas soluções são utilizadas e são faci
litadas pelo fato de que os ministérios são formados e entram em funciona
mento sem a necessidade de voto expresso de confiança. Basta que sejam
tolerados. Indubitavelmente, pela lógica, não há diferença entre a confiança e
a ausência de desconfiança, mas politicamente não é bem assim, pois uma
coisa é exigir dos partidos o apoio expresso ao governo, outra é a aceitação
tácita. A tolerância sem engajam ento permite a form ação de gabinetes mi no ritários ou de governos de caráter técnico, como no caso da Dinamarca.
Os governos , claro, são responsáveis e devem se retirar se forem obje to de
voto de desconfiança. No entanto, muito embora não se beneficie da solidez
que confere o bipartidarismo, a instabilidade ministerial não é pa rticularme n
te grave nos países escandinavos. U ma explicação dessa estabilidade poderia ser
encontrada nos próprios mecanismos constitucionais. Assim, na Dinamarca,
os governos minoritários utilizam regularmente a dissolução. Eles se mantêm
graças ao apoio de maiorias alternativas, mas, quando não é possível formar um a maioria, rejeita-se a câmara peran te os eleitores. Chega-se assim a um sis
tema pró ximo daquele que alguns preconizam para a França a fim de remediar
as freqüentes crises ministeriais: um governo e só um por legislatura.
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Os R e g im e s Pa r l a me n t a r e s 221
Entretanto, uma razão muito mais profunda da estabilidade do gover
no deve ser encontrada nas relações dos partidos e da mentalidade de sua
clientela. Os partidos escandinavos, não menos que outros, são partidos de
classes ou pelo m enos partidos de categorias sociais, mas, me smo enraizados
nos interesses profissionais e econômicos, não consideram que a concorrên
cia deva levá-los à destruição. Claro, os fatores sociológicos (temperamento
nacional, multiplicidade das associações, senso de disciplina etc.) explicam
essa moderação. Mas é necessário também realçar a influência de uma certa
maneira de pensar o papel do poder. Não se trata de decidir, por uma prova
de força, o plano de sociedade futura que será encarregado de realizar, masde fixar no presente o lugar, a tarefa e os meios de cada grupo na construção
de uma obra que beneficie a todos. Então, os compromissos cotidianos são
possíveis; o govern o dura de acordo com sua necess idade; é mais lucra tivo
para cada um manter o governo pe lo que ele pode dar do que derrubá-lo pa
ra constitu ir outr o que talvez não possa fazer melhor.
Existe aí um estado de espírito que explica por que a idéia de soberania
absoluta do Parlamento não se adaptou nos países nórdicos. O Parlamento
aparece muito mais como um colaborador do governo do que como seu rival. Dito isso, o executivo conserva a iniciativa da política e dirige, em c onse
qüência, os trabalhos parlamentares que, pelo desenvolvimento do papel das
Comissões em detrimento das sessões plenárias, adquirem freqüentemente
caráter eminentemente técnico. Sem dúvida, o controle do Parlamento sobre
o governo continua intacto, mas ele visa mais a retificação da política seguin
te que a derrubada do ministério.
2.0 REGIME PARLAMENTAR NA ALEMANHA
As condições sociológicas e psicológicas do parlamentarismo são difi
cilmente substituíveis por uma armadura jurídica. No entanto, foi isso que
tentaram os membros do comitê que elaborou a lei fundamental para a Re
pública Federal da Alemanha de 8 de maio de 1949.
Em seu espírito, a Carta de 1949 é muito diferente da constituição de
Weimar, mas dela se apro xima pela minúcia e sutileza das disposições. A lem brança da asfixia traiçoeira da República de Weimar - Hitler não se serv iu de
suas instituições para abatê-la? - , acrescida da consciência da respon sabilida
de do texto de 1919 na insta uração de um clima político que não foi capaz de
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222 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
sanear, instigaram os constituintes n a pro cur a da estabilidade e da eficiência
do poder.
Encontram-se, em 1949, os mesmos órgãos que em 1919: um Parla
mento , um Presidente da República, um Gabinete dirigido po r um chanceler,
mas sua estru tura intern a e suas relações são concebidas diferentemente.
O Federalismo. - Na Alemanha, o federalismo é concebido como uma
forma de separação dos poderes, bem com o u m a garantia para as liberdades.
Após a derrocada da ditad ura nazista, que havia constr uído um Estado u nitá
rio extremamente centralizado, a Alemanha d o pó s-guerra re torno u ao federalismo, princípio proclamado no próprio nome do Estado e ao qual é vetado
causar qualquer prejuízo, mesmo que seja através de emenda constitucional.
Cada Land possui a própria organização constitucional, com um Parlame n
to, geralmente unicameral, um executivo eleito pelo Parlamento e um con
trole de constitucionalidade interno ao Land.
Os Lander constituem uma parte do Estado federal, em conformidade
com o princípio de participação ligado ao federalismo: os quinze Lander es
tão representados na Segunda Câmara, o Bundesrat . O n úm ero de representantes varia segundo a importância da população dos Lander , mas não de
modo estritamente proporcional. Esses representantes não são eleitos pelo
sufrágio universal, mas são membros dos governos dos Lander.
A divisão das compe tênci as entre a federação (o Bund) e os Lander se faz
segundo regras complexas. A constituição distingue três grupos de matérias:
aquelas da competência d o Bund (relações exteriores, defesa etc.); aquelas su
jeitas a competê ncias conco rrentes , ou seja, aquelas em que tanto o Bund co
mo os Lander podem intervir; e finalmente as matérias que não figuram emnenhuma das duas primeiras listas e que são da alçada exclusiva dos Lander.
Esse sistema implica duas conseqüências: primeiro, no plano institucio
nal, uma Corte Constitucional é imprescindível para colocar regras aos inevi
táveis conflitos de competência entre o Bund e os Lander ; segundo, no plano
polí tico, uma coordenação é necessária entre os dois níveis, parti cula rmente
qu and o se trata de matérias para as quais as conseqüências são concorrentes.
Na medid a em que fre qüente mente partidos polí ticos dife rentes estão no po
der no s dois níveis, a divisão das matérias deve levar à procura do com pro mis
so. De fato, constatou-se durante alguns anos, como em outros sistemas fede
rativos, uma evolução no sentido de crescimento dos poderes da federação.
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Os R e g im e s Pa r l a me n t a r e s 2 23
Mas, paralelamente, assistimos a uma ardente reivindicação dos Lãnder no
sentido de maior auto nom ia. Trata-se princip almen te de uma reação contra a
ingerência das competências comunitárias em domínios que se mostram, de
vido à constituição, de sua própria competência. Ora, o Estado federal con
traiu obrigações internacionais e não po de executá-las porque são da com pe
tência dos Lãnder, que acabaram obtendo uma modificação na constituição
federal. Daqui para a frente, nos termos do art. 23, quando o governo federal
participar na formação de atos legislativos comunitários que poderiam afetar
os interesses dos Lãnder , ele deve acatar a decisão tomada no Bundesrat que os
representa, assim com o não p ode a tenta r contra seus direitos através de atoscom unitá rios . É nesse contexto que, em sentença de 22 de ma rço de 1995, so
bre o pro jeto “Televisão sem fronte iras”, a Cort e Consti tu cio nal ju lg ou que,
votan do no Conselho da Europa e m favor da diretriz, o governo federal havia
violado o direito dos Lãnder ( M a r c o i j , 1995). Aliás, se a legislação comunitá
ria versa sobre matéria de exclusiva com petê ncia dos Lãnder , a Alemanha é re
prese ntada no Conselh o não pelo governo federal, mas por um representante
dos Lãnder nomeado pelo Bundesrat.
O Parlamento (G r o s s e r , 1978, p. 222 e s.). - É composto pelas duas câmaras
compreendidas no federalismo: o Bundestag (Dieta) que representa o povo todo
da federação e o Bundesrat que representa os Estados. As eleições ao Bundestag
acontecem segundo um modo de escrutínio que, combinando a representação
proporcional e o sistema majoritário, favorece os grandes part idos (v. supra).
Em conjunto com o Bundestag e o governo federal, o Bundesrat tem a
iniciativa das leis mas dispõe em princípio so men te do direito de veto suspen-
sivo con tra os textos votado s na ou tra Câmara. Esse veto só se reveste de caráter absoluto se a existência dos Lãnder estiver ameaçada, se a lei em questão
restringe os direitos fundamentais dos cidadãos ou finalmente se tiver relação
com os partidos ou com o regime eleitoral. Mas, o que é ainda mais impor
tante, é que o Co nselho Federal (Bundesrat) é o órgão que garante a orde m d e
mocrática. De fato, no caso do governo estar autorizado pela constituição a
negligenciar a decisão da Câmara Popular, ele não pode agir sem o acordo do
Bundesrat. Esse é sem dúvida um caso curioso de uso de federalismo pois tem
o efeito de man ter o equilíbrio parlam entar entre o executivo e o Parlamento.
O Bundesrat apresenta a originalidade de uma segunda câmara que,
longe de ter tido seus poderes afetados pelo declínio geral do bicameralismo,
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2 2 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
ao contrário, reforçou-os. Seu papel de responsável pela ordem democrática
não é estranho a essa evolução.
A Corte Constitucional (FROMONT, 1984). - O controle de co nstituciona
lidade é assegurado po r um a C orte Con stitucional federal, instituída pelo art.
92 da constituição e organizada por uma lei de 12 de março de 1951. Seus
mem bros, em nú me ro de 16, são escolhidos po r 12 anos, entre pessoas reco
nhecidas por suas competências jurídicas, metade pelo Buruiestag , metade
pe lo Bundesrat , por maioria de 2/3. Esse sistema implica que as designações
só pod em ser feitas po r acordo entre os dois grandes partidos e que os juizessejam ligados a esses partidos.
A Corte está dividida em duas câmaras cujas atribuições são diferentes.
Os podere s da Co rte são grandes e ela é mais juiz da cons tituciona lida
de no sentido estrito: ela é o guardião do regime e um regulador do equilí
brio polí ti co entr e os órgãos do Estado e as forças polí ticas do país. Ela exa
mina em prime iro lugar os conflitos relativos ao fun cion am ento do s poderes
públ icos: ela decide os confl itos de competê ncia entre o Bund e os Lcinder ; ela
pode ser interpelada para resolver conf li tos entre os órg ãos federais (por exemplo, de um a decisão de dissolver o Bundestag).
Em segundo lugar, ela assegura o controle de constitucionalidade das
leis e dos atos intralegislativos. O controle q ue é exercido a posteriori foi con
cebido de mo do mu ito extenso. A Corte pode ser requisitada in abstracto> fo
ra de qualq uer litígio, a pedido do govern o federal, de um Land ou de um ter
ço do Bundestagy mas também in concreto sob aditamento por um tribunal
ou ainda por um particular, sobre exceção de inconstitucionalidade, no caso
de violação de direito fundamental.Em terceiro lugar, a Corte assegura um a espécie de polícia da m oral ida
de política: ela pode pronunciar, a pedido do governo, a perda dos direitos
fundamentais dos indivíduos culpados de atividades contrárias aos princí
pios do regime e proibir um partido polí tico por violação da lei fundam en
tal. Esse é um poder enorme, que foi utilizado pela Corte em duas ocasiões
pronunciando sucess ivamente a inconsti tucionalid ade de um partido neona
zista em 1952 e a do partido comunista em 1956.
A Corte ocupa na vida política e jurídica alemã um lugar de destaque.
Isso se deve primeiro à extensão de suas competências, que lhe permitem
examinar todas as leis importantes e intervir em qualquer domínio, e princi
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Os R e g im e s Pa r l a me n t a r e s 2 2 5
palmente à maneira pela qual ela as exerce. Na prática, ela não se limita a de
clarar uma lei contrária o u co nform e à constituição, mas indica as condições
que essa lei deve satisfazer para ser considerada conforme. Ela vai até os de
talhes, o que a to rna qu ase um legislador. Foi dessa forma que, nu m a decisão
de 28 de maio de 1993, a respeito da interrupção voluntária da gravidez, ela
chegou a definir o número de dias que devem se passar entre a consulta da
mulher grávida a um especialista e o dia da intervenção médica e exigiu que
as conversações durante essas consultas sejam objeto de relatório escrito
(F r o m o n t , 1995).
Na Alemanha, como em qualquer outro lugar, uma lei decla rada contrária à constituição po deria ser adotada nov amente por emenda constitucio
nal. Entre tanto, certas disposições da lei fundam ental, relativas aos princípios
essenciais do Estado de direito, não podem ser modificadas, mesmo nos ter
mos do processo de revisão. Conseqüentemente, a corte pode vincular um
grande número de regras de jurisprudência a disposições intangíveis, muito
mais do que a disposições que possam ser modificadas, para evitar que suas
decisões sejam de rrub ada s p or revisão constitucional. Assim, com respeito ao
aborto , ela vincula a proteção do feto não mais ao art. 2o, alínea 1 (que p ro tege o direito à vida e à integridade física), mas ao art. Io, que proclama o
prin cíp io da dignidade da pessoa humana, que é intangível .
A importância da Corte decorre tam bém do seu papel de guardiã da so
berania alemã diante das insti tu ições eu ropéias, sobretudo da Corte de Lu
xemburgo. Principalmente após 1974, ela decidiu que o direito comunitário
derivado só pode ria ser aplicado na Alemanha se não fosse contrár io aos di
reitos fundamentais garantidos pela constituição alemã (F r o m o n t , 1995)3.
O Presidente da República (A r n o l d , 1995). - É eleito por cinco anos pela
Assembléia Federal que é composta pelos deputados do Bundestag e o mesmo
número de membros eleitos por escrutínio proporcional pelas Assembléias
dos Lander. Dessa forma a presidência é despojada do caráter plebiscitário
que lhe atribuía a constituição de Weimar, que torna va o presidente do Reich
o eleito do povo.
Além disso, a Carta de 1949 oferece ao chefe de Estado um papel extre
mamente apagado. Não só ela o priva das prerrogativas que possuía seu an
3 Decisões chamadas So hmge (duran te tanto tempo quanto...) de 29 de maio de 1974.
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2 2 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
tecessor 110 III Reich , sobretudo o direito de levar a referendo as leis votadas
pe lo Parla mento , como também quase reduz a nada os poderes aos quais ele
poderia asp irar no contexto do parlamentarismo trad ic ional. Ele não possui
a iniciativa das leis, seu papel normal na formação do Gabinete foi suprimi
do, e ele só dispõe do direito de dissolução em tais condições que cabe à As
sembléia permitir sua realização.
No entanto, se, mesmo que à primeira vista os consti tuin te s de Bonn
não pareçam ter dado continuidade à imprudê ncia dos de Weimar, que cede
ram à preocupação de estabelecer uma presidência forte, não puderam evitar
de deixar a porta aberta a essa aventura quando instituíram o “estado de necessidade” (v. infra). Sozinho, o presidente não pode fazer nada, mas com a
cump licidade do chanceler, ele poderia legalmente sup rimi r o parlam enta ris
mo e a democracia.
O chanceler. - A rápida cadência com que se sucederam os ministérios
da República de Weimar incitou a de Bonn a priorizar a estabilidade de go
verno. Fortalecidos pela experiência anterior na qual os governos eram der
rubados por coalizões dos extremos, de nacionalistas e comunistas, quer dizer, por uma maioria negativa, os constituintes imaginaram um sistema que
pode ser sintet izado pela fó rmula : só se pode derrubar um governo pela subs
tituição. Entretanto, não se pode exagerar nas virtudes do mec anism o criado
pelos consti tu inte s de Bonn. A estabil idade pol ít ica alemã deriva mais da h o
mogen eidade de opin iões e da disciplina do pessoal político do que de u m ar
tifício de procedim ento.
No iníc io de cada legislatura o chancele r federal é eleito pela Assembléia
considerando a proposição do Presidente da República. Caso o candidato proposto não seja eleito, a Assembléia pode eleger algum outro por maiori a
absoluta; caso não consiga, o Presidente pode então no me ar o candid ato que
tenha ob tido maioria simples ou pr on un cia r a dissolução da Assembléia que,
assim, é penalizada por não ter conseguido destacar no seu interior uma maio
ria sólida. Também é penalizada caso a maioria não seja coerente. Nessa hi
pótese, é a re sp onsabilidade minist eri al que está em jogo.
Se a Assembléia tom ar a iniciativa de dem ons trar desconfiança no cha n
celer, só pod erá fazê-lo elegendo u m sucessor pela maioria absoluta (art. 67).Se o chanceler colocar a questão de confiança e a Câmara recusar por
maioria absoluta, o Presidente pode, considerando sua demanda, dissolver a
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Os R e g im e s Pa r l a me n t a r e s 2 2 7
Assembléia num prazo de três semanas. Mas, se duran te esse período, o Bun-
destag reagir e eleger um sucessor para o chanceler, a dissolução não é mais
possível.
Esse sistema é eviden temen te engenho so, ma s não é tão eficaz como se
poderia imaginar . O mecanismo do ar t. 67, chamado de moção de censura
construtiva, só funcionou uma vez, quando o chanceler Helmut Schmidt foi
substituído por Helm ut Kohl em 1982, opo rtunid ade em que outros chance
leres puderam ser substituídos por procedimentos informais. É fácil imagi
nar que um chanceler seja compelido a pedir demissão por pressão interna
do próprio partido ou por ruptura da coalizão que o sustenta. Existe o riscoe é até possível conceber um a situação em que o chanceler se m an tém no p o
der sem o apoio da maioria mas com o apoio do presidente, simplesmente
porque não existe contra ele maioria suficiente mente coeren te para eleger
ou tro chanceler.
O estado de necessidade. - O perigo, aliás, aum en tou pelas prerrogativas
que a Carta de Bonn concede ao executivo em período de crise, de acordo
com uma técnica que fez dos constituintes alemães mestres relojoeiros emmatéria constitucional. O art. 81 comporta uma sábia mistura de hipóteses,
de condições, de prazos e de restrições suscetíveis de legitimar antecipada
mente a destruição do regime democ rático que, de boa fé, se queria proteger
contra seus próprios erros.
A hipótese é aquela na qual, mesmo que a moção de confiança coloca
da pelo chanceler não tenha obtido maioria absoluta, o presidente nem por
isso proclama a dissolução da Assembléia. Se esta rejeitar um projeto de lei
que o governo declarou urgente, o presidente pode, a pedido do chanceler ecom a aprovação do Conselho federal, proc lam ar estado de urgência legisla
tiva. O efeito dessa declaração será o de dar aos textos litigiosos valor de lei,
a despeito da rejeição pelo Bundestag.
Sem dúvida a constituição prevê que a declaração do estado de necessi
dade só prod uz efeito dur ant e seis meses, que ela não pode ser renovada, que
ela não autoriza revogar nem suspe nder a constituição, que a Assembléia po
de acabar com ela elegendo um novo chanceler; mas o art. 81 poderia dar
margem ao aparecimento de um poder autoritário. Bastaria que as divisões
da Assembléia tornassem impossível tanto o voto de uma moção de censura
construtiva que permita a substituição do Chanceler quanto a adoção de um
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2 2 8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
proje to de lei decla ra do urg ente . O presidente poderia então govern ar com
um governo m inoritário . O que torn a essa hipótese pouco provável - aliás,
ela nunca ocorreu - é o mo do de designação do presidente, que não c eleito
pelo sufrágio universa l, mas faz parte do Parlamento , e, sobre tu do, o sistema
parti dário alemão .
A polarização partidária. - Todavia, existe um fenôm eno, nã o previsto
pelos const ituin te s, que é de natu reza a afastar os temores alu did os anterior
mente. É a disciplina demonstrada pelo Parlamento de Bonn, disciplina esta
que é conseqüência do agrupa me nto dos partidos.Antes da reunificação, em parte por causa do modo de escrutínio, em
parte pela si tuação pol ít ica alem ã depois da guerra, eram quatro partidos
principais : ao la do dos dois gra ndes partidos, o social democrata (S.P.D.) e o
partido cristão democrata (C .D .U .-C.S .U .) , ex istiam dois pequenos part idos,
os liberais e os verdes, de ma neira q ue o chanceler pertencen te a um grande
part id o deveria ser apoiado por uma coalizão. Duas grandes combinações eram
possíveis: ou um a coalizão dos dois gra ndes parti dos (g ra nde coal izão), ou
uma aliança de um dos grandes partidos com o partido liberal que tinha o papel de partid o de art iculação , suscetível de se al iar ta nto com um quanto
com o utro partid o (pequ ena coalizão). Desde 1982, o chanceler He lmu t Kohl
benef iciava-se de um a coal izão de seu próprio part ido, o C.D.U., com o par
tido liberal. Essa aliança havia sido ren ovada em 1987, levando em con ta o re
sultado das eleições.
Após a reunificação, novas eleições ocorreram em 2 de dezembro de
1990. Os resultados dessa votação eram esperados com muito interesse pois
se tratava das prim eiras eleições livres organizadas no con junto da Alemanhadesde 1932. Mas, mesm o havend o doze m ilhões de eleitores a mais, o sistema
de partidos não foi abalado e a coalizão C.D.U.-C.S.U.-F.D.P., à qual atribuía-
se o sucesso da reunificação, foi beneficiada po r um a m aioria reforçada (qu a
se 55% dos votos e 398 cadeiras). O chanceler Kohl, o grande vencedor das
eleições, foi reconduzido ao posto. Com 33% dos votos e 239 cadeiras, o
S.P.D. saiu enfraquec ido m as co ntin uo u sen do a principal força de oposição.
O pa rtido co mu nista que havia sido declarado inconstitucional em 1956 rea
pareceu com o nome de Part ido do Socialismo Democrá tico (P.D.S.).
As eleições de 1998 representaram um acontecimento histórico. A coa
lizão dirigida pelo chanceler Kohl ruiu e deu lugar a uma coalizão formada
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Os R e gim e s P a r la m e n t a r e s 2 2 9
por socia l-democrata s e verdes, dir ig ida por Gerhard Schroder . Pela prim ei
ra vez na Alemanha do p ós-guerra um governo abando nava o pod er não pe
la ruptura da coalizão mas devido a eleições legislativas.
Constituição e reunificação (K i m m e l , 1990; G u ê r a r d , 1990). - E m 1990,
após o período de détente - a distensão internaciona l - e de desintegração do
regime comunista na R.D.A., e pela primeira vez depois de 1945, as circuns
tâncias eram favoráveis à reunificação da Alemanha. Para atingir esse objeti
vo, segundo a lei fundamental, duas vias eram possíveis: a do art. 23 que per
mitia aos territórios alemães que não faziam parte da R.F.A. a ela aderirem; ea do art. 146 que previa que “a lei fund am enta l perde eficácia no dia da en
trada em vigor de uma constituição adotada pelo povo alemão em plena li
berd ade de decisão”.
O p roce dim ento do art. 23 havia sido utilizado em 1957 para a adesão
da região de Sarre e aind a foi reto mad a em 1990, com algum a hesitação, pois
era a mais rápida e a mais segura. Na realidade, ela só necessitava de um ato
de adesão, en qu an to o art. 146 previa, antes da reunificação, a eleição de um a
Assembléia Constituinte e a adoção (eventualmente por referendo) de umanova constituição. As modalidades da reunificação foram regulamentadas
por vários trata dos feitos entr e os dois Estados alemães. Depois de ter re cons
tituído os cinco Lãnder que haviam sido suprimidos em 1953, o Parlamento
da R.D.A. (Volkskammer ) votou glob almente sua adesão à R.F.A. Esses cinco
Lãnder se jun tara m aos dez da R.F.A. e a unid ade alemã foi proclamad a em 2
de outubro de 1990.
A lei fundamental, por sua vez, continua em vigor mas sofreu algumas
modificações conforme estipulado nos tratados de reunificação. O art. 23 foi revogado para explicitar que a união havia sido concluída e que a Alemanha defi
nitivamente renunciava aos territórios situados ao leste da linha Oder-Neisse.
Por outro lado, estava previsto que até 1995 a legislação aplicável no antigo ter
ritório da R.D.A. poderia transgredir, em certos pontos, a lei fundamental.
3. O REGIME PARLAMENTAR NA ITÁLIA
As instituições italianas, tal como estabelecidas pela constituição de 1-
de janeiro de 1948, são, em sua form a, extrema me nte fiéis ao pa rlam enta ris
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2 3 0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
mo clássico e, conforme a configuração dos partidos políticos, suscetíveis de
func ionar seja de mo do monístico, seja de m od o dualista em período s de cri
se e de im potê ncia dos p artidos. A dem ocracia italiana, no entan to, nã o é ex
clusivamente representativa: a constituição institui a iniciativa popular e o re
ferendo ( P i z z o r u s s o , 2001; Dl* V e r g o t t i n i , 2000; RiCCi, 2000; C a s s e s e , 2001).
Um bicameralismo autêntico. - Com relação à maioria das constituições
poste riore s à Segunda Guerr a Mundia l, a consti tu iç ão ital iana se caracter iza
pelo bic amera li smo iguali tá rio (v. supra, p. 14). Isso se explica pelo momen
to político no qual oc orreu a elaboração da constituição. Após a queda d o regime fascista, o país estava profundamente dividido e um partido comunista
poderoso podia re presenta r um perigo à democra cia . Os part id os de direi ta
e do centro, dominados pela democracia cristã, procuravam evitar que uma
maioria eleitoral confiscasse o poder e, assim, passaram a imaginar institui
ções capazes de limitar esse risco. Uma dessas instituições foi a corte consti
tucional, a outra o bicameralismo, que permitia enfraquecer as forças resul
tantes das eleições dividindo-as. Além disso, o Senado, recrutado sobre uma
base regional , podia contribuir para a satisfação das asp iraçõ es à auto nomia .Os mesmos motivos levaram à instituição do escrutínio proporcional
integral para a eleição dos pa rlame ntares das duas câm aras. Esse sistema pr o
duziu seus efeitos habituais: a pulverização dos partidos políticos, a necessi
dade de formar coalizões parlamentares e a instabilidade governamental.
Os vários inconvenientes daí decorrentes conduziram a tentar, na falta
de reformas globais, a introdução de ao menos uma dose de escrutínio ma
jo ri tá rio. Após a re fo rm a de 1993 (v. infra), apenas um quarto das cadeiras
das duas câmaras ainda eram atribuídas através da representação pro porcio nal. Em 1999 e 2000, fracassaram as novas tentativas de elim inar a parte p ro
porc io nal do escru tínio (v. infra).
As duas assembléias têm poder idêntico. Tanto uma como a outra po
dem colocar em dúvida a responsabilidade do Gabinete e obrigá-lo a pedir de
missão. No entan to, elas correm o m esm o risco: ambas pod em ser dissolvidas.
As câmaras são investidas de poder legislativo. Entretanto, o exercício des
se poder apresenta certas particularidades. Em primeiro lugar, nos termos do
art. 71 da constitu ição, “o povo exerce a iniciativa das leis, através de um a p ropo
sição apresentada por cinqüenta mil eleitores e constituindo um projeto redigi
do em artigos”, o que representa um direito de petição. Por ou tro lado, as regiões,
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Os Reg im es P a r la m e n ta re s 231
cuja autonom ia é bastante grande, dispõem em certas matérias de direito legisla
tivo, concorren te ao d o Estado; em terceiro lugar, uma parte do p oder legislativo
pode ser exercido por comissões parlam entares ou ainda por referendo.
O poder legislativo das comissões parlamentares. - Instruídos pela expe
riência, pelo peso e pela lentidão do procedimento legislativo tradicional, os
constituintes italianos adotaram um dispositivo que retira parcialmente do
Parlamento suas prerrogativas legislativas. Com efeito, o art. 72 da constitui
ção dispõe que as câmaras pod em confiar às comissões não só o exame de um
pro je to como ainda a adoção definit iva de um texto legislativo.Até a adoção do texto legislativo pela comissão, esta pode ser desapos-
sada a pedido de um quinto de seus membros, do governo ou de um sexto
dos senadores. O projeto deve então ser discutido pela própria Câmara. Em
bora exista a possibil idad e de desapossamento , o procedim ento da co missão
legiferante foi abundantemente utilizado. Como ele é excluído para certas
matérias importantes (questões constitucionais ou eleitorais, ratificação dos
tratados, orçamento e disposições fiscais), permite que a câmara seja aliviada
da elaboraçã o de regras técnicas. Estas são adotada s ap ós discussão entre osespecialistas e o ministro interessado nos trabalhos da comissão.
O referendo ab-rogatório. - O art. 75 prevê que 500 mil eleitores ou c in
co conselhos regionais podem pedir a organização de um referendo para d e
cidir a anulação de um a lei, exceto, po r razões bem compreensíveis, certas m a
térias, especialmente as matérias fiscais. A partir do momento em que as
assinaturas são recolhidas, o referendo é obrigatório . Todavia, o art. 75 previa
que u ma lei deveria dete rm inar o pro cedim ento a ser aplicado. Ora, os partidos políticos foram durante muito tempo hostis à democracia semidireta e a
lei só surgiu em 1970 quando a democracia cristã quis a permissão para um
referendo destinado a anular a lei que acabava de autorizar o divórcio.
O p roced ime nto que o rganiza a lei de 25 de ma io de 1970 é muito co m
plexo. Perm ite decla ra r que certas demandas não podem ser recebidas , mas
não pode evitar a organização freqüente das consultas uma vez que, após
1974, mais de cinqüenta referendos foram realizados. Se os nove primeiros
não deram certo, em contrapartida os partidários do “sim” ganharam na
maioria dos referendos que se seguiram, principalm ente aqueles relativos à li
mitação do desenvolvimen to da energia nuclear (1987), à supressão do fina n
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2 3 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
ciam ento p úblico para os partido s e à reforma eleitoral ( 1 9 9 3 ) . Para que a lei
visada pelo referendo seja anulada, é preciso não só que a maioria dos vota n
tes tenha se pronunciado nesse sentido mas também que a taxa de participa
ção seja pelo menos igual a 5 0 % . Caso con trário, a votação é declarada nula
e sem efeito, como aconteceu em 1 9 9 0 com relação a um referendo sobre a
caça e os pesticidas lançado pelos ecologistas; em 1 9 9 9 , com relação à refor
ma eleitoral e, em 2000, com relação a sete projetos diferentes.
O referendo teve na Itália pelo menos cinco conseqüências importan
tes: pe rm itiu aos cidadãos participarem dos grandes debates da sociedade so
bre questões como o divórcio , o aborto, a escala móvel dos salários, a polí tica nuclear e con tribu iu para o desenv olvimento do par tido radical que esteve
à frente de várias proposições. Além disso, co ntribu iu para reforçar o pod er
da C orte Co nstitucional, com petente para acolher ou rejeitar as petições, se
gun do as disposições do art. 7 5 da constituição ( M é n y , 1991) . Finalmen te, na
med ida em que a iniciativa é tom ada fora dos partidos, em várias ocasiões o
referendo perm itiu aos cidadãos exprimir o desc ontentam ento com relação
ao sistema político em geral e ao sistema dos partidos em particular. Diante
da impossibilidade prática de se ob ter um a revisão da constituição, o referendo surge como o único meio de provocar uma reforma. Assim, um dos refe-
rendos ocorridos na primavera de 1 9 9 3 permit iu uma modif icação parcial,
mas importante, da lei eleitoral relativa ao Senado. Anulando alguns artigos
da lei em vigor pertencente ao Senado (em particular aquele ligado ao quó
rum de 6 5 % abaixo do qual o modo de escrutínio é a representação propor
cional), introduziu-se para a eleição de três quartos dos senadores a eleição
pelo escrutínio majo ritá rio uninom in al, o que obrigou o Parlamento a ado
tar uma nova lei eleitoral não só para o Senado mas também para a Câmarados Deputados (v. infra).
Constata-se e ntreta nto um desinteresse recente po r essa instituição. Por
várias vezes seguidas referendos muito numerosos - 3 7 entre 1 9 8 7 e 1 9 9 7 -
puderam ult rapassar a barr eir a do exame pela Corte Consti tu cio nal. Tra ta
vam de questões muito diversas e freqüentemente muito técnicas, de manei
ra que, várias vezes, o quórum não foi atingido. Doravante as forças políticas
são mais prudentes para iniciar um referendo.
O Presidente da República e a equipe de governo (E s c a r r a s , 1 9 9 0 ). - O
Presidente da República goza, segundo os term os da co nstituição, de um a si
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tuação que parece privilegiada se comparada àquela do seu homólogo fran
cês da Q uar ta República. Prime iro ele é eleito - para u m m and ato de sete
anos, conforme a tradição parlame ntar francesa - não pelo Parlamento, mas
por um a comissão composta de membros das duas câmaras, mais três dele
gados por região, o que resulta em sessenta delegados não parlamentares. A
eleição acontece por voto secreto, pela maioria de dois terços para os três pri
meiros turno s e pela m aioria absoluta em seguida. Esse m odo de designação
deixa transparecer, na prática, a divisão das forças políticas italianas. Em
1964, Saragat foi eleito no 21° tu rn o d o escrutínio, em 1971 foram necessá
rios 23 turnos para eleger Leone. Em 8 de julho de 1979, Sandro Pertini foieleito no 16° turno . Esse resultado, aliás, só foi ating ido porqu e seu beneficiá
rio, emb ora socialista de origem, não estava marcado por nen hum co m pro
misso político. No e ntan to, em 1985, a eleição do Presidente Cossiga foi con
quistada logo no primeiro turno e quase que por unanimidade.
As competências do presidente são importantes. Nomeia o presidente do
Conselho, ou seja, o chefe da equipe de governo, mas este deve obter e con ser
var a confiança das duas câmaras e todos os atos do presidente devem ter o seu
aval. O Presidente da República convoca as câmaras e tem o po der discricionário de dissolvê-las em conjunto ou separadamente. Tem autoridade para pedir
às câmaras uma segunda deliberação assim como endereçar-lhes ofícios. Dis
põe do poder de regulamen tação e de todas as atribuições tradicionais de um
chefe de Estado parlamentar (nomeação de funcionários, prerrogativas diplo
máticas para acreditar embaixadores e ratificar tratados, conceder anistia etc.).
Conforme as tradições parlamentares, não pode ser responsabilizado.
Na realidade, como ocorr e com freqüência nos regimes parlamenta re s,
se o presidente do Conselho dispõe de m aioria parlam entar, é ele quem exerce os poderes de Presidente da República. Mas ele retoma seu papel em p erío
dos de dificuldades. Quando não existe maioria evidente, é o presidente
quem deve procurar uma coalizão possível e alguém para dirigi-la. Ele está
então em condições de pesar o conteúdo da política determinada por esse
ministério. Fala-se então de gabinete presidencial. Da mesma forma, depois
do governo ter sido derrubado, o presidente pode dissolver, mas ele pode
tam bém recusar-se a fazê-lo, se julgar que novas eleições não perm itirão en
contrar maioria evidente. Isso ocorreu em 1995, após a queda do governo
Berlusconi, quando o Presidente Scalfaro preferiu nomear um governo de
técnicos dirigido por Dini.
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2 3 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
A Corte Constitucional (Z a g r e b e l s k y , 1977; E s c a r a s , 1988). - A Corte
Constitucional era prevista pela constituição, mas só entrou em vigor oito
anos m ais tarde, sobretudo porq ue não foi possível designar-lhe os mem bros.
Estes são em n úm ero de 15, nomeados p or 9 anos segundo um proced imen
to bastante complexo: um terço é nomeado pelo Parlamento em sessão co
mum (pela maioria de dois terços nos dois primeiros turnos do escrutínio e
de três quintos nos turnos seguintes), um terço pelo Presidente da Repúbli
ca, um terço pelas magistraturas supremas (Corte de Cassação, Conselho de
Estado, Corte de C ontas).
Eles podem ser escolhidos pelas competências entre os membros das profissões ju rídicas (m agis trados, advogados e professores de direito das un i
versidades), mas é claro que na prática, cons iderand o o m odo de designação,
os critérios da escolha estão longe de ser indepen dentes de qu alqu er pre ocu
pação polí tica . O presidente é eleito por um perío do de três anos entre os
membros da Corte.
A Corte dispõe de poderes im portantes no tocante ao controle de consti
tucionalidade das leis. Ela exerce um controle de constitucionalidade a priori
sobre as leis regionais e um controle a pôsteriori sobre as leis do Estado e dasregiões. A Corte pode ser cham ada a julga r por via de exceção pelos tribun ais.
Ela também está encarregada, como num Estado federal, da decisão de con
flitos de competência entre órgãos do Estado e entre o Estado e as regiões,
podendo estatu ir em maté ria penal para ju lg ar as acusações feitas contr a o
Presidente da República e contra os ministros. Essas competências deram à
Corte um papel de primeiro plano, sobretudo político.
A crise do sistema político italiano. - Há alguns an os a Itália atravessauma crise profunda que afeta tanto as instituições políticas quanto os parti
dos. Aliás, os dois e lementos estão ligados.
A vida política italiana tem uma característica essencial que era, e ainda
é, o fato de se desenvolver fora do q uad ro constitucional. Tudo era decidido na
cúpula dos partidos, a formação da equipe de governo, sua composição e sua
queda, tanto quanto a nomeação dos funcionários ou a organização das em
presas nacionais. Ora , o plu ra lismo dos part id os políticos se complicava pela
existência da diversidade de tendências que se afrontavam em cada formação.
Fusões e cisões se sucediam do lado dos socialistas. Quanto à democracia cris
tã, era uma federação de clãs e de facções. Os governos deviam se apoiar em coa
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lizões nas quais a democracia cristã era o elemento principal e permanente,
mas que associavam o partido socialista e três partidos menores. Essa fórmula
era conhecida como “ pentopartidarism o”. O sistema sofria de graves defeitos
que o desacreditaram aos olhos de um a grande parte da opinião pública. O pri
meiro era a instabilidade ministerial. Certos componen tes se retiravam p or ve
zes da coalizão para tentar alguma ou tra combinação. Assim, a vida média dos
governos era mu ito curta. Entre 1945 e 1991, a Itália passou p or cinq üen ta go
vernos. O ou tro defeito era a existência de uma extensa corrupção.
Após 1993, dois fatores principais contribuíram para a transformação
profunda do sistem a político . O primeiro é a operação “m ãos limpas”. Os pro curadores da República desencadearam perseguições judiciár ias a negócios
de corrupção e conluio com a máfia, contra um grande número de dirigen
tes de empresas, de funcionários e de eleitos pertencentes a todos os partidos
políticos. Mais de 10% dos parlamenta res fo ram processados, dentre os quais
dois antigos presidentes do Conselho, Bettino Craxi e Giulio Andreotti. Esses
acontecimentos acabaram por desacreditar ainda mais as elites políticas. O
segund o fator é a reforma eleitoral adotada depois do referendo de 18 de abril
de 1993 que havia revogado a lei eleitoral relativa ao Senado. O Parlamentodevia, nessas condições, ado tar um a nova lei que modificava pro fun dam ente
o modo de escrutínio que, a partir daí, passava a ser majoritário com turno
único para os três qua rtos das cadeiras nas duas câm aras. As cadeiras restan
tes são distribuídas de modo proporcional.
O descrédito lançado sobre os pa rtidos políticos e o novo sistema elei
toral levaram a uma recomposição política tão profunda que alguns acham
que a Itália vive hoje sob um a Segunda República. A dom inaçã o da d em ocra
cia cristã terminou e as forças agora se organizam em dois grupos principais,à direita a “casa das liberdades” que co mp reend e o mo vim ento Forza Italia de
Silvio Berlusconi e o p artid o pós-fascista Aliança Nacional; à esqu erda, o Oli-
vier com o partido popular e o partido democrata-socialista oriundo da
transformação do antigo partido comunista. O novo sistema já passou pela
prova da altern ância . Durante as e leições legislativas de 1994 um a coal izão de
direita garantiu um sucesso relativo mas a rup tura dessa coalizão acabou por
definir a dissolução do Parlamento. As eleições que se seguiram deram a vi
tória ao Olivier, depois as de 2001 presenciaram o triunfo da direita4.
4 Meny Y., “Le 13 mai de Silvio Berlusconi”, Le Mond e, 17 de maio de 2001.
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2 3 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
No entanto , persiste o sentimento da necessidade de um a reform a cons
titucional, pois a constituição atual não garante a estabilidade e a eficácia do
governo. Embo ra a influência dos pequeno s partidos tenha dimin uído após as
eleições da primavera de 2001, sobretudo à direita, eles poderiam ameaçar a
hom ogen eidade das coalizões. Duas teses se opõem . Alguns desejam o que cha
ma m de presidencialismo, ou seja, um sistema vagamente inspirado na consti
tuição francesa da Quinta República, fazendo eleger pelo sufrágio universal o
Presidente da República ou o Presidente do Conselho que manteria sua res
ponsabilidad e política. Outro s gos tariam de adota r certos mecanismos do par
lamentarismo racionalizado, tornando mais difícil o questionamento da res ponsabilidad e do governo inspirando-se principalm ente no modelo alemão.
Uma prim eira tentativa de reform a, a da comissão bicameral, fracassou
em 1998. A comissão composta por deputados e senadores devia preparar
um projeto em derrogaç ão às disposições previstas para a revisão. Chegou-se
a um projeto, similar ao sistema francês, com eleição direta do Presidente da
República cujas comp etências n ão ficaram bem definidas, mas qu e fracassou.
Tentou-se então ou tra via: um referendo análogo ao de 1993 que visava revo
gar as disposições eleitorais reservando 25% das cadeiras da assembléia paraa representação proporcional e eleger sobre os 25% os melhores perdedores
do escrutínio majoritário. Esse referendo, organizado em 18 de abril de 1998,
também fracassou, na falta de uma participação suficiente e também por
causa da oposição dos pequeno s partidos que temiam o escrutínio m ajoritá
rio. No entanto, as eleições de 2001 não impediram que se acentuasse o mo
vime nto de bipolarização. Por um lado, os partidos que não pertencem às duas
grandes coalizões perdera m o essencial de suas influências e po r ou tro, no in
terior da coalizão de direita, o m ovim ento Forza Italia predom ina incontestenas duas assembléias de maneir a que seu líder, Silvio Berlusconi, está em co n
dições de dirigir um governo que terá à sua disposição um apoio parlamen
tar estável.
A autonomia regional - A constituição italiana de 1947, mesm o pro cla
mando a república una e indivisível, dá às regiões uma autonomia conside
rável, o que leva a falar-se de Estado regional como se falou de Estado fede
ral. A bem dizer, certos autore s pen sam que entre eles só existe um a diferença
de grau. A auton om ia só aum entou após as reformas adotadas na primavera
de 2001. Co m a regionalização, diferentes objetivos foram persegu idos. No fi
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nal do fascismo, tratava-se de rem ediar os defeitos de um sistema totalitário
e excessivamente centralizado p reservando a liberdade no âm bito das coleti
vidades territoriais. Ao mesm o tempo, pensava-se que seria mais difícil a co n
quista do p ode r pelos com unistas. Na seqüência, a auton om ia regional teve o
papel de barrar as re iv indicações in dependentista s que se manifestam no
norte e de aten uar as dificuldades institucionais do governo central.
Cada região é governada p or u m conselho regional, um executivo e seu
presidente . Ela desf ruta de autonom ia financeira e exerce o poder legislativo
em mu itos assuntos imp ortan tes. É por essa característica qu e ela se asseme
lha a um Estado-membro de um Estado federal ( G r o p p i t , 2000, p. 481; H a m o n , 2001, p. 28). Após a modificação de 2001, a constituição determina três
tipos de matérias. As primeiras são enumeradas de maneira limitativa e de
terminam a competência exclusiva do Estado, quer dizer, da lei nacional. As
segundas, também enum eradas, estabelecem a competência concorrente do
Estado e das regiões. A terceira categoria não é objeto de nenhuma lista, mas
todas as matérias que n ão estão na prim eira e na segunda lista inserem-se na
com petência das regiões; assim sendo, é um a com petência de direito com um .
As leis regionais são verdadeiras leis e não atos administrativos no sentido de que elas só podem ser contestadas, mesmo pelo Estado, diante da
Corte Constitucional.
4. O REGIME PARLAMENTAR NA ESPANHA 0-AVROFF, 1 9 8 5 ]
Entre os grandes Estados da Europa Ocidental, a Espanha foi o que as
cendeu mais recentemente à democracia. Foi som ente em 1975 que a dita du ra franquista teve fim, depois de 35 anos no poder, com o desaparecimento
do General Franco, morto no seu leito após longa agonia. O rei Juan Carlos,
sucessor designado pelo próprio general, por sua acepção do pluralismo po
lítico e da soberan ia popular, facilitou a transição para um regime de m ocr á
tico. Essa trans ição se completo u em me nos de três ano s pelas vias legais. Ela
borada pelo governo mas ra ti ficada pela assembléia legislativa e aprovada por
referendo, a constituição de 29 de dezembro de 1978 estabeleceu um regime
parla menta r, cujo mecanis mo é in spirado, em ce rtos ponto s, em modelo s estrangeiros, especialmente o alemão, o italiano e o francês, mas que apresenta
no entanto traços peculiares.
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2 3 8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Forma do Estado. - Segundo o art. Io da constituição, “a forma política
do Estado espanhol é a monarquia parlamentar”. O rei personifica a comuni
dade nacional, mas deve ser claramente sepa rado d o governo, que possui, em
concordância com o Parlamento (Cortes generales), a prerrogativa sobre a
conduta de uma política. Ele “arbitra e modera o funcionamento regular das
instituições”, mas os poderes a ele atribuídos pela constituição (promulgação
de leis, dissolução do Parlamento, convocação de referendo, nomeação dos
ministros e dos membros do tribunal constitucional etc.) só podem ser exer
cidos com o aval do presidente do governo o u, eventualme nte, do presidente
do Congresso dos Deputados (no que diz respeito, por um lado, à proposição e nomeação do presidente do governo e, por outro, à dissolução conse
cutiva apó s u m a crise ministerial prolonga da). De fato, esses poderes corres
pondem quase sempre a competências conjuntas ou, em outros termos, a
competências que é obrigado a exercer e que não deixam margem de delibe
ração. Trata-se então de um regime parlamentar monístico no qual a função
de chefe de Estado é hereditária.
Estruturas do Estado. - Qu an to às estruturas do Estado, elas se caracterizam pela vontade de romper com a concepção unitária e centralizadora do
regime franquista, sem configurar um autêntico federalismo. A constituição
repousa “sobre a unidade indissolúvel da nação espanhola”, mas garante o
“direito à auton om ia das nacion alidades e regiões que a com põ em ” (art. 2o).
Uma comunidade autônoma é constituída de várias províncias, geralmente
limítrofes, que solicitaram se reagrupar em função dos laços históricos, cul
turais, lingüísticos ou econômicos que as unem. As principais matérias da
competência das regiões autôn om as estão enum eradas pela constituição, maso estatuto de cada com unidad e - que toma a forma de uma lei nacional - p o
de com pletar a lista dessas matérias. No âm bito das regras ditadas pela cons
tituição, as comunidades determinam a organização de suas instituições de
autogoverno, o que significa que possuem, em certa medida, a competência
da competência.
Por outro lado, as com unidades au tôno ma s são representadas na câma
ra alta do P arlamento nacional, o Senado. Mas este último não rep resenta so
mente as com unidade s autôno ma s (v. infra) e não é, assim, um a seg unda câ
mara de tipo federal como o Senado americano ou o Bundesrat alemão.
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Os R e gim e s P a r la m e n t a r e s 2 39
Regime representativo e democracia direta . - O povo espanh ol, “do qual
em ana m todos os poderes do Estado” (art. Io), é representado pelas Cortesge-
nerales (Parlamento), que são formadas p or duas câmaras:
- O Congresso dos Deputados representa diretamente a população. A
eleição acontece por escrutínio de lista com representação proporcional no
âm bito de cada província. As cadeiras, que variam do m ínim o de trezentas ao
máxim o de quatrocentas, são divididas proporcion almen te à população, após
atribuição a cada província de uma representação inicial mínima.
- O Senado é a câm ara de representação territorial. Cada p rovíncia dis
põe do mesmo núm ero de cadeiras (quatro), não im portando o tam anho desua população. Ademais, cada comu nidade autôn om a designa um senador e
mais um para cada fatia de 1 milhão de habitantes.
Excetuando-se os senadores representantes das comunidades autôno
mas, que são designados pelos órgãos de suas comunidades, todos os mem
bro s das Cortes generales são eleitos pelo sufrágio universal direto por quatro
anos. Mas o Congresso dos depu tados, assim com o o Senado, pod em ser dis
solvidos antes do término desse mandato.
O bicameralismo espanhol não é igualitário: em primeiro lugar, é oCongresso dos Deputados que questiona o governo e que pode colocar em
diivida sua responsabilidade. Em segun do, em caso de conflito entre as duas
câm aras sobre o voto de um texto, o Congresso dos D eputad os po de ter a úl
tima palavra, exceto em matéria con stitucional, para a qual a anuência do Se
nado é indispensável.
As Cortes generales exercem o “pode r legislativo do Estado” (art. 66) mas
podem conceder uma habilitação ao governo em dete rmin adas maté ria s (art.
82). Além disso, do m esm o mo do que na Itália, cada câm ara po de delegar àssuas comissões legislativas permanentes a faculdade de aprovar projetos ou
pro posições de lei (art. 75).
Mesmo que a constituição seja fundada principalmente n o princípio re
presentativo, ela prevê a poss ib il idade de re fe rendo em dois casos:
a) O referendo consultivo. Ele é convocado pelo rei a pedid o d o p residen
te do governo, anteriormente autorizado pelo Congresso dos Deputados (art.
92). Seu resultado constitui-se em simples sinalização para o Parlamento, queé o senhor da decisão, ao menos juridicamente. Em 1986, Felipe Gonzales a
ele recorreu para aprovar a permanência de seu país na OTAN.
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2 4 0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
b) O referendo constituinte de ratificação. Qua lquer revisão da con stitui
ção deve ser aprovada pelas Cortes generales. Ela será subm etida a referendo de
ratificação, se o pedido for efetuado por um décimo dos mem bros de qu alquer
um a das duas câm aras (art. 167). Assim, basta que haja a oposição de uma pe
quena mino ria pa rlamen tar para que o povo seja levado a se pronunciar.
Finalmente, o art. 72 da constituição prevê não o referendo de iniciati
va popular, mas a iniciativa popular das leis, que é uma espécie de direito de
petição aprim orado. Seu princíp io , colocado pela consti tu ição, fixa o niime-
ro de 500 mil assinaturas no mínimo, que deverão ser exigidas, e que certas
matérias (impostos, direito de anistia etc.) estão excluídas do do m ínio d a iniciativa.
Estabilidade governamental e parlamentarism o majoritário. - O processo
de form ação do governo se parece com o q ue havia colocado, em sua versão
inicial, o art. 45 da constituição francesa de 1946. O rei propõe um candida
to à presidência do governo. O candidato se apresenta diante do Congresso
dos D eputad os e o rei só pode no me á-lo caso tenha o btido a investidura atra
vés de voto da maioria absoluta dos mem bros do Congresso. Os ou tros m em bro s do govern o são nom eados e demit id os pe lo rei, re speitada a pro posição
de seu presidente.
As relações entre o governo e as cortes são ajustadas de acordo com as
técnicas do parlamentarismo racionalizado. Dessa forma encontramos no
art. 112 o sistema alemão denominado “desconfiança construtiva”: para ser
recebida, uma moção de censura dirigida contra o governo deve ao mesmo
tempo apresentar um candidato à presidência do governo. Caso seja adota
da, presume-se que o candidato tenha confiança da Câmara e o rei o nomeia presid ente (a rt . 114).
As Cortes generales, o Senado ou o Congresso dos Deputados po dem ser
dissolvidos pelo Rei, sobre a proposição do presidente de governo. Ne nh um a
pro posição de disso lução pode ser apre senta da enquanto alguma moção de
censura estiver em and am ento . Mas, nos casos de crise ministerial prolo nga
da, se no prazo de dois meses, a con tar da prim eira investidura, nenh um can
didato conseguir a confiança do Congresso, a dissolução será automática.
Mas, como na Alemanha, as técnicas do parlamentarismo racionaliza
do quase não tiveram oportunidade de entrar em ação, pois, ao menos até as
eleições da primavera de 1993, o governo pôde sempre se apoiar na maioria
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parlamenta r. Tratava-se, prim eir amente , de maio ria homogênea e d iscip lina
da constituída de início pela União do Centro Democrático (UCD), depois,
pelo Partido Socialista Esp anhol (PSOE). Após as eleições de 1993, como o
PSOE não dispunha mais de maioria absoluta das cadeiras, seu líder, Felipe
Gonzales, teve de form ar u m a coalizão com os partidos nacionalistas bascos
e catalães. Essa solução, que tende a reforçar as com unid ades autô no m as, se
produziu novamente após as eleições de 1996. O líder do parti do conserv a
dor, que havia obtido uma vitória relativa, teve também de procurar a alian
ça com os nacionalistas catalães.
O Tribunal Constitucional (B o n , M o d e r n e e R o d r i g u e z , 1984). - O
controle de constitucionalidade é confiado a um Tribunal Constitucional,
instituído pelo art. 192 da constituição e que é formado por doze membros
nomeados pelo rei: quatro indicados pelo Congresso dos Deputados pela
maioria de 3/5 de seus membros; quatro indicados pelo Senado pela mesma
maioria; dois indicados pelo governo e dois indicados pelo Conselho Geral
do Poder Judiciário (cujas funções são comparáveis às do C onselho S uperior
da Magistratura da França).As condições de qualificação exigidas são muito restritivas, como na
Alem anha e na Itália. Só pode m ser designados m agistrados de cátedra ou li
gados à procura dor ia, professores universitários, funcioná rios públicos e ad
vogados, todos juristas de competência reconhecida e que tenham pelo me
nos quinze anos de exercício profissional.
O controle é exercido sempre a posteriori, mas é bem completo porque
os diversos modos de apelação permitem ao Tribunal Constitucional conhe
cer potencialme nte todos os atos dos poderes públicos e não som ente as leis.O recurso pelas autoridades políticas é usado am plamente. Q uer em a
nem do Estado ou de um a com unidad e autôn om a, as leis podem ser deferi
das ao tribunal pelo presidente do governo, por 50 deputados ou 50 senado
res, pelos órgãos executivos das com unid ades a utô no m as ou pelo defensor do
povo, que é um tipo de ombudsman eleito pelo Parlamento. Esse recurso só
pode ser uti lizad o nos três meses seguin tes à publicação da lei.
Da mesma forma que na Alemanha e na Itália, o tribunal também po
de ser aciona do pela devolução (de conhe cime nto de processo) de um a juris
dição ordinária, qu an do a questão da con stitucionalidade de um a lei se colo
ca no decorrer de um processo. Trata-se do procedimento dito de exceção
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2 4 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
que não está adstrito a nenhuma condição de prazo e permite, assim, ao tri
bunal examinar (o u reexaminar) um a lei promulgada há vár ios anos.
Finalmen te, o recurso de amparo, que ap resenta analogias com o re cur
so constitucional alemão, perm ite a um a pessoa física ou jurídica acionar d i
retamente um tribunal, na condição de invocar um interesse legítimo. Pode
ser dirigido contra u m ato administrativo, ou m esmo contra u ma decisão ju
risdicional, mas não pode visar diretamente uma lei. No entanto, nesse pro
cedimento, o próprio tribunal pode levantar a questão de inconstitucionali
dade de uma lei caso estime que o agravo imputado ao ato atacado encontre
sua origem numa lei (questão de autoconstitucionalidade).O tribunal constitucional se reúne no rmalm ente em formação plenária.
Todavia, para exa min ar os recursos de amparo, extrem ame nte nu mero sos, ele
se divide em duas câmaras e somente as questões de autoconstitucionalidade,
nas quais uma lei está em discussão, são enviadas à formação plenária.
Convém notar que, diferentemente de outras cortes constitucionais eu
ropéias, o tribun al espanho l nã o se preo cupa com o contencioso das eleições
legislativas, pois esse contencioso pertence à competência das jurisdições or
dinárias.
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DÍiUlO
0SISTEMACONSTITUCIONAL
DOSESTADOS UNIDOS
A importância e o interesse do sistema constitucional norte-americano
decorrem não som ente do eno rme poderio econôm ico, militar e político dos
Estados Unidos, nem mesmo do fato da constituição de 1787 ser a mais antiga constituição em vigor no m und o, mas tam bém e sobretudo pelas princi
pais caracter ís ticas dessa consti tu ição.
É preciso salientar desde o início que a constituição não foi concebida
como uma constituição democrática, mas que seus autores, os Founding Fa-
thers, inspiraram-se no modelo inglês, tal como podia ser analisado no sécu
lo XVIII. Eram fervorosos leitores de Montesquieu e de Blackstone (ver Le Fédé-
raliste, de H a m i l t o n , M a d i s o n e Ja y ), que desconfiavam do poder do legislativo
e que então procuraram organizar um sistema de balança de poderes. Assim,
adap taram para um Estado republicano o mod elo inglês, no qual o po der le
gislativo era exercido em conju nto pelas duas câm aras e o rei, à diferença que
não haveria nem rei nem aristocracia. Na Grã-Bretanh a esse sistema se trans
formou em sistema parlamentar, e aliás, mesmo não sendo perceptível, essa
evolução já estava em andamento na época da redação da constituição ame
ricana. Uma transformação semelhante ocorreu na maioria dos países que
procuraram reproduzir a estr utu ra da consti tu iç ão inglesa. É o caso da Fran
ça no deco rrer do ano de 1792 e novam ente depois de 1815. Tam bém é o ca
so da Bélgica e dos países escandinavos. Ora, por várias razões, ligadas prin
cipalmente, m as nã o exclusivamente, ao federalismo e ao m odo de eleição do
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2 5 0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
presiden te , os Estados Unidos não passara m por essa evolução, mas passa ram
por uma tr ansfo rmação dife rente.
O resultado é que, para dar conta do sistema constitucional americano,
a doutrina inventou uma nova categoria, o regime presidencial. Na verdade,
o sistema americano é o único membro dessa classe, de maneira que quando
se que r analisar o sistema presidencial, é o sistema constitucional american o
que é descrito.
Partindo dessa perspectiva, a doutrina européia, principalmente a fran
cesa, pensa que, em geral, a constituição am ericana prom ove um a separação
rígida dos poderes, já que o presidente não pode dissolver as câmaras e queos m inistros n ão são politicamente responsáveis. Vale notar, en tretanto, que
essa separação não significa que os órgãos sejam especializados nem que se
ja m despro vid os de meios de influências recíprocas. Os auto re s americanos
consideram, portanto, que a separação dos poderes não é de mod o algum rí
gida e caracterizam sua constituição como um sistema de colaboração dos
poderes e de equil íb rios múltip los.
Foi nos Estados Unidos que surgiu o controle de constitucionalidade
das leis e foi também nesse país que ele obteve maior progresso.Finalmente, ao contrário do que se produziu na maioria das democracias
representativas, a divisão das competências e as relações entre os órgãos não fo
ram profundamente afetadas pelo sistema de partidos. De fato, os partidos
americanos diferem dos europeus na medida em que n ão são instrumentos de
uma ideologia nem de um programa de governo preciso. As diferenças de di
retrizes entre democratas e republicanos são pequenas e sobretudo flutuantes.
Somente dois partidos para u m país de dimensões continentais parece pouco
para enquadrar num sistema coeren te todas as tendências, todos os instintos,todas as aspirações do povo. Dado que sua originalidade do utrin ária é pratica
mente nula, os partidos não pod em almejar a um papel político de grande e n
vergadura. No en tanto, seu papel é considerável em m atéria eleitoral. Na prá ti
ca, os partido s am ericanos são m áqu inas de fazer eleições.
Seção 1
Os órgãosA estrutura original da constituição e a divisão de competências resul
tam da vontade de impor limites aos poderes de cada órgão.
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0 S is t e m a C o n s t i t u c i o n a l d o s Es t a d o s U n i d o s 25 1
1. O C o n g r e s s o
(L o n g u e t , 1989; T o i n e t , 1996). - O Congresso foi originalmente con
cebido como o órgão mais importante. Somente de forma progressiva é que
o papel do presiden te cresceu. No entan to, me smo hoje, a força do preside n
te provém sobretudo de sua aptidão para obter a colaboração e o apoio do
Congresso. Este é com posto po r duas câmaras: a Câm ara dos Representantes
e o Senado.
A. Organização
O Congresso é um parlamento bicameral. O bicameralismo se explica,
por um lado , pe la vontade de evitar a dom in ação e a concentração de poder
que se produz em uma assembléia única, e por outro, pela preocupação dos
Estados em conservar ao mesmo tempo uma autonomia importante e uma
influência nas decisões federais.
A Câmara dos Representantes é composta por 435 membros. Os repre
sentantes são eleitos pelo escrutínio m ajoritário em turno único no âmbito dosEstados e cada Estado obtém um núm ero de representantes proporcional ao de
sua população. De acordo com o princípio adotado no século XVIII, por des
confiança das assembléias representativas, o m and ato é muito curto, dois anos,
de modo que os representantes são submetidos a um controle freqüente. Na rea
lidade, o controle dos eleitores sobre os eleitos não parece muito rígido: nas
eleições de novem bro de 1988,99% dos representan tes foram reeleitos, em pa r
te graças a uma sábia divisão das circunscrições. Por isso, numerosos autores
pensam que a c urta duração dos mandato s apresenta mais inconvenientes quevantagens e princ ipalm ente que, logo que são eleitos, os representantes devem
pensa r na reeleição e acabam em campanha perm anente .
O S enado representa os Estados num a base igualitária. Cada Estado ele
ge então dois senadores. Disso resulta uma grande desigualdade na represen
tação, já que existem Estados m enos povo ados - às vezes mais conservadores
- com peso igual ao dos Estados mais povoados. O Senado é assim com po s
to de 100 senadores, eleitos po r seis anos pelo povo de cada Estado (até 1913,
era m designados pela legislatura de seus Estados). Um terço das cadeiras é renovado a cada dois anos, de modo que a eleição de um terço dos senadores
ocorre ao mesmo tempo que a dos representantes.
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2 5 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
A presidência do Senado é garantida pelo vice-presidente dos Estados
Unidos, mas trata-se sobretudo de uma atribuição honorífica. Ele não vota
exceto em casos de desempate e não detém praticamente nenhum poder.
As eleições para as duas câmaras, e isso também vale para todas as elei
ções american as, são afetadas em grand e p arte pelo custo cada vez maior das
campanhas eleitorais. Esse custo é considerado como um atentado contra o
caráter dem ocrático do sistema. De fato, alguns cand idatos se retiram po r fal
ta de recursos, enquanto que outros levam vantagem por possuir grandes
fortunas pessoais. A desigualdade de oportunidades entre candidatos não
ocorre so me nte entre ricos e pobres mas en tre conservad ores e liberais1, p o rque as empresas e os particulares que podem oferecer apoio financeiro aos
cand idatos o fazem na m edida em que, uma vez eleito, o can didato possa de
fender seus interesses. O sistema também leva os eleitos a preparar suas pró
ximas cam pan has e a estar em con form idad e com as expectativas de seus fi
nanciadores.
É por isso que nos Estados Unidos, assim como em outros países, mas
de modo mais lento e modesto, desenvolve-se um movimento para morali
zar o financiam ento das campa nhas. U ma lei de 1971, várias vezes em en da da, limita o valor das contribuições ao candidato efetuadas por empresas e
por part iculare s. Essa lei, entr eta nto , esb arra em dois limites . Em prim eiro lu
gar, a Suprema Corte, fun dad a na liberdade de expressão, julgou que a lei não
poderia limitar o m ontante das despesas, de m odo que o candid ato que co
locasse na cam pan ha sua própria fortu na não teria teto fixo. Em segun do lu
gar, a lei limita som ente as contribuiçõe s aos candidatos, m as não os do na ti
vos às organizações e aos partidos - é o soft mon ey - e não faz restrições aos
gastos efetuados po r particulares ou g rupo s em favor de um a causa ou aos candidatos que a defendam . Atualmente, um a nova legislação está em e studo p a
ra proibir o soft mo ney , mas ela se choca com fortes oposições.
Nas duas câmaras, as comissões tê m um papel partic ula rm ente im por
tante. São comissões per m ane ntes e especializadas, mas as câmaras designam
freqüen teme nte as comissões de inqu érito p ara questões particulares. Em ca
da uma delas, o partido majoritário ocupa a maioria das cadeiras e a presi
1 Os liberais no sentido n orte-americano do te rmo representam aqueles que são favoráveis auma defesa enérgica dos direitos cívicos (civis) da mesma forma que a um aumento da proteção social.
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0 S is t e m a C o n s t i t u c i o n a l d o s Es t a d o s U n i d o s 253
dência. As comissões pod em convocar, eventualme nte sub poena , ou seja, sob
pena de sanção, qualquer pessoa que desejem ouvir, seja ela simples particu
lar ou membro do executivo. Quando chamadas a decidir sobre um projeto
de lei, pod em recusá-lo pu ra e simplesmente. A câmara, então, só pode reto
má-lo po r voto expresso e, na prática, raram ente ela o faz. Num erosos p roje
tos, aliás, não vão além do exame das comissões que também podem emen
dar o projeto e cujas recomendações são freqüentemente seguidas.
B. Competências
Mesmo sendo o Congresso designado como “o poder legislativo”, ele
exerce comp etências que se relacionam c om todas as funções do Estado.
Na ord em legislativa, é ao Congresso que a const ituição concede o es
sencial do poder. Em primeiro lugar, somente seus membros possuem a ini
ciativa das leis. Em princípio, o presidente não pode apresentar projetos, mas
pode fazê-lo media nte um representa nte ou um senador. Os pro je tos devem
ser ado tado s em te rmo s idênticos pelas duas câmaras. Caso não haja acordo,
um a com issão mista é convocada, mas se essa comissão fracassar na elaboração de um texto comu m ou se o texto com um não for adotado pelas duas câ
maras, ele é conside rado rejeitado. Se for adotad o, é transm itido ao presid en
te, que dispõe de um direito de veto parcial (v. infra).
Em matéria orçamentária o procedimento é diferente: como na Ingla
terra, a iniciativa pertence somente à Câmara dos Representantes. Na práti
ca, poré m, o p rojeto é preparad o pela presidência.
O Congresso também tem poderes importantes na ordem executiva.
Além dos poderes de que dispõem as comissões das duas câmaras, o Senado éinvestido pela constituição do direito de dar seu consentimento (advice and
consent) a dois tipos de decisões do presidente. Trata-se primeiramente das
nomeações de alguns altos funcionários federais, principalmente ministros,
embaixadores, juizes. Esse poder é bem real e é exercido com a preocupação
de garan tir a política que será posta em prática pelas personalidades nomeadas.
Essas nomeações são publicamente examinadas p or u ma comissão de senad o
res, freqüentem ente po r longo período, pode nd o o correr recusa pelo Senado,
à qual o presidente não pode fazer objeção. Existem muitos exemplos dessasrecusas, desde a de 1795, quando o Senado recusou a nomeação feita por
Washington do presidente da Suprem a Corte, porqu e este havia dem ons trado
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2 5 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
seu desacordo com um tratado firmado com a Inglaterra, até a de 1987, quando
recusou por duas vezes seguidas a aprovação da nomeação feita pelo Presidente
Reagan de juizes para a Suprema Corte, considerados muito conservadores.
Trata-se, por outro lado, de tratados internacionais assinados pelo presi
dente que devem ser aprovados pela maio ria de dois terços. Neste caso tam bém
é um po der considerável que o Senado usa realmente. Assim, não ratificou em
1919o Tratado de Versalhes assinado pelo Presidente Wilson, de maneira que
os Estados Unidos não puderam participar da Liga das Nações, da mesma for
ma que fez em 2000, com o tratado de interdição dos testes nucleares.
No enta nto , os pre sidente s te nta ram com sucesso contornar os obstá culos do Senado assinando não tratados, mas acordos em forma simplificada
(executive agreements) por meio dos quais podem com prom eter os Estados
Unidos u nicam ente com sua assinatura. No início, esses acordos incidiam so
bre maté ria s pouco im portante s, mas a prá tica foi reconhecid a em 1937 de
acordo com a constituição pela Suprema Corte e a proporção de tratados e
de executive agreements foi invertida, de tal forma que os segundos são atual
me nte mais freqüentes, trata nd o de questões cada vez mais impo rtantes, ape
sar de algumas tentativas do Senado de exercer um certo controle sobre osexecutive agreements. Para evitar a censura de negligenciar o Congresso, uma
ou tra técnica é empregad a: o s acongressional-executive agreements”. Em vez de
submeter os tratados unicamente ao Senado, o presidente faz com que as duas
câmaras aprovem os acordos por maioria simples. Não há, dessa forma, ne
nhu m a diferença entre tratados e acordos que possuem a mesma força, quer
dizer, que prevalecem sobre as leis dos Estados e, se foram incorporados ao
direito americano, prevalecem sobre as leis federais. Eles incidem sobre as
matérias mais importantes, tais como os tratados de criação do NAFTA e daOM C, que foram aprovado s desse modo . Esse proce dime nto, às vezes, se jus
tifica por seu caráter democrático. Ressalta-se o fato de que o procedimento
de autorização de ratificar, dado pelo Senado, concede muito poder a uma
minoria. No entanto, a doutrina está dividida em relação à conformidade
com a constituição. Alguns consideram o procedimento anticonstitucional
enquanto, para outros, foi a constituição que mudou o acordo expresso ou
implícito dos tribunais, sem que seu texto tenha sido mo dificado ( A c k h r m a n ,
1998; H a m o n & W i e n e r, 2001).
A constituição atribui ainda ao Congresso o poder constitucional de de
clarar guerra. No entanto, nesse caso também, o presidente se esforçou para
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0 S is t e m a C o n s t i t u c i o n a l d o s Es t a d o s U n i d o s 255
agir só, e freqüentemente conseguiu fazê-lo. Dessa forma, enviou tropas ou to
mou decisões políticas equivalentes ao desencadeamento de uma guerra ou a
um ultimato, sem sequer consultar o Congresso. Na verdade, as forças armad as
foram usadas mais de 200 vezes, e som ente em cinco ocasiões ele ped iu ao C on
gresso um a declaração de guerra. Foi sem a aprovação do Congresso que foram
iniciadas, por exemplo, a guerra da Coréia em 1950, a da Indochina em 1964,
a do Golfo em 1990 ou ainda a do Kosovo, em 1999. Em alguns casos, com o as
operações de envio de tropas pa ra o Kosovo ou os ataques aéreos à Sérvia em
1999, quando se tomou grande cuidado para não chamar de guerras mas de
“uso limitado de forças”, foram iniciados m esm o com a recusa do aval de um adas câmaras. Isso se explica pelo fato de o presidente querer evitar a obrigação
de obter d o Congresso um a declaração de guerra, mas igualmente pelas condi
ções da guerra mod erna: de um lado, no plano jurídico, a guerra é proibida pe
la Carta das Nações Unidas; de outro, pode acontecer das operações militares
não serem dirigidas contra um Estado (foi o caso do Vietnã); enfim, freqüen
temente é necessário preservar até o último momento o segredo que as delibe
rações sobre a declaração de guerra não permitiriam guardar. Uma lei de 7 de
novembro de 1973 sobre os poderes de guerra do presidente o obriga, se possível, a consu ltar o Congresso qu aren ta e oito horas antes do envio de tropas ao
estrangeiro e, qua lquer que seja o caso, a enviar um relatório ao Congresso. Es
te pode orde nar a retirada das forças po r um a resolução conjun ta à qual o p re
sidente não pode opor veto. Se, num prazo de sessenta dias, o Congresso não
ado tar resolução aprovando a continuação das operações, o presidente é obri
gado a desistir da ação ( H a m o n , 1977). Essa lei pode, em certos casos, consti
tuir u m freio eficaz: se o Presidente Reagan pôde ordena r um a intervenção m i
litar a Granad a, não pôde enviar tropas pa ra socorrer os Contra , os inimigos doregime sandinista da Nicarágua. No entanto, como as decisões nesse âmbito
podem se apresenta r como a aplicação de resolução das Nações Unidas, que
aliás não escapa à influência do presidente, este pod e se liberar do assen timen
to do Congresso, como no caso da guerra do Golfo.
O Co ngresso exerce ainda, em m atéria executiva, um po der indire to im
porta nte que emana de seu poder legislativo e finance iro. É ele que controla
as finanças e se enc on tra, assim, em con dições de recusar as políticas que não
aprova. Assim, o Presidente Reagan, mesm o fora de q ualqu er perspectiva de
intervenção militar direta, não pôde apoiar os Contra como desejava, devido
à recusa de seu pedido de recursos financeiros pelo Congresso.
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2 5 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
O Congresso tentou até atribuir-se um direito de veto, chamado “veto
legislativo”, para certos atos do presidente: ele o autorizava, po r meio de um a
lei, a toma r medidas regulamentares que um a ou ou tra câmara po deriam pa
ralisar. No entan to, po r meio de um a decisão Chadha de 23 de ju nh o de 1983,
a Suprema Corte julgou essa prática inconstitucional (R o u b a n , 1984).
Em terceiro lugar, o Congresso tem funções de ordem judiciária inspiradas
no modelo inglês. A Câmara dos Representantes pode vo tar a colocação sob acu
sação de qualquer pessoa, inclusive o presidente (impeachment ), não estando
apoiada em um a definição legal dos crimes. As pessoas dessa forma acusadas são
julgadas pelo Senado que, pela maioria de dois terços, pode pro nuncia r a destituição. Neste caso, trata-se também de uma prerrogativa de grande alcance. Em
1868, o Presidente Andrevv Johnson havia sido acusado e só escapou da destitui
ção por apenas um voto para que a maioria de dois terços fosse atingida no Se
nado. Se o procedimento tivesse obtido sucesso, o regime poderia ter se transfor
mado em regime parlamentar. Em 1974, a Câmara dos Representantes estava
prestes a votar a acusação contra o Presidente Nixon, compro metido com o caso
Watergate, quando este, tomando a dianteira, preferiu renunciar.
Os dois casos precedentes, Johnson e Nixon, revelam o caráter ambíguoda responsabilidade denominada penal. Provavelmente, ela é penal pelo pro
cedimento, no entanto, em outros aspectos, é eminentemente política: em
prim eiro lugar, pela sanção incorrid a que só pode ser a dest ituição; depo is ,
pelo objetivo perseguido e o contexto no qual ela é acionada. Em ambos os
casos, as ações judiciais só foram iniciadas e o impeachment só foi votado, ou
quase foi votado, porq ue existia entre o presidente e a maioria do Congresso
um desacordo político de extrema gravidade.
Essa análise se confirm a pelo caso do Presidente Clinton. O caso Watergate revelara graves defeitos no modo de desencadear as ações contra os
me mb ros do pod er executivo. Os procura dore s federais estão sujeitos à au to
ridade do min istro da justiça, ou seja, do p róp rio pod er executivo, e existe o
risco de que as ações sejam barradas. O Congresso ado tou, então, um a lei ins
tituindo para esse tipo de caso um procurador especial, totalmente indepen
dente e dotado de grandes poderes.
Essa lei, todavia, contribuiu para agravar as conseqüências que resultam do
caráter discricionário do poder de impeachment da Câmara dos Representantes.
O Presidente Clinton se envolvera num negócio relativo à especulação
imobiliária qu an do era govern ador do Arkansas (caso Whitewater). O procu
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0 S is t e m a C o n s t i t u c i o n a l d o s Es t a d o s U n i d o s 2 5 7
rador especial, nomeado para examinar a validade da ação judicial neste ca
so, era um inimigo político do presidente. Seu inquérito não dera resultado,
mas o presidente cometera outro delito: 110 processo civil aberto contra ele
por assédio sexual (caso Pau la Jones) , ele negara te r ligação com um a jovem
estagiária da Casa Branca, Monica Lewinski. Por ter mentido, o procurador
especial ped iu à C âm ara d os Represen tantes que votasse, em 1998, o impeach
ment. A Câm ara devia então interp retar o art. 2o, seção 4 da constituição, que
prevê o impeachment em caso de “traição, corrupção e outros crimes e deli
tos”. Ela devia principalmente determinar se uma mentira cometida num
processo civil, num caso relativo à vida privada, poderi a consti tu ir um crimeque justificasse um impeachment . Pela segunda vez na história dos Estados
Unidos, um presidente era citado diante do Senado. Não sendo atingida a
maioria de dois terços, o Presidente Clinton foi absolvido (Z o l l e r , 1999). Es
te caso ressaltou os defeitos da lei sobre o procurador especial, cujos poderes
eram excessivos. Como ela só havia sido adotada por um período limitado,
ao final dele não foi renovada.
Finalmente, o Congresso tem um papel essencial no processo de revisão
constitucional. A iniciativa lhe pertence em conjunto com os Estados: asemendas, ou seja, as leis de revisão, podem ser propostas por dois terços dos
me mb ros de cada um a das duas câmaras, ou por dois terços dos Estados. Nes
te último caso, que nunca se produziu, o Congresso deve convocar uma con
venção que, por sua vez, prop orá as emendas. Terminada essa primeira etapa,
as emendas propostas pelo Congresso ou pela convenção devem ser ratifica
das por três quartos dos Estados. O Congresso pode, de outro modo, decidir
que os Estados ratificarão as emendas por sua legislatura ou por convenções
reunidas para esse efeito no âmbito de cada Estado. Pode-se notar que se trata de um processo penoso que, na prática, dá ao congresso um papel determ i
nante. Rarame nte utilizado, uma vez que no total só há 27 emendas.
As dez primeiras, que formam a Bill o f Rights, foram adotadas desde
1791. É preciso também notar que a constituição não fixa nenhum prazo en
tre o início e o fim do processo. A 27- emend a que, é bem verdade, diz respei
to a uma questão menor, havia sido proposta por Madison em 1789, e só foi
adotad a pelo Estado de Michigan em 1992. Michigan foi o 38- Estado a votar
o texto, de maneira que a maioria de três quartos foi atingida ao fim de dois
séculos. Para evitar uma espera longa e incerta o Congresso indica no próprio
texto da eme nda o prazo ao final do qual os Estados devem ter ratificado. Uma
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2 5 8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
em en da relativa à igualdade dos sexos, ado tada em 1970, finalme nte fracassou
por não ter sido ratificada a te mpo pe los três quartos dos Estados.
2. 0 PRESIDENTE
(T o i n e t , 1996) O presidente é incontestavelmente a figura mais visível
e, se não é investido das competên cias mais im porta ntes, é sem d úvida quem
exerce a influência determ inante .
A eleição do presidente. - O presidente dos Estados Unidos é eleito ao final de um processo longo e complexo que pode dividir-se em três fases.
A primeira operação refere-se à designação dos candidatos. Caracteriza-
se pelo papel prepo nde rante dos p artidos, que se manifestam com o verdadei
ros órgãos do Estado. Tal papel evidentemente só é possível pela falta de base
ideológica dos partidos americanos. Em cada Estado, os partidos escolhem
seus delegados para a convenção nacional do partido q ue deve designar o ca n
didato oficial à presidência e o candidato à vice-presidência. Essa escolha é fei
ta tanto pelos comitês locais do partido, quanto pelas primárias que reúnemos eleitores do partido. É a legislatura de cada Estado que determina o modo
de designação dos delegados às convenções de partido. Minnesota foi o pri
meiro Estado a organizar as primárias, em 1899, mas hoje a maioria o faz (cer
ca de quare nta em 1992) e o núm ero deles não pá ra de crescer. Existem, aliás,
vários tipos de prim árias. As principais são as primár ias fechadas nas quais só
part ic ip am os cidadãos que declara ram sua filiação ao partido que as organi
za; em seguida, as primárias abertas nas quais os eleitores não declaram a filia
ção e só escolhem, em cabinas de voto, os delegados de um ou outro partido.
As eleições primárias têm uma importância considerável, pois os delegados
possu em um mandato im pera tivo para se pronuncia r na convenção nacional
a favor de um a ou de ou tra personalidade. Os candida tos à eleição devem, en
tão, a partir desse m om ento , fazer um a cam pan ha intensiva.
A convenção nacional do partido, entretanto , não é um a simples form a
lidade: os delegados designados pelos comitês de partid o nã o possu em m an
dato imperativo e pode ocorrer que nenhuma candidatura se revele clara
mente do resultado das primárias. Nas negociações que se iniciam então, a
escolha do candidato à vice-presidência é fator importante. Para obter o
apoio de certas delegações de Estados, o can didato à presidência po derá acei
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0 S is t e m a C o n s t i t u c i o n a l d o s Es t a d o s U n i d o s 2 5 9
tar na sua cédula um candidato à vice-presidência cujas idéias ou estilo são
diferentes dos seus.
A segunda fase corresponde à da eleição pelo povo americano, que
acontece na terça-feira subseqüente à primeira segunda-feira de novembro.
De fato, não se trata d e um a eleição pelo sufrágio direto, pois os cidadãos não
elegem o presidente, mas eleitores presidenciais. Em cada Estado, são eleitos
eleitores presidenciais em número igual ao número total de senadores e de
representantes de Estado. Entretanto, na prática, tud o se passa como se fosse
um a eleição direta, porq ue os eleitores presidenciais são mu nid os de m an da
tos imperativos, de modo que se conhece o nome do presidente no dia seguinte às eleições de novembro.
Enfim, a terceira fase que se desenvolve 110 mês de dezembro tem so
mente um caráter formal: os eleitores presidenciais elegem o presidente que
tomará posse somente na segunda segunda-feira de janeiro. É preciso notar
o risco de alteração de forma que resulta do sistema de designação de eleito
res presidenciais: existe a possibilidade de que um can didato obten ha me nos
votos que seu adversário e, mesmo assim, ganhe as eleições em alguns casos
por pouco, em grandes Estados que desig nam a maio ria dos eleitores pre sidenciais. O risco é ainda maior porque, em quase todos os Estados, os gran
des eleitores são eleitos pelo escrutínio majoritário de lista, de modo que um
único voto de maioria é suficiente para garantir a um candidato a totalidade
dos grandes eleitores do Estado. O caso ocorreu três vezes, em 1876, 1888 e
novamente em 2000 (cf. L a u v a u x , 1998).
Esse sistema se explica por razões históricas. Os redatores da constitui
ção não tinham em mente o estabelecimento de uma democracia e, em seu
espírito, o presidente não deveria ser eleito pelo povo, mas por um colégioeleitoral form ado po r um a elite de cidadãos, aptos a fazer um a escolha escla
recida. A única questão era a maneira de estabelecer a escolha desse colégio
eleitoral. Alguns queriam que ele próprio fosse escolhido pelo povo, outros
desejavam que fosse designado pelo Congresso ou pelas legislaturas dos Es
tados. Chegou-se finalmente a um compromisso: de um lado, cada Estado
enviaria ao colégio um número de eleitores igual ao número de seus repre
sentantes no Congresso, o que dava uma vantagem aos pequenos Estados,
uma vez que possuíam o mesmo número de senadores (dois) que os maio
res; por outro lado, a legislatura de cada Estado decidiria ela mesma o modo
de designação de seus representantes no colégio eleitoral. Ela poderia, assim,
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2 6 0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
decidir designá-los por si mesma, elegê-los mediante o povo e até mesmo
sorteá-los. Na prática, em todos os Estados as legislaturas escolheram a fór
mula da eleição pop ular e os mem bros do colégio eleitoral perdera m a liber
dade de escolha e devem votar no candidato com o qual se engajaram na
cam pan ha eleitoral no âm bito de cada Estado. Mas, no plano estritam ente ju
rídico, os membros do colégio eleitoral poderiam, em teoria, perfeitamente
reconquistar sua liberdade de voto e as legislaturas poderiam decidir eleger
por si mesmas seus repre sentante s ao colégio.
A difícil eleição de George W. Bush chamou a atenção para os vários
inconvenientes do sistema. O primeiro provém do caráter indireto da eleição: como vimos, um cand idato po de perd er as eleições mesm o ten do o bti
do um número maior de sufrágios populares, porque seu adversário obteve
a maioria, embora pouco expressiva, em Estados suficientes para lhe dar
ma ioria n o colégio eleitoral. Foi o que o corre u em 2000, qua nd o Al Gore foi
derrotado mesmo obtendo mais votos que George Bush. O segundo incon
veniente vem do pod er que as legislaturas dos Estados têm de deter m inar o
modo de designação dos membros do colégio eleitoral. Freqüentemente o
fazem de modo que nem é completo nem uniforme, de tal forma que as regras de contagem pode m variar no interior de um mesm o Estado. Assim, no
decorrer das eleições de 2000, Bush ganhou no estado da Flórida pela dife
rença muito pequ ena de m enos de mil votos e em c ondições que deixavam
dúvidas se os votos haviam sido mal contados. Ora, a vitória na Flórida de
um ou de outro candidato era suficiente para assegurar a maioria no colé
gio eleitoral. Após vários recursos, a Suprem a Co rte da Flórida orde no u a re
contagem dos votos em algumas circunscrições, mas a Suprema Corte dos
Estados Unidos, pela maio ria de 5 con tra 4, an ulo u a decisão e deu a vitóriaa Bush. Poderia parecer estranho, nu m país democrático, que o v encedor da
eleição tenha sido designado por maioria de juizes, ainda mais quando as
bases ju ríd ic as da dec isão pare cia m frágeis e a maio ria da Corte, conhecid a
por seu conservadorismo, parece te r sido , na realidade, levada por consid e
rações políticas.
A Corte, de fato, fundou-se no princípio da igualdade. Ela julgou que,
por um lado, a re contagem dos votos ordenada pela corte da Fló rida havia si
do efetuada em condições que não garantiam o respeito ao princípio de
igualdade e, por o utro lado, que, levando-se em conta o calendário das elei
ções, era um pouco tarde para definir novas condições. Deduziu, então, que
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0 S is t e m a C o n s t i t u c i o n a l d o s Es t a d o s U n i d o s 26 1
os resultados p rocla mado s deveriam ser definitivos sem que fosse possível ve
rificar erros n a con tagem.
Um g rande nú m ero de juristas americanos, entretanto, considerou que
o calendário das eleições não estava tão apertado assim como considerava a
Corte e que teria sido possível ampliar os prazos de modo que se pudesse efe
tuar a recontagem completa dos votos. Por outro lado, observaram que a
maioria conservadora da Corte mostrara-se em o utros casos preocupada, an
tes de tudo, com a autonomia dos Estados, enquanto que neste caso não le
vou em consideração o direito do Estado, como o interpretara a Suprema
Corte da Flórida ( H a m o n & W i e n e r , 2001). Notara m , por fim, que a ma ioriaconserv adora da Sup rema C orte tinh a interesse na vitória de Bush, porq ue Al
Gore certamente designaria juizes mais liberais, o que, finalmente, colocaria
em risco sua existência como maioria.
Vários desses juristas desejavam uma revisão da constituição de modo
a perm itir a eleição do presidente pelo sufrágio universal direto, segundo um
sistema uniforme para todo o território. Mas a constituição americana é de
uma rigidez extrema e as chances de tal revisão parecem pouco prováveis.
Os poderes do pres idente. - As com petências do presidente estão ligadas
a três grandes funções jurídicas. Na ord em legislativa, a ausência de direito de
iniciativa, com o vimos, n ão inc om oda mu ito, pois o presidente deve, em pri
meiro lugar, propor ao Congresso, juntamente com a mensagem anual sobre
o estado da União, “tais medidas que julgará necessárias e oportunas” e ele
pode sempre preparar pro je to s que serão apresentados por um membro do
Congresso. Na prática, aliás, nos Estados Unidos, como em outros países, a
grande maioria das leis foram de fato adotadas por iniciativa do executivo.Mas o maior poder é evidentemente o poder de veto. É bem verdade que es
se veto pode ser derrubado por voto da maioria de dois terços nas duas câ
maras, mas tam bém é fato que tal ma ioria é dificilmente reunida. No início,
esse poder foi pouco utilizado, mas, a partir da segunda metade do século
XIX, o foi cada vez mais. Pode-se medir sua importância, atualmente, pela
freqüência de seu uso; assim, Truman, em dois mandatos, empregou-o 180
vezes, e seu veto foi derrubado apenas 12 vezes. Mas, na realidade, esse poder
é ainda mais importante do que parece. No momento de discussão de um
texto no Congresso, o presidente, ameaçando opor-se, está em condições de
pesar os deb ates e obter as emendas.
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2 6 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Uma lei de 1996, adotada pelo Congresso no mesmo ano, permitia ao
presidente opor seu veto não a um a lei in te ira mas somente a um a de suas
disposições: era o Une item veto. Tratava-se de da r ao presidente, no intuito de
limitar o déficit orçamentário, os meios de lutar contra as disposições parti
culares, inseridas numa lei mais geral, sujeitas a pressão de lobbies e tenden
do, principalmente, a conceder subvenções ou vantagens fiscais. Da mesma
forma que para o veto global, a maioria de 2/3 é necessária para derrubar o
Une item veto. Mas a Suprema Corte julgou, por decisão de 26 de junho de
1998, que essa lei era co ntrá ria à constituição. Ela, de fato, objetivava a m odi
ficação das modalidades de exercício do poder legislativo e tal poder só poderia ser acordado ao presidente por meio de em enda constitucional.
O pre siden te exerce, em segund o lugar, a função executiva. Isso qu er di
zer que dispõe do poder regulamentar e que é o chefe da administração, que
nomeia, com a aprovação do Senado, os funcionários federais e que pode,
aliás, demiti-los sem, nesse caso, necessitar da aprovação do Senado. Uma lei
adotada em 1995 permite ao Congresso, de acordo com o princípio da hie
rarquia de normas, examinar e revogar os regulamentos federais. Por outro
lado, ele dispõe de po deres classificados como “pode r executivo”, mesmo queseja evidente não se tra tar de execução de leis: o pres iden te é o chefe do ex ér
cito; ele conduz as relações internacionais. Ora, a guerra civil, depois o cres
cimento do papel dos Estados Unidos no mundo, contribuíram para o cresci
m ento considerável dos poderes do presidente. Isso que r dizer que ele tomo u
a maior parte das decisões que comprometeram profundamente os Estados
Unidos, do lançam ento da bo m ba atômica até a guerra do Golfo ou a do Ko-
sovo.
Finalmente, o presidente detém certas prerrogativas de ordem jurisdicional. Com o a m aior pa rte dos chefes de Estado, tem o d ireito de anistia pa
ra os crimes e delitos federais. Por várias vezes tentou -se e mend ar a cons titui
ção para permitir ao Congresso anular uma anistia, principalmente depois
que o Presidente Ford a concedeu a seu antecessor, Nixon, que havia renun
ciado para evitar o impeachment. O debate sobre o direito de anistia foi re
lançado depois que Clinton, ao final do mandato, usou e abusou do direito,
levantando suspeitas de favorecer criminosos, os quais poderiam ter financia
do a campanha eleitoral de sua esposa, a senadora Hillary Rodham Clinton.
O presidente, graças principa lme nte a seu p ode r de no m ear os juizes fe
derais e principalm ente os da S uprema Corte, exerce um a influência decisiva
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0 S is t e m a C o n s t i t u c i o n a l d o s Es t a d o s U n i d o s 2 63
sobre a evolução da jurisprudência. O uso que fará desse poder tornou-se
mesmo uma cartada decisiva da eleição presidencial. Como vimos anterior
mente, a decisão da ma ioria conse rvado ra de dar a vitória a George Bush em
dezem bro de 2000 poderia ter sido interp retad a com o a vontade dos juizes de
permanecerem majo ri tá rios.
O estatuto do presidente e a organização da presidência. - O presidente e
o vice-presidente são eleitos por q uatr o anos. No início, a constituição não li
mitava o número de mandatos mas, desde o primeiro presidente, Washington,
o costume estabeleceu que os presidentes não concorressem a um terceiromandato e pensava-se mesmo que se havia criado um verdadeiro costume
constitucional. Entretanto, Roosevelt se apresentou uma terceira vez e em
seguida uma quarta vez, e foi reeleito. Para estabelecer uma verdadeira nor
ma jurídica, foi preciso revisar a constituição. Esse foi o propósito da 22-
emend a, adotad a em 1951. Doravante, ninguém pode exercer mais de dois
mandatos.
Sabe-se que os americanos elegem um vice-presidente juntamente com
o presidente que o sucede em caso de destituição, de morte ou de demissão.Exceto nestes casos, o vice-presidente não possui nenhum poder. Ele preside
o Senado mas, com o vimos, trata-se de um papel simbólico. No m ais, exerce
as funções que o presidente lhe deseja confiar, podendo até se tratar de um
papel polí tico im portante . Assim, o Presidente George W. Bush de lega a seu
vice, Dick Cheney, várias tarefas importante s. M as se o presiden te vier a fale
cer ou ped ir demissão, ele torna -se presidente sem restrições. A 22- em enda
limita o número de mandatos que pode exercer, distinguindo-se dois casos:
se o vice-presidente substituir o presidente falecido ou demissionário durante menos de dois anos, pode se apresentar duas vezes como se nunca tivesse
sido presidente. Ao contrário, se ocu par o cargo po r mais de dois anos, tudo
se passa como se tivesse exercido tod o o m an dato do antecessor e só pode rá
apresentar-se m ais um a vez.
Em 1967, a 25- emenda regulamentou o caso da vacância da vice-pre-
sidência: cabe ao presidente nomear um novo vice-presidente com o con
sentimento do Congresso. Em 1973, o vice-presidente Agnew pediu demis
são na seqüência de um escândalo, e Richard Nixon nomeou Gerald Ford
que, aliás, sucedeu Nixon qu and o este pediu demissão, no mo m ento do ca
so Watergate.
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2 6 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Os instrum entos de ação presidencial - A extensão considerável das fun
ções do presidente postula a existência de numerosas e diversificadas agên
cias governamentais. O conjunto delas constitui a denominada administra
ção. Sujeita à autoridade do presidente, a administração tornou-se, nos
Estados Unidos, um quarto poder, talvez mais forte, embora menos visível,
que os três outros (B u r d e a u , t. VIII, n. 235 e s.).
1. O Gabinete do presidente não está previsto na constituição mas sua
existência data dos primeiros anos de sua aplicação. De fato, foi Washington
quem instituiu um conselho de secretários. Esses secretários são ministros li
vrem ente escolhidos pelo presidente (n orm alm en te o Senado valida essas n omeações) e demitidos por ele. O Gabinete não é um órgão colegiado, não
possui auto rid ade própria . O presidente pode consultá-lo ou não e não é
obrigado a seguir sua opinião. Juridicamente, só existe a autoridade do pre
sidente. Os secretários de Estado não têm acesso ao Congresso exceto qu an
do são convocados e não po dem po r ele ser demitidos. Em 1988, qu an do as
sumiu as funções, o Gabinete de George Bush contava com 14 secretários de
Estado, cada um responsável por um dep artame nto determ inado.
2. A Secretaria da Presidência foi instituída em 1939; é formada pelas personalid ades do Bra in Trust do chefe de Estado. Nesse Executive Office, a
divisão das obrigações provo cou a instituição de diferentes organismo s. Os
princip ais são: o Office o f Ma nagem ent and Budget , que é responsável pela
preparação e execução do orçam ento federal e que emprega 600 pessoas; o
Council o f Economic Advisers, cúpula econômica da Casa Branca; o N atio
nal Security Council, criado em 1947, que co ord ena as políticas intern a, ex
terna e militar visando a segurança da União; a Central Intelligence Agency
(CIA), da mesma forma criada em 1947, que controla o dispositivo de informação.
De mo do mais informal, o presidente é acom panh ado por personalida
des que constituem de alguma forma seu gabinete particular, seu Estado-
maio r pessoal, com os serviços aferentes, em preg ados e secretários. Esse co n
junto form a a White House Office. Cerca de dez pessoas com o título de
counselsy de consultants ou de assistants têm um papel tão importante quan
to a confiança que o presidente neles deposita. Evocando o papel de Henry
Kissinger nas negociações de paz no Vietnã, constata-se a influência que
eventualmente podem exercer essas pessoas, que nem mesmo possuem man
dato, mas das quais um presidente sobrecarregado julga necessário se cercar.
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0 S is t e m a C o n s t i t u c i o n a l d o s Es t a d o s U n i d o s 2 6 5
Nos casos Watergate e Irangate, constatou -se qu e sua liberdade de ação pode
pôr em risco a democracia .
3. Finalmente, com o nem todos os serviços estão sob as orden s do Ga
binete , ex istem apro ximadamente sessenta organismos que consti tu em de fa
to verdadeiros ministérios. Chamados de Office, de Board ou de Committee,
eles dependem diretamente do presidente, mas gozam na prática de ampla
independência.
3 . A S u p r e m a C o r t e
A. Composiçãoda Suprema Corte
A Suprema Corte é composta de nove membros nomeados pelo presi
dente com aprovação do Senado que, como vimos, não é automática. A nome a
ção dos juizes perm ite um contro le vigilante po r parte do Senado, pois todas as
personal idades nomeadas pelo presidente exercerão, sem dúvida, um grande
poder. Com freqüência, o pro cedim ento de confi rm ação pelo Senado de um
novo juiz dá origem a um grande debate nacional sobre o papel da Corte e so bre o conteúdo de sua política de ju rispru dência . É o que ocorre, princip al
mente, quando um novo juiz impede a formação de maioria e quando uma
questão importante deve ser resolvida. O direito ao aborto ocasionou discus
sões cuja polêmica se acentuo u recentemente com a nom eação de novos juizes.
Entre os membros, o presidente designa o presidente da Corte, o Chief
Justice, que exerce grande influência sobre a instituição, tanto em razão de suas
pre rrogativas no decorre r do procedimento quanto ao prest íg io ligado à fun
ção. Desse modo, designa-se um período na história da Corte pelo nome deseu presidente: a Marshall C our t, a Warren Cou rt.
O presidente am ericano se esforça, po r suas escolhas, em orie ntar a p o
lítica da C orte con forme suas opiniões. Mas ele deve tam bém conside rar ou
tros fatores para não correr o risco de se defrontar com a recusa do Senado.
Evidentemente, ele deve se assegurar, recorrendo a numerosas consultas, de
que as personalidades sondadas são juristas de primeira linha, assim como
deve zelar também para que a composição da Corte reflita alguns traços es
senciais da sociedade americana. É assim que, há algumas décadas, existe um ju iz para cada um dos principais gru pos: os negro s, os ju deus, as mulheres.
Mas o presidente pode p rocu rar u ma personalidade capaz de representar um
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2 6 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
desses grupos e, ao mesmo tempo, compartilhar sua própria visão política.
Foi assim que, em 1991, para substituir um juiz negro liberal, o presidente
Bush escolheu ou tro juiz negro, extrema me nte conservador, que o Senado te
ve de aceitar.
A escolha é de tal forma im porta nte que os juizes são nomeados de forma
vitalícia. De fato, não existe aposentadoria obrigatória e só podem ser demiti
dos por m eio de impeachment , o que nunca aconteceu. Assim, são totalmente
independentes, e freqüentemente ocorreu de assumirem um comportamen
to diferente do esperado. Isso se explica facilmente: me sm o qu e os poderes da
Corte sejam grandes, ela não delibera por si só. A colegialidade, as regras de procedim ento , a ideologia que possuem os juizes, consti tuem em pec ilhos reais
que determ inam , em parte, o con teúdo de suas decisões e que podem , mes
mo, levá-los a m ud ar sensivelmente suas opiniões.
B.CompetênciasdaSupremaCorte
Evolução do controle. - A instituição da Suprema Corte está ligada ao fe
deralismo. De fato, cada Estado tem seu sistema judiciário mas ainda é precisotribuna is pa ra julgar certos litígios que e xtrapolam a alçada dos Estados, co
mo por exemplo, os litígios entre Estados ou os que envolvam os Estados
Unidos, ou seja, o governo federal, como parte. A constituição de 1787 insti
tuiu, assim, uma Suprem a Corte e os tribunais federais.
Entretan to, não lhes foi confiado explicitamente o controle de con stitu
cionalidade. Em 1803, a Suprem a Co rte interp retou a constituição na decisão
M arbury contra M adison , que resultou em que esse controle poderia ser exer
cido não som ente p or ela, mas po r qualquer juiz. O argu me nto do Ch ief Justice Marshall foi simples: se não era possível controlar a constitucionalidade
das leis, elas poderiam impunemente violar e refazer a constituição, a qual
não possuiria, assim, nenhum valor superior ao das leis. Desde 1803, a Cor
te, evitando se chocar com o Congresso, fez pouco uso de seu novo poder
com relação às leis federais e controlou sobre tudo a constitucionalidade das
leis dos Estados. Esse controle lhe permitiu exercer um papel importante na
produção do direito americano.
Forma e natureza do controle. - Sabe-se que se trata de um controle
exercido principalmente por via de exceção e de um controle descentraliza
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do. A Suprema Corte não é o único tribunal competente para exercê-lo. Ca
da juiz pode, p or ocasião de qualque r processo, decidir sobre um a questão de
constitucionalidade levantada por uma das partes. A lei aplicável, federal ou
estadual, pode ser afastada se for contrária à constituição federal. A decisão
do juiz nesta questão, denominada “exceção de inconstitucionalidade”, pode
naturalmente ser deferida em recurso a uma jurisdição superior. Em última
instância é a Suprema Corte dos Estados Unidos que será levada a julgar.
Em princípio, a decisão tem um efeito apenas relativo entre as partes.
Dito de outra maneira, a lei julgada inconstitucional não é anulada mas so
mente declarada inaplicável. Entretanto, os tribunais americanos, como osingleses, são forçados pelas decisões precedentes. Outro juiz que tenha em
mãos um caso similar, deverá julgar do mesmo modo. Dessa forma, tudo se
passa como se a lei tivesse sido anulada. Existe ta m bém um poder de in ju n-
ção que perm ite à Corte orden ar a funcionários que cum pram um ato a res
peito de um a lei consid era da in const itucio nal. Foi assim que, a partir de
1954, a Corte obrigou as autor idade s a suprim ir a segregação racial nos tran s
portes e no ensino público.
Fica claro que o poder da Corte não é um simples poder jurisdicional,se com pree nde rm os po r isso o po de r de aplicar as regras gerais preexistentes
aos litígios particulares. De fato, as decisões da Corte em casos particulares
são imediatamente generalizadas, não só pela regra preexistente, mas tam
bém por outros fatores muito im porta nte s. O prim eiro deles é a necessidade
de interpr etar as disposições constituciona is antes de aplicá-las e a grand e ga
ma de interpretação oferecida à Corte. As disposições da constituição, prin
cipalmente as que concernem ao fun dam ento do direito e que estão contidas
nas emendas, são muito gerais, o que implica serem suscetíveis a várias interpretações e que não existe matéria à qual uma ou outra não possa ser
aplicada. De acordo com as interpretações dessas disposições, as leis serão
declaradas conform es ou não à constituição. A Corte pode, então, intervir e
formular as regras que regerão a vida do país nos domínios mais importan
tes. Assim, por exemplo, a 14- emenda de 1868, que proclama que todos têm
direito à igual proteção das leis, perm itiu à Corte su pr im ir a segregação racial
em meados de 1950. Foi sobre o fundamento do direito a respeito da vida
privada ( privacy ), que não figura no texto constitucional, ma s que foi herd a
do do direito inglês, que a Corte autorizou a contracepção e em seguida o
aborto.
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2 6 8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Existe, aliás, a esse respeito uma controvérsia bem viva na doutrina ju
rídica americana e até mesmo na Suprema Corte. Alguns afirmam que inter
preta ndo am plam ente a consti tuiç ão de 1787, e num sentido bem liberal, a
Corte lhe dá um sentido diferente daquele da do po r seus redatores. Afirmam
que certamente os autores não possuíam a mesma concepção de igualdade
ou de liberdade. Acrescentam que, nu m sistema de mocrático, as regras sobre
a não-segregação ou o abo rto deveriam ser tom adas pelos eleitos do povo, e
não por um pequeno número de juizes nomeados. A esses argumentos, os
partid ário s de in te rpreta ções mais liberais argum entam que pouco importa
a opinião dos constituintes de 1787, que não possuíam p ode r nem tinham aintenção de associar as gerações futuras e que finalmente produziram uma
obra que evolui. A constituição é considera da viva. Sua significação não é da
da de antem ão, mas d epen de do contexto social e político no qual é aplicada.
Deve assim ser interpretada segundo as necessidades de nossa época. Quan
to ao princíp io d emoc rático, ele é respeitado já que a Corte, graças a um a for
ma específica de deliberação, só exprime a vontad e latente do povo a me rica
no que nem sempre corresponde à opinião pública do m om ento mas que é a
vontade geral. Essa controvérsia tem um alcance incontestavelmente político.A primeira corrente é conservadora; a segunda é liberal. Compreende-se,
nessas condições, todo o alcance das nom eações p ara a Corte.
O pod er da Co rte é reforçado po r várias regras de procedim ento. Assim,
o estilo das decisões tem grand e imp ortânc ia. As decisões dos tribun ais am e
ricanos, especialmente as da Suprema Corte, são muito longas (várias deze
nas de páginas) e contêm mu itos argum entos. Além do mais, são tomada s pe
la maio ria. Até o texto da decisão é escrito po r um ju iz que aju dou a adotá-la.
Mas ou tro juiz da maioria po de ter votado po r razões diferentes das do red ator e poderá levá-las ao conhecim ento dos outros num parecer chamad o con
corrente. Por sua vez, os juizes da minoria têm a faculdade de justificar sua
atitude num parecer dissidente. Todas são publicadas simultaneamente à pró
pria dec isão e contribuem para fom enta r o debate ju rídic o e polí tico no meio
ju ríd ic o e no país em geral. Assim, a Corte contrib ui para a formação de uma
cultura jurídica domina nte.
Por ou tro lado, a Corte tem o po der de filtrar as petições e de definir as
questões sobre as quais vai decidir. A cada ano, milhares de de ma nda s qu e são
levadas para serem julgadas dizem respeito às mais diversas matérias, mas só
cerca de uma centena delas será examinada. Tudo acontece como se a Corte
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0 S is t e m a C o n s t i t u c i o n a l d o s Es t a d o s U n i d o s 2 6 9
pudesse ela mesma apoderar-se dos casos sobre os quais ju lga te r poder nor
mativo.
O próprio federalismo permite à Corte exercer um poder ao mesmo
tempo importante e pouco visível. Grande parte de suas decisões diz respei
to às leis dos Estados de m od o q ue as questões colocadas se apresentam co
mo relativas à competência dos Estados mesmo para as questões de fundo.
Assim, quando a Corte decide que uma lei de um estado sobre a pena de
morte está de acordo com a constituição, essa decisão não eqüivale, nem de
direito nem de fato, ao estabelecimento da pena de morte. Ela significa sim
ple sm ente que um Estado pode estabelecer a pena de morte sem violar aconstituição, m as ele não é obrigad o a isso. Na realidade, o resultado é o me s
mo qua ndo a Corte decide, por exemplo, que os Estados não possuem com
petência para pro ib ir o uso de contraceptivos.
Finalmente, se a Corte pode conten tar-se em declarar que a lei está con
forme ou con trária à constituição, pode também orde nar as medidas que jul
ga necessárias para a execução dos princípios constitucionais. O “ busing”
constitui um bom exemplo de tais práticas. Após a Corte ter decidido que a
segregação racial nas escolas era contrária à constituição, as escolas públicastiveram de aceitar a inscrição de todas as crianças, sem distinção de raça. Foi
preciso m uito mais para que a não-segregação se to rn asse real. Na realidade,
as crianças eram inscritas nas escolas da sua vizinhança, onde a popu lação ou
era inteiramente negra ou inteiramente branca. A Corte decidiu então que as
crianças deveriam ser trans po rtada s po r ônib us de tal maneira que as escolas
fossem realmente integradas.
O governo cios juizes? - Diante de tais poderes, pode-se pensar que os ju izes não se limitam a exercer um a com petência jurisdicional, mas que governam.
A expressão “governo de juizes” não foi inventada pela do utri na americana,
mas por autores franceses (L a m b e r t , 1921). Entretanto, traduz o sentimento
de muitos autores e atores da vida política americana, diante da quantidade
e da importância das matérias regidas pela jurisprudência da Corte. Na ver
dade, o fenôm eno assume dimensões im portantes qu and o a política de juris
prudência da Corte vai contra a opin iã o pública ou a polí tica das outras au
toridades federais.
A fórmula pareceu particularmente opo rtuna no m om ento d o New Deal,
quando a Corte tentou se opor à política legislativa do Presidente Roosevelt
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2 7 0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
decidindo que a legislação social protetora era contrária à constituição. A re
sistência da Corte só foi quebrada pela ameaça de uma revisão constitucional
ou do au m ento d o n úm ero de juizes que poderiam ser objeto de lei ordinária.
O caso é outro quan do a Corte não tem um a política autônoma mas suas de
cisões traduzem um a política que correspo nde às tendências profundas da op i
nião, que r dizer, à vontade geral e que só pode ser condu zida por ou tros meios,
por exemplo, pela luta contra a segregação racial ou a liberalização do aborto.
Constata-se depois de algum tempo uma inflexibilidade da política da
Corte, que desde a década de 1950 esteve profun dam ente e m penh ada na pro
teção e na garantia das liberdades e direitos individuais. Esse liberalismo semanifestava em vários domínios: o direito penal, a proteção da vida privada
(direito à contracepção e ao aborto), a liberdade de expressão, a luta contra
as discriminações. Ele se traduzia não somente pela proibição de medidas
que atentassem contra as liberdades mas também, como visto pelo exemplo
do busingy pela prescrição de medidas apropriadas para garantir o exercício
efetivo dos direitos (affrrmative action). Ao mesmo tempo, como essa políti
ca de jurisprudência repousava sobre uma interpretação da constituição fe
deral, ela necessariamente significava um enfraquecimento da autonomiados Estados.
Desde o início da década de 1970, a Corte renunciara à jurisprudência
liberal sobre a pena de morte. Essa tendência conservadora se acentuou na
seqüência das nom eações efetuadas p or Reagan e Bush. Desse mo do é que ela
reconhece, muito mais que no passado, a competência dos Estados em regu
lar matérias, antes consideradas reguladas pela constituição federal, e inter
pre ta de maneir a mais rest ri tiva que no passado a disposição consti tu cional
que dá ao C ongresso o pod er de regular o com ércio entre os Estados (ver in fra e R o s e n f e l d , 1999).
Seção2
As relações políticas
1. O FEDERALISMO
Contrariamente ao que é constatado em alguns outros países, o federa
lismo americano é uma realidade e, embora tenha tido um desenvolvimento
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bastante centralizado, gra nde parte das decisões po lí ticas im portante s é to
mada no âm bito estadual.
Isso se explica pela história: o Estado federal americano constituiu-se
pela ag regação de Estados , que acabavam de pro cla mar sua in dependência e
não pensavam em renunciar a ela mas, ao contrário, procuravam mantê-la
através da união. Foi por isso que a constituição conferiu aos órgãos federais
somente uma competência de atribuição e deu-lhes somente poderes que
não po der iam ser exercidos de maneira eficaz no âm bito restrito dos Estados:
as relações exteriores e a guerra, a moeda, o comércio internacional ou inter
estadual. A décima em enda , adotada em 1791, determ inava até que os pod eres não expressamente a eles delegados eram reservados aos Estados, que
conservavam desse mod o uma competência de direito com um . Foi tamb ém
por essa razão que, na origem, os senadores eram designados não pelos cid a
dãos m as pelas legislaturas dos Estados, que ca da Estado d ispun ha de dois se
nadores e que o Senado estava apto a se opor a qualquer aspecto da política
federal, quer tenha a forma de leis ou de decisões do presidente.
No enta nto , os poderes federais pre senciaram um cresc im en to espetacu
lar. O primeiro fator desse crescimento foi, a partir da guerra de Secessão, anecessidade de dar aos órgãos federais instrumentos jurídicos para enfrentar
as crises, cada vez mais freqüentes à medida que aumentava a influência dos
Estados Unidos no mu ndo . Ao mesm o tem po, a necessidade de equipar e trei
nar um exército imenso lhes dava os meios de intervenção econômica. Ao
mesm o tem po, era o Estado federal que tinha a responsabilidade da conqu is
ta e da adm inistração dos novos territórios do Oeste. Por outro lado, a própria
constituição continha a possibilidade de interpretação extensiva: conferia aos
órgãos federais certas competências que lhe viabilizavam exercer outras. Assim, o poder de cunhar moeda conduz à determinação de uma política eco
nômica e monetária. Do mesm o m odo, o poder de regulamentar o comércio
entre Estados, o “commerce c lause\ pode implicar a regulamentação da pro du
ção das me rcado rias que faziam parte desse comércio e, assim, a legislação em
matéria social. Todavia, a Suprema Corte recentemente recusou estender a
commerce clause a outros dom ínios. Foi assim que se considerou que um a lei
que limitava o porte de armas na proximidade das escolas excedia os limites
dessa disposição e, conseqüentemente, contrariava a constituição. Enfim, o
poder do Congresso de coletar os im posto s significa que possui enormes re
cursos financeiros que pode em parte redistribuir em forma de subvenções,
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2 7 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
mas sob a condição de que os Estados e outras coletividades beneficiadas se
con form em a certos princípios políticos.
O direito constitucional dos Estados. - Cada um dos cinqüenta Estados
tem sua própria constituição. Algumas delas são muito antigas. A de Massa-
chussetts, por exemplo, anterior à constituição federal, é hoje a mais antiga
das constituições escritas em vigor no mundo. Aliás, em parte, inspirou os
Founding Fathers. Além disso, a autonomia constitucional dos Estados não
condu ziu a um a grande diversidade porque cada constituição de Estado de
ve respeitar a constituição federal e també m em razão da grande ho mo gen eidade política e cultural do povo americano. Assim, cada Estado possui um
parla mento bicamera l e um governador que dispõe de poderes semelhante s
aos do presidente federal. Suas relações são tam bém do me sm o tipo: o gover
nad or po de dissolver as câmaras e não p ode ser derru ba do po r elas. Uma ca
racterística comum a numerosos Estados é o desenvolvimento de elementos
da dem ocracia semidireta: m an da to imperativo, referendo, eleição dos juizes
e de numerosos funcionários. Assim, a vida política em nível estadual e em
nível local é extremamente rica e participativa.
2. AS RELAÇÕES ENTRE OS ÓRGÃOS
Fica bastante claro que a expressão “separação de poderes”, empregada
para cara cte rizar o sistem a consti tu cio nal ameri cano, é de fato inadequada
considerando que designa um sistema no qual as autoridades são ao mesmo
tempo especializadas e independentes. As autoridades federais americanas
não são nem especializadas nem independentes. Não são especializadas por
que participam das três funções do Estado: o presidente na função legislati
va, o Congresso na função executiva e a Suprema Corte na função legislativa.
Também não são independentes pois, se a constituição não organiza nem a
dissolução nem a responsabilidade política, é claro que cada u m a dispõe, em
relação à outra, de meios de ação poderosos. Estes resultam primeiramente
do fato de não serem especializadas: o presidente po de influenciar o Co ngres
so pelo veto, o Senado p ode agir sobre o presidente po r seu p ode r de confir
mação. Mas, por outro lado, diferentes meios podem ser empregados em ca
so de crise grave. O Congresso po de pression ar a Suprem a Co rte u m a vez que
a constituição não determina o número de juizes e, dessa forma, o Congres
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so pode ameaçá-la com o au me nto do n úm ero de juizes para influenciar a ju
risprudência. Pode também, como fez com Nixon, obrigar o presidente a re
nunciar ameaçand o-o com o impeachment. Provavelmente é preciso uma cri
se maior, mas se ocorrer, o Congresso terá meios de superá-la. O espantoso
não é que a crise se apresente, mas que seja tão rara.
A principal explicação pode ser encontrada pelo sistema de partidos
americanos, profundamente diferentes dos europeus. Não possuem uma es
trutu ra forte, um verdadeiro program a nem mesm o disciplina, mas são sobre
tudo máquinas eleitorais. Os eleitos são personalidades fortes que se definem
caso po r caso em função de suas convicções ou de seus própr ios interesses, detal forma que as maiorias no Congresso são muito fluidas. Um presidente re
publicano pode governar muito bem se o Congresso tiver maio ria democra ta
e é pouco provável que se forme um grup o suficientemente hom ogên eo e de
termin ado p ara se op or de m aneira durável ao presidente a ponto de destituí-
lo. Compreende-se que o sistema constitucional americano dificilmente seja
adaptável e que todas as tentativas que foram feitas para nele se inspirar con
duziram a modos de funcionamento inteiramente diferentes, seja porque o
Congresso não domina o presidente como no Chile no século XIX, seja porque, solução m ais freqüente, o presidente faz uso de pressões diversas, prin ci
palm ente militares , para obte r poderes especiais.
O equilíbrio constitucional americano resulta então não da separação rí
gida dos poderes, mas, ao contrário , da ausência de tal separação. Entretanto, o
equilíbrio significa que nenhum órgão poderia duradouramente dominar os
outros, mas tamb ém que, em diferentes épocas, um deles parece p redo min an
te. A expressão “sistema presidencial” designa o sistema tal como funciona
qua ndo a conjuntu ra política dá essa preeminência ao presidente, enquan to emoutras épocas, ou sob outros pontos de vista, pode-se falar com muita perti
nência de governo dos juizes ou de governo congressional. É provável que se possa
notar mais recentemente maior coesão ideológica, principalmente entre os re
publ icanos. Ela pode tornar mais difíceis as relações da maio ria republicana no
Congresso com um presidente democrata. Contudo, essa situação não se pare
ce minimamente com a coabitação à francesa e o presidente dispõe de meios
suficientes para imp or comprom issos, enqu anto a maioria do Congresso não é
suficientemente homogênea nem mu ito determ inada para ten tar destituí-lo.
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CApÍTlllo
OSANTIGOS REGIMESSOCIALISTAS
ESUATRANSFORMAÇÃO
Desde sua fundação , que da ta da Revolução Russa de 1917, até o fim da
década de 1980, o regime soviético se apresen tou c om o a antítese dos regimes plu ra listas ociden ta is . Esse regime podia de fato ser consid era do como um a
monocracia partidária. Desde 1917, o poder havia sido confiscado por um
partido único , o Partido Com unista da União Soviética (PCUS). Excluía-se a
poss ib il idade de alternância devido à a usência de oposição legal. Podemos d i
zer que se tratava de uma monocracia “popular”, com o PCUS sendo supos
tamente o representante das camadas mais trabalhadoras da população, mas
ainda assim um a m onocracia (B u r d e a u , tom o IX). O regime soviético po de
ria ainda ser classificado com o totalitário pois o PCUS não se contentav a somente em gerenciar a sociedade mas propunha uma remodelação completa
segundo as exigências de uma doutrina, o marxismo-leninismo.
Após a Segunda Guerra Mundial, regimes fortemente inspirados nesse
modelo foram instalados em certo número de países, por pressão das forças
armadas soviéticas (Polônia, Checoslováquia, Alemanha do Leste, Hungria,
Romênia, Bulgária) ou n a con tinuaç ão de revoluções autóctones (Iugoslávia,
Albânia, China, Coréia do Norte, Vietnã, Cuba). Em 1985, havia cerca de
quinze regimes comunistas que agrupavam cerca de 40% da pop ulação m un
dial. Mas, em meno s de cinco anos, de 1986 a 1990, o cená rio po lítico foi pr o
fundam ente modificado.
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2 7 8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
Hoje, o regime socialista desmoronou em toda a Europa. Não se trata
de simples mudança constitucional, mas de modificações revolucionárias
que afetam a econom ia, o sistema de valores, as concepções do m un do ; resu
mind o, o con junto do sistema social. No que diz respeito estritam ente ao d i
reito constitucional, é preciso notar que hoje estamos diante de um fenôme
no sem precedentes. A novidade se deve a duas características; a primeira é
quantitativa: an teriorme nte jamais se teve notícia de tanto s Estados envolvidos,
ao mesmo tempo, no empreendimento de dotarem-se de uma constituição.
A segunda diz respeito ao alcance da emp reitada: o processo constituinte tem
por obje to não só a org anização do poder polí tico conforme as concepçõesda democracia liberal mas também a reforma de toda a sociedade e princi
palm ente a passagem de uma economia socialista para a economia de merca
do. Tem-se a medida da amplitude dessas transformações quando se exami
na o regime socialista da maneira como func iono u até 1985 e depois a situação
atual dos Estados da Europa central e oriental.
Seção 1
0 regimesocialista
1.A URSS
Os fun da m en tos ideológicos. - De acordo co m a filosofia marxista, o Es
tado é u m aparelho de coação a serviço da classe dom inan te. Sua existência
está ligada à divisão da sociedade em classes e se esperava que ele desapare
cesse quando a revolução proletária pusesse fim a essa divisão. Assim, Marxnão propôs nenhum sistema constitucional no qual tivesse exposto a aplica
ção de suas idéias. Entretanto, havia indicado que, entre a sociedade capita
lista e a sociedade comunista, colocava-se um período de transição no qual
“o Estado não poderia ser outra coisa que uma ditadura revolucionária do
proleta ria do” mas sem determ in ar a duração ou a forma dessa ditadura .
A evolução histórica da Revolução Russa de ou tub ro de 1917 mo strou
que a idéia do aniqu ilamento do Estado era no m ínimo prema tura. Os bol-
cheviques vitoriosos logo percebera m q ue um Estado forte era indispensável,não só para defender o novo regime contra os inimigos internos e externos,
mas também para reorganizar a economia e a sociedade na direção
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Os A n t ig o s R egim es S o c ia lis ta s e s u a T ra n s fo rm a ç ã o 2 7 9
da. O fim do Estado foi deixado assim para um futuro indeterminado, a con
denação do poder foi, portanto, trocada pela sua exaltação. Dizia-se que de
fato, esse pod er não tinha n ada em co m um com o da sociedade burguesa; vis
to como poder real do povo, supunha-se que estava isento das usurpações
que m arcam o pod er na sociedade capitalista; por ou tro lado, sua legitimida
de estava fundada sobre a amplitude da obra que deveria realizar: a edifica
ção da sociedade socialista. Tal poder não podia ser perigoso para as liberda
des e assim, não era questão limitá-lo, dividindo o poder como preconiza a
do utrina constitucional das dem ocracias burguesas. Ao contrário, os meca
nismos constitucionais deveriam permitir a unificação do poder do Estado para que pudesse comple tar su a missão com a maior eficiência possível.
A organização constitucional. - Desde sua origem até 1977 con tam-se se
te constitu ições soviéticas. A primei ra, adota da em 1918, só concernia à Repii-
blica da Rússia. As seguintes, datadas respec tivamente de 1924, 1936 e 1977
concerniam ao conjun to das repúblicas que formavam a URSS que era, ao m e
nos em teoria, um Estado do tipo federal. Essas mudanças con stitucionais não
correspondiam , como é freqüentemente o caso no ocidente, a mud anças de regime político, apenas indicavam a passagem para um novo estágio rumo à so
ciedade socialista. A constituição stalinista de 1936, por exemplo, certificava a
liquidação das antigas classes exploradoras e colocava fim à ditadu ra do prole
tariado def inindo a URSS como um Estado socialista dos operá rios e dos cam
poneses (art. Io). Na const ituição de 1977, a sociedade soviética é qualificada
de “avançada” e a URSS é redefinida como “o Estado de todo o povo, expr imin
do os interesses da classe operária, dos cam poneses e da intelligentsia” (art. Io).
Mas tratava-se somente de nuanças e as grandes linhas da organização constitucional não variaram muito. Pode-se resumi-las em três pontos:
1. A constituição lem bra que o sistema econôm ico é baseado na p rop rie
dade coletiva dos meios de produção e define as formas dessa propriedade:
propriedade de Estado, proprie dade coopera tiva (p rincip alm ente os colco-
ses), pro pried ade dos sindicatos e outras organizações sociais.
2. Os direitos fundamentais reconhecidos dos cidadãos são analisados
com o a possibilidade de obter do Estado e da sociedade certas vantagens con
cretas: direito ao trabalho, ao repouso, à proteção da saúde, à aposentadoria
etc. São apresentados como indissociáveis dos deveres que tendem a manter
ou a reforçar o regime socialista.
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2 8 0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
3. Em cada nível (nacional, das repúblicas ou local), o órgão princ ipal é o
soviete, termo que pode ser traduzido por “conselho” mas que, após os aconte
cimentos de 1905 e 1917, adquiriu uma conotação revolucionária. Os mem
bros dos sovietes são eleitos pe lo sufrágio universal di reto. Mas são presumida-
mente mais próximos das bases do que seriam os representantes do povo n um a
assembléia burguesa, em primeiro lugar porqu e não deixam de exercer uma ati
vidade profissional e, em segundo lugar, porque são titulares de um mandato
imperativo que os mantém sob o controle permanente de seus eleitores.
O órgão superior do poder de Estado da URSS é o Soviete Supremo. É
formado por duas câmaras, o Soviete da União e o Soviete das Nacionalidades, que são compostas por igual número de deputados (750). O Soviete da
União representa a totalidade da população soviética. O Soviete das Naciona
lidades representa as repúblicas federadas bem c om o as entidades territoriais
de nível inferior (repúblicas autônomas, regiões autônomas, distritos autô
nomos). O Soviete da União e o Soviete das Nacionalidades têm poderes
iguais. Podem se reun ir em seções comu ns ou separadas.
O Soviete Supremo tem competência para julgar todas as questões que
dependem da União. Além disso, designa os outros órgãos superiores do poder do Estado que são responsáveis perante ele e que ele pode em princípio
revogar, a qualquer momento. Esses órgãos são os seguintes:
- O Praesidium do Soviete Supremo, que possui cerca de trinta mem
bros e que exerce cole tivamente as pre rrogativas de um chefe de Estado.
- O Conselho dos M inistros da URSS que conta com mais de um a cen
tena de me mbro s. É o governo do país. Assegura principa lmen te a economia
nacional.
- A Suprem a Co rte da URSS, que supervisiona a atuação do co njun todos tribunais.
- O P rocu rado r da URSS, que cuida da aplicação estrita e unifo rme das
leis.
Na teoria, os poderes do Soviete Supremo eram mais im portante s que
os de um parlamen to nu m a democracia burguesa, porque n ão estavam sujei
tos às regras da separação dos poderes. De fato, seu papel era quase pu ram en
te formal; reunia-se alguns dias do a no e delegava o essencial de suas atrib ui
ções ao Praesidium ou ao Conselho dos Ministros. Finalmente, o verdadeiro
centro do poder político se situava no Partido Comunista da União Soviéti
ca (PCUS) e não em algum órgão eletivo.
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Os A n t ig o s R egim es S o c ia lis ta s e s u a T ra n s fo rm a ç ã o 281
A monocracia par tidária. - Segundo Lenin, o fun dad or do regime sovié
tico, os operários não podem espontaneamente ter a consciência revolucio
nária. Esta só chegaria até eles se fossem en qua drad os, o rientad os e contro la
dos por um partido de vanguarda dirigido por revolucionários profissionais,
e só adm itindo em seus postos a elite do p roletariado. O Partido Bolchevique,
criado em 1903 após a cisão do Partido Social-democrata russo, correspon
dia bem à definição. Apoiado nos comitês dos operários e dos soldados (os
primeiros sovietes), o Partido Bolchev ique conseguiu chegar ao poder em
novembro de 1917 após uma insurreição. Invocando a necessidade de uma
disciplina rigorosa, para vencer a contra-revolução, elimina em alguns mesesqualquer formação política. Renomeado partido comunista em março de
1918, tornou-se o partido único atribuindo-se o monopólio da propaganda
e da atividade política que conservou até 1990.
Curiosam ente, as duas prim eiras constituições soviéticas não m enc iona
vam a existência do pa rtido. O art. 126 da con stituição de 1936 veio preen cher
essa lacuna: “Os cidad ãos m ais ativos e conscientes da classe operária se unem
no Partido Comunista da URSS, vanguarda dos trabalhadores na luta pelo
fortalecimento e desenvolvimento do regime socialista e núcleo dirigente detodas as organizações de trabalhadores, tanto sociais quanto estatais”.
A constituição de 1977 (art. 6o), por sua vez, era muito mais elogiosa:
“O PCUS é a força que dirige e orienta a sociedade soviética, é o elemento
central de seu sistema político, das organizações do Estado e dos organism os
sociais. O partido comunista, inspirando-se na doutrina marxista-leninista,
define a perspectiva geral do desenvolvimento da sociedade, as orientações
da política interna e estrangeira da URSS, dirige a grande atividade criadora
do povo soviético, confere um caráter planificado e cientifico fun dado na sualuta pela vitória do comunismo”.
O PCUS, contando com 19 milhões de membros e empregando um
grand e nú m ero de pessoas, era de fato o centro no dal de tod a a sociedade so
viética. Selecionava os candidatos às eleições que funcionavam de acordo
com o sistema de candidato único. Escolhia as pessoas providas a qualquer
posto de re sponsabil idade da admin is tr ação e das em presas (s is tema de No-
menklatura). Enfim, controlava do interior todas as organizações sociais des
de os movimentos de juventude (Komsomols) até os sindicatos profissionais.
Assim, mesmo os cidadãos não-m em bros do pa rtido se encontravam enq ua
drad os e sob sua responsabilidade.
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2 8 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
A organização do partido é piramidal. Na base da pirâmide, encontra-
se o Congresso que, teoricam ente, é o órgão supre mo e que deve definir a p o
lítica do partido mas não é um órgão permanente. No seu interior existe um
Com itê Central com posto p or 200 a 300 m emb ros que dirigirá o partido en
tre dois congressos. O Com itê Central só se reúne em formação plenária um a
dezena de dias no ano. É por isso que, po r sua vez, designa os organism os res
tritos encarregados de executar o trabalho em curso e aos quais é delegada
uma parte de suas atribuições. Trata-se da secretaria política (Politiburo)
composta de 10 a 25 membros e do secretariado que é composto de um se-
cretário-geral e vários adjuntos. De fato, esses dois órgãos, localizados no to po da pirâmid e, dir ig em o parti do e o Estado. O secre tá rio-g era l é o verd a
deiro chefe do governo soviético que nem sempre possui o título. Todavia,
após a morte de Stalin (1953), em reação ao culto da personalidade, deu-se
relevância à necessidade de uma direção coletiva, o que conduziu a um au
mento da influência exercida pela secretaria política e o Comitê Central. Em
1964, o secretário-geral, N. Kruchev, foi demitido de suas funções pelo Co
mitê Central.
O funcion amen to interno do p artido era regido pelo princípio d o “cen-tralismo democrático”. A democracia era, teoricamente, garantida pela elei
ção de todos os organismos dirigentes do partido, da base ao topo, e pela
obrigeiçâo desses organism os de prestar contas p eriodica men te das atividades
perante as instâncias que os elegeram . Mas a centralização implicava num a
disciplina rigorosa, na subord inação da m ino ria à maioria e na obrigação es
trita dos organismo s inferiores de aplicar as decisões dos organism os sup erio
res. De fato, esse sistema levava ao esvaz iamento, em substânc ia, das au to no
mias locais, pois os dirigentes das repúblicas eram obrigados a respeitar asdiretrizes do partido, mesmo em questões que, segundo a constituição, pu
dessem dep end er da com petência dessas repúblicas. Por ou tro lado, a centra
lização vedava aos militantes reagrup arem -se p or tendên cias ou correntes de
tal forma que nunca ocorriam disputas internas no partido por ocasião de elei
ções e, assim, os candidatos apoiados pelo partido eram automaticamente
eleitos ou reeleitos. A composição dos órgãos dirigentes do partid o (Com itê
Central, Politiburo, Secretaria Geral) só se renovavam lentamente. Daí a ten
dência ao imobilismo e à gerontocracia. De 1922 a 1982, o posto de secre
tário-geral do PCUS fora ocupado por quatro titulares: Stalin (1922-1953),
Malenkov (1953), Kruchev (1953-1964), Brejnev (1964-1982); os dois suces
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Os A n t ig o s R egim es S o c ia lis ta s e s u a T ra n s fo rm a ç ã o 2 83
sores de Brejnev, Andropov (1982-1984) e Tchernenko (1984-1985) tinham
respectivamente 68 e 73 anos.
Con tudo, p or ocasião da mo rte de Tchernenko em 1985, o Com itê Cen
tral escolheu como sucessor o novato da equ ipe dirigente, Mikhail Gorbatchev,
com somente 54 anos.
2. AS DEMOCRACIAS POPULARES
O regime das democracias populares foi imposto pelas circunstâncias.
Mais tarde, os teóricos se esforçaram para m ostra r sua originalidade.De 1945 a 1948 dois fatos com andaram o estabelecimento desse regime.
De um lado, a presença do exército russo da liberação e o brilho que assegu
rava à ideologia m arxista (exceto pa ra o caso da Iugoslávia, onde o povo se li
berou sozinho); por outr o lado, a existência de uma estrutu ra social e de uma
mentalidade política que impedia a realização imediata de um a revolução com u
nista. Dura nte essa primeira fase, concebida pelos componentes mais progressis
tas com o um a transição en tre a democ racia burguesa e o sistema coletivista,
as instituições se revestiam ainda de um caráter misto. No plano econômico,a reform a agrária é realizada, eliminam -se as influências capitalistas estrange i
ras, mas m an tém -se o direito à prop riedad e. Ao lado do se tor estatizado, o se
tor privado ainda é imp ortante. N o plano constitucional, idealiza-se um co m
pro misso entre o sistema soviético e as institu ições parlamenta res do ocidente.
Uma variedade de fórmulas se escalona, entre a Iugoslávia, cuja constituição
de 1946 é inspirada na da URSS, e a Checoslováquia, que continua formal
mente ligada ao parlam entarism o tradicional.
Por trás dessa fachada o Partido Comunista reforça suas posições en
qu adra nd o as vontades populares em “blocos” ou em “frontes” por ele do m i
nados, mas onde figuram as antigas formações burguesas doravante privadas
de qualquer influência. Do mesmo modo, atrás da aparente fidelidade às re
gras clássicas de formação dos governos e que traduz a constituição de m inis
térios de coalizão, os comunistas asseguram a autoridade paralisando os mi
nistros que desobedecem ou suscitando resistências na população.
A pa rtir do final de 1947, o fato de term ina nte da segunda fase do gover
no soviético é a ruptura com os antigos aliados ocidentais. Tendo sido im
pla nta dos os in strum entos de orienta ção com unis ta no perío do precedente ,
o estabelecimento da ditadura do proletariado foi mais fácil. Os três traços
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2 8 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
característicos dessa política então se afirmaram: exclusão do pluralismo das
forças políticas, portanto da oposição, hegemonia do partido, concentração
do poder. Uma nova série de constituições veio então consagrar essa evolu
ção reproduzindo mais ou menos fielmente o sistema governamental sovié
tico. Com exceção da Iugoslávia e da Albânia, as demo crac ias popula res esta-
vam ligadas à URSS por um tratado de aliança militar (o Pacto de Varsóvia)
e por um tratado de cooperação econômica (o Comecon).
No entanto , as tradições políticas e cultura is desses países era m profun
damente diferentes das da União Soviética. Enquanto a Rússia em 1917 pas
sara quase sem transição da autocracia czarista à ditadura do proletariado, aPolônia, a Alemanha do Leste, a Checoslováquia e a Hungria haviam pratica
do, em períodos mais ou menos longos, as instituições da democracia liberal
e essas experiências não haviam se apagado com pletame nte da me mó ria cole
tiva. Em certos países como a Hungria e sobretudo a Polônia, a Igreja Católi
ca Romana co nservara um a grande influência. Apesar de sua incorporaçã o ao
bloco do Leste, esses povos se sentiam mais pró xim os das democracias oci
dentais do que do grande irmão soviético. Como escreveu Milan Kundera,
“para os húngaros, os checos e os poloneses a palavra Europa não representa...um fenômeno geográfico mas uma noção espiritual que é sinônimo de oci
den te”. Imp osto pelas circunstâncias, o regime de dem ocracia p opu lar nu nca
foi bem aceito. Foi assim que na Hungria em 1956 e na Checoslováquia em
1968 ele só se manteve pela intervenção brutal do exercito soviético.
3. OS SINAIS DA DETERIORAÇÃO
O totalitarismo. - Esse termo designa um sistema político no qual o p oder está não só concentrado nas mãos de uma minoria e é exercido de modo
autoritário, mas age sobre todas as esferas da vida.
O poder soviético afastava evidentemente, em nom e da ideologia marxis
ta, as regras fundamentais d o constitucionalismo, qualificado com o burguês. As
sim, a separação dos poderes era interpretada com o destinada a organizar uma
divisão do poder entre várias classes sociais e foi rejeitada às vésperas da revolu
ção, pois o proletariado deveria exercer a ditadura sobre a burguesia, a socieda
de havia se tornado de todo o povo e não comportava mais classes. Da mesma
forma, a multiplicidade de partidos políticos que refletia a estrutura de classes
da sociedade não p oderia ser tolerada. Qu anto às liberdades e garantias fund a
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Os A n t ig o s R egim es S o c ia lis ta s e s u a T ra n s fo rm a ç ã o 2 8 5
mentais, proclamadas e garantidas nos sistemas ocidentais, afirmava-se que
eram formais, um a vez que aqueles que não possuíam meios financeiros e m a
teriais, delas não poderiam usufruir. Ao contrário, o regime socialista propicia
va as liberdades e direitos reais, ou seja, dispunha-se a colocar à disposição dos
cidadãos os meios m ateriais necessários ao exercício de certas atividades.
Por outro lado, sempre, de acordo com a ideologia socialista, na socie
dade burguesa o homem é alienado. Essa alienação é devida à estrutura de
classes da sociedade. Ao contrário, numa sociedade sem classes, a alienação
deveria desaparecer dando lugar ao nascimento de um novo homem. Isso
just if ica o enquadram ento dos in div íd uos desde o nascim ento até a morteem organizações de massa e a educação doutrinária constante.
Ao mesmo tempo ficava justificada a repressão exercida contra os que
professavam ou eram su speitos de professar ponto s de vista diferen tes. O
marxismo era, de fato, apresentado não como uma ideologia mas como uma
ciência, como uma teoria que era tão verdadeira quanto uma teoria física. A
oposição política é assim vista como um erro que deve ser corrigido e com
batido. Se esse erro tem como efeito obsta r o enfraquecim ento do Estado e
do direito e o aparecimento do novo hom em, ele se torna um criminoso e deve ser tratad o com o tal.
Na prá tica , a susp ei ta perm anente e o te rror não im pedir am o desenvol
vimento das idéias democráticas que se exprimiram de várias maneiras. A
União Soviética e várias repúblicas populares assinaram os acordos de Hel-
sinki que consagravam um certo número de liberdades fo rm ais. Os dissiden
tes soviéticos ou checos, em nome desses acordos, reivindicaram, às vezes
com sucesso, o exercício dessas liberdades. O direito se revelava não só uma
sup erestru tura mas u m a alavanca eficaz. Na Polônia, foi a ação de um sindicato ilegal, Solidarnosc, apoiado pela poderosa Igreja Católica, que con tribuiu
para a pro pagação das idéias democrá ticas.
O imperialismo russo. - Após a Revolução, o novo poder, para solucio
nar o problema da multiplicidade de povos submetidos ao império czarista,
recorreu a um a solução federal de aparência m uito radical. Cada um a das re
públicas teria direito de se dotar de um a consti tu iç ão e dos órgãos habituais
de um Estado. Tinham o direito ao reconhecim ento de suas competências in
ternacionais e até o direito à secessão. Na prática, como vimos, o Partido Co
munista tinha condições de controlar todos os órgãos das repúblicas tanto
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2 8 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
quanto os da União de tal forma que o sistema era totalmente centralizado e
que as repúblicas eram escalões de execução. Suas competências internacio
nais estavam assim a serviço do PCUS e, quando a Ucrânia e a Bielo-Rússia
tiveram, cada um a, um a cadeira na O NU, isso significou simplesm ente que a
URSS possuía três cadeiras em vez de uma.
O federalismo que deveria perm itir o desenvolvimen to das culturas n a
cionais servia, de fato, ao PCUS. Na realidade, eram os russos que domina
vam o partid o e o faziam, também , de ou tras maneiras: de mo do positivo pe
la fixação da po pulação russa em todas as repúblicas onde formavam , e ainda
formam, minorias importantes e através da nomeação de russos na chefiados órgãos dirigentes das repúblicas; de modo negativo, pelo deslocamento
de população das repúblicas para regiões longínquas, pela luta contra as lín
guas nacionais e contra as práticas religiosas.
O imperialismo russo manifestava-se também fora da União Soviética,
nas democracias populares onde existiam bases militares importantes e on
de, conform e a d ou trina oficial cham ada do utri na Brejnev, a URSS se reser
vava o direito de intervir pela força caso pensasse que o socialismo corria pe
rigo.Essas práticas não fizeram desaparecer nem o sentim ento religioso nem
o nacionalismo. O enfraquecimento do poder central será, para todos os na-
cionalismos, a oportunidade de se manifestar de maneira vigorosa.
As dificu ldades econômicas. - Acima de tudo, serão as terríveis dificulda
des econômicas sofridas por esses regimes que determinarão sua queda. Por
causa da estatização do sistema de produção e distribuição, como também
pelos enormes gastos militares , esses países não conseguiam sair da si tuaçãode penúria, ainda mais insuportável quando o desenvolvimento moderno
das comun icações deixou transp arecer o nível de vida atingido pelas po pu la
ções dos países ocidentais.
Na meta de da década de 1980, múlt ip la s fontes de oposição e resis tên
cia se mostravam, às vezes abertas e na maioria das vezes latentes, da parte
dos liberais, dos nacionalistas, dos religiosos e de todos aqueles que aspira
vam a uma vida melhor. Mas o principal motor das mudanças parece ter si
do a impossibilidade econômica e financeira de seguir com a corrida arma-
mentista imposta pela guerra fria, cujo custo tornara-se muito elevado. Os
dirigentes iniciaram então uma política de recuo externo e de desenvolvi
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Os A n t ig o s R egim es S o c ia lis ta s e s u a T ra n s fo rm a ç ã o 2 8 7
mento econômico interno, mas esses objetivos implicavam por si só uma li
bera lização política m ín im a e, além disso, profundas re fo rmas de estr utu ra.
Seção 2
Astransformaçõesdepoisde 1985:
da Perestroika ao desmoronamento da URSS
1. A P e r e s t r o i k a
Perestroika (reestruturação). - O termo, que foi escolhido por Mikhail
Gorbatchev, secretário-geral do PCUS eleito em 17 de março de 1985, resumia
o espírito geral das grandes reformas que desejava promover. Originalmente
não era questão de aband on ar o socialismo, nem m esmo modificar pro fun da
men te o sistema político. O objetivo da Perestroika era aprimorar o funciona
mento da economia soviética eliminando toda a rigidez burocrática que ha
via, até então, desacelerado o desenvolvimento. Assim, M. Gorbatchev
preconizava o pla neja mento mais suave, o preço real, a part ic ipação dos tra balhad ores na gestão das empresas , o escalonamento das remunerações em
função dos resultados ob tidos e o estabelecimento de relações diretas entre fa
bricante s e consumidores. Na ve rdade a idéia de conci liar as vantagens da eco
nom ia socialista e a economia de m ercado não era m novas. Apresentavam al
guns po ntos c om uns com políticas que haviam sido ensaiadas, anos antes, po r
dirigentes como N. Kruchev ou A. Kossiguin. Mas, por n ão pode rem supe rar
as resistências impostas pela burocracia do partido, essas reformas foram en
terradas. Gorbatchev, baseando-se no fracasso de seus predecessores, convenceu-se de que o sucesso da reestrutura ção de pendia de d uas condições de or
dem mais geral. Primeiro, o respeito à lei (Estado de direito), que garan tia aos
agentes econômicos o mín imo de estabilidade e segurança jurídica de que pre
cisavam para desenvolver suas iniciativas. Em segundo lugar, a Glasnost (transpa
rência), que permitiria a cada um denunciar publicamente os privilégios e as
prá ticas burocrá ticas cuja permanência poderia ser um fator de bloqueio.
Mesmo tendo de início objetivos essencialmente econômicos, a Peres
troika sugeria indiretamente o problema da reforma governamental e o da li
berdade de expressão. Nessas condições, não surpreende que te nha colocado
em dúvida o “sistema dos três M”, ou seja, os três monopólios que o PCUS
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2 8 8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l
teve até então: monopólio da decisão econômica, monopólio da decisão po
lítica e monopólio da ideologia.
2.ASTRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS E INSTITUCIONAIS DA URSS
A partir de 1988 várias mudanças modificaram em profundidade o sis
tema político e constitucional soviético e o das repúblicas.
Por um lado, uma lei de lQde dezembro de 1988 abria o caminho para
várias candidaturas para a eleição dos membros do Parlamento. É verdade
que as candidaturas não eram totalmente livres mas o direito de apresentação não era mais reservado ao partido comunista. As candidaturas também
podiam ser apresentadas por diversas org an izações sociais e p or comitês com
pelo menos quinhentos eleitores. Sobre tu do, vár ios candid ato s podiam con
correr n um a m esma circunscrição. Na prática, no entanto, a maioria dos elei
tos pertencia ao Partido Comunista.
A constituição de 1977, por outro lado, fora profundamente modificada.
Uma lei de 1-de dezembro de 1988 criava um Parlamento com dois níveis. O
primeiro era const ituído pelo Congresso de Deputados do povo que compre endia 2.250 membros e devia se reunir somente alguns dias por ano, exercen
do duas séries de poderes: o poder constituinte e a eleição no seu interior dos
membros do Soviete Supremo. Este era formado, com o an teriormente, de duas
assembléias de 271 membros cada: o Soviete da União e o Soviete das Nacio
nalidades. Deveria exercer o pode r legislativo e o po de r de controle. Q uanto ao
poder executivo, num primeiro momento , foi confiado ao presidente do Soviete
Supremo, o que constituía uma inovação, já que pela primeira vez a presidên
cia não era colegiada; depois, de acordo com a lei de 14 de março de 1990, a
presidência foi confiada ao presidente da União Soviética. Esse foi investido de
poderes im portante s e devia ser eleito, pela primeira vez, pelo Congresso dos
Deputado s do povo e, depois, pelo sufrágio universal. M. Gorbatchev foi assim
eleito em 15 de março de 1990 pelo Congresso. A fonte de seu poder encontra
va-se doravante no Parlamento e não mais em um partido, assim estava indi
retamente no povo, de tal forma que a mu dança no m odo de designação con
cretizava o fim do papel exclusivo do Partido Comunista, formalizado pela
supressão do art. 6o da constituição de Brejnev de 1977.
No enta nto , o poder foi exercido em meio a gra ndes dificu ldades e te n
sões. Tensões em razão da grande oposição, no interior do Soviete Supremo,
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entre reformistas e conservadores (designavam-se assim os comunistas hostis
à reforma). Gorbatchev, hesitando apoiar-se nu m dos dois campos para a rea
lização das reformas, procurava o bter a votação de leis de plenos poderes que,
após tê-la obtido, não conseguiria aplicar po r falta de do m ínio real sobre a ad
ministração e o exército. Tensões também entre o poder central e as repúbli
cas que, durante o ano de 1991, proclamam a soberania e três dentre elas, as
repúblicas bálticas, com fundamento na constituição soviética que como vi
mos reconhecia esse direito, se separam e proclamam a independência.
Para tentar impedir a desagregação da União Soviética e para reforçar
sua próp ria legitimidade, Gorbatchev organ izou em 17 de março de 1991 umreferendo sobre a manu tenç ão da União. Mesmo com a vitória do “sim” o re
sultado foi considerado ambíguo e, no geral, foi interpretado como marcan
do a transformação da federação numa fraca confederação.
Tensões ainda entre Gorbatchev e Boris Ieltsin, o presidente da mais im
porta nte das repúbl icas , a Rússia, que modif icara sua consti tu ição para se
adequar ao novo modelo soviético. Ao mesmo tempo em que ocorreu o refe
rendo p ara a man uten ção da União, era realizado na Rússia um referendo so
bre a e leição pelo sufrág io universa l do presidente . Depois da vitória do “sim ”,Ieltsin foi eleito Pres idente da Rússia pelo sufrág io universal, em 12 de ju nh o
de 1991. Pela primeira vez na história da Rússia ou da União Soviética, um
presid ente hav ia sido eleito pelo su frágio universal num a eleição abert a e
tran spa ren te. A popu larid ade e a legitimidade de Boris Ieltsin, desejoso de re
formas, era assim muito maior que a de Gorbatchev.
Foi nessas condições que interveio a tentativa de golpe militar de 18 de
agosto de 1991, que pretendia impedir ao mesmo tempo a desagregação da
União Soviética - o novo tratado da U nião seria assinado em 20 de agosto de1991 - e o aban do no do socialismo. O fracasso do golpe de Estado teve co
mo conseqüência acelerar o processo: Gorbatchev era presidente de um Es-
tado-fan tasma. Ele pediu dem issão em 25 de dezemb ro de 1991.
3.0 FIM DA URSS
05 novos Estados soberanos. - Em 18 de outubro de 1991 era assinado o
tratado da CEI (Confederação dos Estados Independentes). Como o nome
indica, não se trata de um Estado. O tratad o só foi assinado p or dez das q ui n
ze ex-repúblicas soviéticas e as atribuições da con federação são m uito limita
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