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à _ Manole Constitucional FRANCIS H A M O N MICHELTROPER GEORGES BURDEAU

Francis Hamon, Michel Troper e George Bodeur - Direito Constitucional - Manole - 27º Edição - Pesquisável - Ano 2005

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à _ 

Manole

Constitucional

FRANCIS HAMON

MICHELTROPER

GEORGES BURDEAU

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DIREITOCONSTITUCIONAL

27âedição

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DIREITO

CONSTITUCIONAL

27âedição

FrancisHamon

Professor da Faculté Jean Monnet (Université de ParisXI)

Diretor do Centre d'Études de Droit Constitutionnel (CEDC)

MichelTroper

Professor da Université de ParisX-Nanterre

Diretor doCentre de Théorie du Droit

Membrodo Institut Universitaire de France

GeorgesBurdeaut

 A

Manole

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Título do original em francês: Droit Constitutionn el - 271’ édition Copyright © Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, E.J.A., 2001

Tradução: Carlos Souza

Formado em Letras pela PUC/SP

Especializado em Traduçã o pela Universidade de Sào PauloEditoração eletrônica: José Luis Guijarro Revisão científica: Ari Marcelo Solon

Professor Associado da Universidade de São Paulo

Professor de Pós-graduação da Universidade MackcnzieCapa e foto da capa: Hélio de Almeida

ClP-BRASIL. CATALOGAÇÂO-NA-FONTE

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

H 193d

Hamon> Francis

Direito constitucional / Francis Hamon, Michel Troper, Georges Burdeau; [tradução de

Carlos Souza]. - Barueri, SP: Manole, 2005

Tradução de: Droit constitutionnel, 27e éd.Inclui bibliografiaISBN 85-204-1704-3

1. Direito cons titucional - França. 2. França - H istória constituciona l.I. Troper, Michel, 1938-. II. Burdeau, Georges, 1905-1988. III. Título.

03-2603.CDU 342(44)

Todos os direitos reservados.

 Nenhuma par te deste livro poderá ser reproduzida, por qu alque r  processo, sem a pe rm issão expressa dos editores.É proibida a reprodução por xerox.

Direitos em língua portuguesa adquiridos pela:

Editora Manole Ltda.Avenida Ceei, 672 - Tamboré06460-120 - Barueri - SP - Brasil

Fone: (0 11) 4196-6000 - Fax: (0 11)4196-6021

www.manole.com .br [email protected] 

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

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Su m á r i o

Pre fá cio ..................................................................................................................xi

I n t r o d u ç ã o ........................................................................................................... xiii

Principai s A b re v ia ç õ e s ...................................................................................... xv

Ca pít ulo Pr elim ina r - O Dire ito C o n s ti tu c io n a l...................................1

Seção 1 - 0 d ir ei to co n st it uc io n al co n ju n to d e n o r m a s .............2

1. O direito co mo sistema de n orm as ............................................... 2

2. O di re ito con st ituc io nal co m o sub si st em a ..................................9

A. Definiç ão mate ria l .........................................................................9

B. Defin ição fo rm al .........................................................................16

Seção 2 - 0 direito co nstituc iona l com o c iê n c ia .........................17

1. Ju snatu ra li sm o e po sit iv is mo ........................................................17

A. O jusnaturalism o .........................................................................17

B. O posi ti vi sm o j u r í d i c o ................................................................18

2. Di re ito co ns ti tu cion al e ciên cia p olí tic a ....................................22

Bibliografia ..............................................................................................26

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vi D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Primeira Parte - Teoria Geral do Estado

Cap ítulo 1 - A Con sti tuição .................................................................... 33

Seção 1 - As fon tes do direito cons ti tucion al ............................. 33

1. A hi er ar qu ia das fon tes da co ns tit ui çã o materi al ..................35

A. A consti tuiç ão fo rm al ................................................................35

B. As leis orgânic as ........................................................................... 44

C. Os re gula m en to s da s as sembléias .........................................45

D. As leis ordinárias .........................................................................46

2. Os t ipos de fatos p ro du to re s de direi to ....................................47

A. O costu m e const it ucio nal .........................................................47

B. A interpreta ção ..............................................................................52

Seção 2 - 0 contro le da supremacia da cons ti tu ição /

O c ontrole da co nsti tucionalidad e das leis ............... 58

1. Leg itimi dad e do c on tro le de co ns titu cio na lid ad e ..................59

2. As formas do controle de constitucionalidade.........................62

A. Ó rg ão po lít ico ou ó rg ão jur isdi ci on al ..................................62

B. Sistema descentralizado e sistema centralizado ............... 63

C. Con trole a priori e controle a posteriori  .............................64

D. Co ntrole po r via de ação e contro le po r via de exceção 65

Bib liograf ia ............................................................................................ 66

Capít u lo 2 - 0 Poder .................................................................................. 69

Seção 1 - O qu adro: o Est ado ........................................................... 69

1. O Esta do e o direito .........................................................................702. O E stado e o espaço, as formas de organiz ação d o Estado .74

3. O Est ado un itá rio ..............................................................................75

4. O Est ado com posto .........................................................................77

Seção 2 - As formas de organização do p o d e r ............................ 80

1. As form as de governo ....................................................................... 81

A. A classi ficação antiga ...................................................................81

B. As class ificações c o n t e m p o r â n e a s ...........................................842. O princípio da separação dos poderes ...................................... 87

A. A do u tr ina t r a d i c i o n a l ................................................................88

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S u m á r io

B. As cr íti cas à d o u tr in a t ra dic io nal ...........................................89

C. A se pa raçã o dos p od er es n o séc ulo XVIII ...........................913. Os re gim es polí ti co s .........................................................................95

A. Exposição da classificação tradicio nal ................................. 96

B. Crí ti ca ........................................................................................... 108

Seção 3 —As técnicas de exercício do poder  .............................113

Subseção 1 - As funções do Estado ............................................. 113

1. A função legislativa .........................................................................115

2. A função exec utiva .........................................................................128

A. O conteúdo da função executiva ........................................ 128

B. Os ó rg ãos da fu nção execut iva ..............................................131

3. A função judic iá ri a ......................................................................... 143

A. Diferentes concepções da função judiciária ....................143

B. As solu ções .................................................................................. 145

4. Os poderes de cr ise .........................................................................149

Subseção 2 - A designação dos governantes:

os m odos de escrut ín io ...........................................152

1. O dire it o ao voto ............................................................................. 152

2. Os diferentes tipo s d e esc ru tínio ................................................153

A. O escrutínio com plu ralidad e de vozes (tu rn o único ) .153

B. O escrutín io ma joritá rio (dois turn os de escrutínio ) .155

C. A repr es en ta çã o pro porc io nal .............................................158

Seção 4 - As justi ficativas do poder .............................................163

1. A represe ntação ................................................................................165A. A teo ria da r ep re se nta çã o ...................................................... 165

B. O m andato represen ta tivo .................................................... 168

C. Significação moderna de governo representativo ......... 172

2. A soberania .......................................................................................175

A. A oposição tradicional entre a soberania nacion al

e a soberania po pula r   ............................................................. 177

B. Crít ic a ........................................................................................... 179

C. Dete rm in aç ão do ti tu la r da sobe ra nia ................................181

Bibl iografia ........................................................................................... 185

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VIII D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Segunda Parte - Os Regimes Políticos Contemporâneos

Capít u lo 1 - O s Regime s Parl amenta re s ............................................193Seção 1 - O re gime bri tâ nic o ..........................................................193

1. Os órgãos ............................................................................................200

A. O Parlam ento ..............................................................................200

B. A Coroa ......................................................................................... 206

C. O Gabinete .................................................................................. 208

2. O fu ncio nam ento do sist ema ...................................................212

A. Relações jurídicas entre os órgãos: a fachada parlam entar 212

B. O papel do sistema de partidos: o bipartid arism o . . . .213

3. O parla me nta rism o no Co m mo nw ealth britâ nico ............216

Seção 2 - Algumas formas continentais do parlamentarismo .219

1. A conciliação do pluripartidarismo com a estabilidade

do governo: o parlamentarismo escandinavo ...................... 220

2. O regime par lam entar na Alemanha ....................................... 221

3. O regime parlamentar na Itália .................................................. 229

4. O regime p arl am en ta r na E s p a n h a .............................................237

Bibliografia ............................................................................................242

Capítulo 2 - 0 Sistema Constitucional dos Estados Unidos .. .249

Seção 1 - Os órgãos ........................................................................... 250

1 . 0 Congresso .................................................................................... 251

A. Organização ...............................................................................251

B. Competências ............................................................................ 253

2. O presidente ................................................................................... 258

3. A Suprem a Corte .......................................................................... 265

A. Com posi çã o da Supre ma Cort e ..........................................265

B. Competê ncia s da Su pr em a Cort e .........................................266

Seção 2 - As relações pol ít icas .........................................................270

1. O federa li sm o .................................................................................. 270

2. As re lações entr e os órg ãos ......................................................... 272Bibliografia ............................................................................................274

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Cap ítulo 3 - Os Antigos Regimes Socialistas e sua

T ra n s fo rm a ç ã o ....................................................................277Seção 1 - O regime socialista ......................................................... 278

1. A URSS .............................................................................................. 278

2. As democracias popula re s ............................................................283

3. Os sina is da dete rio ração ..............................................................284

Seção 2 - As transfo rma ções depois de 1985:

da Perest roika ao desm oro nam ento da URSS . . .287

1. A Pere stroik a .....................................................................................287

2. As tran sfor ma çõe s políticas e instituc iona is da URSS .. .288

3. O fim da URSS ................................................................................ 289

Seção 3 - A si tu aç ão atua l ................................................................ 290

1. A situaç ão atual da Rússia ............................................................290

2. A situação nas antigas democ racias p opula res e

re pú bl icas da an tiga U R S S ............................................................296

Bibl iograf ia ............................................................................................ 300

Bibliografia G e r a l ............................................................................................ 303

índice R em issivo .................................................................................................307

S u m á r i o ix

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Os autores agradecem imensamente àqueles que aceitaram colaborar 

com seus conhecimentos e reler algumas passagens deste livro, principal

mente Geoffrey Marshall e John Bell, pelo capítulo sobre a Grã-Bretanha,Pasquale Pasquino, pelo da Itália, David Wirth e Charles Baron, pelo dos Es

tados Unidos, bem como Raphael Paour, pelas bibliografias e Frédéric Mar-

sac, pela correção das provas.

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P r e f á c i o

Durante a vida de Georges Burdeau, este livro tornou-se um clássico.

Georges Burdeau nos havia dado a grande honra de pedir a preparação de

uma 21- edição. A morte o impediu de conhecer nosso trabalho.Desde a 21a edição, a ciência do direito constitucional e o próprio di

reito constitucional sofreram um a evolução bastante significativa, da qual ti

vemos de dar conta. Este livro, portanto, não se apresenta apenas como uma

mera atualização, mas como uma obra profundamente reformulada.

 No entanto , realizamos esta reformulação p reo cup an do-nos em ser 

fiéis ao espírito que norteou Georges Burdeau na concepção deste manual e

que ele expôs no prefácio da 20a edição: construir uma teoria suscetível de

servir como instrumento para a análise do direito constitucional positivo.

Francis Hamon Michel Troper  

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In t r o d u ç ã o

Os ma nuais de direito constitucional são muitos e variados. Se as ques

tões tratadas são as mesmas, as abordagens e as doutrin as p od em ser signifi

cativamente diferentes.Essas diferenças se explicam: o qu e realmente cha ma mo s ciência do d i

reito constitucional não é apenas uma soma de conhecimentos, é também

um conjunto de problemas aos quais podem ser dadas as mais diversas res

 postas. A pert inência e a coerência das respostas dependem do rigor do racio

cínio que as justifica. Tão imp ortan te q uanto adquirir o dom ínio do raciocí

nio é conhecer as características dos sistemas constitucionais.

Um dos meios de se chegar a isso é confron tar cada questão co m as teses

de vários autores. No entanto, esse confronto só pode ser proveitoso quando

considerados todos os pressupostos explícitos ou implícitos dos raciocínios.

Os mais importantes estão ligados à linguagem. Diferenças doutrinárias po

dem se esclarecer ou problemas se dissipar, a partir do momento em que

 percebemos que tais pressuposto s estão diretamente ligados aos usos lingü ís

ticos. Logo, o domínio do raciocínio pressupõe o domínio de uma lingua

gem e é por isso que, na primeira parte da presente obra, um cuidado espe

cial foi dado à definição dos conceitos fundamentais.

Se o direito constitucional era formado, como às vezes imaginamos, por 

um pequeno número de princípios fixos e estabelecidos, que poderíamos

combinar de várias formas e dos quais poderíamos deduzir todas as regras

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x iv D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

 part ic ulares, a dif ic uld ade residir ia principalmente na exposi ção e na com

 preensão dos princípio s, e bastaria partir de algumas definições para em se

guida proced er de forma linear. Mas não é assim que ocorre, e o conteúd o dos

 princípios nutr e-se das regras que supostamente deles decorrem. Os estudan

tes podem constatar que a ordem dos capítulos tem algo de arbitrário e a

compreensão dos primeiros pressupõe, às vezes, o conhecimento dos outros.

 Não aconselharíamos, no entanto, voltar aos prim eiros capí tu los após a le itu

ra do todo.

Os estudantes deveriam também se esforçar para complementar o es

tudo deste manual com a leitura de outras publicações, pelo menos daquelasàs quais ele se refere. Para facilitar a pesquisa, escolhem os usar as convenções

do Chicago Manual ofSlyle , que possibilitam limitar o volume das referên

cias contidas no texto. Cada uma das referências é dada conforme o seguinte

modelo:

(K e l s e n , 1962, p. 2 37).

Repo rtar-no s-em os en tão à bibliografia que consta no final de cada ca

 pítulo , para encontrar as indicações comple ta s ou, no caso de obras gerais, à

 bibliografia geral .K e l s e n   Hans (1962) Théorie pure d u droit , Paris, Dalloz, trad. fr., Ch.

Eisenmann.

Isso significa que, para efetuar um a pesquisa bibliográfica sobre u m de

terminado assunto, é necessário primeiramente procurar as referências nas

 partes do texto onde este é abordado.

 No entanto, nós nos dis ta nciamos dessa convenção no que se refere ao

tratad o de ciência política de G. Burdeau, ao qual nos rem etemo s várias ve

zes, sem men ção de data, mas indicando o núm ero do volume e o dos parágrafos.

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P r i n c i p a is A b r e v ia ç õ e s

A A . W .

 A.J.D.A.

C.

c.c.c.c.c.

C.C.F.P.

C.E.

C.E.D.H.

C. élect.

C.S.M.

D.

G.A.

G.D.

Auteu rs divers [Vários Autores]

 Actualité Juridique Droit A dm in is tr a ti f [A tualidade Jurídica de  

 Direito Administrativo]Constitution [Constituição)

Conseil Constitutionnel [Conselho Constitucional]

Cahiers du Conseil Constitutionnel  [Cadernos do Conselho 

Constitucional]

Commission des Comptes et Campagn e et des Financements

Politiques [Comissão de Contas e Campanha e dos

Finan ciame ntos Políticos]

Conseil d’Etat [Conselho de Estado]

Conv ention E urop éenn e des Droits de 1’H om m e [Convenção

Européia dos Direitos Humanos]

Code électoral [Código Eleitoral]

Conseil supé rieur de la Magistrature [Conselho Superior de

Magistratura]

Dalloz

Long, Weil e Bra ibant,  Les grands arrêts de la Jurisprudence 

 Admin istrative, Paris Sirey, 1996

Favoreu e Philip,  Les grandes décisions du Conseil 

Constitutionnel, Paris, Sirey, 9. ed., 1997

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J.C.P.

 J.O.

L.

L.O.

 N.E.D.

P.F.R.L.R.

P.F.S.P

R.

 R A .

 R.D.P.

 R. F. D. A.

 R. F. D. C.

 R.FS.P.

 R J. P.

 R. P. P.

 Rec.

S.

T.C.E.

T.U.E.

Jurisclasseur Périodique - La Semaine Juridiq ue [Classificador 

Jurídico - A Semana Jurídica]

 Journal Officiel  [Jornal Oficial]

Loi [Lei]

Loi organique [Lei Orgânica]

 Notes et Études Documentaires [Notas e Estudos

Documentais]

Principes fondamentaux reconnus par les lois de la

Republique [Princípios Fundam entais Reconhecidos pelas Leis

da República]Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques  

[Publicações da Fundação Nacional das Ciências Políticas] 

Règlement [Regulamento]

 Revue adminis trative [Revista Administrativa]

 Revue du Dro it Public et de la Science Politique [ Revista do 

 Direito Público e da Ciência Política]

 Revue Française de Dro it adm in is trati f [Revista Francesa de  

 Direito Adm in is trativo] Revue Française de Dro it constitutionnel [Revista Francesa de  

 Direito Constitucional]

 Revue Française de Science politique [Revista Francesa de 

Ciência Política]

 Revue Juridique et Politique  [Revista Jurídica e Política]

 Revue Politique et Parlementaire [Revista Política e 

Parlamentar]

 Recueil des décisions du Conseil d yEtat ou des décisions du Conseil Constitutionnel [Coletânea das decisões do Conselho de 

Estado ou decisões do Conselho Constitucional]

Sirey

Traité sur la Com mu nau té europ éenne [Tratado da

Comunidade Européia]

Traité sur PUnion européenne [Tratado da União Européia]

D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

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C a d ít u Io Pr eIím ínar

O DIREITO CONSTITUCIONAL

O termo “dire ito” - O termo “direito” é empregado em numeroso s sen

tidos diferentes. Podem os, simplificando, distin guir três deles. Afirmamo sfreqüentemente que os homens têm direitos. O direito de que se fala aqui é,

então, u ma faculdade de realizar algumas ações. Assim, qu an do dizemos que

um cidadão tem o direito de voto, expressamos a idéia de que este cidadão

 pode parti cipar da escolha dos govern antes e q ue é p roibido impedi-lo disso.

Em um segundo sentido, por exemplo na expressão “o direito de um

 país” o u “o direit o civi l”, “o direit o constitucional”, designa-se pela palavra

direito um conjunto de normas.

Finalmente, em um terceiro sentido, a palavra “direito” se refere à ciência que estuda essas normas, como nas expressões “a faculdade de direito” ou

“o estudante de direito”. Nessas faculdades não se estuda diretamente todas

as normas que formam o direito de um país e que são muito numerosas p a

ra serem conhecidas. Estudam-se somen te as principais e os alunos são in

troduzidos sobretudo no método que permite compreendê-las e descobrir  

aquela que é aplicável a esta ou àquela situação particular.

 Neste capítu lo , a pa lavra “direit o” será empregada no segundo e no ter

ceiro sentidos. Tudo indica, realmente, desde já, que o direito co nstitucional pode ser concebid o, de um lado, como um conjunto de normas, uma parte

do direito em geral, e de outro , com o a disciplina que estuda esse conjunto.

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2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Seção 1

O direitoconstitucional conjunto de normas

1. 0 DIREITO COMO SISTEMA DE NORMAS

Proposições e normas. - De maneira geral, denom ina-se “no rm a” o sig

nificado de u m a frase pelo qual se declara que algo deve ser , por exemp lo que

uma certa conduta deve ocorrer. A norma se opõe assim à proposição, que é

o significado de uma frase pelo qual se indica que algo é. “Os homens não

devem m entir ” expressa uma norm a. “Os hom ens m ente m” expressa um a p ro

 pos ição. Essa oposiç ão corresponde a duas fu nções da linguagem humana:

de um lado, comunicam-se informações que descrevem a realidade; de ou

tro, tenta-se influir no comportamento de outrem, levando-o a fazer algo. A

 primeira função é dit a indicat iva ou descritiva ou ainda assert iva, a segunda,

 prescri tiva ou norm ativa.

As proposições p od em ser expressas por frases cujo verbo está no in di

cativo; as norm as, p or frases no imperativo ou co m o auxílio de form as ver bai s como “d eve” ou “é preciso”. M as nem sempre ocorre assim , e a forma

lingüística de uma frase é somente um índice dentre outros da função indi

cativa ou prescritiva que ela desempenha. Uma frase aparentemente norma

tiva pode ser na verdade indicativa. Dessa forma, a frase “para ferver a água,

devemos levá-la a 100°C” não visa, apesar da p resença do verbo “dev er”, a pres

crever uma conduta qualquer. Indica apenas que, aquecendo-se a água até

100°C, ela entrará em ebulição. Informa-se, portanto, apenas uma realidade

objetiva. Da mesma forma, uma frase aparentemente indicativa pode ser naverdade prescritiva. Assim, a frase “estamos em um congestionamento” diri

gida a um motorista significa obviamente que ele deve reduzir a velocidade

de seu veículo.

É por isso que se ressaltou na definição da norma que ela não é uma

frase, mas som ente o significado de uma frase. A forma gramat ical de um a fra

se não permite por si só dizer que se está diante de uma proposição ou de

uma nor m a e, intuitivamente, servimo-nos sempre do contexto. O que é ver

dade para a moral e o direito, freqüentem ente en uncia dos n o indicativo, já quetodos compree ndem que “Não matarás ” não expressa um a predição, mas um a

ordem.

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0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l 3

Significado dessa distinção . - A dist inção entre norm a e proposição é

imp orta nte po r diversas razões:

a) Ela correspon de à oposição e ntre funções psíquicas diferentes. As pr o

 posições são enunciadas para expressar um conhecimento do mundo, e as n or

mas, para expressar uma vontade.

b) Norma e proposição têm propriedades diferentes. A proposição é

suscetível de ser verdadeira ou falsa, a no rma, não. Pode mos resp ond er “é fal

so” a “todos os hom ens me nte m”, mas não a “não m inta” Poderíamos o bjetar 

que bastaria, em vez de “não min ta”, dizer “não se deve m en tir ”, para que fos

se possível responder “é falso que não se deve mentir”. Mas, respondendo assim, não contestamos a descrição de um fato que conheceríamos melhor que

nosso interlocutor; con tenta mo -no s em o por nossa vontade à sua e em tentar 

substituir a norma “não minta” pela norma “minta às vezes".

Se a norma não pode ser nem verdadeira nem falsa, é possível dizer en

tretanto que ela é válida. Dizer que uma norma é válida significa que ela está

em vigor e que devemos nos comportar conforme o que ela determina. É

 preciso obse rvar que a validade não é uma propriedade da norma equivalente

à verdade da proposição. Uma proposição desprovida de verdade ainda assimé uma proposição, ao passo que u ma norm a desprovida de validade não é de

forma alguma um a nor ma. Assim, uma proposição que seria refutada uma só

vez deveria ser considerada como falsa. Assim, a proposição “todos os cisnes

são brancos” é falsa logo que encontramos apenas um cisne de uma outra cor.

Ao contrário, uma norma continua válida, mesmo se os comportamentos

determinados não são seguidos. Podemos continuar dizendo “os homens não

devem m ent ir” mesmo se constatamos que eles mentem freqüentemente.

Essas características servem de índices para reconhecer que estamos na presença de um a norma. Se ela expressa um a vontade, se ela não pode ser 

verdadeira ou falsa, se ela não deixa de ser válida quando é violada, trata-se

de uma norma.

c) Enfim, não pod e existir entre as norma s e as proposições ne nh um a

relação lógica. Essa impossibilidade é conhecida sob o nome de lei de Hume.

Daquilo qu e algo é não po dem os d eduzir que algo deva ser. Por exemplo, se

todos os homens mentem, disso não podemos deduzir que os homens de

vem m entir, tamp ou co q ue eles não devem mentir. Simetricamente, se existe

um a nor ma segundo a qual não se deve mentir, dela não pode mos d eduzir que

os homen s não mentem.

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4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

 A hierarquia das norm as . - Nem toda ordem ou com ando é uma norma.

Um ladrão que ordena “dá o dinheiro” emite um comando e não uma nor

ma. Esse com and o não é válido e pode ser desobedecido. Por o utro lado, se o

 percepteur* emite uma ordem parecida, estamos na presença de uma norma

e devemos obedecer a ela. Qual é a diferença entre estes dois comandos? Ela

não reside no conteúdo, pois o comportamento prescrito é o mesmo, dar o

dinheiro. Ela está na validade. Mas po r que d izemos que a o rdem do  percep

teur é válida e a ordem do ladrão não o é?

O  percepteur  só emite seu comando aplicando uma lei, que lhe ordena

receber os impostos. Seu coma nd o é um a no rm a válida em razão de sua co nformidade com a lei. Dizemos que ele encontra na lei o fundamento de sua

validade. A lei foi emitida pelo Parlamento e, aliás, ela é por si mesma uma

norma válida, porque uma outra norma, a consti tuição, ordena ao Parla

mento adotar leis. Acima da constituição, não existe nenhuma norma. Se

considerarmos que a constituição é antes de tudo uma norma e que, assim,

está apta a fundamentar a validade da lei, e indiretamente a do comando do

 percepteur , é simplesmente porque pressupomos que ela é válida. Esse pres

suposto chama-se norma fundamental. Essa norma fundamental não existe.Ela nem mesmo é propriamente uma norma. É somente o pressuposto sem

o qual seria impossível tratar a constituição como uma norma e fazer a dis

tinção entre a ordem do  percepteur e a do ladrão.

É preciso observar a esse propósito que a validade em questão é a vali

dade  formal. Em contrapartida, a norma fundamental não permite de forma

alguma justificar o fundamento das normas. Essa função está relacionada à

ideologia ou, segundo a terminologia de Georges Burdeau, à idéia de direito,

ou seja, à representação da ordem social desejável (v. infra).Sabemos que um a n orm a é válida em razão de sua conformidade com

um a n orm a superior, que é em si mesma válida porque está de acordo com uma

norma ainda superior. Em outras palavras, uma frase qualquer tem a nature

za de uma norma somente por sua inserção dentro de uma hierarquia. Essa

hierarquia forma um sistema. Dizer que se trata de um sistema é dizer que o

conjunto não é composto de uma justaposição ou de uma soma de elemen

tos. Aqui, os elementos têm a natureza de norma somente pelo fato de per

* (N.T.) Fun cionário do tesouro encarregado de receber os impostos diretos, uma gran de variedade de produtos não-fiscais e pagar numerosas despesas públicas.

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0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l 5

tencerem ao sistema. É ele que, daquilo que foi dito, atri bu i a esses elem entos

o valor de norma.

Em última análise, identificamos uma n orm a qu and o constatamos que

um a dete rminad a frase adquire um sentido prescritivo segundo u m sistema

normativo. Simultaneamente, definimos o tipo de norma em questão. De fa

to, existem no rm as jurídicas, morais, religiosas, sociais etc. Se exam inásse

mos isoladamente um a frase, como, po r exemplo, “é proibido con sum ir be

 bidas alcoól icas”, ser ia imposs ível dizer se esta mos tratando de uma norma,

e, na afirmativa, se estamos tratando de uma norma jurídica, moral ou reli

giosa. Por outro lado, podemos verificar se essa frase foi enunciada de acordo com uma norma superior, se, por conseguinte, ela se insere em um siste

ma no rmativo. Descobriremo s então qu e ela se insere em um sistema religioso,

o do Islã, no sistema jurídico deste ou daquele país do Oriente Médio, mas

não no sistema jurídico francês. Na França, não existe a obrigatoriedade de

se conformar a tal norma ou, em outras palavras, tal norma jurídica não é

válida ou ainda não existe.

Dispomos agora de uma definição simples da n orm a jurídica: é aquela que

 pertence ao sistema jurídico . No en tanto, não resolvemos completa mente o p ro blema da identificação das normas jur ídicas, pois se elas perte ncem ao sistema

 jurídico , é necessário, ainda, de finir o sistema jurídico em si mesmo.

O direito e os outros sistemas normativos. - Existem vários sistemas no r

mativos: além d o direito, as diversidades morais, as regras de bon s mod os, os

códigos de honra, as boas maneiras à mesa etc. Podemos tentar distinguir o

direito ou sistema jurídico de todos os outros sistemas normativos, conside

rando que ele possui duas séries de características específicas. Essas caracte

rísticas serão chamadas de critérios de distinção. Podemos considerar carac

terísticas materiais, ligadas ao conteúdo das prescrições, ou características

formais, ligadas à form a ou à estrutu ra d o sistema.

a) Consid eramo s, algumas vezes, que o direito possui u m caráter mate

rial específico: ele não se limitaria, como os outros, a prescrever comporta

mentos, mas acrescentaria sanções a essas prescrições. Se o comportamento

 prescri to não ocorre, então o direi to determina que uma sanção seja aplica

da. Ao contrário, os outros sistemas normativos não comportariam sanções. No e ntanto , existem várias n ormas juríd icas que não c omportam sanções,

 por exemplo, “se um estu dante é b em-sucedido em seus exames, receberá um

diploma” ou “o Parlamento pode votar as leis”. Para dar conta dessa possível

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6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

objeção, os adeptos da tese de características formais ampliaram a noção de

sanção. Em alguns sentidos restritos, como também 110 sentido comum , a

sanção é um mal imp osto a alguém, autorizado pela coerção. Em um sentido

amplo, a noção compree nde tam bém as recompensas (no caso da conduta pres

crita acontecer de fato). No sentido mais amplo, deno min arem os sanção toda

conseqüência, boa, má ou neutra, que o direito vincula à condu ta prescrita ou

 permitida. Dir emos, por exemplo , que, se a constituição permite ao Parla

mento votar a lei, então a conduta permitida é o voto e a sanção é a conse

qüência desse voto, ou seja, a circunstância em que um a lei foi adotada.

Essa explicação não é, entretanto, muito satisfatória, pois, se empregamos o termo sanção em um sentido tão amplo, é necessário afirmar que os

outros sistemas normativos ta mb ém com por tam sanções. Nos sistemas reli

giosos ou morais, o termo diz respeito a castigo ou recompensa do além ou

ainda ao arrependimento. Nos sistemas de normas sociais, a sanção (no sen

tido mais amplo) é o sentido que a sociedade vincula ao comportamento: se

a no rm a p ermite aos pais educ ar os filhos e proibi-los de se alimen tar exclu

sivamente de doces, será necessário de no m ina r “sanção ” o fato que tal inte r

dição será considerada não como um mau tratamento à criança ou comoum atentado às liberdades individuais, mas como um ato de educação. Nes

sa perspectiva, não há muita diferença concreta entre os sistemas normati

vos.

b) Em contrapartida, podem os considerar que o direito possui caracte

rísticas formais específicas. O sistema jurídico, com o todo sistema no rm ati

vo, é hierarquizado. Mas podemos conceber dois tipos de hierarquia: uma

hierarquia estática e uma hierarquia dinâmica. Podemos raciocinar median

te um exemplo simples: um tribunal emite uma sentença, que é uma norma,“Dupont, o ladrão, deve cumprir uma pena de cinco anos de prisão”. Natu

ralmente, essa norma é válida porque está em conformidade com uma nor

ma superior. Mas se buscarmos a norma suscetível de fundar sua validade,

 podemos encontrar duas.

A primeira é a lei penal, que ordena punir todos os ladrões com uma

 pena de cinco anos de prisão. A sentença proferida pelo tribunal é válid a

 porque seu conteúdo está em conformidade com aquele, mais geral, da lei e

essa conform idad e p oderia ser expressa pelo silogismo bem simples:

1) premissa maior: todos os ladrões devem ser pun idos com cinco anos

de prisão;

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0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l 7

2) premissa men or: Du po nt é um ladrão;

3) conclusão: Dupont deve ser punido com cinco anos de prisão.

A relação entre as duas no rmas, a lei e a sentença, é então some nte uma

relação entre dois conteúdos (dos quais um é geral e outro particular). Ela é

dita estática. O tribunal tem, nesse caso, um poder muito restrito, já que a

sentença está predeterminada. Logo que ele constata que Dupont é um la

drão, só lhe resta pun i-lo co m cinco anos de prisão.

A segunda n orm a q ue pod e fundar a validade da sentença é “o tribunal

está autorizado a decretar penas de prisão”. Ela não especifica em quais hipó

teses, nem a duração da p ena e se limita a conferir ao tribuna l u m poder, queele não teria de outra forma, de emitir sentenças. Não há aqui nenhuma re

lação de conteúdo entre a n orm a sup erior e a sentença. Dizemos que a n or

ma superior regula a produção das normas inferiores e a relação é, por essa

razão, c ham ada “dinâmic a”.

O sistema jurídico é caracterizado por um a dupla relação, estática e dinâ

mica, enquanto os outros sistemas consistem somente em relações estáticas ou

em relações dinâmicas entre as normas. Na moral, por exemplo, a norma “não

faça mal ao próx imo ” é válida não porqu e foi enunciada de um a certa maneira,mas porque ela é extraída do conteúdo de uma norma mais geral “ama ao pró

ximo com o a ti mesmo ”. As duas norm as são válidas ao mesm o tempo. A moral

é um sistema estático. Ao contrário, o sistema de poder dentro de u m a quadri

lha de ladrões pode corresponder ao seguinte esquema: o líder maior atribui

um território a cada chefe de quadrilha, o qual, por sua vez, orienta seus ho

mens para esta ou para aquela missão. A ordem dada pelo chefe de quadrilha

não é válida pelo fato de seu conteú do corresponder ao de um a norm a geral, ou

 por se ap resen ta r como a aplicação de uma ordem mais geral de seu superior ,mas somente porque o chefe de quadrilha está habilitado a dar ordens em seu

território. Essas ordens são válidas somente em razão da autoridade da qual eles

emanam, independentemente de seus conteúdos. As ordens do líder maior fo

ram emitidas antes das do chefe local. O sistema é dinâmico.

Estamos agora em vias de distinguir o sistema jurídico de out ros siste

mas normativos e de defini-lo por suas características formais. Tal definição

é uma definição estipulativa e não uma definição real ou lexical. Uma defini

ção real é uma definição que se refere a uma coisa e que a descreve sumaria

mente como ela é. Diz respeito à essência da coisa. No entanto, bons autores

consideram que não existe essência do direito ou, se existe alguma, que não

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8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

 podemos alcançá- la . Por co nseguin te , não poderemos apresentar um a defi

nição real de direito. Mas tal definição não é de fato necessária. Necessitamos

em primeiro lugar conhecer o sentido da palavra “direito” em u m a deter mi

nada língua e em um determ inado contexto. Buscaremos, então, um a defini

ção lexical. A definição lexical não se confunde com a definição real, como

 podemos constatar abrindo um dicionário, porque para a mesma palavra ,

haverá necessariamente várias definições lexicais, dado que essa palavra tem

vários sentidos, e que podemos perfeitamente definir o sentido em que em

 pregamos a palav ra em uma determinada língua, sem para tanto falar da na

tureza da coisa.Pode haver a necessidade de escolhermos um a definição que não corres

 ponda nem à essência da coisa, nem ao uso da palavra em uma determinada

língua. Este é notadamente o caso, se quisermos estudar um objeto, cujos li

mites, se nos mant ivermos no uso lingüístico, seriam bastante imprecisos. As

sim, um historiador que quisesse estuda r a realeza na Idade Média n ão p ode

ria evidentemente enc ontra r u ma definição real da Idade Média, que é a palavra

que damos ao resultado de um corte cronológico e que não tem existência

objetiva. Ele também não poderia se satisfazer com uma definição lexical, porque se atribuem dete rminadas da tas muito var iadas para o início e o final

desse período, e porque, segundo as definições lexicais, nosso historiador de

veria incluir o reinado de Isabel, a Católica ou, ao con trário , excluí-lo em seu

estudo. As conclusões às quais ele chegará tanto num quanto no outro caso

serão evidenteme nte bem distintas. É a razão pela qual se op tou por d en om i

nar “Idade Média” este ou aquele período a ser estudado. Tal definição é cha

mada estipula tiva> porque ela é estipulada ou convencionada no início do es

tudo. Uma definição estipulativa não é nem verdadeira nem falsa. É somenteútil ou não. É nesse sentido que dizemos que as definições são livres.

Com efeito, a definição formal que acabamos de dar ao direito é uma

definição estipulativa. Não p retend emo s revelar a verdadeira natureza d o di

reito, mas somente dar um instrumento prático. Essa definição parece de fa

to prática e isso por duas razões principais: de um lado, ela permite evitar to

dos os problemas com os quais nos deparamos diante de uma def inição

material fundad a na sanção, quand o procu ramo s distinguir o direito, a mo

ral e a ordem da quadrilha de ladrões. De outro, ela leva a definir um objeto

ao qual pode mo s aplicar um méto do único, a dogmática jurídica, que será exa

minada na seção seguinte.

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Aliás, essa explicação reflete a idéia de qu e tod a ciência delimita seu ob

 jeto. O direito, como todos os outros objeto s científicos, não é um a real idade

que seria objetivame nte definida e delimitada. Cabe à ciência delinear os li

mites de seu objeto em um m un do que se apresen ta caótico e esse objeto se

rá aquele ao qual ela pode aplicar seu método. Portanto, é o método que é

aqui o elemento primordial e determinante. Ora, especificamente o método

da ciência jurídica, a dogmática, consiste em utilizar as relações entre as nor

mas, para estabelecer quais são as norm as em vigor. A única definição do di

reito sobre a qual ela pode fundar-se é u m a definição f orm al1.

2.0 DIREITO CONSTITUCIONAL COMO SUBSISTEMA

Tudo indica que o direito constitucional é uma parte do sistema jurídi

co, como, aliás, o direito civil ou o direito penal. No entanto, se ele represen

ta o objeto de um estudo específico, distinto dos de outras partes do sistema

(a que chamamos também ramos do direito), é porque ele possui algumas

características específicas.

Assim como para o sistema jurídico em geral, podemos procurar defi

nir o direito constitucional baseado em suas características materiais ou em

suas características formais. Em ambos os casos, trata-se do direito relativo à

constituição, mas no primeiro caso, diremos que a constituição é um con

 junto de normas carac terizadas por seu obje to ; no segundo, que elas são de

finidas pelo nível em qu e se situam den tro da hierarquia da ord em jurídica.

A. Definição material

Podem os conceber várias definições materiais.

1 .0 direito constitucional, direito do Estado

É fato que as constituições apareceram somente com o Estado moder

no. De um lado, assistimos no século XVIII ao desenvolvimento de um mo

1Existe um a literatura imen sa sobre a questão da definição do direito. Para uma p rimeira abor 

d agem >ver a revista  Droits de 1989 e 1990 c o  Dictionnaire d *Êgtiilles.

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10 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

vimento ideológico poderoso, o constitucionalismo, que concebia a liberda

de e o pode r com o antagônicos. Para ga rantir a liberdade, era preciso limitar 

o pod er po r meio de algumas regras de organização juridicamente c om bina

das. Con venc iono u-se c ha ma r essas regras de “con stituiçã o”, ter mo sin ôni

mo na época de “organização” ou de “estrutura ”, com o a inda vemo s hoje qu an

do nos referimos a um hom em que tem um a constituição robusta. De outro

lado, o poder a ser limitado não é qualquer poder, não é o que se pode exer

cer na família, no exército ou na Igreja, mas somente o poder político mais

impo rtante, precisam ente o que se desenvolveu no século XVII, princ ipal me n

te na França, e que chamamos de Estado.Portanto é natural considerarm os que a constituição e o direito consti

tucional têm po r objeto o Estado e os limites de seu pod er e que, assim, pr o

curemos defini-los. A constituição (ou o direito constitucional), no sentido

material, é então o conjunto das regras relativas à organização desse Estado , ou

seja, relativas à designação dos homens que exercem esse poder, a suas com

 pe tênc ias, a suas relações mútuas. Mas, se racio cinarmos assim, somente des

locaremos o problema, pois é necessário definir o Estado.

É preciso então c onsiderar qu e existe um Estado desde que três requisitos sejam preenchidos: que haja um território, um povof um poder.

a) O território

Ainda que a questão tenha sido discutida, podemos dizer que não há

Estado sem território. N ão que o território seja, com o po r vezes se acredita,

um elemento constitutivo do Estado; mas porque ele é uma condição indis

 pensável para que a autoridade pública se exerça de m odo eficaz.É verdade que a história nos dá exemplos de Estados reconhecidos co

mo tais antes mesm o de suas fronteiras serem totalm ente delimitadas - foi o

caso da Polônia depois da guerra de 1914-1919; mas trata-se de uma situação

excepcional que não pode ocorrer senão no caso de um Estado antigo em

vias de reconstituição e que, anteriorme nte, era constituído sobre um a base ter

ritorial.

A idéia de encerrar um a coletividade huma na em limites lineares estáveis

- as fronteiras - é relativamente recente. Na Grécia Antiga não há nem linha

aduaneira, nem linha militar; em Roma, os limes do Império são espaços onde

se exerce a vigilância das legiões. Foi somente no século XVI que os trabalhos

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0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l 11

cartográficos, viabilizados pelo avanço dos estudos matemáticos e geográficos,

trouxeram a noção mod erna de fronteira. Ora, não é por acaso que aproxim a

dam ente n a me sma época surge o conceito de Estado para definir algumas for

mas de poder político (A n c f .l , 1936, t.I; F è b v r e , 1962, p. 11 e s.; A l l i è s , 1980).

Função política do território. - De fato o território representa um papel

imprescindível no exercício da função política:

1) Pela deter min ação de u m espaço territorial, o poder inscreve a nação 

no plano das realidades concretas: ele permite realizar isso por um solo e uma

idéia que são a própria essência da nação. Símbolo e proteção avançada daidéia nacional, o território é, por excelência, o fator da unidade do grupo,

 permitindo-lhe tomar consc iênc ia de si por sua diferenciação em re lação aos

grupos vizinhos. Compreendemos, nessas condições, esse dever de unifica-

do r de territórios a que se atribu íam os reis. De seu resultado dep endia o su

cesso de toda sua responsabilidade governamental, pois a autoridade é sem

 pre um deve r da unidade de visão dos que são chamados a apoiá- la .

2) O terri tório é também para o poder uma condição de sua indepen

dência. Para ser senhor, é necessário que se esteja em sua própria casa e omelh or m eio de o ser é traçar os limites de sua propriedad e.

É essa idéia que traduzim os juridicamente qua ndo dizemos que o terri

tório é um âmbito de competência. Todos aqueles que nele vivem estão su

 bordinados ao regulamento das autoridades do país. Uma determinação das

competências que admitisse a plena liberdade das pessoas talvez fosse mais

 prá tica , mas ela iria de encontro ao fa to r da sedenta rie dade das popula ções e

também poderia provocar graves atri tos em detrimento da boa harmonia

das relações internacionais.O território é, portanto, o quadro natural no qual os governantes exer

cem suas funções.

Se o poder dispõe, dentro de sua soberania terri torial , do direito de

submeter a suas decisões todos os indivíduos que se encontram no território

nacional, esse direito com po rta com o resultado a obrigação de proteger, nos

limites do território, os direitos dos outr os Estados e principalm ente aqueles

que seus cidadãos podem exigir.

3) Politicamente, o papel do territó rio não se reduz a essa função n ega

tiva de delimitação de uma esfera de competência. É também, positivamen

te, um meio de ação do Estado. De um lado, a autoridade, confiante na estabi

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lidade de seu domínio, pode imprimir mais facilmente uma direção na ativi

dade do grupo; de outro, quem dirige o solo dirige o habitante. Podemos

controlar melhor os indivíduos quando mantidos no território no qual eles

vivem.

 A natureza do direito do Estado den tro de seu território  (SCHOENBORN; 

Sc e l l e , 1948, p. 67; R o u s s e a u , 1987, p. 224).

Essa questão é obviamente o efeito de u ma metáfora an tropomórfica:

na med ida em que o Estado é considerado com o uma pessoa, consideramos

que ele possui um território e nos pergu ntam os sobre a natureza de seu direito sobre esse território. Essa metáfora é or iun da de algumas semelhanças en

tre as normas do direito internacional relativas às mudanças territoriais e as

normas do direito interno relativas à propriedade. Mas essa maneira de pen

sar a questão leva-nos a dificuldades relevantes: não pod em os reconhecer es

se direito à propriedad e, porq ue se o Estado fosse o prop rietár io do solo seu

direito seria exclusivo e os particulares não po de riam ser proprie tário s ao mes

mo tempo que ele. Não podemos tampouco associá-lo à soberania, que é

considerada como um direito sobre os homens e não sobre as coisas. Procuramos, então, uma terceira via e consideramos que esse direito deveria ser 

entendido como um direito real institucional, real para marcar que ele opera

diretamente no solo nacional, institucional para indicar que seu conteúdo é li

mitado e determ inado por aquilo que exige o serviço da instituição estatal. Mas

não po dem os esquecer que se trata apenas de um mo do simples de apresen

tar as coisas, de uma forma de falar: o Estado produz normas que são obri

gatórias em uma determin ada p orção de espaço, referindo-se a um determ i

nado gru po de homen s. É irrelevante pen sar que existiria de fato um vínculoconcreto e ntre o Estado e esse espaço, cuja natu reza tentaríam os descobrir.

Dito isso, é necessário ressaltar que o território é um espaço com três

dimensões: não é apenas terrestre, mas se estende igualmente às porções m a

rítimas que ba nha m a costa (mar territorial) e à camada atmosférica situada 

acima do solo.

b) A população

Em segundo lugar, podemos falar em Estado apenas quando um certo

núm ero de homens é submetido a uma determinada orde m jurídica, excluin

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do-sc qualquer outra. Esse conjun to de hom ens é denom inad o população do

Estado. É possível - e isso ocorre freqüent emen te - que os hom en s que inte

gram esse conjunto não possuam nenhuma outra característica comum a não 

ser a de estarem submetidos a urna determinada ordem jurídica. Podem existir 

entre eles diferenças bem consideráveis do ponto de vista lingüístico, étnico,

religioso, econômico e também no que se refere ao sentimento de pertencer 

a essa população ou à submissão ao Estado. Não formam, entretanto, do

 ponto de vista estrit amente juríd ico, a população do Estado.

 No entanto, podem os considerar que o Estado só pode funcionar de

forma satisfatória quando a população apresenta outras características comuns, notadamente a adesão a valores fundamentais e ao próprio Estado, a

consciência de pertencer a um mesm o povo e a vontade de preservar sua

unidade. O povo estr utura do pelo Estado ou pelo desejo de instituir um é tam

 bém chamado “n ação”

Disso decorre que a nação é às vezes an terio r ao Estado, como ocorre pr e

cisamente nas reivindicações nacionais, mas ela também pode ser criada pe

lo próprio Estado, como aconteceu na França, durante a antiga monarquia.

Mas pode tamb ém ocorrer - o que, aliás, é o caso mais freqüente - queum Estado tenha uma população que não apresente nenhuma homogenei

dade, nem lingüística, nem étnica, nem cultural e que não possu a ne nh um sen

timento patriótico. Nem por isso deixa de ser um Estado. Não é, portanto, a

existência de uma nação, mas somente a de uma população, que é uma con

dição do Estado.

c) O poder 

Bem, para que exista um Estado, não basta que exista em um território

determinado um a população submetida a um mesmo conjunto de normas.

 Não e mpregamos habitu almente o t ermo Estado para falar das sociedades sem

história, ditas “primitivas”, ou da Europa ocidental da sociedade feudal; é

 preciso ainda que essa população e esse território es te jam submetidos a uma

forma específica de poder político. Essa terceira condição de existência é ge

ralmente chamada de poder público ou ainda soberania.

Confunde-se, às vezes, a questão jurídica da especificidade do poder, p ró

 pria do Estado, com as questões sociológicas ou polí ticas do consenti mento

e da legitimidade.

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14 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Ê verdade, de u m po nto de vista sociológico, que o Estado não pode exer

cer o pod er pelo simples uso da força. Necessita, para exercê-lo de form a d u

radoura, do consen timento dos sujeitos ou, ao menos, de u ma parte deles.

É igualmente verdadeiro que ele precisa de uma legitimidade , ou seja,

de um con junto de razões que justifiquem aos olhos dos sujeitos ou do s pró

 prios govern ante s a atribuição do poder àqueles que o exercem e o deve r de

obedecer-lhes. Max Weber d istinguiu, assim, três tipos de legitimidade, segu n

do os quais o poder é tradicional (governo do príncipe), carismático (gover

no do chefe qualificado po r seu prestígio) ou racional (governo de au tori da

des agindo em conformid ade com o direito).Mas de um ponto de vista jurídico, o consentimento ou a legitimidade

não podem ser elementos de definição do Estado, pois há muitos Estados

onde não existe o consentimento dos sujeitos ou cuja legitimidade é contes

tada, mas que nem por isso deixam de ser Estados.

Dizemos, então, que o que caracteriza o Estado é o fato de ele exercer 

um pod er de um a essência específica, um pod er sup erior a todos os outros, a

que chamamos soberano. No entanto, q uan do se trata de definir o Estado por 

sua soberania, não pode mos considerá-la como u ma supremacia de fato, umasupremacia real. Podem existir, efetivamente, em alguns países, instituições

ou grupos na verdade mais poderosos que o Estado. O p oder em questão é, por

tanto, um pod er que não é superio r de fato, mas somen te de direito.

Con statamo s, dessa forma, que os três elementos da definição do Esta

do correspo ndem a fenômenos que não são nem naturais, tampouc o sociais

e culturais. Podem existir Estados onde não há nem população nem territó

rio homogêneos, cujo poder não é real e materialmente superior. Portanto,

esses três elemento s devem ser definidos juridic ame nte e apenas desse mod o.Mas uma definição jurídica do Estado - e po r conseguinte um a definição

material do direito constitucional - ocasiona novas dificuldades.

2. Insuficiên cia dessa definição m aterial

A insuficiência repousa em uma definição de Estado. Ora, esta sofre de

uma inexatidão grave. A crítica, muito simples, foi feita por Hans Kelsen.  De

 fi n ir o Estado pela reunião de três condições é afirm ar que tão logo constatamos  

que essas três condições são realizadas, verificamos imediatamente que existe um  

Estado. Mas, objeta Kelseny é impossível fazer essa constatação, po is as três con

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dições não correspondem a fatos empíricos que poderíamos encontrar na natu

reza. Co mo saber, por exemplo, que existe um povo? Um povo não é um fenô

meno natural. É um grupo de homens, que muito freqüentemente não têm

em comum nem a língua, nem a religião, nem laços étnicos, nem outra carac

terística. O único laço que os une é o fato de estarem submetidos ao mesmo

Estado. Mas percebemo s com isso que se o povo se define pelo Estado, torna-

se impossível definir o Estado pelo povo. Da mesma forma, o território não

existe “naturalmente”. É somente a porção de espaço na qual o Estado exerce

sua autoridade. Quanto ao poder piiblico, não se trata também de um poder 

 polít ic o qualquer, é o do Estado. A definiç ão clássica de Estado apresenta, porta nto, um cará ter tautológico: existe um Estado quando há um povo, um

território e um p ode r público e existe um povo, um território e um p ode r pú

 blico quando existe um Estado (K e l s e n , 1962, especialmente, p. 2 7 5 - 3 1 0 ) .

Em contrapartida, o direito constitucional conheceu desde o século XVIII

uma evolução importante. Ele não tem mais apenas por objeto a organiza

ção do Estado e não tem mais apenas como finalidade a limitação do poder 

e a garantia da liberdade, mas abrange questões constantemente mais varia

das e mais numerosas. Essa evolução se explica na tura lme nte pela hierarq uiadas normas (cf. supra): cada norma encontra o fundamento de sua validade

em uma norma superior, com a qual deve estar em conformidade. Isso im

 pl ica obviamente que a primeira não pode modif icar a segunda. Aplicada às

relações da constitui ção e da lei, essa idéia significa que a lei não pode m od i

ficar a constituição. Essa idéia é rica de conseqüências práticas, pois quando

queremos d ar um grande valor a uma regra, quando queremo s protegê-la de

qualquer modificação pela lei, a ela damos a forma constitucional, exprimi

mo-la por um texto constitucional e assim ela se torna em si mesma umano rm a constitucional. Ela poderá ser alterada somente m ediante um proce

dimento especial, geralmente mais difícil de ser realizado. Há dois séculos

anunciaram-se com efeito numerosas regras, principalmente para garantir 

liberdades fundamentais, entre outras questões (F a v o r e u , 1988) .

3. A constituiçã o, sistema de órgãos

Os homens que exercem o poder político não exercem um poder pró

 prio , mas uma competência. Dizemos q ue eles t êm, individualmente o u quan

do estão reun idos em colégios, a qualidade de órgãos do Estado, porque seus

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atos são considerados como realizados pelo Estado e são a ele atribuídos.

 Nós os chamamos também de autoridades ou poderes públicos. Nos Estados

mo derno s, existem vários órgãos como esses, de form a que o pod er seja pa r

tilhado entre eles. A constituição é, então, a organização geral do poder, re

sultante da divisão das competê ncias entre os órgãos.

B. Definiçãoformal

Mas podemo s dar tam bém uma definição formal do direito constitucio

nal: é o conjunto de normas que têm um valor superior ao de outras normas ,que podem servir de fun da m en to de validade a outras normas e que não se fu n

dam em nenhum a norma jurídica.

Algumas dessas normas são enunciadas em um texto ou documento

denominado “constituição fo rm a l . No entanto, em vários países, a constituição

formal é aplicada e interpretada pelos juizes, de m od o q ue o co njun to dessas

interpretações, que forma o que cham amo s jurisprudência, é também uma par

te do direito constitucional.

O direito constitucional não mais se define materialmente por seu ob jeto, mas por sua forma: tr ata-se das normas que ocupam o to po da hierar

quia do sistema jurídico, que não podem ser modificadas pela lei e que po

dem incidir sobre campos bem variados.

É necessário ressaltar que as definições formal e material não coinci

dem. Uma norma contida em um texto constitucional pode ser constitucio

nal formalmente, mas não materialmente. O exemplo mais conhecido é o de

um a disposição da constituição helvética que proibia o abate dos an imais se

gundo o costume judeu. De modo contrário, uma norma relativa à eleiçãodos deputados que, como na França, não está contida no texto constitucio

nal mas dentro da lei, é constitucional materialmente, não formalmente.

 Na maioria dos Es tados modernos, privilegia-se a defin ição formal . Es

sa preferência indica que o objetivo é proteger princ ipalm ente as liberdades,

asseguradas pelas normas formalmente constitucionais contra infrações ou

modificações que possam ocorrer de forma excessivamente fácil. Daí porque

um número cada vez maior de matérias tem encontrado seu fundamento no

direito constitucional, na medida em que elas são em parte regidas por nor

mas form almen te constitucionais, cuja supremacia é assegurada em razão do

controle de um tribunal constitucional.

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Seção 2

O direitoconstitucional comociência

Em um segundo sentido» a expressão “direito constitucional” designa a

disciplina, a ciência que estuda o c on junt o de regras que ch am am os “direito

constitu ciona l” ou “constituição”. Sobre a natu reza e os m étod os dessa ciên

cia, existem concepções muito diferentes, que refletem, aliás, as grandes di

vergências relativas à ciência do direito em geral, a do positivismo e a do jus-

naturalismo, a da ciência do direito ou dogmática jurídica e a da sociologia.

1. JUSNATURALISMO E POSITIVISMO

A.0jusnaturalismo

Alguns acreditam que não existe um só direito, mas dois. O primeiro é

aquele de que tratam os até o mo men to, o direito em vigor, tam bém cham ado

“direito positivo”, porque é a expressão da vontade de alguns homens e quefoi “posto” por eles. O outro seria um direito que não seria produzido pela

vontade hum ana, mas imanente à sua natureza (de onde provém o nom e di

reito natural) ou produzido pela vontade de Deus. O direito natural existiria

antes do direito positivo e se situaria acima deste. Deveria notadamente de

term inar qual autoridad e política é legítima, ou seja, habilitada para produ zir 

o direito positivo, e em quais condições esse direito é válido e obrigatório.

Serviria, po r conseguinte, como fund ame nto de validade para o direito posi

tivo. O conteúdo desse direito natural (o que ele prescreve) é simplesmente a

 justiça: os homens devem produzir um di re ito posi tivo que faça a justiça.

Como é de se esperar, existem muitas variantes dessa doutrina. As dife

renças referem-se antes de tudo à fonte do direito natural, que alguns fu nda

me ntam na vontade de Deus, outros n a natureza das coisas, outros, ainda, na

natureza humana ou na razão. Dizem respeito também às concepções de jus

tiça. Finalmente, há diferenças quanto às conseqüências que estão ligadas a

uma contradição entre o direito natural e o direito positivo. Segundo alguns

autores, que evocam o belo mito de Antígona, um a n orm a d o direito positi

vo que seria con trária ao direito natu ral, logo, à justiça, não seria obrigatória

e seria justo desobedecer a ela. Haveria até mesmo um dever de desobediên

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cia. Outros autores vão mais longe e consideram que o direito natural forne

ce um critério de identificação do direito: um direito positivo contrário ao di

reito natural não seria nem mesmo um direito. Outros, por fim, são mais m o

derados; consideram que um direito posit ivo contrário ao direito natural

contin ua sendo um direito, e que inclusive deve ser obedecido, mas que o di

reito natural pode servir de instrumento para julgar e para sugerir avanços.

Em t odo caso, o jurista que adota essa concepção não se conten ta em des

crever o direito com o ele é. Acredita que lhe cabe tam bém falar do dire ito co

mo ele deveria ser. Essa concepção tende naturalmente a se aplicar a várias

áreas, por ém de form a mais específica em relação ao p ode r público. Qual é o poder legí timo, quais são os limites do poder e quais são os direit os naturais

do homem que esse poder deve respeitar? Eis algumas das questões tratadas

 pelas doutrinas do dir ei to natural. Em se tratando de forma específica do di

reito constitucional, essa concepção se manifestaria da seguinte forma: de

um lado, uma definição material desse direito; haveria um direito constitucio

nal por natureza, que teria por objeto o Estado; de outro, podemos vincular 

ao jusnatura lismo a idéia de que existiriam fo rmas jurídicas puras, po r exem

 plo os regimes parlamentar ou presidencial , cu jas insti tu ições concre ta s deveriam aproximar-se. Mas essa concepção se manifesta sobre tudo na idéia atual

dos direitos humanos, segundo a qual os governantes devem respeitar esses

direitos, inscritos na natureza do Homem e que prevaleceriam mesmo quan

do não expressamente formulados no texto da constituição.

B.0positivismojurídico

1 .0 mo delo das ciências empíricas

O positivismo jurídico caracteriza-se antes de tudo pela vontade de cons

tru ir um a ciência do direito baseada no mod elo das ciências da natureza. Essas

ciências consistem em uma descrição de mundo com o auxílio de proposições

verificáveis. Os juízos de valor não são suscetíveis de serem verdadeiros ou fal

sos. Correspondem somente às emoções e aos gostos daqueles que os expres

sam. Portanto, não são obviamente verificáveis e a ciência somente se desen

volveu renunciando a eles. Ora, as teses sobre o direito natural, sobre o que é

 justo e injusto, são apenas juízos de valor. Eles não corre spondem a nenhuma

realidade objetiva, mas somente a opiniões subjetivas e relativas. Basta, aliás, exa

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mina r as doutrinas do direito natural p ara constatar que, se todas pretendem

sub mete r o direito positivo a u ma exigência de justiça» elas diferem pro fun da

mente no conteúd o do conceito de justiça. Ao contrário, um a ciência autên ti

ca será “pura” de todo juízo de valor e se limitará à descrição de seu objeto.

Existe uma crítica clássica ao positivismo jurídico: se nos abstemos de

tod o juízo de valor, de acordo co m o ideal de pureza, não v amos aceitar con

siderar como direito qualquer sistema jurídico, seja ele a mais atroz tirania?

O sistema jurídico nazista seria direito, exatamente com o o da Suíça. O posi

tivismo acaba assim p or leg itimar qualq uer sistema. A essa crítica, os adeptos

do positivismo opõem dois argumentos: de um lado, dizer que um sistema é ju ríd ico, que forma um dire ito, não significa consid erá -lo como bom ou de

terminar sua observância. Não há recomendação nem para obedecer, nem,

aliás, para desobedecer, mas apenas a identificação de um objeto para a ciên

cia do direito, o reconhecimento de que ele pertence a uma certa classe de

objetos. De outro lado, o positivismo não proíbe qualquer juízo de valor,

mas apenas aquele que seria enunciado em nome da ciência. Uma ciência

 pode apenas descrever o real com o auxíl io de proposições e é logicamente im

 possível derivar regras. Aquele que enunciaria ju ízos de valor e que pretenderia fazê-lo em virtude de suas habilidades científicas cometeria simp lesme n

te uma fraude intelectual. Em contrapartida, é perfeitamente legítimo emitir 

um juízo de valor baseado em outro ponto de vista que não o da ciência. É

 possível, por exemplo, considerar , do ponto de vista da ciência ju rídica, que

o sistema nazista é um direito, que pode ser estudado e descrito como tal, e,

ao m esmo tempo, do ponto de vista moral, sustentar que se trata de um di

reito abominável e que é necessário se esforçar para destruí-lo por todos os

meios. Na prática, aliás, vários positivistas tiveram essa dupla atitude.

2 .0 objeto da ciência do direito é o direito

O positivismo jurídico se apresenta sob duas variantes: de acordo com a

 primei ra , talvez exista um direito na tura l, mas ele não é cognoscível pela ciência

e ela dele nada pode dizer. De acordo com a segunda, mais radical, os únicos

objetos existentes são objetos empíricos, ou seja, acessíveis aos sentidos, e as

doutrinas do direito natural servem apenas para que seus autores apresentem

opiniões políticas sob uma aparência de objetividade. Não há dois direitos, mas

um só, que é o direito positivo. De qualquer modo, tanto para uns como para

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20 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

outros, uma autêntica ciência do direito deve se limitar a descrever o que ela

 pode conhecer. Ora , o direito positivo é c omposto de normas que são a signifi

cação de determinadas frases, med iante as quais alguns indivíduos expressam sua

vontade; existe aí uma realidade empírica que pode ser conhecida e descrita.

3 .0 conteúd o da ciência do direito, as proposições de direito

Uma ciência verdadeira do direito deve se com po r de proposições. Nós

as cham am os “proposições de direito”. Cada um a dessas proposições descre

ve uma norma. Ela é suscetível de ser verdadeira ou falsa. Ela é verdadeira sea norma descrita existe de fato, falsa, em caso contrário. Assim, a proposição

“existe na França uma norma segundo a qual se alguém comete um assassi

nato, deverá ser condenado à morte” é falsa, pois essa norma foi ab-rogada

na França e não existe mais.

A distinção entre n orm as e proposições de direito é imp ortan te, mas às

vezes delicada. É impo rtan te, p ois elas têm prop riedad es diferentes.  As nor

mas são um produto da vontade , enquanto as proposições de direito são um  

 produto do conhec imen to. As normas não podem ser nem verdadeiras nemfalsas, enquanto as proposições de direito, por sua vez, são suscetíveis de se

rem verdadeiras ou falsas. A distinção é, entretanto, delicada, porque fre

qüen temen te enunc iamos a proposição de direito não sob a forma completa

que acabamos de indicar (“no sistema jurídico do país X, existe uma norma

segundo a qual se alguém cometeu um assassinato, deverá ser condenado à

mo rte” ), mas sob uma forma sintetizada que reproduz pura e simplesmente

o conteúdo da norm a. Um professor de direito, por exemplo, que não e nu n

cia nor mas , mas apenas proposições de direito, não precederá a descrição decada norma pela fórmula “no sistema jurídico X, existe uma norma segundo

a qual...” e dirá simplesmente “se alguém cometeu um assassinato, deverá ser 

condenado à morte” Compreendemos, contudo, que se trata não de uma

norma , mas de uma proposição, porque a frase não eman a de uma a utorid a

de juridicamente autorizada a colocar normas, mas de um professor, e ela é

logicamente suscetível de ser falsa.

Segundo o exemplo sobre o qual raciocinamos, poderíamos crer que a

ciência do direito se limita a reproduzir pura e simplesmente as normas e

que ela não é, por conseg uinte, de mu ita utilidade. No entanto, nã o pod em os

esquecer que as norma s n ão são enun ciado s que não são acessíveis aos senti

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dos. A ciência do direito precisa somente de enunciados, qu e expressam n or

mas, mas não das normas em si. Cabe a ela, portanto, desvendar quais são

essas normas expressas pelos enunciados, ou seja, depreender seu sentido e

descrevê-lo com o auxílio de um a proposição de direito.

Essa descrição não se limita, aliás, a uma indicação do conteúdo da

norma, daquilo que ela prescreve. Faz-se necessário, ainda, para descrevê-la

completamente e explicá-la, interpretá-la com o auxílio do conjunto das

normas a que ela pertence. Esse ponto se esclarecerá se raciocinarmos mais

 particularmente sobre a ciência do dir eito consti tucional.

4 .0 conteúdo da ciência do direito constitucional

A ciência do direito constitucional é simplesmen te u m ram o da ciência

do direito. Ainda qu e seu objeto seja específico - a constituição - sua função

é idêntica: enun cia r proposições de direito. Ela se faz presente p or textos. Su

 ponham os, po r exemplo, esta frase bem conhecid a: “a lei é a expressão da

vontade geral”. É evidentemente possível, mas pouco útil, enunciar a propo

sição de direito: “existe uma norma segundo a qual a lei é a expressão davontad e geral”. Mas pod em os c om preen dê-la e assim descrevê-la inteira

mente no sistema a que ela pertence. Isso pode ser entendido ao menos de

três maneiras diferentes.

Em primeiro lugar, do ponto de vista formal, essa norma se situa em

um determinado nível da hierarquia da ordem jurídica. O texto que a ex

 pressa está conti do na Declaração dos Dire itos do Homem e do Cidadão de

1789, à qual remete o preâmbulo da constituição francesa de 1958. Portanto,

ela integra hoje a constituição formal, o que significa que ela se impõe a todos e principalmente ao legislador.

Em segundo lugar, do po nto de vista material, devemos indicar o que sig

nifica “a lei é a expressão da vo ntad e geral”. Ora , essa frase pode ser com pre

endida apenas considerando-se uma concepção global do poder polí t ico,

elaborada no século XVIII, mas que ainda inspira o direito francês. Essa fra

se, redigida no mo do indicativo, adquir e u m significado prescritivo some nte

qu an do esclarecida den tro de seu contexto. Ela significa, então, que aquele que

enuncia a lei não tem o direito próprio de exercer o Poder Legislativo, que a

vontade que ele expressa não é a sua mas a vontade geral, que ele não é o so

 berano do povo, mas apenas seu representante .

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22 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Em terceiro lugar, ainda de um po nto de vista material, é preciso deter

min ar o con teúd o preciso da prescrição. O en uncia do “a lei é a expressão da

vontade geral” pode de fato significar uma prescrição, mas essa prescrição só

 pode ser consid erada como uma norm a um a vez es tabelec ida qual conduta

deve ocorrer. Poder-nos-íamos perguntar, por exemplo, se a fórmula do art.

6o implica que tudo o que faz o detentor do Poder Legislativo deve ser consi

derado como a expressão da vontade geral ou se, além disso, determinadas

condições devem ser respeitadas. Evidentemente, a leitura, me smo atenta, do

art. 6o não fornece a resposta a essa questão. Portan to, a ciência do direito co ns

titucional nã o p ode, po r si me sma, fornecê-la, mas cabe-lhe, antes, colocá-la(in abstracto, fora de qualquer dificuldade particular, na ausência de qual

quer litígio concreto) e expor as diversas soluções possíveis, e em seguida,

descrever a solução apresentada pelo direito positivo. Assim, no caso em

questão, durante a Terceira República, a solução era: “tudo o que faz o Poder 

Legislativo é a expressão da vontade geral, é uma lei”; durante a Quinta Re

 pública, a solução , que resulta da jurisprudência do Conselho Constitucional, é  

ao contrário: “o que fo i adotado pelo Poder Legislativo é a expressão da vontade  

geral som ente se estiver em conformidade com a constituição”.Con statam os assim que existe um a relação estreita entre o texto em ques

tão e a organização geral do poder. É por ser a constituição um sistema de

órgãos, que o conte úd o do art. 6o da Declaração adquire um sentido pa rticu

lar de acordo com o sistema no qual o interpretamos, um sentido diferente

durante a Terceira ou durante a Quinta República.

2 . D i r e i t o   c o n s t i t u c i o n a l   e   c i ê n c i a   po l í t i c a

A distinção reflete aquela entre ciência do direito e a sociologia. Essas

duas disciplinas foram concebidas tanto como uma única e mesma ciência,

como duas disciplinas, opostas ou complementares.

a) A unidade do direito constitucional e da ciência política

Até o início do século XX, direito constitucional e ciência política formavam some nte um a única disciplina. Essa situação se explica po r dois fato

res principais.

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0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l 23

Por um lado, a distinção de inspiração positivista entr e a perspectiva des

critiva e a perspectiva normativa não estava claramente estabelecida e a ciên

cia política se incu mb ia de des cobrir o me lhor sistema de governo. Ela tinha,

 portanto, um conjunto de prescr ições. É nesse sentido que, por exemplo , as

histórias da ciência política publicadas no século XIX diziam respeito ao que

chamaríamos hoje filosofia ou teoria política. Quando essas prescrições eram

 precisas, podiam tomar a aparência de regras consti tucionais .

Por outro lado, mesmo d entro de u ma perspectiva mais próxima da co n

cepção positivista, descrever a organização e o funcionamento do poder era

descrever as regras efetivamente aplicadas, da mesm a form a qu e descrevemos e explicamos um jogo enunciando suas regras.

b) A distinção do direito constitucional e da ciência política

As duas disciplinas se separaram qu an do esses fatores se enfraquece ram.

Por um lado, adm itiu-se que era necessário distingu ir dentre as regras aquelas

que efe tivamente estavam em vigor, que faziam parte do direito positivo, e em

contrap artida, aquelas que se desejava introduzir, que pod iam ser preconizadas, mas que nã o p odiam ser descritas. De onde vem u ma primeira distinção

entre a teoria política, norm ativa, e a ciência do direito e a sociologia, descri

tivas. Por out ro lado, era possível constatar facilmente que o efetivo fun cion a

mento do poder político não poderia ser entendido como o resultado de uma

simples aplicação de regras de direito, e que existiam situações, cada vez mais

freqüentes, no século XIX, nas quais aquele que o direito designa como o

 principal detentor do poder, o monarca, não estava mais em condições de

exercê-lo, a não ser de forma parcial, ou de fo rma alguma. É necessário, então, procurar ante s descrever a efetiva divisão do poder, e em segu ida explicá-la, o

que ev identemente só pode mos fazer colocando em evidência as relações so

ciais. Constitui-se, então, ao lado de uma disciplina propriamente jurídica, o

direito cons tituciona l que estuda as regras, uma disciplina sociológica, a ciên

cia política preocupada em descrever a realidade.

Essa dualidade provocou na França, logo após a Segunda Guerra Mun

dial, um a rivalidade e um declínio da ciência do direito constitucional, que pa

recia definitivamente inapta para descrever o real e se achava restrita às tare

fas tradicionais: descrever as no rm as em vigor e esclarecer seus fun dam ento s

com o auxílio das grandes doutrinas. Na verdade, a descrição das regras

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24 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

constitucionais acrescentava somente poucos elementos novos à simples lei

tura dos textos da constituição, e, em contrapartida, as grandes doutrinas da

época revolucionária e a relação destas com as regras do direito positivo ti

nham sido em geral muito bem apresentadas de forma completa pelos juris

tas das gerações anteriores com o Esmein ou Carré de Malberg.

Admitiu-se, porta nto, nessa época que, já que a ciência do direito con s

titucional não propiciava um conhecimento da política, era necessário com

 plementar a exposiç ão das regras com a descri ção do funcionamento real.

Foi assim que os currículos dos estudos de direito foram modificados a fim

de fazer constar n o título dos cursos, ao lado da expressão “direito con stitucio na l”, a de “ciência polít ica” ou de “instituições po líticas”.

Essa mu da nça era, entretanto, some nte u ma maq uiagem superficial. Sal

vo algumas notáveis exceções, as obras de direito constitucional posteriores à

Segunda Guerra Mundial, na França, se apresentavam como obras pedagógi

cas, úteis, mas sem gr ande originalidade, en qu ant o os mais ilustres dentre os

 juri stas de direito públi co se dire cionavam para o dir eito adminis trativo ou

 para a ciência polí tica .

c) O avanço do direito constitucional

O declínio parece hoje definitivamente estacionado em razão de dois con

 juntos de fatores, alguns deles ligados à in fluência da ciência polí tica, outro s,

às transforma ções essenciais do direito constitucional.

Em primeiro lugar, a ciência do direito constitucional começou a mo

dificar sua metodologia emprestando da ciência política dois instrumentos

que ela mesma, aliás, havia importado de outras disciplinas e que se revelaram particularmente eficazes: a análise estratégica e a análise sistêmica. A

 primeira consiste em explicar as ações das auto ridades públicas concebendo-

as como condutas organizadas em vista de um determinado objetivo, em

função das condutas efetivas ou prováveis das outras autoridades. Construí

ram-se, por exemplo, modelos teóricos, para dar conta dos c omp ortam entos

dos poderes públicos constitucionais dura nte a Quin ta República, em diferen

tes hipóteses de concordância ou, ainda, de divergência entre a maioria par

lamentar e a maioria presidencial. A análise sistêmica em si encara o poder 

como um conjunto de interações entre os elementos, que não são invariá

veis, mas que assume m sentido e se modificam em função dessas interações.

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0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l 25

 Não podemos, portanto, nos limit ar a ra cio cin ar como se o direito constitu

cional positivo consistisse em uma série de regras, logicamente deduzidas de

alguns princípios fundamentais. Os princípios se modificam em função dos

sistemas constitucionais nos quais estão inseridos e em função de suas rela

ções com os outros elementos desses sistemas.

Mas o avanço da ciência do direito constitucional resulta também em

grande parte das transformações que afetam o direito constitucional em sua

essência. Trata-se principalmente do extraordinário desenvolvimento da jus

tiça constitucional. Em vários países foram criados tribu nais constitucionais.

Eles produziram jurisprudências de grande im portância e de grande com  plexidade. Esses tribunais são na verdade levados principalmente a controlar 

a validade das leis nas mais diversas matérias e a verificar se elas estão de

acordo co m os princípios c ontidos na constituição. É necessário, portanto , ad

mitir primeiramente que todos os ramos do direito, o direito civil, o direito

 penal ou o direito comercial têm as bases na const ituição, e em segundo lu

gar que são os tribuna is constitucionais, encarregados de interp retar seu tex

to, que c ontr ibue m para de term ina r suas bases. A ciência do direito cons titu

cional desempenha, assim, um papel essencial: expor e comentar essa juris prudência.

Hoje, identificamos na ciência francesa do direito constitucional duas

correntes principais. A primeira estuda um objeto tradicional, as institui

ções, adotando, contudo, métodos novos. A segunda aplica o método jurídi

co clássico, a dogmática, a um objeto novo, a justiça constitucional.

d) As relações entre o direito constitucional e a ciência política hoje

Essas relações são diferentes para as duas correntes que acabamos de

indicar: a ciência institucional está sem dúvida mais próxima da ciência po

lítica. Existe entre elas não apenas uma influência metodológica, mas tam

 bém obje to s em parte comuns. O exemplo mais conhecido é o dos parti dos

 polí ticos: são abordados em várias const itu ições modernas e são considera

dos, às vezes, como órgãos de Estado, de m od o q ue a ciência do direito con s

titucional pode então fazê-los constar dentre os elementos dos sistemas

constitucionais e estudar suas relações com os outros componentes: as auto

ridades e suas competências. Por sua vez, a ciência política, que procura

com pree nde r os sistemas de partidos, ou seja, seu nú mero , suas relações m ú

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2 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

tuas, suas estruturas, reconhece a importân cia de um elemento pro pria me n

te jurídico, o escrutínio.

As relações entre a ciência política e a segunda corrente da ciência do di

reito constitucional, a que estuda a justiça constitucional, são menos estreitas

 por razões evidentes: tr ata-se de entender o sentido e a importância de uma

 jurisprudência , o que não pode ser feito por um método emprestado da socio

logia, mas apenas por meio da ciência própria dos juristas, a dogmática.

É preciso notar, en tretan to, u m recente interesse pela ciência política, não

exatamente por parte do direito constitucional em si mesmo, mas por parte

da ciência do direito constitucional e dos juristas, a partir de agora considerados atores do jogo político (G a x i e , 1989; P o i r m e u r   e R o s e n b e r g , 1989).

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P r ím e í r a P a r t e

TEORIAGERALDO ESTADO

O que é a teoria geral do Estado? - As instituições não são mero s aglo

merados, mas sistemas. Entre as noções de aglomerados e de sistemas exis

tem grandes diferenças. Para que se tenha um aglomerado, como por exem plo em mecânica, escolhemos e montamos uma determinada ordem de

 peças fabr icadas pre via mente. Ao contr ário , um sistema apresenta pelo me

nos a proprie dad e pela qual o sistema não apenas atribui funções a seus ele

mentos, mas também os modifica.

É por isso que não é possível expor uma teoria geral do Estado que te

ria por objeto o estudo isolado de alguns elementos invariáveis (a soberania,

a representação, a separação dos pod eres etc.) e que precederia o estu do dos

diferentes regimes políticos, reservado à ciência do dire ito consti tucion al. Tal

tentativa repousaria na idéia de que cada tipo de regime é somente um ar

ranjo diferente desses mesmo s elementos. Mas isso seria ign orar q ue os ele

mentos na verdade nunca são os mesmos.

A teoria geral do Estado não é, portanto, a análise dos elementos inva

riáveis de todo e qualquer sistema político.

 Na verdade, o que se expõe comum ente sobre esse assunto não é uma

“teoria geral do Estado”. Uma teoria geral é um con junto coo rden ado de pro

 posições tidas por verdadei ras e que tê m não um objeto parti cula r, não este

ou aquele Estado, mas todos os Estados existentes ou mesmo todos os Esta

dos possíveis. Ora, a teoria geral do Estado ou não é u ma teoria, ou en tão não

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30 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

é geral e não se refere realmen te ao Estado. O que ela contém de com um p o

de efetivamente ser agrup ado em dois itens.

 Nela encontramos primeiramente não proposições, mas prescr ições

mu ito genéricas, de nom inad as “princípios”. Por exemplo, “os po deres devem

estar sep arados ” ou “para que a lei seja a expressão da vo ntade geral, é neces

sário que ela seja adotad a pelos representantes do s obe rano ”. Cert ame nte es

sas prescrições, diferentemente dos comandos, se apresentam, às vezes, não

como a expressão da vontade de seus autores, mas como a indicação de meios

 próprios para realizar um determinado fim. A separação dos poderes seria

um meio para preservar a liberdade, e o controle de constitucionalidade ummeio para garantir a supremacia da constituição. Tratar-se-ia, portanto, não

efetivamente de prescrições, mas de leis científicas. No entanto, é preciso

constatar que a relação entre meios e fins é aqui muito vaga. Essas “leis” só

 podem ser reconhecidas quando especi ficamos o sentid o que damos às ex

 pressões pelas quais designamos os fins (liberdade) ou os meios (separação 

dos poderes). Segundo o se ntido qu e da mo s a essas palavras, os meios perm i

tem o u não realizar os fins almejados, de mo do que a teoria geral do Estado

diz respeito, na verdade, não ao Estado, mas à língua.Encontramos também na teoria geral do Estado verdadeiras proposi

ções. Trata-se aqui não do en unc iado de princípios, mas de afirmações de que

esses princípios existem em um ou em o utro sistema constitucional, ou seja,

de que elas são respeitadas. Esse enun ciado forma realmente u m a teoria, mas

esta nada tem de geral.

Assim, qu an do a teoria geral do Estado trata da separação dos poderes,

não enun cia, apesar das aparências, um a teoria segundo a qual os poderes es-

tariam separados em todos os sistemas constitucionais ou mesmo em algunsdesses sistemas. Ela se limita a afirmar que alguns sistemas têm sido construí

dos de acordo com uma prescrição geral nomeada “o princípio da separação

dos poderes”. Mas é necessário que ela então examine o que é assim prescri

to concretamente e constate que o conteúdo das prescrições é bem variável,

conforme as constituições. Igualmente, da afirmação de que os poderes são

separados neste ou naquele sistema constitucional, nada podemos inferir so

 bre o núm ero de autoridades, suas relações mútuas ou suas competências. A

teoria clássica conclui que existem diversas interpre tações do princípio, o que

significa que nenhuma teoria geral é possível.

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T e o r ia G e r a l d o Es t a d o 31

 No entanto, é imposs ível compreender e descrever as regras do direit o

constitucional positivo sem o auxílio dessa teoria geral do Estado. Aqueles

que elaboram uma constituição e adotam as regras constitucionais positivas

devem justificar as escolhas. Não podem fazê-lo exclusivamente co m base em

considerações técnicas, porqu e não existe tecnologia constitucional. Devem,

 portanto, dar justi ficativas embasadas em prin cíp ios, variáveis de acordo com

os países e as épocas, ainda que recebam o mesmo nome. Podemos, portan

to, compreender a teoria geral do Estado simultaneamente como o inventá

rio, em diferentes contextos no s quais eles se colocam, dos pro blemas consti

tucionais práticos, dos modos como eles se apresentam, das espécies desoluções que lhes são dadas e dos princípios pelos quais se justificam.

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CApÍTulo

ACONSTITUIÇÃO

Seção 1

Asfontesdodireitoconstitucional

Situação do problema. - Só é possível afirmar q ue um a regra existe e jus

tificar essa asserção quando se indica onde essa regra pode ser encontrada,

com o ela foi prod uzid a ou descoberta e expressa. Dizer, po r exemplo, que o

Presidente da República francesa é eleito pelo sufrágio universal eqüivale a

dizer que existe um a regra, intro duzid a na constitu ição, pela revisão de 1962.

Indicou-se assim a “fonte” da regra.É preciso ressaltar que, uma vez diferenciadas a constituição material e

a constituição fo rm al1, a ques tão refere-se apenas à constituição material: co-

nhece-se a existência de uma regra tendo como objeto a organização do po

der e procura-se conhecer sua origem.

O termo “fontes” tem evidentemente origem em uma metáfora, que se

explica por si mesma, à luz de uma teoria do direito implícito. Uma fonte é o

 ponto de onde a água sai das profundezas da te rra e emerg e para a luz. Falar 

de fontes do direito é, portanto , pre ssupor que, com o a água, o direito existia

1Cf. o capítulo preliminar.

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34 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

antes de aparecer para os homens. Estes, que aparentemente produzem re

gras, na verdade não as criam, nada fazem a não ser descobri-las e explicitá-

las. As doutrinas de inspiração jusnaturalista ou sociológica, quando exami

nam as fontes do direito, colocam na verdade duas questões diferentes: a

 primeira concern e à orig em da regra, antes que ela seja expressa; é a qu es tão

das fontes materiais. A segunda concerne à expressão em si mesma, é a ques

tão das fontes formais. Segundo essa concepção, a questão das fontes formais

é menos importante. Trata-se apenas de técnica. As respostas à primeira

questão, aquela das fontes materiais, são muito diversas. Podem referir-se ao

direito natural, à História ou à consciência coletiva.Com preen dem os que a questão das fontes não abrange apenas a origem

das regras, mas muito freqüentemente trata de seu fundamento ou de sua le

gitimidade. Afirmar que tal regra do direito positivo expressa na lei (a fonte

formal) tem com o fonte material o direito natural, é tratar de sua origem, é di

zer que o legislador se inspirou em uma doutrina do direito natural, mas é

afirmar ta mbé m que a regra positiva está em co nform idad e com o direito na

tural e que é necessário a ela obedecer.

Tal posição é inaceitável do ponto de vista de uma teoria positivista, que considera, quanto a elayque existe somente o direito “posto”. Portanto, o direi

to contido nessas fontes materiais não é direito. Ele se torna rá direito s om en

te após ter sido “posto”, ou seja, expresso por uma autoridade competente.

Dessa perspectiva, existem somente fontes formais. É preciso acrescentar duas

observações: inicialmente, a questão do fundamento do caráter obrigatório

das regras de direito não é uma questão jurídica, mas uma questão moral. A

ciência do direito se limita a identificar e a descrever as regras; não prescreve

que as obedeçamos e, portanto, não procura o fundamento de uma prescrição que ela não formula. Em contr apartid a, é verdade que a questão das fon

tes nem sempre trata do fundamento da obrigação. Para a sociologia do di

reito, pode se tra tar apenas de identificar as representações da regra desejável

na qual o legislador pôde se inspirar. Tal questão apresenta um interesse ci

entífico evidente. No entanto, ela não pode ser tratada pela ciência do direi

to, pois ela não diz respeito efetivamente às normas, mas aos fatos psicosso-

ciais. Então, ela apenas vem de uma disciplina que tem esses fatos como

objeto e que usa um a metodologia diferente, a sociologia jurídica.

Uma teoria positivista se atém, por conseguinte, apenas às fontes for

mais, ou seja, às técnicas mediante as quais são produzidas as normas jurídi

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 A C o n s t i t u i ç ã o 3 5

cas. Dizem os que um a norm a fo i posta quando um determinado fa to (por exem

 plo ,, um ato de vontade) foi instituído por uma norma superior como significado 

de uma prescrição. Existem, porta nto, tantas fontes quan tos forem os fatos ins

tituídos dessa maneira. Todavia, é possível agrupá-las em tipos e são esses ti

 pos que a teoria posi tivista denominará “fontes formais”. É possível, outros-

sim, agrupá-las de du as form as diferentes. Podemos, primeiro, considerar que

toda no rma é posta em conformidade com um a norm a superior e que ela pró

 pria auto ri za a cr iação de uma norma inferior, o que nos leva a dis tinguir as

fontes de acordo com o seu nível na hierarquia da o rdem jurídica. Enu me ra

remos então a constituição, a lei, o ato do poder executivo. Podemos tambémclassificá-las considerando que o fato instituído como significação de uma

norma é um ato de vontade ou outro tipo de fato, por exemplo, um costume.

Compreendemos, assim, toda a importância das fontes: é por meio de

las que podemos identificar um ramo do direito. O direito constitucional é

uma parte do sistema jurídico, um subsistema. Distinguimo-lo dos demais

ram os em virtude de ele possuir um con junt o de fontes específicas. Falamos,

então, de autonomia do direito constitucional. Essa autonomia provém antes

de tudo do nível no qual se situam as fontes, notadamente na constituiçãoformal, mas ela resulta também do papel específico que desempenham a lei,

o costume ou a jurisprudência.

Trataremos em seguida da hierarquia das fontes e do tipo de fatos pro

dutore s de direito.

1.A HIERARQUIA DAS FONTES DA CONSTITUIÇÃO MATERIAL

A.Aconstituiçãoformal

É o conjunto cie regras, independentemente de seu objeto, que são

enunciadas na forma constitucional: elas estão em geral contidas em um do

cum ento especial, mas sobretudo têm u m valor superior ao de todas as ou

tras normas positivas e somente podem ser modificadas conforme um pro

cedimento especial, mais difícil de ser implementado do que aquele que

 permite modific ar alg uma outra norma, como por exemplo uma lei ordinária. Essa qualidade da constituição formal é denominada “rigidez”. Estudare

mos, então, a rigidez da constituição formal antes de examinar seu conteúdo.

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3 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

1. A rigidez constitucional

a) O fundamento da rigidez: a separação do poder constituinte e dos po

deres constituídos

O autor da constituição é chamado “poder constituinte”. Os procedimen

tos de escolha e de aplicação são muito variáveis. O texto pode ser adotado por 

uma assembléia, que se denomina assembléia constituinte ou “convenção”, ou

 por um gove rno. Ele pode ainda ser apenas preparado por uma assembléia

ou um governo, depois submetido ao referendo. De qualquer forma, o poder constituinte é aquele cujo consentim ento permitiu colocar em vigor o texto.

Essa constituição tem sempre po r objeto - e por conteúd o m ínim o -

instituir autoridades ou órgãos ou ainda “poderes constituídos” e dividir 

comp etências entre eles. É a essa divisão que c ham am os separação dos po de

res. Ora, está claro que se uma dessas auto ridades pudesse m odificar a const i

tuição, ela ampliaria suas próprias competências em detrimento das outras e

destruiria assim o conjunto dos equilíbrios que o poder constituinte pro cu

rou estabelecer. Então, a separação dos poderes só pode ser preservada se os poderes constituídos não dispuserem do poder constituinte, ou seja, se a constituição 

 fo r “rígida”

Ao contrário, a constituição seria “flexív el” se pudesse ser fac ilm ente alte

rada por um dos poderes constituídos, po r exemplo, pelo P ode r Legislativo, nos

termos do processo legislativo ordinário. É notadamente o que ocorre quan

do não existe constituição formal, ou então quando a constituição é costu

meira, como na Grã-Bretanha ou ainda qu and o ela é essencialmente expres

sa dentro das leis ordinárias, como em Israel.

b) A expressão da rigidez: a distinção do poder constituinte originário e 

do poder constituinte derivado

A rigidez não significa que a constituição nã o p oderá ser modificada ou

revisada, mas que ela pode rá sê-lo apenas segun do alguns p rocedim entos, or

ganizados por ela mesma e pelos órgãos que ela instituiu para esse fim. De

nominamos “poder constituin te der ivado” o poder dos órgãos competentes pa

ra modificar a constituição, em oposição ao “poder constituin te originário”, o

dos órgãos que adotaram a constituição. Na prática, empregamos também

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 A C o n s t i t u i ç ã o 3 7

essas expressões para designar nã o apena s o pod er desses órgãos, mas os ó r

gãos em si.

O princípio da separação do poder constituinte e dos poderes constituí

dos veda confiar inteiramente o pode r constituinte derivado a um dos pode res

constituídos, mas não proíbe atribuir-lhes um papel no processo de revisão

constitucional. Assim, o Parlamento pode intervir nesse procedimento de

vár ias maneiras: para elaborar uma proposta de revisão, para discut i - la

e adotá-la, desde que ele não o faça dentro do processo legislativo ordiná rio e

que ele não decida dentro dessa mesma configuração.

O poder constituinte derivado é assim circunscrito dentro de limites,relativos à forma da revisão, mas tam bé m algumas vezes ao conteúd o.

Os limites ou condições referentes à forma po dem ligar-se aos m om en

tos nos quais o processo pode ser iniciado, às hipóteses nas quais ele pode

ocorrer ou ao procedimento.

Desse modo é possível que uma constituição proíba qualquer revisão

dura nte um determ inado prazo subseqüente à sua entrada em vigor. Ela po

derá ser modificada somente q uan do alguns anos de experiência apon tarem

defeitos para a revisão. A constituição de 1791, por exemplo, proibiu qualquer revisão durante os dez primeiros anos após sua aplicação.

Em segundo lugar, a constituição pode proibir qualquer revisão em al

gumas hipóteses, como por exemplo quando uma parte do território nacio

nal é ocupada por forças estrangeiras em tempos de guerra ou em períodos

de crise.

Em terceiro lugar, ela pode prever um processo de revisão obrigatória.

Podemos assim distinguir a adoção de um desejo de revisão e a revisão pro

 priamente di ta , com essas duas operações confiadas a do is órgãos diferentes.Podemos, de forma geral, atrib uir um papel, no processo de revisão, seja a al

guns poderes constituídos, mas que decidem no termo de um processo espe

cial, seja a um órgão especialmente instituído para esse fim, por exemplo,

uma assembléia de revisão. No último caso, essa assembléia poderá apenas

exercer o poder de revisão ou então assumir funções normalmente exercidas

 pe lo Parla mento. A constit uiç ão pode ainda exigir que os pro je tos sejam ado

tados pela maioria qualificada (mais importante que a maioria simples) ou

que eles sejam ratificados por referendo ou ainda por um determinado nú

mero de Estados dentro de um Estado federal. Pode-se, evidentemente, co m

 binar todas essas limitações de difer en tes modos.

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3 8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Os limites de conteúdo consistem na proibição de modif icar a constitu ição

em determinados aspectos. Na França, por exemplo, é proibido modificar a

forma republicana do regime. Mas pode-se proibir també m atentar contra o

caráter socialista da economia, contra determinados direitos fundamentais,

ou contr a o caráter federal do Estado.

Essas condições também não são obrigatórias. Os limites de conteúdo

não limitam verdadeiramente o poder derivado, porque ele sempre está su

 je ito a revisar em um primeiro momento as disposições da consti tuição, que

fixam esses limites, para, em um segundo momento, implementar a revisão

desejada. Na França, poder-se-ia, po r exemplo, revisar a constituição para su primir a proibição de cometer atentado à forma republic ana e revisá-la uma

segunda vez para instituir uma monarquia. Essas restrições representam,

 pois, ante s de tudo, limites morais .

Os limites de forma, por sua vez, não pod em ser alterados tão facilmen

te, pois seria necessário, para modificá-los, se forem considerados muito se

veros, revisar a constituição dentro das formas previstas.

É necessário, entretanto, menc ionar a dou trina da supraconstitucion a-

lidade, que encontra sua origem em C. Schmitt. Ela supõe a existência dedois níveis de regras constitucionais: o das leis constitucio nais e o da con sti

tuição pro pria me nte dita. As leis constitucionais co ntêm regras técnicas rela

tivas à organização dos poderes públicos, a suas competências ou a suas re

lações mútuas. Elas podem ser modificadas em conformidade com o

 procedimento previs to pela revisão. Em contrapartida, a constituição p ro

 priamente dit a (chamada às vezes “constituição material’', em um sentido

 bem diferente do que nós empregamos nesse volume) compreende os p r in

cípios fundam entais do Estado. Os adeptos dessa dout rina sustentam que o poder constituinte deriv ado, porque é instituído pela consti tu ição, é na rea

lidade um poder constituído. Assim, não haveria mais que uma competên

cia limitada: ele só poderia modificar “leis constitucionais”, mas não a pró

 pria constituição.

Em sua variante modern a, a do utrina da supraconstitucionalidade leva

a atribui r ao juiz constitucional o pod er de an ular as leis de revisão const itu

cional relativas a determinados princípios fundamentais. Estima-se, por 

exemplo, que se a constituição proíbe ate ntar co ntra a forma republicana, ela

 pro íbe implic itamente in frin gir alguns princípio s ligados a essa forma repu

 bl icana, como o caráte r democrático ou o Estado de dir eito ( T r o p e r  , 1994a).

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 A C o n s t i t u i ç ã o 39

Essa dou trin a inspira alguns aspectos da jurisp rudê ncia dos tribunais c onsti

tucionais na Alem anha e na Itália.

É necessário acrescentar ainda uma questão central: a constituição for

mal, como qualquer texto jurídico, não se transforma apenas pela revisão

constitucional. Ela sofre uma evolução, que pode ser considerável, em razão

da maneira como é aplicada, ou seja, interpretada2.

2. Função da constitu ição

A função da constituição é complexa e, além disso, variável. Nem todasas constituições têm as mesmas funções. Dentre as que ela pode desempe

nhar, é preciso distinguir funções jurídicas e políticas.

 Do ponto de vista jurídico , a função da con stitui ção pode ser tríplice: em

 primeiro lugar, ela é o fu ndam ento da validade da ordem jurídica como um to

do. É porque uma lei foi adotada em conformidade com a constituição que

ela pode ser considerada um a norm a jurídica e pode servir de fundam ento a

outras normas. A constituição é, pois, o fu ndam ento último de cada uma das

nor ma s que fazem parte do sistema jurídico.

Em segundo lugar, a constituição determina as modalidades de designação 

dos governantes e lhes atribui competências, ou seja, ela define as hipóteses nas

quais as vontades dos indivíduos são separadas das de seus autores para serem

imputadas ao Estado. Esses indivíduos são chamados então órgãos do Estado.

O que eles desejam, o que fazem, reflete o querer e o fazer do Estado.

Em terceiro lugar, a constituição enuncia princípios, como por exemplo 

aqueles relativos à soberania, à representação ou à separação dos poderes, que

 justi fi cam as regras posi tivas q ue ela contém, as quais permitirão, por sua vez,

 justi fi car poste rio re s interpretações part ic ulares do texto.

 Do ponto de vista político, a função da constituição é igualmente com

 plexa.

1) Inicialmente, a constitu ição organiza a transm issão e o exercício do

 poder . As const ituições modernas se es forçam para organizar o poder - ou

 pretendem fazê-lo - de maneira que ele não possa ser exercido visando ao in

teresse pessoal dos governantes, mas somente objetivando um interesse geral,

2 Cf. infra, p. 69 c s.

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40 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

que pode, aliás, ser concebido de várias maneiras. Historicamente, as primei

ras constituições fo ram redigidas no século XVIII, não para ga ranti r o interes

se do povo, no sentido que lhe dará mais tarde Abraham Lincoln, que definia

a democracia como “o governo do povo, pelo povo, para o povo”, mas para

 proteger a liberdade. Denominar-se-á, então, “consti tu cio nali smo” a ideologia

que almeja organizar o poder para preservar a liberdade, notadamente por 

meio da separação dos poderes e da representação. O constitucionalismo sus

cita dois difíceis problemas. O primeiro é um problema técnico: qual é o tipo

de organização que p ermitirá alcançar efetivamente o fim almejado? O segun

do prob lema é teórico: se o ideal liberal implica que o p od er seja dividido en tre várias pessoas, como é possível conciliar esse ideal com a teoria democráti

ca, que objetiva, por sua vez, conferir ao povo um pod er indivisível?

2) Em segundo lugar, a constituição é o fundamento da legitimidade

dos governantes. Estes pod em jus tificar seu pod er e suas decisões pelo fato de

serem designados em conformidade com a constituição e de exercerem com

 petência s que lhes são atribuídas pela lei fundamental.

3) Aqueles que redigem as constituições pertencem a forças políticas que

reclamam concepções diferentes da liberdade, dos direitos fundamen tais a preservar ou da democracia. Procuram também defender interesses ideológicos

ou materiais. A constituição tem por função, nesse sentido, traduzir os com

 promissos entre essas forças polí ticas e preservar o equi líbr io assim obt ido.

4) Por fim, ela é um e lemento de integração nacional e de pro duç ão da

cidadania. Freqüentemente, os cidadãos de um mesmo Estado não têm em

comum nem a ligação étnica, nem a língua, nem a religião, nem os valores,

mas somente o fato de estarem submetidos à mesma constituição e assim

usufruírem das mesmas garantias e dos mesmos direitos fundamentais. Àsvezes, o patriotismo se define puramente pelo amor à constituição.

 A tendência ideológica das constituições contem porâneas . - Se houvesse a

necessidade de ilustrar a proposição segundo a qual a constituição tem por 

objetivo fixar a idéia de direito estático, bastaria remeter-se à análise das

constituições contemporâneas. Observamos que em seu texto o número de

artigos dedicados à técnica governamental é pequeno, enquanto, inversa

mente, as disposições relativas à filosofia do regime são de uma prolixidadeimpressionante. Parece, aliás, que q ua nto me nos os constituintes estão segu

ros dos alicerces do Estado, mais eles multiplicam os textos que o definem.

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 A C o n s t i t u i ç ã o 41

Enquanto as constituições francesas de 1946 e de 1958, a italiana de 1948 e

a Carta de Bonn são relativamente discretas nesse ponto, as dos Estados-mem-

 bros da Alemanha Federal, de alguns países do Or iente Médio e da África, que re

centemente alcançaram a independência, e também aquelas das democracias po

 pulares se aproxim am mais do estilo dos programas eleitorais que do estilo das

constituições clássicas. Por meio de toda um a série de prescrições - a constituição

 bávara chega mesmo ao ponto de prever a regulamentação das rotas turísticas

 pelo Estado (art. 141, al. 3) - elas desenham os contornos, não da ordem social

existente, mas do que deve ser a sociedade do futuro. Elas demarcam o lugar do

indivíduo, da família, dos grupos intermediários; enunc iam as normas que devem presidir a atividade econômica, determinam a função e os limites da pro

 pr iedade; indicam ao Estado as tarefas que ele deve assumir, as necessidades que

ele deve satisfazer; especificam a natureza e a extensão da ajuda que o ho me m po

de esperar da coletividade bem como os deveres que lhe cabem.

3. Con teúdo da constituição formal. A questão dos Preâm bulos e das 

Declarações dos D ireitos

a) Declarações dos Direitos e constituição material

A constituição formal tem como conteúdo principal a constituição (no

sentido material), ou seja, a organização e o funcionamento dos poderes pú

 blicos e a divisão das competência s entre eles.

Sabemos, entretanto, que ela pode ter tamb ém conteúdos muito diferen

tes, pelo me nos na aparência. Nela encontramos , por exemplo, disposições so bre a cor da bandeir a ou o hino nac ional . As razões que levam a in ser ir na

constitu ição disposições dessa na tureza são simples: elas estão ligadas pa rticu

larmente à rigidez da Constituição. Adotar essas regras na forma constitucio

nal é impedir que elas sejam facilmente modificadas. Em alguns países, os

cidadãos têm o direito de iniciativa, em matéria constitucional, mas não em

matéria legislativa. Eles superam, então, esse óbice propondo, via constituição,

 por me io de emen das, medidas que, aliás, são do domínio da lei ord inár ia .

Alguns autores concluíram, sem razão, que essas medidas não são materialmente constitucionais e, dentre elas, são mencionados, às vezes, os P reâm

 bulos e as Declarações dos Direitos.

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4 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Estas são disposições agrupadas em um texto colocado no início de al

gumas constituições. Apesar da Declaração dos Direitos do Homem e do Ci

dad ão de 1789 não ser a primeira - a primeira é a de Massachussets, de 15 de

 junho de 1780 - , ela é in conte stavelm ente a que tem maior repercussão. Co

mo sugere o título, esse texto não foi concebido pela Assembléia Nacional,

que o adotou , como um conjunto de direitos conferidos aos cidadãos por u m

ato de vontade política, mas como direitos que todos os hom ens possuem na

turalm ente, basta ndo reconhecê-los e declará-los. Tratava-se, segundo a con

cepção do min an te na época, de direitos e de liberdades individuais.

A esses direitos individuais acrescentaram-se, em seguida, direitos humanos ditos de segunda geração, cujo objeto é econômico e social e que po

dem ser coletivos. Uma terceira geração está, aliás, em via de gestação (dir ei

to ambiental, direito ao desenvolvimento etc.) e os direitos novos se revestem

do prestígio dos antigos.

 Nessas condições, pode-se dizer que esses textos não são materialmen

te constitucionais? Tal afirmação pode, em verdade, conter três significados

distintos.

Pode significar primeiramente que as Declarações de Direitos não têmnen hum valor obrigatório e constituem apenas o enun ciado de u ma filosofia

ou de u m pro gram a político. Nesse caso, não se trata de fato da organização

e das competências dos poderes públicos e o conteúdo das Declarações é es

tranho à constituição material.

 No entanto, é possível que esses textos tenham de fato um valor obriga

tório, mas que se pressuponha uma concepção estreita da constituição mate

rial, que abrangeria as regras relativas aos órgãos, a suas competências e aos

 procedim entos a serem seguidos, mas não as regras que obrig am esses órgãosa tomar medidas deste ou daquele conteúdo. Assim, as Declarações de Direi

tos não seriam constitucionais, por mais que elas estabeleçam diretrizes aos

 poderes públicos (os poderes consti tu ídos) . Nada justifica uma concepção tão

limitada e na verdade as competências dos poderes públicos não podem ser 

definidas sem referência ao conteúdo e aos limites de sua ação. Não podemos

dizer que o Parlamento terá o direito de fazer leis sem dizer em que consiste

esse direito, o que são as leis, a quais matér ias elas devem c oncernir e quais são

os direitos e liberdades individua is que o legislador terá de respeitar.

Em terceiro lugar, é igualmente possível que, mes mo tend o u m valor ju

rídico, esses textos sejam, porém, concebidos primeiramente como instru

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 A C o n s t i t u i ç ã o 43

me nto s dos cidadãos, ou de forma mais genérica, dos sujeitos, para po der fa

zer valer seus direitos em algum as situações, sem a interm ediação dos p od e

res públicos constitucionais, e mesmo contra estes. Podemos, então, pensar 

que as Declarações não fazem parte da constituição material porq ue elas não

dizem respeito aos poderes públicos. Mas isso seria esquecer que os direitos

 podem ser compreendidos somente como a outra face das obrigações e que

 pode-se dizer indiferente mente que o cid adão tem direitos contra os poderes

 públicos ou que os poderes públicos têm obrigações em relação a ele. Enun

ciar direitos é, então enunciar também as obrigações dos poderes públicos, o que 

é bem tratado pela constituição material.Assim, a partir do mo m en to em que as Declarações de Direitos apresen

tam caráter obrigatório, elas integram não somente a constituição material,

mas também a constituição formal e o estudo de seu conteúdo pertence de

fato à ciência do direito constitucional.

b) Valor juríd ico das Declarações

Durante muito tempo, a questão do valor jurídico das Declarações foicontroversa. Convém, entretanto , precisar o objeto dessa controvérsia, um tan

to quanto obscurecido pela ambigüidade da expressão “valor jurídico”. O d eba

te pode ficar mais nítido se com preend erm os que essa questão recobre, na ver

dade, outr as duas, as quais é preciso distinguir cu idadosamente: as Declarações

são juridi camente obrigatórias? Se sim, para quem elas são obrigatórias?

1. As Declarações são juridicamente obrigatórias? Quando nós nos in

terrogamos sobre o valor jurídico de uma regra, perguntamo-nos primeira

mente se essa regra é jurídica ou se pertence a algum outro sistema de normas que não o direito. Podemos pensar, por exemplo, que uma regra

constitucional é obrigatória, mas que ela é apenas política ou moralmente

obrigatória. Assim, o preâmbulo da constituição na Grã-Bretanha é conside

rado como politicamente obrigatório (cf. infra). A questão do valor jurídico

das Declarações diz respeito, pois, a seu caráter juridicamente obrigatório.

Uma regra jurid icam ente obrig atória é uma regra cuja violação pod e ser san

cionada de um modo ou de outro, por uma pena, mas também pela anula

ção de um a ou tra regra em descon fbrmidade com a primeira.

2. Para quem as Declarações são obrigatórias? O valor jurídico, como

todo valor, aliás, é sempre relativo: uma regra não apresenta necessariamen

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44 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

te um caráter universalmente obrigatório; ela pode apresentar um valor jurí

dico aos olhos de algumas autoridades, mas não aos olhos de outras. Se re

 presenta mos, como é cômodo fazê-lo, o sis tema jurídico como um conjunto

de n orm as hierarquizadas, falar então de valor jurídico relativo de um a regra

é falar do nível em que ela se situa dentro dessa hierarquia. Poderia se dizer,

também, que as declarações têm valor jurídico superior ao dos atos, que po

dem ser anulados por ter violado alguma de suas disposições e que elas têm

um valor jurídico igual ao dos atos pelos quais se pode modificá-las.

Compreendemos nessas condições que a questão só pode conceber res

 postas variáveis seg undo o país e o momento cons iderados. Na França , por exemplo, durante a Terceira e a Quarta Repúblicas, a violação da Declaração

dos Direitos podia ser sancionada quando era cometida por um ato adminis

trativo, mas não quando isso ocorria por uma lei. Podia-se pensar, pois, que seu

valor jurídico era igual ao das leis e superior ao dos atos administrativos. D u

rante a Quin ta República e mais particularmen te desde 1971, a violação pela lei

é igualmente sancionada (cf. infra). Concluímos em geral que o valor jurídico

da Declaração é desde ent ão superio r ao da lei e igual ao da constituição.

B.As leis orgânicas

Pela expressão lei orgânica pod em os designar dois tipos de textos dife

rentes por seu lugar na hierarquia das normas. Pode se tratar primeiramente

de leis ordinárias, cujo conteúdo é materialmente constitucional, porque são

relativas à organização e ao funcionamento dos poderes públicos. Elas po

dem ser implementadas pelo legislador espontaneamen te ou então p or solicitação do constituinte. O em prego da expressão lei orgânica decorre simples

mente da prática e não tem conseqüências jurídicas. Como se trata de leis

ordiná rias elas serão estudadas mais adiante (no item D).

Pode se tratar também de leis que se colocam em uma escala intermediá

ria entre a constituição e a lei ordinária. É nesse segundo sentido sobretudo

que a expressão é empre gada na França atualm ente. Elas apresentam três ca

racterísticas:

- são, com o as anteriores, materialm ente constitucionais;- é a constituição que, imp edida de enun ciar regras tão específicas

quanto seriam necessárias, prevê essas leis orgânicas para complementar e

 precisar o texto. A consti tu ição de 1958 o tez em várias maté ria s im portan

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 A C o n s t i t u i ç ã o 4 5

tes, como por exemplo, para a organização e o funcionamento do Conselho

Con stituciona l o u da Alta Corte de Justiça;

- elas são adotada s ou modificadas segundo um processo particular, sen

sivelmente mais rigoroso que o processo legislativo ordinário.  Na França, po r 

exemplo, o traço mais marcante desse processo foi o exame pelo Conselho 

Constitucional quanto à conformidade com a constituição de qualquer projeto ou 

 proposição da lei orgânica, ou seja, sem que tenha sido necessário submetê-lo

à apreciação. Trata-se eviden teme nte de imp edi r que a lei orgânica, a pretexto

de com plem enta r a constituição, coloque em discussão seus princípios.

C.Osregulamentosdasassembléias

 Amplitude do regulamento. - Os regulamentos das assembléias parla

mentares complementam a constituição em tudo o que diz respeito à organi

zação interna das assembléias e ao trabalh o parlamentar, co mo po r exemplo,

as minúci as do processo legislativo, o papel das comissões, o do gabinete ou a

ordem de fala. Trata-se de questões muito importantes3. Elas são material

mente constitucionais, bem como aliás as que são objeto de leis orgânicas, e

várias dentre elas poderiam ser tamb ém adotadas na fo rma constitucional, ou

seja, tratadas na constituição formal, ou, ainda, em um a lei ordin ária. Assim a

constituição da Quinta República contém regras relativas ao voto pessoal ou

ao estabelecimento da ordem do dia, que em o utros regimes, com o po r exem

 plo a Terceira República, perte nciam ao regula mento das assembléias. É, en

tão, a constituição que delineia a extensão do dom ínio regido pelo regu lamen

to. Se ela se abstém de entrar nos pormenores e confere ao regulamento umdom ínio muito extenso, isso acarretará um a conseqüência prática (u ma maior 

flexibilidade, porque o regu lamento é mais fácil de modificar que a constituição)

e um a conseqüê ncia política (u ma a uto no mi a mais ampla das assembléias, se

estas desempenham um papel na elaboração do regulamento).

Dur ante a Terceira República, dota da de um a constituiçã o mu ito suc in

ta, a importância do regulamento era considerável. Ele comportava, por 

exemplo, regras tão fund ame ntais q ua nto as relativas à verificação dos po de

3 Esses regulamentos não devem ser confundidos com aqueles que têm por objeto precisar ecomplementar as leis e que emanam do poder executivo.

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4 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

res ou à interpelação do governo (ou seja, o controle de sua responsabilida

de), ao pon to que se pôde escrever sobre o regu lame nto qu e “ele tem mais in

fluência que a própria constituição no andamento dos negócios públicos”

(PlERRE, 1902, p. 490).

Mas m esm o se a constituição co ntém efetivamente regras relativas a um

grande núm ero das matérias as quais seria conveniente aband ona r ao regu

lamento, ela não pode, entretanto, ir muito longe nos pormenores. Um regula

me nto é, então, necessário em qua lque r situação.

 Adoção do regulamento. - Vários sistemas são possíveis, segun do o graude au ton om ia q ue a constituição visa conferir às assembléias.

O sistema que lhes atribui a mais ampla autonomia é naturalmente o

que lhes dá competência para adotar seu regulamento. Tal era o sistema da

Terceira República, em que cada assembléia elaborava seu regulamento e po

dia modificá-lo a qualquer m omen to.

O segundo sistema é o do Poder Executivo, que tem o poder de adotar 

os regulamentos das assembléias. Este era o caso, durante o Consulado e o

Império.Um sistema intermediário consiste em permitir às assembléias adotar 

seus regulamen tos respectivos, mas sob o controle d o juiz para evitar que elas

atentem contra os princípios constitucionais. Foi a solução da Quinta Re

 públ ica.

D.Asleisordinárias

São leis que durante a Terceira República na França eram chamadas de

leis orgânicas e que são relativas à organização e ao funcionamento dos po

deres públicos. A mais imp orta nte se referia ao mo do de escrutínio. A Qu ar

ta e a Quin ta Repúblicas conservaram essa matéria n a lei ordinária. A vanta

gem eviden temente reside no fato de que é possível modificar rap idam ente a

lei eleitoral, sem ter de reformar a constituição, evitando o risco de que as

maiorias parlam entare s sucessivas fossem tentad as a modificar a regra d o jo

go para ampliar suas chances e se manterem no poder.

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 A C o n s t i t u i ç ã o 4 7

2.OsTIPOS DE FATOS PRODUTORES DE DIREITO

 Definição: A expressão “fatos produ tores de d ireito” é enganosa, pois, na

verdade, daquilo que alguma coisa é, não podemos concluir que alguma coi

sa deva ser, de modo que um fato nunca pode produzir direito. O que se de

signa por essa expressão é simplesmente um fato instituído por uma norma

superior, como a condição para que uma norma nova seja produzida. Assim,

dizemos que o voto do Parlamento produziu uma lei, mas, nesse caso, trata-

se somente de um atalho. Na verdade, o voto de uma assembléia é um sim

 ples fato de onde só decorreri a que se deve acei ta r esse voto. Existem muita sreuniões de homens capazes de emitir votos. Nada diz que devemos obede

cer aos resultados de todos esses votos. Se devemos nos submeter a eles, se

existe uma regra, é porq ue a constituição habilita o P arlamen to a ado tar leis.

Em outras palavras, a constituição define o produto dos votos emitidos pelo

Parlame nto co mo um a lei validável. A fórmula freqüente nos textos constitu

cionais e que consta, p or exemplo, na constituição francesa atual, “a lei é vo

tada pelo P arlamento”, é aquela pela qual a constituição atribui a um fato, o

voto, o significado de que uma norma foi produzida. Examinar as fontes dodireito constitucional do ponto de vista desses fatos é, portanto, procurar 

quais são os fatos que indicam que uma norma constitucional foi produzida.

Podemos distinguir três tipos: o primeiro é evidentemente a expressão da

vontade de um órgão competente. Não será necessário abordá-lo novamente, já

que esse tipo de fato é o que produziu as regras materialmente constitucionais estu

dadas anteriormente, a constituição formal, a lei orgânica etc. Os dois outros tipos

de fatos suscetíveis de ter significado de no rma são o costume e a interpretação.

A. 0 costumeconstitucional

1. Definiç ão

Em direito constitucional, como nos outros ramos do direito, falamos

de costume quando dois requisitos estão presentes:

1. quando uma prática foi repetida durante um longo período;

2. qua nd o existe o sen time nto de q ue essa prática é obrigatória. É a opi- 

nio juris.

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4 8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Esses requisitos às vezes são chamad os inad equ ada men te de elementos

do costume e nós os designamos p or termos acoplados: o prime iro e o segundo

elementos são qualificados respectivamente de m aterial e de psicológico, de

objetivo e de subjetivo4.

Diante disso, existem sobre a questão do costume importantes discus

sões. Deve ter sido observado o caráter extr ema men te vago das palavras uti

lizadas para definir os requisitos do c ostum e e os autores divergem qu ant o a

saber, po r exemplo, quantas vezes um a p rática deve ser repetida para que es

tejamos na presença de um costume ou qu anto à duração - basta um a vez ou

é necessário transpor para o direito constitucional o adágio popular segundoo qual u ma vez não é costum e -, ou ainda no qu e se refere às pessoas que de

vem ter o sentimento do caráter obrigatório - os homens políticos ou os pro

fessores de direito?

2. Situação do problem a

 Na verdade, essas discussões, relativas exclusivam ente à iden ti fi cação deum costume, são a expressão de imp orta ntes dificuldades teóricas.

A primeira está ligada à posição que ocupa a constituição no ápice da

hierarquia das normas. Um fato só pode gerar direito quando for previsto

 por um a norm a superior como condição suficiente para a ed ição de uma

no rm a nova. Podemos, então, facilmente com pree nde r a existência do costu

me em direito civil ou comercial, porq ue, nesses ramos, u ma lei pode te r o se

guinte conteúdo: “se um a prática foi repetida dur ante um determ inado p erío

do e se existe um sentimento de que essa prática é obrigatória, então, temosde nos con form ar a ela”. Nesse caso, o cos tum e é instituído com o fonte do d i

reito pela lei. Poderíamos, portanto, conceber da mesma maneira um costu

me instituído como fonte do direito pela constituição, mas esse costume es

taria subordinado à constituição. Não se trataria de uma regra formalmente

constitucional. Tal regra poderia ser criada por via do costume somente se

existisse um a n orm a acima da constituição. Ora, tal regra não existe.

A segunda dificuldade está ligada ao papel da vontade dentro do direi

to. Se é verdade que só existe o direito positivo, ou seja, posto por um ato de

1Encontraremos uma crítica às definições po r elementos cm T r o p e r 1994a, p. 127 e s.

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 A C o n s t i t u i ç ã o 49

vontade, como explicar que uma regra apareça sem nunca ter sido desejada?

Mais um a vez, o pr oblem a p ode ser resolvido de m anei ra mais fácil em d irei

to civil ou em direito comercial, porque podemos admitir, primeiramente,

como acabamos de ver, que é a lei que institui o costume como fato produ

tor de direito, e que, por conseg uinte, a regra costumeira nasce da vonta de do

legislador. Um a ou tra explicação leva em conta o papel do juiz: o costu me so

mente é obrigatório quando o juiz constata sua existência e fixa o conteúdo

da regra. Mas trata-se de uma constatação apenas na aparência. Na verdade,

o juiz deve necessariamente inte rpreta r os fatos constitutivos de um costu me

e conciliar a regra com outras regras, estas escritas. Ora, o conjunto dessasoperações é uma função da vontade (cf. infra a interpretação). No entanto,

nem um nem outro desses raciocínios é aplicável ao costume constitucional,

 pois não há nem vonta de supraconstitu cio nal, nem juiz capaz de constatar a

existência e o conteúdo de um costume constitucional.

A terceira dificuldade consiste na necessidade de conciliar uma norma

costu meira com as norma s escritas em vigor. Obse rvam os aqui a hipótese em

que a prática repetida seria contrária a uma norma escrita. Essa prática seria,

 portanto, simple smente um a violação do direito e nos perguntamos como ela poderia ser criadora do di reito. Mais uma vez, as so luções admitidas pe lo di

reito civil e o direito comercial parecem impossíveis de ser aplicadas. Pode

mos c onsider ar nesses ram os do direito que, se a lei autoriza a criação de di

reito por via do costume, ela o faz com a ressalva implícita de que o costume

não seja diretamen te co ntrár io a alguma lei em vigor. Dizemos, então, que o

costume não existe contra legem, mas somente  praeter legem , ao lado da lei e

 para complementá-la . No entanto, a criação de uma norma consti tu cional

 por via do costume não é autoriz ada da mesma forma por uma norm a su praconstit ucio nal, que preve ria costu mes  praeter const itutionem . Do mesmo

modo, para considerar que um costume é prae ter legem , é necessário admitir 

que existiam lacunas dentro da lei e que é possível e necessário complemen

tá-la. A lei, ao au toriza r a criação co stumeira do direito, admite por si próp ria

tal pressuposto. Mas não é possível admiti-lo em direito constitucional, pela

mesma razão: não existe norma supraconstitucional. Todo comportamento

é, ainda, necessariamente, ou conforme ou então contrário à constituição. Se

ele é proibido por uma norma constitucional escrita, não poderia ser criador 

de direito, mas se não está contrário a tal norma, se ele não é expressamente

 proibido, então é forçoso admitir que ele é permitido e, nesse caso, ele não

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50 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

 poderia dar origem a uma regra costumeir a porque, por de finição , o que é

simplesmente permitido não é obrigatório. Não existe, portanto, lugar para

um costume praeter constitutionem .

3. As ob rigações con stitucionais

Tudo parece, portanto, levar à conclusão de que não há lugar em direi

to constitucional para um a fonte costum eira e, de fato, vários autores conc or

dam com essa tese. No entanto, é preciso reconh ecer eviden temente que exis

tem práticas repetidas, que não estão previstas pela constituição e que sãosentidas como obrigatórias. Algumas dessas práticas se mostram até mesmo

como contra constitutionem. Vejamos dois exemplos. O primeiro é extraído

do direito constitucional britânico. Na Grã-Bretanha, quando a maioria da

Câm ara das Com un as expressa sua desconfiança ao gabinete, o Primeiro-m i-

nistro envia sua demissão à Rainha. Não existe norma escrita que o obrigue

a isso. Poderíamo s, porta nto, pensa r que, já que essa con duta não é expressa

mente escrita, nem sequer proibida, ele tem tanto a faculdade de fazê-lo co

mo de se abster. No en tanto, há mais de dois séculos, quan do essas circunst âncias se verificam, o Pri me iro -minis tro se mpre apresenta sua demissã o e existe

um sentimento universalmente difundido de que se trata para ele não de uma

simples faculdade, mas de uma real obrigação.

O segundo exemplo pertence à história constitucional francesa: as leis

constitucionais de 1875 conferiam ao Presidente da República o direito de

dissolver a Câmara dos Deputados, com o consentimento do Senado. O Pre

sidente exerceu efetivam ente esse direito só um a vez, em 1877. Após essa da

ta, ele nem me sm o solicitou o parecer do S enado e, porta nto, nun ca mais decretou a dissolução da Câmara. Aos olhos de vários autores da época, em

razão das circunstâncias infelizes em que tinha sido pronunciada a dissolu

ção de 1877, não teria sido, desde então, proibido ao Presidente dissolver e,

aliás, a ausência de dissolução efetiva constituiria ao mesmo tempo a prática

repetida e o sinal de uma crença na existência de uma regra. Tratar-se-ia de

uma espécie particular de costume, um costume negativo ou desuso, o qual

não dá origem a um a regra nova, mas faz desaparecer um a regra antiga. Aqui,

o costu me teria feito desaparecer a no rm a escrita o Presidente tem o direito de 

 pro nunciar a dissolução substituindo-a por uma nova norma contrária, o Pre

sidente não tem o direito de pronun ciar a dissolução.

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 A C o n s t i t u i ç ã o 51

Um exemplo parecido pode ser tirado da aplicação do art. 11 da consti

tuição francesa de 1958, que foi duas vezes utilizado para uma revisão cons

titucional, de m odo que vários autores eminentes - e François M itterrand

qu an do era Presidente da República - conside ram q ue essa prática, antes jul

gada contra constitutionem , deu origem, entretanto, a um costume. Para dar 

cont a desses fenôme nos, é necessário distinguir cuidado sam ente dois probl e

mas: um problema causai, o da emergência dessas práticas, e um problema

 juríd ico, o do seu caráte r obrig ató rio .

 No que se refere ao primeiro problema, observamos que a maioria das

 prát icas aparece em um contexto parti cula r: existe uma norma constit ucional autorizan do um a de terminad a con duta, o que significa que é igualmente

 permitido dela abster-se. Mas os autores da doutrina const it ucio nal não usam

igualmente essas duas possibilidades: ou usam freqüe nteme nte dessa permis

são ou então se abstêm do uso por um período razoavelmente longo. Dize

mos, então, que no lugar da norma antiga, que era uma norma de habilita

ção, colocou-se uma norma nova e que essa conduta que era permitida

tornou-s e, n o p rim eiro caso, “obriga tóri a”, e no segundo, “proib ida”. Assim, o

Prim eiro-m inistro britânico, que tinha a faculdade de pedir demissão, teria a partir de então a obrigação de fazê-lo; o Presidente da Terceira Repúbl ica , que

tinha o direito de dissolver, vê-se proib ido de fazê-lo. Mas po r que e com o es

ses sujeitos foram levados a adotar mais uma conduta que outra? Sem dúvi

da porque eles não podiam agir de outra forma: as primeiras demissões do

Primeiro-ministro britânico, no século XVIII, foram apresentadas para esca

 par de uma acusação. O Pres idente da Terceira República nunca se e ncontrou

em uma situação política tal que ele pudesse esperar ganhar eleições legisla

tivas, de modo que, provavelmente, ele não teria jamais dissolvido a Câmara,mes mo se não tivesse tido necessidade da an uência do Senado. Assim, pod em

se explicar suas condutas.

Observaremos, entretanto, que foram explicados somente fatos e não o

aparecimento de uma regra. Podemos dizer que existe uma  pressão social,

mas n ão obrigação. É que, como vimos, uma regra é um sollenyum dever-ser,

que não pod e ser “causad o”, mas so mente “pos to”. A conc lusão é então, sim

 ple smente, que não há regra enquanto não houver in te rfe rência de um ato de

vontade, cujo conteúdo é que deve se conformar com a prática anterior. Se

não se verificar a interferência de tal ato, essa prática não será obrigatória, o

que significa que uma prática contrária não poderia ser sancionada. O pre

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5 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

tenso costu me vai du rar ta nto qu ant o a coação. Mas se esta desaparece, então

 pode nascer uma prática diferente.

É, aliás, o que às vezes de fato ocorre. O exemplo mais conhecido se re

fere ao direito constitucional americano. O mandato do presidente é de qua

tro anos. Em sua redação de 1787, a constituição não limitava o nú me ro dos

mand atos que um mesm o h om em podia exercer. No entanto, o primeiro pre

sidente, George Washington, após ter concluído dois mandatos, renunciou a

disputar um terceiro e nisso foi imitado por todos os seus sucessores. Estava-

se, portanto, na presença de uma prática repetida, combinada com o senti

mento do caráter obrigatório de modo que vários comentadores consideravam que existia um a nor ma constitucional costumeira, que tinha ab-rogado

e substituído a norm a escrita: ele teria sido proibido de dispu tar mais de dois

mand atos. Isso não impe diu de forma alguma qu e Franklin D. Roosevelt dis

 putas se com sucesso um terceiro e até mesmo um quarto . Para introduzir 

uma norma constitucional com o conteúdo do pretenso costume, foi neces

sário revisar a constituição.

Um o utro exemplo é emp restad o da Qu arta República francesa. Acredi

tava-se que o costume que tinha ab-rogado o direito de dissolução durante aTerceira República persistisse apesar da entra da em vigor de um a nova con s

tituição, de modo que o Presidente do Conselho, que dispunha desde então

desse poder, não pudesse efetivamente exercê-lo. Isso não impe diu de forma

alguma a dissolução de 1955.

B.Ainterpretação

 Necessidade da interpretação. - Antes de aplicar um texto jurídico, qual

que r que seja, é necessário dete rm ina r seu sentido. O sentido de um texto ju

rídico, na verdade, é o que o texto ordena ou permite, é a forma que ele ex

 pressa. Em outros te rmos, segundo o sentido que lhe atribuímos, o texto

ordena u m ou outro comportamento.  Denominamos interpretação a operação 

 pela qua l atribuím os um sentido ao texto  ( T r o p e r , 1994a, p. 293 s.).

Afirmamos, algumas vezes, que a interpretação só se faz necessária

quando o texto é obscuro e que, em contrapartida, ela é supérflua quando

o texto é claro, o que expressamos pelo adágio latino in claris cessat inte- 

 preta tio. Essa tese conduz, na verdade, a um paradoxo, pois para poder 

afirmar que o texto está claro e que não há lugar para interpretá-lo, é pre

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 A C o n s t i t u i ç ã o 53

ciso saber qual é sua significação, ou seja, é preciso que ele tenha sido in

terpretado.

 A necessidade de interpretar o texto está ligada a três fatores principais. O

 primeiro é sua indeterminação you seja, o fato de ser portador de vários sen

tidos. Essa indeterminação é, em si mesma, ligada às propriedades da lingua

gem natural, por meio da qual se expressou o constituinte, como legislador,

inclusive. A linguagem é n ecessariamente vaga e ambígua. A amb igüid ade é a

 propriedade de uma palavra designar vár ios obje tos possíveis: na linguagem

comum a palavra “homens” designa os seres humanos ou então apenas osadultos do sexo masculino. Do mesmo modo, a expressão “organização dos

 podere s públi cos”, c ontida no ar t. 11 da constit uição francesa de 1958 desig

na a organização das autoridades então instituídas pela constituição ou en

tão a própria constituição. Em contrapartida, uma expressão pode muito

 bem não ser ambíg ua, p orque se sabe ao menos aproximadamente o que que

rem dizer as palavras que ela contém , mas vaga porqu e não se sabe exatamen

te se ela se aplica a algum objeto concreto. Assim, todos sabem o q ue que r di

zer careca, mas não sabemos se o homem que tem ainda alguns cabelos podeser qualificado com o careca. A linguagem jurídica, particul arm ente a das De

clarações dos Direitos, contém numerosas expressões vagas. Assim, a Decla

ração dos Direitos do Homem de 1789 dispõe no art. 17 que ninguém pode

ser privado de sua propriedade, salvo quando a necessidade pública o exige

“e sob condição de uma justa e prévia indenização” Compreendemos o que

significa essas palavras, mas qual é a indenização que deverá ser considerada

“justa”? Isso é evidentemente caso de apreciação.

É necessário ressaltar que essa indeterminação é, às vezes, involuntária,

mas freqü entem ente ela é totalmente deliberada. Na falta de pod er prever to

das as situações que se apresentarão, o autor de um texto é levado a empre

gar palavras suscetíveis de cobrir uma grande variedade de situações. A flexi

 bil idade de uma constit uição te m seu preço. Assim, o célebre art . 16 da

constituição francesa de 1958 autoriza o Presidente da República “quan do as

instituições da República [...] são ameaçadas de um a ma neir a grave e imedia

ta [...] a adotar medidas exigidas pelas circunstâncias”; ninguém pode dizer 

evidentemente o que o constituinte entende por “grave e imediata” e por 

“me didas exigidas pelas circunstâ ncia s”. Ele próp rio não o sabia. Ele poderia,

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54 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

certame nte, su po r algumas situações, mas se as tivesse descrito com precisão

e se tivesse indicado as medidas a adotar, ele poderia temer os eventos im pre

vistos, que permitiriam ao Presidente adotar medidas adequadas. Ficando na

imprecisão, é permitido-lhe reagir a uma ampla variedade de situações im

 previsíveis com uma gama de poder muito grande.

O segu ndo fator está ligado à natureza do pró prio significado. Podem os

acreditar que o significado de um texto é aquilo que o auto r quis expressar e

que pod eríam os desvelar. O significado de um texto seria, portanto , a inte n

ção do autor. Mas um texto jurídico não tem um único autor, mas vários.

Considerando que dentre os constituintes alguns tenham tido a idéia precisa- apesar do caráter vago e ambíguo das palavras que eles empregaram - , c on

siderando que seja possível conhecer essa intenção de uma determinada ma

neira, é evidentemente impossível que todos tenham tido a mesma idéia.

Uma constituição é adotada por um número muito grande de pessoas. O

 pro jeto é preparado por grupos e freqüentemente dis cutido nas assembléias

ou submetido ao referendo. Dentre as pessoas que o adotam, algumas não o

leram e todas as que o fizeram não o compreenderam da mesma maneira.

Descobrir a intenção de um constituinte pode ser um interessante exercíciode psicologia histórica, mas não há n en hu m a razão para valorizar essa inte n

ção mais do que qua lquer outra.

O terceiro fator está ligado à evolução das concepções políticas e sociais.

A Declaração dos Direitos do Homem, que faz parte do direito constitucio

nal francês atual, tem mais de dois séculos. Poderíamos, nos termos de uma

análise histórica, resgatar o sentido que os autores da Declaração atrib uíram

a suas principais disposições. Descobriríamos então que a maioria dos ter

mos que eles empregaram significava certamente para eles algo distinto doque pod em representar para nós.

Assim, quando proclamavam o princípio da igualdade, esse princípio

não implicava a seus olhos a igualdade dos hom en s e de mulheres, n em o di

reito de voto para todos os homens. Se, por conseguinte, considerássemos

que o sentido da Declaração é aquele que lhe atribuíra m seus autores, deverí

amos necessariamente admitir que uma lei que privasse as mulheres de al

guns direitos ou que reservasse o direito de voto aos mais ricos estaria con

forme o princípio da igualdade. Não apenas tal solução seria política e

moralmente inaceitável para a maioria de nossos contemporâneos, como

também seria difícil fundamentá-la racionalmente. Dizer que estamos sub

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 A C o n s t i t u i ç ã o 55

metidos à Declaração dos Direitos significaria na verdade que estamos sub

metidos à intenção, ou seja, à vontade de seus autores. Mas como justificar 

que estejamos ainda submetidos à vontade de homen s mo rtos há tanto tem

 po? Se quisermos evita r essa conseqüência absurda, é preci so adm itir que o

texto possui um sentido independente do que lhe atribuíram seus autores.

Esse sentido é o que nós podemos lhe atribuir hoje, síntese da evolução po

lítica e social.

 Natureza da interpretação.

 Duas concepções se opõem. De acordo com a primeira, a interpretação é  um ato de conhecimento, de acordo com a segunda, um ato de vontade.

A primeira concepção é a mais difund ida. Assenta-se na idéia de que o

texto possui um sentido e somente um. Se esse sentido está claro, não é ne

cessário interpretar, mas se está oculto, então é preciso encontrá-lo e, para is

so, aplicar certos métod os, q ue a ciência do direito e laborou e que ela é capaz

de ensinar.

Essa tese não é aceitável por várias razões. Primeiramente, como vimos,

é impossível afirmar que um texto possui um sentido claro, sem tê-lo inter pretado previa mente . Em contrapartida, supondo que os auto res de um tex

to tenham tido uma intenção clara e única, não é possível reduzir o sentido

do texto a essa intenção. Em terceiro lugar, se cada texto tivesse um sentido

único, ent ão a in terpretaçã o seria suscetível de ser verdadeira o u falsa e deve

ríamos dispor de procedimentos de verificação. Ora, afirmar que uma inter

 pretação é verdad eira é a firmar que ela enunciou o verd adeiro sentido do tex

to. Mas para saber de que se trata realm ente do verdadeiro sentido, é preciso

 proceder por conta própria a uma interpretação e essa segunda in te rpreta çãosó poderá ser considerada como verdadeira nos termos de uma terceira e as

sim por diante.

A quar ta razão, a mais relevante, diz respeito à concepção o posta, dita

“realista”. Está ligada à importância da interpretação quando ela emana de

certas autoridades, às quais a ord em jurídica atrib ui o pod er de interpretar. A

interpretação que emana dessas autoridades é dita autêntica , ou seja, presu

me-se ter o texto somente o sentido que lhe foi atribuído, qualquer que seja

o conteúdo da interpretação, mesmo se ela contradiz tudo o que se acredita

saber do texto. A interpretação a utêntica se distingue da interpretação cientí

 fica ou de doutrina , aquela que emana de pessoas privadas, mesmo técnica-

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men te qualificadas, como advogados o u professores de direito. A interpre ta

ção científica não pro du z n en hu m efeito jurídico e é som ente a expressão de

opiniões, que, aliás, podem ser divergentes, como freqüentemente o são. Ao

contrário, a interpretação autêntica não é a expressão de uma opinião dentre

outras. É o resultado de uma decisão pela qual um debate é resolvido. Ela se

inco rpor a ao texto, no sentido de que este a par tir de então só pod e ser co m

 preendido à luz da in terpretação autêntica. Esta é um ato de vontade, pois o

intérprete pode dar ao texto o sentido que ele quiser. Essa teoria é chamada

realista por qu e ela descreve não a man eira c om o o direito funcion aria, se ele

funcionasse de maneira ideal, mas aquela como ele realmente funciona. Elatem conseqüências mu ito impo rtantes.

Conseqüências cia teoria realista da interpretação.

Antes de tudo, a interpretação não pode ser verdadeira ou falsa, mas so

men te válida ou não válida. Sua validade não de pende em n ada dos mé todos

empregados, mas apenas das condições nas quais ela foi emitida. É possível

que um a norm a superior confie expressamente a um a autorida de o pod er de

interpretar. É o caso, por exemplo, da lei que remete ao Tribunal de Cassaçãoo p ode r de decidir em assembléia plenária. Mas, em geral, o pod er é atrib uí

do de maneira implícita, dado que não se institui nenhum controle sobre a

interpretação dada por um a autoridade. Assim, as decisões pelas quais um juiz

constitucional interpreta a constituição não são suscetíveis de nenhum con

trole e são interpretações autênticas.

Mas as auto ridad es jurisdicionais não são as únicas a dispo r desse poder.

As interpretações que emanam de órgãos, cujas decisões não são submetidas

a nen hu m controle, tam bém são autênticas. Assim, para re toma r um exemploque já foi visto, du ran te a Quinta República, é o Presidente da República, que,

qu an do se trata de aplicar o art. 16, analisa se as instituições estão ameaçadas

de m ane ira “grave e imediata”, e que decide o sentido que convém d ar a essas

 palavras. Aliás, é comum em dire ito consti tucional que a in te rp retação seja

dada de maneira coletiva por várias autoridades. É o que pode ocorrer no

exemplo citado. O Presidente da República pod e ser acusado pelo P arlame n

to de “alta traição”. Esse crime não está definido pela constituição, de modo

que o Parlamento deve interpretar as palavras “alta traição” antes de acusar o

Presidente. É possível ao Parlamento, porta nto, co nsiderar que u ma interpre

tação abusiva por pa rte do Presidente das expressões do art. 16 constitua p re

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cisamente esse crime. O Presidente, por sua vez, obviamente tem consciência

dessa possibilidade. Supondo que ele esteja tentado a dar uma interpretação

mu ito am pla dessas expressões, com o objetivo de se am pa rar nos poderes que

lhe dá o art. 16, ele deve levar em conta a possível atitud e do Parlamento. Tam

 bém a in te rpretação defini tiva é somente a resultan te de todas as in terpreta

ções que diferentes auto ridad es são suscetíveis de dar.

A conseqüência mais im porta nte da interpretação, segund o a teoria rea

lista, é que o intérprete detém um po de r equivalente ao da auto ridad e da qual

ele interpreta os textos. O intérpret e da lei det ém um po der legislativo, e o in

térprete da constituição, um poder constituinte. Realmente, se ele pode determinar livremente o sentido do texto, então é ele quem determina o que o

texto prescreve. Em o utros term os, se a no rm a é o sentido de u m texto, então

aquele que determina o sentido, enuncia a norma. A norma constitucional

não é o texto escrito da constituição, ma s é esse texto como ele é interpre ta

do po r todas as autoridad es qu e dele são os intérpretes autênticos. Estes não

aplicam realmente normas constitucionais. Eles não são apoiados por elas.

Eles as criam.

Podem os ser tentados a objetar que eles aplicam ao m enos u ma espéciede normas: as que lhes dão o poder de interpretar. Mas no número de textos

que eles interpretam, constam, na verdade, também os que determin am suas

competências, de modo que eles são capazes de determinar suas próprias

competências. O exemplo mais célebre é fornecido pela Corte Suprema dos

Estados Unidos. A constituição de 1787 não lhe conferia expressamente o po

der de controlar a constitucionalidade das leis. Foi por uma interpretação à

qual a corte se dedicou em 1803, relativa ao caso  M arbury v. Madison , qu e ela

interpretou a constituição para decidir que ela compo rtaria u ma norm a instituindo um controle de constitucionalidade. O Conselho Constitucional

francês procedeu, aliás, da mesma maneira em 1971, quando se considerou

com peten te para con trolar a constitucionalida de das leis em sua essência em

relação ao preâmbulo da constituição, enquanto que os redatores da consti

tuição tinham recusado inscrever esse poder no texto.

Isso não significa, entretanto, qu e os intérpretes sejam realmente c apa

zes de perturbar a constituição a todo momento. De um lado, eles não estão

isolados e devem, como vimos, tomar conta uns dos outros; de outro lado, a

ideologia à qual aderem os intérpretes os leva a exercer seu poder com mo

deração. Segundo essa ideologia, o detentor do p ode r deve dispo r de um a le

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gitimidade; é preciso, em out ros termos , que exista um a justificação política

e moral, para o exercício de um poder. A justificação geralmente aceita nos

sistemas políticos modernos repousa em uma delegação, expressa ou tácita,

da nação ou do povo soberanos. Nem todas as autoridades capazes de inter

 pretar podem se pr ivilegiar de tal delegação e a maio ria se esforça, por con

seguinte, para exercer suas competências de boa fé, ou seja, de maneira que

suas decisões sejam aceitáveis por pelo menos uma parte de seus destinatá

rios. Por fim, algumas de suas interpretaçõe s são colocadas em u ma situação

 part icula r. São as jurisdições .

Uma modalidade particu lar de interpretação, a jurisprudência. - A juris prudência é o conjunto de regras re su ltan te s da atividade das jurisd ições . Um

dos procedimentos pelos quais elas produzem as regras é naturalmente a in

terpretação. No entanto, as jurisdições se encontram em uma situação sensi

velmente diferente da dos outros intérpretes. Realmente, suas interpretações

são escritas e freqüen temen te fund amen tadas . Disso resultam obrigações im

 portantes. Por di fe rentes razões - notadamente porque a eficácia da jurispru

dência dep ende disso - as interpretações devem ser coerentes: não devem se

contradizer e devem ser motivadas da mesma maneira, ou seja, pela invocação de procedimentos de interpretação existentes.

Seção2

0 controleda supremacia da constituição

0controledaconstitucionalidadedasleis

A supremacia das leis constitucionais seria uma expressão vã se elas pudessem ser impunemente violadas pelos órgãos do Estado. Como vimos a

respeito das Declarações dos Direitos, pode mos afirmar que um a nor ma pos

sui um valor jurídico superior ao de ou tra norm a somente se a edição de uma

segunda norm a contrária à primeira  puder ser sancionada. A sanção mais c o

mum e mais facilmente aplicada nos sistemas jurídicos modernos é a anula

ção da nova norma.

A constituição po de ser violada po r n orm as de diferentes níveis, emiti

das pelo poder executivo (a administração), pelos tribunais e naturalmentetam bém pelos particulares. A emissão dessas norm as pode, porta nto, ser ob

 je to de um contro le e ser sancio nada, mas essa questão é objeto dos outros

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 A C o n s t i t u i ç ã o 59

ramos do direito, notadamente o direito civil e o direito administrativo. No

que tange ao direito constitucional, a questão concerne principalmente às

sanções da edição de leis contrárias à constituição. É a do controle da consti

tucionalidade das leis.

O princípio de tal controle é hoje objeto de quase unani mid ade entre os

 ju ris ta s e os homens pol ít icos dos Estados liberais, que vêem nele um elemen

to essencial do Estado de direito\

1. Le g i t i m i d a d e   d o   c o n t r o l e   d e   c o n s t i t u c i o n a l i d a d e

 Não podemos escapar da questão da legit imidade do controle da consti

tucionalidade das leis por força de um dilema muito simples: por um lado,

não existe ne nh um controle, o que significa dizer que o legislador pode violar 

a constituição e que esta não é nem superior às leis, tampouco obrigatória.

Mas por ou tro lado, em um sistema político democrá tico, as leis são fei

tas pelo povo soberano. A instituição de tal controle, confiado a um a a uto ri

dade q ue nã o é o povo, significa então que essa auto ridad e contro la a vonta

de do povo e, portanto, que o sistema não é realmente democrático.Todo constituinte deveria, portanto, escolher e renunciar seja à supre

macia da constituição, seja à democracia.

Tentou-se, entretan to, escapar desse dilema e afirma r a legitimidade do

controle de constitucionalidade dentro de um sistema democrático. Essas

tentativas se chocaram com uma série de críticas.

a) Tese da legitimidade do controle dentro de um sistema democrático

Todas as tentativas para escapar do dilema implicam uma investigação

das duas noções de democracia e de controle de constitucionalidade para

mostrar que elas não são antinômicas.

1. No que concerne à democra cia, pod em os sustentar que ela não se re

sume ao poder da maioria do Parlamento. Partindo disso, podemos adotar 

uma definição mais restritiva de democracia ou então uma definição mais

ampla, que ambas legitimarão o controle de constitucionalidade.

3 Cf. infra, os desenvolvimentos consagrados ao Estado de direito; uma opinião hostil ao controle de constitucionalidade foi expresso na França por R. d e L a c h a r r i è r e (1980).

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60 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Segundo a concepção mais restritiva, a democracia é o poder do pró

 prio povo; a única democracia é a democracia direta e os si stemas po lí ticos

que conhecemos não são democracias. Na melhor das hipóteses, o povo ele

ge os governantes, mas ele mesm o não governa; e controlar a vontad e dos go

vernantes não é, portanto, controlar a vontade do povo.

Segundo a concepção ampla, admite-se que a democracia representati

va é um a forma de democracia, mas ela não se reduz ao único pod er da maio

ria, que seria somente o pod er da força. Ela consiste tam bém nas garantias da

mino ria, que não deve ser op rimi da pela maio ria e que deve dispor das liber

dades que lhe permitem almejar tornar-se, um dia, maioria. O controle deconstitucionalidade é assim o instrum ento da proteção da m inoria.

2. No que concern e ao controle, faz-se saber, prim eiram ente , que nem

toda lei é necessariamente a vontade do povo ou a vontade geral. É, na verda

de, a constituição que d eterm ina as competências do legislador e que o h abi

lita a elaborar leis em algumas matérias, em conformidade com alguns pro

cedimentos, determinand o-lhe observar alguns princípios. Qu and o o legislador 

respeitou o conjunto de condições fixadas pela constituição, nesse momento

e somente a partir de então, é que ele expressou a vontade geral. Se, em contrapartid a, essas determ inaçõ es não foram observadas, não se está na prese n

ça da vontade geral, mas da vontade particular do legislador e o controlador 

 pode perfeitamente anular a lei, sem se opor à vontade do povo.

Adiantamos, também, que o controle tem uma importância essencial

mente formal. O órgão de controle não se pronuncia sobre o fundamento da

lei, sobre as medidas que elas contêm, sobre a oportunidade dessas medidas.

Estas são questões políticas, que somente ao legislativo pertencem. Ele se limi

ta, por sua vez, a indicar que a constituição não permite adotar as medidas li-tigiosas na forma legislativa. Para adotá-las, é necessário fazê-lo na form a cons

titucional, ou seja, revisando a constituição. É por isso que as decisões do juiz

constitucional sempre po dem ser reformadas mediante um a revisão da consti

tuição. Essa possibilidade revelaria de forma clara o caráter democrático do

controle de constitucionalidade, porque este manifesta a subordinação do juiz

constitucional ao poder constituinte, que representa o soberano. Mas essa jus

tificação do controle desaba se adm itirm os a idéia, conforme a dou trin a da su-

 praconsti tucionalidade, de que algumas disposições const ituc iona is fogem do

 poder const it uin te der ivado e que os tr ibunais const itucionais podem contro

lar a conform idad e das leis de revisão segundo princípios supraconstitucionais.

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b) A teoria realista da interpretação

Os argumentos se chocam com uma séria crítica: eles estão todos fundados no pressuposto implícito de que a violação da constituição é um fato

objetivo que pode ser constatado por um juiz. A anulação da lei inconstitucio

nal não seria mais do que a conseqüência dessa constatação. Mas podemos

 pensar que a violação da constitu ição não é comparável a um fato objetivo.

Para afirmar que uma violação foi cometida, é preciso, de fato, determinar 

 previamente o que exata mente prescreve a const ituição.

Mas na verdade o texto da co nstituição é vago e ambíguo.

Ele deve necessariamente ser objeto de uma interpretação jurídica. É

 preci so determinar seu sent ido. Mas, como vimos, esse sentido não está em

 butido no texto, a in te rpreta ção não é uma consta tação, mas um a verdadeira

decisão. Po demos dizer que, quando uma lei é interpretada, o verdadeiro legis

lador não é aquele que, originalmente, fez a lei; o verdadeiro legislador é o in

térprete. O mesmo vale para a constituição. Por conseguinte, instituir um con

trole da constitucionalidade de uma lei adotada pelo povo ou por seus

representantes, é submetê-la à vontade do controlador.

Segundo essa tese, o controle de constitucionalidade não é, portanto,

conciliável com ne nh um a form a de democracia. Trata-se, na verdade, de um

modo de governo diferente, o governo dos juizes.

c) As teorias modernas da interpretação

É por isso que os autores c onte mpo râne os, desejosos de justificar a exis

tência do controle de constitucionalidade e, de maneira mais geral, o papel

do juiz nos sistemas jurídicos m oderno s, devem tentar m ostrar que esse pa

 pel não é polí tico. Esses autores não consideram que o texto constit ucio nal

encerraria um sentido único; admitem que ele deve ser interpretado, mas

contestam a teoria realista da interpretação e sustentam que a interpretação

não de pende da vontade soberana do juiz.

Existem diversas variantes dessa posição: para uns, diferentemente da

decisão do legislador ou do constituinte, a interpretação dada pelo juiz deve

ser justificada mediante um raciocínio específico. A forma desse raciocínio

determina em grande medida o conteúdo da interpretação, ou seja, o senti

do que será dado ao texto. Portanto, não se pode dizer que o controle de

constituc ionalida de é um freio ao pod er político do legislador.

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6 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Para outros, o pap el do juiz constitucional deve ser apreciado levando-

se em conta, efetivamente, a situação na qual ele se encontra. Ele pode dese

 ja r dec larar que uma lei, cu jo conteúdo lhe desagrada, é contrá ria à consti tui

ção e decidir anulá-la, mas deve levar em conta vários fatores: o legislador 

frustrado poderia mandar adotar a mesma medida na forma constitucional,

solicitando rever a constituição; poderia também exercer pressões sobre as

 pessoas dos juizes ou elevar o número dos membros do órg ão de controle , de

forma a influenciar a maioria em seu meio. Alguns membros podem intencio-

nar preparar decisões futuras e procurar ganhar a simpatia de seus colegas

etc. (MURPHY, 1962; MEUNIER, 1994).Para out ros , a inda, o ju iz exerce uma função to ta lmente d i ferente da

função do legislador , mas que deve ser comparada à do cr í t ico l i terár io. Co

mo o cr í t ico, ele deve dar uma interpretação ao texto, que não expresse suas

convicções, mas que apresente pelo m eno s dua s caracter íst icas: por um lado,

deve apresentar o texto a ser in terpre tado, na sua forma mais c lara ; por ou

tro , deve estar compatível com o ma ior n úm ero de dado s possíveis (D w o r k i n , 

1986).

2.AS FORMAS DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

Em todo lugar em que é instituído, o controle de constitucionalidade

 pode ser descri to por propriedades que definimos com base em várias distin

ções e classificações: ele pode ser efetuado por um órgão político ou por um

órgão jurisdicional: um sistema de controle de constitucionalidade pode ser 

descentralizado ou centralizado, po r via de ação ou po r via de exceção, a prio- ri ou a posteriori.

A.Órgãopolíticoouórgãojurisdicional

A primeira distinção é usualmente a mais empregada, apesar de ser a

menos clara, ou talvez justamente por causa disso. Podemos, na verdade, dis

tinguir os dois tipos de órgãos pelo mo do com o eles são compostos: o órgão ju ri sd ic ional é composto de ju ri stas prof issionais e o órgão político, de nâo-

 juristas . Mas, juri stas prof issionais podem evidente mente te r ligações polí ticas

e mesmo partidárias. O mod o como são nomead os os mem bros da autorida

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 A C o n s t i t u i ç ã o 63

de de controle também não é um critério satisfatório porque mesmo juizes

 profiss ionais podem ser escolhidos - e são, aliás, freqüentemente de fato esco

lhidos, na Itália ou na Alemanha, por exemplo - por autorid ades políticas

(Parlamento ou Presidente) por razões políticas. Voltamos a atenção, então,

aos critérios tirados do processo e admitimos que uma autoridade é jurisdi

cional se ela age nos moldes de um processo, que parece em alguns aspectos

com aquele conduzido em geral diante dos tribunais. Mas é preciso observar,

 primeiramente, que se invoca, às vezes, o cará te r jurisdic ional de uma autori

dade, como é, aliás, o caso da França, não após ter observado o desenvolvi

mento do processo, mas para sustentar que, já que a autoridade é jurisdicional, o processo deveria ser modificado e equiparado ao processo jurisdicional

habitual. Bem, afirmamos que uma autoridade é política quando ela funda

suas decisões nas preferências políticas e que ela é jurisdicional se ela as fun

da exclusivamente nos motivos de direito. Mas não existe nenhum critério se

guro qu e perm ita distinguir o motivo de direito do motivo político.

É, port anto , compreensível que a Suprema Corte dos Estados Unidos, a

Corte Constitucional italiana ou o Conselho Constitucional francês puderam

receber uma ou outra qualificação. Para uma determinada instituição em umdeterminado país, a questão do caráter político ou jurisdicional não pode,

 portanto, ser resolvida e parece que na ve rdade temos a tendência de chamar 

de “política” uma autoridade cujas decisões são reprováveis. As demais clas

sificações apresentam mais rigor.

B.Sistemadescentralizadoesistemacentralizado

Em um sistema descentralizado, nos Estados Unidos, por exemplo, o

controle de constitucionalidade é considerado uma extensão natural da fu n

ção do juiz e todos os trib unais pod em exercê-lo. Eles po dem - e até devem

- recusar-se a aplicar um a lei inconstitucional e pode m e xam inar eles pr ó

 prios, a pedido das par tes, se ela está em conformidade ou em desconformi-

dade com a constituição. O te rmo “descentralizado” é, aliás, um pou co a mb í

guo, pois ainda assim existe centralização no nível da Suprema Corte.

A esse sistema se opõe o que c hama mo s de “centr aliza do”, no qual ocontrole de constitucionalidade é reservado a uma jurisdição especialmente

criada para esse fim; é o que inspira o modelo europeu, notadamente adota

do na Alemanha, na Itália, na França e na Espanha. Os me mb ros dessa juris

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dição são escolhidos principalmente por autoridades políticas, mas, com ex

ceção da França, eles devem possuir u m a qualificação jurídica.

Existem duas razões para a escolha desse sistema na Europa:

a) na maioria dos países europeus, existe pluralidade das ordens de ju

risdição e não unid ade com o nos países anglo-saxões, de m od o que, se os tri

 bunais ordinários pudessem interpretar a consti tu içã o, haveria vá rias juris

 prudência s constit ucio nais divergentes;

b) os juizes nos países de tradição romano-germânica não gozam do

mesmo prestígio que nos países anglo-saxões e nunca desejaram assumir a

responsabilidade de censurar a atividade do legislador, solicitado a expressar a vontade soberana da nação.

Diante disso, em vários países europeus , os tribunais ordinários, se não

 puderem examinar por eles próprios a conformidade com a constit uição das

leis que estiverem encarregad os de aplicar, podem , entreta nto, submetê-las ao

tribunal constitucional quando, diante de um litígio a eles submetido, colo

car-se uma questão de constitucionalidade.

C.Controlea priori econtrole a posteriori 

O controle a priori é aquele exercido antes da en trad a e m vigor da lei, às

vezes antes mesmo de ela ser promulgada, como é o caso da França. Após a

adoção da lei pelo Parlamento o controle não é exercido de imediato, mas cer

tas auto ridad es têm o poder, se elas considera rem que a lei é con trária à cons

tituição, de subme ter a questão ao órgão de controle. Evidentemente, à med i

da que esse poder, o direito de submeter à apreciação , seja conferido de formamais ou men os ampla, o controle será exercido de maneira mais ou meno s in

tensa.

O controle a posteriori é aquele exercido depois que a lei entrou em vigor.

O controle a priori apresenta a vantagem da segurança jurídica porque

todos os problemas contenciosos serão solucionados quando a lei entrar em

vigor. Os cidadãos sabem qu e ela não p ode mais ser anulada e po r consegu in

te conhecem seus direitos e suas obrigações. Esse controle apresenta, entre

tanto, do ponto de vista de sua eficácia e das condições nas quais ele se exerce,dois inconvenientes:

1. O juiz é levado a se pro nu nc iar em um mom en to em que as paixões

 polí ticas motiv adas pe la lei ainda não estão apaz iguadas, porque a lei acaba

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 A C o n s t i t u i ç ã o 65

de ser votada, de mo do que q ua nd o o juiz censura a lei, ele é logo acusado de

hostilidade política aos olhos da maioria política que votou a lei. É o que

ocorreu na França várias vezes, por exemplo qu and o o Conselho Constitucio

nal foi criticado pela esquerda, quando ela era majoritária antes de 1986, e

depois pela direita durante a coabitação de 1986 a 1988.

2. O juiz se pronu ncia no mo me nto em que não se conhecem ainda to

das as virtualidades da lei, virtualidades que serão reveladas somente na sua

aplicação.

Ao contrário, com o o controle a posteriori intervém no mom ento de di

ficuldades provocadas pela aplicação da lei, ele permite ao juiz perceber hi póteses que o legislador não havia vislumbrado.

D. Controleporviadeaçãoecontrole porvia deexceção

 No controle por via de ação, aborda-se a lei (exerce-se uma ação) solici

tando à jurisdição constitucional que impeça sua promulgação o u sua anu la

ção. Essa ação não é exercida durante um processo. É por isso que também

cham amo s de controle a título principal ou in abstracto. É preciso notar queo controle por via de ação pode ser exercido a priori como na França ou a 

 posteriori como na R.F.A. (República Federal Alemã).

O controle por via de exceção é  aquele que existe nos Estados Unidos,

mas tam bém nos países da E uropa co mo a Alemanha, a Itália, a Espanha, on

de é instituída um a jurisdição constitucional especial. Nesse caso, entretan to,

o tribunal encarregado do litígio principal não decide por si mesmo a exce

ção. Ele espera até que a jurisdição constitucion al decida a questão da co ns

titucionalidade da lei. Essa questão é chamada por essa razão de questão pre

 judicial. O controle por via de exceção só pode ser exercido a posteriori.

Podemo s assim cotejar distinções par a caracterizar o sistema de con tro

le instituído em um ou em outro país. Descreveremos por exemplo o sistema am e

ricano como descentralizado, a posteriori, po r via de exceção e o sistema fra n

cês com o centralizado, a priori, por via de ação.

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CApílulo

O PODER

Diferentemente da ciência política, a ciência mo der na do direito con sti

tucional não estuda o fenômeno do poder sob todas as suas formas e em to

das as sociedades, mas som ente aquele q ue é exercido na f orm a jurídica e que

é chamado de Estado.

Será examinado neste capítulo o quad ro no qual se movimenta este poder,

as formas nas quais ele se manifesta, e as técnicas com as quais ele é exercido.

Seção 1

0 quadro: o Estado

 Definição. - A forma estatal se caracteriza po r alguns t raços essenciais.

O poder é exercido na forma jurídica, ou seja, não mediante comandos

isolados, mas mediante regras que são criadas e aplicadas segundo procedi

men tos regulares e relativamente estáveis, de tal man eira qu e cada c om and o

individualmente dirigido a um sujeito se apresenta sempre como a aplicação

de uma regra geral anterior.

O poder deve ter como titular não os homens que o exercem de fato,mas u m ente distinto, a quem os atos são atribuídos.

Esse ente é chamado Estado. O Estado não pode querer e agir por si

mesmo. Igualmente, há necessariamente ho me ns para q uere r e agir, mas pre

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sume-se que seus atos sejam os do Estado. Usamos freqüentemente uma me

táfora: eles são órgãos do Estado. Da mesma forma que dizemos que um ho

mem fala quando sons articulados saem de sua boca, dizemos que o Estado

quer quando alguns homens, que são seus órgãos, expressam uma vontade.

Esse conjunto é freqüentemente considerado c omo uma  pessoa jurídica 

ou moral, um ente análogo a uma pessoa física. Ele possui, portanto, um pa

trimônio, direitos e obrigações, e até interesses, distintos dos interesses de

seus órgãos, distintos dos interesses dos sujeitos.

O Estado é também distinto da sociedade, denominada sociedade civil.

Ele exerce seu poder sobre ela, assumin do-lhe u m certo núm ero de funções. Essas funções podem ser naturalmente percebidas como funções sociais: o Esta

do promove a justiça, garante a direção da econ omia d o país, a educação dos

 jovens, a defesa do te rrit ório etc. Mas essas funções são exercidas de uma fo r

ma jurídica: o Estado emite regras, que têm como objeto essas diferentes ati

vidades. Em outras palavras, o Estado se apresenta como “produtor de direito”

Essa produ ção ocasiona dois tipos de problemas:

- se o Estado é pro du tor de direito, po dem os con ceber que ele mesm o

está su bme tido ao direito?- o pode r do Estado se exerce para um grupo de homens, mais ou menos

importante, a que chamamos, se os observamos individualmente, os sujeitos, e,

se os consideramos coletivamente, o “povo do Estado”. Ele se exerce também em

uma determinada porção de espaço geográfico, o território do Estado.

1. O Es t a d o   e   o   d i r e i t o

As ordens de um governo regularmente instituído se impõem porque,

consideradas em si mesmas, elas podem ser imputadas ao Estado. Concebe

mos, nessas condições, que o valor de um sistema constitucional dep ende dos

mecanismos ou procedimentos que ele prevê para impedir que fiquem no

Poder indivíduo s cuja ação é totalme nte co ntrária aos anseios da nação: a in

vestidura regular não é tudo para um governo, já que sua autoridade não so

 breviverá à sua subst ituição igualmente regular.

Isso não significa dizer, entretanto, que enquanto não forem formalmente destituídos de suas funções, os governantes podem fazer tudo. Eles

são os órgãos do Estado, certamente, mas o Estado em si mesmo não é oni-

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0 Po d e r 71

 potente, ou ainda que o seja, não é ele o único que determina a exte nsão de

seu poder.

O p roblem a das relações entre o Estado e o Direito foi um dos que não

deixaram de despertar a atenção dos juristas e mesmo de suscitar a paixão

das multidões quando elas ainda acreditavam em seus ideais (F e r r y , 1999) .

O dualismo do Estado e do direito. - Qua ndo abordamos esse problema,

 pressupomos em geral que o Estado e o dire ito são duas enti dades di st in tas.

Duas soluções são, então, concebíveis: a primeira é a posição  jusnaturalista 

que consiste, como vimos, em a dm itir que acima do direito positivo, ou seja, posto pelo Estado, existe um direito natural, que a ele se im põ e1. O Estado d e

ve, portanto, estar submetido ao direito e é necessário instituir mecanismos

que garantam essa submissão.

Ao contrário, segu ndo a concepção positivista, não existe ou tro direito

senão aquele que foi posto pelo Estado, expressão de sua vontade. Portanto,

o Estado nunca pode estar submetido ao direito, porque, assim, ele estaria

simplesmente submetido à sua própria vontade. Nessa perspectiva, podemos

apenas conceber uma autolimitação do Estado. Nesse ponto, os adepto s das duas posições, resp ectivamente , trocam ar

gumentos ligados ao significado político das duas doutrinas. Aos olhos dos

 jusnatu ra lis ta s, o posi tiv ismo não seria mais que um a forma de id ola tr ia ao

Estado, e, po r conseguinte, um a m era justificação do auto ritarism o, até mes

mo do totalitarismo. Como afirma que o Estado é o único produtor de direi

to e que o primeiro não pode estar submetido ao segundo, o positivismo não

chega de fato a recomendar a obediência a qualquer ordem, por mais despó

tica que ela seja, já que ela emana do Estado, e isso é “o direito”? Essa acusação foi formulada com um rigor muito particular após a Segunda Guerra

Mun dial e os positivistas foram considerad os p or alguns de seus adversários

com o claros aliados ou cúmplices dos nazistas.

Os positivistas contestam que não há grande diferença entre um a defini

ção de direito e uma justificação de seu conteúdo ou um a incitação à subm is

são. Os comandos emitidos pelo Estado pertencem de fato ao direito, de acor

do com a única definição possível do direito. Mas o positivismo é uma postura 

científica e não m oral ou política e essa qualificação não é um julgam ento m o

1Cf. supra o capítulo preliminar.

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ral: é possível nomeá-las como “direito” sem que seja necessário pregar sua

obediência. São os jusnaturalistas que confundem erroneamente o ponto de

vista científico e o ponto de vista mora l e que na verdade propa gam um a ideo

logia: como é impossível provar a existência de um direito natural ou conhe

cer o que ele determin a, o que os jusnaturalistas cham am de “direito n atura l”

é apenas a expressão de suas próprias convicções subjetivas. Se eles afirmam

que o Estado deve estar submetido ao direito natural, portanto isso significa

apenas uma coisa: que o Estado deve estar submetido aos valores que são

compartilhados pessoalmente por seus sujeitos. Em outras palavras, aos olhos

dos positivistas, o jusnaturalismo não expressa mais do que a pretensão de alguns autores de supervisiona r a administração d o Estado.

Essas duas concepções são inconciliáveis e a adesão dos au tores a uma ou

a outra permite com preend er um grande nú mer o de debates teóricos em direi

to. É por isso que qua ndo alguns autores procurar am um a resposta para o p ro

 blema das relações entre o Es tado e o direito, isso se deu necessariamente par

tindo de um ponto de vista jusnaturalista ou de um ponto de vista positivista.

 A un idade do Estado e do direito. - De acordo com a doutrina de HansKelsen, conhecida c omo a Teoria Pura d o Direito, o problema das relações en

tre o Estado e o direito e apenas um falso problema ( K e l s e n , 1962, p. 275-310) .

Ele pressupõe, com efeito, que o Estado e o direito sejam duas entidades d istin

tas, e que, na verdade, trata-se de algo único designado po r dois nom es diferen

tes. Uma das demonstrações dessa unidade recai na definição tradicional do

Estado. Vimos, segundo Kelsen, que os três elementos que devem ser emprega

dos para definir o Estado, o povo, o território e o poder público, só pode m ser de

finidos pelo Estado em si mesmo. Mas isso significa que eles só podem ser definidos pelo direito: o povo, com efeito, é o conjun to de ho mens, submetidos

às normas ligadas a uma determinada ordem jurídica; o território é o espaço

dentro do qual essas normas são aplicáveis; o poder público é aquele que se

exerce mediante as normas.  Definir o Estado é, na verdade, defin ir o direito.

Disso decorre ev idente mente q ue a questão das relações entre o Estado

e o direito não faz mais sentido. Como se trata de um fenômeno único, um

não pode estar submetido ao outro.

O Estado de direito. - Entre as ideologias cont emp orân eas referentes às

relações entre o Estado e o direito, figura a chamada doutrina do Estado de

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0 Po d e r 73

direito ( C i i e v a l i e r , 1999). Ela se desenvolveu a part ir dos tra balh os dos juris

tas alemães do século XIX. Essa do utri na, hoje m uito difun dida - a ponto do

Secretário Geral do Partido Comunista da União Soviética ter declarado sua

vontade de instaurar um “Estado socialista de direito” (v.  Le Monde de 28 de

maio de 1988) -, comporta, na verdade, várias idéias diferentes.

Em primeiro lugar, ela admite que o Estado age exclusivamente de for

ma jurídica, o que não significa “em conformidade com o direito”, mas “por 

inter méd io d o direito”. Essa forma se caracteriza, com o vimos, pela su bor di

nação das normas umas às outras, cf. supra o capítulo preliminar.

Ela se apresenta como um a proteção c ont ra o risco da arbitrariedad e, jáque os órgãos inferiores do Estado não podem nun ca agir de outro mo do se

não aplicando uma norma mais geral e anterior, portanto, conhecida pelos

sujeitos. Com efeito, o p rimeiro p rincípio prote tor da do utri na do Estado é o

denominado  princípio da legalidade.

Mas esse primeiro princípio não protege evidentemente contra leis que

seriam em si mesmas opressivas. A doutrina do Estado de direito procura,

 portanto, um segundo prin cíp io. A esse respeito, manif estam-s e alg umas di

vergências. Alguns idealizam processos legislativos complexos, incidindo noequilíbrio dos poderes, e capazes de impedir, pelo simples jogo de oposição

de interesses, a adoção de leis tirânicas. Outros depositam sua confiança no

exercício da democracia . Outr os ainda, hoje mais nu meros os, enxergam a so

lução na submissão da lei a princípios superiores, ou seja, praticamente no

controle da constitucionalidade das leis (cf. supra).

Diante disso, existe no cerne desse último grup o um a tensão pe rm an en

te entre duas concepções possíveis, bem diferentes e incompatíveis reciproca

mente ( V e d e l , 1988). Segundo a primeira, os princípios supralegislativos sãoaqueles inscritos na constituição pelo constituinte originário; são princípios

do direito positivo. Disso resulta que já que esses princípios foram postos na

constituição, eles podem ser modificados de acordo com o proced imento pre

visto para a revisão constitucional. A instituição do c ontrole de c onstituc iona

lidade pode, portanto, achar nessa concepção sua justificação, pois a anulação

de u ma lei por inconstitucionalidade significa, pois, não que o juiz constitucio

nal se opôs à vontade dos representantes do povo, mas simplesmente que ele

indicou que essa lei só poderia ser adotada mediante a modificação dos pri n

cípios constitucionais. O juiz se limitou, portanto, de alguma forma, a indicar 

o processo a ser seguido. Mas está claro que, segundo essa concepção, se o legis

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lador se vê limitado, o Estado em sua totalidade não o é, já que p or u m lado o

 ju iz di spõe de uma ampla margem de poder discricionário para decid ir se os

 princíp ios fo ram ou não violados e por outro lado, o Estado pode, mesmo que

seja somente no final de um procedimento mais ou menos difícil de ser reali

zado, modificar os princípios aos quais ele deve se submeter.

De acordo com a segunda concepção, os princípios supralegislativos

não são apenas princípios do direito positivo. São princípios do direito n at u

ral. Certame nte eles pud eram ser objeto de uma proclamação nos pre âm bu

los das constituições ou nas declarações dos direitos, mas não tiram sua for

ça e seu valor da promulgação desses textos. Estes são apenas “declarações”,como seu nome indica freqüentemente. Eles só fazem constatar de maneira

solene direitos que lhes preexistem e que os homens possuem naturalmente.

Essa concepção comporta duas implicações muito importantes: primeira

mente, mesmo se não houvesse nenhuma declaração dos direitos ou se os

 princípio s não estivessem mencionados no preâmbulo da consti tu ição, mes

mo assim eles se imp oriam ao Estado, notad am ent e ao legislador; em co ntr a

 parti da, mesmo que eles se jam obje to de uma dec laração, o que o ju iz aplica

quando controla a conformidade da lei aos princípios, não é o texto da declaração, ao qual ele não está ligado, mas os princípios do direito natural, que

ele é chamado a descobrir median te m étodos apropriados.

Os adeptos da segunda concepção pod em, p ortanto, sustentar que ela é

a única na qual o Estado está realmente sub metid o a um direito superior, mas

isso se choca evidentemente com a objeção dos positivistas, que sustentam que

a exatidão de uma concepção não se mede em função das justificações que ela

fundamenta. Resta saber se ela repousa em idéias reais e que se prove, o que

é impossível, que os princípios do direito natural realmente existem.

2. 0 Es t a d o   e   o   e s p a ç o , a s   f o r m a s   d e   o r g a n i z a ç ã o   d o Es t a d o

Primeiramente, é importante evitar uma confusão freqüente entre a

forma de organização do Estado e a forma de seu governo. A forma de gover

no é determinada pelo número dos titulares do poder e pela maneira como

eles são designados. A forma de organização do Estado é a forma da ordem

 jurídica do Estado, o espaço de validade te rr itori al de suas normas e a manei

ra como elas estão postas. Em uma ordem jurídica, salvo quando se trata da

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0 Po d e r 75

ordem jurídica de um Estado minúsculo, nem todas as normas têm a mesma

esfera de validade territorial. Algumas são válidas e se impõem sobre todo o

território nacional, outras apenas em uma porção desse território. Na Fran

ça, por exemplo, as leis se impõem em todo o território, mas algumas deci

sões se impõem apenas no território do dep artam ento ou no da comuna . Por 

convenção e para facilitar a explicação, denominaremos as primeiras “nor

mas nacionais” e as segundas “normas locais”. A questão da forma de organi

zação do Estado se refere, prim eiram ente , à divisão das matérias entre aq ue

las que são regidas pelas normas nacionais e aquelas regidas pelas normas

locais, bem como a maneira como as últimas normas são postas.A distinção entre a form a de organização do Estado e a forma de seu go

verno permite com preende r - ainda que a forma do Estado influa em certa

medida na de seu governo - que Estados com forma de organização seme

lhante sejam regidos por processos governamentais diferentes e - de mo do

inverso - que Estados com forma de governo ou com regime político seme

lhantes apresentem formas de organização diferentes. Por exemplo, antes de

1940, a França e a Itália eram dois Estados unitários (mesma forma de orga

nização), mas a primeira era uma democracia representativa e a outra umaditadura fascista (duas formas de governo diferentes). Há pouco tempo, a

União Soviética e a Polônia eram dois Estados socialistas, mas o primeiro era

um Estado federal e o segundo um Estado unitário.

Assim, acabamos de contrapor duas formas de organização: o Estado

unitário e o Estado composto.

3. O Es t a d o   u n i t á r i o

É aquele no qual as normas locais podem ser criadas somente como a

aplicação de normas nacionais prévias. Dizemos que elas são “condiciona

das”. Há, portanto, um único centro de poder e, em última análise, é a mes

ma autoridade nacional que estabelece diretamente as norm as nacionais e in

diretamente as normas locais.

Por exemplo, na França, as leis são nacionais e as normas locais só po

dem ser criadas qua nd o um a lei nacional disciplina as matérias nas quais elas podem intervir . É também a lei que inst itui a autoridade local compete nte,

que lhe atribui objetivos e limites, que det erm ina proce dime ntos e que orga

niza um controle do conteúdo das decisões; de modo que se pode imaginar 

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que, num determinado Estado, as normas locais são tão somente a concreti

zação, dadas as situações locais, das normas nacionais.

Existem, entretanto, diferenças importantes entre os Estados unitários:

alguns são chamados centralizados, outros descentralizados. Nos Estados

unitários do prime iro tipo, todas as norm as são adotadas por autoridades n a

cionais, denominadas também centrais. Nos Estados unitários descentraliza

dos, as normas locais são adotadas pelas próprias pessoas que a elas estarão

submetidas ou por pessoas eleitas por elas. É por isso que se fala nesse caso

de autonomia.

 Não devemos confundir a descentra lização e a desconcentração: numEstado desconcentrado, as normas locais são adotadas, por delegação, por 

agentes nomeados pelas autoridades centrais. Esses agentes integram uma

hierarquia e estão submetidos ao controle de seus superiores, de mo do que

os sujeitos não p articipam em nada da criação das normas. A desconcentra-

çâo é, portanto, n ão u m a form a de descentralização, mas um a forma de cen

tralização.

Compreendemos, assim, o fato da descentralização estar ligada à idéia

democrática. Com efeito, a população de um Estado não é homogênea dentro do território do ponto de vista étnico, lingüístico, religioso ou simples

mente político. Freqüentemente acontece de um grupo ser minoritário em

escala nacional, mas majoritário em algumas regiões. Em um Estado centra

lizado, esse gru po estaria sempre sub met ido a norm as que não desejou e que

lhe são impostas pela maioria. Em u m sistema descentralizado, ao contrário,

está submetido a n orma s que ele próprio a dotou, direta ou indiretamente pe

las autoridades eleitas ( M é n y , 1974; M o r e a u , D a r c y , 1984).

Centralização e descentralização são tipos-ideais, ou seja, categorias co ncebidas pelos juristas. Na verdade, nunca enc on tram os esses tipos em estado

 puro, mas si tuações intermediárias mais próximas de um ou de outro. A des

centralização é mais acentu ada n a me dida em qu e as nor ma s locais trata m de

assuntos mais importantes; as normas nacionais deixam, nesses assuntos,

um a m argem mais ampla de liberdade às autorida des locais e o controle exer

cido pelas autoridades nacionais é, nesses casos, menos estrito.

O grau mais elevado de descentralização é o do Estado regional, no qual

os sujeitos das normas locais, agrupados em regiões relativamente vastas, de

vem a autonomia não à lei, mas à própria constituição nacional e isso de duas

maneiras: por um lado, ela lhes atribui uma lista de matérias, que a lei nacio

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0 Po d e r 77

nal não pode modificar; por outro, em certos casos, como o da Espanha, a

constituição pode até permitir às regiões que determinem, elas mesmas, de

forma limitada, a organização e o modo de funcionamento das autoridades

regionais. Distanciam-se, assim, bastante do Estado federal.

4. O Es t a d o   c o m p o s t o

Ele apresenta estruturas diferentes conforme a rigidez do laço que une

suas partes integrantes. Dessa forma, parte-se da confederação de Estados até

o Estado federal.

A confederação de Estados, - Vários Estados podem se agrupar me dian

te um tratado internacional e constituir uma c omu nidade organizada, den o

min ada “confederação de Estados”. Os Estados-partes no tratad o são os Esta-

dos-m emb ros da confederação. O tratado constitutivo da confederação pode

instituir um órgão central competente para exercer um determinado núme

ro de funções enum erad as de fo rma limitativa no tratado. Em geral, esse ó rgão não é composto por deputados eleitos, mas por representantes dos Esta

dos, nomeados por seus respectivos governos. A maior parte das decisões é

tomad a de forma un ânime , mas algumas delas podem ser tomada s pela maio

ria, quando não se referirem às questões consideradas essenciais. Assim, a

soberania nã o é do do mín io da confederação, que não é em si mes ma um Es

tado, mas reside nos Estados-membros (KELSEN, 1945).

A História mostra vários exemplos de confederação: Confederação ameri

cana, Confederação helvécia, Confederação da Alemanha do Norte. Cabia, prin cipalmente, aos Estados-membros exercerem em comum competências diplo

máticas e militares. Mas ne nh um a Confederação d uro u muito tempo: ou elas se

dissolveram ou os laços entre os Estados-membros se fortaleceram e a Confede

ração se transformou num Estado federal, como é, aliás, o caso americano, ou

mesmo em um Estado unitário, como na Holanda. Essa forma de organização,

entretanto, não remonta necessariamente ao passado. Ela sofreu u m avanço na

época contemporânea, primeiramente, com as tentativas de promover a desco

lonização sem romper completamente os laços entre o antigo poder colonial eos Estados que chegaram à independência, e em seguida, com os processos de

integração econômica, notadamente com as Comunidades Européias.

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78 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

O Estado federal. - ( M o u s k i i é l i , 1931; H é r a u d , 1968; R i a l s , 1986) .

Ele apresenta u ma característica tota lmente diversa. Nesse caso, a comun i

dade que foi instituída é de fato um Estado e isso sob dois pon tos de vista. Pri

meiramente, de acordo com o direito internacional, é o único Estado que sub

siste. Somente ele, excluindo-se Estados-membros, pode manter naturalmente

relações internacionais. Em seguida, de acordo com o direito interno, o Estado

federal é do tado de constituição e exerce as três funções de to do Estado, as fu n

ções legislativa, executiva e judiciária. Quanto aos Estados-membros, eles pos

suem igualmente uma constituição e exercem também as três funções.

Convém analisar o Estado federal como um a com binação de dois pri ncípios:

a) o princípio de participação: os Estados-membros participam na for

mação das decisões do Estado federal. Existe notad am ente em todos os Esta

dos federais uma segunda câmara na qual se estabelecem representantes dos

Estados-membros;

 b) o princípio de autonomia: os Estados-membros estabelecem sua

 própria const itu ição, adotam suas próprias leis, executam-nas, d esignam seus

governantes, dispõem de um aparelho judiciário. No en tanto , n ão se pode acreditar que as estrutu ras dos Estados-membros

e as do Estado federal formem duas instâncias sobrepostas, e claramente estan

ques. Isso não é verdade: não somente, no plano orgânico, a constituição federal

organiza, como vimos, a participação dos Estados-membros na formação das

normas federais, mas a autonomia em si mesma só existe em virtude das nor

mas federais. Na verdade, o ord ena men to jurídico do conju nto é hierarquizado.

1. É a constit uição do Estado federal que det ermina as competênci as dos

órgãos federais, notadamente do órgão legislativo e, portanto, a contrario asdos Estados membros. A constituição federal enumera as matérias ligadas à

competência federal; todas as que nã o co nstam da lista estão ligadas aos Esta

dos-membros. É preciso ressaltar que, entre os poderes que se atribui ao Es

tado federal, consta o de arrecadar impostos. Ele não depende, portanto, da

ajuda financeira dos Estados-membros. Pelo contrário, freqüentemente são

eles que recebem subvenções do Estado federal.

Os Estados-membros recebem, portan to, as competências de uma no r

ma federal, como as autoridades locais em um Estado unitário as recebem de

uma norma nacional. Os conflitos de competências, inevitáveis, são decidi

dos po r um a jurisdição federal. Mesmo q ua nd o decididos em favor dos Esta

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0 Po d e r 79

dos-membros, o que aliás é raro, eles terão de qualquer forma recebido seus

 podere s de um órg ão federal.

2. O Estado-membro não tem, portanto, como o Estado federal, o po

der de determ inar as matérias de sua própria competência, a que chamamos,

às vezes, de “comp etência da com petê nci a”. Ele não é soberano. Os autores que

fazem da soberania a característica distintiva do Estado concluem, por con

seguinte, que o Estado-membro não é de fato um Estado (R i a l s , 1986).

3. É verdade que os Estados-membros podem se dotar de uma consti

tuição, mas a constituição federal pode estabelecer limites para seu poder 

con stituinte e lhes proibir, p or exemplo, alguns tipos de disposições.4. As leis dos Estados-membros devem estar em conformidade não so

mente com suas próprias constituições, mas também com a constituição do

Estado-membro.

 Nessas cond ições, é ce rto suste ntar que existe entr e o Estado unitá rio

descentralizado e o Estado federal somente uma diferença de grau e não de

natureza. Isso não significa que essa diferença não seja importante. Ela apre

senta obviamen te um grand e sentido político, pois está claro que um a região

que dispõe de um poder administrativo autônomo não é tão livre quanto oEstado-membro que pode, mesmo quando em virtude da constituição fede

ral, legislar sobre o direito das pessoas ou sobre a po lítica escolar. É bem po r 

isso que o federalismo se apresenta freqüentemente como uma solução pos

sível para os problemas dos Estados multinacionais. Mas do ponto de vista

especificamente jurídico, é preciso de fato constatar qu e tan to no caso do Es

tado Federal como no do Estado unitário descentralizado, as normas locais

são emitidas pelas autoridades autônomas de acordo com as normas centrais

(K e l s e n , 1945, p.316).

A União Européia. - (BEAUD, 1998, LEBEN, 1991)

A União Européia não pode ser classificada nem na categoria das con

federações, nem na dos Estados federais.

Provavelmente ela apresenta alguns traços do Estado federal: o leque de p o

deres muito amplos nas matérias de importância capital, a existência de órgãos

“supranacionais”, de um Parlamento europeu eleito pelo sufrágio universal

direto, a aplicação direta das nor ma s com unitária s no territór io dos Estados,

a jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, que

afirma a primazia da ordem jurídica européia sobre os direitos nacionais.

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80 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Falta-lhe, entretanto , para ser um Estado federal, um a característica es

sencial: ela não é de forma alguma um Estado. O fundamento de seus pode

res reside não em um a constituição, mas nos tratados internacionais, que ela

não pode modificar e que só podem ser revisados pelos Estados que os rati

ficaram. Ela não é soberana, na medida em que ela não tem comp etência p a

ra determinar sua própria competência, nem a dos Estados em que ela pode

exercer somente os poderes que lhe são transferidos pelos Estados.

Estes permanecem soberanos. Eles não obtêm seus poderes da União,

mas de sua soberania e é em virtude de seu poder soberano que eles pude

ram transferir competências à União e que pode riam retomá-los denun cian do os tratados. Aliás, na prática, toda a logística da ação política, inclusive os

meios administrativos e a força política, permane cem em suas mãos.

 No entanto, a União também não é uma confederação . Provavelmente

ela está, como uma confederação, fundamentada em tratados e dispõe so

men te das competên cias que lhe foram atribuídas; provavelmente, os Estados

 permanecem soberanos do ponto de vista do direito inte rn acional, mas eles

aprovaram limitações de competências muito importantes, incompatíveis

com as disposições de suas constituições que afirmavam o princípio da sobe rania nacional. Foi assim que o Conselho constitucion al afirmo u várias vezes

que os tratado s atentava m con tra “condições essenciais de exercício da so be

rania nacional”, notadamente referindo-se aos Tratados de Maastricht e de

Amsterdã. Nessas condições, eles pud eram ser ratificados some nte depois da

revisão da constituição. Isso significa que uma vez implementada essa revi

são, as condições essenciais do exercício da soberania nacional foram de fato

modificadas.

Porém, elas não foram modificadas a ponto de provocar o aparecimento de um novo soberano. É necessário, portanto, considerar que a União é

ainda um a organização internacional, mesmo qua ndo seus poderes superam

os poderes das outras organizações internacionais.

Seção2

As formasdeorganização do poder

Se em todas as sociedades humanas existem fenômenos de poder, nem

sempre ele é organizado por uma constituição. É por isso que é necessário

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0 Po d e r 81

distinguir du as noções: a forma de po der o u de governo, o regime político. A

 primeira noção é mais geral: já que todas as soci edades são gove rnadas, po-

dem-se distinguir tipos de poder que a teoria política denom ina tradicional

mente “ formas de governo”.

Em contrapartida, qu and o o poder está organizado de acordo com regras

 jurídicas, ou seja, quando existe uma const ituição material , falamos de “regi

mes políticos”. 'Iodas as sociedades modernas estão hoje dessa form a organiza

das. Essas regras tem po r objeto a divisão das competências e pode mo s classi

ficar os regimes de acordo com a divisão das competência s que eles promov em.

Exam inaremo s, portant o, sucessivamente as formas de governo, o prin cípio moderno segundo o qual as competências devem ser divididas, e os

modos de divisão, ou seja, os regimes políticos.

1.AS FORMAS DE GOVERNO

Existe um a classificação simples, utilizada com algum as varian tes desde

a antiguidade até o século XVIII, mas que de fato não é mais usada hoje.

A.Aclassificaçãoantiga

 As três form as de governo. - Essa classificação geralm ente é apresen tada

não com o objetivo de puro conhecimento, um objetivo teórico, mas com um

objetivo prá tico , para tentar pro var a superi oridad e de uma das formas de go

verno2 sobre as outras.

 Nessa perspec tiva, descrever a forma de governo é indic ar quem é o de

tento r do poder, distinguindo, assim, a mon arqu ia, a oligarquia e a de mo cra

cia. A distinção mais freqüente é fundamentada no número dos que gover

nam, um único, todos ou alguns. Ela se apresenta de maneira semelhante da

antiguidade ao século XVIII3. Chama-se, então, monarquia o governo de um

único, democracia o governo de todos e oligarquia o governo de alguns. Mas

2 A palavra “governo” é empregada aqui no sentido mais amplo de “governo dos homens", de poder po lítico, e não, obv iamen te , no sent id o que lhe dará R o u s s f . a u , de “poder executivo”.3 Pode-se comp arar p or exemplo P l a t à o (Política), A r i s t ó t e l e s (Política) e f. J. R o u s s e a u , Contrato social.

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8 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

é tam bé m possível ado tar um critério qualitativo e cha ma r de mo nar quia não

todo governo no qual um único governa, mas aquele no qual o governo per

tence a um homem designado pela hereditariedade ou que o exerce de uma

determ inada maneira; oligarquia o governo dos nobres ou aquele dos me lho

res, aos quais nom eam os aristocracia, e democracia aquele do povo.

Cada um a dessas formas de governo pode ser recomend ada pelas van

tagens específicas que lhe são atribuídas ou criticada em razão de seus incon

venientes. Os argumentos são muito variáveis, mas eles podem tomar a se

guinte forma: se o po der per tence a um único, a decisão pode ser mais rápida

e a execução mais eficaz. Mas é também possível que o monarca aja somente para atender aos seus caprichos. Na aristocracia, o poder será bem exercido,

 já que, por definição , são os melh ores que o farão. No entanto, não podemos

ignora r que os governantes ajam exclusivamente visando seus interesses egoís

tas, que não coincidem com o interesse geral. Na democracia, aqueles que

compõem o povo refutarão as decisões que violem a igualdade ou atentem

contra a liberdade. Em contrapartida, pode-se temer a duração das discus

sões, a ineficácia, as divergências e as guerras civis.

É a razão pela qual vários autores, de Políbio (201-120 a.C.) a Montes-quieu, preconizam um governo misto que não teria nenhum dos inconveni

entes presentes nas formas simples, mas que reuniria as vantagens de cada

um a delas.

Um governo misto seria um governo no qual o poder, notadamente o

 poder legislativo, seria part ilhado, o u melhor, exercido em comum por um rei,

 pe lo povo e pelos me lhores. No século XVIII, essa fo rma mista pôde ser efeti

vada pela harmonia entre poderes (cf. infra p. 97 e s.). Na época contempo rânea,

todos os governos se apresentam com o democráticos e a forma mista nunca éreivindicada. No entanto, alguns autores analisam os sistemas nos quais exis

tem tribunais constitucionais como avatares do governo misto. Com efeito, na

medida em que os tribunais têm o poder de anular leis, eles participam com

os parlam entos d o pod er legislativo. Por conseguinte, ou continua-se susten

tando que o sistema é democrático e é necessário adm itir que os tribunais, po r 

mais que seus membros não sejam eleitos, representam o povo soberano, ou

admite-se que o governo é misto porque o poder legislativo é exercido em co

mum pelos representantes do povo e por aqueles que costumeiramente são

cham ados de sábios, ou seja, por um elemento aristocrático, no sentido origi

nal do termo, que designa uma elite fundamentada na competência.

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0 Po d e r 83

 Defeitos dessa classificação. - É certo que essa distinção não é mu ito utili

zada hoje e isso por várias razões. A principal é que nos Estados de u ma dete r

minad a dime nsão física, é impossível enc ontra r a m onarq uia ou democracia.

Com efeito, é mater ialmen te impossível que um a única pessoa exerça a totali

dade do Poder, como é impossível que o pod er seja efetivamente exercido pelo

 povo em sua totalidade. Se persist íssemos em empregar a d is tinção clássica, se

ria necessário considera r que todos os governos que existem de fato são, na me

lhor das hipóteses, aristocracias, na pior das hipóteses, oligarquias.

Diante disso, é necessário optar por subdividir a classe das oligarquias e

con stituir subclasses, ou co nsidera r que um governo exercido po r alguns po de, entretanto, ser uma aristocracia ou uma democracia. A primeira solução

se choca com uma dificuldade importante: encontrar critérios satisfatórios

 para distinguir subclasses de oligarquias . A segunda é mais fácil de ser ap lica

da, basta considerar que a monarquia não é o governo de um único, mas

aquele no qual todos os governos derivam seus poderes de um homem ou

que a democracia nem sempre é o governo do povo, mas tamb ém aquele no

qual os governantes derivam seus poderes do povo. Seremos levados, então,

a distinguir duas formas de democracia: a democracia direta na qual o pró prio povo exerce o poder e a democracia indir eta ou represen ta tiva, na qual

aqueles que detem o poder o exercem em nome do povo e são, pelo menos

em parte, eleitos pelo povo. Na democracia representativa, digamos, os go

vernantes são os representantes do povo e a vontade qu e eles expressam não

é sua própria vontade, mas a do povo ou ainda o que se convencionou cha

mar de “vontade geral”.

 No enta nto , essa concepção tem sido ob je to de fervorosas críticas. A mais

radical foi form ulada po r J. J. Rousseau. Ela se baseia na impossib ilidade de re pre senta r a vontade. Posso dizer, com efeito: “o que este homem deseja hoje,

eu tam bém desejo. Expressando sua vontade, ele expressará, po rtan to, ao mes

mo tempo, a m inh a von tade”. Mas não posso dizer: “o que este hom em dese

 ja rá amanhã, eu desejarei tam bém ”, porque eu ignoro , no momento em que

falo, o que nós desejaremos ama nhã , um e out ro 4. A vontade q ue ele expres

sará am an hã não será, porta nto, a mi nha. “A vontade não se representa de for

ma alguma: ela é a mesma , ou ela é outra; não há po nto intermediário.”5

4 Do con trato social.? Do contrato social.

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84 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Diante disso, a representação é somente u ma ficção, pois, supo ndo q ue o

 povo possui uma vontade, não há nenhum meio de garanti r que ela seja efeti

vamente expressa pelos representantes. Não se pode comparar a vontade dos

representantes à do povo, porque não é possível conhecer a segunda indepen

dentem ente da primeira. A vontade dos representantes é presumida ou deve ser 

a do povo. Mas a realidade é que a vontade expressa pelos representantes é, de

fato, sua própria vontade e, por conseguinte, a democracia representativa não

é um a espécie de democracia, m as um a espécie de aristocracia ( G a x i e , 2000).

Além disso, é preciso observar que, falando-se de democ racia represen

tativa, abandonou-se durante o trajeto a concepção inicial da “forma de governo”: uma forma de governo não é mais definida pelo número ou pelo gê

nero dos detentores do poder, mas pela maneira como eles são nomeados ou

simplesmente pelo tipo de fundamento dado ao sistema de legitimação do

 poder. A nova classificação desempenha, dessa maneira, uma função não cien

tífica, mas ideológica: ela não serve ao conhecimento, mas desempenha um

 papel polí tico. Ela prete nde que a d emocracia representa tiva seja aceita fazen

do-a passar por um a forma de democracia.

B.Asclassificaçõescontemporâneas

 Autocracia e democracia. - A classificação mais estru turad a é a de Han s

Kelsen ( K e l s e n , 1945, p. 283 e s.). Ela é hoje amplamente divulgada6. Kelsen

ressalta que ela decorre de u m a opos ição feita pela teoria do dire ito entre dois

tipos de relações entre os homens: ou as normas são produzidas pelos pró

 prios homens, que a elas estão submetidos - é a autonomia - ou elas são pro duzidas por outros, qualquer que seja seu n úm ero - é a heteronomia. No âm

 bito constitucio nal, as normas em questão são sobretudo as leis, o que leva a

distinguir a democracia da autocracia. Há, portanto, duas formas de governo

e não mais três. Essa classificação adota como critério a liberdade. Um ho

mem é livre qua ndo faz o que quer, qua ndo se submete à sua própria vo nta

de. Portanto, ele é livre quando está submetido somente a leis que ele ajudou

a elaborar. A democracia é, nesse aspecto, um sistema de liberdade, porque as

leis são feitas po r tod os aqueles que a elas se subm etem. Con traria men te, no

6 A classificação proposta por Georges B u r d e a u nas edições anteriores deste manu al é mu ito semelhante a esta.

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0 Po d e r 85

sistema da autocracia, as leis são feitas p or o utro s e não há coincidên cia en

tre a vontade daqueles que fazem as leis e a daquele que deve obedecê-las.

Democracia e autocracia são apenas tipos ideais, ou seja, sistemas que

nunc a enc ontr am os con cretame nte na realidade. São construções intelectuais,

mas p ode mo s delas nos servir para descrever a realidade, porq ue os governos

reais se aproximam mais ou menos de um ou de outro tipo. Podemos, por

tanto, falar de democracia representativa, como uma forma intermediária

entre a au ton om ia e a heteron omia. Ela apresenta traços com uns c om os dois

tipos ideais. Co m a hetero nom ia primeiram ente: de u m lado, raram ente exis

te uma unan imida de absoluta, mas, em quase todas as questões, uma ma ioria e uma minoria, de tal modo que, para a minoria, as leis são necessaria

mente heterônomas; de outro lado, as leis são feitas não pelos sujeitos, mas

 por seus repre sentantes e v imos que a representação é uma ficção. Em segun

do lugar, possui alguns traços em comum com a democracia, notadamente

na med ida em que aqueles que emitem as norma s são eleitos e consid eram a

vontade real dos eleitores, que são também os sujeitos.

Totalitarismo e liberalismo. - Trata-se aqui não mais de opor as formasde governo adotan do como critério a maneira c omo as normas, especialmen

te legislativas, são produzidas, mas, em extensão e profundidade, as matérias

que regem essas normas. Os sistemas liberais são aqueles em que essas nor

mas se referem apenas a algumas matérias e, nestas, apenas aos princípios

fundamentais, deixando o restante à autonomia das pessoas privadas. Esses

sistemas preservam, portanto, a liberdade desses indivíduos. A liberdade de

que se trata aqui é um a pa rte do con junto das liberdades, denom inad a “liber

dades públicas” ou “direitos hum an os ”, e em pa rte, a liberdade econômica. Nos sistemas to ta li tá rios, ao contr ário, existe um grande número de

nor ma s prod uzidas pelo pod er político e que regem todas as esferas da vida,

de modo que a margem deixada à autonomia, ou seja, à liberdade dos indi

víduos, é be m frágil.

Vários autores con trap õem o Estado e a sociedade civil. O Estado é, nes

se contexto, o conjun to das instituições produtoras de norm as heterô noma s de

alto nível. É o Estado stricto sensu. Quanto à sociedade civil, é o conjunto dos

homens, vistos de mane ira d istinta do Estado. O liberalismo é, então, o sistema

que mantém a distinção entre o Estado e a sociedade civil, enquanto no siste

ma totalitário, o Estado invade completamente a esfera da sociedade civil.

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8 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

A distinção entre o totalitarism o e o liberalismo não coincide com a da

democracia e da autocracia. Não devemos confundir democracia e liberalis

mo, nem sociedade totalitária e autocracia. Podemos, com efeito, conceber 

um sistema ao m esmo tem po d emo crático e totalitário, no qual a lei adotada

 pe lo povo limi ta as liberdades indiv iduais . No entanto, tal sistema não é m ui

to en con trad o na realidade, por mais que se tenha, às vezes, analisado dessa

forma o sistema soviético. Em contrapartida, podemos não apenas conceber,

mas também encontrar no mundo real um sistema autocrático e liberal, no

qual as leis são implem entad as de forma h eterô nom a, mas prese rvando as li

 berdades indiv iduais. Esse si stema corresponderia ao ideal polí ti co de algunsfilósofos iluministas, adeptos do “despotismo esclarecido”.

Governo pluralista e governo m onístico. - Em algumas formas de gover

no, a com petiçã o pelo exercício do p ode r é permitid a e até organizada. Esta

mos falando de governos “pluralistas”. Em outras situações, essa competição

é proibida. Trata-se de governos “monísticos” ou mo noc rático s”.

Os governos pluralistas, deno min ado s ta mb ém “abe rtos”, são sistemas

nos quais vários home ns ou vários grupos de ho mens p articipam da co mp etição pelo po der de forma legítima, ou seja, não c landestin amen te e pela for

ça, mas abertamente. Aqueles que a empregam deterão o po der some nte po r 

algum tempo, ao final do qual a competição será retomada. Nesse intervalo,

eles não eliminam seus rivais, que gozam de alguns direitos, notad am ente pa

ra lhes permitir um novo engajamento na luta política.

Esse sistema não se confund e com a democracia. Cer tame nte várias de

mocracias representativas mod erna s são pluralistas, mas alguns governos que

se apresentam também como democracias não são pluralistas. Ele tambémnão se confunde com o liberalismo, como mostra mais uma vez o exemplo

do despo tismo esclarecido.

De modo inverso, o governo monístico ou “poder fechado” é um siste

ma no qual nen hum a competição para o poder é permitida. Nos Estados m o

dernos, o tipo mais difundido do poder fechado, mas ele está longe de ser o

único, é praticad o med iante o pa rtido único. O p ode r fechado não é necessa

riamen te totalitário, nem autoritário, apesar dele freqüente mente o ser.

Concentração ou divisão do poder. - Podemos ainda dividir os sistemas

nos quais o poder está concentrado nas mãos de um homem ou de um gru

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0 Po d e r 87

 po e aquele no qual ele é partil hado, div id ido ou separado - todos esses ter

mos são equivalentes - entre vários, que p odem se opo r uns aos outros.

Mais uma vez estamos diante de uma classificação que não coincide

com as outras, mas pode com elas se combinar. Assim, constatamos primei

rame nte que, em cada u ma das três formas de governo, de acordo com a clas

sificação antiga, o poder estava concentrado nas mãos do rei na monarquia,

nas dos melhores na aristocracia e nas do povo na democracia. É apenas no

governo misto que o poder é partilhado.

O mesm o ocorre na oposição autocracia-democracia, pois o pod er está

concentrado nas duas formas de governo. A distinção entre o totalitarismo eo liberalismo também não coincide com a oposição concentração-partilha

do poder. De fato a partilha do pod er é freqüen temente justificada de man ei

ra instrum ental e apresentada co mo um meio de garantir e de preservar as li

 berdades. Mas não existe aí nenhum a relação necessár ia e, como vim os no

exemplo do despotismo esclarecido, é possível que um poder concentrado

nas mãos de uma pessoa só seja exercido de forma liberal, enquanto pode

mos conceber um pod er totalitário sendo partilhado entre vários grupos.

Constatamos, dessa forma, ser possível, combinando as classificações,definir um regime concreto. Pod emos dizer, po r exemplo, que no sistema na

zista, o poder era concentrado, autoritário e totalitário, que no mundo oci

dental de hoje ele se afirma seja com o partilha do e liberal, seja como de m o

crático e liberal, ao passo q ue o gove rno do s Estados socialistas se apresentava

como democrático, concentrado e antiliberal.

A última distinção é, entretanto, a mais importante do ponto de vista

do direito constitucional, pois é a única que adota como critério as compe

tências nor mativas d os órgãos do Estado. Ela é difu ndid a na ciência do direito constitucional sob o nome de princípio da separação dos poderes.

2.0 PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES

“A separação dos poderes” é antes de tudo um princíp io de técnica con s

titucional destinada a evitar o despotis mo e a garantir a liberdade. Portan to,

todos os autores hostis ao despotismo preconizam sua aplicação, mas nemtodos concebem da mesma forma essa aplicação, e podemos distinguir duas

interpretações bem diferentes, a po nto de que devemos con siderar que se tra

ta, na verdade, de dois princípios e até mesm o de duas do utrin as rad icalme n

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8 8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

te diferentes. Vamos expor, primeiramente, aquela que foi professada pelos

 juri stas modernos, desde a segunda metade do século XIX, e que vamos de

nomin ar, para fins práticos, pois ela é aceita por um grande nú me ro de a ut o

res, de doutrina tradicional, em seguida as críticas que podem ser formula

das contra essa tese e, finalmente, a doutrina do século XVIII, que marcou as

constituições da época revolucionária.

A.Adoutrinatradicional

Segundo essa doutrina , o princípio é em si mesmo co mposto por duas

regras distintas, a regra da especialização e a regra da independência, cuja

combinação deve proporcionar o resultado desejado, a liberdade.

1. A regra da especialização

O Estado exerce ou deve exercer três atividades: ele faz a lei, ele a execu

ta e ele decide os litígios. Ele tem, portanto, três funções, legislativa, executivae jurisdicional. De acordo com uma variante dessa doutrina, essas funções

 perfazem o núm ero de duas somente, com a função execut iva sendo subdivi

dida nela mesma em um a função administrativa e uma função jurisdicional.

De qualquer forma, haverá três autoridades ou órgãos do Estado (ou apenas

dois se admitimos apenas duas funções) e cada um deles será especializado

no exercício de uma dessas funções. Essa especialização significa que cada

um a das autorida des deverá exercer um a função, e que ela só deverá exercer 

um a delas, mas exercê-la inteiramente. Em contr apartid a, ela não deverá interferir de modo algum em outras funções.

 Numa versão forte da doutrina, considera-se que cada autoridade ou

órgão é dota do de u m pod er específico, necessário ao exercício de sua função

e que será designado pelo nome desse poder. Haverá, portanto, um poder le

gislativo, um pod er executivo, um po der judiciário.

2. A regra da indepe ndê ncia

Mas os poderes não p erman eceriam muito tem po especializados, se al

gum deles pudesse exercer pressões sobre o titular do outro. Se, por exemplo,

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0 Po d e r 89

o poder executivo pudesse nomear e revogar a seu modo os titulares do po

der legislativo, seria ele que exerceria ind iret am ente esse poder e não mais h a

veria especialização. É necessário, por tanto , que as auto ridades o u órgãos sejam

mutuamente independentes, o que significa, na prática, que os indivíduos

que compõem cada uma dessas autoridades não devem ser nomeados por 

outros órgãos e sobretudo que eles não devem ser arbitrariamente revogá-

veis por eles. Isso proíbe, portanto, notadamente a responsabilidade minis

terial e a dissolução. Agrega-se, às vezes, a essa regra, a proibição de contatos

físicos entre os órgãos - assim, a proibição p or um me mb ro do Executivo de

tom ar a palavra nas assembléias - e a independência financeira - nen hum aautoridade deve esperar seus créditos da boa vontade de alguma outra -, e

mesm o uma prescrição de segurança militar, cada autorid ade deve dispo r de

uma guarda armada distinta para se proteger contra as tentativas violentas

de outrem.

3 .0 resultado esperado

O resultado esperado pela combinação das duas regras é que, de acordo com um a fórmula retomad a de M ontesquieu pela maioria dos autores, “o

 poder refreia o poder”: a tenta tiva de uma das autoridades de se tornar des

 pótica se chocaria imediatamente com a oposi ção de alguma outra autorida

de. O poder legislativo e o poder executivo promoverão mutuamente o equi

líbrio de m od o que a liberdade dos sujeitos será preservada.

B.Ascríticasà doutrina tradicionalA doutr ina tradicional se chocou, p rimeira men te, com críticas diversas,

aliás, incompatíveis entre elas, ligadas à teoria da soberania: a separação dos

 podere s assim entendida é contrária ao princípio fundamental da indiv is ib i

lidade da soberania. Por conseguinte, ou a un idad e da soberania se reconstitui

necessariamente em benefício de um ou de ou tro desses poderes e o objetivo

é definido, ou as tentativas para quebrar a soberania só fazem destruí-la e,

como não há Estado sem soberania, tem-se a anarquia.

Outros dão a suas objeções um a aparência mais instrum ental e susten

tam que os conflitos se resolverão por golpes de Estado ou que os conflitos

entre os poderes acabarão por paralisar o Estado. Veremos, entretanto, que

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90 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

essa última objeção não procede, considerando-se a crítica decisiva de Ray-

m on d Carré de Malberg.

A explicação de Carré de Malberg é bem simples: primeiramente, de

que forma poderes especializados e indep ende ntes e, por assim dizer, sem ne

nhum contato uns com os outros, poderiam deixar seu exercício, tanto um

como o outro, e promover equilíbrio? Tal equilíbrio seria de imediato dificil

mente concebível se as funções que eles exercem fossem equivalentes. Mas

elas não o são e seria até totalmente absurdo pretender que a atividade que

consiste em fazer as leis pudesse ser equivalente à que consiste em executá-

las. Na verdade, a execução é evidenteme nte, pela pró pria definição, subo rdinada à legislação. Mas então, se as funções são de tal modo hierarquizadas e

os órgãos especializados, disso decorre natu ralm ente que aquele que exercer 

a função mais elevada é superior aos outros. De acordo com a fórmula de

Carré de Malberg, a hierarquia dos órgãos segue a hierarquia das funções e

 jamais um poder subordinado poderá impedir um poder superior  (C a r r é   d e  

M a l b e r g , 1922, t. II, p. 109-142).

A essas críticas, é importante acrescentar outras duas: em primeiro lu

gar, a separação dos poderes descrita pela doutrina tradicional é geralmenteimputad a a Montesquieu, po r mais que alguns autores procure m as origens

em outros, como Locke ou Bolingbroke. Ora, como mostrou Charles Eisen-

mann, de maneira irrefutável, o sistema preconizado por Montesquieu é na

verdade completamente diferente e até radicalmente oposto ao da separação

dos poderes (E i s e n m a n n , 1933; T r o p e r  , 1980).

Resta, entretanto, acha r no texto de várias constituições ou das Declara

ções dos Dire itos referências à “separação dos poder es”. A mais famosa e mais

importante é a do art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem de 1789:“Nenhuma sociedade, na qual a garantia dos direitos não esteja garantida

nem a separação dos poderes determinada, possui constituição”. Como com

 preender nessas condições que um princípio tão absurdo tenha podido achar 

uma consagração tão solene? Como se pode conceber que um princípio, es

tranho a Montesquieu, tenha sido grosseiramente inventado e erigido ao ní

vel de um dogma de política constitucional?

Dois tipos de explicação podem, então, ser dados: de acordo com a pri

meira, os homens da Revolução Francesa teriam entendido mal o Espírito das

Leis; enqu anto Montesquieu entendia o princípio de u ma forma maleável, os

revolucionários teriam dado, po r força do sistema, um a interpretação rígida.

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0 Po d e r 91

De acordo com a segunda explicação, vista do ângulo histórico, a sepa

ração dos poderes de que tra ta a Declaração dos Direitos do H om em de 1789

não tem nen hu m a relação com a separação dos poderes da doutrin a tradicio

nal. Os termos são os mesmos, mas trata-se de u ma d ou trin a diferente. A ex

 pressão sim plesmente mudou de sen tido , desde essa época.

C. Aseparação dos poderes noséculoXVIII

 Na verdade, o que se e ntende por separação dos poderes no século XVIII

- e isso de maneira unânime - é um princípio completamente negativo. Q uan

do se recom enda a separação dos poderes, não se indica de que mane ira as fun

ções devem ser divididas, mas so mente de que forma elas não devem ser.

Os autores do século XVIII partem de uma distinção das funções e em

seguida formulam o princípio den tro dos term os análogos.

1. A distinção das funç ões legislativa e executiva

Ela é antiga, de qualqu er form a an terior a M ontesquieu, pois consta da

obra de Locke, form ulad a em te rmo s semelhantes. Ela provém, na verdade, de

um a metáfora antropomorfa: do mesmo mo do que se diferencia, no homem ,

a cabeça e os braços ou a vontade e a ação, da mesma forma se distingue no

Estado o poder legislativo, que é a vontade, e o poder executivo, que é a ação.

Às vezes distingue-se u ma terceira função, a função jurídica, às vezes deno mi

nada também “judiciário” e que se apresenta como uma espécie de função

executiva; é a execução das leis com o objetivo de decidir litígios.É essa distinção que formula mais ou menos Montesquieu quando ele

escreve: “existem em cada Estado três tipos de poder: o poder legislativo, o

 poder executivo das coisas que dependem do direito das pessoas e o poder 

das coisas que dependem do direito civil. Com o primeiro, o príncipe ou o

magistrado cria leis por u m tempo ou para sempre e corrige ou anula aq ue

las que forem feitas. Com o segundo , ele promove a paz ou a guerr a, envia ou

recebe embaixadas, instaura a segurança, previne invasões. Com o terceiro,

ele castiga os crimes ou julga litígios de particulares. Chama r-se -á a esse último de po der de julgar e ao outro simplesmente o po der executivo do Esta

do” (Esprit des lois, Livro XI, cap. 6).

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92 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Mas é Rousseau quem a apresenta de maneira mais clara. “Qualquer 

ação livre tem duas causas capazes de produzi-la, uma moral, saber a vonta

de que determina o ato, a outra física, saber o poder que a executa. Quando

caminho em direção a um objeto, é preciso primeiramente que eu queira ir;

em segundo lugar, que meus pés me conduzam . Qu er u m paraplégico quei

ra correr; quer um homem ágil não o queira; ambos permanecerão no lugar.

O corpo político tem as mesmas faculdades, distingue-se da mesma forma a

força e a vontade, esta com o nome de poder legislativo, aquela com o nome

de poder executivo. Nada se faz e nada deve ser feito sem a colaboração de

les” (Contrat social Livro III, cap. 1).Essa distinção implica claramente no reconhecimento de uma hierar

quia entre dua s funções, já que a execução está eviden temen te sub ordin ada à

criação.

2 .0 conteúdo do pr incípio da separação dos poderes:

a regra negat iva ou a proibição do acúmulo

Ele é extrema men te simples: é proibid o a tribu ir todos os poderes a ummesmo indivíduo ou a um mesmo grupo de indivíduos. É esse princípio que

enuncia Montesquieu: “Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de ma

gistratura, o poder legislativo é agregado ao poder executivo, não há mais liber

dade, porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado faça leis  

tirânicas para executá-las tiranicamente”.

Montesquieu não o tinha inventado, tampouco descoberto. Isso já era

encontrado no pensamento de Locke: “Confiar às próprias pessoas que já têm 

o poder de fazer as leis o poder de m andar executá-las, seria provocar uma ten

tação dem asiadam ente forte para a fragilidade hum ana , sujeita à ambição”.

Alias, é surpreendente constatar que Rousseau, freqüentemente consi

derado hoje como um adversário de Montesquieu e da separação dos pode

res, enuncie uma fórmula semelhante: “Não é bom que aquele que fa z as leis 

as execute, nem que o corpo do povo desvie a atenção das vistas gerais para dá- 

las aos objetos particulares

Essa é, portanto, uma doutrina geral aceita no século XVIII e é preciso

ressaltar três aspectos.

Em prime iro lugar, o princípio é simplesme nte negativo: não se pode dar 

todos os poderes a um só indivíduo porque ele abusaria disso. É necessário

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0 Po d e r 9 3

evitar a tod o custo o acúmulo, que seria o próprio despotismo. Em outra s pa

lavras, é extrem amen te necessário que os poderes sejam repartidos - ou, na

linguagem do século XVIII, “separados” ou “divididos” ou ainda “distribuí

dos” - entre várias autoridades. Pouco im porta de que man eira eles vão estar 

separados - isso será objeto de ou tro princípio - desde que eles assim o sejam.

Em segundo lugar, o princípio não se confunde de forma alguma com

a regra da especialização. De fato, se existem duas autorid ade s especializadas,

um a na função legislativa e out ra n a função executiva, a proibição do ac úm u

lo será respeitada, mas ela também o será quando se adota um outro modo

de divisão, se, por exemplo, se atribui a uma autoridade uma parte de umafunção e um a parte de outra . A especialização é, portanto, um a das mane iras

mediante as quais se pode satisfazer ao princípio, um dos procedimentos

 possíveis de divisão das funções, mas apenas um deles.

Em terceiro lugar, não se trata evidentemente aqui de independência,

nem de equilíbrio, mas a partir do mo me nto em que os poderes são dividi

dos entre várias pessoas, independentemente do modo como eles o são, o

despo tismo é impossível, pelo simples fato que aquele que executa não pode

modificar a lei a bel-prazer. Ele pode apenas executar uma lei anterior. Aquele que obedece, definitivamente o bedece apenas à lei, o que corres pon de à d e

finição de liberdade.

Separação dos poderes e classificação dos regimes políticos. - Pode-se uti

lizar o princípio da separação dos poderes para classificar os regimes políti

cos. Pode-se, primeiramente, opor aqueles nos quais o poder está totalmente

concentrado nas mãos de um homem ou de um grupo de homens e aqueles

nos quais existe uma separação dos poderes. As dificuldades surgem qu an dose trata de fazer a distinção en tre os regimes de separaç ão dos poderes.

1) A dou trina mod erna, como vimos, compree nde a separação dos p o

deres como um sistema no qual órgãos especializados e independentes pro

movem equilíbrio. Ela opõe, então, os sistemas nos quais o princípio é apli

cado de maneira rígida e os que admitem alguma flexibilidade ou algumas

exceções. Na primeir a categoria, ela coloca a cons tituição am ericana de 1787,

as constituições francesas de 1791 e do ano III e, algumas vezes, a de 1848; na

segund a categoria, todas as outras.

Essa classificação apresenta vários inconvenientes. Primeir amente ela está

fund amentad a em um a concepção discutível da separação dos poderes, já que é

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94 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

impossível promover u m equilíbrio entre um pode r legislativo e um poder exe

cutivo especializados. Em segundo lugar, ela exclui da classificação os sistemas

que rejeitam o princípio da separação dos poderes assim entendido, por exem

 plo o sistema soviético, como ele existia até a Perestroika, o u que se assentam em

qualquer outra concepção desse princípio, como a constituição francesa de

1793. Em terceiro lugar, ela impede qualquer classificação rigorosa porque a se

 paração rígida, na prática, não é exercida em nenhum regime político, de modo

que todos os sistemas apresent am necessariamente exceções e podem , po r con

seguinte, ser indiferentemente colocados tanto em u ma com o em outra catego

ria. Isso é notório no qu e se refere ao regime americano, considerado tanto como um sistema de divisão flexível nos manuais de direito americano, quanto

como um sistema de divisão rígida dos poderes, nos manuais franceses.

2) No século XVIII, com o o princípio era ente ndido apenas de forma ne

gativa - ele se limita a indicar de que forma as funções não devem ser atribuí

das - compreendia-se que ele deveria ser compleme ntado po r um princípio

 positivo. Quando existia um aco rd o muito geral no princíp io negativo, dois

 processos positivos de divisão das competência s t inham cada um seus adeptos.

O primeiro e o mais simples consistia em especializar as autoridades,uma na função legislativa, outra na função executiva. Disso deveria resultar,

cm razão da hierarquia das funções, um a subordinação da autoridad e execu

tiva ao poder legislativo. Esse sistema é preconizado pelos democratas, por

que o poder legislativo deveria, em essência, ser o povo em si mesmo ou seus*

representantes. E, portanto, este que é proposto por Rousseau e seus sucesso

res. Na linguagem do século XVIII, ele é de no mi na do po r um termo, que ho

 je tem um sentid o ra dic almente diferente: “separação absolu ta dos poderes”.

O segundo sistema, denominado equilíbrio dos poderes, é mais complexo: seus adeptos criticam o procedimento da especialização por ser instável.

Efetivamente, eles sustenta m, o p ode r legislativo exercerá uma pr ed om inâ n

cia tão forte sobre a au toridad e executiva, que ele estará em via de conc entra r 

em suas mãos o exercício das duas funções, ou seja, de tornar-se despótico.

Esse sistema poderia se manter somente pela virtude dos governantes. Mas,

conh ecen do os hom ens e suas paixões, não se pode confiar racionalme nte na

 perenidade de suas vir tudes. É necessário, portanto, eles consideram, cons

truir um sistema estável, um sistema tão bem construído de forma que ele

não possa ser destruído, independentemente das paixões dos homens. Me

lhor ainda, esse sistema deve ser fund ado não na virtude, mas nos vícios.

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0 Po d e r 9 5

A solução se inspira na constituição inglesa, uma constituição inglesa

idealizada como é descrita por vários autores, após Montesquieu. Ela consiste

em promover u m equilíbrio, não entre um poder legislativo e um pode r execu

tivo, o que é obviamente impossível, mas entre várias autoridades , que partici

 pam de forma unânime da função legislativa. Essas auto ridades são, portanto ,

órgãos legislativos parciais. Na constituição inglesa, essas três autoridades são

uma câmara eleita, a Câmara dos Comuns, uma câmara nobiliária, e, graças a

um direito de veto, o rei, que po r ou tro lado, exerce sozinho a função executiva.

 Nesse sistema não existe especialização, já que o rei exerce uma função

 plena e participa do exercício de um a outra, mas o prin cíp io da separaçãodos poderes é preservado, já que nen hu m a autoridad e exerce todos os pod e

res. O equilíbrio estará mantido entre os três órgãos legislativos, cujos inte

resses políticos e econômicos estão opostos. Será impossível, por exemplo, às

duas câmaras usurpar o poder executivo, porque se elas propõem uma lei

nesse sentido, o rei, titular de um poder executivo que ele intentará defender,

segur amen te a isso se oporá.

Pode-se portanto, classificar as constituições do final do século XVIII e

do início do século XIX confo rme elas prom ovem um a especialização ou umequilíbrio dos poderes. Na prim eira categoria tem-se, aliás, a constituição de

1793, na segunda a constituição a meric ana de 1787, a constituição francesa

de 1791, as chartes, a constituição belga de 1830 e várias outras. A constitui

ção francesa do a no III, que pre tende u pro mov er um equilíbrio, mas entre as

câmaras apenas, pertence a um tipo intermediário.

Essa classificação não é, entretanto, válida para os regimes mo dernos, no

tadame nte po rque estes, qua ndo pretendem promov er um equilíbrio, não mais

 pretendem fazê-lo por in termédio da divisão do poder legislativo, mas mediante técnicas de ação recíprocas, que a classificação do século XVIII não levava

em consideração. É necessário, portan to, conside rar as classificações mod ernas.

3. O S REGIMES POLÍTICOS

A classificação dos regimes políticos não deve ser confu nd ida com a dis

tinção entre as formas de governo. Certamente, é possível criticar a teoriaclássica das formas de governo pelo fato de ela empregar critérios jurídicos e

achar desejável integrar aos esquemas ou tros elementos que não são própria-

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96 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

mente constitucionai s, mas sociais e políticos. Nesse caso, estamos fa lando de

“regimes políticos”, para designar formas políticas, definidas por esses ele

men tos políticos. Regimes políticos são, então, sinô nim o defo rm as de governo, 

concebidas de acordo com uma ou outra classificação contemporânea7.

Quando se emprega a expressão nesse sentido, classificam-se os regimes po

líticos de acordo com critérios extraídos da estrutura social, da relação entre

o Estado e a sociedade, das concepções relativas ao papel do Estado ou ainda

do g rau de desenvolvimento econôm ico8.

 No entanto , é hábito, na linguagem do dir eit o consti tucio nal, falar de

regimes políticos princip alme nte p ara designar subclasses no seio da categoriados governos nos quais o poder é partilhado9. Tal distinção se faz necessária,

 pois o poder pode naturalmente ser partilhado de várias maneir as. Pode-se

conceber, como para qualquer forma de partilha, que ele seja igual ou desi

gual. Con siderad o de for ma igual, pode-se tenta r prom ove r essa igualdade de

várias maneiras. Co nsider ado desigual, pode-se desejar atribuir a supremacia

a um a ou out ra a utoridad e. Mas é preciso ainda avaliar as conseqüências que

a partilha pode causar no funcionamento efetivo do poder.

Pode-se considerar a questão, ainda, sob o ângulo do constitucionalis-mo, que visa a limitar o pode r mediante o estabelecimento de uma constitui

ção. Ora, como vimos, uma constituição não é mais do que uma divisão das

competências. As constituições, todas elas, devem, portanto, estar sujeitas a

um a classificação, de acordo c om o tipo de divisão de pod er que elas pr om o

vem. É por isso que todas as classificações jurídicas adotam como critério di

ferentes interpretações do princípio da separação dos poderes e as classifica

ções dos regimes políticos estão ligadas, na verdade, às constituições. Vamos

expor a classificação mais corrente antes de proceder à crítica.

A. Exposiçãoda classificaçãotradicional

Ela é objeto de apresentações m uito variadas, que obviam ente seria mo

nóto no detalhar, mas pode-se considerar que se trata antes de tudo de uma

7 Cf. supra p. 84 e s. Para um a apresen tação m ode rna, cf. Badie e H erm et, 1990.8 De onde vem a distinção dos sistemas ocidentais, dos sistemas socialistas e dos sistemas doterceiro mundo .9 Cf. supra no item 1, sobre formas de governo.

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0 Po d e r 9 7

classificação dualista. Distinguem-se as constituições, em primeiro lugar,

considerando o fato delas visarem promover um equilíbrio dos poderes ou

atribuírem a preeminência a um deles; em seguida, são feitas as distinções no

interior de cada uma dessas classes.

l .A preeminência de um órgão

Evitar-se-á uma confusão terminológica freqüente que consiste em

designar as constituições que atribuem a preeminência a um dos órgãos

que elas instituem, como regimes de “confusão dos poderes”. De fato, existem regimes políticos nos quais todos os poderes estão concentrados nas

mãos de um único homem ou de um único órgão, mas não se deve querer 

classificar esses regimes de acordo com um critério extraído da separação

dos poderes. Esses sistemas correspon dem à definição que Mon tesquieu da

va ao “de spoti sm o” 10 e, de acor do com a classificação tradicio nal das fo rma s

de governo, são monarquias ou aristocracias. Supõe-se, aqui, ao contrário,

que existe de fato uma sep aração dos poderes, ou seja, um a constituiç ão m a

terial. Portanto, não há fusão de poderes, mas apenas preeminência dada aum dos órgãos. Pode-se agir seja por uma assembléia, seja por um colégio

eleito.

a) Preeminência de uma assembléia

Esse sistema é cham ado de “governo co nvencional” ou de “regime de as

sembléia” (B a s t i d , 1956). Ele compreende, na verdade, pelo menos três tipos

 bem diversos.

Trata-se primeiramente do regime efetivamente praticado na França,

 pela Convenção Nacional de 1792 a 1795 e é dele que provém a expressão

“governo convencional”. É por isso inclusive que essa expressão é inadequa

da. O regime p raticado nesse m om en to é, de fato, atípico, pois é o único re

gime de assembléia no qual foi realizada uma real“fusão dos poderes”. De on

de provém a tendência, errônea, como vimos, de considerar que o regime de

assembléia é sempre um regime de fusão dos poderes.

10 Cf. supra, no item 2, sobre o princípio da separação dos poderes.

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9 8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

A conce ntração efetiva dos poderes du ran te esse períod o era justificada

de duas formas. De um lado, a Convenção era uma assembléia constituinte,

e no vazio institucional, os poderes que ainda não tinham sido divididos es-

tavam ainda em suas mãos e deveriam de fato ser exercidos. De outro lado, a

França estava em um a situação de perigo extremo e era possível almejar en

frentá-lo apenas por meios excepcionais. A Conven ção con siderou, porta nto,

que lhe cabia exercer a ditadura no sentido romano do termo.

Coloca-se, às vezes, na categoria dos regimes de assembléia aquele que

estava previsto pela constituição francesa de 1 7 9 3 , adotado pela Convenção

 Nacional. É um erro entender que essa const ituição inst ituía uma fusão dos p o deres, pois o constituinte de 93  proclamava ser simpático à separação dos pode

res, quando, de fato, promovia a separação ( T r o p e r , 1 9 8 0 ) . Se em con trapa r

tida “regime de assembléia” significa apenas p reem inência de um a assembléia

sobre ou tros órgãos, entã o a qualificação está correta.

Existe um terceiro regime que os autores colocam ou não nessa categoria,

de acordo com os critérios empregados. É o da Suíça. Qu ando nos atemos ao tex

to da constituição, podemos constatar que a Assembléia Federal é o órgão pre

 ponderante, nota damente porque ao mesmo te mpo que é ela que designa e controla o Conselho Federal, este, em contrapartida, é independente. De acordo com

o que se atribui a um ou a outro traço, dir-se-á que ela organiza um regime de

assembléia ou que ela promove u ma variedade de separação dos poderes, den o

minada regime “diretorial” (L a u v a u x , 1998). Se é a prática que se examina, então,

 pode-se dizer que a consti tuição helvécia não pertence de fo rma alguma a essa

categoria e que é de fato o Conselho Federal o órgão preponderante, o que leva

ria a classificá-lo ou nos sistemas de separação dos poderes e até de separação rí

gida, ou na categoria seguinte, a dos sistemas com preeminência do governo.Cha mam os, às vezes, de regimes de assembléia os sistemas par lam ent a

res, concebidos como sistemas de equilíbrio, mas nos quais uma assembléia

tem, na prática, um a prep onderância muito grande, com o p or exemplo a Ter

ceira ou a Qua rta Repúblicas da França.

Finalmente, deveríamos, evidentemente, en con trar nessa categoria os re

gimes dos países socialistas, cujas constituições rejeitavam o princíp io “burguês”

da separação dos poderes e atribuíam efetivamente a preeminência às assem

 bléias. No entanto , a maio ria dos autores repudia essa classificação, porque a

verdadeira sede do po der evidentemente nunca residia nas assembléias, de for

ma que alguns consideram se tratar de um caso de preeminência d o governo.

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0 Po d e r 99

b) Preeminência do governo

Com o n o caso anterior, a doutri na coloca em uma mes ma classe todos os

tipos de regimes nos quais o governo ou, mais freqüentemente, o chefe de Es

tado (rei ou presidente) dispõe dos poderes mais importantes. Essa pre eminê n

cia pode resultar dos mais diversos fatores: os textos constitucionais, o sistema

dos partidos, a tradição ou a força militar e compreende-se que essa categoria

é significativamente heterogênea. Assim, existem, segundo alguns autores, dife

rentes regimes fascistas, as ditaduras militares, os regimes de partido único, as

monarquias tradicionais ou simplesmente sistemas, como o da Quinta Repú blica Francesa, em que se consta ta que o Presidente é a figura central.

Essa diversidade é causa de algumas confusões sobre os nom es da dos a

esses regimes: “preponderância do executivo” ou do “órgão governamental”

ou “presidencialismo”. O primeiro não convém porque justamente a prepon

derância desses órgãos só é possível desde que eles não sejam órgãos de exe

cução; o segundo, porque se o órgão preponderante é um presidente, não faz

 parte necessariamente do governo, que, em várias const ituições, é considera

do u m órgão distinto; o terceiro porque o órgão prepo nderan te nem sempreé um presidente e esse termo pode dar a entender que esses regimes são ne

cessariamente deformaçõ es do regime presidencial.

2. Equilíbrio dos órgãos: as moda lidades da separação dos poderes

Os constitucionalistas franceses admitem que o equilíbrio pode ser pro

movido de acordo com duas modalidades diferentes, o regime parlamentar e

o regime presidencial, às vezes caracterizados, respectivamente, co mo um a se

 paraç ão flexível ou colaboração dos poderes, ou como uma separação rígida.

a) O regime parlam entar 

1) Estrutura do regime parlamentar 

É a dou trina que, no século XIX, construiu um modelo de regime par

lamentar. Na versão mais corrente, existem três órgãos, um Parlamento

(composto de uma ou de duas assembléias), um chefe de Estado, um gover

no ou gabinete. Esses órgãos são especializados: o Par lame nto exercerá a fun-

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100 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

cão legislativa, enqu anto que a função executiva será atribu ída de acord o com

o caso, seja ao conjunto chefe de Estado-gabinete, seja somente ao gabinete.

O que caracteriza o regime parlamentar é a maneira como estão organizadas

as relações entre esses órgãos, que dispõem de meios de ação recíprocos: o

Parlamento, ou pelo m enos u m a das assembléias parlamentares, pode impo r 

a demissão ao gabinete - é a responsabilidade política o Parlamento, ou

mais freqüentemente uma das câmaras do Parlamento, pode ser dissolvida

 pe lo chefe de Es tado ou pe lo gabine te .

Constata-se, entretanto, um a divergência doutrin ai: alguns autores co n

sideram que o único critério realmente determinante é a responsabilidade polí tica do governo. Eles vêem nessa responsabil idade um traço essencial, de

modo que um regime que compreenderia a responsabilidade política, mas

não o direito de dissolução, deveria de qualquer forma, ser considerado, se

gun do eles, com o parlam entar. Eles definem, porta nto, o regime parla me ntar 

como aquele no qual os ministros são politicamente responsáveis.

Outros autores sustentam, ao contrário, que o verdadeiro regime parla

mentar resulta da combinação dos dois critérios: é necessário que a respon

sabilidade política e o direito de dissolução estejam ambos presentes. Nessecaso, sustentam , qua nd o o executivo não dispõe do direito de dissolução, ele

fica à mercê do po der legislativo, que se torna órgã o d om inan te, e assim ap re

senta-se não um regime parlamentar, mas um regime de assembléia.

2) Técnica do regime parlam entar, a responsabilidade política do 

gabinete, definição

 Na linguagem do di re ito, a re sp onsabil idade no sentid o amplo é a obrigação de arcar com as conseqüências de alguns atos. Em se tratando dos mi

nistros, distinguem-se hoje três formas de responsabilidade: penal, civil e po

lítica. É necessário ressaltar um ponto central: a distinção não diz respeito à

natureza dos atos que dã o lugar à responsabilidade ou ao objetivo 110 qual ela

 pode estar engajada, pois, tratando-se de min is tro s, os atos e os obje tivos são

sempre políticos. Essa distinção se aplica apenas ao processo empregado e ao

tipo de sanção que pode ser imposta.

A responsabilidade penal é aquela que é praticada por intermédio de

um processo semelhante ao que está em vigor nas jurisdições criminais. Ela

com por ta n otad am ente a distinção de uma fase de acusação e de uma fase de

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0 Po d e r 101

 julgamento e a possibil idade dada ao acusado de apresentar sua defesa. Ela da

lugar a uma sanção, que é uma sanção penal, ou seja, uma pena.

A responsabilidade civil é aquela que é praticada mais freqüentemente

diante das jurisdições civis ordinárias, de acordo com o processo civil ordi

nário e que dá lugar a um a sanção civil, a condena ção ao p agam ento de uma

indenização.

A responsabilidade política é aquela que é praticada de acordo co m u m

 processo puramente polí tico, ou seja, ela dá lugar a um simples v oto por uma

assembléia. A sanção é, nesse caso, política em si mesma, é a obrigação de p e

dir demissão. A responsabilidade política se apresenta, porta nto, c om o o p o der, de que dispõe uma assembléia, de forçar um ministro a pedir demissão

ou, em outras palavras, como um poder de revogação. Ela pode ser indivi

dual, qua ndo exercida contra um ou mais ministros, mas não contra o con

 junto do governo, ou coletiva - é o caso mais fre qüente - quando os minis

tros são solidários e quando um voto hostil da assembléia leva o chefe do

governo a apresentar a demissão da totalidade da equipe.

Emprego da responsabilidade. - A responsabilidade pode ser empregadaou realizada, seja pela iniciativa de um parla mentar , seja pela iniciativa do ga

 binete .

 No primeiro caso, um ou vár ios parlamentares propõem a seus colegas

o voto de um texto, designado de forma variável, por exemplo, “moção de

censura” ou de “desconfiança”. Quando esse texto é adotado, o governo tem a

obrigação de apresentar a demissão. Diz-se que ele foi “derrubado”.

A responsabilidade pode também ser empregada pela iniciativa do gabi

nete, quando este submete um texto, um projeto de lei, por exemplo, ao votode uma assembléia e ameaça pedir demissão, se o texto não for adotado. Essa

técnica é chamada de “questão de confiança”, porque o governo solicita à As

sembléia que manifeste sua confiança mediante a adoção de um texto, que ele

 julga indispensável à continuação de sua política. A questão de confiança é e m

 pregada como um modo de pressão, quando o gabinete cons idera que o texto

que ele deposita não seria adotado espontaneam ente. Se a ameaça não o btém

sucesso, ou seja, se a assembléia rejeita o texto, então o governo deve conside

rar que ela manifestou sua desconfiança. Ele é obrigado a pedi r demissão.

Algumas constituições, principalmente desde a Primeira Guerra Mun

dial, tentaram evitar as conseqüências qu e provocaria, para a estabilidade do

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102 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

governo, o empre go mu ito fácil e muito freqü ente da responsabilidade. Esti

 pula ram-se, assim, condições ao depósito, à discussão ou ao vo to de um a m o

ção de censura. Exige-se que o texto seja proposto por um número mínimo

de parlamentares, que u m dete rmi nad o prazo separe o depósito e a discussão

ou ainda que se determ inem modalidades particulares para o voto, no intui

to de evitar que uma moção de censura seja facilmente adotada. Da mesma

forma, pode-se s ubm eter a recusa da confiança a certas condições, po r exem

 plo, no caso de uma maioria qualificada  (uma maioria mais importante que

a maioria simples) se pro nu nc iar contra o governo. O regime parla me nta r es

tipulado po r essas constituições é cha ma do “ parla menta rism o racional izado”

A dissolução  é a decisão mediante a qual se põe um fim nos poderes de

um a assembléia antes da expiração do m and ado de seus memb ros (Alber t in i ,

1978; Lauvaux, 1 9 8 3 ) .

O direito de dissolução pertence, conforme o caso, ao chefe de Estado

ou ao governo. Ela é aplicada seja a uma câmara apenas, que é o caso mais

freqüente, seja a duas (com o na Itália). As teorias do regime parla me ntar a tri

 buem à disso lução vár ias funções, muito di fe rentes, e, inclusive, parcialmente conciliáveis. Ela pode ser concebida, primeiramente, como um meio do

Chefe de Estado de se livrar de u ma câm ara hostil, no in tuito de que as elei

ções tragam um a nova maioria. Em segund o lugar, ela pode ser enten dida co

mo um meio simétrico da responsabilidade política do gabinete, permitindo

 promover o equil íb rio de uma câmara, notadamente a câmara baixa. Em te r

ceiro lugar, considera-se, às vezes, que o regime par lam enta r dá lugar a co n

flitos entre a câmara e o gabinete ou entre a câmara e o chefe de Estado. Em

ambos os casos, esse conflito se traduz pela aplicação da responsabilidade dogabinete, e a dissolução é o meio de provocar a arbitragem do corpo eleito

ral, que poderá ou renovar a maioria hostil ou, ao contrário, substituir essa

maioria hostil por outra que apoiará o governo. Em quarto lugar, uma as

sembléia p ode ser dividida em vários grupos, com vistas totalmente incon ci

liáveis, a tal pon to que pareceria impossível fo rm ar um a m aior ia suscetível de

apoiar  o governo, ou seja, de votar os textos que ele necessita. Tal assembléia

é denominada ingovernável e a dissolução pode parecer um meio de operar 

um a redistribu ição das cartas, na esperança de qu e as eleições criarão as con

dições para que se forme uma maioria. Em quinto lugar, pode-se considerar 

que a ameaça da dissolução é suscetível de dissuadir os parlamentares a rejei

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0 Po d e r 10 3

tar a confiança ao governo, porque eles sempre po dem temer não enco ntrar 

seu lugar nas eleições legislativas.

A constituição pode submeter a dissolução a determinadas condições.

De acordo com a função que se lhe atribui, pode-se torná-la mais difícil ou

ao contrário mais fácil, torná-la inclusive automática, autorizar o exercício do

direito de dissolução em algumas circunstâncias apenas, fixar prazos nos

quais devem ocorrer as eleições, determinar as modalidades de exercício do

 poder executivo quando a disso lução foi pronunciada etc.

3) Nascimento do regime parlamentar 

Já ressaltamos que essa categoria foi construída pela doutrina, que se

fundamentou em um pequeno número de exemplos históricos, principal

mente na Inglaterra e na França da monarquia constitucional. Em ambos os

casos, o regime não resulta da aplicação de uma constituição, mas de uma

transformação das instituições, teorizada posteriormente. O elemento essen

cial foi, tant o na França com o na Inglaterra, o nascim ento da responsabilida

de política, que se efetivou de acordo com dua s m odalidad es diferentes. Na Inglate rra, ela resulta da transformação da re sponsab il idade penal.

Co mo vimos, a responsabilidade dos ministros sempre foi política, mas ela era

exercida de acordo com um processo penal: os ministros po diam ser acusados

 pela Câmara dos Comuns e eram, então, ju lgados pela Câmara dos Lordes. No

entanto, co mo os crimes pelos quais os ministros podia m ser acusados e jul

gados não eram definidos por nenhum texto e tampouco as penas aplicáveis,

as câmaras dispunham de um poder totalmente arbitrário e podiam mandar 

cond enar os ministros a qualq uer pena, po r qualqu er ato que elas decidissemconsiderar como crime, por exemplo, por uma política julgada ruim. É com

 preensível que a partir da meta de do século XVIII, bastava a simples ameaça

de exercer a acusação para provocar a demissão dos ministros e, no final do

século, nem era mais necessário expressar essa ameaça, e um único voto de

desconfiança era suficiente. Nasceu a responsabilidade política. A França pas

sou po r u ma evolução semelhante, du ran te o prim eiro semestre de 1792.

 No entanto, foi um processo difer en te que se efet ivou durante a m onar

quia p arlam enta r francesa. A via inglesa não era praticável porq ue os minis

tros poderiam ser acusados pela câmara do s representantes apenas “por trai

ção ou concussão” e sobretudo porque a charte previa que “leis particulares

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10 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

especificarão essa natureza de delito e determinarão os encaminhamentos”.

Com o essas leis nunc a foram votadas, a maioria da Câm ara ra pidam ente des

cobriu outro meio, ainda mais simples, de obrigar os ministros a pedir de

missão: a “recusa de concurso”, ou seja, a recusa em votar as leis e especial

mente a lei de finanças, o orçamento. Diante da ameaça de uma recusa de

concurso, os ministros não po deriam evidentemente perma necer na função.

4) O funciona m ento do regime parlamentar 

A doutrina do direito constitucional tem o hábito de distinguir doismo dos de func iona me nto do regime parla mentar, que, aliás, ela apresenta, às

vezes, como variantes do parlamentarismo, o parlamentarismo dualista e o

 parlamentarismo monís tico.

O pa rlamenta rismo dualista é definido como um sistema no qual o go

verno responde diante de duas autoridades, à câma ra ou às câmaras, de um

lado, cio chefe de Estado, de outro. O exemplo mais importante é a monar

quia de Julho na França. O rei herdava da charte o direito de revogá-lo e a câ

mara tinha o mesmo poder graças à ameaça da recusa de concurso. O ministério só poderia, portanto, permanecer na função enquanto conservasse a

confiança do rei e da câmara. A conseqüência mais importante é que a no

meação do ministro e o conteúdo de sua política poderiam ser apenas o re

sultado de compromisso entre as duas autoridades das quais dependia o mi

nistério e que prom ovia m, assim, o equilíbrio.

Esse sistema é obviamente instável. Se a oposição é demasiadamente

forte entre o rei e a câmara, o co mpro misso não p ode ser realizado e o min is

tério cai. A dissolução nem sempre permite colocar um fim no conflito, poisse os eleitores demitem a mesm a m aioria, o rei deve ou corr er o risco de re

corr er à força, com o Charles X em 1830, ou ceder. Mas se ele ceder, ou seja,

se ele aceitar no me ar e m an ter u m ministério cuja política ele desaprova, is

so não mais depen de da câmara , e, assim, tem-se o sistema monístico.

O parlamentarism o monístico é um sistema no qual o governo depende de

apenas uma única autoridade, a câmara, que pode revogá-lo a qualquer mo

mento e que, portan to, de term ina a composição e a política. Na prática, isso sig

nifica que essa composição e essa política refletem aquelas da maioria. No en

tanto, esse sistema não pede necessariamente a predominância da câmara. Duas

variações podem ser encontradas, as quais depen dem do sistema dos partidos.

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0 Po d e r 105

 Na primeira variação, existem vários parti dos no seio da assembléia , de

mo do q ue a constituição e a manuten ção do governo de pendem sempre da es

tabilidade de uma coligação. Existe a predominância da câmara, ou mais fre

qüentemente dos partidos. É a situcição francesa durante a Terceira e Quarta

Repúblicas. É a da Itália hoje, denom inada, às vezes, um a “partido cracia”.

 Na segunda variação do parla mentarismo moníst ico, existe um parti do

majoritário homogêneo, estável e submisso à câmara, de modo que o governo

é formado pela equipe dirigente desse partido. É, então, o gabinete que exerce

a predominância, pois é ele que exerce o p ode r sobre a maioria. Ele está segu

ro de pe rman ecer na função e de conseguir a aceitação de seus projetos de lei.É, a grosso modo, a situação da Inglaterra desde a metade do século XIX.

b) O regime presidencial

O regime presidencial é descrito pela dou trina principalmente - pode

ríamos me smo dizer quase que exclusivamente - com base no exemplo dos

Estados Unido s e pela oposição ao regime parlamentar.

1) Estrutura do regime presidencial

 Nos Estados Unidos, a função legislativa é exercida por um Congresso,

composto por duas assembléias, pela Câmara dos Representantes e pelo Se

nado, e a função executiva pelo presidente. O presidente não é escolhido p e

lo Congresso, mas eleito pelo sufrágio universal. Ele nomeia ministros com o

consentimento do Senado e os revoga livremente. Ele não pode dissolver as

câmaras. Essas não podem revogar nem o Presidente nem os ministros. Dessa forma, concluímos, contrariamente ao que pode ocorrer em um regime

 parlamentar, cada um a dessas autoridades exerce sua fu nção com toda inde

 pendência, mas ela exerce apenas essa função.

Do pon to de vista da divisão do poder, considera-se geralmente que, em tal

sistema, o órgão mais importante é o Presidente, mas nem por isso o Congresso

é rebaixado e impedido de exercer seu poder legislativo de form a plena. Por isso

é freqüente reclamar, em outros países além dos Estados Unidos, na França, por 

exemplo, a instauração de um regime presidencial, quando se intenta ampliar o

 papel do chefe de Estado, ou mesm o o contrário, quando se quer restaurar as

 prerrogativas de um parl am ento considerado demasiadamente frágil.

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106 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

2) Variações doutriná rias do modelo presidencial

Part indo da noçã o de regime presidencial, assim cons truída baseada no

exemplo americano, não muito praticada alhures, descrevem-se, às vezes, duas

outras noções: o regime presidencial e o regime semipresidencial.

A primeira categoria agrupa um núm ero muito grande de regimes, na

verdade bem variados, existentes em sua ma ior parte n o terceiro m un do, ins

 pirados mais ou menos no si stema americano, mas nos quais o Presidente

dispõe de direito ou efetivamente de poderes mais impo rtante s ainda que nos

Estados Unidos (MOULIN, 1978).Os regimes semipresidenciais são aqueles nos quais o Presidente é elei

to pelo sufrágio universal, mas nos quais existe também um ministério res

 ponsável , como nos regimes parlamenta res ( D u v e r g e r , 1986).

3) O critério do regime presidencial

Qu and o os autores procuram não mais apenas descrever em linhas ge

rais o regime americano, mas erigi-lo em tipo, eles devem indicar o caráter significativo que lhes permite, primeiramente, identificar esse regime e, em

seguida, compree nder seu funcionam ento.

Vários são aqueles que o caracterizam pela separação rígida dos pode

res. Na verdade, as duas regras que cola boram para o pr incípio da separação

dos poderes, como ele é apresentado pela doutrina tradicional, ou seja, a es

 pecial ização e a independência , também não são respei tadas. Na verdade, até

existem no sistema americano numerosas e importantes exceções ao princí

 pio da especialização. É dessa maneira que o Presiden te, ti tu la r do poder executivo, colabora de forma determinante na função legislativa mediante um

direito de veto parcial. O Congresso, por sua vez, participa da função execu

tiva de várias maneiras: pelo voto do o rçam ento, graças ao papel das comis

sões. Além disso, o Senado deve aprovar os trata dos pela m aioria de dois ter

ços, e a nomeação dos ministros e dos altos cargos, pela maioria simples.

Em contrapartida, a independência é garantida de forma rigorosa: os

dois g rupo s de órgãos, executivo e legislativo, são designados se parad amen te

(o Presidente, como o Congresso, é eleito pelo povo, de acordo com um sis

tema semelhante ao sufrágio universal direto); eles não dispõem de meios

mútuos de ação, característicos do regime parlamentar: o Presidente e seus

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0 Po d e r 107

ministros não são politicamente responsáveis: o Presidente não pode dissol

ver o Congresso, nem mesm o u ma única Câmara.

Assim, cada órgão parece dispor de uma autonomia considerável no

exercício da função. O executivo porque ele está livre da revogação pelas câ

maras, as câmaras, porque o presidente dispõe de po ucos meios de influir na

deliberação legislativa. A expressão “separação dos poderes”, portanto, não é

muito conveniente para caracterizar o regime, porque nele se encontra so

men te u ma das regras exigidas pelo princípio.

Parece, então, mais simples falar apenas de ind epen dência ou, com o fa

zem alguns autores, “isolamento” dos poderes. Na verdade, essas expressõesnão são muito satisfatórias e isso por duas razões.

A primeira é que, apesar da ausência de responsabilidade e de dissolução, a

independência está longe de ser garantida. Se, de fato, a independência é a facul

dade de exercer uma função, sem nenhuma ingerência por parte de outra auto

ridade, é necessário reconhecer que essas ingerências são constantes: as câmaras

dispõem de meios múltiplos, constitucionais e não-constitucionais (por exem

 plo, financeiros) de influir na polít ica do Presidente; o Presidente pode , tam bém ,

influir nas discussões legislativas mediante procedimentos constitucionais (ameaça do veto) ou não-constitucionais (o prestígio que ele obtém de sua eleição por 

toda a nação, seu papel em um dos grandes partidos, as diversas ajudas com as

quais ele pode beneficiar a circunscrição eleitoral de um ou de outro me mbro do

Congresso etc.). Assim, certamente é falso dizer que cada um dos órgãos pode fa

zer o que bem entender, no exercício de suas funções. É exatamente o contrário,

ele deve constantemente levar em conta o utros e, aliás, foi bem isso que deseja

ram os constituintes americanos, o que se expressa pela fórmula dos checks and  

balances: os poderes não são “independentes”; cada um pode imped ir ou frear aação do outro (check ) e, assim, promover-lhe o equilíbrio (balance).

A segunda razão é que, concretamente, o Presidente não pode, de fato,

dissolver as câmaras; em contrapartida, as câmaras podem muito bem, mes

mo na ausência de responsabilidade política, forçar o Presidente ou seus mi

nistros a pedir demissão. Elas podem, com efeito, em caso de um importante

desacordo político, aplicar sua responsabilidade penal (ou apenas ameaçar 

fazer isso) ou recusar o voto do orça mento (a recusa de concurso). O p rim ei ro

desses procedim entos foi usado nos Estados Unidos contr a o Presidente Nixon

em 1974. Graças ao segundo, o regime “presidencial” chileno funcio nou no sé

culo XIX como um regime parlamentar  (M o u l i n , 1978, p. 330 e s.).

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108 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Definitivamente, a maneira mais segura de caracterizar o regime presi

dencial é, portan to, referir-se ao m od o de eleição do Presidente e à ausência

de responsabilidade política. Isso, entretanto, não coloca a oposição entre os

regimes parlamentar e presidencial livre de qualquer crítica.

B. Crítica

Categorização e classificação. - A d is t inção en t r e o r eg ime par l am enta r e

o regime presidencial é a mais f reqüen tem ente em pregad a - a liás , essas ex

 pressões fazem parte do vocabulár io consti tuc iona l usual - e é a ela que se faz

referência quando se quest iona a natureza de um regime pol í t ico , como é o

caso da Quinta República. Ela, no entanto, apresenta defei tos muito graves

(Eisenmann, 1968; M o u l i n , 1978).

Devem ser distinguidas de forma cautelosa duas operações intelectuais:

a categorização e a classificação. A categorização consiste em determinar de

forma abstrata categorias o u classes, indicand o as características ou qua lida

des a serem apresentadas por todos os objetos ordenados em cada classe.

Qu alqu er objeto, um a constituição p or exemplo, apresenta várias qualidades:

ela pode ser escrita, comportar um número ímpar de artigos, ter sido redigi

da antes de 1991, men cion ar a cor da bandeira, instituir u m rei etc. Catego

rizar as constituições é, antes de tudo, escolher uma dessas qualidades, de tal

m od o que se possa colocar em u m a classe todas aquelas que apresentem uma

determin ada qualidade e em o utra todas as que não a apresentem ou, em ou

tras palavras, que apresentem a qualidade oposta. Essa qualidade, que serve

 para constituir as classes, é o “crit ério ” da categorização. A classificação é a penas a atribuição de um objeto a um a classe.

Essa distinção é importante: uma classificação ruim não afeta a quali

dade de uma categorização. Assim, é possível que se tenha falsamente consi

derado um regime como parlamentar, em bora ele desconheça a responsabi

lidade política. Obviamente, isso não quer dizer que a oposição entre os

regimes parlam enta r e presidencial seja ruim. N ão se pode, porta nto, criticar 

um a categorização, alegando qu e de term inad as classificações seriam ruins. É

necessário examiná-la em si mesma. Em contrapartida, uma categorização éruim qu an do ela imped e um a classificação racional, seja porque seria imp os

sível classificar todos os objetos, seja po rqu e d eterm inad os objetos perte nce

riam a duas classes simultanea men te.

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0 Po d e r 109

Valor lógico cia categorização. - Uma categorização pode apresentar de

feitos lógicos e defeitos científicos. Os defeitos lógicos dizem respeito, primei

ramente , aos critérios. A princípio, é possível que as duas classes estejam cons

tituídas mediante o auxílio de critérios que não se opõem. Esse seria o caso,

 por exemplo, se categorizássem os as cidades em “cidades com mais de 100 mil

hab itantes” e “cidades localizadas no litoral”, porque, po r u m lado, algumas ci

dades não poderiam ser categorizadas (as com menos de 100 mil habitantes e

que não estão localizadas no litoral), enquanto outras satisfazem aos dois cri

térios e pertencem, portanto, às duas categorias (as que têm mais de 100 mil

habitantes e que estão situadas no litoral). Em uma de suas versões, a categorização dos regimes políticos apresenta um defeito: se o regime parlamentar é

aquele no qual existe a responsabilidade política e o regime presidencial é aqu e

le no qua l o pre sidente é eleito pelo sufrágio universal, alguns regimes que não

com portam nem um nem outro elemento, como alguns sistemas do terceiro

mun do, não pod em ser de forma alguma categorizados, enqu anto outros, como

a Quinta República, pertencem às duas categorias.

Em outros casos, ainda, chegaríamos a uma classificação esdrúxula. As

sim, em Israel, durante um curto período e até a reforma de 2001, era o Primeiro-ministro e não o Presidente da República que era eleito pelo sufrágio

universal direto, ao m esmo tempo em que continuava politicamente respo n

sável perante a assembléia ( K l e i n , 1997). Aplicando-se estritamente o crité

rio da responsabilidade, seria necessário inserir o sistema dentre os regimes

 parl amenta re s puros, em bora a intr odução desse m odo de designação do Pri

me iro-m inistro tivesse p or objetivo especificamente distanciar as instituições

 polí ticas do funcio nam ento habitual do modelo parlamenta r.

Do mesm o m odo, em outra versão, o critério é a separação dos poderes.Mas sabe-se que o princípio comporta duas regras, a especialização e a inde

 pendência , de tal m odo que o regime parla menta r é aquele no qual é respei

tada a regra da especialização, mas não aquela da independência (porque os

órgãos são mutuamente dependentes), enquanto que o regime presidencial é

aquele no qual é aplicada a regra da independência, mas não a da especializa

ção. Os dois critérios não se opõ em e há regimes que com por tam especialização

e independência e outros que não comp ortam nem um nem outro.

É tam bém possível que o critério da categorização seja dem asiad am en

te vago e que seja difícil reconhecer sua presença num objeto. Em sua versão

mais difundida, o critério é extraído da responsabilidade política. No entan

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110 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

to, esta não é muito fácil de ser identificada: pode-se, certamente, dizer que é

 poder de uma câmara pro vocar a demissão do gabinete, mas sabe-se que, em

determinadas condições políticas, ela sempre pode adquiri-lo, ainda que ele

não esteja inscrito na constituição, com o é o caso da França, dura nte as chartes. 

 Não há, portanto , regime representa tivo que não seja suscetível de to rnar-se

 parlamenta r. Assim, no Chile , onde a consti tu ição imitava, no século XIX, a

dos Estados Unidos e onde o regime era dito “presidencial”, os m inistros to r

naram-se politicamente responsáveis. Dir-se-á, então, que, se o exercício des

se po der não é efetivo, o regime é apenas poten cialmen te parlam entar? T oda

via, existem, de fato, sistemas em que esse direito nã o é contestado , mas on deele nunca é utilizado, porque o gabinete dispõe sempre de uma maioria e a

Grã-Bretanha, a esse respeito, não é um regime parlamentar. Sustentou-se,

até de forma bem séria, que se tratava “de fato” de um regime presidencial

(M a r x , 1969).

Valor científico da categorização. - Considerando os fatos expostos, não

 basta que um a categorização apresente qualidades lógicas. É preciso, ainda, que

o critério escolhido seja significativo, ou seja, que sua presença seja uma indicação cientificamente interessante. Uma categorização das constituições, con

siderando que elas comportam um número par ou ímpar de artigos, seria lo

gicamente irreprovável. Ela não apresentaria, entretan to, ne nh um interesse.

Para apresenta r interesse científico, um a categorização deve ser capaz de

fazer progredir o conhecimento, permitindo revelar algum fenômeno desco

nhecido. Isso é possível qu and o os objetos ordenado s em um a mesm a catego

ria, já que possuem uma mesma característica aparente (o critério), possuem

também uma outra característica, esta mais difícil de ser percebida, mas sem pre associada ao primeiro, cu ja presença poderá ser descober ta , assim que se

tenha constatado a característica do critério da categorização. É dessa forma

que procede, por exemplo, a medicina, quando ela categoriza as doenças pelo

conjunto de sintomas, porque ela pressupõe que a esse conjunto de sintomas

corresponda uma mesma causa e que, a partir dela, seja possível prescrever 

um tratamen to. A classificação permite um a ec onom ia intelectual, porq ue le

va a conhecer imediatamente - ou de qualquer m odo investigar - a causa.

 No entanto , no que se refere aos regimes pol íticos , a classificação de um

determinado regime em uma ou outra das duas categorias, parlamentar e

 presidencial, não pode trazer nenhum conhecim ento novo, porque não exis

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0 Po d e r 111

te nenhum elo entre a característica aparente que conduz à classificação e

um a característica desconhecida. Poderíam os ima ginar que ao critério da ca

tegorização, o direito da assembléia de derrubar o governo, corresponderia

um certo m odo de funcionam ento (o governo seria efetivamente derrub ado

de tempos em tempos) ou ainda que a assembléia seria o órgão politicamen

te predominante. Uma análise jurídica muito simples forneceria assim uma

informação política complexa. Mas, na realidade, tal elo não existe e não po

de existir, pois o direito nunca é a “causa” de um comportamento político,

nem a política um “sintoma” do direito. Uma regra jurídica pode ser ou não

aplicada e trata-se de um a regra de habilitação, com o é o caso mais freq üente no direito constitucional, a habilitação pode ser emprega da ou não, de m o

do que o conhecimento da regra não pode informar sobre as condutas que

ocorre rão realmente. Assim, por mais que se saiba que existe um a respon sa

 bil idade polí tica , disso não se pode ti ra r nenhum a conclusão sobre a m anei

ra como o regime funcionará.

 Na verdade, a categorização não é de fato usada com objet ivo científico,

mas com objetivo normativo. Qu ando se preconiza uma refo rma constitucional

em um regime que não se assemelha nem totalmente ao regime parlamentar,nem ao regime presidencial, pode ser proveitoso sustentar que ele funcionará

corretamente apenas se obedecer à lógica de um regime puro. Assim, lêem-se

na França, de tempos em tempos, declarações de políticos, que sustentam que

o regime francês deveria tornar-se um “verdadeiro” regime presidencial ou,

mais raramen te, u m “verdadeiro” regime parlamentar. O que eles preconizam,

na verdade, é, no primeiro caso, simplesmente que se suprima a responsabili

dade política e a dissolução, e no segundo, que se volte à eleição do Presidente

da República pelo sufrágio universal, e eles procuram justificar suas proposições referindo-se à categorização. Mas os “verdadeiros” regimes são apenas

aqueles que a do utrin a idealizou e não existe nenh um a razão válida para tor

nar os regimes reais conformes a construçõe s do utrinárias.

É necessário concluir que a categorização proposta pela maioria da

do utrin a n ão ap resenta n em valor lógico, nem interesse científico.

Para definições lexicais. - Não se pod e evitar uma constatação. Quais

quer que sejam os defeitos científicos e lógicos da classificação, as expressões

regime parlamentar e regime presidencial integram efetivamente o vocabulá

rio usual tanto dos juristas como dos políticos. É que, como acontece fre

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112 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

qüe ntem ente na linguagem d o direito, a função dessas palavras não é apenas

designar categorias opostas de sistemas políticos, tampouco objetos facil

me nte identificáveis. A linguagem da ciência do direito, com o a do dire ito em

si mesm o e com o a linguagem c om um , se satisfaz perfeitamente com termos

vagos. Aqueles que conhecem essa linguagem conhecem o sentido desses ter

mos, ou seja, mesmo quando eles não podem lhes dar uma definição precisa

ou contrapor esses termos a outros, eles sabem quando e como é convenien

te empregá-los na m aioria das situações. Esses term os n ão pod em ser objeto

de u ma definição real, mas ap enas de um a definição lexical pela qual se ind i

ca em qual sentido eles são habitualmente empregados.É exatamente o q ue oc orre com expressões de que se fala. Q ua nd o se fa

la de um país, que ele possui um sistema parlamentar, não se pretende reve

lar tud o sobre a realidade desse país, mas cada um com preen de qu e existe em

seu território uma forma qualquer de responsabilideule política do ministé

rio. Essa indicação nada diz sobre a situação real do poder, nem sobre o fun

cionamento efetivo do sistema, mas apenas sobre a existência de uma regra.

Da mesma forma, dizer que se introduzirá o regime parlamentar é dizer que

se introdu zirá u m a regra segund o a qual o gabinete é obriga do a pedir dem issão por solicitação das câmaras.

Dizer que um regime é presidencial é dizer que existe um chefe de Es

tado eleito pelo sufrágio universal, que ele não é politicamente responsável e

que ele não pode dissolver as câmaras. Mais uma vez, mesmo que não se te

nha co mun icado inform ação sobre o funcion amen to efetivo do sistema, nem

se tenha descartado qualquer possibilidade da câmara provocar por um meio

qualquer a demissão do presidente ou dos ministros, assinalou-se a existên

cia de duas ou três regras simples.Evidentemente, será impossível classificar todos os regimes em uma ou

ou tra categoria, já que elas não se opõe m. Tam pouc o se sabe, quan do um re

gime é dito parlamentar, se está se descrevendo uma estrutura ou um modo

de funcionamento, uma regra propriamente jurídica ou o resultado de uma

com binaçã o de forças. Às vezes, será até difícil dizer se um de term ina do regi

me é ou não parlam entar, po rque não será possível saber com certeza se o seu

governo é politicamen te responsável. Essas definições não decorrem , po rta n

to, de um a classificação lógica ou cientificam ente satisfatória. No en tanto , es

ses termos são efetivamente empregados e são úteis, como instrumentos que

 permite m um a comunicação ru dim enta r.

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0 Po d e r 113

Seção3

Astécnicasdeexercício do poder

O Estado não é um ente físico, mas uma entidade abstrata. É o nome

que se dá a essa entidade à qual são imputados os atos de determinados ho

mens, os governantes.

Essa imputação é necessária. É ela que permite distinguir, no conjunto

dos atos que executam esses hom ens, aqueles executados em seu p róp rio b e

nefício, para satisfazer suas necessidades pessoais, com cujas conseqüências

financeiras eles devem arcar, e aqueles que eles adota m , pelo m enos a p rincí pio, no interesse comum . A im puta ção te m, portanto, conseqüência s patri

moniais.

O q ue a justifica é precisamen te o fato de os governantes agirem o u se

rem cham ados a agir com vistas à coletividade. Diz-se, então, que eles cu m

 pre m as funções do Estado.

Duas questões devem, portanto, ser examinadas: quais são essas fun

ções? Como esses homens são designados?

Subseção 1

As funçõesdoEstado

 Definição  (E i s e n m a n n , 1964). - A expressão funções do Estado, como o

termo Estado, é o produto de uma construção intelectual. Na verdade, po

dem-se observar apenas atos particulares, em nú m ero mu ito grande, executa

dos pelos governantes por conta do Estado. Mas freqüentemente é necessário,notad ame nte qua ndo se trata de um constituinte atribuir competências, racio

cinar não sobre u m ou outro ato particular, mas sobre categorias de atos.

A teoria das funções é, portanto, o produto de uma categorização dos

atos. As funções não são mais do que categorias de atos. Poder-se-ia nom ear 

essas categorias mais como atividades do que como funções, mas este último

termo permite ressaltar que a execução dos atos é necessária para um bom

funcionamento do conjunto do sistema.

Considerando isso, há duas maneiras de conceber as atividades ou fun

ções do Estado; ou seja, duas maneiras de categorizar os atos. Pode-se, pri

meiramente, categorizá-los de acordo com seus fins. Eles são, de fato, execu

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11 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

tados com vistas ao Estado, porque este preenche o conjunto de missões re

lativas à sociedade civil: a natureza e a extensão dessas missões são natural

mente variáveis de acordo com as épocas e as ideologias. Todos os Estados

têm pelo me nos algum as atribuições: con duz ir as relações internacionais, de

fender o território, promover a justiça, emitir moeda, garantir a manutenção

da ordem. Mas os Estados m oderno s cum prem também outras tarefas: asse

gurar um certo número de serviços públicos (educação, transportes, saúde),

dirigir a economia, redistribuir os ganhos.

Mas é possível considerar esses atos não mais do ponto de vista político-

social, mas exclusivamente do p on to de vista jurídico. Quaisquer que sejam osfins empregados, esses atos são, de fato, sempre atos jurídicos, ou seja, atos cria

dores de normas. Ora, classificam-se as normas não segund o seus fins ou seus

objetos (as matérias às quais elas dizem respeito), mas segundo outros critérios:

seja seu valor, isto é, seu lugar na hierarquia, seja seu grau de generalidade. É

desse po nto de vista, exclusivamente jurídico, que nos colocarem os aqui.

 A controvérsia sobre o número de funções. - As categorizações mais sim

 ples são dualistas: elas opõem duas funções. A prim eir a, a função legislativa,consiste em fozer leis, a segunda, a função executiva, em executá-las. Natu ral

mente, a idéia que se tem de um a e de outra varia consideravelmente, mas d e

claramos ser impossível conceb er um a terceira.

 No entanto , a categorização mais complexa dist ingue três funções: ao lado

das funções legislativa e executiva, distingue-se uma terceira, denominad a juris-  

dicionaly  porque ela consiste em promover a justiça, estipular o direito aplicável a

um caso em litígio (do latim jurisd ictio), portanto em julgar processos, ou ju d i

ciária>porque ela é mais freqüentemente garantida por juizes (do latim judex).A riqueza da categorização trialista se explica não po r seu valor lógico ou

científico, mas p or sua im po rtânc ia ideológica. Do p on to de vista lógico, com

efeito, ela apresenta um defeito muito grave: se for adotado por critério da

distinção o fato de colocar regras ou de aplicá-las, podem-se conceber so

men te duas funções e não três. A terceira consistirá somen te na aplicação das

leis ao processo. Ela é apenas uma variação da função executiva.

 No enta nto, a categorização das funções serve para justifi car um a cer ta

divisão de competências. É assim que se pode temer as implicações da teoria

dualista. Se por exemplo se admitisse que cada função deve ser exercida por 

um grupo de órgãos especializados, a teoria dualista parece conduzir a sub

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0 Po d e r 115

meter a fun ção jurisdicional ao jugo das au toridad es executivas. Para gar an

tir uma justiça indep ende nte, procura-se, po rtanto , estabelecer que ela disp o

nha de uma terceira função, radicalmente distinta da função executiva.

As teorias dualistas só podem evitar submeter os juizes aos titulares da

função executiva distinguindo, antes, duas funções, legislativa e executiva, e

em seguida, no seio da função executiva, uma execução contenciosa (a apli

cação da lei para a solução dos processos) e uma execução não contenciosa

ou função administrativa (na ausência de processo).

A maioria das constituições modernas adota, portanto, com conse

qüências práticas semelhantes, seja a teoria trialista, seja a teoria dualistacom plem entad a pela distinção entre a execução contenciosa e a execução não

contenciosa. A escolha de uma ou de outra representa não mais que uma di

ferença de vocabulário: para designar os juizes, a teoria trialista falará de po

der judiciário, a teoria dualista de autoridade judiciária.

Ambas, entretanto, dividem as competências de modo que os processos

sejam decididos por agentes distintos daqueles que garantem a execução não

contenciosa das leis, e de maneira relativamente autônoma. Por razões de expo

sição e apesar dos defeitos, adotaremos aqui, portanto, a apresentação trialista.

1.A FUNÇÃO LEGISLATIVA

1. Definição

A função legislativa consiste evidentemente na criação das leis, mas o

conteúdo dessa função depende da concepção que se faz da lei. A esse respei

to, é necessário opor duas concepções ou definições da lei.

A lei pode, primeiramente, ser objeto de uma definição material: cha-

mar-se-á lei toda norma cujo conteúdo apresenta algumas características:

 por exem plo , a de ser geral (o u seja, a de presc rever um a conduta não a in di

víduos de termina dos, m as a categorias de indivíduos, definidas de forma ab s

trata) ou a de se aplicar a algumas matérias.

Ela pod e tam bém ser o objeto de um a definição formal: cham ar-se-á lei

toda norma que foi posta em uma determinada forma, ou seja, por um de

terminado órgão, o Parlamento por exemplo, nos termos de um processo

 part icular. A definição fo rm al às vezes é tam bém chamada orgânica.

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116 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Como no caso da constituição, essas duas concepções são profunda

mente diferentes: uma norma que emane do Parlamento, mas que não seja

geral, será considerada uma lei de acordo com a concepção formal, mas não

de acordo com a concepção material. De modo oposto, uma norma geral que

em ane do governo será uma lei de acordo com a concepção material, mas não

de acordo com a concepção formal.

Ora, os desafios pode m ser muito imp ortantes. Eles se referem, prim ei

ramente, à competência dos órgãos. Assim, é freqüente que a constituição

atribu a o p od er de fazer leis a um Parlam ento e o po der de executá-las a um

governo. Essas disposições não perm item unica me nte a ela conhecer a extensão das competências desses dois órgãos. O Parlamento teria o direito de

em itir norm as individuais? O g overno o de em itir norm as gerais? A resposta

a essas duas perguntas é afirmativa quando se adota uma definição formal.

Ela é negativa no caso contrário.

Eles dizem respeito também ao que se chama de regime jurídico dos

atos, ou seja, o conjunto das regras que lhes são aplicáveis, por exemplo, pa

ra mo dificá-los ou para anu lá-los. É freqüente qu e as leis gozem de u m regi

me jurídico especial, m uito mais favorável do q ue aquele ao qu al estão sub metidos outros atos. Na França, por exemplo, é vedado aos juizes interferir 

na função legislativa11, de modo que não é possível solicitar-lhes a anulação

de u ma lei. É, portan to, im po rtan te saber quais são os atos que se beneficiam

dessa im unidad e: se a definição é material, são todas as norm as gerais ou to

das aquelas relativas a determinadas matérias; se é formal, somente as nor

mas que emanam do Parlamento.

É necessário ressaltar que não cabe nem à teoria constitucional nem à

ciência do d ireito constitucional op tar e ntre as duas concepções. Elas devemse limitar a descrever a concepção escolhida pelo dire ito positivo. As soluções

são obviamente variáveis. Vamos nos contentar em observar que, no direito

 pos itivo francês, a concepção da lei é formal : to dos os atos adota dos pelo Par

lamento em conformidade com o processo legislativo são leis, sejam ou não

gerais e quaisquer que sejam as matérias às quais eles se relacionam. Disso

decorre que eles só podem ser modificados por uma outra lei e que eles não

11 Lei cie 16 a 24 de agosto de 1790, art. 10: “Os tribun ais não pod erão tom ar ne nh um a pa rtedireta ou indiretamente no exercício do poder legislativo, nem impedir ou suspender a execução dos d ecretos do corpo legislativo, sanciona dos pelo Rei, sob p ena de infração”.

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0 Po d e r 117

 podem ser anula dos por um tr ib unal. Essa concepção estava em vigor na Ter

ceira República, na qual ela traduz ia a supremac ia do Parlamento.

É necessário afirmar, mesmo se for preciso aplicar algumas nuances a

essa afirmação, que a Qu inta República se liga tam bém à concepção form al12.

Se o P arlamen to nela não goza de fato da m esma su premacia, é em razão das

condições de exercício da função legislativa.

2 .0 órgão da função legislativa

O que é um órgão legislativo. - O exercício da função legislativa ou  po der legislativo  pode ser atr ib uído pela consti tu ição a um a variedade bem

grande de órgãos. Nem sempre é fácil determinar quais são esses órgãos, pois

ocorre freqüentemente da constituição não os designar de forma expressa.

O caso mais simples, mas não o mais freqüente, é naturalmente aquele

em que a constituição institui um órgão legislativo único ou simples. É o das

constituições francesas de 1793,1848,1946. Em razão da supremacia da fun

ção legislativa, esse órgão do m ina natu ralm ente todos os outros.

Mas é freqüente o poder legislativo ser confiado a uma pluralidade deórgãos, que concorrem na produção da lei consentindo sua edição. Eles são

nomeados coletivamente como órgão legislativo complexo  e individualmente

como órgão legislativo parcial.  Um órgão legislativo parcial  é, portanto, um

hom em ou u m grup o de home ns cujo consentimento é necessário para a edi

ção da lei e cuja oposição a imp ede. Em con trapa rtida, n ão se deve conside

rar como órgão legislativo parcial aqueles que participam da formação da lei

sem que seu consentimento seja realmente necessário, como por exemplo os

especialistas, que co laboram com um a co mpe tência apenas técnica. O que le

va a instituir um órgão legislativo complexo é naturalmente o temor da su

 premacia de um órgão único .

É possível distinguir vários tipos de órgãos legislativos parciais.

a) As assembléias parlam entares

Uma assembléia parlamentar é uma assembléia composta por deputa

dos eleitos. Ela é órgão legislativo parcial em dois casos: quando o Parlamen

12 Cf. infra.

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118 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

to comporta duas (ou várias assembléias), ou quando outros órgãos, por 

exemplo, o pode r executivo, participam tam bém de form a decisiva da criação

das leis.

O primeiro caso é o do bicameralismo ou bicameral. Uma das assem

 bléias ou câmaras, pelo menos, é eleita pelo sufrágio universal direto. A se

gunda câmara, chamada às vezes de câmara alta, pode, por sua vez, ser for

mad a de várias formas.

Pode-se tratar, primeiramente, em uma monarquia constitucional, de

uma câmara aristocrática cujos membros são hereditários ou nomeados pelo

rei. É o caso da Câmara dos Lordes na Inglaterra ou da Câmara dos Pares daRestauração, na França. Encontram-se vários exemplos disso nas constituições

do século XIX, mas nos Estados modernos, seu papel declinou consideravel

mente.

Pode-se tratar, ainda, em u m Estado federal, de u ma câ mara q ue rep re

sente os Estados-membros (cf. supra).

Em terceiro lugar, a câmara alta pode ser, também, eleita, mas de acor

do com mo dalidades diferentes daquelas empregadas para a câm ara baixa, de

m od o qu e ela seja mais conservadora em sua compo sição: o sufrágio pode ser restrito ou indireto, organizado em outras bases territoriais ou ainda subor

din ado a condições diferentes de elegibilidade.

Existem ainda câmaras secundárias de caráter econômico, cujos mem

 bros são escolhidos nas organizações prof issionais.

As câmaras secundárias são órgãos parciais somente quando elas po

dem realmente se opor à formação da lei. Isso é quase sempre raro. É eviden

te que as câmaras altas aristocráticas, po r exemplo, perdera m seu poder. Fa

la-se, nessas situações, de bicameralismo imperfeito  ou desigual. No entanto , a ausência de poder legislativo não significa necessaria

men te a ausência de todo papel político: de um lado, essas câmaras po dem às

vezes não se opor, mas retardar a ado ção definitiva de um a lei. Esse pode r p o

de dissuadir o legislador principal de dar à lei um conteú do dem asiadam en

te radical, se ele desejar que a lei entre em vigor rapidamente. De outro lado,

 princip alm ente , uma segunda câmara , mesmo sem gra ndes poderes, pode

con tribu ir com seus debates para m elho rar o con teúdo da lei. É nessa melh o

ra que se enco ntra hoje a m elho r justificação para a existência de uma câm a

ra alta, a que se chamará, então, de câmara de reflexão.

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0 Po d e r 119

b) O povo

O governo direto é um a curiosidade histórica. - O governo direto supõe

que o povo se governe diretamente, por si mesmo. É a aplicação integral da

idéia de democracia. Os indivíduos se reúnem em praça pública ou num

campo e decidem sobre os interesses públicos.

Esse procedimento idílico de governo hoje não é mais que uma curio

sidade histórica. Ele existe ainda em alguns cantões suíços (Glaris, Unterwal-

den, Appenzell), onde a cada ano os cidadãos desses Estados se reúnem em

Landsgemeinde (conselhos regionais) para votar as leis, designar funcionários e no m ear os de puta dos nas assembléias federais.

O governo semidireto (Quermonne, 1985; Hamon, 1995) .

Mas se a experiência do go verno direto puro não é mais concebida, a ex

 periência consti tu cio nal nos mostr a a vitalidade das in sti tu ições do governo

semidireto, que c om bina a idéia representativa e a dem ocracia pura. A nação

institui representantes, há, po rtanto , assembléias, mas nas questões mais im

 porta ntes, e n otadam ente em maté ria legislativa, o povo se reserva o poder dedecisão. Os proce dim ento s pelos quais ele o exerce são o veto, a iniciativa e o

referendo.

1 .0 veto. - Ele permite u ma intervenção bem atenuada do povo na elabo

ração da lei. Esta é a obra de uma assembléia, mas ela poderá ser aplicada so

mente quando, diante da expiração de um certo prazo, o povo não solicitou que

ela fosse submetida a seu voto. Nos casos em que a votação popular ocorresse e

chegasse a uma recusa da lei, poderia se cons iderar que ela nun ca existiu.

2.  A iniciativa . - Ela oferece ao povo a possibilidade de ob ter leis que lhe pareçam oportunas, mesmo que o parlam ento fosse contr a. Ela obriga o par

lamento a fazer as leis, pois, se um determinado número de cidadãos o soli

cita, um projeto de lei específico será sub metido à assembléia que deverá exa

miná-lo e emitir um voto a respeito.

Pela iniciativa, os cidadãos po de m se limita r a solicitar à assembléia pa

ra fazer uma lei sobre certa questão, sem sequer especificar. Mas eles podem

também apresentar um projeto completamente formal; diz-se então que há

um a iniciativa formu lada.  Se a assembléia aceita o projeto, a lei torn a-se pe r

feita, salvo a possibilidade de um referendo; se ela a rejeita ou a modifica, a

constituição pode decidir que o projeto será submetido à votação popular.

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12 0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

A constituição pode até ir mais longe e prever que um referendo deve

rá obrigatoriamente ser organizado assim que um determinado número de

cidadãos o solicitar. Esse tipo de referendo é chamado de referendo de inicia

tiva popular.

O referendo ab-rogativoycomo aquele que existe na Itália, constitui uma

variedade: nesse sistema, um determinado número de cidadãos pode solici

tar a organização de um referendo não para adotar uma nova lei, mas para

ab-rogar uma lei existente.

Chega-se, assim, a uma aplicação mais ou menos perfeita da idéia de

democracia, já que a lei poderá ser feita ou desfeita sem nenhuma intervenção das assembléias representativas.

Várias modalidad es de iniciativa estão em vigor na Suíça. A iniciativa po

 pula r é admitida no cantão , não apenas para a revisão da constituição, mas tam

 bém para as leis ordinár ias. É, então, a assembléia que é submetida à apreciação.

 Na Confederação, ela só é   aplicável em matéria constitucional, mas evita-se a

 proibição da iniciativa em matéria de legislação ord inária dando-lhe a form a de

uma revisão à constituição. Se a iniciativa for formulada, o projeto é submetido

diretamente à aceitação do povo, a assembléia tem somente a possibilidade de propor um contrapro je to paralelo ao que emana da iniciativa popular.

A iniciativa popu lar existe também nos Estados Unidos em maté ria cons

titucional, não para a legislação da União, mas para aquelas dos Estados parti

culares. Ela foi adotad a também , após a guerra de 1914-1918, por um determ i

nado número de Estados europeus, notadamente pela constituição de Weimar.

3.  A aceitação  (vide D h n q u i n , 1976). - Nas antigas Dietas das Co nfede

rações germânicas e helvécia, os representantes dos Estados confede rados deci

diam apenas ad referendum , ou seja, sob reserva da con firmação de sua decisão por seu governo . Hoje, o sentido do te rm o se ampliou: há re fe rendo sempre

que um ato é submetido à aceitação popular.

Seu em preg o norm al é em ma téria legislativa. Ele pode in tervi r antes ou

após o voto da lei. Antes, a assembléia consulta o povo sobre o princípio da

lei, para aplicá-lo caso ele seja aceito. Mas é quando ele é posterior à adoção

do texto pelos representantes que o referendo é mais enérgico, já que o valor 

 ju rídic o da lei estará subordin ado à sua acei tação pelo povo. Os poderes da

assembléia se limitam à emissão de uma proposta, e a condição de um voto

 popula r não somente suspende a aplicação da lei na hipótese do veto; ela im

 pede até a formação da lei.

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0 Po d e r 121

Evidentemente, a a doção do referendo é suscetível de diversas m od ali

dades. A constituição pode torná-lo obrigatório; é assim que, na Suíça, uma

modificação na constituição só é definitiva quando aprovada pelo povo. Ela

 pode ta mbém torná-lo  fa cultativo , no sentido de que é a Assembléia repre

sentativa que decidirá se haverá a consulta p opular. Em co ntrap artida, o c am

 po de ação desse procedim ento será mais ou menos amplo se seu desencadea-

mento for mais ou menos facilitado, ou se a iniciativa de provocar a votação

do povo estiver reservada ao P arlamento, ou se pertenc er ao povo, ou, final

mente, se a constituição se remeter a um órgão especial, o chefe de Estado,

 por exemplo, com o fez a const ituição alemã de 1919. Nesse caso, há o que sechama de referendo de arbitragem,  já que o chefe de Estado submete o pro ces

so que o opõe à assembléia ao arbítrio do povo ( C a r r é d e M a lb e r g , 1931a).

 Aplicações do referendo. - Até a constituição atual, a França só conheceu

teoricamente o referendo em matéria de legislação ordinária, pois a constitui

ção de 24 de junho de 1793, que o previa, nunca foi aplicada.

A constituição de 1958 introduziu de forma bem modesta o referendo

em matéria de leis ordinárias, pois ele só foi possível para os textos ligados à

organização dos po deres públicos (art. 11).

A decisão de consultar o povo foi tomada pelo Presidente da República

mediante proposta do governo ou das duas assembléias.

 No ex terior, o re ferendo é amplamente uti lizado, mesmo para as leis o r

dinárias. Na tura lme nte, ele existe na Suíça, que é o país de eleição - se assim

 podemos dizer - do govern o semid ireto . Nenhum a disposição consti tu cio nal

federal ou cantonal pode entrar em vigor enquanto não for ratificada pelo

 povo. No que se refere às leis o rd in árias, o re ferendo, que a prin cíp io era apli

cado apenas à legislação cantonal, foi estendido às leis federais desde a cons

tituição de 1874. Mas trata-se, em geral, de um referendo pu ram en te faculta

tivo. A freqüência das consultas populares resulta em uma mobilização

 perm anente dos cidadãos. No enta nto , seu fervor cívico é moderado quando

avaliado pela alta porcentage m de abstenções nas votações.

O referendo existe tam bém na Suécia e na Noruega, mas a título consu l

tivo. No entanto, essa característica não impede que o Parlam ento se considere

vinculado à decisão popular. Isso foi observado de fato na Noruega, ond e a re

cusa oposta pelo povo à adesão à Comunidade Européia foi sancionada pela

nâo-assinatura do Tratado e provocou a demissão do governo. Na Dinamarca,

desde a reforma de 1953, um terço dos membros do Parlamento pode exigir 

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122 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

que uma lei já adotada seja objeto de referendo. Este se revela como o último

recurso aberto à minoria. Na Áustria, o referendo é obrigatório para as leis

constitucionais; para as leis ordinárias, ele deve ser solicitado pelo Parlamento.

 Nos Estados Unidos, o re fe rendo se desenvolveu como um instrum en

to destinad o a limitar a on ipotênc ia das assembléias, mas ele existe apenas no

âmbito dos Estados particulares onde é obrigatório para determinadas leis.

Finalmente, após a guerra de 1914, as constituições dos Estados novos ou re

novados (Alemanha, Áustria, Checoslováquia, Estados bálticos, Grécia, Espa

nha etc.) deram-lhe amplo espaço em suas instituições. Apesar da vasta ex

 periência que nos é assim fo rnecida, é difícil emit ir um ju lgamento geral arespeito do referendo, pois o valor de seus resultados depend e essencialmen

te do grau de m aturid ade política do povo levado a intervir po r causa dele. É

significativo que na Inglaterra, país de regime representativo puro, o governo

tenha decidido recorrer ao referendo para que o povo decidisse sobre a ade

são da Grã-Bretanha ao Mercado Comum. Constata-se que o referendo in

terveio a respeito de uma questão sobre a qual a divisão da opinião não cor

respondia à clivagem entre os partidos. A consulta de 5 de junho de 1975

testemunhava os limites do princípio representativo. No entanto , hoje parece que a admiração pelas instituições da d em ocracia

direta após a Primeira Guerra Mundial está sensivelmente reduzida. Prova

velmente, ainda podem ser encontrados textos que prevêem o voto popular,

mas seu nú m ero foi reduzido. Foi assim, po r exemplo, que na Ca rta de Bonn

a iniciativa e o referendo desapareceram . O fato é tão significativo que seu lu

gar era relevante na República de YVeimar. Na Itália, em cont rap art ida , a co ns

tituição de 1948 (art. 75) introduziu o referendo (R y n g a e r t , 1982). Na URSS

ele foi utilizado pela prim eira vez em 1991.

c) O pod er executivo

O órgão encarregado da função executiva pode ser ao mesmo tempo

órgão legislativo parcial, quando seu consentimento é indispensável para a

formação da lei. Essa hipótese pode se concretizar de duas maneiras.

O caso mais conhecido é aquele do direito de veto. Uma regra constitu

cional permite ao chefe do executivo opor-se à adoção de uma lei. Tecnica

men te, esse pod er tom a a seguinte forma: o texto da lei, ado tado po r um a ou

várias assembléias parlamentares, é transmitido ao chefe do executivo, que

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0 Po d e r 123

deve dar sua aprovação - diz-se tam bém , “dar sua sanção” Ele pode recusar 

esse deferimento; nesse caso, diz-se que ele opôs seu veto. Esse veto será ab

soluto, qu and o ele não pud er ser derru bad o. Foi o caso da constituição ingle

sa do século XVIII ou da Carta de 1814. Ele será relativo ou  parcial, qua ndo

 puder ser derrubado por um a ou pelas câmaras com maio ria qua lificada, co

mo nos Estados Unidos. Ele será suspensivoyqua ndo a lei puder en trar em vi

gor, apesar da oposição do chefe do executivo, após o fim de u m dete rm ina

do prazo, com o na co nstituição francesa de 1791.

Quando o poder executivo não dispõe de direito de veto, mas da iniciati

va das leis, ou seja, de apresentar p rojetos de lei, ele deve ser con side rado comoórgão legislativo parcial? É preciso dis tinguir dois casos.

Trata-se de um direito de iniciativa partilhado, ou seja, quando outros

que não ele próprio, por exemplo, os memb ros do Parlamento, têm igualmen

te a iniciativa, então um a lei pode ser feita sem o d eferimento do pod er execu

tivo. Se ele não a apresenta, um deputado o fará e nada impedirá o Parlamen

to de adotar a proposta. O executivo não é, portanto, órgão legislativo parcial.

Tudo m ud a q ua nd o ele dispõe do m on op ólio da iniciativa. Tal era a si

tuação durante a Carta de 1814: somente o rei poderia apresentar um projeto de lei. Além dos deputados não poderem apresentar a proposta, eles nem

mesmo dispu nha m do direito de revisão, ou seja, do direito de p ropo r m od i

ficações no projeto que e man ava do rei. Nesse caso n en hu m a lei pod eria en

trar em vigor sem a vontade do rei.

Verifica-se, durante a Q uinta República, um a situação comparável. Deputa

dos e senadores tinham , de fato, a iniciativa das leis e pod iam apresentar pro

 postas. No entanto, o governo se beneficiava de uma pr ioridade para inscrever na

ordem do dia os projetos e as propostas aceitas por ele, o que significa que poderia im ped ir que fossem inscritas, discutidas e votadas as propostas cujo con

teúdo desaprovasse. De putad os e senadores só exerciam seu direito de iniciati

va pela apresentação de emendas, mas com o eles não deveriam estar desprovidos

de qualquer ligação com o projeto em discussão, o governo dispunha de fato

de u m monopólio de iniciativa. Era um órgão legislativo

d) O ju iz constitucional

Q uan do existe um juiz constitucional, ele deve ser considerad o tam bém

com o um órgão legislativo parcial. Mesmo qu and o não orientad o por crité

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124 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

rios de oportu nid ade , com o as assembléias parlame ntares, ele dispõe, porém ,

de um pod er de interpretação que lhe permite contribuir na determinação do

conteúdo das regras legislativas e isso de duas maneiras diferentes.

Em p rime iro lugar, ele pode interpre tar a constituição de tal form a que

um a lei se revele con form e ou contrária, e, conseqüentem ente, é possível que ele

se op on ha à sua aplicação. Esse pod er de interpretação resulta do c aráter va

go e ambíguo das várias disposições do texto constitucional, notadamente

dos preâ mb ulos e declarações dos direitos. De qualqu er forma, existem sem

 pre contradiç ões ou conflitos entr e os direitos e a liberdade garantidos pelas

declarações, de tal mo do que a lei será julgada de acordo com a constituiçãosomente quando ela garantir entre esses direitos um justo equilíbrio. Mas o

 ju iz dispõe de um a margem de apreciação considerável na resposta à questão

de saber se a lei que ele controla realizou ou não um justo equilíbrio.

A esses argu me ntos objeta-se, às vezes, que o juiz constitu cional n ão é em

si mesmo avaliado e que ele não é submetido a todas as leis. Essa objeção não

é determinante: nas razões de suas escolhas, o juiz dá interpretações gerais das

constituições com base nas quais se podem deduzir previsões de suas atitudes

futuras. Esses motivos são, po r conseguinte, objeto de diretrizes gerais, as quaiso governo, qu ando prepara um projeto de lei, ou as assembléias parlamentares,

quando deliberam, devem necessariamente levar em consideração. Em alguns

casos, o juiz constitucional, na justificativa de suas decisões, chega até a dita r as

grandes linhas de uma legislação futura, que somente assim será considerada

em c onformid ade com a constituição. Os outro s órgãos legislativos são obriga

dos a to mar decisões de acordo com tais diretrizes e o juiz constitucional ava

liará o conteúdo da lei, mesmo se ele não for com unicado disso.

Em contrapartida, os tribunais constitucionais devem também interpretar alei que lhes for submetida. Eles pod em, então, determinar que elas só estarão em

conformidade com a constituição com a condição de receberem tal significado, e

que elas são contrárias a ela com um significado diferente. Assim, se a lei é aplica

da em conformidade com as diretrizes de interpretação dadas pelo juiz, é porque

ele indiretamente determ inou o conteúdo das obrigações que ela prescreve.

Em alguns casos, o juiz chega até a mo dificar ou c om plem enta r o texto

da lei, ou seja, a reconhecer abe rtam en te que ele contrib ui para o exercício do

 poder legislativo. Assim, o trib unal consti tu cio nal da África do Sul, seguindo,

aliás, o exemplo da Suprema Corte do Canadá, decidiu por unanimidade

complementar uma lei que dava alguns direitos aos cônjuges, acrescentando

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0 Po d e r 125

os termos “ou parceiros do mesmo sexo em uma relação estável” Ele justifi

cou essa decisão pela idéia de que não havia nenhuma diferença entre o fato

de suprimir ou acrescentar termos de uma disposição13.

Ocorre qu e a oposição de um tribunal a um a política legislativa provo

ca uma crise política séria. Foi o que ocorreu, por exemplo, nos Estados Uni

dos na época d o New Deal (cf. infra). De acordo com os sistemas constitucio

nais, pode ser mais ou menos difícil superar essas crises. Em alguns casos,

 pode-se te r a in te nção de revisar a consti tu ição ou de m udar o esta tu to do tr i

 bunal, ou sim plesm ente de modif icar o texto e criar, dessa fo rm a, conformi

dade com uma lei julgada contrária, a princípio. No entanto, essa soluçãoapresenta limitações. O processo de revisão pode, como nos Estados Unidos,

ser muito trabalhoso de modo que é quase impossível realizá-lo. Mas mesmo

qu an do o tribu na l é ágil, ele pode desejar exa min ar a validade da revisão cons

titucional em si mesma. Esta pode ser feita violando-se o processo de revisão

ou a tentand o-se co ntra princípios considerados superiores à constituição. Vá

rios tribunais, como o da Alemanha ou o da Itália, afirmaram sua com petê n

cia para proceder ao controle de constitucionalidade de uma lei de revisão

(T r o p e r  , 1994b). Em outras situações, como na Romênia, a constituição reconhece que o tribunal dispõe de um real poder legislativo e que este deve ser 

superado como um veto parcial. Ela prevê, portanto, que o parlamento pode

adotar novamente o mesmo texto com uma maioria reforçada.

3 .0 exercício da função legislativa

a) A organização do trabalho legislativo

A função legislativa é de importância capital, não apenas do ponto de

vista jurídico - a lei se encontra no ápice da hierarquia das norm as - mas

também do ponto de vista político: em razão do desenvolvimento considerá

vel do papel do Estado, as leis são cada vez mais numerosas e complexas. Na

maioria dos Estados modernos, constata-se uma evolução muito profunda

das condições de exercício da função legislativa.

13 Decisão CCT de 2 de dezembro de 1999, trad. dos Cahiers du Conseil constitutionnel, n.9/2000, p. 66, com o comentário de Didier RIBES,“Le juge constitutionnel peut-il se faire légis-lateur?” mesma revista, p. 84.

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12 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Mesmo qua nd o essa função é confiada a vários órgãos, existe, entre eles,

 pelo menos um a assembléia parlam entar eleita. Em alguns casos, as assem

 bléias parla menta res chegam até a obte r a to ta lidade do poder legislativo. To

dos os constituintes, sem exceção, são conscientes dos riscos que poderia

apresentar um poder tão importante. O próprio Robespierre declarou que

duvidava tanto da tirania de seiscentos déspotas quanto da do rei. Aos olhos

dos constituintes do século XVIII, o risco mais evidente é que as assembléias

 podem empregar a força e a auto rid ade para decid ir questões referentes à

função executiva e à função judiciária. Qu an do não se tem controle de co ns

titucionalidade, na da im pede ao legislador de fazer leis particulares pa ra co nceder privilégios ou impor medidas mais severas, de poupar determinadas

 pessoas da ação da just iça, de decid ir litígios etc. Esse acúmulo de funções se

ria a negação da separação dos poderes e correspond eria exatam ente ao des

 potismo, como ele é definid o no sécu lo XVIII. Em contr apartid a, essas as

sembléias seriam muito provavelmente submetidas às pressões populares,

dilaceradas pelas facções, relegadas aos demagogos e finalmente reduzidas à

anarquia e à impotência.

Para dim inu ir esses riscos, os constituintes valeram-se de alguns p rocedimentos simples: limitar a duração do m andato, o nú me ro de m anda tos parla

mentares que um mesm o ho me m tem o direito de disputar sucessivamente, re

novar as assembléias por frações (por exemplo, um terço a cada ano, como

ocorre no Senado americano), proibir o acúmulo do mandato parlamentar 

com outras funções, mas sobretudo encerrar o exercício da função legislativa

nos processos obrigatórios. Não se trata, aliás, somente de evitar o perigo do

acúm ulo das funções, mas também de m elhorar a qualidade do trabalho legis

lativo. Considera-se prin cipalm ente que é necessário organ izar o deba te de talmane ira que a troca dos argum entos p ermita con duzir às melhores soluções.

As assembléias com porta m, portanto, comissões, grupos de parlam enta

res encarregados de preparar o exame dos projetos e das proposições de lei.

De acordo com os sistemas constitucionais, essas comissões pod em ser espe

cializadas (como na F rança) ou não especializadas (co mo na Inglaterra). Elas

 podem ser ta mbém permanente s ou ad hocyou seja, constituídas apenas para

o exame de um projeto e dissolvidas posteriormente.

Os projetos ou proposições são freqüentemente enviados a uma comis

são, em seguida são objeto de um a o u de várias deliberações (ou leituras) em

sessão plenária.

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0 Po d e r 127

b) As dificuldades

Ocorre freqüentemente nos Estados modernos que os parlamentares

enfrentem algumas dificuldades na garantia da função legislativa. Isso se de

ve a múltiplos fatores, à crescente tecnicidade dos projetos, à demora e à bu

rocracia excessiva dos processos, quando se faz necessário agir rapidamente,

às reticências dos parlamentares em adotar medidas úteis, mas impopulares,

às divisões políticas e à ausência de maioria, que tornam cada decisão o re

sultado de compromissos laboriosamente negociados.

Para essas dificuldades, existem alguns remédios. O mais freqüente hoje éo desenvolvimento da iniciativa do executivo. Considera-se que, na maioria dos

sistemas representativos modernos, um a proporção bem imp ortante (isso chega

até a 90%) das leis é oriunda de projetos apresentados pelo governo. É o que

tamb ém ocorre nos Estados Unidos, onde, entretanto, o Presidente não tem a

iniciativa das leis. Basta-lhe inspirar um membro do Congresso. Esse fenôme

no se explica na turalmente: o po de r executivo tem essa capacidade, porque ele

dispõe da administração, do conhecimento das necessidades e do poder de

m and ar prep arar projetos; em contrapartida, ele pode tam bém agir de diversosmo dos com os parlamentares a fim de agrup ar m aiorias que os votarão.

Um outro tipo de procedimento, também bem difundido, consiste em

am pliar as competências do ó rgão executivo. Isso corresp ond e a dois tipos de

técnicas. O Parlam ento pode, em prim eiro lugar, limitar-se a enun ciar na lei

 prin cípio s ou regras muito gerais e deixar ao governo a tarefa de precisá- las

e de complementá-las por outras regras com um grau de generalidade menos

elevado. A essas regras, que emanam do governo, dá-se o nome, no direito

francês, de règlements (regulamentos). Ele, po r sua vez, pode se abster de editar as leis em determ inada s áreas ou matérias, que estarão reservadas ao regula

mento. Assim, na França, a lei de 17 de agosto de 1948 elaborou um a lista de

matérias regulamentares. Quando se deseja evitar que o Parlamento não re

tome por uma lei a área que concedeu ao governo por uma lei anterior, essa

lista de matérias p ode ser estabelecida não n a form a de u m a lei, mas na cons

tituição formal. Foi a solução da constituição francesa de 1958: o art. 34 enum e

ra as matérias reservadas ao legislador; nos termos do art. 37, todas as demais

matérias são reservadas ao poder regulamentar.

Em segundo lugar, o Parlamento pode autorizar o governo a adotar re

gulamentos nas matérias reservadas à lei. Esses regulamentos, que levam o

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128 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

nom e, d ura nte a Terceira República, de decretos-leis e a que a constituição de

1958 dá o nome de ordonnances (portarias), poderão, eventualmente, mo di

ficar uma lei adotada anteriormente na mesma área e serão submetidos ao

Parlamento para ratificação. A ratificação tem como conseqüência transfor

mar esses textos em leis e faz com que eles se beneficiem do regime jurídico

da lei: eles não poderão ser contestados diante de um tribunal e só poderão

ser modificados mediante uma nova lei. Nesse caso, existe uma simples apli

cação do princípio segundo o qual a lei é objeto de uma definição formal: é

lei um texto ado tado pelo órgão que a constituição designa com o o órgão le

gislativo, e apenas tal texto.Essa última técnica é, às vezes, chamada de delegação legislativa. A ex

 pressão é, entr etanto, errônea, porque o executivo não recebe o poder de fa

zer leis. Os atos que ele adota são atos de execução, atos fo rm alm ente regula-

men tares e, po r conseguinte, subm etidos ao regime jurídico d o regulam ento.

 N o en tan to , os rem édios não passam apenas pela am pliação d a a tuação

do execut ivo. É também possível procurá- los em uma melhora dos métodos

de t rabalho do Par lamento em si mesmo. Pr imeiramente , é possível ampl iar  

seus meios, nota dam ente na área do pessoal , para faci li tar a preparaçã o dostextos . Pode-se , também, pensar em modif icar e amenizar o processo , pelo

me nos p ara a lguns t ipos de leis. O exemplo qu e cham a m ais a a tenção é aque

le da consti tuição i tal iana, que permite confiar o poder legislat ivo às comis

sões par lamentares .

2.AFUNÇÃO EXECUTIVA

A.0conteúdodafunçãoexecutiva

A idéia que se faz da função executiva variou consideravelmente d ur an

te os tempos. Passou-se de um a concepção b em estrita a uma concepção bem

ampla de forma que o termo executivo parece hoje totalmente inadequado.

1. A função executiva  str ic to sensu

 No início da Revolução Francesa, a função executiva era concebida co

mo uma função de execução estrita das leis. O papel das autoridades execu

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0 Po d e r 129

tivas consistia apenas em fazer os atos materiais e em dar as ordens necessá

rias para que a lei fosse executada. A função compreendia, portanto, a dire

ção da adm inistração, mas n enh um poder regulamentar. As norm as gerais só

 podia m ser emit idas pelo legislador e em fo rm a de lei. Por conseguin te , essa

função nã o era um a função política e aqueles que a exerciam não pod iam de

forma alguma tomar parte na determinação de uma política. Mais ainda,

qu alqu er tentativa de se exercer um papel político se apresentava, de acordo

com essa concepção, como uma tentativa de fugir da execução estrita da lei,

e portanto, como uma extrapolação da função legislativa e um crime contra

a constituição.

2. A função executiva lato sensu

Essa concepção não podia prevalecer por muito tempo por três razões.

A primeira é que o legislador não tem, com o vimos, a possibilidade m a

terial de prod uz ir todas as regras necessárias. Se, nos prime iros tem pos da Re

volução» chegou-se até a determinar pela lei o estilo dos uniformes militares

e a forma de seus botões, é evidente que se trata, nesse caso, de detalhes, cu ja re sp onsabil idade não pode ser por muito te m po confiada a assembléias . A

 partir da consti tu ição do ano III , os órgãos execut ivos receberam , porta nto,

um poder regulamentar.

A segunda razão é que o órgão ou os órgãos executivos, também chamados

de “governos”14, são encarregados do encaminhamento das relações internacio

nais. Existe aí de fato uma contradição com a idéia de que eles exercem apenas

um a função subordinada. Evidentemente, essa atividade não pode ser entendida

com o a execução das leis e ela não pode, entretanto, ser retirada do governo po r

que ela exige o segredo na concepção e na rapidez da ação e, portanto, ela não

 poderia ser exercida por uma assembléia numerosa . Diante disso, torna-se im

 possível cons iderar a função executiva como subalterna e e stranha à política.

A terceira razão é que os órgãos executivos gan hara m tam bém , a partir 

do ano VIII, a responsabilidade de iniciativa das leis e, algumas vezes, o mo

nopólio da iniciativa. O que justificava essa competência era que o executivo

dispunha da administração e podia, graças a ela, reconhecer as dificuldades

11 Esse term o n ão den ota p or si mesm o n enh um pod er real. É aquele empregado po r Rousseau para des igna r o órgão executivo estri tamente su bord in ad o.

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13 0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

de aplicação das leis em vigor, as necessidades de nova legislação e preparar 

 pro je tos de lei apto s a ap licar o poder regula m entar para que, em seguida,

houvesse entre os projetos uma coerência mínima e até uma coerência entre

a legislação e os regulamentos, ou seja, para que eles se revelassem, em seu

conjunto, como a implementação de u m a política.

 Nesse Estado, a função executiva compre ende, porta nto , a execução m a

terial e a direção da administração, o encaminhamento das relações interna

cionais, o poder regulamentar e a iniciativa das leis. Mas a essas competên

cias que os governos extraem da con stituição, acrescenta-se necessariamente

um papel político de modo que se fale, às vezes, em função governamental.

3. A função executiva latissimo $ensuya função governamental

 Na concepção anterior, a função executiva perm anece subord in ada: o

governo pode fazer regulamentos, mas apenas para aplicar leis. Ele pode ela

 borar uma po lítica, que se tr aduzir á pela apre se ntação de pro je to s de lei, mas

será imprescindível de fato que as leis sejam votadas.

 No entanto , o governo francês dispõe rapidam ente , desde o início do século XIX, de um con junto de proced imentos para tentar a adoção desses proje

tos. Alguns são jurídicos e decorrem da constituição: o direito de entrada e de fa

la nas câmaras, a pressão sobre os deputados pela questão de confiança, a ameaça

de dissolução; nas constituições modernas, algumas intervenções no processo

legislativo. Mas outros procedimen tos, extremamen te variados, não estão pre

vistos pela constituição: eles são, entretanto, empregados por qualquer governo

e pode-se designá-los globalmente como a direção da maioria parlam entar.

Q ua nd o se fala, ainda, de “função executiva”, é nu m sentido totalmen tediferente. Evidentemente, não se trata de execução das leis, mas do conju nto

das atividades exercidas pelo órgão encarregado, pela constituição, da função

executiva. Em outros termos, passou-se de uma concepção material (estrita

ou am pla) para um a concepção bem am pla, que é formal. Como o órgão en

carregado da fu nção executiva é freqüentem ente cha m ado de “governo”, essa

função é geralmente designada como  função governam ental.

A vontade do governo de conceber e implementar uma política se ma

nifesta desde o Consulado, mas é a constituição de 1958 que a consagra pela primeira vez, em seu art . 20, como um a real pre rrogativa do governo: ele “de

termina e conduz a política da nação”.

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0 Po d e r 131

Ê nesse contexto que se pode com preender a teoria da separação dos po de

res, na apresentação que fazia a doutrin a tradicional. Qua ndo se distingue a fun

ção legislativa para opô-la à função executiva, em um de seus primeiros sentidos,

esta evidentem ente está subord inada e é impossível conceber um equilíbrio entre

dois órgãos especializados. Em con trapartida, quando se com param os poderes

de dois órgãos responsáveis, um da função legislativa, outro da função executiva,

no terceiro sentido, aqueles do governo estão longe de serem inferiores àqueles

do órgão legislativo e a idéia de um equilíbrio entre eles volta a ter sentido.

Alguns autores - e em primeiro lugar Georges Burdeau - foram ainda

mais longe: conceberam a função governamental como aquela mediante aqual se exerce a totalidade do poder do Estado. Ela abrange, assim, a função

legislativa. Mas essa concepção “não leva de forma alguma... à concentração

da totalidade da autoridade governamental nas mãos de um órgão único. Ao

contrário, é necessário que vários órgãos estejam associados ao papel gover

namental, de modo que ao lado do titular do poder de decisão, esteja uma

autoridade encarregada do controle” (B u r d e a u , 1945).

Pode-se, então, substitu ir a classificação das funções po r ou tra classificação:

no centro da função governamental, encontram -se um a função de decisão e um afunção de controle. Alguns dos redatores da constituição de 1958 se inspiraram,

aliás, nessa classificação, distinguindo não a função legislativa e a função execu

tiva, mas a função governamental (a função de decisão de Burdeau) e a função

de deliberação e de controle, confiada ao Parlamento (J.-L. Q i j e r m o n n e , 1982).

B.Osórgãosdafunçãoexecutiva

Em um sistema jurídico m oderno , tudo o que não é nem constituição,

nem lei, é um ato de execução e, tomando a expressão em sentido literal, to

dos os órgãos que não o Parlamen to, são órgãos da funçã o executiva. No en

tanto, na prática, reserva-se essa expressão e a de  poder executivo aos órgãos

supremos dessa função. Esse uso é justificado pelo fato da execução estar ga

rantida em essência sob a autoridade e o controle dos órgãos supremos.

1. Os órgãos supremos

O po der executivo pod e as sum ir m uitas formas, sujeitas a várias classi

ficações.

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132 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

a) Executivo m onístico e executivo dualista

Chama-se dualista  um poder executivo que com porta dois órgãos, um

chefe de Estado e ministros, e monístico   um executivo que comporta um ór

gão único. A maioria das constituições francesas instituiu u m po der executi

vo dualista. O executivo americano é monístico.

Em sua origem, o dualismo tinha uma função específica: quando o chefe

de Estado era um rei e era órgão parcial da função legislativa, sua ind ep en dê n

cia deveria ser garantida. Ele deveria, portanto, ser  irresponsável e inviolável. 

A inviolabilidade  é a proibição d e prendê -lo, a irresponsabilidade, a de mover,contra ele, processos. Mas também era necessário evitar que o rei se refugias

se atrás da irresponsabilidade, valendo-se de sua participação no po der legis

lativo, a fim de violar a lei, com o pretexto de a estar executando. A solução

enc on trad a foi a da instituição dos ministros. Os atos executados pelo rei na

função executiva deviam ser endossad os pelos ministros, que são penalm en

te responsáveis por isso (cf. supra,  no Capítulo 1, a classificação dos regimes

 políticos). Dessa fo rm a, os minis tros recusarão o endosso de um a ord em ilegal,

a fim de evitar incorrer em altas penas. O dualismo garante simultaneamente a irresponsabilidade do rei e uma boa execução das leis. Compreende-se

que o dualismo facilitou o advento do regime parlamentar.

 Nos sistem as m odernos, o duali smo tem outras funções: por um lado,

ele permite, graças à permanência do chefe de Estado, garantir, apesar das

mudanças de ministério, a continuidade, pelo menos simbólica, do poder;

 por outro lado, ele propic ia uma divisão das funções: ora o chefe de Estado

garante uma função de representação enquanto o governo detém a realidade

do poder; ora o chefe do Estado determina as grandes diretrizes para relegar ao governo a gestão rotineira.

O sistema do executivo monístico se encontra no sistema presidencial.

 No entanto , dizer que o executivo é monís tico não significa que não existam

ministros - até mesmo a m ona rquia absoluta conhecia a instituição dos m i

nistros - , m as que eles estejam estritam ente sub metid os ao chefe do executi

vo, que é quem os nomeia, lhes dá instruções e pode destituí-los. Como ele

não é responsável, seus atos não precisam ser endossados e os ministros não

adquirem n enhum poder autônomo.

b) Indivíduo ou colégio

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0 Po d e r 133

A qualidade de órgão pode ser atribuída a um indivíduo ou a um gr u

 po de indiv íd uos, ou seja, a um colégio. Assim, em se trata ndo de um execu

tivo dualista, o chefe de Estado pode ser tanto um indivíduo (rei ou presiden

te) quanto um colégio. Dessa forma, o Diretório, na constituição do ano III,

ou o Praesidium do Soviete Supremo nas constituições soviéticas antigas, eram

chefes de Estados colegiados. Os minis tros nem sempre são um órgão colegia-

do. Em alguns sistemas, por exemplo, na constituição francesa de 1793, eles

“não formam de maneira alguma um conselho”, de modo que eles devem ser 

considerados apenas como uma série de órgãos individuais.

c) Estatutos

1) Designação

Vários procedimentos de designação são concebíveis: além do sorteio,

que não é mais em pregado , a hereditariedade, a eleição, a nom eação, a coop-

tação. A hered itariedade só diz respeito aos chefes de Estado. Os outros siste

mas são empregados tanto para os chefes de Estado como para os ministros.Cada um desses procedimentos comporta muitas variações. Sabe-se, por 

exemplo, que um chefe de Estado pode ser eleito pelo sufrágio universal ou

 por um colégio restri to , e que esse colégio pode ser o Parlamento , como na

França durante a Terceira e Quarta Repúblicas, ou um colégio que não tem

ou tra função senão a de eleger o Presidente, como 110 início da Quinta Repú

 blica. A d uração de seu m andato pode ser mais ou menos longa. Ele pode ser 

autorizado a exercer um número ilimitado de mandatos, como na França, ou

limitado, como nos Estados Unidos. Quando o executivo é dualista, o chefedo governo, que pode ter diversos títulos, Primeiro-ministro, Presidente do

Conselho, Chanceler etc., pode ser designado de várias maneiras, por exem

 plo, pelo chefe do Estado, por um a ou duas assembléias ou ain da por acord o

entre o chefe do Estado e as assembléias. Ele pode até, com o em Israel du ra n

te um curto período, ser eleito pelo sufrágio universal (K l e i n , 1997). Todos

esses procedimentos são, aliás, combináveis de várias maneiras. Por 

o chefe de Estado pode nomear ministros, mas essa nomeação deve ser con

firmada pelo Parlamento ou por um a câmara do Parlamento ou, ainda, um a as

sembléia elege o chefe de Estado, mas ele deve ser escolhido a partir de uma

lista de pessoas eleitas.

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13 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

2) Extinção das funções

Os textos constitucionais nem sempre especificam a maneira como as

funções se findam. Em alguns casos, como a morte do titular, a expiração do

mandato ou ainda a demissão, uma regra explícita não é necessária. Em ou

tros casos, a ausência de uma regra pode criar sérias dificuldades. Daí, o im

 pedimento (que não se pode confundir com o impeachment , palavra inglesa

que significa acusação no contexto constitucional, ou seja, o poder de uma

câm ara de expor algumas pessoas diante de um tribun al especial). O imp ed i

mento ocorre quando um membro do executivo se vê impedido de exercer suas funções, seja por razões de saúde física (quando ele está em coma) ou

men tal (ele perdeu o uso de suas faculdades), seja porq ue o país está em guer

ra ou em crise e essa personalidade é mantida afastada do exercício do poder.

 No entanto , não se pode evitar si tuações em que o im pedim ento seria usado

como um meio escuso para se realizar um golpe de Estado15.

Algumas constituições com po rtam regras específicas, por um lado, pa

ra constatar o impedimento, por outro, para determinar as modalidades de

sua substituição.O órgão competente para constatar o impedimento é com freqüência

uma autoridade do tipo jurídica. Trata-se, com efeito, de evitar que um con

corrente político fraude a constatação do impedimento de um chefe de Esta

do, que é, na verdade, perfeitam ente capaz de exercer suas funções. Um a au

toridade jurídica pode ser considerada neutra e objetiva. Mas, em geral, ela

não pode proceder a essa constatação por conta própria, ou seja, ela deve ser 

convocada para esse fim. Assim, na França, é o Co nselho C onstitucional, su b

metido ao governo, que constata o im pedimento.Qu anto à substituição, as constituições podem distinguir o im ped ime n

to temporário e o definitivo. Em ambos os casos, a substituição é, em geral,

garan tida nos sistemas presidenciais pelo vice-presidente, nos sistemas parla

mentares pelo presidente de um a ou de outra câmara. Mas qua ndo há o im

 pedim ento def initivo, duas soluções são possíveis: ou a autorid ade re sponsá

vel pela substituição do chefe do Estado exerce suas funções até a expiração

do período norm al do m anda to - é a solução americana; ou novas eleições

devem ser realizadas, como na França ou na Itália.

1’ Dessa maneira, na Tunísia, o presidente Bourguiba foi demitido de suas funções em razão dasenilidade que, justa ou injustam ente, lhe atribuíam , enqua nto ele se recusava a pedir demissão.

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0 Po d e r 135

3) A responsabilidade

• Os chefes de Estado

- A ausência de responsabilidade política

 Na maio ria dos sistemas consti tu cio nais modern os, o chefe de Estado

não é politicame nte responsável. Em o utras palavras, ele não é obrigado a pe

dir demissão m ediante o pedido de um a m aioria parlam entar. Isso se explica

 por razões históricas: nas primeiras consti tu ições dos séculos XVIII e XIX, ochefe do Estado, monarca ou presidente, exercia uma função executiva con

siderada bem estrita, que não implicava na condução de uma política. Por

tanto, não poderia ser questão de sancionar uma divergência de políticas, já

que ao chefe de Estado não cabia conduzi-las, nem mesm o p rop or alguma.

Hoje, essas razões desapareceram parcialmente, já q ue o po der executivo é de

fato um po de r e a irresponsabilidade do chefe de Estado tem o utras justifica

tivas, bem variadas, aliás.

 Nos regimes parlamenta res, existe um gabinete, dis tinto do chefe de Estado, que dispõe da realidade do po der executivo e que p or ele é responsável.

O chefe do Estado é, portanto, irresponsável porque ele não tem poder.

 Nos regimes presidenciais, em que o pre sidente dispõe da realidade do

 poder executivo, de m odo contr ário , objetiva-se perm it ir -lh e o pleno exercí

cio e evitar que esse poder seja exercido indiretamente pela maioria parla

mentar. É o que perfeitame nte pode ria oco rrer se essa maioria pudesse desti

tuir o presidente tão logo ele conduzisse uma política que ela desaprovasse.

Mas existem também sistemas, cada vez mais numerosos, como naFrança, nos quais o governo é responsável e o chefe de Estado pode ser leva

do a tam bém exercer um pod er considerável, inclusive fixar as grandes dire

trizes políticas, mesm o perm ane cen do irresponsável. Diante de tais sistemas,

várias posturas teóricas são possíveis.

Pode-se, prim eiram ente, conside rar que esses sistemas são em essência

sistemas parlamentares: o Presidente da República não pode nada sem o go

verno, de mod o que, po r interméd io deste, a maioria parlam entar dispõe de

meios de interferir na política do poder executivo.

 No enta nto , em algumas si tuaçõ es a maio ria parlam enta r declara ao go

verno - e, portanto, ao Presidente, de forma indireta - um apoio constante.

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136 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

O governo tem, então, uma função política tríplice: ele aplica as grandes di

retrizes da política definida pelo Presidente; garante a direção da maioria

 parlamentar; finalm ente , ele desempenha a função de um fusível. Quando o

Presidente se encon tra imp edido de realizar o pro gram a pelo qual ele foi elei

to ou quando ele se arrisca a se tornar impopular, pode-se mudar a equipe

governam ental. O sistema que acabam os de descrever é aquele que existe na

França nos períodos de concordância das maiorias. Ele foi reproduzido em

várias das antigas repúblicas socialistas, nas quais se podia teme r que um pre

sidente eleito pelo sufrágio universal e politicamente irresponsável entrasse

em desacordo ou com a maioria hostil que o paralisaria, ou com a opinião pública , que teria outr os recursos além da força.

Mas alguns autores sustentam que, se esse tipo de dualismo se explica

 por razões his tóricas (dese jou-se um regime parla menta r), ele não mais se ju s

tifica: o chefe de Estado deveria, portanto, ser considerado politicamente res

 ponsável, mesmo que a const ituição não estipulasse essa responsabilidade. Na

Itália, uma parte da doutrina considera que incide sobre o Presidente da Re

 pública um a re sponsab ilidade “difusa”. Na França, idéias semelhantes foram

 pro posta s por René Capitant. Segundo ele, num sistema democrá tico, não éaceitável que u m hom em dispon ha de p oderes imp ortante s e que ele não seja

obrigado a prestar contas ao povo do uso que faz desse poder. É por isso que

alguns votos importantes devem representar para o chefe de Estado o pivô da

responsabilidade política perante dos eleitores. Foi assim que o general De

Gaulle, notadamente no momento de um referendo, advertiu o corpo eleito

ral de que ele se retiraria, caso fosse desacreditado, o que fez em 1969.

A tese da responsabilidade difusa, como aquela de Capitant, por mais

sedutora que seja no âmbito da teoria democrática, é, entretanto, juridicamen te inaceitável. A dupla obrigação do Presidente da República, de colocar 

em jogo seu ma ndato no m om ento de um voto imp ortante e de se retirar em

caso de insucesso, nad a mais é que u m a obrigação política ou mo ral e de m o

do algum uma obrigação jurídica. Não se pode dizer que um Presidente que

se comporte de outra forma viole a constituição. De resto, o exemplo do ge

neral De Gaulle não foi seguido po r n en hu m de seus sucessores.

O chefe de Estado é, porta nto , m uito responsável. Mas existe, na reali

dade, sobre essa responsabilidade política, um aspecto importante: a res

 ponsabil id ade penal não é tã o difere nte da responsabil id ade polí tica em

questão.

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0 Po d e r 137

-  A responsabilidade penal

Vimos que, nas constituições m onárq uicas, o chefe de Estado não é pe

nalmente responsável, que essa irresponsabilidade é a garantia de sua inde

 pendência com o autoridade legislativa parcial e que ela leva ao dualismo do

executivo. Uma vez instituído o dualismo, a irresponsabilidade se justifica

ainda nesses regimes, por mais que o rei tenha perdido seu direito de veto;

um rei que fosse penalmente con denado não poderia perm anecer na função

e se qualquer condenação o forçasse a renunciar ao trono, perder-se-ia o

 principal benefício da monarquia : a aplicação auto mátic a de um a regra im utável de sucessão.

Mas essa justificação desaparece nos regimes republicanos; quer o exe

cutivo seja monístico ou dualista, o presidente é sempre penalmente respon

sável. Não será considerada aqui a respon sabilidade penal que incide sobre os

governos do p on to de vista do direito internacional. Da perspectiva do direi

to constitucional, a responsabilidade po de assum ir diversas formas.

-  Do ponto de vista do processo: o privilégio de jurisdição

A responsabilidade penal se define antes de tudo pelo processo: logo

que a responsabilidade política é adotada por um simples voto de uma as

sembléia política, a responsabilidade penal implica duas fases e, portanto,

duas decisões distintas que devem ser tomad as po r duas autoridad es diferen

tes: a acusação e o julgamento. Pode-se, então, distinguir dois tipos de pro

cessos penais.

 No prim eiro tipo, a acusação e o ju lg amento são anunciados pe las assembléias políticas. É o que ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos, onde a

câmara dos representantes vota a acusação, o impeachment , e encaminha ao

Presidente ao Senado, que o julga. O mesmo ocorre na França, o Presidente

da República é acusado pelas duas assembléias e julgado pela Alta Corte,

com posta de parlamentares.

Em outras situações, teme-se que as câmaras exerçam os poderes de

acusação e de julgamento de maneira política e, por isso, remete-se o julga

mento, pelo menos, a autoridades jurídicas, a uma corte suprema ou a um

tribun al constitucional. É o que ocorre u na Itália, na Áustria e em Portugal.

Seria inadmissível, em contrapartida, que uma acusação fosse exercida por 

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um a autoridad e jurídica nas condições do direito com um , porqu e o chefe de

Estado ficaria à mercê da autorida de q ue m ovim enta a ação pública, incluin

do particulares quando esses não têm o direito de instaurar processos.

-  Do p onto de vista das infrações

 Nem todos os poderes do chefe de Estado são suscet íveis de instaurar 

 processos penais , mas apenas os crim es mais graves. O presid ente alemão

só pode ser acusado “por violação deliberada da Lei fundamental ou de

um a lei federal”, o presiden te am erica no a penas p or “traição, conc ussão ououtros crimes e delitos”, o presidente da República francesa e o presidente

da República italiana por atos ocorridos dentro do exercício de suas fun

ções e no caso de “grave traição”. Essas disposições dão lugar a dois tipos de

dificuldades.

Em p rim eiro lugar, as expressões “ou tro s crim es e delitos”, “violação de

liberada”, “grave traição”, são suscetíveis de serem interpretadas de várias for

mas e podem, de acordo com a interpretação dada, levar ou não à instaura

ção do julga me nto de um chefe de Estado. É necessário ressaltar, por exemplo,que o crime de grave traição n ão está definido pelo código penal francês, de

modo que qualquer ato ocorrido no exercício das funções e julgado relativa

mente grave poderia ser qualificado como “grave traição”. Da mesma forma,

questionou-se em 1998, sobre o presidente Clinton, se o simples fato de o

 pre sidente menti r no quadro de um processo civil puram ente provado pode

ria ser considerado como um desses “outros crimes e delitos”, suscetíveis de

 justi ficar um a acusação ou se a in fração deveria ser, como a traiç ão ou a c on

cussão, suscetível de cometer atentado à constituição dos Estados Unidos(Z o l l e r  , 1999). Percebe-se que a escolha de um a ou de ou tra interpretação é

inevitavelmente política ou até mesmo partidária. No caso do presidente

Clinton, po r exemplo, ele pôde ser acusado, antes de tudo, porq ue os re pub li

canos ocup avam a maioria dos lugares na câ mara dos representantes, e ele foi

absolvido, porque eles não d ispu nh am dos três quintos das vozes no Senado.

A responsabilidade penal é, portanto, necessariamente política. No entanto,

em alguns sistemas constitucionais, foram previstos processos para tentar 

evitar que uma simples intriga política pudesse dar lugar, de maneira extre

mam en te fácil, à aplicação da respon sabilidade. Assim, na F rança, um a lei or

gânica previu que um presidente acusado pelas câmaras pudesse ser chama

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do diante da Alta Corte somente depois que uma comissão de instrução,

com posta d e mag istrados, se pronunciasse sobre as queixas oferecidas con tra

ele. A Rússia possui um sistema análogo.

A segunda dificuldade diz respeito aos atos que não provêm do exercí

cio das funções, ou seja, aqueles que são de natureza p ura m ente privada, um

crime passional, uma fraude fiscal ou uma simples violação do código de

trânsito ou aqueles que, de natureza pública ou privada, são anteriores ao

exercício da função. Três soluções são teoricamente possíveis. A primeira es

tá fundamentada no princípio de igualdade: o chefe do Estado deve, prova

velmente, estar protegido no exercício de suas funções e nessa qualidade, masapenas nessa qualidade. De resto, ele não deve, portanto, gozar de nenhum

 privilégio que o co loca ria acima das leis. Deveria ser possível, portanto , p ro

cessá-lo como qualquer outro sujeito diante das jurisdições ordinárias.

Segundo a tese inversa, o chefe de Estado não poderia exercer livremen

te suas funções caso pudesse ser facilmente processado, tendo de se defender 

constantemente contra acusações que visassem atos da vida privada ou ante

riores a seu mandato. Sua condição especial justifica, portanto, que se abra

uma exceção temporária ao princípio de igualdade. Ele será, portanto, res ponsável apenas por alguns atos particularm ente graves cometidos no exer

cício das funções. Outros atos oriundos de suas funções mas que não apre

sentam gravidade extrema, não dão lugar a nenhuma responsabilidade.

Q ua nto aos atos provados e aos atos anteriores ao início de seu ma ndato , eles

 podem ser motivo de processo, mas somente após o fim do mandato .

A terceira tese é intermediária: o ato provado ou anterior ao mandato,

mas ocorrido no decorrer deste, poderia ser de extrema gravidade e obvia

mente seria chocante que um grande criminoso não pudesse ser processadoantes do final de seu mandato. Ele não deve, portanto, se beneficiar de ne

nh um a irresponsabilidade. Mas como a decisão de processá-lo e de conde ná-

lo por esses crimes provado s ou antigos apresenta u m caráter político, não se

 pode perm itir o exercício da competê ncia das ju risdições de direito com um

e, assim, protege-se o chefe de Estado com um a im unid ade de jurisdição. Es

sa terceira tese leva, portanto, a distinguir para esses atos a irresponsabilida

de, que é recusada, e a imun idad e de jurisdição, que é consen tida. Essa é pre

cisamente a solução americana e a que adotou, na França, o Conselho

Con stitucional, em u m a decisão de 22 de janeiro de 1999 (98-408 DC, trata

do a respeito do estatuto do Tribunal Penal Internacional).

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• 0 5 ministros

A questão da responsabilidade política já foi vista no capítulo anterior 

e as considerações seguintes são referentes apenas à responsabilidade deno

minada penal. Os problemas são análogos mas não idênticos aos que se co

locam em relação ao chefe de Estado, e análogos mas não idênticos nos regi

mes parlamentares e nos regimes presidenciais.

A responsabilidade penal dos ministros é sua razão de ser. Por isso, di

ferentemente do chefe de Estado, nunc a são pe nalm ente irresponsáveis. Mas,

como no caso do chefe de Estado, a questão é saber se, para os atos ligados asuas funções, eles devem ser submetidos a uma responsabilidade de direito

comum ou a um regime particular. Concebem-se três soluções, cada uma

com seus adeptos.

a) Eles são subme tidos a um regime particular. É o que oc orre na Fran

ça. Antes da reforma de 1993, eles provinham da Alta Corte de Justiça, como

o Presidente da República. Desde 1993, é o Tribunal de Justiça da República

que é competente para julgá-los, mas trata-se ainda de uma jurisdição espe

cial. É essa jurisdição que, em 1999, julgou os ex-ministros no caso do sangue contaminado. É também o sistema americano. A principal justificativa é

que somente uma jurisdição especial, composta pelo menos parcialmente,

 por hom ens políticos, é capaz de pro fe ri r um ju lg amento necessariamente

 político . A principal cr ít ica dir ig id a a essa so lução está pre cisamente ligada a

essa justificativa: uma jurisdição composta por homens políticos pode ser 

motivo de d esconfiança de parcialidade.

 b) Eles são submetidos a uma responsabi lidade de direi to comum diante

dos tribunais ordinários (D u h a m e l  e V e d e l , 1999). É o que ocorre, por exem plo, na Itália. A justificativa dessa so lução reside no princíp io de igua ldade e na

neutralidad e dos juizes ordinários. O risco, assim como pa ra o chefe de Estado,

é a incapacidade técnica dos juizes ordinários de apreciar as condições nas

quais os ministros exercem seus poderes e a tentação das auto ridades jurídicas

de interferir na instauração dos processos ou no julgamento das preferências

 políticas, embora não tenham a qualidade de representantes do soberano.

c) Para os atos relativos a suas funções, eles são submetidos exclusiva

mente a uma responsabilidade política. Essa solução é preconizada por al

guns juristas, notadamente porque os critérios do direito penal se mostram

inadequ ados, qu an do se trata de apreciar os atos emin entem ente políticos, li

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gados ao func ionam ento do Es tado (Bé a u d , 1999). Mas essa solução é clara

men te inad equ ada aos s is temas nos quais a responsabi l idade pol í tica dos m i

nistros nã o existe e, ond e ela existe, no caso dos ex -ministros.

Para os atos exter iores às funções, na ma ioria dos sistemas, os min istros

estão subordinados a uma responsabi l idade de d i re i to comum.

2. Os órgãos subordinados

O chefe de Estado e os ministros só podem exercer suas atribuições e

notada me nte executar as leis por m eio de um a adm inistração, composta defuncio nários qu e eles nom eiam e dirigem. Na prática, os funcioná rios são le

vados a toma r um núm ero muito g rande de decisões e dispõem, no caso dos

altos funcionários, de um poder importante de apreciação. Mas o que confe

re a unidade ao poder executivo é que esses funcionários pertencem a uma

hierarquia e só devem usar seus poderes em co nform idade com as instruções

que recebem.

A submissão dessa administração é o elemento que permite designar o

chefe de Estado e os m inistros co m o “o po der executivo”.Aliás, os próprios ministros são um elemento dessa hierarquia. Eles são,

com efeito, freqüentemente colocados à frente de uma administração espe

cializada, um dep artam ento ministerial, e nesse sentido, devem aplicar as de

cisões tomadas pelo poder executivo supremo, dando as ordens necessárias

aos funcionários que se encontram sob sua autoridade. Em contrapartida,

eles são, às vezes, me m bros desse pod er executivo supre mo qu an do têm o di

reito de se reu nir em conselho e de tom ar decisões coletivamente. Fala-se, en

tão, de desdobramento funcional para ressaltar que o ministro é, simultanea

mente, membro do governo e chefe de serviço e que, na qualidade de chefe

de serviço, ele deve aplicar as decisões tomadas coletivamente pelo governo,

das quais ele participou.

 No entanto , existem casos em que a execução das leis escapa ao poder exe

cutivo supremo. Fala-se, nesse caso, de desm embramento do pod er executivo.

3 .0 desmembramento do poder executivo

Essa expressão é na verdade ina dequ ada porq ue ela dá a enten der qu e o

 poder execut ivo te ria sido, em um prim eiro m om ento , perf eitamente unif i

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cado, para em seguida ser dividido. Na verdade, muitas vezes a constituição

ou o legislador desejam garan tir a execução das leis por auto ridade s in de pen

dentes do poder executivo supremo, seja pela desconfiança em relação a ele

ou simplesmente porque se crê necessário preservar em algumas áreas uma

margem de auton om ia. Isso correspo nde a dois casos, a descentralização ter

ritorial e a criação de autoridades administrativas independentes.

a)  A descentralização territorial é um procedimento de organização ad

ministrativa. A execução das leis pela produção de normas locais é confiada

não a funcionários que dependem do p oder executivo supremo, mas a auto

ridades eleitas pelos habitantes das circunscrições que elas administram. Adescentralização se revela, dessa forma, como uma forma de auto-adminis-

tração.

As decisões dessas autoridades devem, em todo caso, estar em confor

midade com a lei. Essa conformid ade é garantida pelos tribuna is, pelo governo

ou por u m a com binação das duas esferas. Mas, mesm o q uan do ela é garan

tida pelo governo, este não pod e da r instruções às autoridade s descentraliza

das, como o faz em relação a seus funcionários.

 b)  As autoridades admin istrativas indep en den tes  (cf. C o l l i a r d e T i m s i t ,1988).

 Nos sistem as políticos m odernos existe, como vim os, um núm ero cres

cente de áreas nas quais a lei não é capaz de administrar tudo e deve se limi

tar a enu nciar p rincípios, de m odo que os sujeitos fiquem subm issos ou a re

gulam entos, ou a decisões tom adas caso a caso. No Estado tradicional, esses

regulamentos e essas decisões eram adotados pelo poder executivo. Ocorreu

que essa solução poderia apresentar inconvenientes em algumas situações,

seja porq ue se suspeitava que o p od er executivo nã o possuía a im parcialidade necessária nas m atérias relativas a liberdades fu ndam entais, seja po rqu e o

 poder execut ivo poderia temer , p or covardia , tom ar decisões difíceis, seja ain

da porque, por preocupações corporativistas, algumas profissões tenham re

clamado e obtido o poder de administrar a si mesmas.

Criaram-se, p ortanto, em vários países, autoridades de nom inadas auto

ridades a dm inistrativas independentes, bem diferentes umas das outras, mas

que apresentam uma característica comum importante: elas não estão sub

metidas à hierarquia administrativa e não recebem ordens do governo. Elas

são comp ostas de mod o a garan tir simultaneam ente a neutralidade e a impa r

cialidade, a competência técnica e a proteção dos interesses dos destinatários

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das decisões. É po r isso que elas com pree nde m freqü entem ente m agistrados,

membros das profissões envolvidas, representantes dos usuários, das perso

nalidades escolhidas em razão de suas competências ou de seu valor moral.

As técnicas de designação são variadas: eleição po r m em bros de um a profis

são ou de um grupo de magistrados, cooptação, nomeação por autoridades

 polí ticas ou combin ação desses procedim ento s.

3.A FUNÇÃO JUDICIÁRIA

A função judiciária consiste em decidir os litígios. O exercício da fun

ção judiciária levanta graves problemas práticos e políticos que se tenta, às

vezes, resolver me dian te discussões teóricas. Qu estiona-se, assim, se a justiça

constitui ou não um terceiro poder para te ntar de duz ir da resposta a essa per

gunta conseqüências pa ra a independência dos juizes ou a autoridade da ju

risprudência.

Para essa questão, não é possível dar respostas porque não existe essên

cia da justiça ou da função judiciária. Apenas pode-se examinar quais concepções da justiça serviram para justificar um ou outro tipo de solução prá

tica e qual é a extensão do poder do qual dispõem, de fato, as autoridades

 ju rídic as para essas soluções.

A. Diferentesconcepçõesda funçãojudiciária

1 .0 julgamento-silogismo

Primeiramente, pode-se considerar que a função judiciária consiste em

decid ir litígios, aplicando u ma regra legal geral a um caso particular. O julga

men to se revela, então, com o o p rodu to de um silogismo den om inado “prá

tico”, porque é conduzido em relação à ação, diferentemente do silogismo

“teórico”, que fundamenta o conhecimento. O silogismo teórico leva, a par

tir de uma premissa maior, “todos os hom ens são mo rtais”, e um a premissa

menor, “Sócrates é homem” à conclusão segura “Sócrates é mortal”. As pre

missas, como a conclusão, são proposições. Quando as premissas são verda

deiras, a conclusão é necessariamente verdadeira. O silogismo prático apre

senta uma estrutura idêntica:

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-  premissa maior : “todos os ladrões devem ser pu nido s com cinco anos

de prisão”;

-  premissa menor: “Du pon t é um ladrão”;

- conclusão: “D up on t deve ser pun ido com cinco anos de prisão”.

A única diferença é que, nesse caso, a premissa maior e a conclusão não

são proposições, mas prescrições.

Foi a concepção adotada pela Revolução Francesa. Ela ainda é ampla

mente dominante, porque é perfeitamente compatível com o princípio de

mocrático: não há outro poder senão aquele da lei.

Disso resulta que a função judiciária é apenas um a pa rte da função executiva: ela consiste, na verdade, na aplicação da lei. Mas disso não resulta que

a função judiciária deva ser exercida pelo poder executivo, tampouco pelo

 poder legislativo. É exata mente o contr ário , as funções devem ser separadas.

Se elas não o fossem, haveria o risco do julga mento não ser a estrita execução

da lei, mas a expressão dos caprichos do legislador ou do executivo. Conside

ra-se, por co nseguinte, que existem dua s funções, a funç ão executiva prop ria

mente dita   ou  fu nção admin is trativa  e a fu nção executiva contenciosa  ou  fu n

ção judiciária , cada uma delas sendo exercida não por um poder, mas por um a autoridade . Essa terminologia não desapareceu e a constituição de 1958

emp rega a expressão autoridade judiciária.

Está claro que, de acordo com essa concepção, a função judiciária não é

a aplicação de um po der real, pois a premissa m aior se enc ontra de ntro da lei,

enquanto que a premissa menor descreve um fato objetivo. O papel do juiz

consiste, portanto, em apenas deduzir uma conclusão e pode-se dizer, então,

que o poder de julgar é, segundo uma fórmula célebre de Montesquieu, “de

certa maneira, nula”.Disso deco rrem várias conseqüências.

A primeira é que os juizes devem ser independentes. Particularmente,

eles não devem ser revogáveis, nem pelo poder legislativo, nem pelo poder 

executivo. Em alguns sistemas, acrescentam-se exigências complementares:

eles não devem obter sua nomeação de um ou de outro, o que significa, na

 prá tica, que eles devem ser eleitos ou cooptados; de fo rma se melhante , suas

carreiras não devem depender dos outros poderes.

A segunda conseqüência é que, de forma inversa, os juizes não devem

exercer outras funções senão a função judiciária. Isso coloca um problema

delicado, o da interpretação.

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2 .0 juiz criador

A teoria do silogismo jurisdicional repousa totalmente na idéia de que

a premissa maior é para o juiz um dado, uma premissa sobre a qual ele não

tem nenhum poder. Mas, na verdade, existem numerosas situações em que

o juiz po de e nc on trar vários textos aplicáveis a um me smo litígio, levando a

diferentes soluções, e outras situações em q ue ele não enc ontra nen hu m tex

to. É tam bé m possível e freqüente que o texto aplicável conten ha vários sen

tidos. Em todos os casos, torna-se necessário fazer escolhas e não mais é ver

dade afirmar que os juizes não dispõem de nenhum poder. Somos levados,ao con trário, a deixar claro que julgar é exercer um real po der de criação do

direito.

Essa concepção, que se difundiu a partir do final do século XIX, impli

ca também um certo número de conseqüências: a função judiciária não mais

é vista como uma variedade de execução, já que, efetivamente, ela não mais

consiste na execução das leis. É uma terceira função, reivindicada em provei

to daqueles que exercem o título de “poder judiciário”. Ela deve ser exercida

 por um poder neutro: juizes pro fiss ionais in dependente s. Esse terceiro poder  pode servir de contr apeso aos dois outros: ele pode contro lar os ato s do p o

der executivo e até os do poder legislativo.

B.Assoluções

As soluções adotadas nos diferentes sistemas constitucionais são ex

tremamente variáveis e se inspiram em uma ou outra concepção com umrigor variável. Pode-se, simplificando, considerar que a Revolução Francesa

aplicou rigorosamente a concepção do julgamento-silogism o e que as soluções

adotadas posteriormente, na França ou em outros países, nutrem-se dos

dois modelos.

1. As soluções francesas da época revolucionária

Elas se caracterizam pela vontade de especializar o juiz na produção desilogismos. É importante, portanto, que as premissas sejam para ele um da

do sobre o qual ele não terá nenhum controle. Para a premissa menor, que

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descreve um fato, a solução é simples: não é o juiz, mas um júri, que a esta

 belecerá. Q uanto à premissa maio r, a regra geral a ser aplicada é q ue só se p o

de tratar de uma lei, ou seja, de um ato adotado pelo Parlamento. Portanto,

é preciso proceder de modo que o juiz não tenha nenhum controle sobre a

lei. Isso implica duas proibições.

 A prim eira se refere às portarias de regulamentos.  Tratava-se de decisões

dos Parlamentos do Antigo Regime, que não decidiam um litígio específico,

mas continham o enunciado de uma regra geral e abstrata. A proibição des

sas portarias, que co nstituíam um a imisção no exercício do p od er legislativo,está formulada na lei de 16-24 de agosto de 1790, e novamente no art. 5 do

Código Civil. E, porta nto , contin ua em vigor.

A segunda se refere à interpretação. Sobre esse ponto, um dilema se

apresenta: por um lado, considera-se que a interpre tação das leis lhes pe rm i

te atribuir à vontade este ou aquele significado e, definitivamente, como as

 porta ria s de regulamentos, é apen as um a usurpação do poder legislativo. É

 por isso que se recusa a idéia de que a j uris prudência possa ser um a fonte do

direito. Mas, po r outr o lado, se o juiz nun ca pu de r interpretar, dado que a lei pode ser obscura , alguns litígios nunca poderão ser resolvidos. A solução, en

genhosa mas de difícil adoção, consistiu em distinguir dois tipos de in terp re

tação. Em p rime iro lugar, é necessário pro ibir rigorosame nte aos juizes qu al

que r interp retação po r via de disposições gerais e abstratas, que eqüivaleriam

a mandados de regulamento. Porém, em segundo lugar, é necessário permi

tir-lhes e até obrigá-los à interpretação da lei, qu an do essa interpretação é ne

cessária a fim de resolver um litígio concreto (interpretação denominada in 

concreto). Esse dever está fo rmulad o de forma clara no art. 4 do Código Civil.A dificuldade prové m da existência de um a m ultiplicidade de tribunais,

que p ode m levar ao receio de que u m a lei seja interpretad a de um a form a em

Bordeaux e de outra em Lille. Se organizarmos uma hierarquia de jurisdi

ções, no intuito de garantir, mediante recursos, uma unidade de interpreta

ção, veremos a formação de uma ju risprudência , ou seja, um conjunto de re

gras gerais que emanam dos juizes, exatamente o que se deseja evitar. É por 

isso que os revolucionários im aginar am a m edida cautelar legislativa: criou-

se um tribunal de cassação, estabelecido em h arm on ia com o corp o legislati

vo que cassará as decisões assentad as em u m a falsa interpretação da lei e p ro

nunciará uma interpretação in concreto correta. Mas, no caso de divergências

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repet idas ent re o t r ibunal de cassação e os t r ibunais de segunda instância ,

 pre su me-se que u ma in te rp re tação geral , den om inada in abstrato>se torna ne

cessária e, como se trata, nesse caso, de 11111 ato de legislação, é o próprio po

der legislativo que emitirá essa interpretação (HUFTEAU, 1965).

 Na prá tica, essa so lução não logrou os re sultad os esp erados. De um la

do, os juizes, apavorados, especialmente durante o período revolucionário,

 pela pro ib ição de in te rpretar  in abstracto, se abstiveram de interpretar, mes

mo in concreto, o que resultou em verdadeiras denegações de justiça. De ou

tro lado, o processo que deve permitir ao legislador a interpretação da lei é

tão trabalho so qu e ele nun ca chegará ao fim. Foi po r isso que a med ida cau-telar foi definitivamente abolida em 1837. A partir desse m om ento , coube ao

tribunal de cassação dar à lei uma interpretação que se impôs a todos. Con

sidera-se assim o estabelecimento da jurisprud ênc ia com o fonte do direito.

2. As soluções contemporâneas. A teoria do poder judiciário

Dado que a jurisprudência é uma fonte de direito e que os juizes não

mais são conside rados exclusivamente como a autorida de de aplicação da lei,fala-se, às vezes, de um terceiro poder, o poder judiciário. No entanto, se da

mos à expressão um significado não apenas funcional, mas orgânico, pode

mos falar de um real poder judiciário somente mediante um certo número

de condições, que raramente são preenchidas.

 Notemos, prim eir am ente , que não é necessár io se ate r aos te rm os em

 pregados pelo texto consti tu cio nal. Ocorre , de fato, que um capítulo seja in

titulado “poder judiciário”, como na constituição francesa de 1791, embora

os juizes não disponham de real poder e sejam até mantidos em situação su

 bordin ada ou, ao contr ário , quando dispõem de competê ncias bem reais são,

ao mesmo tempo, designados como simples “autoridade judiciária”.

É, portan to, a organização dos tribu nais e a extensão de suas atribuições

que deve ser examinada. Na verdade, é útil distingu ir dois sentidos, bem di

ferentes, da expressão “poder judiciário”

 No sentido amplo, a expressão designa simplesm ente a independência e

especialmente a inamovibilidade dos juizes, que podem exercer a função judiciá

ria sob a proteção de qua lquer influência do pod er legislativo ou do po de r exe

cutivo. O essencial é que eles não possam ser destituídos por outros poderes.

Mas podem existir variações consideráveis nos procedimentos de seleção, de

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nomeação, no avanço ou 110 exercício do poder d isciplinar sobre os juizes. Nos

 países de Comm on Law, os juizes são designados de acordo com diversos pro

cedimentos, eleição ou nomeação: eles são escolhidos dentre os juristas já expe

rientes, advogados ou professores de direito, mas eles não formam um grupo

único no seio do qual fariam carreira. Se estamos falando, entretanto, de um

 poder judiciário, é em razão de sua independência. Nos países da Europa conti

nental, a independência está diferentemente organizada: existem gru pos de ma

gistrados, recrutados por concurso, com o os ou tros funcionários. Sua carreira se

dá n o seio desses grupos e seu desenvolvimento é adm inistrado po r um conse

lho da magistratura, composto pelo menos em parte po r representantes eleitosdos magistrados. É esse conselho que também exerce o poder disciplinar.

É preciso chamar a atenção para o problema particular do ministério

 púb lico . Cham am os assim o conju nto dos magis trados que exercem nota da-

mente processos em matéria penal. Eles reivindicam, às vezes, como na Fran

ça 16, um estatuto an álogo ao do s juizes de investidura e no tada m ente as mes

mas garantias de independência. Esse estatuto lhes é, em geral, reconhecido

som ente q uan do, co mo na Itália, a lei não lhes confere o livre po der de a tuar 

ou não os processos. No sentido rest ri to , que tam bém é o sentido forte, fala-se de poder ju

diciário quando ele é concebido como um contra-poder. Isso implica, por 

um lado, que, para que os tribunais sejam capazes de fazer con trapeso ao p o

der legislativo, eles possam con trolar a constituciona lidade das leis e, por o u

tro, que a carreira dos m agistrados em nada de pen da d o po der executivo, que

não deve poder nem promovê-los, nem sancioná-los, tampouco a fortíori 

destituí-los. Essas duas propo sições pod em , aliás, ser objeto de u m a interp re

tação radical, a primeira para significar que o controle de constitucionalidade não deve ser exercido po r um tribuna l constitucional especializado, com o

em geral ocorre na Europa, mas pelos tribunais ordinários, sob a autoridade

de um tribunal suprem o, e a segunda de m odo que não são apenas os juizes,

mas também as autoridades de processo, os procuradores, que deveriam ser 

considerados integrantes do poder judiciário e gozar de total independência.

 No entanto , essa idéia de um poder ju dic iá rio no sentido forte dificil

mente é compatível com as teorias democráticas proclamadas por todas as

constituições contemporâneas. Em uma democracia, com efeito, se o poder 

16 Cf. infra.

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0 Po d e r 149

legislativo é exercido pelos representantes do povo soberano, é difícil conce

 ber que possa existir um contra peso na pessoa de ju izes não eleitos.

4. OS PODERES DE CRISE

Podem ocorrer situações nas quais os poderes constituídos sejam incapa

zes de agir, seja porque eles são mater ialmen te im pedidos por essas circunstân

cias, seja simplesmente porque a lentidão dos processos, o respeito aos direitos

e liberdades fundamentais ou a divisão das competências os impedem . Qu er se

trate de guerras externas ou internas, ou de catástrofes naturais, compreende-

se que se torna difícil e mesmo impossível o respeito à constituição, diante des

sas situações. Pode até m esm o ocorre r que a crise ameace a constituição em si

mesma. Pode-se considerar, então, que é preciso poder agir e decidir rapida

mente fora das formas constitucionais, ou seja, concentrand o por algum tem

 po todos os poderes nas mãos de um único indivíduo. É por isso que se pode

escrever que os períodos de crise demanda vam um soberano e, por via de con

seqüência, que esses períodos propiciavam um verdadeiro teste que permitiarevelar aquele que, no Estado, era um verdadeiro soberano: é aquele que “deci

de uma situação excepcional” (SCHMITT, 1988). De um ponto de vista jurídico,

duas situações podem ocorrer: a constituição não contém nenhuma regra re

lativa às circunstâncias excepcionais ou, ao contrário , ela procura organ izar os

 poderes permit in do, assim, enfrenta r o problema.

Caso o texto constitucional não contenha nenhuma disposição para

tempos de crise, o próprio legislador pode, se necessário, adotar medidas

apropriadas ou conferir poderes excepcionais a uma autoridade distinta, oexecutivo, um a parte do executivo, o exército. Esses poderes excepcionais ex

cederão aqueles que n orm alm ente são exercidos por essas autoridades e mes

mo o poder atribuído pela constituição ao legislador, se eles encerram, por 

exemplo, competências jurídicas. No entanto, justifica-se essa violação da

constituição por um princípio não escrito, salus pop uli suprema lex, a salva

ção do povo - da república ou da constituição - é a lei suprema. Em outros

termos, seria permitido su spender - por um temp o - a constituição, se for o

único meio de salvá-la.Tal solução com po rta du as dificuldades principais: a prime ira está liga

da ao estatuto do princípio salus pop uli..., que evidentemente não é um a n or

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ma jurídica positiva. Já que a transferência dos poderes excepcionais é, por 

hipótese, desprovida de base legal, o princípio salus popu li... pode ser facil

men te evocado não ape nas pelo órgão legislativo, mas p or qualq uer o utra a u

toridade, por exemplo, pelo exército. Em contrapartida, não há nenhuma

medida objetiva da necessidade de recorrer a essa transferência de com pe tên

cias e pode-se conceb er facilmente que um a auto ridad e qualq uer adote o pre

texto de um perigo imaginário para justificar a usurpação do poder.

A segunda dificuldade se refere às constituições que tentam prever e ad

m inis trar esses tipos de situações. As constituições se vêem dian te de dois ob

 jetivos contra ditó rio s: ou te nta m fixar limites aos poderes, por te mere m umuso arbitrário, arriscando po rém prescrever regras que em determ inado m o

mento se revelarão inadequadas; ou privilegiam a eficácia, com o risco inver

so ao uso arb itrário. D iante disso, as técnicas e as regras são extrem am ente va

riadas e podem ser classificadas de acordo com vários eixos, relativamente ao

que elas prevêem quanto à adoção dos poderes de crise, à determinação do

 benef ic iá rio e aos poderes que lhe serão conferidos.

a) A adoção

A constituição pod e se abster de definir as circunstâncias que justificam

a adoção desses poderes, porqu e se considera q ue essas circunstâncias são p or 

natureza imprevisíveis e que uma definição demasiadamente estrita impedi

ria o seu enfrentamento ou obrigaria a uma violação do direito.

Ela também pode tentar tal definição. As circunstâncias visadas são, en

tão, externas ao sistema constitucional (guerra no exterior, insurreição, catás

trofe natural17), ou internas ao sistema, ou seja, uma paralisia do sistemaconstitucional em si mesmo , ou, com o na França, com o art. 16, um a com bi

nação desses dois fenôme nos.

Quer um a definição conste ou não do texto constitucional, este deve desig

nar a autorid ade com petente para c onstatar oficialmente se as circunstâncias

que justificam a adoção dos poderes se encontram realizadas. Essa autorida

de pode ser, como na França, a mesma que exercerá os poderes excepcionais,

com o risco evidente de uso abusivo. Mas pode se tratar também de uma au

toridade diferente, o Parlamento ou uma jurisdição, neste caso, com duplo

17As novas constituições do Leste Europeu acrescen tam catástrofes ecológicas do tip o Chernobyl.

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0 Po d e r 151

risco: conivência com o beneficiário dos poderes de crise ou, ao con trário, ri

validade com esse beneficiário e a possibilidade de nunca adotá-los.

b) D eterminação do beneficiário

- Pode se tratar de um a autoridade especialmente criada para exercer 

esses poderes durante o período de crise (como na ditadura romana) ou de

um a autorid ade instituída, por exemplo, o exército ou um dos poderes púb li

cos constitucionais, freq üen teme nte o chefe de Estado.

c) Os poderes conferidos a essa autoridade , que podem ser definidos quanto:

- A seu objeto (garan tir de todas as formas a cond uta da guerra, a m a

nutenção da ordem ou simplesmente, como na França, adotar as medidas

exigidas pelas circunstâncias) o u à natureza das no rm as que seu deten tor es

tá habilitado a editar: normas de nível legislativo com ou sem possibilidade

de derrog ar à constituição, notad am ente para limitar o exercício dos direitos

e liberdades, norm as adm inistrativas ou até jurídicas, po r derrogação às com  petên cias normais .

- Às suas modalidade s de exercício: todos os poderes pod em estar con

centra dos nas mãos de um único sujeito, para serem exercidos sem ne nh um a

formalidade, mas a constituição pode também exigir o respeito a determina

dos procedimentos, notadamente a obrigação de consultar organismos, e até

mesmo de receber seu consentimento.

- Ao prazo dura nte o qual eles pod em ser exercidos. Esse prazo po de ser 

fixado pela própria constituição. Ele pode ser estipulado de acordo com avontade do próprio beneficiário ou de um terceiro, seja a autoridade compe

tente para fazer vigorar esses poderes excepcionais, seja alguma outra.

- À decisão e às competências das ou tras auto ridades. A aplicação dos

 poderes de crise pode esta r ligada a uma suspensão to ta l da consti tu ição, o

que proíbe os outros poderes públicos constitucionais de se reunir ou, ao

contrário, determina uma convocação imediata desses poderes públicos. No

segund o caso, eles pod em con trolar e sancionar o con teúdo das decisões que

forem tomadas ou a pessoa do autor, dar rumo a suas atividades ordinárias,

ou ainda exercer essas duas funções simultaneamente, controlar e dar rumo

a suas atividades.

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Subseção2

Adesignaçãodosgovernantes:osmodosdeescrutínio

Em se t ra tan do das insti tu ições da democrac ia d i reta , o prob lema da ex

 pressão da soberan ia não apresen ta d if iculdade particular. A ún ica ques tão é

a da qual i ficação necessár ia para que o indiv íduo possa par t ic ipar da votação

 popu lar , da iniciativa, d o veto o u d o referendo. O p rob lem a é resolvido pela

legislação relativa às condições necessárias para o gozo e o exercício dos di

rei tos polí t icos: idade, sexo, nacion alidade , capac idade intelectual e moral .

Q uan do o povo é chamad o a expressar sua soberan ia p or in t e rmédio derepresentantes , t ra ta-se de f ixar a m anei ra com o estes serão designados. Pro

vavelmente , no espí r i to democ rát ico , um único p roced ime nto é aceitável, é a

eleição. Mas a eleição em si mes m a é suscetível de mo dalida des be m diferen

tes que inf luem no resul tado do escrut ín io e, po r conseguinte , na im po r tân

cia do voto em it ido pelos c idadãos (G o g u e l e D u v e r g e r  , 1950).

1. O DIREITO AO VOTO

 A extensão do direito ao voto . - Os avanços da idéia de dem ocracia fo

ram marcado s, dura nte o século XIX, pela progressiva extensão do direito ao

voto. Sua atribuição a categorias cada vez mais nu me rosas de indivíduo s foi

objeto central das lutas políticas. Primitivamente reservado a um número

restrito de privilegiados, seja porque ele estava subordinado ao pagamento

do impo sto efetuado pelo cidadão (sufrágio censitário), seja porq ue estava li

gado a determinados títulos ou capacidades intelectuais, ou então, porque,como na Inglaterra, os critérios de sua atribuição dependiam de situações

históricas as mais diversas, o direito de voto foi generalizado somente por 

etapas cuja duração foi variável de acordo com os países ( B u r d e a u , t. VI, n.

184 e s.). Consid erando -se que o sufrágio universal foi intro duz ido na Ingla

terra apenas em 1918, que, na França, foi necessário esperar até 1945  para

que as mulheres fossem às urnas, que nos Estados Unidos apenas há pouco

mais de uma década a Suprema Corte e a constituição (24- emenda) proibi

ram as taxas eleitorais (poli taxes) e os testes de seleção que, em certos países,excluíam do esc rutínio até 15% dos cidadãos (os negros) que tinha m só teo

ricamente o direito de voto, pode-se dizer que o sufrágio universal é um a ins

tituição relativamen te recente.

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0 Po d e r 153

Admitido em todas as democracias contemporâneas, ele significa que,

se o exercício do direito de voto pode ser regulamentado, a regulamentação

não pode, em nenhum caso, estar baseada na condição social, na riqueza, na

na raça ou na hereditariedade do indivíduo. No entanto, sem deixar 

de ser universal, o voto pode ser  indireto , ou seja, ao invés de ser designado

 pelo eleitor, são as pró pria s personalidades eleitas pelo sufrág io universa l que

elegem os representantes. Esse voto indireto ou de dois graus é, por exemplo,

aquele utilizado na França a tualmen te, para eleição dos senadores.

2.OS DIFERENTES TIPOS DE ESCRUTÍNIO

A histór ia das inst i tuições elei torais permite dist inguir t rês t ipos de es

crutínios: o escrutínio com plural idade de vozes, o escrutínio majori tár io e o

escrut ín io proporcional (P à SSELECQ, 1995).

A. 0 escrutíniocom pluralidadedevozes (turnoúnico)

É aquele que consiste em proclam ar eleito o cand idato que obteve mais

votos em sua circunscrição. Se existem várias cadeiras a ocupar, serão eleitos

os candidatos que obtiveram mais vozes. No primeiro caso, existe o escrutí

nio un ino m inal (um único ca ndida to a ser eleito), e no segundo, existe o es

crutínio de lista (vários candidatos a serem eleitos embora eles não sejam

obrigados a se filiar para disputar os votos dos eleitores).

Em sua forma uninominal, esse escrutínio é tradição nos países anglo-

saxões. Na Inglaterra, a legislação eleitoral sofreu muitas variações desde aampliação do corpo eleitoral pelo Lorde Grey, em 1832, até as leis de 1884,

estabelecendo o sufrágio universal dos hom ens, e de 1918, introd uzin do o vo

to feminino. Mas o m odo de escrutínio perm aneceu imutável: cada circunscri

ção dispõe de uma sede na qual é eleito o candidato que conseguiu mais vo

zes, independentemente da porcentagem que lhe foi destinada, e mesmo na

ausência de outros concorrentes. Nos Estados Unidos, onde o processo de

eleição é usado pa ra recrutar não apenas os dep utados e senadores, mas tam

 bém os juizes e os governantes de Estado, a mesma regra contin ua em vigor:escrutínio uninominal com eleição de pluralidade de vozes. Há somente ex

ceção para o Presidente e o Vice-Presidente dos Estados-Unidos, aos quais a

constituição impõe a reunião de vozes da maioria absoluta dos grandes elei-

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torcs. O escrutínio m ajoritário com turn o único é aquele també m praticado

na URSS; um segundo turno de escrutínio está previsto apenas para o caso

improvável da maioria absoluta não ser alcançada no primeiro turno.

A França tamb ém conheceu o esc rutínio com p luralidade de vozes, mas

na fo rma de escrutín io de lista, em 1848 e em 1871. O decreto de 5 de m arço

de 1848 que estabeleceu o sufrágio universal dispunha que, na circunscrição

eleitoral formada pelo departamento, seriam eleitos os candidatos que, com

 pelo menos 2 mil cédu las, tivessem obtid o o maio r núm ero de votos. A c ons

tituição de 4 de novembro de 1848 conservou o mesmo regime com a dife

rença de que o mínimo de 2 mil vozes foi substituído pelo do oitavo dos inscritos (L. de 15 de maio de 1849). A quantid ade de vozes para cada eleitor era

 proporcio nal à quantid ade de deputados a serem eleitos. Ab-rogado pela

constituiçã o de 1851, esse sistema foi recolocado em vigor pelo decre to de 29

de janeiro de 1871.

Servindo-no s desse mo do de escrutínio, cujo exemplo m aior é o anglo-

saxão, invocamos imp ressionantes argum entos. O escrutínio com pluralida

de de vozes, que ob riga as opiniõe s a se agru pare m , garante um grand e eq ui

líbrio aos partidos; força-os a se desligarem da influência dos grupos deinteresse quando estes desejam aliciar uma ampla clientela; desvia-os das

 pre ocupações puram ente ideológicas e os leva a apre senta r, e posteriorm en

te aplicar, um pro gram a de realizações práticas por meio das quais o país se

torna melhor do que se ele estivesse relegado às controvérsias dos místicos.

“Nã o há lugar para a ideologia em um partido que somen te pode viver qu an

do tem chances de conseguir a maior ia dos eleitores na ma ioria das circunscri

ções.” Pelo sistema dos dois grandes partidos ao qual conduz necessariamentey

o escrutínio com pluralidad e das vozes garante en fim a coesão e a estabilidade dos governos.

Esse fato se explica porque o escrutínio com um turno incita o eleitor a

“votar útil”, ou seja a dar seu voto ao candidato que, sem responder exata

mente ao que ele almeja, está, entretanto, mais próximo de suas convicções.

Co mo existe som ente um a chance de jogar, o eleitor serve-se dela para afas

tar o candidato que lhe é indesejável. Conscientes dessa atitude psicológica,

as diferentes forças políticas se agrupam de tal maneira que a competição

eleitoral se reduz a um combate entre apenas dois partidos. É assim que o es

crutínio com um turno único leva a uma bipolarização da opinião que en

contra sua expressão no bipartidarismo.

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0 Po d e r 155

Essas vantagens são irrefutáveis, e são condições necessárias para ser ad

quirido de fato um ambiente de lealdade no jogo das instituições representati

vas de modo que a maioria respeite os direitos da minoria e que, de maneira

inversa, esta, em seu combate para ganhar a opinião, utilize apenas as armas

condizentes com o devido respeito às vontades po pulares na forma que lhes foi

 proporc io nada pelo voto. Na Inglaterra , após as eleições de 28 de fevereiro de

1974, Wilson formou o ministério graças a um sistema eleitoral majoritário

que, com 37,2% das vozes, deu 301 deputados aos socialistas, enquanto que

com 38,1% dos votos os conservadores obtiveram apenas 296 lugares. É difícil

imaginar os franceses se acomodando a tal ilogismo. É portanto mais que umsistema eleitoral que está em jogo, é o problema fundamental, tanto para a li

 berdade política quanto para o fu ncio namento da democracia representativa ,

das relações e dos direitos respectivos da maioria e da minoria (F a v r e , 1976).

B. O escrutínio majoritário (doisturnos de escrutínio)

O escrutínio majoritário repousa na idéia de que a autoridade do eleito é

legítima somente qu and o ela pode se apoiar em um núm ero suficiente de votos. Será exigida, portan to, a maioria absoluta dos votos, calculada seja pelo n ú

mero dos inscritos, seja apenas pelo dos votantes ou votos expressos. No e nt an

to, com o é preciso, po r ou tro lado, chegar a um a designação, atenuam -se após

um determ inado núm ero de turno s as exigências majoritárias, ou porque está

 previsto que a parti r de tantos tu rnos sem resultado a eleição será adquir id a

com maioria relativa, ou porque se especifica que somente permanecerão na

disputa os dois candidatos m ais beneficiados no turno anterior.

O esc rutínio m ajoritário se caracteriza, desse mo do, m enos pela exigência de maioria qualificada do que pela pluralidade dos turnos de escrutínio.

 Não será estr anho encontr ar na origem desse sistema uma prá tica do direito

canônico, codificada pelo Concilio de Latran: na ausência de unanim idade a re

gra eclesiástica considera que somente a maioria absoluta pode traduzir a

vontade do colégio eleitoral concebido como um corpo autônomo. A Igreja

não é uma sociedade democrática? Mas o que é mais surpreendente, numa

 prim eira abord agem, é consta tar que a exigência da maio ria absolu ta , com

seus corolários, o segund o tu rn o e o ballottage (numa eleição com escrutínio

majoritário de dois turnos, resultado negativo em que n enh um dos candida

tos obtém maioria dos votos expressos; segunda votação), foi restabelecida

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 por Luís Nap oleão em 1852, quando a Segunda República a havia afastado

em proveito da maioria relativa. No entanto, essa medida se explica quando

se tem conhecimento de como o Príncipe-Presidente soube explorar as pos

sibilidades oferecidas pelo segundo turno às transações e às pressões oficio

sas. O ballottage se introduziu, dessa forma, nos hábitos eleitorais como um

remédio para o sufrágio universal.

Certamente, com o estabelecimento da República, o ballottage perdeu

esse estatuto an tidem ocrático , mas ele não se despojou de seu caráter de ins

trum en to de exploração do voto em benefício dos partidos. Para estes, o p ri

meiro turno é somente um meio de avaliar suas forças; o que é decisivo é osegundo turn o, e é com esse propósito que, pelo jogo de alianças e desistências,

o corpo eleitoral desorientado corre o risco de designar uma representação

que expresse menos a vontade popular que a dos partidos.

De fato, de nada adianta, entretanto, comparar de forma abstrata os

méritos e os respectivos inconvenientes do escrutínio com um tur no e do es

crutín io com dois turno s. É evidente, com efeito, que se o prime iro é tolerá

vel em um país onde há apenas dois partidos, ele deixa de ser nos casos em

que a multiplicidade dos partidos, responsável pela disseminação dos votos,corre o risco de resultar em eleições nas quais os candidatos eleitos represen

tarão apenas u ma mino ria de votos.

Escrutínio u ninom ina l e escrutínio de lista. - Qua ndo cada circunscrição

elege um único candidato, existe o escrutínio uninominal. Quando ela elege

vários candidatos, existe o escrutínio p lurino m inal e, com o os candida tos dos

diferentes partidos se agrupam por listas, diz-se que existe escrutínio de lista. A

circunscrição eleitoral é naturalmente maior quando há escrutínio de lista,contrariamente cioescrutínio de distrito.

A controvérsia entre os partidá rios de um e outr o sistema é clássica. O

unin om inal perm ite, digamos, ao eleitor conhecer seu candidato e, por con

seguinte, redu zir a influência dos com itês eleitorais. Ao que os adep tos da lis

ta respondem que com o uninominal a eleição acaba em brigas locais nas

quais são esquecidos os grandes interesses do país. O escrutínio de lista ga

rantiria, ao contrário, o enfrentamento das idéias e acabaria com os feudos

eleitorais. “Pode-se env enenar u m copo de água, dizia Lama rtine, mas n ão se

envenena um rio”; um pequeno colégio eleitoral pode ser corrompido de

modo mais fácil. A independência do eleito torna-se, também, mais protegi

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0 Po d e r 157

da pelo escrutínio de lista. Nenhum desses argumentos, em um sentido ou

em outro, parece decisivo, pois o tipo de escrutínio depende essencialmente

dos dados reais da circunscrição. O que se observa no es crutínio u nino min al

em uma circunscrição rural não vale necessariamente para uma circunscri

ção urbana.

Em contrapartida, é fato que o escrutínio de lista agrava a inexatidão da

representação majoritária. Considere-se os três distritos de um departamen

to que conta com 110 mil eleitores e ond e se opõ em o pa rtido X e o partido

Y. No d istr ito A, X consegue 25 mil vozes co nt ra 16 mil de Y; no dis trito B, X

tem 18 mil votos contra 17 mil de Y; no distrito C, Y tem a maioria com 21mil vozes, X obté m som ente 18 mil. Com o escrutínio un ino min al, o partido

X obtém um lugar em A e um lugar em B; mas Y possui um eleito em C. Com

o escrutínio de lista, os três lugares vão para X que tem a maioria (56 mil),

enquanto que Y, com 54 mil votos, não tem nenhum representante.

Panachage e voto preferencial. - Na medida em que a lista dos candida

tos é estabelecida pelos partidos e ao eleitor não é permitido modificá-la (lis

ta fechada), o escrutínio de lista impede a liberdade de escolha. Com efeito,os lugares aos quais a lista dará direito serão atribuídos aos candidatos em

sua orde m de apresentação pela lista. Foi para evitar esse autom atism o q ue se

idealizou o voto preferencial, que perm ite ao eleitor indicar os candid atos aos

quais ele deseja que sejam atribuídos os lugares constantes da lista. Com a

 possibil idad e de altera r a ordem de apresentações , a liberdade do eleitor ga

nha aquilo que perde a autoridade do partido.

O reordenamento prático do voto preferencial pode resultar em diver

sos procedimentos. Aquele que foi adotado pela lei de 5 de outubro de 1946,que introduziu o voto preferencial, era o seguinte: os eleitores inscreviam um

núm ero de ordem diante do no me de um , de vários, ou de todos os candida

tos da lista. Nas situações em que o nú m ero das cédulas de voto não mo difi

cadas ultrapassar a metade do total dos votos colhidos po r um a lista, a comis

são de recenseamento atribui os lugares seguindo a ordem da lista como foi

 pro posto aos eleitores. Se, ao contr ário , o núm ero das cédulas modif icadas

 predomina, a comissão estabelece um a classificação entr e os candidato s con

siderando o número das cédulas nas quais eles receberam o n. 1, o n. 2, o n.

3 etc. O cand ida to que obteve mais vezes o n. 1 (seja no começo da lista não-

retrógrada, seja pelo número que lhe foi atribuído pelos eleitores) é classifi

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158 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

cado primeiro, e assim por diante (art. 16). Em caso de empate nessa classi

ficação, o candidato mais velho é proclamado eleito.

Evidentemente o voto preferencial não tem sentido quando se trata de

um escrutínio de lista majoritário já que, de qualquer modo, se a lista tem a

maioria, todos os candidatos da lista serão eleitos. O voto preferencial só é

útil em caso de escrutínio de lista com representação proporcional (vide in

 fra). No entanto, quando foi previsto pela lei eleitoral, não foi muito utiliza

do e não alterou a divisão dos lugares.

O  panachage é a opera ção q ue consiste, por parte d o eleitor, em riscar 

um ou vários nomes de uma lista e substituí-los por nomes de candidatos provin dos de outr as listas, e é ta mbém um procedim ento que perm ite resti

tuir ao eleitor a liberdade de escolher seus candidatos.

C.Arepresentaçãoproporcional

A representação proporcional (R. R) é um modo de sufrágio que tende

a garantir a cada partido uma representação ligada à importância numérica

das vozes que ele conseguiu. Considerand o um dep artam ento que com porte100 mil eleitores e cinco lugares a serem ocupados, dois partidos se apresen

tam: o vermelho, que consegue 60 mil vozes, e o branco, que reúne 40 mil.

Com o escrutínio majoritário, o partido vermelho ganhará todos os lugares:

com a proporcional, o partido branco para o qual se pronunciaram dois

quin tos dos votos terá dois lugares e o p artido vermelho, três. A R. R perm i

tirá, assim, a representação da min oria. Ela supõe o esc rutínio de lista nas cir-

cunscrições que possuem vários lugares a preencher.

Fundamento teórico. - O escrutínio proporcional repousa num a visão teo

ricamente exata que Stuart Mill expunha à Câmara dos Comuns: “Em uma

democracia que aplique realmente o princípio de igualdade, cada tendência

deve ser representada de maneira proporcional. A maioria de eleitores sempre

deve ter a maioria de representantes, mas uma minoria de eleitores deve ter 

uma minoria de representantes: homem a homem, eles devem ser tão ampla

mente representados quanto a maioria. Se essa condição não for respeitada,

não há um governo igual, mas um governo de privilégios e desigualdade”.

O fundamento teórico da R. R é, portanto, essencialmente um argu

m ento de justiça, pois somen te ela perm ite rep resentar o país de acordo com

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0 Po d e r 159

todas as diversidades que ele com porta. O sistema ma joritário, ao contrário,

resulta freqüentemente apenas na representação efetiva de uma minoria de

eleitores. Com a R. P. não são apenas os direitos das minorias que são garan

tidos, são tam bém os da verdadeira maioria, pois essa maio ria resulta não de

uma vitória em algumas circunscrições, mas do total dos votos em todas as

circunscrições. Ora, quando os partidos são razoavelmente numerosos, esse

total pode ser considerável e, no entanto, o escrutínio majoritário provoca,

 para o parti do que dele dever ia se beneficiar , apenas a obte nção de um n ú

mero de lugares inferior àquele obtido por outros partidos, totalizando me

nos vozes, mas bastante conc entrada s em algumas circunscrições. Nesse caso,ainda, o argum en to de justiça é irrefutável já que a R. R, por si só, garante aos

eleitores a igualdade de seus votos.

Está claro que, em seu princ ípio, a R. R apresenta u m valor indiscutível,

 já que ela substi tu i o sistem a majo ritário, no qual a min oria não é nad a, por 

uma representação justa. Além disso, ela combina melhor com a própria

idéia do regime representativo, pois ela permite ao Parlamento refletir com

exatidão as diferentes tendências do corpo eleitoral. Finalmente, garantindo

um lugar a cada p artido sério, ela torn a inúteis as alianças que, com o escru tínio m ajoritário u nino min al, desvirtuam o sentido das eleições e conduzem

ao Pa rlamento m aiorias cuja coerência e disciplina n ão sobrevivem ao perío

do eleitoral.

Apenas é preciso observar que a exatidão e a justiça não são as únicas

qualidades que deve apresentar um sistema eleitoral. É necessário, também,

que ele seja eficaz, ou seja, que ele permita a constituição de uma maioria de

governo. Ora, em um país dividido em múltiplas tendências, a R. P. não pre

enche esse requisito. “A bo m ba atô mica é um a arm a incerta com para da a tal procedim ento , que m ata o Estado, subtrain do-lhe to do e qualq uer poder”

(Michel Debré). Ou, se ela autorizar a formação da maioria, isso resultará em

transações en tre os partido s apó s as eleições e, diante disso, retom am os a crí

tica dirigida contra o escrutínio de ballottage, agravado pelo fato que os en

tendimentos dos partidos é realizado após o escrutínio, portanto, fora do

controle dos eleitores (B u r d e a u , t. V, n. 172 e s.).

Israel dá um exemplo esclarecedor das conseqüências que pode produzir 

a representação proporcional. O sistema, nesse caso, é de fato levado ao extre

mo, já que o país como um todo form a um a única circunscrição. Basta, po rtan

to, a um partido obte r 2% das vozes para ter direito a um lugar no Parlamento.

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160 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

O resultado é evidentemente um a multiplicação dos partidos, a necessidade de

formar coligações e a possibilidade para os pequenos partidos “conectores”,

aqueles que fornecem com plemento às coligações, de desempenhar uma função

 política desproporcional à sua força eleitoral (K l e in , 1997).

 Dificuldades de aplicação. - Contra a R. R existe também um a séria obje

ção referente a dificuldades de aplicação. Primeiram ente ela reduz a liberdade de

escolha dos eleitores. Co m efeito, a operação eleitoral se realiza m ediante listas

de candidatos estabelecidas pelos partidos, o eleitor deve aceitar os nomes que

lhe são propostos, pois se este estivesse autorizado a substituí-los por outros, a panacher  sua cédula, iríamos ao encontro da própria idéia da R. P., que é tornar 

a eleição um debate entre doutrinas e não uma luta entre homens. E o eleitor 

 poderá, portanto , no máxim o riscar alguns nomes , mas ele não poderá acres

centar outros extraídos de outras listas. Ele está submetido à disciplina do par

tido.

Além disso, a fórmula técnica que garante u m a prop orcion alidad e igual

na distribuição dos lugares é plenamente satisfatória apenas se ela for com

 plexa. Ora , to da comple xidade é um vício em matéria eleitora l. Existe de fato uma fórmula simples, a do quociente, mas ela resolve o problema apenas

de form a imperfeita, pois existem sobras.

O quociente. - Três tipos de quocientes pod em ser usados: o quociente

 po r circu nscrição, o quocie nte fixo e o quocie nte nac ional.

a) O quociente por circunscrição ou quociente propriamente dito é o

resultado da divisão do núm ero dos votos expressos  pelo núm ero dos lugaresa ocupar. Cada lista obtém tantas cadeiras quantas vezes o número de votos

recolhidos contiver o quociente.

b) O quociente fixo, ou número uniforme, é o número de vozes, fixado

 pre via mente para o conjunto do te rritório , que cada lista deve possuir para

ter direito a um deputado. Quantas vezes a soma dos votos da lista contiver 

esse núm ero, tantos lugares lhe serão atribuído s.

c) O quociente nacional é o resultado da divisão do total dos votos ex

 pressos em todas as ci rcunscrições pe lo total dos deputa dos a serem eleitos. O

quociente assim obtido é usado como núm ero uniforme. É o sistema mais jus

to, já que ele permite propo rcionar o n úm ero dos ma ndatos obtidos por p arti

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0 Po d e r 161

do graças à resposta que cada um obteve dos eleitores de todo o país. Mas essa

vantagem é anulada pela lentidão do sistema. Com efeito, só é possível deter

minar o quoc iente nacional me diante os resultados definitivos das eleições.

 As sobras. - É praticamente impossível que os procedimentos de divisão

que acabam de ser descritos não deixem sobras, ou seja, votos inutilizados. Su

 ponhamos que numa circunscrição onde 100 mil votos dis tr ib uídos entre cin

co listas, A, B, C, D, E, tenha sido utilizado o quoc iente de circunscrição. Vamos

admitir a existência de 5 lugares a serem ocupados. O quociente é: 100 mil / 5

= 20 mil. A lista A com 36 mil vozes terá um depu tado, a lista B com 28 mil vozes terá outro, mas as listas C (19 mil vozes), D (10 mil vozes), E (7 mil vozes)

não terão nenhum. Há 36 mil votos inutilizados e restam três lugares a serem

ocupados. Mede-se, com isso, a importância do problema das sobras.

Várias soluções são concebíveis para utilizá-las.

Geralmente, quando se empregou o quociente de circunscrição, distri

 buír am-se as sobras no âm bito da circunsc rição.

Pode-se recorrer ao procedimento de maiores sobras. Ele consiste em

atribu ir os lugares em suspe nso às listas que têm ma ior nú m ero de votos inu tilizados. Retom and o nosso exemplo, os três ma nda tos restantes irão respec

tivam ente para as listas A (36 mil - 20 mil = 16 mil votos restan tes), C (19

mil sobras) e D (10 mil sobreis). Para um escrutínio que pretende ser propor

cional, o resultado não é muito justo, já que a lista B com 28 mil vozes terá

obtido um lugar, como a lista D com 10 mil votos.

É para co rrigir essa injustiça que se imagin ou o proc edim ento da média 

mais alta. Cada uma das cadeiras restantes é atribuída à lista para a qual a di

visão do número de votos obtidos pelo número de cadeiras atribuídas mais um der o quociente maior.

Retom emo s o exemplo anterior. O cálculo da média mais alta dá os re

sultado s a seguir:

Lista A, 36 mil / 2 (1 lugar ocupa do + 1 acrescentado hipoteticam ente)

= 18 mil; lista B, 28 mil / 2 (1 lugar ocup ad o + 1 acrescentado) = 14 mil; lis

ta C, 19 mil / 1 (1 lugar acrescen tado hip otet icam ente ) = 19 mil; lista D, 10

mil / 1 = 10 mil; lista E, 7 mil / 1 = 7 mil. A lista C tem o m aio r nú m ero de

sobras e a ela será atribuído um dos lugares restantes e recomeçar-se-á a op e

ração para os dois lugares dividindo, desta vez, os votos da lista C por 2, já

que ela acaba de obte r um lugar. Ê a lista A que obterá um lugar a mais. O ú l

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16 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

timo irá para a lista B que, considerando-se as duas distribuições anteriores,

terá o número maior de sobras.

O sistema de H ond t . - Existe um p rocedim ento que permite determinar,

mediante uma única operação, o número total dos lugares que devem ser 

atribuídos a cada lista. É o sistema idealizado pelo matemático Hondt, e que

é usado na Bélgica.

Divide-se sucessivamente por 1, 2, 3, 4, 5..., o número de vozes obtidas

em cada lista e ordenam-se os quocientes na ordem de importância até atin

gir a quantia de um número total de quocientes igual ao número de lugaresa serem atribuídos. O último quociente (o men or) cham a-se núm ero divisor 

e serve de divisor eleitoral. Cada lista recebe tantas cadeiras quantas vezes o

seu nú m ero de votos contiver o valor do divisor.

Considerando seis lugares a serem ocupados e três listas: A (23 mil vo

zes), B (20400 vozes), C (16600 vozes). A divisão p or 1 dá: A = 23 mil, B =

20400, C = 16600; a divisão por 2 dá: A = 11500, B = 10200, C = 8300; a di

visão por 3 dá: A = 7665, B = 6800, C= 5533.

A classificação dos quocientes fica assim estabelecida: 23 mil, 20400, 16mil, 11500,10 200,8300, 7665,6800, 5533. O nú mero divisor é 8300, já que ele

é o sexto da classificação e que existem seis lugares a serem ocupados. Eles são

assim atribuídos: A obtém 23 mil / 8,3 mil = 2 lugares; B obtém 20,4 mil / 8,3

mil = 2 lugares; C obtém 16,6 mil / 8,3 mil = 2 lugares.

 A representação proporcional  “person alizada”. - É o sistema que é aplica

do na Alemanha Federal. O  Bundestag compreende atualmente 662 deputa

dos. A R.F.A. está dividida em 328 circunscrições; cada eleitor dispõe de duascédulas de voto. Com a primeira ele vota para um candid ato de sua circunscri

ção; a eleição ocorre com escrutínio u nino m ina l em um só turno. Assim, são

ocupados os “lugares diretos”, que correspondem apenas à metade dos man

datos parlamentares. A segunda cédula de voto de que dispõe o eleitor é re

digida por ele, nome por nome de candidato, mas em nome de um partido.

Este segundo sufrágio permite calcular de forma proporcional o número de

lugares que deve obter cada p artido. Esses lugares são ocu pado s p or perso na

lidades cujo nome consta das listas estabelecidas, em cada  Land>  pelos parti

dos políticos. As atribuições dos manda tos nessas listas foram efetua das de tal

forma q ue cada pa rtido dispõe, entre lugares diretos e mand atos de lista adi

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0 Po d e r 163

cionados, do número de eleitos que lhe voltaria de acordo com uma distri

 buição proporcio nal pela média mais alta.

Com o p ode acontecer que um partido receba mais lugares diretos do que

 poderia ter de mandatos pelo jogo da representação proporcional , a lei prevê que

ele conserve todos os lugares que obteve pelo voto personalizado e, para que a

 proporcional ocorra, cr iam-se lugares para servir os part idos que têm direito

conforme os resultados da segunda votação. Portanto, o número de deputados

no Bundestcig não é fixo; ele depende dos resultados do dup lo escrutínio. Nas elei

ções de 2 de dezembro de 1990, a C.D.U. obteve, desse modo, seis lugares a mais.

Esse sistema tem a vantagem de permitir aos partidos colocar no  Bun- destag personalidades que repudiam a deterioração de um a cam panh a eleito

ral, ou especialistas cujos eleitores correriam o risco de desconhecer o valor.

A intenção de favorecer as grandes formações políticas provém das disposi

ções da lei eleitoral (várias vezes enrijecidas desde 1949) que, para evitar que

as forças de dissipem, estipula que só têm direito à representação p rop orc io

nal os partidos que obtiveram pelo menos 5% das vozes no âmbito nacional

ou que conseguiram, no mínimo, três lugares diretos.

As eleições parciais não existem na R.F.A. Quand o um lugar fica vago, ele éocupado por uma personalidade que consta da lista do partido ao qual perten

cia o deputad o a ser substituído, mesmo que este tenha tido u m ma nda to direto.

Existem, de fato, outros sistemas de representação proporcional que

não podem ser analisados aqui. Mencionaremos, entretanto, aquele que é

usado na Irlanda (voto único transferível ou sistema de Hare, do nom e de seu

inventor) que, garantindo a justiça da representação proporcional, permite

evitar os inconvenientes desse mo do d e escrutínio co mo ele foi praticado na

Europa continental.

Seção4Asjustificativasdopoder

A divisão das competências que acabamos de examinar se fundamenta

 prim eir am ente em razões pol ít icas e técnicas . Esforça-se para atribuir a to ta

lidade ou alguma parcela do poder a um ou outro grupo. Adota-se ou rejei-

ta-se uma ou outra regra, porque se considera que ela contribuirá para um

funcionamento eficaz. Em outras palavras, as constituições são feitas de acor

do com uma lógica sobretudo instrumental. Tal lógica é entretanto insufici

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16 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

ente quando se deseja não apenas organizar o poder, mas também torná-lo

aceitável e é preciso, ainda, m ostra r que a organização ado tada não é apenas

eficaz, mas também que ela é justa.

 Natura lm ente , a just if icação só pode ser convincente quando as solu

ções adotadas se revelam deduzidas de alguns princípios incontestáveis. É por 

isso que os princípios são na maioria das vezes apresentados no início dos

textos constitucionais antes do enun ciado das regras que supo stam ente deles

decorrem . Mas n ão se deve esquecer que eles têm sido, na verdade, descob er

tos como evidências, mas forjados a posteriori. Aliás, é o que explica que os

 próprios princíp ios (por exem plo , o da soberania nacional ou da soberania popula r) possam apresenta r sentidos bem diferentes de acord o com as cons

tituições nas qua is eles estão inseridos e as regras que eles têm po r função ju s

tificar.

À questão fu ndam ental “com o se pode funda me ntar o direito de alguns

hom ens de governar outros? ”, que em termo s sociológicos se de no m ina tam

 bém de questã o de legitimidade, existe, na verdade, apenas um pequeno nú

mero de respostas possíveis. Pode-se sustentar que aqueles que governam

têm o direito de coma nda r porqu e eles pertencem a um a natureza diferentedos outros homens, por exemplo porque eles são divinos. Ou então, pode-se

afirmar que eles são homens como os outros, mas que eles foram escolhidos

 por uma auto ridade incontestável , Deus, o povo ou a nação, que delegou um

 poder do qual ela é o verd adeiro ti tu la r e determ inou que seus govern ante s

fossem obedecidos. Obedecendo-lhes, conseqüentemente obedecer-se-á a es

sa autoridade. O primeiro tipo de justificação é mais freqüente nas socieda

des antigas, o segundo nas sociedades modernas. Aliás, ele se realiza de várias

formas, pois cada uma dessas teorias deve responder a duas questões: a primeira se refere à natureza da união entre a autoridade do poder e os gover

nantes; a outra, à naturez a dessa autorida de em si mesma.

À primeira questão as monarquias tradicionais davam uma resposta

simples: Deus era a fonte do p od er e ele designava um ho m em ou um a fam í

lia para exercê-lo como ele o concebia. O poder era legitimado apenas pelo

modo de designação daqueles que o exerciam. Ele não o era em seu conteú

do. O constitucionalismo traz uma resposta diferente: a legitimidade não

 provém da maneir a como os govern antes fo ram designados, mas de algo cu

 ja vonta de eles têm de expressar, que não é a sua vontade. Em outr as palavras,

qualquer que seja a maneira como foram escolhidos, cada uma de suas deci

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0 Po d e r 165

sões é justificada porque ela não é a sua decisão, mas aquela do legítimo titu

lar do poder que eles representam.

A segunda questão se refere à natureza desse legítimo titular, a que se

denomina soberano.

1 .A REPRESENTAÇÃO

A.Ateoriada representação

1. A noção de representação

 Na linguagem comum , fala-se de representação quando um obje to pos

sui algumas características principais semelhantes às de outro objeto, de tal

modo que se possa reconhecer essa semelhança e identificar o primeiro co

mo um a imagem do segundo. Diz-se que ele torn a presente esse segund o ob

 jeto, que ele o re-presenta. Por exemplo, uma imagem pictórica em relação a

um objeto físico ou os atores que representam um a peça de teatro. O que caracteriza essa representação é que se pode a qualquer momento comparar a

representação ao ob jeto rep resentado - ou à idéia que se faz dele - e julgar se

a representação é fiel ou exata.

O direito utiliza essa metáfora para ilustrar e designar uma relação entre

duas pessoas18. Assim, adm ite-se no direito privad o que um a pessoa represen

te um a o utra, qu and o ela pode desejar e agir em seu lugar e em seu nome . Ela

é o representante, a outra é o representado. A representação pode resultar, nes

se caso, da vontade d o representado, que outorg a um mandato ao representante, ou da lei, como, por exemplo, no caso da representação de menores.

É portanto compreensível que os governantes também se sirvam dessa

con strução e justifiquem o po de r que eles exercem apresen tando -se como re

 pre senta nte s de seu legít im o titu la r, o sobera no, que pode ser o povo, a nação

ou qualquer outra entidade. Esse tipo de justificação, que não é de modo al

gum ligado à democracia representativa, é hoje universalmente difundido e

utilizado, inclusive nas m ais horríveis ditaduras. O pró prio Hitler se apresen

tava como o representante do espírito do povo alemão.

18 Cf. Miaille, art. “Représentation”, in Dictionmirc d’Éguilles.

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16 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Todas as doutrinas da representação obedecem ao seguinte esquema:

existe um soberano, distinto dos governantes, mas que não pode exercer por 

si mesmo o poder, a soberania. Ele também não pode transferi-la a outro,

 porque deixar ia de ser soberano - é nesse sentido que se diz que a soberania

é inalienável.  Estabelece-se, por tanto , um a distinção e ntre a essência ou  p rin

cípio  da soberania e seu exercício. A essência da soberania permanece no so

 bera no, a nação ou o povo, e seu exercício pode ser delegado a representa n

tes. É o que proclam am vários textos e notad am ente o art. 3o da Declaração

dos Direitos do Ho me m de 1789: “O  princípio  de toda sob erania reside essen

cialmente na nação ”. Fórm ula retomada e desenvolvida n os arts. I o e 2o do título III da constituição de 179119, e que inspirou a maioria das constituições

francesas posteriores, inclusive a de 1958.

Constata-se entretanto que a teoria da representação, tal como ela é

concebida no direito privado, levanta alguma s dificuldades e não p ode ser in

tegralmente transposta ao direito público.

2. Dificuldades da teoria da representação

Elas dizem respeito à impossibilidade de representar   a vontade. Jean-

Jacques Rousseau colocou perfeitamente em evidência essa impossibilidade

med iante u m esquem a simples, já expo sto20.

Ressaltamos também o paradoxo da representação. Se o representante

expressa uma vontade que coincide exatamente com aquela do representado,

então essa vontade não é representada, mas apenas expressa por meio de ou

tro homem. Mas se o representante expressa uma vontade que não coincide

com aquela do representado, como se pode ainda dizer que ele o representa

( P i tk i n d s. P e n n o c k - C i i ap m a n , 1968, p. 38 e s.)?

O utra causa de perplexidade refere-se à dificuldade de trans por essa teo

ria para o direito público.

19 “Art. Io. A Soberania é un a, indivisível, inalienável e impresc ritível. Ela perten ce à nação; ne

nhu ma seção do povo, tamp ouco nenh um indivíduo, pode se atribuir o exercício dela.Art. 2o. A nação, da qual exclusivamente emanam todos os poderes, só pode exercê-los por delegação. A constituição francesa é representativa: os representantes são o corpo legislativo eo rei.”20 Cf. supra, p. 85.

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0 Po d e r 167

3. Especificidade da teoria da representação no direito público

A prime ira e mais importan te particularidade da representação no d i

reito público é que não há, nesse caso, com o no direito privado, duas pessoas.

Só existe representação quando há uma pessoa representável, detentora de

uma vontade com a qual o representante deve estar em conformidade e a

quem ele deverá prestar contas. Ora, nesse caso, de um lado, o representan

te, ou seja, aquele que exerce a soberania, a autoridade legislativa, não é

uma pessoa, já que ela é composta de indivíduos que mudam em interva

los mais ou menos regulares e que não é a ela, mas ao Estado, que são im putados esses atos. De outro lado, o representado, o soberano, também não

é uma pessoa, já que ele não tem outra vontade senão aquela expressa pe

los representantes. Pode-se até afirmar que o representado, o povo ou a n a

ção, só existe a partir do m om en to em que um a vontad e é expressa em seu

nome , ou seja, a par tir do m om en to em que ele é representado. O represen

tado não cria o representante. Ao contrário, é ele que é constituído pela re

 presentação (C a r r é   d e M a l b e r g , 1922, especialmente t. II, p. 227 e s.; Ja u m e , 

1986).

4. Teoria da soberania e teoria do órgão

É por isso que uma corrente doutrinária importante, representada na

França por Raymond Carré de Malberg, considera que não se trata de uma

legítima representação. Ressalta-se no tada me nte que se trata, antes de tudo,

de dar conta de um fenômeno político: a vontade expressa por alguns ho

mens não precisa ser a sua vontade, m as a do soberano. Ora, po r todas as ra

zões que acabamos de expor, efetivamente não damos conta desse fenômeno

mediante a teoria da representação. Daremos melhor conta com a ajuda de

uma teoria do órgão: existe um ente, o soberano ou o Estado, que como um

ho me m, deseja e age med iante seus órgãos. Da mesm a forma que as palavras

que saem da boca de u m h om em a ele são imputad as, igualmente os atos que

ema nam do governo ou do Parlamento são impu tados ao Estado. Do mesmo

modo que não se afirma que uma boca representa um homem, não se deve

dizer que o Parlamento representa o soberano. Ele é seu órgão. O soberano

não p ode ter ou tra vo ntade senão aquela que seu órgão expressa e pode-se di

zer até que ele só existe porque possui órgãos.

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168 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Essa do utri na é incontestavelmente mais coerente do que uma teoria da

representação intempestivamente im port ada tal qual do direito privado. No

entanto, é preciso ressaltar alguns pontos importantes.

A teoria da representação é precisamente diferente no direito público e não

é a transposição pura e simples do direito privado. Muito pelo contrário, na m e

dida em que ela afirma que o soberano só pode expressar-se por seus represen

tantes, ela é idêntica, exceto nas palavras, à teoria que afirma que o Parlamento

não é o representante, mas o órgão do soberano. A partir do mo me nto em que a

 palavra “representante” é util izada em um sentido específico, equivalente ao de

“órgão”, não há nenhum interesse em substituir uma palavra pela outra.Haveria até m esm o alguns inconvenientes , caso isso fosse feito. A teoria

da representação, na verdade, não preenche totalmente a mesma função po

lítica que aquela do órgão. Esta admite que todos aqueles cujos atos são re

 portados ao Estado são seus órgãos : o Parlamento, mas também o governo

ou os funcionários. Ao contrário, de acordo co m a teoria da representação, o

representan te é apenas aquele que pode exercer a soberania, ou seja, expressar 

a vontade do soberano; é o legislador. As outras autoridades não são repre

sentantes. A teoria da representação permite, assim, ressaltar a hierarquia dasfunções e legitimar apenas o exercício da função legislativa.

Em terceiro lugar, a teoria que é eficaz, aquela que na prática é utiliza

da nos sistemas políticos modernos para justificar a divisão das competên

cias, é a teoria da representação. Isso não tem nada de surpreendente. Dizer 

que o Pa rlamen to é um órgão só justifica seu po de r se o ente, do qual se afir

ma q ue ele é órgão, possui um po der incontestado. Ora, dizer que ele é órgão

do Estado não é de mo do algum um a justificativa, porq ue resta ainda justifi

car que se deve obedecer ao Estado. Ao contrário, a teoria da representaçãoremete a um ente, a nação ou o povo, cuja autoridade é admitida co mo uma

evidência.

Finalmente, a teoria da representação não serve apenas para justificar o

 poder do legislador; ela serve também para justi fi car um determinado n úm e

ro de regras específicas relativas ao mandato.

B. 0 mandato representativoO mandato é a relação entre o representante e o representado. Diz-se

que o representante recebeu e exerce um mandato.

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0 Po d e r 169

1 .0 objeto do mandato

O objeto do man dato , aquilo que é transferido ao representante, é o exer

cício da soberania. Não se trata port anto de todas as funções jurídicas do Esta

do, mas apenas da função legislativa. É com efeito a lei que, nos termos do art.

6o da Declaração dos Direitos do Homem, é “a expressão da vontade geral”, ou

seja, da vontade do soberano. Seguem-se duas conseqüências importantes.

Em primeiro lugar, segundo essa teoria, apenas as autoridades legislati

vas são representantes e não as autoridades executivas ou judiciárias. Com

efeito, se a função consiste na execução da vontade do soberano, aquele quea exerce não pode ser o próprio soberano ou seu representante. Ele encontra

sua legitimidade precisamente no fato de que ele executa a vontade geral.

Mas, em contrapartida, todas as autoridades legislativas devem ser represen

tantes . É por isso que a const itu ição francesa de 1791 declarava que <(os repre

sentantes são o corpo legislativo e o Rei”21. É necessário ressaltar que o rei

não é representante em sua qualidade de chefe do Estado ou de chefe do po

der executivo, mas apen as po rque ele participa com seu veto do exercício do

 poder legislativo.Em segundo lugar, como mostra claramente o caso do rei em 1791, a

qualidade de representante é totalmente indepen dente do mo do de designa

ção. Ela não é notadamente ligada à eleição. De acordo com essa teoria, são

representantes todos aqueles cujo consentimento é necessário para a forma

ção da lei, todos aqueles que têm uma parte no poder legislativo. Assim, as

câmaras do Parlamento, independentemente da maneira como são designa

das, o po der executivo qua nd o dispõe seja do m ono póli o da iniciativa seja de

um direito de veto, e, de acordo com algumas teorias, um órgão de controleda co nstitucionalid ade das leis.

2. As características do mandato

Elas decorrem do que foi dito anteriormente.

a) Caráter coletivo do mandato

21 Título III, art. 2°.

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170 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Co m efeito, o man da to n ão é exercido po r um a pessoa individualizada,

mas p or um a autorid ade. No caso de uma Assembléia, por exemplo, não é re

almente o deputado que é um representante, mas toda a Assembléia. Dificil

mente isso poderia ser diferente, pois um deputado pode se achar na mino

ria. Se ele fosse representante, seria necessário, então, compreender porque

ele deixa, nesse caso, de expressar a vontade geral. Ao contrário, se o repre

sentante é a Assembléia, cada um dos depu tado s que a com põe m expressa sua

vontade própria ou a idéia que ele tem da vontade geral e esta resulta apenas

do processo legislativo.

Desse modo , qua nd o se diz, como às vezes ocorre, que o dep utad o é re presenta nte, essa pa lavra revela um outro sentido : significa, em síntese, que o

deputado é membro de uma Assembléia que em si mesma tem a qualidade

de representante.

Se o deputado, considerado individualmente, não é o representante do

soberano, ele não pode evidentemente ser o representante de sua circunscri

ção ou d aqueles que vo taram em seu favor. Estes o designara m, mas não lhe

 puderam confi ar o exercício da soberania , que não lhes pe rtence, já que ele

só pertence ao soberano. Essa idéia é expressa na constituição de 1791: “Osrepresentantes nomeados nos departamentos não serão representantes de

um departamento particular, mas de toda a nação”, disposição encontrada

em um grande número de constituições22.

Daí algumas vezes se extraiu a conseqüência de q ue o destino dos d ep u

tados não deve ser afetado pelo da circunscrição na qual eles foram eleitos. As

sim, em 1871, quando a França cedeu à Alemanha os departamentos da Alsá-

cia e de Lorena, os deputados desses departamentos permaneceram em suas

funções e só deixaram a Assembléia depois de terem ped ido demissão por in iciativa própria .

 No entanto , em 1962, quando a Argélia se tornou independente, ado

tou-se uma solução diferente: foi dado fim, por disposição legislativa, ao

ma nd ato de parlam entares franceses eleitos nos dep artam ento s argelinos. Es

sa solução foi forteme nte criticada e consid erada po r grande parte da dou tri

na como um atentado ao princípio. Ela pode, entretanto, ser justificada de

forma b astante simples à luz da teoria da representação. O titular da so bera

22 Constituição francesa de 1791, título III, cap. 1, seção 3, art. 7o; constituição do ano III, art.52; Constituição de 1848, art. 34.

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0 Po d e r 171

nia confia seu exercício a representantes . A designação dos representante s, ou

seja, das autoridades legislativas, resulta da constituição. No entanto, quanto

ao modo de designação dos indivíduos que compõem essas autoridades,

quando ele pode resultar também da constituição, pode também provir de

outra s fontes. Na prática, ele decorre freqüe nteme nte da lei, já que, na Fran

ça, por exemplo, é uma lei que determina o modo de escrutínio. Com efeito,

o soberano não tem outra vontade senão aquela que expressa o legislador. O

ato mediante o qual ele confia um mandato representativo é a expressão da

vonta de geral. É um a lei. Assim, uma lei pode pe rfeitamen te decidir nu m sen

tido em 1871 e em sentido inverso em 1962.

b) Proibição do mandato imperativo

O m anda to imperativo seria um man dato análogo ao manda to de direi

to privado, o qual seria confiado pelos eleitores aos eleitos e que teria como

conseqüência pa ra estes a obrigação de se confor mar co m as instruções rece

 bidas, prestando conta s e sendo responsáveis em relação a seus eleitores. O

ma nda to imperativo foi formalmente proibido pela maioria das constituiçõesfrancesas e implicitamente por todas. Essa proibição se explica naturalmente

e decorre do fato de que o deputa do não é o representante de sua circunscri

ção, mas, juntamente com seus colegas, o de toda a nação e de todo o povo.

Politicamente, ela se justifica também de várias maneiras: a maior com

 petência dos eleitos, as vantagens de uma decisão que se alcançou ao final de

uma deliberação, a liberdade dos eleitos em relação aos grupos e aos partidos.

É o que Co ndorcet explicava de forma clara à Convenção: “Manda tário d o p o

vo, eu farei aquilo que acredita r estar em conformid ade com seus interesses. Eleme enviou para expor minhas idéias, não as suas; a independência absoluta de

minhas opiniões está em prim eiro plano nos meu s deveres em relação a ele”.

O de put ado é, desse modo, irresponsável. Ele não tem de p restar contas

a ninguém e não é pressionado por nenhuma obrigação em relação a seus

eleitores. As promessas eleitorais em si mesmas estão desprovidas de qual

quer valor jurídico. Disso resulta a nulidade da demissão em branco que os

candidatos às eleições remetem, às vezes, a comitês eleitorais ou a seus parti

dos, para que estes a enviem ao presidente da Assembléia na hipótese em que

estes considerem que o mandato foi violado. Diante de tais cartas, os presi

dentes das assembléias tomarão as medidas cabíveis.

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17 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Ao contrário, as democracias do tipo marxista, que denunciavam a mis

tificação existente no conceito de soberania nacional, descartavam tam bém o

ma nd ato representativo. O art. 4o da antiga constituição checoslovaca dispu

nha o seguinte: uO povo s obera no exerce os poderes do Estado m ediante c or

 pos de re presentante s que são eleitos pe lo povo, controlados pelo povo e res

 ponsáveis perante o povo”

C.Significação modernade governo representativo

a) Governo representativo e democracia

A teoria clássica das formas de governo distinguia a m ona rqu ia, a aris

tocracia e a democracia. A teoria da representação permite justificar qual

quer uma dessas formas, pois pode-se perfeitamente admitir que o povo so

 berano exerça em si mesmo a sobera nia ; nesse caso, o govern o será

democrático, ainda que delegue esse exercício a um rei ou aos melhores. Per

cebe-se que a democracia se promove somente no primeiro caso e que, de

acordo com essa concepção, o sistema representativo moderno não é uma

democracia, mas um a aristocracia, já que o po der co ntem porâ neo é delega

do a um Parlamento. Aliás, cabe ressaltar que nem a constituição americana

de 1787, nem a constituição francesa de 1791 foram apresentadas como

constituições democráticas. Como era embaraçoso designá-las como cons

tituições aristocráticas, a primeira se denom inava um a constituição republi

cana e a segunda ora c omo mista >ora, de forma tautológica, com o represen

tativa.

 No entanto, a evolução dos sistemas polí ticos levou a reconsiderar esse

esquema, em razão de dois fenômenos principais, aliás intimamente ligados:

o aparecimento do sufrágio universal e a concentração do poder legislativo

nas câmaras eleitas em detrim ento do chefe de Estado e das câmaras here di

tárias. A partir do final do século XIX, na maioria dos Estados, a lei tem como

autor principal ou exclusivo uma ou duas câmaras oriundas direta ou indire

tamente do sufrágio universal. Nessas condições, a teoria da representação le

vou a justificar o poder dos parlamentos tentando relacioná-lo não mais àaristocracia ou ao governo misto, mas à democracia.

A tese dominante atual é, portanto, a de que a democracia comporta

duas variações: a democracia direta e a democracia representativa. A demo

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0 Po d e r 173

cracia direta é o sistema no qual o povo exerce por si mesmo a soberania. Al

guns e nten dem que isso apresen ta alguns inconvenientes, ligados ao risco de

demagogia ou à incompetência do povo. De qualquer forma, isso é imprati

cável nos grandes Estados modernos. Assim, o povo delega o exercício da so

 berania a homens que escolhe para represen tá-lo . Portanto, o regime re pre

sentativo é de fato, um tipo de democracia, já que está associado à eleição

 pelo suf rágio universal.

Essa tese é atribuída a Montesquieu. “A maior vantagem dos represen

tantes - ele escreve - é que são capazes de falar de negócios. O povo não está

de forma alguma apto a isso, o que representa um dos grandes inconvenientes da democracia... Havia um grande vício na maioria das antigas

cas: o povo tinha o direito de tom ar decisões ativas, o que d em and a algum es

forço, coisa da qual ele é totalm ente incapaz. Ele só deve ingressar no governo

 para escolher seus represen tante s, o que está de fato a seu alcance. Pois, se há

 poucas pessoas que conhecem o verdadeiro grau da capacidade dos homens,

cada um é, entretanto, capaz de saber, em geral, se o escolhido é mais escla

recido do que a maioria.”23

Ela é bastante criticada por vários autores, posteriores a Jean-JacquesRousseau. O argumento é simples: na democracia representativa, o povo se

limita a escolher representantes, mas ele lhes transfere o exercício da sobera

nia. Uma vez feita a escolha, é a vonta de do s representan tes qu e faz a lei e não

a vontade d o povo. “Toda lei que o Povo não ratificou pesso almente - escre

ve Rousseau - é nula; não é mais um a lei. O povo da Ingla terra pensa ser li

vre; ele está m uito enganado, ele o é somente d ura nte a eleição dos me mb ros

do Parlamento; assim que estes são eleitos, torna-se escravo, torna-se nada.

 Nos raros momentos de liberdade, o uso que dela faz mostra que bem merece perdê-la.”24 Existe, portanto, apenas uma ilusão de democracia.

Tanto uma como outra concepção negligenciam, entretanto, um ele

men to essencial: os eleitores não mais escolhem atu alme nte os depu tado s de

 pois de terem feito um simples julgamento das capacidades respec tivas des

ses candidatos. A eleição não é u m tipo de exa me profissional e a escolha não

se fundamenta nas competências técnicas, mas nas orientações políticas. Os

candidatos se apresentam com um programa ou, pelo menos, sob a égide de

23 Do espírito das leis, Livro XI, ca p. 6.24 Do contrato social> Livro III, cap. 15, “Dos deputados ou representantes”.

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17 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

um partido. O que os eleitores escolhem é, portanto, mais uma política do

que homens (B i r n b a u m , H a m o n , T r o p e r  , 1977).

A essa influência do corpo eleitoral mediante a escolha dos programas,

acrescenta-se aquela que pode ser exercida no intervalo entre duas eleições

 pelos contato s que o eleito pode manter com os elei tores ou pelas pesquisas

de opinião. Mesmo com um mandato representativo, mas submetidos à reelei

ção, os deputados e os partidos estão, na verdade, submetidos a um controle

difuso, mas permanente.

b) A qualidade de representante

A teoria da representação teve como função exclusiva, em sua origem,

ou seja, du ra nt e a Revolução, justificar a posteriori o exercício do pode r legis

lativo. Foi a razão pela qual a qualidade de representante era completamente

independente do m od o de designação. O debate que fund ame ntou essa ques

tão oc orre u em 10 de agosto de 1791. Ele opôs Barnave a Robespierre e Roe-

derer. Estes sustentavam que somente o corpo legislativo eleito poderia estar 

qualificado c om o rep resentante. Barnave, ao contrário, de fendia a tese de queo representan te era aquele que contribu ía para a expressão da vontade geral,

como ocorria com o rei em razão de seu direito de veto. O fato de o debate

ter ocorrido em 1791 mostra que ninguém procurava, partindo de princí

 pios , deduzir regras de divisão das competência s.

Foi a tese de Barnave que venceu e se impôs, não apenas para a consti

tuição de 1791, mas tam bém no curso da história constitucional francesa. Foi

assim que o direito público da Terceira República reconheceu a qualidade de

representante apenas ao parlamento, não porque ele era eleito, mas porqueera a única autoridade legislativa.

 No enta nto vários fatores contr ib uíram para mudar os dados do prob le

ma. O primeiro é essa dupla característica do parlamento, ao mesmo tempo po

der legislativo e eleito. O segundo é o novo papel des empen hado pelo princíp io,

um a vez que foi admitido . Ele serve para justificar toda lei que se apresenta, com

efeito, como a expressão da vontade coletiva. Mas ele pode servir também para

 justificar porq ue se atr ibuiu o poder legislativo a tal órgão e não a outro. Em

1791 podia-se dizer: “se um órgão é legislativo, então ele é representante”. Pre-

tende-se de agora em diante p oder dizer: “Ele é representante , então deve ser le

gislador”. Mas para poder desempenhar esse novo papel, o princípio deve evi

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0 Po d e r 175

dentemente ser modificado. É preciso naturalmente dispor de outro critério

além da participação no pod er legislativo para afirmar a qualidade de represen

tante. Esse outro critério será a eleição. E isso tão naturalmente de forma que a

teoria da representação deve se combinar com o princípio democrático: é pre

ciso que aquele que foi eleito pelo povo seja seu representante e que ele exerça a

mais alta função. O terceiro fator é o novo papel desemp enha do pelo pode r exe

cutivo2"'. A partir do momento em que ele não se limita à estrita execução das

leis, mas que contribui de forma determinante para as principais orientações

 políticas e que ele é, t ambém, eleito pelo povo, ele pode encontr ar nessa eleição

a justificação de suas decisões. É por isso que reivindica para si mesmo a qualidade de representante, como se pode perceber claramente du rant e a Quinta Re

 pública.

Os Estados Unidos sofreram uma evolução análoga. Enquanto os auto

res da constituição consid eraram que era o Congresso o rep resentante legíti

mo, o presidente Jackson sustentava no século XIX que ele também era o re

 presenta nte do povo, o qual lhe havia confiado um mandato para adotar um a

dete rmin ada política. Mais tarde, Wilson irá ainda mais longe e afirmará que

o presidente não apenas é um representante, mas que ele é um melhor representante qu e o Congresso, porqu e ele representa não um a série de circunscri

ções, mas o povo como um todo (D a i i l , 1990).

2.ASOBERANIA

 A noção de soberania. - No sistema representativo, os governantes exer

cem um a soberania da qual eles não são os titulares. É preciso, portanto , dete rminar quem é o verdadeiro titular e em que consiste esse poder. Existe, sobre

esse assunto, um debate muito antigo, considerado confuso pela imprecisão

do vocabulário.

É necessário, para esclarecê-lo, distinguir quatro acepções das palavras

soberania e soberano.

Em p rime iro lugar, a soberania é um a característica do Estado, que é su

 perior a qualquer outra entidade inte rna (uma igreja, por exemplo) e que não

está submetido a nenhuma entidade externa (outro Estado). Algumas vezes

2:1Cf. supra, p. 133 e s.

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176 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

se fala nesse sentido de soberania internacional e se considera que se trata de

uma qualidade essencial do Estado e, nesse sentido, que uma entidade que

não possui essa soberania não seja um verdadeiro Estado. No caso, o Estado-

membro de um Estado composto.

Em segundo lugar, é a característica, o poder de um órgão, que, estan

do situado no topo de uma hierarquia, não está submetido a nenhum con

trole e cuja vontade é fonte de direito. Fala-se, nesse sentido, da soberania do

Parlam ento e diz-se, da m esma maneira, que a Corte de Cassação é um a cor

te soberana.

Compre ende-se que a soberania nos dois primeiros sentidos seja indi- visível, pois se a soberania é a qualidade daquele que é supremo, s omente um

 pode te r essa qual idade. Caso se quisesse cria r duas entid ades supremas, ne

nhuma o seria.

Em terceiro lugar, a soberania é o conjunto dos poderes que esse ente

 pode exercer. Isso pode, aliás, ser entendido de dois modos. Diz-se, primeira

mente, que a soberania compreen de, por exemplo, o direito de imp rimir mo e

da, o de fazer leis ou de pro mo ver a justiça. Todos os poderes que estão co m

 preendidos na soberania , a esse respeito, são, às vezes, denominados atributos  da so berania e fala-se, então, de p od er do Estado. Essa soberania, contra ria

men te à anterior, não é de form a algum a individual e pode-se de fato dividir 

os atributos entre várias autoridades.

Mas está claro que esses atributos não se situam todos no mesmo pla

no. Um deles implica o exercício de um po der superior, que perm ite a seu ti

tula r do m in ar os outro s. É obv iamente o po de r de fazer leis. Se as decisões de

 justiça são apenas a aplicação da lei, a so bera nia consis te não no exercício da

função judiciária, mas no exercício da função legislativa. Portanto, é precisoconsiderar que ela é de fato indivisível, pois se duas autoridades fossem si

multane amen te detentoras do pod er legislativo, nen hum a delas seria sobera

na. Em co ntrap artida, pode-se perfeitam ente confiar esse pode r a duas ou vá

rias autoridades de maneira indivisível, ou seja, para que elas o exerçam

con junta me nte. Isso ocorre, por exemplo, qua nd o se confia o p ode r legislati

vo a um Parlamento bicameral ou quando se delega ao poder executivo um

direito de veto.

Em quarto lugar, a soberania é a qualidade do ente, real ou fictício, em

nome de quem é exercido o poder do órgão soberano na segunda acepção. É

nesse sentido que se afirma q ue som ente a nação ou o povo são soberanos.

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0 Po d e r 177

A confusão se deve em parte às particularidades da língua francesa. O

alemão, po r exemplo, possui palavras distintas para designar as diferentes es

 pécies de soberania . Ela pro vém, também, do fato de o rei te r sido, durante a

mo na rqu ia absoluta, o soberano, em todos os sentidos da palavra. Ele se con

fundia com o Estado e era, portanto, soberano nos assuntos internacionais

(“o rei é imperador de seu reino”). Ele era soberano enquanto autoridade,

que comandava todas as outras em seu interior. Ele dispunha da totalidade

do poder do Estado e a lei, notadamente, procedia exclusivamente de sua

vontade. Finalmente, ele não era o representa nte de ning uém, pois ele herd a

va seu pode r u nicam ente de Deus. Podia-se dizer que a soberania lhe perte ncia po r completo.

Foi som ente a par tir da Revolução que esses diferentes sentidos se disso

ciaram. Assim, duran te a Terceira República, à pe rgunta: “quem é soberano?”,

 podia -se também resp onder: “a França, o Parlam ento , a Corte de Cassação, a

lei, a nação”, e todas essas respostas eram não apenas justas, mas t am bém pe r

feitamente compatíveis.

 No processo de just if icação, é principalmente da soberania no quarto

sentido de que se trata. Já que o legislador é apenas um representante, quenão faz mais do que exercer a soberania (n o terceiro sentido), a que m pe rten

ce de fato essa soberania? Já que o exercício da soberania foi delegado a re

 presentante s, a quem pert ence sua essência?

 Nesse ponto, opõem-se tradicionalmente duas doutrinas, a soberania

nacional e a soberania popular.

A.A oposição tradicional entrea soberanianacional e a soberania popular

1. A soberania popular

De acordo com essa tradição, a doutrina da soberania pop ular ensina

ria que a soberania pertence ao povo, concebido como o conjunto dos ho

mens que vivem em um determinado território. Esse povo seria, portanto,

um ente real. Ele próprio pode, portanto, exercer sua soberania. A doutrina

da soberania popular seria, portanto, compatível com a democracia direta.

 No entanto, caso essa democracia direta parecesse pouco praticável, o povo

 poderia delegar o exercício da soberania .

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178 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Mas como o povo é um ente real, ele é perfeitamente capaz de ter e de

expressar uma vontade distinta daquela dos governantes. Todos aqueles que

compõem o povo podem e têm o direito de escolher esses governantes e de

controlar suas ações. Por conseguinte, a doutr ina da soberania p opular im

 plica três conseqüênc ias:

- o princíp io do eleitorado-direto, ou seja, o sufrágio universal;

- elementos de dem ocracia direta, ou seja, a instituição do referendo;

- o man dato imperativo.

2. A soberania nacional

Ao contrário, a doutrina da soberania nacional postularia que o titular 

da soberania é a nação, ou seja, uma entidade totalmente abstrata, que não é

composta apenas por homens que vivem sobre o território em um determi

nado mo mento, mas que é  definida considerando-se a continuidade das ge

rações ou um interesse geral que transcende ria os interesses particulares. Co

mo se trata de u ma entidade abstrata, ela não poderia, evidentemente, exercer 

a soberania. A democracia direta é impossível. Ela só pode desejar por meiode seus representantes. Ela, não pode, aliás, nem escolhê-los, já que ela não

tem, como elementos, homens reais. Ela é, portanto, obrigada a confiar esse

cuidado a alguns homens. O voto não é um direito, mas uma função confia

da pela nação. Ela não deve, aliás, ser confiada a todos, mas àqueles que são

capazes de exercê-la e pode ocorrer que apenas alguns sejam capazes disso,

notadamente aqueles que possuem bens ou exercem uma profissão, ou pa

gam impostos, têm interesses a defender. Uma vez eleitos, os representantes,

que não representam seus eleitores, mas essa nação abstrata, não devem ob

viamente ser submetidos a nenh um controle.

A soberania nacional provocaria, portanto, conseqüências simetrica

men te inversas àquelas que se supõe pertence rem à soberania popular:

- recusa da democrac ia direta ou semidireta;

- teoria do eleitorad o-funçã o e possibilidade do sufrágio restrito;

- proibição do mand ato imperativo.

Assim, os constituintes proced eriam sem pre a um a escolha funda mental

entre as duas doutrinas da soberania. Essa escolha apresentaria, aliás, um ca

ráter ideológico marcado: a dou trina da soberania p opu lar seria democrática

e progressista, a doutrina da soberania nacional seria conservadora. Poder-se-

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0 Po d e r 179

ia, portanto, classificar as constituições francesas conforme estão ligadas a

um a ou o utra d outrina : soberania nacional em 1791, popular em 1793, naci

onal novamente no ano III etc. Na Assembléia Constituinte de 1946, as duas

dou trinas teriam tido seus adeptos, de mod o que teria sido necessário pro m o

ver um comprom isso: “A soberania nacional pertence ao po vo”. Essa fórmula,

repro duz ida n o art. 3o da constitu ição de 1958, implicaria assim algumas co n

seqüências da soberania nacional e algumas conseqüências da soberania po

 pular.

B. Crítica

A oposição tradicional apresenta graves falhas. Vamos nos limitar aqui

às duas principais: ela é incapaz de levar em conta a realidade histórica; ela

repousa sobre um pressupo sto inaceitável.

1. Crítica histórica

Aparentemente o esquema funciona relativamente bem quando se tratade contem plar a constituição de 1791, que proc lama que a soberania pe rten

ce, de fato, à nação e comporta todas as regras que a doutrina agrega a esse

 princíp io : o sistema represen ta tivo , o su frág io re st ri to e o mandato represen

tativo. Pode-se, porém, rapidamente concluir, como se faz habitualmente,

que as regras decorrem do princípio. Pode se tratar, seja de uma justificação a 

 posteriori, seja de uma simples coincidência. Vale a pena notar que outras

constituições, que comportam as mesmas regras, por exemplo a Charte de

1814, não se referem, porém, ao princípio da soberania nacional.

A constituição de 1793 proclama que “a soberania reside no povo”26.

Espera-se, porta nto, nela encon trar o sufrágio universal, o referendo e o m an

dato imperativo. Ora, se as duas primeiras regras estão lá de fato, embora o

referendo que ela institui seja na verdade impraticável, existem pelo menos

duas disposições que, de acordo com a teoria tradicional, estão ligadas mais

ao princípio da soberania nacional: “nen hu m a porção do povo pode exercer 

o pode r do povo como um todo”27e “cada dep utado pertence à nação como

26 Declaração dos Direitos do Ho me m e do Cidadão, art. 25.2/ Ibid.y art. 26.

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180 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

um tod o”28. Esses textos têm du plo sentido: de um lado, trata-se de um a pr oi

 bição do mandato impera tivo; de outro, disso resulta que os te rmos  povo enação são, de acordo com essa constituição, obrigatoriamente sinônimos.

A ausência de qualquer laço entre soberania popular e as três institui

ções a ela ligadas habitualmente é ainda demonstrada pelo exame da consti

tuição do ano III. O princípio da soberania popular está proclamado nos

mesm os termos que e m 1793: “a soberania reside essencialmente na univ er

salidade dos cidadãos”29. Encontram-se, aí, porém, todas as conseqüências li

gadas habitualmente não à soberania popular, mas à soberania nacional: o

sufrágio restrito e indireto30, a recusa da democracia direta ou semidireta, arecusa do mandato imperativo31.

A proclamação da soberania nacional ou da soberania popular não

apresenta, portanto, o sentido que lhe atribui a doutrina tradicional. Esta só

lhe investe sentido p orque concebe o processo constituinte co mo um a d ed u

ção lógica.

2 .0 pressuposto implícito: a concepção dogmática das constituições

A oposição tradicional só faz sentido quando existe um laço lógico tal

que a aceitação dos princípios leve necessariamente a todas as conseqüências,

de maneira que os constituintes começariam por colocar um ou outro dos

dois princípio s para deles deduzir as conseqüência s. Essa idéia não foi de for

ma alguma d em ons trad a e várias considerações incitam a pensar o contrário.

Vimos, em primeiro lugar, que pode ocorrer que se redijam, primeira

mente, as disposições que e nun ciam as regras e, em seguida, apenas os pr in

cípios e que se pode e nco ntra r u m dos dois princíp ios com as regras que sãoa conseqüência da outra.

Em segundo lugar, não seria possível estabelecer um Uiço lógico senão

com a condição de atri bui r às palavras o mesm o sentido. Ora, os sentidos são

variáveis. Assim, “povo" e “nação” pod em de fato ter dois sen tidos diferentes

na linguagem política e constitucional do século XX e terem sido sinônimos

em 1793.

28 Con stitu ição , art. 29.29 Declaração dos Direitos e dos Deveres do Homem e do Cidadão, art. 17.30 Títulos II, III, e IV.31 Declaração dos Direitos do H om em e do Cida dão, art. 18; constituição, art. 52.

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0 Po d e r 181

Em terceiro lugar, quando houvesse de fato no espírito dos constituin

tes de uma determinada época um laço entre soberania nacional e recusa do

referendo ou do m an dat o imperativo, não tratar-se-ia de um laço lógico, mas

 puramente contingente , de modo que a p roclamação da soberania não tem o

mes mo se ntido em out ra época. É igualmente possível que o constituinte lhe

atribu a um dete rmi nad o sentido e que, no decorrer do processo de aplicação,

os intérpretes da constituição lhe atribuam outro, diferente.

Em qu arto lugar, a oposição tradicional desconsidera o uso retórico que

os constituintes podem fazer de fórmulas como soberania nacional ou sobe

rania popular. É possível e ocorre freqüentemente que elas sejam proclamadas sem outra preocupação senão a de obter uma adesão popular, mas sem

nen hum a intenção de extrair disso a mín ima conseqüência.

Por conseguinte, é preciso examin ar essas questões de um pon to de vis

ta estritamente histórico e dar a essas fórmulas uma interpretação não se

mântica, mas sistêmica. É preciso, em o utra s palavras, não pro cu rar en tend er 

a constituição a partir desses princípios, mas os princípios a parti r da consti

tuição.

C. Determinaçãodotitularda soberania

Vamos nos limitar a qu atro constituições francesas.

1. A constituição de 1791

É necessário observa r a crono logia. Até 1791, os dois term os  povo e na

ção são empregados um pelo outro. A escolha do sistema representativo não

decorre, por tant o, da preferência pelo termo nação, mas, co mo vimos, da fór

mula da Declaração dos Direitos do Homem de 1789: “O  pr incípio de qual

quer soberania reside essencialmente na nação”. A distinção entre povo e na

ção resulta da necessidade de justificar a atribuição do poder legislativo ao

corpo legislativo e ao rei. Com efeito, pode-se justificar mediante a soberania

 popular qualquer forma simples de gove rno, já que é perfeitamente conve

niente qu e o povo so beran o exerça, po r si mesmo, a soberania, ou delegue seu

exercício a um rei ou a um corpo de nobres. Em contrapartida, é impossível

 justif icar, desse modo, um govern o misto, po is não se pode conceber que o

exercício da soberania seja ao m esm o te m po delegado e conservado. Não se

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182 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

ria possível afirmar, por exemplo, que o sistema é uma democracia, porque

não seria possível explicar que o rei participe pelo veto do exercício da sobera

nia e seria ainda mais impossível dizer que o exercício foi delegado a um rei,

 porque não seria possível explicar por que existe, também nesse caso, um ele

mento de democracia.

Supõe-se, portanto, chamar o soberano não de  povo , mas de nação. O

advento desse conceito apresenta várias vantagens: p ode-se c onceber a nação

com o um a entid ade abstrata, comp osta p or dois elementos: o povo e o rei. Já

que ela é abstrata, não pode obviamente exercer a soberania, mas deve dele

gá-la a representantes. Como o soberano é composto, o poder legislativotamb ém o será e com portará dois elementos, correspo nden do àqueles da na

ção: haverá um rei e um corpo legislativo. No entanto, cada um representará

não o elemento correspondente, mas a nação como um todo.

2. A constituição de 1793

A mona rqu ia foi abolida em 1792. Portanto, a nação não ab range mais

que u m único elemento, o povo, de mo do que os dois termos pod em tornar-se, mais uma vez, sinônimos. Substitui-se, portanto, a expressão soberania

 popular por soberania nac ional na Decla ração dos Direitos , mas sem aban

donar, pa ra tanto, a palavra naçãoyque consta do texto da constituição.

É preciso ressaltar que o povo em questão, a partir desse mom en to, não

é, como considera a doutrina clássica, um ente real, que existe no mundo

concreto, independentemente da representação. Trata-se, como no caso da

nação, de u m a no ção constr uída pelo direito. Dificilmente isso poderia ser de

out ra forma, pois não se trata de um fato natural. É, portanto , a constituição

que define o povo so bera no com o a universalidade dos cidadãos franceses32,

e que deve, por conseguinte, definir o cidadão francês33. É ainda a constitui

ção que determina as competências desse povo, a maneira como ele procede

durante a eleição ou como ele participa no exercício do poder legislativo. Co

mo vimo s, o ma nda to imperativo é proibido. Os eleitores exercem, portanto ,

uma função, exatamente da mesma forma que na pretensa doutrin a da sobe

rania nacional.

32 Art. 7°.33 Isso c objeto do Títu lo II.

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0 Po d e r 183

Quanto à idéia de que o povo exerceria diretamente a soberania, ela é

apenas parcialmente exata, já que a constituição só organiza um sistema de

voto popula r para determina das leis, mas so bretudo ela não decorre do pri n

cípio da soberania popular, porém, mais da maneira como ele é formulado:

“a soberania reside no povo”. Com efeito, não é mais somente o  princípio da

soberania, como em 1789, mas a soberania em si mesma, que reside no p o

vo. Este pode, po rtant o, exercê-la diretame nte, pelo men os de fo rma parcial,

nos limites fixados pela constituição, também podendo exercê-la por repre

sentação.

3. A constituição do ano III

O exame da co nstituição do an o III confirma essa análise. Está claro que

os constituintes remet em ao sufrágio universal direto e ao referendo. Mas is

so não implica de mo do algum, com o às vezes se acredita, que o princípio da

sobera nia nacio nal se estabeleça. Vimos, ao con trário, que o princíp io da s o

 berania popular está mantido. Ncio é necessár io empregar novamente o con

ceito nação, já que a mo na rqu ia n ão foi restaurada.Para dar uma justificação adequada às regras concretas enunciadas na

constituição, basta recorrer a duas técnicas: em primeiro lugar, definir de ou

tro modo os cidadãos; se o povo é a universalidade dos cidadãos, como em

1793, basta que a categoria dos cidadãos seja definida de man eira restrita, pa

ra que, por exemplo, o sufrágio restrito se revele justificado pela soberania

 popula r. Em segundo lugar, sobretudo, restabelecer na formação do prin cí

 pio o advérbio essencialmente, que constava já em 89, com o vimos, mas que

tinha sido abandonado em 1793: “a soberania reside essencialmente na uni

versalidade dos cidadãos”.

4. A constituição de 1958

A obscura fórmula do art. 3o, “a soberania nacional pertence ao povo”,

deve ser interpretada da mesma maneira. A ela dá-se habitualmente a inter

 pretação a seguir.

Em primeiro lugar, essa fórmula é retomada literalmente do art. 3° da

constituição de 1946. Na Assembléia Constituinte, uma controvérsia havia

oposto Coste-Floret, partidário da soberania popular, e Paul Bastid, adepto

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18 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

da sob erania nacional. O texto do art. 3o resultava, porta nto , simplesm ente de

um comprom isso com as duas concepções.

Em segundo lugar, o compromisso significaria que a constituição sanci

onava algumas das conseqüências decorrentes da sobe rania nacional e outras

decorrentes da soberania popular. O art. 3° de 1958 afirma, com efeito “[...]

 pertence ao povo, que a exerce por seus representantes e por via do referendo”.

Entretan to, essa interpretação nã o é nem um pou co satisfatória. O co m

 pro misso de 1946 não pode te r ti do esse sentid o na época. Com efeito, a As

sembléia Constituinte debatia depois que um primeiro projeto tinha sido re

 jeitado pelo povo francês. Ora, esse primeiro proje to que proclamava o princípio da soberania popular não contemplava de forma alguma as conse

qüências prescritas pela doutrina e não comportava n otada men te nem m an

dato imperativo tampouco referendo34. O compromisso não poderia signifi

car, portanto, que iria ser privilegiada uma ou outra dessas instituições e,

aliás, a constituição de 1946 previa o referendo somente para a revisão. Dis

so resulta que se podia perfeitamente usar a fórmula do compromisso sem

que desse fato decorresse nenhuma outra conseqüência além daquelas decor

rentes, em princípio, da única so berania nacional.É necessário ir até mais longe: em 1946, co mo mais tarde, em 1958, era

 possível usar uma das d uas fórmulas puras, sem renunciar a n enhum a das re

gras que se desejava inscrever na constit uição. Era possível, po r exemplo, p ro

clamar a soberania popular e ter todas as conseqüências habitualmente liga

das à soberania nacional. É o que fazia, por exemplo, o primeiro projeto de

1946, que acrescentava imediatamente após a proclamação da soberania po

 pular que “a lei é a expressão da vontade nacional... Essa vontade se expressa

 pelos representante s eleitos pe lo povo”. Era possível, de m odo inverso, proclamar a soberania nacional e decidir que a nação confiava o exercício da sobe

rania não apenas a representantes, mas também ao corpo eleitoral para que

ele aprovasse dete rmin ado s projetos de lei por referendo.

Em outra s palavras, se é verdade que o compromis so de 1946 estava apto

a justificar o direito positivo de 1958, era possível também justificar regras

 bem diversas, e as regras adotadas em 1946 ou em 1958 te ri am sido, também,

 justi ficadas por outras fórmulas.

34 Ele remetia, aliás, às fórmulas de 1789 e do ano III e, em particular, ao uso do advérbio essencialmente: “O princípio de qualquer soberania reside essencialmente no povo" (art. 2o).

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0 Po d e r 185

A redação precisa do art. 3o encontra uma utilidade, quando se procu

ra nela fundamentar não uma outra disposição da constituição, mas alguns

comportamentos ou algumas interpretações dadas pelos poderes públicos.

Tomaremos apenas um deles: para justificar o uso do art. 11 em matéria de

revisão constitucional, no qual ela não estava expressamente prevista, o gene

ral de Gaulle e seus partidários fizeram valer em 1962 que o art. 3° privilegia

va, ao mesmo tempo, a expressão indireta e a expressão direta da soberania

ou a democracia representativa e a democracia direta. Como a segunda deve

sobrepor-se à primeira, o art. 3o deveria conduzir a u ma interpre tação am pla

do art. II35 ( C a p i t a n t , 1982, espec ialmente p. 422-429).

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SEquNck P a r t e

OS REGIMES POLÍTICOS

CONTEMPORÂNEOS

Durante muito tempo, o estudo dos principais regimes políticos con

temporâneos pôde ser feito no quadro de uma classificação dualista: de um

lado, os regimes de “ poder aberto” que são designados também pelo nom e de“regimes pluralistas ocidentais” - nos quais os partidos políticos produzem e

exercem sua atividade livremente e a escolha dos governantes depende do re

sultado de eleições competitivas. De outro, os regimes de “poder fechado” -  

muitas vezes qualificados como “monocráticos”- ou de partido único, que ge

ralme nte se dizem inspirados no marx ismo -lenin ismo , e nos quais as eleições,

cujos resultados são conhecidos antec ipadame nte, só servem, de fato, para le

gitimar a dominação do partido. A oposição desses dois tipos de regimes era

extremamente clara não apenas do ponto de vista da prática política mas

também do ponto de vista da ideologia e da doutrina constitucional. Segun

do as concepções pluralistas, o poder estatal constitui sempre uma ameaça

 para as liberdades , e é necessário, portanto, limi tá-lo, ou controlá-lo. Ao con

trário, de acordo com a filosofia marxista, uma vez que a divisão da sociedade  

em classes fo i abolida, se o Estado não se deteriora imediatamente, o poder está 

a serviço do povo como um todo e os cidadãos nada mais têm a temer.

Mas essa classificação dualista não mais corresponde à realidade atual.

Certamente, sempre é possível distinguir regimes que são autenticamente

 plural is tas e outros que o são em m enor grau, ou mesmo que não o são de

forma alguma. Mas, há alguns anos, vários regimes de a poder fech ado” deixa

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19 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

ram comp letamen te de pertencer a essa categoria, ou fizeram relevantes con

cessões ao pluralismo. Mesmo nos países onde o pod er ainda não se encon tra

aberto, como na China, no Vietnã, ou em Cuba, a ideologia da qual ele tirava

sua legitimidade é cada vez mais contestada e ela não mais forma um sistema

coerente. Não seria possível afirmar no entan to que o pluralismo tornar-se-á

geral, tampouco que ele está instaurado de forma durável em todo lugar ou

que ele é atualmente praticado. O “poder fechado” pode renascer das cinzas,

com formas e justificativas mais ou menos diversas das que conhecemos no

 passado. Mas é necessário constatar que atualmente ele está recu ando.

Dentre os regimes pluralistas ocidentais, os mais numerosos são do tipo parlamentar, no sentido que demos ao termo na prim eira parte (Capítulo 1).

O regime dos Estados Unidos, que é mais ou m enos exclusivo dentr o de

sua categoria, e com base no qual foi elaborado o arquéti po do regime presi

dencial, merece evidentemente um estudo particular (Capítulo 2).

Qu an to ao Leste Europeu, ele está atualm ente em u m a fase de transição.

Antes de descrever a situação atual dessa região, vamos começar pela recapi

tulação dos grandes traços do regime monocrático que, há apenas alguns

anos, era ainda adotado (Capítulo 3).

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CApííulo

OS REGIMES PARLAMENTARES

Os regimes agrupados neste capítulo apresentam duas características

comuns: por um lado, o governo é responsável diante do Parlamento; por o u

tro, o chefe de Estado pode ser um monarca hereditário ou um presidente da

República, mas, qualquer que seja o caso, ele não é eleito pelo sufrágio uni

versal. Resulta disso que a equipe de gov erno é sempre de term inad a ind ireta

mente pelos resultados das eleições legislativas. Mas o modo de funciona

mento dos regimes parlamentares varia de acordo com o estado das forças

 pol ít icas e segundo as regras inscr itas na const ituição .

Seção 10 regimebritânico

O regime britânico apresenta para a ciência do direito constitucional

um interesse triplo. Prime iram ente é o mais antigo, se cons iderarm os a anti

guidade de suas fontes escritas ou o aspecto externo das autorida des políticas

que se mantiveram quase imutáveis desde o século XVIII. Além desse fenô

meno da antiguidade e da permanência das instituições e dos ritos, que por 

si só impress ionam os espectadores, é preciso n ota r que essa estabilidade não

foi obstáculo p ara p rofun das transformações . Essa evolução sofrida pelo sis

tema explica por que a Grã-Bretanha pôde, em diferentes épocas, servir de

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19 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

modelo ou fonte de inspiração para constituições tão diferentes quanto a

constituição am erican a de 1787 ou a C arta Francesa de 1814.

Por outro lado, baseado no sistema inglês é que foi elaborado o mode

lo do regime parlamentar que habitualmente hoje se opõe ao regime presi

dencialista. Mas o sistema inglês ao qual nos referimos é aquele que funcio

nava no século XIX, en qua nto o sistema atual é mui to diferente.

Finalmente, a Inglaterra é freqüentemente citada como um dos raros

exemplos de país no qual não há constituição formal. Isso não significa, é cla

ro, que não exista constituição alguma - há um a constituição material - nem

me smo que nã o existam regras constitucionais escritas, mas tão some nte queas regras não estão compiladas em u m do cum ento único e sobretudo que elas

não possuem valor supralegislativo, de tal modo que elas podem, em princí

 pio, se r faci lmente modif ic adas por lei ord inária .

 As origens. - O sistema político britânico origina-se na Idade Média. Pe

la Magna Carta de 1215, João Sem Terra concedia u m certo nú m ero de direi

tos e privilégios e colocava o princípio essencial segund o o qual ne nh um im

 posto podia ser cobrado sem o consentimento do Grande Conselho, no qualtomavam assento os vassalos do rei. É esse Grande Conselho, que no século

XIX recebe o nome de Parlamento, que se separará cm duas câmaras, numa

das quais deliberam os barões e os representantes da Igreja, a ou tra com po s

ta pelos delegados dos Co mun s. Em troca de seu cons entime nto, o rei foi ra

 pidamente levado a sancionar , ou seja, a aceitar, as novas leis que as câmaras

 propunham . No entanto, o Parlamento só se reunia quando o rei necessitava

de novos recursos e este, de qualquer modo, reservava para si o poder de im

 por as novas leis ou de revogar as exis tentes (p re rrogativa real).É esse po de r que desaparece ao final das guerra s civis do século XVII: a

Declaração dos Direitos (Bill ofRights) de 1688 consagra o princípio da anui

dade do voto do imposto e suprime o essencial da prerrogativa real. Daí em

diante as câma ras deveriam se reun ir todos os anos, e as leis só pode riam ser 

adotadas após terem sido votadas nas câmaras e sancionadas pelo rei, que

não pode fazê-las sozinho nem suspender sua execução. Denomina-se então

Parlamento o órgão complexo formado pelo rei e pelas duas câmaras e é o

Parlam ento - e não mais o rei - que é soberano. Esse sistema é considera do

tam bém um governo misto, uma vez que o pod er essencial, o po der legislati

vo, é exercido conju ntam ente pelo rei e por seus ministros. É um sistema m is

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Os Reg im es P a r la m e n ta re s 195

to, também chamado de balança dos poderes, porque os três poderes legisla

tivos parciais se equilibram, cada qual po den do refrear as leis requeridas pe

los dois outros. Sabe-se que a partir desse modelo foi elaborada a doutrina

cha ma da “separação do s pod eres”, que não significava que as autoridad es de

vessem ser especializadas e independentes mas que uma única e mesma au

toridade não pode exercer sozinha todos os poderes. Foi também em função

das condições de funcionamento no século XVIII que se estabeleceu o regi

me parlamentar.

O estabelecimento do regime parlamentar. - No sistema misto, só o p oder legislativo é exercido coletivamente pelos três elemen tos do Parlamento,

com o poder executivo continuando a ser exercido pelo rei. No entanto, a

atribuição do pod er legislativo ao Pa rlamen to teria sido eviden temente esva

ziada de sent ido se o rei tivesse podido se livrar, no exercício do po de r execu

tivo, da obediência à lei. Não era possível controlá-lo em razão de sua irres

 ponsabili dade expressa pelo princípio “o rei, mal não pode fazer”. As c âmaras

retomaram então um antigo procedimento, o do impeachment . Consistia

num ato de acusação contra os ministros votado pela Câmara dos Comuns por conduta julgada crim in osa. Os ministros eram então ju lg ados pela Câ

mara dos Lordes. Como nem o crime dos ministros, nem as penas aos quais

estavam sujeitos eram definidas, os ministros podiam ser facilmente acusa

dos e condenados por qualquer conduta do rei com a qual tivessem colabo

rado, notadamente, mas não exclusivamente, endossando seus atos.

Disso resultou rapidamente que os ministros que incidiam na respon

sabilidade só aceitavam endossar os atos que aprovavam. O rei podia então

mudar de ministro mas este ficava na mesma situação, de sorte que o poder do rei passou para as mãos dos ministros. Essa evolução foi facilitada e ace

lerada pela chegada ao tron o da dinastia dos príncipes de Han nov er em 1715:

o prim eiro deles não conhecia suficientemente bem a língua inglesa para po

der p articipar eficientemente das reuniões de gabinete, enqua nto que o utro

era fraco de espírito. Dessa forma, o procedimento de acusação era aberto

não só nos casos de crime cometido, no sentido ordinário do termo, mas

tam bém qua ndo a maioria da Câmara dos Co mu ns deliberava contra a polí

tica adotada pelos ministros. Como ela podia facilmente se concretizar, os

ministros tin ham interesse em se demitir assim que u ma am eaça de acusação

 pesasse sobre eles. A primeira demissão desse tipo foi a de Walpole em 1742.

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196 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Mas trata-se de um a de missão individual. O processo foi encerrad o em 1782,

qua ndo Lord North se demite com todo seu gabinete mesm o na ausência de

qualquer ameaça de impeachment. Considera-se que essa data marca o nasci

mento do sistema parlamentar, já que por um lado a responsabilidade é, daí

em diante, realmente política, não só porque ela entra em vigor por razões

 polí ticas - é quase sempre o caso - , mas porque o procedimento e a sanção

são políticos, e por outro lado, essa responsabilidade é coletiva e, dessa for

ma, é a política de todo o gabinete que recebe a sanção.

Finalmente, como o gabinete pode a qualquer m om ento ser compelido

 pela Câmara dos Comuns a abandonar o poder , ele só será duradouro se reunir a maioria que o apoiará. A liderança exercida pelo primeiro-ministro re

 pousa a princípio principalmente sobre a corrupção. Esta é favorecida por 

um sistema eleitoral arcaico que perm ite qu alque r manipulaçã o: sufrágio res

trito - men os de 5% da p opula ção - , condiçõe s de elegibilidade restritivas,

divisão irrealista das circunscrições, candidaturas oficiais.

As fortes pressões por reformas levam, em 1832, à ampliação do corpo

eleitoral. Essa reforma tem conseqüências consideráveis: um corpo eleitoral

ampliado é menos vulnerável às manipulações e só candidatos organizadosem partidos têm chances de ganhar as eleições. O final do século XIX assiste

assim ao desen volvimento de p artidos políticos estrutur ado s e disciplinados.

Qu and o um desses partidos possui a maioria na Câmara dos Com uns, o ga

 bin ete é todo composto por seus dir igente s e desfruta de apoio permanente.

 As fontes. - Co mo a Grã-Bretanha não possui constituição formal, torna-

se necessário identificar ao men os os tipos de fontes do direito constitucional.

1. A soberania do Parlamento e da Lei

Existem antes de tudo fontes escritas. Pode se tratar de alguns docu

men tos fu nda men tais com o a Magna Carta de 1215, a Petição de Direitos de

Carlos I (1628), o Ato de Habeas C orpus (1679), a Declaração de Direitos (Bill 

o f Rights) (1688), o Ato de Sucessão (1701) ou leis relativas a algumas insti

tuições específicas; bem como os Atos do Parlamento de 1911, 1949 e 1999

que restringem o poder da Câmara dos Lordes. A esses textos acrescenta-se

agora a lei pela qual a Grã-Bretanha adere à Europa, o Ato da Comunidade

Européia (European C om m unity Act) de 1972 e, por conseqüência, o Tratado

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Os Reg im es P a r la m e n ta re s 197

de Roma, o Ato Ünico Europeu e o Tratado de Maastricht. Até o século XVIII

considerava-se que os textos fundam entais e o costume antigo se imp un ha m

ao rei e às câmaras. Mas essa idéia foi abandonada quando se constatou que

o Parlam ento - ou seja, as câmaras e o rei - podia a dota r qualq uer lei e que

era, por essa razão, soberano. Assim, não existe norma superior à lei e cada

uma das suas regras pode a qualquer momento ser modificada por uma lei

ordinária. Diz-se freqüentemente que aquilo que faz a rainha em seu Parla

men to é o direito, em outra s palavras, que nã o há limites ao que p ode fazer o

Parlamento. Dessa forma, para os tribun ais é impossível recusar a aplicação

de uma lei sob pretexto de que ela seria inválida. Esse princípio foi algumasvezes questiona do m as nu nca foi abalado, mesm o com os progressos mais re

centes.

O Human Rights Act de 1998

Existe um movimento favorável à adoção de uma Declaração de Direi

tos nos mesmos moldes daquelas que acompanham as constituições escritas.

A Declaração seria a codificação dos direitos e liberdades dotada de um valor supralegislativo, suscetível cons eqü entem ente de servir de fu nd am ent o a um

controle de constitucionalidade das leis. No entanto, esse movimento é mi

noritá rio e um a tal declaração de direitos seria incompatível com o princípio

de soberania do Parlamento. Por isso, o Human Rights Act (Ato dos Direitos

Humanos) só foi adotado em 1998, o que torna a Convenção Européia dos

Direitos Humanos diretamente aplicável. Ela não possui valor superior ao

das leis mas os ministros que entram com um projeto na Câmara dos Co

m un s devem fazer uma declaração sobre a comp atibilidade dessa com a C on venção. Por outro lado, os tribunais que, por causa da soberania do Parla

mento, não podem anular as leis, deverão em caso de conflito entre a lei e a

Convenção, como para as regras européias segundo a jurisprudência Factor- 

tame , dar às leis uma interpretação de tal forma que elas fiquem de acordo

com a Convenção e a jurisprudência d a Corte Européia dos Direitos Huma nos.

Se for constatado que apesar de tudo uma lei é incompatível com a Conven

ção, a incompatib ilidade deve ser declarada. Em c ompensa ção, diferen temen

te do que resulta da jurisprudência Factortame> o juiz não pode afastar a lei

 parlamentar no caso em litígio. É o ministro competente que pode emendar 

a lei para pôr fim à incompatibilidade, sem, aliás, voltar ao caso particular.

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198 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Trata-se então de u m controle m uito diferente do controle de con stitu

cionalidade pratic ado em out ros países europeus: o texto de referência é um a

convenção internacional; os tribunais devem se conformar com a jurispru

dência de uma corte internacional; enfim, a decisão de incompatibilidade

tem p or efeito transferir para o m inistro um verdadeiro p ode r legislativo; en

fim, os tribunais não têm o direito de privar uma lei parlamentar de sua va

lidade. Por causa desse últim o traço, estima-se geralmente que o princ ípio da

soberania do Parlamento continu a teoricamente intacto (E l l i o t t , 1999).

 A construção da Europa

 A evolução do direito europeu também não é suscetível de abalar a so

 bera nia do Parl amento. Se é verd ade que alg umas normas euro péia s têm apli

cação direta nos territórios dos Estados-membros e que os britânicos têm

uma ação ativa diante da Corte Européia dos Direitos dos Homens, isso não

quer dize r que o direito euro peu t enh a u m valor sup erior ao deis leis. E, se em

certos países como a França, o direito internacional tem uma autoridade su

 perior à das leis, a Grã-Bretanha, quanto a ela, possu i um sistema dual is ta: odireito internacional só integra o direito nacional graças a uma lei adotada

 pe lo Parlamento. Pode-se então consid erar que um tratado domina uma lei

anterior, mas unicamente porque, ratificando o tratado, o Parlamento m ani

festou o desejo de m odifi car essa lei anterior. A questão é mais delicada q uan

do se trata de contradiçã o en tre um tratad o e um a lei posterior a ele. Até re

centemente, considerava-se que, adotando uma lei contrária a um tratado, o

Parlamento estaria sem dúvida violando um a norm a internacional, mas não

uma norma interna. Ele pode ser condenado por uma corte internacional,mas a lei po r ele votada en trará em vigor e não po derá ser descartada po r um

tribunal britânico, no caso de ser claramente visível que o Parlamento deci

diu anular um tratado. Entretanto, a Câmara dos Lordes, estatuindo como

 juri sdiç ão suprema, decidiu recente mente, com relação a uma lei contr ária

aos tratados europeus, que se a vontade do Parlamento de anu lar os tratados

não fosse explícita, os tratad os deve riam ser respe itado s1. Essa juri sp rud ência

deixa assim intacto, ao menos no plano formal, o dogma da soberania do

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Os R e gim e s P a r la m e n t a r e s 199

Parlamento, pois ele pode sempre declarar explicitamente que deseja, pela

nova lei, anular a regra internacional.

2. As convenções da constituição

Existem também regras não escritas, entre as quais se faz uma distinção

fundamental entre os costumes no sentido estrito e as convenções da consti

tuição. Em ambos os casos, trata-se de práticas repetidas acrescidas do senti

mento do caráter obrigatório. A diferença reside no fato de que um costume

 pode ser constatado e s ancionado pe los tr ib unais , o que não ocorre com umaconvenção.

À luz das concepções dom ina ntes sobre a juridicidade, as convenções da

constituição colocam um problema teórico difícil. Estima-se em geral que

um a regra jurídica é aquela cuja violação é sancionada. Seria então necessá

rio concluir que as convenções da constituição não são verdadeiras regras de

direito. Ora, elas representam um papel importante. A obrigação de um pri

meiro-ministro apresentar a demissão ou solicitar perante o rei a dissolução

da Câmara, no caso de ter sido objeto de uma moção de desconfiança explícita da Câmara dos Comuns ou se a moção de confiança que apresentou foi

rejeitada; a obrigação do monarca de sancionar as leis votadas pelas câmaras,

sem opor-lhes o veto; a obrigação ainda do mo narca de nom ear para o po s

to de primeiro-ministro o líder do partido majoritário ou de dissolver a Câ

mara dos Comuns acatando o pedido do primeiro-ministro; todas essas re

gras são apenas convenções.

Para explicar que elas são fielmente cump ridas, po de-se p rimeir ame nte

sustentar que, se não são direta mente sancionadas, elas o são indiretamente.

 Não se pode processar um primeiro-ministro se ele não pedir demissão, mas

o P arlamento não votaria a lei de finanças, de sorte que os impostos não p o

deriam legalmente ser arrecadados, nem os gastos serem efetuados. Podemos

fazer duas objeções a essa tese. Em primeiro lugar, ela não leva em conta as

convenções que não podem ser sancionadas indiretamente, por exemplo, a

obrigação da rainha de aceitar as leis. Por outro lado, a sanção indireta não é

 ju ríd ic a mas política, de tal m odo que será necessário consid erar as conven

ções não como verdadeiras regras jurídicas, mas com o simples regras políticas

que não são obrigatórias, mas que são conservadas, seja pelo medo das conse

qüências políticas, seja pelo receio do  fair play ( M a r s h a l l , 1987).

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200 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Mas tam bém se pode pensar que, m esmo sendo justa essa explicação do

com por tam ento dos h omen s políticos, disso n ão resulta que as convenções

devam ser consideradas como essencialmente diferentes das outras regras

constitucionais, mesmo as escritas. De início, efetivamente, não se deve con

fundir a submissão a uma regra com uma tese sobre o caráter obrigatório ou

o caráter jurídico dessa regra; a existência da sanção pode explicar a existên

cia de um fenômeno psicológico segundo o qual os homens se conformam à

regra; ela não explica que eles devam a ela se conformar. Conseqüentemente,

se as convenções não comportam as sanções, pode-se deduzir que elas não

são obrigatórias. Por outro lado, há muitas regras, cujo caráter juridicamente obrigatório jamais é contestado, que são desprovidas de sanção e que são

obedecidas pelas mesmas razões e do mesmo modo que as convenções da

constituição: é o caso principalmente da constituição formal quando não

existe controle de co nstitucionalidade. Para ela, com o para as convenções da

constituição, é preciso dizer que é um a regra jurídica na med ida em que é in

terpretada como regra jurídica.

1. OS ÓRGÃOS

A.O Parlamento

Vimos que em seu sentido tradicional a palavra Parlam ento designa um

órgão complexo da função legislativa, ou seja, o conjunto das três autorida

des cujo consentimento é necessário para que as leis sejam adotadas: as duas

câmara s e o rei. Entretan to, na medid a em que o mo narc a perdeu o direito de

veto, denom ina-se norm alme nte Parlamento, no sentido estrito, o conjunto

formado pelas duas câmaras.

1. A Câmara dos Comuns

 A eleição da Câm ara dos Com uns. - Desde 1983, a Câm ara dos Com uns

conta com 650 mem bro s eleitos em princ ípio p or 5 anos. Na realidade, a Câ

mara rara mente chega ao términ o do m andato, po rque é dissolvida no rm almente durante o último ano da legislatura.

A lei eleitoral tem uma importância considerável. Vimos de que modo

o sistema se modificou a partir da reforma de 1832, graças à ampliação p ro

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Os R e gim e s P a r la m e n t a r e s 201

gressiva do corpo eleitoral. O voto universal masculino só se estabeleceu em

1918, mas o voto feminino, a partir de 1928. No entanto, a regra de maior 

amplitude é aquela que fixa o tipo de escrutínio. Trata-se do escrutínio ma

 joritário de turno único. Em cada circunscrição só existe um candidato a ele

ger e aquele que obtém o maior número de votos é eleito. Esse sistema, extre

ma me nte repressor, é um fator de concentração de partidos, p orqu e incita os

eleitores ao voto útil e a não votar em candidatos cujas chances sejam fracas

(cf. supra, p. 160 e s.). Os candida tos, p or seu lado, são for temente dissuad i

dos a aban don ar seus partido s ou mes mo a infringir a disciplina, porque suas

chances seriam ínfimas se eles fossem sós para a batalha. Por ou tro lado, o sistema c ond uz a um a forte distorção da representação, um a vez que as eleições

são ganhas por formações que obtiveram o m aior núm ero de votos no maior 

número de circunscrições, mesmo que em cada uma dessas circunscrições a

diferença de votos seja pequena. Assim, há super-representação do partido

majoritário. Em 1883, por exemplo, o partido conservador pôde obter 61%

das cadeiras com 42% dos votos. É até mesmo possível obter a maioria das

cadeiras com minoria de votos, como se produziu em 1951, quando os con

servadores obtiveram 321 cadeiras com 48% dos votos, enquanto os trabalhistas só obtiveram 295 cadeiras com 48,8% dos votos. O me sm o fe nôm eno

ocorreu em 1974, privilegiando desta vez os trabalhistas.

Por causa da conce ntração dos p artidos políticos, o m od o de escrutínio

tem efeitos importa ntes sobre a vida política: primei ram ente, haverá sempre

nas vésperas das eleições um partido majoritário na Câmara dos Comuns e

os eleitores sabem que o líder desse partido será nomeado primeiro-minis-

tro. Pode-se dizer então que tudo se passava como se o primeiro-ministro

fosse eleito pelo sufrágio universal ( M a r x , 1969). Por outro lado, o gabineteassim nom eado desfruta no rmalm ente de grande estabilidade, porque só po

de ser derruba do pelo próprio partido, quer dizer, por u ma revolução de pa

lácio. Finalmente, a partir do momento em que o avanço relativo do partido

majoritário sobre o principal partido de oposição é pequeno, basta uma pe

quena migração de votos para provocar a alternância de poder. Os dois par

tidos têm interesse em adular os eleitores indecisos, quer dizer, aqueles que

 podem votar tanto para um quanto para o outr o, pois serão eles que fa rão a

diferença. Assim, ambos têm tendência a apresentar programas políticos cu

 jo objetivo é seduzir o eleitor, e dessa forma, apresentam programas polí ti cos

que não se opõem radicalmente.

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202 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

 Naturalmente os outros partidos que sofrem com o sistema majoritário

reclamam o estabelecimento de uma certa dose de representação proporcio

nal. Foi o caso especialmente do partido liberal depois de ter sido superado

 pelos trabalhis tas. Atualm ente é o caso do partido liberal democrata. Mesmo

que essa exigência seja contrária aos interesses dos dois grandes partidos que

se beneficiam do escrutínio majoritário, o partid o trabalhista, nas eleições de

1997, para ob ter os votos dos simpatizantes do p artid o liberal dem ocrata, te

ve de prometer, caso chegasse ao poder, colocar em discussão o m od o de es

crutínio que talvez pudesse ser subme tido a referendo.

 No entanto, após as eleições essa reforma deixou de ser prioritária, contentan do-s e com a instituição da representação propo rciona l para as eleições

ao Parlamento Europeu.

A bem da verdade, ninguém pode prever os efeitos que terá a legisla

ção relativa à Irlanda do Norte, à Escócia e ao País de Gales sobre o sistema

dos partidos. Mesmo que as eleições de maio de 1999 não tenham sido

muito favoráveis aos partidos nacionalistas escoceses e galeses, é possível

que a longo prazo esses partidos se reforcem não somente no plano regio

nal mas també m no plano nacional, de tal forma que nen hu m dos grandes partidos obtenha a maioria. Por outro lado, é im poss ível prever todos os

efeitos que pod eriam ocorrer, inclusive sobre os grandes partido s nacionais,

com a introdução de uma dose de representação proporcional no escrutí

nio regional.

 A devolução. - Os trabalhistas, no pod er desde 1997, têm emp reen dido

uma série de reformas constitucionais de grande amplitude, as mais impor

tantes desde o início do século XX.Destas, as principa is re formas dizem respeito à Escócia e ao País de Ga

les, fazendo da G rã-Bretan ha u m Estado quase federal. O pro cedim ento pelo

qual elas foram adotadas merece ser descrito. O governo submeteu um pro

 je to a re ferendo, mas só podiam vota r os elei tores escoceses e galeses. Um

francês ficaria espantado ao ver que em seu conjunto os eleitores britânicos

tenham sido privados do direito de consentimento à restrição de sua sobera

nia. Mas o soberano na Grã-Bretanha não é o corpo eleitoral, nem mesmo o

 povo brit ânico, mas o Parlamento. Aliás, os elei tores escoceses e galeses não

 podem também adotar um texto por re ferendo e foi necessár ia um a lei vota

da pelo Parlamento em 1998, o Scotland Act.

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Os Reg im es P a r la m e n ta re s 2 0 3

Examinaremos aqui somente a lei sobre a Escócia, dita de devolução. Essa

lei institui um Parlamento escocês que se reuniu pela primeira vez cm 1- de ju

lho de 1999. A maioria dos deputados é eleita em circunscrições de dimensões

reduzidas, por votação uninominal e de turno único, tradicional na Grã-Breta

nha, mas nas circunscrições maiores, os outros são designados pela representa

ção proporcional. Co mo na Alemanha para a eleição do  Bundestagycada eleitor 

dispõe de dois votos para participar da eleição das duas categorias de deputados.

O Parlamento escocês vota leis que a rainha, em princípio, pode vetar,

com o as adotada s pelo P arlamen to de Westminster. Esse pode r legislativo po

de ser exercido som ente nas matérias descritas no Scotland Act e não pode so brepor- se às competências do Parlamento bri tânico. Essas leis devem estar de

acordo com a Convenção Européia dos Direitos Hum ano s e o direito co mu

nitário. O Conselho Privado analisa a co nform idad e às leis de Westminster.

Haverá um poder executivo escocês, tendo como chefe um primeiro-

ministro (First Minister para distinguir do Prime Minister britânico), nom ea

do pelo Parlamen to escocês e responsável p erante ele, encarregad o de execu

tar as leis escocesas e também de aplicar, na Escócia, as leis britânicas.

Pode-se pensar que o po de r das instituições escocesas é limitado, pri ncipalmente em razão da insistência da soberania do Parlamento de West

minster, que em princípio, pode a qualquer momento retomar certas maté

rias, ou mesmo todas, delegadas à Escócia. Primeiramente, é possível que o

Parlamento de Londres se abstenha de legiferar para os negócios escoceses, e

como não haverá no interior do gabinete britânico nenhum ministro encar

regado desses assuntos, o Parlamento se absterá da mesma forma de exercer 

sobre essas matérias sua função de controle. Tudo se passará como se o poder 

legislativo estivesse dividido, como num sistema federal, entre dois Parlamentos: o de Londres e o de Edimburgo. Por outro lado, ainda como no sis

tema federativo, os conflitos de compe tência são resolvidos po r um a jurisdi

ção, o Conselho Privado, que interp retará o Scotland Act.

 No entanto, apesar desses traços que o aproximam do sistema federa ti

vo, o sistema de relações entre a Grã-Bretanha e a Escócia dele se distingue

em vários aspectos. Primeiro, se existe um Parlame nto separado para a Escó

cia, o me smo não oco rre para a Inglaterra. O Parlam ento de Westminster tem

um papel duplo, ou seja, ele legisla para a Inglaterra e para o conjunto da

Grã-Bretanha. Por outro lado, o Conselho Privado controla as leis do Parla

mento escocês, mas não do Parlamento britânico. Pode-se argumentar que

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2 0 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

são conhecidas formas de federalismo não igualitárias, mas há uma diferen

ça essencial: a divisão das competências e a existência de uma entidade esco

cesa não são o resultado de uma constituição mas de uma lei, que pode ser 

modificada a qualquer m om ento pelo Parlamento inglês.

 A organização da Câmara dos Comuns. - A Câmara dos Com uns esco

lhe seu presidente, o speaker , que fica na função durante toda a duração da

legislatura. Esse personagem desfruta de um prestígio considerável, que aliás

é devido à sua neutralidade e imparcialidade. Se ele é freqüentemente, mas

nem sempre, escolhido no interior do par tido majoritário, a oposição se abstémem geral de apresentar em sua circunscrição um candidato que se opon ha a

ele e ele é reeleito a seu posto, mesmo ocorrendo mudança de maioria. Mas

seu prestígio se deve também a seus poderes: ele designa os presidentes das

comissões, assegura a organização cios debates e pode tom ar medidas pu nit i

vas contra os deputados.

As comissões permanentes da Câmara dos Comuns não são especiali

zadas, com o ocorre com as comissões do Parlam ento francês ou d o Co ngres

so americano. Aliás, elas possu em um papel men os imp ortan te. São designadas po r ord em alfabética e é o speaker que divide os assuntos entre elas.

 Na Câmara dos Comuns, os deputados são fortemente controlados por 

seus respectivos partidos. No interior de cada partido, certos deputados, os

whips, são encarregados de transmitir as recomendações de voto e assegurar 

a disciplina. Como os deputados devem sua eleição ao partido e esperam a

investidura para as eleições seguintes, são obrigados a se curvar às recomen

dações. Disso resulta um a con seqüênc ia im portan te: exceto em caso de crise

interna no interior do partido majoritário, os textos apresentados pelo gabinete serão necessariamente adotados.

2. A Câmara dos Lordes

Ela constitui incontestavelmente um resquício de uma época que não

mais existe e, no en tan to, se sua elimina ção foi mu itas vezes pensada, ela ain

da subsiste embora profundamente reformulada.

Até o  House o f Lords Act de 1999, havia três categorias de lordes ou pa

res: os pares hereditários, em nú me ro de 758 em l ü de nov emb ro de 1999, os

 pares vitalícios (542) e 26 pa res espir itua is , bispos da igreja anglicana .

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Os Reg im es P a r la m e n ta re s 2 0 5

A rainha nome ia os lordes e ela podia, depen den do da vontade, no mea r 

 pares hereditários ou vitalícios. No século XX as nomeações eram feitas a tí

tulo honorífico para rec omp ensar políticos e profissionais de m uito destaque,

tratando-se de nomeações vitalícias até que, sob influência de Margareth

Thatcher, as nomeaç ões voltaram a ser feitas a título hereditário. Há m uito es

se poder da rainha está efetivamente nas mãos do primeiro-ministro, como

todos os outros, o que representa um a impo rtância política considerável, uma

vez que a rainha podia nomear um número ilimitado de lordes alterando a

maioria conform e desejasse, dispond o desse mod o de u m pod er de pressão ir

resistível sobre a Câmara . Isso perm itiu p ressionar a Câm ara dos Lordes a votar as leis que restringiam seu poder ou modificavam sua composição.

A Câmara dos Lordes foi profundamente modificada pelo  House o f  

 Lords Art  de 1999, que co nstitui a primeira etapa de um a refo rma mais geral

anu ncia da pelo governo trabalhista. Ela consiste principa lmente na supressão

dos pares hereditários. Os titulares perderam assim suas cadeiras com exce

ção de 92 deles selecionados a partir de eleição e que se tornaram pares vita

lícios. A Câm ara contava em março de 2000 com 670 membro s.

Os trabalhistas anunciara m sua intenção de proceder pos teriormente aum a reforma do sistema de designação dos pares vitalícios e à instituição de

uma categoria de pares eleitos. O objetivo seria o de criar uma segunda câ

mara moderna, na qual haveria ao mesmo tempo membros eleitos e lordes

vitalícios. Seu papel seria o de um a câ mara de discussão e de contribuiç ão pa

ra a qualidade da legislação. O procedimento legislativo não seria dessa for

ma perturbado.

A Câmara dos Lordes exerce dois tipos de poder. Em primeiro lugar, ela

intervém na adoção de leis. Até 1911, ela dispunha de poder idêntico ao daCâmara dos Comuns, mas, após o Parliament A ct , adotado naquele ano, ela

conservaria somente um direito de veto suspensivo de dois anos (porém so

mente de um mês no caso de matéria financeira). Em 1949, um novo texto

veio reduzir aind a mais os poderes da câm ara alta e isso com efeito re troati

vo, a fim de que não pudesse se op or ao projeto de nacionalização do aço já

apresentado pelo governo trabalhista. O veto não dura mais de um ano. Por 

ou tro lado, ela é a jurisdição su prem a da Grã-Bretanha, aquela que decide em

última instância e estabelece a jurisprudência. Quando a Câmara dos Lordes

se reúne para atuar como jurisdição, só tomam parte pares vitalícios de um

tipo especial, os  Law Lords, que de fato são magistrados.

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2 0 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

A man uten ção da seg unda câma ra de nobres se explica e se justifica de

várias maneiras: pela ligação com a tradição, pela alta qualidade técnica dos

debates. Não se trata de qualq uer m od o nem de salvaguardar privilégios nem

de realizar um equilíbrio dos poderes, salutar para a liberdade política. O

centro dos conflitos e dos equilíbrios políticos não está mais na rivalidade en

tre as duas assembléias, mas nas relações da maioria e da oposição e sobretu

do nas relações no interior da própria maioria. Mas a Câmara dos Lordes

mantém aos olhos de muitos observadores sua razão de ser. Sem dispor de

um verdadeiro poder legislativo, ela tem um papel importante no procedi

mento legislativo, por um lado porque seu poder de retardar a adoção deum a lei não p ode ser negligenciado e acontece às vezes de um projeto qu e não

 passa em final de sessão não ser reapresenta do na sessão seguin te e assim ser 

enterrado; por outro lado, porque a proporção cada vez maior de pares vita

lícios, escolhidos entre as personalidades mais com peten tes do país, confere

aos debates um a grande qualidade técnica, conduz a emenda s e permite m e

lhorar numerosos projetos de lei.

B.ACoroa

A Inglaterra é um a mo nar qui a na qual a sucessão da Coroa se faz segu n

do as regras de hereditariedade do direito com um . As mulheres alcançam sua

 posição segundo o grau de parente sco com o monarca precedente . El izabeth

II é hoje a rainha regente (Queen regnant) porque ascendeu diretamente à

Coroa. A esposa do rei é somen te a ra inha consorte.

A despeito de uma redução sensível dos poderes teóricos da Coroa no

decorrer da história, eles ainda são consideráveis. Eles constituem a “prerro

gativa” real. Fazem parte deles o direito de nomeação a numerosos empregos,

o direito de conceder o título de lorde, os títulos e condecorações, o direito

de convocar, prorro gar ou dissolver a Câmara dos Com uns , o direito de guer

ra e de paz, o direito de negociar etc.

Todavia, além do Parlamento poder restringir o alcance da prerrogati

va, as competências que ela comporta só pertencem ao rei nominalmente.

Seu exercício é do gabinete ou do p rimeiro -minis tro.

Dessa maneira, não é pela autoridade jurídica que a Coroa é uma peça

importante para o sistema político britânico. Até recentemente, a rainha e a

família real simbolizavam a grandeza do Império britânico e as virtudes da fa

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Os Reg im es P a r la m e n ta re s 2 0 7

mília inglesa. Por outro lado, a rainha era ma ntid a in form ada das decisões do

gabinete e pod ia exercer uma certa influênc ia pessoal. Finalm ente, a Igreja da

Inglaterra não está separa da do Estado - o que justifica a presença dos bispos

na Câ mar a dos Lordes - e a rainha é seu chefe.

Hoje, no entanto, a mo nar quia não é mais inquestionável. A crise apre

senta dois aspectos. De um lado, a rainha possui uma enorme fortuna priva

da, uma das maiores do mundo, e uma parte da opinião pública ficou choca

da quando soube que não só ela era isenta de impostos mas que todos os

membros da família real recebiam pensões públicas (a “lista civil”). O segun

do aspecto diz respeito aos costumes da família real. Nos anos do pós-guerra, ela tinha um papel simbólico importante e

oferecia a imagem de um a família ideal. Ora, um a série de escândalos de ne

griu e contin ua a de negrir essa imagem. O divórcio do príncipe de Gales e da

 princesa , no mês de agosto de 1996, não foi suficiente para colocar um fim a

esses escândalos.

As dificuldades não são constitucionalmente intransponíveis. A rainha

decidiu pagar impostos voluntariamente, assim como colocou em funciona

men to u m comitê para refletir sobre o futuro da mona rquia. Entre as soluções propostas, a supressão da lista civil v ota da pe lo Parlamento . A rainha ti ra ria os

 proventos das propriedades reais. Finalmen te , as ligações pr ivilegiadas com a

igreja anglicana cessariam, o que permitiria a um príncipe de Gales divorcia

do se casar novamente. En tretanto, uma vez que o com po rtam en to da família

real não é mais exemplar, alguns pensam que a função simbólica da unidade

da Grã-Bretanha poderia ser preenchida de outra forma.

O monarca é acompan hado p or um Conselho Privado composto por to

dos os seus conselheiros. Originalmente sua influência era considerável, masseu papel dim inuiu a partir do m om ento em que o Gabinete, que dele se ori

ginou, teve sua autorida de acatada pelo Parlamento. Ele é sob retud o o órgão

 pelo qual devem passar certas decisões do gove rno, principalmente a convo

cação ou a dissolução da Câmara e o exercício do poder regulamentar. Por 

sua forma, os regulamentos ingleses são Orders in CounciU quer dizer, orde

name ntos tomados em Conselho Privado. Com o os principais ministros de

le participam, seu papel é reiterar as medidcis adotadas pelo Gabinete. O

Conselho Privado tem também um papel de Corte Constitucional para cer

tos países do Commomvealth e será instado a examinar a validade das leis do

Parlamento escocês (v. supra).

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2 0 8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

C. O Gabinete [C h a r l o t , 1998)

O surgimento do Gabinete está ligado à evolução do regime parlamen

tar. Antes da Revolução de 1688, o rei escolhia entre os Privy Councillors 

aqueles que fariam parte de um círculo mais restrito, o  In ner Circle. Investi

do da confiança do monarca, ele era senhor para designá-los ou demiti-los.

Foi somente a partir do ministério Walpole (1721-1742) que a necessidade

dos membros desse conselho privado de desfrutarem da confiança dos Co

muns retirou-o da livre fantasia do soberano de fazer dele um gabinete no

sentido parlamentar do termo. Inicialmente instrumento do rei, depois ins

trumento do Parlamento, o Gabinete terminou sua mutação adquirindo a

forma atual de organismo do p artido majoritário.

O G abinete possui poderes consideráveis; não só exerce o po der execu

tivo propriamente dito e uma parte das competências devidas à prerrogativa

real, mas também detém o poder considerável de produzir uma “legislação

delegada”. Como em vários países e por razões similares, o Parlamento tem

dificuldades de adotar todas as leis necessárias: matérias muito técnicas, len

tidão dos procedimentos, ordem do dia sobrecarregada. Ele vota então uma

lei de habilitação pela qual autoriza o governo a baixar regulamentos. Estes

serão objeto de ratificação expressa ou tácita, pode ndo, mes mo após terem si

do ratificados, sofrer modificações sem necessidade de nova habilitação.

A composição do ministério é extremamente complexa por causa da

sobrevivência de antigas práticas. Compreende o primeiro-ministro, os mi

nistros, os secretários de Estado. Os ministros perte ncem a diferentes catego

rias. Há os ministros propriamente ditos que estão à frente do ministério, e

outras personalidades cujas funções, tanto honoríficas (por exemplo, Lordedo Tesouro Privado) quanto efetivas (Lorde Chanceler, Lorde presidente do

Conselho Privado) têm valor para fazer parte do ministério. Em relação aos

secretários de Estado (Foreign secretary,; Home secretary etc.), são personali

dades que estão à frente de uma antiga repartição pública que conservou o

nome de office. Entre eles e os m inistros p rop riam ente ditos não existe dife

rença a não ser a da antiguidade na criação da repartição.

Os secretários de Estado, ministros plenos, em bo ra sem o título, não de

vem ser confundidos com os  parl iamentary secretaries que acompanham oschefes das grandes repartições ministeriais. São subministros investidos das

competências delegeidas pelos ministros aos quais estão ligados. Seu título

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Os Reg im es P a r la m e n ta re s 2 0 9

vem da função que exercem e que compreende a ligação entre a repartição à

qual pertencem e o Parlamento.

A complexidade d o órgã o foi acrescida pelo apare cimento , em 1941, de

ministros de Estado que, ao contrário do que ocorre na França, possuem pas

tas e são encarregados de acompanhar certas categorias de problemas ou de

coo rden ar as atividades de várias repartições.

Com exceção do prime iro-minis tro, teoricamente escolhido pela rainha,

e os ministros ès qua titéy todos os ministros e secretários de Estado são desig

nados pelo primeiro-ministro. O costume exige que os ministros pertençam

ao Parlamento (a proporção dos que pertencem à Câm ara dos Com uns e osque fazem parte da Câ mar a dos Lordes é da alçada do primeiro -ministro , re

servado o respeito ao  Minis ters o fthe Crown A ct  de 1937 que prevê para o Ga

 binete ao menos três pares, não contando o Chancele r que é obrigatoriamen

te um lorde). Houve exceções para a origem p arlam enta r dos ministros, mas

elas se transformaram em aborrecimento para o Gabinete. De fato, como os

ministros só têm acesso às câmaras de origem, um ministro não par lame ntar 

é um peso morto para o governo, uma vez que não pode assegurar a ligação

entre ambos. A liberdade de escolha do prim eiro-m inistro é limitada evidentemente pelo princípio da confiança necessária da Câmara, mas ela o é tam

 bém pelo costume, que deixa poucas chances de acesso ao min is té rio para

uma personalidade que de início não obtenha a aprovação dos Comuns.

 A retração da autorid ade govern amenta l. - O  ministério é um organis

mo bem amplo (mais de 100 membros) para adaptar-se às exigências do

exercício da autoridade política. Assim, tradicionalmente, o Gabinete não

com preend e todos os ministros, mas só aqueles que o prime iro-m inistro d esignou para dele participar. Naturalmente, alguns deles têm o lugar assegu

rado pela importância de suas funções (Lorde Chanceler, ou seja, Ministro

da Justiça; Chanceler do Tabuleiro de Xadrez, ou seja, Ministro das Finan

ças; Secretário de Estado de Relações Exteriores), os outro s são c ham ado s de

acordo com a conju ntura. A organização dos trabalhos do Gabinete é recen

te: antes da guerra de 1914, não havia nem secretário permanente, nem

agenda (ordem do dia). Hoje, o procedimento foi racionalizado, mas foi

man tido o costume segundo o qual a discussão deve ser ma ntida até a un a

nimida de. Seg undo 1. Jennings, a pa rtir de 1880 o pro ced ime nto do v oto não

foi mais utilizado.

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210 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

O Gabinete se mostrou muito pouco flexível. Desde a Primeira Guerra

Mundial, Lloyd George reservou a tarefa de fixar a política do governo a um

gabinete de guerra que era composto somente cie cinco membros. O sistema

foi retom ado po r Winsto n Chu rchill em 1940. Desde então, um Gabinete In

terior ( Inner Cabinet) representou um papel discreto mas decisivo durante o

governo trabalhista de Attlee (1943-1951). Enfim, a prática dos Comitês do

Gabinete, comitês interministeriais incumbido s do e studo de u m certo tipo

de problemas, por exemplo o ajuste dos projetos de lei, tornou-se uma insti

tuição regular. Acresça-se a isso, para concentrar esforços, a atuação dos mi

nistros especialmente encarregado s da coor denaç ão e que são verdadeiros su- perminis tros.

Os comitês interministeriais são bem melho r estruturado s que na F ran

ça. Eles se reúnem sob a presidência do primeiro-ministro ou, na sua ausên

cia, de um ministro por ele indicado entre os ministros que não possuem

 pasta, o que facil ita o tratamento de assunto s da ordem do dia; o que não

ocorre com os colegas encarregados de repartições. Certos comitês, com o os

da defesa, dos assuntos econômicos e dos negócios administrativos são per

manentes. São os standing committees.Dessa retração da a utorid ade governa mental alguns au tores ingleses de-

duzem a extinção do Gabinete como verdadeira autoridade governamental.

Ele seria apenas um a instância de recurso; o pod er efetivo pertenceria ao pri

meiro-ministro ajudado pelos Juniors Ministers e pela administraç ão.

O  primeiro-m inistro. - Para caracterizar a situação do prim eiro-m inis

tro inglês, não faltam clichês: ele é o pivô, a alma do Gabinete. De fato, histo

ricamente, o Gabinete não teria se estabelecido sem sua ajuda, do mesmomo do que, politicamen te hoje, não sobreviveria à sua extinção.

Atualmente, o primeiro-ministro é o líder do partido majoritário. Essa

situação política condicion a seu estatuto jurídico. Mes mo q ue escolhido teo

ricamen te pela rainha, ele é imposto pela con jun tura política; prati cam ente é

escolhido diretamente pelos eleitores, uma vez que é o chefe do partido que

triunfou na competição eleitoral. Teoricamente representa o prim us inter pa

res diante dos colegas de ministério; de fato, seu título de líder do partido lhe

assegura o comando do Gabinete. É juridicamente responsável diante da Câ

mara dos Com uns, mas praticam ente existem poucas chances de que venha

a ser derrubado, pelo menos en quan to não for desautorizado pelo partido. Se

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Os R e gim e s P a r la m e n t a r e s 211

não corre riscos no plano parlamentar, deve, 110 entanto, preocupar-se com a

futura consulta eleitoral. O fracasso de seu partido nas eleições pode tirar-lhe

o título de líder, co mo foi o caso de E. Heath após a derrota eleitoral dos con

servadores em 1974. É assim necessário para o prime iro-m inistr o ao m esmo

tem po governar e governar de tal form a que seu partid o seja vitorioso nas fu

turas eleições.

Essa dupla tarefa implica poderes tão gra ndes que algun s autores ingle

ses não hesitam em chamar o primeiro-ministro de “monarca eleito” (B e - 

nemy, 1965). Essa tese foi no e ntan to contes tada p or o utros que n egaram es

sa preeminência do primeiro-ministro e afirmaram a autoridade colegiadado Gabinete, tomando como base o governo Wilson. Mas, pelo menos após

o governo de Margaret Thatcher, assistiu-se novamente a uma grande con

centração de poderes nas mãos do primeiro-ministro. Isso se deve não só à

 personalidade do chefe de govern o como também à sua preeminência no in

terior do partido majoritário e às exigências do exercício do poder num Es

tado moderno.

Considera-se que hoje existam realmente poucas limitações ao poder 

do primeiro-ministro. Elas não existem fora do Gabinete, porque a maioriao apóia sem restrições, enq uan to q ue a oposição nã o dispõe realmente de ne

nh um poder, men os ainda no interior do Gabinete. As decisões mais imp or

tantes são preparadas por comissões acl hoc nomeadas pelo primeiro-minis-

tro e alguns ministros impo rtantes. Alguns autores pensam que a idéia de um

governo de gabinete é ilusória. Na realidade os ministro s têm um papel po u

co relevante na determinação da política do gabinete e agem sobretudo em

suas respectivas repartições, onde, ao co ntrário, parecem desfrutar de g rande

autonomia ( W e i r    S. e B e e t h a m   D., 1998).Disso resulta que o papel do Parlamento n o exame d a legislação é muito

 pequeno e que os projetos d o governo são adota dos sem dificuldades e sem um

exame muito minucioso. Aliás, os ministros dispõem de um poder regulador 

tão importante que é considerado hoje um poder legislativo paralelo.

O Cabinet Office. - Em seu trabalho , o Gab inete ministerial é auxiliado

 por um órgão admin istr ati vo, o Cabinet Office, composto por funcionários

oriun dos da categoria superior da adm inistração (Administrative class) e co

locados sob com and o de u m secretário per ma nen te que auxilia as sessões do

Gabinete ministerial. O Cabinet Office tem um papel importante: preparar o

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212 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

trabalh o do governo estabelecendo os dossiês, estudar as questões que o pr i

meiro-ministro decide colocar na ordem do dia do Gabinete ou dos comitês

restritos, formular as decisões tomadas, conservar os documentos que asse

guram a continuidade do trabalho governamental, e finalmente, verificar se

as decisões do gabinete são respeitadas pelos ministérios encarregados de sua

implementação. O secretário permanente do Cabinet Office pode informar 

ao primeiro-ministro os atrasos e resistências que encontra para a conclusão

da política do governo.

Sem dúvida, o Office não tem poder de decisão mas a importância de

seu papel logístico explica a preocupação do primeiro-ministro em manter o Office sob seu controle. Embora nomeie o secretário perman ente, sua ne u

tralidade fica comprovada pelo fato de ser imune às mudanças de equipe

ministerial.

2.0 FUNCIONAMENTO DO SISTEMA

A. Relaçõesjurídicas entreosórgãos:a fachada parlamentar

Se abstraíssemos o bipartidarismo e nos detivéssemos apenas na análi

se das relações entre os órgãos com base em suas prerrogativas e nos meios

de ação mútuos, seria necessário considerar que a Grã-Bretanha vive em re

gime parlamentar.

De fato, encontram-se na Inglaterra todas as características que se atri

 buíam ao regime parlamenta r. Trata-se em primeiro lugar da especializaçãodos órgãos - alguns diriam m esmo da separação dos poderes - um a vez que as

câmaras exercem a função legislativa e o gabinete, a função executiva. Por ou

tro lado, trata-se de meios de ação m útuo s. Por um lado, o gabinete é politica

mente responsável diante da Câmara dos C omu ns que tem o poder de de rru

 bá-lo. Por outro, o rei pode dissolver a Câmara a pedid o do primeiro-minis tro.

O co njun to dessas prerrogativas poderia ser objeto de dua s análises di

ferentes.

Primeiro, pode-se interpretar o regime parlamentar como um sistema deequilíbrio entre o poder legislativo e o poder executivo que dispõe de meios de

ação simétricos: a responsabi lidade e a dissolução. Dessa forma, em caso de con

flito, a Câmara derr uba o Gabinete, que em contrapartid a pede sua dissolução

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Os Reg im es P a r la m e n ta re s 2 1 3

 pe lo rei. Uma variante dessa interpretação: um confli to que se produz quando o

Gabinete é derrubado deve ser submetido à arbitragem do corpo eleitoral. Se

gun do essa variante, a dissolução não é vista com o u ma arm a nas mãos do pri

meiro-ministro mas como um mo do de recurso do árbitro. Se na primeira va

riante o sistema parlamentar é um sistema de equilíbrio, na segunda é um

sistema democrático, um a vez que é o povo quem decide em últim a instância.

Segundo outra interpretação, o sistema parlamentar não se caracteriza

 pelo equilíbrio mas sim plesmente pela supremacia do Parl amento. Pode-se

então considera r que, com o aliás ocorreu na França d a Terceira República, o

Parlamento, ou seja, a Câm ara dos C om uns reúne em suas mãos a totalidadedo poder. Dispõe sozinha do poder legislativo, uma vez que a rainha e a Câ

mara dos Lordes não estão aptos a participar realmente d o seu exercício. Por 

ou tro lado, ela exerce o po der executivo através do Gabinete, que é a em an a

ção da maioria. Qualquer tentativa do Gabinete de fazer outra política que

não a da Câmara, n ão seria um conflito entre dois poderes mas u ma rebelião

do subordinad o contra o superior. Nesse caso, a Câmara dos Com uns d err u

 ba o Gab inete, que é substituído por outro. Tal era a polí tica no século XIX.

 Nessa perspect iva o dir eito de di sso lução não parecia um a arm a sim étrica deresponsabilidade mas somente um meio do subordinado se dar um novo

mestre. Naturalmente tal sistema só funciona se os membros da Câmara dos

Comuns se mantêm independentes dos partidos políticos. Se seguirem as di

retrizes partidárias ou se existir um partido majoritário, o cenário muda.

Ora, a realidade é hoje muito diferente daquela do século XIX por causa de

um fenôme no de importância capital: o bipartidarismo.

B. 0 papeldosistema de partidos: obipartidarismo

 As origens do bipartidarismo. - Essas origens são m uito antigas. A pri

meira metade do século XVIII vê a disputa dos whigs e dos tories, partidário s

e adversários da dinastia de Hannover. Não se trata, no entanto, de partidos

no sentido mod erno, mas de grupos pa rlamentares sem estrutura nem disci

 plina. Mas, no início do século XIX, os clubs se formam para organizar a pro

 paganda em favor de uma reforma eleitoral. Quando isso ocorre em 1832, esses clubs serão utilizados para as campanhas eleitorais dos deputados e estarão

ligados aos dois grupos de deputados, conservadores (antigos tories) e liberais

(antigos whigs). Conservadores e liberais, que têm à sua frente fortes perso

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2 1 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

nalidades como Disraeli e Gladstone, se alternarã o no pod er du ran te a segun

da m etade do século XIX.

O desenvolvimento da classe operária e a ampliação do voto c ontrib uem

 para produzir uma grande mudança polí tica. Os novos eleitores operário s

começaram votando nos liberais, mas como estes não se decidiam a tomar 

 pol ít icas favoráveis aos tr abalhadores, os sindica tos acabaram fundando um

novo partido, o partido trabalhista. Este apresentava a originalidade de ser 

um partido indireto: uma vez que ele foi fundado por sindicatos, seus mem

 bros se tornavam indiretamente membros do parti do. O novo partido tor-

nou-se de início uma grande organização com 900 mil membros. O caráter indireto era ainda marcado pelo fato de que o congresso dos sindicatos (o

Trade Union Congress) era - e ainda é - o órgão dirigente do partido e que o

líder e os candidatos ao Parlamento são escolhidos por um colégio eleitoral

no qual os sindicatos detêm 40% dos votos.

O rápido desenvolvimento do novo partido trabalhista, acrescentando

as divisões no interior do partido liberal e o escrutínio majoritário de turno

único, levará, após 1922, à substituição do c onfro nto Conserva dores e Libe

rais pelo novo c onfr onto entre Conservad ores e Trabalhistas.Além das oposições ideológicas, os partido s apres entam certas caracte

rísticas comuns importantes: são fortemente centralizados e o poder está

con cen trado em círculos restritos nos quais o líder, sub meti do t odo an o à re

eleição, tem um papel importante.

Há alguns anos a supremacia do bipartidarismo tem sofrido ameaças

do partid o liberal demo crata e dos par tidos nacionalistas escocês e galês.

 As conseqüências do bipartidarismo. - O bipartidarism o altera as relações entre os órgãos. Já assinalamos um a conseqü ência do bipartid arism o: os

eleitores sabem que um partido será majoritário após as eleições e que o lí

der desse partido será o primeiro-ministro. Votam assim indiretamente para

escolher o primeiro-ministro. Mas o bipartidarismo afeta o funcionamento

de todo o sistema parlamentar.

Primeiramente, uma vez que o p rimeiro-ministro é o líder da maioria,

há poucas chances de ele vir a ser derrubado. Mesmo que seja colocado em

min oria a respeito de um projeto de lei particular, por exemplo após desaco r

dos no interior da maioria, ele não é obrigado a pedir demissão e só o fará

caso o voto coloque em dúvida sua política geral. Ele se mantém dessa forma

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Os R e g im e s Pa r l a me n t a r e s 2 1 5

até o final da legislatura, exceto no caso, muito raro, de dissidentes do parti

do se alinharem com a oposição, como ocorreu no mês de março de 1979.

Em segundo lugar, o Gabinete, formado p or dirigentes do partido, dispõe

de autoridade suficiente sobre seus membros para que a maioria adote os pro

 jetos que submete aos Comuns. Aliás, aproxim adamente 90% das leis são de ori

gem governamental. Tudo se passa como se o Gabinete dispusesse não só do po

der executivo mas também do poder legislativo. Estamos assim muito longe do

esquema do regime parlamentar: não há nem predominância do Parlamento

sobre o Gabinete nem mesmo equilíbrio dos poderes, mas efetivamente supre

macia de fato do Gabinete sobre o Parlamento. Também não existe separaçãofuncional entre os três poderes, mas ao contrário, uma concentração de poder 

enorme nas mãos do Gabinete e especialmente nas do primeiro-ministro.

Em terceiro lugar, a dissolução não pode preencher todas as funções

que lhe atribui a teoria clássica do regime parlamentar e principalmente

aquela de provocar a arbitragem do c orpo eleitoral em caso de conflito entre

 poderes, porque o bipartidarismo impede que tais conf li tos ocorram. Em

contrapartida, pod e acontecer que a ameaça de dissolução induza os depu ta

dos a colocar o governo em minoria.Certos autores acreditaram ter descoberto um a nova função da dissolu

ção: ela seria um substituto do referendo. De fato, diziam, se o referendo não

existe na Grã-Bretanha, a dissolução permite consultar o povo sobre uma

questão importan te. Votando por um partido, o povo aprova a posição ado

tada e rejeita a posição do partido oposto. Essa tese, que se chocava com uma

série de críticas, parece hoje aband onad a: a razão principal é que o Pa rlame n

to, sendo soberano, pode perfeitamente organizar um referendo consultivo e

efetivamente o fez em 1975 com relação à renegociação da adesão da Grã-Bretanha à Comunidade Econômica Européia e novamente em 1998, na Es

cócia e no País de Gales, sobre a devolução dos poderes.

Mas, no essencial, a dissolução é somente um meio de provocar as elei

ções e de fixar sua data no m om en to que as pesquisas revelam ser o mais fa

vorável à maioria que deixa o governo. É a rainha que pronuncia a dissolu

ção, mas uma convenção da constituição faz com que ela sempre acate o

 pedido do prim eiro-ministro.

Concentração de poder , democracia e liberdade. - Para o constitucionalis-

mo clássico, a concentração do po der nas mãos de um único hom em ou de um

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2 1 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

único g rup o é a própria definição do despotismo: aquele que pode fazer as leis

e executar pode efetivamente mudar a lei no momento de executá-la e segun

do sua vontade. No entanto, embora essa concentração seja incontestavelmen-

te realizada na Grã-Bretanha, é forçoso no tar que o po der não é despótico.

Isso se explica claramente. O fato de o poder estar concentrado não im

 plica que o grupo que o detém seja homogêneo. Esse grupo é a maio ria parla

mentar, compreende o prime iro-ministro , o Gabinete, os deputados da base. Se

são incontestavelmente o prim eiro -minist ro e o Gabinete que exercem o poder,

eles são controlados não pela oposição, mas pelo próprio partido. O interesse

do partido é co ntinua r majoritário. Se ele estimar que a opinião pende pa ra aoposição, se a política do p rimeiro -min istro o levar à derrota eleitoral, o parti

do tentará de todos os modo s fazer com que ele se curve. Se não conseguir m u

dar a política do primeiro-ministro, só lhe restará mudar de líder, ou seja, de

 primeiro-minis tro , como a cruel experiência de Marga re t Thatcher em 1990.

3. O PARLAMENTARISMO NO COMMONWEALTH BRITÂNICO

Todos os regimes políticos ocidentais, com exceção da Suíça, dos Esta

dos U nidos e dos Estados da América Latina, se dizem parlame ntaristas. Por 

cobrir sistemas políticos tributários de circunstâncias locais tão diversas fica

claro que esse rótulo perde muito de seu significado.

 No en tanto , ele conserva um sentido muito preciso nos ant igos  Dominions 

nos quais a presença de um a população de origem inglesa teve muita influência

na imitação das instituições britânicas. Todavia, à medida que os elos com a In

glaterra se afrouxam, esses países se orientam para fórmulas mais originais.O caso mais típico é o da índia . Sua constituição, proclamada em 27 de

 janeir o de 1950, é sem dúvida, do ponto de vista fo rm al , uma const it uição

 parla mentar. Ela inst itui um Presidente da República eleito pe lo Parlamento

federal e pelas assembléias dos Estados; um governo cujos me mb ros são desig

nados pelo Presidente da República e que é coletivamente responsável diante

do P arlamento; finalmente, um Parlam ento que, po r causa do caráter federal

da índia, comporta duas câmaras: a Câmara do Povo, eleita segundo o siste

ma inglês pelo escrutínio majoritário, e um Conselho dos Estados, cujosme mb ros são eleitos pelas assembléias locais. Mas some nte a C âm ara do Po

vo pode derr uba r o governo.

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Os R e g im e s Pa r l a me n t a r e s 2 1 7

 No Canadá, na Aust rá lia e na Nova Zelândia , o regime se aproxima

muito mais do regime inglês. O Canadá é um Estado federal. O Parlamento

compreende assim duas câmaras: a Câmara dos C omu ns e o Senado. No ent an

to, a igualdade entre as províncias, as Provinces, não está assegurada pelo Sena

do: Quebec e Ontário têm direito a mais senadores que as outras províncias.

Por outro lado, o Senado não é uma Assembléia democrática, porque seus

mem bros não são eleitos, mas nom eado s pelo governador-geral. Isso explica

 porque a in fluência dessa câmara conservadora é menor que a dos Comuns.

Até 1982, a cons tituição canad ense, que datava de 1867, era apenas u ma

lei do Parlam ento britâ nico e só pod eria ser mod ificada p or ele. Nessa época,o Parlamento de Westminster adoto u o Constitution Ac t , que dá ao C anadá o

 poder de emendar sua const ituição, o que foi chamado de repatriamento. 

Uma das primeiras manifestações dessa soberania constitucional foi a ado

ção, em 17 de abril de 1982, de uma Carta dos Direitos e Liberdades, dotada

de valor supe rior ao das leis e que pe rmi te, diferença capital com o direito in

glês, um controle de constitucionalidade. Todavia, o sistema canadense pos

sui uma característica que o distingue das outras formas de controle de cons

titucionalidade e se aproxima do direito inglês: o Parlamento se mantémsoberano e pode, da mesma forma que a legislatura de uma província, anu

lar expressamente certos artigos da C arta (art. 33).

O lugar ocupado pelo Canadá d entro da comun idade britânica é simboli

zado pela rainha da Inglaterra, que é formalmente o chefe de Estado. Ela é re

 presentada por um governador-geral , que é n omeado de fato pelo primeiro-mi

nistro do Canadá. O Gabinete canadense é a réplica do Gabinete inglês: ele é

responsável. O primeiro-ministro é designado pelo governador que se limita a

investir o chefe do partid o majoritário: atualmente, o partid o liberal. Uma dassimilaridades do regime canadense com o regime britânico era a existência de

dois par tidos: os conservadores e os liberais. Mas, após as eleições de 1993, o pa r

tido conservador se enfraqueceu muito: os liberais dispõem da maioria absoluta

de cadeiras na Câmara dos Co mu ns e nen hu m outro partido tem condições de

suplantá-lo. Além disso, a influência dos partidos varia muito se considerada no

âmb ito federal ou no dos Estados-membros, chamados de “províncias”.

Há alguns anos o Canadá enfrenta graves problemas constitucionais li

gados à autonomia das províncias. É sobretudo o Quebec, única província

francófona nesse continente anglófono, que pede uma modificação na cons

tituição qu e permita obte r a indepe ndên cia pur a e simples, com o deseja uma

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2 1 8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

 parte da popula ção ( W o e i i r l i n g , 1994). Essa população, consultada por meio

de referendo por duas vezes, em 1980 e 1995, rejeitou a independência por 

uma pequena maioria. Os independentistas todavia não abandonaram a

idéia e consid eram a possibilidade de um novo referendo. Mas a questão que

se coloca é saber se, caso o r esultado desta vez seja diferente, o Que bec po de

ria decidir unilateralmente pela secessão. Acontece que uma constituição fe

deral dá aos Estados-membros o direito de se separar. Foi o caso da constitui

ção soviética. Mas a constituição canadense nada dispõe a esse respeito. O

governo fecieral então submeteu a questão à Corte suprema. Esta respondeu

 pela negat iva2 (Gêly, 1999). A Corte julgou que, já que a constit uiç ão nãoconcede o direito de secessão, o referendo nã o p oderia pro duz ir po r si só ne

nh um efeito jurídico. A secessão eqüivaleria então a u ma modificação u nila

teral da constituição somente pelo povo do Quebec, enquanto que a revisão

só pode ser feita por todo o povo canadense. Contudo, no caso do povo do

Quebec exprimir claramente sua vontade de secessão, resultaria para as ou

tras províncias e para o governo federal u ma obrigação de ab rir negociações.

Isso evidentemente não impede, como reconheceu a corte, uma secessão de 

 factOy que r dizer, um a secessão pu ram ent e unilateral, contrária à constituição,mas que se beneficiaria do reco nhec imen to da ma ioria das outras províncias.

 No quadro geral do parlamentarismo, a  Aus trália se distingue por um

triplo p on to de vista. Primeiro, a igualdade de pod eres entre as duas câmaras.

O Senado eleito pelo sufrágio universal pelos Estados tem as mesmas prerro

gativas que a Câm ara dos Representantes. Disso resulta que, em caso de co n

flito com ela, ambos podem ser dissolvidos. As instituições australianas dão

um grande espaço ao referendo que é obrigatório para qualquer revisão da

constituição federal. Finalmente, as eleições para a Câm ara do s R epresentantes acontecem segun do u m sistema original, o voto preferencial, que con sis

te no fato de cada circunscrição só eleger um único deputado, e de que os

eleitores pode m apresentar vários candidatos, enu me rand o-os na cédula de

votação de acordo com a ordem de sua preferência. Na contagem dos votos,

o candidato “preferido” da maioria absoluta é eleito; no caso de não haver 

maioria absoluta elimina-se o candidato que obteve menos votos e seus vo

tos passam aos candidatos que continuam no páreo. Reinicia-se a operação

até que um candidato ob tenha a maioria absoluta.

2 Nota relativa à secessão de Quebec (1998) 2 R.C.S. 217.

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Os R e g im e s Pa r l a me n t a r e s 2 1 9

O governador-geral, representante da rainha, preside um Conselho exe

cutivo, formado pelos ministros, que se reúnem na ausência do governador-

geral, sob a presidência do primeiro-ministro; esse órgão recebe o nome de

Gabinete. Ele não possui ne nh um a com petênci a oficial mas, na realidade, de

termina o conteúdo das decisões adotadas pelo Conselho executivo.

Mesmo que seja formalmente uma monarquia constitucional, a Austrá

lia rompeu com a maioria das amarras que ainda a prendiam à monarquia

 bri tânica. Após 1986, como para o Canadá, os  Australia Acts suprimiram os

 poderes residuais do governo britâ nico sobre a Austrália . Assim, os processos

não são mais providos em recurso ao Conselho Privado. Além disso, haviaum forte mov imen to em direção ao estabelecimento da República. No e nta n

to, o projeto de reforma constitucional, que foi submetido a referendo em

novembro de 1999 e que necessariamente se referia à formalização das regras

do parlamentarismo, foi rejeitado por uma pequena margem. Segundo a

maioria dos comentaristas, o projeto fracassou não em virtude do apoio à

mo narq uia mas p orqu e previa eleições para Presidente da República via Par

lamento e não pelo sufrágio universal direto.

Foi a África do Sul quem mais se afastou do modelo britânico. Ela nãoreconhecia mais a autoridade da rainha desde a condenação do regime do

 Apartheid  pelas instituições do Commonwealth e se tornou uma República.

Hoje, ela é uma República federal, embora a palavra “federal’” não figure no

texto da nova constitu ição adotada em 1996, após o fim do  Apartheid. O regi

me é do tipo parlam entar, apres entand o algumas características originais, en

tre as quais um executivo dualista, composto po r um presiden te eleito pela As

sembléia Nacional, a câmara baixa, e um Gabinete. Composto por um

 prim eiro-min is tro, o  Deputy President> e ministros, o Gabinete é escolhido pelo presidente entre os membros da Assembléia. A inovação é que tanto o pre

sidente quanto o Gabinete são responsáveis perante a Assembléia Nacional.

Seção 2

Algumasformascontinentaisdoparlamentarismo

Analisar, mesmo que sumariamente, as diferentes formas de governodos Estados europeus é quase impossível. Entretanto, como todos se decla

ram regimes parlamenta res e aplicam efetivamente, em linhas gerais, os pr in

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220 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

cípios do parlamentarismo, gostaríamos de chamar a atenção para as várias

configurações possíveis do parlamentarismo.

1. A CONCILIAÇÃO DO PLU RI PARTIDARISMO COM A ESTABILIDADE 

DO GOVERNO: O PARLAMENTARISMO e s c a n d i n a v o

Em relação ao sistema britânico considerado como base de referência, a

diferença essencial dos regimes continentais é o pluripartidarismo. Todos os

 países nórdicos praticam a representação proporc iona l, o que explica o grande

número de partidos representados no Parlamento. Por hipótese, o pluripartida

rismo con duz a governos de coalizão, ou seja, ministérios que não se apó iam so

 bre maiorias homogêneas. Imedia tamente um dos elementos do sucesso do par

lamentar ismo britânico desaparece. O regime parl ame ntar seria ainda viável?

- A considera r pela vida política dos países escandinavos, a resposta é

sem dúvida afirmativa. Na Suécia, na Noruega ou na Dinamarca, das quatro

tendências que dividem a opinião (conservadores, liberais, socialistas e rura-

listas), nenhuma consegue a maioria absoluta, salvo exceções (como a Suécia

nas eleições de 1956). Duas soluções são então possíveis: u m gabinete de co a

lizão ou um gabinete minoritário. As duas soluções são utilizadas e são faci

litadas pelo fato de que os ministérios são formados e entram em funciona

mento sem a necessidade de voto expresso de confiança. Basta que sejam

tolerados. Indubitavelmente, pela lógica, não há diferença entre a confiança e

a ausência de desconfiança, mas politicamente não é bem assim, pois uma

coisa é exigir dos partidos o apoio expresso ao governo, outra é a aceitação

tácita. A tolerância sem engajam ento permite a form ação de gabinetes mi no ritários ou de governos de caráter técnico, como no caso da Dinamarca.

Os governos , claro, são responsáveis e devem se retirar se forem obje to de

voto de desconfiança. No entanto, muito embora não se beneficie da solidez

que confere o bipartidarismo, a instabilidade ministerial não é pa rticularme n

te grave nos países escandinavos. U ma explicação dessa estabilidade poderia ser 

encontrada nos próprios mecanismos constitucionais. Assim, na Dinamarca,

os governos minoritários utilizam regularmente a dissolução. Eles se mantêm

graças ao apoio de maiorias alternativas, mas, quando não é possível formar um a maioria, rejeita-se a câmara peran te os eleitores. Chega-se assim a um sis

tema pró ximo daquele que alguns preconizam para a França a fim de remediar 

as freqüentes crises ministeriais: um governo e só um por legislatura.

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Os R e g im e s Pa r l a me n t a r e s 221

Entretanto, uma razão muito mais profunda da estabilidade do gover

no deve ser encontrada nas relações dos partidos e da mentalidade de sua

clientela. Os partidos escandinavos, não menos que outros, são partidos de

classes ou pelo m enos partidos de categorias sociais, mas, me smo enraizados

nos interesses profissionais e econômicos, não consideram que a concorrên

cia deva levá-los à destruição. Claro, os fatores sociológicos (temperamento

nacional, multiplicidade das associações, senso de disciplina etc.) explicam

essa moderação. Mas é necessário também realçar a influência de uma certa

maneira de pensar o papel do poder. Não se trata de decidir, por uma prova

de força, o plano de sociedade futura que será encarregado de realizar, masde fixar no presente o lugar, a tarefa e os meios de cada grupo na construção

de uma obra que beneficie a todos. Então, os compromissos cotidianos são

 possíveis; o govern o dura de acordo com sua necess idade; é mais lucra tivo

 para cada um manter o governo pe lo que ele pode dar do que derrubá-lo pa

ra constitu ir outr o que talvez não possa fazer melhor.

Existe aí um estado de espírito que explica por que a idéia de soberania

absoluta do Parlamento não se adaptou nos países nórdicos. O Parlamento

aparece muito mais como um colaborador do governo do que como seu rival. Dito isso, o executivo conserva a iniciativa da política e dirige, em c onse

qüência, os trabalhos parlamentares que, pelo desenvolvimento do papel das

Comissões em detrimento das sessões plenárias, adquirem freqüentemente

caráter eminentemente técnico. Sem dúvida, o controle do Parlamento sobre

o governo continua intacto, mas ele visa mais a retificação da política seguin

te que a derrubada do ministério.

2.0 REGIME PARLAMENTAR NA ALEMANHA

As condições sociológicas e psicológicas do parlamentarismo são difi

cilmente substituíveis por uma armadura jurídica. No entanto, foi isso que

tentaram os membros do comitê que elaborou a lei fundamental para a Re

 pública Federal da Alemanha de 8 de maio de 1949.

Em seu espírito, a Carta de 1949 é muito diferente da constituição de

Weimar, mas dela se apro xima pela minúcia e sutileza das disposições. A lem  brança da asfixia traiçoeira da República de Weimar - Hitler não se serv iu de

suas instituições para abatê-la? - , acrescida da consciência da respon sabilida

de do texto de 1919 na insta uração de um clima político que não foi capaz de

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222 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

sanear, instigaram os constituintes n a pro cur a da estabilidade e da eficiência

do poder.

Encontram-se, em 1949, os mesmos órgãos que em 1919: um Parla

mento , um Presidente da República, um Gabinete dirigido po r um chanceler,

mas sua estru tura intern a e suas relações são concebidas diferentemente.

O Federalismo. - Na Alemanha, o federalismo é concebido como uma

forma de separação dos poderes, bem com o u m a garantia para as liberdades.

Após a derrocada da ditad ura nazista, que havia constr uído um Estado u nitá

rio extremamente centralizado, a Alemanha d o pó s-guerra re torno u ao federalismo, princípio proclamado no próprio nome do Estado e ao qual é vetado

causar qualquer prejuízo, mesmo que seja através de emenda constitucional.

Cada  Land  possui a própria organização constitucional, com um Parlame n

to, geralmente unicameral, um executivo eleito pelo Parlamento e um con

trole de constitucionalidade interno ao  Land.

Os  Lander  constituem uma parte do Estado federal, em conformidade

com o princípio de participação ligado ao federalismo: os quinze  Lander  es

tão representados na Segunda Câmara, o  Bundesrat . O n úm ero de representantes varia segundo a importância da população dos  Lander , mas não de

modo estritamente proporcional. Esses representantes não são eleitos pelo

sufrágio universal, mas são membros dos governos dos  Lander.

A divisão das compe tênci as entre a federação (o  Bund) e os Lander se faz

segundo regras complexas. A constituição distingue três grupos de matérias:

aquelas da competência d o  Bund  (relações exteriores, defesa etc.); aquelas su

 jeitas a competê ncias conco rrentes , ou seja, aquelas em que tanto o  Bund  co

mo os  Lander  podem intervir; e finalmente as matérias que não figuram emnenhuma das duas primeiras listas e que são da alçada exclusiva dos  Lander.

Esse sistema implica duas conseqüências: primeiro, no plano institucio

nal, uma Corte Constitucional é imprescindível para colocar regras aos inevi

táveis conflitos de competência entre o  Bund  e os  Lander ; segundo, no plano

 polí tico, uma coordenação é necessária entre os dois níveis, parti cula rmente

qu and o se trata de matérias para as quais as conseqüências são concorrentes.

 Na medid a em que fre qüente mente partidos polí ticos dife rentes estão no po

der no s dois níveis, a divisão das matérias deve levar à procura do com pro mis

so. De fato, constatou-se durante alguns anos, como em outros sistemas fede

rativos, uma evolução no sentido de crescimento dos poderes da federação.

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Os R e g im e s Pa r l a me n t a r e s 2 23

Mas, paralelamente, assistimos a uma ardente reivindicação dos  Lãnder  no

sentido de maior auto nom ia. Trata-se princip almen te de uma reação contra a

ingerência das competências comunitárias em domínios que se mostram, de

vido à constituição, de sua própria competência. Ora, o Estado federal con

traiu obrigações internacionais e não po de executá-las porque são da com pe

tência dos  Lãnder, que acabaram obtendo uma modificação na constituição

federal. Daqui para a frente, nos termos do art. 23, quando o governo federal

 participar na formação de atos legislativos comunitários que poderiam afetar 

os interesses dos  Lãnder , ele deve acatar a decisão tomada no  Bundesrat que os

representa, assim com o não p ode a tenta r contra seus direitos através de atoscom unitá rios . É nesse contexto que, em sentença de 22 de ma rço de 1995, so

 bre o pro jeto “Televisão sem fronte iras”, a Cort e Consti tu cio nal ju lg ou que,

votan do no Conselho da Europa e m favor da diretriz, o governo federal havia

violado o direito dos  Lãnder  ( M a r c o i j , 1995). Aliás, se a legislação comunitá

ria versa sobre matéria de exclusiva com petê ncia dos  Lãnder , a Alemanha é re

 prese ntada no Conselh o não pelo governo federal, mas por um representante

dos  Lãnder  nomeado pelo  Bundesrat.

O Parlamento (G r o s s e r  , 1978, p. 222 e s.). - É composto pelas duas câmaras

compreendidas no federalismo: o  Bundestag (Dieta) que representa o povo todo

da federação e o  Bundesrat que representa os Estados. As eleições ao  Bundestag 

acontecem segundo um modo de escrutínio que, combinando a representação

 proporcional e o sistema majoritário, favorece os grandes part idos (v. supra).

Em conjunto com o  Bundestag e o governo federal, o  Bundesrat  tem a

iniciativa das leis mas dispõe em princípio so men te do direito de veto suspen-

sivo con tra os textos votado s na ou tra Câmara. Esse veto só se reveste de caráter absoluto se a existência dos  Lãnder estiver ameaçada, se a lei em questão

restringe os direitos fundamentais dos cidadãos ou finalmente se tiver relação

com os partidos ou com o regime eleitoral. Mas, o que é ainda mais impor

tante, é que o Co nselho Federal (Bundesrat) é o órgão que garante a orde m d e

mocrática. De fato, no caso do governo estar autorizado pela constituição a

negligenciar a decisão da Câmara Popular, ele não pode agir sem o acordo do

 Bundesrat. Esse é sem dúvida um caso curioso de uso de federalismo pois tem

o efeito de man ter o equilíbrio parlam entar entre o executivo e o Parlamento.

O  Bundesrat  apresenta a originalidade de uma segunda câmara que,

longe de ter tido seus poderes afetados pelo declínio geral do bicameralismo,

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2 2 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

ao contrário, reforçou-os. Seu papel de responsável pela ordem democrática

não é estranho a essa evolução.

 A Corte Constitucional  (FROMONT, 1984). - O controle de co nstituciona

lidade é assegurado po r um a C orte Con stitucional federal, instituída pelo art.

92 da constituição e organizada por uma lei de 12 de março de 1951. Seus

mem bros, em nú me ro de 16, são escolhidos po r 12 anos, entre pessoas reco

nhecidas por suas competências jurídicas, metade pelo  Buruiestag , metade

 pe lo  Bundesrat , por maioria de 2/3. Esse sistema implica que as designações

só pod em ser feitas po r acordo entre os dois grandes partidos e que os juizessejam ligados a esses partidos.

A Corte está dividida em duas câmaras cujas atribuições são diferentes.

Os podere s da Co rte são grandes e ela é mais juiz da cons tituciona lida

de no sentido estrito: ela é o guardião do regime e um regulador do equilí

 brio polí ti co entr e os órgãos do Estado e as forças polí ticas do país. Ela exa

mina em prime iro lugar os conflitos relativos ao fun cion am ento do s poderes

 públ icos: ela decide os confl itos de competê ncia entre o  Bund e os Lcinder ; ela

 pode ser interpelada para resolver conf li tos entre os órg ãos federais (por exemplo, de um a decisão de dissolver o  Bundestag).

Em segundo lugar, ela assegura o controle de constitucionalidade das

leis e dos atos intralegislativos. O controle q ue é exercido a posteriori foi con

cebido de mo do mu ito extenso. A Corte pode ser requisitada in abstracto> fo

ra de qualq uer litígio, a pedido do govern o federal, de um  Land ou de um ter

ço do  Bundestagy mas também in concreto sob aditamento por um tribunal

ou ainda por um particular, sobre exceção de inconstitucionalidade, no caso

de violação de direito fundamental.Em terceiro lugar, a Corte assegura um a espécie de polícia da m oral ida

de política: ela pode pronunciar, a pedido do governo, a perda dos direitos

fundamentais dos indivíduos culpados de atividades contrárias aos princí

 pios do regime e proibir um partido polí tico por violação da lei fundam en

tal. Esse é um poder enorme, que foi utilizado pela Corte em duas ocasiões

 pronunciando sucess ivamente a inconsti tucionalid ade de um partido neona

zista em 1952 e a do partido comunista em 1956.

A Corte ocupa na vida política e jurídica alemã um lugar de destaque.

Isso se deve primeiro à extensão de suas competências, que lhe permitem

examinar todas as leis importantes e intervir em qualquer domínio, e princi

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Os R e g im e s Pa r l a me n t a r e s 2 2 5

 palmente à maneira pela qual ela as exerce. Na prática, ela não se limita a de

clarar uma lei contrária o u co nform e à constituição, mas indica as condições

que essa lei deve satisfazer para ser considerada conforme. Ela vai até os de

talhes, o que a to rna qu ase um legislador. Foi dessa forma que, nu m a decisão

de 28 de maio de 1993, a respeito da interrupção voluntária da gravidez, ela

chegou a definir o número de dias que devem se passar entre a consulta da

mulher grávida a um especialista e o dia da intervenção médica e exigiu que

as conversações durante essas consultas sejam objeto de relatório escrito

(F r o m o n t , 1995).

 Na Alemanha, como em qualquer outro lugar, uma lei decla rada contrária à constituição po deria ser adotada nov amente por emenda constitucio

nal. Entre tanto, certas disposições da lei fundam ental, relativas aos princípios

essenciais do Estado de direito, não podem ser modificadas, mesmo nos ter

mos do processo de revisão. Conseqüentemente, a corte pode vincular um

grande número de regras de jurisprudência a disposições intangíveis, muito

mais do que a disposições que possam ser modificadas, para evitar que suas

decisões sejam de rrub ada s p or revisão constitucional. Assim, com respeito ao

aborto , ela vincula a proteção do feto não mais ao art. 2o, alínea 1 (que p ro tege o direito à vida e à integridade física), mas ao art. Io, que proclama o

 prin cíp io da dignidade da pessoa humana, que é intangível .

A importância da Corte decorre tam bém do seu papel de guardiã da so

 berania alemã diante das insti tu ições eu ropéias, sobretudo da Corte de Lu

xemburgo. Principalmente após 1974, ela decidiu que o direito comunitário

derivado só pode ria ser aplicado na Alemanha se não fosse contrár io aos di

reitos fundamentais garantidos pela constituição alemã (F r o m o n t , 1995)3.

O Presidente da República  (A r n o l d , 1995). - É eleito por cinco anos pela

Assembléia Federal que é composta pelos deputados do  Bundestag e o mesmo

número de membros eleitos por escrutínio proporcional pelas Assembléias

dos Lander. Dessa forma a presidência é despojada do caráter plebiscitário

que lhe atribuía a constituição de Weimar, que torna va o presidente do  Reich 

o eleito do povo.

Além disso, a Carta de 1949 oferece ao chefe de Estado um papel extre

mamente apagado. Não só ela o priva das prerrogativas que possuía seu an

3 Decisões chamadas So hmge (duran te tanto tempo quanto...) de 29 de maio de 1974.

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2 2 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

tecessor 110 III  Reich , sobretudo o direito de levar a referendo as leis votadas

 pe lo Parla mento , como também quase reduz a nada os poderes aos quais ele

 poderia asp irar no contexto do parlamentarismo trad ic ional. Ele não possui

a iniciativa das leis, seu papel normal na formação do Gabinete foi suprimi

do, e ele só dispõe do direito de dissolução em tais condições que cabe à As

sembléia permitir sua realização.

 No entanto, se, mesmo que à primeira vista os consti tuin te s de Bonn

não pareçam ter dado continuidade à imprudê ncia dos de Weimar, que cede

ram à preocupação de estabelecer uma presidência forte, não puderam evitar 

de deixar a porta aberta a essa aventura quando instituíram o “estado de necessidade” (v. infra). Sozinho, o presidente não pode fazer nada, mas com a

cump licidade do chanceler, ele poderia legalmente sup rimi r o parlam enta ris

mo e a democracia.

O chanceler. - A rápida cadência com que se sucederam os ministérios

da República de Weimar incitou a de Bonn a priorizar a estabilidade de go

verno. Fortalecidos pela experiência anterior na qual os governos eram der

rubados por coalizões dos extremos, de nacionalistas e comunistas, quer dizer, por uma maioria negativa, os constituintes imaginaram um sistema que

 pode ser sintet izado pela fó rmula : só se pode derrubar um governo pela subs

tituição. Entretanto, não se pode exagerar nas virtudes do mec anism o criado

 pelos consti tu inte s de Bonn. A estabil idade pol ít ica alemã deriva mais da h o

mogen eidade de opin iões e da disciplina do pessoal político do que de u m ar

tifício de procedim ento.

 No iníc io de cada legislatura o chancele r federal é eleito pela Assembléia

considerando a proposição do Presidente da República. Caso o candidato proposto não seja eleito, a Assembléia pode eleger algum outro por maiori a

absoluta; caso não consiga, o Presidente pode então no me ar o candid ato que

tenha ob tido maioria simples ou pr on un cia r a dissolução da Assembléia que,

assim, é penalizada por não ter conseguido destacar no seu interior uma maio

ria sólida. Também é penalizada caso a maioria não seja coerente. Nessa hi

 pótese, é a re sp onsabilidade minist eri al que está em jogo.

Se a Assembléia tom ar a iniciativa de dem ons trar desconfiança no cha n

celer, só pod erá fazê-lo elegendo u m sucessor pela maioria absoluta (art. 67).Se o chanceler colocar a questão de confiança e a Câmara recusar por 

maioria absoluta, o Presidente pode, considerando sua demanda, dissolver a

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Os R e g im e s Pa r l a me n t a r e s 2 2 7

Assembléia num prazo de três semanas. Mas, se duran te esse período, o  Bun- 

destag reagir e eleger um sucessor para o chanceler, a dissolução não é mais

 possível.

Esse sistema é eviden temen te engenho so, ma s não é tão eficaz como se

 poderia imaginar . O mecanismo do ar t. 67, chamado de moção de censura

construtiva, só funcionou uma vez, quando o chanceler Helmut Schmidt foi

substituído por Helm ut Kohl em 1982, opo rtunid ade em que outros chance

leres puderam ser substituídos por procedimentos informais. É fácil imagi

nar que um chanceler seja compelido a pedir demissão por pressão interna

do próprio partido ou por ruptura da coalizão que o sustenta. Existe o riscoe é até possível conceber um a situação em que o chanceler se m an tém no p o

der sem o apoio da maioria mas com o apoio do presidente, simplesmente

 porque não existe contra ele maioria suficiente mente coeren te para eleger 

ou tro chanceler.

O estado de necessidade. - O perigo, aliás, aum en tou pelas prerrogativas

que a Carta de Bonn concede ao executivo em período de crise, de acordo

com uma técnica que fez dos constituintes alemães mestres relojoeiros emmatéria constitucional. O art. 81 comporta uma sábia mistura de hipóteses,

de condições, de prazos e de restrições suscetíveis de legitimar antecipada

mente a destruição do regime democ rático que, de boa fé, se queria proteger 

contra seus próprios erros.

A hipótese é aquela na qual, mesmo que a moção de confiança coloca

da pelo chanceler não tenha obtido maioria absoluta, o presidente nem por 

isso proclama a dissolução da Assembléia. Se esta rejeitar um projeto de lei

que o governo declarou urgente, o presidente pode, a pedido do chanceler ecom a aprovação do Conselho federal, proc lam ar estado de urgência legisla

tiva. O efeito dessa declaração será o de dar aos textos litigiosos valor de lei,

a despeito da rejeição pelo  Bundestag.

Sem dúvida a constituição prevê que a declaração do estado de necessi

dade só prod uz efeito dur ant e seis meses, que ela não pode ser renovada, que

ela não autoriza revogar nem suspe nder a constituição, que a Assembléia po

de acabar com ela elegendo um novo chanceler; mas o art. 81 poderia dar 

margem ao aparecimento de um poder autoritário. Bastaria que as divisões

da Assembléia tornassem impossível tanto o voto de uma moção de censura

construtiva que permita a substituição do Chanceler quanto a adoção de um

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2 2 8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

 proje to de lei decla ra do urg ente . O presidente poderia então govern ar com

um governo m inoritário . O que torn a essa hipótese pouco provável - aliás,

ela nunca ocorreu - é o mo do de designação do presidente, que não c eleito

 pelo sufrágio universa l, mas faz parte do Parlamento , e, sobre tu do, o sistema

 parti dário alemão .

 A polarização partidária. - Todavia, existe um fenôm eno, nã o previsto

 pelos const ituin te s, que é de natu reza a afastar os temores alu did os anterior

mente. É a disciplina demonstrada pelo Parlamento de Bonn, disciplina esta

que é conseqüência do agrupa me nto dos partidos.Antes da reunificação, em parte por causa do modo de escrutínio, em

 parte pela si tuação pol ít ica alem ã depois da guerra, eram quatro partidos

 principais : ao la do dos dois gra ndes partidos, o social democrata (S.P.D.) e o

 partido cristão democrata (C .D .U .-C.S .U .) , ex istiam dois pequenos part idos,

os liberais e os verdes, de ma neira q ue o chanceler pertencen te a um grande

 part id o deveria ser apoiado por uma coalizão. Duas grandes combinações eram

 possíveis: ou um a coalizão dos dois gra ndes parti dos (g ra nde coal izão), ou

uma aliança de um dos grandes partidos com o partido liberal que tinha o papel de partid o de art iculação , suscetível de se al iar ta nto com um quanto

com o utro partid o (pequ ena coalizão). Desde 1982, o chanceler He lmu t Kohl

 benef iciava-se de um a coal izão de seu próprio part ido, o C.D.U., com o par

tido liberal. Essa aliança havia sido ren ovada em 1987, levando em con ta o re

sultado das eleições.

Após a reunificação, novas eleições ocorreram em 2 de dezembro de

1990. Os resultados dessa votação eram esperados com muito interesse pois

se tratava das prim eiras eleições livres organizadas no con junto da Alemanhadesde 1932. Mas, mesm o havend o doze m ilhões de eleitores a mais, o sistema

de partidos não foi abalado e a coalizão C.D.U.-C.S.U.-F.D.P., à qual atribuía-

se o sucesso da reunificação, foi beneficiada po r um a m aioria reforçada (qu a

se 55% dos votos e 398 cadeiras). O chanceler Kohl, o grande vencedor das

eleições, foi reconduzido ao posto. Com 33% dos votos e 239 cadeiras, o

S.P.D. saiu enfraquec ido m as co ntin uo u sen do a principal força de oposição.

O pa rtido co mu nista que havia sido declarado inconstitucional em 1956 rea

 pareceu com o nome de Part ido do Socialismo Democrá tico (P.D.S.).

As eleições de 1998 representaram um acontecimento histórico. A coa

lizão dirigida pelo chanceler Kohl ruiu e deu lugar a uma coalizão formada

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Os R e gim e s P a r la m e n t a r e s 2 2 9

 por socia l-democrata s e verdes, dir ig ida por Gerhard Schroder . Pela prim ei

ra vez na Alemanha do p ós-guerra um governo abando nava o pod er não pe

la ruptura da coalizão mas devido a eleições legislativas.

Constituição e reunificação  (K i m m e l , 1990; G u ê r a r d , 1990). - E m 1990,

após o período de détente - a distensão internaciona l - e de desintegração do

regime comunista na R.D.A., e pela primeira vez depois de 1945, as circuns

tâncias eram favoráveis à reunificação da Alemanha. Para atingir esse objeti

vo, segundo a lei fundamental, duas vias eram possíveis: a do art. 23 que per

mitia aos territórios alemães que não faziam parte da R.F.A. a ela aderirem; ea do art. 146 que previa que “a lei fund am enta l perde eficácia no dia da en

trada em vigor de uma constituição adotada pelo povo alemão em plena li

 berd ade de decisão”.

O p roce dim ento do art. 23 havia sido utilizado em 1957 para a adesão

da região de Sarre e aind a foi reto mad a em 1990, com algum a hesitação, pois

era a mais rápida e a mais segura. Na realidade, ela só necessitava de um ato

de adesão, en qu an to o art. 146 previa, antes da reunificação, a eleição de um a

Assembléia Constituinte e a adoção (eventualmente por referendo) de umanova constituição. As modalidades da reunificação foram regulamentadas

 por vários trata dos feitos entr e os dois Estados alemães. Depois de ter re cons

tituído os cinco Lãnder que haviam sido suprimidos em 1953, o Parlamento

da R.D.A. (Volkskammer ) votou glob almente sua adesão à R.F.A. Esses cinco

Lãnder se jun tara m aos dez da R.F.A. e a unid ade alemã foi proclamad a em 2

de outubro de 1990.

A lei fundamental, por sua vez, continua em vigor mas sofreu algumas

modificações conforme estipulado nos tratados de reunificação. O art. 23 foi revogado para explicitar que a união havia sido concluída e que a Alemanha defi

nitivamente renunciava aos territórios situados ao leste da linha Oder-Neisse.

Por outro lado, estava previsto que até 1995 a legislação aplicável no antigo ter

ritório da R.D.A. poderia transgredir, em certos pontos, a lei fundamental.

3. O REGIME PARLAMENTAR NA ITÁLIA

As instituições italianas, tal como estabelecidas pela constituição de 1-

de janeiro de 1948, são, em sua form a, extrema me nte fiéis ao pa rlam enta ris

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2 3 0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

mo clássico e, conforme a configuração dos partidos políticos, suscetíveis de

func ionar seja de mo do monístico, seja de m od o dualista em período s de cri

se e de im potê ncia dos p artidos. A dem ocracia italiana, no entan to, nã o é ex

clusivamente representativa: a constituição institui a iniciativa popular e o re

ferendo ( P i z z o r u s s o , 2001; Dl* V e r g o t t i n i , 2000; RiCCi, 2000; C a s s e s e , 2001).

Um bicameralismo autêntico. - Com relação à maioria das constituições

 poste riore s à Segunda Guerr a Mundia l, a consti tu iç ão ital iana se caracter iza

 pelo bic amera li smo iguali tá rio (v. supra, p. 14). Isso se explica pelo momen

to político no qual oc orreu a elaboração da constituição. Após a queda d o regime fascista, o país estava profundamente dividido e um partido comunista

 poderoso podia re presenta r um perigo à democra cia . Os part id os de direi ta

e do centro, dominados pela democracia cristã, procuravam evitar que uma

maioria eleitoral confiscasse o poder e, assim, passaram a imaginar institui

ções capazes de limitar esse risco. Uma dessas instituições foi a corte consti

tucional, a outra o bicameralismo, que permitia enfraquecer as forças resul

tantes das eleições dividindo-as. Além disso, o Senado, recrutado sobre uma

 base regional , podia contribuir para a satisfação das asp iraçõ es à auto nomia .Os mesmos motivos levaram à instituição do escrutínio proporcional

integral para a eleição dos pa rlame ntares das duas câm aras. Esse sistema pr o

duziu seus efeitos habituais: a pulverização dos partidos políticos, a necessi

dade de formar coalizões parlamentares e a instabilidade governamental.

Os vários inconvenientes daí decorrentes conduziram a tentar, na falta

de reformas globais, a introdução de ao menos uma dose de escrutínio ma

 jo ri tá rio. Após a re fo rm a de 1993 (v. infra), apenas um quarto das cadeiras

das duas câmaras ainda eram atribuídas através da representação pro porcio nal. Em 1999 e 2000, fracassaram as novas tentativas de elim inar a parte p ro

 porc io nal do escru tínio (v. infra).

As duas assembléias têm poder idêntico. Tanto uma como a outra po

dem colocar em dúvida a responsabilidade do Gabinete e obrigá-lo a pedir de

missão. No entan to, elas correm o m esm o risco: ambas pod em ser dissolvidas.

As câmaras são investidas de poder legislativo. Entretanto, o exercício des

se poder apresenta certas particularidades. Em primeiro lugar, nos termos do

art. 71 da constitu ição, “o povo exerce a iniciativa das leis, através de um a p ropo

sição apresentada por cinqüenta mil eleitores e constituindo um projeto redigi

do em artigos”, o que representa um direito de petição. Por ou tro lado, as regiões,

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Os Reg im es P a r la m e n ta re s 231

cuja autonom ia é bastante grande, dispõem em certas matérias de direito legisla

tivo, concorren te ao d o Estado; em terceiro lugar, uma parte do p oder legislativo

 pode ser exercido por comissões parlam entares ou ainda por referendo.

O poder legislativo das comissões parlamentares. - Instruídos pela expe

riência, pelo peso e pela lentidão do procedimento legislativo tradicional, os

constituintes italianos adotaram um dispositivo que retira parcialmente do

Parlamento suas prerrogativas legislativas. Com efeito, o art. 72 da constitui

ção dispõe que as câmaras pod em confiar às comissões não só o exame de um

 pro je to como ainda a adoção definit iva de um texto legislativo.Até a adoção do texto legislativo pela comissão, esta pode ser desapos-

sada a pedido de um quinto de seus membros, do governo ou de um sexto

dos senadores. O projeto deve então ser discutido pela própria Câmara. Em

 bora exista a possibil idad e de desapossamento , o procedim ento da co missão

legiferante foi abundantemente utilizado. Como ele é excluído para certas

matérias importantes (questões constitucionais ou eleitorais, ratificação dos

tratados, orçamento e disposições fiscais), permite que a câmara seja aliviada

da elaboraçã o de regras técnicas. Estas são adotada s ap ós discussão entre osespecialistas e o ministro interessado nos trabalhos da comissão.

O referendo ab-rogatório. - O art. 75 prevê que 500 mil eleitores ou c in

co conselhos regionais podem pedir a organização de um referendo para d e

cidir a anulação de um a lei, exceto, po r razões bem compreensíveis, certas m a

térias, especialmente as matérias fiscais. A partir do momento em que as

assinaturas são recolhidas, o referendo é obrigatório . Todavia, o art. 75 previa

que u ma lei deveria dete rm inar o pro cedim ento a ser aplicado. Ora, os partidos políticos foram durante muito tempo hostis à democracia semidireta e a

lei só surgiu em 1970 quando a democracia cristã quis a permissão para um

referendo destinado a anular a lei que acabava de autorizar o divórcio.

O p roced ime nto que o rganiza a lei de 25 de ma io de 1970 é muito co m

 plexo. Perm ite decla ra r que certas demandas não podem ser recebidas , mas

não pode evitar a organização freqüente das consultas uma vez que, após

1974, mais de cinqüenta referendos foram realizados. Se os nove primeiros

não deram certo, em contrapartida os partidários do “sim” ganharam na

maioria dos referendos que se seguiram, principalm ente aqueles relativos à li

mitação do desenvolvimen to da energia nuclear (1987), à supressão do fina n

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2 3 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

ciam ento p úblico para os partido s e à reforma eleitoral ( 1 9 9 3 ) . Para que a lei

visada pelo referendo seja anulada, é preciso não só que a maioria dos vota n

tes tenha se pronunciado nesse sentido mas também que a taxa de participa

ção seja pelo menos igual a 5 0 % . Caso con trário, a votação é declarada nula

e sem efeito, como aconteceu em 1 9 9 0 com relação a um referendo sobre a

caça e os pesticidas lançado pelos ecologistas; em 1 9 9 9 , com relação à refor

ma eleitoral e, em 2000, com relação a sete projetos diferentes.

O referendo teve na Itália pelo menos cinco conseqüências importan

tes: pe rm itiu aos cidadãos participarem dos grandes debates da sociedade so

 bre questões como o divórcio , o aborto, a escala móvel dos salários, a polí tica nuclear e con tribu iu para o desenv olvimento do par tido radical que esteve

à frente de várias proposições. Além disso, co ntribu iu para reforçar o pod er 

da C orte Co nstitucional, com petente para acolher ou rejeitar as petições, se

gun do as disposições do art. 7 5 da constituição ( M é n y , 1991) . Finalmen te, na

med ida em que a iniciativa é tom ada fora dos partidos, em várias ocasiões o

referendo perm itiu aos cidadãos exprimir o desc ontentam ento com relação

ao sistema político em geral e ao sistema dos partidos em particular. Diante

da impossibilidade prática de se ob ter um a revisão da constituição, o referendo surge como o único meio de provocar uma reforma. Assim, um dos refe-

rendos ocorridos na primavera de 1 9 9 3  permit iu uma modif icação parcial,

mas importante, da lei eleitoral relativa ao Senado. Anulando alguns artigos

da lei em vigor pertencente ao Senado (em particular aquele ligado ao quó

rum de 6 5 % abaixo do qual o modo de escrutínio é a representação propor

cional), introduziu-se para a eleição de três quartos dos senadores a eleição

 pelo escrutínio majo ritá rio uninom in al, o que obrigou o Parlamento a ado

tar uma nova lei eleitoral não só para o Senado mas também para a Câmarados Deputados (v. infra).

Constata-se e ntreta nto um desinteresse recente po r essa instituição. Por 

várias vezes seguidas referendos muito numerosos - 3 7 entre 1 9 8 7 e 1 9 9 7 -

 puderam ult rapassar a barr eir a do exame pela Corte Consti tu cio nal. Tra ta

vam de questões muito diversas e freqüentemente muito técnicas, de manei

ra que, várias vezes, o quórum não foi atingido. Doravante as forças políticas

são mais prudentes para iniciar um referendo.

O Presidente da República e a equipe de governo  (E s c a r r a s , 1 9 9 0 ). - O  

Presidente da República goza, segundo os term os da co nstituição, de um a si

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Os Reg im es P a r la m e n ta re s 2 3 3

tuação que parece privilegiada se comparada àquela do seu homólogo fran

cês da Q uar ta República. Prime iro ele é eleito - para u m m and ato de sete

anos, conforme a tradição parlame ntar francesa - não pelo Parlamento, mas

 por um a comissão composta de membros das duas câmaras, mais três dele

gados por região, o que resulta em sessenta delegados não parlamentares. A

eleição acontece por voto secreto, pela maioria de dois terços para os três pri

meiros turno s e pela m aioria absoluta em seguida. Esse m odo de designação

deixa transparecer, na prática, a divisão das forças políticas italianas. Em

1964, Saragat foi eleito no 21° tu rn o d o escrutínio, em 1971 foram necessá

rios 23 turnos para eleger Leone. Em 8 de julho de 1979, Sandro Pertini foieleito no 16° turno . Esse resultado, aliás, só foi ating ido porqu e seu beneficiá

rio, emb ora socialista de origem, não estava marcado por nen hum co m pro

misso político. No e ntan to, em 1985, a eleição do Presidente Cossiga foi con

quistada logo no primeiro turno e quase que por unanimidade.

As competências do presidente são importantes. Nomeia o presidente do

Conselho, ou seja, o chefe da equipe de governo, mas este deve obter e con ser

var a confiança das duas câmaras e todos os atos do presidente devem ter o seu

aval. O Presidente da República convoca as câmaras e tem o po der discricionário de dissolvê-las em conjunto ou separadamente. Tem autoridade para pedir 

às câmaras uma segunda deliberação assim como endereçar-lhes ofícios. Dis

 põe do poder de regulamen tação e de todas as atribuições tradicionais de um

chefe de Estado parlamentar (nomeação de funcionários, prerrogativas diplo

máticas para acreditar embaixadores e ratificar tratados, conceder anistia etc.).

Conforme as tradições parlamentares, não pode ser responsabilizado.

 Na realidade, como ocorr e com freqüência nos regimes parlamenta re s,

se o presidente do Conselho dispõe de m aioria parlam entar, é ele quem exerce os poderes de Presidente da República. Mas ele retoma seu papel em p erío

dos de dificuldades. Quando não existe maioria evidente, é o presidente

quem deve procurar uma coalizão possível e alguém para dirigi-la. Ele está

então em condições de pesar o conteúdo da política determinada por esse

ministério. Fala-se então de gabinete presidencial. Da mesma forma, depois

do governo ter sido derrubado, o presidente pode dissolver, mas ele pode

tam bém recusar-se a fazê-lo, se julgar que novas eleições não perm itirão en

contrar maioria evidente. Isso ocorreu em 1995, após a queda do governo

Berlusconi, quando o Presidente Scalfaro preferiu nomear um governo de

técnicos dirigido por Dini.

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2 3 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

 A Corte Constitucional   (Z a g r e b e l s k y , 1977; E s c a r a s , 1988). - A Corte

Constitucional era prevista pela constituição, mas só entrou em vigor oito

anos m ais tarde, sobretudo porq ue não foi possível designar-lhe os mem bros.

Estes são em n úm ero de 15, nomeados p or 9 anos segundo um proced imen

to bastante complexo: um terço é nomeado pelo Parlamento em sessão co

mum (pela maioria de dois terços nos dois primeiros turnos do escrutínio e

de três quintos nos turnos seguintes), um terço pelo Presidente da Repúbli

ca, um terço pelas magistraturas supremas (Corte de Cassação, Conselho de

Estado, Corte de C ontas).

Eles podem ser escolhidos pelas competências entre os membros das profissões ju rídicas (m agis trados, advogados e professores de direito das un i

versidades), mas é claro que na prática, cons iderand o o m odo de designação,

os critérios da escolha estão longe de ser indepen dentes de qu alqu er pre ocu

 pação polí tica . O presidente é eleito por um perío do de três anos entre os

membros da Corte.

A Corte dispõe de poderes im portantes no tocante ao controle de consti

tucionalidade das leis. Ela exerce um controle de constitucionalidade a priori 

sobre as leis regionais e um controle a pôsteriori sobre as leis do Estado e dasregiões. A Corte pode ser cham ada a julga r por via de exceção pelos tribun ais.

Ela também está encarregada, como num Estado federal, da decisão de con

flitos de competência entre órgãos do Estado e entre o Estado e as regiões,

 podendo estatu ir em maté ria penal para ju lg ar as acusações feitas contr a o

Presidente da República e contra os ministros. Essas competências deram à

Corte um papel de primeiro plano, sobretudo político.

 A crise do sistema político italiano. - Há alguns an os a Itália atravessauma crise profunda que afeta tanto as instituições políticas quanto os parti

dos. Aliás, os dois e lementos estão ligados.

A vida política italiana tem uma característica essencial que era, e ainda

é, o fato de se desenvolver fora do q uad ro constitucional. Tudo era decidido na

cúpula dos partidos, a formação da equipe de governo, sua composição e sua

queda, tanto quanto a nomeação dos funcionários ou a organização das em

 presas nacionais. Ora , o plu ra lismo dos part id os políticos se complicava pela

existência da diversidade de tendências que se afrontavam em cada formação.

Fusões e cisões se sucediam do lado dos socialistas. Quanto à democracia cris

tã, era uma federação de clãs e de facções. Os governos deviam se apoiar em coa

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Os R e gim e s P a r la m e n t a r e s 235

lizões nas quais a democracia cristã era o elemento principal e permanente,

mas que associavam o partido socialista e três partidos menores. Essa fórmula

era conhecida como “ pentopartidarism o”. O sistema sofria de graves defeitos

que o desacreditaram aos olhos de um a grande parte da opinião pública. O pri

meiro era a instabilidade ministerial. Certos componen tes se retiravam p or ve

zes da coalizão para tentar alguma ou tra combinação. Assim, a vida média dos

governos era mu ito curta. Entre 1945 e 1991, a Itália passou p or cinq üen ta go

vernos. O ou tro defeito era a existência de uma extensa corrupção.

Após 1993, dois fatores principais contribuíram para a transformação

 profunda do sistem a político . O primeiro é a operação “m ãos limpas”. Os pro curadores da República desencadearam perseguições judiciár ias a negócios

de corrupção e conluio com a máfia, contra um grande número de dirigen

tes de empresas, de funcionários e de eleitos pertencentes a todos os partidos

 políticos. Mais de 10% dos parlamenta res fo ram processados, dentre os quais

dois antigos presidentes do Conselho, Bettino Craxi e Giulio Andreotti. Esses

acontecimentos acabaram por desacreditar ainda mais as elites políticas. O

segund o fator é a reforma eleitoral adotada depois do referendo de 18 de abril

de 1993 que havia revogado a lei eleitoral relativa ao Senado. O Parlamentodevia, nessas condições, ado tar um a nova lei que modificava pro fun dam ente

o modo de escrutínio que, a partir daí, passava a ser majoritário com turno

único para os três qua rtos das cadeiras nas duas câm aras. As cadeiras restan

tes são distribuídas de modo proporcional.

O descrédito lançado sobre os pa rtidos políticos e o novo sistema elei

toral levaram a uma recomposição política tão profunda que alguns acham

que a Itália vive hoje sob um a Segunda República. A dom inaçã o da d em ocra

cia cristã terminou e as forças agora se organizam em dois grupos principais,à direita a “casa das liberdades” que co mp reend e o mo vim ento Forza Italia de

Silvio Berlusconi e o p artid o pós-fascista Aliança Nacional; à esqu erda, o Oli-

vier com o partido popular e o partido democrata-socialista oriundo da

transformação do antigo partido comunista. O novo sistema já passou pela

 prova da altern ância . Durante as e leições legislativas de 1994 um a coal izão de

direita garantiu um sucesso relativo mas a rup tura dessa coalizão acabou por 

definir a dissolução do Parlamento. As eleições que se seguiram deram a vi

tória ao Olivier, depois as de 2001 presenciaram o triunfo da direita4.

4 Meny Y., “Le 13 mai de Silvio Berlusconi”,  Le Mond e, 17 de maio de 2001.

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2 3 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

 No entanto , persiste o sentimento da necessidade de um a reform a cons

titucional, pois a constituição atual não garante a estabilidade e a eficácia do

governo. Embo ra a influência dos pequeno s partidos tenha dimin uído após as

eleições da primavera de 2001, sobretudo à direita, eles poderiam ameaçar a

hom ogen eidade das coalizões. Duas teses se opõem . Alguns desejam o que cha

ma m de presidencialismo, ou seja, um sistema vagamente inspirado na consti

tuição francesa da Quinta República, fazendo eleger pelo sufrágio universal o

Presidente da República ou o Presidente do Conselho que manteria sua res

 ponsabilidad e política. Outro s gos tariam de adota r certos mecanismos do par

lamentarismo racionalizado, tornando mais difícil o questionamento da res ponsabilidad e do governo inspirando-se principalm ente no modelo alemão.

Uma prim eira tentativa de reform a, a da comissão bicameral, fracassou

em 1998. A comissão composta por deputados e senadores devia preparar 

um projeto em derrogaç ão às disposições previstas para a revisão. Chegou-se

a um projeto, similar ao sistema francês, com eleição direta do Presidente da

República cujas comp etências n ão ficaram bem definidas, mas qu e fracassou.

Tentou-se então ou tra via: um referendo análogo ao de 1993 que visava revo

gar as disposições eleitorais reservando 25% das cadeiras da assembléia paraa representação proporcional e eleger sobre os 25% os melhores perdedores

do escrutínio majoritário. Esse referendo, organizado em 18 de abril de 1998,

também fracassou, na falta de uma participação suficiente e também por 

causa da oposição dos pequeno s partidos que temiam o escrutínio m ajoritá

rio. No entanto, as eleições de 2001 não impediram que se acentuasse o mo

vime nto de bipolarização. Por um lado, os partidos que não pertencem às duas

grandes coalizões perdera m o essencial de suas influências e po r ou tro, no in

terior da coalizão de direita, o m ovim ento Forza Italia  predom ina incontestenas duas assembléias de maneir a que seu líder, Silvio Berlusconi, está em co n

dições de dirigir um governo que terá à sua disposição um apoio parlamen

tar estável.

 A autonomia regional - A constituição italiana de 1947, mesm o pro cla

mando a república una e indivisível, dá às regiões uma autonomia conside

rável, o que leva a falar-se de Estado regional como se falou de Estado fede

ral. A bem dizer, certos autore s pen sam que entre eles só existe um a diferença

de grau. A auton om ia só aum entou após as reformas adotadas na primavera

de 2001. Co m a regionalização, diferentes objetivos foram persegu idos. No fi

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Os R e gim e s P a r la m e n t a r e s 2 3 7

nal do fascismo, tratava-se de rem ediar os defeitos de um sistema totalitário

e excessivamente centralizado p reservando a liberdade no âm bito das coleti

vidades territoriais. Ao mesm o tempo, pensava-se que seria mais difícil a co n

quista do p ode r pelos com unistas. Na seqüência, a auton om ia regional teve o

 papel de barrar as re iv indicações in dependentista s que se manifestam no

norte e de aten uar as dificuldades institucionais do governo central.

Cada região é governada p or u m conselho regional, um executivo e seu

 presidente . Ela desf ruta de autonom ia financeira e exerce o poder legislativo

em mu itos assuntos imp ortan tes. É por essa característica qu e ela se asseme

lha a um Estado-membro de um Estado federal ( G r o p p i t , 2000, p. 481; H a m o n , 2001, p. 28). Após a modificação de 2001, a constituição determina três

tipos de matérias. As primeiras são enumeradas de maneira limitativa e de

terminam a competência exclusiva do Estado, quer dizer, da lei nacional. As

segundas, também enum eradas, estabelecem a competência concorrente do

Estado e das regiões. A terceira categoria não é objeto de nenhuma lista, mas

todas as matérias que n ão estão na prim eira e na segunda lista inserem-se na

com petência das regiões; assim sendo, é um a com petência de direito com um .

As leis regionais são verdadeiras leis e não atos administrativos no sentido de que elas só podem ser contestadas, mesmo pelo Estado, diante da

Corte Constitucional.

4. O REGIME PARLAMENTAR NA ESPANHA 0-AVROFF, 1 9 8 5 ]

Entre os grandes Estados da Europa Ocidental, a Espanha foi o que as

cendeu mais recentemente à democracia. Foi som ente em 1975 que a dita du ra franquista teve fim, depois de 35 anos no poder, com o desaparecimento

do General Franco, morto no seu leito após longa agonia. O rei Juan Carlos,

sucessor designado pelo próprio general, por sua acepção do pluralismo po

lítico e da soberan ia popular, facilitou a transição para um regime de m ocr á

tico. Essa trans ição se completo u em me nos de três ano s pelas vias legais. Ela

 borada pelo governo mas ra ti ficada pela assembléia legislativa e aprovada por 

referendo, a constituição de 29 de dezembro de 1978 estabeleceu um regime

 parla menta r, cujo mecanis mo é in spirado, em ce rtos ponto s, em modelo s estrangeiros, especialmente o alemão, o italiano e o francês, mas que apresenta

no entanto traços peculiares.

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2 3 8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Forma do Estado. - Segundo o art. Io da constituição, “a forma política

do Estado espanhol é a monarquia parlamentar”. O rei personifica a comuni

dade nacional, mas deve ser claramente sepa rado d o governo, que possui, em

concordância com o Parlamento (Cortes generales), a prerrogativa sobre a

conduta de uma política. Ele “arbitra e modera o funcionamento regular das

instituições”, mas os poderes a ele atribuídos pela constituição (promulgação

de leis, dissolução do Parlamento, convocação de referendo, nomeação dos

ministros e dos membros do tribunal constitucional etc.) só podem ser exer

cidos com o aval do presidente do governo o u, eventualme nte, do presidente

do Congresso dos Deputados (no que diz respeito, por um lado, à proposição e nomeação do presidente do governo e, por outro, à dissolução conse

cutiva apó s u m a crise ministerial prolonga da). De fato, esses poderes corres

 pondem quase sempre a competências conjuntas ou, em outros termos, a

competências que é obrigado a exercer e que não deixam margem de delibe

ração. Trata-se então de um regime parlamentar monístico no qual a função

de chefe de Estado é hereditária.

Estruturas do Estado. - Qu an to às estruturas do Estado, elas se caracterizam pela vontade de romper com a concepção unitária e centralizadora do

regime franquista, sem configurar um autêntico federalismo. A constituição

repousa “sobre a unidade indissolúvel da nação espanhola”, mas garante o

“direito à auton om ia das nacion alidades e regiões que a com põ em ” (art. 2o).

Uma comunidade autônoma é constituída de várias províncias, geralmente

limítrofes, que solicitaram se reagrupar em função dos laços históricos, cul

turais, lingüísticos ou econômicos que as unem. As principais matérias da

competência das regiões autôn om as estão enum eradas pela constituição, maso estatuto de cada com unidad e - que toma a forma de uma lei nacional - p o

de com pletar a lista dessas matérias. No âm bito das regras ditadas pela cons

tituição, as comunidades determinam a organização de suas instituições de

autogoverno, o que significa que possuem, em certa medida, a competência 

da competência.

Por outro lado, as com unidades au tôno ma s são representadas na câma

ra alta do P arlamento nacional, o Senado. Mas este último não rep resenta so

mente as com unidade s autôno ma s (v. infra) e não é, assim, um a seg unda câ

mara de tipo federal como o Senado americano ou o  Bundesrat alemão.

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Os R e gim e s P a r la m e n t a r e s 2 39

 Regime representativo e democracia direta . - O povo espanh ol, “do qual

em ana m todos os poderes do Estado” (art. Io), é representado pelas Cortesge- 

nerales (Parlamento), que são formadas p or duas câmaras:

- O Congresso dos Deputados representa diretamente a população. A

eleição acontece por escrutínio de lista com representação proporcional no

âm bito de cada província. As cadeiras, que variam do m ínim o de trezentas ao

máxim o de quatrocentas, são divididas proporcion almen te à população, após

atribuição a cada província de uma representação inicial mínima.

- O Senado é a câm ara de representação territorial. Cada p rovíncia dis

 põe do mesmo núm ero de cadeiras (quatro), não im portando o tam anho desua população. Ademais, cada comu nidade autôn om a designa um senador e

mais um para cada fatia de 1 milhão de habitantes.

Excetuando-se os senadores representantes das comunidades autôno

mas, que são designados pelos órgãos de suas comunidades, todos os mem

 bro s das Cortes generales são eleitos pelo sufrágio universal direto por quatro

anos. Mas o Congresso dos depu tados, assim com o o Senado, pod em ser dis

solvidos antes do término desse mandato.

O bicameralismo espanhol não é igualitário: em primeiro lugar, é oCongresso dos Deputados que questiona o governo e que pode colocar em

diivida sua responsabilidade. Em segun do, em caso de conflito entre as duas

câm aras sobre o voto de um texto, o Congresso dos D eputad os po de ter a úl

tima palavra, exceto em matéria con stitucional, para a qual a anuência do Se

nado é indispensável.

As Cortes generales exercem o “pode r legislativo do Estado” (art. 66) mas

 podem conceder uma habilitação ao governo em dete rmin adas maté ria s (art.

82). Além disso, do m esm o mo do que na Itália, cada câm ara po de delegar àssuas comissões legislativas permanentes a faculdade de aprovar projetos ou

 pro posições de lei (art. 75).

Mesmo que a constituição seja fundada principalmente n o princípio re

 presentativo, ela prevê a poss ib il idade de re fe rendo em dois casos:

a) O referendo consultivo. Ele é convocado pelo rei a pedid o d o p residen

te do governo, anteriormente autorizado pelo Congresso dos Deputados (art.

92). Seu resultado constitui-se em simples sinalização para o Parlamento, queé o senhor da decisão, ao menos juridicamente. Em 1986, Felipe Gonzales a

ele recorreu para aprovar a permanência de seu país na OTAN.

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2 4 0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

 b) O referendo constituinte de ratificação. Qua lquer revisão da con stitui

ção deve ser aprovada pelas Cortes generales. Ela será subm etida a referendo de

ratificação, se o pedido for efetuado por um décimo dos mem bros de qu alquer 

um a das duas câm aras (art. 167). Assim, basta que haja a oposição de uma pe

quena mino ria pa rlamen tar para que o povo seja levado a se pronunciar.

Finalmente, o art. 72 da constituição prevê não o referendo de iniciati

va popular, mas a iniciativa popular das leis, que é uma espécie de direito de

 petição aprim orado. Seu princíp io , colocado pela consti tu ição, fixa o niime-

ro de 500 mil assinaturas no mínimo, que deverão ser exigidas, e que certas

matérias (impostos, direito de anistia etc.) estão excluídas do do m ínio d a iniciativa.

Estabilidade governamental e parlamentarism o majoritário. - O processo

de form ação do governo se parece com o q ue havia colocado, em sua versão

inicial, o art. 45 da constituição francesa de 1946. O rei propõe um candida

to à presidência do governo. O candidato se apresenta diante do Congresso

dos D eputad os e o rei só pode no me á-lo caso tenha o btido a investidura atra

vés de voto da maioria absoluta dos mem bros do Congresso. Os ou tros m em  bro s do govern o são nom eados e demit id os pe lo rei, re speitada a pro posição

de seu presidente.

As relações entre o governo e as cortes são ajustadas de acordo com as

técnicas do parlamentarismo racionalizado. Dessa forma encontramos no

art. 112 o sistema alemão denominado “desconfiança construtiva”: para ser 

recebida, uma moção de censura dirigida contra o governo deve ao mesmo

tempo apresentar um candidato à presidência do governo. Caso seja adota

da, presume-se que o candidato tenha confiança da Câmara e o rei o nomeia presid ente (a rt . 114).

As Cortes generales, o Senado ou o Congresso dos Deputados po dem ser 

dissolvidos pelo Rei, sobre a proposição do presidente de governo. Ne nh um a

 pro posição de disso lução pode ser apre senta da enquanto alguma moção de

censura estiver em and am ento . Mas, nos casos de crise ministerial prolo nga

da, se no prazo de dois meses, a con tar da prim eira investidura, nenh um can

didato conseguir a confiança do Congresso, a dissolução será automática.

Mas, como na Alemanha, as técnicas do parlamentarismo racionaliza

do quase não tiveram oportunidade de entrar em ação, pois, ao menos até as

eleições da primavera de 1993, o governo pôde sempre se apoiar na maioria

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Os Reg im es P a r la m e n ta re s 241

 parlamenta r. Tratava-se, prim eir amente , de maio ria homogênea e d iscip lina

da constituída de início pela União do Centro Democrático (UCD), depois,

 pelo Partido Socialista Esp anhol (PSOE). Após as eleições de 1993, como o

PSOE não dispunha mais de maioria absoluta das cadeiras, seu líder, Felipe

Gonzales, teve de form ar u m a coalizão com os partidos nacionalistas bascos

e catalães. Essa solução, que tende a reforçar as com unid ades autô no m as, se

 produziu novamente após as eleições de 1996. O líder do parti do conserv a

dor, que havia obtido uma vitória relativa, teve também de procurar a alian

ça com os nacionalistas catalães.

O Tribunal Constitucional  (B o n , M o d e r n e   e R o d r i g u e z , 1984). - O

controle de constitucionalidade é confiado a um Tribunal Constitucional,

instituído pelo art. 192 da constituição e que é formado por doze membros

nomeados pelo rei: quatro indicados pelo Congresso dos Deputados pela

maioria de 3/5 de seus membros; quatro indicados pelo Senado pela mesma

maioria; dois indicados pelo governo e dois indicados pelo Conselho Geral

do Poder Judiciário (cujas funções são comparáveis às do C onselho S uperior 

da Magistratura da França).As condições de qualificação exigidas são muito restritivas, como na

Alem anha e na Itália. Só pode m ser designados m agistrados de cátedra ou li

gados à procura dor ia, professores universitários, funcioná rios públicos e ad

vogados, todos juristas de competência reconhecida e que tenham pelo me

nos quinze anos de exercício profissional.

O controle é exercido sempre a posteriori, mas é bem completo porque

os diversos modos de apelação permitem ao Tribunal Constitucional conhe

cer potencialme nte todos os atos dos poderes públicos e não som ente as leis.O recurso pelas autoridades políticas é usado am plamente. Q uer em a

nem do Estado ou de um a com unidad e autôn om a, as leis podem ser deferi

das ao tribunal pelo presidente do governo, por 50 deputados ou 50 senado

res, pelos órgãos executivos das com unid ades a utô no m as ou pelo defensor do 

 povo, que é um tipo de ombudsman eleito pelo Parlamento. Esse recurso só

 pode ser uti lizad o nos três meses seguin tes à publicação da lei.

Da mesma forma que na Alemanha e na Itália, o tribunal também po

de ser aciona do pela devolução (de conhe cime nto de processo) de um a juris

dição ordinária, qu an do a questão da con stitucionalidade de um a lei se colo

ca no decorrer de um processo. Trata-se do procedimento dito de exceção

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2 4 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

que não está adstrito a nenhuma condição de prazo e permite, assim, ao tri

 bunal examinar (o u reexaminar) um a lei promulgada há vár ios anos.

Finalmen te, o recurso de amparo, que ap resenta analogias com o re cur

so constitucional alemão, perm ite a um a pessoa física ou jurídica acionar d i

retamente um tribunal, na condição de invocar um interesse legítimo. Pode

ser dirigido contra u m ato administrativo, ou m esmo contra u ma decisão ju

risdicional, mas não pode visar diretamente uma lei. No entanto, nesse pro

cedimento, o próprio tribunal pode levantar a questão de inconstitucionali

dade de uma lei caso estime que o agravo imputado ao ato atacado encontre

sua origem numa lei (questão de autoconstitucionalidade).O tribunal constitucional se reúne no rmalm ente em formação plenária.

Todavia, para exa min ar os recursos de amparo, extrem ame nte nu mero sos, ele

se divide em duas câmaras e somente as questões de autoconstitucionalidade,

nas quais uma lei está em discussão, são enviadas à formação plenária.

Convém notar que, diferentemente de outras cortes constitucionais eu

ropéias, o tribun al espanho l nã o se preo cupa com o contencioso das eleições

legislativas, pois esse contencioso pertence à competência das jurisdições or

dinárias.

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DÍiUlO

0SISTEMACONSTITUCIONAL

DOSESTADOS UNIDOS

A importância e o interesse do sistema constitucional norte-americano

decorrem não som ente do eno rme poderio econôm ico, militar e político dos

Estados Unidos, nem mesmo do fato da constituição de 1787 ser a mais antiga constituição em vigor no m und o, mas tam bém e sobretudo pelas princi

 pais caracter ís ticas dessa consti tu ição.

É preciso salientar desde o início que a constituição não foi concebida

como uma constituição democrática, mas que seus autores, os Founding Fa- 

thers, inspiraram-se no modelo inglês, tal como podia ser analisado no sécu

lo XVIII. Eram fervorosos leitores de Montesquieu e de Blackstone (ver  Le Fédé- 

raliste, de H a m i l t o n , M a d i s o n   e Ja y ), que desconfiavam do poder do legislativo

e que então procuraram organizar um sistema de balança de poderes. Assim,

adap taram para um Estado republicano o mod elo inglês, no qual o po der le

gislativo era exercido em conju nto pelas duas câm aras e o rei, à diferença que

não haveria nem rei nem aristocracia. Na Grã-Bretanh a esse sistema se trans

formou em sistema parlamentar, e aliás, mesmo não sendo perceptível, essa

evolução já estava em andamento na época da redação da constituição ame

ricana. Uma transformação semelhante ocorreu na maioria dos países que

 procuraram reproduzir a estr utu ra da consti tu iç ão inglesa. É o caso da Fran

ça no deco rrer do ano de 1792 e novam ente depois de 1815. Tam bém é o ca

so da Bélgica e dos países escandinavos. Ora, por várias razões, ligadas prin

cipalmente, m as nã o exclusivamente, ao federalismo e ao m odo de eleição do

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2 5 0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

 presiden te , os Estados Unidos não passara m por essa evolução, mas passa ram

 por uma tr ansfo rmação dife rente.

O resultado é que, para dar conta do sistema constitucional americano,

a doutrina inventou uma nova categoria, o regime presidencial. Na verdade,

o sistema americano é o único membro dessa classe, de maneira que quando

se que r analisar o sistema presidencial, é o sistema constitucional american o

que é descrito.

Partindo dessa perspectiva, a doutrina européia, principalmente a fran

cesa, pensa que, em geral, a constituição am ericana prom ove um a separação

rígida dos poderes, já que o presidente não pode dissolver as câmaras e queos m inistros n ão são politicamente responsáveis. Vale notar, en tretanto, que

essa separação não significa que os órgãos sejam especializados nem que se

 ja m despro vid os de meios de influências recíprocas. Os auto re s americanos

consideram, portanto, que a separação dos poderes não é de mod o algum rí

gida e caracterizam sua constituição como um sistema de colaboração dos

 poderes e de equil íb rios múltip los.

Foi nos Estados Unidos que surgiu o controle de constitucionalidade

das leis e foi também nesse país que ele obteve maior progresso.Finalmente, ao contrário do que se produziu na maioria das democracias

representativas, a divisão das competências e as relações entre os órgãos não fo

ram profundamente afetadas pelo sistema de partidos. De fato, os partidos

americanos diferem dos europeus na medida em que n ão são instrumentos de

uma ideologia nem de um programa de governo preciso. As diferenças de di

retrizes entre democratas e republicanos são pequenas e sobretudo flutuantes.

Somente dois partidos para u m país de dimensões continentais parece pouco

 para enquadrar num sistema coeren te todas as tendências, todos os instintos,todas as aspirações do povo. Dado que sua originalidade do utrin ária é pratica

mente nula, os partidos não pod em almejar a um papel político de grande e n

vergadura. No en tanto, seu papel é considerável em m atéria eleitoral. Na prá ti

ca, os partido s am ericanos são m áqu inas de fazer eleições.

Seção 1

Os órgãosA estrutura original da constituição e a divisão de competências resul

tam da vontade de impor limites aos poderes de cada órgão.

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0 S is t e m a C o n s t i t u c i o n a l d o s Es t a d o s U n i d o s 25 1

1. O C o n g r e s s o

(L o n g u e t , 1989; T o i n e t , 1996). - O Congresso foi originalmente con

cebido como o órgão mais importante. Somente de forma progressiva é que

o papel do presiden te cresceu. No entan to, me smo hoje, a força do preside n

te provém sobretudo de sua aptidão para obter a colaboração e o apoio do

Congresso. Este é com posto po r duas câmaras: a Câm ara dos Representantes

e o Senado.

A. Organização

O Congresso é um parlamento bicameral. O bicameralismo se explica,

 por um lado , pe la vontade de evitar a dom in ação e a concentração de poder 

que se produz em uma assembléia única, e por outro, pela preocupação dos

Estados em conservar ao mesmo tempo uma autonomia importante e uma

influência nas decisões federais.

A Câmara dos Representantes é composta por 435 membros. Os repre

sentantes são eleitos pelo escrutínio m ajoritário em turno único no âmbito dosEstados e cada Estado obtém um núm ero de representantes proporcional ao de

sua população. De acordo com o princípio adotado no século XVIII,  por des

confiança das assembléias representativas, o m and ato é muito curto, dois anos,

de modo que os representantes são submetidos a um controle freqüente. Na rea

lidade, o controle dos eleitores sobre os eleitos não parece muito rígido: nas

eleições de novem bro de 1988,99% dos representan tes foram reeleitos, em pa r

te graças a uma sábia divisão das circunscrições. Por isso, numerosos autores

 pensam que a c urta duração dos mandato s apresenta mais inconvenientes quevantagens e princ ipalm ente que, logo que são eleitos, os representantes devem

 pensa r na reeleição e acabam em campanha perm anente .

O S enado representa os Estados num a base igualitária. Cada Estado ele

ge então dois senadores. Disso resulta uma grande desigualdade na represen

tação, já que existem Estados m enos povo ados - às vezes mais conservadores

- com peso igual ao dos Estados mais povoados. O Senado é assim com po s

to de 100 senadores, eleitos po r seis anos pelo povo de cada Estado (até 1913,

era m designados pela legislatura de seus Estados). Um terço das cadeiras é renovado a cada dois anos, de modo que a eleição de um terço dos senadores

ocorre ao mesmo tempo que a dos representantes.

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2 5 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

A presidência do Senado é garantida pelo vice-presidente dos Estados

Unidos, mas trata-se sobretudo de uma atribuição honorífica. Ele não vota

exceto em casos de desempate e não detém praticamente nenhum poder.

As eleições para as duas câmaras, e isso também vale para todas as elei

ções american as, são afetadas em grand e p arte pelo custo cada vez maior das

campanhas eleitorais. Esse custo é considerado como um atentado contra o

caráter dem ocrático do sistema. De fato, alguns cand idatos se retiram po r fal

ta de recursos, enquanto que outros levam vantagem por possuir grandes

fortunas pessoais. A desigualdade de oportunidades entre candidatos não

ocorre so me nte entre ricos e pobres mas en tre conservad ores e liberais1, p o rque as empresas e os particulares que podem oferecer apoio financeiro aos

cand idatos o fazem na m edida em que, uma vez eleito, o can didato possa de

fender seus interesses. O sistema também leva os eleitos a preparar suas pró

ximas cam pan has e a estar em con form idad e com as expectativas de seus fi

nanciadores.

É por isso que nos Estados Unidos, assim como em outros países, mas

de modo mais lento e modesto, desenvolve-se um movimento para morali

zar o financiam ento das campa nhas. U ma lei de 1971, várias vezes em en da da, limita o valor das contribuições ao candidato efetuadas por empresas e

 por part iculare s. Essa lei, entr eta nto , esb arra em dois limites . Em prim eiro lu

gar, a Suprema Corte, fun dad a na liberdade de expressão, julgou que a lei não

 poderia limitar o m ontante das despesas, de m odo que o candid ato que co

locasse na cam pan ha sua própria fortu na não teria teto fixo. Em segun do lu

gar, a lei limita som ente as contribuiçõe s aos candidatos, m as não os do na ti

vos às organizações e aos partidos - é o soft mon ey - e não faz restrições aos

gastos efetuados po r particulares ou g rupo s em favor de um a causa ou aos candidatos que a defendam . Atualmente, um a nova legislação está em e studo p a

ra proibir o soft mo ney , mas ela se choca com fortes oposições.

 Nas duas câmaras, as comissões tê m um papel partic ula rm ente im por

tante. São comissões per m ane ntes e especializadas, mas as câmaras designam

freqüen teme nte as comissões de inqu érito p ara questões particulares. Em ca

da uma delas, o partido majoritário ocupa a maioria das cadeiras e a presi

1 Os liberais no sentido n orte-americano do te rmo representam aqueles que são favoráveis auma defesa enérgica dos direitos cívicos (civis) da mesma forma que a um aumento da proteção social.

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0 S is t e m a C o n s t i t u c i o n a l d o s Es t a d o s U n i d o s 253

dência. As comissões pod em convocar, eventualme nte sub poena , ou seja, sob

 pena de sanção, qualquer pessoa que desejem ouvir, seja ela simples particu

lar ou membro do executivo. Quando chamadas a decidir sobre um projeto

de lei, pod em recusá-lo pu ra e simplesmente. A câmara, então, só pode reto

má-lo po r voto expresso e, na prática, raram ente ela o faz. Num erosos p roje

tos, aliás, não vão além do exame das comissões que também podem emen

dar o projeto e cujas recomendações são freqüentemente seguidas.

B. Competências

Mesmo sendo o Congresso designado como “o poder legislativo”, ele

exerce comp etências que se relacionam c om todas as funções do Estado.

 Na ord em legislativa, é ao Congresso que a const ituição concede o es

sencial do poder. Em primeiro lugar, somente seus membros possuem a ini

ciativa das leis. Em princípio, o presidente não pode apresentar projetos, mas

 pode fazê-lo media nte um representa nte ou um senador. Os pro je tos devem

ser ado tado s em te rmo s idênticos pelas duas câmaras. Caso não haja acordo,

um a com issão mista é convocada, mas se essa comissão fracassar na elaboração de um texto comu m ou se o texto com um não for adotado pelas duas câ

maras, ele é conside rado rejeitado. Se for adotad o, é transm itido ao presid en

te, que dispõe de um direito de veto parcial (v. infra).

Em matéria orçamentária o procedimento é diferente: como na Ingla

terra, a iniciativa pertence somente à Câmara dos Representantes. Na práti

ca, poré m, o p rojeto é preparad o pela presidência.

O Congresso também tem poderes importantes na ordem executiva.

Além dos poderes de que dispõem as comissões das duas câmaras, o Senado éinvestido pela constituição do direito de dar seu consentimento (advice and  

consent) a dois tipos de decisões do presidente. Trata-se primeiramente das

nomeações de alguns altos funcionários federais, principalmente ministros,

embaixadores, juizes. Esse poder é bem real e é exercido com a preocupação

de garan tir a política que será posta em prática pelas personalidades nomeadas.

Essas nomeações são publicamente examinadas p or u ma comissão de senad o

res, freqüentem ente po r longo período, pode nd o o correr recusa pelo Senado,

à qual o presidente não pode fazer objeção. Existem muitos exemplos dessasrecusas, desde a de 1795, quando o Senado recusou a nomeação feita por 

Washington do presidente da Suprem a Corte, porqu e este havia dem ons trado

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2 5 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

seu desacordo com um tratado firmado com a Inglaterra, até a de 1987, quando

recusou por duas vezes seguidas a aprovação da nomeação feita pelo Presidente

Reagan de juizes para a Suprema Corte, considerados muito conservadores.

Trata-se, por outro lado, de tratados internacionais assinados pelo presi

dente que devem ser aprovados pela maio ria de dois terços. Neste caso tam bém

é um po der considerável que o Senado usa realmente. Assim, não ratificou em

1919o Tratado de Versalhes assinado pelo Presidente Wilson, de maneira que

os Estados Unidos não puderam participar da Liga das Nações, da mesma for

ma que fez em 2000, com o tratado de interdição dos testes nucleares.

 No enta nto , os pre sidente s te nta ram com sucesso contornar os obstá culos do Senado assinando não tratados, mas acordos em forma simplificada

(executive agreements)  por meio dos quais podem com prom eter os Estados

Unidos u nicam ente com sua assinatura. No início, esses acordos incidiam so

 bre maté ria s pouco im portante s, mas a prá tica foi reconhecid a em 1937 de

acordo com a constituição pela Suprema Corte e a proporção de tratados e

de executive agreements foi invertida, de tal forma que os segundos são atual

me nte mais freqüentes, trata nd o de questões cada vez mais impo rtantes, ape

sar de algumas tentativas do Senado de exercer um certo controle sobre osexecutive agreements. Para evitar a censura de negligenciar o Congresso, uma

ou tra técnica é empregad a: o s acongressional-executive agreements”. Em vez de

submeter os tratados unicamente ao Senado, o presidente faz com que as duas

câmaras aprovem os acordos por maioria simples. Não há, dessa forma, ne

nhu m a diferença entre tratados e acordos que possuem a mesma força, quer 

dizer, que prevalecem sobre as leis dos Estados e, se foram incorporados ao

direito americano, prevalecem sobre as leis federais. Eles incidem sobre as

matérias mais importantes, tais como os tratados de criação do NAFTA e daOM C, que foram aprovado s desse modo . Esse proce dime nto, às vezes, se jus

tifica por seu caráter democrático. Ressalta-se o fato de que o procedimento

de autorização de ratificar, dado pelo Senado, concede muito poder a uma

minoria. No entanto, a doutrina está dividida em relação à conformidade

com a constituição. Alguns consideram o procedimento anticonstitucional

enquanto, para outros, foi a constituição que mudou o acordo expresso ou

implícito dos tribunais, sem que seu texto tenha sido mo dificado ( A c k h r m a n ,

1998; H a m o n & W i e n e r, 2001).

A constituição atribui ainda ao Congresso o poder constitucional de de

clarar guerra. No entanto, nesse caso também, o presidente se esforçou para

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0 S is t e m a C o n s t i t u c i o n a l d o s Es t a d o s U n i d o s 255

agir só, e freqüentemente conseguiu fazê-lo. Dessa forma, enviou tropas ou to

mou decisões políticas equivalentes ao desencadeamento de uma guerra ou a

um ultimato, sem sequer consultar o Congresso. Na verdade, as forças armad as

foram usadas mais de 200 vezes, e som ente em cinco ocasiões ele ped iu ao C on

gresso um a declaração de guerra. Foi sem a aprovação do Congresso que foram

iniciadas, por exemplo, a guerra da Coréia em 1950, a da Indochina em 1964,

a do Golfo em 1990 ou ainda a do Kosovo, em 1999. Em alguns casos, com o as

operações de envio de tropas pa ra o Kosovo ou os ataques aéreos à Sérvia em

1999, quando se tomou grande cuidado para não chamar de guerras mas de

“uso limitado de forças”, foram iniciados m esm o com a recusa do aval de um adas câmaras. Isso se explica pelo fato de o presidente querer evitar a obrigação

de obter d o Congresso um a declaração de guerra, mas igualmente pelas condi

ções da guerra mod erna: de um lado, no plano jurídico, a guerra é proibida pe

la Carta das Nações Unidas; de outro, pode acontecer das operações militares

não serem dirigidas contra um Estado (foi o caso do Vietnã); enfim, freqüen

temente é necessário preservar até o último momento o segredo que as delibe

rações sobre a declaração de guerra não permitiriam guardar. Uma lei de 7 de

novembro de 1973 sobre os poderes de guerra do presidente o obriga, se possível, a consu ltar o Congresso qu aren ta e oito horas antes do envio de tropas ao

estrangeiro e, qua lquer que seja o caso, a enviar um relatório ao Congresso. Es

te pode orde nar a retirada das forças po r um a resolução conjun ta à qual o p re

sidente não pode opor veto. Se, num prazo de sessenta dias, o Congresso não

ado tar resolução aprovando a continuação das operações, o presidente é obri

gado a desistir da ação ( H a m o n , 1977). Essa lei pode, em certos casos, consti

tuir u m freio eficaz: se o Presidente Reagan pôde ordena r um a intervenção m i

litar a Granad a, não pôde enviar tropas pa ra socorrer os Contra , os inimigos doregime sandinista da Nicarágua. No entanto, como as decisões nesse âmbito

 podem se apresenta r como a aplicação de resolução das Nações Unidas, que

aliás não escapa à influência do presidente, este pod e se liberar do assen timen

to do Congresso, como no caso da guerra do Golfo.

O Co ngresso exerce ainda, em m atéria executiva, um po der indire to im

 porta nte que emana de seu poder legislativo e finance iro. É ele que controla

as finanças e se enc on tra, assim, em con dições de recusar as políticas que não

aprova. Assim, o Presidente Reagan, mesm o fora de q ualqu er perspectiva de

intervenção militar direta, não pôde apoiar os Contra como desejava, devido

à recusa de seu pedido de recursos financeiros pelo Congresso.

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2 5 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

O Congresso tentou até atribuir-se um direito de veto, chamado “veto

legislativo”, para certos atos do presidente: ele o autorizava, po r meio de um a

lei, a toma r medidas regulamentares que um a ou ou tra câmara po deriam pa

ralisar. No entan to, po r meio de um a decisão Chadha de 23 de ju nh o de 1983,

a Suprema Corte julgou essa prática inconstitucional (R o u b a n , 1984).

Em terceiro lugar, o Congresso tem funções de ordem judiciária inspiradas

no modelo inglês. A Câmara dos Representantes pode vo tar a colocação sob acu

sação de qualquer pessoa, inclusive o presidente (impeachment ), não estando

apoiada em um a definição legal dos crimes. As pessoas dessa forma acusadas são

 julgadas pelo Senado que, pela maioria de dois terços, pode pro nuncia r a destituição. Neste caso, trata-se também de uma prerrogativa de grande alcance. Em

1868, o Presidente Andrevv Johnson havia sido acusado e só escapou da destitui

ção por apenas um voto para que a maioria de dois terços fosse atingida no Se

nado. Se o procedimento tivesse obtido sucesso, o regime poderia ter se transfor

mado em regime parlamentar. Em 1974, a Câmara dos Representantes estava

 prestes a votar a acusação contra o Presidente Nixon, compro metido com o caso

Watergate, quando este, tomando a dianteira, preferiu renunciar.

Os dois casos precedentes, Johnson e Nixon, revelam o caráter ambíguoda responsabilidade denominada penal. Provavelmente, ela é penal pelo pro

cedimento, no entanto, em outros aspectos, é eminentemente política: em

 prim eiro lugar, pela sanção incorrid a que só pode ser a dest ituição; depo is ,

 pelo objetivo perseguido e o contexto no qual ela é acionada. Em ambos os

casos, as ações judiciais só foram iniciadas e o impeachment só foi votado, ou

quase foi votado, porq ue existia entre o presidente e a maioria do Congresso

um desacordo político de extrema gravidade.

Essa análise se confirm a pelo caso do Presidente Clinton. O caso Watergate revelara graves defeitos no modo de desencadear as ações contra os

me mb ros do pod er executivo. Os procura dore s federais estão sujeitos à au to

ridade do min istro da justiça, ou seja, do p róp rio pod er executivo, e existe o

risco de que as ações sejam barradas. O Congresso ado tou, então, um a lei ins

tituindo para esse tipo de caso um procurador especial, totalmente indepen

dente e dotado de grandes poderes.

Essa lei, todavia, contribuiu para agravar as conseqüências que resultam do

caráter discricionário do poder de impeachment da Câmara dos Representantes.

O Presidente Clinton se envolvera num negócio relativo à especulação

imobiliária qu an do era govern ador do Arkansas (caso Whitewater). O procu

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rador especial, nomeado para examinar a validade da ação judicial neste ca

so, era um inimigo político do presidente. Seu inquérito não dera resultado,

mas o presidente cometera outro delito: 110 processo civil aberto contra ele

 por assédio sexual (caso Pau la Jones) , ele negara te r ligação com um a jovem

estagiária da Casa Branca, Monica Lewinski. Por ter mentido, o procurador 

especial ped iu à C âm ara d os Represen tantes que votasse, em 1998, o impeach

ment. A Câm ara devia então interp retar o art. 2o, seção 4 da constituição, que

 prevê o impeachment em caso de “traição, corrupção e outros crimes e deli

tos”. Ela devia principalmente determinar se uma mentira cometida num

 processo civil, num caso relativo à vida privada, poderi a consti tu ir um crimeque justificasse um impeachment . Pela segunda vez na história dos Estados

Unidos, um presidente era citado diante do Senado. Não sendo atingida a

maioria de dois terços, o Presidente Clinton foi absolvido (Z o l l e r  , 1999). Es

te caso ressaltou os defeitos da lei sobre o procurador especial, cujos poderes

eram excessivos. Como ela só havia sido adotada por um período limitado,

ao final dele não foi renovada.

Finalmente, o Congresso tem um papel essencial no processo de revisão

constitucional. A iniciativa lhe pertence em conjunto com os Estados: asemendas, ou seja, as leis de revisão, podem ser propostas por dois terços dos

me mb ros de cada um a das duas câmaras, ou por dois terços dos Estados. Nes

te último caso, que nunca se produziu, o Congresso deve convocar uma con

venção que, por sua vez, prop orá as emendas. Terminada essa primeira etapa,

as emendas propostas pelo Congresso ou pela convenção devem ser ratifica

das por três quartos dos Estados. O Congresso pode, de outro modo, decidir 

que os Estados ratificarão as emendas por sua legislatura ou por convenções

reunidas para esse efeito no âmbito de cada Estado. Pode-se notar que se trata de um processo penoso que, na prática, dá ao congresso um papel determ i

nante. Rarame nte utilizado, uma vez que no total só há 27 emendas.

As dez primeiras, que formam a  Bill o f Rights, foram adotadas desde

1791. É preciso também notar que a constituição não fixa nenhum prazo en

tre o início e o fim do processo. A 27- emend a que, é bem verdade, diz respei

to a uma questão menor, havia sido proposta por Madison em 1789, e só foi

adotad a pelo Estado de Michigan em 1992. Michigan foi o 38- Estado a votar 

o texto, de maneira que a maioria de três quartos foi atingida ao fim de dois

séculos. Para evitar uma espera longa e incerta o Congresso indica no próprio

texto da eme nda o prazo ao final do qual os Estados devem ter ratificado. Uma

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em en da relativa à igualdade dos sexos, ado tada em 1970, finalme nte fracassou

 por não ter sido ratificada a te mpo pe los três quartos dos Estados.

2. 0 PRESIDENTE

(T o i n e t , 1996) O presidente é incontestavelmente a figura mais visível

e, se não é investido das competên cias mais im porta ntes, é sem d úvida quem

exerce a influência determ inante .

 A eleição do presidente. - O presidente dos Estados Unidos é eleito ao final de um processo longo e complexo que pode dividir-se em três fases.

A primeira operação refere-se à designação dos candidatos. Caracteriza-

se pelo papel prepo nde rante dos p artidos, que se manifestam com o verdadei

ros órgãos do Estado. Tal papel evidentemente só é possível pela falta de base

ideológica dos partidos americanos. Em cada Estado, os partidos escolhem

seus delegados para a convenção nacional do partido q ue deve designar o ca n

didato oficial à presidência e o candidato à vice-presidência. Essa escolha é fei

ta tanto pelos comitês locais do partido, quanto pelas primárias que reúnemos eleitores do partido. É a legislatura de cada Estado que determina o modo

de designação dos delegados às convenções de partido. Minnesota foi o pri

meiro Estado a organizar as primárias, em 1899, mas hoje a maioria o faz (cer

ca de quare nta em 1992) e o núm ero deles não pá ra de crescer. Existem, aliás,

vários tipos de prim árias. As principais são as primár ias fechadas nas quais só

 part ic ip am os cidadãos que declara ram sua filiação ao partido que as organi

za; em seguida, as primárias abertas nas quais os eleitores não declaram a filia

ção e só escolhem, em cabinas de voto, os delegados de um ou outro partido.

As eleições primárias têm uma importância considerável, pois os delegados

 possu em um mandato im pera tivo para se pronuncia r na convenção nacional

a favor de um a ou de ou tra personalidade. Os candida tos à eleição devem, en

tão, a partir desse m om ento , fazer um a cam pan ha intensiva.

A convenção nacional do partido, entretanto , não é um a simples form a

lidade: os delegados designados pelos comitês de partid o nã o possu em m an

dato imperativo e pode ocorrer que nenhuma candidatura se revele clara

mente do resultado das primárias. Nas negociações que se iniciam então, a

escolha do candidato à vice-presidência é fator importante. Para obter o

apoio de certas delegações de Estados, o can didato à presidência po derá acei

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tar na sua cédula um candidato à vice-presidência cujas idéias ou estilo são

diferentes dos seus.

A segunda fase corresponde à da eleição pelo povo americano, que

acontece na terça-feira subseqüente à primeira segunda-feira de novembro.

De fato, não se trata d e um a eleição pelo sufrágio direto, pois os cidadãos não

elegem o presidente, mas eleitores presidenciais. Em cada Estado, são eleitos

eleitores presidenciais em número igual ao número total de senadores e de

representantes de Estado. Entretanto, na prática, tud o se passa como se fosse

um a eleição direta, porq ue os eleitores presidenciais são mu nid os de m an da

tos imperativos, de modo que se conhece o nome do presidente no dia seguinte às eleições de novembro.

Enfim, a terceira fase que se desenvolve 110 mês de dezembro tem so

mente um caráter formal: os eleitores presidenciais elegem o presidente que

tomará posse somente na segunda segunda-feira de janeiro. É preciso notar 

o risco de alteração de forma que resulta do sistema de designação de eleito

res presidenciais: existe a possibilidade de que um can didato obten ha me nos

votos que seu adversário e, mesmo assim, ganhe as eleições em alguns casos

 por pouco, em grandes Estados que desig nam a maio ria dos eleitores pre sidenciais. O risco é ainda maior porque, em quase todos os Estados, os gran

des eleitores são eleitos pelo escrutínio majoritário de lista, de modo que um

único voto de maioria é suficiente para garantir a um candidato a totalidade

dos grandes eleitores do Estado. O caso ocorreu três vezes, em 1876, 1888 e

novamente em 2000 (cf. L a u v a u x , 1998).

Esse sistema se explica por razões históricas. Os redatores da constitui

ção não tinham em mente o estabelecimento de uma democracia e, em seu

espírito, o presidente não deveria ser eleito pelo povo, mas por um colégioeleitoral form ado po r um a elite de cidadãos, aptos a fazer um a escolha escla

recida. A única questão era a maneira de estabelecer a escolha desse colégio

eleitoral. Alguns queriam que ele próprio fosse escolhido pelo povo, outros

desejavam que fosse designado pelo Congresso ou pelas legislaturas dos Es

tados. Chegou-se finalmente a um compromisso: de um lado, cada Estado

enviaria ao colégio um número de eleitores igual ao número de seus repre

sentantes no Congresso, o que dava uma vantagem aos pequenos Estados,

uma vez que possuíam o mesmo número de senadores (dois) que os maio

res; por outro lado, a legislatura de cada Estado decidiria ela mesma o modo

de designação de seus representantes no colégio eleitoral. Ela poderia, assim,

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2 6 0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

decidir designá-los por si mesma, elegê-los mediante o povo e até mesmo

sorteá-los. Na prática, em todos os Estados as legislaturas escolheram a fór

mula da eleição pop ular e os mem bros do colégio eleitoral perdera m a liber

dade de escolha e devem votar no candidato com o qual se engajaram na

cam pan ha eleitoral no âm bito de cada Estado. Mas, no plano estritam ente ju

rídico, os membros do colégio eleitoral poderiam, em teoria, perfeitamente

reconquistar sua liberdade de voto e as legislaturas poderiam decidir eleger 

 por si mesmas seus repre sentante s ao colégio.

A difícil eleição de George W. Bush chamou a atenção para os vários

inconvenientes do sistema. O primeiro provém do caráter indireto da eleição: como vimos, um cand idato po de perd er as eleições mesm o ten do o bti

do um número maior de sufrágios populares, porque seu adversário obteve

a maioria, embora pouco expressiva, em Estados suficientes para lhe dar 

ma ioria n o colégio eleitoral. Foi o que o corre u em 2000, qua nd o Al Gore foi

derrotado mesmo obtendo mais votos que George Bush. O segundo incon

veniente vem do pod er que as legislaturas dos Estados têm de deter m inar o

modo de designação dos membros do colégio eleitoral. Freqüentemente o

fazem de modo que nem é completo nem uniforme, de tal forma que as regras de contagem pode m variar no interior de um mesm o Estado. Assim, no

decorrer das eleições de 2000, Bush ganhou no estado da Flórida pela dife

rença muito pequ ena de m enos de mil votos e em c ondições que deixavam

dúvidas se os votos haviam sido mal contados. Ora, a vitória na Flórida de

um ou de outro candidato era suficiente para assegurar a maioria no colé

gio eleitoral. Após vários recursos, a Suprem a Co rte da Flórida orde no u a re

contagem dos votos em algumas circunscrições, mas a Suprema Corte dos

Estados Unidos, pela maio ria de 5 con tra 4, an ulo u a decisão e deu a vitóriaa Bush. Poderia parecer estranho, nu m país democrático, que o v encedor da

eleição tenha sido designado por maioria de juizes, ainda mais quando as

 bases ju ríd ic as da dec isão pare cia m frágeis e a maio ria da Corte, conhecid a

 por seu conservadorismo, parece te r sido , na realidade, levada por consid e

rações políticas.

A Corte, de fato, fundou-se no princípio da igualdade. Ela julgou que,

 por um lado, a re contagem dos votos ordenada pela corte da Fló rida havia si

do efetuada em condições que não garantiam o respeito ao princípio de

igualdade e, por o utro lado, que, levando-se em conta o calendário das elei

ções, era um pouco tarde para definir novas condições. Deduziu, então, que

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os resultados p rocla mado s deveriam ser definitivos sem que fosse possível ve

rificar erros n a con tagem.

Um g rande nú m ero de juristas americanos, entretanto, considerou que

o calendário das eleições não estava tão apertado assim como considerava a

Corte e que teria sido possível ampliar os prazos de modo que se pudesse efe

tuar a recontagem completa dos votos. Por outro lado, observaram que a

maioria conservadora da Corte mostrara-se em o utros casos preocupada, an

tes de tudo, com a autonomia dos Estados, enquanto que neste caso não le

vou em consideração o direito do Estado, como o interpretara a Suprema

Corte da Flórida ( H a m o n & W i e n e r  , 2001). Notara m , por fim, que a ma ioriaconserv adora da Sup rema C orte tinh a interesse na vitória de Bush, porq ue Al

Gore certamente designaria juizes mais liberais, o que, finalmente, colocaria

em risco sua existência como maioria.

Vários desses juristas desejavam uma revisão da constituição de modo

a perm itir a eleição do presidente pelo sufrágio universal direto, segundo um

sistema uniforme para todo o território. Mas a constituição americana é de

uma rigidez extrema e as chances de tal revisão parecem pouco prováveis.

Os poderes do pres idente. - As com petências do presidente estão ligadas

a três grandes funções jurídicas. Na ord em legislativa, a ausência de direito de

iniciativa, com o vimos, n ão inc om oda mu ito, pois o presidente deve, em pri

meiro lugar, propor ao Congresso, juntamente com a mensagem anual sobre

o estado da União, “tais medidas que julgará necessárias e oportunas” e ele

 pode sempre preparar pro je to s que serão apresentados por um membro do

Congresso. Na prática, aliás, nos Estados Unidos, como em outros países, a

grande maioria das leis foram de fato adotadas por iniciativa do executivo.Mas o maior poder é evidentemente o poder de veto. É bem verdade que es

se veto pode ser derrubado por voto da maioria de dois terços nas duas câ

maras, mas tam bém é fato que tal ma ioria é dificilmente reunida. No início,

esse poder foi pouco utilizado, mas, a partir da segunda metade do século

XIX, o foi cada vez mais. Pode-se medir sua importância, atualmente, pela

freqüência de seu uso; assim, Truman, em dois mandatos, empregou-o 180

vezes, e seu veto foi derrubado apenas 12 vezes. Mas, na realidade, esse poder 

é ainda mais importante do que parece. No momento de discussão de um

texto no Congresso, o presidente, ameaçando opor-se, está em condições de

 pesar os deb ates e obter as emendas.

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Uma lei de 1996, adotada pelo Congresso no mesmo ano, permitia ao

 presidente opor seu veto não a um a lei in te ira mas somente a um a de suas

disposições: era o Une item veto. Tratava-se de da r ao presidente, no intuito de

limitar o déficit orçamentário, os meios de lutar contra as disposições parti

culares, inseridas numa lei mais geral, sujeitas a pressão de lobbies e tenden

do, principalmente, a conceder subvenções ou vantagens fiscais. Da mesma

forma que para o veto global, a maioria de 2/3 é necessária para derrubar o

Une item veto. Mas a Suprema Corte julgou, por decisão de 26 de junho de

1998, que essa lei era co ntrá ria à constituição. Ela, de fato, objetivava a m odi

ficação das modalidades de exercício do poder legislativo e tal poder só poderia ser acordado ao presidente por meio de em enda constitucional.

O pre siden te exerce, em segund o lugar, a função executiva. Isso qu er di

zer que dispõe do poder regulamentar e que é o chefe da administração, que

nomeia, com a aprovação do Senado, os funcionários federais e que pode,

aliás, demiti-los sem, nesse caso, necessitar da aprovação do Senado. Uma lei

adotada em 1995 permite ao Congresso, de acordo com o princípio da hie

rarquia de normas, examinar e revogar os regulamentos federais. Por outro

lado, ele dispõe de po deres classificados como “pode r executivo”, mesmo queseja evidente não se tra tar de execução de leis: o pres iden te é o chefe do ex ér

cito; ele conduz as relações internacionais. Ora, a guerra civil, depois o cres

cimento do papel dos Estados Unidos no mundo, contribuíram para o cresci

m ento considerável dos poderes do presidente. Isso que r dizer que ele tomo u

a maior parte das decisões que comprometeram profundamente os Estados

Unidos, do lançam ento da bo m ba atômica até a guerra do Golfo ou a do Ko-

sovo.

Finalmente, o presidente detém certas prerrogativas de ordem jurisdicional. Com o a m aior pa rte dos chefes de Estado, tem o d ireito de anistia pa

ra os crimes e delitos federais. Por várias vezes tentou -se e mend ar a cons titui

ção para permitir ao Congresso anular uma anistia, principalmente depois

que o Presidente Ford a concedeu a seu antecessor, Nixon, que havia renun

ciado para evitar o impeachment. O debate sobre o direito de anistia foi re

lançado depois que Clinton, ao final do mandato, usou e abusou do direito,

levantando suspeitas de favorecer criminosos, os quais poderiam ter financia

do a campanha eleitoral de sua esposa, a senadora Hillary Rodham Clinton.

O presidente, graças principa lme nte a seu p ode r de no m ear os juizes fe

derais e principalm ente os da S uprema Corte, exerce um a influência decisiva

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sobre a evolução da jurisprudência. O uso que fará desse poder tornou-se

mesmo uma cartada decisiva da eleição presidencial. Como vimos anterior

mente, a decisão da ma ioria conse rvado ra de dar a vitória a George Bush em

dezem bro de 2000 poderia ter sido interp retad a com o a vontade dos juizes de

 permanecerem majo ri tá rios.

O estatuto do presidente e a organização da presidência. - O presidente e

o vice-presidente são eleitos por q uatr o anos. No início, a constituição não li

mitava o número de mandatos mas, desde o primeiro presidente, Washington,

o costume estabeleceu que os presidentes não concorressem a um terceiromandato e pensava-se mesmo que se havia criado um verdadeiro costume

constitucional. Entretanto, Roosevelt se apresentou uma terceira vez e em

seguida uma quarta vez, e foi reeleito. Para estabelecer uma verdadeira nor

ma jurídica, foi preciso revisar a constituição. Esse foi o propósito da 22-

emend a, adotad a em 1951. Doravante, ninguém pode exercer mais de dois

mandatos.

Sabe-se que os americanos elegem um vice-presidente juntamente com

o presidente que o sucede em caso de destituição, de morte ou de demissão.Exceto nestes casos, o vice-presidente não possui nenhum poder. Ele preside

o Senado mas, com o vimos, trata-se de um papel simbólico. No m ais, exerce

as funções que o presidente lhe deseja confiar, podendo até se tratar de um

 papel polí tico im portante . Assim, o Presidente George W. Bush de lega a seu

vice, Dick Cheney, várias tarefas importante s. M as se o presiden te vier a fale

cer ou ped ir demissão, ele torna -se presidente sem restrições. A 22- em enda

limita o número de mandatos que pode exercer, distinguindo-se dois casos:

se o vice-presidente substituir o presidente falecido ou demissionário durante menos de dois anos, pode se apresentar duas vezes como se nunca tivesse

sido presidente. Ao contrário, se ocu par o cargo po r mais de dois anos, tudo

se passa como se tivesse exercido tod o o m an dato do antecessor e só pode rá

apresentar-se m ais um a vez.

Em 1967, a 25- emenda regulamentou o caso da vacância da vice-pre-

sidência: cabe ao presidente nomear um novo vice-presidente com o con

sentimento do Congresso. Em 1973, o vice-presidente Agnew pediu demis

são na seqüência de um escândalo, e Richard Nixon nomeou Gerald Ford

que, aliás, sucedeu Nixon qu and o este pediu demissão, no mo m ento do ca

so Watergate.

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2 6 4 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Os instrum entos de ação presidencial - A extensão considerável das fun

ções do presidente postula a existência de numerosas e diversificadas agên

cias governamentais. O conjunto delas constitui a denominada administra

ção. Sujeita à autoridade do presidente, a administração tornou-se, nos

Estados Unidos, um quarto poder, talvez mais forte, embora menos visível,

que os três outros (B u r d e a u , t. VIII, n. 235 e s.).

1. O Gabinete do presidente não está previsto na constituição mas sua

existência data dos primeiros anos de sua aplicação. De fato, foi Washington

quem instituiu um conselho de secretários. Esses secretários são ministros li

vrem ente escolhidos pelo presidente (n orm alm en te o Senado valida essas n omeações) e demitidos por ele. O Gabinete não é um órgão colegiado, não

 possui auto rid ade própria . O presidente pode consultá-lo ou não e não é

obrigado a seguir sua opinião. Juridicamente, só existe a autoridade do pre

sidente. Os secretários de Estado não têm acesso ao Congresso exceto qu an

do são convocados e não po dem po r ele ser demitidos. Em 1988, qu an do as

sumiu as funções, o Gabinete de George Bush contava com 14 secretários de

Estado, cada um responsável por um dep artame nto determ inado.

2. A Secretaria da Presidência foi instituída em 1939; é formada pelas personalid ades do  Bra in Trust  do chefe de Estado. Nesse Executive Office, a

divisão das obrigações provo cou a instituição de diferentes organismo s. Os

 princip ais são: o Office o f Ma nagem ent and Budget , que é responsável pela

 preparação e execução do orçam ento federal e que emprega 600 pessoas; o

Council o f Economic Advisers, cúpula econômica da Casa Branca; o  N atio

nal Security Council, criado em 1947, que co ord ena as políticas intern a, ex

terna e militar visando a segurança da União; a Central Intelligence Agency 

(CIA), da mesma forma criada em 1947, que controla o dispositivo de informação.

De mo do mais informal, o presidente é acom panh ado por personalida

des que constituem de alguma forma seu gabinete particular, seu Estado-

maio r pessoal, com os serviços aferentes, em preg ados e secretários. Esse co n

 junto form a a White House Office. Cerca de dez pessoas com o título de

counselsy de consultants ou de assistants têm um papel tão importante quan

to a confiança que o presidente neles deposita. Evocando o papel de Henry

Kissinger nas negociações de paz no Vietnã, constata-se a influência que

eventualmente podem exercer essas pessoas, que nem mesmo possuem man

dato, mas das quais um presidente sobrecarregado julga necessário se cercar.

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 Nos casos Watergate e  Irangate, constatou -se qu e sua liberdade de ação pode

 pôr em risco a democracia .

3. Finalmente, com o nem todos os serviços estão sob as orden s do Ga

 binete , ex istem apro ximadamente sessenta organismos que consti tu em de fa

to verdadeiros ministérios. Chamados de Office, de  Board  ou de Committee,

eles dependem diretamente do presidente, mas gozam na prática de ampla

independência.

3 . A S u p r e m a C o r t e

A. Composiçãoda Suprema Corte

A Suprema Corte é composta de nove membros nomeados pelo presi

dente com aprovação do Senado que, como vimos, não é automática. A nome a

ção dos juizes perm ite um contro le vigilante po r parte do Senado, pois todas as

 personal idades nomeadas pelo presidente exercerão, sem dúvida, um grande

 poder. Com freqüência, o pro cedim ento de confi rm ação pelo Senado de um

novo juiz dá origem a um grande debate nacional sobre o papel da Corte e so bre o conteúdo de sua política de ju rispru dência . É o que ocorre, princip al

mente, quando um novo juiz impede a formação de maioria e quando uma

questão importante deve ser resolvida. O direito ao aborto ocasionou discus

sões cuja polêmica se acentuo u recentemente com a nom eação de novos juizes.

Entre os membros, o presidente designa o presidente da Corte, o Chief   

 Justice, que exerce grande influência sobre a instituição, tanto em razão de suas

 pre rrogativas no decorre r do procedimento quanto ao prest íg io ligado à fun

ção. Desse modo, designa-se um período na história da Corte pelo nome deseu presidente: a Marshall C our t, a Warren Cou rt.

O presidente am ericano se esforça, po r suas escolhas, em orie ntar a p o

lítica da C orte con forme suas opiniões. Mas ele deve tam bém conside rar ou

tros fatores para não correr o risco de se defrontar com a recusa do Senado.

Evidentemente, ele deve se assegurar, recorrendo a numerosas consultas, de

que as personalidades sondadas são juristas de primeira linha, assim como

deve zelar também para que a composição da Corte reflita alguns traços es

senciais da sociedade americana. É assim que, há algumas décadas, existe um ju iz para cada um dos principais gru pos: os negro s, os ju deus, as mulheres.

Mas o presidente pode p rocu rar u ma personalidade capaz de representar um

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2 6 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

desses grupos e, ao mesmo tempo, compartilhar sua própria visão política.

Foi assim que, em 1991, para substituir um juiz negro liberal, o presidente

Bush escolheu ou tro juiz negro, extrema me nte conservador, que o Senado te

ve de aceitar.

A escolha é de tal forma im porta nte que os juizes são nomeados de forma

vitalícia. De fato, não existe aposentadoria obrigatória e só podem ser demiti

dos por m eio de impeachment , o que nunca aconteceu. Assim, são totalmente

independentes, e freqüentemente ocorreu de assumirem um comportamen

to diferente do esperado. Isso se explica facilmente: me sm o qu e os poderes da

Corte sejam grandes, ela não delibera por si só. A colegialidade, as regras de procedim ento , a ideologia que possuem os juizes, consti tuem em pec ilhos reais

que determ inam , em parte, o con teúdo de suas decisões e que podem , mes

mo, levá-los a m ud ar sensivelmente suas opiniões.

B.CompetênciasdaSupremaCorte

Evolução do controle. - A instituição da Suprema Corte está ligada ao fe

deralismo. De fato, cada Estado tem seu sistema judiciário mas ainda é precisotribuna is pa ra julgar certos litígios que e xtrapolam a alçada dos Estados, co

mo por exemplo, os litígios entre Estados ou os que envolvam os Estados

Unidos, ou seja, o governo federal, como parte. A constituição de 1787 insti

tuiu, assim, uma Suprem a Corte e os tribunais federais.

Entretan to, não lhes foi confiado explicitamente o controle de con stitu

cionalidade. Em 1803, a Suprem a Co rte interp retou a constituição na decisão

 M arbury contra M adison , que resultou em que esse controle poderia ser exer

cido não som ente p or ela, mas po r qualquer juiz. O argu me nto do Ch ief Justice  Marshall foi simples: se não era possível controlar a constitucionalidade

das leis, elas poderiam impunemente violar e refazer a constituição, a qual

não possuiria, assim, nenhum valor superior ao das leis. Desde 1803, a Cor

te, evitando se chocar com o Congresso, fez pouco uso de seu novo poder 

com relação às leis federais e controlou sobre tudo a constitucionalidade das

leis dos Estados. Esse controle lhe permitiu exercer um papel importante na

 produção do direito americano.

Forma e natureza do controle.  - Sabe-se que se trata de um controle

exercido principalmente por via de exceção e de um controle descentraliza

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do. A Suprema Corte não é o único tribunal competente para exercê-lo. Ca

da juiz pode, p or ocasião de qualque r processo, decidir sobre um a questão de

constitucionalidade levantada por uma das partes. A lei aplicável, federal ou

estadual, pode ser afastada se for contrária à constituição federal. A decisão

do juiz nesta questão, denominada “exceção de inconstitucionalidade”, pode

naturalmente ser deferida em recurso a uma jurisdição superior. Em última

instância é a Suprema Corte dos Estados Unidos que será levada a julgar.

Em princípio, a decisão tem um efeito apenas relativo entre as partes.

Dito de outra maneira, a lei julgada inconstitucional não é anulada mas so

mente declarada inaplicável. Entretanto, os tribunais americanos, como osingleses, são forçados pelas decisões precedentes. Outro juiz que tenha em

mãos um caso similar, deverá julgar do mesmo modo. Dessa forma, tudo se

 passa como se a lei tivesse sido anulada. Existe ta m bém um poder de in ju n-

ção que perm ite à Corte orden ar a funcionários que cum pram um ato a res

 peito de um a lei consid era da in const itucio nal. Foi assim que, a partir de

1954, a Corte obrigou as autor idade s a suprim ir a segregação racial nos tran s

 portes e no ensino público.

Fica claro que o poder da Corte não é um simples poder jurisdicional,se com pree nde rm os po r isso o po de r de aplicar as regras gerais preexistentes

aos litígios particulares. De fato, as decisões da Corte em casos particulares

são imediatamente generalizadas, não só pela regra preexistente, mas tam

 bém por outros fatores muito im porta nte s. O prim eiro deles é a necessidade

de interpr etar as disposições constituciona is antes de aplicá-las e a grand e ga

ma de interpretação oferecida à Corte. As disposições da constituição, prin

cipalmente as que concernem ao fun dam ento do direito e que estão contidas

nas emendas, são muito gerais, o que implica serem suscetíveis a várias interpretações e que não existe matéria à qual uma ou outra não possa ser 

aplicada. De acordo com as interpretações dessas disposições, as leis serão

declaradas conform es ou não à constituição. A Corte pode, então, intervir e

formular as regras que regerão a vida do país nos domínios mais importan

tes. Assim, por exemplo, a 14- emenda de 1868, que proclama que todos têm

direito à igual proteção das leis, perm itiu à Corte su pr im ir a segregação racial

em meados de 1950. Foi sobre o fundamento do direito a respeito da vida

 privada ( privacy ), que não figura no texto constitucional, ma s que foi herd a

do do direito inglês, que a Corte autorizou a contracepção e em seguida o

aborto.

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Existe, aliás, a esse respeito uma controvérsia bem viva na doutrina ju

rídica americana e até mesmo na Suprema Corte. Alguns afirmam que inter

 preta ndo am plam ente a consti tuiç ão de 1787, e num sentido bem liberal, a

Corte lhe dá um sentido diferente daquele da do po r seus redatores. Afirmam

que certamente os autores não possuíam a mesma concepção de igualdade

ou de liberdade. Acrescentam que, nu m sistema de mocrático, as regras sobre

a não-segregação ou o abo rto deveriam ser tom adas pelos eleitos do povo, e

não por um pequeno número de juizes nomeados. A esses argumentos, os

 partid ário s de in te rpreta ções mais liberais argum entam que pouco importa

a opinião dos constituintes de 1787, que não possuíam p ode r nem tinham aintenção de associar as gerações futuras e que finalmente produziram uma

obra que evolui. A constituição é considera da viva. Sua significação não é da

da de antem ão, mas d epen de do contexto social e político no qual é aplicada.

Deve assim ser interpretada segundo as necessidades de nossa época. Quan

to ao princíp io d emoc rático, ele é respeitado já que a Corte, graças a um a for

ma específica de deliberação, só exprime a vontad e latente do povo a me rica

no que nem sempre corresponde à opinião pública do m om ento mas que é a

vontade geral. Essa controvérsia tem um alcance incontestavelmente político.A primeira corrente é conservadora; a segunda é liberal. Compreende-se,

nessas condições, todo o alcance das nom eações p ara a Corte.

O pod er da Co rte é reforçado po r várias regras de procedim ento. Assim,

o estilo das decisões tem grand e imp ortânc ia. As decisões dos tribun ais am e

ricanos, especialmente as da Suprema Corte, são muito longas (várias deze

nas de páginas) e contêm mu itos argum entos. Além do mais, são tomada s pe

la maio ria. Até o texto da decisão é escrito po r um ju iz que aju dou a adotá-la.

Mas ou tro juiz da maioria po de ter votado po r razões diferentes das do red ator e poderá levá-las ao conhecim ento dos outros num parecer chamad o con

corrente. Por sua vez, os juizes da minoria têm a faculdade de justificar sua

atitude num  parecer dissidente. Todas são publicadas simultaneamente à pró

 pria dec isão e contribuem para fom enta r o debate ju rídic o e polí tico no meio

 ju ríd ic o e no país em geral. Assim, a Corte contrib ui para a formação de uma

cultura jurídica domina nte.

Por ou tro lado, a Corte tem o po der de filtrar as petições e de definir as

questões sobre as quais vai decidir. A cada ano, milhares de de ma nda s qu e são

levadas para serem julgadas dizem respeito às mais diversas matérias, mas só

cerca de uma centena delas será examinada. Tudo acontece como se a Corte

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 pudesse ela mesma apoderar-se dos casos sobre os quais ju lga te r poder nor

mativo.

O próprio federalismo permite à Corte exercer um poder ao mesmo

tempo importante e pouco visível. Grande parte de suas decisões diz respei

to às leis dos Estados de m od o q ue as questões colocadas se apresentam co

mo relativas à competência dos Estados mesmo para as questões de fundo.

Assim, quando a Corte decide que uma lei de um estado sobre a pena de

morte está de acordo com a constituição, essa decisão não eqüivale, nem de

direito nem de fato, ao estabelecimento da pena de morte. Ela significa sim

 ple sm ente que um Estado pode estabelecer a pena de morte sem violar aconstituição, m as ele não é obrigad o a isso. Na realidade, o resultado é o me s

mo qua ndo a Corte decide, por exemplo, que os Estados não possuem com

 petência para pro ib ir o uso de contraceptivos.

Finalmente, se a Corte pode conten tar-se em declarar que a lei está con

forme ou con trária à constituição, pode também orde nar as medidas que jul

ga necessárias para a execução dos princípios constitucionais. O “ busing”

constitui um bom exemplo de tais práticas. Após a Corte ter decidido que a

segregação racial nas escolas era contrária à constituição, as escolas públicastiveram de aceitar a inscrição de todas as crianças, sem distinção de raça. Foi

 preciso m uito mais para que a não-segregação se to rn asse real. Na realidade,

as crianças eram inscritas nas escolas da sua vizinhança, onde a popu lação ou

era inteiramente negra ou inteiramente branca. A Corte decidiu então que as

crianças deveriam ser trans po rtada s po r ônib us de tal maneira que as escolas

fossem realmente integradas.

O governo cios juizes? - Diante de tais poderes, pode-se pensar que os ju izes não se limitam a exercer um a com petência jurisdicional, mas que governam.

A expressão “governo de juizes” não foi inventada pela do utri na americana,

mas por autores franceses (L a m b e r t , 1921). Entretanto, traduz o sentimento

de muitos autores e atores da vida política americana, diante da quantidade

e da importância das matérias regidas pela jurisprudência da Corte. Na ver

dade, o fenôm eno assume dimensões im portantes qu and o a política de juris

 prudência da Corte vai contra a opin iã o pública ou a polí tica das outras au

toridades federais.

A fórmula pareceu particularmente opo rtuna no m om ento d o New Deal,

quando a Corte tentou se opor à política legislativa do Presidente Roosevelt

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decidindo que a legislação social protetora era contrária à constituição. A re

sistência da Corte só foi quebrada pela ameaça de uma revisão constitucional

ou do au m ento d o n úm ero de juizes que poderiam ser objeto de lei ordinária.

O caso é outro quan do a Corte não tem um a política autônoma mas suas de

cisões traduzem um a política que correspo nde às tendências profundas da op i

nião, que r dizer, à vontade geral e que só pode ser condu zida por ou tros meios,

 por exemplo, pela luta contra a segregação racial ou a liberalização do aborto.

Constata-se depois de algum tempo uma inflexibilidade da política da

Corte, que desde a década de 1950 esteve profun dam ente e m penh ada na pro

teção e na garantia das liberdades e direitos individuais. Esse liberalismo semanifestava em vários domínios: o direito penal, a proteção da vida privada

(direito à contracepção e ao aborto), a liberdade de expressão, a luta contra

as discriminações. Ele se traduzia não somente pela proibição de medidas

que atentassem contra as liberdades mas também, como visto pelo exemplo

do busingy pela prescrição de medidas apropriadas para garantir o exercício

efetivo dos direitos (affrrmative action). Ao mesmo tempo, como essa políti

ca de jurisprudência repousava sobre uma interpretação da constituição fe

deral, ela necessariamente significava um enfraquecimento da autonomiados Estados.

Desde o início da década de 1970, a Corte renunciara à jurisprudência

liberal sobre a pena de morte. Essa tendência conservadora se acentuou na

seqüência das nom eações efetuadas p or Reagan e Bush. Desse mo do é que ela

reconhece, muito mais que no passado, a competência dos Estados em regu

lar matérias, antes consideradas reguladas pela constituição federal, e inter

 pre ta de maneir a mais rest ri tiva que no passado a disposição consti tu cional

que dá ao C ongresso o pod er de regular o com ércio entre os Estados (ver in  fra e R o s e n f e l d , 1999).

Seção2

As relações políticas

1. O FEDERALISMO

Contrariamente ao que é constatado em alguns outros países, o federa

lismo americano é uma realidade e, embora tenha tido um desenvolvimento

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 bastante centralizado, gra nde parte das decisões po lí ticas im portante s é to

mada no âm bito estadual.

Isso se explica pela história: o Estado federal americano constituiu-se

 pela ag regação de Estados , que acabavam de pro cla mar sua in dependência e

não pensavam em renunciar a ela mas, ao contrário, procuravam mantê-la

através da união. Foi por isso que a constituição conferiu aos órgãos federais

somente uma competência de atribuição e deu-lhes somente poderes que

não po der iam ser exercidos de maneira eficaz no âm bito restrito dos Estados:

as relações exteriores e a guerra, a moeda, o comércio internacional ou inter

estadual. A décima em enda , adotada em 1791, determ inava até que os pod eres não expressamente a eles delegados eram reservados aos Estados, que

conservavam desse mod o uma competência de direito com um . Foi tamb ém

 por essa razão que, na origem, os senadores eram designados não pelos cid a

dãos m as pelas legislaturas dos Estados, que ca da Estado d ispun ha de dois se

nadores e que o Senado estava apto a se opor a qualquer aspecto da política

federal, quer tenha a forma de leis ou de decisões do presidente.

 No enta nto , os poderes federais pre senciaram um cresc im en to espetacu

lar. O primeiro fator desse crescimento foi, a partir da guerra de Secessão, anecessidade de dar aos órgãos federais instrumentos jurídicos para enfrentar 

as crises, cada vez mais freqüentes à medida que aumentava a influência dos

Estados Unidos no mu ndo . Ao mesm o tem po, a necessidade de equipar e trei

nar um exército imenso lhes dava os meios de intervenção econômica. Ao

mesm o tem po, era o Estado federal que tinha a responsabilidade da conqu is

ta e da adm inistração dos novos territórios do Oeste. Por outro lado, a própria

constituição continha a possibilidade de interpretação extensiva: conferia aos

órgãos federais certas competências que lhe viabilizavam exercer outras. Assim, o poder de cunhar moeda conduz à determinação de uma política eco

nômica e monetária. Do mesm o m odo, o poder de regulamentar o comércio

entre Estados, o “commerce c lause\ pode implicar a regulamentação da pro du

ção das me rcado rias que faziam parte desse comércio e, assim, a legislação em

matéria social. Todavia, a Suprema Corte recentemente recusou estender a

commerce clause a outros dom ínios. Foi assim que se considerou que um a lei

que limitava o porte de armas na proximidade das escolas excedia os limites

dessa disposição e, conseqüentemente, contrariava a constituição. Enfim, o

 poder do Congresso de coletar os im posto s significa que possui enormes re

cursos financeiros que pode em parte redistribuir em forma de subvenções,

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2 7 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

mas sob a condição de que os Estados e outras coletividades beneficiadas se

con form em a certos princípios políticos.

O direito constitucional dos Estados. - Cada um dos cinqüenta Estados

tem sua própria constituição. Algumas delas são muito antigas. A de Massa-

chussetts, por exemplo, anterior à constituição federal, é hoje a mais antiga

das constituições escritas em vigor no mundo. Aliás, em parte, inspirou os

Founding Fathers. Além disso, a autonomia constitucional dos Estados não

condu ziu a um a grande diversidade porque cada constituição de Estado de

ve respeitar a constituição federal e també m em razão da grande ho mo gen eidade política e cultural do povo americano. Assim, cada Estado possui um

 parla mento bicamera l e um governador que dispõe de poderes semelhante s

aos do presidente federal. Suas relações são tam bém do me sm o tipo: o gover

nad or po de dissolver as câmaras e não p ode ser derru ba do po r elas. Uma ca

racterística comum a numerosos Estados é o desenvolvimento de elementos

da dem ocracia semidireta: m an da to imperativo, referendo, eleição dos juizes

e de numerosos funcionários. Assim, a vida política em nível estadual e em

nível local é extremamente rica e participativa.

2. AS RELAÇÕES ENTRE OS ÓRGÃOS

Fica bastante claro que a expressão “separação de poderes”, empregada

 para cara cte rizar o sistem a consti tu cio nal ameri cano, é de fato inadequada

considerando que designa um sistema no qual as autoridades são ao mesmo

tempo especializadas e independentes. As autoridades federais americanas

não são nem especializadas nem independentes. Não são especializadas por

que participam das três funções do Estado: o presidente na função legislati

va, o Congresso na função executiva e a Suprema Corte na função legislativa.

Também não são independentes pois, se a constituição não organiza nem a

dissolução nem a responsabilidade política, é claro que cada u m a dispõe, em

relação à outra, de meios de ação poderosos. Estes resultam primeiramente

do fato de não serem especializadas: o presidente po de influenciar o Co ngres

so pelo veto, o Senado p ode agir sobre o presidente po r seu p ode r de confir

mação. Mas, por outro lado, diferentes meios podem ser empregados em ca

so de crise grave. O Congresso po de pression ar a Suprem a Co rte u m a vez que

a constituição não determina o número de juizes e, dessa forma, o Congres

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so pode ameaçá-la com o au me nto do n úm ero de juizes para influenciar a ju

risprudência. Pode também, como fez com Nixon, obrigar o presidente a re

nunciar ameaçand o-o com o impeachment. Provavelmente é preciso uma cri

se maior, mas se ocorrer, o Congresso terá meios de superá-la. O espantoso

não é que a crise se apresente, mas que seja tão rara.

A principal explicação pode ser encontrada pelo sistema de partidos

americanos, profundamente diferentes dos europeus. Não possuem uma es

trutu ra forte, um verdadeiro program a nem mesm o disciplina, mas são sobre

tudo máquinas eleitorais. Os eleitos são personalidades fortes que se definem

caso po r caso em função de suas convicções ou de seus própr ios interesses, detal forma que as maiorias no Congresso são muito fluidas. Um presidente re

 publicano pode governar muito bem se o Congresso tiver maio ria democra ta

e é pouco provável que se forme um grup o suficientemente hom ogên eo e de

termin ado p ara se op or de m aneira durável ao presidente a ponto de destituí-

lo. Compreende-se que o sistema constitucional americano dificilmente seja

adaptável e que todas as tentativas que foram feitas para nele se inspirar con

duziram a modos de funcionamento inteiramente diferentes, seja porque o

Congresso não domina o presidente como no Chile no século XIX, seja porque, solução m ais freqüente, o presidente faz uso de pressões diversas, prin ci

 palm ente militares , para obte r poderes especiais.

O equilíbrio constitucional americano resulta então não da separação rí

gida dos poderes, mas, ao contrário , da ausência de tal separação. Entretanto, o

equilíbrio significa que nenhum órgão poderia duradouramente dominar os

outros, mas tamb ém que, em diferentes épocas, um deles parece p redo min an

te. A expressão “sistema presidencial” designa o sistema tal como funciona

qua ndo a conjuntu ra política dá essa preeminência ao presidente, enquan to emoutras épocas, ou sob outros pontos de vista, pode-se falar com muita perti

nência de governo dos juizes ou de governo congressional. É provável que se possa

notar mais recentemente maior coesão ideológica, principalmente entre os re

 publ icanos. Ela pode tornar mais difíceis as relações da maio ria republicana no

Congresso com um presidente democrata. Contudo, essa situação não se pare

ce minimamente com a coabitação à francesa e o presidente dispõe de meios

suficientes para imp or comprom issos, enqu anto a maioria do Congresso não é

suficientemente homogênea nem mu ito determ inada para ten tar destituí-lo.

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CApÍTlllo

OSANTIGOS REGIMESSOCIALISTAS

ESUATRANSFORMAÇÃO

Desde sua fundação , que da ta da Revolução Russa de 1917, até o fim da

década de 1980, o regime soviético se apresen tou c om o a antítese dos regimes plu ra listas ociden ta is . Esse regime podia de fato ser consid era do como um a

monocracia partidária. Desde 1917, o poder havia sido confiscado por um

 partido único , o Partido Com unista da União Soviética (PCUS). Excluía-se a

 poss ib il idade de alternância devido à a usência de oposição legal. Podemos d i

zer que se tratava de uma monocracia “popular”, com o PCUS sendo supos

tamente o representante das camadas mais trabalhadoras da população, mas

ainda assim um a m onocracia (B u r d e a u , tom o IX). O regime soviético po de

ria ainda ser classificado com o totalitário pois o PCUS não se contentav a somente em gerenciar a sociedade mas propunha uma remodelação completa

segundo as exigências de uma doutrina, o marxismo-leninismo.

Após a Segunda Guerra Mundial, regimes fortemente inspirados nesse

modelo foram instalados em certo número de países, por pressão das forças

armadas soviéticas (Polônia, Checoslováquia, Alemanha do Leste, Hungria,

Romênia, Bulgária) ou n a con tinuaç ão de revoluções autóctones (Iugoslávia,

Albânia, China, Coréia do Norte, Vietnã, Cuba). Em 1985, havia cerca de

quinze regimes comunistas que agrupavam cerca de 40% da pop ulação m un

dial. Mas, em meno s de cinco anos, de 1986 a 1990, o cená rio po lítico foi pr o

fundam ente modificado.

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2 7 8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

Hoje, o regime socialista desmoronou em toda a Europa. Não se trata

de simples mudança constitucional, mas de modificações revolucionárias

que afetam a econom ia, o sistema de valores, as concepções do m un do ; resu

mind o, o con junto do sistema social. No que diz respeito estritam ente ao d i

reito constitucional, é preciso notar que hoje estamos diante de um fenôme

no sem precedentes. A novidade se deve a duas características; a primeira é

quantitativa: an teriorme nte jamais se teve notícia de tanto s Estados envolvidos,

ao mesmo tempo, no empreendimento de dotarem-se de uma constituição.

A segunda diz respeito ao alcance da emp reitada: o processo constituinte tem

 por obje to não só a org anização do poder polí tico conforme as concepçõesda democracia liberal mas também a reforma de toda a sociedade e princi

 palm ente a passagem de uma economia socialista para a economia de merca

do. Tem-se a medida da amplitude dessas transformações quando se exami

na o regime socialista da maneira como func iono u até 1985 e depois a situação

atual dos Estados da Europa central e oriental.

Seção 1

0 regimesocialista

1.A URSS

Os fun da m en tos ideológicos. - De acordo co m a filosofia marxista, o Es

tado é u m aparelho de coação a serviço da classe dom inan te. Sua existência

está ligada à divisão da sociedade em classes e se esperava que ele desapare

cesse quando a revolução proletária pusesse fim a essa divisão. Assim, Marxnão propôs nenhum sistema constitucional no qual tivesse exposto a aplica

ção de suas idéias. Entretanto, havia indicado que, entre a sociedade capita

lista e a sociedade comunista, colocava-se um período de transição no qual

“o Estado não poderia ser outra coisa que uma ditadura revolucionária do

 proleta ria do” mas sem determ in ar a duração ou a forma dessa ditadura .

A evolução histórica da Revolução Russa de ou tub ro de 1917 mo strou

que a idéia do aniqu ilamento do Estado era no m ínimo prema tura. Os bol-

cheviques vitoriosos logo percebera m q ue um Estado forte era indispensável,não só para defender o novo regime contra os inimigos internos e externos,

mas também para reorganizar a economia e a sociedade na direção

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Os A n t ig o s R egim es S o c ia lis ta s e s u a T ra n s fo rm a ç ã o 2 7 9

da. O fim do Estado foi deixado assim para um futuro indeterminado, a con

denação do poder foi, portanto, trocada pela sua exaltação. Dizia-se que de

fato, esse pod er não tinha n ada em co m um com o da sociedade burguesa; vis

to como poder real do povo, supunha-se que estava isento das usurpações

que m arcam o pod er na sociedade capitalista; por ou tro lado, sua legitimida

de estava fundada sobre a amplitude da obra que deveria realizar: a edifica

ção da sociedade socialista. Tal poder não podia ser perigoso para as liberda

des e assim, não era questão limitá-lo, dividindo o poder como preconiza a

do utrina constitucional das dem ocracias burguesas. Ao contrário, os meca

nismos constitucionais deveriam permitir a unificação do poder do Estado para que pudesse comple tar su a missão com a maior eficiência possível.

 A organização constitucional. - Desde sua origem até 1977 con tam-se se

te constitu ições soviéticas. A primei ra, adota da em 1918, só concernia à Repii-

 blica da Rússia. As seguintes, datadas respec tivamente de 1924, 1936 e 1977

concerniam ao conjun to das repúblicas que formavam a URSS que era, ao m e

nos em teoria, um Estado do tipo federal. Essas mudanças con stitucionais não

correspondiam , como é freqüentemente o caso no ocidente, a mud anças de regime político, apenas indicavam a passagem para um novo estágio rumo à so

ciedade socialista. A constituição stalinista de 1936, por exemplo, certificava a

liquidação das antigas classes exploradoras e colocava fim à ditadu ra do prole

tariado def inindo a URSS como um Estado socialista dos operá rios e dos cam

 poneses (art. Io). Na const ituição de 1977, a sociedade soviética é qualificada

de “avançada” e a URSS é redefinida como “o Estado de todo o povo, expr imin

do os interesses da classe operária, dos cam poneses e da intelligentsia” (art. Io).

Mas tratava-se somente de nuanças e as grandes linhas da organização constitucional não variaram muito. Pode-se resumi-las em três pontos:

1. A constituição lem bra que o sistema econôm ico é baseado na p rop rie

dade coletiva dos meios de produção e define as formas dessa propriedade:

 propriedade de Estado, proprie dade coopera tiva (p rincip alm ente os colco-

ses), pro pried ade dos sindicatos e outras organizações sociais.

2. Os direitos fundamentais reconhecidos dos cidadãos são analisados

com o a possibilidade de obter do Estado e da sociedade certas vantagens con

cretas: direito ao trabalho, ao repouso, à proteção da saúde, à aposentadoria

etc. São apresentados como indissociáveis dos deveres que tendem a manter 

ou a reforçar o regime socialista.

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2 8 0 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

3. Em cada nível (nacional, das repúblicas ou local), o órgão princ ipal é o

soviete, termo que pode ser traduzido por “conselho” mas que, após os aconte

cimentos de 1905 e 1917, adquiriu uma conotação revolucionária. Os mem

 bros dos sovietes são eleitos pe lo sufrágio universal di reto. Mas são presumida-

mente mais próximos das bases do que seriam os representantes do povo n um a

assembléia burguesa, em primeiro lugar porqu e não deixam de exercer uma ati

vidade profissional e, em segundo lugar, porque são titulares de um mandato

imperativo que os mantém sob o controle permanente de seus eleitores.

O órgão superior do poder de Estado da URSS é o Soviete Supremo. É

formado por duas câmaras, o Soviete da União e o Soviete das Nacionalidades, que são compostas por igual número de deputados (750). O Soviete da

União representa a totalidade da população soviética. O Soviete das Naciona

lidades representa as repúblicas federadas bem c om o as entidades territoriais

de nível inferior (repúblicas autônomas, regiões autônomas, distritos autô

nomos). O Soviete da União e o Soviete das Nacionalidades têm poderes

iguais. Podem se reun ir em seções comu ns ou separadas.

O Soviete Supremo tem competência para julgar todas as questões que

dependem da União. Além disso, designa os outros órgãos superiores do poder do Estado que são responsáveis perante ele e que ele pode em princípio

revogar, a qualquer momento. Esses órgãos são os seguintes:

- O Praesidium do Soviete Supremo, que possui cerca de trinta mem

 bros e que exerce cole tivamente as pre rrogativas de um chefe de Estado.

- O Conselho dos M inistros da URSS que conta com mais de um a cen

tena de me mbro s. É o governo do país. Assegura principa lmen te a economia

nacional.

- A Suprem a Co rte da URSS, que supervisiona a atuação do co njun todos tribunais.

- O P rocu rado r da URSS, que cuida da aplicação estrita e unifo rme das

leis.

 Na teoria, os poderes do Soviete Supremo eram mais im portante s que

os de um parlamen to nu m a democracia burguesa, porque n ão estavam sujei

tos às regras da separação dos poderes. De fato, seu papel era quase pu ram en

te formal; reunia-se alguns dias do a no e delegava o essencial de suas atrib ui

ções ao Praesidium ou ao Conselho dos Ministros. Finalmente, o verdadeiro

centro do poder político se situava no Partido Comunista da União Soviéti

ca (PCUS) e não em algum órgão eletivo.

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Os A n t ig o s R egim es S o c ia lis ta s e s u a T ra n s fo rm a ç ã o 281

 A monocracia par tidária. - Segundo Lenin, o fun dad or do regime sovié

tico, os operários não podem espontaneamente ter a consciência revolucio

nária. Esta só chegaria até eles se fossem en qua drad os, o rientad os e contro la

dos por um partido de vanguarda dirigido por revolucionários profissionais,

e só adm itindo em seus postos a elite do p roletariado. O Partido Bolchevique,

criado em 1903 após a cisão do Partido Social-democrata russo, correspon

dia bem à definição. Apoiado nos comitês dos operários e dos soldados (os

 primeiros sovietes), o Partido Bolchev ique conseguiu chegar ao poder em

novembro de 1917 após uma insurreição. Invocando a necessidade de uma

disciplina rigorosa, para vencer a contra-revolução, elimina em alguns mesesqualquer formação política. Renomeado partido comunista em março de

1918, tornou-se o partido único atribuindo-se o monopólio da propaganda

e da atividade política que conservou até 1990.

Curiosam ente, as duas prim eiras constituições soviéticas não m enc iona

vam a existência do pa rtido. O art. 126 da con stituição de 1936 veio preen cher 

essa lacuna: “Os cidad ãos m ais ativos e conscientes da classe operária se unem

no Partido Comunista da URSS, vanguarda dos trabalhadores na luta pelo

fortalecimento e desenvolvimento do regime socialista e núcleo dirigente detodas as organizações de trabalhadores, tanto sociais quanto estatais”.

A constituição de 1977 (art. 6o), por sua vez, era muito mais elogiosa:

“O PCUS é a força que dirige e orienta a sociedade soviética, é o elemento

central de seu sistema político, das organizações do Estado e dos organism os

sociais. O partido comunista, inspirando-se na doutrina marxista-leninista,

define a perspectiva geral do desenvolvimento da sociedade, as orientações

da política interna e estrangeira da URSS, dirige a grande atividade criadora

do povo soviético, confere um caráter planificado e cientifico fun dado na sualuta pela vitória do comunismo”.

O PCUS, contando com 19 milhões de membros e empregando um

grand e nú m ero de pessoas, era de fato o centro no dal de tod a a sociedade so

viética. Selecionava os candidatos às eleições que funcionavam de acordo

com o sistema de candidato único. Escolhia as pessoas providas a qualquer 

 posto de re sponsabil idade da admin is tr ação e das em presas (s is tema de  No- 

menklatura). Enfim, controlava do interior todas as organizações sociais des

de os movimentos de juventude (Komsomols) até os sindicatos profissionais.

Assim, mesmo os cidadãos não-m em bros do pa rtido se encontravam enq ua

drad os e sob sua responsabilidade.

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2 8 2 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

A organização do partido é piramidal. Na base da pirâmide, encontra-

se o Congresso que, teoricam ente, é o órgão supre mo e que deve definir a p o

lítica do partido mas não é um órgão permanente. No seu interior existe um

Com itê Central com posto p or 200 a 300 m emb ros que dirigirá o partido en

tre dois congressos. O Com itê Central só se reúne em formação plenária um a

dezena de dias no ano. É por isso que, po r sua vez, designa os organism os res

tritos encarregados de executar o trabalho em curso e aos quais é delegada

uma parte de suas atribuições. Trata-se da secretaria política (Politiburo) 

composta de 10 a 25 membros e do secretariado que é composto de um se-

cretário-geral e vários adjuntos. De fato, esses dois órgãos, localizados no to po da pirâmid e, dir ig em o parti do e o Estado. O secre tá rio-g era l é o verd a

deiro chefe do governo soviético que nem sempre possui o título. Todavia,

após a morte de Stalin (1953), em reação ao culto da personalidade, deu-se

relevância à necessidade de uma direção coletiva, o que conduziu a um au

mento da influência exercida pela secretaria política e o Comitê Central. Em

1964, o secretário-geral, N. Kruchev, foi demitido de suas funções pelo Co

mitê Central.

O funcion amen to interno do p artido era regido pelo princípio d o “cen-tralismo democrático”. A democracia era, teoricamente, garantida pela elei

ção de todos os organismos dirigentes do partido, da base ao topo, e pela

obrigeiçâo desses organism os de prestar contas p eriodica men te das atividades

 perante as instâncias que os elegeram . Mas a centralização implicava num a

disciplina rigorosa, na subord inação da m ino ria à maioria e na obrigação es

trita dos organismo s inferiores de aplicar as decisões dos organism os sup erio

res. De fato, esse sistema levava ao esvaz iamento, em substânc ia, das au to no

mias locais, pois os dirigentes das repúblicas eram obrigados a respeitar asdiretrizes do partido, mesmo em questões que, segundo a constituição, pu

dessem dep end er da com petência dessas repúblicas. Por ou tro lado, a centra

lização vedava aos militantes reagrup arem -se p or tendên cias ou correntes de

tal forma que nunca ocorriam disputas internas no partido por ocasião de elei

ções e, assim, os candidatos apoiados pelo partido eram automaticamente

eleitos ou reeleitos. A composição dos órgãos dirigentes do partid o (Com itê

Central, Politiburo, Secretaria Geral) só se renovavam lentamente. Daí a ten

dência ao imobilismo e à gerontocracia. De 1922 a 1982, o posto de secre

tário-geral do PCUS fora ocupado por quatro titulares: Stalin (1922-1953),

Malenkov (1953), Kruchev (1953-1964), Brejnev (1964-1982); os dois suces

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Os A n t ig o s R egim es S o c ia lis ta s e s u a T ra n s fo rm a ç ã o 2 83

sores de Brejnev, Andropov (1982-1984) e Tchernenko (1984-1985) tinham

respectivamente 68 e 73 anos.

Con tudo, p or ocasião da mo rte de Tchernenko em 1985, o Com itê Cen

tral escolheu como sucessor o novato da equ ipe dirigente, Mikhail Gorbatchev,

com somente 54 anos.

2. AS DEMOCRACIAS POPULARES

O regime das democracias populares foi imposto pelas circunstâncias.

Mais tarde, os teóricos se esforçaram para m ostra r sua originalidade.De 1945 a 1948 dois fatos com andaram o estabelecimento desse regime.

De um lado, a presença do exército russo da liberação e o brilho que assegu

rava à ideologia m arxista (exceto pa ra o caso da Iugoslávia, onde o povo se li

 berou sozinho); por outr o lado, a existência de uma estrutu ra social e de uma

mentalidade política que impedia a realização imediata de um a revolução com u

nista. Dura nte essa primeira fase, concebida pelos componentes mais progressis

tas com o um a transição en tre a democ racia burguesa e o sistema coletivista,

as instituições se revestiam ainda de um caráter misto. No plano econômico,a reform a agrária é realizada, eliminam -se as influências capitalistas estrange i

ras, mas m an tém -se o direito à prop riedad e. Ao lado do se tor estatizado, o se

tor privado ainda é imp ortante. N o plano constitucional, idealiza-se um co m

 pro misso entre o sistema soviético e as institu ições parlamenta res do ocidente.

Uma variedade de fórmulas se escalona, entre a Iugoslávia, cuja constituição

de 1946 é inspirada na da URSS, e a Checoslováquia, que continua formal

mente ligada ao parlam entarism o tradicional.

Por trás dessa fachada o Partido Comunista reforça suas posições en

qu adra nd o as vontades populares em “blocos” ou em “frontes” por ele do m i

nados, mas onde figuram as antigas formações burguesas doravante privadas

de qualquer influência. Do mesmo modo, atrás da aparente fidelidade às re

gras clássicas de formação dos governos e que traduz a constituição de m inis

térios de coalizão, os comunistas asseguram a autoridade paralisando os mi

nistros que desobedecem ou suscitando resistências na população.

A pa rtir do final de 1947, o fato de term ina nte da segunda fase do gover

no soviético é a ruptura com os antigos aliados ocidentais. Tendo sido im

 pla nta dos os in strum entos de orienta ção com unis ta no perío do precedente ,

o estabelecimento da ditadura do proletariado foi mais fácil. Os três traços

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característicos dessa política então se afirmaram: exclusão do pluralismo das

forças políticas, portanto da oposição, hegemonia do partido, concentração

do poder. Uma nova série de constituições veio então consagrar essa evolu

ção reproduzindo mais ou menos fielmente o sistema governamental sovié

tico. Com exceção da Iugoslávia e da Albânia, as demo crac ias popula res esta-

vam ligadas à URSS por um tratado de aliança militar (o Pacto de Varsóvia)

e por um tratado de cooperação econômica (o Comecon).

 No entanto , as tradições políticas e cultura is desses países era m profun

damente diferentes das da União Soviética. Enquanto a Rússia em 1917 pas

sara quase sem transição da autocracia czarista à ditadura do proletariado, aPolônia, a Alemanha do Leste, a Checoslováquia e a Hungria haviam pratica

do, em períodos mais ou menos longos, as instituições da democracia liberal

e essas experiências não haviam se apagado com pletame nte da me mó ria cole

tiva. Em certos países como a Hungria e sobretudo a Polônia, a Igreja Católi

ca Romana co nservara um a grande influência. Apesar de sua incorporaçã o ao

 bloco do Leste, esses povos se sentiam mais pró xim os das democracias oci

dentais do que do grande irmão soviético. Como escreveu Milan Kundera,

“para os húngaros, os checos e os poloneses a palavra Europa não representa...um fenômeno geográfico mas uma noção espiritual que é sinônimo de oci

den te”. Imp osto pelas circunstâncias, o regime de dem ocracia p opu lar nu nca

foi bem aceito. Foi assim que na Hungria em 1956 e na Checoslováquia em

1968 ele só se manteve pela intervenção brutal do exercito soviético.

3. OS SINAIS DA DETERIORAÇÃO

O totalitarismo. - Esse termo designa um sistema político no qual o p oder está não só concentrado nas mãos de uma minoria e é exercido de modo

autoritário, mas age sobre todas as esferas da vida.

O poder soviético afastava evidentemente, em nom e da ideologia marxis

ta, as regras fundamentais d o constitucionalismo, qualificado com o burguês. As

sim, a separação dos poderes era interpretada com o destinada a organizar uma

divisão do poder entre várias classes sociais e foi rejeitada às vésperas da revolu

ção, pois o proletariado deveria exercer a ditadura sobre a burguesia, a socieda

de havia se tornado de todo o povo e não comportava mais classes. Da mesma

forma, a multiplicidade de partidos políticos que refletia a estrutura de classes

da sociedade não p oderia ser tolerada. Qu anto às liberdades e garantias fund a

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mentais, proclamadas e garantidas nos sistemas ocidentais, afirmava-se que

eram formais, um a vez que aqueles que não possuíam meios financeiros e m a

teriais, delas não poderiam usufruir. Ao contrário, o regime socialista propicia

va as liberdades e direitos reais, ou seja, dispunha-se a colocar à disposição dos

cidadãos os meios m ateriais necessários ao exercício de certas atividades.

Por outro lado, sempre, de acordo com a ideologia socialista, na socie

dade burguesa o homem é alienado. Essa alienação é devida à estrutura de

classes da sociedade. Ao contrário, numa sociedade sem classes, a alienação

deveria desaparecer dando lugar ao nascimento de um novo homem. Isso

 just if ica o enquadram ento dos in div íd uos desde o nascim ento até a morteem organizações de massa e a educação doutrinária constante.

Ao mesmo tempo ficava justificada a repressão exercida contra os que

 professavam ou eram su speitos de professar ponto s de vista diferen tes. O

marxismo era, de fato, apresentado não como uma ideologia mas como uma

ciência, como uma teoria que era tão verdadeira quanto uma teoria física. A

oposição política é assim vista como um erro que deve ser corrigido e com

 batido. Se esse erro tem como efeito obsta r o enfraquecim ento do Estado e

do direito e o aparecimento do novo hom em, ele se torna um criminoso e deve ser tratad o com o tal.

 Na prá tica , a susp ei ta perm anente e o te rror não im pedir am o desenvol

vimento das idéias democráticas que se exprimiram de várias maneiras. A

União Soviética e várias repúblicas populares assinaram os acordos de Hel-

sinki que consagravam um certo número de liberdades fo rm ais. Os dissiden

tes soviéticos ou checos, em nome desses acordos, reivindicaram, às vezes

com sucesso, o exercício dessas liberdades. O direito se revelava não só uma

sup erestru tura mas u m a alavanca eficaz. Na Polônia, foi a ação de um sindicato ilegal, Solidarnosc, apoiado pela poderosa Igreja Católica, que con tribuiu

 para a pro pagação das idéias democrá ticas.

O imperialismo russo. - Após a Revolução, o novo poder, para solucio

nar o problema da multiplicidade de povos submetidos ao império czarista,

recorreu a um a solução federal de aparência m uito radical. Cada um a das re

 públicas teria direito de se dotar de um a consti tu iç ão e dos órgãos habituais

de um Estado. Tinham o direito ao reconhecim ento de suas competências in

ternacionais e até o direito à secessão. Na prática, como vimos, o Partido Co

munista tinha condições de controlar todos os órgãos das repúblicas tanto

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2 8 6 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

quanto os da União de tal forma que o sistema era totalmente centralizado e

que as repúblicas eram escalões de execução. Suas competências internacio

nais estavam assim a serviço do PCUS e, quando a Ucrânia e a Bielo-Rússia

tiveram, cada um a, um a cadeira na O NU, isso significou simplesm ente que a

URSS possuía três cadeiras em vez de uma.

O federalismo que deveria perm itir o desenvolvimen to das culturas n a

cionais servia, de fato, ao PCUS. Na realidade, eram os russos que domina

vam o partid o e o faziam, também , de ou tras maneiras: de mo do positivo pe

la fixação da po pulação russa em todas as repúblicas onde formavam , e ainda

formam, minorias importantes e através da nomeação de russos na chefiados órgãos dirigentes das repúblicas; de modo negativo, pelo deslocamento

de população das repúblicas para regiões longínquas, pela luta contra as lín

guas nacionais e contra as práticas religiosas.

O imperialismo russo manifestava-se também fora da União Soviética,

nas democracias populares onde existiam bases militares importantes e on

de, conform e a d ou trina oficial cham ada do utri na Brejnev, a URSS se reser

vava o direito de intervir pela força caso pensasse que o socialismo corria pe

rigo.Essas práticas não fizeram desaparecer nem o sentim ento religioso nem

o nacionalismo. O enfraquecimento do poder central será, para todos os na-

cionalismos, a oportunidade de se manifestar de maneira vigorosa.

 As dificu ldades econômicas. - Acima de tudo, serão as terríveis dificulda

des econômicas sofridas por esses regimes que determinarão sua queda. Por 

causa da estatização do sistema de produção e distribuição, como também

 pelos enormes gastos militares , esses países não conseguiam sair da si tuaçãode penúria, ainda mais insuportável quando o desenvolvimento moderno

das comun icações deixou transp arecer o nível de vida atingido pelas po pu la

ções dos países ocidentais.

 Na meta de da década de 1980, múlt ip la s fontes de oposição e resis tên

cia se mostravam, às vezes abertas e na maioria das vezes latentes, da parte

dos liberais, dos nacionalistas, dos religiosos e de todos aqueles que aspira

vam a uma vida melhor. Mas o principal motor das mudanças parece ter si

do a impossibilidade econômica e financeira de seguir com a corrida arma-

mentista imposta pela guerra fria, cujo custo tornara-se muito elevado. Os

dirigentes iniciaram então uma política de recuo externo e de desenvolvi

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Os A n t ig o s R egim es S o c ia lis ta s e s u a T ra n s fo rm a ç ã o 2 8 7

mento econômico interno, mas esses objetivos implicavam por si só uma li

 bera lização política m ín im a e, além disso, profundas re fo rmas de estr utu ra.

Seção 2

Astransformaçõesdepoisde 1985:

da Perestroika ao desmoronamento da URSS

1. A P e r e s t r o i k a

Perestroika (reestruturação). - O termo, que foi escolhido por Mikhail

Gorbatchev, secretário-geral do PCUS eleito em 17 de março de 1985, resumia

o espírito geral das grandes reformas que desejava promover. Originalmente

não era questão de aband on ar o socialismo, nem m esmo modificar pro fun da

men te o sistema político. O objetivo da Perestroika era aprimorar o funciona

mento da economia soviética eliminando toda a rigidez burocrática que ha

via, até então, desacelerado o desenvolvimento. Assim, M. Gorbatchev

 preconizava o pla neja mento mais suave, o preço real, a part ic ipação dos tra balhad ores na gestão das empresas , o escalonamento das remunerações em

função dos resultados ob tidos e o estabelecimento de relações diretas entre fa

 bricante s e consumidores. Na ve rdade a idéia de conci liar as vantagens da eco

nom ia socialista e a economia de m ercado não era m novas. Apresentavam al

guns po ntos c om uns com políticas que haviam sido ensaiadas, anos antes, po r 

dirigentes como N. Kruchev ou A. Kossiguin. Mas, por n ão pode rem supe rar 

as resistências impostas pela burocracia do partido, essas reformas foram en

terradas. Gorbatchev, baseando-se no fracasso de seus predecessores, convenceu-se de que o sucesso da reestrutura ção de pendia de d uas condições de or

dem mais geral. Primeiro, o respeito à lei (Estado de direito), que garan tia aos

agentes econômicos o mín imo de estabilidade e segurança jurídica de que pre

cisavam para desenvolver suas iniciativas. Em segundo lugar, a Glasnost (transpa

rência), que permitiria a cada um denunciar publicamente os privilégios e as

 prá ticas burocrá ticas cuja permanência poderia ser um fator de bloqueio.

Mesmo tendo de início objetivos essencialmente econômicos, a Peres

troika sugeria indiretamente o problema da reforma governamental e o da li

 berdade de expressão. Nessas condições, não surpreende que te nha colocado

em dúvida o “sistema dos três M”, ou seja, os três monopólios que o PCUS

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2 8 8 D i r e it o C o n s t i t u c i o n a l

teve até então: monopólio da decisão econômica, monopólio da decisão po

lítica e monopólio da ideologia.

2.ASTRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS E INSTITUCIONAIS DA URSS

A partir de 1988 várias mudanças modificaram em profundidade o sis

tema político e constitucional soviético e o das repúblicas.

Por um lado, uma lei de lQde dezembro de 1988 abria o caminho para

várias candidaturas para a eleição dos membros do Parlamento. É verdade

que as candidaturas não eram totalmente livres mas o direito de apresentação não era mais reservado ao partido comunista. As candidaturas também

 podiam ser apresentadas por diversas org an izações sociais e p or comitês com

 pelo menos quinhentos eleitores. Sobre tu do, vár ios candid ato s podiam con

correr n um a m esma circunscrição. Na prática, no entanto, a maioria dos elei

tos pertencia ao Partido Comunista.

A constituição de 1977, por outro lado, fora profundamente modificada.

Uma lei de 1-de dezembro de 1988 criava um Parlamento com dois níveis. O

 primeiro era const ituído pelo Congresso de Deputados do povo que compre endia 2.250 membros e devia se reunir somente alguns dias por ano, exercen

do duas séries de poderes: o poder constituinte e a eleição no seu interior dos

membros do Soviete Supremo. Este era formado, com o an teriormente, de duas

assembléias de 271 membros cada: o Soviete da União e o Soviete das Nacio

nalidades. Deveria exercer o pode r legislativo e o po de r de controle. Q uanto ao

 poder executivo, num primeiro momento , foi confiado ao presidente do Soviete

Supremo, o que constituía uma inovação, já que pela primeira vez a presidên

cia não era colegiada; depois, de acordo com a lei de 14 de março de 1990, a

 presidência foi confiada ao presidente da União Soviética. Esse foi investido de

 poderes im portante s e devia ser eleito, pela primeira vez, pelo Congresso dos

Deputado s do povo e, depois, pelo sufrágio universal. M. Gorbatchev foi assim

eleito em 15 de março de 1990 pelo Congresso. A fonte de seu poder encontra

va-se doravante no Parlamento e não mais em um partido, assim estava indi

retamente no povo, de tal forma que a mu dança no m odo de designação con

cretizava o fim do papel exclusivo do Partido Comunista, formalizado pela

supressão do art. 6o da constituição de Brejnev de 1977.

 No enta nto , o poder foi exercido em meio a gra ndes dificu ldades e te n

sões. Tensões em razão da grande oposição, no interior do Soviete Supremo,

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entre reformistas e conservadores (designavam-se assim os comunistas hostis

à reforma). Gorbatchev, hesitando apoiar-se nu m dos dois campos para a rea

lização das reformas, procurava o bter a votação de leis de plenos poderes que,

após tê-la obtido, não conseguiria aplicar po r falta de do m ínio real sobre a ad

ministração e o exército. Tensões também entre o poder central e as repúbli

cas que, durante o ano de 1991, proclamam a soberania e três dentre elas, as

repúblicas bálticas, com fundamento na constituição soviética que como vi

mos reconhecia esse direito, se separam e proclamam a independência.

Para tentar impedir a desagregação da União Soviética e para reforçar 

sua próp ria legitimidade, Gorbatchev organ izou em 17 de março de 1991 umreferendo sobre a manu tenç ão da União. Mesmo com a vitória do “sim” o re

sultado foi considerado ambíguo e, no geral, foi interpretado como marcan

do a transformação da federação numa fraca confederação.

Tensões ainda entre Gorbatchev e Boris Ieltsin, o presidente da mais im

 porta nte das repúbl icas , a Rússia, que modif icara sua consti tu ição para se

adequar ao novo modelo soviético. Ao mesmo tempo em que ocorreu o refe

rendo p ara a man uten ção da União, era realizado na Rússia um referendo so

 bre a e leição pelo sufrág io universa l do presidente . Depois da vitória do “sim ”,Ieltsin foi eleito Pres idente da Rússia pelo sufrág io universal, em 12 de ju nh o

de 1991. Pela primeira vez na história da Rússia ou da União Soviética, um

 presid ente hav ia sido eleito pelo su frágio universal num a eleição abert a e

tran spa ren te. A popu larid ade e a legitimidade de Boris Ieltsin, desejoso de re

formas, era assim muito maior que a de Gorbatchev.

Foi nessas condições que interveio a tentativa de golpe militar de 18 de

agosto de 1991, que pretendia impedir ao mesmo tempo a desagregação da

União Soviética - o novo tratado da U nião seria assinado em 20 de agosto de1991 - e o aban do no do socialismo. O fracasso do golpe de Estado teve co

mo conseqüência acelerar o processo: Gorbatchev era presidente de um Es-

tado-fan tasma. Ele pediu dem issão em 25 de dezemb ro de 1991.

3.0 FIM DA URSS

05 novos Estados soberanos. - Em 18 de outubro de 1991 era assinado o

tratado da CEI (Confederação dos Estados Independentes). Como o nome

indica, não se trata de um Estado. O tratad o só foi assinado p or dez das q ui n

ze ex-repúblicas soviéticas e as atribuições da con federação são m uito limita

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