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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO SEMIÓTICA DO DIREITO: modelos de signo jurídico com base nos conceitos de Charles Sanders Peirce DANIEL PITANGUEIRA DE AVELINO DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Área de Concentração: Filosofia e Teoria Geral do Direito Recife 2006

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

SEMIÓTICA DO DIREITO: modelos de signo jurídico

com base nos conceitos de Charles Sanders Peirce

DANIEL PITANGUEIRA DE AVELINO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Área de Concentração: Filosofia e Teoria Geral do Direito

Recife

2006

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DANIEL PITANGUEIRA DE AVELINO

SEMIÓTICA DO DIREITO: modelos de signo jurídico

com base nos conceitos de Charles Sanders Peirce

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito do Recife / Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre. Área de concentração: Filosofia e Teoria Geral do Direito Orientador: Prof. Dr. George Browne Rego

Recife

2006

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Avelino, Daniel Pitangueira de

Semiótica do direito: modelos de signo jurídicocom base nos conceitos de Charles Sanders Peirce /Daniel Pitangueira de Avelino. – Recife : O Autor,2006.

167 fls.; quad., fig.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. CCJ. Direito, 2006.

Inclui bibliografia.

1. Semiótica jurídica – Definição. 2. Peirce, Charles Sanders, 1839-1914 – Semiótica. 3. Direito – Significação – Teoria. 4. Norma jurídica. 5. Modelos jurídicos extranormativos – Construção. 6. Semiótica (Direito). 7. Teoria dos signos – Direito. 8. Signo jurídico – Condutas e valores sociais. 9. Direito – Linguagem. 10. Direito – Filosofia. I. Título.

340.12 CDU (2.ed.) UFPE 340.1 CDD (22.ed.) BSCCJ2006-019

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AGRADECIMENTOS

Aos professores da UFPE, Ao meu orientador, Prof. George Browne,

Aos funcionários do CCJ, Aos colegas de curso,

pelas lições de caráter;

À minha família,

À minha companheira,

por tudo, simplesmente tudo.

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À filosofia coube a contesta, à ciência, respostas nuas;

à linguagem nada mais resta a não ser brincar com as duas.

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RESUMO

AVELINO, Daniel. Semiótica do direito: estudo sobre o signo jurídico com base nos conceitos de Charles Sanders Peirce. 2006. 167 f. (Dissertação) Mestrado em Direito – Centro de Ciências Jurídicas / Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Recife. Esta análise propõe uma tentativa de evocar as idéias de Charles Sanders Peirce, referentes à semiótica e teoria dos signos, a fim de promover uma abordagem prática sobre contextos jurídicos. De início, um retrato geral da obra de Peirce é apresentado, enfatizando sua fenomenologia e categorias triádicas e conduzindo a uma discussão sobre estruturalismo e estruturas como método. Mais adiante, os principais conceitos de uma teoria dos signos, enfocando os elementos de relações triádicas e aperfeiçoamento e abstração como cadeias semióticas, são descritos e aplicados no contexto do Direito, propondo uma rápida visão da norma jurídica como um signo e debatendo semiótica da norma, assim como os efeitos do dogma sobre semiose infinita. Por fim, os sistemas normativo e lingüístico são deixados para trás assim que a conduta assume o centro do palco, como um signo comunicativo. Esta semiótica das condutas apresenta seus conceitos e categorias, relacionando questões jurídicas a temas como valores sociais, ética e exemplo. O estudo finaliza ressaltando a importância do desenvolvimento conceitual para aprimoramento do discurso científico e acadêmico. PALAVRAS-CHAVE: Peirce; semiótica; direito.

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ABSTRACT

AVELINO, Daniel. Semiotics of law: study of juridical sign based on concepts of Charles Sanders Peirce. 2006. 167 f. Master Degree – Centro de Ciências Jurídicas / Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Recife. This analysis proposes an attempt to evoke the ideas of Charles Sanders Peirce, concerning to semiotics and theory of signs, in order to promote a practical approach over juridical contexts. At first, a general depiction of Peirce’s works is presented, emphasizing his phenomenology and triadic categories, and leading to a discussion about structuralism and structures as a method. Further, the main concepts of a theory of signs, focusing the elements of triadic relations and improvement and abstraction as semiotic chains, are described and applied into the context of law, proposing a glance of juridical norm as a sign, and debating normative semiotic, as well as the effects of dogma over infinite semiosis. Eventually, normative system and language system are left behind as conduct emerges at center stage, as a communicative sign itself. This semiotic of conducts presents its concepts and categories, relating juridical issues to themes as social values, ethics and example. The study ends remarking the importance of conceptual development to enhance scientific and academic discourse. KEYWORDS: Peirce; semiotics; law.

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Arquitetura teórica das ciências segundo Peirce ................................................... 31 Quadro 2 – Categorias universais do pensamento de Peirce .................................................... 35

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Categorização do pensamento................................................................................. 56 Figura 2 – A percepção segundo Peirce ................................................................................... 62 Figura 3 – A estrutura do signo peirceano................................................................................ 67 Figura 4 – Classificação dos signos.......................................................................................... 70 Figura 5 – A cadeia semiótica .................................................................................................. 78 Figura 6 – Encadeamento por “aperfeiçoamento”.................................................................... 80 Figura 7 – Encadeamento por “abstração” ............................................................................... 82 Figura 8 – Signo jurídico – primeiro modelo: signo normativo lingüístico ............................. 92 Figura 9 – Signo jurídico – segundo modelo: signo normativo lógico-formal ........................ 95 Figura 10 – Quebra da cadeia semiótica................................................................................. 106 Figura 11 – Revisando o signo normativo lógico-formal....................................................... 114 Figura 12 – Signo jurídico – terceiro modelo: signo jurídico social ...................................... 125 Figura 13 – Signo jurídico complexo ..................................................................................... 156

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO E INTRADUÇÃO.........................................................................................9 CAPÍTULO 1 - UMA LÓGICA DA REALIDADE.............................................................17 1.1 CONHECENDO AS ESTRUTURAS DO CONHECER................................................17 1.2 AS SEMIÓTICAS............................................................................................................20 1.3 O FILÓSOFO, O CIENTISTA, O LÓGICO...................................................................22 1.4 BASES PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA SEMIÓTICA..........................................29 1.5 TRÊS CATEGORIAS DA REALIDADE.......................................................................34 1.5.1 Primeiridade....................................................................................................................35 1.5.2 Secundidade.....................................................................................................................37 1.5.3 Terceiridade.....................................................................................................................38 1.6 A SEDUÇÃO DA ESTRUTURA....................................................................................41 1.7 CONSIDERAÇÕES SOBRE CATEGORIZAÇÃO E MÉTODO..................................48 CAPÍTULO 2 - A CONSTRUÇÃO DE UM SIGNO NORMATIVO................................53 2.1 O MENOR CONTINENTE DE TUDO............................................................................53 2.2 PEIRCE E A PERCEPÇÃO............................................................................................59 2.3 SOB O SIGNO DE PEIRCE.............................................................................................65 2.4 SEMIÓTICA DA NORMA JURÍDICA...........................................................................84 2.5 CONSIDERAÇÕES SOBRE DOGMA E SEMIOSE INFINITA..................................101 CAPÍTULO 3 - ALÉM DA NORMA..................................................................................108 3.1 A ABORDAGEM LINGÜÍSTICA E SEUS LIMITES..................................................108 3.2 REVISITANDO A NORMA JURÍDICA.......................................................................112 3.3 SEMIÓTICA DAS CONDUTAS...................................................................................119 3.4 DIREITO E SEMIOSE DAS CONDUTAS...................................................................138 3.5 CONSIDERAÇÕES SOBRE EXEMPLO E ÉTICA......................................................144 CONCLUSÕES.....................................................................................................................152 REFERÊNCIAS....................................................................................................................162

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INTRODUÇÃO E INTRADUÇÃO

Uma palavra. Traços escuros sobre o fundo branco do papel. Nada mais que isso

e, ainda assim, um fluxo infinito de idéias, conceitos e impressões são formados na

subjetividade de quem lê. É um processo tão rápido, tão rotineiro, que é comum pensar na

identidade entre o que se vê e o que se pensa. O reconhecimento de que há uma relação entre

esses dois pólos fenomenológicos é o que fundamenta o estudo da comunicação humana.

Destacar esse fenômeno – atribuir-lhe importância e prevalência – é o que caracteriza a

semiótica, o estudo teórico dos signos.

A significação é o conceito que melhor representa esse fenômeno. Consiste, em

rápidas linhas, nessa habilidade humana de tomar algo por outro, de tornar presente o ausente.

Adotando a premissa de que nem tudo aquilo que pode ser a realidade é apreensível, pelo

menos não de forma plena, o recurso a elementos intermediários é o que define a capacidade

humana de ir além da própria percepção, criando e comunicando sua visão de mundo, o que

torna possível, simbolicamente, recriar uma realidade.

Isso ocorre em todas as áreas do conhecimento humano, com suas linguagens,

códigos e métodos próprios. No espaço epistemológico, tratar de significação implica discutir,

em cada caso, qual e como é feito o recorte da realidade para produzir objetos de análise. Ao

inquirir o que um pesquisador considera importante – significativo – em sua percepção, é

possível verificar bons indícios de como o conhecimento é construído, ali.

O conhecimento humano floresce onde lhe seja mais fértil o solo. Por exemplo, no

campo do direito germinaram importantes sementes, como o estudo dos sistemas normativos,

enquanto na filosofia da linguagem foram desenvolvidas as raízes da semiótica e da análise da

significação. A proposta deste trabalho consiste em alcançar essas duas áreas de cultura

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humana – direito e semiótica –, descobrir-lhes caminhos comuns e, tanto quanto possível,

traçar mapas das suas intersecções.

Estudar os signos e os processos de significação é uma importante forma de

compreender o que repousa nos discursos jurídicos – e além deles. Para tanto, é necessário

trazer discussões e hipóteses sobre a significação jurídica, a fim de guiar mais alguns passos

do andarilho que tentar se aventurar no tortuoso caminho que une a semiótica ao direito.

Desenvolver um estudo sobre semiótica requer a superação de alguns desafios

fundamentais, sendo que o mais determinante consiste no estabelecimento do referencial

teórico (e ideológico) a ser adotado. Esse cuidado, presente em qualquer estudo científico,

também deve ser observado em uma doutrina como a semiótica, que apresenta linhas de

pensamento distintas – e até contrastantes – conforme o pensador a ser estudado. Sem o

marco ideal de um discurso acadêmico comum (ou pelo menos de relativo consenso

epistemológico), há uma clara tendência a existirem tantas “semióticas” quantos forem os

autores a tratarem do assunto.

Além disso, o signo – o elemento básico da significação – é um objeto

conceitualmente delimitado, mas que pode ser concretizado em uma infinidade de formas

possíveis e diversas. Os desenvolvidos estudos de semiótica aplicada, sobre formas

específicas de signos, contribui ainda mais para aumentar a pluralidade (e plurivocidade) do

discurso semiótico.

A fragmentação da semiótica não é fenômeno recente. Há autores, como Lúcia

Santaella (2003), que apontam o início da abordagem analítica dos signos em três linhas

distintas, quase simultâneas: a corrente norte-americana, a doutrina européia da semiologia, e

a semiótica russa de Tártu-Moscou. A convergência das três propostas de teoria dos signos

não ocorreu sem mácula, decorrente inclusive das divergências entre os conceitos básicos que

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orientavam cada uma das tendências, o que é combustível farto para as discussões semióticas

da atualidade.

Além disso, a chamada “virada lingüística” da filosofia pós-moderna, após elevar

a linguagem ao estado de núcleo central dos seus estudos, contribuiu para a produção de

diversos trabalhos que tratam, direta ou indiretamente, da relação do homem com sua

comunicação e, portanto, do homem com seus signos. Estes estudos sobre linguagem,

vinculados às mais diversas formas de conhecimento humano, por apresentarem uma relação

direta ou indireta com o objeto da semiótica, terminaram por serem tomados como integrantes

desta disciplina, em sua grande maioria. Com isso, ainda mais tênues se tornam as fronteiras

que delimitam a semiótica.

Além dessa multiplicidade de discursos, todo aquele que pretende empreender a

viagem ora proposta deve considerar as especificidades dessa área do saber. Se estiver

partindo de um paradigma racional e formal de ciência, ou de um modelo filosófico de

plenitude e universalidade como no direito, o pesquisador, como todo bom turista em nação

estranha, deve estar preparado para conhecer a semiótica em suas diversas correntes, seu

discurso não-linear, seu caráter simultaneamente geral e específico e seu objeto de formas

infinitas. A semiótica pode estar amparada, portanto, por um outro paradigma não-científico

de conhecimento, determinado pela natureza peculiar do seu objeto ou influenciada pelo pós-

modernismo, ama-de-leite das jovens doutrinas que se desenvolveram no século XX.

Por todos estes motivos, abordar a teoria dos signos implica estabelecer, de início,

qual a linha doutrinária a ser seguida, a fim de tornar claros quais os conceitos e métodos

utilizados – e, por conseqüência, qual “semiótica” será analisada.

A linha teórica a ser adotada no presente trabalho, sem dispensar a necessária

análise crítica, tem fundamento na obra do filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce.

Descrevê-lo como “filósofo” é uma simplificação da realidade que não faz jus a um pensador

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que ousou trilhar as mais diferentes áreas de conhecimento humano – desde as ciências até a

filosofia – com igual empenho. A leitura do conjunto de sua obra – dificultada

consideravelmente pela sua produção fragmentada – revela uma preocupação constante em

explicar a realidade ou, ao menos, a forma como é percebida pelo homem.

A lógica foi a área do conhecimento que se mostrou mais profícua às incursões de

Peirce. Pelo prisma da lógica, foram lançadas as sementes do que poderia ter sido uma teoria

geral do conhecimento, uma tentativa de explicação da realidade, que rendeu alguns frutos

exóticos, entre eles seus estudos sobre os signos, como será evidenciado em páginas por vir.

Por fim, cumpre apontar que os conceitos traçados por Peirce constituem a

avenida principal em que trafegará o presente texto, mas sempre será necessário recorrer a

outras teorias como vias secundárias – seja porque, mais modernas, conduzem melhor o fluxo

entre estruturas construídas em tempos recentes, ou ainda porque, melhor localizadas,

permitem o acesso direto a pontos importantes para os propósitos deste trabalho.

Aplicar esses conceitos da semiótica no âmbito do direito não é de forma alguma

uma proposta inédita ou recente, mas sempre sedutora. A prática do jurista envolve um

manuseio constante da linguagem como forma instrumental e, por isso, trazer esta mesma

linguagem para o foco dos debates soa como algo natural e previsível.

Por mais paixão que desperte o tema, emergir os debates semióticos para o

cenário jurídico requer muito mais esforço racional do que parece à primeira vista. Em

empreitada como esta, estão sendo enfocados dois conjuntos doutrinários com características

sensivelmente diferentes. De um lado, a semiótica, discurso recente com características pós-

modernas, sem um sistema unívoco, com objeto conceitualmente definido, porém ilimitado

em forma. Por outro lado, apresenta-se o direito, influente, tradicional e milenar, com um

corpo de pesquisadores e operadores razoavelmente coeso e dotado de suficientes identidade e

auto-referência, com uma prática extremamente formalizada, mas que, no campo de uma

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teoria geral, mantém em permanente debate mesmo seus pontos fundamentais, como a

conceituação do seu objeto ou a sua própria cientificidade.

Se, por um lado, ainda há discussão sobre o objeto epistemológico do direito – o

que representaria uma significação aberta a vários fenômenos –, por outro a nossa prática

jurídica contemporânea aponta para o majoritário primado da norma. Ainda que não se

confundam direito e norma, esta última, inegavelmente, constitui o limite auto-imposto e o

campo de atuação do jurista dos nossos tempos – e tudo o mais é relegado à Filosofia do

direito.

Faça-se filosofia, pois.

Em uma precipitada análise lógica, o ideal seria a superação desses impasses, em

ambas as áreas do conhecimento, antes de qualquer tentativa de trabalho transdisciplinar.

Todavia, no campo das ciências humanas e mais ainda na filosofia, o ótimo racional nem

sempre é o ponto de chegada e às vezes sequer o horizonte. O conhecimento humano, como

objeto cultural, é dinâmico e social e historicamente condicionado. Portanto, conscientes da

sua função, os pesquisadores não se devem omitir na produção de qualquer estudo tido como

válido e pertinente, ainda que sua probabilidade atual de aceitação ou aplicação seja reduzida.

Embora pretenda tornar inteligível o real imediato, o conhecimento pertence ao futuro.

Além disso, uma análise das doutrinas como objeto não se pode deixar limitar

pelas fronteiras consensualmente aceitas entre elas. Pela própria natureza do conhecimento

humano, é comum que o progresso de uma dada área seja o apoio para os debates de outra,

numa demonstração de que as distinções entre si são muito mais culturais – e formais – do

que ontológicas.

Para tornar possível a intersecção entre os dois discursos, a noção de objeto é o

ponto fundamental, muito embora seja preciso ter em mente que, especificamente, traçar uma

resposta definitiva, acaso concebível, para as questões referentes ao objeto de cada uma das

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mencionadas áreas de conhecimento é uma tarefa extremamente complexa que ultrapassa as

pretensões do presente trabalho. De uma maneira muito mais restrita, neste estudo será

encarado diretamente o desafio de definir o objeto de uma possível semiótica jurídica.

Especificamente, o objetivo propositivo e geral do presente estudo é analisar e

propor um modelo de signo jurídico, considerando os limites e as potencialidades de

aplicação da semiótica e do direito a contextos comuns. De forma mais precisa, por meio da

aplicação dos conceitos e categorias de Peirce há a proposta de testar a normatividade

jurídica, de forma a tentar estabelecer relações (comunicacionais) com as formas pelas quais

se expressa. Da mesma maneira, há ainda a hipótese da possibilidade de construção de

modelos jurídicos extranormativos.

Não há como garantir que esse exercício de semiótica aplicada traga inovações

extraordinárias para a discussão jurídica, quando o mais provável é que apresente, sob nova

forma, sob novos nomes, temas que já fazem parte do debate no direito. Todavia, a pretensão

deste texto é precisamente conceitual e, por isso, a enunciação de elementos jurídicos

conforme a teoria dos signos tem o potencial de permitir uma aproximação entre o contexto

do direito e a vasta filosofia de Peirce e dos seguidores de sua semiótica. No contraste entre

esses dois discursos as críticas e as propostas certamente hão de surgir.

Trata-se, portanto, de uma experiência de tradução – e seus limites.

Traduzir os conceitos jurídicos em termos semióticos, em um primeiro momento,

não passa de (mais) uma modelagem de fenômenos sociais em estruturas formais. Nessa

primeira leitura, há um resultado preliminar esperado que consiste em, ao testar a teoria da

significação no direito, identificar seus elementos de comunicação mais básicos – e por isso

mais significativos. Isso seria um vestígio de contribuição para a discussão sobre o objeto do

direito.

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Com esse objetivo, o primeiro capítulo do trabalho enfrenta o desafio de expor as

noções sobre a teoria fenomenológica de Peirce, especificamente as suas categorias

fundamentais, o que leva a uma discussão sobre estrutura como método e como objeto. A

segunda parte enfatiza a noção de signo, destacando os seus elementos conformadores, e

apresenta as primeiras propostas de modelos de signos jurídicos normativos (sob as

perspectivas lingüística e lógico-formal), culminando com uma análise sobre a atuação do

dogma sobre a semiose. Por fim, o terceiro capítulo revisa as propostas anteriores para

acrescentar mais um modelo de signo jurídico enfatizando o papel significativo das condutas

e dos valores sociais, concluindo com uma exposição sobre a relevância do exemplo em um

contexto de crise do sistema simbólico jurídico-estatal.

Após esse percurso, o confronto entre duas estruturas formais – o sistema

normativo de inspiração kelseniana e as categorias peirceanas – para a produção de modelos

transdisciplinares de significação jurídica é apto a produzir conclusões relevantes. Em

hipótese, as críticas comuns podem revelar uma identidade insuspeita entre as duas visões, o

que igualmente permite um compartilhamento – uma tradução – de suas propostas de

aperfeiçoamento.

O contrário também é factível. Há a possibilidade de que se conclua, ao final, que

as estruturas jurídicas e semióticas não são compatíveis e, além disso, que os fenômenos do

direito, em si, não formam uma linguagem ou sequer uma comunicação. Pode ser que direito

e semiótica sejam completamente intraduzíveis.

Essa não é a crença que fundamenta o presente trabalho. A constatação de que

muito separa os conceitos de direito e de semiótica não implica que sejam incomunicáveis.

Ainda que fossem, nada demonstra que não possam vir a ser compatíveis, no futuro, o que por

si justifica qualquer esforço de interação. Afinal, pode haver diálogo até mesmo entre quem

não fala a mesma língua. Um diálogo difícil, mas que pode ser construído. A natureza

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humana, flexível, comunicativa e adaptável, é o que fomenta o restrito exercício de tradução

proposto neste trabalho.

Uma vez posto este cravo da estrada de ferro, os trilhos da semiótica jurídica

poderão ser assentados, em um outro devido momento, com a firmeza necessária para resistir

à passagem do tempo e dos andarilhos. Quando a estrutura estiver completa, talvez os

engenhos que trafeguem pelo caminho entre semiótica e direito – então já bem menos

tortuoso que antes – comuniquem não apenas pessoas, mas também idéias, matéria-prima para

o progresso de qualquer conhecimento.

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CAPÍTULO 1 - UMA LÓGICA DA REALIDADE

1.1 CONHECENDO AS ESTRUTURAS DO CONHECER

Dentre as diversas formas de conhecimento do mundo, possivelmente aquela que

mais desafia o sujeito pensante seja precisamente o exame de si mesmo, a difícil tarefa de

voltar o olhar para suas próprias ações, seus próprios traços peculiares, sua forma singular de

manifestar-se na realidade e como parte dela. Considerando-se os limites de nossa

compreensão das coisas, não é surpresa perceber que a complexidade que caracteriza o ser

humano como objeto de estudo torna igualmente complexos quaisquer meios de explicá-lo e

explicar-se-lhe. Assim, todo o conjunto de disciplinas que tratam do conhecimento, por

envolver uma relação em maior ou menor intensidade com esse objeto prismático e

multifacetado que é a própria noção de subjetividade, tende a amplificar esses contrastes.

Enfim, a interminável tarefa do ser humano em entender o mundo pode ser considerada uma

jornada incerta voltada para conhecer a si mesmo.

Desta forma é possível alimentar a fome de saber.

Assim, a formação de conhecimento, em qualquer área teórica, implica o

estabelecimento de relações entre quem conhece e aquilo que se dá a conhecer. Ou seja, um

determinado “objeto” não é “descoberto” ou “explicado” pelo pesquisador, mas sim

apreendido e inserido, de uma nova forma, no conjunto de elementos que compõem sua visão

de mundo. Entender um “objeto” equivale a torná-lo compreensível, fazê-lo compatível com o

que já se sabia, encaixá-lo no seu “devido lugar” e com isso reforçar ainda mais a coerência

do conjunto de conhecimentos prévios. Em suma, compreender significa tornar algo parte de

nossa realidade – a realidade que cada sujeito constrói.

Nessa linha de raciocínio, resta pouco espaço para o verdadeiro “novo”. A

aquisição de conhecimentos transita por um processo constante de transformação, não de

surgimento, em que as coisas que compõem nosso conjunto de “verdades” são

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sucessivamente ressaltadas, recortadas e devolvidas ao mesmo cenário sob novas relações.

Assim, o processo do conhecimento não reside na incorporação de elementos “descobertos”

da realidade, pelo menos não em sua totalidade, mas no estabelecimento de novas conexões

entre fragmentos que, possivelmente, já integravam nossa moldura de mundo.

Aqui mais uma vez fica explícita a participação do sujeito cognoscente como

elemento do seu próprio conhecimento. Estabelecer relações entre fragmentos do real é

essencialmente reconhecer relações entre a realidade e si mesmo – ou o que se entende por “si

mesmo” –, pois toda conexão de idéias, por mais abstratas e distantes que sejam, tende a ser

mediada pelo sujeito e sua visão de mundo. Aquele que conhece figura não apenas como

coordenador da formação de novas relações, mas principalmente como o marco-zero, o ponto

de referência de todas as idéias que passem a integrar sua visão de um mundo tido como

“externo”. Portanto, construir uma noção de realidade é também traçar os limites da própria

subjetividade.

Nesse ponto ganha relevância o aspecto da linguagem. Sem reduzir a importância

da percepção direta como fonte de experiência em estado bruto, é possível notar que a partir

do momento em que o ser humano, em sua história de vida, passa a fazer parte do universo

discursivo de alguma linguagem socialmente fundada, esta tende a participar de toda

aquisição de conhecimento, seja como sua fonte, como mediadora ou como verificadora de

validade. Em outras palavras, há a tendência de que as idéias sejam trazidas pelas linguagens,

sejam formatadas pelas linguagens ou, pelo menos, julgadas como possíveis ou absurdas por

critérios apontados pelas linguagens.

É possível presumir que há elementos psíquicos incompossíveis com os limites

das linguagens em geral. Ou seja, é possível concordar com a hipótese de que existem idéias

não-comunicáveis. Mesmo assim, a formação de uma explicação do mundo, do ponto de vista

consciente, exige do sujeito não somente um entrelaçamento de pensamentos, mas também

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uma tarefa de seleção, julgando cada elemento segundo critérios próprios e aproveitando mais

o que for compatível com sua noção de realidade e descartando as demais idéias – os

“absurdos”. Nesse juízo, são privilegiadas as concepções que estão mais ancoradas nos

valores sociais, culturais e ideológicos compartilhados por aquele sujeito. Em um julgamento

dessa natureza, as linguagens exercem seu poder de influência de forma constante e deixam

de ser apenas ferramentas de comunicação, portanto “externas”, para revelarem-se como

métodos de racionalização e ordenação de idéias, portanto internas à subjetividade.

Reconhecida a influência que as linguagens – lingüísticas ou não – exercem sobre

a aquisição e modelação de pensamentos, resta saber em que intensidade e de que forma

acontece essa intervenção. Obviamente, esta é uma empreitada ousada, mas que pensadores

como Charles Sanders Peirce tentaram realizar. Na trilha de sua jornada, nos limites estreitos

que condicionam o presente estudo, certamente algumas respostas hão de surgir. Serão

respostas incompletas, seguramente, e de forma alguma consensuais. Todavia, é esperado que

sejam construções coerentes, fruto de teorias dotadas de considerável consistência, que

poderão pelo menos indicar algumas formas pelas quais dizemos o que pensamos e pensamos

o que dizemos.

Tratar do trabalho de Charles Sanders Peirce deve sempre ser uma tarefa

integradora. O legado do filósofo norte-americano não pode ser analisado de forma

fragmentária, ou reducionista. Por este motivo, fica o alerta de que estas páginas dedicadas a

aspectos de sua obra, de antemão, já começam incompletas.

Independentemente do esforço de pesquisa, não é possível compreender e ainda

menos explicar o conteúdo de alguma das teorias de Peirce sem recorrer ao conjunto de

conceitos dispersos ao longo de toda uma vida dedicada a conhecer o próprio conhecimento.

Assim, o assunto abordado neste capítulo, apesar de ser tão delimitado quanto possível,

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inevitavelmente atua como uma representação (um signo?) de uma construção lógica muito

maior e mais complexa1.

1.2 AS SEMIÓTICAS

A disciplina da semiótica – se é precipitado defini-la como ciência – tem três

raízes distintas que lhe conceberam quase ao mesmo tempo. A primeira linha é a semiologia

européia, com origem nos estudos de lingüística de Ferdinand de Saussure. Também foi

desenvolvido na Rússia um modelo de semiótica, com fundamentos na poética e crítica da

cultura. Por fim, antecedendo cronologicamente esses dois momentos, Charles Sanders Peirce

lançou as bases do que viria a ser a semiótica americana.

A matriz semiótica peirceana está assentada em alguns fundamentos filosóficos,

principalmente em sua fenomenologia ou phaneroscopia. É nesse ponto que reside sua

principal diferença em relação aos outros grupos que desenvolveram teorias de significação.

A semiótica européia é tributária dos trabalhos de Ferdinand de Saussure,

reunidos por seus alunos do livro “Curso de Lingüística Geral”2. Nessa obra, além de

expressar a necessidade de recortes metodológicos específicos para o estudo da linguagem

verbal – o que pode ser considerado o início do estudo da lingüística com pretensões

científicas – o professor francófono sinaliza a possibilidade de um estudo geral do conjunto

das formas de linguagem possíveis, a semiologia, à qual a lingüística seria subordinada. As

idéias de Saussure e seus seguidores são comumente associadas com o movimento do

estruturalismo europeu e os conceitos de sincronia, diacronia e signo3 são apresentados como

exemplos do formalismo estruturalista no estudo da linguagem.

1 O que pode ser considerada uma “filosofia cosmogônica” (SHERIFF, 1994, p. 3). 2 Não só para a afirmação da semiótica européia, mas principalmente “para a afirmação do estruturalismo na Europa, foi altamente relevante o sucesso do livro Cours de linguistique générale, publicado em 1916 como obra póstuma do lingüista suíço Ferdinand de Saussure” (ILARI, 2004, p. 55). 3 Diferente da semiótica peirceana, “signo é empregado por Saussure, ao longo de suas aulas e de seus escritos, em duas acepções: de um lado, esse termo designa a entidade lingüística global composta de uma face fonológica e de uma face semântica; de outro lado ele designa apenas a face fonológica” (BOUQUET, 2000, p. 229). No signo saussureano, estão combinados significado e significante, este sendo “a forma sonora que

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Esse tema é posteriormente verificado em trabalhos como o de Roland Barthes,

que desenvolve algumas discussões sobre o campo de estudo e os métodos da semiologia. De

forma coerente com o viés lingüístico da semiologia européia, Barthes reconhece que a

linguagem verbal permeia todos os outros códigos de comunicação, como parte desses

códigos ou como uma tradução necessária, e conclui que é possível estudar as demais formas

de expressão com os instrumentos da linguagem verbal, devidamente adaptados. Em

conseqüência, a lingüística não seria uma parte da semiologia, como propôs Saussure, mas

exatamente o contrário4.

A semiótica européia – ou semiologia – desenvolveu um largo espectro de

discussões desde sua formação até os presentes dias. Além dos dois já mencionados, também

podem ser considerados militantes dessa linha vários nomes, como Algirdas Julien Greimas e

Umberto Eco. Principalmente após Michel Pêcheux, toma corpo na França o debate sobre a

ideologia nas formações discursivas. Com isso, surge a escola da Análise do Discurso5, que

buscou afastamento do formalismo estruturalista e passou a orientar boa parte dos estudos

lingüísticos na Europa – e também no Brasil.

Um pouco menos conhecido é o conjunto de discussões semióticas desenvolvidas

na Rússia. A chamada “Escola de semiótica russa”6, ou o círculo de Tártu-Moscou, reuniu

pensadores como Iúri Lótman e Bóris Uspiênski para explicar as relações entre linguagem e

cultura. Com fundamentos na poética e no formalismo russos, além de influência da escola

condiciona e determina o significado, o aspecto formal da entidade chamada signo” (BENVENISTE, 1989, p. 225). 4 Para Barthes, seriam objetos da semiologia “qualquer sistema de signos, seja qual for a sua substância, sejam quais forem os seus limites: as imagens, os gestos, os sons melódicos, os objetos e os complexos dessas substâncias que se encontram nos ritos, protocolos ou espetáculos, se não constituem ‘linguagens’, são, pelo menos, sistemas de significação” (1987, p. 11). 5 Para Eni Puccinelli Orlandi (2002, p. 15), “na análise do discurso, procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história”. 6 Irene Machado (2003, p. 164) conceitua como semiótica russa a “disciplina teórica dos estudos russos para construção da cultura enquanto metassemiótica. Nesse sentido, seu objeto não é a cultura, mas seus sistemas semióticos. Constituiu-se no Departamento de Semiótica da Universidade de Tártu, Estônia, nos anos 60, em meio aos encontros da ‘Escola de verão sobre os sistemas modelizantes de segundo grau’, que reuniram professores da universidade local e também de Moscou”.

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européia, os pesquisadores eslavos conceberam teorias notáveis para demonstrar os sistemas

de signos que circundam a vida humana.

Para a Escola de Tártu-Moscou, toda a cultura pode ser representada por meio dos

sistemas de signos que determinam cada uma de suas formas de manifestação. A formação

cultural, portanto, é assemelhada a um “texto” composto por estes diversos códigos,

lingüísticos ou não. Assim, a maior contribuição da semiótica russa pode ser considerada a

revelação de que todos esses elementos antropológicos – arte, tradição, comunicação – podem

ser estudados como sistemas de signos e compõem, conjuntamente, uma grande enunciação

cultural, uma “semiosfera”.

Cada uma dessas outras visões modernas sobre a semiótica – além de estudos

primevos de Aristóteles, Santo Agostinho e John Locke, por exemplo – fornece um conjunto

coerente de instrumentos para a explicação da realidade. Todavia, mergulhar em algumas

dessas linhas teóricas, pela forma como seus conceitos estão sistematizados em uma

linguagem acadêmica própria, implicaria uma necessidade de categorização e diferenciação

(ou seja, de tradução de linguagens teóricas) que ultrapassaria os limites do presente trabalho

conceitual.

Voltando o foco para a teoria peirceana, que servirá de trilho metodológico para

orientar as categorizações a serem formuladas, é necessário verificar as linhas que definem a

sua noção de semiótica. Para isso, é preciso empreender um esforço de enxergar pelos olhos

do autor, para entender o mundo como um sistema de signos, não apenas nos seus aspectos

lingüísticos ou culturais, mas tudo isso reunido – a semiótica como percepção da realidade.

1.3 O FILÓSOFO, O CIENTISTA, O LÓGICO

Para que um determinado intelectual ou um determinado trabalho seja

considerado um “clássico” é preciso que as questões por ele propostas, em outro contexto

social e histórico, permaneçam válidas e atuais além do seu tempo. Nesse sentido, muitas das

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construções de Charles Sanders Peirce foram revistas ao longo das décadas, tanto por seus

conterrâneos pragmatistas quanto pelos pensadores filiados a outras tendências filosóficas.

Todavia, ainda assim Peirce é um clássico.

Sua atualidade decorre da forma original com que pretendeu enfrentar os

problemas filosóficos, como já apresentado, e pelo conjunto coerente de explicações que

trouxe à discussão. No campo da teoria da comunicação, os trabalhos apresentados por Peirce

continuam a ser objetos de estudo, cada vez mais compatíveis com um contexto de

transmissão de informações por múltiplos meios, como o que é possível verificar na

contemporaneidade. Não é por outra razão que o foco do presente trabalho é a aplicação de

um conceito elementar na teoria peirceana – a noção de signo – em um ambiente atual, em

conformidade com suas idéias sobre a semiótica.

Assim como outros pensadores também considerados “clássicos”, Peirce procurou

manter um esmerado rigor conceitual na elaboração de suas propostas. Com esse objetivo,

buscou formular métodos para garantir uma maior precisão dos conceitos, em qualquer

situação. Por isso é razoável perceber que o trabalho do filósofo norte-americano como

conceituador é um dos aspectos de sua obra que mais permanecem válidos.

Isso explica em grande parte por qual motivo Peirce é conhecido como o “pai” da

semiótica. Para que um pensador conquiste esse título, não basta demonstrar originalidade e

atualidade, mas é preciso explicitar uma certa visão estratégica de futuro ao delimitar os

contornos de uma certa disciplina, conferindo-lhe uma área de atuação e destacando-a do

conjunto teórico então existente. Quando essa proposta epistemológica encontra amparo no

discurso intelectual futuro, surge uma disciplina autônoma e perpetuam-se as contribuições do

seu idealizador.

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Charles Sanders Peirce nasceu em Cambridge, Massachusetts, em 10 de setembro

de 18397. Breves palavras sobre sua inquieta história de vida, bem como sobre a época em

torno do homem, podem indicar algumas razões pelas quais o filósofo norte-americano veio a

ser celebrado como um importante nome na teoria da comunicação (assim como na lógica, na

matemática, na fenomenologia) e, mais precisamente, na semiótica que orienta o presente

trabalho.

Peirce cresceu em um ambiente propício ao desenvolvimento intelectual e

acadêmico, o que explica em parte suas precoces realizações8. A busca por uma formação

teórica além dos limites tradicionais das ciências influenciou de forma marcante a

intelectualidade norte-americana do século XIX e alcançou o filho do astrônomo, físico e

matemático Benjamin Peirce9. Assim como seus contemporâneos, Charles Sanders Peirce

manteve a preocupação com o conhecimento como um todo e com respostas que pudessem

ser aplicadas a todas as disciplinas científicas. Essa visão foi mantida mesmo depois de

ingressar na Universidade de Harvard, direcionando seus estudos para a física e a matemática,

e pode em boa medida explicar a orientação do seu pensamento10.

Ainda na adolescência, produziu trabalhos no ramo da Química, em que veio a

graduar-se (BRENT, 1993, p. 54-55). Manifestando seu gênio inquieto, aventurou incursões

também sobre o terreno da matemática, física, astronomia, geodésia, metrologia,

espectroscopia, biologia, geologia e zoologia, entre outros interesses. Na parte das ciências

7 Peirce cresceu nos ambientes protestantes de Cambridge e Boston, cidades em rápida transformação, com o declínio do comércio naval, pela concorrência com Nova Iorque, e crescimento dos bancos e empresas de manufaturas. A época era de florescimento cultural e intelectual, com o transcendentalismo de Emerson, o abolicionismo e fortalecimento da ciência experimental (BRENT, 1993, p. 23). 8 Eram “época e lugar extraordinários para nascer, especialmente como filho favorecido de pai e mãe aristocratas” (BRENT, 1993, p. 29). 9 Um homem “bem-sucedido como uma figura pública tanto quanto como acadêmico” (BRENT, 1993, p. 31). 10 Três temas são apontados como recorrentes na vida do jovem Peirce: o cruzamento entre ciência e filosofia; o comportamento dândi e romântico; e dúvidas sobre seu propósito na vida (BRENT, 1993, p. 38). É acrescentado, ainda, como constante, sua preocupação com problemas de saúde, principalmente desordens nervosas (p. 39).

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humanas, empreendeu estudos sobre lingüística, filologia, história, psicologia e dezenas de

línguas, além de uma filosofia com apurado senso crítico (BRENT, 1993, p. 58-59).

Após a formatura, Peirce trabalhou como físico, geólogo, químico e astrônomo e

conquistou um relativo reconhecimento por seus trabalhos. Em paralelo, empreendeu estudos

na área de filosofia, principalmente sobre os trabalhos de Kant, que lhe permitiram lecionar

lógica em ambientes universitários. Esse percurso, das ciências matemáticas para a filosofia,

permite duas inferências sobre a personalidade peirceana: a insatisfação com as respostas

limitadas das disciplinas da natureza, forçando um desvio para análises mais abstratas sobre

as formas do conhecimento, que só a lógica poderia proporcionar; e uma formação científica

originariamente formal, típica das ciências exatas, determinando uma visão sistemática e

categórica do mundo, que lhe acompanhou durante toda a sua produção intelectual.

As múltiplas atividades do jovem Peirce demonstravam seu gosto pelo saber, em

suas diversas formas, assim como sua versatilidade científica. Revelaram com mais

importância, todavia, o início de uma busca pelo conhecimento, sem se deixar limitar pelas

fronteiras convencionalmente estabelecidas entre as ciências. Delineava-se a paixão por uma

teoria geral da cognição.

Assim como na seara das ciências, Peirce também transitou desde cedo entre os

mais diferentes ramos da filosofia de sua época. Mesmo com isso, sua rotulação posterior

como filósofo decorreu menos de seu conhecimento filosófico, impregnado em sua obra como

um todo, e mais da forma pouco usual com que tratou o saber científico – chegando à filosofia

pela via das ciências. Portanto, a filosofia de Peirce começou como uma meta-ciência, para só

depois afirmar-se como modelo cognitivo.

Por essa origem, a filosofia peirceana carregou diversos traços provenientes das

ciências de uma forma geral, como o formalismo, sistematização e empirismo. Não é

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surpresa, também, que a lógica tenha desempenhado um papel central no seu pensamento –

especialmente a lógica da ciência.

Do ponto de vista pessoal, Peirce não obteve em vida o sucesso que suas idéias

alcançariam mais tarde. Casou-se por duas vezes – em 1862 (sendo abandonado pela esposa

em 1876) e 1883 – e não deixou descendentes. Sua vida profissional não foi muito além de

algumas conferências acadêmicas e, nos seus últimos anos, viveu às custas de amigos como

William James, em relativo isolamento até falecer em 19 de abril de 1914, em Milford,

Pensilvânia. Seu comportamento inconstante fechou-lhe as portas de uma carreira

universitária bem sucedida, mas, pelo menos, sua ausência nos círculos de discussão

acadêmicos contribuiu para o fortalecimento da originalidade de suas idéias, mantida ao longo

de sua vida intelectual.

Contrastando com o formalismo de suas teorias, a vasta produção de Peirce foi

publicada em vida de forma esparsa e assistemática, geralmente em revistas de pouca

circulação. Um primeiro volume reunido só veio a ser editado em 1931 e ainda hoje uma

parcela considerável dos seus papers permanece inédita. Isso leva à suposição de que toda a

contribuição de Peirce para a filosofia ainda não foi inteiramente revelada e, certamente, ainda

não foi inteiramente compreendida.

Quando se afirma a originalidade da obra peirceana, não se pretende negar a

importância de influências intelectuais nítidas, como o trabalho de Kant11 – basta reparar nas

similitudes entre as suas categorias12 de pensamento e o conceito de signo desenvolvido pelo

filósofo norte-americano. Peirce é original na maneira como relacionou a fenomenologia, a

teoria do conhecimento e os aspectos comunicativos de uma forma sistemática.

11 A quem Peirce denominou o “rei do pensamento moderno” (PEIRCE, 2003, p. 9). 12 Entre tantos outros cabíveis, convém destacar o seguinte trecho: “dessa forma, toda diversidade, na medida em que é dada numa intuição empírica, é determinada em relação e uma das funções lógicas do juízo, por meio da qual é conduzido a uma consciência em geral. As categorias não são mais do que estas mesma funções do juízo, na medida em que a diversidade de uma intuição dada é determinada em relação a elas. Nesse sentido, também numa intuição dada, a diversidade se encontra necessariamente submetida às categorias” (KANT, 2003, p. 133-134).

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Para esse objetivo, a lógica demonstrava ser o campo de estudo mais propício.

Admitindo a relação inerente e complementar entre o pensar e o significar, Peirce buscou

desenvolver uma linha de especulação filosófica que não fosse incompatível com os métodos

e experimentos desenvolvidos pela ciência. Pretendeu, assim, formular uma teoria que

pudesse ser utilizada por todas as áreas do saber, naquilo que houvesse de comum. O contexto

lógico seria uma escolha ideal.

Peirce era um cientista, em suas mais diversas atividades; porém, mais do que

isso, era um lógico. Foi à lógica que dedicou, em uma prova de amor científico, a maior parte

dos seus escritos e foi essa mesma lógica que permeou todas as suas obras filosóficas até o

fim de seus dias. Inclusive, sua ênfase em buscar condições necessárias para questões como a

verdade foi responsável por certa indulgência com exageros e distorções (FEIBLEMAN,

1970, p.143).

Portanto a lógica, para Peirce, além de uma possível linguagem comum para todas

as ciências, era uma forma de demonstrar que o conhecimento científico, nas suas mais

diversas manifestações, repousava sobre princípios gerais. Seu mergulho progressivo na

lógica era conseqüência de sua busca pelos fundamentos das ciências, do conhecimento e da

própria realidade.

Um primeiro passo deveria ser o afastamento de todas as conjecturas de ordem

mística ou transcendental, para que as questões filosóficas pudessem ser enfrentadas com o

apoio de recursos metodológicos experimentais. Diferente de “positivar” a filosofia, a

pretensão era desenvolver a clareza e a transmissão de suas idéias, em qualquer área,

promovendo uma explicação da realidade que pudesse, discutida, retornar como agente de

transformação da mesma realidade. Do ponto de vista filosófico, esse projeto deu origem à

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escola do pragmatismo13 norte-americano. Do ponto de vista comunicativo, fixou as bases

para a teoria geral dos signos – a semiótica14.

Portanto, não se pode considerar as construções da semiótica de Charles Sanders

Peirce fora dessa pretensão fenomenológica mais ampla. O intelectual norte-americano

buscou utilizar metodologicamente as estruturas lógicas mínimas – os signos – para explicar o

conceito filosófico máximo – a noção de realidade. Nessa dupla convergência reside a

originalidade do pensador.

Sua vida foi curta para tamanha empreitada. Peirce viveu cerca de sessenta anos

de integral dedicação aos estudos, sem qualquer fama ou fortuna, encorajado por suas

próprias pretensões. O reconhecimento em vida veio em decorrência de seus trabalhos como

lógico, a muito custo, e contribuíram mais para a aceitação da lógica como ciência do que

para a valorização de suas idéias. É possível admitir que, se Peirce não conseguiu ser

devidamente reconhecido como lógico, foi menos ainda como filósofo. Vários anos ainda

teriam de se passar após a sua morte para que seus escritos fossem discutidos nos ambientes

acadêmicos e o mérito de suas idéias fosse verificado. Postumamente, seus leitores e alunos

contribuíram para a divulgação da maior parte de sua obra. Só então Peirce veio a ser

reconhecido como um dos maiores filósofos dos tempos modernos.

É por esses motivos que, na estrada da produção intelectual da humanidade,

Charles Sanders Peirce é mais considerado como um ponto de partida do que como um ponto

de chegada.

13 As duas linhas – semiótica e pragmatismo – representam decorrências de um ponto comum, a noção de Peirce sobre verdade e realidade. Sobre filosofia pragmática e verdade, é pertinente a crítica de Hans Lenk (1990, p. 39-40). 14 A estrutura lógica da semiótica guarda, ainda, semelhança com a idéia de “construção arquitetônica do pragmatismo” defendida por Peirce (2003, p. 193-195).

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1.4 BASES PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA SEMIÓTICA

Não é surpresa que a semiótica de Peirce guarda estreita relação com a sua lógica.

Inicialmente foi concebida como uma ciência maior, da qual a lógica seria uma subdivisão.

Contudo, o desenvolvimento de ambas foi gradualmente reduzindo suas diferenças, o que

tornou quase identitária a relação entre lógica e a teoria geral dos signos.

Foi o próprio Peirce quem reconheceu que não poderia estudar coisa alguma,

senão como um estudo de semiótica. Esta seria a fusão de suas teorias lógicas, filosóficas e

científicas – se é possível fundir coisas idênticas. Assim, os diversos aspectos das idéias

peirceanas, com íntima relação entre si, formavam um todo coerente e generalizante, com

raízes na lógica, na filosofia e nas ciências e com pretensões de sistematizar, de forma menos

cartesiana15, as categorias de pensamento humano. Esse todo respondia pelo nome de

semiótica.

Considerando seus trabalhos como fonte, essa não é uma afirmação fácil ou

unânime. A sua produção fragmentada, além do alto grau de complexidade de suas

construções, leva a crer que para o autor a semiótica tinha fronteiras muito mais amplas do

que lhe é hoje atribuída. A exata noção do que é a semiótica de Peirce encontra-se oculta em

sua própria obra.

Calcula-se que Peirce tenha deixado mais de oitenta mil manuscritos inéditos,

além de vários escritos publicados em vida. Até tempos recentes, menos da décima parte

dessas obras havia sido selecionada e sistematizada para publicação. Se esforços

contemporâneos tentam superar esse hiato com a catalogação do restante de seus trabalhos,

outro desafio ainda maior deverá ser a leitura e a compreensão dessas idéias,

15 Em um estudo bastante significativo da obra peirceana, Lucia Santaella (2004) procura demonstrar que a construção de Peirce rivalizava com a de Descartes – não no sentido de oposição, mas de formulação de um estatuto teórico mais adequado. Entre os principais pontos de discordância, está a importância diferenciada que ambos pensadores atribuem à intuição (que para Peirce não pode ser tomada como origem da descoberta, preferindo a abdução) (p. 111).

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consideravelmente abstratas e inovadoras, mesmo para nossa época. Vale a pena revisar

alguns desses fundamentos.

Um primeiro conceito científico básico em Peirce é o de falibilismo. Com base em

um evolucionismo próprio, defendeu que o conhecimento das leis da natureza é sempre

precário e sujeito a transformações. Por tal razão, não se poderia falar de princípios perpétuos

ou inerentes, uma vez que o pesquisador é naturalmente falível, como qualquer observador

(GALLIE, 1952, p.106-107).

Além disso, para Peirce ciência e filosofia não são um conjunto crescente de

conceitos, mas um processo constante de transformações, frutos de novas experiências e

observações, mediadas por idéias, e sempre dependentes do contexto social e histórico do

sujeito observador.

Desta forma, o falibilismo de Peirce repele a consideração da ciência como

instrumento de precisão ou de busca pela verdade e, ao mesmo tempo, abre espaço para a

ampliação do próprio conceito de ciência, como será evidenciado no próximo quadro.

Nesse contexto, delimitar o conceito da semiótica de Peirce requer, previamente, a

análise de sua estrutura geral do conhecimento. O quadro a seguir (adaptado de Santaella,

2003, p. 27) reflete a sua visão das ciências em geral, com destaque para a posição da lógica e

da semiótica:

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Quadro 1 – ARQUITETURA TEÓRICA DAS CIÊNCIAS SEGUNDO PEIRCE

Matemática

Fenomenologia

Estética

Ética

Gramática puraLógica crítica

Ciências normáticas

Semiótica ou lógica Retórica pura

Filosofia

Metafísica

Ciências físicas

Ciências da descoberta

Ideoscopia Ciências psíquicas

Ciências da digestão Ciências aplicadas

Em primeiro lugar, é importante observar como sua noção de “ciência” é ampla, a

ponto de envolver não só a lógica e a semiótica, como a própria filosofia. Somente com

fundamento na teoria do falibilismo podem ser relativizadas as diferenças entre essas áreas do

conhecimento, possibilitando uma classificação comum.

A primeira divisão separa as chamadas ciências da descoberta, da digestão e

aplicadas. A filosofia está incluída no primeiro grupo, que representa os conhecimentos

fundamentados na observação e na apreensão de idéias. As ciências da digestão são

responsáveis pela divulgação, classificação e discussão dessas idéias, enquanto as ciências

aplicadas as utilizam com vistas a uma produção eficiente de resultados. Para Peirce, a

filosofia é observativa porque lida com as percepções comuns e busca dar-lhes uma ordem e

descobrir o que lhes é verdadeiro. Por isso, entende que a fenomenologia é independente da

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epistemologia, mas a recíproca não é verdadeira, já que a epistemologia depende dos dados

fenomenológicos (FEIBLEMAN, 1970, p.198-199).

Por isso, dentro do campo da filosofia, a fenomenologia foi um dos primeiros

desafios de Peirce, que tomou para si a tarefa de analisar a experiência, em todas as suas

formas possíveis. Caberia à fenomenologia a observação e classificação dos fenômenos,

destacando suas propriedades universais.

Considerando a Teoria das Categorias existente desde Aristóteles, com clara

inspiração em Kant16, o filósofo norte-americano reformou a fenomenologia de sua época

para traçar um novo modelo de categorias universais, que chegou a batizar de phaneroscopia.

Na construção de Peirce, a fenomenologia inicia-se livre e aberta, permeável a

todo tipo de fenômeno – assim entendido qualquer modo ou manifestação que se apresente ao

observador. Apenas dessa maneira, sem conceitos prévios (pré-conceitos) ou juízos

valorativos, a fenomenologia pode dar conta da multiplicidade de manifestações da realidade.

A partir desse estado inicial, cabe à fenomenologia a complexa tarefa da

categorização. Esse esforço consiste em observar o conjunto de fenômenos possíveis e, com o

apelo inevitável à sensibilidade, identificar as suas categorias universais – as características

verificáveis em todos os fenômenos, ainda que variantes seus modos ou manifestações.

Considerado por Peirce como a primeira tarefa a ser cumprida por uma filosofia, a

categorização foi comparada a “agarrar nuvens”, exigindo competências elevadas do

pesquisador, como a contemplação e capacidades de distinção e generalização.

Deixando de lado a categorização mais comum, que classificava os fenômenos

pelos seus materiais ou conteúdos físicos, Peirce gradualmente deslocou o foco da

16 A inacessibilidade do real, senão pelas categorias, é o ponto mais próximo entre Kant e Peirce: “todas as representações que nos chegam sem o nosso arbítrio (como as dos sentidos) nos dão a conhecer os objetos não de outro modo mas sim como nos afetam, permanecendo-nos desconhecido o que eles sejam em si mesmos, e que, portanto, no que a tal espécie de representações se refere, se bem com a mais esforçada atenção e clareza que possa acrescentar um intelecto, só podemos chegar a conhecer os fenômenos; todavia nunca as coisas em si mesmas” (KANT, 1981, p. 106-107).

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fenomenologia, saindo da experiência ou manifestação do objeto e passando para o seu

processo de apreensão pelo observador. Desta forma, após diversos e minuciosos conjuntos de

observações, são elaboradas as suas propostas de categorias universais, elementos de todas as

formas de experiência verificáveis e pressupostos de toda cognição possível acerca dos

objetos.

Em uma primeira terminologia, as categorias foram definidas como “qualidade”,

“relação” e “representação”. Com uma maior depuração, Peirce cunhou os termos

“Primeiridade”, “Secundidade” e “Terceiridade” – palavras criadas especialmente para definir

as categorias – a fim de impor um rigor e uma precisão terminológica que não seria possível

com o uso de conceitos já carregados de outros sentidos (a criação de novas palavras foi uma

característica constante na obra de Peirce). Essas categorias, um dos pontos basilares de toda a

teoria peirceana, ainda seriam bastante discutidas ao longo de sua obra.

Uma vez que a fenomenologia seria capaz de definir as categorias universais do

pensamento como um todo, sobre ela deveriam ser assentadas as ciências normativas.

Entendimento oposto levaria à conclusão de que a fenomenologia não seria inteiramente

independente das ciências normativas e de que neste âmbito seriam possíveis juízos a priori –

independentes de experiência –, ambas convicções desprezadas por Peirce.

No espectro prescritivo das ciências normativas, fazem parte dessa divisão a

estética – na ordem do admirável ou agradável, – a ética – como o domínio das ações e

condutas – e a semiótica – abrangendo todo o pensamento deliberado.

O campo da filosofia torna-se completo com a inclusão da metafísica, assim

considerada como a ciência ou o estudo da realidade. O real, para a metafísica, difere daquele

da fenomenologia por ser, idealmente, independente da linguagem ou da percepção humana.

É possível entender, por essa rápida descrição, como a fenomenologia e a

semiótica de Peirce estão mais próximas entre si do que da metafísica. Não é por outra razão

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que as categorias fundamentais de pensamento descritas anteriormente representam um

princípio fundamental para o estudo dos signos.

1.5 TRÊS CATEGORIAS DA REALIDADE

Para compreender a semiótica peirceana é preciso desenvolver um estudo

aprofundado dos seus conceitos, primordialmente. Para tanto, é essencial ter em mente as

idéias que amparam as suas noções de Primeiridade, Secundidade e Terceiridade – as três

categorias fundamentais do pensamento. Essas categorias triádicas compõem o núcleo da

fenomenologia de Peirce.

Com inspiração kantiana17, Peirce reconheceu que todos os fenômenos da

realidade transparecem à percepção humana como variações de conteúdo de categorias

fundamentais determinadas. De forma distinta de Kant, sua fenomenologia procurou examinar

as mais diferentes manifestações da realidade para sintetizar as possibilidades de apreensão de

idéias nas mais elementares categorias possíveis – apenas três.

Mais de quinze anos depois de propor as categorias universais18, como forma de

categorização do processo de cognição dos objetos pela mente, Peirce retomou e aprimorou os

seus conceitos e os estendeu a toda análise da realidade. O conjunto de resultados obtidos pelo

filósofo americano em observações ligadas aos mais diversos campos científicos comprovou,

progressivamente, a aplicabilidade das categorias a toda forma de conhecimento. Formava-se

o caminho para uma teoria geral de características cosmológicas.

A versão final dessa abordagem pretensiosa não pôde ser verificada, em virtude

da sua morte, que o impediu de concluir alguns importantes trabalhos. Se Peirce havia

desenvolvido uma teoria fenomenológica mais apurada, ou se havia ainda aprimorado as suas

categorias universais, talvez não se possa jamais verificar.

17 A categorização é apontada por Kant como necessária: “não podemos, pois, explicar nada, a não ser reduzido-o a leis, cujo objeto possa resultar possível em alguma experiência” (KANT, 1981, p. 117). 18 Uma das formas iniciais com que foram propostas as categorias envolve as denominações “Presentidade” (Presentness), “Conflito” (Struggle) e “Leis” (PEIRCE, 1980, p. 17-24).

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Da forma como expostas, as categorias triádicas da teoria peirceana representam

as três possibilidades de compreensão dos fenômenos do mundo e não indicam ordem ou

prevalência, mas complementaridade. Da combinação recíproca desses três aspectos, assim

como da variação de seus conteúdos, toda forma de idéia ou experiência poderia ser

representada.

As categorias universais de Peirce não podem ser tomadas como conceitos em si,

da forma como concebemos o termo atualmente. Da mesma forma, não são fenômenos, posto

que, como são universais, não acrescentam conhecimento propriamente novo (GALLIE,

1952, p. 183-184).

São idéias ou noções puras, que podem ser verificadas em qualquer fenômeno

observável (embora não se confundam com o fenômeno em si), tão simples e abrangentes

quanto universais. É esboçado adiante um quadro comparativo das categorias, como tentativa

de expor com mais clareza os seus fundamentos, jamais com pretensões conclusivas.

Quadro 2 – CATEGORIAS UNIVERSAIS DO PENSAMENTO DE PEIRCE 1º 2º 3º

PRIMEIRIDADE SECUNDIDADE TERCEIRIDADE Sentimento Conflito Interpretação

Acaso e espontaneidade Ação e reação Mediação e processo Originalidade e liberdade Fatos concretos e reais Crescimento e hábitos

Qualidade Experiência Tradução Aspecto Existência Pensamento

Unidade e indivisibilidade Binômio e alteridade Tríade e significação

1.5.1 Primeiridade

A noção inicial é a da Primeiridade, que corresponde à qualidade, ao fenômeno no

seu aspecto mais primordial. Essa categoria responde pela impressão, pela apreensão de um

determinado estado de coisas em si mesmo, sem relação com outros referenciais. Pela

Primeiridade, um acontecimento é percebido por algum de seus aspectos, independente da

noção de tempo, espaço ou mesmo da possibilidade de ser diferente.

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A Primeiridade é o aspecto mais básico da manifestação. Representa um aqui-e-

agora, perceptível apenas como momento presente e alheio à transitoriedade do tempo. É uma

característica pura, uma qualidade que se apresenta pelo que é, inteira e indivisível.

A noção de Primeiridade apela para as formas mais básicas de nossa percepção.

Por este fato, é avessa à nomeação ou à definição. É algo muito mais sentido do que

estabelecido racionalmente.

Por isso, enquanto é a essência de toda observação presente, aquilo que

impressiona pelo que é, a Primeiridade raramente pode ser discutida sem perder sua natureza

efêmera. Retirá-la da sua imediaticidade, acrescentando temporalidade, já a torna algo

diferente do que ela foi, no momento da percepção.

A Primeiridade pressupõe unidade e indivisibilidade. Tudo o que é percebido no

momento presente compõe um todo unitário e íntegro, comporta a totalidade da consciência

em um dado instante. Destacar um ou outro aspecto desse conjunto, para análise, também

implica romper com a Primeiridade. O que se estará observando, nesse caso, não é a

qualidade primeira, ou sequer algum de seus componentes (posto que é indivisível); é alguma

outra coisa, completamente diferente, que apenas remete à idéia original.

O que precisa ser reforçado acerca da Primeiridade, em si considerada, é a sua

completa incompatibilidade com a idéia de um segundo. Assim, a Primeiridade é indivisível,

porque a idéia de parte já pressupõe um segundo, o todo; não pode ser tida como nova, porque

remeteria a um segundo, o velho; não pode ser afirmada, porque subentende um segundo, a

negativa.

Portanto, com as limitações impostas pela linguagem ora em uso, é possível

conceber a Primeiridade apenas como algo original, espontâneo, único e livre, existente em si

mesmo e sem referências, ainda que implícitas, a qualquer outra coisa.

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Isso não significa que a Primeiridade é algo raro e impossível de ser verificado, de

forma autêntica. Muito pelo contrário, toda percepção é plena de qualidades primeiras, cada

uma única em seu momento, perdido para sempre no tempo. Há ainda a possibilidade dessa

sensação primeira ser algo prolongado, duradouro, desde que seja inteira e sem referências a

antes ou depois. A Primeiridade não implica tempo curto; ela é incompatível com a própria

noção de temporalidade.

Outro ponto importante a ser destacado é o fato de a Primeiridade não se

confundir com a noção do objeto com o qual está relacionada. A qualidade primeira, o aspecto

imediato que impressiona a percepção, em nada depende da idéia do ente material do qual se

originou; mais ainda, é com ela inteiramente incompatível. Por isso, a Primeiridade deve ser

buscada no espaço infinitamente mínimo entre o sentir e o reconhecer.

1.5.2 Secundidade

Em seguida é apresentado o conceito de Secundidade, relacionado à diversidade,

ao fenômeno como ação e reação. Nessa categoria o que sobressai é a mudança, a variação, a

passagem de um estado verificado a outro. Conforme a Secundidade, um aspecto da realidade

é entendido sob a forma de binômios, em uma relação de contraste em que cada elemento

supõe a existência do seu oposto.

A Secundidade é o âmbito da existência, das distinções, dos contrastes, dos fatos e

do tempo. É caracterizada pelo ato de “esbarrar”, de verificar a existência, a oposição, a

reação de um ente em resposta a nossos próprios atos. As relações de polaridade e os

binômios são a forma mais comum de representar essa categoria.

Enquanto a Primeiridade capta apenas uma qualidade de um objeto, a

Secundidade envolve a existência desse mesmo objeto (em oposição ao observador). As

qualidades não são partes de um binômio, não exigem a existência de um segundo, e por isso

são Primeiridades. Porém, as suas sensações podem ser incluídas em algumas relações, como

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eu-objeto, estímulo-resposta, ação-reação. Portanto, os sentimentos são simples consciência,

Primeiridades, enquanto as sensações incluem (1) o sentimento e (2) a alteridade do sujeito

sensível e, assim, são Secundidades.

Por isso, qualquer excitação sensível pode ser abordada como uma Primeiridade,

se for manifestada como uma pura qualidade sem referência a qualquer outro, ou como

Secundidade, se importar em uma reação do sujeito, ou na consciência de sua alteridade.

Qualquer percepção de um outro, em oposição ao eu, implica a existência de um segundo.

Isso é mais claro ainda nas situações em que prevalece a noção do outro, como

nos conflitos, surpresas, resistências e eventos inesperados. É comum que a própria definição

das coisas seja feita pelo contraste, uma com as outras.

A noção de experiência surge como uma abordagem da Secundidade. O estado de

inércia característico da Primeiridade é interrompido pelo confronto com um segundo, um

contraste. A reação à mudança, e a própria mudança em si, para Peirce, agem como

catalisadores da experiência, ao retirar o sujeito cognoscente do estado de mesmidade típico

das qualidades primeiras e forçar o reconhecimento de um segundo.

Por fim, é preciso estabelecer que a Secundidade é esgotada na relação binomial,

dual, no contraste entre um primeiro e um segundo. A noção de processo, ou mediação, como

ocorre no pensamento em geral, já implica a presença de um terceiro elemento. Assim, a ação

humana no mundo pode ser abordada como Secundidade, em termos de contraste, mas na

maioria e na maior freqüência dos casos não será possível separá-la do seu contexto sígnico,

que pertence à Terceiridade.

1.5.3 Terceiridade

A Secundidade contém a Primeiridade, assim como a Terceiridade contém ambas.

A Primeiridade é a qualidade em si, livre da necessidade de um segundo; Secundidade é a

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experiência, o contraste, em sua característica de binômio; Terceiridade, por conseqüência, é a

capacidade de inteligir e compreender o mundo, relacionando as duas categorias anteriores.

A Terceiridade supõe uma síntese intelectual das percepções providas pelas

demais categorias, promovendo a formação de uma idéia diferenciada das proposições

originais, mas com elas guardando uma relação. Há diversos tipos de relações terceiras, mas o

signo é uma das mais importantes.

O signo surge como elemento de mediação entre o que é percebido e o sujeito

cognoscente. Uma vez que os fenômenos não podem ser absorvidos como tais pelo sujeito

que os observa, é necessária sua “tradução” em uma dada forma de interpretação – o signo.

Esse mediador necessário é o que o homem produz como resultado da percepção e o que

interpreta no nível do pensamento.

Uma vez que a apreensão direta dos objetos, ou de suas percepções, é negada ao

intelecto racional humano, é correto dizer que o pensamento transita sobre o mundo simbólico

dos signos. Colocando o próprio signo como objeto da percepção, as possibilidades de

construção intelectual tornam-se infinitas. Além de “traduzir” uma percepção como signo, a

mente pode ainda “traduzir” aquele signo como outro signo e assim sucessivamente.

Para os efeitos desse trabalho, a noção de semiose ilimitada de Peirce pode ser

assim simplificada. A consciência interpretativa – se é que é possível outra forma de

consciência – caracteriza-se pela remissão de sentido de um signo a outro, estabelecendo

relações, hipóteses, explicações e transformações de sentido, em uma cadeia infinita. Essas

noções serão mais aprofundadas no capítulo seguinte.

A prevalência dos signos no intelecto racional não importa necessariamente na

predominância da Terceiridade sobre as demais categorias. A Primeiridade, como

consciência, e a Secundidade, como conflito, estão presentes em todas as formas de

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percepção, ainda que mascaradas sob o rótulo do signo. O ser humano sente ao mesmo tempo

em que reage e interpreta.

Além disso, o conceito de signo em Peirce é expandido até ultrapassar os limites

da Terceiridade. Apesar do signo ser uma mediação intelectual por natureza, são apontadas

possibilidades de ações e experiências – e até mesmo qualidades – atuarem como signos. A

qualidade pode conter em si aspectos que remetam ao objeto (ou a um objeto) que a possui.

As ações e experiências, por sua vez, deixam vestígios que permanecem ligados ao fato que

os originou.

Essas possibilidades, em conjunto com o signo triádico característico da

Terceiridade, antecipam as definições de ícone, índice e símbolo, os três tipos de signos que,

na linguagem, no pensamento ou na realidade, são recorrentes na semiótica peirceana.

A Terceiridade envolve a Secundidade e a Primeiridade, assim como a

Secundidade supõe uma Primeiridade. Essa continência das categorias explica como os

fenômenos mais complexos podem ser compreendidos – desde uma percepção de seus

aspectos, passando por um contraste até uma mediação para novas considerações.

Por tal razão o conceito de signo, muito embora usualmente associado à noção de

Terceiridade, não dispensa a consideração de aspectos da ordem da Primeiridade ou da

Secundidade, sempre presentes19. O processo de significação, na visão peirceana, é sempre

uma relação entre três elementos básicos, em que um aspecto percebido ou suposto confronta

uma determinada ordem para mediar a formação necessária de uma idéia. Nesse ponto a

semiótica de Peirce mostra sua diferença em relação a outras linhas de estudo do signo, como

a semiologia européia, iniciada por Ferdinand de Saussure, que adota o conceito binomial de

signo.

19 “Assim, toda idéia, toda regularidade no universo (como o tempo) tem graus variáveis de Primeiridade, Secundidade e Terceiridade, isto é, qualidade, relações, continuidade; relações monádicas, diádicas, triádicas” (SHERIFF, 1994, p. 22).

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Sendo categorias desprovidas de requisitos materiais necessários, os princípios

triádicos propostos por Peirce pairam como formas abstratas, prontas a serem utilizadas para

explicar qualquer aspecto da realidade. Do ponto de vista comunicacional, isso permite o

reconhecimento da mesma noção de signo para quaisquer formas de interação humana, por

quaisquer meios de transmissão de idéias, inclusive sem a interferência da língua, ou

linguagem verbal. Também aqui a semiótica de matriz norte-americana é distinta de outras

escolas de análise do signo, que seguem por uma tendência mais lingüística.

Uma explicação mais detalhada sobre a percepção e a modelagem peirceana do

signo será vista nos capítulos seguintes, assim como uma possível aplicação no contexto

jurídico.

1.6 A SEDUÇÃO DA ESTRUTURA

A fenomenologia peirceana, com destaque para a definição das categorias

triádicas, é o fundamento para a compreensão da sua proposta de estudo semiótico. Dentro da

análise dos signos, o desenvolvimento das suas idéias fez surgir não apenas um corpo teórico

complexo e reconhecido, mas também um conjunto de críticas à sua forma de abordagem da

comunicação humana.

A maior parte dessas críticas guarda relação precisamente com as bases da

semiótica de Peirce – sua fenomenologia e as categorias triádicas – que, por este motivo,

foram descritas anteriormente. Portanto, mesmo sem mergulhar na profundidade da descrição

do signo segundo o filósofo americano, é possível estabelecer a oposição entre a teoria e suas

críticas e antecipar algumas possíveis considerações.

A noção de estrutura no trato do conhecimento humano (ocidental) não é recente

e remonta aos trabalhos clássicos de Aristóteles. na Física, há a distinção entre a morfé, ou

forma física do ser; o eidos, ou idéia do objeto; e a ousia, sua substância.

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O eidos está inseparavelmente ligado à ousia, embora representem aspectos

diferentes. Seria, nesse sentido, o que dá vida à coisa e explica as relações atuantes sobre a

substância, embora Aristóteles não admitisse sua cognição isolada. O eidos seria uma

primeira definição de estrutura (OÑATE Y ZÚBIA, 2001, p.32).

A necessidade de uma forma atravessa toda a filosofia ocidental, impregnada nas

mais diversas tendências descritivas da realidade. Desde as teorias organicistas, às categorias

do pensamento de Kant ou ao materialismo marxista, a construção ou a exposição de

estruturas cumpre importante papel na divulgação de idéias e ideologias20.

Estruturalismo, no sentido filosófico mais restrito, é o nome atribuído ao conjunto

de concepções que frutificaram no início do século XX, cultivadas por nomes ligados a

diferentes áreas do conhecimento, como Ferdinand de Saussure e Lévi-Strauss. Em superficial

análise, o vetor de identidade do estruturalismo apontava na direção da predicação de

conjuntos definidos de regras como meio de apreensão das formas do real.

O estruturalismo empreendia uma reação e guardava distinção do positivismo

científico da sua época pela maneira como entendia a noção de forma. Enquanto para o

positivismo, amparado nas idéias de cientificidade e pesquisa empírica, os objetos poderiam

ser compreendidos por meio da busca racional das leis gerais, os estruturalistas relegavam a

segundo plano a apreensão dos objetos, isoladamente, e centravam o foco nas suas relações

entre si e com o todo estruturante.

Não é surpresa que a lingüística moderna e a semiologia européia tenham nascido

e se desenvolvido sob o prisma do estruturalismo, num nítido predomínio da forma – a

linguagem – sobre o seu objeto material. Tanto a semiologia quanto o estruturalismo

20 É possível supor a inafastabilidade da ideologia, ou pelo menos sua função mediadora – sígnica talvez – no mesmo caminho das palavras de Pedro Demo (2002, p. 19): “Mesmo assim, ideologia não detém apenas significações negativas. Ao contrário. Primeiro, é parte inevitável do negócio científico, ou no sujeito, ou no objeto, ou em ambos. A própria condição de sujeito cognoscente acarreta o reconhecimento de que ideologia é intrínseca na própria interpretação da realidade”.

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evoluíram e, numa significante alusão mitológica, tiveram nos seus filhos seus mais

importantes críticos e algozes.

Para apontar algumas questões aos fundamentos da semiótica de Peirce é preciso

determinar até que ponto sua construção coincide com a teoria européia da semiologia. Essa

comparação é importante não apenas para distinguir entre as duas formas de teoria dos signos,

mas para determinar se e com que extensão o filósofo americano pode ser considerado um

precursor das idéias estruturalistas e, portanto, vulnerável às mesmas críticas.

A semiologia européia, enraizada na lingüística saussureana, certamente deve

tributos à filosofia desenvolvida por Peirce no século anterior. São comuns o apelo ao

desenvolvimento de uma doutrina geral dos signos, sua aplicação às interações humanas de

uma forma geral e a necessária distinção entre a linguagem verbal e os outros códigos de

comunicação.

Todavia, as diferenças são, com o perdão do trocadilho, significativas. Para

Saussure (1972, p. 24), a semiologia surge como um gênero necessário para o

desenvolvimento da lingüística, esta apontada como um de seus ramos.

A língua é um sistema de signos que exprimem idéias, e é comparável, por isso, à escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos simbólicos, às formas da polidez, aos sinais militares etc., etc. Ela é apenas o principal dêsses sistemas.

Pode-se, então, conceber uma ciência que estude a vida dos signos no seio da vida social; ela constituiria uma parte da Psicologia social e, por conseguinte, da Psicologia geral; chamá-la-emos de Semiologia (do grego semeîon, ‘signo’). Ela nos ensinará em que consistem os signos, que leis os regem. Como tal ciência não existe ainda, não se pode dizer o que será; ema tem direito, porém, à existência; seu lugar está determinado de antemão. A Lingüística não é senão uma parte dessa ciência geral; as leis que a Semiologia descobrir serão aplicáveis à Lingüística e esta se achará dessarte vinculada a um domínio bem definido no conjunto dos fatos humanos.

É certo que Barthes posteriormente viria a inverter essa relação, subordinando a

semiologia à lingüística, mas o essencial é o modo como foi estabelecida essa relação íntima,

necessária e quase identitária entre essas duas áreas do conhecimento, que têm uma na outra

sua razão de ser.

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Para Peirce, a semiótica está mais ligada à filosofia e à lógica que à lingüística ou

outra ciência. Como demonstrado nas páginas anteriores, a semiótica seria uma lógica maior,

relacionada à própria potencialidade de cognição humana. Em suas próprias palavras, “em seu

sentido geral, a lógica é, como acredito ter mostrado, apenas um outro nome para semiótica, a

quase-necessária, ou formal, doutrina dos signos” (Peirce, 2003, p. 45). Em suma, seria um

produto previsível da fenomenologia peirceana e uma derivação de sua busca pelas categorias

universais.

Esses pontos, expostos sucintamente, indicam que as divergências entre a

semiótica de Peirce e a semiologia de Saussure vão muito além do sufixo adotado. O que resta

verificar é a possibilidade de rotular as idéias do filósofo americano sob o estigma do

estruturalismo ou coisa diversa.

Em primeiro lugar, é preciso considerar as dificuldades em apontar as

características comuns do estruturalismo, o qual, nas suas diversas derivações –

estruturalismo genérico, estruturalismo genético, pós-estruturalismo – apresenta noções tão

destoantes quanto podem ser as idéias de seus integrantes. Além disso, em segundo lugar, não

se pode ignorar que o estudo da estrutura não esteve de forma alguma limitado a essa

corrente. Apesar da ênfase estruturalista nesse aspecto, a noção de forma ou sistema

encontrou guarida em muitos outros pensadores, com a mesma ou até maior importância.

Por estas razões e respeito ao contexto geográfico e sócio-histórico específico

usualmente associado ao termo, é recomendável deixar de lado uma possível classificação das

idéias de Peirce como filósofo estruturalista, tanto pelas dificuldades inerentes a esse tipo de

comparação, quanto pela irrelevância dessa rotulação, para as conclusões que serão

apresentadas a seguir.

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É preciso considerar, porém, o apego aos sistemas lógicos e a uma metafísica em

que a verdade é orientada pela lógica, apesar da importância da ação individual, como

evidenciado a seguir:

Mas se a teoria de Peirce aproxima-se da verdade, várias coisas são reafirmadas. Em contraste com as visões deterministas, nihilistas, absurdistas da existência humana que foram dominantes ao longo dos últimos cem anos, a teoria de Peirce é que a criação trabalha em direção a fins lógicos e que indivíduos são livres para participarem neste processo de criação ao tornarem o mundo cada vez mais lógico. (SHERIFF, 1994, p. 59)21

Fica convencionado, portanto, que não é possível determinar se o filósofo

semioticista e pragmatista Charles Sanders Peirce possa ser classificado como estruturalista –

ou que não seja. Todavia, é possível verificar em sua obra uma ênfase nítida às noções de

estrutura – principalmente no que se refere às categorias triádicas, – o que justifica a

insistência no assunto.

Entre as diversas críticas apresentadas às posições estruturalistas, vieram à tona as

discussões sobre a natureza da estrutura. O objetivo das considerações era desmerecer o

crescente predomínio da abordagem sistemática e sua auto-referência.

A pesquisa estruturalista, em linhas gerais, envolve a proposição de modelos

formais, relacionados com as regularidades e padrões verificados na realidade. Desta forma, o

sistema resultante é esperado como sendo abrangente e coerente o suficiente para explicar de

maneira eficiente os fenômenos estudados.

Como combustível para as críticas, a valorização da estrutura atingiu proporções

menos aceitáveis, em dois aspectos: de um lado, as afirmações de que as relações formais

eram inerentes aos objetos verificados, portanto descobertas e não socialmente construídas; e

de outro o constante deslocamento do foco das discussões do objeto originário para os

modelos propostos, criando um processo contínuo de auto-referência do discurso. Ambas as

21 Tradução livre de: “ But if Peirce’s theory approximates the truth, several things are reaffirmed. In contrast to the deterministic, nihilistic, absurdist views of human existence that have been dominant for the past one hundred years, Peirce’s theory is that creation is working toward logical ends and that individuals are free to participate in that creation process by making the world more and more logical”.

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ocorrências constituíam sintomas de uma tendência comum: o predomínio da estrutura como

objeto em si.

Desta forma, a discussão crítica inicia com a verificação do papel da estrutura no

conhecimento científico. Pode ser um objeto determinado, passível de estudo e apreensão nos

limites de suas relações integrantes, ou pode ser um método de verificação do real, funcional e

subsidiário para a compreensão de outros fenômenos.

No primeiro caso, o estudo da estrutura como objeto não pode ser empreendido

senão do ponto de vista cultural, como fruto da produção intelectual humana. Do contrário, ao

admitir que os modelos sistemáticos estão presentes e condicionam os objetos, ao reconhecer

sua inafastabilidade e ignorar que são proposições teóricas, transientes e historicamente

condicionadas, as posições mais formalistas são também submetidas a maiores críticas, ao

adotar proposições universais. As posições intelectuais nesse sentido, portanto, tanto podem

derivar de um racionalismo no estilo kantiano – com a previsão da existência de estruturas

apriorísticas – quanto de uma resistência hermética em defesa de uma teoria.

A segunda possibilidade de abordagem estrutural é mais resistente às críticas pós-

estruturalistas. O reconhecimento do aspecto funcional e utilitário das formas permite a sua

extensão a diversas áreas do conhecimento, sem confusão com a natureza do objeto

verificado.

O trabalho com as estruturas, em Peirce, é marcante. Considerando o viés da sua

lógica e da sua fenomenologia, é possível traçar-lhe um perfil de um filósofo descritivo da

realidade, prescritivo de modelos, fortemente envolvido em conceituações e classificações.

Além disso, a coerência interna de sua vasta obra deixa a entender que sua pretensão era

traçar um sistema geral e universal da cognição humana.

A questão a ser explorada é sobre a natureza da estrutura no trabalho de Peirce:

como método ou objeto. A resposta não é simples e de forma alguma definitiva. As

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considerações desenvolvidas são provisórias, sujeitas não somente a críticas, como também a

constatações em sentido contrário.

A conclusão defendida neste texto é a de que a abordagem estrutural não é um

binômio entre objeto e método, mas um contínuo de possibilidades, variando em grau e

intensidade de acordo com a ideologia e a filosofia do autor analisado. No caso de Peirce,

avesso a dicotomias, entende-se que veio a adotar estruturas tanto quanto objeto quanto como

método, em variadas gradações.

No primeiro momento, o trabalho de Peirce em lógica deitou âncora no estudo dos

conceitos matemáticos e proposicionais, num exemplo claro de elaboração de uma estrutura

para explicar outras estruturas verificadas. Assim, os sistemas foram utilizados não apenas

como meio de pesquisa, mas também como próprio foco da pesquisa teórica.

Em decorrência disso, o estudo sobre as categorias triádicas e sobre os signos

também terminou por adotar esse duplo papel da estrutura. Se de um lado o filósofo fez uso

das abstrações sistemáticas – como o signo – com função meramente instrumental, por outro

envolveu-se em análises sobre a relação das idéias entre si, culminando com uma

metalinguagem formal cada vez mais auto-referente e ‘inerente’ – como é possível verificar

no estudo sobre as categorias universais. No campo da semiótica, especificamente, as relações

dos signos entre si ou com seus respectivos objetos e interpretantes resultariam mais tarde na

formação de três ramos distintos – a gramática especulativa, a retórica especulativa e a

semântica discursiva.

É importante ressaltar, ainda, que a abordagem metodológica das estruturas parece

ter predominado ao longo da obra do filósofo, apesar das considerações efetuadas acima.

Numa visão geral da filosofia peirceana e de forma coerente com os princípios do

pragmatismo, suas construções sobre lógica, semiótica ou mesmo fenomenologia

combinavam-se como instrumentos utilitários para a consecução de seus objetivos gerais: o

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estudo da cognição humana. Analisadas dessa forma mais abrangente, as suas estruturas não

passaram de ferramentas metodológicas.

Por tudo quanto foi examinado, é possível admitir que Peirce está relativamente

sujeito a parte das críticas direcionadas ao estruturalismo, pela ênfase, em alguns momentos,

no estudo das estruturas idealizadas, sem destacar com a mesma intensidade seu caráter

transitório, relativo e condicionado. Isso de maneira alguma impede a valorização e a adoção

dos conceitos peirceanos, desde que atualizados sob uma perspectiva crítica, sem perder de

vista seu caráter instrumental e transiente.

1.7 CONSIDERAÇÕES SOBRE CATEGORIZAÇÃO E MÉTODO

O objetivo do presente capítulo foi estabelecer os fundamentos da semiótica de

Charles Sanders Peirce, com base em suas próprias idéias sobre a fenomenologia e as

categorias universais. Muito ainda poderia ter sido acrescentado a respeito de seus esforços

em traduzir a multiplicidade do real em uma teoria íntegra e coerente. Em contraste com a sua

obra, que primou pela universalidade, estas linhas tiveram de ser restritas e bem delimitadas.

O primeiro foco privilegiado foi a caracterização das ciências segundo Peirce, a

fim de identificar a posição sistemática ocupada pela sua fenomenologia, sua lógica e

semiótica. Em seguida, foram expostos os aspectos gerais das categorias universais da

fenomenologia peirceana, com análise de suas relações recíprocas.

A importância de tratar da fenomenologia de Charles Sanders Peirce reside

precisamente no estudo dessas categorias, fundamentais para a compreensão da teoria dos

signos desenvolvida pelo filósofo, apresentada no capítulo seguinte. As idéias de

Primeiridade, Secundidade e Terceiridade, muito mais do que apresentarem conceitos

abstratos e imprecisos, fornecem as pistas para a interpretação da forma como Peirce via a

realidade. Tanto assim que essas categorias são recorrentes em toda a sua obra, como uma

devoção aos elementos triádicos.

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Sua atualidade é devida pelo seu caráter elementar e universal. As três categorias

podem ser aplicadas a qualquer aspecto do conhecimento, como pretendia Peirce, e são bases

para a construção de diversos sistemas interpretativos, como a sua semiótica. Sua obra nunca

pode ser considerada discutida o suficiente. Só resta deixar, como fez o próprio Peirce, as

outras idéias para outros papers.

A semiótica apresenta um grande potencial explicativo da realidade

comunicacional humana. Esse aspecto não passou despercebido por Peirce ou para os outros

semioticistas (ou semiologistas), que desenvolveram ao longo do século passado os principais

elementos da análise dos signos. Nesse cenário, é sempre importante caracterizar essas teorias

segundo o exame das bases filosóficas que as fundamentam, a fim de evidenciar as distinções

e tornar mais claras as formas de abordagem propostas.

Por este motivo foram descritos aqui, ainda que superficialmente, os fundamentos

filosóficos da semiótica peirceana – sua fenomenologia e suas categorias triádicas. Em

seguida esses mesmos elementos foram submetidos a uma análise crítica, com ênfase nas

discussões sobre a abordagem estrutural.

A síntese das considerações repete em muito as críticas apresentadas contra o

movimento estruturalista. Sem negar a importância dos modelos formais, ficam registrados os

alertas contra o excessivo formalismo, sua adoção como realidade em si ou seu discurso auto-

referente22.

O uso de estruturas para descrever a realidade parece inevitável, entendimento

tanto mais verificável no âmbito da linguagem. A necessidade de explicação do mundo

exterior força o sujeito cognoscente a usar ou elaborar modelos formais, que são tão mais

sugestivos e sedutores quanto forem capazes de fornecer respostas com aparência de verdade.

22 Afinal, no alerta de Vandyck Nóbrega de Araújo (1986, p. 57), “nenhuma ciência está capacitada a provar a inerência e a sistematicidade de si mesma”.

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Essa é a idéia defendida por Michel Pêcheux (2002, p. 34-35), ao analisar a relação do

“sujeito pragmático” com as “coisas-a-saber”:

As “coisas-a-saber” representam assim tudo o que arrisca faltar à felicidade (e limite à simples sobrevida biológica) do “sujeito pragmático”: isto é, tudo o que o ameaça pelo fato mesmo que isto exista (o fato de que seja “real”, qualquer que seja a tomada que o sujeito em questão tenha ou não sobre a estrutura do real); não é necessário ter uma intuição fenomenológica, uma pegada hermenêutica ou uma apreensão espontânea da essência do tifo para ser afetado por essa doença; é mesmo o contrário: há “coisas-a-saber” (conhecimentos a gerir e a transmitir socialmente), isto é, descrições de situações, de sintomas e de atos (a efetuar ou a evitar) associados às ameaças multiformes de um real do qual “ninguém pode ignorar a lei” – porque esse real é impiedoso.

O projeto de um saber que unificaria esta multiplicidade heteróclita das coisas-a-saber em uma estrutura representável homogênea, a idéia de uma possível ciência da estrutura desse real, capaz de explicitá-lo fora de toda falsa-aparência e de lhe assegurar o controle sem risco de interpretação (logo uma auto-leitura científica, sem falha, do real) responde, com toda evidência, a uma urgência tão viva, tão universalmente “humana”, ele amarra tão bem, em torno do mesmo jogo dominação/resistência, os interesses dos sucessivos mestres desse mundo e os de todos os condenados da terra... que o fantasma desse saber, eficaz, administrável e transmissível, não podia deixar de tender historicamente a se materializar por todos os meios.

A estrutura, homogênea e universal, atende de forma sedutora à “urgência” do

modo pragmático23 de compreender e lidar com o real. É preciso, todavia, frisar o seu caráter

metodológico e funcional, como pode ser apreendido na lição exposta por Umberto Eco

(1997, p. 251):

Uma pesquisa sobre os modelos da comunicação leva-nos a empregar grades estruturais para definirmos tanto a forma das mensagens quanto a natureza sistemática dos códigos (sem que a assunção sincrônica, útil para ‘enformar’ o código considerado e reportá-lo a outros códigos opostos ou complementares, exclua uma subseqüente investigação diacrônica, capaz de explicar a evolução dos códigos sob a influência das mensagens e dos processos de decodificação que ocorrem ao longo da história).

A elaboração de grades estruturais torna-se uma necessidade desde que queiramos descrever fenômenos diferentes com instrumentos homogêneos (isto é, descobrir homologias formais entre mensagens, códigos, contextos culturais onde as mensagens funcionam – numa palavra: entre aparatos retóricos e ideologias). A função de um método estrutural consiste justamente em permitir a resolução de diferentes níveis culturais em séries paralelas homólogas. Função, portanto, puramente operacional, com vistas a uma generalização do discurso. Mas os termos desse problema devem ser retomados do início porque habitualmente o uso do termo

23 Para Pierre Levy (1996, p. 82), todavia, há um caráter criativo e virtual nesse modo pragmático (ou retórico): “no estágio retórico ou pragmático, não se trata mais apenas de representar o estado das coisas, mas igualmente de transformá-lo, e mesmo de criar inteiramente uma realidade saída da linguagem; ou seja, em termos rigorosos, um mundo virtual: o da arte, da ficção, da cultura, do universo mental humano. Esse mundo gerado pela linguagem servirá eventualmente de referência a operações dialéticas ou será reempregado por outros projetos de criação. A linguagem só alça vôo no estágio retórico. Então ela se alimenta de sua própria atividade, impõe suas finalidades e reinventa o mundo.

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‘estrutura’ se presta a numerosos equívocos e cobre as mais disparatadas opções metodológicas e filosóficas.

Com estas considerações, a abordagem estrutural – necessária mas funcional –

mostra-se extremamente similar à categorização levada a efeito pela fenomenologia

peirceana. As semelhanças são mais evidentes considerando-se esse método como uma

resposta do “sujeito pragmático” – nos termos de Michel Pêcheux – às “multiplicidades

heteróclitas das coisas-a-saber”, o que pode ser traduzido e comparado à busca inquieta de

Peirce por uma “lógica da realidade”. Todavia, sua abordagem sistemática tem uma

característica nitidamente aberta, hodogética, principal aspecto que a diferencia de outras

tradições filosóficas:

Falando amplamente, há principalmente, no que diz respeito a método e apresentação, duas tradições filosóficas: a aberta, ou exploratória, e a fechada, ou sistemática. (...) Talvez a contribuição principal de Peirce seja seu sistema aberto. Ele conseguiu combinar os melhores aspectos dos seus dois modelos gregos de tal forma que desenvolveu um sistema, mas conseguiu mantê-lo aberto. A tradição inglesa seguiu Platão, sendo meramente inquisitiva; os alemães seguiram Aristóteles, sendo meramente sistemáticos. Peirce seguiu o método científico, sendo inquisitivamente sistemático. Pois, apesar de ter um sistema, ele não o tratou como a palavra final em sentido algum e admitiu que seria expandido e modificado por investigadores posteriores (...)

A filosofia de Peirce é hodogética; é um sistema para mostrar o caminho, um sistema cujo principal aspecto é sua direção. É por isso que é seguro afirmar que a história de sua influência até os dias atuais é apenas a primeira parte da história de sua influência e que a maior parte de suas conseqüências serão sentidas por aqueles que nos seguirão em um futuro indefinido24.

Portanto, estrutural ainda que não estruturalista, a fenomenologia peirceana, base

e raiz da sua semiótica geral, representa essa pulsão humana de categorização e explicação

formal das coisas do mundo. Válida, atual e presente, sua abordagem pode ser mais e melhor

24 Tradução livre de James K. Feibleman (1970, p. 487): Speaking very broadly, there are in the main, and wich respect to method of presentation, two philosophical traditions: the open, or exploratory, and the closed, or sistematic. (...) Perhaps the chief contribution of Peirce is his open system. He has managed to combine the best feature of his two Greek models in that he has designed a system but managed to keep it open. The English tradition followed Plato in being merely inquisitive; the Germans followed Aristotle in being merely sistematic. Peirce followed the scientific method in being inquisitively systematic. For, although he had a system, he dis not regard it as in any sense the final word, and assumed that it would be modified and expand by later investigators. (...) Peirce’s philosophy is hodogetic; it is a system for showing the way, a system whose chief feature is its direction. That is why it is safe to say that the history of his influence up to date is only the early history of his influence, and that the greater part of his effect will be felt by those who follow after us in the indefinite future.

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aproveitada quando reconhecidos seus limites inerentes e sua função essencialmente

metodológica.

Mesmo com um eventual reducionismo lógico, as idéias de Peirce podem ter sido

movidas pela necessidade de formar uma base fenomenológica de uma filosofia da e para a

ciência:

Em verdade, por nada mais que isso, seu admiravelmente humano senso de proporção, foi Peirce auxiliado em sua tarefa de prover os cientistas com um tipo de “contrapeso” metafísico que seu trabalho, hoje tanto quanto no século dezenove, tão evidentemente requer. Seu equívoco reside em acreditar que tal metafísica poderia ser ela mesma, em qualquer sentido adequadamente exato, científica (GALLIE, 1952, p. 41)25.

Em suma, a fenomenologia de Peirce e as suas categorias triádicas são um

excelente conjunto de lentes para enquadramento dos fatos da vida, mas não podem jamais

substituir, por equívoco ou por opção, o modelo em foco ou o olhar do observador.

25 Tradução livre de: “Indeed by nothing more than this, his admirably humane sense of proportion, was Peirce aided in his task of providing scientific men with the kind of metaphysical ‘leads’ which theirs work, today as much as in the nineteenth century, so evidently requires. His mistake lay in hoping that such a metaphysics could itself be, in any usefully exact sense, scientific”.

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CAPÍTULO 2 - A CONSTRUÇÃO DE UM SIGNO NORMATIVO

2.1 O MENOR CONTINENTE DE TUDO

O ato de conhecer é, antes de tudo, uma decisão. Para apreender quaisquer

aspectos do real, ou daquilo que acredita que o seja, o sujeito pensante precisa estabelecer um

conjunto considerável de pontos de referência, em relação aos quais o conhecimento pode ser

revelado. A afirmação de um ponto de partida – e não de outro – é o conteúdo que caracteriza

essa decisão humana e precede toda forma de cognição.

Por óbvio, a escolha de um ponto de referência envolve a análise de dados prévios

e, por tal, requer um certo esforço de cognição anterior. De maneira mais detalhada, em uma

regressão infinita, todo conhecimento exige a afirmação de certos parâmetros, em uma

decisão que está fundada em uma determinada noção da realidade, que por sua vez necessitou

de pontos de referência previamente decididos. Assim ocorre regressivamente, até que seja

possível encontrar aqueles pontos de referência que servem de orientação para o

conhecimento mais básico. Nesse nível, a decisão que induz o sujeito cognoscente a utilizar

esses parâmetros não é uma escolha racional, voluntária, ou sequer consciente.

Nesse âmbito originário, os pontos de referência do conhecimento têm

fundamento em aspectos inerentes à mentalidade humana – psíquicos, biológicos ou

transcendentais, a depender da abordagem utilizada. Em outras palavras, a decisão pelo uso

desses pontos de referência é muito mais necessária que voluntária, ou seja, decorre mais da

natureza humana que da sua vontade consciente. O desafio de quem se propõe a pesquisar o

ato de conhecer sob o seu prisma fenomenológico é identificar quais são essas categorias

fundantes.

Em tese, a tentativa de pensar sobre a origem do pensamento encerra em si uma

dificuldade inerente. Os pontos de referência – ou categorias – mais básicas do conhecimento

atuam de forma genética, invisíveis, influenciando e direcionando toda a cadeia de cognição

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daí derivada, deixando sua marca primeva em toda razão posterior. Disso decorrem três

importantes conclusões.

A primeira é que, quando as categorias fundantes orientam a formação da

cognição humana em um determinado sentido, estão necessariamente afastando as

possibilidades diversas. Ou seja, a forma “normal” ou “adequada” de estruturar o pensamento

é uma decorrência dos pontos de referência necessários e fundantes daquele sujeito pensante,

mas não pode ser considerada a única forma de cognição. É preciso, portanto, reconhecer que

há um conjunto infinito, externo e desconhecido de possibilidades diferentes de relacionar

conhecimento, alternativas que o ente cognoscente, limitado por suas premissas mais básicas,

está inapto a perceber. Esse é o reconhecimento da existência do incognoscível.

Um segundo ponto relevante é a verificação de que o completo entendimento do

modo de atuação dessas categorias fundantes pode estar além da capacidade de cognição do

sujeito pensante. Não que sua possível revelação lhes retirasse o caráter inerente de pontos de

referência básicos – continuariam sendo necessárias e condicionantes do pensamento. A

questão é que, para perceber os contornos nítidos dessas premissas que orientam todo o

conhecimento humano, seria necessário visualizar a cadeia de cognição como um todo – e,

assim, sob um ponto de referência externo a ela mesma. Isso envolve, portanto, um mergulho

no campo do incognoscível, o qual, como afirmado, não pode ser apreendido por um sujeito

limitado por aquelas premissas.

Por fim, em terceiro lugar, é possível entender que não são apenas as verdadeiras

categorias fundantes que condicionam o pensamento humano. Admitindo a incapacidade do

sujeito pensante de apreendê-las em sua forma completa, toda tentativa de entendê-las ou

explicá-las é, além de parcial, condicionada pela visão de realidade daquele observador.

Mesmo assim, essa proposta de definição daquilo que não pode ser compreendido, em alguns

casos, alcança um grau de aceitação tão expressivo, entre um grupo de indivíduos, que vale

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pelo tentou representar. Isso impõe ao próprio sujeito uma dupla limitação intelectiva: uma

mais ampla, necessária e incognoscível, decorrente das categorias fundantes do pensamento;

outra mais restrita, comunicativa, transmitida socialmente sob a forma de padrões de

normalidade que se declaram como necessários sem ser.

A fim de amenizar os efeitos dessa sucessiva e constante limitação da capacidade

de cognição do ser humano por ele mesmo, o ocultamento inconsciente da existência das

categorias fundantes pode ser importante. Todavia, reconhecer a incognoscibilidade de tais

pontos de referência não significa abandonar os esforços de análise genética do conhecimento.

O que se espera é a responsabilidade do pesquisador para que não apresente como necessárias

limitações do pensamento que não são gerais, sob o risco de estabelecer um duplo limite

intelectivo, como visto anteriormente.

Assim, uma abordagem mais adequada, nesse ponto de vista, seria admitir que

qualquer proposta somente poderia ser tomada em caráter ideal, ou seja, como aproximação a

um ponto remoto inalcançável. As verdadeiras categorias fundantes do pensamento

continuariam, como sempre, fora do espaço de explicação humano.

Nessa decisão de abordagem, uma estratégia notável é o deslocamento do foco

das origens para os meios. Em outras palavras, relegar as categorias mais básicas do

pensamento ao seu ocultamento inconsciente e incognoscível e voltar os esforços para

explicar as relações existentes entre as formas intermediárias e perceptíveis de pensamento,

aqui e agora.

É o campo de atuação da lógica, por exemplo. Sem o apelo sedutor da

transcendentalidade, o questionamento lógico envolve a verificação de relações até o ponto da

irredutibilidade. Não é uma busca do irredutível absoluto, mas uma aproximação ideal sob os

limites cognitivos da razão humana.

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Figura 1 – Categorização do pensamento 1.1. Categorias fundantes – o reconhecimento da existência de categorias quecondicionam o pensamento humano implica em supor a prevalência de categoriasfundantes, que separam o conjunto de idéias cognoscíveis do infinito incognoscível. 1.2. Pontos de referência – o estudo das categorias do pensamento exige a afirmação deum ponto de referência externo. No caso das categorias fundantes, o ponto de referênciadeveria ser estabelecido no campo do incognoscível (p), o que não ocorre na análise dascategorias intermediárias do pensamento (p’). As categorias triádicas de Peirce estariamno limite mais remoto do conhecimento que permitisse ainda um ponto de referênciacognoscível (entre |p| e |p’|, portanto). 1.3. Categorias impostas – além das categorias tidas como universais, é possível haveruma limitação simbólica ao pensamento por categorias comunicativa e socialmenteimpostas. Nesse caso uma grande área do cognoscível é descartada por não atender aesses padrões. Observação: em 1.3 os pontos destacados demonstram como as categorias socialmenteimpostas limitam o conhecimento. O ponto |i| representa o ente incognoscível. O ponto |a|representa o conhecimento possível, mas descartado como absurdo por não ser compatívelcom as categorias impostas. O ponto |c| aponta para o espaço limitado em que acomunicação efetivamente ocorre.

Figura 1.1. Categorias Fundantes

plenitude

categorias fundantes

do pensamento

incognoscível

cognoscível

Figura 1.2. Pontos de referência

categorias fundantes

categorias intermediárias

incognoscível

cognoscível

Figura 1.3. Categorias impostas

categorias fundantes

categorias intermediárias

incognoscível

cognoscível

categorias (simbólicas)

impostas |i||a|

|c|

|p|

|p’|

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O foco da lógica não é necessariamente determinar a origem do pensamento, mas,

dadas as circunstâncias verificáveis, contribuir para uma conceituação da realidade –

distinguindo, em juízos lógicos, o que é possível do que não é.

Em outro exemplo dessa estratégia, o estudo de relações formais entre os objetos

de conhecimento foi levado a efeito com destaque pelos pensadores que adotaram a linha do

estruturalismo. A abstração do conteúdo e a ênfase nas formas categóricas caracterizam essa

escola filosófica e científica.

Em relação a esses aspectos, Charles Sanders Peirce apresenta uma nítida

semelhança com os estruturalistas. Todavia, a diferença de abordagens é marcante quando

estes privilegiam a análise horizontal, ou seja, o detalhamento sistemático das estruturas. Com

a importância atribuída à aplicação prática dos seus conceitos, os estruturalistas,

genericamente considerados, acabam por transitar por aspectos intermediários da cadeia de

cognição.

Peirce atuou de maneira mais profunda. Aqui cedeu ao sonho da irredutibilidade,

próprio da lógica, e à certeza da falibilidade científica. Considerando as limitações cognitivas

que impõem uma aproximação ideal, como já discutido, o filósofo norte-americano foi ao

ponto mais remoto das categorias intermediárias e procurou traçar um retrato preciso do

elemento mais básico do pensamento que era dado ao homem compreender.

Aí se encontra a raiz das suas categorias triádicas, apresentadas no capítulo

anterior. A partir do reconhecimento de sua existência, Peirce as toma como um ponto de

referência, ocultando o que as antecede, para o desenvolvimento de toda a sua teoria

fenomenológica. Em uma leitura crítica dessa teoria, não se afirma aqui, portanto, que essas

categorias triádicas sejam a origem fundante de todo o pensamento, mas que são o que há de

mais básico naquilo que é dado ao sujeito discutir. Pode haver, então, outros elementos mais

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primordiais, que devem, todavia, ficar relegados ao ocultamento inconsciente, influenciando

todos os aspectos da razão, mas além do alcance de uma explicação racional.

A abordagem de Peirce sobre o problema filosófico do pensamento é, assim,

estrutural e tangencial, ao apresentar a Primeiridade, a Secundidade e a Terceiridade

principalmente em sua função intermediadora. Com isso, a explicação de como essas

categorias se relacionam para intermediar o contato do sujeito cognoscente com a infinidade

de manifestações da realidade é o que vai originar a discussão a respeito do signo.

Idealizado como independente de qualquer tipo de conteúdo, o signo na teoria

peirceana tem essa característica notável de compatibilidade com toda variedade de

fenômeno. Como já foi indicado, Peirce dedicou mais esforços ao aprofundamento do

conceito de signo e de seus elementos constituintes do que ao estudo de suas aplicações

práticas. Partindo de suas categorias, é tarefa relegada aos estudiosos desse filósofo a

aplicação da sua teoria geral dos signos aos variados contextos sociais, como se pretende

realizar nesse trabalho em relação ao direito.

Por essas características, ainda, é que se apresenta a necessidade de empreender

um estudo mais conceitual dessa construção peirceana. É por esses motivos que a análise da

noção de signo foi eleita como o objeto pontual deste presente trabalho.

O conceito de signo é um elemento-chave na teoria desenvolvida por Peirce para

entender o pensamento humano. No âmbito do estudo da cognição em sua escala de

profundidade, o signo está precisamente como ponto intermediário entre as categorias

fundantes e ocultas, de um lado, e o pensamento elaborado, de outro.

Em suma, o signo é o conceito que separa o tudo, que é compreensível, do que

existe além, e não será jamais.

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2.2 PEIRCE E A PERCEPÇÃO

Na fenomenologia de Peirce, as manifestações da realidade não podem ser

apreendidas de forma direta pelo observador. Necessitam sempre de um elemento mediador, a

quem cumpre estabelecer as relações indispensáveis para o encadeamento do conhecimento26.

A categoria da Terceiridade é precisamente aquela que supõe uma relação entre três

integrantes e, portanto, é sob o prisma da Terceiridade que a teoria geral dos signos é

desenvolvida.

Sobra a idéia de realidade, Peirce afasta-se da noção cartesiana de identificação

entre percepção e verdade, no contexto individual. O filósofo americano introduz a noção de

consenso da comunidade científica como elemento de validação, admitindo como verdade a

opinião sobre a qual não reste dúvida, no longo prazo (GALLIE, 1952, p. 74-77). Como há

uma validação externa e posterior (pragmática) do conhecimento, a idéia percebida precisa ser

tratada e julgada por critérios que lhe são distintos, como será visto a seguir. Essa forma de

definição da noção de verdade ficou conhecida como a teoria da convergência (HOOKWAY,

2004, p.128-130), expressa na seguinte máxima:

A opinião que está destinada a ser finalmente acreditada por todos que investigarem, é o que entendemos por verdade e o objeto representado nessa opinião é o real. Esta é a forma pela qual eu explicaria a realidade27 (PEIRCE, 1966, p. 133; 1940, p. 38).

No caso específico do estudo da percepção, Peirce definiu como percepto o

elemento da realidade com capacidade potencial de impressionar os nossos sentidos. O

percepto é algo alheio, estranho ao sujeito cognoscente, mas com força suficiente para

despertar-lhe a atenção ou, simplesmente, fazê-lo crer que naquele momento algo existe ou

26 Por esta razão, a doutrina de Peirce é considerada como um “idealismo objetivo”, ao argumentar que, embora não sejam as nossas idéias o objeto imediato de nosso conhecimento, se o conhecimento é possível, o real como objeto do conhecimento tem a natureza ideal (BOLER, 2004, p. 76). 27 Tradução livre de: “the opinion which is fated to be ultimately agreed to by all who investigate is what we mean by truth, and the object represented in that opinion is the real. That is the way I would explain reality”.

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que algo se manifesta de maneira distinta ou “fora” do seu limite de subjetividade28. Para

Peirce, todo conhecimento começa pela percepção, mas a percepção não é o depositário de

dados brutos (ROSENTHAL, 2004, p.193).

O percepto, assim, não é um produto humano na cadeia de elaboração do

conhecimento, mas é o seu ponto de partida, o pontapé inicial. A partir desse elemento,

externo mas cognoscível, o intelecto humano começa a estabelecer as relações decorrentes,

entre o que se percebe o que já se sabe, para que o pensamento tenha lugar.

Todavia, o percepto não é e não pode ser apreendido em sua forma pura. Em

outras palavras, a aquisição daquela impressão pelo sujeito cognoscente está condicionada aos

seus limites perceptivos e cognitivos. Assim, o que o observador registra não é o percepto em

si, mas uma mera representação imagética deste, da forma como é imediatamente assimilado,

o que Peirce denominou de percipuum.

O percipuum é a imagem mental imediata que o precepto determina em um

intelecto humano, conforme as categorias fundantes que orientam aquele pensamento. A

aquisição do percipuum, portanto, não é um ato cognitivo propriamente dito, mas uma

apreensão involuntária, inconsciente até, que somente poderia ocorrer daquela forma e com

aquele resultado.

Porém, considerando a infinidade de fenômenos verificáveis no real, é

compreensível que o sujeito cognoscente não esteja aberto para qualquer tipo de percepto, ou

para qualquer qualidade deste. Para o intelecto humano, vale apreender como percipuum

aqueles elementos a que se possa, posteriormente, atribuir uma relação e utilizar na produção

de conhecimento. Há, portanto, uma primeira seletividade perceptiva, em que apesar da

realidade ser constantemente e continuamente percebida, é melhor aproveitado na cadeia

28 É atríbuído a Peirce um papel principal como influência no trabalho de Lacan, que entende o Real como algo no limite de nossas elaborações conceituais, algo que pensamos, que não conseguimos capturar, mas que existe ainda assim. Essas e outras relações entre Lacan e Peirce foram apontadas por Birgit Nordtug (2004, p. 90).

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cognitiva aquele percipuum passível de redução e relacionamento com os conceitos que

orientam uma específica forma de pensar.

Neste ponto é que se evidencia o terceiro elemento da tríade perceptiva, o

julgamento de percepção. É este elemento que garante a continuidade do processo cognitivo,

por ser responsável pela categorização do percipuum junto às estruturas mentais já elaboradas

e pelo encadeamento desse produto da realidade de forma a desenvolver e aperfeiçoar novos

conceitos, mais complexos.

O percepto e o percipuum nada informam sobre a realidade, a não ser a existência

de algo externo, verificável pela reação do sujeito cognoscente a um dado fenômeno – reação

que se esgota no âmbito na Secundidade, portanto. Quando recebe o percipuum e lhe confere

um valor conceitual, o julgamento perceptivo permite uma avaliação lógica (em termos de

possibilidade e impossibilidade, como visto) e, assim, faz com que aquilo que foi percebido

ocupe seu lugar em uma cadeia cognitiva maior, voltada à criação de uma noção sistemática

de realidade.

Para Marike Finlay (1990, p. 33) essa foi a forma de Peirce escapar da inevitável

escolha entre um “empirismo nu” ou um “trancendentalismo kantiano”, ao sugerir que a

bagagem cognitiva do sujeito cognoscente pode até mesmo determinar o que será percebido.

Ao reconhecer a criatividade interpretativa do observador, “uma visão como essa rompe com

uma longa tradição de dicotomias padronizadas, as quais são cada vez mais vistas como

insustentáveis” (ROSENTHAL, 2004, p. 212).

Esse cenário perceptivo fica mais complexo quando são levadas em consideração

as possibilidades de percepção equivocada ou percepção absurda. Como afirmado, a

dualidade entre percepto e percipuum nada diz ao intelecto, senão uma certeza não

interpretada de existência de um outro.

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Figura 2 – A percepção segundo Peirce 2.1. Percepto e percipuum – os fundamentos cognoscíveis do percepto apreendidos pelo sujeito cognoscente compõem sua forma imagética, o percipuum. 2.2. Seletividade perceptiva – o julgamento perceptivo é a avaliação lógica dopercipuum, segundo a visão de realidade do sujeito cognoscente, que tende a selecionar os aspectos do conhecimento necessários a completar e confirmar suas estruturas lógicas. 2.3. Tríade perceptiva – o percepto, o percipuum e o julgamento perceptivo estãoestruturados em uma tríade semelhante em forma ao signo peirceano. Observação: Neste trabalho é considerado que a formação do julgamento perceptivoenvolve um juízo de abdução ou retrodução, em maior ou menor grau. Um mesmo percipuum pode ser reconhecido de formas diferentes, representadas pelas hipóteses |h1|, |h2| e |h3|. No caso, |h1| é a única hipótese compatível com a noção de realidade dosujeito cognoscente, por esse motivo é aproveitada enquanto as demais são descartadascomo absurdos.

Figura 2.1 Percepto e percipuum

Figura 2.2 Seletividade perceptiva

incognoscível cognoscível

percepto percipuum

percepto percipuum

julgamento perceptivo

Percipuum

Percepto Julgamentoperceptivo

Figura 2.3 Tríade

perceptiva

|h1|

|h2|

|h3|

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Quando o julgamento de percepção passa a figurar nessa relação, tudo o quanto

foi percebido é forçado a encaixar-se no conjunto de estruturas que orientam aquele intelecto

– ou sua noção de realidade, para simplificar. Quando a compatibilidade é relativamente

adequada, o percipuum passa a integrar a cadeia de cognição tida como válida e são

fortalecidos ambos os pólos mediados pelo julgamento perceptivo: a certeza do ponto que foi

percebido e a certeza da noção de realidade que o abraça.

Todavia, quando o percipuum não se adequa ao conjunto de conceitos então

existente, há uma invalidade lógica daquele elemento que força sua revisão. Ocorre, aí, uma

disputa de forças decorrente da contradição entre a certeza do que foi percebido e a certeza da

noção de realidade pré-existente. Quando o novo percipuum se impõe sobre as percepções

anteriores, estas últimas são categorizadas como percepções equivocadas e todo o conjunto de

conhecimento é revisado para manter uma coerência lógica com a nova percepção. Na direção

oposta, quando o novo percipuum não tem força suficiente para abalar a certeza da noção de

realidade, é esta última que se impõe como válida e a percepção discordante é descartada sob

a categorização de absurdo.

Por essas razões, é possível afirmar que a percepção, embora seja uma derivação

necessária do percepto, é hipotética e falível. Envolve portanto, um juízo de abdução passível

de validação lógica posterior. A abdução, no sentido adotado por Peirce29, corresponde ao

juízo de conjectura ou hipótese. Avalia logicamente a possibilidade de um fenômeno

atribuindo-lhe uma resposta ou conseqüência também possível. A abdução não supõe a

causalidade nessa relação, mas apresenta uma possibilidade coerente que pode vir a ser

confirmada posteriormente.

Por isso, a abdução não apresenta o mesmo grau de certeza de outros juízos

lógicos, como a dedução e a indução. Todavia, por atuar nessa proposição de possibilidades, é

29 Muito embora o filósofo prefira o termo Retrodução (PEIRCE, 2003, p. 5).

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um poderoso instrumento para manutenção da coerência do sistema de estruturas do

pensamento, contribuindo para apresentar respostas adequadas às lacunas verificadas na

dedução, na indução e na própria noção de realidade.

Fica nítido, com essa explicação, como a percepção atua por meio de um juízo de

abdução. Aquilo que é percebido propõe ao julgamento perceptivo hipóteses de explicação do

real que podem, só então, ser assimiladas nos conceitos intelectuais existentes, da forma mais

adequada possível. A percepção, portanto, não é uma determinação ou mesmo uma

representação da realidade, mas uma mera hipótese, apreendida em um conjunto estruturado

de hipóteses prévias.

A abdução atua, assim, no sentido de reduzir a ocorrência do absurdo ao mínimo

possível. Cabe ao julgamento perceptivo promover a adequação do percipuum ao

conhecimento já existente e, nessa avaliação, pode fazer uso de sucessivos juízos de abdução

para evitar a invalidação e o descarte de um produto de percepção.

Essa urgência de adequação é perfeitamente compreensível, uma vez que o

reconhecimento da existência de um absurdo implica não apenas a invalidade do que foi

percebido, mas principalmente um abalo na certeza da noção de realidade, já que esta perde o

poder de explicar e assimilar os fenômenos observados. Como a pretensão de todo sistema é

ser universal e viável, a verificação de que uma percepção é absurda constitui um caso-limite,

uma indesejável evidência da incapacidade daquele sujeito em explicar o mundo que o cerca.

Nesse sentido, Umberto Eco (1988, p.220) exemplifica socialmente o funcionamento e a

flexibilidade dessa abdução:

Provavelmente a verdadeira diferença entre abdução de fatos para leis e de fatos para fatos reside na flexibilidade meta-abducional, quer dizer, na coragem de desafiar sem testes posteriores o falibilismo básico que governa o conhecimento humano. É por isso que na vida “real” os detetives cometem erros mais freqüentes (ou mais freqüentemente visíveis) do que os cientistas. Detetives são recompensados pela sociedade por sua imprudência em apostar por meta-abdução, enquanto cientistas são socialmente recompensados por sua paciência em testar suas abduções.

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Nesse ponto reside a importância da abdução como uma nova episteme, ou um

método para a descoberta de novos métodos (FINLAY, 1990, p. 155).

2.3 SOB O SIGNO DE PEIRCE

Revistos os elementos da percepção segundo Peirce, resta ainda verificar como as

idéias podem ser encadeadas no processo intelectivo. Convém ressaltar que, assim como na

relação triádica entre percepto, percipuum e julgamento de percepção, também no exame do

signo estará presente o aspecto da mediação, característico da Terceiridade.

A teoria dos signos é o marco teórico do presente estudo, em torno do qual serão

desenvolvidos os modelos jurídicos apresentados a seguir. Mesmo para quem não tem

interesse na semiótica americana, segundo W. B. Gallie (1952, p.111-113), o estudo da

“Doutrina dos Pensamentos-signos” é essencial para a compreensão do pragmatismo30, como

método de definição e regra de inferência; para sobrestar a crítica mais importante contra o

pragmatismo, a de que relacionar conceitos com efeitos é meramente circular; e para entender

os conceitos que reaparecem na metafísica peirceana.

Muito embora tenha Peirce formulado diversas explicações para a noção de signo,

a mais aceita é a de que o signo é sempre um suposto relacional. Conforme as características

da Terceiridade, o signo peirceano é sempre representado como uma tríade, em que um

elemento (signo ou representâmen) determina um outro elemento (interpretante) em relação a

um objeto.

O signo ou representâmen31, para Peirce, é o Primeiro Correlato da relação

triádica, que está para um objeto e determina um interpretante. É um elemento mediador entre

dois outros, em uma relação irredutível. A relação triádica formada pelo signo não pode ser

30 Mais conhecido por sua máxima de que a concepção de um objeto equivale à concepção de seus efeitos ou, no original, “consider what effects, which might be conceivably have practical bearings, we conceive the object of our conception to have. Then, our conception of these effects is the whole of our conception of the object” (PEIRCE, 1966, p. 124; 1940, p. 31). 31 Sobre a definição de signo, entre tantas outras destaca-se o texto “Divisão dos Signos” (PEIRCE, 2003, p. 46-47).

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decomposta em quaisquer outros números de relações diádicas, uma vez que os liames que

unem os três elementos entre si atribuem-lhes um conjunto lógico de papéis definidos a serem

exercidos sob a mediação do signo.

Uma observação necessária é o reconhecimento da desnecessidade de um

intérprete atual. O signo determina o interpretante e é determinado pelo objeto

independentemente das circunstâncias que emolduram o seu uso. Inclusive, uma distinção

sutil entre os termos signo e representâmen aponta que o primeiro exige um interpretante

mental. Ou seja, o signo determina uma idéia, enquanto o representâmen pode ou não atuar

dessa forma, com ou sem intérpretes humanos. Com isso a semiótica de Peirce quebra os

limites do racionalismo para estudar qualquer conjunto de fenômenos da realidade sob o

prisma da relação triádica. Ambos os termos vão continuar a ser usados como sinônimos, ao

longo deste trabalho, uma vez que se pretende promover a aplicação da teoria semiótica a

contextos sociais e, portanto, supondo interpretantes mentais.

O aspecto autônomo do signo decorre da forma lógica como foi estruturado. A

relação triádica não é uma interação criada pelo homem, nem uma alternativa de

representação da realidade. A relação mediada pelo signo seria uma necessidade decorrente da

própria realidade e da forma como o homem a percebe. Assim, independente da atuação de

um sujeito cognoscente, o objeto determina o signo de uma forma lógica e inafastável. Da

mesma forma, objeto e signo determinam o interpretante de uma maneira que outra não

poderia ser.

A relação triádica, dessa forma, envolve um processo no qual cada um dos seus

elementos exerce uma função determinada. Por tal razão, não se pode estabelecer critérios de

importância ou prevalência entre eles, assim como não é possível reduzir essa relação aos

limites do signo ou aos de qualquer outro elemento.

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signo

objeto

interpretante

signo

objeto imediato

interpretante imediato

interpretante dinâmico

interpretantefinal

objeto dinâmico

Figura 3 – A estrutura do signo peirceano 3.1. Estrutura – a estrutura triádica do signo é o que caracteriza a semiótica peirceana. Oobjeto determina o signo, assim como este determina seu interpretante. O signo, portanto,atua como elemento mediador relacionando objeto e interpretante. 3.2. Implicitude – o reconhecimento da determinação entre objeto e signo e entre signo einterpretante faz supor uma relação direta entre objeto e interpretante, quando o signo étomado por implícito. 3.3. Classificações – segundo Peirce, o objeto pode ser categorizado entre objeto imediatoe objeto dinâmico, enquanto o interpretante pode ser diferenciado em interpretanteimediato, interpretante dinâmico ou interpretante final. Observação: o ponto |x| em 1.3 representa a identidade pretendida (e mediada pelo signo)entre objeto e interpretante, remota e alcançável apenas por uma aproximação ideal.

Figura 3.2 Implicitude

Figura 3.3 Classificações

Figura 3.1Estrutura

x

SIGNO

INTERPRETANTE OBJETO

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Signo, objeto e interpretante também são referidos nas obras de Peirce como,

respectivamente, Primeiro, Segundo e Terceiro Correlatos da relação triádica. Essa

denominação, apesar de largamente utilizada pelos estudiosos da semiótica, não será

enfatizada neste trabalho a fim de evitar associações equivocadas com as categorias universais

da Primeiridade, Secundidade e Terceiridade. Na relação triádica, seria adequado relacionar o

objeto com a Primeiridade, o interpretante com a Secundidade e o signo com a Terceiridade,

muito embora, como será visto, todos os elementos acabam por mostrar uma complexidade

que não pode ser simplificada desta forma.

É comum o entendimento de que o signo representa o objeto, mas essa afirmação,

embora não seja falsa, exige um pouco mais de esforço de explicação. A relação lógica que se

estabelece entre o signo e o objeto é de determinação lógica, como visto, acrescentando agora

que essa vinculação é mantida mesmo após a formação do signo. Na impossibilidade

ontológica ou lógica de apropriação do objeto, o seu signo é tomado em seu lugar e assim

pode ser conceituado, classificado e manipulado de qualquer forma, como se ambos fossem o

mesmo ser, para essa finalidade. O que há, portanto, é muito mais uma determinação, do que

uma substituição ou uma representação, principalmente porque na grande maioria dos casos o

signo é a única forma de cognição possível do objeto. Resta claro que não há uma identidade

perfeita, pois o objeto sempre será maior que o signo; um é pleno, o outro revela apenas um

aspecto dessa plenitude. Em outras palavras, o signo está no lugar do objeto, é tomado por ele,

está para ele, na medida em que é por ele determinado.

Em conseqüência, em atenção à sua função mediadora, o signo irá determinar um

interpretante da mesma forma. O interpretante, dado o mesmo signo e o mesmo objeto, é uma

conseqüência lógica da relação triádica, determinado pelo signo assim como este é

determinado pelo objeto. A mediação do signo é necessária e inafastável, mas uma vez

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estabelecida perde em largo grau a sua visibilidade, de forma a transparecer superficialmente

uma relação direta entre objeto e interpretante.

Como resultado da análise e classificação das maneiras como ocorre essa

determinação, Peirce dividiu os signos em três categorias32. Vale lembrar que sua descrição

não faz mais do que indicar tipos abstratos, enquanto, na prática, os signos se apresentam

como formas mais complexas com características compostas que ultrapassam os limites

sugeridos.

O ícone (PEIRCE, 2003, p. 63-66) seria o tipo mais elementar de signo, que é

associado ao seu objeto por guardar com ele uma característica comum. Essa impressão

intuitiva, por isso mesmo relacionada à Primeiridade, remete ao objeto tão logo o signo seja

apresentado, de uma maneira mais direta que nos outros tipos. Dada a sua natureza primária,

no ícone poderia ocorrer a coincidência ontológica entre objeto e signo, ou até mesmo

envolvendo o interpretante.

O índice (PEIRCE, 2003, p. 66-70) seria o segundo tipo de signo, que mantém

uma relação com seu objeto por um efeito físico de aproximação ou causalidade. O signo faz

referência ao objeto porque estão de algum modo associados em sua ocorrência individual, de

tal forma que a verificação de um remete ou faz supor a existência do outro.

Por fim, o símbolo (PEIRCE, 2003, p. 71-74) seria o tipo mais elaborado – e por

isso mesmo mais perfeito – de signo, que é determinado pelo seu objeto em virtude de um

código ou uma convenção estabelecida de maneira arbitrária33.

32 No texto “Divisão dos Signos” Peirce propõe várias outras classificações, omitidas em virtude da especificidade do trabalho, para tratar apenas da segunda tricotomia: símbolo, índice e ícone (PEIRCE, 2003, p. 52-53). 33 Como para outros autores as noções de signo e símbolo assumem outros sentidos, às vezes permutados, Umberto Eco (1984, p. 205) analisa, sobre o símbolo de Peirce, que “a escolha terminológica peirciana deve-se provavelmente ao fato de que ele já tinha decidido usar /signo/ referindo-se ao genus generalissimum e, por isso, devia encontrar uma denominação diferente para esse tipo específico, a que pertencem também os signos ligüísticos”.

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Primeiridade Secundidade Terceiridade

Primeira Tricotomia

Qualisigno Sinsigno Legissigno

o signo em si mesmo qualidade que é um signo

um evento existente e real que é um signo

uma lei que é um signo

Segunda Tricotomia

Ícone Índice Símbolo

relação do signo para com seu objeto

signo que se refere ao objeto apenas em virtude de seus caracteres próprios

signo que se refere ao objeto em virtude de ser realmente afetado por ele

signo que se refere ao objeto em virtude de uma lei

Terceira Tricotomia

Rema Dicissigno ou Dicente

Argumento

relação do signo com seu interpretante

possibilidade qualitativa

existência real lei

Figura 4 – Classificação dos signos 4.1. As três tricotomias propostas por Peirce (2003,p.51-55) 4.2. As dez classes em quadro de Peirce (2003, p. 58) 4.3. Ordenação das classes – uma proposta gráfica deordenação das classes de signos. Observação: A formação das classes exclui algumascombinações. Por exemplo, todo qualissigno é tambémicônico e remático. Em termos práticos, umaclassificação segundo a primeira tricotomia exige que asdemais sejam equivalentes ou mais simples. Umaclassificação na segunda tricotomia exige que a terceiraseja equivalente ou mais simples.

Figura 4.1 As três tricotomias

Figura 4.2 As dez classes

Remático Icônico

Qualissign

Remático Icônico

Legissigno

Remático SimbólicoLegissigno

ArgumentoSimbólico Legissigno

Remático Icônico

Sinsigno

Remático Indicial

Legissigno

Dicente SimbólicoLegissigno

Remático Indicial

Sinsigno

Dicente Indicial

Legissigno

Dicente Indicial

Sinsigno

Qualissign

Argumento

Icônico Sinsigno

Dicente Simbólico

Icônico Legissigno

Remático Indicial

Sinsigno

Remático Simbólico

Dicente Indicial

Legissigno

Remático Indicial

Legissigno

Dicente Sinsigno

Figura 4.3Ordenação das classes

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Na formação simbólica, o signo não mantém, necessariamente, uma relação

característica ou existencial com seu objeto, mas é usado no lugar deste por força de um

sistema de códigos que se impõe pela tradição, pelo costume, pelas interações sociais ou por

qualquer forma de assimilação.

Portanto, o símbolo é o signo por excelência, com uma distinção necessária entre

os três elementos da relação triádica, que não se confundem e, ainda assim, são determinados

mutuamente. Ao longo da aplicação da teoria semiótica, o símbolo será utilizado como

modelo de signo para os efeitos a que esse trabalho se propõe. Não se descarta o

reconhecimento da existência de ícones e índices, mencionados quando se fizer necessário.

O objeto, na relação triádica, é o elemento que determina o interpretante, pela

mediação de um representâmen. Em uma posição um pouco mais ontológica, Peirce entende o

objeto como algo distinto do sujeito cognoscente, que lhe é dado a conhecer. Por objeto não

se deve tomar apenas um ente concreto ou empírico; em si, objeto pode ser qualquer elemento

tido como real, ainda que abstrato, ideal ou conceitual, que impressiona a mente humana.

Assim, a noção de objeto é mais ampla que a idéia de coisa. Além disso, pode

envolver fenômenos individuais ou mesmo uma coletividade categorizada. É possível

verificar que o sentido atribuído por Peirce ao termo objeto é muito próximo do que

entendemos hoje como conceito. Ambos orientam o pensamento para determinadas

manifestações delimitando e apresentando suas características distintivas. Nesse processo,

pode haver uma maior ou menor precisão. Em suma, o objeto pode ser mais delimitado,

voltado para a descrição de um fenômeno de existência individual, ou mais abstrato,

apontando nada mais que características de um conjunto limitado de potenciais objetos.

O representâmen, ou elemento mediador, geralmente tem existência distinta do

objeto. Ainda que haja uma coincidência fenomenológica ocasional, como no caso da auto-

referência ou metalinguagem, objeto e representâmen cumprem papéis distintos na

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assimilação das idéias. Tanto assim que na cadeia cognitiva pode haver uma sucessão de

representâmens para um mesmo objeto.

A experiência também exerce função importante na determinação do objeto.

Considerando que há a formação de uma relação entre duas idéias, com a mediação de um

representâmen, é preciso que, pelo menos com uma delas, o sujeito guarde familiaridade34 –

ou seja, que haja um papel a ser desempenhado por ela na sua noção de realidade. Quando são

relacionados elementos inteiramente desconhecidos pelo sujeito cognoscente, o que se forma

é uma relação isolada, que não é integrada à cadeia de cognição até que um outro signo ou

uma percepção posterior traga familiaridade a um de seus elementos. Portanto, a experiência

atua como fator de integração entre os signos e seus objetos.

Atento a essas complexidades que envolvem a noção de objeto, Peirce

desenvolveu algumas classificações do objeto para que, com um maior rigor conceitual,

pudesse ser identificado precisamente o papel que este elemento exerce na relação triádica.

Não são classificações no sentido de agrupamento de possibilidades, exatamente, mas

conceitos completamente distintos em si, ou pelo menos formas distintas de considerar o

elemento objeto (PEIRCE, 2003, p. 168).

Uma primeira idéia é a de objeto dinâmico, também considerado com objeto

mediato ou dinamóide. Esse aspecto coincide com o fenômeno em si considerado, distinto da

cadeia de significação e na plenitude de sua ocorrência real. É bastante semelhante, assim, ao

papel exercido pelo percepto na relação triádica de percepção.

O objeto dinâmico é impassível de apropriação direta pelo sujeito, que está

condenado a uma eterna aproximação ideal. Por ser em si inacessível, esse objeto precisa que

outro elemento esteja por ele na relação triádica, a fim de permitir a assimilação de sua

34 Na relação entre signo e objeto, a familiaridade é pressuposta (PEIRCE, 2003, p. 47-48).

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existência e a continuidade do processo de conhecimento. Esse elemento que participa da

relação é o objeto imediatamente disponível, ou objeto imediato.

O objeto imediato decorre do objeto dinâmico, naquela qualidade ou característica

que o signo elege como determinante. Ou seja, ele nunca vai conter toda a plenitude do

fenômeno real, mas apenas aqueles aspectos limitados e compreensíveis que vão dar origem à

relação triádica. Portanto, o objeto imediato é completamente assimilável pelo sujeito

cognoscente, por envolver apenas uma faceta perceptível do objeto dinâmico. Essa

característica do objeto dinâmico que está presente no objeto imediato é chamada de

fundamento do signo.

O fundamento do signo, então, é o aspecto do objeto que é considerado

determinante do signo. Por isso, um mesmo objeto pode originar múltiplos signos, cada um

abrangendo um fundamento distinto. É importante ressaltar que o fundamento do signo não

apenas revela uma relação entre objeto dinâmico e objeto imediato, como também fixa limites

para todo o desenvolvimento posterior da relação triádica. Ou seja, um signo não pode

considerar ou determinar um aspecto do objeto que esteja além daquilo que foi eleito como

seu fundamento.

Em suma, uma relação triádica envolve um representâmen, um interpretante e um

objeto imediatamente disponível. Este, por sua vez, está no lugar de um objeto dinâmico (que

não pode ser diretamente apreendido) com base em um aspecto determinado, o fundamento

do signo.

Outras considerações acerca da natureza do objeto do signo, bem como sua

função na cadeia semiótica, serão apresentadas ao longo do trabalho. Para a continuidade da

análise proposta, todavia, é preciso dedicar algum tempo para explicar o terceiro elemento da

relação triádica do signo.

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O interpretante é a conseqüência, o produto do signo, aquilo que é determinado

pelo seu objeto por uma mediação do representâmen. Ele supõe, portanto, os outros dois

elementos da relação triádica e, apesar de não se confundir com os demais, é considerado uma

determinação necessária da atuação de um sobre o outro. Assim, o interpretante se apresenta

como uma conseqüência de duas causas: uma que lhe é imediata, o representâmen; outra que

lhe é mediata, o objeto. Portanto, em uma soma quase dialética, a atuação do representâmen

sobre o objeto vai originar uma idéia determinada que constitui o interpretante.

Um primeiro aspecto do interpretante (e de todo os elementos da relação triádica)

é que ele é uma decorrência objetiva dos demais elementos da relação triádica. Isso implica

admitir que o objeto tem o poder de criar o seu representâmen, assim como ambos

determinam um interpretante. Nesse processo, Peirce, com todo o seu rigor lógico, não

garantia espaço para desvios de subjetividade.

A idéia de relação sígnica, como relação fenomenológica, foi resultante de uma

redução lógica do pensamento às suas categorias mais básicas passíveis de conhecimento.

Nessa depuração, Peirce buscou retirar todos os aspectos de subjetividade, relativismo e

sugestão que pudessem comprometer a sua pretensão de neutralidade e pureza conceitual. O

signo peirceano, assim, é uma implicação lógica que se relaciona, existe e atua de uma forma

da qual o sujeito não pode se afastar. Aliás, a própria existência de um sujeito é irrelevante

para a o estudo da relação triádica.

Por isso, a apreensão do interpretante não depende de qualquer esforço consciente

de interpretação, ou mesmo da presença de um intérprete.35 Um signo somente pode ser

considerado como tal se impuser seus mesmos elementos em qualquer ambiente ou cenário.

Ou seja, uma relação triádica genuína tem o poder de, dado o mesmo objeto e representâmen,

determinar o mesmo interpretante em qualquer intelecto, existente ou potencial. 35 É apontado que Peirce revisou sua teoria dos signos em 1907 para concluir que a interpretação é orientada a fins, ou seja, independe de esforço consciente. Com isso, o pensamento consciente passa a ser apenas uma das partes da semiótica (SHORT, 2004, p. 230).

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Outro ponto característico do interpretante, a ser desenvolvido mais adiante, é sua

potencialidade de dar origem a novos signos. É preciso ter em mente que o interpretante é a

idéia resultante do signo, que pode determinar o pensamento se for originada no intelecto

humano. Ora, como visto na análise do objeto, os fenômenos abstratos, como as idéias,

também podem atuar como objeto de um signo. Esse encadeamento, como será visto, não é

exclusivo do interpretante e pode ocorrer envolvendo os outros pólos da relação triádica.

Assim como o objeto, o interpretante também é passível de classificação, segundo

variados critérios. Sem desmerecer o valor de outras, uma das divisões mais conhecidas é a

que leva em consideração os estágios ou níveis do interpretante (PEIRCE, 2003, p. 168).

A primeira categoria seria a do interpretante imediato, ou aquele imediatamente

ligado ao signo. Assim como o objeto imediato, esse interpretante seria interno à relação

triádica. Consiste em uma impressão direta e potencial que o signo pode determinar, com

abstração de quaisquer considerações a respeito de contexto ou situações concretas.

O segundo nível seria o do interpretante dinâmico, relacionado a uma situação

concreta. Esse elemento representa o efeito real efetivamente produzido pelo signo em uma

mente particular. É, talvez, a única forma de interpretante genuinamente capaz de ser

verificada em pesquisa empírica, uma vez que será sempre uma ocorrência específica. O

interpretante dinâmico é singular, individual e necessariamente distinto quando se alterarem o

contexto e o sujeito cognoscente.

Por fim, o último estágio seria o do interpretante final, aquela idéia para a qual

tendem todos os interpretantes dinâmicos36. A relação entre o signo e seu objeto nunca será

plena, pelos limites da compreensão humana. Todavia, há que se esperar que o signo busque

sempre uma identificação com seu objeto, meta inalcançável a não ser por um exercício

36 A noção de interpretante final, assim como a de objeto dinâmico, representa um estágio posterior da teoria dos signos de Peirce, relacionada com suas idéias de verdade e realidade (teoria da convergência). O interpretante final pode não ser uma teoria, mas apenas uma ação ou apreciação. “As implicações disto para teoria ética e teoria estética ainda estão para serem exploradas” (SHORT, 2004, p. 237).

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abstrato de aproximação ideal. O limite dessa aproximação ideal é exatamente o que orienta o

interpretante final, como um sentido elaborado e geral para o qual todos os interpretantes

deveriam convergir. É por isso que esse interpretante é também chamado de destinado ou

intencionado.

Outro nome que este mesmo nível recebe, ainda, é o de interpretante normal. Esse

termo explicita outra de suas facetas – a normatividade. Peirce entende que o interpretante

dinâmico é uma ocorrência sempre individual, única e irrepetível. Todavia, em uma

verificação empírica e estatística, será possível comprovar que os diversos interpretantes

dinâmicos tendem a convergir em tendências relativamente constantes, o que é um forte

indicativo de que há princípios gerais orientadores da sua formação histórica e social. Nessa

análise, poderia ser revelado o conjunto de normas que regem essa convergência de

interpretantes e, conseqüentemente, poderia ser previsto o ponto “normal” em que essas

múltiplas manifestações tendem a se encontrar. Nessa tendência de convergência geral estaria

o interpretante normal.

Os interpretantes imediatos e final são ideais e abstratos, enquanto o interpretante

dinâmico é concreto e individual. Este último pode ser considerado a realização singular de

uma soma dialética de duas potencialidades abstratas: aquilo que o signo deveria produzir, em

tese (interpretante imediato), e aquilo que o signo deveria produzir em todos os indivíduos, no

final das contas (interpretante final).

Fica claro, após a análise do representâmen, do objeto e do interpretante, que a

relação triádica envolve uma interação de três elementos, cada um com sua função, e por este

motivo é irredutível. Abrange a determinação do interpretante pelo signo e deste pelo objeto,

em um processo lógico autônomo. A essa cadeia triádica Peirce denominou semiose.

Uma das características mais notáveis desse processo lógico evidenciado pela

teoria peirceana é a sua capacidade de autogeração. O signo implica um interpretante, mas

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não se esgota nele. Sucedem-lhe outros signos e outros interpretantes, numa seqüência de

determinações destinada a não ter fim.

A razão que explica essa possibilidade de crescimento está relacionada ao fato do

signo, como ente lógico, estar sempre ligado e determinado por um objeto. Como visto, por

pertencer ao plano da realidade, o objeto (dinâmico) não é diretamente acessível ao sujeito

cognoscente, pelo que se faz necessária a mediação de um signo. Este vai estar ligado ao

objeto por um aspecto, ou conjunto de aspectos, que compõe o fundamento do signo. Todavia,

por mais próximo e similar ao objeto que o signo seja (como no caso do signo icônico, por

exemplo), ainda assim não haverá uma identidade ontológica entre esses dois elementos,

restando ao signo apenas carregar algum aspecto perceptível do objeto.

Uma vez que o objeto é pleno e o signo não compartilha dessa plenitude, é

esperado que este último oriente a formação de encadeamentos voltados ao resgate dessa

pretensa identidade. Assim, ocorre uma sucessão de signos e interpretantes de um mesmo

objeto de maneira a tentar alcançá-lo em sua plenitude. O signo busca ser o objeto que nunca

foi e nunca será37.

Todavia, é preciso admitir que a plenitude dos objetos que integram a realidade

não é acessível ao sujeito cognoscente, ou a elementos lógicos como o signo. Por isso,

considerado esse distanciamento irredutível, quando o signo busca uma pretensa identidade

com o seu objeto, está condenado a uma jornada infinita. A similitude entre signo e objeto,

nos limites da compreensão humana, só é possível em uma aproximação ideal.

É um processo contínuo. A realidade incompreensível força a criação de signos,

distintos dela e incompletos, que vão produzir interpretantes em uma seqüência infinita, em

uma tentativa de conferir ao signo a plenitude de que só o objeto dispõe. A essa ligação

sucessiva e infinita de signos é o que se convencionou chamar cadeia semiótica.

37 Assim, o interpretante final é o “limite conceitual” e o objeto dinâmico o “limite contextual” da cadeia semiótica (NORDTUG, 2004, p. 98).

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Figura 5 – A cadeia semiótica 5.1. Cadeia semiótica – os signos estão relacionadosformando cadeias semióticas, infinitas em ambos ossentidos. O entrelaçamento em cadeias é a forma autênticade funcionamento dos signos. O estudo de um signo isoladoexige um corte arbitrário na cadeia semiótica e adesconsideração do aspecto dinâmico do signo. 5.2. Natureza sígnica dos elementos da tríade – oselementos da relação triádica também não existemisoladamente e são informados por outras relações triádicas.Portanto há um encadeamento de signos também dentro decada um dos seus elementos formadores.

Figura 5.2 Natureza sígnica dos elementos da

tríade

Figura 5.1 Cadeia

semiótica

progressivamente infinita

regressivamente infinita

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A ligação entre os signos pode acontecer das mais variadas formas. A obra de

Peirce sugere aos seus leitores algumas maneiras como uma relação triádica pode ser

determinada por outra. O que se pretende desenvolver aqui é um esforço, jamais completo ou

definitivo, de categorizar as possíveis ligações semióticas.

Um primeiro tipo de formação da cadeia semiótica é a sucessão de interpretantes,

já discutida nas linhas anteriores. Em direção a uma pretensa identificação com seu objeto, o

signo determina um interpretante que lhe possibilite alcançar esse objetivo. Verificada a

(inafastável) alteridade do objeto, o interpretante produzido passa a atuar como um signo

daquele mesmo objeto – e o signo original desaparece ou, melhor explicando, torna-se

implícito. A partir do signo-interpretante, outro interpretante é determinado e a cadeia

semiótica recomeça em sua jornada ao infinito.

O que carateriza esse processo descrito é que o objeto é mantido ao longo de toda

a seqüência. O desenvolvimento da cadeia semiótica, portanto, visa ao aperfeiçoamento dos

signos e interpretantes, em relação a um mesmo objeto. Consiste em uma busca infinita com o

objetivo de revelar o melhor signo e o melhor interpretante para um dado objeto.

Um segundo movimento possível envolve o deslocamento completo dos papéis

entre todos os elementos da semiose. Nessa seqüência, não há a pretensão de identificação

com o objeto, mas de extrapolar ao grau máximo a própria determinação. O que se verifica é a

passagem do signo, uma vez determinado pelo objeto e após determinar um interpretante, à

condição de objeto (imediato) da relação triádica. O interpretante, então, atua como elemento

mediador para a determinação de um novo interpretante. Aqui, o objeto original (assim como

quaisquer outras relações antecedentes) fica suposto e deixa de fazer parte da relação triádica,

ocupando assim um lugar equivalente ao do objeto dinâmico.

A característica desse movimento semiótico é que o objeto não ocupa lugar de

destaque, como determinante principal ou objetivo inalcançável.

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Figura 6 – Encadeamento por “aperfeiçoamento” 6.1. Encadeamento por “aperfeiçoamento” – a relação triádica, tomada em sua formaregular (I), passa ao momento seguinte (II) quando o signo é tido por implícito. Comisso, o antigo interpretante assume o papel de signo para gerar um novo interpretante(III) e o processo continua em uma sucessão infinita de signos/interpretantes (IV). Éimportante notar que o objeto permanece o mesmo. 6.2. Cadeia semiótica de “aperfeiçoamento” – os signos/interpretantes sucedem-seprogressivamente formando uma cadeia. Como o objeto de todas as relações triádicaspermanece o mesmo, a tendência é a aproximação entre ele e os interpretantes, em umaespiral centrípeta. Observação: o ponto |x| representa essa aproximação ideal do objeto e do interpretante,o ponto remoto para onde este último converge.

Figura 6.1. Encadeamento por “aperfeiçoamento”

I II III

IV

obj

sig

int obj obj sig

int

obj

OBJETOSIGNOS/ INTERPRETANTES

progressivamente centrípeta

x

Figura 6.2 Cadeia semiótica de “aperfeiçoamento”

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Nesse processo descrito, o objeto é apenas um ponto de partida para a

determinação de signos e interpretantes, que são sucessivamente e infinitamente

“objetivados” para que as últimas conseqüências daquela determinação sejam verificadas.

Entendendo que nomear é o início do conhecer, é importante propor uma tradução

em conceitos para ambos os movimentos. Para os efeitos desse trabalho, ao primeiro caso será

atribuído o nome de aperfeiçoamento e, ao segundo, abstração38.

Os elos da cadeia semiótica não são ligados apenas por essas duas formas. Há um

aspecto mais elementar que também implica o reconhecimento da sucessão de signos: a

natureza sígnica dos elementos da semiose. O objeto, o signo e o interpretante não são

entidades únicas e atômicas que passam a fazer parte da semiose apenas quando reunidos. Em

sua existência multifacetada, cada um desses elementos é, em si, um signo, ou uma relação

triádica.

A distinção entre objeto dinâmico e objeto imediato já sugere que a complexidade

do objeto dificulta sua apreensão direta. Por essa razão é esperado que se faça uso de signos

até mesmo para definir um objeto de uma eventual relação triádica. Da mesma forma, com os

demais elementos, é possível compreender que as dificuldades de cognição ou a

complexidade de idéias representadas forcem o uso de signos, ou um conjunto desses, para

estar no lugar dos elementos da semiose.

Assim é desenvolvida a sucessão, em que toda uma relação triádica é

posteriormente aproveitada na função de objeto, ou signo, ou interpretante, de uma outra.

Dada a infinitude dessa seqüência, no sentido inverso, um exame mais minucioso de qualquer

relação tende a evidenciar que cada um dos seus elementos são compostos por signos de

semioses anteriores.

38 É essencial o alerta de que ambos os termos foram cunhados especificamente para o propósito deste trabalho, para diferenciar as formas de encadeamento de signos. Inclusive, Peirce utiliza o vocábulo abstração em um sentido diverso e mais geral (2003, p. 45).

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Figura 7 – Encadeamento por “abstração” 7.1. Encadeamento por “abstração” – a relação triádica, tomada em sua forma regular(I), passa ao momento seguinte (II) quando o objeto original é abandonado. Com isso, oantigo signo é tomado então como objeto e o antigo interpretante passa a ser o signo paragerar um novo interpretante (III) e o processo continua em uma sucessão infinita em quetodos os elementos alternam de papel (IV). É importante notar que o objeto é abandonadoem cada etapa. 6.2. Cadeia semiótica de “abstração” – os elementos sucedem-se progressivamenteformando uma cadeia. Como o objeto é sucessivamente abandonado, a tendência é oafastamento entre eles e os interpretantes, cada vez mais complexos, em uma linhainifinita. Assim, o suposto objeto originário passa a ser uma referência remota, menosinfluente na cadeia e nos interpretantes mais elaborados e “abstratos”.

Figura 7.1 Encadeamento por

“abstração”

I II

III IV

obj

sig

int obj

obj

Figura 7.2 Cadeia semiótica de

“abstração”

obj

sig

int

obj int

sig

OBJET

Objeto remoto

Interpretante remoto

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Com essa explicação, cabe destacar uma informação que não pode passar como

subentendida e que se aplica a todos os movimentos de encadeamento descritos. A formação

de uma cadeia semiótica é infinita não apenas progressivamente, mas também

regressivamente. Isso equivale a dizer que os signos estão encadeados de forma que não se

pode determinar seu fim, nem tampouco seu ponto inicial.

Além disso, as ligações estabelecidas pelos signos são de natureza lógica, mas

isso não implica afirmar que são imutáveis. O processo de semiose é dinâmico e, por isso, as

ligações podem ser constantemente estabelecidas, alteradas e desfeitas. A semiose é uma

busca eterna por compreensão e, por tal motivo, não pode ser tida como estática.

Nas transformações por que passam os signos, a percepção exerce um papel

importante no acréscimo de novos elementos. Ao tomar contato com objetos até então

desconhecidos, o sujeito cognoscente estabelece novos signos, que farão parte de cadeias

semióticas por quaisquer dos movimentos descritos anteriormente. Há também o sentido

inverso – ao apreender um signo cujo objeto lhe seja completamente desconhecido, o

destinatário tende a promover um encadeamento de signos nesse pólo para que possa delinear

com precisão crescente esse objeto que ele precisa construir.

A integração de novos elementos não é a única forma sob a qual a percepção

transforma as cadeias semióticas. Já foi analisada neste capítulo a hipótese do reconhecimento

de percepção equivocada, que força a revisão de todos os sistemas de signos estabelecidos

com base naquele percipuum. Não é um fator de instabilidade ou nocivo ao encadeamento de

signos, mas deve ser tomado como um causa constante de aperfeiçoamento das relações, o

que equivale, por exemplo, em uma escala maior, à possibilidade de aprendizado.

Vale destacar, também, o caso da percepção absurda, como fator de transformação

das cadeias semióticas. Muito embora, aparentemente, o reconhecimento do absurdo implique

apenas a desconsideração do signo ou dos signos associados àquela percepção, seus efeitos

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sobre todo o conjunto de relações triádicas é mais intenso. Como já sugerido anteriormente, a

verificação da ocorrência de um absurdo abala as ligações entre os signos porque evidencia

uma indesejável incapacidade daquele sistema em explicar os fenômenos do real.

Há, portanto, um entrelaçamento constante de signos e cadeias semióticas, com

sucessões de relações que tendem ao infinito. Além disso, a experiência atua sobre todas essas

correntes, estabelecendo associações e forçando interações que não apenas modificam cadeias

existentes, como também fazem surgir novas outras.

A todo esse emaranhado de signos, organizados de forma sistemática, os

semioticistas russos bem apropriadamente associaram o nome de semiosfera.

2.4 SEMIÓTICA DA NORMA JURÍDICA

Firmadas as principais bases teóricas que orientam esse trabalho, resta o desafio

de fazer valer a teoria da semiótica em um contexto específico, como é o caso do direito. As

idéias de Peirce têm a pretensão de universalidade, foram formuladas em termos abstratos e

gerais, dentro da tentativa de redução ao menor cognoscível. Por isso, a aplicação da teoria

geral dos signos à disciplina jurídica pode contribuir para a compreensão de ambas as áreas

do conhecimento.

Neste capítulo, os fundamentos teóricos da semiótica de Peirce serão comparados

com alguns conceitos da Teoria Geral do direito, a fim de identificar, no contexto jurídico,

como se apresentam os elementos da relação triádica. O escopo dessa investigação é

identificar, ao final, um modelo de signo construído com base em elementos do direito que

possa ser afirmado, com amparo teórico, como um signo jurídico.

As categorias semióticas são, por sua própria natureza, formais e alheias a

qualquer tipo de vinculação prévia a conteúdos específicos. Isso garante a sua abstração e, por

conseqüência, sua flexibilidade e compatibilidade com os mais variados tipos de aplicações.

Desta forma, uma proposta modelar de signo jurídico, por mais que sejam delimitados e

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explicados os seus elementos, não pode ter a pretensão de ser definitiva ou única. Por sua

natureza complexa e dinâmica, o signo tende a se apresentar de formas diferentes, dentro de

um mesmo contexto.

A incerteza e o falibilismo, todavia, não tornam essa etapa menos importante.

Considerando a crescente relevância que os estudos sobre a semiótica vêm conquistando no

âmbito das disciplinas da comunicação, não se pode ignorar a influência que tais teorias

podem vir a exercer sobre os estudos jurídicos. Vários juristas e filósofos do direito já

desenvolveram discussões nessa área comum39, como fazem exemplo as referências deste

trabalho.

O que se oferece é uma análise sistemática e teórica desse entrelaçamento de

disciplinas, para que sejam definidos os conceitos básicos, com todo o rigor lógico

característico de Peirce. O que não se recomenda, nessa visão, é tratar de semiótica jurídica

sem antes explicar o que seria o signo jurídico.

A definição do que é a norma jurídica40 acompanha os trabalhos teóricos sobre o

direito desde sua proposição mais reconhecida, pelo jurista Hans Kelsen41. Com marcada

influência kantiana (e aqui está evidente uma característica comum com o semioticista norte-

americano), o pensador germânico propôs uma “Teoria Pura do direito”42, uma estruturação

39 Convém destacar a proposta de uma epistemologia das significações, assim como uma sociologia das significações, no âmbito jurídico (WARAT, 1995, p. 308). 40 Para Kelsen (1986, p. 1), “a palavra ‘norma’ procede do latim norma, e na língua alemã tomou o caráter de uma palavra de origem estrangeira – se bem que não em caráter exclusivo, todavia primacial. Com o termo se designa um mandamento, uma prescrição, uma ordem. Mandamento não é, todavia, a única função de uma norma. Também conferir poderes, permitir, derrogar são funções de normas. 41 A Alemanha da época ainda resistia à idéia de um sistema baseado na legislação, preferindo um direito científico, evidenciado no surgimento do pandectismo e da jurisprudência dos conceitos (BOBBIO, 1995, p. 121-122). 42 Sobre a teoria, “quando a si própria se designa como ‘pura’ teoria do direito, isto significa que ela se propõe garantir conhecimento apenas dirigido ao direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental” (KELSEN, 1998, p. 1).

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dos sistemas jurídicos tomando por base um juízo lógico43 imperativo a que denominou

norma jurídica.

Para Kelsen, a norma jurídica envolve um juízo lógico de imputação, em que está

evidente um dever-ser44, entre sujeitos submetidos ao seu império. Com essa formulação, a

possibilidade de apelo à causalidade para explicar os fenômenos jurídicos ficou afastada. A

imputação é atributiva na medida em que associa duas situações diversas, atribuindo a

segunda como conseqüência lógica da primeira, em virtude do comando normativo tido como

válido. A verificação da ocorrência da conseqüência da norma na realidade empírica não é

relevante para a conceituação da norma. Em outras palavras, uma vez concretizada a hipótese

da norma, sua conseqüência pode ou não acontecer de fato, sem que com isso seja prejudicada

a validade da imputação45.

Uma outra característica da norma jurídica é a determinação de uma relação

sempre entre sujeitos. A conseqüência da norma jurídica (ou a conseqüência jurídica da

norma) impõe a atribuição de deveres e direitos a um conjunto de sujeitos envolvidos. Ou

seja, modifica situações jurídicas ao estabelecer regras de conduta que subordinam um sujeito

e que autorizam outro a exigir seu cumprimento. Não desvirtua a natureza da norma a

possibilidade de cada um desses sujeitos ser plural ou coletivo, ou ainda indeterminado.

Em acréscimo a esses elementos, uma característica típica da norma jurídica, que

a diferencia de outras formas de normas sociais, é a coatividade46. Há uma imperatividade

43 Segundo o mesmo autor, há uma relação evidente entre o direito e a lógica: “também não há, no idioma alemão, a palavra ‘lógica’ como nome de uma Ciência; há diversos nomes para as normas que formam o objeto da Ciência que descreve essas normas: para as normas que formam o objeto da Ética, o nome ‘moral’; para as normas que formam o objeto da Ciência do direito, o nome ‘direito’” (KELSEN, 1986, p. 2). 44 Como uma categoria original, Kelsen (1986, p.3) sustenta a impossibilidade de descrição mais detalhada do dever-ser: “como não se pode descrever o que seja o ser, tão pouco há uma definição do dever-ser”. 45 Portanto, “ ‘Validade’ é a específica existência da norma, que precisa ser distinguida da existência de fatos naturais, e especialmente da existência dos fatos pelos quais ela é produzida” (KELSEN, 1986, p. 3-4). Neste ponto, o autor está próximo da noção de abstração, que será retomada a seguir. 46 Kelsen (1998, p. 44-45) distingue coerção e coação, para entender que o direito trata apenas desta última, que seria uma resposta jurídica a condutas proibidas. Entende que coerção só pode corresponder a sanção se o sentido desta última for ampliado, para envolver respostas jurídicas a fatos de risco, como o poder de polícia.

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inerente à norma ao impor comandos de comportamento e existe uma heteronomia pelo fato

dessa obrigatoriedade ser afirmada por uma instância diversa dos sujeitos envolvidos, sem a

necessidade de aquiescência voluntária destes. Porém, esses aspectos restariam inócuos se não

fosse atribuída à norma uma garantia de cumprimento efetivo.

A coatividade47 está manifesta pela possibilidade de sanção48 jurídica. A

conseqüência da norma pode ou não ser verificada na realidade, mas uma vez descumprida

faz nascer uma nova imputação, cuja conseqüência é a imposição da sanção49. Aqui surge a

necessidade da tutela estatal do direito, uma vez que o Estado, por força de sua soberania e

supremacia, é o único titular da violência legítima. À entidade estatal, portanto, cabe

sancionar aqueles comportamentos que escapam à imperatividade normal.

Na formulação da norma, há um duplo juízo de imputação – um atribuindo um

dever de conduta aos sujeitos e outro atribuindo uma sanção estatal no caso de

descumprimento do primeiro. Em ambos os casos, o comando está estruturado sob a forma de

conseqüência imputada a uma hipótese.

Não há uma posição consensual sobre qual a forma lógica pela qual esses dois

juízos de imputação integram a norma jurídica50. Houve propostas de reconhecimento de

juízos disjuntivos ou adversativos. Apesar dos méritos de cada proposta, é conveniente afastar

essas possibilidades porque enfatizam aspectos, respectivamente, de alternatividade exclusiva

e oposição que não são elementos essenciais da norma. Talvez, por estas razões, o conectivo

lógico somativo seja o mais adequado porque demonstra que, ainda que qualquer uma das

duas imputações não ocorra em concreto, no plano lógico-formal ambas estão juntas de forma

complementar. 47 Tobias Barreto (2001, p. 95) pede que “convençamo-nos, portanto: o direito é um instituto humano; é um dos modos de vida social, a vida pela coação, até onde não é possível a vida pelo amor”. 48 Como parte da ordem jurídica (KELSEN, 1998, p. 26). 49 Em outras palavras, seria uma característica distintiva entre direito e moral, porque “o direito impõe uma conduta determinada somente por ligar à conduta contrária um ato de coação como sanção” (KELSEN, 1986, p. 182). 50 O próprio Kelsen (1986, p. 68-70, 181), em obra postumamente publicada, reviu sua clássica proposição entre norma jurídica primária e secundária.

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Por fim, vale a pena lembrar a construção kelseniana do sistema normativo51, o

ordenamento52 jurídico, como o grande encadeamento de normas que comanda as condutas na

sociedade. O ordenamento jurídico é formado pelo conjunto de normas e pode ser

representado, em seu aspecto estático, pela figura da Pirâmide de Kelsen, que reforça sua

característica de sistema fechado e evidencia a estruturação hierárquica dos elementos

normativos53.

Além da análise estática, o ordenamento também pode ser estudado sob o seu

caráter dinâmico, envolvendo a criação e a supressão de normas e a forma como os aparentes

conflitos são solucionados. Há, assim, a suposição de que existe um conjunto de normas que

não determinam condutas, propriamente, mas estabelecem as regras para o funcionamento do

próprio ordenamento jurídico e os requisitos de validade para a produção de normas.

O que se verifica da proposta de Kelsen é a formulação de uma teoria positiva54,

universal55 e geral56 que permitisse o estudo do direito como um sistema fechado e perfeito.

Contribuem para essa pretensão de universalidade o discurso comum sobre neutralidade

axiológica, validade formal e suprimento de lacunas.

As conceituações e definições da norma jurídica variaram muito até os presentes

dias, orbitando em torno desse núcleo comum. Algumas descrições mais profundas do

51 No sentido de uma ordem social (KELSEN, 1998, p. 25). 52 Sobre a origem do termo, “não sabemos dizer como e quando a expressão ‘ordenamento jurídico’ estreou no uso corrente e este é um problema que merecia ser estudado; somos, entretanto, da opinião que seja a tradução italiana do termo alemão Rechtsordnung.” (BOBBIO, 1995, p. 197). Concordando com a origem italiana está a semântica de Vandyck Nóbrega de Araújo (1986, p. 41-44). 53 Norberto Bobbio (1995, p. 198) aponta como características do ordenamento jurídico positivo as idéias de unidade, coerência e completitude. 54 Entende que é positiva “uma norma posta na realidade do ser por um realizante ato de vontade” (KELSEN, 1986, p. 6). 55 O termo universalidade não está sendo usado no sentido de um sistema que se imponha a todo o gênero humano – o que é mais próximo do jusnaturalismo –, mas à pretensão de “plenitude do ordenamento jurídico” (KELSEN, 1986, p. 168). Vale a pena ver a definição de Peirce (2003, p. 109-110) de “universal” e o uso medieval relacionado ao termo “geral”. 56 Reconhecer sua teoria como geral não significa que as normas também tenham essa característica, sempre. Essa é a diferença conceitual entre norma e regra: “Tem a norma um caráter geral, qualifica-se-lhe com uma regra do dever-ser. Apenas nessa hipótese é infundado falar de uma ‘norma’, quer dizer, de considerar o caráter geral essencial para o conceito de norma. Pois o essencial de uma norma é que uma conduta seja estatuída como devida. Isto pode acontecer de modo geral ou individual” (KELSEN, 1986, p. 11).

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conjunto de teorias sobre o assunto, ou das posições adotadas pelos vários pensadores do

direito, escapam ao objetivo do presente trabalho, além de deslocar o foco para uma discussão

conceitual e formal que já ocupa há muito o pensamento dos juristas.

Por essa razão, como em todo conhecimento, é preciso marcar o ponto da decisão

a fim de permitir a continuidade da cognição. A noção de norma jurídica a ser adotada a

seguir é aquela que consta dessa breve descrição apresentada. Essa compreensão será

submetida ao crivo dos conceitos peirceanos a fim de verificar a sua aplicabilidade – esse sim

o objetivo deste trabalho.

Assim como a norma jurídica é uma entidade lógico-formal capaz de ser

concretizada sob as mais variadas formas, o signo é também um ente lógico e abstrato apto a

explicar relações com os mais diversos conteúdos. A semelhança entre as duas noções é muito

mais do que aparente e sugere, de antemão, que a norma jurídica é o melhor ponto para

começar a construção de um suposto signo jurídico.

Para o reconhecimento do caráter sígnico da norma jurídica, é preciso delinear

com clareza em qual relação de semiose ela está inserida e qual papel desempenha neste

processo. Pela complexidade inerente a esses dois elementos lógicos, é possível antecipar não

apenas uma, mas várias possibilidades de convergência.

A primeira proposta de tratamento semiótico da norma jurídica é também a mais

óbvia. A norma jurídica, a despeito do seu caráter lógico, é geralmente enunciada em termos

lingüísticos, o que já atrai a incidência da semiótica. A linguagem verbal (a língua) é um

código de comunicação composto pela articulação de elementos arbitrários, desde os mais

complexos – textos, enunciados, sintagmas – até os mais básicos – expressões, palavras,

fonemas. A língua é um sistema de símbolos, portanto.

A estruturação da relação de semiose, no âmbito da linguagem, acontece a partir

do reconhecimento de aquilo que se percebe é diferente daquilo que se entende. Na semiose

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da língua, portanto, esse componente lingüístico é o mediador entre um percipuum e uma

idéia decorrente. Em termos semióticos, um corpus de imagem ou som (objeto) determina

uma enunciação57 (signo), que determina uma mensagem (interpretante). A cadeia semiótica

pode prosseguir em um processo de aperfeiçoamento, por exemplo, quando a mensagem

passa a agir como signo para a formação de novas idéias (interpretantes).

A norma jurídica também participa do processo de semiose lingüística quando

está enunciada nesta forma. Então, de modo semelhante ao que acontece com a língua, de um

corpus físico (objeto) é determinada a norma em sua forma lógica (signo), que determina uma

certa situação jurídica (interpretante). A norma jurídica, portanto, age como linguagem

mediadora entre o que está manifesto de forma textual e o comando jurídico, geralmente

hipotético, que lhe deve seguir.

Todavia, essa primeira consideração da norma como signo lingüístico ainda pode

ser mais especificada. Isso porque, ao contrário da transmissão de idéias por meio da língua, a

norma é uma linguagem de segundo nível58, ou seja, que se apropria dos códigos da língua

para fazer valer o seu próprio conjunto de símbolos. Nesse movimento, a leitura de um

determinado texto jurídico implica sempre pelo menos duas leituras: ler “lingüisticamente” as

palavras para só então ler “juridicamente” as idéias.

Analisando essa posição, é possível formular novamente a semiose descrita,

deixando evidente que há efetivamente duas relações triádicas, unidas por um processo de

aperfeiçoamento do signo. Um elemento físico, como um documento jurídico em papel

(objeto) determina a apreensão do valor de seu enunciado lingüístico (signo 1), que determina

a aquisição das idéias que pretendia transmitir (interpretante 1), ponto em que está a norma

em sua forma lógica. No processo de aperfeiçoamento, o signo (enunciado lingüístico) torna-

57 No sentido lingüístico, “a enunciação é este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização” (BENVENISTE, 1989, p. 82). 58 Ou, nos termos mais precisos da Escola de Semiótica de Tártu-Moscou, um “sistema modelizante secundário”, que se estrutura sobre a linguagem natural (o “sistema modelizante primário) (VERENICH, 2003, p. 81).

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se implícito e o interpretante assume seu papel. Então, no nosso caso, o documento jurídico

(continua sendo o objeto) determina a assimilação de uma norma jurídica (signo 2), que

imputa alguma situação jurídica (interpretante 2). A manutenção do mesmo objeto e o

reconhecimento de que a mensagem do texto (interpretante 1) e a norma em sua forma lógica

(signo 2) são o mesmo elemento são os pontos que asseguram a continuidade do processo de

semiose. Em termos mais claros, é por isso que ao ler um texto jurídico, o sujeito apreende

seu sentido jurídico imediatamente após seu sentido lingüístico de maneira quase simultânea e

indistinta.

Nessa proposta lingüística de análise semiótica da norma jurídica, ainda restam

algumas questões relativas ao objeto e ao interpretante que serão mais detalhadas nas

próximas páginas. Agora, é preciso expor algumas considerações ainda sobre a relação entre

norma e signo.

Tudo o quanto foi exposto até o momento revela a possibilidade de apreensão da

norma como signo lingüístico, vale dizer, como símbolo. Assim como as linguagens verbais,

de uma forma geral, a norma também está estruturada em um sistema com pretensões de

universalidade. Em ambos os casos – o sistema da língua e o sistema normativo jurídico – há

um conjunto pré-determinado de regras de validade responsáveis por identificar o que

pertence e o que não pertence ao sistema.

Muitos autores fazem suas análises transitarem por esses processos semióticos

para explicar com esmerado esforço como direito e linguagem são elementos indissociáveis.

De fato, há uma interdependência recíproca entre os dois sistemas, principalmente porque um

legitima o outro no âmbito social.

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enunciação(implícita)

sentido

mensagem

norma

texto lingüístico

jurídico

sentido

norma

texto jurídico

enunciação

texto lingüístico

Figura 8 – Signo jurídico - primeiro modelo: Signo normativo lingüístico 8.1. Enunciações da norma jurídica – no sentido kelseniano, a norma jurídica é um juízológico de imputação (I) que pode ser enunciada em língua, como em (II). 8.2. Semiose lingüística – na semiose lingüística, a relação parte de um corpus lingüístico (objeto) para determinar uma enunciação (signo 1) e uma mensagem (interpretante 1). 8.3. Semiose normativa – na semiose normativa, a relação parte de um corpus jurídico (objeto) para determinar uma norma em forma lógica (signo 2) e extrair um sentido(interpretante 2). 8.4. Semiose lingüístico-normativa – o modelo de signo normativo-jurídico resulta da consideração de que o objeto pode ser o mesmo para ambas as relações e que a norma é a mensagem resultante da leitura lingüística (interpretante 1 = signo 2). Portanto a “leitura”jurídica é um segundo nível, ou um “aperfeiçoamento” da “leitura” lingüística, quepermanece necessária e prévia, mas implícita. A extração do sentido da norma pode continuar indefinidamente, em torno do objeto dado, buscando o seu mais próximointerpretante.

Figura 8.1 Enunciações da norma jurídica

Dado o FATO TEMPORAL deve ser a PRESTAÇÃO pelo SUJEITO OBRIGADO em face do SUJEITO PRETENSOR

dada a NÃO PRESTAÇÃO deve ser a SANÇÃO pela AUTORIDADE OBRIGADA em face da SOCIEDADE PRETENSORA

E

hipótese conseqüência

ilícito

I

II

Figura 8.2 Semiose lingüística

Figura 8.3. Semiose normativa

signo1

objeto

interpretante 1

signo2

objeto

interpretante 2

hipótese conseqüência

ilícito sanção

Figura 8.4 Semiose

lingüístico-normativa

objeto

signo

interpretante

mensagem

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Porém, é possível verificar que a semiose normativo-lingüística aqui descrita tem

como objetivo a extração de um comando normativo, em um processo cada vez mais

aperfeiçoado de compreensão. Está no âmbito da hermenêutica jurídica59, portanto.

Mesmo assim, não é uma hermenêutica no sentido amplo da palavra. Ao comparar

e reunir dois sistemas formais, como a língua e o ordenamento jurídico, o que se coloca ao

sujeito cognoscente, efetivamente, é uma limitação dupla. A hermenêutica jurídica, que já tem

um campo de atuação limitado, não pode ultrapassar as barreiras da língua, assim como o

estudo das formações discursivas, que também cumprem ritos formais, não poderia exceder o

espectro jurídico.

Ao avaliar os signos aqui descritos, o que se está fazendo é uma análise lingüística

estrutural da norma60, o que é muito pouco para as pretensões universais da semiótica. Os

signos da semiótica vão muito além da língua.

Uma proposta de superação do paradigma lingüístico na análise semiótica da

norma jurídica é o reconhecimento de que a língua é importante como veículo hermenêutico

para explicitação do “sentido” da norma. Então, é preciso recorrer à linguagem verbal para

decodificar a mensagem contida na norma jurídica. Nesse ponto, todo o modelo proposto nos

parágrafos anteriores é completamente válido. Porém, após a idealização da norma, a língua

passa para um segundo plano. Nesse grau de abstração, a norma passa a interagir com outras

normas, com situações e fatos. Esse é o sistema de “linguagem” propriamente jurídico.

Nesse nível jurídico-formal, uma dada situação pode determinar a norma como

signo e essa, por sua vez, determinar uma disciplina jurídica específica. É preciso atenção

para o fato de que, quando se menciona situação, não se está fazendo referência à hipótese da

59 Em relação ao método hermenêutico estimulado pelo direito, o “positivismo jurídico sustenta a teoria da interpretação mecanicista, que na atividade do jurista faz prevalecer o elemento declarativo sobre o produtivo ou criativo do direito” (BOBBIO, 1995, p. 133). 60 Kelsen (1986, p. 188) já aponta para a manifestação da norma jurídica por formas extralingüísticas: “o ato, cujo sentido é uma norma, pode ser executado de modos muito diferentes. Mediante um gesto: com um certo movimento de seu braço, um sinaleiro ordena que se permaneça parado, com um outro, que se deve prosseguir andando”.

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norma, ou a quaisquer de seus elementos internos. A relação semiótica aqui oscila no âmbito

da validade normativa, não de sua aplicação – a qual seria um outro processo lógico,

silogismo, dedução, mas não semiose61.

Nessa relação triádica jurídico-formal, uma situação (objeto) determina uma

norma (signo) na medida em que impõe ao intérprete do direito a necessidade de destacar do

ordenamento jurídico o conjunto de regras aplicável àquela seara. Sem questionamentos de

mérito ou de procedência das alegações, o que importa nessa determinação é a certeza de que

existe uma norma específica (ou um conjunto de normas) para disciplinar aquela situação.

Então, a norma jurídica (signo) determina, necessariamente, uma disciplina

jurídica específica para o caso. Em suma, uma situação fática (objeto) determina a

individualização de uma norma jurídica (signo), que por sua vez impõe um regramento

específico para o caso (interpretante). Esse seria o modelo da semiose jurídica formal.

Para essa tríade, convém reparar que o modelo anterior, de extração lingüística da

norma, atua como integrante do elemento signo. Vale dizer, por processos semióticos-

lingüísticos, é possível chegar do texto físico à norma jurídica, a qual irá atuar em uma

segunda relação, formalmente jurídica, como signo.

Essas linhas gerais apenas apresentam alguns modelos de análise semiótica da

norma jurídica como signo. Outras considerações serão apresentadas, logo após o estudo mais

detido do objeto e do interpretante dessas relações triádicas.

No primeiro caso, foi descrito um modelo semiótico em que a norma jurídica atua

como signo lingüístico. Não foi delineado com maior precisão, todavia, o que pode ser

tomado como objeto dessa relação triádica, tarefa que será levada a efeito a seguir.

61 Muito embora seja comum a afirmação de que a aplicação da norma ao fato concreto é um silogismo jurídico, é preciso reconhecer que não há uma relação silogística perfeita na concretização da norma, no máximo um entinema, apesar da idéia geral do silogismo cumprir um papel bastante funcional na manutenção da crença no sistema jurídico (ADEODATO, 1999, p. 152).

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hip → cons norma

Figura 9 – Signo jurídico - segundo modelo: Signo normativo lógico-formal9.1. Disciplina jurídica das situações – as situações de fato exigem ordenação, conferidapela norma jurídica, em sentido lógico, que determina disciplinas jurídicas para aquelassituações. Convém ressaltar que a disciplina jurídica aqui tratada é sempre em abstrato,uma vez que a concretização ou aplicação da norma envolve outros juízos lógicos. 9.2. Semiose lógico-formal – na semiose lógico-formal, a relação parte de uma situaçãode fato (objeto) para introduzir uma norma jurídica (signo), que implica em umadisciplina jurídica daquela situação (interpretante). 9.3. Semiose lingüístico-normativa – em um processo crescente e infinito de abstração,as disciplinas jurídicas de situações específicas geram interpretantes cada vez maisafastados. Assim, as próprias normas são tomadas como objeto, em substituição àssituações de fato, estimulando as características de auto-referência, universalidade egeneralidade. Como é comum nos processos de encadeamento de signos por abstração, osinterpretantes resultantes perdem gradativamente as características do objeto originário,que se perde no ponto remoto do início da cadeia.

hipótese conseqüência

ilícito sanção

Figura 9.1. Disciplina jurídica das situações

Figura 9.2. Semioselógico-formal signo

objeto

interpretante

situação jurídica

disciplina

Figura 9.3 Cadeia semiótica

lógico-formal

OB

situaçãojurídica

disciplinas

situação de fato

norma jurídica

disciplina jurídica

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No processo semiótico-lingüístico de hermenêutica da norma, foi considerado

que, ao lado na norma como signo e da situação jurídica como interpretante, haveria um texto

como objeto. Como e em que limite esse texto pode ser considerado objeto de um signo é o

que deve ser verificado.

Na semiose puramente lingüística, o objeto é a manifestação física, em imagens

ou sons, de um texto verbal. Todavia, aqui é importante fazer a distinção entre objeto

imediato e objeto dinâmico, com base na teoria de Peirce. Imagens e sons, como fenômenos

reais perceptíveis, integram a categoria do objeto dinâmico. Não são apreensíveis em sua

totalidade, mas apenas naqueles aspectos que o façam determinar um signo.

Aí subsiste a importância de distinguir o objeto imediato. Como o que importa

para o objeto imediato é o seu poder de determinar um signo, nem toda imagem ou som, por

mais elaborada que seja, será considerada um objeto lingüístico. Para integrar a cadeia

semiótica, o objeto imediato precisa ser reconhecido como texto. Para isso, a linguagem

impõe várias regras de validação.

Em suma, uma imagem ou som, fisicamente considerado, pode ser um objeto

dinâmico de uma semiose lingüística na medida em que tem potencial para ser entendido

como um texto. Esse texto, por sua vez, como percepção daquele elemento físico, é o objeto

imediato da mesma relação na medida em que é capaz de determinar um signo lingüístico –

símbolos como palavras e enunciados.

Feitas essas considerações, é preciso tem em mente que a hermenêutica da norma

é um processo semiótico ao mesmo tempo lingüístico e jurídico. A semiose jurídica atua

como uma linguagem de segundo nível, ou uma sobrelinguagem, fazendo uso dos símbolos

da língua para fazer valer o seu próprio código.

Por isso, nessa dupla limitação – lingüística e jurídica – o texto que se pretende

usar como objeto de semiose deve atender não apenas às regras de validade da linguagem,

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mas também àquelas do direito. Então um conjunto de imagens ou sons pode ser um objeto

dinâmico dessa relação, mas precisa se afirmar como texto – e mais, como texto jurídico –

para ser compreendido como objeto imediato.

Além da validade lingüística, o texto precisa demonstrar validade jurídica. Em

outras palavras, precisa determinar signos jurídicos ordenados sob uma estrutura sintática

válida para o direito. No geral, não se está impondo uma limitação de conteúdo, mas uma

expectativa de que o texto respeite a forma lógica da norma e de suas derivações.

Muito embora essa descrição possa parecer superficial e abstrata, as regras de

validação de textos jurídicos tornam-se mais evidentes quando se recorda que o ordenamento

jurídico já apresenta, costumeiramente, seu rol de objetos válidos. É o conjunto que qualquer

advogado conhece como fontes62 do direito. Elas são, portanto, as categorias de objetos que o

sistema jurídico admite como válidos, impondo a cada uma regras mais específicas (fontes

formais) ou menos rigorosas (fontes não-formais) de validação.

Em resumo, a manifestação física de som ou imagem é apta a ser reconhecida

como objeto dinâmico, muito embora só seja admitida como objeto imediato de uma semiose

jurídico-lingüística quando satisfizer, ao mesmo tempo, as regras de validade para ser

considerada um texto lingüístico e um texto jurídico. O próprio ordenamento jurídico já

apresenta um conjunto de possibilidades de validação, que corresponde às fontes do direito.

Num segundo momento, foi abstraída a referência a um objeto lingüístico para

demonstrar uma relação semiótica entre a norma jurídica e situações. Nessa outra modalidade

de signo jurídico normativo, o objeto seria uma situação específica.

Aqui, mais uma vez, vale a pena manter a distinção entre objeto dinâmico e

imediato, para aprofundar a análise. O objeto dinâmico dessa relação semiótica seria uma

situação de fato, fisicamente existente. O seu objeto imediato, inicialmente, seria o registro ou

62 Como fontes, “todos os métodos de criação jurídica em geral” (KELSEN, 1998, p. 259).

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impressão mental causado por aquela situação, ainda que por meios indiretos, enfatizando

aspectos capazes de causar a determinação de um signo jurídico.

Explicando melhor a proposição, a situação fática não pode fazer parte do

processo semiótico jurídico exceto quando evidencie a imposição de uma norma jurídica

como signo. Em palavras da técnica do direito, a situação será passível de análise quando

determinar “conseqüências jurídicas”. Portanto, há uma aproximação bastante significativa

com o conceito de fato jurídico (em sentido amplo).

Mais uma vez, vale atentar para o fato que não está sendo analisada aqui a

concretização da hipótese da norma, que constitui juízo lógico distinto do processo semiótico.

A verificação da situação de fato, nessa relação triádica, impõe o reconhecimento de que

algumas normas disciplinam aquele assunto – e só. Essa é a conclusão que melhor respeita a

natureza semiótica da determinação do signo pelo seu objeto.

Um outro ponto que merece destaque, também, é a possibilidade da norma atuar

como objeto de uma relação semiótica, para o que não há qualquer impedimento lógico.

Recordando o processo de encadeamento por abstração, como sugerido linhas atrás, é bastante

plausível que uma norma jurídica, após funcionar como signo, seja deslocada à condição de

objeto do seu próprio interpretante, convertido em signo. Além disso, no âmbito jurídico-

formal, uma norma em si pode ser objeto de regramento por diversas outras, numa

metalinguagem evidente.

Por fim, vale apresentar algumas considerações sobre a natureza do objeto na

semiótica jurídica normativa. Em decorrência do formalismo e das regras de validação

impostas pelo ordenamento jurídico, como qualquer sistema, nem todos os objetos

(dinâmicos) são admitidos a fazerem parte de uma relação semiótica jurídica.

Em decorrência disso, existe um conjunto infinito de fenômenos que são

apreendidos pelo sujeito cognoscente, mas não integram as cadeias semióticas jurídicas. Isso

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não representa negação do seu potencial como objeto, apenas indica que não atendem a

algumas regras de validação impostas pelo sistema, portanto arbitrárias. Tais objetos ainda

poderão integrar outras relações triádicas e determinar outros signos, porém esses processos

não estarão passíveis de receberem a denominação de “jurídicos”, do ponto de vista do

ordenamento.

Essa é uma visão parcial do assunto, que ainda precisa ser melhor analisada e,

igualmente, criticada. Antes disso, contudo, é necessário completar o estudo do signo

normativo com algumas palavras sobre o seu interpretante.

A norma jurídica, então, pode analisada como signo jurídico em duas situações

distintas mas complementares: como signo lingüístico-jurídico e como signo jurídico-formal.

Da mesma forma, em ambos os casos o seu interpretante merece ser apontado.

No contexto lingüístico, a relação semiótica parte do texto, como objeto, para um

conjunto de símbolos da língua, como signo. Deste, então, é determinada uma mensagem,

como interpretante daquele signo. Quando a norma jurídica passa a fazer parte dessa cadeia,

ela impõe regras próprias para o objeto e, igualmente, modifica também o que se espera do

interpretante. Nesse caso, o interpretante que é determinado pela norma jurídica como signo é

o próprio conteúdo da norma – seu “sentido” ou sua “mensagem” lingüística.

Não se pode atribuir, nessa primeira análise, ao interpretante qualquer relação

com conseqüência ou disciplina jurídica, uma vez que aqui a norma está sendo analisada

apenas em abstrato, como enunciado. O interpretante imediato corresponderia a esse conteúdo

esperado da norma63, enquanto o interpretante dinâmico, ao seu conteúdo efetivamente

compreendido em uma situação concreta. O interpretante final ou normal, na esteira das

conceituações apresentadas, seria uma tendência de compreensão, equivalendo, com as

devidas adaptações, às grandes correntes do entendimento jurídico. 63 Sobre uma suposta vontade da lei ou do legislador, vale a pena consultar a opinião de Jeremy Waldron (2000, p. 510-511), especialmente sobre o reconhecimento da legislação sem intenção, ou seja, mesmo considerando que todo contexto lingüístico carrega uma intenção, não se pode atribuir esta à lei ou ao legislador.

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É importante notar como, em uma relação semiótica lingüística, o interpretante

usualmente dá origem a novos signos. O processo de encadeamento por aperfeiçoamento

combina perfeitamente com os objetivos da hermenêutica, por promover um aprimoramento

constante do interpretante, sempre tendo o texto como limite ideal. No caso da semiose

lingüística da norma, uma vez explicitado o seu conteúdo, este pode atuar como signo do seu

objeto (no qual passa a estar incluída implicitamente a norma que atuou como signo) para

determinar um novo entendimento, sucessivamente, na direção da melhor aproximação ao

texto.

No segundo cenário, a norma como signo jurídico-formal, também o estudo do

interpretante é relevante. Nesse caso, foi proposto que nesse plano a norma atua como signo

de uma situação-objeto, para determinar uma disciplina jurídica.

O interpretante, por isso, corresponde a essa disciplina ou regramento jurídico que

a norma torna evidente para uma dada situação. Apesar da relação com uma situação fática,

ainda assim a norma atua aqui em abstrato. O que a norma determina, aqui, é uma certa

disciplina jurídica, ou seja, um conjunto de regras e comandos que se impõem sobre aquele

assunto. Essa disciplina pode ser representada por um conjunto finito de pares ordenados de

hipóteses e conseqüências, com especificações de sanções e procedimentos. É um

microssistema, em suma, em que o ordenamento jurídico apresenta qual a parte de si que irá

imperar sobre aquele caso. Além disso, da disciplina jurídica de um assunto pode ser

deduzido, também, um padrão de comportamento “ideal” legitimado pelo ordenamento.

Considerando essa acepção, o interpretante imediato seria a delimitação do

conjunto de regras associado à situação-objeto. Em termos jurídicos, corresponde às regras de

competência.

Já o interpretante dinâmico indica a disciplina efetivamente entendida como

válida para aquela situação. Supõe, portanto, uma consideração sobre a eficácia jurídica, uma

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vez que o conjunto de regras efetivamente compreendido pode ser diferente daquele

formalmente previsto pelo ordenamento jurídico – ou pode, até mesmo, envolver o uso de

regras não formalmente jurídicas. Obviamente, esses são casos-limite que forçam uma

contradição interna no sistema, mas que podem vir a ocorrer em virtude do caráter individual

e singular do interpretante dinâmico.

Por fim, o interpretante final é aquele que vai apresentar a orientação geral, ou a

manifestação normal dos outros interpretantes. Indica como aquela situação tende a ser

disciplinada pelos destinatários da norma, coletivamente considerados.

Pelo que foi exposto, resta claro que o interpretante da norma jurídica não é a

conseqüência de sua hipótese, mas, em geral, a forma como aquela mesma norma é

compreendida por uma mente potencial. Essa compreensão pode ser cada vez mais

aperfeiçoada, por meio de um encadeamento de signos que, embora infinito, não pode ir além

dos limites do objeto.

2.5 CONSIDERAÇÕES SOBRE DOGMA E SEMIOSE INFINITA

Explicitado os conceitos da teoria geral dos signos de matriz peirceana, este

capítulo procurou detalhar os elementos constituintes do signo e a forma como são

relacionados. Analisando o processo de semiose, reforçou a idéia de que o signo é um

elemento relacional que tende a formar cadeias infinitas de relações semióticas.

Essas cadeias semióticas podem ser formadas por diversos processos de

encadeamento de signos e são infinitas em ambos os sentidos – progressivamente e

regressivamente. Isso implica admitir que o início e o fim de uma cadeia semiótica são pontos

remotos, que somente podem ser trazidos a estudo por um exercício de aproximação ideal.

Contribui para isso, ainda, o aspecto dinâmico das cadeias semióticas, em constante

autogeração.

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Por esses motivos, o estudo isolado do signo, em uma análise sincrônica, exige

um corte arbitrário em uma cadeia de semiose infinita e, por isso, está sujeito a várias

limitações. É preciso admitir que o signo, isoladamente, tem um valor meramente conceitual,

abstrato, enquanto seu efetivo potencial explicativo da realidade só é efetivado quando retorna

à sua semiose infinita.

A infinitude desses movimentos reflete a inquietude do intelecto humano, tanto

regressivamente, buscando uma maior compreensão da realidade, quanto progressivamente,

objetivando dominar suas implicações mais abstratas. Após a leitura das idéias de Peirce, é

possível admitir que o signo é uma unidade básica do pensamento, mas, devidamente

encadeado, pode envolver toda a realidade.

Uma constatação como essa fica ainda mais complexa quando é acrescido o

caráter autônomo do representâmen. Como essa entidade relacional, na visão de Peirce, não

apresenta qualquer exigência de que sua semiose seja operada por uma mente racional, estão

abertas as portas para o reconhecimento de relações triádicas fora do gênero humano. Há

notícias de pesquisas semióticas envolvendo animais e suas formas de percepção. Pela teoria

aqui exposta, não há motivo algum para que isso não seja admitido.

O estudioso da semiótica peirceana é conduzido a pensar que, realmente, vive em

um mundo de signos. Ou melhor, vive no mundo por meio dos signos. No final das contas, o

signo não é apenas o mediador entre o objeto e o interpretante; é o mediador entre o sujeito

cognoscente e a realidade.

O ordenamento jurídico, como sistema, também tem pretensões de universalidade.

Supõe um todo hermético e coerente, capaz de promover respostas normativas às mais

diversas situações de fato. Todos os cidadãos nascem sob o império do ordenamento e a ele

não se podem furtar. É um pouco mais do que uma participação compulsória.

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Assim como a semiose, o ordenamento também é autogerativo, por outros meios.

Com uma combinação de universalidade com suprimento de lacunas, é apto a promover uma

disciplina jurídica para qualquer ocorrência. Ao cidadão é imposto um padrão de

comportamento e, quando este espectro normal é atendido, o ordenamento se afirma como

válido. Quando não é cumprido, há o recurso engenhoso da sanção, imposta coativamente por

uma entidade que tem poder para tanto, o que afirma também o poder do ordenamento. Com

esses “becos-sem-saída” lógicos, o ordenamento jurídico não apenas mantém sua integridade

sistemática, como também se imprime e se reproduz na consciência de cada cidadão – que

cumpre ou não a norma jurídica.

A impressão da marca do direito na consciência do cidadão é, em tese, uma

contradição com a sua liberdade ontológica. Idealmente, cada sujeito é livre para atuar sobre a

realidade e, nessa interação, formar os seus próprios padrões de comportamento. O que se

verifica na concretude da vida social, todavia, é a heteronomia da maior parte das regras de

conduta impostas aos indivíduos.

A vida em sociedade força a heteronomia por meio dos mecanismos de

socialização. A língua é um exemplo notório, em que os códigos simbólicos utilizados são

assimilados pelo indivíduo à medida que faz uso deles. Por isso, os símbolos, pela sua

natureza arbitrária, precisam ser familiares ao indivíduo. Aí ocorre um jogo de soma positiva:

ganha o sujeito, que adquire familiaridade com um conjunto de signos importantes para a

apreensão do real, e ganha o conjunto de usuários do sistema simbólico, que é legitimado para

mais um usuário.

Todavia, uma distinção importante entre o sistema de símbolos lingüísticos e o

sistema de símbolos jurídicos está no tratamento que conferem à dicotomia indivíduo-

coletividade. Para os lingüistas, como o pioneiro Ferdinand de Saussure, o estudo da

linguagem envolve a análise da língua e da fala, ou seja, respectivamente, do conjunto de

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regras internas do sistema, como um todo, bem como do uso que cada falante faz desse

sistema, individualmente. O ponto central da discussão é que, por mais que repouse na língua

o conjunto de regras desenvolvidas e aperfeiçoadas social e historicamente, não há

prevalência entre esta e a fala. Isso porque se reconhece que é precisamente na fala que está o

caráter de individualidade, de criatividade, responsável pela transformação e atualização da

língua.

No sistema de símbolos jurídicos, a comparação entre regras e usos

declaradamente pende para apenas um dos lados. Estudar o direito, usualmente, significa

estudar a disciplina jurídica prevista pelo ordenamento para as situações. Como visto, isso é

apenas o interpretante imediato da norma jurídica lógico-formal.

O uso efetivo (que corresponde ao componente da fala na lingüística) é relegado

para as discussões sociológicas, políticas, filosóficas ou, em suma, não jurídicas. A

desconsideração do uso é extremamente preocupante porque, como exposto, o uso é o

elemento de transformação do sistema, sempre necessário. Comparativamente, o direito

funciona como se houvesse uma “gramática normativa” de obediência obrigatória e

compulsória para todos os falantes – e nada mais.

Essa visão orienta a formação de uma dogmática jurídica e há quem pense, com

muita razão, que não poderia ser de outra forma. O dogma – aqui entendido como o direito

posto – impõe uma decisão para a sociedade, afirmando um aspecto simbólico em detrimento

de outro, com vistas a garantir uma ordem social64. Ainda que essa condição seja justificável,

pelo fato de conhecimento e decisão estarem sempre ligados, perguntas que inevitavelmente

ficam sem resposta – jurídica – são aquelas relacionadas à autoria e motivação dessas

decisões.

64 A noção de dogma é próxima da noção que Luis Alberto Warat (1994, p. 104-105) propõe para mito, “como produto significativamente congelado de valores com função socializadora.” O autor aponta que entre os principais mitos jurídicos estariam o do apelo a um emissor universal e o apego a conceitos fetichistas.

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Mesmo na formulação mais elementar da norma jurídica como signo – a

hermenêutica lingüística – o ordenamento jurídico impõe uma prevalência de noções da

realidade. As fontes do direito são consideradas objeto dessa relação triádica, mas além das

regras rigorosas de validade mencionadas, é preciso considerar que uma boa parte das fontes

são de origem exclusivamente estatal, outras de categorias profissionais restritas. Tratando do

interpretante, inclusive, o ordenamento confere a um órgão estatal específico a prerrogativa,

impensável em qualquer outro sistema semiótico, de determinar o conteúdo de um símbolo (a

norma), com validade universal.

Em termos semióticos, a hermenêutica oficial implica a prevalência de um

interpretante dinâmico sobre todos os demais. Isso impõe um risco considerável para a cadeia

semiótica, porque pode haver a cristalização de um interpretante dinâmico muito distinto do

interpretante final verificável na sociedade.

É uma prática comum no direito, que por isso faz uso do dogma. Como uma

verdade ou uma premissa posta, o dogma impõe um ponto inicial, exige que as estruturações

de sentido sejam sempre “a partir de” uma decisão. A lei, a jurisprudência, a hermenêutica

oficial, bem como tantas outras fontes de direito, são exemplos de como o dogma se impõe na

sociedade65.

A conseqüência para o indivíduo é um choque constante entre o dogma e a sua

noção de realidade, construída em bases distintas daquela da hermenêutica oficial. A

coatividade da norma impede que seu conteúdo seja descartado como uma percepção absurda.

Resta ao indivíduo assimilar o dogma, com a conseqüente revisão de todas as cadeias

semióticas estabelecidas em discordância, como se fossem equivocadas.

65 Há um contraste entre o trabalho do jurista e o do cientista, sendo que este último, segundo Umberto Eco (1988, p. 220), é caracterizado por uma “recusa em impor suas crenças como dogma”.

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Figura 10 – Quebra da cadeia semiótica 10.1. Quebra da cadeia semiótica de “aperfeiçoamento” – o corte arbitrário da cadeiasemiótica de aperfeiçoamento lesiona a continuidade da semiose e estabelece um ponto departida (signo α) para a formação das relações triádicas. Os signos/interpretantesanteriores não ficam descartados, mas implícitos. Isso significa que, em virtude damanutenção do mesmo objeto em todas as relações da cadeia, elementos implícitos podemser resgatados porque figuram em relações de determinação direta (|x1|,|x2|,|x3| e |x4|)com o objeto comum. Além disso, a aproximação ideal (|x|) entre objeto e interpretantenão é afetada. 10.2. Quebra da cadeia semiótica de “abstração” – o corte na cadeia de abstraçãoestabelece um objeto (objeto α) como ponto de partida, estimulando a ilusão de umasemiose com início determinado. Por não compartilharem do mesmo objeto, as relaçõestriádicas anteriores são afastadas e ficam mais difíceis de serem resgatadas sem asuperação do ponto de corte.

Figura 10.2 Quebra da cadeia

semiótica de “abstração”

Figura 10.1 Quebra da cadeia semiótica

de “aperfeiçoamento”

signoα

corte arbitrário|x1|

|x2| |x3|

|x4|

corte arbitrário

objetoα

OBJ

|x|

objeto

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Portanto, o dogma quebra a semiose infinita em dois momentos bem definidos.

No primeiro caso, quando impõe a revisão das demais cadeias semióticas para se adequarem

ao seu conteúdo simbólico. Em outro, porque impede a regressão infinita da cadeia semiótica

ao vedar o questionamento de suas premissas – ou seja, a verificação dos signos anteriores

que as determinaram.

De uma forma geral, o sistema jurídico funciona à base de dogmas, e poderia

continuar dessa forma indefinidamente66. O que sugere uma crise é o fato de que todo sistema

socialmente imposto deve ter um compromisso mínimo de eficácia. Em conceitos semióticos,

o interpretante imediato deveria buscar sempre alinhamento com o conjunto prevalente dos

interpretantes dinâmicos da sociedade. Quando o sistema imposto não oferece respostas

satisfatórias às expectativas dos seus membros, a discordância entre esses dois elementos

semióticos dá início à crise.

A crise de um sistema simbólico ocorre quando os seus destinatários assimilam

como signos, juntamente com as regras, as informações sobre suas falhas. Os interpretantes

determinados dessa forma tendem a estabelecer paralelamente um sistema próprio, híbrido e

distinto do interpretante dinâmico da hermenêutica oficial. Como todo sistema simbólico

necessita de assimilação para ser legitimado, há uma crise porque as fontes formais

determinam uma cadeia semiótica, mas os indivíduos assimilam e legitimam outra67,

completamente diferente.

A crise no sistema jurídico simbólico reflete a quebra da semiose infinita.

Ainda há tempo para resgatar as cadeias semióticas partidas e o reconhecimento

das condutas é um bom início. 66 Não se propõe, portanto, uma radical postura contra-dogmática como as observadas na década de 1990 por Luis Alberto Warat (1997, p. 139). A crítica é contra o apego estético (WARAT, 1997, p. 143) à dogmática jurídica e contra uma pretensa onipotência epistemológica, que faz uso de significações imaginárias (WARAT, 1997, p. 147). 67 Não se trata aqui exatamente da adoção de premissas pressupostas ou implícitas, como no entinema aristotélico, explicado por Adeodato (1999, p. 137). Há, isso sim, um deslocamento de legitimidade que faz com que declaradamente outros signos mais eficientes sejam tomados no lugar de alguma norma, fraca, mas pretensamente válida.

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CAPÍTULO 3 - ALÉM DA NORMA

3.1 A ABORDAGEM LINGÜÍSTICA E SEUS LIMITES

O conhecimento não nasce como uma fagulha de luz incandescendo nas trevas de

um intelecto sombrio. Não é um momento isolado e definitivo que espalha razão como

sementes por um solo deserto.

Tampouco é uma brisa passageira, que vem não se sabe de onde e se insinua para

quem tem a sorte de inspirá-la. Não é uma encomenda que se traz de fora, pronta e embalada

como um presente, aguardando liberação na alfândega.

Não há caminhos simples para o conhecimento. Discutir se o conhecimento nasce

fora do indivíduo ou dentro do intelecto é apenas metade da questão. Melhor dizendo, é

apenas o início da questão.

Este trabalho, pisando nas pegadas deixadas por Peirce, adota uma fenomenologia

de matriz mais ontológica. A partir daí começam as discussões sobre o conhecimento. Mesmo

para quem segue um entendimento diverso, as dificuldades enfrentadas provavelmente serão

as mesmas.

Além das discussões sobre percepção, experiência e categorização, já sugeridas

nos capítulos anteriores, um estudo desse assunto implica questões sobre a comprovação e a

transmissão do conhecimento. As possibilidades de validação ou comprovação do

conhecimento orientam ainda uma série de discussões ligadas principalmente ao método e ao

cientificismo. A epistemologia trata deste tópico com muito mais propriedade.

A transmissão é um elemento fundamental de uma teoria do conhecimento.

Somente após a verificação dessa característica é possível aplicar as idéias sobre o

conhecimento ao contexto em que ele mais costumeiramente se manifesta – o social68. Por

mais que as discussões sobre método e ciência interessem a quem mais de perto se dedica à 68 Segundo Tobias Barreto (2001, p. 20), “a sociedade é a categoria do homem, como o espaço é a categoria dos corpos”.

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pesquisa, as implicações das questões sobre transmissão afetam todo o espectro de indivíduos

integrantes da rede social. Até mesmo quem produz conhecimento sem saber que o faz.

Despindo, assim, todos os preconceitos cientificistas e toda exigência formal de

método, é preciso reconhecer que o conhecimento, sob qualquer forma, é produzido por

todos, a todo momento, como uma pulsão humana de explicar a realidade que o cerca. O que

se verifica na sociedade, portanto, é um entrelaçamento constante de noções de realidade,

sendo superpostas, adaptadas, resistidas, formando um grande tecido representativo da

tendência de um grupo a explicar o seu mundo.

Para esse encontro de idéias, é preciso que as vias estejam desobstruídas. É

necessário um canal de transmissão que seja suficientemente abstrato para conter toda a gama

de conhecimento possível e concreto o bastante para ser entendido por todos os indivíduos.

Além disso, requer um conjunto de regras socialmente ancoradas, ou seja, com mecanismos

de atualização constante sem que se perca a identidade do sistema.

A língua foi o meio que se mostrou mais propício a essa função. É um sistema de

símbolos relativamente simples e intuitivo, de fácil assimilação. Conta com uma dupla

articulação (no caso das línguas ocidentais) – em fonemas e morfemas, por exemplo – que

permite a formação de um número infinito de textos com uma quantidade reduzida de

símbolos elementares. Ainda, como sugerido no capítulo anterior, é um sistema que se

fortalece mais, conquista maior legitimidade, na medida em que é usado.

Não se pode negar que é muito usado. A generalidade da língua permite que seja o

canal padrão para qualquer tipo de debate. Este trabalho, por exemplo, redigido em vernáculo

em forma escrita, dificilmente poderia ser de outra forma. A língua domina a comunicação

social.

Por esse motivo, a filosofia contemporânea (assim como uma lingüística mais

apurada e uma teoria da comunicação) passou a dar destaque à língua como fenômeno digno

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de estudo. Não é de forma alguma uma descoberta recente, mas é como se no passado a

maioria dos pensadores tivesse feito uso de lentes sem perceber que estavam lá. No estágio

atual, as lentes passam a ser o objeto de análise, em um movimento chamado de “virada

lingüística”69.

Este momento representa a superação de um paradigma na discussão filosófica70.

O foco anterior, em uma filosofia da consciência, já demonstrava sinais de saturação,

enquanto questões de ordem mais concreta trouxeram à tona o debate sobre a transmissão de

idéias71.

A partir de então, a análise comunicacional produz frutos dos mais variados

matizes e sabores. A linguagem passa para o centro do palco, na teoria dos sistemas de Niklas

Luhmann72, na teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas73, só para citar os mais

conhecidos neste âmbito da filosofia jurídica. Trazendo a contribuição estritamente

lingüística, desde as posições mais estruturalistas até a análise da enunciação, vale a pena

ressaltar o trabalho da escola da Análise do Discurso74 francesa, reconhecendo o papel da

língua como veículo de transmissão de ideologias, em uma definição bastante sucinta.

69 A “virada lingüística” não apenas transforma o debate filosófico, mas principalmente o lingüístico: “de mais a mais, a guinada lingüística colocou o filosofar sobre uma base metódica mais segura e o libertou das aporias da teoria da consciência. Neste processo configurou-se, além disso, uma compreensão ontológica da linguagem, que torna a sua função hermenêutica, enquanto intérprete no mundo, independente em relação ao processos intramundanos de aprendizagem e que transfigura a evolução dos símbolos lingüísticos inserindo-os num evento poético originário” (HABERMAS, 1990, p. 16). 70 Sobre os paradigmas – do ser, da consciência e da linguagem – na filosofia, vale a pena verificar a consideração de Habermas (1990, p. 21-22). 71 Sobre isso, convém ressaltar que a “virada lingüística” é uma proposta de superação desses sinais de esgotamento: “uma solução mais sólida delineia-se ao abandonarmos a pressuposição um tanto sentimentalista da perda do abrigo metafísico e entendermos o vaivém entre a consideração transcendental e a empírica, entre a auto-reflexão radial e o imemorial inalcançável por meio da reflexão, entre a produtividade de uma espécie que gera a si mesma e o originário que precede toda produção – se entendermos portanto o jogo enigmático dessas duplicações como aquilo que realmente é: um sistema de esgotamento. O que está esgotado é o paradigma da filosofia da consciência. Se procedermos assim, certamente devem se dissolver os sintomas de esgotamento na passagem para o paradigma do entendimento recíproco” (HABERMAS, 2000, p. 413-414). 72 Especialmente em relação às expectativas cognitivas (LUHMANN, 1983, p. 53). 73 A importância das estruturas simbólicas e da comunicação foi relacionada por Jürgen Habermas (1990, p. 97), quando afirma: “considerada em sentido mais amplo, como um mundo da vida estruturado simbolicamente, a sociedade se forma e se reproduz apenas através do agir comunicativo”. 74 É importante mencionar que “nos anos 60, a Análise do Discurso se constitui no espaço de questões criadas pela relação entre três domínios disciplinares que são ao mesmo tempo uma ruptura com o século XIX: a Lingüística, o Marxismo e a Psicanálise” (ORLANDI, 2002, p. 19). Ainda sobre a Análise do Discurso, “pode-se

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Por tudo isso e tantas outras revelações que restaram implícitas, não é exagero

admitir que não se pode tratar da transmissão de conhecimento sem analisar a língua. Como

este trabalho adota a posição de que o conhecer está ligado ao transmitir, a língua conformaria

muito da forma humana de pensar.

No cenário atual, o que justifica o resgate da semiótica, especificamente na sua

matriz peirceana, é uma conclusão silenciosa mas latente que alguns estudos da comunicação

já começam a apontar. Ao assumir seu papel de destaque na transmissão de conhecimento, a

língua foi reconhecida como única, como um sinônimo lógico de linguagem.

Ao desconsiderar a desinência plural das linguagens, a maioria das obras

relacionadas à “virada lingüística” toma uma parte – a linguagem de articulação verbal – pelo

todo – o universo comunicativo75. Em suma, a língua, a linguagem verbal, impõe às demais

formas de linguagem a mesma transparência e obscuridade a que foi condenada no passado.

A língua sempre é um meio de comunicação, mas a recíproca dessa afirmação não

é verdadeira. Séculos atrás, Charles Sanders Peirce já sinalizava para a necessidade de

considerar outros sistemas de signos, impulsão que se concretizou na sua teoria semiótica.

Esta é a razão pela qual a semiótica peirceana, menos limitada pelos contornos da língua, é o

instrumento ideal para a análise de sistemas de signo não inteiramente lingüísticos76.

É o caso notório do direito. A maior parte das análises elaboradas, mesmo aquelas

que se declaram como semióticas, paga o elevado preço de um tributo lingüístico. A hipótese

deste trabalho é de que existe algum aspecto do direito que não se reveste de componente

lingüístico. Talvez seja até mesmo uma estrutura simbólica própria. De qualquer forma, vale a

dizer que a AD é uma teoria da leitura, ou melhor, que ela formula uma teoria da leitura que se institui rompendo fundamentalmente com a análise de conteúdo, por um lado, e com a filologia (e também com a hermenêutica), por outro” (POSSENTI, 2004, p. 358). 75 Portanto, língua e linguagem não podem ser tomadas por sinônimos (BRAGHIROLLI et al., 1994, p. 40). 76 Também chamados de formas paralingüísticas (BRAGHIROLLI et al., 1994, p. 47).

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pena ressaltar outras linguagens, outros meios de comunicação social, para verificar se

realmente afetam o direito ou são por ele afetados.

Evidentemente, toda hipótese pode ser falsa. É possível concluir – ou manter a

opinião – de que o direito é lingüístico por essência. Ainda assim, a proposta é necessária e

seus esforços de elaboração são válidos.

Afinal, tratando de direitos, o estudante – coisa que todo pesquisador é – tem o

direito de errar e o dever de investigar.

Silenciar é a única impossibilidade.

3.2 REVISITANDO A NORMA JURÍDICA

No capítulo anterior, a norma jurídica foi a protagonista, duramente testada e

confrontada pelo estudo semiótico, que buscou despi-la para que revelasse sua forma de

signo. Dessa comunhão nasceram dois modelos prematuros – um lingüístico-jurídico, de

hermenêutica da norma, e outro lógico-formal, sobre a disciplina jurídica das situações. O

segundo rebento já estava contaminado pelo germe da superação lingüística, mas ainda estava

tão cativo quanto o irmão de um outro tirano maior – o ordenamento jurídico. Nesse

anticlímax tem início o capítulo atual.

Superar o paradigma da língua e superar o paradigma da norma são dois desafios

sobre-humanos essencialmente relacionados. Em ambos os casos, o indivíduo está submetido

ao império de um sistema de símbolos que se impõe como obrigatório nas relações sociais.

Ou seja, todo o peso da necessidade de uma vida em sociedade obriga a assimilação desses

dois sistemas.

Como é uma dupla empreitada, convém começar pelo elo mais fraco. Nas

próximas linhas será feita uma nova análise da norma jurídica sob o prisma semiótico. Aqui,

desta vez será tornada explícita uma contradição aparente que propositadamente não foi

aprofundada no capítulo anterior – a determinação semiótica da norma.

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Quando Peirce afirma que o objeto determina o signo, assim como este determina

o seu interpretante, há muito mais idéias em jogo do que uma mera conseqüência lógica. O

signo é uma determinação mental do objeto, no sentido de que é a forma como deve ser

apreendido, em razão de um fundamento. Não há uma escolha ou uma alternatividade, há uma

determinação. Vale transcrever as claras palavras de Lúcia Santaella (2000, p.23):

Em relação ao objeto, o signo tem um caráter vicário, ele age como uma espécie de procurador do objeto, de modo que a operação do signo é realmente a operação do objeto através e por meio do signo. Assim sendo, pode-se dizer que o signo tem uma função ontologicamente mediadora como vicário do objeto para a mente. Isso significa, conseqüentemente, que o signo, na sua relação com o objeto, é sempre apenas um signo, no sentido de que ele nunca é completamente adequado ao objeto, não se confunde com ele e nem pode prescindir dele.

O bem explicado caráter vicário do signo mostra que a relação entre ele e o objeto

é muito mais próxima do que uma mera representação. Seria uma substituição, não fosse a

certeza da alteridade, de que signo e objeto continuam coisas distintas e funcionais. O signo é

determinado pelo objeto, de uma maneira que outra não poderia ser.

Por isso, é preciso rever as modelagens anteriores para verificar se realmente os

objetos propostos determinam a norma como signo e, em caso afirmativo, em que medida.

No primeiro modelo, o lingüístico-jurídico, a norma jurídica como signo seria

determinada por um texto jurídico, que foi posteriormente identificado como equivalente às

fontes do direito. Como a norma aqui aparece em abstrato, sem considerações sobre sua

validade no ordenamento ou aplicabilidade, não se evidenciam maiores problemas nessa

determinação. Como qualquer mensagem envolvida por símbolos lingüísticos, a norma é

determinada pelo texto. Vale a necessária observação de que, como linguagem de segundo

nível, a mediação dos signos lingüísticos é imprescindível, por esse motivo esse modelo foi

apresentado como uma composição de duas relações triádicas.

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norma jurídica

Figura 11 – Revisando o signo normativo lógico-formal 11.1. Determinação da norma pela situação – as situações de fato exigem ordenação, mas a relação que estabelecem com a norma jurídica eleita não é de determinação. Em cada situação apresentada, há uma pluralidade de normas, jurídicas ou não, aptas aproduzir efeitos e determinar disciplinas distintas para o caso. A questão reside, portanto, em conceituar a situação de forma relativamente consensual e estabelecer qual a normaválida, por critérios igualmente aceitos. 11.2. Determinação em abstrato – a determinação é simulada em uma análise abstrata,em que a situação é tomada apenas por seu conceito básico, ou tipo ideal, e o critério de universalidade do ordenamento jurídico impõe aquela norma como única válida. 11.3. Determinação efetiva – a ineficácia do ordenamento jurídico em atender àsexpectativas dos sujeitos interfere com a idéia da determinação da norma jurídica,fazendo com que outras normas, não-jurídicas e mais eficazes, sejam gradativamente associadas à situação-objeto, de uma forma que passam a ser tomadas, de forma geral,como signos daquela situação. O deslocamento do sentido para o novo signo implica igualmente na determinação de um novo interpretante, ou seja, uma disciplina para asituação, diversa daquela estabelecida pela norma jurídica, a qual fica relegada a umafunção meramente formal e abstrata, sem influência nas situações de fato.

Figura 11.1 Determinação da

norma pela situação

Figura 11.2 Determinação em abstrato

signo

objeto

interpretante

situação jurídica em abstrato

disciplina em abstrato

Figura 11.3 Determinação

efetiva

situação de fato

norma 1

disciplinas

norma 2

norma 3

norma 4

norma jurídica(ineficaz)

objeto

disciplina efetiva

situação de fato

interpretante

norma não-jurídica

(eficaz) signo

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A controvérsia surge quando é verificado que esse modelo, apesar de atender a

uma determinação “vicária” do signo pelo objeto, diz muito pouco em termos jurídicos.

Extrair o conteúdo de uma norma é um processo intelectivo bastante semelhante à

compreensão do sentido de um texto não jurídico. O que confere juridicidade a essa prática

são exatamente as discussões sobre a aplicabilidade e a validade dessa norma em face de um

ordenamento jurídico, considerações que não integram esse modelo de signo. É uma

formulação, portanto, muito mais lingüística do que jurídica77.

O segundo modelo prevê a atuação da norma como signo de uma situação,

determinando uma disciplina jurídica. Considerações sobre o suposto silogismo da aplicação

da norma foram afastadas, numa tentativa de aproximar a relação entre objeto e signo da

proposta peirceana de determinação. Talvez não tenha sido uma empresa satisfatória.

Ao sugerir que uma situação determina uma norma, o que se pretendeu foi afirmar

que, juridicamente, todo fato exige uma disciplina jurídica e a norma é a mediadora

necessária. Aí já está presente uma premissa, a da pretensa universalidade jurídica, que é em

si questionável. A universalidade, a atribuição de regras para todos os casos, a vedação do

“non liquet”, são características de um modelo de direito, de um sistema jurídico específico,

não de todos. Atribuir à universalidade o título de característica jurídica necessária significa

limitar os estudos jurídicos apenas àqueles sistemas que a proclamam – e tomar todos os

outros como não jurídicos.

Mesmo admitindo a universalidade jurídica como necessária, ainda assim a

relação entre o objeto proposto e o seu signo não é de determinação. Na relação triádica, o

objeto tem no signo o seu duplo, o seu par necessário segundo um certo fundamento. É o que

ocorre nos símbolos lingüísticos, em que a manifestação física do texto corresponde à sua

77 É uma consideração que já tem início em Kelsen (1986, p. 189-196), quando faz a conceituação de proposição de dever-ser, que tanto pode conter um sentido imperativo (norma) quanto um descritivo (enunciado sobre a norma). A análise lingüística aqui descrita transita no âmbito do enunciado.

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estrutura simbólica em palavras e enunciados. Não é semelhante o que ocorre com a norma

jurídica.

Considerada uma situação jurídica, a relação que mantém com a norma é

extremamente tênue. A vinculação entre fato e norma depende de um conjunto extenso de

variáveis78 que podem modificar uma atribuição prevista. Ainda que um certo sistema

jurídico, de forma taxativa, vincule uma situação a um conjunto de normas, a sua relação de

determinação pode ser afetada, pelo menos, pelo valor ou pela categorização que se atribua

àquela situação.

Para conhecer qual a norma correlata a uma situação, o observador precisa dispor

de um vasto conjunto de informações não inteiramente contido naquele signo. Precisa recorrer

a outros signos, para só então completar aquela cadeia semiótica. Essa necessidade é similar

ao conceito de experiência colateral, talhado por Peirce (2003, p. 168).

De fato, portanto, não se pode antecipar a disciplina jurídica de qualquer situação

com razoável grau de certeza. Exceto, é claro, em termos gerais. Isso implica refazer o

modelo do signo lógico-jurídico para explicar que uma situação que seja entendida como tal

categoria (objeto) determina um conjunto de normas jurídicas (signo), que determina uma

conseqüente disciplina jurídica (interpretante). Essa formulação é válida se e somente se

forem desconsideradas quaisquer referências a fatos concretos e dentro de um sistema ideal de

símbolos jurídicos com característica de universalidade.

Caso a universalidade seja afastada, ou caso seja reconhecida na prática a

possibilidade de ineficácia do sistema jurídico, a modelagem prevista também deve ser

alterada. Nessas hipóteses, que são mais coerentes com a realidade social, as situações não

podem ser tomadas na sua abstração lógico-jurídica. Assim, uma situação qualquer (objeto)

determina um conjunto de normas (signo) que podem ser jurídicas ou não, ou qualquer 78 Entre eles, os valores sociais, mais adiante propostos como signo. Mesmo em uma teoria avalorativa, o normativismo jurídico reconhece a natureza da norma como “medida de valor” (KELSEN, 1986, p. 163-167). Há uma relação estreita entre normas e valores (KELSEN, 1998, p. 18-25).

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variação destas. Essa coleção de regras é que vai, por sua vez, determinar a disciplina do caso

(interpretante).

Nesse cenário complexo, o ordenamento jurídico não tem poder suficiente para

prever quais serão as normas tomadas pela situação. Melhor explicando, sua modelagem

lógica abstrata, após a categorização da situação, impõe um conjunto específico de símbolos,

mas não tem como garantir que esses serão os signos usados efetivamente. É o

reconhecimento da crise do sistema simbólico, tratada no final do capítulo anterior.

Por mais que o ordenamento jurídico não seja tão eficaz quanto proclama, as

situações continuam reclamando por regras e normas são utilizadas de fato. Inclusive, os

comportamentos tendem a representar padrões, condição mínima de previsibilidade para

manutenção da vida social. A continuidade das relações sociais é um índice muito

significativo de que há um sistema simbólico de regras em operação.

Como visto, a crise de um sistema simbólico não acarreta a sua substituição

imediata ou a negação de sua validade. Quando um símbolo perde o poder de explicar a

realidade, quando o seu interpretante imediato está muito distante do interpretante dinâmico

da maioria de seus usuários, há um deslocamento de sentido.

Um signo que contradiga outros signos da mesma cadeia tende a ser rejeitado

como absurdo. Já se explicou, porém, que o absurdo é a representação de uma

incompatibilidade máxima, que é normalmente evitada. O comum, nesses casos, é adaptar a

natureza do signo discordante para que determine interpretantes coerentes. Em termos

práticos, o objeto passa a determinar um símbolo sutilmente diferente.

O que muda é a relação de determinação. O símbolo anterior, ineficaz, continua a

existir, mas perde a relação com aquele objeto – ou com qualquer objeto, o que extingue sua

existência como signo. O objeto é entendido então como determinante de outro signo, este

sim mais adequado a promover interpretantes eficazes.

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No caso do ordenamento jurídico, a norma continua a existir como símbolo, mas

progressivamente perde a correlação com as situações. Outro símbolo, híbrido e distinto, toma

o seu lugar.

Antes de elucidar ainda mais essa proposta, vale a pena insistir em um dos

aspectos da análise da norma jurídica como símbolo. Foi sugerido que as situações concretas

não determinam as normas lógicas, porque não há entre elas uma correlação funcional.

Todavia, poderia haver essa relação no caso de situações ideais, categorias tão abstratas

quanto as normas. Isso já foi discutido, como uma tentativa de manter o poder simbólico da

norma dentro do sistema jurídico.

Com alguns passos fora do ordenamento, porém, essa explicação começa a

parecer insuficiente. As normas jurídicas não são apenas símbolos de um sistema lógico

jurídico – que não está mais em estudo. Elas exercem uma função clara de manutenção de

uma certa ordem social e – afastado o mito da impessoalidade jurídica – proteção de certas

relações de poder. Essa projeção do direito como um símbolo, mas além de um ordenamento

jurídico hermético, talvez possa evidenciar com mais clareza as relações simbólicas de poder

nas quais se insere, se forem superadas as marcas de manipulação do discurso da objetividade

normativa79.

E qualquer leigo no direito sabe dizer as razões pelas quais uma determinada

norma legal é criada, em um contexto social e político.

79 Conforme o reforço de Adail Ubirajara Sobral (2005, p. 127), “há dois grandes tipos de manipulação: a que produz uma ‘camuflagem subjetivante’, isto é, a que destaca as marcas da enunciação e, portanto, o enunciador, e a que produz uma ‘camuflagem objetivante’, ou seja, a que oculta as marcas da enunciação, que nem por isso deixam de estar presentes. Na manipulação subjetivante, o sujeito seria a garantia da verdade-falsidade; tem-se aqui um sujeito explícito falso e um saber verdadeiro oculto. Na manipulação objetivante, em contrapartida, o sujeito e o saber verdadeiro são discursivamente submetidos por construções impessoais ou socializados por marcas como o ‘se’ impessoal e o ‘nós’, apresentando-se um sujeito oculto verdadeiro e um saber explícito falso”. O caso do discurso jurídico da impessoalidade da norma cai no segundo caso.

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3.3 SEMIÓTICA DAS CONDUTAS

A semiótica da norma jurídica evidencia algumas dificuldades para o

entendimento desse instituto como símbolo. Algumas dessas questões foram apresentadas e

não comportam uma resposta definitiva.

Uma forma de elucidar esses problemas e ao mesmo tempo cumprir com a

pretensão de prover um conceito de signo adequado ao estudo semiótico do direito é o

deslocamento do foco para as condutas humanas80. Aqui o espaço de análise é mais amplo e

nem por isso menos rigoroso. O comportamento81 humano é trazido ao foco, sem a

intermediação de um sistema normativo ou mesmo lingüístico – ou, pelo menos, com o

mínimo de interferência destes.

Além de promover a modelagem de um signo propriamente jurídico, essa

proposta tem a vantagem de iniciar uma superação do paradigma normativo e do paradigma

lingüístico. Em outras palavras, é um retorno do direito às suas origens.

Está sendo entendida como conduta qualquer comportamento humano. Em

síntese, qualquer ação que possa ser percebida por outro agente pode ser considerada conduta,

na medida dessa percepção.

Ao agir, o sujeito afirma sua posição ante o mundo e passa a fazer parte da

realidade. Em uma ilustração mais concreta, cada passo dado pelo homem é um complexo

exercício de abdução, porque sempre supõe que o chão vai continuar sob seus pés.

Para iniciar uma ação, o homem precisa perceber a realidade, formular uma

explicação coerente e em seguida decidir de acordo. Todo esse esforço de cognição,

80 Já em Hans Kelsen (1986, p. 38, 115-116) a conduta aparece como objeto da norma. Na verdade, é evidente que o termo objeto não está aí sendo usado no seu sentido semiótico, mas já é uma indicação para as idéias propostas a seguir. 81 Mesmo sem pretensões de iniciar uma semiótica das condutas, o próprio Kelsen (1998, p. 4) já apontava, sobre o comportamento humano, a necessidade de atentar para “o sentido objetivo que está ligado a esse ato, a significação que ele possui”.

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explicação e decisão resulta em um ato82 que, pode-se dizer, simboliza o processo numa

metonímia primordial.

Max Weber definiu ação social como uma ação cujo sentido está no outro83. Essa

referência à alteridade dá uma ótima noção do poder de influência que o agir de um sujeito

exerce sobre os demais. Observar a forma pela qual um outro age permite supor a validade

dos mecanismos de cognição que fundamentaram aquele ato, naquilo que têm de explícito.

Além disso, os hábitos humanos gregários permitiram um certo deslocamento de

subjetividade. O outro ser humano não é apenas um outro, como os demais entes da natureza,

mas um outro do mesmo gênero, um outro que guarda semelhanças, um semelhante. Com

essa extrapolação da subjetividade, o semelhante pode ser tomado como um arquétipo84, ou

uma possibilidade de ser do próprio observador.

A linha do “interacionismo simbólico” iniciada por George Herbert Mead enfatiza

esse processo de formação do indivíduo por meio das condutas alheias. Os termos “self”,

“me” e “I” representam, respectivamente, o processo, a organização das condutas alheias e

sua afirmação perante elas, nesse deslocamento de subjetividade que leva à formação daquilo

que é entendido como mente:

O “self” (si mesmo) não é tanto uma substância quanto um processo no qual a conversação de performações foi internalizada dentro de uma forma orgânica. Este processo não existe por si, mas é simplesmente uma fase de toda uma organização social da qual o indivíduo é uma parte. A organização do ato social foi importada para um organismo e torna-se então a mente do indivíduo. Ela ainda inclui as atitudes dos outros, mas agora altamente organizadas, de forma que elas se tornam o que nós chamamos atitudes sociais, em vez de papéis de indivíduos separados. Este processo de relacionamento do organismo de uma pessoa com os outros nas interações presentes, na medida em que isto é importado dentro da conduta do

82 A conduta já aparece como elemento da tríade semiótica e como fundamento do pragmatismo em PEIRCE (2003, p. 179): “O Objeto Imediato de todo conhecimento e todo pensamento é, na última análise, o Percepto. Esta doutrina de modo algum entra em conflito com o Pragmatismo, que sustenta ser a Conduta o Interpretante Imediato de todo pensamento adequado”. 83 Por ação, gênero, entende-se o comportamento humano relacionado a um sentido. Este, por sua vez, pode ser considerado aquilo que é subjetivamente visado, aferido num caso histórico específico, numa média de casos ou em um tipo conceitual construído. O sentido deve ser apreendido de forma racional pelo investigador, em um processo de compreensão do sentido. Aí reside a singularidade da abordagem compreensiva da sociologia proposta pelo autor (Cf. WEBER, 1999, p. 4-6). 84 Sobre arquétipos, comentando as idéias de Jung e Mircea Eliade, vale recomendar a explanação de Nelson Saldanha (1999, p. 35).

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indivíduo com a conversação do “I” (eu) e do “me” (mim), constitui o “self”85 (MEAD, 1934, p. 1).

Com essa visão, os atos revelam uma dimensão essencial para a vida em

comunidade. Dos primeiros grupos até a sociedade globalizada, os processos miméticos

envolvendo a conduta são a origem da formação de padrões na sociedade. Nos atuais dias, o

indivíduo passa a fazer parte de um grupo desde o seu nascimento e, a partir desse momento,

entra em contato com uma realidade inóspita e até certo ponto incompreensível, em que busca

pontos de referência.

O desenvolvimento da noção de subjetividade e o reconhecimento da semelhança

são processos psicológicos fundamentais para isso. Começa então, numa mimesis que o

acompanhará durante toda a sua vida, a abdução pelas condutas. O modo de agir do outro é a

chave para decidir o próprio modo de agir. Os sinais de assimilação de comportamentos, na

criança, vão desde as expressões faciais até os primeiros gestos e os primeiros movimentos.

Na presente linha de raciocínio, é bastante significativo que, no geral, a aquisição da língua

aconteça depois.

Mesmo após o domínio da língua (falar é uma forma de agir), a imitação de

comportamentos continua sendo uma peça-chave para a socialização de um indivíduo, ao

longo de toda sua existência. A correta interpretação da conduta alheia (compreensão,

conforme Weber) constitui a maior fonte de informações sobre o próprio agir, sobre as

próprias abduções86.

85 Uma tradução livre de “The self is not so much a substance as a process in which the conversation of gestures has been internalized within an organic form. This process does not exist for itself, but is simply a phase of the whole social organization of which the individual is a part. The organization of the social act has been imported into the organism and becomes then the mind of the individual. It still includes the attitudes of others, but now highly organized, so that they become what we call social attitudes rather than roles of separate individuals. This process of relating one's own organism to the others in the interactions that are going on, in so far as it is imported into the conduct of the individual with the conversation of the ‘I’ and the ‘me’, constitutes the self”. 86 Sobre a sociologia compreensiva e sua relação com as chaves simbólicas, merece referência a avaliação de Hans Lenk (1990, p. 90-91).

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Aí está representado o potencial comunicativo das condutas. Saber como o outro

age – e as conseqüências que sofre por tal – representa uma percepção importante para

orientar o próprio agir. Não se nega, com isso, a importância de uma consciência individual e

de uma também individual noção da realidade. O que se sugere é que ambas são socialmente

formadas e socialmente orientadas pela comunicação das condutas. Nenhum indivíduo pode

alterar toda a realidade, mas está continuamente afetando a sociedade por suas próprias

atitudes (MEAD, 1934, p. 2).

A observação das condutas não é apenas direta, para expulsar quaisquer dúvidas.

É possível a utilização de qualquer outro meio de comunicação – inclusive a língua – para

saber o que outro indivíduo fez ou faz. Em uma sociedade como a atual, diversas mídias,

como a telefônica, televisiva, fotográfica, cinematográfica, computadorizada, servem como

pontes para que um agente distante e às vezes desconhecido tenha sua conduta avaliada.

A propensão mimética do ser humano está nas bases de toda a comunicação

social. Porém, a comunicação pelas condutas é transparente e esquecida, como as lentes do

observador. O homem social está tão habituado a se orientar no agir alheio que raramente se

detém para avaliar esse tipo de comunicação87.

O teatro e a dança são exemplos de comunicação pelos atos, de uma forma

explícita. Na maioria dos casos, todavia, a troca de informações é implícita – subconsciente,

até. Essa implicitude decorre da enorme freqüência com que os atos alheios se manifestam

ante um ser em sociedade. Uma saturação de elementos com poder comunicativo tende a fazer

com que o canal se feche, ou seja mais seletivo. Uma vez socializado, o indivíduo não

empresta o mesmo valor a todos os atos observados. Aqueles que já lhe são familiares, ou

seja, que não acrescentam informações novas à sua noção de realidade, pouco fazem além de

confirmá-la e por esta razão são relegados a segundo plano. 87 Para Mead (1934, p. 4), esse processo de importação das condutas alheias é sinônimo de “mente”. Em suas palavras, “a mente é simplestemente a interação de tais performações na forma de símbolos significantes” (“the mind is simply the interplay of such gestures in the form of significant symbols”).

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Toda a força comunicativa das condutas é evidenciada, porém, quando essa

transparência é quebrada. Uma ação imprevista, ou um ato improvável, tem poder suficiente

para chamar a atenção dos indivíduos e passar uma mensagem não apenas sobre o fato em si,

mas sobre a sociedade em que vivem.

Uma catástrofe natural teria um efeito parecido e nem por isso se pode afirmar

que seja um ato comunicativo – exceto de um ser supremo, talvez. A diferença entre o fato

natural imprevisto e a conduta humana imprevista é a subjetividade deslocada envolvida. No

primeiro caso, o indivíduo é forçado a rever seu comportamento pela mudança ambiental. No

segundo caso, o ato de um outro semelhante força o sujeito a considerar a possibilidade de

que ele também poderia agir daquela forma e não agiu – nas mesmas circunstâncias.

A natureza comunicativa das condutas está em transmitir possibilidades ao

observador. Durante toda a vida, com experiências diretas ou informações indiretas, o

indivíduo constrói sua noção de realidade, principalmente por meio de exclusões lógicas –

separando o que é possível do que não é. Juntamente com as impossibilidades impostas pela

lógica do mundo, o próprio sujeito também retira autonomamente um conjunto de ações da

esfera do possível, as proibições: aquelas que ele pode realizar, mas não deve, porque impõem

algum tipo de custo ou conseqüência nefasta a si mesmo ou a algo que lhe seja valioso.

No caso da vida em sociedade, além das impossibilidades e proibições naturais o

indivíduo assimila também as impossibilidades sociais – aqueles atos que não podem ser

realizados naquele grupo – e as proibições sociais – os atos que ele pode realizar, mas

impõem socialmente um custo ou uma conseqüência indesejada. Nessas limitações naturais e

sociais, o conjunto de atos que o sujeito poderia realizar vai sendo cada vez mais limitado ou,

melhor dizendo, autolimitado.

É nesse ponto que o comportamento imprevisto provoca mudanças. Quando o

indivíduo deixa de praticar uma conduta, habitualmente, porque a considera uma

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impossibilidade ou uma proibição social, basta ter contato com esse tipo de comportamento,

realizado por outrem, para rever sua noção de realidade e, ao menos minimamente, considerar

a possibilidade de agir daquela forma.

Isso revela, na análise das condutas, sua propensão a formar padrões. Condutas

reiteradas, bem como conjuntos habituais de ação e resposta, têm uma capacidade elevada de

reprodução nas sociedades humanas, em virtude da propensão mimética dos indivíduos. A

manutenção dessas condutas é garantida pela sua assimilação pelos novos indivíduos, um

fenômeno mimético específico conhecido como socialização.

Uma demonstração de que esses padrões podem ser entendidos como sistemas é a

maneira como excluem os elementos discordantes. As condutas imprevistas que fogem ao

padrão – exatamente pelo seu potencial transformador – são desencorajadas ou reprimidas em

praticamente todas as sociedades. Cada uma desenvolve seus mecanismos próprios para

reforçar a idéia de impossibilidade ou acrescentar custos e conseqüências nocivas ao ato, o

que estimula a idéia de proibição.

Em suma, as condutas não são apenas formas pelas quais o ser humano atua na

sociedade. Elas também se projetam sobre os comportamentos alheios numa interferência

recíproca, normalmente implícita e invisível.

A invisibilidade não é obstáculo para o direito, muito menos para a semiótica.

Continuando a modelagem, o objeto do signo é o elemento capaz de determiná-lo

como tal, segundo um certo fundamento. O objeto deve manter uma certa alteridade com o

seu signo, muito embora deva ser seu correlato tão próximo a ponto de poder ser tomado por

aquele.

No estudo semiótico das condutas, é preciso indagar qual o elemento a exercer o

papel de objeto na relação triádica. A primeira proposta envolve a adoção da própria conduta

como ponto de partida para determinação de signo.

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manutenção das estruturas

sociais

valores

Figura 12 – Signo jurídico – terceiro modelo: Signo jurídico social 12.1. Condutas e valores sociais – a prática das condutas pode apresentar um valorsignificativo quando avaliadas sob o prisma dos valores sociais. Assim, as condutas emsociedade – na medida da sua externalidade e cognoscibilidade – determinam valoressociais que, por sua vez, determinam uma forma de entender e agir naquele grupo, umarepresentação social. 12.2. Elementos do signo social – as condutas são tomadas como objeto do signo social,de acordo com o seu potencial comunicativo. Os valores sociais (incluindo osindividuais) relacionam essas condutas com as representações sociais resultantes. 12.3. Direito na semiose das condutas – o Direito também pode ser apreciado sob omodelo da semiose das condutas. Uma das formas mais nítidas da interferência jurídica éo uso e a manipulação das normas de Direito para a manutenção de representaçõessociais. Ao estimular (ou impor) comandos abstratos que se apresentam como universais,os titulares do poder de decisão político afastam os valores sociais que de outra formaseriam determinados pelas condutas e impedem também a formação da sua respectivarepresentação social. Portanto, o discurso jurídico é posto como um signo, um valorsocial, mas na verdade atua como dogma, porque separa a semiose social – de um lado ascondutas e os valores, agentes dinâmicos de transformação da sociedade; do outro umaestrutura social estática que interfere com sua própria semiose para poder existir.

Figura 12.1 Condutas e

valores sociais

Figura 12.2 Elementos do signo

social

signo

objeto

interpretante

condutas representações sociais

Figura 12.3 Direito na semiose

das condutas

conduta representaçõessociais

valoressociais

objeto

condutas

interpretante

norma jurídica

signo

valores

Direito

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Uma decisão como esta exige um delineamento mais preciso do que se entende

por conduta, para que se possa empreender uma categorização coerente. A noção de conduta

como comportamento envolve dois aspectos básicos.

O primeiro é a sua manifestação factual, representada por uma ação de um

indivíduo. Não é importante, para essa conceituação, se a ação é voluntária ou não, desejada

ou imprevista. Também não entram considerações sobre o ambiente no qual se desenvolve

essa ação. Por isso, no âmbito mais amplo, conduta é o ato humano – que, com toda

redundância, exige apenas uma ação praticada por um ser humano.

Todavia, é comum associar à conduta um esteio moral, ou seja, a pressuposição de

existência de um ambiente social e de valores sociais que incidem sobre esse comportamento.

Como transparece, essa segunda posição já traz, em si, alguns elementos que comprometem a

colocação da conduta como objeto de um signo, muito embora antecipem categorias úteis a

serem utilizadas nessa mesma relação triádica.

Por enquanto, então, é importante reafirmar que o termo conduta está sendo usado

no seu sentido mais objetivo, como procedimento. As considerações sobre valores e

ambientes sociais são postergadas para um outro momento.

Contudo, o objeto de um signo precisa ter potencial para determiná-lo. Ou seja,

um objeto incapaz de fazer nascer uma relação triádica não deve, por óbvio, sequer ser

considerado objeto, no sentido semiótico. A ação humana, portanto, precisa ter esse poder de

determinar um signo, sob um certo fundamento. Por essa razão e para esses efeitos, não é

qualquer ato humano que se pode tomar como conduta.

É preciso que o ato seja capaz de comunicar possibilidades ou impossibilidades a

um dado observador. É necessário que esse ato interaja com um padrão de comportamentos

preexistente, para que disponha de algum grau de potencial comunicativo. Em suma, deve ser

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considerada como conduta aquela ação capaz de despertar no outro o sentido de mimesis e o

deslocamento de subjetividade.

Por tal razão, é mais adequado tomar a conduta como um ato social, no sentido

weberiano. Para isso, é preciso admitir, portanto, a existência de uma sociedade como

referência, mas sendo o mais tolerante possível em relação aos requisitos dessa sociedade,

incluindo aqui qualquer tipo de relação plural entre indivíduos. Posto isso, vale chamar a

atenção para o fato de que o elemento característico da ação social não é a inserção em um

ambiente social, mas a referência nele.

Então, buscando a maior abrangência possível para evitar excesso de limitações

ao conceito, não se pode tomar como conduta, para os presentes esforços, um ato humano que

não tenha qualquer possibilidade de interferir na percepção dos outros indivíduos. A

característica da externalidade da conduta é essencial,88 para tanto. A conduta, desta forma,

não representa atos orgânicos ou intelectivos do ser humanos, senão quando são externados e

sempre na medida em que são externados.

Além da externalidade, o ato também precisa ser compreensível. Não se trata de

conformidade ou não a padrões, mas uma mera exigência de cognição, para que seja apurado

seu valor posteriormente.

É preciso muita tolerância nesses dois pontos. Muito embora o ato deva apresentar

um grau mínimo de externalidade e compreensibilidade, não se pode rejeitar uma situação que

não atenda a esses requisitos apenas por isso. Afinal, no caso da externalidade, a percepção de

um ato pode ser por via indireta e a mera notícia de que alguém agiu de uma forma,

internamente ou externamente, pode ter conseqüências sociais. Da mesma forma, sobre a

compreensão, não se pode desconsiderar um ato incompreensível sem avaliar suas

88 Em Kelsen (1986, p. 116-118) já há uma teorização a respeito da externalidade da conduta.

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conseqüências sociais. Em palavras rápidas, é preciso considerar que mesmo os fatos

completamente absurdos comunicam, pelo menos, a possibilidade de sua ocorrência.

Então, a conduta precisa ser externa e compreensível, para que possa ser tomada

como objeto da relação triádica. Todavia, mesmo os atos internos ou incompreensíveis podem

ser considerados, na medida de sua externalidade e compreensibilidade, ou seja, na proporção

de suas conseqüências sociais.

Para a teoria dos signos, o objeto está dividido em objeto imediato e dinâmico.

Também aqui vale a pena analisar essa distinção, para que se possa indicar o que é o ponto de

partida do signo e, igualmente, qual o seu aspecto que integra a relação triádica.

O objeto dinâmico é o fenômeno em sua ocorrência remota, naquilo que está mais

próximo do real ou do que se entende por tal. Nessa modelagem das condutas, está melhor

relacionado ao ato humano em sua faticidade. O fato da prática de uma ação por um ser

humano, seja qual for a forma pela qual se manifeste ou seja conhecida, constitui o ponto

remoto para o qual o signo tende a convergir.

O objeto imediato é o percipuum do objeto dinâmico. É o aspecto da faticidade

nos seus aspectos perceptíveis e aptos a determinarem um signo. Aqui é mais adequado

entender como objeto imediato a conduta, na sua noção de ação social, externa e

compreensível, com todas as considerações e ressalvas apresentadas anteriormente.

Uma principal característica do objeto imediato é o fato de que integra a relação

triádica, portanto é o que está relacionado aos demais elementos. Enquanto o objeto dinâmico

é relativamente inapreensível e participa da relação no máximo como um limite de

aproximação ideal, o objeto imediato é algo disponível – e até certo grau familiar – para o

sujeito cognoscente.

Por essas razões, o objeto imediato pode ter natureza sígnica, o que equivale a

dizer que é possível que um signo seja tomado como objeto. No caso em estudo, essa

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afirmação é bastante explicativa, porque permite a compreensão e o tratamento de casos em

que há uma percepção indireta da conduta.

Assim, quando a conduta tomada por objeto não está diretamente disponível à

percepção do observador, é possível fazer uso de outros expedientes comunicativos para

chegar a ela. Nesses casos, uma seqüência de signos compõe, de maneira progressivamente

aperfeiçoada, a noção do ato que se pretende avaliar e toda essa construção semiótica figura

na relação triádica como elemento objeto.

Com isso, resta delimitado o objeto de uma suposta semiótica das condutas. O

elemento objeto, composto pelas condutas humanas, em sua acepção social, deve então

determinar um signo para que seja iniciada a cadeia semiótica. Como ocorre essa

determinação é o que será apresentado a seguir.

Pelo que foi exposto até aqui, todavia, há a expectativa de já ter sido firmada uma

primeira conclusão: independente de qualquer intermediação lingüística, as condutas podem

ser objeto de uma análise semiótica. A ação humana foi apresentada como dotada de um

potencial comunicativo e, por este motivo, uma semiótica das condutas seria possível. Nas

linhas anteriores, o objeto dessa possível relação triádica foi apresentado, com a especificação

de algumas características, como externalidade, compreensibilidade e conseqüências sociais.

Do ponto de vista semiótico, para que haja a relação triádica, é preciso que esse

objeto determine um signo. A medida dessa determinação e a natureza desse signo precisam

ser examinadas.

A conduta, como definida, dá margens a vários tipos de considerações89 por parte

de um observador, que podem apresentar características simbólicas. Em outras palavras, a

maneira de agir de um determinado indivíduo inequivocamente transmite uma mensagem

89 Em psicologia social, essas considerações podem ser comparadas à noção de atitude e sua aplicação aos comportamentos (BRAGHIROLLI et al, 1994, p. 70, 82).

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para os demais, mas, em cada nível de apreciação ou de enfoque, a comunicação pode ter

características e resultados diferentes.

Um primeiro nível de comunicação comportamental é aquele processado

diretamente de um indivíduo a outro, sem ou com pouca interferência de um contexto social.

Não deixa de ser ação social por isso, pelo elastecimento que foi aqui conferido ao conceito

de sociedade. Porém, o ponto característico dessa comunicação é que a extração de sentido é

realizada diretamente e internamente pelo indivíduo observador, sem a participação necessária

de terceiros.

Todo signo precisa de um fundamento, que é o aspecto do objeto pelo qual o

signo é determinado. O fundamento do signo é o viés pelo qual ele atua sobre o objeto e

também o limite para que o interpretante seja formado.

Quando apreende a ocorrência de um comportamento alheio, por força do

deslocamento da subjetividade, a tendência mais imediata do indivíduo é compará-lo com

seus próprios atos, registrados em memória. Nesse conjunto de percepções e reações

passadas, estão evidentes também as decisões que o indivíduo foi levado a tomar em cada

circunstância específica. Em cada situação, portanto, uma estratégia de ação foi adotada como

positiva – e executada – e as demais preteridas negativamente.

Aí está o fundamento para uma primeira noção de valor das condutas. O critério,

ou parâmetro, são as próprias decisões pretéritas do indivíduo, em situações equivalentes. Em

termos simples, há a tendência de valorar positivamente uma ação que seja mais semelhante

àquela que o observador adotaria em caso idêntico.

O fundamento do signo, portanto, em uma primeira explicação, é o valor90 da

conduta, conforme parâmetros fixados por um conjunto de experiências prévias do indivíduo.

É a forma de representação semiótica mais intuitiva, equivalente ao de uma criança em fase

90 Para Krüger, “são os valores que nos orientam e fornecem parâmetros para o julgamento, avaliação e adoção de condutas, doutrinas, crenças, ideologias e culturas” (apud BRAGHIROLLI et al, 1994, p. 80).

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de socialização, por exemplo. Porém, em contextos propriamente sociais, um modelo mais

elaborado é necessário.

A mimesis não é a única pulsão que orienta a valoração das condutas. Quando

entram em cena as várias possibilidades de interação entre indivíduos, por exemplo, a análise

fica mais complexa. Por essa razão é preciso levar em consideração critérios como

competição e acesso aos meios de sobrevivência, para concluir que as relações entre

indivíduos nem sempre são cooperativas. Assim, há uma valoração negativa daquelas

condutas que ameaçam o observador, em algum aspecto.

Por fim, a liderança, ou a dominação de alguma forma, também tende a exercer

influência sobre os julgamentos de valor de um indivíduo. É positivo o que agrada ao líder e é

positivo o que o líder faz. Isso deixa implícito outro valor importante para o indivíduo: é

positivo ser o líder.

Neste ponto a análise das condutas não comporta mais uma visão estritamente

individual. A interação entre os indivíduos, nesse nível de compreensão, envolve não apenas

uma relação de condutas, mas também uma transmissão de valores. A socialização dos

julgamentos de conduta abre espaço para o surgimento dos valores sociais.

Em uma proporção coletiva, as razões que orientam os valores são bastante

similares: é positivo o que é semelhante91, ou mimético, às ações do grupo, assim como é

negativo o que ameaça o grupo, de alguma forma. Do ponto de vista da liderança, é positivo o

que agrada ou corresponde à atuação do líder, ou qualquer outro modelo de comportamento

escolhido pelo grupo92.

91 A idéia de semelhança está por trás de muitas avaliações de condutas. Um experiência levada a efeito por Newcomb, entre alunos recém ingressos na Universidade de Michigan, em 1961, demonstrou que afinidades de pensamento e comportamentos semelhantes determinaram a formação de vínculos da amizade (apud BRAGHIROLLI et al, 1994, 168). 92 Para Olmsted, a noção de grupo envolve “uma pluralidade de indivíduos que estão em contato uns com os outros, que se consideram mutuamente e que estão conscientes de que têm algo significativamente importante em comum” (apud BRAGHIROLLI et al, 1994, p. 122).

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Os modelos de comportamento devem ser entendidos de forma ampla. A religião,

por exemplo, permite o sobrenatural como parâmetro, segundo o qual o comportamento em

concordância com preceitos divinos são valorados positivamente. Isso não desvirtua o caráter

da conduta como objeto porque, como visto, nada impede que sua apreensão ocorra de forma

indireta.

O nível coletivo de valoração das condutas, portanto, reflete uma noção geral,

compartilhada de forma relativa por todos os seus membros. Os valores sociais representam o

julgamento que aquele grupo estabelece sobre as condutas possíveis, visando à sua

preservação, manutenção e desenvolvimento como grupo93.

O que acrescenta um pouco mais de complexidade nesse nível é o aspecto do

poder e da dominação. A tendência dos valores que orientam um grupo é proteger a ordem

social vigente, inclusive com seu equilíbrio de poder atual. Em respeito à integridade do

grupo, os indivíduos são compelidos a compartilhar desses valores e, assim, legitimar a

ordem.

O que modifica substancialmente a situação é a possibilidade que alguns

indivíduos têm de conseguir distinguir entre os valores que legitimam a manutenção do grupo

daqueles que legitimam a manutenção dos seus líderes. Essa separação, entre idéias que estão

normalmente indistintas, é o primeiro passo para permitir ações racionais orientadas a fins94

dentro do contexto do grupo, visando a objetivos individuais. É o germe da ação política.

Por óbvio, isso requer um certo grau de institucionalização dentro da sociedade, a

fim de permitir a manutenção de estruturas de poder independentemente da pessoa do

93 É preciso considerar o papel dos valores como significado de uma ordem social, uma vez que “sob o prisma dos valores a ordenação do viver e das situações adquire sentido (sentido como ‘matéria’ preenchedora dos atos e das formas) através de ‘conteúdos’ axiológicos: nenhuma ordem se entende por si e apenas como forma, mas sempre em função de valores que a fundam e lhe dão significado” (SALDANHA, 2003, p. 130). 94 Segundo a categorização de Max Weber (1999, p. 15). É recomendável perceber, na mesma referência, a semelhança da proposta traçada neste trabalho com suas outras categorias de ação racional orientada por valores, ação afetiva e ação emocional.

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governante. Em grupos sem essa característica, uma ação contra o líder é considerada uma

ação contra o grupo.

Exposta a ação política, a última peça do quebra-cabeças é a possibilidade de uso

da informação de forma social. A manipulação de quaisquer meios de comunicação social –

lingüístico, comportamental, artístico – permite ao seu agente modificar os processos diretos

de formação e transmissão de valores sociais. Dessa forma, por meio da assimilação de uma

distorcida noção da realidade social, os indivíduos são compelidos a agir de uma forma

específica, com base em valores que acreditam serem gerais ou válidos.

O uso da comunicação social para influenciar comportamentos não é um

fenômeno recente. Sempre acompanhou os grupos sociais humanos, sendo, talvez, uma

característica inafastável do processo de socialização. Fica evidente nessa situação, todavia, a

existência de um sistema de símbolos sociais representados por padrões de comportamento95,

até certo ponto previsíveis e manipuláveis.

Esse, precisamente, é o contexto que serve de fundamento para a análise semiótica

das condutas. Nessa relação triádica, a conduta ocupa o lugar do objeto e o seu valor participa

como signo. O aspecto dessa conduta passível de avaliação pelo observador, a faceta que

encontra eco em alguma idéia preexistente, é o que constitui o fundamento do signo, pois só

pode ser valorado o que interfere com seus conceitos96.

Por fim, vale reforçar que a forma de assimilação social desses valores, arbitrária

ainda que histórica, evidencia a natureza simbólica desse complexo de signos. São símbolos

de condutas, socialmente estabelecidos.

95 Para propor que os valores formem um sistema social simbólico é preciso presumir como certa a sua objetividade – uma objetividade social que reforça sua natureza de signo: “os valores, em suma, não existem em si e por si independentemente dos objetos reais – cujas propriedades objetivas se apresentam então como propriedades valiosas (isto é, humanas, sociais) –, nem tampouco independentemente da relação com o sujeito (o homem social). Existem assim objetivamente, isto é, com uma objetividade social. Os valores, por conseguinte, existem unicamente em um mundo social; isto é, pelo homem e para o homem” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2000, p. 97). 96 Os valores – individuais ou sociais – pressupõem a existência de um sujeito, com toda a sua herança simbólica. Não é exagero afirmar que os valores só existem em função das pessoas (SALDANHA, 1999, p. 14).

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Por isso mesmo, manipuláveis.

No modelo de signo proposto neste capítulo, a conduta ocupa a posição de objeto,

determinando a associação com alguns valores sociais (e individuais incluídos), como signos.

Dessa correlação, a teoria semiótica prevê que seja determinado um interpretante, como será

verificado a seguir.

A conduta, submetida ao crivo dos valores sociais, explicita sua valoração –

socialmente positiva ou negativa. Em uma primeira visão bastante simplificada, o

interpretante de uma conduta flutuaria entre duas possibilidades de um binômio, auto-

excludentes.

Todavia, essa categorização não corresponde à multiplicidade de resultados

verificados na realidade. Um acréscimo imediato é a possibilidade do valor neutro, atribuído

àquelas condutas que nada mais fazem do que seguir e confirmar o padrão preestabelecido,

sem acrescentar qualquer informação nova ao sujeito cognoscente.

Outro fator de complexidade é o reconhecimento de a aceitação ou a rejeição de

uma conduta ocorre com variado grau de intensidade. Portanto, não basta saber se uma

conduta tem valor positivo ou negativo, mas quão intenso é esse valor.

Ainda nesse espectro, a possibilidade de existirem valores sociais e individuais em

sentidos opostos acrescenta uma nova dimensão a esses resultados. Como visto, os valores

individuais e sociais compõem o sistema simbólico das condutas, mas podem produzir

julgamentos diferenciados. Isso transforma a linearidade dos valores em um sistema matricial,

que aceita a existência de uma conduta individualmente positiva e coletivamente negativa e

vice-versa.

Em um espaço aberto para a lógica formal, essa composição de valores também

pode abrir possibilidades para uma infinidade de considerações quase matemáticas. Por

exemplo, a possibilidade de condutas múltiplas determinarem uma soma algébrica dos seus

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valores individuais, para resultar seu valor total. Ou ainda a eventualidade de uma conduta

multitudinária ter o seu valor repartido ou multiplicado pela quantidade de autores.

Mais ainda, em uma lógica booleana, há espaço para utilizar operadores de forma

a estabelecer valores condicionais, no caso de conduta com expectativa de resultados

alternativos. Em suma, esses valores podem ser tornados mais precisos por uma correlação,

exponenciação, média, ou qualquer outra operação lógico-matemática tida como cabível.

Contudo (que os penalistas não leiam isso), quantificação97 não é um bom signo

para as condutas humanas.

O resultado da valoração das condutas não pode ser resumido ao valor da conduta

em si e mesmo este não pode ser simplificado por uma simples gradação quantitativa. O signo

comportamental pressupõe uma comparação com algo já sabido, ou esperado, que o

observador já conhece. É, geralmente, um confronto com um padrão modelar de

comportamento associado àquela situação. A diferença entre eles – o objeto e o padrão – é

que constitui o produto relevante do signo. Essas lacunas podem ser de natureza tão

complexa, envolvendo tantos aspectos e tantas dimensões, que fogem a uma quantificação

formal.

Além disso, o binômio referido – positivo ou negativo – pressupõe uma razoável

certeza sobre as conseqüências daquela conduta para si ou para o grupo. Uma suposição como

esta, no cotidiano, não é verificada, o que importa em reconhecer que certas condutas são

simplesmente compreendidas sem que se possa chegar a uma conclusão sobre seu valor.

Outro ponto de complexidade está na constatação de que a atribuição de valores é

sempre relativamente referida. Uma mesma conduta pode ter valores distintos em situações

diversas, o que importa na impossibilidade de lhe atribuir valor antes de considerar essa

variável.

97 É importante a análise lógica que Peirce (2003, p. 106) faz da quantidade, para defini-la como um “sistema de conexões seriais”.

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Reforçando ainda essa mesma linha da relatividade, é comum atribuir valores

diversos às condutas de acordo com o seu agente. Isso decorre do reconhecimento de que há

papéis98 sociais específicos a serem exercidos pelos indivíduos no conjunto das relações

sociais. Então, uma mesma conduta, que para um equivale à violação de uma proibição, para

outro representa o estrito cumprimento de seu papel.

Essa não é a única razão para o relativismo pessoal das condutas. O subjetivismo

também é determinante, na medida em que uma conduta pode ser tida como positiva se

praticada pelo próprio observador, ou negativa se cumprida por outro. A subjetividade

também é deslocada nesse caso, quando um certo comportamento é tolerado quando praticado

por alguém próximo99, ou aliado, e não quando é exercido por um desconhecido.

Para completar toda essa discussão sobre complexidade, é preciso reconhecer que

a conduta tem um aspecto comunicativo importante, que não se esgota no valor que lhe é

atribuído. O confronto do comportamento com os padrões transmite noções relevantes sobre o

agente, o observador e a própria realidade social.

Os padrões sociais de comportamento envolvem um relativo grau de

previsibilidade. Por isso, é possível perceber em uma determinada conduta, em uma abdução

razoavelmente fundamentada, informações sobre as circunstâncias de sua realização –

motivos, razões, conseqüências, agentes, papéis sociais – que de outra forma não poderiam

ser transmitidos.

Da mesma forma, a conduta alheia é um bom referencial para a valoração do

próprio comportamento. No exercício das relações sociais, a reação dos outros é um seguro

98 Os papéis sociais estão conceitualmente ligados à idéia de comportamento: “Papel designa o modelo de comportamento que caracteriza o lugar do indivíduo no grupo ou organização. Em outras palavras, entende-se por papel o comportamento que se espera de quem ocupa uma determinada posição com determinado status” (BRAGHIROLLI et al, 1994, p. 137). 99 A variável da proximidade – física, afetiva, ou identitária de alguma forma – é extremamente influente na formação de relações sociais, como demonstram várias pesquisas em psicologia social (referidas em BRAGHIROLLI et al, 1994, p. 164).

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índice de como o indivíduo está exercendo o seu próprio papel social, bem como, nas

situações menos conhecidas, é um ponto de referência para determinar como agir.

Não é somente por essa razão que a conduta alheia é o melhor espelho do próprio

comportamento. Ao participar de qualquer sistema de símbolos, como o comportamental, a

tendência é que o indivíduo promova um “esquecimento consciente” dos signos que utiliza.

Em termos semióticos, passa diretamente do objeto para o seu interpretante sem perder tempo

considerando o signo. Como o código simbólico não é impresso de forma precisamente

idêntica no intelecto de cada indivíduo, é possível que haja uma falha na interação por conta

de um signo não compartilhado. Por isso, o agir social é a oportunidade para uma revisão e

um aperfeiçoamento recíproco dos hábitos simbólicos, que de outra forma não poderia

acontecer.

Por fim, não se pode deixar de considerar que as condutas comunicam muito

sobre a realidade social em que o indivíduo se insere. Inclusive, a comunicação

comportamental é a forma primordial pela qual esses padrões de conduta são transmitidos – e

nisso rivaliza com a própria língua. Saber como agir em sociedade depende, em larga escala,

de já haver agido, visto alguém agir ou conhecido como alguém agiu na mesma situação.

Assim, por meio de representações sociais100, a realidade social é assimilada continuamente.

Por isso, cada conduta percebida promove, em grau variável, um aperfeiçoamento

desse modelo construído pela experiência. Os comportamentos repetitivos pouco

acrescentam, além de confirmar o que se sabe. As ações destoantes, por sua vez, sugerem

novas possibilidades e permitem a abdução de novas conseqüências e valores.

Por isso, quando o signo comportamental é entendido como valores sociais, não se

pode restringir essa noção como determinante de um interpretante que apenas oscila entre

100 A definição do que compõe o interpretante no caso das condutas pode ser melhor expressa pela noção de representações sociais: “são ‘teorias’ sobre saberes populares e do senso comum, elaboradas e partilhadas coletivamente com a finalidade de construir e interpretar o real. Por serem dinâmicas, levam os indivíduos a produzir comportamentos e interações com o meio, ações que, sem dúvida, modificam os dois” (STREY et al, 1998, p. 105).

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aprovação e reprovação. Os valores sociais representam padrões de comportamento

extremamente complexos. Em um determinado contexto concreto, convivem com o mesmo

grau de relevância com os valores individuais. Por isso, o interpretante resultante pode

envolver uma variedade imprevisível de idéias e informações insusceptível de qualquer

quantificação formal.

Prosseguindo a classificação semiótica, o interpretante imediato consiste no valor

atribuído à conduta, bem como qualquer informação que esta possa conter com base em um

sistema simbólico de comportamento – em suma, uma representação social. Ainda quando a

ação não encontra qualquer referência nos padrões de conduta vigentes, pelo fato destes serem

dinamicamente transformados, há pelo menos o acréscimo da idéia de possibilidade, como em

qualquer construção da noção de realidade.

Em virtude de julgamentos variados ou de aquisição diferenciada do mesmo

padrão de condutas, o interpretante dinâmico pode ser determinado de forma distinta entre

indivíduos do mesmo grupo. É uma possibilidade coerente com a natureza do interpretante

dinâmico e, nesse signo em particular, essencial para manter as constantes transformações dos

códigos simbólicos comportamentais.

Por sua vez, o interpretante final é a tendência geral verificada dos interpretantes

dinâmicos e representa o limite abstrato para o qual tendem a convergir. No caso em estudo, o

interpretante final ou normal é um bom índice dos próprios padrões de conduta vigentes

daquela sociedade.

3.4 DIREITO E SEMIOSE DAS CONDUTAS

Pelo que foi visto, a análise semiótica dos comportamentos humanos revela a

conduta, como objeto, determinando valores sociais (e individuais), como signos, e noções da

realidade social ou representações sociais, como interpretantes. Assim como todos os signos,

estes também podem sofrer encadeamentos, formando cadeias semióticas.

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No movimento de aperfeiçoamento, os interpretantes são tomados como signos,

sucessivamente, para determinar novos interpretantes. O resultado é a elaboração de uma

noção de realidade cada vez mais complexa, voltada a uma explicação cada vez mais

elaborada e próxima da ação-objeto analisada.

O movimento de abstração também permite o encadeamento de signos, mas de

forma diversa. Quando o signo torna-se objeto e o interpretante atua como seu signo, o novo

interpretante produzido vai fazer referência ao signo da primeira relação, não ao seu objeto.

Há, portanto, uma sobredeterminação de informações como no aperfeiçoamento, porém cada

vez mais distante do objeto original101.

O direito contemporâneo parece ter seguido por essa última linha. A valoração de

uma conduta pode ser valorada em seguida, com o resultado sendo também valorado, em uma

sucessão infinita de determinações, cada vez mais abstratas, que respondem às pretensões de

universalidade mas perdem contato com o objeto real.

O outro movimento de semiose, o aperfeiçoamento, pode ser verificado nas

relações triádicas das condutas em outras áreas do conhecimento. É o caso exemplar da

sociologia, antropologia, ciência política e demais teorias sociais. Há um esforço descritivo

em compreender melhor as condutas, com a constante valoração dos resultados. Como já

explicitado, o resultado é o desenvolvimento de uma noção da realidade cada vez mais

próxima do conduta-objeto.

101 O hiato entre o particular e o abstrato é descrito por Jürgen Habermas (2000, p. 477-478) nos seguintes termos: “sobre o pano de fundo dessa experiência mental delineiam-se linhas fatuais da evolução dos mundos da vida modernos: a abstração das estruturas universais do mundo da vida em relação às configurações sempre particulares das totalidades de formas de vida, apresentadas sempre no plural. No plano cultural, os núcleos da tradição que garantem a identidade se separam dos conteúdos concretos, com os quais outrora estavam estreitamente entretecidos nas imagens míticas do mundo. Reduzem-se a elementos abstratos como conceitos de mundo, pressupostos da comunicação, procedimentos argumentativos, valores fundamentais abstratos, etc. No plano da sociedade, princípios universais se cristalizam, partindo dos contextos particulares a que estavam presos nas sociedades primitivas. Nas sociedades modernas, estabelecem-se princípios de ordem jurídica e moral, cada vez menos talhados às formas particulares de vida”.

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Certamente, esse modelo de encadeamento é mais adequado às ciências

descritivas, que propõem uma compreensão do real. O direito, como disciplina prescritiva102,

deveria buscar outros modelos, como a abstração. Todavia, o ponto principal da crítica ao

método jurídico é que há um desuso do aperfeiçoamento, em favor da abstração, quando em

natureza ambos os movimentos são complementares.

A opção jurídica pela abstração não é despropositada. Atende a outras pretensões

implícitas do sistema jurídico, além da fundamentação da idéia de universalidade.

Sob o ponto de vista da semiótica das condutas, o direito se evidencia como um

padrão de comportamento entre tantos outros difusos na sociedade. Portanto, orienta a

formação de signos, como valores sociais, que vão permitir a valoração de condutas.

Sua diferença em relação aos demais é a pretensão de universalidade e soberania.

Ou seja, o direito se afirma como o único padrão de condutas, ou pelo menos como o

principal. Portanto, seus valores devem prevalecer sobre os demais.

Contribui para essa manutenção a ligação estreita entre direito e Estado.

Efetivamente, são manifestações distintas do mesmo fenômeno social. Enquanto o Estado

empresta ao direito o poder coativo e o monopólio do uso da violência, o direito garante ao

Estado uma estrutura e um sistema simbólico capaz de conquistar a legitimidade social.

A legitimidade, nesse caso, representa o grau de assimilação dos seus valores

sociais pelos indivíduos de um grupo. Em um padrão de condutas não jurídico, os

comportamentos destoantes representam uma constante ameaça à preservação da integridade

daquele padrão, porque expõe possibilidades novas ou nega impossibilidades habituais.

Abstração e dogma são as duas ferramentas que o direito contemporâneo soube

usar para minimizar a influência das condutas destoantes. Como a semiose, no padrão

jurídico, opera por abstração, há um sucessivo abandono do objeto que leva ao distanciamento 102 Afirmar que o direito é prescritivo e não descritivo é uma posição muito simplificadora. Vale lembrar a análise histórica de Nelson Saldanha (1998, p. 20), de que “o direito se teria formado pela conjugação entre normatividade e informação”.

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crescente entre este e os signos formados. Na semiótica das condutas, a abstração leva à

formação de noções da realidade cada vez mais formais, até perder o contato com o

comportamento original. Se a abstração está distante da conduta, também não pode ser

influenciada por esta, quando se revela destoante.

Caso ainda reste alguma possibilidade de recuo à conduta originariamente

valorada, o que permitiria a contradição com o comportamento destoante, o dogma garante a

manutenção da cadeia. Como já exposto, o dogma representa uma quebra na cadeia semiótica,

porque impede a verificação de seus fundamentos, ou seja, a sua regressividade. Portanto, em

uma cadeia semiótica jurídica, a conduta originária que um dia formou aquela cadeia por

abstração fica permanentemente inacessível, bloqueada pelo dogma.

Com isso, os comportamentos destoantes não exercem influência significativa

sobre as cadeias jurídicas103. O descumprimento de um padrão jurídico de comportamento

acarreta uma conseqüência também jurídica, prevista no próprio padrão. Nos demais padrões

sociais, descumprimento força o questionamento da relação de determinação entre o objeto (a

conduta) e o signo (o valor constante do padrão social).

Os sistemas jurídicos usam de ideologia e da sua pretensão científica104 para

reforçar a idéia de determinação, supostamente lógica, da norma pela situação. Insistem,

assim, naquele modelo de signo analisado no capítulo anterior, em que uma situação

determina suas normas e essas determinam uma disciplina jurídica.

103 A exposição é próxima à noção apresentada por Luhmann (1983, p. 137) de neutralização simbólica dos comportamentos divergentes. 104 Ideologia e ciência são formas de afirmação de uma realidade exterior, mas divergem fundamentalmente nos fins, inclusive com a possibilidade de apropriação ideológica do discurso científico, como aponta Pedro Demo (2002, p. 19): “A ideologia, até certa medida, aponta para outro extremo, ou seja, a sagacidade manipulativa. O que a define é o intento justificador, quer dizer, o compromisso político de defesa de posições, sobretudo de privilégios. Enquanto a ciência questiona o real para ser real, a ideologia lança mão de qualquer meio, sobretudo de ciência, para justificar condições históricas que se deseja manter, ampliar, esconder, impor, deturpar”.

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Com o reforço simbólico dessa noção, fica mascarada a noção do direito como um

padrão de comportamento, como os demais padrões sociais. A abstração105 e o formalismo106

negam a idéia de que o padrão jurídico também pode ser questionado e transformado pelo uso

de cada um de seus membros, como a linguagem verbal.

O fortalecimento do signo lingüístico-jurídico, outro também evidenciado no

capítulo anterior, torna mais defensável a necessidade de uma hermenêutica oficial. As razões

pelas quais a semiose empreendida por um indivíduo que não integra a hermenêutica oficial é

irrelevante para a transformação do padrão ficam ocultas, perdidas ao longo da abstração e

atrás dos dogmas.

A norma jurídica, como visto no capítulo anterior, é apresentada entre silogismos

e estruturas lógicas como uma decorrência direta e necessária da situação de fato que regula.

Considerando que seja mesmo um signo, seus fundamentos certamente são outros.

A norma jurídica representa uma parte, uma explicitação do ordenamento jurídico,

direcionada a promover um controle das condutas sociais. Assim, é rigorosa com aquelas

ações que pretende desestimular e tolerante ou generosa com aquelas que quer estimular. O

vínculo de determinação das normas, porém, não está naquelas condutas disciplinadas.

A norma é um símbolo, mas não das situações de fato disciplinadas por ela,

porque com estas, por força da abstração e dos dogmas, mantém um distanciamento

irrecuperável. Como signo, seu vínculo mais próximo é com os objetos que a determinaram.

Esses objetos é que revelam onde tem início a verdadeira cadeia semiótica jurídica e seus

dogmas. 105 Do ponto de vista político, abstração é inerente ao Estado moderno: “neste sentido o Estado é abstrato porque se apresenta necessariamente – com esta necessidade insuperável da ilusão que Kant atribuía às aparências transcendentais – como o lugar institucional em que uma comunidade real, múltipla, variada e contraditória encontra sua unidade, medida e identidade. A abstração está em que unidade, medida e identidade encontram-se fora da vida social efetiva, determinando-se como uma projeção autonomizada da sociedade que retorna sobre ela para sintetizá-la, regrá-la e dar-lhe figura” (BRUM TORRES, 1985, p. 76-77). 106 É importante explicitar o que se entende por formalismo jurídico: “a concepção formal do direito define portanto o direito exclusivamente em função da sua estrutura formal, prescindindo completamente do seu conteúdo – isto é, considera somente como o direito se produz e não o que ele estabelece” (BOBBIO, 1995, p. 198).

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O direito é determinado pelas circunstâncias sociais que permitem que um

determinado indivíduo ou grupo decida sobre padrões sociais. A partir desse momento, o

titular da decisão tem a possibilidade de, regrando as condutas, manter ou repetir aquelas

circunstâncias para que permaneça com o poder de decisão. É uma ação política que se

perpetua pela manipulação de condutas.

Não é apenas uma manipulação física, coercitiva, mas principalmente simbólica,

porque lida com a imposição de certos signos (e valores como signos) como obrigatórios.

Evidentemente, são esses mesmos signos que vão garantir que as condutas sociais sejam

mantidas no espectro previsto. A grande sutileza do direito contemporâneo é perceber que um

valor social e uma visão da realidade não se impõem pela violência. É preciso fazer o

indivíduo acreditar que aqueles valores são originários do grupo social como um todo, e não a

representação de alguns valores individuais de quem detém poder de decisão.

Em suma, a norma como signo nada mais é que isso – uma representação

pretensamente universal com base em um conjunto de valores individuais, voltados à

manutenção de uma situação de privilégio social. É determinada, portanto, não pelas situações

jurídicas que disciplina, mas pelas condições sociopolíticas gerais vigentes em uma

comunidade, o que explica, em parte, o fato de regimes políticos estabelecidos em condições

semelhantes produzirem normas similares.

A situação sociopolítica vigente é o objeto da norma, que a determina como seu

signo – o conjunto de condições necessárias para manter aquela situação. O interpretante é o

modelo de dominação simbólico verificado, cuja legitimidade será tanto maior quanto mais

semelhantes forem o objeto e o signo desta relação triádica. Em um processo semiótico de

encadeamento, a norma pode ser sucessivamente aperfeiçoada, a fim de permitir e determinar,

como interpretante, uma dominação cada vez mais forte e mais sutil.

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3.5 CONSIDERAÇÕES SOBRE EXEMPLO E ÉTICA

Pelo que foi visto neste capítulo, a semiótica das condutas é a que fornece um

modelo mais adequado para a função jurídica de regulação de condutas. Os modelos lógicos e

lingüísticos são formas incompletas de explicação do fenômeno jurídico e, como explicado,

são convenientes para a garantia de uma forma de dominação, por meio da imposição de um

sistema de símbolos de comportamento.

Foi evidenciado também que a norma jurídica deriva de um conjunto de valores

individuais voltados para a manutenção de uma situação de privilégio. Essas constatações

fazem perceber que, na semiótica das condutas, a crise do sistema simbólico decorre do

distanciamento entre a noção de realidade social esperada pela norma (interpretante imediato)

e aquela verificada pela maioria dos indivíduos (interpretantes dinâmicos).

Quando uma norma é apresentada como padrão de conduta, substitui os padrões

sociais difusos e, portanto, os valores sociais vigentes. Há, assim, um desvio na relação de

determinação do signo (valor) pelo objeto (conduta), em que a norma é assimilada pelos

indivíduos como signo na expectativa de que o seu interpretante (noção de realidade social)

seja mais eficaz que os outros disponíveis por supostamente ter mais poder de explicação do

real.

Todavia, geometricamente, todo desvio da relação de determinação do signo pelo

objeto implica um desvio proporcional da determinação do interpretante. A noção de

realidade resultante, portanto, é muito desviada daquela que seria obtida (interpretante final)

se a semiose seguisse, infinitamente, os padrões sociais vigentes.

Trata-se de um desvio aparente, por certo. Para os indivíduos, há um hiato

incompreensível entre a expectativa que apresentavam ante a norma e a situação consolidada

após sua aplicação. Para os que detêm o poder de decisão sobre a norma, não há desvio,

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porque a função de manutenção da situação, originariamente planejada, é inevitavelmente

cumprida107.

A crise do sistema jurídico é uma crise simbólica, portanto. A norma é

satisfatoriamente eficaz naquilo a que ela realmente se propõe, manutenção de uma situação

sociopolítica. O ordenamento não é eficaz no atendimento às expectativas dos indivíduos,

aquilo que supunham que seria a função da norma, o atendimento aos valores sociais. O

problema está nessas expectativas ilusórias e não atendidas. São expectativas baseadas em

visões limitadas da realidade108, induzidas pelo sistema jurídico simbólico.

Evidentemente, como a frustração de expectativas leva à crise do sistema

simbólico, é conveniente para os titulares do poder de decisão manter esse descompasso em

níveis toleráveis. Isso justifica a adoção de medidas, jurídicas ou comunicativas, para reforçar

a confiança no sistema simbólico. No final das contas, a noção distorcida da realidade é

mantida, assim como, em certo grau, as expectativas ilusórias109 sobre a eficácia da norma

jurídica110.

O cenário descrito neste capítulo revela uma situação de sobreposição dos valores

individuais aos coletivos, por parte dos agentes sociais com poder de decisão relevante sobre

a validação de padrões de comportamento. As decorrências em relação à formação de uma

relação semiótica jurídica distorcida já foram apreciadas.

107 É significativa uma analogia com o que David Harvey (1992, p. 301) descreve como uma condição pós-moderna: “o pós-modernismo surgiu em meio a este clima de economia vodu, de construção e exibição de imagens políticas e de uma nova formação de classe social. A existência de algum vínculo entre essa eclosão pós-moderna, a construção de imagem de Ronald Reagan, a tentativa de desconstruir instituições tradicionais do poder da classe trabalhadora (os sindicatos e os partidos de esquerda) e o mascaramento dos efeitos sociais da política econômica de privilégios deveria ser bastante evidente. Uma retórica que justifica a falta de moradias, ,o desemprego, o empobrecimento crescente, a perda de poder etc. apelando a valores supostamente tradicionais de autoconfiança e capacidade de empreender também vai saudar com a mesma liberdade a passagem da ética para a estética como sistema de valores dominante”. Para ser mais atual, só mesmo substituindo a referência nominal pelo atual dirigente da maior potência bélica do mundo! 108 Que podem ser relacionadas às idéias de falácias não-formais (WARAT, 1994, p. 155) do discurso jurídico. 109 A relação de expectativas recíprocas entre indivíduos e instituições produz efeitos interessantes: “a tendência da criança, e dos adultos também, é a de corresponder às expectativas (mesmo as negativas), criando-se o que se chama de ‘profecia auto-realizadora’” (BRAGHIROLLI et al, 1994, p. 36). 110 Nas palavras de Luis Alberto Warat (1997, p. 160), é o “poder disfarçando-se de si mesmo”.

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Um agravante é o potencial comunicativo que um comportamento como esse

carrega, em si. O indivíduo que age dessa forma evidencia que tem interesses em atingir e

manter posições de privilégio dentro do grupo social, ainda que para isso seja necessário

desconsiderar valores sociais mais gerais.

Este é um tipo de comportamento que, por influência mimética, pode vir a ser

tomado pelos demais indivíduos como modelo de conduta. Isso é ainda mais intenso quanto

mais destacada for a posição de liderança do agente em questão.

É importante reforçar que a comunicação levada a efeito pela conduta não

depende (é mais significativa do que) da comunicação proveniente do discurso do agente.

Então, aquilo que o indivíduo de destacada posição social faz, mais do que aquilo que diz, é

assimilado pelos membros da sociedade como um padrão de conduta.

Quando o comportamento decorre de um agente que desempenha papel

importante no Estado ou no direito, é possível ainda uma associação extrajurídica e colateral

entre seu ato e o padrão oficial de conduta representado pelo ordenamento jurídico. Isso

reforça ainda mais o caráter modelar daquela ação.

Se essa conduta, naquilo que é externa e compreensível, evidencia uma concessão

aos valores individuais, mais do que aos sociais, há uma tendência de que seja tomada como

paradigma e, portanto, repetida mimeticamente. Vale a observação de que a repetição de

valores individuais também acontece de forma individual, ou seja, de forma que o próprio

agente seja beneficiado.

É por essa razão que os valores individuais não são boas fontes de valores sociais.

Inclusive, é comum a contradição entre essas duas categorias, no âmbito social. A formação

de um grupo social envolve, assim, o desestímulo à busca de valores individuais, em favor de

benefícios que possam ser compartilhados pelo grupo111.

111 No ponto de vista ético, o desestímulo ao individualismo é um retorno a uma ética mais objetiva, como a idéia contida no imperativo categórico kantiano: “que os princípios subjetivos das ações, ou sejam as máximas,

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Sempre há, todavia, aqueles que conseguem identificar, nos padrões de valores

sociais, as formas de fazerem valer seus interesses próprios. O paradoxo desse

comportamento é que tende a ser tomado como um padrão, mas sua repetição compromete a

manutenção das próprias relações sociais.

A alternativa usualmente adotada é a tentativa de minimizar o poder comunicativo

da conduta própria. Agir às escuras é a forma mais óbvia. Outra forma mais sutil e elaborada é

o fortalecimento de outros sistemas simbólicos diversos da conduta – para isso cabem

perfeitamente o discurso lingüístico ou a norma jurídica – para evitar o efeito mimético do

próprio comportamento.

Aí está, portanto, mais um motivo para o estudo de outros sistemas simbólicos

além do jurídico e além do lingüístico. Um signo como o comportamental pode revelar

algumas informações importantes sobre a estrutura da realidade social que estejam sendo

propositadamente mascaradas pela saturação dos outros discursos.

Afinal, em terra de cego, quem tem um olho é rei...

...desde que mantenha os outros cegos.

O comportamento humano tem um potencial comunicativo imensurável,

principalmente quando pode ser tomado como modelo de conduta. No nosso cenário de crise

do sistema jurídico simbólico, a busca por modelos de comportamento é um dos aspectos

menos considerados pelo direito.

É a doutrina do exemplo, que tem pouco lugar em um sistema jurídico normativo,

prescritivo e repressivo. Como exemplo convém entender o potencial mimético que a conduta

possui, em si, de determinar outras condutas no mesmo sentido – para o bem ou para o mal.

Em um sistema jurídico que não atende às expectativas dos indivíduos, a ilusão da

segurança jurídica desaparece. Assim, o conhecimento de que outro indivíduo agiu de uma

têm que ser tomadas sempre de modo que valham também objetivamente, isto é, universalmente, como princípios e possam servir, portanto, para nossa própria legislação universal” (KANT, 1981, p. 104).

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forma e obteve êxito é a melhor garantia para agir da mesma forma, certeza muito maior do

que a conferida por qualquer norma jurídica. Inclusive, vale contra a norma jurídica, se a

certeza do sucesso for maior que a certeza da punição.

O caso é mais complexo quando são adicionados fatores como a massificação do

consumo, a hegemonia do capitalismo, a extrapolação das liberdades individuais e a ausência

de responsabilização112. Nesse contexto, uma espécie de liberalismo social, a conquista de

valores individuais determina o sucesso e a ascensão social do agente.

Enquanto os valores sociais são responsáveis por manter o mínimo de coesão do

tecido social, os padrões de comportamento gradativamente estimulam mais a competição do

que a cooperação entre indivíduos. É um círculo vicioso, em que os casos de sucesso servem

de exemplo simbólico para que outros sigam o mesmo caminho.

Aonde quer que ele leve.

Trata-se de um relativismo ético sem precedentes. A lógica do utilitarismo113,

levada ao extremo, resultou no reconhecimento de que os interesses individuais são um fim

em si mesmo, com influência epicurista114. É curioso perceber como mesmo o termo

epicurismo é pálido para descrever a situação de boa parte da sociedade contemporânea, uma

vez que até mesmo os epicuristas condenavam os excessos, por serem causa de sofrimento

posterior (VALLS, 2004, p. 44).

112 Sobre as conseqüências éticas, é válido o alerta de Nelson Saldanha (1999, p. 108): “na opção entre ética de deveres e ciência social relativizante, o mundo ocidentalizado tendeu a esta última, com a alusão fácil aos direitos e com a crescente permissividade”. 113 A definição de utilitarismo vem de um de seus maiores divulgadores, John Stuart Mill: “a doutrina que aceita a Utilidade ou o Princípio da Maior Felicidade como o fundamento da moral, sustenta que as ações estão certas na medida em que elas tendem a promover a felicidade e erradas quando tendem a produzir o contrário da felicidade” (STUART MILL, 2000, p. 30). 114 Vale a pena conferir, ainda, na mesma obra, sua associação a Epicuro (p. 29) e a seguinte afirmação, que dá uma boa noção do contexto atual: “entre dois prazeres, se houver um ao qual todos, ou quase todos, os que experimentaram ambos dão uma decidida preferência, independente de qualquer sentimento de obrigação moral para preferi-lo, é esse o prazer mais desejável. Se aqueles familiarizados, de modo competente, com ambos os prazeres, consideram um deles tão superior ao outro que o preferem mesmo sabendo que ele será acompanhado por uma maior soma de dissabores, e se não recunciam a ele em troca de qualquer quantidade do outro prazer que sua natureza é capaz de experimentar, então, estamos justificados em atribuir ao gozo preferido uma qualidade superior que excede de tal modo quantidade que esta se torna, em comparação, pouco importante” (STUART MILL, 2000, p. 32).

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Então, imediatismo e individualismo não são apenas rimas, são rumos nas

relações sociais vigentes. Infelizmente, o sistema jurídico não cumpre um papel adequado na

afirmação dos valores sociais, de um lado porque talvez não tenha interesse, de outro porque

talvez seja impotente para tanto.

O indivíduo é, assim, a bola da vez. Nesse sentido, talvez uma das contribuições

mais relevantes da semiótica das condutas seja o reconhecimento de que qualquer sujeito,

agindo, pode transformar a sociedade em que vive.

Por isso, cabe destacar a necessidade de discutir as condutas como signos, como

formas de comunicação e interação social. Considerando que são os valores sociais que

ocupam o lugar de signo nessa semiose, promover essa discussão nada mais é que resgatar o

debate moral.

O paradoxo do individualismo é que acarreta a perda da individualidade, por meio

da massificação. É esse estímulo amoral que firma as bases para os padrões de

comportamento do novo milênio.

O choque entre os valores sociais e os individuais supera o poder de explicação

dos sistemas jurídicos e lingüísticos. Não se pretende uma substituição, mas é o caso de

completar esses dois, respectivamente, com conteúdos éticos e comportamentais – que numa

cadeia semiótica infinita, são a mesma coisa.

Reforçar a discussão ética é uma forma de trazer à tona os valores sociais e

estimular o seu reconhecimento pelo sistema jurídico. Para tanto, o direito precisa ser liberto

da abstração e do dogma, para que possa resgatar o contato perdido com a conduta em sua

concretude e como ponto de partida. A idéia de superação de valores não é estranha para os

estudiosos da obra de Peirce, para quem “na ética, como na ciência, nós agimos pelos nossos

conjuntos de crenças orientados pela experiência, enquanto descobrindo que eles podem ainda

ser superados por experiências posteriores” (MISAK, 2004, p.165).

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A própria ética contemporânea precisa explicitar uma orientação ancorada nesse

cenário, sem medo de rever posições. A superação da ética absoluta pode ter sido uma

conquista, no sentido de permitir discussões referentes a contextos sociais e políticos

concretos115, mas também está sendo uma boa desculpa para que valores individuais sejam

afirmados como valores sociais – ou, pior ainda, para que não seja afirmado valor algum.

O comportamento, por sua vez, tem como acrescentar uma nova dimensão aos

estudos das linguagens, basta que seja explicitado o seu poder comunicativo. Ao somar ação

ao que apenas é discurso, toda a força da língua é direcionada para um papel mais ativo e

explícito de transformação da realidade.

É a passagem de uma filosofia da linguagem para uma filosofia da ação – com

muita conformidade com as idéias defendidas pelo pragmatismo116. Não é coincidência que

seu ponto de partida também tenha sido Charles Sanders Peirce. O filósofo americano

também empreendeu estudos na área da ética117, em que defende, entre outras considerações,

que não se pode acreditar irrestritamente em objetivos limitados, como indivíduos ou

instituições, mas que se deve manter a fé em comunidades capazes de acolher a todos, além

de qualquer fronteira (FEIBLEMAN, 1970, p. 385-387).

Mais uma vez, o exemplo transparece cada vez mais como uma ação política, em

si. A boa notícia, nesse contexto de crise, é que os grupos sociais individualistas mas não

individualizados consideram o comportamento auto-referente como padrão. Assim, ações em

sentido oposto118 tendem a fazer a diferença.

115 Aqui é preciso distinguir entre relatividade ética – a dependência de contextos sociais e históricos específicos – e relativismo ético – a possibilidade de admitir como igualmente válidas condutas opostas, na mesma situação. Para mais explicações, convém recomendar a leitura de Adolfo Sánchez Vázquez (2000, p. 259-264). 116 Merece menção a avaliação feita por Hans Lenk (1990, p. 37) sobre a filosofia voltada à ação e razão pragmática desde as idéias kantianas. 117 Para Peirce, as ciências normativas (estética, ética e lógica) são também teóricas. A estética fundamenta a ética e esta a lógica, já que o comportamento devido é o mais admirável e defender que um argumento é ilógico encerra um julgamento moral (MISAK, 2004, p. 170). 118 Não se espera um comportamento altruísta, mas pelo menos uma ação pró-social. Para uma diferença entre os dois conceitos, vale consultar as explicações de Aroldo Rodrigues (1999, p. 246).

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É um passo para a transformação de valores. É a possibilidade de alinhamento

entre interpretante imediato, interpretantes dinâmicos e interpretante final119. É a chance de

encontrar um ponto de convergência entre direito e ética, entre padrões de conduta e valores

sociais120.

A semiótica das condutas tem potencial para fornecer os instrumentos teóricos,

mas a responsabilidade de ação, como sempre foi, é de cada indivíduo. Qualquer um pode

promover uma transformação.

Exceto, é claro, aqueles que estão satisfeitos.

119 Há, em Marike Finlay (1990, p. 142-143), uma associação significativa entre o interpretante final de Peirce e a as idéias de utopia, defendidas por autores como Robert Musil. 120 Na linha teórica de Peirce, o comportamento ético também evidencia o ideal lógico, uma vez que considera que “apenas as inferências de uma pessoa capaz de heroísmo e auto-sacrifício são realmente lógicas” (SHERIFF, 1994, p. 80).

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CONCLUSÕES

Em síntese, foi apresentada a estrutura geral de alguns modelos de signos

jurídicos, diferentes mas complementares, com base na aplicação da semiótica de Charles

Sanders Peirce. Muitas das idéias resultantes dessa pesquisa, bem como a crítica respectiva, já

foram apresentadas no encerramento de cada capítulo. Além dessas considerações, o exercício

de tradução proposto – entre o sistema jurídico normativo e as categorias da semiótica

peirceana – traz à tona três outras conclusões.

Em primeiro lugar, tanto os códigos kelsenianos quanto os peirceanos manifestam

características comuns de pretensão de universalidade, formalismo e categorização, com

nítida influência kantiana em ambos. Com isso, o direito normativo também pode ser

considerado como uma vítima da sedução da estrutura descrita no capítulo primeiro. Nessa

disciplina, as estruturas são tomadas como objeto e há uma crescente auto-referência no

discurso.

Após a modelagem levada a efeito no capítulo segundo, é possível verificar que a

ênfase em abordagens normativas do direito é responsável pelo seu distanciamento das

condutas originárias. Os modelos jurídico-normativos apresentados, como visto nos últimos

capítulos, são mais coerentes quanto menos ligados estiverem às situações concretas, como

forma de preservar a determinação do signo pelo objeto. No caso dos modelos lingüístico-

jurídicos, o caso ainda é mais evidente, porque a auto-referência é típica do encadeamento

semiótico por aperfeiçoamento, em que a sucessão de interpretantes orbita em torno de um

mesmo objeto comum. Em simples palavras, a enunciação de normas em formas cada vez

mais gerais e as discussões circulares sobre hermenêutica e conceituação jurídica contribuem

para que o direito seja tomado como um fim em si mesmo.

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Se nesse aspecto, a tradução das duas disciplinas revelou similaridades, também

tornou evidente um importante ponto. Para desespero de Häberle, o sistema jurídico formal é,

por sua vinculação estatal, um código social de hermenêutica fechada, em que um grupo

restrito de intérpretes é responsável pela determinação dos elementos da semiose. A teoria de

Peirce, por sua vez, é hodogética, no sentido de que direciona o entendimento, mas admite

variações conceituais. A semiótica americana – com a noção de interpretante dinâmico – e a

lingüística de Saussure – com o conceito de fala – fortalecem ambas o potencial dinâmico e

transformador do uso, questão que, propositadamente, é abafada pelo direito.

Em relação à tradução, portanto, é possível concluir que não há uma

compatibilidade absoluta entre as duas teorias. Não é possível tratar o direito como sistema

semiótico, comunicativo, sem questionar a relação entre as situações (objeto) e as normas

resultantes (signo). Para que haja uma relação triádica, é preciso que haja também uma

determinação – que os fatos determinem as normas – e, como visto, esse é o ponto fraco da

modelagem. Insistir na semiótica jurídica sob o ponto de vista da norma tende a explicitar

essas fendas e reforçar a idéia de intradução.

Isso ocorre porque, dentro de modelagens normativas, o sujeito cognoscente opera

estritamente no limite do formal, ou seja, nos signos mais tardios de uma cadeia semiótica

formada por abstração. Apesar da teoria dos signos de Peirce ser universal o suficiente para

permitir esse tipo de abordagem, isso contradiz em certo ponto a idéia de que a experiência é

o ponto inicial do conhecimento. Em uma cadeia semiótica regular, esse distanciamento

proporcionado pela abstração é facilmente superável pela natureza dinâmica e contínua da

semiose, que permite a verificação dos signos em toda sua extensão, de um pólo remoto ao

outro. Esse acesso é importante para permitir, no momento da percepção de novas idéias, um

julgamento contínuo de adequação que pode gerar, nos casos de percepção equivocada ou

absurda, uma correção devida para preservar a sua integridade.

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Na semiose jurídica, por outro lado, o dogma impõe uma quebra na cadeia, como

visto, e impede o acesso aos seus signos mais primários. Se por um lado isso estimula a

padronização e a difusão de conceitos, por outro prejudica a flexibilidade necessária para lidar

com as percepções posteriores. Essa cadeia semiótica está protegida pela coatividade estatal e,

portanto, não pode ser simplesmente descartada como inadequada. O que ocorre, então, é que

a percepção, como atividade criativa, estabelece seus próprios instrumentos de superação dos

absurdos e o deslocamento de sentido, da norma jurídica a signos não-jurídicos, foi a forma

apontada por este trabalho.

Essa é a função do dogma, como visto: quebrar a cadeia semiótica e ocultar o que

lhe antecede. Para os estudos da função comunicativa do direito, impedir a regressividade da

semiose dificulta o julgamento sobre a adequação dos signos. Assim, considerar como ponto

inicial a norma, ou o texto que a explicita, é uma percepção incompleta da realidade que, mais

uma vez, repele a aplicação da teoria dos signos.

Por tudo isso, desenvolver modelos de semiótica jurídica tendo como objeto a

norma tende a ser uma tarefa quixotesca – um “enxugamento de gelo”, para usar a expressão

brasileira. Inevitavelmente as contradições desse tipo de abordagem, como o aspecto da

determinação semiótica que foi evidenciado neste trabalho, surgem e contaminam o produto

desenvolvido. Pode ser que essa constatação demonstre uma incompatibilidade entre a linha

teórica da semiótica peirceana e do normativismo kelseniano. Ou pode ser também que a

norma não seja um bom ponto de partida para os estudos referidos – jurídicos ou semióticos.

Nessa dúvida metodológica, os elementos trazidos pelo terceiro capítulo

conduzem à segunda conclusão do trabalho. Ali foi testada a hipótese de que seria possível

construir um modelo de signo jurídico extranormativo, o que indica que há elementos

significantes no direito que não estão necessariamente submetidos à normatividade formal. As

discussões inicias do capítulo, ao chamar a atenção para o problema da determinação, já

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antecipam que o deslocamento do foco para as condutas não representa o abandono das

formas normativas anteriores, mas seu necessário aperfeiçoamento.

O primeiro passo seria a superação do dogma, que, como visto, tem uma natureza

decisória e estrutural e, por isso, funcional e instrumental. Ir além do dogma significa

considerar que a norma não é um ponto de partida, mas um signo intermediário em uma

cadeia semiótica extremamente extensa, que tem as considerações jurídicas mais abstratas no

seu pólo mais elaborado e as condutas originárias no seu extremo mais básico. Em outras

palavras, as normas são determinadas por atos e decisões – jurídicos, políticos, sociais,

econômicos –, não pelas situações futuras e hipotéticas que ela mesma pretende regular. Há,

assim, a possibilidade de modelagem de um signo jurídico complexo, em que cada um dos

modelos anteriores representa uma função específica. Nesse contexto de formação – e apenas

nele – um estudo semiótico da norma jurídica é adequado.

Foi aberta uma janela de tradução. As condutas, socialmente consideradas,

completam o modelo normativo e fornecem os dados para o exame da determinação das

normas, que era o ponto mais contraditório da modelagem anterior. O desafio passa a ser,

nesse momento, determinar se a semiótica das condutas é um elemento integrante e acessório

da semiótica normativa ou se há autonomia no estudo do comportamento humano. Isso

equivale a indagar se o aspecto comportamental é apenas um momento protonormativo ou um

contexto maior.

O desenvolvimento do terceiro capítulo, com apoio na psicologia social de Mead,

deixa evidente a aposta na segunda hipótese que, ao que parece, foi um risco recompensado.

A análise comportamental tem uma importância genética sobre o direito – ao fornecer dados

para as condicionantes de formação dos sistemas jurídicos – e, igualmente, traça o cenário em

que esse direito será aplicado, verificado e, até mesmo, contestado. Assim, a sociedade é o

berço e o túmulo de ordens jurídicas sucessivas.

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Figura 13 Signo jurídico

complexo

norma jurídica signo

objeto

interpretante

situação jurídicaem abstrato

disciplina em abstrato

texto

Figura 13 – Signo jurídico complexo Os três modelos apresentados não são excludentes, mas complementares, pois cada umenfatiza um momento específico do conhecimento jurídico. Assim, a semiose língüística promove a extração, por aperfeiçoamento, do sentido da norma, que vai permitir suaatuação em abstrato em um sistema lógico-formal. Na semiose social é possível verificar como as condutas determinam um valor, que é preterido para a imposição, pela própria ordem política, daquela norma jurídica como signo. Todavia, em virtude da crise dosistema simbólico jurídico, novos signos, híbridos e mais eficientes, são adotados pelasociedade para valorar suas condutas. Observação: o deslocamento do signo do valor para a norma (|x1|)e desta para os signos híbridos (|x2|) guarda proporção com o deslocamento sofrido pelos interpretantes:x1//x1’=x2//x2’. Assim, pequenas mudanças nos signos sociais geram largos resultados.

semiose lingüístico-normativa

semiose lógico-formal

semiose social

valor norma ? |x1| |x2|

representaçãosocial

conduta

objeto

ordem política

|x1’| |x2’|

interpretante

?

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Isso aponta para o reconhecimento da autonomia dos sistemas sociais

comportamentais em relação ao direito – o que, exceto pelo método que conduziu a essa

afirmação, não representa qualquer novidade em relação às tradicionais teorias jurídicas de

matiz sociológico. A contribuição semiótica reside na percepção do papel comunicativo das

condutas, individual ou socialmente consideradas. Mais especificamente, a modelagem do

signo jurídico comportamental, em conformidade com as categorias de Peirce, revela como

esses elementos comportamentais – atos, condutas, valores – são encadeados e, mais

importante, quais os interpretantes que se pode esperar desses signos. O arco que fecha o

círculo é a proposta de que as condutas (como objetos) e os seus respectivos valores sociais

(como signos) determinam a formação de representações sociais (como interpretantes), visões

que descrevem e conformam a realidade social, das quais o direito é uma específica faceta.

O que este trabalho experimental apresenta é a distinção entre sistemas

normativos e sistemas comportamentais que lhe servem de base, defendendo que, se há

subordinação, é do primeiro sob o segundo e não o contrário. No âmbito da semiótica,

especificamente, o reconhecimento de que os padrões de condutas comunicam valores

demonstra que formam uma ordem de discurso difusa com um poder de convencimento maior

do que o amparo oficial do direito, por meio do artifício sancionatório. O aspecto dinâmico do

discurso comportamental – que se aproveita do “uso” para manter a eficiência simbólica –

rivaliza e supera qualquer mecanismo de atualização e aceitação jurídicas.

Enfim, a convivência de um discurso jurídico, de pretensão universal e amparo

oficial, com um discurso comportamental distinto, mas socialmente eficiente, induz a hipótese

de que há, efetivamente, sistemas normativos híbridos, em virtude do entrelaçamento das

cadeias semióticas. O direito não opera por si, mas, sob o ponto de vista comunicativo, em

interação simbólica com os valores comportamentais extra-oficiais, que alteram, induzem e

determinam sua função significativa. Assim, se o contexto comportamental regula as normas

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prevalecentes em uma sociedade, a análise do direito estritamente sob o prisma normativo ou

lingüístico, se não inútil, seria pouco eficiente para fornecer respostas para as condutas

humanas concretas.

É importante deter os exageros. As condutas foram verificadas, neste trabalho,

como formação e como contexto dos discursos normativos. Não se pode negar, porém, que a

mesma interação semiótica que transforma a compreensão do direito também garante uma

influência jurídica sobre a formação dos valores sociais. É o caso da ação estratégica e

política a que o capítulo terceiro faz referência. Como todo discurso social, o direito de uma

determinada sociedade também é veículo de uma ideologia determinada, ainda que sob uma

“camuflagem objetivante”, como visto. Nesse prisma, os discursos mais abstratos, como o

jurídico ou o lingüístico, têm maior propensão a transmitir valores individuais como sendo

coletivos. As condutas, por respeitarem uma maior proximidade entre o objeto e seu

interpretante, são mais eficientes em explicitar os valores que orientam os atos. Por isso é

importante, para entender a relação comunicativa jurídico-comportamental, compreender que

as normas também são geradas pela percepção das condutas, sejam consideradas

individualmente – o exemplo – ou coletivamente – a ética.

Entender ou demonstrar a interação entre esses signos – jurídicos e

comportamentais – do ponto de vista da comunicação social é uma interessante pesquisa

semiótica, que não pode ser analisada por este trabalho porque ultrapassa seus limites

conceituais. Aqui houve apenas o objetivo de mostrar que o direito é passível de tradução em

linguagem semiótica – e os elementos comportamentais, superando o paradigma normativo,

completam largas lacunas nesse desafio.

A terceira conclusão é a importância de um trabalho conceitual, o qual, assim

como a adoção da semiótica como tema, decorre da íntima ligação existente entre direito e

comunicação. Como demonstrado nas linhas anteriores, muito mais similaridades e diferenças

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estão entre essas duas áreas do conhecimento humano. Sob o pretexto de conceituar o signo

jurídico, o trabalho inevitavelmente termina por expor questões intrínsecas – de ambas as

doutrinas – acerca da definição de seu objeto.

É um debate latente no direito, para o qual, como já afirmado, não se espera

apresentar qualquer resposta definitiva – se é isso possível. É bastante plausível, porém, que a

retomada da questão sob um novo ângulo, com a ajuda da semiótica, permita o surgimento de

novas hipóteses.

É por isso que este trabalho não envolveu um estudo de semiótica, mas de

semiótica peirceana, que apresenta especificidades marcantes para justificarem as análises

empreendidas. Os sistemas jurídicos, com suas regras próprias de validação presentes nas

normas, constituem um universo à parte que nem sempre responde aos fenômenos da mesma

forma como os demais sistemas culturais. Pragmaticamente, é distinto, portanto.

Saber como operar as normas sob as regras auto-referentes desse sistema é

possível pelo estudo da dogmática jurídica e do direito positivado, enquanto os reflexos

sociais e a forma como as ações declaradamente jurídicas afetam a coletividade podem ser

pesquisados pela sociologia e ciência política. A semiótica, em sentido geral, tem a missão de

entender essas duas visões e compreender como as significações são formadas em cada

contexto – jurídico ou social. Há uma tarefa de tradução, como visto.

A semiótica estritamente peirceana é um pouco mais pretensiosa. Seu viés

filosófico pretende também, de forma normativa, estabelecer bases para uma teoria do

conhecimento, inclusive aplicada a contextos específicos.

Para isso, é necessário em primeiro lugar definir conceitos e propor modelos de

entendimento sobre as idéias da semiótica e as possibilidades de aplicação nos contextos

jurídicos. Isso, por si, já é tarefa dispendiosa o bastante. Cabe ao pesquisador não apenas o

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esforço de recolher todo o material possível, mas também a penosa missão de compilar as

idéias em uma teoria coerente.

Em uma empreitada como esta é possível avaliar a importância da coesão no

discurso científico. Essa noção, repetida diversas vezes em linhas anteriores, não implica de

forma alguma abolição da pluralidade de idéias ou em imposição de dogmas. O que se está

tratando é de possibilidades de comunicação – e do mínimo de consenso necessário que lhe

precede.

Quem se propõe a estudar semiótica – ou lingüística, ou sociologia, ou teorias da

comunicação – cada vez mais reforça a certeza de que comunicação e cultura são fenômenos

indissociáveis. Para que haja cultura, é preciso comunicação e para que haja comunicação é

necessária a cultura. Isso vale para qualquer produto da ação social humana, inclusive o saber.

O desenvolvimento de uma área do conhecimento humano depende da formação de uma

cultura intelectual comum e esta decorre de uma comunicação efetiva. É por esse argumento

que Peirce, segundo sua “teoria da convergência” chega a ponto de colocar o consenso

epistemológico como critério de validação para o que é “verdade” e “real”.

Por isso o discurso científico deve ser coeso, ainda que divergente, e para tanto é

fundamental a adoção de conceitos básicos. Esses conceitos, verdadeiras unidades

significativas do discurso científico, contribuem de forma decisiva para a formação da

identidade de uma doutrina e, por este motivo, ainda que dinâmicos e historicamente

condicionados, os conceitos devem ser minimamente consensuais121. Em outras palavras, se é

verdade que não há evolução científica no puro consenso, também é verdade que sempre há

um relativo consenso na base de toda a cultura e discursos comuns de uma sociedade.

Uma doutrina incapaz de manter um discurso próprio tende a perder sua

identidade como conhecimento.

121 A exatidão dos conceitos é defendida por Peirce (2003, p. 39-43), no seu texto “A Ética da Terminologia”, muito embora admita a ressalva de que “uma exatidão absoluta não chegue a ser concebível”.

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Assim, numa aplicação bastante coerente das teorias do discurso, este trabalho

procurou contribuir para o desenvolvimento da semiótica jurídica por meio da discussão de

seus conceitos básicos. Para isso recorreu ao trabalho anterior de diversos pensadores,

principalmente do filósofo Charles Sanders Peirce, a quem se pode atribuir o valor das idéias

aqui apresentadas, mas jamais os eventuais enganos. Este trabalho pretende ser mais um tijolo

que se assenta em suas sólidas fundações.

E assim, tijolo por tijolo, é construído o gigantesco edifício do saber humano.

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