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Ilustração: Ralfe Braga

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Senador Cristovam Buarque

Brasília – 2016

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B917d Buarque, Cristovam Dez dias de Maio em 1888/ Cristovam Buarque. 3ª Edição - Brasília, DF: Senado Federal, 2016.

174p.

1. escravidão. 2. abolição da escravidão. 3. história do Brasil. I. Título

CDU: 94(81). 063

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Nota de Agradecimento 7Introdução 11A abolição começou antes 15

A ACEITAÇÃO DA ESCRAVIDÃO 15A lenta descoberta da escravidão 19

A mARChA DA ABOlIÇÃO 26ABOlIÇÃO nOS DEmAIS pAíSES DAS AméRICAS 30

Dez Dias de Maio 44DIA 3 – QuInTA FEIRA 44A ESCRAVIDÃO nÃO FOI ABOlIDA, ElA SE ESgOTOu. 48DIA 7 – SEgunDA FEIRA 52DIA 8 – TERÇA FEIRA 65DIA 9 – QuARTA FEIRA 70DIA 10 – QuInTA FEIRA 72DIA 11 – SExTA FEIRA 74DIA 12– SáBADO 89DIA 13 - DOmIngO 100

Depois de 13 de maio 109A ABOlIÇÃO nÃO TERmInOu 112nOSSOS ERROS 120A REDESCOBERTA DA ABOlIÇÃO 127nOVA ABOlIÇÃO 128A REVOluÇÃO EDuCACIOnISTA 130A ChAmA DA InDIgnAÇÃO 131

Líderes Abolicionistas 133luíS gAmA – 1830-1882 133AnDRé REBOuÇAS -1838-1898 135JOSé DO pATROCínIO – 1853-1905 138mAnuEl QuERInO – 1851-1923 141JOAQuIm nABuCO – 1849-1910 143CASTRO AlVES – 1847-1871 150AnTônIO BEnTO – 1843-1898 152JOSé mARIAnO CARnEIRO DA CunhA – 1850-1912 153

Líderes Educacionistas 155guSTAVO CApAnEmA – 1900-1985 155JOÃO CAlmOn – 1917-1999 157AnySIO TEIxEIRA – 1900-1971 158pAulO FREIRE – 1921-1997 160DARCy RIBEIRO – 1922-1996 163FlORESTAn FERnAnDES – 1920-1995 165FERnAnDO DE AzEVEDO – 1894-1974 167lOuREnÇO FIlhO – 1897-1970 169

Sumário

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Aos taquígrafos, bibliotecários, secretários e servidores do Senado e da Câmara dos Deputados, sem os quais esta história não teria sido guardada, em 1888. Esperando que as falas de hoje sejam lembradas quando for resgatada a história de nossas lutas por uma Segunda Abolição: a revolução que assegure escola de qualidade a toda criança brasileira, independente da renda da família e da cidade onde viva. Diretamente preciso agradecer a Fernanda Andrino pelas pesquisas feitas, especialmente na elaboração dos capítulos com as curtas biografias de Abolicionistas e Educacionistas; e a Priscila Alves de França pelas sucessivas e cansativas digitações e redigitações dos textos.

Brasília, Julho de 2016.

Nota de Agradecimento

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Apresentação

Foi com alegria que recebi o convite do Senador Cristovam Buarque para escrever algumas palavras sobre a sua mais nova obra “Dez dias de maio em 1888”. O livro faz um resgate de documentos da época em que o Parlamento brasileiro debateu e votou a Lei Áurea.

Fiquei impressionado ao saber que vários nomes de senadores, deputados, escravocratas, gente da sociedade e, até mesmo seus discursos, artigos e opiniões, praticamente desapareceram, a não ser em raras exceções.

A maioria dos textos e documentos da época foram incinerados como se isso pudesse diminuir a dor e o sofrimento de um povo e de uma negra nação que foi sequestrada no seu torrão natal e marcada a ferro e fogo.

Considero o Senador Cristovam o grande timoneiro da educação em nosso País, um verdadeiro abolicionista. Com sua marca de mestre, ele demonstra, nesta obra, que os direitos humanos, a liberdade e a igualdade de oportunidades são o esteio de todos os países que perseguem a justiça social e o desenvolvimento sustentável.

Creio que todos nós, homens e mulheres, negros, brancos e índios carre-gamos essa chama que deve iluminar a humanidade: a luz eterna da liberdade, da fraternidade e da solidariedade.

A publicação desta obra é essencial para todos aqueles, jovens ou não, que querem entender a construção do nosso País e, fundamentalmente, compreender melhor o porquê de ações afirmativas e do Estatuto da Igualdade Racial.

Senador Paulo Paim

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Introdução

A propriedade de seres humanos aparece quase simultaneamente com o próprio conceito de propriedade. A escravidão é um fenômeno social antigo. Por um longo período da história da humanidade, era uma instituição aceita, mesmo por sociedades humanistas e progressistas.

Os gregos e os romanos mantiveram a escravidão, enquanto implan-tavam suas repúblicas democráticas. A “República” de Platão, do século VI a.C., previa com naturalidade a escravidão, dentro dos sonhos por uma sociedade justa.

Na Utopia de Thomas More, que difundia o sonho do funcionamento de uma sociedade perfeita, a escravidão era um instrumento normal. A Europa atravessou todo o Renascimento convivendo com formas de escravidão em seus territórios e suas colônias.

No exemplo de democracia que foi a república norte-americana, o grande sonho libertário da modernidade, antes mesmo da Revolução Francesa, a escravidão foi mantida por quase 100 anos. E para eliminar essa barbari-dade, foi preciso uma trágica Guerra Civil, com a morte de 970 mil pessoas para libertar os 3 milhões de escravos.

O Brasil nasceu com a escravidão. Logo nos primeiros encontros com os indígenas, os portugueses começaram a escravizá-los. O Reino de Portugal combinou simultaneamente o solo do novo território na América com a mão-de-obra vinda da África para produzir o açúcar, depois o ouro, o café que os ricos europeus consumiam.

Foi uma escravidão diferente da antiga. Antes, os escravos eram parte da família, do exército, da pequena produção, conviviam com as pessoas livres e seus donos. No mundo árabe antigo ou na Grécia e Roma, e mesmo na Europa medieval havia trabalho escravo, mas essa escravidão não tinha a brutalidade e desumanização do escravo nas Américas. A escravidão

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antiga era utilizada, sobretudo, para o trabalho doméstico, em casas ou plantações familiares, salvo em tempos de guerra ou em jogos de gladia-dores. Alguns alcançavam posições sociais de destaque dependendo da precisão de suas habilidades.

Na América, eles foram desumanizados. Transformados em coisa. O escravo doméstico, serviçal familiar do passado, foi transformado em massa, e tem a vida degradada ao ponto de ser confundido com uma ferramenta de produção.

Por isso, a escravidão tornou-se, ao mesmo tempo, mais abjeta e mais necessária.

Os historiadores costumam dividir a abordagem sobre a escravidão em períodos históricos para diferenciar a escravidão da antiguidade e a escravidão na era moderna. Há diversas ocorrências de escravatura sob diferentes formas ao longo da história, praticada por civilizações distintas.

No geral, a forma mais comum de escravatura se deu quando povos adver-sários guerrearam, resultando em prisioneiros de guerra condenados ao trabalho forçado. Mesmo os brancos condenados por crimes eram levados ao trabalho forçado, mas não eram escravos, não podiam ser vendidos. Apesar de na Antiguidade ter havido comércio escravagista, não era necessariamente esse o fim reservado a esse tipo de espólio de guerra.

A Mesopotâmia, a Índia, a China e os antigos egípcios utilizaram escravos, porém, não se tem notícia da exploração de um povo com base em suas constituições físicas e culturais para justificar a dominação, como foi o caso do tipo de escravidão nas Américas.

Ao longo de quase quatro séculos a escravidão foi aceita plenamente pela Igreja, pelos dirigentes, pelos intelectuais. A única exceção eram os próprios escravos, que lutavam como Zumbi, e formavam quilombos. A parcela livre ignorou totalmente a existência da escravidão, como um problema moral e aceitou-a como uma situação econômica óbvia.

É vergonhoso como 400 anos de história se passaram ante a insensibilidade das classes dirigentes, dos estudantes, das faculdades criadas no século XIX, dos padres, dos escritores e mesmo dos brancos pobres.

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Dez dias de maio em 1888

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Só no século XIX, e muito lentamente, começaram a surgir pequenos movimentos pela redução da barbaridade dentro da escravidão, mas ainda não pela Abolição. Eram movimentos limitados a diminuir castigos corporais ou a evitar a venda de crianças separadas de suas mães.

A verdadeira luta pela Abolição começou devagar e veio de fora. O primeiro ato de combate à escravidão – a Proibição do Tráfico – não surgiu dentro do Brasil. Foi o resultado de pressão da Inglaterra, que forçou a aprovação da Lei de 1831. Mesmo assim, foi uma “lei para inglês ver” 1. O trafico só parou quando, anos depois, a Marinha Britânica passou a interceptar os navios negreiros e libertar os escravos. Fomos forçados pelos ingleses a pôr fim ao crime hediondo de arrastar africanos através do Atlântico e sujeitá-los ao rigor da escravidão, por toda a vida e – inacreditável – de seus descendentes também.

Até então, os cursos superiores, a Igreja, a quase totalidade dos parla-mentares do Império ignoravam a escravidão como problema. Ela era parte do sistema social brasileiro, um instituto normal, como são hoje a pobreza, a desigualdade, o abandono dos serviços sociais para os pobres, o desprezo pela educação dos pobres.

Machado de Assis, que era mulato e tão bem descreveu a vida social brasileira, nunca fez manifestação qualificada sobre a escravidão. Como na literatura de hoje, que raramente tem personagens vindos do grupo social dos excluídos, os escravos eram invisíveis aos olhos da elite social. Em seus romances e contos, os escravos eram como mobílias. Não tivemos nenhum romance como “A Cabana do Pai Tomás”, nem enaltecemos heróis escravos, como o romano Spartacus, ou Zumbi dos Palmares.

Quando surgiram grupos, ações e movimentos isolados contra a escravidão, era por meio da alforria graças à compra de escravos individualmente, para libertá-los. Em Pernambuco, o Clube do Cupim escondia escravos fugidos. A luta continuou paulatinamente, com a Lei do Ventre Livre em 1871 e dos Sexagenários em 1885. No Ceará, em 01 de janeiro de 1883, o fazendeiro Coronel Gil Ferreira Gomes libertou todos os seus escravos e conseguiu convencer os vizinhos a venderem os seus, com o compromisso

1 A expressão “para inglês ver” surgiu da hipocrisia com que os brancos brasileiros, ricos ou pobres, se submeteram à pressão inglesa, decididos a não cumprir a lei que proibia a impor-tação de escravos africanos. Uma postura que caracterizaria a alma do brasileiro: submissão aos acordos impostos pelo exterior, maldade com os excluídos e desrespeito com os acordos.

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de jamais voltarem a comprar mão-de-obra servil. Foi o primeiro a abolir a escravidão no Brasil.

Só bem avançada a segunda metade do século XIX é que alguns come-çaram lutar por uma lei simples: que emancipasse todos os escravos, sem pagamento indenizatório aos seus donos.

As palavras abolicionismo e abolicionistas só surgem no Brasil em 1871, segundo consta no dicionário Houaiss. Só então, tardiamente, uma pequena parte da elite brasileira começou a falar em abolição: o puro e simples fim do sistema escravocrata. Ainda assim, eram palavras marginais, usadas por contestadores, jamais pelos donos do poder. Os poucos projetos de lei apresentados nesse sentido foram ignorados, arquivados ou rejeitados, como os projetos de lei dos deputados Pedro Pereira da Silva Guimarães (1814/1876), João Maurício Wanderley (1815/1889), Tavares Bastos (1839/1875), e dos senadores Silveira da Mota (1811/1893) e Visconde de Jequitinhonha (1794/1870).

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A abolição começou antes

A ACEITAção DA ESCrAvIDão

Foi provavelmente o navegador português Gil Eanes quem, em 1432, levou para Portugal a primeira carga de escravos vindos da África. A partir de então os portugueses começaram o secular tráfico que marcaria a huma-nidade de riquezas econômicas e de vergonhas morais.

Segundo os historiadores, os primeiros escravos chegaram ao Brasil em 1533, quando Pero de Góis, Capitão-Mor da Costa do Brasil, solicitou ao Rei a remessa de 17 negros para a sua capitania de São Tomé, onde hoje se situa o estado do Rio de Janeiro. Outros afirmam que foi em 1538, quando Jorge Lopes Bixorda, arrendatário de pau-brasil, teria traficado os primeiros escravos africanos para a Bahia.

A escravidão já estava institucionalizada pela coroa portuguesa com a bênção papal, documentada nas bulas de Nicolau V, principalmente na Dum Diversus, de 1452, que autorizava os portugueses a escravizarem os africanos com o intuito de cristianizá-los. Na legislação portuguesa da época, também aplicada no Brasil colonial, a regulamentação da escra-vatura aparecia compilada nas Ordenações Manuelinas2 .

A justificação era que faltava mão de obra por toda a Europa, devido à recorrência de epidemias. A explicação moral, no entanto, estava na arrogância branco-europeia e na ganância do capitalismo nascente.

2 As Ordenações Manuelinas foram os três diferentes sistemas de preceitos jurídicos que reuniam toda a legislação portuguesa, de 1512-13 a 1605. Fizeram parte do esforço do rei Manuel I de Portugal para adequar a administração no Reino ao enorme crescimento do Império Português na era dos descobrimentos. Consideradas como o primeiro corpo legislativo impresso em Portugal, elas sucederam as Ordenações Afonsinas e vigoraram até a publicação das Ordenações Filipinas, durante a União Ibérica.

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A escravidão era aceita por quase todos os brancos como um benefício dado por Deus aos de sua cor, e tolerado por quase todos os resignados negros como uma condenação natural à sua cor. Foi sobre os ombros e a dor desses milhões de escravos traficados desde a África, ou nascidos nas Américas, que o capitalismo fez sua acumulação de capital.

O Brasil foi carregado pelos pés e moldado nas mãos dos escravos. E ao longo dos séculos, a Igreja Católica, os intelectuais, depois os alunos e professores das faculdades, os dirigentes, todos pensavam, transitavam socialmente e agiam com toda naturalidade diante da brutalidade da escravidão.

Se começou em 1533 ou cinco anos depois, o sistema escravocrata demoraria mais de 350 anos para ser abolido no Brasil e, em consequência, em todo o território americano, porque fomos o último país desse continente (com Cuba) a proibir a escravidão como meio oficial de atividade socioeconômica.

Estes quase quatro séculos, até 1888, representam uma das mais vergo-nhosas fases da história humana. Em nada menor do que o holocausto feito pelos nazistas na Alemanha e certamente ainda pior do que o horrível crime contra a humanidade no apartheid cometido pelos brancos na África do Sul.

Nesse período, o Brasil foi o país que mais recebeu escravos no mundo. Foram trazidos para cá cerca de 38% de todos os escravos africanos trafi-cados para as Américas. Entre 1501 e 1866 foram embarcados 5,5 milhões de africanos com destino ao Brasil, dos quais 4,9 milhões chegaram vivos (quase 700 mil africanos teriam morrido durante o trajeto da África ao Brasil)3 . A estimativa mais confiável, dada pelo IBGE4 , informa que o número total de africanos que chegou ao Brasil foi de quatro milhões5 , dos quais cerca de 720.000 eram mulheres. Estes quatro milhões foram apenas uma parte dos escravos que viveram no Brasil, porque ao longo de dez gerações, os milhões de filhos e seus descendentes também foram escravos. Embora não haja referências confiáveis, pode-se estimar que

3 The Trans-Atlantic Slave Trade Database, base de dados desenvolvida pela Emory University (EUA) em parceria com W.E.B. Du Bois Institute (Harvard University), The Universit of Hull (UK), UFRJ (Brasil) e Victoria University of Wellington (Nova Zelândia).

4 Censo de 1872, disponível em http://www.nphed.cedeplar.ufmg.br/5 No mesmo período, com destino à América do Norte foram embarcados 472 mil africanos,

dos quais 389 mil chegaram vivos (84 mil não teriam sobrevivido).

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pelo menos cinco milhões de escravos nasceram no Brasil, o que faz o total de 10 milhões de escravos ao longo dos séculos6 .

A escravidão não representou apenas um gesto econômico injusto, como a exploração dos trabalhadores pelo capitalismo, ou a sangria de rendas provocadas pelo imperialismo ao longo de séculos. A venda de pessoas e seus filhos, o trabalho obrigatório em regimes desumanos, a ausência de qualquer direito até mesmo ao corpo e à vida, o racismo, a possibilidade de ser morto por seu proprietário sem punição, são tratamentos que carac-terizam o máximo de brutalidade humana. Esta realidade ocorreu em outros momentos e circunstâncias, mas em nenhum outro momento na dimensão, na forma e na lógica vista ao longo dos séculos da exploração escravocrata nas Américas.

Ao contrário do ocorrido em outros lugares e períodos históricos, a escra-vidão praticada nas Américas legitimou a dominação de um povo a partir de critérios raciais com finalidade puramente econômica. Apesar de que na Antiguidade as diferenças raciais já eram apontadas, a justificativa da escravização naquela época foi mais a conquista dos povos por meio da guerra do que questões raciais. Não era a cor da pele que servia de sustentáculo ideológico para legitimar a escravidão. O que tornava uma pessoa em escravo era o fato de ter perdido uma guerra, e não o fato de pertencer a um grupo racial diferente de seus conquistadores. Por esse motivo, em Roma era possível encontrar escravos brancos, e nas Américas não. E não era escravo como peça mecânica.

Nas Américas, o escravo era ferramenta, e era ferramenta por ser negro. Não tinha valor, apenas preço, inferior a muitos dos demais insumos do processo produtivo. Eram chamados de “peças”, não gente.

O tipo de escravidão que se deu nas Américas a partir de seu descobrimento era inédito por ser baseado na dominação de um povo, pelo excesso de desumanização e devido a sua proporção em escala de milhões.

6 Este último dado é uma estimativa muito aberta feita pelo autor deste livro a partir das seguintes considerações: se convencionarmos 6 escravos chegados para cada escrava, e quatro filhos por mulher com mortalidade de 50% na infância,sendo um menino e uma menina, a população não cresceria, porque cada casal só teria um casal, mas a soma de todos os filhos, sem contar os mortos ou os abortados na infância, seria de 5 milhões, nos 350 anos. Esta é provavelmente uma estimativa conservadora, o número de nascidos e sobreviventes deve ter sido maior.

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Entre os mais brutais aspectos desta coisificação do escravo foi fazê-lo sentir-se coisa, perder o sentimento de humano semelhante aos brancos. Por sucessivas gerações, do nascimento à morte, se autoconsideravam como objetos, resignados a ver os filhos, esposos e irmãos como coisas. Esta coisificação assumida pelos brancos e também pelos escravos fez com que a abolição não chegasse a ser uma consideração por parte dos escravos em geral, nem da sociedade escravocrata, inclusive entre os mais humanistas intelectuais e religiosos.

Mesmo assim, o espírito da abolição esteve latente, ainda que inconscien-temente, em raras vozes de brancos e nas arriscadas fugas de negros. Era como se um espírito pairasse sobre as mentes, esperando para se manifestar.

Embora politicamente a Abolição foi um tema do final do século XIX, espiritualmente o Treze de Maio de 1888 teve início no começo do século XVI, quando o primeiro grupo de escravos chegou ao Brasil. Ou talvez antes, quando homens livres foram agarrados no território africano e transformados em mercadoria. Ali, na inconsciência dos assustados prisioneiros, num sonho de liberdade, estava o embrião da Abolição.

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A lenta descoberta da escravidão

Diferentemente da divisão nos EUA entre estados do Norte e estados do Sul, no território brasileiro não existiam áreas geográficas separando escravidão e liberdade. Isto impedia ver a própria escravidão. A escravidão não era percebida como uma anomalia, porque não havia a perspectiva de uma realidade não escravocrata. Eram os visitantes estrangeiros de passagem pelo Brasil, com distanciamento cultural, que percebiam a tragédia da escravidão. Ou então, já no século XIX, por brasileiros que haviam vivido na Europa.

Salvo raros episódios de descontentamento e até rebelião. Os escravos foram submetidos à situação de escravidão não apenas social e econômica, mas também psicológica. No máximo, usavam a cultura – a música e dança – como forma de afirmação, e alguns cultos religiosos como libertação espiritual. Mesmo assim, fazendo um processo de sincretismo que lhes permitia disfarçar a própria identidade, embranquecendo-a.

A ESCrAvIDão Não ErA vISTA

Mesmo quando alguns perceberam a escravidão, como padre Viera, ela foi descoberta sem que se descobrisse a Abolição. Percebeu-se a ignonímia do flagelo, mas sem o sentimento de opressão de um povo, ainda menos a crítica ao sistema. A maldade era vista sobre indivíduos, homens maltra-tados, famílias dispersas, mas ainda não a maldade do sistema.

Diferentemente de outros países onde a oposição à escravidão contou com manifestações de instituições religiosas, como o caso dos discursos do dominicano De las Casas, na América Central e no Caribe, no Brasil nossos padres e bispos chegaram a defender os indígenas, mas não os escravos. Padre Vieira, nosso maior orador, nunca se manifestou com clareza em oposição ao regime escravocrata. No máximo criticava certos casos de

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excesso de punição, da mesma maneira que alguns administradores também faziam esta crítica porque a punição poderia reduzir a eficiência do escravo no processo produtivo: deixar de trabalhar por causa de maus tratos ou de morte, reduzindo a produção e o patrimônio do dono.

No seu famoso Sermão da Primeira Dominga da Quaresma, em 1653, em S. Luís do Maranhão, apesar da crítica ao tratamento dado aos índios, de uma forma que não eliminava a servidão, não há palavra contrária ao escravismo dos negros, como pode ser visto pelos trechos abaixo onde o grande orador trata diretamente do assunto.

Todos os índios deste Estado, ou são os que vos servem como escravos, ou os que moram nas aldeias de El-Rei como livres, ou os que vivem no sertão em sua natural e ainda maior liberdade, os quais por esses rios se vão comprar ou resgatar - como dizem - dando o piedoso nome de resgate a uma venda tão forçada e violenta, que talvez se faz com a pistola nos peitos.

Diferentemente dos escravos negros, no caso dos índios havia aqueles que eram livres. Esta diferença permitia descobrir a escravidão, por antinomia; o que não acontecia com os negros, todos escravos, salvo raras exceções posteriores de alforria comprada ou concedida.

Mesmo com sua capacidade para ver a escravidão dos índios, Padre Vieira não despertou para a abolição, apenas para a necessidade de tratamento menos brutal aos nativos; sem referência ao sistema escravocrata que oprimia aos africanos e seus filhos.

Ao sertão se poderão fazer todos os anos entradas, em que verdadeiramente se resgatem os que estiverem - como se diz - em cordas, para ser comidos, e se lhes comutará esta crueldade em perpétuo cativeiro. Assim serão também cativos todos os que sem violência forem vendidos como escravos de seus inimigos, tomados em justa guerra, da qual serão juízes o governador de todo o Estado, o ouvidor-geral, o vigário do Maranhão ou Pará, e os prelados das quatro religiões, carmelitas, fran-ciscanos, mercenários, e da Companhia de Jesus. Todos os que deste juízo saírem qualificados por verdadeiramente cativos, se repartirão aos moradores pelo mesmo preço por que foram comprados. E os que não constar que a guerra em que foram tomados fora justa, que se fará deles? Todos serão aldeados em novas povoações, ou divididos pelas aldeias que hoje há, donde, repartidos com os demais índios delas pelos moradores, os servirão em seis meses do ano alternadamente de dois em dois, ficando os outros seis meses para tratarem de suas lavouras e famílias. De sorte que nesta forma todos os índios deste Estado servirão aos portugueses, ou como própria e inteiramente cativos, que são os de corda, os de guerra justa, e os que livre e voluntariamente quiserem servir, como dissemos dos primeiros; ou como meios cativos, que são todos os das antigas e novas aldeias, que, pelo bem e conservação do Estado, me consta que, sendo livres, se sujeitaram a nos servir e ajudar a metade do tempo de sua vida.

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É neste contexto de tolerância com a naturalidade da escravidão que ganha importância a resistência no Quilombo de Palmares no século XVII, sob a liderança de Zumbi – e anteriormente de Ganga-Zumba. Em Palmares foi possível criar um território livre da escravidão colonial, representando o primeiro gesto de alforria conquistada e mantida pela luta, e por isso reprimido com toda brutalidade pelos senhores brancos, com aceitação de toda a sociedade, e sem manifestações contrárias a essa dura repressão.

Mas, mesmo entre libertários como no Quilombo dos Palmares, a escravidão era tolerada como sistema, pois ainda não havia um movimento consciente da necessidade de abolição da escravatura em todo o território nacional.

Deve-se a José Murilo de Carvalho7 o relato histórico de que no próprio Quilombo dos Palmares havia escravidão, ainda que praticada nos moldes da cultura africana, longe da aberração de tratar escravos como ferra-menta econômica. De acordo com ele,

(...) os quilombos que sobreviviam mais tempo acabavam mantendo relações com a sociedade que os cercava, e esta sociedade era escravista. No próprio quilombo dos Palmares havia escravos. Não existiam linhas geográficas sepa-rando a escravidão da liberdade. [CARVALHO, 2009]

Era uma luta pela libertação pessoal, não por uma revolução social.

Não era apenas o regime econômico que era escravocrata: a cultura, a alma e a mente dos brasileiros, brancos e negros, era escravocrata; os primeiros como opressores, os outros como submissos. O desumanismo era tão grande que demorou a ser percebido8 .

Havia uma equação pela qual se o escravo, como uma máquina quebrando, morresse antes de alguns anos de trabalho, haveria uma perda no patri-mônio, porque o investimento não tinha produzido ainda o resultado que compensasse a sua compra. Alguns senhores mais inteligentes passavam a dar mais comida a seus escravos, como a seus animais, para que não morressem cedo e trabalhassem mais.

7 Carvalho, José Murilo de.“Cidadania no Brasil: o longo caminho”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

8 Como se verá em detalhes no capítulo III, “1888 ainda não terminou”, esta cegueira cultural e sua indignidade moral continua. É isso que permite a convivência tolerada até hoje entre a riqueza e a pobreza, a aceitação da brutal desigualdade de renda, e, sobretudo, a imoralidade como se aceita a desigualdade no acesso à saúde e à educação. Não é por acaso que todas as formas de desigualdade, até hoje, pune especialmente aos negros e seus descendentes.

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A inconfidência mineira (1789), primeiro gesto concreto visando à inde-pendência, não era abolicionista. Como também não foi a luta pela inde-pendência dos Estados Unidos, por líderes divididos entre proprietários de escravos e opositores à escravidão: conviviam em tolerância por neces-sidade política de uma aliança entre independentistas.

Foi com a Conjuração Baiana (1798) – chamada Revolução dos Alfaiates – que, pela primeira vez, o Brasil teve um movimento que se referia à Abolição. A Conjuração Baiana foi uma revolta popular, mais movimento social que eclodiu influenciado pelas ideias da Revolução Francesa. Os mulatos baianos – como eram chamados os revoltosos - se opunham não só ao colonialismo português, mas também às desigualdades sociais. Estavam motivados pelos ideais de igualdade, fraternidade e liberdade. Haviam aprendido com os haitianos que os negros poderiam vencer e por isso pregavam a abolição da escravatura. Tratar a escravidão como eticamente injustificável, e falava na necessidade de sua abolição.

Antes da Conjuração Baiana, ocorreram lutas e revoltas na colônia, mas nenhuma – incluindo-se os quilombos – possuía caráter abolicionista9 .

Em algumas delas poderia haver dissidentes que pregavam a abolição, mas estas posições nunca se tornaram unânimes nos movimentos porque, em sua maioria, os movimentos eram liderados por proprietários e membros da elite. Quando se falava em abolição, o movimento perdia apoio e estes proprietários se alinhavam ao governo imperial e escravocrata. Mas na Conjuração Baiana os revoltosos eram membros das camadas populares e não perdiam força quando falavam em abolição.

A proposta da abolição continuou ausente na pauta das revoltas que ocorreram no século XIX. A Conspiração dos Suassunas (em 1801 ocorrida em Pernambuco), a Revolta Liberal de 1821, a Revolta Independentista da Bahia (de 1821 a 1823), nenhuma delas reivindicou a abolição da escravatura.

9 Levante dos Tupinambás (1617-1621); Invasão e presença holandesa no Brasil, Guerra Luso-Ho-landesa e Insurreição Pernambucana (Guerra da Luz Divina) (1630-1654); Revolta de Amador Bueno (1641); Motim do Nosso Pai (1666); Revolução de Beckman (1684-1685); Confederação dos Cariris (1686-1692); Guerra dos Emboabas (início de 1700); Revolta do Sal (1710); Guerra dos Mascates (1710-1711); Motins do Maneta (1711); Revolta de Felipe dos Santos (1720); Guerra dos Manaus (1723-1728); Resistência Guaicuru (1725-1744); Guerra Guaranítica (1751-1757); Inconfidência Mineira (1789); Conjuração Carioca (1794-1795).

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Salvo pequenas dissidências internas no movimento, a Confederação do Equador, revolta separatista que ocorreu no Nordeste em 1823-1824, não possuía caráter abolicionista em suas propostas. A proposta de Paes de Andrade – presidente da província de Pernambuco - no sentido de libertar os escravos a exemplo do Haiti - que recentemente se libertara do domínio francês através de uma revolta popular - não tranquilizavam as elites, e para evitar a abolição os proprietários de terras preferiram colaborar com o governo imperial10 .

A Noite das Garrafadas no Rio de Janeiro (1831) e a Cabanagem no Pará (1834-1840), nenhuma carregava a bandeira da abolição entre seus motivos de luta.

De parte dos escravos, com exceção dos quilombos, a primeira rebelião organi-zada com referência à Abolição foi a Revolta dos Malês, em 1835, na cidade de Salvador. Mesmo assim, parcial: os Malês, escravos muçulmanos, se organi-zaram para conseguir a libertação dos escravos islâmicos, mas não dos cristãos. A revolta foi rapidamente controlada pelas forças oficiais e muitos escravos morreram; aqueles que sobreviveram aos confrontos e que não conseguiram fugir foram condenados à pena de morte, isolamento ou chibatadas.

Neste perfil de revoltas, os poucos abolicionistas eram indivíduos que jamais conseguiam ampliar o apoio a suas lutas e forças. Algo parecido ocorre hoje com aqueles que defendem uma revolução que permita colocar filhos de pobres em escolas equivalentes àquelas dos filhos de ricos. Ao ouvir esta ideia surge o mesmo riso sarcástico dos que viam a abolição da escravidão como uma quimera inalcançável.

A questão da abolição da escravatura esteve indiretamente referenciada na Revolução Farroupilha - revolta separatista e republicana ocorrida no Rio Grande do Sul entre 1835 e 1845. Os exércitos farroupilha contavam com estancieiros, militares-libertários, abolicionistas e escravos que buscavam a liberdade, em uma combinação e identidade ideológica sem qualquer unidade, salvo a república e o separatismo.

Depois da Revolução Farroupilha, a eclosão de revoltas pelo país continuou intensa, a maioria de caráter independentista, mas não mencionavam a abolição da escravatura.

10 Não é obra do acaso que, por ironia da história, a Monarquia foi derrubada no ano seguinte à abolição patrocinada pelo Imperador.

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A Insurreição Praieira, revolta ocorrida em Pernambuco entre 1848 e 1850, tinha caráter liberal e republicano; seus líderes defendiam, entre outras propostas, o voto livre e universal; a plena e absoluta liberdade de imprensa; o trabalho, como garantia da vida para o cidadão brasileiro; a indepen-dência dos poderes; a extinção do Poder Moderador que permitia ao Imperador intervir nos trabalhos legislativos; a completa reforma do Poder Judiciário, de forma a assegurar as garantias dos direitos individuais dos cidadãos; mas não cogitavam a abolição da escravatura.

Gilberto Freyre em seu Os escravos nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX11 fala que o lema da redação de O Povo, do Rio Grande do Sul, era “o Império brasileiro é uma anomalia incompatível com as luzes do século”- mesmo assim o jornal era pródigo em anúncios oferecendo escravos à venda, ou pedindo que castigassem os que fugiam. Seus redatores eram republicanos, mas escrava-gistas. Como foram muitos dos fundadores dos Estados Unidos da América.

Como exceção, de forma pioneira, importante, mas isolada, em 1823, logo depois da independência, José Bonifácio de Andrade e Silva apresentou à Assembleia Constituinte12 sua Representação, onde chamaria a escravidão de “cancro moral que ameaça os fundamentos da nação”. A Representação não foi proferida porque a Constituinte foi dissolvida, mas o documento foi preservado e publicado pelo autor em 1825.

O documento de Bonifácio de Andrade contém, embora ainda tímida, uma manifestação pelo fim da escravatura, carrega a dimensão da imorali-dade da escravidão e apela para uma mudança na mentalidade nacional que há 300 anos tolerava o escravismo como fato natural. Mesmo assim, apesar de se pronunciar pela emancipação, “por ser cristão”, propõe uma estratégia de fim do tráfico e melhor tratamento aos escravos até que fosse promovida uma progressiva emancipação.

Na bela biografia Amazing Grace, Eric Metaxas diz que o grande abolicio-nista inglês William Wilberforce iniciou seu caminho rumo à aprovação da lei que aboliu a escravidão na Inglaterra ao perceber que o desafio era mudar a mentalidade escravocrata, convencer a sociedade do mal ético e humano que ela representava.

11 FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. São Paulo, Global Editora, 2010. p.161.

12 SILVA, JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E. Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura, Typ. J. E. S. Cabral: Rio de Janeiro, 1840.

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Apesar de nosso verdadeiro Willbeforce ter sido Joaquim Nabuco, Bonifácio de Andrade, meio século antes, tendo vivido mais de dez anos na Europa, e sabendo, portanto, da luta de Wilbeforce e da abolição na Inglaterra, conseguiu livrar-se da mente escravocrata do Brasil e tentou romper com esta mentalidade nacional.

Em sua Representação à Constituinte ele apresenta frases como:

É de espantar pois que um tráfico tão contrário às leis da moral humana, e às santas máximas do evangelho, e até contra as leis de uma sã política, dure há tantos séculos entre homens que se dizem civilizados e cristãos! Mentem, nunca o foram.13

A sociedade civil tem por base primeira a justiça, e por fim principal a felicidade dos homens; mas que justiça tem um homem para roubar a liberdade de outro homem, e o que é pior, dos filhos deste homem, e dos filhos destes filhos? Mas dirão talvez que se favorecerdes a liberdade dos escravos será atacar a propriedade.14

Este comércio de carne humana é pois um cancro que rói as entranhas do Brasil (...)

Mas propõe uma emancipação apenas gradual:

(...) que os muitos escravos, que já temos, possam, às abas de um governo justo, propagar livre e naturalmente com as outras classes, uma vez que possam bem criar e sustentar seus filhos, tratando-se esta desgraçada raça africana com maior cristandade, até por interesse próprio; uma vez que se cuide enfim na emancipação gradual da escravatura, e se convertam brutos imorais em cidadãos úteis, ativos e morigerados.15

Concentra a proposta no fim do tráfico:

Acabe-se pois de uma vez o infame tráfico da escravatura africana; mas com isto não está tudo feito; é também preciso cuidar seriamente em melhorar a sorte dos escravos existentes, e tais cuidados são já um passo dado para a sua futura emancipação.16

Ou no melhor tratamento aos escravos:

Acabado o infame comércio de escravatura, já que somos forçados pela razão política a tolerar a existência dos atuais escravos, cumpre em primeiro lugar favorecer a sua gradual emancipação, e antes que consigamos ver o nosso país livre de todo deste cancro, o que levará tempo, desde já abrandemos o sofrimento dos escravos, favoreçamos, e aumentemos, todo os seus gozos domésticos e civis; instruamo-los no fundo da verdadeira religião de Jesus Cristo, e não em momices e superstições: por todos estes meios nós lhes daremos toda a civilização de que são capazes no seu desgraçado estado, despojando-os o menos que pudermos da dignidade de homens e cidadãos. Este é não só o nosso dever mas o nosso maior

13 [idem] p.2014 [idem] p.2115 [idem] p.2316 [idem] p.24

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interesse, porque só então conservando eles a esperança de virem a ser um dia nossos iguais em direitos, e começando a gozar desde já da liberdade e nobreza de alma, que só o vício é capaz de roubar-nos, eles nos servirão com fidelidade e amor; de inimigos se tornarão nossos amigos e clientes. Sejamos pois justos e benéficos, senhores, e sentiremos dentro da alma que não há situação mais deliciosa que a de um senhor carinhoso e humano, que vive sem medo e contente no meio de seus escravos, como no meio da sua própria família, que admira e goza do fervor com que estes desgraçados adivinham seus desejos, e obedecem a seus mandos, observa com júbilo celestial o como maridos e mulheres, filhos e netos, sãos e robustos, satisfeitos e risonhos, não só cultivam suas terras para enriquecê-lo, mas vêm voluntariamente oferecer-lhe até as premissas dos frutos de suas terrinhas, de sua caça e pesca, como a um Deus tutelar. É tempo pois que esses senhores bárbaros, que por desgraça nossa ainda pululam no Brasil, ouçam os brados da consciência e da humanidade, ou pelo menos o seu próprio interesse, senão, mais cedo do que pensam, serão unidos das suas injustiças, e da sua incorrigível barbaridade.Eu vou, finalmente, senhores, apresentar-vos os artigos, que podem ser objeto da nova lei que requeiro: discuti-os, emendai-os, ampliai-os segundo a vossa sabedoria e justiça. Para eles me aproveitei da legislação dos dinamarqueses e espanhóis, e mui principalmente da legislação de Moisés, que foi o único, entre os antigos, que se condoeu da sorte miserável dos escravos, não só por humanidade, que tanto reluz nas suas instituições, mas também pela sábia política de não ter inimigos caseiros, mas antes amigos, que pudessem defender o novo Estado dos hebreus, tomando as armas, quando preciso fosse, a favor de seus senhores, como já tinham feito os servos do patriarca Abraão antes dele.17

A MArChA DA ABoLIção

O chamado movimento abolicionista só adquiriu relevância a partir de 1850 e caráter amplo a partir de 1870, graças à Guerra da Tríplice Aliança (Guerra do Paraguai) e da participação de escravos e negros libertos como soldados e heróis.

O passo decisivo no sentido da Abolição foi proporcionado com a Guerra do Paraguai – 1864 a 1870. A inépcia do Brasil na mobilização inicial para a guerra despertou os civis para o atraso do país nas áreas básicas como educação e transporte. Além disso, a falta de voluntários aceitáveis para o Exército devido à ausência de um número significante de homens livres e aptos obrigou o recrutamento de escravos. Como retribuição ganhavam a liberdade. Logo após a guerra, sob a autoridade do Imperador D. Pedro II e de seus ministros, a Polícia do Exército foi incumbida de caçar os escravos fugidos e devolver aos seus senhores, ou seja, o Exército deveria

17 [idem] p.25

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cumprir o papel de “capitão do mato” a mando da Coroa. O resultado foi uma contradição. Essa anomalia tornou os oficiais do Exército - que presenciaram a boa atuação dos escravos na guerra, quando alforriados – mais receptivos às ideias abolicionistas depois da guerra.

A partir de então, o movimento abolicionista contou com inúmeros defen-sores da causa, muitos até anônimos. Além de Nabuco, se levantaram contra a escravidão nomes como André Rebouças, Alfredo Taunay, João Fernandes Clapp, Luís Gama, Antônio Pereira Rebouças, Rui Barbosa, José do Patrocínio, Tobias Barreto, Manuel Querino, Castro Alves, Antonio Bento, José Mariano Carneiro Cunha, Tavares Bastos, Benjamin Liberato Barroso, Antônio Tibúrcio, Justiniano Cerpa, Ferreira de Menezes, Vicente de Souza, Francisco Gê Acaiaba de Montezuma, Cristiano Otonni, João Alfredo, Jerônimo Sodré, Gusmão Lobo, Nicolau Moreira, Antônio Prado, Joaquim Serra, Ângelo Agostini, Pimenta Bueno, Souza Dantas e outros.

Mas só a partir da década de 1880, a campanha contra a escravidão inten-sificou-se em todo o Brasil. Especialmente a partir da decretação pelo Ceará da libertação dos escravos em 24 de março de 1884, quando um senhor de engenho, chamado Gil Ferreira Gomes, decidiu alforriar os seus escravos. Depois foi aos seus vizinhos, donos de escravos, e tentou convencê-los a fazer o mesmo. Alguns aceitaram, outros disseram que se ele queria que libertassem seus escravos, que os comprasse, depois poderia libertá-los, como novo dono.

Gil Gomes foi em busca de dinheiro em Fortaleza e, por intermédio da Sociedade Abolicionista Brasileira, conseguiu recursos e comprou todos os escravos que existiam na área, com a condição de que os vendedores não voltassem a comprar novos escravos. Fizeram esse grande acordo e a escravidão foi abolida em Acarape, que por isso, passou a se chamar Redenção.

Na solenidade de compra, alforria e compromisso de não mais comprar escravos, um dos donos, chamado Coronel Bernardino, disse que a maior mancha da sua vida era ter sido dono de escravos.

Após a decretação da abolição no Ceará, surgiram vários movimentos para ajudar os escravos a fugirem para esta província, nos moldes do que ocorreu por séculos no EUA entre o Sul escravocrata e o Norte libertário.

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Em São Paulo, surgiu o Movimento dos Caifazes, grupo que organizava a fuga dos escravos em direção ao Quilombo do Jabaquara, em Santos, e de lá os enviava para o Ceará. Liderado pelo paulista Antonio Bento os membros do Movimento dos Caifazes acomodavam os escravos em suas próprias residências, e pressionavam os proprietários a contratá-los como trabalhadores livres.

Em 8 de outubro de 1884 surgiu o Clube do Cupim , uma associação aboli-cionista criada no Recife, Pernambuco, por defensores do abolicionismo de vários pontos do Brasil. Seu idealizador foi o maranhense João Ramos, que sonhava em realizar em Pernambuco a mesma façanha dos cearenses. Os membros do Clube do Cupim tinham a missão de proteger os escravos, escondê-los e angariar fundos para comprar cartas de alforria. Historia-dores apontam que, além dos membros efetivos, o Clube do Cupim contava com mais de trezentos associados.

Devido às perseguições à sua sede, o Clube foi dissolvido em 1885, e passou a agir clandestinamente. Não se sabe ao certo quantos escravos o Clube do Cupim ajudou a libertar, mas a atuação deste movimento ficou famosa inclusive entre os membros do movimento abolicionista do Rio de Janeiro.

Quando estes movimentos surgem no Brasil, os EUA já tinham dois séculos de movimentos neste sentido, até graças ao fato de que a escravidão não era um sistema unânime em todo o território daquele país, porque as colônias do Norte nunca tiveram escravos. Havia uma linha que dividia o território norte-americano entre os estados com escravidão e aqueles sem escravidão, para onde, correndo riscos, alguns podiam fugir em busca da liberdade. No Brasil, qualquer escravo estava prisioneiro pela cor, em qualquer parte do território nacional, com exceção do Ceará, nos quatro anos que antecederam a Lei Áurea. Fugir de um lugar para outro não levava à liberdade além de alguns poucos meses ou dias.

Além disso, nos EUA, os protestantes anglicanos, batistas e sobretudo os quakers eram muito mais sensíveis à humanidade do escravo, inclusive ao direito à religião, do que a Igreja Católica, que legitimava a escravidão, tanto quanto na África do Sul a Igreja Reformada Holandesa legitimou

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o apartheid. De certa forma, foi a teologia desta Igreja que se antecipou como o embrião ideológico da maldita mentalidade que serviu de base à política e ao marco legal do apartheid18.

Entre a Representação de José Bonifácio de Andrada e a Lei Áurea se passaram 65 anos com raras vozes em defesa da extinção da escravatura, como mostra a cronologia abaixo, cuja parte sobre o Brasil está apresen-tada no livro A Abolição no Parlamento – 65 anos19

No resto da América Latina a escravidão foi abolida no momento da independência. Bolívar era antiescravidão. Nosso império se manteve escravocrata por mais 80 anos depois da Independência.

18 Ainda no século XVII, a Igreja Reformada (NGK) estabeleceu-se entre população de origem holandesa e, em 1850, acabou se dividindo por razões doutrinárias. Em 1912 a facção predomi-nante promulgou o tristemente conhecido “The Dutch Reformed Church Act”, negando aos negros a condição de membros. Para absorver o grande número de cristãos não brancos foram criadas pequenas denominações. Assim, antes mesmo de se tornar lei, já que foi estabelecido em 1948, o apartheid tinha sido praticado primeiramente no interior de uma ordem religiosa. As outras igrejas reformadas de origem holandesa, seguindo o lamentável exemplo, também estabeleceram organismos eclesiásticos separados para não brancos.

19 “A abolição no parlamento: 65 anos de luta”, (1823-1888) – 2.ed. –Brasília: Senado Federal, Secretaria Especial de Editoração e Publicação, 2012.

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ABoLIção NoS DEMAIS pAíSES DAS AMérICAS

DATA

pAíS INDEpENDêNCIA ABoLIção Tempo de Independência

com Escravidão (Anos)

hAITI (SAInT DOmInguE)

1804 1794 10

COlômBIA (VICE-REInO DE nOVA gRAnADA)

1810 1821 11

ChIlE 1818 1823 5

BOlíVIA 1825 1826 1

uRuguAI 1828 1842 19

EQuADOR (VICE-REInO DE nOVA gRAnADA)

1810 1852 42

ARgEnTInA 1816 1853 37

VEnEzuElA 1811 1854 43

pERu 1821 1855 34

BRASIl 1822 1888 66

A MArChA pArA A ABoLIção No BrASIL20

No BrASIL No ExTErIor

1772 –O julgamento do escravo fugitivo Somersett, abre precedente para que a Justiça britânica não mais apoie a escravidão.

1794 –primeiro país a proibir a escravidão, o haiti tem sua legislação abolicionista revogada por napoleão em 1802.

20 Informações retiradas das pesquisas, artigos e livros do pesquisador Seymour Drescher, principalmente livro referenciado a seguir: DRESCHER, Seymour. Abolição: Uma história da Escravidão e do Antiescravismo. São Paulo: Editora UNESP, 2011,736p. ISBN 978-85-393-0184-3.

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No BrASIL No ExTErIor

1807 –O parlamento britânico aprova o Abolition Act, que proibia o tráfico de escravos na Inglaterra.

1810 –

Tratado de Aliança e Amizade entre portugal e Inglaterra. Estabelece a abolição gradual da escravidão e delimita as possessões portuguesas na áfrica como as únicas que poderiam conti-nuar o tráfico.

1823Representação de José Bonifácio à Assembleia geral Constituinte legislativa do Império do Brasil.

é aprovada a lei que proíbe a escravidão no Chile.

1826

projeto de lei do Deputado Clemente pereira extinguindo o comércio de escravos (31-12-1840). –

Acordo Anglo-Brasileiro (extinção do tráfico), de 23-11-1826.

1829projeto dispondo sobre pena de morte para os escravos (11-04-1829).

Durante o governo de Vicente guerrero, é decretada a abolição da escravatura no méxico.

1830

projeto do Deputado Antonio F. França, acabando com a escravidão em 1880 (15-05-1830).

–projeto dos Deputados B. p. de Vasconcelos, mendes Viana, Duarte Silva e m. F. R. de Andrade, sobre a venda em hasta pública de escravos do Arsenal de marinha (17-07-1830).

1831

projeto dos deputados sobre extinção da escravidão no Brasil, compra de alforria e liberdade para os africanos contrabandeados (16-6-1831)

lei do governo Feijó (lei de 7-11-1831)

1832

Decreto de 12-04-1832 sobre exames de embarcações suspeitas de importação e reexportação de escravos.

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No BrASIL No ExTErIor

1833

proposta do ministro Aureliano de Souza sobe pena de morte para escravos que matassem ou ferissem seu senhor. (10-06-1833)

é sancionada no parlamento Inglês a extinção da escravatura, que é estendida a todo o Império britânico.

1834

Dois projetos do Senador J. A. Rodrigues de Carvalho sobre matrículas de escravos e apreensão de embarcações que tragam escravos (25-04-1834).

1835

lei n°4, de 10-06-1835 (pena de morte).

– projeto do Senador João V. de Carvalho, Conde lages, sobre a proibição de escravos no serviço dos estabelecimentos nacionais, exceto em agricultura ou criação (22-09-1835).

1837

Decreto sobre direito de petição de graça ao poder moderador na pena de morte (9-3-1837). projeto do Senado n° 133, do marquês de Barbacena, proibindo a importação de escravos para o Brasil (30-3-1837).

1844

nota do ministro paulino J. S. de Souza sobre violação do Acordo Anglo-Brasileiro de 1826 (11-1-1844).

1845

protesto de legação Imperial do Brasil em londres contra o “Bill” (25-7-1845). Slave Trade Suppression Act (Bill Aberdeen).

lei britânica que proibia o comércio de escravos entre a áfrica e a América.

O “Bill Aberdeen” (8-8-1845).

protesto do governo Imperial contra o “Bill Aberdeen” (22-10-1845).

1848 –

Em 1794, a convenção republicana francesa votou pela abolição nas suas colônias, mas somente em 1848 os escravos são emancipados.

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No BrASIL No ExTErIor

1850

projeto do Deputado Silva guimarães a favor da liberdade para os nascidos de ventre escravo (22-3-1850).

projetos dos Senadores holanda Cavalcanti e Cândido B. de Oliveira sobre o tráfico de escravos (maio de 1850).

pedido de discussão do art. 13 do pl n°133/1837 do marquês de Barbacena (Filisberto Caldeira Brant) sobre tráfico de escravos (12-7-1850).

lei n° 581, de 4-9-1850 (lei Eusébio de Queiroz) sobre tráfico de africanos.

Decreto n°708, de 14-10-1850, regulando a lei n°581.

1852

projeto do Deputado Silva guimarães considerando livres os que nasceram de ventre escravo (4-6-1852).

projeto contra tráfico de africanos (apud perdigão malheiro). –

1853

Resolução sobre a competência dos Auditores da marinha para processar e julgar réus envolvidos em tráfico (23-9-1853). A abolição da escravatura na Argentina

é confirmada pela Constituição de 1853Decreto n° 1.303 emancipando, depois de quatorze anos, os africanos livres que foram arre-matados por particulares.

1854

Decreto n° 1.310, de 2-1-1854 manda executar a lei de 10-6-1835 sem recurso, salvo o do poder moderador, em caso de pena de morte para escravos.

é decretado o fim da escravidão na Venezuela.

lei n° 731, de 5-6-1854 – punição para capitão ou mestre, piloto ou contramestre de embarcação que fizesse tráfico de escravos.

projetos nº 117 e s/nº do Barão de Cotegipe (J,m,Wanderlei) sobre comercio interprovincial de escravos e sobre alforria (11-8-1854)

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No BrASIL No ExTErIor

1860

projeto do Senador Silveira da mota proibindo a venda de escravos em leilões e exposições públicas (18-6-1860).

1862

projeto n° 39, de 1862 do Senador Silveira da mota proibindo venda de escravos em pregão e em exposição pública (9-5-1862).

1864

projeto do Senador Silveira da mota relacionando os que não podem possuir escravos (26-1-1864).

Decreto nº 3.310 de 24-9-1864, concedendo emancipação a todos os africanos livres no Império.

lei nº 1.237, de 24-9-1864 conside-rando os escravos pertencentes às propriedades agrícolas como objeto de hipoteca e de penhor.

1865

projeto do Senador Visconde de Jequitinhonha sobre alforria para os “achados de vento”.

Com o fim da guerra de Secessão nos Estados unidos (1861-1865), o presidente lincoln declara extinta a escravidão em todo o território norte-americano.

projeto do Senador Visconde de Jequitinhonha sobre a alforria aos escravos que estivessem sentado praça nos corpos de linha como voluntários.

projeto do Senador Silveira da motta proibindo estrangeiros residentes no Império de adquirirem ou possuírem escravos.

projeto de resolução do Senador Visconde de Jequitinhonha conside-rando livre o ventre da escrava que tivesse sido legada ou doada para serviço, por determinado tempo, sem a transmissão de domínio e sem cláusula expressa de voltar ao antigo cativeiro.

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No BrASIL No ExTErIor

1866

Exposição de motivo do marquês de São Vicente (pimenta Bueno) ao Imperador apresentando projetos de sua autoria.

projeto do marquês de São Vicente, n° 1 – liberdade para os filhos de mulher escrava.

projeto do marquês de São Vicente, n° 2 – criação de junta central protetora de emancipação em cada província.

projeto do marquês de São Vicente, n° 3 – matrícula de escravos (isentos de taxa) na coletoria das respectivas paróquias ou municípios.

projeto do marquês de São Vicente, n° 4 – libertando todos os escravos em cinco anos.

projeto do marquês de São Vicente, n° 5 – emancipação dos escravos de ordens religiosas.

Trecho de Joaquim nabuco sobre os projetos dos marquês de São Vicente.

Decreto da Assembléia geral legislativa estabelecendo o conceito de livre ventre.

projeto do Deputado Tavares Bastos mandando dar “cartas de alforria a todos os escravos e escravas da nação” (aditivo à lei do Orçamento) 26-6-1866.

1867

Fala de Trono de 22.5.1867 (cf, elemento servil)

Discurso de José Bonifácio sobre as questões financeira e servil (sob enfoque econômico), em 17.7.1867

projeto de José Thomaz nabuco de Araújo sobre emancipação de escravos (fusão dos cinco projetos do marquês de São Vicente, de 1866). De 20-08-1867.

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1869

projeto n° 30, de 1869, do Deputado manoel Francisco Correa, concedendo loterias para libertação de escravos.

portugal torna ilegal a escravidão, mas já havia decretado a liberdade dos escravos em seus territórios desde 1854.

projeto nº 31, de 1869, do Deputado manoel Francisco Correa, mandando proceder a nova matrícula de escravos e considerando livres os que fossem dela excluídos.

projeto s/nº 1869, proibindo venda de escravos em leilão hasta publica, (ACD, 1869, T II, p. 53)

Decreto nº 1.695, de 15-9-1869, proibindo venda de escravos em pregão e em exposição pública.

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1870

projeto nº 3, do Deputado Teodoro m. F. pereira da Silva (sobre penas para escravos)

projeto nº 18, 23-5-1870, do Deputado Araújo lima (libertando os filhos de mulheres escravas)

projeto nº19, de 23-5-1870, do Deputado perdigão malheiro (contra pena de açoites para escravos)

projeto n°20, de 23-5-1870, do Deputado perdigão malheiro (sobre alforria).

projeto n°21, de 23-5-1870 do Deputado perdigão malheiro (dando ao filho da mulher escrava a obrigação de servir gratuitamente ao senhor até 18 anos).

projeto nº 22, de 23-5-1870, do Deputado perdigão malheiro (sobre alforria).

projeto n°69, de 3-6-1870, de Theodoro m, p. da Silva (registro de escravos).

projeto n° 121, de 7-7-1870, do Deputado José de Alencar (isenção de taxa dos escravos comprados para serem libertados).

Relatório da Comissão Especial da Câmara dos Deputados, encarre-gada de dar parecer sobre o elemento servil.

projeto nº 200, de 1.870, apresen-tado pela Comissão encarregada de dar parecer sobre o elemento servil. Voto em separado de Rodrigo da Silva (membro da Comissão encarregada de dar parecer sobre o elemento servil).

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1871

parecer da Comissão Especial nomeada para estudar o projeto (contendo a proposta e as emendas).

lei n° 2.040 - de 28 de setembro de 1871.

Decreto n° 4.81 5, de 11-11-1871, regulamentando o artigo n° 6º do § lº da lei 2.040.

Decreto n° 4.835, de 11-12-1871, aprova o regulamento para a matrí-cula especial dos escravos e dos filhos livres de mulher escrava.

1872

Decreto n° 4.960, de 8-5-1872, alte-rando o regulamento aprovado pelo Decreto n° 4.835, na parte relativa a matrícula dos filhos livres de mulher escrava. Decreto n° 5.135, de 13-11-1872 regulamentando a lei n° 2.040, de 28-9-1871 (lei do Ventre livre).

–manifesto da Sociedade Abolicio-nista Baiana ressaltando o papel do legislador na luta pela abolição e propondo medidas de libertação de escravos com 50 anos (para homens) e 45 (para mulheres) e fixação do valor para o escravo e para seu trabalho (cf. auto-resgate pelo seu serviço).

1874 –Os escravos são emancipados na Costa do Ouro (atual gana) após a conquista do reino de Axante pelos ingleses.

1877projeto “g” e 3-5-1877, sobre o tráfico interprovincial –

1880manifesto da Sociedade Brasileira contra a escravidão. –

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1883

Discurso do Senador Silveira da mota em 26-6-1883, sobre a sentença dada por Juiz de Direito de pouso Alto a respeito da liber-dade de africano introduzido como escravo no Brasil depois da lei Feijó.

Discurso do Senador lafayette em 27-6-1883 sobre requerimento do Senador Silveira da mota.

Discurso do Senador Christiano Attoni, em 30-6-1883, na discussão do requerimento de Silveira da mota e sobre matrí-cula de escravos.

manifesto da Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro.

1884-1885

projeto “h”, de 1884, do Senador Silveira da motta pela libertação dos escravos do Império em sete anos.

Cronologia da tramitação legislativa do projeto de lei nº 48, de 15-7-1884, de Rodolfo Dantas.

parecer n° 48-A de Rui Barbosa sobre o projeto n° 48.

lei nº 3.270 de 28-9-1885 (lei dos Sexagenários).

Decreto n° 9.517 de 14.11.1885 que regula a lei n° 3.270, de 28.9.1885.

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1886

projeto “C” de 1° 6. 1886, do Senador Souza Dantas, que libe-raria os escravos em cinco anos.

O tráfico foi oficialmente extinto em Cuba, que passou a receber mão de obra chinesa para trabalhar no plantio de cana-de-açúcar.

Discurso do Senador Souza Dantas, em 30.7.1886, denunciando a morte de cinco escravos por açoites (com requerimento de informações).

Discurso de Ribeiro da luz, ministro da Justiça, sobre o requerimento de Souza Dantas.

Discurso do Senador martins apre-sentando projeto sobre a abolição de pena de açoites (2.8.1886).

Discurso do Senador Souza Dantas (pena de açoites), em 6.8.1886.

Discurso de Ribeiro luz (pena de açoites), 6-8-1886.

Discurso de José Bonifácio, em 11-8-1886, em debate com Ribeiro da luz.

Discurso do Senador Souza Dantas, em 16.08.1886 (pena de açoites)

Discurso do Senador Correia em 16.08.1886 (pena de açoites)

primeira discussão do plS “g”, de 1886 (açoites)

Discurso do Senador Ribeiro da luz (açoites) em 20.08.1886

Discurso do senador Souza Dantas (açoites) em 20.08.1886

Discurso de José Bonifácio (balanço do processo abolicionista, em 17.9.1886)

Discurso de José Bonifácio (em debate com Ribeiro da luz) sobre a reforma servil (8.10.1886)

projeto nº 87-A/1886, do Senado (4.10.1886), revogando o art. 60 do Código Criminal e a lei nº 4, de 10.06.1835.

projeto nº 89 do Deputado Affonso Celso Junior, sobre dedução anual do valor do escravo (12.10.1886)

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1887

projeto nº 1, do Deputado Affonso Celso Junior, libertando todos os escravos desde que prestassem serviço por mais dois anos a seus ex-senhores.

projeto nº 5, do Deputado Domingos Jaguaribe, libertando os escravos matriculados até 28-9-1888, com obrigação de trabalharem mais cinco anos (23.5.1887)

projeto “O”, do Senador Floriano de godoy, extinguindo a escravidão (24.9.1887)

projeto “p”, do Senador Escragnolle Taunay, extinguindo a escravidão em 1889 (24.9.1887)

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No BrASIL No ExTErIor

1888

Fala da princesa Isabel na abertura da legislatura, em 3.5.1888.

Discurso de Joaquim nabuco, em 7.5.1888, pela Abolição da Escravatura.

Original da proposta de Rodrigo Augusto da Silva, ministro da Agricultura.

Cronologia da tramitação legislativa da proposta de Rodrigo Augusto da Silva até transformar-se na lei n° 3.353 de 13.5.1888.

Discurso de Joaquim nabuco entusiasmado com a proposta.

Discurso do Deputado Duarte de Azevedo.

Discurso do Deputado Andrade Figueira.

Discurso do Deputado Joaquim nabuco.

Discurso do Barão de Cotegipe.

Discurso do Senador paulino de Souza.

Discurso do Senador Dantas.

Discurso do Senador Correia.

Discurso do Senador Affonso Celso.

lei n°3.353 de 13.5.1 888 “lei áurea” .

projeto n° 10, de 24.5.1888, do Deputado A. Coelho Rodrigues (indenização aos ex-senhores de escravos).

projeto “C”, de 1888, do Barão de Cotegipe autorizando “o governo emitir apólices da divida pública para indenização dos ex-proprieta-rios de escravos” (19.6.1888)

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1890

ADEnDO - Decisão de 14.12. 1890, assinada por Rui Barbosa, ministro da Fazenda, mandando “queimar todos os papéis, livros de matrícula e documentos relativos à escravidão existentes nas repartições do minis-tério da Fazenda”.

moção do Congresso (10.12.1890), congratulando-se com o governo provisório por haver mandado eliminar dos arquivos nacionais os últimos vestígios da escravidão no Brasil.

Circular n° 29, do ministério da Fazenda sobre a incineração dos livros de lançamento e as declarações feitas para a cobrança da taxa de escravos.

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Dez Dias de Maio

DIA 3 – QUINTA-FEIrA

No dia 3 de maio de 1888, a princesa Isabel, que ocupava o trono como Regente, enquanto seu pai estava em viagem ao Exterior, leu o Discurso da Coroa, na abertura da 20ª Legislatura da Assembleia Geral.

Estavam presentes quase todos os parlamentares, os Deputados eleitos com mandatos temporários e 73 Senadores escolhidos pelo Imperador, com cargos vitalícios.

É surpreendente como, tanto tempo depois, a Fala do Trono feita pela Prin-cesa aborda problemas parecidos com os de hoje: os acordos e desacordos internacionais, a insegurança, o funcionamento imperfeito da justiça, a crise na saúde, a necessidade de saneamento e de reforma na educação, especialmente no ensino técnico. Mas naquela época, a novidade foi a referência à escravidão.

Pela primeira vez, a Coroa Imperial brasileira manifestou-se oficial-mente sobre a necessidade de extinguir a escravidão no Brasil. Foi uma referência curta, mas fez imensa diferença. Finalmente, o Brasil assumia oficialmente a necessidade de enfrentar o problema do então chamado

“elemento servil”. Foram apenas três parágrafos no final do longo discurso, mas que finalmente propunha o que parecia óbvio: eliminar a vergonha do trabalho escravo. Foi o passo decisivo para completar uma luta e reorientar o futuro do País.

Ao final do seu discurso, as palavras da Princesa foram:A extinção do elemento servil, pelo influxo do sentimento nacional e das libe-ralidades particulares, em honra do Brasil, adiantou-se pacificamente de tal

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Dez dias de maio em 1888

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modo, que é hoje aspiração aclamada por todas as classes, com admiraveis exemplos de abnegação da parte dos proprietarios.Quando o proprio interesse privado vem espontaneamente collaborar para que o Brazil se desfaça da infeliz herança, que as necessidades da lavoura haviam mantido. Confio que não hesitareis em apagar do direito patrio a unica excepção que nelle figura em antagonismo com o espirito christão e liberal das nossas instituições.Mediante providências que acautelem a ordem na transformação do trabalho, apressem pela immigração o povoamento do país, facilitem as comunicações, utilizem as terras devolutas, desenvolvam o crédito agrícola e aviventem a industria nacional, pode-se asseverar que a produção sempre crescente tomará forte impulso e nos habilitará a chegar mais rapidamente aos nossos auspi-ciosos destinos.

Depois de 66 anos de Império, 48 anos no reinado de seu pai, a Princesa assumia que a Abolição (palavra que evitou usar durante o discurso) era uma aspiração quase generalizada no País. Não disse que éramos o último país do Ocidente a tomar esta decisão, décadas depois dos demais países latino-americanos, a exceção de Cuba. A fala era o resultado de um longo processo de quase 400 anos, desde que o primeiro grupo de escravos chegou ao Brasil, vindos da África. Durante esse período, a escravidão era normal, legal, mesmo sem uma lei que a autorizasse. Os poucos que lutaram pela libertação dos escravos, de Zumbi a Joaquim Nabuco, foram perseguidos, ridicularizados, considerados loucos.

Com aquele discurso, a vida parlamentar brasileira entrava, por dez dias, no mais intenso período de debate político reformista de nossa história. Desde então, o Congresso brasileiro teve grandes momentos, debates intensos, mas ou ficaram limitados a mudanças políticas, como nas Diretas, nos anos 1980, ou não foram consequentes, como na frustrada luta pelas Reformas de Base nos anos 60. Naqueles dez dias de maio de 1888, o Parlamento debateu e fez uma revolução no Brasil: a Abolição da Escravatura, mesmo que uma abolição até hoje incompleta.

As atas da Assembleia Geral Legislativa descrevem a solenidade:

A 1 hora da tarde, annunciando-se a chegada de Sua Alteza e Princesa Imperial Regente do império e de Seu Augusto Esposo Sua Alteza Real o Sr. Conde D’ Eu, foi a deputação, a convite do Sr. Presidente, recebl-os á entrada do Paço do Senado; e, entrando Suas Altezas Imperial e Real no salão, foram pelos Srs. Presidente e secretarios recebidos fora do estrado do throno.

Logo que Suas Altezas Imperial e Real tomaram assento nas cadeiras de espaldar collocadas abaixo do throno, e que assentaram-se os Srs. Deputados e senadores, Sua Alteza a Princeza Imperial Regente do Império leu a seguinte menssagem:*

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Augustos e Digníssimos Srs. Representantes da Nação. A vossa reunião, que sempre desperta fundadas esperanças, causa-Me grande jubilo pelo muito que

Confio em vossas luzes e patriotismo.

Sua Magestade o Imperador, Meu muito Amado Pai, obteve na Europa o proveito que os medicos prognosticaram. Tudo indica que brevemente Elle regressará a Patria para lhe consagrar de novo incansavel dedicação.

A Sua Magestade a Imperatriz, Minha Prezada Mãi, Deus concedeu a graça do conservar a saude afim de que pudesse continuar durante a viagem nos cuidados de desvelada esposa.

Satisfaz-Me a certeza de ser compartido por todos os Brazileiros o prazer com que vos Faço esta communicação.

Persistem as amigaveis relações do Imperio com as potencias estrangeiras.

A commisão mixta nomeada em virtude do tratado de 25 de Setembro de 1885, entre o Imperio e a Republica Argentina, adiantou quanto possivel os respectivos trabalhos e em breve os terminará.

Está concluida a missão do arbitro nomeado por parte do Brazil para completar as commissões mixtas internacionais reunidas em Santiago. Foram resolvidas por transacção as reclamações que as commissões não julgaram.

Celebrou-se nesta Côrte com os Plenipotenciarios das Republicas Argentinas e Oriental do Uruguay uma convenção sanitária que ainda não foi ratificada

A ordem e a tranquilidade publica não soffreram alteração. Alguns tumultos locaes, de origem restricta e fortuita, foram immediatamente apaziguados.

Espero de vossa sabedoria providencias que melhorem a condição dos juizes e tornem mais efectiva a sua responsabilidade. A organização do Ministerio Publico é de indeclinavel urgencia, como tambem a reforma do processo e julgamento dos delictos sujeitos a penas leves.

O governo renovará esforços para dotar a nossa Patria com o Codigo Civil fundado nas solidas bases da justiça e equidade.

Até hoje o Brasil discute a elaboração de um código civil. Se descesse hoje no Parlamento, a Princesa pensaria que seu discurso não fora escutado pelos políticos de 31 sucessivas legislaturas de quatro anos cada.

A força policial da capital do Imperio carece de organização mais adaptada ás funcções que lhe são proprias.

Muito importa á segurança publica aperfeiçoar a nossa legislação repressiva da ociosidade, no intuito de promover pelo trabalho a educação moral.

Quando observam o fato de que hoje morrem mais de 50.000 brasileiros por ano vítimas de violência, surge a dúvida se a Princesa é contemporânea ou se as lideranças nacionais continuam omissas até hoje neste assunto que ela considerou naquele dia de maio de 1888.

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O estado sanitário do paiz em geral é bom, e ha vastas regiões que offerecem permanentes condicções de salubridade.

Medidas adequadas impediram ou attenuaram certas enfermidades que perio-dicamente apparecem em alguns pontos do littoral, e nos preservaram do cholera-morbus que invadira Estados vizinhos.

Convém que attendais ainda ao saneamento da capital do Imperio, para o qual existem planos e estudos sujeitos ao vosso esclarecido exame.

Até hoje, a população brasileira tem um acesso restrito à água potável e esgoto, em suas casas.

A administração provincial e a municipal exigem reformas que alarguem a respectiva esphera de acção.

O aumento do federalismo é hoje ainda mais crítico, pela política fiscal certamente caótica, pela desigualdade financeira na renda e falta de poder dos Estados e Municípios.

Reorganizar o ensino nos seus diversos graus e ramos, diffundindo os conhe-cimentos mais uteis á vida pratica e preparando com estudos serios e bem dirigidos os aspirantes a carreiras que demandam superior cultura intelectual, é assumpto que muito se recommenda á vossa patriotica solicitude.

Apesar de estarmos melhor hoje do que há 125 anos, as preocupações da Princesa ainda são igualmente válidas. Apesar de substancial melhora no quadro da educação desde 1888, aumentou a brecha educacional (diferença entre o grau de necessidade e qualidade da educação ofertada). Em 1889, 65% da população era de analfabetos, mas eles conseguiam emprego, agora é de 10% (13 milhões), mas o analfabeto está totalmente excluído.

As rendas publicas cresceram no ultimo exercicio, e deram sobejamente para a despeza ordinaria. O que se despendeu de mais, por operações de credito, representa melhoramentos que, si não promettem immediata remuneração, asseguram bons effeitos economicos.

A mesma velha preocupação com o desequilíbrio nas contas públicas.

A nossa organização militar requer algumas reformas, entre as quaes avultam os codigos penal e do processo, cujos projectos dependem de vossa definitiva deliberação.

Também o código penal continua com discussão de forma cada vez mais urgente e dramática por causa da violência que então não existia nos níveis atuais.

A extinção do elemento servil, pelo influxo do sentimento nacional e das libe-ralidades particulares, em honra do Brazil, adiantou-se pacificamente de tal

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modo, que é hoje aspiração acclamada por todas as classes, com admiraveis exemplos de abnegação da parte dos proprietarios.

A Princesa constata que o Brasil só acaba com a escravidão quando este sistema já praticamente abolido: “adiantou-se pacificamente de tal modo, que é hoje aspiração aclamada por todas as classes”. E lembra que mesmo os proprietários já estavam emacipando seus escravos, “com admiráveis exemplos da abnegação da parte dos proprietários”, mas também porque o trabalho livre havia ficado mais eficiente.

A ESCrAvIDão Não FoI ABoLIDA, ELA SE ESgoToU.

O Brasil caminha para fazer o mesmo com o analfabetismo: esperar a morte dos analfabetos, até sua erradicação graças à lenta alfabetização de seus netos. Como foi feito com a Lei do Ventre Livre.

Quando o proprio interesse privado vem espontaneamente collaborar para que o Brazil se desfaça da infeliz herança, que as necessidades da lavoura haviam mantido. Confio que não hesitareis em apagar do direito patrio a unica excepção que nelle figura em antagonismo com o espirito christão e liberal das nossas instituições.

“Única exceção que nele figura em antagonismo com o espírito cristão e liberado das nossas instituições”. Na sua visão, o abandono dos ex-escravos, a desigualdade entre brancos e negros, isso não feria o espírito cristão.

Até hoje não se considera fugir ao espírito cristão o tratamento desigual entre os “homens livres”, especialmente as crianças. Não se considera ferir ao “espírito cristão” uma trabalhadora doméstica que prepara os filhos da patroa para ir a uma boa escola, depois à natação, ao inglês, ao balet, sabendo que os seus filhos estão em uma escola que não oferece aula, não promove aprendizagem, nem seu desenvolvimento intelectual. Na verdade sob a ilusão da matrícula condena seu filho à exclusão em comparação aos filhos dos outros que ela cuida. O excelente livro The Help de Brunson Green mostra a realidade das empregadas dométicas negras na década de 1960 no Sul dos Estados Unidos da América. Poucas coisas são mais dramáticas da realidade brasileira atual do que o serviço de empregadas domésticas cuidando dos filhos de seus patrões, vestindo-os com belos uniformes, mochilas com livros e computador para irem à escola de qualidade, enquanto seus próprios filhos, em casa sem escola ou

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com escola sem qualidade. É fácil saber o que passaria na cabeça destas trabalhadoras se tivessem plena consciência da injustiça que sofrem. Se não vissem a situação pelo lado da vantagem de ter o emprego, não percebendo que comemoram a própria exploração por causa da lógica do sistema em que vivem.

Mediante providencias que acautelem a ordem na transformação do trabalho, apressem pela immigração o povoamento do paiz, facilitem as comunica-ções, utilizem as terras devolutas, desenvolvam o credito agricola e aviventem a industria nacional, pode-se asseverar que a producção sempre crescente tomará forte impulso e nos habilitará a chegar mais rapidamente aos nossos auspiciosos destinos.

Apesar de sua referência à boa vontade da parte dos proprietários, o seu reinado durou apenas mais um ano e meio e uma das causas de sua derrota foi certamente sua ousadia da Abolição. Mesmo que o trabalho servil já estivesse obsoleto, uma vez que o trabalho livre era mais barato

- o custo em salário do trabalhador livre já era inferior ao custo de um escravo -, os proprietários viam o seu plantel de escravos como capital. A Abolição foi uma desapropriação de capital. Mesmo os proprietários que defendiam a emancipação para substituir os escravos pelo trabalho livre, porque este era mais barato, queriam uma indenização do governo para alforriar seus escravos. A princesa não se submeteu às fortíssimas pressões neste sentido. Mostrou-se mais comprometida socialmente do que as classes políticas de hoje que não aceitam um imposto sobre as grandes fortunas, nem fazer a reforma agrária.

Vale lembrar que o Imperador D. Pedro II optara por não ter escravos, o que corresponderia hoje a ter seus filhos na escola pública. Mas, no século XXI, os dirigentes políticos, responsáveis pela gestão dos serviços públicos, protegem-se da má qualidade usando os caros serviços públicos. As classes abastadas recebem fortes subsídios do tesouro, sob a forma de isenção fiscal, para proteger-se do abandono da escola pública do povo financiando a escola privada da elite.

Augustos e Digníssimos Senhores Representantes da Nação.

Muito elevada é a missão que as circumstancias actuaes vos assignalam. Tenho fé que correspondereis ao que o Brazil espera de vós.

Está aberta a sessão.

Izabel, Princeza Imperial Regente.

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Terminado este acto, retiraram-se Suas Altezas Imperial e Real com o mesmo ceremonial com que foram recebidos e immediatamente o Sr. Presidente levantou a sessão.

Três parágrafos do discurso indicavam de que aquela Legislatura teria o privilégio de realizar o maior feito político de impacto social do Brasil, até hoje. De lá para cá tivemos a Consolidação das Leis do Trabalho, a Lei do Salário Mínimo, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, sete Constitui-ções, o Voto Universal, inclusive do analfabeto, recentemente a Lei do Piso Nacional do Salário dos Professores e a PEC das Domést icas. Cada lei trouxe uma evolução social, mas nenhuma trouxe uma ruptura, como foi o caso da Lei Áurea. Mesmo assim, pela análise dos três parágrafos, nota-se o cuidado da Princesa com a reação dos latifundiários donos de escravos.

Quando faz uma lei libertadora a favor da parte excluída, o poder no Brasil se dirige aos ricos e incluídos. A Princesa diz que os donos dos escravos estão espontaneamente colaborando para o fim da escravidão. O que, em parte, era verdade, porque a escravidão já estava exaurida, era questão de tempo: a Proibição do Tráfico, a Lei do Ventre Livre, a Libertação dos Sexagenários, o descontrole sobre os escravos, o fato de que o Exército deixou de perseguir e passou a proteger escravos fugitivos, os movimentos independentes de alforria, faziam o “elemento servil” agonizar como sistema social e econômico.

Vale a pena lembrar também a insensibilidade da elite, quando a Princesa diz que a escravidão é a única exceção brasileira ao espírito cristão. Como se a pobreza, o analfabetismo e a desigualdade não o ferissem também.

Não é por acaso que, além da Abolição, nada mais mudou substancialmente na busca da emancipação do povo pobre do Brasil. Em 1888, havia 800 mil escravos no Brasil, em 2014, precisa-se do programa Bolsa Família para atender 53 milhões de pessoas oferecendo renda básica de R$ 77,00per capita por mês, chegando com demais benefícios à média de R$167,00. Em vez de emancipar, a Lei Áurea apenas tornou a escravidão ilegal, mas não a eliminou porque sem educação de base com qualidade é possível reduzir a fome, mas não emancipar o beneficiário. Nestes anos, dezenas de milhões de brasileiros viveram e morreram em condições materiais próximas às dos escravos de antes de 13 de maio de 1888.

Depois da fala da Princesa, o governo de João Alfredo trabalhou na elabo-ração do texto do projeto de lei. Uma minuta manuscrita, que afirmam

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ter sido do punho de Joaquim Nabuco, e está no arquivo da fundação que leva seu nome, em Recife, foi a base do texto enviado ao Parlamento pela Câmara dos Deputados, no dia 7 de maio.

Era o projeto de uma lei curta, talvez a menor em toda a história legal do Brasil, com apenas um artigo de oito palavras além do título e do

“Revogam-se as disposições em contrário”. Possivelmente a menor e a mais importante socialmente: a única lei realmente libertária.

Apesar do longo processo anterior, de quase 400 anos e da surpreen-dente simplicidade da lei, sua votação não foi um processo simples, nem unanimemente favorável, embora tenha levado apenas dez dias, da Fala do Trono à sanção da lei, e somente cinco, contando da sua apresentação na Assembleia.

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DIA 7 – SEgUNDA-FEIrA

Quatro dias depois da Fala do Trono, incluindo sábado e domingo, Joaquim Nabuco discursou anunciando a chegada próxima do projeto de lei. Na sua primeira frase, ele se refere a um Deputado que fizera um discurso contrário à aprovação da Lei Áurea:

Sr. Presidente, ao contrario do meu illustre amigo, deputado pelo Rio Grande do Sul, cuja intenção ficou mais clara do que elle nos disse e cujas ironias cahiram sobre o ministerio e a Corôa, eu levanto-me para offerecer ao honrado presidente do conselho, para a realização do seu grande programma, o apoio desinteressado, si não de toda, de uma parte daquela fracção do partido que foi sempre antes de tudo abolicionista. (Muito bem!)

Trata-se de uma referência à tentativa, que ele previa, de procrastinar a votação da lei, provocando um debate regimental que adiaria, porque já não havia como impedir a aprovação do projeto de lei. Essa era a estra-tégia dos escravagistas. Eles já não podiam ser abertamente contra, mas diziam que o País não suportaria o fim do trabalho escravo. Era preciso apoiar o fim da escravidão, mas “não já”, “a economia e sociedade preci-savam de tempo”.

Quase 40 anos depois da proibição do tráfico, quase 30 anos depois da libertação dos filhos dos escravos, e alguns anos depois da emancipação dos sexagenários, a escravidão iria acabar naturalmente pela biologia, matando os que ainda não eram beneficiados pelas leis“generosas”, mas não abolicionistas. Mesmo assim, os escravagistas queriam ganhar tempo, motivados pela expectativa de compra dos escravos feita pelo governo: a abolição indenizada. Numa situação muito parecida com a disputa, no final do século XX, pela tardia reforma agrária, queriam transformar a nobreza da Abolição no negócio da desapropriação.

Não, Sr. Presidente, não é este o momento de se fazer ouvir a voz dos partidos. Nós nos achamos á beira da catadupa dos destinos nacionaes e junto della é tão impossivel ouvir a voz dos partidos, como seria impossivel perceber o zumbir dos insectos atordoados que atravessam as quedas do Niagara. (Apoiados. Muito bem!)

A ideia de não se orientar pela voz dos partidos é muito atual. Joaquim Nabuco percebeu e explicitou que nenhum dos três partidos era abolicio-nista e em todos havia abolicionistas. O mesmo acontece hoje sobre qual-quer dos grandes problemas nacionais. Nenhum partido tem identidade com um dos problemas e em cada um há defensores das boas propostas em discussão.

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É este incomparavelmente o maior momento de nossa patria, a geração actual ainda não sentiu cousa semelhante e precisamos lembrar-nos do que nossos paes que viram o 7 de Abril21 ouviram aos nossos avós que viram a Independencia, para imaginar que nesta terra brazileira houve de geração em geração uma cadeia de emoções perecidas com esta. (Apoiados. Muito bem!).

Dentro dos limites de nossa vida nacional é feito o desconto da marcha de um século todo, 1888 é um maior acontecimento para o Brazil do que 1780 foi para a França. (Apoiados. Muito bem, bravos.) É litteralmente uma nova patria que começa e assim como á mudança de uma fórma de governo cahem automati-camente no vacuo ás instituições que a sustentavam ou viviam della, é o caso de perguntar, Sr. presidente, si os nossos velhos partidos, manchados com o sangue de uma raça, responsáveis pelos horrores de uma legislação barbara, barbaramente executada, não deviam ser na hora da libertação nacional, como o bode emissario nas festas de Israel, expulsos para o deserto, carregados com as faltas e as maldições da nação purificada.

A nação, neste momento, não faz distincção de partidos, ella está toda entregue á emoção do ficar livre, ella confunde no mesmo sentimento Dantas e João Alfredo, José Bonifacio morto e Antônio Prado vivo; ella não pergunta si quem vai fazer a abolição é liberal ou é conservador, como á repercussão estrondosa das victorias contra o Paraguay, para deixar pulsar os seus corações de brazileiros, os conservadores não queriam saber si Osorio, o vencedor de 24 de maio, era liberal, nem os liberais indagavam si quem tinha tomado Assumpção, Caxias, era conservador. (Apoiados e bravos nas galerias.)

Este pensamento, velho de mais de cem anos, é perfeitamente atual: nossos partidos continuam manchados com o sangue do povo, responsáveis pelos horrores da ausência de legislações civilizadoras.

Embora fosse um filiado do Partido Liberal, Nabuco era, sobretudo, um militante da causa abolicionista. Por isso, defendeu a lei, mesmo o projeto lei tendo chegado ao Parlamento pelas mãos de um governo do Partido Conser-vador. Essa foi uma das provas de sua grandeza de estadista, mostrando não ser um político que pensava na próxima eleição, mas sim na causa que defendia. Hoje, vemos políticos da oposição que defendem uma causa e mudam de lado quando o governo passa a defendê-la. E, ainda mais comum, partidos que ao chegarem ao poder agem cometendo todos os atos que antes criticavam quando na oposição. Porque não têm causa, apenas reivindicações comprometidas com o voto da próxima eleição. Os liberais eram, em sua maioria, favoráveis à Abolição, mas o processo polí-tico e o destino histórico fizeram com que fosse o gabinete presidido pelo conservador João Alfredo que apresentasse a Lei Áurea, e Nabuco apoiou.

Quando a abolição estiver feita, Sr. Presidente, então sim, podem recomeçar essas nossas lutas partidarias que se travam de facto em torno das comarcas

21 7 de Abril de 1831, o dia em que D. Pedro I abdicou do trono.

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para juizes de direito e das patentes de guarda nacional (riso), parecendo que se travam em torno de ficções constitucionaes; neste momento, porém, o terreno é outro e muito diverso, porque do que se trata é nada menos do que de fechar a cova americana, de que falla Michelet: onde, por amor do ouro, foram atirados dous mundos, negro por sobre o índio. (Apoiados. Muito bem!)

Seria bom se os políticos ainda colocassem de lado seus interesses menores e imediatos, e buscassem um grande acordo para definir um programa

– como fizeram com a Lei Áurea – para enfrentar a exclusão social, para fazer uma Segunda Abolição: um pacto que garantisse escola igual para todos, com o filho do empregado na mesma escola que o filho do patrão. Acabando com a escravidão do século XXI: a desigualdade na educação que escraviza os pobres, e a falta de qualidade na educação que escraviza o País inteiro, no cenário global.

Na Inglaterra, quase cem anos antes, William Wilberforce defendeu e convenceu a opinião pública ao criticar a escravidão como uma indecência contra a moral cristã. Hoje a indecência é oferecer escola com qualidade desigual: é contra a moral cristã não convidar todas as crianças para a mesma mesa da educação.

Depois da abolição, podem voltar os velhos partidos com os seus chefes aos quaes, si eu tivesse que pedir alguma cousa, não pediria, por certo, Sr. Presidente, a coherencia rigorosa que o meu illustre amigo, no fim do seu discurso, exigiu como primeira condição para um politico impôr-se ao respeito da opinião; eu lhes pediria exactamente o contrario, isto é, uma incoherencia tão grande que parecessem outros e a nação não os pudesse reconhecer pelos mesmos que fizeram o nosso povo perder a fé no governo parlamentar.

Esta parte é de fina ironia. Pede a incoerência daqueles que sempre estiveram ao lado da manutenção da escravidão. Mostra que a coerência impatriótica, antissocial, é um pecado maior do que a incoerência dos que mudam de lado para se colocarem a favor da Pátria e do povo.

Sim, Sr. Presidente, si é o Partido Conservador que vai declarar abolida a escra-vidão no Brazil, eu digo-o sem recriminação, a culpa dessa substituição de papeis ha de recahir toda sobre essa dissidencia liberal de 1884, que impediu o ministerio Dantas de vencer as eleições daquelle anno, de arrastar consigo o eleitorado todo do paiz, e de realizar uma reforma muito mais larga do que seu projecto. (Apoiados.)

Totalmente válido para hoje: os progressistas, inclusive de esquerda, não foram capazes, com os últimos governos democráticos, de fazer as trans-formações necessárias a um abolicionismo moderno. No lugar de escola para os filhos, repartiram migalhas de pequenas distribuições de renda,

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por bolsas, aos pais. Fizeram uma lei que oferece direitos trabalhistas às empregadas domésticas, mas mantiveram os filhos delas em escolas totalmente diferenciadas daquelas que recebem os filhos de seus patrões dos quais elas cuidam.

Da mesma forma como os condenados ao trabalho nos “lixões” come-moram os luxos dos lixos dos ricos, sem os quais eles não sobreviveriam.

Houve, porém, sempre no Partido Liberal uma minoria de homens timidos que fizeram com que os grandes nomes de nossa historia, na questão que mais interessa ao Partido Liberal, a da abolição, isto é, da formação do povo brazileiro, fossem conservadores em vez de liberaes: foram elles que impediram Antonio Carlos de fazer o que fez Eusébio, que impediram Zacharias de fazer o que fez Rio Branco e que impediram Dantas de fazer o que vai fazer João Alfredo, que nunca tiveram fé nem no povo, nem nas idéas liberais. (Muitos apoiados). Mas o escravo já tem sido por demais explorado ...

Aqui ele faz o mea culpa dos liberais. O governo liberal de Dantas, que havia durado 11 meses, foi seguido de mais um gabinete liberal, de José Antonio Saraiva, que durou só três meses. A seguir, os conservadores retornaram ao poder, com o Barão de Cotegipe, que governou por três anos, até que viesse o gabinete de João Alfredo, cujo destino e lucidez reservaram-lhe a chance de apresentar e defender a Abolição. Se a Abolição chegava pelas mãos dos conservadores, é porque os liberais não tinham sabido aproveitar o momento deles, quando até três anos antes tinham estado no governo. Isto lembra a história atual do Brasil: como os governos liderados por partidos e pessoas progressistas, entre 1994 e 2014, nenhum deu os saltos que o País precisa, limitando-se apenas às minúsculas transferências de renda aos pobres, sem medidas concretas para erradicar a pobreza. Da mesma maneira que ao longo do século XIX, lentamente em doses homeopáticas abrandava-se, sem abolir, o regime servil da escravidão.

Dá para imaginar, daqui a alguns anos, os educacionistas apoiando leis que façam a revolução educacional num governo conservador, lembrando que, se isso não ocorreu antes, foi porque políticos progressistas não quiseram fazer a revolução de que o Brasil precisa, e com a qual eles haviam se comprometido. Muito mais culpa há agora, quando o regime é presidencialista e tem governos liderados por políticos com trajetórias muito mais à esquerda do que os liberais do século XIX.

Eu sei, Sr. Presidente, que os liberaes estão soffrendo em todas as provincias do jugo conservador, mas estão soffrendo em suas garantias constitucionaes apenas, ao passo que os escravos estão soffrendo em suas pessoas e no seu

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corpo. Antes de pensar nos nossos correligionarios, temos que pensar em nossas victimas, e os escravos o são, victimas da politica estreita até hoje de ambos os partidos... É exactamente porque esquecemos o que estamos soffrendo para salval-os do captiveiro em que ainda estão por nossa culpa, mostrando assim sermos abolicionistas antes de sermos partidarios, que ha merito no apoio que prestamos ao ministerio conservador. Nós temos muito que nos fazer perdoar pela raça negra e eu acredito estar servindo os interesses do Partido Liberal, que não é outra cousa sinão o povo, o qual não é outra cousa em vastissima extensão sinão a raça negra, tomando a attitude que tomo ao lado do gabinete no baptismo da liberdade que elle vai agora receber...

Nabuco põe a Causa da Abolição acima do partido. Uma lição para os polí-ticos de hoje– considerava-se servindo ao seu Partido Liberal ao defender o projeto de lei oriundo do governo do Partido Conservador, porque era sua causa, a causa dos escravos que estava em discussão.

Discutir, Sr. Presidente, si é Partido Liberal ou o Partido Conservador que tem direito de fazer esta reforma, é cahir sob o rigor de uma etiqueta constitucional muito peior do que essa etiqueta monarchica, que fazia um rei de Hespanha morrer suffocado por não se achar perto o camarista que tinha direito de tocar no brazeiro. (Apoiados. Riso) Por ventura, os escravos são liberais? (Riso. Apoiados) Fazem elles questão de serem salvos por este ou por aquelle partido? Não, Sr. Presidente, o que elles querem é ver-se livres do captiveiro, seja quem for o seu libertador, e eu colloco-me no mesmo ponto de vista que elles e penso que essa é a unica verdadeira theoria constitucional, porque é a única de accôrdo com a urgência da salvação que elles esperam de nós...

Eu comparei em Pernambuco esta lei á uma capella dos Jesuitas perto de Roma, onde se vêm nas paredes, como trophéus da religião, os punhaes e as pistolas entregues pelos bandidos arrependidos, e disse que essa lei era a verdadeira igreja nacional onde o Partido Conservador vinha depôr as armas com que combatera a abolição e os escravos e na qual elle tinha o mesmo direito de ajoelhar-se e rezar que os mais antigos abolicionistas... É que, Sr. Presidente, o exemplo dado hoje pelo Partido Conservador corresponde á noção do único verdadeiro conservatismo. Ainda recentemente um estadista inglez, em cujo procedimento eu procuro muitas vezes inspirar-me, o Sr. John Morley, querendo exemplificar o que elle entendia pelo verdadeiro espirito conservador em politica, tomava o exemplo de Lincoln. Ao subir á presidencia em 1860, Lincoln queria somente que a escravidão não se estendesse aos novos territorios da União, que se respeitasse o direito dos Estados de tratar exclusivamente da questão, mas que, á medida que os acontecimentos se foram desdobrando, resolveu dar o golpe final e decretou a abolição no dia em que as victorias de Grant puderam da força de lei em todo o territorio americano á proclamação do governo de Washington.

Esse é o conservatismo nacional e politico, Sr. Presidente, por opposição ao conservatismo doutrinario, que até hoje tem perdido todas as instituições que se confiaram á sua obstinação e á sua cegueira e que ainda não resuscitou nenhuma com o seu despeito.

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Nabuco faz um discurso moral, grande, erudito, mas não se esquece do jogo da política no chão do Parlamento e investe contra a tentativa em marcha, para impedir a votação da lei. Mostra-se um estadista que conhece o regimento da Casa.

O meu illustre amigo, deputado pelo Rio Grande do Sul, fallou-nos da illegitimi-dade do actual gabinete. O que é que constitue tal illegimidade? Ter a Princeza Imperial demitido um ministerio que gozara até ao ultimo dia de sessão passada da confiança da Camara? Mas não o demitiu ella por factos supervenientes e inspirando-se com tal segurança no pensamento da illustre maioria que o novo gabinete veio encontrar o mais forte apoio nesta Camara? Ha muito tempo, Sr. Presidente, que eu abandonei o caminho das subtilezas constitucionaes que se adaptam a todas as situações possiveis. Pelo estado do nosso povo e pela extensão do nosso territorio, nós teremos por muito tempo, sob a monarchia ou sob a republica, que viver sob uma dictadura de facto. Ha de haver sempre uma vontade directora, seja do monarcha, seja do presidente. Esta é a verdade, tudo mais são puras ficções sem nenhuma realidade a que correspondam no paiz.

Pois bem, todo o meu esforço em politica ha bastantes annos tem consistido em que essa dictadura de facto se inspire nas necessidades do nosso povo até hoje privado de tecto, de educação e de garantias e que ella comprehenda que a verdadeira nação brazileira é cousa muito diversa das classes que se fazem representar e que tomam interesse na vida politica do paiz. E para as necessi-dades moraes e materiaes da vastissima camada inferior que formam o nosso povo, e das quaes a abolição é a primeira, sem duvida alguma, que eu tenho trabalhado para voltar as vistas da dictadura existente.

Joaquim Nabuco percebeu a resistência que encontraria entre alguns de seus pares, e mostrou capacidade de antecipar-se aos problemas e atrair apoio, usando inclusive brechas do Regimento. Logo no terceiro parágrafo do seu discurso, ele busca construir a unidade, mesmo sabendo das dificuldades.

É possível imaginar o clima que prevalecia no Parlamento naquele dia: euforia nas galerias, constrangimento de alguns dos parlamentares, entusiasmo dos abolicionistas. Um Parlamento com causa. Diferente do clima apático do Congresso vazio de causas e bandeiras do início (até quando?) do século XXI.

Agora, porém, o que se vê, Sr. Presidente é essa dictadura de facto assumir o caracter de governo nacional no mais largo sentido da palavra, promovendo a abolição, e é por isto que eu entendo que, longe de merecer as censuras, as ironias e até os ultrages que estão sendo accumulados pelo despeito partidario sobre a sua cabeça, a Princeza Imperial merece a maxima gratidão do nosso povo. Nos mezes em que o Imperador lhe confiou o imperio, ella achou tempo de fazer delle uma patria, um paiz livre, com uma lagrima do seu coração de mãi ella cimentou em um dia essa união do throno com o povo que, com toda a sua experiencia dos homens e das cousas, seu pae não pôde consolidar inteiramente

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em 47 annos de reinado. (Apoiados.) Não ha nada mais bello, Sr. Presidente. A simples intuição de uma brazileira, que não é mais do que qualquer de nossas irmãs, com a mesma singeleza, a mesma honestidade e o mesmo carinho, escreve a mais bella pagina de nossa historia e illumina o reinado inteiro do seu pae. 1887 é todo delle, mas 1888 é todo della.

Ha neste momento uma manhã mais clara em torno dos berços, uma tarde mais serena em torno dos tumulos, uma atmosphera mais pura no interior do lar... Os navios levarão amanhã por todos os mares a bandeira lavada da grande nodoa que a manchava, os nossos compatriotas nos pontos mais longiquos da terra onde se achem sentirão que é um titulo novo de orgulho e de honra o nome de Brazileiro... A quem se deve essa mutação tão rapida si não á Princeza Imperial? Os grandes pensamentos vêm do coração, ao dito de Vauvenargues, Sr. Presi-dente, pode-se accrescentar – e tambem os grandes reinados, como esta curta regência que em tão pouco tempo deu ao sentimento de partida outra douçura e á palavra humanidade outro sentido... (Apoiados. Muito bem!)

O reconhecimento pelo gesto da Princesa não era somente o sentimento de um monarquista, era a constatação do papel decisivo que ela teve ao apressar ainda que por poucos anos a decisão de abolir a escravatura no Brasil. A Abolição era inevitável, mas ela decidiu, contra muitos, inclusive ao seu redor, correr o risco de apresentar a lei emancipatória. Enfrentou resistências com rigor que não se vê hoje em dia. É certo que não vieram com a reforma agrária – terra para todos –, nem a reforma educacional – escola igual para todos –, nem o fim do preconceito racial. Mas finalmente, foi dado o passo decisivo para abolir a escravidão.

O nobre Presidente do Conselho mostrou comprehender que o que faz o homem de Estado é a imaginação que penetra o mais fundo do coração do povo e lhe adevinha o segredo de que, ás vezes, elle mesmo não tem consciencia. Leis, grande leis encommendam-se, Sr. Presidente, á sciencia dos juristas; a eloquencia acha-se ás vezes em inspirações alheias, mas essa chamma sagrada que a alma do povo accende de muito longe no coração do estadista, que põe o coração de Bismarck em contacto com o coração da Allemanha, o de um Gavour com o da Italia, o de um Gladstone com o da Inglaterra e hoje o de um João Alfredo com o do Brazil (applausos), inspiração do verdadeiro homem de estado, Sr. Presidente, não se encommenda, não se aprende, não se estuda, é uma revelação divina dessa luz que illumina o universo e que dirige a humanidade.

Eu, Sr. Presidente, tenho dez annos de vida politica e nesse tempo tenho visto como neste paiz crescem e consolidam-se as reputações solitarias dos homens que se inspiram somente nos principios... Eu vi com que reputação subiu o Sr. Dantas e com que reputação baixou ao tumulo José Bonifacio, eu vi com que reputação appareceu de repente o Sr. Antônio Prado... em todos os casos, eu tenho visto sempre a reputação politica dos homens que se inspiram em si mesmos e não egoisticamente, mas como instrumentos desinteressados de uma idéa, crescer cada vez mais forte, ao passo que os outros, para ficar de pé, precisam encostar-se uns aos outros, apoiar mutuamente as suas ambições contrarias,

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e ainda assim um sopro da opinião os abateria, si o meu verdadeiro ponto de apoio não fosse essa grande e mentirosa ficção do Senado Vitalicio. (Muito bem!)

É uma lição de humanismo, porque fala da sintonia da alma do estadista com a alma do seu povo. Faz um enfático reconhecimento ao seu adversário João Alfredo, chefe de governo naquele momento, que não só era de outro partido, mas também seu duro opositor em Pernambuco, contra o qual se batera especialmente nas eleições de 1884, quando, por manipulação e abuso de poder, tentaram impedir sua eleição. O Senado publicou um lúcido livro com os discursos de Joaquim Nabuco nessa campanha de 188422 . Uma campanha, pelo que se observa, em seus discursos, de uma só nota: a emancipação.

Sim, Sr. Presidente, ao pensar na sessão de hoje do Senado, eu lastimava que o tumulo da escravidão não fosse largo bastante para conter tudo o que devera desapparecer com ella. Quando morre o rei de certos paizes africanos, o seu cavallo, o seu cão, os seus escravos favoritos são sacrificados sobre o seu tumulo e os herdeiros obrigados a matar-se alli mesmo para que nada reste delle. Pois bem, eu quizera que no tumulo da escravidão se fizesse pelo menos o sacrificio da vitaliciedade do Senado para que elle não venha a herdar-lhe o espirito e, abrigado por traz de uma irresponsabilidade absoluta, tornar-se o foco da conspiração que deve resuscitar o escravismo politico.

Ele não fala só da escravidão. Critica a própria instituição do Senado e seus privilégios. Crítica que se mantém necessária contra privilégios sob outras formas, menos definitivas, mas, não menos eficientes para proteger os mandatos dos que estão no poder. Hoje a vitaliciedade está no uso do cargo público para obter recursos que financiem as custosas campanhas eleitorais; no uso dos programas eleitorais dando mais destaques aos que já têm mandato, não definindo limites ao número de mandatos, fazendo uma vitaliciedade possível embora não assegurada por lei.

É duro para o Partido Liberal, Sr. Presidente, eclypsar-se neste momento em que se passa uma verdadeira apotheose nacional. Mas, como eu disse, a culpa é sómente delle, a culpa é sómente nossa. Fomos nós que não acreditamos que a abolição immediata pudesse ser feita, embora hoje todos a achem facil. Não o acreditavamos ainda o anno passado! Faltou-nos fé na idéa e as idéas querem que se tenha fé nellas. Hoje, que a abolição immediata e incondicional é apre-sentada pelo governo, todos dizem que elle não podia ter apresentado douto projecto. É a mesma do ovo de Colombo! Porque não a fizemos nós? Porque não a propuzemos, sinão porque estavamos divididos no nosso proprio partido? Quando se olha para a situação passada, excepto o ministerio abolicionista, o que resta de tantos governos liberaes? O que resta do ministerio Lafayette, quando no paiz o movimento abolicionista já libertava provincias, além da

22 Nabuco, Joaquim. Campanha abolicionista no Recife: eleições de 1884. Brasília: Senado federal – Conselho Editorial, 2005.

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cedula de cinco tostões que elle pedia como captação ao Imperio para fazer a abolição? (Muito bem!)

Este trecho é de uma força excepcional:

É duro para o Partido Liberal, Sr. Presidente, eclipsar-se na aprovação de uma lei que ele defendia, mas que tinha sido apresentada por seus adversários do Partido Conservador. Embora a “culpa” fosse somente dele – do Partido Liberal, seu partido – que não acreditou, não teve lucidez para aproveitar o momento que a história lhe ofereceu meses antes, quando estava no poder. Os atuais partidos com tradição de esquerda estão no poder há 20 anos e repetem este mesmo erro, não dão os passos necessários à emancipação do povo pela educação de quali-dade aos filhos dele, povo. Por temor, por falta de convicção, por oportunismo, se acomodam, esquecem as promessas e compromissos, fecham os olhos ao drama da escravidão de hoje sob a forma da exclusão educacional.

Seria bom que os partidos progressistas de hoje se perguntassem por que não estão fazendo o que sempre defenderam, o que prometeram ao longo de décadas; e que os conservadores se inspirassem no Partido Conservador de 1888 e fizessem a reforma que os progressistas não querem fazer: o educacionismo.

Ainda na ultima sessão do parlamento, viu-se que a minoria liberal desta Câmara não julgava possível que se fizesse tão depressa a abolição imediata e incondi-cional. Eu acabei de dizer ao honrado deputado: não acredito aos meus olhos, não acredito aos meus ouvidos quando ouvi o nobre Presidente do Conselho pronunciar aquelas palavras – abolição imediata e incondicional.

Da mesma forma, muitos hoje duvidam ser possível adotar horário integral em todas as escolas, aumentar radicalmente o salário dos professores e as exigências sobre eles, e implantar a escola igual para todos.

Todos se transformam, Sr. Presidente, não foram somente os conservadores; transformou-se o meu nobre amigo, o Sr. Maciel, não pessoalmente, porque bem conheço seus antigos sentimentos abolicionistas, mas como homem de partido, porque ainda ha pouco elle por certo não julgava possivel uma solução tão rapida; como elles, transformou-se o nosso partido todo que, apezar de ter caminhado muito desde 1884, não tinha chegado ao ponto de inscrever no seu programa de governo a abolição immediata incondicional, e como o Partido Liberal e o Partido Liberal transformou-se a opinião toda, transformaram-se os proprios fazendeiros, cujas festas maiores são agora as libertações dos seus escravos: é a graça divina que, talvez pela intercessão do honrado Ministro da Justiça (riso), desceu sobre nós todos.

O que nós temos a fazer primeiro é sustentar o ministerio para que elle realize o mais breve possivel a obra da abolição e, depois de realizada essa obra, devemos levantar a grande bandeira da autonomia das provincias; sem a qual não teremos base possivel para nenhuma politica de futuro. (Apoiados)

Defende o governo mesmo sendo de outro partido, mas alerta que, aprovada a Abolição, lutará por novas eleições, para que, com seu partido no governo,

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outras reformas sejam feitas, como a reforma agrária, a política, a educa-cional. Tudo o que até hoje esperamos. Na perspectiva de hoje, entretanto, pode-se dizer que comete o erro de preferir a autonomia das províncias, no lugar de um centralismo que igualasse os direitos em todas as partes. Naquele tempo ele tinha razão. A desigualdade entre o resto do país e o norte e o nordeste era menor do que hoje. Na verdade havia províncias até mais ricas que o Rio e São Paulo. Hoje, sem dar responsabilidade à União para cuidar da educação, ela continuará desigual.

Mas, Sr. Presidente, isto não quer dizer que devamos mandar no mesmo dia aos escravos a noticia de que estão livres e a noticia de que derrubamos o gabinete que os libertou. Isto não teria sinão uma significação: que o escravismo tinha tomado a sua desforra logo depois da abolição. Nós temos de ficar solidarios até sua completa execução com essa politica abolicionista representada pelo actual gabinete; e si com ella obtivermos outra reformas, si tivermos de facto por algum tempo o dominio liberal no paiz, teremos preparado o melhor terreno para as futuras eleições; no que não podemos pensar é em forçar o actual governo a uma dissolução, depois da lei, não lhe seria por certo negada, antes dessa lei ter tido execução inteira, porque isto seria complicar com uma questão politica e eleitoral a libertação effetiva da raça negra. Seria pôr em duvida a verdadeira execução da lei, por que nós, senhores, sabemos o que são candidatos em vespera de eleições, não haveria nada que os candidatos liberaes não promettessem aos senhores de escravos despeitados. Em um paiz em que todos os acontecimentos politicos estão nas mãos da grande propriedade territorial, depois de um golpe terrivel como este é, torna-se altamente impolitico appellar para ella.

A sua ferida está ainda sangrando, ainda está vivo o momentaneo despeito, que ella ha de guardar áquelles que fizeram a abolição.

Nós somos uma minoria nesta Camara, não podemos subir ao poder pela escada das reformas liberaes porque não temos votos para faze-las; para derrotar o gabinete teriamos, portanto que unir-nos a alguma conjuração, que surgisse no proprio Partido Conservador. Teriamos que ser os alliados do escravismo, e entrariamos, por consequencia, em combate com o mesmo vicio de impopu-laridade que hoje caracteriza o partido republicano, somente porque teve a fraqueza de aceitar, em vez de repellir, o concurso da escravidão desvairada.

Mais uma lição para os que mudam de lado por falta de crença em uma Causa. Oportunismo não é deixar a Sigla para prosseguir com a Causa, mas sim, deixar a Causa para ficar com a Sigla, como se vê hoje todos os dias nas votações e eleições.

Hoje, Sr. Presidente, a situação é uma, no dia que se fizer a abolição a situação será outra: - uma raça nova vai entrar para a communhão brazileira.

É quando se entra na vida civil que se escolhe um partido. Isto aconteceu a cada um de nós... E agora que a raça negra vai escolher o seu partido, vai dar o seu coração, e si mostrassemos indifferença pela sua sorte ou preocupação exclusivamente de nós mesmos, eu tenho medo, Sr. Presidente, que a raça negra,

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que no fundo é o povo brazileiro, se filiasse ao Partido Conservador acreditando que foi elle e não o Partido Liberal sinão quem mais concorreu, quem maior alegria teve na sua liberdade.

Eu fallo, Sr. Presidente, como um homem que está habituado, no seu partido, a ver-se muitas vezes isolado e a ver outras tantas o partido reconhecer que a estrada na qual elle se achava será a estrada que levava ao coração do povo, ao passo que a outra só levava, quando levava, um poder de que o partido não podia usar com liberdade e que eu nada aproveitava ás grandes causas liberaes.

Sinto-me bastante fatigado, Sr. Presidente, mas creio ter dito bastante a favor da politica abolicionista do gabinete, para ter o direito de exigir que elle execute a lei com a lealdade que nos deve a nós que o auxiliamos, como deve a si mesmo...

O Honrado Presidente do Conselho foi o principal auxiliar da lei de 187123 e agora vai ser o autor da lei de 1888; atravez dos 17 annos decorridos, esse facto mostra uma persistencia da fortuna que, si entrar bem no fundo da sua consciencia abolicionista dos ultimos annos, S. Ex. reconhecerá que não foi de todo merecida.

Insinua que o pernambucano João Alfredo, que participou da Lei do Ventre Livre e era o Chefe de Governo na Abolição, não merecia essa posição histórica, uma vez que historicamente suas funções políticas eram contraditórias com a Abolição. Em “suas memórias”, escritas por Alexandre Dumas, Garibaldi diz que, mais do que o talento, é a sorte que define a posição do estadista na história. Foi isso o que favoreceu João Alfredo. Mas esta sorte de pouco serve se o estadista não tiver o sentimento dos anseios de seu país, nem a coragem de enfrentar os desafios adiante. Isto lembra uma frase supostamente de Napoleão em que dizia: “Não há grandes homens, há grandes desafios, e homens que os enfrentam”. João Alfredo soube aproveitar a chance e enfrentar o desafio. Apesar de um conservador, naquele instante foi Garibaldi e Napoleão.

Pois bem, é no modo de apressar a passagem do Projecto nas duas camaras e depois no modo de executar a lei que S. Ex. poderá fixar para sempre no seu nome essa gloria que adeja em torno delle. Não seria possivel neste momento prejudicar o prestigio siquer do honrado Presidente do Conselho, sem prejudicar por alguma forma a perspectiva brilhante que se abre diante da nação.

Eu, pela minha parte, não tomo a responsabilidade de nenhum acto de tanta significação. O que faço, o armisticio que eu proponho, a alliança abolicionista que eu sustento, tudo se passa á luz desta tribuna. Ha raças que por não fallarem não se entendiam no escuro. Eu espero que não se possa dizer dos partidos brazileiros que não se entendam na claridade, que não podem trazer para o parlamento o fundo dos seus corações, que não ha entre elles nenhum terreno commum, nem a patria nem a humanidade...

23 Lei do Ventre Livre

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A “aliança abolicionista” que ele propõe com seu adversário eleitoral e aliado programático é um exemplo de grande política, em torno a causas, aos interesses maiores do País. Nabuco faz uma apologia sincera ao adversário de ontem e de amanhã, mas aliado hoje. Um trecho de poucas palavras, que merecem atenção e reflexão. Sobretudo o último parágrafo.

O honrado Presidente do Conselho, Sr. Presidente, tem direito neste momento de todo o povo brazileiro, ao maior apoio que o povo americano dava a Lincoln na vespera da abolição, o maior apoio que a nação italiana dava a Cavour na vespera da sua unificação, ao maior apoio que o povo brazileiro dava a José Bonifacio na vespera da Independencia. São tres grandes objectos em uma só bandeira de que elle é o portador e é assim que eu lhe repito por outras palavras a saudação que lhe fez o grande jornalista do norte, Maciel Pinheiro:

“Pudestes ser meu inimigo hontem, has de com certeza voltar a ser meu inimigo amanhã, mas por emquanto, és o pontifice de uma religião sublime, vais coberto pelo pollio da comunhão nacional e levas nas mãos a hostia sagrada da redempção humana!” (Muito bem! Muito bem! Applausos prolongados nas galerias.)

Os últimos parágrafos mostram porque naqueles dias o povo jogou flores para os parlamentares de um Congresso que se une às aspirações da popu-lação e ao futuro histórico da Nação: quando a moral se une à política e a política se une à história. Isto é o que caracteriza o estadista: identificar-se com a alma do povo, que é eterna na história, e convencer a população a fazer os sacrifícios necessários no presente para construir uma nação melhor para os filhos e netos. São momentos grandiosos de quem faz política no momento em que se reorienta o destino de um povo.

Isso aconteceu naqueles dias de Maio de 1888 dentro do Congresso. Desde então, os grandes momentos da história foram externos: a Repú-blica foi um Golpe de militares e civis, a Revolução de 30 foi uma ação de tropas, o golpe de 64 surgiu nos quartéis, a Redemocratização foi um pacto entre líderes, civis e militares, impulsionados pelas ruas e redações de jornais e revistas. O Congresso só referendou quando foi chamado. Hoje, o Congresso se nega a fazer a revolução que pode fazer, aprovando as medidas que garantam educação com a mesma qualidade para todos, uma mudança no padrão de desenvolvimento para a sustentabilidade, a redução das desigualdades sociais e regio-nais, a proteção do meio ambiente, o fim da corrupção. Temos uma Casa fundamental para denunciar erros e riscos, mas irrelevante para definir novos rumos para a Nação.

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É possível imaginar o clima que prevalecia na Câmara dos Deputados: euforia no plenário e nas galerias, constrangimento de alguns dos parla-mentares, entusiasmo dos abolicionistas. Um Parlamento com Causa.

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DIA 8 – TErçA-FEIrA

No dia seguinte logo que o Projeto de Lei foi aceito, Joaquim Nabuco foi o primeiro a falar, defendendo um mecanismo rápido para discutir a lei, para evitar tentativas de procrastinação.

Sr. Presidente, eu peço a V. Exa e peço á Camara que tenham tolerancia para esta manifestação que o povo brazileiro acaba de fazer dentro do seu recinto. (Acclamação. Applausos.) Não houve dia igual nos nossos annaes. (Acclamações. Applausos.) Não houve momento igual na historia da nossa nacionalidade. (Acclamações. Applausos.) É como si o territorio brasileiro até hoje estivesse ocupado pelo estrangeiro e este derepente o evacuasse e nos deixasse senhores de nossa vida nacional. (Acclamações. Applausos.)

Essa abertura mostra que o povo nas galerias estava eufórico. Provavel-mente não havia escravos, todos ali defendiam uma causa de interesse nacional, nenhum interesse próprio. Hoje, ao contrário, cada vez que as galerias se enchem ou que os corredores ficam cheios, é por causa dos lobistas defendendo interesses pessoais ou corporativos. Nada que diga respeito aos interesses dos outros, do povo, da Nação Brasileira como um todo.

É como se o todo se diluísse e só as partes restassem, como se a nação fosse feita de ilhas isoladas. Hoje não se vê, como em 1888, brancos defendendo os interesses de negros; no máximo o direito às cotas nas universidades, para raros negros que concluem o ensino médio; não se vê o movimento negro defender a melhoria da educação de base para todos, brancos e negros, concluírem o Ensino Médio; luta-se por mais vagas para negros na universidade, mas não pela abolição do analfabetismo em todas as raças.

Eu desejaria que no peito de cada deputado brazileiro batesse o coração, como neste momento pulsa o meu, para que a Camara se elevasse á altura do governo libertador; para que ella mandasse para o Senado, votada de urgencia como a maior das necessidades publicas, a abolição total da escravidão. (Applausos.)

Aqui, ele defende a urgência, deixa a esfera da ética e entra nos procedi-mentos regimentais.

É preciso que se respeitem somente as normas que a Constituição estabelece e nosso regimento: é preciso que se nomeie uma commissão especial que dê immediatamente parecer, e que numa espécie de sessão permanente, seja votada a proposta do governo.

Esta lei, Sr. Presidente, não pode ser votada hoje, mas, por uma interpretação razoável de nosso regimento, á qual estou certo que se não poderia oppor, nem

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mesmo o coração de bronze do nobre deputado pelo 11o districto do Rio de Janeiro... (Apoiados e applausos das galerias.)

Pelo nosso regimento esta lei não pode ser votada hoje, mas pode ser votada amanhã, porque podemos nomear uma commissão especial para dar parecer. Podemos suspender a sessão por meia hora, porque bastam cinco minutos, um minuto mesmo, para dar o parecer: podemos dispensar a impressão, o praso para ter logar a discussão; podemos dispensar os intersticios, e depois de amanhã mesmo podemos mandar a lei para o Senado, votada por acclamação e coberta das bençãos do paiz. (Apoiados, bravos e applausos das galerias.)

Venho propor, que se nomeie a commissão especial, que a sessão seja suspensa até ser apresentado o parecer, e para isso faço appelo aos sentimentos, mesmo os mais zelosos e mais obstinados de qualquer lado da Camara, não esquecendo a responsabilidade do governo, pois que, abrindo-se uma crise nacional, é preciso que ella se feche quase immediatamente; para que ninguem fique em duvida, nem o escravo, nem o senhor.

É o exemplo que eu offereço á nação brazileira. (Muito bem!)

Hoje temos no Parlamento diversos regimentalistas que muitas vezes usam os artifícios para ganhar tempo na aprovação de leis, mas quase sempre são em defesa de algum grupo de pressão, raramente em benefício do conjunto da nação.

A escravidão occupa o nosso territorio; opprime a consciencia nacional, e é o inimigo peior do que o estrangeiro pisando no territorio da patria. (Applausos.)

É a segunda vez que ele usa a metáfora da ocupação. O Brasil era um país com escravos que aqui tinham nascido e viviam, mas tratados como se não fossem brasileiros. Uma semelhança com os brasileiros do século XXI que não estudaram: um exército atual de 73 milhões de adultos que não terminaram o ensino fundamental. Em 1871, quando o Brasil convocou escravos para a guerra contra o Paraguai, mesmo analfabetos, eles desempenharam as funções de soldados com as armas daquele tempo; hoje, os sem-educação dificilmente poderiam ser convocados, porque não saberiam usar as armas modernas. A brecha educacional se ampliou.

Precisamos de apressar a passagem do Projecto de modo que a libertação seja immediata. (Muito bem!)

Lembro-me, Sr. presidente, que, quando á Convenção franceza foi proposta a abolição da escravidão, e um deputado começava a fallar, ouviu-se logo esta interrupção: Presidente não consintas que a Convenção se deshonre discutindo por mais tempo este assumpto.

E a assembléa levantou-se unanime, e o presidente declarou abolida a escravidão, aos gritos de viva a Convenção! e viva a republica! Como eu quizera, agora, que aos gritos de viva a Princeza Imperial (longos applausos) e viva a Camara dos

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Srs. Deputados (Applausos.) decretassemos neste momento a abolição immediata da escravidão no Brazil. (Muito bem!)

Estou certo que a Camara aprovará a minha proposta; cada um de seus membros vai elevar-se a uma altura que nunca attingiu nenhum membro do parlamento brazileiro.

De fato, em nenhum outro momento da história brasileira o Parlamento tinha atingido um grau tão elevado de sintonia com a formação do futuro do País. E talvez em nenhum outro momento desde então, até hoje, o desempenho do Congresso superou aqueles dias de Maio.

Teremos, assim, Sr. Presidente por parte desta Camara, uma demonstração de patriotismo, que ficará sendo a epopéa da gloria brazileira, do mais bello movi-mento de unificação nacional que registra a historia do seculo, do mais sublime exemplo de generosidade de um povo que registra a historia toda. (Muito bem, muito bem; prolongados applausos.)

O presidente da Câmara dos Deputados pede que seja apresentado o reque-rimento de Joaquim Nabuco, solicitando urgência. O deputado Duarte Azevedo diz que a comissão já estava constituída, com o parecer feito e pede dispensa da impressão do parecer, para a Proposta entrar logo na Ordem do Dia seguinte:

Senhor Presidente, a commisão nomeada pela Camara dos Deputados para dar parecer a respeito da proposta do governo, convencida de que nesta materia não é possivel retardar um momento só a longa aspiração do povo brazileiro (apoiados, muito bem, bravos) no sentido de satisfazer uma necessidade social e politica, que é ao mesmo tempo um preito de homenagem prestado á civilização do seculo e á generosidade do coração de todos aquelles que amam o bem da humanidade (apoiados, muito bem, muito bem,) deu-se pressa em formular o parecer a respeito da proposta, e pede licença a V. Exa e á Camara para lel-o, apresentando depois um requerimento de urgencia, a fim de que seja dispensada a impressão do projecto da commissão, para que possa ser dado para a ordem do dia de amanhã. (Muito bem!)

Lê, então, o Parecer pela extinção da escravidão:

A commissão especial nomeada por esta Augusta Camara para examinar a proposta do governo sobre o elemento servil, convencida de que essa proposta satisfaz em tudo a longa aspiração do povo brazileiro, é de parecer que ella seja convertida no seguinte Projecto de lei:

Acrescente-se no logar competente:

A Assembléa Geral decreta:

Art. 10 (como na proposta).

Art. 20 (como na proposta).

Sala das Comissões em 8 de maio de 1888.

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Duarte de Azevedo. Joaquim Nabuco. Affonso Celso Júnior. Gonçalves Ferreira. Alfredo Correira.

Em seguida Duarte de Azevedo requer nova dispensa da impressão, e urgência para entrar na ordem do dia seguinte. Requerimento de Joaquim Nabuco é lido, apoiado e posto em discussão, solicitando que a Presidência da Casa nomeie uma Comissão especial de cinco membros para dar parecer imediato sobre a proposta:

Requeiro que o Sr. Presidente nomeie uma commissão especial de cinco membros para dar parecer sobre a proposta do Poder Executivo que extingue o elemento servil.

Sala das sessões, 8 de maio de 1888.

J. Nabuco.

São nomeados Duarte de Azevedo, Joaquim Nabuco, Gonçalves Ferreira, Affonso Celso Júnior e Alfredo Corrêa. A comissão se reúne imediatamente para dar o parecer sobre a proposta de lei. Retorna logo depois. Mas aí começam as reações contrárias, com as palavras do Deputado Andrade Figueira que tenta recusar a urgência na votação, exigindo que se cumpra plenamente o Regimento da Casa que, no seu entender, seria descumprido se a votação fosse imediata. Vale a pena ler nas atas o registro do discurso, dos apartes e da aprovação de urgência:

O Sr. Andrade Figueira começa observando que qualquer que sejam as impa-ciencias para converter em lei proposta do governo, acha que é preciso collocar acima de tudo a legalidade dos actos do parlamento. (Alguns apoiados.)

O Sr. Presidente, representante do regimento, não pôde aceitar o parecer da commissão especial, porque no regimento é expresso que as commissões eleitas têm um processo a observar para os seus trabalhos. Era preciso uma indicação reformando o regimento; e somente depois desta reforma poder-se-ia permitir a urgencia.

Si não fosse o muito respeito e consideração que voto ao Sr. Presidente, teria reclamado já ha alguns minutos contra factos que aqui se passaram; contra a invasão de pessoas estranhas á Camara, convertendo a augusta magestade do recinto em circo de cavalinhos! (Apoiados e não apoiados e signaes de repro-vação das galerias.)

Como si não bastassem taes transgressões que importam ao decóro da Camara, o nobre relator da commissão especial, sem observar os processos estabelecidos para os termos dos trabalhos das commissões, pede que seja dispensada a impressão do projecto para entrar na ordem do dia. O Sr. Presidente não pôde aceitar como parecer o papel que foi enviado á mesa, e que é contrario aos termos do regimento.

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O Sr. Duarte de Azevedo – O regimento não dispõe sobre os pareceres de commis-sões especiaes.

O Sr. Andrade Figueira diz que o regimento no capitulo V trata dos pareceres em geral sem fazer distincções. Confia bastante no Sr. Presidente que, além de tudo, é magistrado, para que S. Ex. faça observar o regimento.

Aproveitando-se da palavra, dirá ao nobre deputado pelo 10º districto da provincia de Pernambuco24 , que se julgou apto para conhecer de que material era formado o coração do orador, que não sabe si esse coração é de bronze; mas si o é, prefere que seja de bronze, a que seja de lama.

Disse que Nabuco estava usando métodos imorais, propondo que passassem por cima do Regimento. Nabuco respondeu que “a Câmara dos deputados está perfeitamente dentro da letra do Regimento aceitando o Parecer da Comissão, que não precisa das 24 horas” exigidas para as comissões ordinárias.

O presidente da Câmara aceita o requerimento de Nabuco e o põe em votação. O Deputado Andrade Figueira então acata a decisão do Presidente da Casa (de que a Câmara pode dispensar o prazo de 24 horas), mesmo achando que a decisão não seja acertada.

O requerimento do Deputado Joaquim Nabuco, posto a votos, é aprovado.

24 Joaquim Nabuco

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DIA 9 – QUArTA-FEIrA

O Deputado Andrade Figueira faz um discurso contra o Projeto. Lamen-tavelmente, esse discurso não se encontra nas Atas daquele dia. Apenas consta que ele fez um discurso contra o projeto de lei. Ficamos sem seus argumentos contrários à Abolição.

Talvez ele tenha conseguido retirar o discurso da Ata, com medo do julgamento histórico. Neste caso, demonstrou mais sensibilidade do que muitos parlamentares de hoje, que sabem que seus discursos serão guar-dados em texto, vídeo, áudio, para que as gerações futuras julguem por omissão ou ação. O que dirão de parlamentares de hoje, daqui a décadas anos, quando analisarem as faces da escravidão moderna decorrentes da omissão diante do quadro de deseducação e depredação ambiental.

O Deputado Rodrigo Silva, que era Ministro da Agricultura no regime parlamentarista de então, e assinava o projeto de Lei junto com a Princesa, defendeu a aprovação, afirmando:

A lei de 1885, acabando com a legitimidade da instituição, levou-a para o terreno das transações; já não era dado discutir o direito sobre a propriedade escrava, mas somente o prazo em que o poder publico deveria intervir para declara-la extinta.

O Deputado Alfredo Chaves faz um discurso favorável ao Projeto, anali-sando a legislação anterior sobre o elemento servil. O Deputado Affonso Celso Júnior requer o encerramento da discussão. O Deputado Araújo Góes apresenta emenda com o seguinte teor: “Ao art. 1o acrescente-se: “desde a data desta lei”. Por fim, o Deputado Zama requer votação nominal para a Proposta, a fim de que “nos Anais fiquem gravados os nomes dos votantes”.

O artigo 1º é aprovado.

Dos 94 deputados presentes, 83 votaram a favor, 9 contra. Na véspera do século XX, 10% dos representantes do povo brasileiro votaram pela conti-nuação da escravidão. Voto aberto. Se o voto fosse secreto, esse número certamente teria sido maior. Note-se que Andrade Figueira votou contra. Sua defesa de procedimentos mais demorados não era por legalismo regimental, era possivelmente tentativa de ganhar tempo para impedir a aprovação da lei que liberaria os escravos.

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Nesse dia, outra vez Joaquim Nabuco pediu que se passasse imediatamente à votação. Mas, apesar do belo e convincente discurso, a ideia não foi aceita de imediato.

As atas dizem:

O Deputado Joaquim Nabuco requer e a Câmara aprova o encerramento da discussão. Solicita ainda que se consulte ao Plenario sobre a dispensa de impressão e intersticio para que o Projecto entre no dia seguinte em 3a discussão.

O deputado Pedro Luiz diz que o requerimento de Joaquim Nabuco só pode ser aceito depois de o Projecto voltar da Comissão de Redação, a qual deveria ser remetido para redigi-lo de acordo com a emenda.

O deputado Matta Machado requer que se prorrogue a sessão por meia hora, o que é aprovado.

A Assembléa Geral decreta:

Art. 1o (substitutivo). É declarada extinta, desde a data desta lei, a escravidão no Brasil.

Art. 2o (Como na proposta).

Sala das Comissões, em 9 de maio de 1888.

Duarte de Azevedo, Joaquim Nabuco, Affonso Celso Júnior, Gonçalves Ferreira, Alfredo Corrêa.

A votação incorpora o substituto ao artigo primeiro que determina “desde a data desta lei”.

O deputado Affonso Celso apresenta um Projeto de Lei transformando em feriado o dia em que a lei for sancionada e entrar em vigor.

O Deputado Affonso Celso Júnior apresenta Projecto de Lei nos seguintes termos.

A Assembléa Geral resolve:

Art. 1º Será considerado de festa nacional o dia em que for sacionada a lei que declara extinta a escravidão no Brasil.

Art. 2º Revogam-se as disposições em contrário.

Mesmo não sendo feriado, já temos o Dia do Piso Nacional do Salário dos Professores, em 23 de março, Lei 11.738, de 2008. Mas tudo indica que vai demorar muito para termos o dia da libertação educacional para comemorar a adoção pela União do Sistema Nacional da Educação Básica.

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DIA 10 – QUINTA FEIrA

NAQUELE 10 DE MAIO DE 1888, O DEPUTADO LOURENçO DE ALBU-QUERQUE TECE CONSIDERAçõES SOBRE O PROJETO E SUAS REPERCUS-SõES. O DEPUTADO PEDRO LUIZ CRITICA O PROCESSO DE DISCUSSãO DO PROJETO.

Nesse momento, o Presidente declara encerrada a discussão e o Projeto é aprovado para ir à Comissão de Redação.

Joaquim Nabuco é o primeiro a solicitar que a Presidência nomeie uma Comissão de Redação para redigir o Projeto, a fim de que ele seja imedia-tamente votado, já que ainda não há Comissão eleita. O requerimento é aprovado e o Presidente nomeia Duarte de Azevedo, Joaquim Nabuco e Rosa e Silva, que apresentam uma redação idêntica à preparada pela Comissão Especial.

O deputado Affonso Celso Júnior requer que se consulte aos deputados sobre a dispensa da impressão, para que a redação do Projeto possa ser votada imediatamente. O requerimento é aprovado e a redação do Projeto, posta em discussão, é aprovada, também sem debates.

Joaquim Nabuco volta a falar, parabenizando a Princesa Regente, a Câmara e os partidos pela votação, manifestando sua confiança na sabedoria, gene-rosidade e patriotismo do Senado. Em comemoração a esse dia memorável, requer a suspensão da sessão, o que é aprovado.

É seu grande dia, a conclusão da história de milhões de escravos e da luta iniciada sob o desprezo dos donos de terra, enfrentou a ironia dos que duvidavam que uma pessoa negra pudesse ser livre e a raiva dos escra-vocratas. Por isso, vale a pena rever seu discurso, conforme transcrito nas Atas do dia:

A victoria final do abolicionismo no parlamento não é a victoria de uma lucta cruenta, não ha vencidos nem vencedores nessa questão (Muitos apoiados), são ambos os partidos politicos unidos que se abraçam neste momento solemne de reconstituição nacional, são dous rios de lagrimas que formam um mar bastante largo para que nelle se possa banhar inteira a nossa bandeira nacional. (Muito bem! Apoiados.) Facto unico da nossa historia, quanto ao orador, que representa

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desde o principio apenas a orientação abolicionista, o que pode dizer é que o abolicionismo é quem mais lucra nesta questão.

Nós estaremos tão cançados como os escravos; mas o nosso cançasso não era de trabalhar; mas porque estava ligada ao nosso nome a idéa, sinão de uma degra-dação, ao menos de uma humilhação para a nossa patria. (Apoiados. Muito bem).

É tempo que a democracia nacional tenha um nome que de alguma forma não seja uma ofensa ás outras partes da communhão brazileira. (Apoiados.)

Nós, abolicionistas, retiramo-nos desta campanha certos de que nada tiramos e, pelo contrario, tudo demos não só á dignidade do cidadão brazileiro, mas tambem a dignidade de ambos os partidos constitucionaes. (Apoiados.)

Ainda ha pouco, dizia um escriptor que o primeiro dever das grandes nações é produzir os grandes homens.

Nós offerecemos ao Partido Liberal occasião de ter um grande homem e offe-recemos ao Partido Conservador agora outra occasião igual, para que deixem as offensas ao passado na escuridão da noute da escravidão.

Não penso que o abolicionismo tivesse sido outra cousa mais do que o instincto nacional. (Apoiados.) Não foi outra cousa mais do que o sentimento verdadeira-mente inconsciente do nosso povo que, educado nas senzalas e na escravidão, não podia ter outra visão no seu espirito si não esta primeira aspiração nacional.

Não penso que o abolicionismo tivesse sido outra coisa mais do que o instinto nacional.

Nesta frase, ele aplica o sentido de “instinto nacional” para Causa política e social. Coisa que falta hoje entre os 200 milhões de brasileiros. Nada indica termos hoje um instinto que encarne o sentimento de desejo comum a todos os brasileiros e pode ser esta ausência que esteja colocando o País em sua atual sutiações de conflito geral explícito ou latente.

Nós todos, que fomos o fermento de ambos os partidos, nós que devemos tanto ao Partido Conservador, como ao Partido Liberal, como ao Partido Republicano; nós que não representavamos outra cousa mais do que as trevas da nação até ao dia em que a raça negra fosse definitivamente emancipada no Brazil; nós devemos continuar no nosso posto, pedindo apenas aos partidos que se levantem, como neste momento, sempre á altura das grandes necessidades da nossa patria, e que comprehendam que não ha para o homem publico, como não ha para os partidos, verdadeira prosperidade sinão no momento em que elles se esquecem das preocupações individuaes e se recordam simplesmente do bem publico, do bem da patria. (Muito bem, muito bem. Bravos, palmas e applausos repetidos nas galerias.)

O requerimento foi votado e aprovado. O projeto foi enviado ao Senado naquele mesmo dia. Hoje em dia esta eficiência acontece, mas não por causas nobres, apenas para atender o rolo compressor da maioria gover-namental para projetos pequenos.

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DIA 11 – SExTA-FEIrA

A PARTIR DA PROPOSTA DO PODER EXECUTIVO SER APROVADA PELA CÂMARA, O PROJETO FOI LIDO NO SENADO. O TEXTO ERA ASSINADO POR HENRIQUE PEREIRA DE LUCENA, PRESIDENTE; CARLOS PEIXOTO DE MELLO, 1º SECRETÁRIO E JAYME DE ALBUQUERQUE ROSA, 2º SECRE-TÁRIO.

Imediatamente após a leitura, o Senador Dantas requer a nomeação, pelo Presidente do Senado, de uma comissão especial de cinco membros para dar parecer. São nomeados os Senadores: Dantas, Affonso Celso, Teixeira Júnior, Visconde de Pelotas e Escragnolle Taunay. Em regime de urgência a proposta é encaminhada à Comissão, que se reúne imediatamente e oferece parecer favorável. Como se os parlamentares quisessem correr para recuperar os quatro séculos perdidos.

Parecer

A commissão especial, nomeada pelo Senado para examinar a proposta do Poder Executivo convertida em Projecto de Lei pela Camara dos Deputados e que declara extincta a escravidão no Brasil:

Considerando que o mesmo Projecto contém providencia urgente por inspirar-se nos mais justos e imperiosos intuitos e consultar grandes interesses de ordem econômica e de civilisação; considerando que elle satisfaz a mais vehemente aspiração nacional; e abstendo-se de offerecer qualquer emenda, tornando expresso que ficam igualmente abolidas todas as obrigações de prestação de serviço provenientes da legislação em vigor, ou de libertações condicionalmente conferidas, por entender que isto se acha virtualmente comprehendido no allu-dido projecto; é de parecer que entre em discussão para ser adoptado pelo Senado.

Com o parecer da Comissão Especial, inicia-se a discussão do art. 1º da Proposta do Poder Executivo, convertida em Projeto de Lei pela Câmara dos Deputados, de 1888, declarando extinta a escravidão no Brasil.

Ali não estava Nabuco para falar. Quem fala primeiro é o Barão de Cotegipe, declarando que não colocará obstáculo “á rápida passagem da proposição do governo”, mas manifestando suas preocupações relativas à posição dos proprietários de escravos – e dos próprios escravos – em face da extinção da escravidão no Império.

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Ele começa perguntando se vai contar com a Presidência da Mesa para garantir plena liberdade de discurso. O presidente e os outros senadores lhe asseguram que sim.

Depois de quatro séculos em que seres humanos eram agarrados como animais, arrancados de suas casas, famílias e nações, colocados em navios, forçados a atravessar o oceano, acorrentados e condenados a trabalhar, podendo ser vendidos mesmo tendo nascido no Brasil, tendo seus filhos retirados e vendidos como gado, depois de quase quatro séculos desse maldito sistema, um senador que é contra a Abolição pergunta se terá liberdade para se pronunciar sobre sua oposição ao fim deste modelo social e econômico. Não se sentindo em condições de impedir a aprovação da proposta, ele fez um discurso preocupado com o futuro da economia e – hipocritamente – com o futuro de cada escravo libertado.

Vale a pena ler as Atas do Senado para saber o que ele disse:

Vou, portanto, acolher-me á sua protecção. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Christo.

Senhores, quando o honrado senador pela Bahia, meu amigo, o Sr. Conselheiro Dantas, propoz a nomeação de uma comissão especial para que esta proposição tivesse o mais rapido andamento, procedeu o seu requerimento de poucas e eloquentes palavras. Nada menos disse S. Ex. de que “esta proposta entrava triumphante neste recinto”

Ora, os triumphadores antigos permittiam que ao carro triumphal acompa-nhassem mesmo aqueles que lhes dirigiam remoques e até injurias.

Eu não venho imitar esses que acompanhavam na antiga Roma o carro triumphal; não dirigirei injurias, não dirigirei remoques. Mas peço que, ao menos, não me obriguem a acompanhar o festim quando entendo que não devo acompanhal-o. É tudo quanto exijo.

Não pretendo pôr o menor obstaculo á rapida passagem da proposição do governo; ao contrario, entendo que quanto mais depressa fôr ella votada, tanto melhor.

(Rumores nas galerias, produzidos pela entrada de espectadores. O Sr. Presidente reclama attenção.)

O Sr. Barão De Cotegipe: (depois de alguma pausa) V. Exa. viu que com a entrada dos espectadores era preciso que eu me interrompesse.

Conforme acabava de dizer, quando suspendi a exposição em que ia entrar, não pretendo oppor o menor obstaculo á passagem da proposta do governo, convertida em projecto de lei pela Camara dos Srs. Deputados; ao contrario, entendo que quanto mais rapido andamento ella tiver, quanto mais depressa fôr votada, tanto melhor.

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Ha, porém, posições que obrigam, e aquella em que me acho é uma dellas. Por uns, sou accusado de haver, por meus erros, precipitado a solução desta questão: por outros, por ter, contra a razão e justiça, procurando entibiar o zelo dos que a prometiam.

Quer dizer isto que não ha ninguem actualmente mais impopular nesta terra do que eu.

Mas, Sr. Presidente, é um dos deveres do homem publico, principalmente daquelles que tomam a si a grave responsabilidade do poder, como eu tomei, fazer publico, tornar conhecido da nação o como e o por que procederam.

As grandes manifestações de enthusiasmo, em todos os tempos, nunca foram permanentes, ou muito duradouras; e os homens praticos sabem, as lições da historia demonstram, que muitas vezes o trimphador de hoje é a victima de amanhã.

Voltava Cromwell da expedição da Irlanda victorioso. Saltava em Bristol e um dos seus ajudantes de ordens dizia-lhe: - Veja V. Exa. que multidão para appaudil-o em seu triumpho!

Elle respondeu-lhe de modo brusco: - Seria muito maior si me fosse ver enforcar.

Isto prova que nem sempre devemos confiar na opinião do momento. É o futuro, são as consequencias dos actos praticados que hão de, na historia, traçar o credito ou descredito dos que os praticaram.

Senhores, tem-se querido tornar odiosos aquelles que pugnaram pela restricta execução da lei 28 de setembro de 188525 Pretendeu-se dividir os brasileiros em escravocratas e não escravocratas; e aquelles que não examinam de perto as cousas acreditam que existe no Brazil um partido numeroso, como é o Partido Conservador, que quer a permanencia ou a eternidade da escravidão no Imperio.

Ora, a questão não consistia na extincção da escravidão: esta estava extincta pela lei de 1885; a questão era de maior ou menor prazo.

Deixa claro que não havia mais como frear a Abolição, discutia quando. É o mesmo que se diz hoje em relação, a uma revolução que faça iguais as escolas dos pobres e dos ricos. Muitos se dizem a favor, só divergem quanto ao prazo em que isso será possível, e dizem que ainda não há recursos para fazê-la. Como dizia o Barão de Cotegipe naqueles dias de maio de 1888, “somos a favor, mas ainda não é a hora”.

O governo de 20 de Agosto, de acordo, nessa epoca, com o Partido Liberal, entendia que algum tempo se devia dar para que se fizesse essa transformação social, que todos acclamam como necessaria, certos, entretanto, de que ha de trazer grandes inconvenientes a este paiz. Outros queriam que immediatamente se realizasse esta aspiração chamada nacional.

25 Aqueles que defendiam esperar que a abolição fosse feita aos poucos na medida em que os escravos morriam os escravos libertos aos 60 anos pela Lei dos Sexagenários.

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E com effeito, tal foi a propaganda, tal a precipitação dos acontecimentos, que venho eu aqui confessar e dizer que o ministerio actual não tinha outra cousa a fazer, e cumpre que quanto antes isto se realize. (Apoiados)

Defendendo eu o Partido Conservador, a cuja frente estava, tambem defendendo todos os meus compatriotas, porque esta magna questão nunca deixou de ser objecto de estudo em todas as epocas.

Rapidamente recordarei algumas. Logo depois da independencia o tratado feito com a Inglaterra acabava com o trafico de africanos, origem, fonte da escravidão no Brasil, e herança, seja dito, de nossos antepassados.

Em 1831, votada a lei que tem servido para a libertação de alguns africanos, posteriormente, em 1850, pela lei de 4 de Setembro, foi completamente extincto o contrabando africano; lei proposta pelo sempre lembrado senador, o Sr. Conse-lheiro Euzebio de Queiroz Coutinho.

Não diz que o fim do tráfico foi o resutado de pressão inglesa e que uma das razões para se aceitar o fim do tráfico foi uma tentativa de aumentar o valor dos escravos que aqui estavam, pela redução da oferta. Até a Lei do Ventre Livre, 20 anos depois,milhares de novos escravos nasceram no Brasil.

Eu fui um dos seus executores, como chefe de policia da minha provincia; e appelo para os desta epoca, para que digam si a execução correspondeu ou não á intenção.

O Sr. Dantas: Portou-se com a maior lealdade e energia na execução dessa lei; é exacto.

O Sr. Barão De Cotegipe: Em diversas Fallas do Throno foi aventada esta questão, que era, por assim dizer, a que mais preocupava o nosso saudoso Imperador. (Apoiados.)

Até que, em 1871, foi votada a lei chamada aurea, que libertou o ventre das escravas. De então em diante, Sr. Presidente, ninguém mais nasceu no Brasil que não nascesse livre.

Hoje a execução desta lei tem dado ao nosso paiz talvez 500.000 cidadãos livres.

Deixou de citar que o escravo recém-nascido só ficava livre quando chegasse aos 21 anos, no caso de nesse período nenhum de seus parentes fugisse.

São escravocratas, ou foram escravocratas aquelles que propugnaram por esta Lei e que a executaram?

Hoje é igual: na educação, nos contentamos em fazer FUNDEF, FUNDEB, merenda, livro didático. Passos tão tímidos quanto aqueles dados contra a escravidão. A lei 17.738 de 2008 que define um piso nacional para o salário dos professores ainda não é plenamente cumprida.

Na votação de uma dessas leis tímidas e parciais, Joaquim Nabuco deixou claro que votava a favor, mas que lamentava votar em uma lei ainda escravocrata e não diretamente na abolição. Hoje, muitos parlamentares

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votam assim quando decidem por avanços tímidos, que servem pouco para mudar o País e muito para a publicidade do governo dizer, como Cotegipe, em maio de 1888: “não somos escravocratas”. Podiam não ser escravocratas, mas não eram abolicionistas. Como hoje podem não ser contra a educação de qualidade para todos, mas não são educacionistas.

Pareceu, porém, que o processo adoptado pela lei, era moroso; que nos levaria talvez meio seculo para que a escravidão completamente desapparecesse do solo brasileiro. Então fomos testemunhas, é de hontem, por assim dizer, dos esforços que o Partido Liberal fez para resolver o problema.

Tambem fomos testemunhas de como decahiram todas as suas esperanças.

Ahi não tratava de uma medida extrema, como hoje se trata; e, não obstante, tal foi a opposição, que afinal foi de mister que a lei de 28 de setembro de 1885 fosse votada por accordo de ambos os partidos, ou da maioria, para ser exActo, de ambos os partidos.

Considera que a Abolição foi uma medida extrema, como hoje considera-se radicalismo e até desvario ridículo, a defesa de escola igual para todos, professores com salários equivalentes aos melhores do setor público. Ontem, liberdade para todos; hoje, escola igual. Os filhos dos pobres na mesma escola dos filhos dos ricos. Tudo isso é considerado extremismo, como era vista a Abolição.

A ata registra então:

O Sr. Presidente: Peço a V. Exa licença para interromper o seu discurso, emquanto é admittido no recinto o Sr. Ministro da Agricultura, que está na ante-sala.

O Sr. Barão de Cotegipe: Oh! Sr. Presidente, com muito gosto.

(Com as fomalidades de estylo é recebido, entra no recinto e toma assento á direita do Sr. Presidente o Sr. Ministro da Agricultura.)

O Sr. Presidente: O Sr. Barão de Cotegipe terá a bondade de continuar o seu discurso.

O Sr. Barão de Cotegipe: Foram elles que levantaram a questão de filiação desco-nhecida; foram elles que propuzeram, embora o governo concordasse, a abolição do castigo de açoutes; enfim, foram elles que nunca perderam uma occasião, quer apresentando projecto, quer argumentando em diversas discussões, para apressar e promover a prompta extinção da escravidão.

A idéa do honrado senador paulista era dar o prazo de tres annos para que os lavradores se pudessem preparar, do modo o menos prejudicial, para a passagem do trabalho escravo ao trabalho livre; mas em taes materias não é licito parar; desde que se dá o impulso ao corpo, por uma lei physica, o movimento se vai accelerando.

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Não pode, porém, o nobre senador fazer vingar as suas idéas; outros mais adiantados, e outros, me desculpem si sou injusto, despeitados, redarguiram: não, três annos, nem dous, nem um: é preciso que a liberdade seja immediata.

A hipocrisia e o cinismo da democracia é melhor do que a sinceridade dos ditadores. Mas é triste ver a democracia servir de palco para a crítica aos que têm pressa de justiça e liberdade. No Brasil de hoje, diz-se que fixar um prazo para erradicar o analfabetismo “é insensatez”26 . Dar um prazo de sete anos para que os políticos eleitos coloquem seus filhos em escolas públicas é visto como falta de liberdade. Estabelecer prazo para que as escolas sejam iguais para todos é pressa. Dizer que o filho do trabalhador deve estudar em escolas iguais àquelas de seus patrões é maluquice. Muito parecido ao que dizia Cotegipe naquele dia de maio, com respeito à Abolição.

S. Ex. arreou bandeira; aceitou esta solução extrema.

Qual o resultado? Uma perturbação quasi geral em toda a lavoura de S. Paulo. Uns alforriavam os escravos, estes ou ficavam ou se retiravam; o vizinho não podia mais manter a disciplina na sua fazenda, e tambem era obrigado a seguir o exemplo ou via desaparecerem todos os seus trabalhadores.

Diz-se que ali não tem havido estes inconvenientes. É, senhores, porque nós não podemos saber qual é a extensão do mal que tem sofrido a lavoura de S. Paulo. Em todo o caso, argumentar de uma provincia, que tem recebido colonos em avultado numero, aos milhares, argumentar com aquellas para onde se encami-nham os emigrantes, onde o thesouro do Estado, quer dizer tanto as provincias ricas como as mais pobres, tem derramado grandes sommas, para applicar o mesmo argumento aquellas provincias que, como Rio de Janeiro, Minas Gerais ou como a Bahia, não tem recebido um só emigrante, é considerar os negocios publicos por um lado muito erroneo e por vidros muito escuros.

Ainda hoje li no Jornal do Commercio uma estatistica que é official, e digo que li no Jornal do Commercio, porque ainda não tivemos as infomações do Ministerio da Agricultura. Por essa estatistica se vê qual é o numero de escravos que possuiam as provincias do Rio de Janeiro, Minas, Bahia e mesmo S. Paulo; ainda uns 62.000.

O que fizestes para conter este movimento, estas desordens nas fazendas?

Senhores, nas occurrencias de S. Paulo ha duas épocas muito distinctas: uma, em que os trabalhadores escravos desertaram das fazendas; outra, depois

26 No dia 23 de abril de 2003, quando da assinatura do convênio entre o Ministério da Educação e a Confederação Nacional da Indústria para alfabetizar dois milhões de adultos, o Presidente Lula, no lugar de incentivar o acordo e cobrar seu cumprimento disse, dirigindo-se diretamente ao Ministro da Educação: “quem come apressado, come cru”. E poucos meses depois demitiu o ministro e o novo encerrou o programa de erradicação do analfabetismo, transformando-a em um simples e tradicional programa de alfabetização. O resultado é o estancamento na redução no número de analfabetos e até mesmo uma elevação entre 2012 e 2013.

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da reunião dos fazendeiros. Na primeira, o proprio nobre senador declara que a força publica não devia ser empregada na manutenção da propriedade escrava; que a força publica não era destinada a servir de capitão do mato. Por conseguinte, menos poderiam apprehender homens que tinham sido libertos. Como distinguir entre os que fugiam, os que eram escravos e os que não eram?

Antes havia sido contido este movimento, quanto possivel. As cousas iam um pouco melhoradas, ou menos mal em S. Paulo, quando a libertação as complicou.

A libertação complicaria a agricultura, logo o certo seria complicar a vida de seres humanos. Como hoje muitos dizem: gastar mais em educação de base é um complicador para as finanças, toleram-se crianças sem educação, em falsas escolas. Se impedir a derrubada de árvores é reduzir o crescimento do PIB, deve-se continuar derrubando as árvores; se reduzir o número de carros fabricados contraria os interesses das fábricas e dos compradores, deve-se engarrafar o trânsito das cidades, e deixar que percam suas vidas os motoristas e passageiros parados no trânsito.

Nas outras provincias nada appareceu. Em Campos o movimento havia sido suffocado.

Eis o modo por que o governo procedeu. Nunca poz obstaculos a todas libertações voluntarias; pelo contrario, muitos vezes as animou dando premios áquelles que voluntariamentte praticavam este acto de caridade.

Não ha um exemplo com que se possa accusar o governo passado de haver posto uma pedra na marcha desse movimento voluntario; só poderá ser accusado por ter querido manter a lei. Ora, este é o dever primordial de todos os governos.

Retirando-me do poder quando o nobre senador pela provincia de S. Paulo, que me substituía, declarava não poder a força publica apprehender escravos fugidos; e mais, que as autoridades não deviam prestar apoio aos proprietarios, estava por esse facto feita a abolição.

Portanto, a extinção da escravidão, que ora vem neste projecto, não é mais do que o reconhecimento de um facto já existente. Tem a grande razão, que reconheço, de acabar com esta anarchia não havendo mais pretextos para taes movimentos, para ataques contra a propriedade e contra a ordem publica. Eis como considero a vantagem do projecto.

Para ele, a vantagem da Lei Áurea seria acabar com a anarquia, no tempo em que a escravidão ainda era legal, mas os movimentos libertários já tinham se espalhado. Em parte o escravocrata Cotegipe tem razão. A escra-vidão acabara de fato: com a Lei Áurea, Nabuco e os demais parlamentares apenas apressavam seu fim legal, proibindo a venda de seres humanos.

Simplesmente devia-se legalizar o que ainda era ilegal mas estava se tornando realidade. Pena que hoje, para fazer a revolução educacional não seja possível seguir este caminho de fazer de fato o que ainda não é

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legal. Até porque um escravo podia ganhar sua liberdade fugindo, mas uma criança pobre não pode ganhar educação invadindo escola de ricos. Mas, no lugar do entusiasmo com a lei que acabava com o crime que a escravidão oferecia, com a mancha que representava, ele se preocupava com as dificuldades sociais e econômicas que as incertezas produziam.

Essa lei, tão malsinada, de 188527 demonstrou que os brazileiros, por iniciativa propria, haviam reduzido a classe dos escravos á metade, ou quase metade, attendendo á parte que pertence á morte.

Verificado este facto, continuou, durante a lei de 1885, não só o movimento das libertações voluntarias, como segundo as estatisticas que o nobre ministro confirmará, só em sexagenarios foram libertados mais de 100 mil.

Quando a historia registrar todos esses factos ver-se-á que a cada um tocou seu trabalho e a cada um a honra desse trabalho; uns começaram, outros levantaram mais uma pedra, outros, finalmente, coroaram o edificio. Mas pretender-se que a solução hoje é a condemnação de todos quantos praticaram os actos anteriores é a mais flagrante injustiça que se pôde imaginar.

Senhores, ha ainda um ponto de que me devo defender, e é mais politico do que social: ora, segundo aqui declarastes na ocasião das explicações, sentistes que vos ia faltando a confiança da Côroa e auguraveis a retirada do ministro; por que razão immediatamente não depuzetes as pastas?

Trago este ponto porque me consta que alguem disse que o ministerio, assim não praticando, havia faltando á dignidade. Ora, em actos de dignidade, eu desafio a esse senhor, e a qualquer outro, que me dê lições.

Sr. Presidente, eu tinha uma responsabilidade perante a Côroa, tinha uma responsabilidade perante um partido, tinha uma responsabilidade ainda mais alta perante a nação; para mim tinha a minha consciencia. Depôr as pastas quando as camaras não estavam reunidas, depôr as pastas quando eu procu-rava dar á Regente do Império occasião para, á vista do pronunciamento das camaras, decidir-se pelo que fosse mais util ao nosso paiz, era uma precipitação. Quantas vezes soffremos, não em nossa dignidade, mas em nosso amor proprio, e somos obrigados a disfarçar para não commetter algum acto que nos possa ser imputado ou á má fé ou á indiscrição, ou mesmo á precipitação.

Finalmente, senhores, vou pronunciar mais uma razão que ha de agradar aos illustres adversários e ser censurada pelos meus co-religionarios, a saber: que, na minha opinião, o poder nesse caso devia passar aos liberaes.

O Sr. Candido de Oliveira: Perfeitamente.

O Sr. Barão de Cotegipe: E por que? Serei franco, tanto quanto o moribundo ditando seu testamento. Não tenho aspirações, nem ambição sinão de servir o meu paiz; hei de fallar-lhe a verdade seja contra quem fôr. Perdoem-me os meus illustres co-religionarios; foi um erro que não passasse a ser feita pelo Partido Liberal a solução dessa medida radical, e mesmo sem ser radical, esta ou outra qualquer. O ministerio de que eu fazia parte não podia propôr na lei

27 Lei que libertava escravos aos 60 anos.

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modificações que fossem aceitas pelo Partido Liberal; seria continuar a lucta sem gloria e sem vantagens, perturbando todas as outras relações do Poder Legislativo com o Poder Executivo.

Pois os conservadores dir-me-ão que puderam fazer a lei de 1871, que puderam, mas aqui com alguma differença, tomar a responsabilidade da lei de 1885, não podiam tomar a responsabilidade desta?

Não podiam: esta responsabilidade é muito maior, porque desta lei ha de vir a transformação dos partidos. O nobre ministro da Justiça, tão censurado porque em um banquete fez a declaração que o ministerio 10 de março trará a recomposição dos partidos, fallou a verdade...

O Sr. Candido de Oliveira: O ministerio nada tem de conservador.

O Sr. Barão de Cotegipe: ... e tanto mais conscienciosa quanto S. Exa achava-se em um banquete e ahi não ha reservas. (Risadas.)

Si o poder fosse ter ás mãos dos liberaes, a consequencia seria o abandono de todos os partidarios liberaes que são contrarios á rapida extincção da escravidão, esses viriam augmentar a força e o numero do Partido Conservador.

Nos últimos parágrafos, ele diz que os liberais deveriam assumir a respon-sabilidade pelas consequências da Abolição. Eram tantos os problemas que ele previa para o País, que a “culpa” da Abolição deveria recair sobre os abolicionistas liberais, não sobre os conservadores. E ainda diz que, nessas condições, alguns liberais contrários à pressa para libertar os escravos teriam migrado para o Partido Conservador.

Agora, ha de acontecer o inverso; os conservadores vão ser liberaes. Não digo que todos, mas grande parte; muitos ficam indifferentes. O partido enfraquecido terá de reorganizar-se debaixo de outro ponto de vista; porque haverá sempre um Partido Conservador na sociedade, mesmo nas republicas.

Demais, si o Partido Liberal tomasse a si a solução da questão, tenho a convicção de que elle faria mais alguma concessão; e neste caso, auxiliado por nós outros, a sustentaria.

Sr. Presidente, ninguém acraditará, no futuro, que se realizasse com tanta precipitação e tão poucos escrupulos a transformação que vai apparecer.

Para o leitor de hoje, é inacreditável que na véspera do século XX, quando a Inglaterra já tinha feito a revolução industrial, um senador da importância de um Barão dissesse que a Abolição da Escravidão, no último país a fazer este gesto no ocidente, foi feita com precipitação e irresponsabilidade. Mas, se olhamos ao redor nos dias de hoje veremos que Cotegipe ainda estava vivo, apenas alertou para o risco de “comer cru”, para a necessidade de calma na hora de fazer as mudanças sociais, como muitas lideranças continuam fazendo, sobretudo quando se fala em escola igual para toda criança, independente da renda dos pais e da cidade onde elas vivem. Acabar

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com a imoralidade e a estupidez de condenar o futuro de cada criança ao CPF de seus pais e ao CEP de sua casa. Faz pouco que muitos levantaram os riscos por causa da aprovação da Proposta de Emenda à Constituição que assegurava direitos trabalhistas aos empregados domésticos.

A propriedade sobre o escravo, como sobre os objectos inanimados, é uma creação do direito civil. A Constituição do imperio, as leis civis, as leis eleitoraes, as leis de fazenda, os impostos, etc., tudo reconhece como propriedade e materia tributavel o escravo, assim como a terra.

Aqui vem a defesa pela legalidade. Alguns fazem a lei, depois ela é usada como argumento para sua manutenção. É o que continua acontecendo desde 1888 com a terra, porque a lei assegura o direito à exclusão, à miséria, como antes era aceita como legal a escravidão. A escravidão nunca teve uma lei que a legalizasse, mas foi preciso uma lei para fazer a Abolição. Ainda assim, defenderam a legalidade de manter o que não tinha sido legalizado.

Dessas relações sociaes, da incarnação, por assim dizer, da escravidão no seio da familia e no seio da sociedade, resultam relações multiplas e obrigações diversas. E de um traço de penna se legisla que não existe mais tal propriedade, que tudo podia ter relação com ella desapparece, que nem contractos, nada absolutamente pode ter mais vigor.

Agora ele critica a Abolição em nome do hábito e da tradição social da escravidão.

O proprietario que hypothecou a fazenda com escravos, porque a lei assim o permittia, delibera de seu motu proprio alforrial-os, o que pela nossa lei cons-titue um crime, e é por isso remunerado!

Os bancos, os particulares adiantaram sommas immensas para o desenvolvi-mento da lavoura, das fazendas. Que percam!...

As atas não registram risos nesta hora. Mas seria de rir se não fosse trágico: criticar-se os fazendeiros que alforriam seus escravos, porque eles faziam parte do acervo hipotecado pelo fazendeiro.

Emfim, senhores decreta-se que neste paiz não ha propriedade, que tudo pode ser destruído por meio de uma lei, sem attenção nem a direitos adquiridos, nema inconvenientes futuros!

O direito do ser humano fica menor do que o direito do fazendeiro, ou do banqueiro. Porque a lei não é considerada no terreno da ética.

Sabeis quaes as consequencias? Não é segredo: daqui a pouco se pedirá a divisão das terras, do que ha exemplo em diversas nações, seja de graça ou por preço minimo, e o Estado poderá decretar a expropriação sem indemnização!

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E, senhores, dada a differença entre o homem e a cousa, vê-se que a propriedade sobre a terra tambem não é de direito natural. Não é aquella propriedade natural de que fala o jusrisconsulto Cardoso.

Aqui, a ameaça: hoje é a escravidão que acaba, amanhã será toda a proprie-dade. Estava errado porque mais de um século depois, ainda não houve a reforma agrária com que ele ameaçava aos fazendeiros.

É um dos inconvenientes, Sr. Presidente, que noto, no modo por que se quer resolver esta questão, pura e simplesmente; acrescentando sempre, em nota, que não havia outro remedio. Sou constrangido a dar as razões por que não invejo a gloria, que será, no futuro, uma gloria da humanidade.

Passemos a considerar qual será a sorte da nossa lavoura. Ouço elogios, dythi-rambos sobre o reinado de Saturno, que vai surgir com o desapparecimento da escravidão.

Os parágrafos abaixo merecem leitura cuidadosa, e que o leitor faça a comparação com os discursos de hoje.

A verdade é que ha de haver uma pertubação enorme no paiz durante muitos annos, o que não verei, talvez, mas aquelles a quem Deus conceder mais vida, os que forem mais moços presenciarão. Se não me engano, lavrem na minha sepultura este epitaphio: “O chamado no seculo Barão de Cotegipe, João Mauricio Wanderley, era um visionario!”

Tenho algum conhecimento das circumstancias da nossa lavoura, especialmente das provincias que citei em principio; e afianço que a crise será medonha; escaparão do naufragio muitos, uns que já estão munidos de salva-vidas; outros que, no meio do naufragio, apanharem alguma taboa, em que se salvem; outros, finalmente, que lucrarão, quando o navio vier dar á costa. Mas a crise ha de ser grande. Estarei illudido, estimarei mesmo estar; porém a convicção intima que me domina, não me permitte que eu pense diversamente. Acompanho a sorte do meu paiz; para hoje onde hei de ir? Sou daquelles que aqui nasceram e aqui hão de morrer, si não me deportarem algum dia. (Risadas.)

Finalmente, as atas registraram risadas.

O progresso da civilização tem sido tal, que mesmo a moral privada e pública, segundo alguns escriptores, deve ser completamente reformada; e, pois, devo ser considerado um homem de outro seculo, e a este tudo se perdoa.

Si esta é a minha convicção a respeito dos proprietarios, ou, na phrase de um amigo de quem ha pouco recebi carta, a sorte dos lavradores (não lavraram outra cousa); si esta é a sua sorte, pergunto (e agora entro em cheio no mar da caridade e da philantropia) qual é a sorte dos libertados, quaes os preparativos para que aquelles que abandonarem as fazendas tenham occupação honesta? Qual é a sorte dos 500.000 ingenuos, que estão sendo alimentados, vestindo e tratados pelos respectivos proprietarios em suas fazendas? Acompanharão as mãis e os pais? Mas os que não os tiverem, seguirão a mesma sorte? Os proprie-tarios continuarão a sustentar maior numero de ingenuos de que de escravos?

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Mas uma vez, a hipocrisia: preocupação com os libertos. É certo que a Bolsa Família e o salário mínimo asseguram menos comida do que recebiam os escravos dos seus senhores, interessados em não perder o investimento feito; é certo que a desigualdade no atendimento médico era muito menor entre o escravo e seu dono do que hoje entre um rico e um pobre; é certo que, naquele tempo, quase todos eram igualmente sem educação; nesse sentido, Cotegipe tinha razão. Mas eles ficaram livres.

Até hoje, uns trabalham para sustentar os outros; mas, desde que falte o braço valido, a sustentação do braço invalido não pode de modo algum continuar. O que será feito dos velhos, daquelles que estão incapazes de serviços, e que, segundo a lei de 1885, estavam a cargo dos ex-senhores?

Sr. Presidente, temos um frisante exemplo ainda que em menor escala, pelo que aconteceu na republica do Perú. Alli, o numero do escravos existente era do 80.000; foram de uma vez libertados, e dizem os contemporaneos que uma pequena parte continuou nas fazendas; outra parte morreu pelas estradas e nos hospitais; e a outra parte foi morta a tiro! Quer dizer que tornaram-se salteadores; atacavam os viandantes, atacavam as fazendas e praticavam toda a casta de barbaridade que podia praticar gente ignorante.

Si nós outros não tomarmos muita cautela, digo que o mais diffícil do problema não fica resolvido; o mais diffícil será o evitar e o providenciar, para que os resultados, que eu, talvez erroneamente, prevejo, não se realizem.

Para Nabuco, era preciso avanço: Abolição, escola e reforma agrária. Para Cotegipe, era preciso cautela: manter os escravos sob a tutela e a “proteção” do senhor, como todo patrimônio.

Falla-se em sociedades de protecção a libertos; sim, senhores, são necessarias sociedades de protecção aos libertos, para dar-lhes occupação e collocal-os.

O Sr. Candido de Oliveira: Não ha mais libertos; são cidadãos brazileiros.

O Sr. Barão de Cotegipe: São libertos; mas direi, si quizer, até que são inglezes. (Risadas.) Eu uso do termo proprio. Venham as sociedades particulares; mas sejam para a collocação e não para especulação.

Tenho encarado a questão pelo lado dos inconvenientes praticos para a lavoura; pelo lado humanitário para com os libertados; agora, seja-me permittida uma rapida vista de olhos sobre as consequencias politicas deste acto.

É cívico.

Por ora, Sr. Presidente, tudo é festa, tudo é alegria, tudo são flores; emfim, o prazer é unanime, universal, por esse grande acto da extincção da escravidão. Estão, porém, persuadidos ou convencidos, os nobres senadores, de que o negocio fica ahi? (Pausa.) Estão convencidos? Declaro que não; sou mais franco. Vossas Excelencias não querem responder, mas eu respondo talvez por todos: não, não fica ahi.

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O nobre Ministro da Justiça disse: “Sou amigo de todo o progresso” Pois bem: mas qual a direcção do progresso? É a questão.

Vejam as duas perguntas que ele formula abaixo:

Um acto destes fortifica a ordem publica? Um acto destes reune um pensamento commum em favor das instituições, de todos os brazileiros? (Pausa.)

Não, senhores. Este acto crêa muitos descontentes: as instituições perdem muito apoio com a irritação de uns, e com a indiferença de outros.

Seccas as flôres, dissipadas as nuvens ou o fumo das girandolas, apagadas as illuminações, vereis surgir mais de uma questão grave.

Não é, Sr. Presidente, uma prophecia, que eu esteja fazendo, ou que as minhas palavras sejam de um vidente. Não faço mais do que julgar as intenções dos indivíduos pelos seus actos e palavras.

Abstraindo de certas publicações cujos autores são conhecidos: mas que são anonymas, me referirei a uma que tem para mim grande importancia; e a tem porque si não é o éco, é um dos mais esforçados coadjuvadores da politica do meu honrado amigo o Sr. Conselheiro Dantas.

Hontem recebi de minha provincia alguns impressos, e, por acaso, cahiram as minhas vistas um discurso de um nobre conselheiro ex-deputado geral, cujo elogio não cabe a mim.

Disse commigo: amanhã tenho de fallar perante o Senado; as minhas vozes têm de chegar...porque o paiz é pequeno... ao extremo do Imperio, não perco estas palavras que para mim são de ouro.

Sr. Presidente, V. Exa conhece-me, porque temos convivido juntos, que não ha nada que mais me repugne do que as leituras. Mas para não debilitar a força da eloquencia a fazer um resumo magro e chato como eu faria, vou repetir alguns trechos deste discurso-programma. Foi elle proferido em uma reunião politica na minha provincia, não direi que perante cinco mil pessoas, por ser numero official (hilaridade), direi seis mil pessoas. (Hilaridade.)

Aqui, ele lê panfleto abaixo de um grupo republicano que comemora a Abolição e critica o Império. É um texto progressista, em defesa de um programa que se tivesse sido cumprido teria construído um Brasil diferente, mas que é apresentado como uma ameaça do que viria. Ele certamente não esperava os prolongados aplausos que as atas registraram em apoio ao panfleto.

Circumstancias, com que ainda ha pouco ninguém poderia sonhar, vieram facilitar singularmente a nossa tarefa. Fazendo da abolição uma empreitada commettida ao partido reactor, a Corôa enfraqueceu substancialmente um dos seus baluartes mais fortes e melhor construidos, porque vê pouco quem não percebe o golpe republicano, que candidamente descarregou em seus proprios interesses. (Apoiados.)

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Hoje, a regência pratica ás escancaras, em solemnidades publicas, o acoitamento de escravos, depois de terem fulminado contra nós o anathema, por uma lei informe do Imperio, lei de odio á raça escrava; hoje, depois de ver que a avalanche negra vinha destroçal-o todo, declara que não quer mais escravos; hoje, que só vemos na politica da Regencia o merito de ter aberto os olhos á luz meridiana e de não chicanar mais diante de factos consummados, merito que não desco-nhecemos, mas que não admirmos; hoje, ainda nós cruzamos os braços, sem consciencia, talvez, de nós mesmos, e sem discernimento da responsabilidade que pesa sobre nossos hombros. (Prolongados applausos interrompem o orador.)

O Sr. Affonso Celso: Isso mesmo, mais ou menos, se disse no club Beethoven.

O Sr. Barão de Cotegipe (continuando a ler):

Senhores, a grande transformação se approxima; a cerração negra desapparece, rejeitada pela força irresistivel dos acontecimentos que operam as mutações do tempo no seio da historia, e por esses espaços immensos, que se abrem, entrarão os fachos deslumbrantes de um novo sol, e o oxigenio poderoso da civilisação americana purifica essa atmosphera saturada de emanações cadavericas. É uma ressurreição, é um passado que volta ao abysmo de onde sahiu. É uma idade que acaba e uma nova éra que começa; de todos os pontos de nossas fron-teiras, do norte e do sul, os ventos nos trazem as idéas vivificadoras da nossa rehabilitação; a liberdade religiosa; a regularização da legislação em todos os seus ramos; a diffusão do ensino; a universalidade do voto; a desenfeudação da propriedade; a federação dos Estados-Unidos Brazileiros. ... (Estrepitosos applausos prolongados.)

Percebe-se claramente o alerta de que a Monarquia havia perdido sua base de sustentação. E não foi por acaso que 18 meses depois, dia a dia, a República foi proclamada. Com ironia ele saúda os novos tempos para assustar os que não queriam ir além da simples Abolição. Como hoje alertam o que vai acontecer se o Brasil virar um país com uma escola igual para todos.

Tudo isto precisamos, e o faremos, apezar da Corôa e contra Corôa, si ella se oppuzer, porque já nos devemos convencer de que não é possivel amalgamar a liberdade com o absolutismo: são duas cousas que se excluem. (Applausos prolongados.)

Tudo isto era impossivel antes da abolição, e hoje torna-se inevitavel. Estas são as nossas reformas proximas, muito proximas, e que hão de modelar os novos partidos politicos, de cujas evoluções dependem as nossas futuras instituições, que não podem ter outro principio, sinão o da más ampla liberdade no estylo americano. (Applausos e vivas.)

Eis aqui, senhores, o que nos espera. Preparemo-nos para esses novos combates.

O Sr. Dantas: - Que virão; nem podem deixar de vir.

O Sr. Barâo de Cotegipe: Os partidos terão naturalmente de formar novos agrupamentos, e quem sabe a força que elles terão para dominar semelhante tentamen? Seguir, custa pouco; tirar o terço, é mais difficil; acompanhal-o não.

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Concluo, Sr. Presidente, resumindo o que disse, passe o projecto já e já; e, si o regimento o permite, que se vote duas vezes na mesma sessão, estou prompto a continuar aqui. Entendo que grandes males vão surgir desta medida; que convem que sejam quanto antes tomadas providencias em beneficio, não só da lavoura, como dos que vão ser libertados. Chamo tambem a attenção do paiz e do governo para as tendencias, que já apparecem, e, afinal, pedirei a Deus, do mais intimo do meu coração, que separe de nós todos os males que eu prevejo.

Peço tambem desculpa aos meus concidadãos, si, pelas razões que acabo de dar, faltei ao que lhes devia; não faltei de modo algum á minha consciencia. O Senado me desculpará, si lhe tomei tanto e tão precioso tempo. (Muito bem, muito bem.)

O Sr. Jaguaribe: Tenhamos fé nas instituições: se ellas valem alguma cousa, não ha de ser por falta de escravos que hão de cahir. (Apoiados.)

Se substituimos a escravidão pela reforma agrária, pela federalização da educação, ou por impostos sobre as grandes fortunas, muitos parla-mentares de hoje farão discursos parecidos com este do escravocrata Barão de Cotegipe. Sem coragem de opor-se, mas convencidos dos riscos que estas reformas representariam. Afinal, foram exatamente discursos como esses que levaram à interrupção da democracia em 1964. Medo de reformas, como Cotegipe temia o fim da escravidão.

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DIA 12– SáBADo

As atas dizem o seguinte:

Prossegue em 2a discussão o art. 2o da Proposta. Postos a votos, são aprovados o art. 1o, com a emenda da Câmara, e o art. 2o.

O Senador Cândido de Oliveira apresenta requerimento pedindo dispensa do intersticio para que o Projeto fosse para a Ordem do Dia de 13 de maio, convoncando-se para esse fim uma sessão extraordinária em pleno domingo. O requerimento foi aprovado.

A Proposta entra na terceira discussão. O primeiro a falar, Paulino de Souza, é contra.

O Sr. Paulino de Souza: Eis-nos, Sr. Presidente, quasi chegados ao momento final em que se vai dar o passo decisivo na questão mais grave e importante até hoje agitada no Brazil.

A solução está dada, e o transito pressuroso que vai tendo neste recinto a proposta do governo, não é sinão um tramite mais, com que se quer dar apparencia de legalidade a uma medida, na concepção e no alcance, francamente revolucio-naria. Nesta conjuctura, que a muitos se afigura o ponto de partida em uma senda gloriosa, mas que persisto em reputar arriscadissima para a ordem social e economia da Nação, parece que aquelles sobre quem pesa a responsabilidade desta medida, allucinam-se na precipitação, com receio de ver sobrevir alguma hora de reflexão e de prudencia.

No meio de tantas impaciencias o debate é impossivel. Não vou, pois, discutir a proposta, nem preciso lavrar protestos. Venho sómente justificar, em poucas palavras, o meu procedimento, qualificar a medida proposta e confessar-me vencido.

Acredito que nunca houve neste paiz quem sustentasse em principio a escra-vidão. Por minha parte, estou convencido de que ninguém, que me conheça, atribuir-me-ha a intenção de querer manter o trabalho servil como a fórma mais perfeita ou definitiva do trabalho nacional.

Mais um que se diz a favor, mas contra a pressa: diz que é difícil e arriscado, até impossível. O mesmo que hoje se fala sobre uma revolução na educação.

Como também nunca houve neste país quem se dissesse contra a educação. Do ponto de vista lógico, excluída a moralidade, até seria explicado temer a Abolição diante dos riscos de desarticulação da agricultura e serviços domésticos. No caso da educação, a única explicação para não ser feita é a proteção da propriedade do capital conhecimento nas classes dirigentes através de seus filhos. Em nome da moral, Abolição ameaçava a economia, a educação ameaça privilégios.

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O discurso é igual ao daqueles que se dizem comprometidos com a neces-sidade do equilíbrio ecológico, mas a necessidade de energia exige destruir florestas com hidrelétricas, poluir o ar com derivados de carbono, ameaçar a vida com os riscos decorrentes de energia nuclear.

No fundo, a lógica do progresso se sobrepõe à sua imoralidade.

Quando, porém, se levantou primeiro a questão de abolir o elemento servil, eu, que por mim, por meus amigos, por meus comprovincianos, por todos os Brazileiros que collaboram na produção da riqueza nacional, sabia ser esse o unico trabalho organizado em quase todo o paiz, não podia convir em que fosse elle tão rapida si não subitamente supprimido. Era elle então, Sr. Presidente, o unico, como ainda é hoje, ou quase unico trabalho que existe na maior parte das provincias do Imperio, e tambem nessa zona, extenssissima e rica, das margens do Parahyba e dos valles fertilissimos dos seus innumeros tributarios; região que se póde dizer ter sido nestes ultimos 50 annos a officina da riqueza nacional, de onde partiram os recursos com que se encheram as arcas do Thesouro para se converterem em todos esses melhoramentos com que proseguio no actual reinado, até o ponto em que a vemos hoje, a civilização no Brazil.

É interessante, e triste, como os interesses impedem ver a perversão da realidade. A escravidão é vista apenas como o trabalho organizado, não como sequestro para o trabalho forçado, não é considerado ignóbil, atrasada; é apenas a forma existente de trabalho organizado. Desfazê-lo é arriscado.

Representante da provincia do Rio de Janeiro, ligado por muitos laços com os outros productores da região a que me referi, tinha, Sr. Presidente, o deve impres-criptivel de collocar-me na resistencia em defesa de tamanhos e tão legitimos interesses que, seja dito por demais, entendem tanto com a fortuna particular como com a ordem econômica e financeira do Estado. Foi assim que resisti em 1869 e 1870, quando ministro do gabinete de 16 de julho; fundado nos mesmos motivos que achei-me, em 1871, collocado á frente da opposição ao gabinete de 7 de março, em uma das nossas mais memoraveis campanhas parlamentares.

Estranhei, pois, Sr. Presidente, que um honrado representante da provincia das Alagoas, na outra casa do parlamento, viesse dizer-me agora, á ultima hora, como uma exprobração, que eu concorrera para este resultado e que era responsavel pelo desenlace que estamos vendo. A parte que este illustre parlamentar me quis dar nas magnificencias da victoria de hoje, e de uma gloria que só Erostrato invejaria, não me pertence e nem preciso recusal-a.

Perco-me, porém, em um mar de conjecturas para devassar os motivos, que não foram ditos, de semelhante asserção. Será porque a resistencia foi execessiva? Ou porque não foi sufficiente e efficaz?

Que não foi excessiva, mostra-o o facto de chegar-se, mais cedo do que se deveria esperar, ao ponto em que nos achamos. Si não foi sufficiente e efficaz, posso dizel-o com inteira segurança, não tive outros meios licitos e prudentes de resistir sinão os de que lancei mão.

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Reconhece como mérito ter resistido à Abolição. Além de seus interesses ele era um político como os de hoje: defende seus interesses e de seus apoiadores, não os interesses da ética, da Pátria, do futuro.

Si o illustre deputado quiz alludir ao meu procedimento depois da organização do actual gabinete, devo francamente explicar por que não organizei agora resistencia igual á de 1871. Dil-o-hei desde já e nuamente – porque era impossivel fazel-o nas condições actuaes dos partidos e á vista de outras circumstancias, sem que, arrastado pelos acontecimentos, tivesse depois de chegar a um ponto em que não quero achar-me, e de que me afastam as tradições do nome, que tive a formatura de receber e os antecedentes da minha vida publica.

Não era preciso, Sr. Presidente, muito atilamento e grande esforço de engenho, para comprehender, quando retirou-se o gabinete de 20 de Agosto e formou-se o actual, que a abolição do elemento servil estava feita. A historia e a experiencia politica attestam que todas as vezes que a realeza, por amor da popularidade, por motivos de sentimentalismo, ou por calculo politico, accórda-se, ainda que em pensamento, com qualquer propaganda popular, energia e activa, a insti-tuição contra a qual se dirigem os esforços combinados, póde-se contar que está fatalmente derrocada, e com ella sacrificada a classe ou classes interessadas na sua manutenção. E si á frente dessa propaganda se acham homens resolutos, enthusiastas e ousados, o arrastamento é invencivel, e não ha mais poder que consiga encadear ou encaminhar a torrente, uma vez solta da represa. Sirva o que neste momento occorre, de exemplo e lição no futuro. Chegou-se logo ao fim, houvesse ou não a intenção de ir tão longe.

Em taes condições, vendo-me sem meios efficazes de resistir, na esphera em que, por mais de um motivo, devo manter-me; convencido de que tudo se ia precipitar, como os factos estão justificando, antes que os meios dispostos pudessem sortir effeito para o seu fim especial, não tinha outro procedimento correcto e reflectido sinão manter a maior reserva e prudencia, para não ser arguido de ter provocado quaesquer demasias que apparecessem e deixar inteira a responsabilidade a quem de direito possa caber. E demais, Sr. Presidente, como resistir, si os que se achavam a meu lado, na resistencia, estão á frente da acção; si o ministerio foi dominado e absorvido pelo partido abolicionista; si o Partido Liberal, accórde com os seus principios e antecedentes, tem de receber, com a maior longanimidade, a realização por outros da idéa que era sua; si todas as influencias, e entre ellas a mais alta e irresistivel, todas se conjuraram e conjurarão para se fazer o que hoje será feito??!

É a primeira vez no debate que se fala no part ido abolicionista. Os taquí-grafos deveriam ter colocado aspas, porque esse partido não existia: a Abolição era uma Causa. Conquistada, os parlamentares voltariam a ser republicanos, liberais ou conservadores. Isto é o que falta hoje no Parla-mento brasileiro: partidos de Causas. O último part ido-causa foi aquele que reunia os que defendiam a democracia durante o regime militar. Hoje, os part idos-sigla nada significam, e as bancadas são corporativas, não há part idos-causa nacional, como foi o part ido abolicionista.

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Examinemos, porém, ainda que rapidamente, o estado das cousas á luz dos últimos acontecimentos.

Ha três annos, em 1885, quando entrei nesta casa, achavamo-nos em plena propa-ganda abolicionista, estando o governo sob a influencia e responsabilidade do honrado senador pela Bahia (o Sr. Dantas), meu particular amigo, que trouxera, como disse, para o parlamento, a solução da questão, por elle achada nas ruas. Houve, é certo, naquelle tempo, muito ruido e alguns excessos; mas devo dizer, em honra daquella administração, que nos estabelecimentos agricolas, nas officinas do trabalho nacional, a ordem e a traquilidade não foram perturbadas; antes manteve-se em todos os pontos a regularidade da producção e o respeito da legalidade. Si o honrado senador quizesse então pôr em pratica o processo conservador ultimanente empregado em S. Paulo, e, depois da ascensão do actual gabinete, assestado como um morteiro de anarchia contra os proprietarios da minha provincia, teria necessariamente feito em poucos dias a abolição. Achavam-se aqui unidos e accórdes contra as intenções do Ministerio de 6 de junho, todos os conservadores do Senado, com exceção de algum que fizesse reservas abolicionistas.

Foi principalmente aos golpes da resistencia que succumbiu aquelle Ministerio, quando se achava talvez pouco expressiva a imagem tornada popular, da junta do couce, e se acreditava que o menos que se poderia fazer era escorar o carro pelo recavem.

Retirando-se o gabinete de 6 de junho, veio a transacção iniciada pelo Sr. Conse-lheiro Saraiva afinal levada a effeito sob a influencia do meu ilustre amigo, o Sr. ex-Presidente do Conselho. Durante a ultima administração, o Partido Conservador unido nesta e na outra casa do Parlamento, como em todo o paiz, prestou-lhe o mais decidido e constante apoio, não, certamente, como home-nagem devida unicamente á sua posição, talentos e serviços; mas por adhesão á sua politica, e ás idéas de que era fiel interprete no governo. Ao passo que todo o Partido Conservador se mantinha unido na sustentação da politica de 20 de agosto, o Partido Liberal, pelos mais activos e adiantados dos seus chefes, esposava francamente a causa da abolição, e em dias de Maio do anno passado, ao abrir-se a sessão legislativa, apresentava o Projecto para a extinção do elemento servil, com prazo definitivo para 31 de Dezembro de 1889. Travou-se a luta entre os dous partidos nos termos strictos e legítimos do systema cons-titucional: a acção, promovida pelo Partido Liberal; a resistência, sustentada pelo Partido Conservador.

Ou não sei, senhores, o que é o Partido Liberal e o que é Partido Conservador, ou nesta questão incumbe a este a defesa dos grandes interesses de ordem social e economica arraigados na nossa sociedade, impossiveis de eliminar e extinguir sem grande abalo e pertubações de mais um genero, ao passo que aquelle tem mais isenção, podia preoccupar-se menos com os interesses existentes, quando se tratasse de conferir liberdade a individuos della privados no seio da nação.

Os conservadores do Senado sustentaram todos os actos do Ministerio 20 de Agosto, relativos á execução da lei de 28 de Setembro de 1885, actos estes que merecem tambem o apoio da Camara dos Deputados. E nos ultimos dias da sessão passada, quando o meu illustre amigo e sempre respeitado mestre, o nobre senador pela provincia de Goyaz, requereu urgencia para entrar na Ordem do Dia o projecto abolicionista, assignado por todos os liberaes do Senado, com

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excepção dos collaboradores da lei de 1885, o voto desta Camara foi terminante e decisivo, por parte dos conservadores que nela têm assento.

Parece, Sr. Presidente, á vista de taes antecedentes, que ao Partido Liberal competia realizar a sua idéa. E como não foi assim, o que vemos? Perturbadas todas as noções até hoje recebidas na pratica do systema constitucional, confun-didas todas as idéas, dislocados os homens publicos das suas posições naturaes e anteriores, revolvida toda a esphera em que se movem os partidos, vemos a mesma situação inaugurada a 20 de Agosto, com duas politicas diversas, a politica conservadora e a politica liberal.

Pena que hoje nem esta divisão temos. Os partidos-sigla significam que eles mudam de lado conforme a conveniência de ser ou não governo. Partidos apenas de ser governo ou oposição.

Qual, Sr. Presidente, a posição dos meus illustres adversarios? Aceitaram a que lhes foi imposta com longanimidade, digna certamente do maior elogio, mas que importa a sua suppressão como partido politico militante. O seu papel foi, durante o Ministerio ultimo, como deveria ser, combater as idéas adversas, crear os maiores embaraços á realização destas; hoje, espoliados da honra de levar a effeito um plano, que seria um florão a elles destinado na história, vêm-se na posição dos membros de outra irmandade que tomam logar na procissão para unicamente pegar nas tochas e allumiar o caminho ao andor na confraria rival.

Sr. Presidente, V. Exa sabe que não é de hoje que sustento a necessidade de partidos fortes, regulares e sinceros, cada um delles com a sua bandeira bem definida, fieis ás suas idéas, dirigidos pelos seus chefes: são elles necessários, no interesse do progresso nacional, no interesse do livre jogo das instituições e principalmente no interesse da propria realeza constitucional, a que servem de anti-mural para manter-lhe a inviolabilidade perante a opinião.

O senador Paulino de Souza não se mostra apenas um opositor da Abolição ao menos naquele momento, mostra-se como um bom político de uma linha ideológica defensora do status quo.

Que resguardo podem offerecer ao soberano irresponsavel, homens que pensaram hontem de um modo, e procedem hoje de outro, que politicamente não têm corpo para a responsabilidade que cabe aos ministros nesta forma de governo? E a responsabilidade dos partidos, personificada nos seus chefes leaes e coherentes no poder, que mantém uma das bases essenciaes da nossa fórma de governo? Os homens, que disseram hontem de uma fórma e procedem hoje de outra, poderão ser muito capazes e honrados na vida particular; mas não têm, como disse o nobre senador pelo Rio Grande do Sul, a honrabilidade precisa para a missão do governo que, na forma das nossas instituições, é a realização das idéas com que se conquista perante a opinião nacional aquella ardua posição.

A grande propriedade agricola em nosso paiz, que é, por sua constituição, uma especie de feudalismo patriarchal, tem opposto até hoje, por sua indole, habitos e interesses, embaraço poderosissimo á realização dos fins a que se propõe o partido ultra-democratico. Si a impresa, que o representa, hostilisa francamente e por todas as fórmas ao seu alcance, adversario de tamanho peso na organização

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social e procura enfrequecel-o, sinão desrespeital-o para tel-o como auxiliar em qualquer acção conjunta posterior, é bem de ver que não faz sinão promover o seu proprio interesse, alargar e facilitar o seu caminho, mediante a destruição de uma força essencialmente conservadora. É essa imprensa sagacissima e muito habil para não aproveitar o concurso do actual gabinete, valiosissimo auxiliar, que seduz e attrahe por todos os modos, favoneando-lhe a vaidade e a ambição.

A historia moderníssima, a historia recente ainda dos nossos dias apresenta um exemplo de abolição do elemento servil, levado a effeito em plena revolução. Em 184828 , a revolução de fevereiro depois de derribar a monarchia de julho, teve para ser logica, de promover a emancipação dos escravos das colonias francezas, reputando a escravidão incompativel com o novo regimen, que assentava na liberdade, igualdade e fraternidade. O governo provisorio, que se compunha, como o Senado se ha de recordar, de Lamartine, o poeta, de Arago, o astronomo, de Luis Blanc, o publicista de desorganização, de Garnier-Pagés, o doutrinario da anarchia, de Ledru-Rolin, o incendiario politico, e de outros, a quem poderia dar analogas qualificações; esse governo revolucionario não se animou a praticar o que em plena tranquilidade e em uma época regular, vai-se, em poucas horas, praticar no Brazil, não, sob a direcção, mas com a complicidade de homens politicos que se dizem conservadores.

A coerência reacionária do senador Paulino diz que os conservadores favoráveis à Abolição tiveram cumplicidade com a passagem da Lei, seriam traidores. Hoje se vê posição parecida, de cabeça para baixo, quando os militantes de esquerda, depois de chegarem ao poder mudam de lado e criticam aqueles que saíram do partido para não mudarem de lado ideo-lógico, não abandonarem as bandeiras.

O contraste é tão saliente, que o Senado me ha de permittir referir o que alli se passou. A 27 de abril expediram-se 12 decretos e duas deliberações, declarando-se no primeiro daquelles que eram livres todos os que se acham em qualquer terra do mundo á sombra da bandeira franceza; mas logo no art. 1o do mesmo decreto se determinou que a emancipação não se tornaria effectiva sinão dous mezes depois da promulgação do acto nas colônias, para se dar tempo a effectuar-se a safra daquelle anno.

O governo revolucionário de 1848 na França lidou com a escravidão fora da França, nas colônias. O Brasil lidava com o problema dentro das fronteiras. Obviamente, não era ético aceitar escravidão nas colônias, até mesmo ter colônia deveria ser incompatível com o espírito revolucionário de uma nação. O governo francês de 1848 aboliu a escravidão em todas as partes do mundo sob bandeira francesa, dando o prazo de dois meses, necessários até para que os decretos abolicionistas chegassem em lugares distantes, como Haiti e Taiti.

28 Na França.

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Em outro artigo do mesmo decreto, se assegurou que a Assembléa Nacional attribuiria, como de feito fez, os fundos necessarios para idemnização dos proprietarios.

Não convinha, dizia-se, que no dia em que as mãos dos trabalhadores servis fossem livres, as mãos dos proprietarios estivessem vazias. Para continuarem os trabalhos era necessario pagar salarios e estes não podiam sahir senão da indemnização, aliás devida em toda desapropriação; estando os lavradores das colonias francezas tão oberados como os nossos, e sujeitos a uma liquidação repentina e atropellada, que aliás não foi tão afflictiva como se figura a que vamos presenciar.

Outros decretos estabeleceram o direito ao socorro por parte dos invalidos, dos enfermos, dos velhos, dos orphãos, das crianças abandonadas; crearam hospicios, salas de asylo, escolas profissionaes agricolas, escolas de instrucção primeira gratuita e obrigatoria, para os libertos; instituiram jurys cantonaes, compostos de numero igual de proprietarios e de operarios, para decidir as questões que sobreviessem nos estabelecimentos agricolas, entre os lavradores e os novos trabalhadores livres, com alçada no civel até 300 francos, e com ampla jurisdicção correccional para punir as desordens dos operarios e reprimir as coalições e paredes; fundaram casas de trabalhos disciplinares, para a repressão de mendicidade e da vadiação; providenciaram sobre a liquidação das proprie-dades empenhadas; levantaram bancos especiaes, com organização adequada; formularam o projecto de diminuição dos impostos sobre a importação dos productos coloniaes para o consumo da metropole.

Logo a 2 e 3 de Maio se expediram novos decretos sobre o recrutamento e inscripção marítima, e organizando a guarda nacional nas colonias. Proveu-se assim a todos os interesses da ordem moral, da ordem economica, e satisfizeram-se todas as exigencias da tranquillidade publica e da segurança individual.

Pois bem, Sr. Presidente, é o governo regular do Brazil que, em contraposição áquelle governo revolucionario, faz decretar, de um dia para outro, a abolição immediata, pura e simples, sem uma garantia para os proprietarios, espolian-do-os da propriedade legal, abandonando-o a sua sorte nos ermos do nosso interior, entregando-os á ruina, expondo-os ás mais temerosas contingencias, sem tambem por outro lado tomar uma providencia qualquer a bem daquelles, que vota em grande parte á miseria e ao exterminio, nos primeiros passos de uma liberdade, de que, não preparados convenientemente, difficilmente saberão usar a seu beneficio.

Em um ponto tem razão o senador Paulino quando critica o governo da Princesa de fazer a Abolição sem complementá-la com medidas de inclusão dos libertos. Nabuco dizia que era forçoso distribuir terra e fazer escolas, mas jamais usaria a falta destas medidas como desculpas para atrasar a liberdade. Ele critica o que faltava, o conservador Paulino manipulava o que faltava para tentar abortar a Abolição. Como hoje alguns manipulam possível descumprimento de leis trabalhistas para abortar a oferta de médicos às populações carentes de atendimento.

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Ele diz que os proprietários merecem estar preparados, e que liberdade não pode ser súbita de um dia para o outro, mas não cita que, entre a Abolição de 1848 na França e a de 1888 no Brasil, se passara quarenta anos – mais de 15 mil dias – quase duas gerações de escravos continuaram nascendo e vivendo sob a vergonhosa bandeira da escravidão.

A proposta que vai votar é inconstitucional, anti-economica e deshumana. É deshumana, porque deixa expostos á miseria e á morte os invalidos, os enfermos, os velhos, os orphãos e crianças abandonadas da raça que quer proteger, até hoje nas fazendas a cargo dos proprietarios, que, hoje arruinados e abandonados pelos trabalhadores validos, não poderão manter aquelles infelizes, por maiores que sejam os impulsos de uma caridade, que é conhecida e admirada por todos os que frequentam o interior do paiz. É anti-economica, porque desorganiza o trabalho, dando aos operarios uma condição nova, que exige novo regimen agricola; e isto, Sr. Presidente ao começar-se uma grande colheita, que aliás poderia, quando feita, preencher apenas os desfalques das falhas dos annos anteriores. Ficam, é certo, os trabalhadores actuais; mas questão não é de numero, nem de individuos, e sim de organização, da qual depende principalmente a effectividade do trabalho, e com ella a produção da riqueza. É inconstitucional porque ataca de frente, destroe e aniquila para sempre uma propriedade legal, garantida, como todo o direito de propriedade, pela lei fundamental do imperio entre os direitos civis de cidadão brazileiro, que della não póde ser privado, sinão mediante previa indemnização do seu valor.

O oportunismo ideológico era tão grande que os ex-escravos passariam fome na liberdade, e a responsabilidade seria dos abolicionistas e da Abolição, e não dos fazendeiros interessados apenas na exploração da mão de obra escrava. A cegueira via os escravos na fome, não com terra e seus filhos na escola.

Hoje, é comum o argumento de inconstitucionalidade cada vez que se defende fazer o que não foi feito mais de cem anos atrás: distribuir terra improdutiva a trabalhadores desempregados é visto como inconstitucional; responsabilizar o governo federal pela educação das crianças é tido como inconstitucional; determinar que os filhos dos políticos com mandato estudem em escolas públicas é inconstitucional.

Os perigos que se antolham com este precedente, já foram assignalados, do modo o mais claro e positivo, pelo meu ilustre amigo, que me precedeu na tribuna.

Preciso terminar, Sr. Presidente, e chego á ultima parte do meu discurso. Confesso-me vencido.

Si nesta adversidade da fortuna politica, eu, que nunca as procurei, precisasse hoje de consolações, teria entre outras as seguintes: é hoje a minha sorte a do Partido Conservador. Emquanto a resistência prevalece, está elle triunphante; no momento em que é supplantada, deve reconhecer o predomínio de idéa triumphante. Sou vencido, é verdade; mas na ordem material, pelo numero e

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pela força das circumstancias, porque na ordem moral, a minha personalidade não se aniquiliou; mantém-se illesa, como sempre. Não sou, porém, o unico vencido; sorte analoga de um companheiro illustre não permite que neste momento me apresente só. Refiro-me a um honrado membro, de cujas opiniões talvez o Senado se não recorde, mas cujas palavras, proferidas não ha muito tempo, parece que o foram na previsão desta proposta, á qual se adaptam de tal maneira, que, não tendo esse meu companheiro de adversidade se pronunciado até hoje sobre a proposta, desejo, Sr. Presidente, que fique consignado o modo porque considerou, em sua previsão, acto que se vai praticar.

A Abolição era uma derrota para ele. Para ele a moral era compatível com a luta pela manutenção da escravidão. E critica João Alfredo por ter mudado de lado, citando texto dito no passado por este.

O Senado relevará que eu leia, com alguma emphase, as palavras que vai ouvir; li-as, porém, uma e cem vezes, e quase as leis de cor, tão incisivas e terminantes são ellas. Quando sentia entibiar-se-me um pouco a coragem, eu as relia nova-mente e nellas achava sempre conforto seguro á minha crença, novo vigor, nova animação, novas esperanças:

Eu estou convencido de que o Brazil não ha de perecer pela falta de escravos: mas não posso deixar de ter na maior consideração as difficuldades desta liquidação, que a politica, todas as razões de Estado, os interesses economicos, os interesses industriaes, aconselham se faça com a maxima prudencia, com o menor prejuizo possivel das fortunas em boa fé adquiridas. (Apoiados.)

O Sr. João Alfredo: - Mas, senhores, em todo caso hão de ser medonhas as deslocações das fortunas, as transmutações rapidas de situação, e por uma engrenagem forçada, eu pergunto: durante esse annos affilictivos de transição onde iremos buscar meios que bastem para todos os encargos do Estado, para toda a nossa vida e serviços da administração?

O Sr. Fernandes da Cunha: - Deus permita que a crise se estenda apenas a um período decennal.

O Sr. João Alfredo: - Senhores, muito infeliz foi o Brazil, herdando esta instituição; porém, mais infeliz será si a sua extincção não for conseguida mediante sabias cautelas e previsões, de modo que não acarrete graves perturbações. Como quer que seja, eu applico a esta questão o que dizia Thiers, da Turquia: A Turquia vive, porque é dificil supprimil-a, e quando a matarem, o seu cadaver ha de empestar a Europa por mais de 50 annos.

É sintomática da cultura política da elite brasileira, que entre as “sábias cautelas” não estava dar terra para os ex-escravos trabalharem, nem escolas para seus filhos estudarem.

Nós temos o duro engargo desta liquidação; procedamos, não como homens que se deixam levar pelas ameaças e vivorios, mas como homens que se compene-traram do seu dever, e que, em vez dessas glorias da praça publica, querem uma gloria real e verdadeira, que propocione dias tranqüilos e felizes á sua patria.

O Sr. Fernandes da Cunha: - Um estadista não se deixa levar pela popularidade.

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O Sr. João Alfredo: - Podem ser muito seductoras as glorias de Lincoln e seu partido, inundando de sangue o solo da patria, accumulando ruinas, destruindo, brusca e violentamente, a propriedade servil, de que o Estado tinha maior culpa que os particulares, não admittindo indemnização, nem permittindo ente os antigos senhores e os libertos nenhuma condição de serviços tempora-rios, e até confiscando as demais propriedades daquelles... A mim mais seduz e admira a corajosa honestidade com que o presidente Johnson resistiu aos vencedores, procurando evitar, e em todo caso moderando, a revolução social que se operava ao sul.

Ninguém aspira com mais ardentes votos do que eu a extincção da escravatura no Brazil; mas desejo a reforma com espirito e processo conservador. Desejo ver a corrente da opinião, que está formada, prosseguir dentro da lei, sem offensa dos principios fundamentaes da sociedade, como o rio, que, embora volumoso e rapido, corre pacificamente em seu leito, sem transbordar.

Pior é que provavelmtente não era hipocrisia, era a arrogância que até hoje se mantém nas classes e grupos conservadores que não acreditam que oferecendo terra e escola, naquela época, os escravos não apenas sobreviveriam, como também construiriam um novo país. O Sul dos EUA, até cem anos depois, tampouco liberou os ex- escravos para a vida moderna. Por meio da segregregação mantiveram-nos excluídos.

“Ninguém mais deseja do que eu” era a frase mais ouvida da boca de cada escravocrata; “mas me preocupo com a pressa e com os riscos” é o que eles diziam para justificar “apenas o adiamento”. Como se adiar uma situação não fosse mantê-la.

O mesmo fazemos hoje, com o quadro de apartação que substituiu a escra-vidão. Todos dizem “ninguém mais do que eu” e “apenas defendo o adia-mento das medidas para quebrar a apartação, porque não há recursos suficientes.”

A verdade de tudo mudar, para nada mudar. Repetindo, como disse ex-pre-sidente Luiz Inácio Lula da Silva: “quem come apressado, come cru”.

Os Srs. Fernandes da Cunha e Presidente do Conselho trocam apartes.

O Sr. João Alfredo: Eu referi-me ás grandes desgraças do sul dos Estados-Unidos. Si aquella grande nação pôde resistir á extincção brusca e violenta do elemento servil, é porque tinha grandes condições de prosperidade, e a parte importante do Norte não dependia do trabalho escravo.

O Sr. Dantas (presidente do conselho): A questão lá foi resolvida de modo differente.

O Sr. João Alfredo: Mas as desgraças que pesam sobre o Sul são tantas e tamanhas, que em meio seculo talvez não possam ser reparados.

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O nobre presidente do conselho é hoje, com grave injustiça feita a S. Exa, collo-cado entre os vencedores; não posso, conhecendo suas opiniões, proclamando a sinceridade dellas, deixar de assignalar-lhe, neste momento, o seu logar, para que venha tomal-o aqui ao lado vencidos.

O Sr. João Alfredo (presidente do conselho): Nunca estivemos juntos nesta questão: ella nos separou desde 1871.

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Senador Cristovam Buarque

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DIA 13 - DoMINgo

Em seu livro “A Escravidão Africana no Brasil”29 , Evaristo de Moraes Filho descreve os últimos debates.

“No último dia da escravidão, ainda uma voz se ergueu no Senado para fazer oposição platônica ao projeto vitorioso. Foi a de Paulino de Sousa. Reeditou os argumentos de Figueira e de Cotegipe. Fez um pouco de história política e atirou-se contra João Alfredo.”

As atas descrevem esse momento:

O Sr. Paulino de Sousa: - São tantas as impaciencias, que não posso deixar de concluir, e sem demora; tanto mais quanto é sabido, Sr. Presidente, e os jornaes todos que li esta manhã annunciam, que Sua Alteza a Serenissima Senhora Princeza Imperial Regente desceu de Petropolis e está á 1 hora da tarde no paço da cidade a espera da deputação desta casa, para sanccionar e mandar promulgar já a medida ainda ha pouco por V. Exa sujeita á deliberação do Senado. Cumpri, como as circumstancias permittiram, o meu dever de senador; posso cumprir o de cavalheiro, não fazendo esperar uma dama de tão alta jerarchia; e si assignalo o facto, é para a todo o tempo ser memorado nos annaes do nosso regimen parlamentar.

Devo, antes de terminar, dizer que illudem-se ou querem illudir-se aquelles que acreditam remover uma grande difficuldade com esta lei da abolição do elemento servil; pelo contrário, é agora que recrescem, com a desorganização do trabalho e com a entrada de 700 mil individuos não preparados pela educação e pelos habitos da liberdade anterior para vida civil, as contingências previstas para a ordem economica e social. Si para amparal-os, ajudal-os e defendel-os, nesta transição, inesperada e talvez affictiva, precisarem de mim, a minha provincia e a classe da lavoura, a que pertenço, continuarão a encontrar em mim a mesma dedicação, o mesmo esforço e a mesma coragem.

Ele reclama que o Brasil está recebendo 700 mil novos indivíduos “não preparados pela educação e pelos hábitos da liberdade”. Como se este despreparo fosse culpa da Abolição, dos abolicionistas, e não da escravidão, dos escravocratas. Como conservador, alerta para a tragédia de escravos deseducados. Sem pensar nem propor em como educá-los e inseri-los. Mas, como criticá-lo se até hoje não fizemos o que ainda é necessário. O fato é que o Brasil, antes e agora teve seu projeto de desenvolvimento visto do topo, nunca da base da pirâmide da sociedade. Daí decorre todo o desastre social que atravessamos. Somos todos Paulinos de Souza.

29 MORAES, Evaristo de. “A escravidão africana no Brasil”. Ed: Brasília/INL. 1986.

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Mas... não quero deter por mais tempo o prestito triumphal, que já se enfileira na sua marcha festiva! Quando elle passar por mim achar-me-ha neste logar representando a minha provincia, os meus companheiros no trabalho agri-cola, coherente com os deveres, já preenchidos, da missão que me incumbi de desempenhar em nome e em defesa de grandes interesses nacionaes. Sejam quaes forem os sentimentos que no coração se me possam expandir na hora em que todos forem livres nesta terra do Brazil, os guardarei commigo, silencioso, vencido, mas sem que se me possa contestar um titulo a respeito publico – o de ter preferido até hoje, como hei de preferir sempre, a lealdade, a integridade e honra politica a todas as glorias, a todas as grandezas. (Muito bem! Muito bem!!)”

Evaristo de Moraes Filho nos brinda com outra bela descrição: “O hino da vitória cumpria fosse entoado por um propulsor da ideia, e o foi por Sousa Dantas, que com extrema delicadeza não se mostrou ressentido com os ataques dos escravocratas, nas duas câmaras, quando, historiando os antecedentes, se referiam ao seu Ministério. Não havia, na alma do esta-dista baiano, lugar para sentimentos depressivos; toda ela, de si mesma expansiva e exuberante, irradiava alegria.”

As atas detalham o momento grandioso da fala do senador Souza Dantas:

Não é para fazer um discurso que me levanto, contrariando, bem o sinto, a impaciência geral, aliás louvável. Chegamos ao termo da viagem emprehendida, e, mais feliz do que Moyses, não só vemos como pisamos a Terra Promettida. (Muito bem!)

Sendo assim, Sr. Presidente, nada de recriminações, nada de retaliações!

Mas o Senado, hontem e hoje, pela voz de dous de seus mais illustres membros, ao mesmo tempo dos mais respeitaveis e eminentes chefes conservadores, ouviu, com o publico que nos honra com sua presença, dous discursos, qual mais importante, ambos igualmente identificados no mesmo fim: annunciar á nossa patria, por este acontecimento que se está realizando e que a todos enche dos mais vivos e intensos regozijos, grandes perigos, quer para sua vida financeira e economica, quer para a sua vida politica.

Ao mesmo tempo as palavras destes dous illustres senadores mais de uma vez envolvem uma condemnação do ministro 10 de Março por ter, no entender delles, commettido a alta imprudencia de incumbir-se desta gloriosa tarefa; mas que teve, para nós liberaes abolicionistas, alto merito de comprehender que esta questão não podia comportar um minuto sequer de adiamento.

Eu não venho agora apurar, diante do Senado, nem a queda do gabinete 20 de Agosto, nem a organização do 10 de Março. Tão pouco indagarei si este ministro deixou de inspirar-se nos sentimentos do conservadorismo partidario.

Mas devo declarar que, nesta occasião, sinto o maior desvanecimento, estendendo-lhe mão agradecida em nome de todos os Brazileiros, em nome particularmente daquelles que eram as victimas e que comparticipam desta victoria, devida ao passo glorioso, que deu o gabinete para attingir com desassombro ao desenlace final e completo deste grande problema. (Apoiados.)

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Sr. Presidente, é justo, é de toda a necessidade que partam de mim, em nome do partido abolicionista, palavras de esperança e de animação que façam desaparecer as de desanimo e de desalento dos honrados senadores que me precederam. (Apoiados.)

Senhores, a abolição da escravidão não marcará para o Brazil uma epoca de miseria, de soffrimentos, uma epoca de penuria. (Apoiados.)

Isso vale para um projeto de revolução na educação, que reserve os recursos nacionais, financeiros, humanos e organizacionais necessários para este fim.

Uma simples consideração, porque a discussão longa virá depois, bastará para tranquilisar os que se aterrarem com os presagios dos dous honrados senadores que me precederam: dentro do espaço de 17 annos, 800.000 escravos têm desa-parecido do Brazil. Pois bem, senhores, é justamente neste periodo que se nota maior riqueza no paiz, grande augmento de trabalho e com elle maior produção, e, como consequencia, consideravel augmento na renda publica.

Si, pois, este facto se deu; si foram estas as consequencias da diminuição, em mais de metade, do trabalho escravo, o que se deve esperar é que o desapparecimento de 600.000 creaturas escravas não produzirá a nossa ruina, antes augmentará a nossa prosperidade e o engrandecimento do Brazil, graças ao trabalho livre, ao trabalho, o que não só levantará os creditos da nossa patria, como attrahirá para nós o estrangeiro, que encontrará no solo fecundo e uberrimo deste paiz certas e inexcediveis vantagens.

Mesmo os abolicionistas falavam em desaparecimento, e não em incorpo-ração dos escravos, da vida nacional. Não é de admirar que o preconceito racial continue até hoje. Que o Brasil tenha abolido a escravidão sem fazer a inclusão.

Eu devo tambem dizer ao Senado e ao paiz que não vejo esses perigos de que se fizeram écho aqueles que impugnaram o projecto que, dentro em pouco, estará convertido em lei.

Quer me parecer que tremem diante do facto de praticar uma reforma tão radi-calmente liberal, porque isso servirá de incitamento para que outras reformas, igualmente liberaes, se possam emprehender e realizar em nossa patria.

Mas, senhores, que perigo haverá? Por minha parte não creio nelles. (Apoiados.)

Dado, porém, que surjam taes perigos e que subam tão alto que ameacem até a primeira e a mais elevada entidade do nosso systema politico, taes perigos se dissiparão desde que no coração do povo Brazileiro estiver arraigado o amor das instituições que nos regem; sómente assim ellas encontrarão em cada um quem as sustente!

Fallando deste modo, eu não faço sinão dizer a verdade ao paiz, sinão apontar o caminho a seguir, e este deve ser o da manutenção das instituições liberaes, o que só se conseguirá praticando-se uma politica de liberdade e de democracia. E nem esta linguagem metta medo a ninguem, dentro e fora deste recinto.

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Não ha muitos mezes, Sr. Presidente, Sagasta (actual presidente do conselho) e Martos, dous grandes estadistas da velha Hespanha, terra onde imperou a inquisição e de tradições seculares, disseram da tribuna parlamentar, e em um dia de festa nacional, á Rainha Regente que, si ella queria ver radicada e consolidada na Hespanha a instituição de que era a primeira representante, adoptasse fracamente a politica de expansão e de liberdade.

As reformas liberaes não podem, portanto, ser um perigo no Brazil.

Ellas serão, sim, o complemento, o remate, a consequencia natural do passo que estamos dando; e si nossas instituições se vissem ameaçadas pelo que estamos fazendo, eu diria: mais vale, Sr. Presidente, cingir uma corôa por algumas horas, por alguns dias, comtanto que se tenha a immensa fortuna de presidir á existencia de um povo e de com elle collaborar para uma lei como esta, que tirar da escravidão a tantas creaturas humanas, do que possuir essa mesma coroa por longos e dilatados annos, com a condição de conservar e sustentar a maldita instituição do captiveiro. (Apoiados. Muito bem!)

Esta frase ficou profética: 18 meses depois, a República retira a coroa da cabeça de D. Pedro II, de sua sucessora, a Princesa Isabel e seus descen-dentes. De que teria valido mais alguns anos de Monarquia, no lugar da honra de terem, tardiamente, depois de quase 50 anos no Trono, abolido a escravidão? Essa reflexão deveria ser feita também pelos políticos de hoje, que olham o poder sem olhar a história.

Não ha, portanto, perigo algum; e até onde a minha voz, a minha responsa-bilidade, a confiança que eu possa inspirar aos meus concidadãos; até onde a minha experiência dos negocios, o meu estudo de todos os dias, me puderem dar alguma autoridade, eu direi desta cadeira a todo o Brazil que nós hoje vamos constituir uma nova patria; que esta lei vale por uma nova Constituição. (Muito bem, muito bem!)

O Sr. Jaguaribe: - É o complemento da Independencia do Brazil.

Substituam as palavras “escravo”por “deseducado”, “escravidão” por “educação”, e essa frase pode ser dita hoje com a mesma força. Sobretudo lembrando que o verdadeiro complemento da Independência no século XXI seria acesso à educação de qualidade para todos, e qualidade igual. No século XIX era preciso incorporar os braços fortes e livres dos escravos, no século XXI é preciso incorporar os cérebros livres e bem educados de todos.

Mas a cegueira ideológica não era apenas de conservadores, os liberais não viram que as classes dirigentes aprovariam a Abolição, mas não incorporariam as massas no projeto nacional. Quando necessário dariam golpe militar, cooptariam progressistas, mas não fariam do Brasil um país de todos.

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O Sr. Dantas: - Neste caso, Sr. Presidente, eu vou concluir, pedindo a todos que nos levantemos, que façamos ala á passagem dessa lei, que marcará para nós o maior acontecimento da nossa historia; e que todos, ao mesmo tempo, congratu-lando-nos, honrando mesmo aos nossos adversarios, á frente dos quaes se acham dous cidadões cobertos de serviços, cheios de meritos, merecendores de toda a veneração de nossa patria, digamos: Gloria a Deus na alturas! E, proseguindo neste caminho, o Partido Liberal francamente tal, o Partido Liberal, que não tem medo das idéas liberaes, nem das suas consequencias, uma vez convertidas em lei, poderá contar que ha de ter o mesmo apoio que sempre teve de mim nesta questão da redempção dos captivos. (Bravos! Muito bem!)

Eu devo, Sr. Presidente, como homenagem de gratidão, de amisade e de saudade, recordar neste momento palavras que por um acaso feliz vi hontem transcriptas na Redempção, de S. Paulo, e foram aqui proferidas por José Bonifacio. Na sessão de 8 de Outubro de 1886, dirigindo-se ao então ministro da Agricultura, o honrado senador Antonio Prado, José Bonifacio disse:

O estado do paiz ha de convencel-o de que é necessario acabar o quanto antes com a escravidão, lepra que nos corroe e vulcão que nos ameaça. Tenho profunda convicção que o maior perigo da actualidade é o escravo, com todos os seus direitos illudidos. O captiveiro está morto e não póde resuscitar; é preciso enterral-o. Não teremos partidos, não teremos governo, não teremos cousa alguma, emquanto a escravidão entrar como elemento perturbador da ordem moral e social.

Hoje, esta “lepra” que nos corrói, este “vulcão” que nos ameaça, é a degra-dação a que deixamos chegar a educação de nossas crianças. “Não teremos coisa alguma, enquanto o abandono da educação entrar como elemento pertubador da ordem moral e social”.

Pois bem, senhores, a nossa tarefa, por este lado, está terminada; e como nos annunciou ha pouco o nobre senador pela provincia do Rio de Janeiro que do desapparecimento da escravidão outras necessidades, outras reclamações vão apparecer, oriundas dos interesses creados por aquellas maldita instituição de envolta com outras necessidades e outras necessidades e outras reclamações de nossa vida politica, eu, desde agora, ponho-me á disposição de quem quer que esteja no governo, para constinuar a servir ás idéas liberaes, porque, paro-diando um pensamento resumido em três pequenos versos do XIII século; direi:

Ó Libertad! Luz Del dia! Tu me guia! Vozes: - Muito bem, muito bem. (Bravos e repetidos applausos das galerias.)

“Nossa tarefa, por esse lado está terminada”, frase que não podemos dizer os que substituímos os parlamentares de então, ao longo de mais de um século.

Ainda descreve Evaristo:

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“Falou, também, mas com espírito de polêmica, o senador Manuel Francisco Correia, que servira como ministro de Estrangeiros com Rio Branco e que, saindo do ministério, sempre ligado ao glorioso visconde, presidira a Câmara de 1847 a 1875. Parecia a ele que não eram de temer as catástrofes anunciadas pelos adversários do projeto. Transformando, como ia ser, em lei, só traria benefícios econômicos e políticos para o Brasil.”

O Senador Correia, do Partido Conservador, fez um discurso declarando que a Proposta era uma questão social e que“é grande fortuna para o Império que a lei possa ser promulgada, revisitada da força moral e do prestígio que lhe dá o acordo refletido e quase unânime de ambas as parcialidades políticas.”

O momento não é para discutir, é para deliberar; mas podem ser convenientes algumas palavras opportunas da parte de um membro do Partido Conservador, que aceita, convencido, a proposta sobre que vamos votar.

Tem-se apontado na discussão o perigo, o risco das instituições.

Senhores, si as instituições pudessem neste instante estar em questão, ellas teriam hoje o seu dia derradeiro. Mas assim não é, assim podia ser, assim não era justo que fosse.

Tem-se feito tambem referencia a mudanças bruscas de opinião na questão servil. É facto previsto. E seja-me licito recordar poucas palavras que aqui proferi na sessão de 26 de Setembro do anno passado (lê):

Ha questões que marcham. A que nos occupa é uma. Os que têm de lidar com ella não podem perdel-a de vista. Distanciam-se, e não mais podem consideral-a qual é.

Á proporção que a idéa caminha, os horisontes se modificam, o panorama varia. Os obstaculos que surgem em um ponto desfazem-se adiante. O terreno acci-dentado se vai aplainado pouco a pouco, e descobre-se afinal o leito por onde as aguas, antes caudalosas, podem seguir serenamente para o natural escoadouro.

Eis o que explica, nas questões em marcha, mudanças que parecem bruscas na opinião. O ponto cobiçado tem de ser necessariamente attingido; á proporção que elle se avisinha, a impaciencia cresce. E si á força da idéa reune-se o brado da consciencia, a distancia encurta-se illuminando o espirito, despertada a consciencia, a cujos dictames todos obedecem por lei providencial, a resistencia cessa, as vozes confundem em um só clamor, a politica alia-se á philantropia, o bem triumpha.

Com taes elementos, que estão em jogo, não ha negar, a escravidão será em poucos annos apenas uma sombra no passado, sem pertubar com desastres e ruinas ás alegrias do futuro, absolvido por nobre expiação o erro de hontem, pelo qual não é originalmente responsável a nação brazileira.

Tem-se ainda appelado para os transtornos que desta proposta hão de porvir. Sei bem que não se extirpa do organismo social um cancro secular sem que pertubações se operem. Nunca mais ha de abrir-se, porem, a cicatriz desta ferida:

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e sobre ella se levantara – o patriotismo e o bom senso dos brazileiros o indica – o grande edificio da crescente prosperidade de nossa patria. (Muitos apoiados.)

Tem-se querido ver uma questão politica no melindroso assumpto sobre que estamos resolvendo. Ainda ha pouco o meu illustre amigo senador pelo Rio de Janeiro dizia: não compete aos conservadores presidir á extincção da escravidão: mas ao Partido Liberal pela natureza da materia.

Divirjo do meu nobre amigo.

Trata-se de uma questão social, ou, si quizerem, de um ponto de politica nacional: e é grande fortuna para o imperio que a lei possa ser promulgada, revestida de força moral e do prestigio que lhe dá o accôrdo reflectido e quase unanime de ambas as parcialidade politicas (Apoiados; muito bem, applausos das galerias.)

Os assistentes tem o dever de não interromper-me, e eu o peço tambem como obsequio. Concluindo direi: convém que o projecto que se discute, e que o honrado ex-presidente do conselho, com sua autoridade e experiencia, declarou inadiavel, saia desta casa com inteira adhesão, e sob a responsabilidade dos partidos politicos do Brazil. (Muito bem: muito bem, applausos das galerias.)

Chegaram a um acordo suprapartidário. A Proposta entra em votação, é aprovada com apenas dois votos contra: dos senadores Paulino de Souza e do Barão de Cotegipe, e vai para sanção Imperial. As Atas descrevem o processo:

O Sr. Presidente designa a deputação que apresentará á Sereníssima Princesa Imperial Regente do Império os autógrafos do Decreto. Foram escolhidos os Senadores Dantas, Affonso Celso, Teixeira Junior e Escragnolle Taunay (Membros da Comissão Especial) que deu parecer sobre a proposta aprovada, com excepção do Visconde de Pelotas (por motivo de doença), mais os Senadores sorteados Visconde de Paranaguá, Ignácio Martins, de Lamare, Franco de Sá, Barros Barreto, Correia, Pereira da Silva, Cândido de Oliveira, Ferreira da Veiga e Jaguaribe.

Em uma bela descrição, Evaristo de Moraes Filho diz: “Em seguida, parti-cipou o presidente do Conselho que a princesa regente estaria à disposição dos representantes do Senado no Paço da Cidade, às 3 horas. Viera ela, desde Petrópolis, recebendo manifestações. No Arsenal da Marinha era aguardada por grande massa popular, que a acompanhou até o Paço, na hoje Praça 15 de Novembro.”

“Fora o edifício invadido por pessoas de todas as classes sociais. Derredor dele, moviam-se para mais de cinco mil pessoas, presas de transbordante entusiasmo, numa expansão incoercível de sentimentos efusivos.

Penetrou a regente no Paço acompanhada do marido, e dos ministros da Agricultura e do Império, dirigindo-se para a sala do trono. Entregou-lhe o senador Dantas os autógrafos, dizendo-lhe algumas palavras.”

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Palavras descritas nas Atas:

Senhora, A commissão especial do Senado, tendo cumprido o dever de apresentar á sancção de vossa Alteza Imperial Regente a lei que extingue desde hoje a escravidão em nossa patria, pede reverentemente vênia a Vossa Alteza Imperial para: em primeiro logar congratular-se com Vossa Alteza Imperial e com todos os Brazileiros, pelas auspiciosas noticias, que o telegrapho nos transmitiu, de achar-se melhor de seus graves padecimentos Sua Magestade o imperador, o Primeiro Representante da Nação, e tambem o primeiro entre os mais esforçados propugnadores do grande e jubiloso acontecimento que acaba de realizar-se;

E em segundo logar para felicitar a Vossa Alteza Imperial, por caber-lhe a gloria de Assignar a lei que agora dos nossos codigos a nefanda macula da escravidão, como já Lhe coube a de Confirmar o decreto que não permittiu nascerem mais captivos no Imperio do Cruzeiro.

Sua Alteza Imperial Regente Dignou-se Responder:

Seria o dia de hoje um dos mais bellos da minha Vida, si não fosse Saber Meu Pai enfermo. Deus permittirá que Elle nos volte para Tornar-se, como sempre, tão util á nossa Patria.

Termina a vergonha moral de quase meio milênio, a luta social de séculos e luta política de décadas para eliminar a escravidão. O projeto se trans-forma na Lei no 3.353, de 13 de maio de 1888.

As palavras da lei que mudou o Brasil, a partir de 13 de Maio, não começaram naquele ano de 1888, foram aprovadas com manifestações contrárias, e até hoje não trouxeram todos os benefícios esperados.

Evaristo de Moraes Filho descreve a comoção daquele instante: “Assinados os autógrafos, ouviram-se estrepitosas aclamações nas janelas do Paço e na rua. Como alucinado, José do Patrocínio atirou-se aos pés da princesa, procurando beijá-los. De uma das janelas, Joaquim Nabuco comunicou à multidão que não mais existiam escravos no Brasil”.

Um país é feito das emoções de sua história, em geral com uma frase de algum líder. Esta comunicação de Nabuco é um destes momentos, talvez o maior até hoje.

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Com a assinatura da Princesa Isabel e do Ministro da Agricultura, mudava radicalmente a vida dos 800 mil escravos brasileiros, que trocavam a vergonha pela esperança. Em mais de um século de história, nenhuma outra legislatura fez qualquer outro gesto tão radical a favor do nosso povo. É como se todos os parlamentares que o Brasil teve desde então tenham se negado a completar o que foi feito naqueles dias de maio.

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Depois de 13 de maio

No dia 24 de maio, mesmo depois da sanção da Lei pela Princesa, os escra-vagistas não se deram por derrotados. Já que não seria possível manter escravos, passaram a lutar por uma indenização.

Foi lido, na Câmara dos Deputados, o Projeto no 10, de 1888, de autoria do Deputado A. Coelho Rodriguez que mandava o governo indenizar os prejuízos resultantes da extinção do elemento servil. Para tanto autorizava a emissão de títulos da dívida pública para pagar aos proprietários de escravos, ressarcir o valor do capital em seres humanos. Não se pensou em emitir títulos da dívida para indenizar ex-escravos pelo sofrimento ao longo da vida, nem para financiar escolas para seus filhos, mas tomou-se a iniciativa de indenizar escravagistas, que surpreendentemente não prosperou.

Foi para evitar que, em nome do direito adquirido, os ex-proprietários entrassem em juízo pedindo indenização, que o regime republicano, em 14 de dezembro de 1890, determinou a incineração de todos os “livros e papéis referentes ao elemento servil”. O documento está assinado por T. de Alencar Araripe, e não por Rui Barbosa, que parece ter sido o autor da decisão.

Aqui, a disputa não foi entre a ética e a política, como ao longo de todo período da escravidão, mas entre a política e a história. Esta foi sacrificada, como meio de reduzir o poder dos escravocratas e seus descendentes. Estivessem aqueles papéis guardados, o conceito de direito adquirido dos ricos certamente permitiria que herdeiros dos donos de escravo encon-trassem, ainda hoje, algum juiz que lhes daria ganho de causa, aplicasse juros e correção monetária e cobrasse do governo a desapropriação feita em 13 de maio de 1888.

Algum juiz provavelmente daria direito a um dono de escravo e seus descendentes, mesmo que em nenhum momento tenha havido uma lei

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autorizando a escravidão. A lei foi necessária para abolir, nunca para escravizar. Os ricos se beneficiam dos hábitos sociais, mas, para mudá-los, são necessárias leis. Em 13 de Maio de 1888 foi aprovada uma lei, depois de décadas de batalha política, para eliminar a escravidão que não se baseava em lei alguma. Se aqueles papéis tivessem sido guardados, a lei certamente teria servido, em algum momento de nossa história, para ressarcir os escravocratas.

Segundo consta na página 339 das Obras Completas de Rui Barbosa30 : “Base jurídica não havia, mas existia o problema latente. A ameaça da indemnização sem dúvida o atormentava. Não obstante a ausência de fundamento jurídico para tanto, mas isso não bastava, sabendo-se que no Brasil até mesmo a posição do alfabeto se controverte, e, por vezes, vence o sofisma.”

Circular nº 29, do Ministerio dos Negocios da Fazenda. – Rio de Janeiro, 13 de maio de 1891.

Convido, para cumprimento das instrucções expedidas por este ministerio em 14 de dezembro de 1890, que fiquem extinctos todos os livros e papeis referentes ao elemento servil, recommendo aos srs. Inspectores das thesourarias da Fazenda que providenciem, com toda a urgencia, para que sejam incinerados sem demora os livros de lançamento e as declarações feitas para a cobrança da taxa de escravos, e os mandados devolvidos ao juizo que os houver expedido, ex-vi do art. 5o da lei no 3396 de 24 de novembro de 1888; desapparecendo por este modo os últimos documentos que attestam a ex-propriedade servil.

A incineração será feita em presença da Junta da Fazenda, e disto se lavrará uma acta minuciosa, da qual se remeterá copia a este ministerio.

E, para que a falta de taes livros não affecte á responsabilidae dos exactores, cujas contas ainda não tenham sido tomadas, quanto á arrecadação daquelle imposto, deverá a verificação dessa resposabilidade ser feita pela confrontação da importancia das certidões ex-trahidas dos talões, com as partidas do livro da receita. – T. de Alencar Araripe.

A história perdeu, mas a Abolição foi protegida pela incineração dos documentos e informações relacionadas à escravidão. Um caso em que a política do momento se faz mais justa do que o conhecimento histórico no futuro.

Em 20 de dezembro de 1890, foi publicada uma moção do Congresso, apoiando o Decreto que determinava a queima de todos os papéis em

30 Obras Completas de Rui Barbosa - Atos Legislativos, Decisões Ministeriais e Circulares, com Prefácio e Notas de José Gomes Bezerra Câmara, organizadas pela Fundação Casa de Rui Barbosa.

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arquivo sobre a posse dos escravos.Apagavam-se muitos comprovantes da maldade histórica, mas evitava-se o risco da maldade jurídica.

MOçãO DO CONGRESSO, DO DIA 10-12-1890, MAS PUBLICADA NA SESSãO DE 20 de DEZEMBRO

“O Congresso Nacional congratula-se com o governo Provisorio por ter mandado fazer eliminar dos archivos nacionaes os ultimos vestigios da escravidão no Brazil.

Em 10 de dezembro de 1890.

Barão de S. Marcos – General Almeida Barreto – Matta Bacellar – Annibal Falcão – Luiz Delfino – Urbano Marcondes – Fonseca Hermes – Domingos Rocha – D. Manhães Barreto – João Lopes – José Avelino – Barbosa Lima – Uchôa Rodri-gues – Serzedello Corrêa – Oliveira Pinto – João de Siqueira – Espírito Santo Pereira de Lyra – J. Ouriques – Jesuino de Albuquerque – Pedro Velho – José Bernardo – Epitácio Pessoa – Prisco Paraíso – Theodureto Souto – Dr. Ferreira Cantão – Paes de Carvalho – Frederico Borges – Costa Rodriques – L. Mullir – Tolentino de Carvalho – A. Milton – Santos Pires – Marciano de Magalhães – B. Mendonça – Augusto de Freitas – Rosa Junior – M. Valladão – A. Stockler – Amorim Garcia – José Bevilaqua – Paula Guimarães – Dionysio Cerqueira – Francisco Argollo – A. Ornellas – Conde de Figueiredo – José Simeão de Oliveira – Frederico Guilherme de Souza Serrano – Virgilio C. Damásio - Juvêncio de Aguiar – A. Azeredo – Joaquim Moutinho – Lauro Sodré – Victorino Monteiro – Índio do Brazil – Lopes Trovão – Carlos Campos – Athayde Junior – Moniz Freire – Gil Goulart – J. Retumba – Menna Barreto – Marcolino Moura – S. L Medrado – Artur Rios – J. J Seabra – Custodio José de Mello – Belfort Vieira – A. Moreira da Silva – F. Mayrink – Coronel Pires Ferreira – Antonio Justiniano Esteves Junior – Raulino Horn – Raymundo de Andrade – José Mariano – Belarmino Carneiro – Pedro Américo – Almeida Pernambuco – Luiz de Andrade – Zama – André Cavalcante

– João Barbalho – J. Meira de Vasconcellos”

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A Abolição não terminou

No dia seguinte ao 13 de Maio, o Brasil acordou com os negros em festa, os brancos em uma indiferente perplexidade e os latifundiários indignados. Os jornais transcrevem a realidade de um país que acaba com a escravidão, trezentos e cinquenta anos depois de iniciada.

Em 14 de maio de 1893, Machado de Assis, rememorando o dia da Abolição, disse: “Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra ter visto.”

O tempo mostraria que o otimismo não se justificava plenamente. Apesar do fim da possibilidade de venda de pessoas e de imposição do trabalho forçado pela violência do chicote, a Abolição pouco representou na quali-dade de vida dos ex-escravos. A maior parte deles continuou trabalhando nos mesmos postos, sem salários ou com de salários extremamente baixos. No campo, esta situação foi ainda pior, porque se manteve uma relação de escravidão sem escravos.

Eliminaram dos arquivos, mas não eliminaram das ruas, nem da realidade. Ao redor continuam até hoje muitos dos sinais da escravidão: a desigual-dade social, liberdade para sobreviver no abandono, um círculo vicioso que há mais de um século mantém os filhos dos pobres tão distantes dos filhos da elite quanto no tempo de seus antepassados.

Paramos as chicotadas, paramos a venda de seres humanos, o trabalho forçado, mas no lugar mantemos o analfabetismo, esta chicotada perma-nente; o abandono dos filhos dos pobres; o desemprego que representa uma forma moderna de escravidão temporária.

Todos os dados mostram uma sociedade amarrada, dividida, pervertida, apesar de muito mais rica e tecnicamente moderna. Amarrada, porque a população não dispõe de mão de obra com capacidade para fazer funcionar plenamente uma economia baseada no conhecimento; dividida, porque o Brasil continua uma sociedade não integrada, onde, no lugar de escravos

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e senhores, está dividida entre elite e povão, incluídos e excluídos dos benefícios da contemporaneidade; pervertida, porque a desigualdade social se manifesta na exclusão da maior parte da população aos bens e serviços como educação, saúde e justiça, cuja desigualdade é imoral, indecente, não apenas desigual.

Mas mantemos o discurso político parecido com aquele do passado, dos Paulinos e dos Cotegipes: comemoravam a lei do Ventre Livre, mantendo-se a escravidão; comemoramos a Lei das Domésticas, negando escola para os seus filhos. Continuamos recusando a ideia do filho do pobre na mesma escola do filho do rico. Como se isso fosse tão impossível, tão original, quanto era a ideia da Abolição.

A situação dos pobres continuou de exclusão, como era a dos escravos; e embora a exclusão não seja uma característica apenas de negros, a raça negra é aquela que mais paga o preço da exclusão.

O Brasil ainda espera completar a Abolição. O caminho do desenvolvimento econômico seguido ao longo do século XX não trouxe esta complementação. O crescimento econômico já mostrou que não é o caminho automático para completar a Abolição.

A Abolição merece ser comemorada. Merece o feriado que foi determinado ainda durante as discussões sobre a Lei Áurea. Graças à luta de milhares de abolicionistas, ao longo de décadas, à revolta de escravos ao longo de séculos, à vontade, embora tardia, da Coroa, representada pela Princesa Izabel, ao esforço de políticos no Parlamento, esta data determinou o fim da perversidade da escravidão, da venda de seres humanos, do trabalho forçado, das sevícias legalizadas.

Cento e trinta anos depois da Abolição e da República, oitenta e cinco anos depois do primeiro salto de industrialização, trinta anos depois da redemocratização, quando o Brasil se afirma no cenário mundial como um dos países com mais elevado PIB no mundo, sua população continua indecentemente dividida quanto, embora a divisão não seja tão determi-nista, nem apenas por raça, ainda que a maioria das vítimas da exclusão social continue sendo de descendentes raciais dos escravos.

Em pleno século XXI, a Abolição não está completa. Diversos fatos da sociedade indicam a persistência da situação pré-Abolição, inclusive

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em condições mais desiguais do que antes do Treze de Maio. O Muro da Escravidão foi derrubado, mas no lugar foram feitos fossos que separam os brasileiros por classes sociais.

a) Concentração de renda

Até 1888, salvo alguns poucos latifundiários, todos eram pobres, embora nem todos fossem escravos. A concentração de renda era brutal entre um minúsculo grupo de “nobres” e a massa de brancos pobres; entre estes brancos pobres e os negros escravos havia a brutalidade da falta de liber-dade, do ser peça para venda, mas do ponto de vista de renda, os escravos não tinham nada e os outros, salvo raríssimos nobres, tinham muito pouco. Mais de um século depois, temos uma realidade de concentração de renda que fere qualquer imagem de abolição.

A classificação dos países do mundo segundo o Coeficiente de Gini31 nos mostra que o Brasil está na posição 121 entre 139 países, com um índice de 0,507. Isso significa que 120 países são menos desiguais do que o nosso32. Dentro do país a desigualdade se repete: os 40% mais pobres da população brasileira respondem por 13,3% da renda total do País, enquanto os 10% mais ricos detêm 41,9%; os 20% mais ricos ganham 16 vezes mais do que os 20% mais pobres33.

b) Brecha educacional

Salvo os casos de poucos latifundiários que enviavam seus filhos para estudar no exterior, a quase totalidade dos brasileiros era de analfabeto pleno ou analfabeto funcional. Entre escravos e pobres brancos, todos analfabetos ou semi-alfabetizados a brecha educacional era pequena. Em 1889, dos 10 milhões de brasileiros, 6,5 milhões eram analfabetos e apenas 600 mil34 eram escravos, quase seis milhões, portanto, eram analfabetos não-escravos.

31 O Coeficiente de Gini é uma medida comumente utilizada para calcular a desigualdade de distribuição de renda. Consiste em um número entre 0 e 1, onde 0 corresponderia à completa igualdade de renda e 1 à completa desigualdade. Ou seja, quanto mais alto o Coeficiente de Gini, mais desigual é o país

32 Fonte: CIA World Factbook (www.cia.gov)33 Fonte: Síntese de Indicadores Sociais 2012, IBGE.34 Fonte: Senado Federal (http://www.senado.gov.br/noticias/jornal/arquivos_jornal/arqui-

vosPdf/encarte_abolicao.pdf)

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Ao longo das décadas desde o “Treze de Maio”, a percentagem de analfa-betos diminuiu para 10%, mas o número absoluto dobrou para 13 milhões; o número de crianças que se matriculam chegou a mais de 90%, mas ainda temos 49% da população brasileira sem concluir o Ensino Fundamental35, e apenas 25% tendo concluído o Ensino Médio, e menos da metade desses com boa qualidade. E quase todos esses saídos de escolas privadas caras, ou de raríssimas públicas de qualidade, em geral federais.

O Brasil passou a ter 5,9 milhões de universitários, 161 mil alunos em cursos de pós-graduação, mas os descendentes sociais dos escravos continuam sem saber ler plenamente.

No mesmo período, as classes médias e altas passaram a ter uma educação aonde ir à universidade é quase um destino previsto em carimbo recebido ao nascer, mesmo sem talento; enquanto os outros recebem o carimbo de que ficarão analfabetos ou não terminam a educação básica com qualidade, mesmo que tenham talento potencial. E a escolha se dá, em grande parte, por transmissão hereditária por meio da renda da família, embora não apenas pela cor.

Ainda mais grave: antes a educação não era uma condição fundamental para a garantia de um emprego e inclusão na vida social, hoje para a mínima inclusão faz-se necessário educação de qualidade.

A brecha educacional entre os ricos e os pobres de hoje é maior do que era entre os escravos e os brancos pobres. Os primeiros, na quase totalidade, eram analfabetos; os outros, raramente sabiam ler.

c) A saúde desigual

Em 1888, a esperança de vida pode ser estimada em 27,8 anos36, hoje é de 74,637 . Mas este avanço tem uma cara diferente quando se analisa a desigualdade na esperança de vida das pessoas conforme a renda. Antes do Treze de Maio, havia uma desigualdade na esperança de vida entre um brasileiro escravo e um livre, devido às condições de trabalho forçado, assassinatos tolerados, maus tratos recebidos, e das condições sanitárias durante a travessia do Atlântico, mas esta desigualdade não derivava dos serviços médicos, que não eram muito diferentes entre a Casa Grande

35 Fonte: IBGE – Pesquisa Educação e Deslocamento - 2012, com base nos dados do Censo 2010.36 Fonte: IPEADATA (www.ipeadata.gov.br)37 Fonte: IBGE / PNAD 2012

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e a Senzala. Todos eram servidos por sistema precário: o conhecimento primário dos médicos e os chás medicinais não eram diferentes entre ricos ou pobres, escravos ou livres.

Graças à fragilidade dos serviços médicos, ricos e pobres, livres e escravos dispunham apenas de chazinhos como remédios, nenhum tinha os sistemas de higiene, nem qualquer dos equipamentos de prevenção, nem os mágicos medicamentos de hoje em dia. As doenças em geral não tinham cura igualmente para pobres e ricos, escravos e livres. Em alguns casos os ricos levavam desvantagem pelo excesso de comidas gordurosas, e a vida sedentária, e por desconhecerem os males que derivavam do estilo de vida.

Apesar de toda maldade, os escravos eram uma propriedade, um capital do seu senhor que se sentia prejudicado com a morte de uma de suas peças, tanto quanto um fazendeiro quando perde um animal caro. Isso não acontece com o trabalhador moderno, cuja morte não representa perda para o patrão, às vezes é uma vantagem pela “demissão” sem pagar direitos, nem risco dedisputas judiciais.

Passadas treze décadas, a medicina deu um salto que permite a cada pessoa com recursos financeiros ter as informações, comprar serviços e medicamentos que alongam sua vida; mas por falta de recursos os descendentes sociais dos escravos continuam excluídos dos mais modernos instrumentos de aumento na esperança de vida.

Antes, a esperança de vida, salvo a morte por fadiga ou por maus tratos, era a mesma para todos. Hoje, com o avanço das técnicas médicas a serviço das minorias privilegiadas, aumentou a brecha tanto na saúde quanto na esperança de vida. Pode-se estimar que aqueles com renda familiar per capita abaixo de um salário mínimo têm esperança de vida inferior a 72 anos; enquanto aqueles com renda superior a três salários mínimos é de quase 79 anos. Uma diferença de 7 anos38 . A Abolição libertou os escravos, mas desigualou o que há de mais fundamental nos direitos sociais: o direito a viver conforme o conhecimento técnico-científico permite. Além de viverem mais, os que podem comprar os modernos serviços médicos vivem com menos dores, são mais fortes e inclusive mais inteligentes.

O serviço dentário talvez seja o mais visível caso da ampliação da brecha. O senhor do escravo sofria a mesma dor de dente que seu escravo; o número

38 Estimativas feitas pelo economista Waldery Rodrigues Filho a pedido do autor.

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de dentes na boca era o mesmo independente da posição social. Hoje a parcela rica sofre dor de dente e não perde ou repõe os dentes que perde, enquanto a parcela mais pobre é desdentada, até ainda mais do que os escravos, em decorrência do tipo de alimentação no mundo moderno e da disponibilidade de dentistas prontos a arrancar-lhes os dentes.

A brecha na esperança de vida se elevou ao longo de anos.

d) Desigualdade na habitação

Os escravos viviam em senzalas, mas os livres viviam em pequenas casas, raros senhores em casas grandes, nenhum com qualquer dos modernos instrumentos do conforto. Hoje, em seus palácios com ar condicionado, com banheiros, cozinhas modernas, as classes médias em seus condo-mínios ou bairros nobres estão mais distantes dos moradores das favelas pobres do que os senhores nas casas grandes estavam de seus escravos na senzala. Estudo realizado pelo Sinduscon-SP e a Fundação Getúlio Vargas (FGV), considerando dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revela que em 2011 o déficit habitacional brasileiro fica em 5,5 milhões de habilitações incluindo aglomerados subnormais (favelas), estimado em 2,2 milhões.

Antes da Abolição, todos os habitantes do Brasil viviam sem acesso a saneamento, água corrente. Hoje, 57,1% das residências já dispõem destes serviços, 42,9 continuam nas mesmas condições de higiene, não têm nenhum esgotamento, mas alguns milhões vivem ao lado de resíduos sujos e contaminados. Em alguns casos em situação pior, do que antes do Treze de Maio devido à urbanização agravar a situação de insalubridade em comparação à vida rural.

e) Pobre sistema de transporte

Na escravidão, o meio de transporte era o cavalo e a liteira para os ricos, e andar a pé para os pobres livres e para os escravos. A brutalidade estava no poder do senhor escolher o destino, e no transporte de ricos deitados ou sentados em liteiras nas costas de escravos, mas não havia diferença no tempo gasto no deslocamento. Desde então, as facilidades de transporte melhoraram para todos; já não há carregadores de liteiras; os pobres, embora nem todos, conseguem usar ônibus e os engarrafamentos de trânsito aprisionam a todos.

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Mesmo assim, há uma enorme brecha entre uma pessoa das classes abastadas que pode se deslocar para o outro lado do mundo no período de uma poucas horas, enquanto boa parte dos pobres continua condenada a caminhar ou em alguns casos usar transporte público de má qualidade depois de horas de espera, enquanto os ricos usam automóveis com ar condicionado, sistemas de som e outros equipamentos, sobretudo, sem necessidade das longas e imprevisíveis esperas nas abomináveis paradas de ônibus das cidades brasileiras.

Com o agravante de que até muito recentemente as necessidades de deslocamento eram reduzidas, toda a vida social das pessoas se passava em um raio pequeno em relação à casa onde morava; agora são obrigadas a desperdiçar horas por dia em deslocamentos entre a casa e o lugar de trabalho: uma pessoa morando na cidade de São Paulo passa em média 2 horas por dia prisioneira de esperas ou de engarrafamentos ao longo dos 35 anos de vida útil. Isto equivale a perder quase dois anos de vida; muitos perdem três e até mais horas por dia, o que equivale a três anos ao longo de sua vida útil.

f) A Cortina de Ouro

A Abolição mudou o caráter da linha que separava escravos dos senhores, mas não aboliu a cortina que separa os ricos dos descendentes sociais dos escravos. O Brasil era antes um país dividido por uma cortina de ébano ou de marfim, dependendo da ótica, que separava brancos e negros, os escravos das demais pessoas; hoje é dividido por uma cortina de ouro que separa os incluídos dos excluídos nos benefícios da modernidade. Não conseguimos fazer um país que seja, apesar da desigualdade na renda, integrado no social em um só povo, como aspiravam muitos dos abolicionistas.

No dia 14 de maio, os negros brasileiros acordaram cansados das mani-festações de alegria das festas, sem o carimbo que pesava há quase quatro séculos na testa de cada um deles e de seus antepassados. A borracha que apagou estes carimbos, fazendo todos brasileiros igualmente livres, foi construída por longa luta e por Dez Dias em que o Parlamento debateu e aprovou a Lei Áurea. Mas, ao acordarem sem a marca definida pela raça e pelas regras sociais, os ex-escravos perceberam que o carimbo não tinha sido apagado.

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Mudou de significado, mas a testa de cada brasileiro continua carregando um ou outro de dois carimbos: aquele que indica possibilidade de inclusão e aquele que condena à exclusão. É certo que depois do Treze de Maio alguns podem saltar o muro que divide a população brasileira, mas o salto acontece como raridade, resultado de acasos ou de talento muito especial de poucos.

A sociedade brasileira saiu de um tipo de segregação para outro: da escra-vidão para a exclusão. Mantendo a divisão entre beneficiários e vítimas do modelo social e econômico. A Abolição foi um avanço na Lei do Ventre Livre que, em 1871, começou a apagar o carimbo nos que nasciam, e na Lei dos Sexagenários, que apagou o carimbo daqueles com mais de 60 anos de idade. Da mesma forma que já havia carimbos apagados por meio das diversas formas de emancipação personalizada pela alforria. Mas a sepa-ração continuou. Até hoje as crônicas sociais mostram isso: ao dizerem

“todo mundo” referindo-se apenas aos incluídos. Os demais são invisíveis, como os escravos, que eram tratados como objetos. Isso é tão verdade que um bom programa como o “PROUNI”, que financia universidade particular para alunos carentes, tem o nome de Universidade para Todos, mesmo que apenas pequena parte da população possa disputar a chance de ser beneficiada, uma vez que muitos não saem do analfabetismo, poucos concluem o ensino médio sem o que não podem disputar o vestibular. É que na visão de um país de exclusão, conta apenas os que já são incluídos no mundo pós-educação de base.

A Abolição foi determinante para ampliar o grau de miscigenação racial, mas não permitiu a miscigenação social no Brasil. De um lado, o “povão”, de outro, os ricos incluídos na modernidade. Mesmo sem escravos, a sociedade continuou dividida, segregada, em uma forma de apartheid não puramente racial e sem necessidade de regras explícitas, como na África do Sul, até 1994, ou no Sul dos Estados Unidos, até o começo dos anos 1960. Aqui, como se dizia até muito recentemente, e muitos ainda dizem, os “negros e os pobres brancos sabem o devido lugar deles”, não ameaçam a ordem, em uma forma de apartação implícita que o Treze de Maio não aboliu.

Essa apartação se mostra por toda estrutura social: na desigualdade de renda, de salários, de alimentação, de consumo, de atendimento à saúde, mas, sobretudo e como causa da própria segregação, no acesso à educação. Antes de 1888, Joaquim Nabuco, como Bonifácio de Andrada ainda antes

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dele, diziam que a Abolição não estaria completa sem que os ex-escravos recebessem terra e tivessem seus filhos na escola.

No lugar de uma simples Lei Áurea com um único artigo essencial, a Segunda Abolição exige um conjunto de políticas que permitam apagar o grande carimbo, atraso científico e tecnológico sobre o mapa do Brasil e os dois carimbos que marcam as testas de suas crianças, definindo o futuro de cada uma delas.

O caminho para a Segunda Abolição está, sobretudo, na escola igual para todos. Felizmente como os enlouquecidos Abolicionistas do século XIX, nos séculos XX e XXI há alguns educacionistas.

NoSSoS ErroS

Os historiadores não gostam do conceito de erro histórico, uma vez que a história seguiu seu rumo, de certa maneira inevitável quando vista desde o futuro; os sociólogos e economistas tampouco consideram o conceito de erro, uma vez que teriam acontecido por interesse de alguma classe social que dele se beneficiou. Mas como um exercício de reflexão histórico-sociológica é perfeitamente possível tratar certas decisões ou suas ausências como erros cometidos pelo conjunto de uma sociedade, por decisões e ações de obscurantismo, egoísmo e imediatismo de suas classes dirigentes.

No livro A Revolução nas Prioridades – da modernidade-técnica à modernidade-ética39, coloco dez erros cometidos pelo Brasil a partir de 1930, quando se inicia nossa modernização.

primeiro erro A implantação de uma política de substituição de importações de bens industriais, sem modificação na estrutura da propriedade da terra e no produto da agricultura que continuou baseada em latifúndios voltados às exportações.

39 A Revolução nas Prioridades - da modernidade-técnica à modernidade-ética. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1993

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segundo erro A industrialização com base em uma opção por técnicas desadaptadas aos recursos naturais, às características culturais, às neces-sidades sociais e ao potencial econômico no Brasil.

terceiro erro A ditadura.

quarto erro: Concentração de Renda.

quinto erro Endividamento

sexto erro Ênfase nas exportações em lugar da construção de um mercado interno.

sétimo erro Prioridade à infraestrutura econômica, com abandono da infraestrutura social.

oitavo erro Criação de cartorização, corporativização e concentração econômica.

nono erro A implantação de um sistema de produção do saber e de comu-nicação social voltados aos interesses individuais, à dinâmica do mercado e à alienação cultural, sem compromisso educativo nem sintonia com a cultura nacional.

décimo erro Democratizar politicamente sem mudar as prioridades socio-econômicas.

Se considerarmos o momento imediatamente seguinte à Abolição, dois erros foram cometidos por não terem sido tomadas as decisões corretas, ambas previstas por muitos abolicionistas, especialmente por Joaquim Nabuco.

a) A falta da reforma agrária

O primeiro erro foi não ter havido distribuição de terra, uma reforma agrária, nos anos seguintes à Abolição. Se naquele momento o Brasil, por meio de suas classes dominantes, tivesse tido a coragem, a boa vontade, a lucidez, o patriotismo de distribuir a terra aos trabalhadores brancos e aos ex-escravos, a história teria sido completamente diferente. Pelo menos nove de nossos problemas atuais teriam sido reduzidos ou evitados.

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Explosão Urbana: A história mostra a urbanização como uma tendência das sociedades humanas, especialmente depois da industrialização. Mas a velocidade e desorganização como elas ocorreram no Brasil provocaram efeitos dramáticos. A migração se inicia logo nos primeiros anos depois da Revolução. Não é por acaso que a palavra “favela” foi criada pelos descedentes de escravos para se referir aos lugares onde recorriam para viver nas cidades, fugindo do campo onde a terra era oligopolizada, nas mãos de poucos.

Se o fluxo migratório era inevitável, a velocidade que ele tomou no Brasil foi fruto da falta de sintonia entre a dinâmica industrial urbana voltada para o mercado interno e o arcaísmo da agricultura latifundiária orientada para o exterior. A urbanização foi provocada, por um lado, por medidas de política econômica que incentivaram a industrialização e a urbani-zação, atraindo população para as cidades; e por outro pela expulsão da população rural, em decorrência da ausência de políticas agrícolas que a beneficiassem. A previdência, o salário mínimo, os benefícios sociais foram implantados na cidade e na indústria, não no campo e na agricul-tura. A atração das cidades se industrializando e a expulsão do campo organizado em latifúndios levou a população à migração descontrolada.

O resultado são nossas metrópoles superdimensionadas, transformadas nas “monstrópoles” de hoje, com extrema pobreza, sem água nem esgoto, sem transporte, violentas, degradadas em todos os aspectos. Tivesse o Brasil feito a reforma agrária nos dias das festas da Abolição, nossas cidades seriam menores e harmônicas.

Violência: A escravidão é a mais brutal das violências que uma sociedade pode provocar. Três séculos e meio desta violência deixaram marcas quase definitivas na sociedade brasileira. Mas, desde então o Brasil não tomou as medidas necessárias para construir uma sociedade pacífica. E por isso ajudamos a consolidar uma sociedade violenta como a brasileira de hoje. Uma das omissões foi não fazer a reforma agrária nos anos seguintes à Abolição.

A violência tem a ver, sobretudo, com a forma como a agricultura brasileira foi tratada: a violência rural decorre do atraso da estrutura fundiária; a violência urbana, da pobreza consequente da explosão da população nas cidades.

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Inf lação: A falta de uma agricultura voltada para o mercado interno e a evasão de mão de obra para a cidade provocaram uma pressão nos preços dos alimentos, com repercussão direta sobre a inflação.

Além dos gastos públicos para financiar o processo de industrialização, na gênese das inflações está o fato de que, ao impedir a distribuição da terra, o latifúndio concentrou-se na exportação, e ao concentrar seus objetivos no mercado externo, não elevou suficientemente a produtividade dos produtos voltados para a alimentação da população brasileira. O preço dos alimentos subiu. E em consequência subiram os demais preços.

Persistência da pobreza: A falta de terra para trabalhar deixou a população rural sem renda média, o que impediu o atendimento de suas necessidades básicas. O aumento da população urbana e sua baixa qualificação jogou os salários a níveis inferiores ao custo de manutenção da mão de obra. A pobreza foi uma consequência natural, no campo e na cidade.

Freio na demanda: Diferentemente dos demais países, em que a agricultura servia como fonte de alimentos e como compradora de bens industriais, no Brasil a agricultura não forneceu alimentos na proporção da demanda pelo setor urbano, nem exerceu demanda para os bens industriais, salvo de parte da limitada oligarquia compradora de bens de consumo duráveis para alta renda.

Sem uma mudança na estrutura agrária, a grande maioria da população rural que não emigrou para o desemprego e a pobreza na cidade ficou à margem da economia: não conseguiu ser compradora dos bens industriais básicos para baixa renda.

A concentração de renda: A falta de demanda para a industrialização nascente levou o sistema econômico à heterodoxa alternativa de criar demanda concentrando a renda. Já que não havia demanda ampla para produtos voltados à população de baixa renda optou-se por uma demanda restrita à alta renda: o automóvel e outros sofisticados bens de consumo passaram a ter demanda dinamizada, mas criaram uma dependência de concen-tração de renda que depois passou a dificultar a sua distribuição. O estado de pobreza da população funcionou como entrave à dinâmica industrial, por limitação de demanda, mas para crescer a economia tem precisado de renda concentrada.

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Desart iculação cultural: Depois de 430 anos de história, o Brasil tinha 30% de sua população vivendo nas cidades. Os demais 70% viviam no campo, tinham uma cultura e um modo de vida rural. Nos trinta anos seguintes, em menos de uma geração, essa proporção inverteu-se. Quase a metade da população migrou do campo para a vida na cidade. Nesse mesmo período, a sociedade urbana brasileira mudou radicalmente seus costumes e seus modos de vida, devido à industrialização, à televisão, à liberalidade sexual. A população migrante sofreu assim uma dupla ruptura cultural.

O resultado foi uma desarticulação cultural da sociedade, especialmente das parcelas que migraram do campo para as cidades sem tempo para uma reciclagem que permitisse uma lenta adaptação, tal como ocorrida na urbanização dos países europeus.

Sem uma rápida absorção educacional e cultural da população rural nas cidades, o Brasil passou a ser um país no qual sua própria população se sente estrangeira, como os imigrantes estrangeiros nos países europeus.

A situação de estranhamento é mútua: dos imigrantes, que se sentem deslo-cados e sem acesso à modernidade urbana onde vivem, e dos que fazem parte da modernidade, que os veem como invasores e “instrangeiros”40.

Desemprego: Até iniciar-se o processo de industrialização, o conceito de desemprego carecia de sentido na sociedade brasileira. A população rural era mantida ativa, ainda que fosse por meio do subemprego e do trabalho servil. Por falta de acesso à terra, a população migrou às cidades cuja indústria não era capaz de absorvê-la. A mão de obra passou a sobreviver no desemprego, no subemprego informal ou em empregos temporários como acontece com o setor de construção civil.

Visão oligárquica dos polít icos: A tolerância com a qual o processo de indus-trialização conviveu com o latifúndio exportador provocou uma das principais causas da crise brasileira: a existência de uma classe política que assume a forma de baronato isolado do povo, insensível às exigências sociais. O País não conseguiu romper com a visão arcaica, medieval da política dos grotões.

40 Ver do autor o livro “Os Instrangeiros”, publicado pela Editora Garamond, Rio de Janeiro, 2002.

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A política continua sendo feita na forma de compadrios, assistencialismos, fisiologismos, curto prazo, arranjos, jeitinhos, pacotes que servem sempre para manter o status quo.

Caso a estrutura agrária tivesse sido modificada logo no início do século XX, as forças conservadoras urbanas e industriais teriam sido obrigadas a um comportamento mais lúcido diante das relações sociais. O corte entre elite e população não teria atingido o enorme fosso atual. Caso fosse menos dependente e vinculada ao baronato, a elite política brasileira não teria se comportado com a insensibilidade e o desprezo que demonstra para com o conjunto da população, sobretudo no abandono dos serviços públicos.

Mesmo as forças progressistas, mais ligadas ao setor trabalhista do que ao setor empresarial, também se comportam com um razoável grau de desprezo às necessidades do conjunto da população. Em um país de baronato, a esquerda urbana tende a se comportar como um baronato sindical nas suas relações com o povo.

Instabilidade social: A desarticulação entre agricultura e indústria é a causa inicial da grande instabilidade social que leva o país a uma sociedade de apartação, inviabiliza a democracia, não permite a solução dos problemas sociais e emperra o crescimento econômico.

b) A falta da educação

Da mesma maneira, o Brasil seria outro se naquele momento houvesse se iniciado uma reforma na educação brasileira, nos moldes do que já havia ocorrido algumas décadas antes nos países da Europa Ocidental e mesmo na Argentina. Se algum governo, naquele momento, especialmente os primeiros governos republicano tivesse iniciado o esforço de colocar na escola todas as crianças brasileiras, as brancas e as negras, os filhos das oligarquias e de trabalhadores livres e de ex-escravos, o Brasil seria um país completamente diferente do que é hoje.

Se houvesse uma educação de qualidade para todos não teríamos pelo menos sete problemas contemporâneos:

Baixa produtividade: Com exceção de raros bolsões, como o agronegócio das últimas décadas, o Brasil tem historicamente mostrado baixa produtividade. A principal causa disso são as décadas de desprezo à educação de nossa população. Nos últimos anos isso se agravou porque a produtividade não

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está apenas em produzir mais do mesmo produto, mas em criar novos produtos. Na economia do conhecimento, a produtividade passa a exigir elevada formação profissional e criatividade científica e tecnológica dos agentes econômicos.

Pobreza: Não há razão natural para explicar a permanência da pobreza em um país com a riqueza do Brasil. As explicações são políticas e sociais: as prioridades equivocadas ao longo de séculos. Entre estas prioridades equivocadas está o abandono da educação. Além de impedir o Brasil de aproveitar a revolução industrial, por falta de, ainda no final do século XIX e no início do XX, um sistema educacional de qualidade, a má distribuição da educação manteve uma parcela excluída do saber e em consequência de produtividade e de salário. E acomodou a parcela educada na falta de competitividade e de cooperação intelectual fundamental para o avanço intelectual.

Desigualdade: Além da pobreza, o Brasil é uma sociedade tão desigual que historicamente se encontra entre as cinco mais desiguais no mundo com base nos tradicionais indicadores, como o índice de GINI. Pode-se apontar diversas decisões políticas que levaram a este quadro, tão vergonhoso no século XXI quanto era a escravidão no século XIX, mas certamente o quadro seria completamente diferente se desde o início da República o Brasil tivesse oferecido a oportunidade de educação de qualidade para os herdeiros, biológicos ou sociais, dos escravos.

Baixa part icipação cívica: A democracia brasileira é nitidamente deficiente: votos de cabresto, corrupção, distanciamento entre elite dirigente e povo. Por trás desta deficiência está, sem qualquer dúvida, a baixa formação educacional da população. Se em 1888 o Brasil tivesse ingressado em uma revolução educacional ampla, universal, com qualidade, o quadro da democracia brasileira seria mais participativo, com menos corrupção, partidos com mais identidades éticas e ideológicas.

Preconceito racial: Por mais que o Brasil se orgulhe de sua miscigenação racial, ainda é um país de preconceitos raciais. Cento e trinta anos depois da Abolição, os negros ainda não são tratados como cidadãos plenos. Têm empregos de baixa qualificação, considerados inferiores e de menor salário. Por trás deste preconceito estão raízes escravocratas de três séculos e meio tratando negros como raça inferior e subalterna, mas não há outra explicação para a permanência secular do preconceito, salvo a exclusão

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educacional dos ex-escravos e dos pobres livres, em relação à educação recebida pelos brancos ricos.

Dependência tecnológica: Dificilmente o trabalho servil permitiria o pleno aproveitamento do potencial do escravo. Condenado ao trabalho forçado, o escravo não tinha incentivo, nem condições para ser elemento dinâmico, na criatividade da economia. Os abolicionistas usavam o argumento de que a liberdade dos escravos seria instrumento necessário para apro-veitar o potencial de cada um deles. A abolição não foi capaz, porém, de transformar o Brasil em um celeiro de tecnologia. Os anos pós-abolição nos mantêm à margem dos centros gestores e dinâmicos do desenvolvi-mento científico e tecnológico do mundo. A principal razão é, obviamente, o atraso no desenvolvimento científico e tecnológico decorrente da falta de formação educação básica de qualidade para todos.

Economia baseada em commodit ies e indústria primária: A escravidão foi o recurso usado para a produção de commodities no Brasil. Inicialmente o açúcar, depois o café, ou minerais inclusive o ouro e a prata. A eliminação do trabalho servil não foi suficiente para que o Brasil substituísse plena-mente a dinâmica baseada na produção e exportação de commodities. A economia adquiriu dinâmica no setor industrial da metal-mecânica - usando técnicas importadas para produzir bens criados no exterior, - mas continua prisioneira de uma dinâmica baseada no agronegócio. E a causa é a baixa capacidade do país para inovar, devido ao baixo nível educacional, por não termos completado a abolição por meio de uma revolução educacional.

O país se industrializa com uma economia que produz quase tudo, mas não cria quase nada. Por sua incapacidade para inventar novos produtos e novas formas mais baratas de produzir. Sem nenhuma das duas produti-vidades dos tempos atuais, de inventar a baratear a produção, dependente do exterior para abastecer sua demanda por produtos modernos.

A rEDESCoBErTA DA ABoLIção

A elite brasileira do século XXI, como os latifundiários do século XIX, começa a perceber o alto custo da segregação: a violência, a ineficiência

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da mão de obra, o caos urbano começam a pesar no cotidiano da socie-dade brasileira.

O reconhecimento do apagão de mão obra corresponde hoje ao sentimento da baixa produtividade do trabalho escravo, há 150 anos. Naquela época a elite percebeu que para implantar o capitalismo no Brasil era preciso abolir a escravidão. Apenas alguns ficaram contra, voltados para o passado. Para entrar na economia do conhecimento no século XXI será preciso mais do que trabalho livre, será preciso trabalho qualificado profissionalmente, o que passa cada dia mais por educação. O trabalhador de hoje não é mais um operário com mão de obra hábil, é um operador capaz de fazer funcionar as máquinas digitalmente. Isso já parece até em setores tradi-cionais como na construção civil e na agricultura de alta produtividade.Da mesma forma, se percebe a necessidade de organizar a vida social e o cotidiano do país, com eficiência.

Nas próximas décadas, a elite brasileira será obrigada a abolir a segregação social, como antes aboliu a segregação racial escravocrata. O caminho para isso é uma revolução educacional que assegure a toda criança uma educação de qualidade, com a mesma qualidade, independente da classe social em que nasceu e de onde vive. Apagar o carimbo indicador da quali-dade da sua educação, conforme a renda da família ou a cidade onde mora.

NovA ABoLIção

A Abolição não foi completada, ela representou uma evolução no sistema econômico, mas não o salto moral na construção de uma sociedade decente. A nova abolição será feita por um processo organizado em um conjunto de ações que tenham o objetivo de construir uma sociedade sem exclusão, eficiente e sustentável.

Durante décadas, esta nova abolição consistiria no avanço da economia capitalista ou pela implantação do socialismo. A primeira alternativa não construiu utopia e ainda desarticulou a sociedade e desequilibrou a ecologia; os regimes socialistas ocorreram mostrando que este não era o caminho, não abolia totalmente a servidão, não atendia aos sonhos de liberdade, nem oferecia a eficiência produtiva necessária para satisfazer a demanda da população.

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O esgotamento do capitalismo como alternativa utópica, e o fim das expe-riências socialistas, caracterizado teoricamente na prática pela queda do Muro de Berlim, trouxeram um vazio de propostas utópicas. Mesmo assim, não é difícil imaginar que os sonhos que se mantêm acesos devam ser atendidos por uma sociedade que seja capaz de:

• dar sustentabilidade ecológica;

• superar as necessidades essenciais;

• oferecer as vantagens do conhecimento, tanto na economia, quanto na cultura;

•garantir a liberdade de expressão e de escolha no estilo de vida.

De certa forma, este mundo pós Nova Abolição pode ser representado pelo gráfico abaixo, onde a sociedade dispõe de um piso social, impõe um teto ecológico e constrói uma escada de ascensão social.

O vetor de construção desta sociedade consiste no acesso universal à escola com a mesma alta qualidade. Como já previa Nabuco, é a oferta de educação que assegura a completude da Abolição. Se isso era certo no seu tempo, ainda mais hoje, quando o Capital deixou de ser máquinas e pessoas, e passou a ser o Conhecimento.

Seria simples trazer o Treze de Maio de 1888 para o século XXI com lei tão simples quanto a Lei Áurea, com apenas um artigo:

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A Lei Áurea Plena consistiria de um artigo e um parágrafo:

Artigo 1º – Cada criança, não importa a família ou a cidade, receberá o mesmo valor necessário para ter a educação que o mundo moderno exige.

Parágrafo único - A educação de cada criança brasileira é de responsabilidade de toda a nação representada pela União Federal.

Mas tal simplicidade não teria nas escolas o impacto que a Lei áurea trouxe sobre a escravidão. Por isso, para completar a Abolição, o desafio será fazer uma revolução no quadro educacional brasileiro, de maneira a eliminar toda forma de exclusão educacional, fazendo com que a escola tenha a mesma alta qualidade para qualquer que seja a criança, independente da renda de seus pais e da cidade onde vive.

A rEvoLUção EDUCACIoNISTA.

Há duas maneiras de se imaginar uma revolução na educação. A primeira é por meio de uma lenta melhoria em todo o atual sistema educacional. A outra é dar um salto com a construção de um sistema novo que substitua o atual. A evolução do sistema atual tem mostrado que a simples melhoria não transforma o sistema. Não permite o Brasil chegar aos níveis de excelência que o momento exige e ainda menos assegurar a igualdade que se necessita. Ela continua degradada e aumentando três brechas: uma vertical entre nosso grau de educação e a educação necessária; outra horizontal entre nossa educação e a educação nos demais países; e ainda outra brecha social entre a educação dos filhos dos ricos e a educação dos filhos dos pobres.

O salto abolicionista exigirá a substituição do atual sistema educacional brasileiro por um novo sistema. Este novo sistema vai exigir:

• uma nova carreira do professor, bem remunerado, com dedicação exclu-siva e avaliação constante;

• edificações com a máxima qualidade e contando com os mais modernos equipamentos pedagógicos da tecnologia da informação;

• todas em horário integral.

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A atual municipalização das escolas não permitirá ao Brasil dar o salto de que necessita para todas as crianças: as herdeiras sociais da Casa Grande e as herdeiras sociais da Senzala. A desigualdade de recursos, financeiros e humanos entre municípios, não permite igualar a qualidade das escolas municipais ao longo do território brasileiro. Os municípios são pobres e desiguais entre eles. A única forma de homogeneizar qualidade da educação das crianças brasileiras, inde-pendente da cidade onde vivem e da renda de seus pais, é por meio da Federalização do Sistema Educacional.

Só a União cuidando da educação de base de todas as crianças permitirá que elas sejam tratadas igualmente como brasileiras, não municipalizadas. Deixar a educação municipalizada é como se a abolição da escravidão tivesse sido deixada a critério de cada cidade, no lugar de uma Lei Áurea nacional.

Esse sistema federal não poderá ser implantado de imediato em todo o território brasileiro. Por isso, a Lei Áurea do século XXI, para completar a Abolição do século XIX, vai exigir a substituição paulatina do atual sistema municipal e estadual por um novo sistema federal. Esta subs-tituição poderia ser feita por unidades, espalhadas aos poucos pelo território nacional, ampliando as atuais escolas federais até atingir todas as escolas públicas do País. Esta dinâmica dificilmente daria o resultado esperado, porque a escola federal terminaria sendo compro-metida pela má qualidade do sistema municipal que a rodeia. Tudo indica que o melhor caminho seria a adoção pelo governo federal de todas as escolas de determinadas cidades.

Nestas cidades todas as escolas seriam reconstruídas e equipadas, implantando-se horário integral com professores de uma nova carreira federal.

A ChAMA DA INDIgNAção

A maior tragédia da escravidão não foi o trabalho forçado, nem mesmo o cativeiro, mas é a desumanização que o sistema escravocrata implica sobre o escravo, sobre o seu proprietário e sobre quem assiste omisso ao seu funcionamento. O livro e o filme “Doze Anos de Escravidão” mostram

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com clareza esta desumanização. Foi preciso um ex-escravo, reescravizado, para perceber a desumanização do sistema. Os escravos cativos foram tão desumanizados e seus donos eram tão desumanizados que não viam a desumanização. A luta contra a escravidão não foi apenas o resultado de uma lógica econômica, fazendo-a um sistema obsoleto, mas o resultado de uma indignação moral vendo-o como um regime indecente.

Nos tempos atuais, a desumanização está na aceitação de que é natural o acesso desigual à escola, conforme a renda dos pais ou o município onde vive a criança. A revolução educacional passa pela tomada de um senti-mento de indignação a ser despertado pelo absurdo de em um mesmo país as crianças terem tão desigual sistema de educação.

A realidade do século XXI está forçando, como no final do século XIX, com a escravidão, uma reorientação do futuro do Brasil na linha de completar a Abolição.

Por um lado, percebe-se que o atraso educacional deixará o Brasil fora da economia do conhecimento já em marcha. Como aconteceu no século XIX com a exclusão do Brasil, como economia periférica, excluída dos benefícios da revolução industrial, por causa da escravidão, que deixava uma imensa massa de seres humanos impossibilitada de participar do sopro que ocorria na economia no exterior, por falta aqui de mão de obra, de consumidores e de empreendedorismo; deixando o país fora da inovação. Agora ficamos para trás por falta do principal capital do novo século: o Conhecimento. O Brasil sente que precisa apagar o carimbo de

“atrasado”, do ponto de vista científico e tecnológico, que marca todo o mapa de seu território. Por outro lado, sente a necessidade de apagar o carimbo que diferencia os brasileiros desde o berço, independente de seu talento, levando a uma divisão social que degrada hoje tanto nosso país quanto no passado a escravidão, ao longo de sucessivos séculos.

É esta chama da indignação que precisa ser acesa no Brasil.

A escravidão era um sistema social em que as crianças nasciam com uma marca na testa dizendo se cresceriam livres ou escravizadas.

O sistema brasileiro de apartação carimba na testa das crianças se elas terão ou não acesso à educação de qualidade; e através dela dos benefícios de liberdade e qualidade de vida.

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Líderes Abolicionistas

LUíS gAMA – 1830-1882

Luís Gama nasceu em Salvador-BA em 24 de Junho de 1830, foi advogado, jornalista e escritor e um dos mais importantes líderes abolicionistas. Era filho da africana livre Luiza Mahin, uma das principais figuras da Revolta dos Malês, com um fidalgo branco de origem portuguesa, de uma rica família baiana.

Sua mãe trabalhava como quitandeira, sendo conhecida na cidade de Salvador. Em 1837, acusada de participação na Sabinada, foi deportada para o Rio de Janeiro, onde desapareceu. Logo depois disso, em 10 de novembro de 1840, o jovem, então com dez anos de idade, foi vendido como escravo por seu próprio pai, afirma-se que para pagar uma dívida de jogo.

Luís Gama foi transportado como escravo até à cidade do Rio de Janeiro, ficando com um comerciante de nome Vieira. Ainda em 1840 foi vendido para o alferes Antônio Pereira Cardoso e trazido para a província de São Paulo. Em Campinas ninguém o comprou por que os escravos baianos tinham fama de revoltosos (“negros fujões”). Sem conseguir vendê-lo, foi utilizado na fazenda do alferes em Lorena, onde aprendeu os ofícios do escravo doméstico - copeiro, sapateiro, lavar, passar e engomar.

Em 1847, um estudante de nome Antônio Rodrigues de Araújo hospedou-se na fazenda do alferes e tornou-se amigo de Luís Gama, ensinando-o a ler e escrever. Com isso, Gama conscientizou-se da ilegalidade de sua condição, pois era filho de mãe livre, e resolveu fugir para a cidade de São Paulo em 1848, inscrevendo-se no exército.

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Após 7 anos de tumultuada carreira nas Forças Armadas, onde relatam-se espisódios de insubordinação, deu baixa em 1854 e resolveu estudar Direito por conta própria.

Na década de 1860 tornou-se jornalista de renome, ligado aos círculos do Partido Liberal. Entre 1864 e 1875 colaborou com diversos jornais.

Em 1869 fundou com Rui Barbosa o jornal “Radical Paulistano”. Parti-cipou da criação do “Club Radical” e, mais tarde, da criação do “Partido Republicano Paulista” (1873), ao qual se manteve ligado até sua morte, em 1882. Por volta de 1880, foi líder da “Mocidade Abolicionista e Republicana”.

Trabalhou como amanuense – transcrevia e copiava textos oficiais à mão – quando foi demitido por causa de sua atuação jurídica em favor da liber-tação dos escravos. Passou a ganhar a vida como rábula. Foi o responsável pela libertação de mais 500 escravos (algumas fontes apontam mais de mil) usando as leis abolicionistas que já existiam naquela época, mas que não eram respeitadas, como por exemplo, a Lei Feijó – que extingia o tráfico e declarava como livres os africanos aportados no Brasil após 1831

-, a Lei do Ventre Livre e demais legislações que eram burladas para que se pudesse escravizar ilegalmente quem já era legalmente livre.

A sua morte, no dia 25 de agosto de 1882, vítima de diabetes, comoveu a cidade de São Paulo, e o funeral é até hoje relatado como o mais concor-rido daquela época. Deixou uma extensa obra literária, especialmente poética, muitas em tom de sátira que ridicularizava a aristocracia e os poderosos da época.

Entre os muitos pensamentos que deixou, dois ilustram a força radical de suas ideias:

O escravo que mata o seu senhor pratica um ato de legítima defesa.

Em nós, até a cor é um defeito. Um imperdoável mal de nascença, o estigma de um crime. Mas nossos críticos se esquecem que essa cor é a origem da riqueza de milhares de ladrões que nos insultam; que essa cor convencional da escravidão, tão semelhante à da terra, abriga sob sua superfície escura, vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade.

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ANDré rEBoUçAS -1838-1898

André Rebouças, filho de Antônio Pereira Rebouças e de Carolina Pinto.

Nasceu em Cachorira – BA, no dia 13 de janeiro de 1838, em plena Sabinada - a insurreição baiana contra o governo regencial – filho de uma liberta com alfaiate português.

Tinha sete irmãos, sendo mais ligado a Antônio, que se tornou seu grande companheiro na maioria dos seus projetos profissionais. André e Antônio foram alfabetizados por seu pai e frequentaram alguns colégios até ingres-sarem na Escola Militar. Em fevereiro de 1846, a família mudou-se para o Rio de Janeiro e em 1857 André bacharelou-se em Ciências Físicas e Matemáticas, obtendo o grau de engenheiro militar no ano seguinte.

Entre fevereiro de 1861 e novembro de 1862, os irmãos André e Antônio foram pela primeira vez à Europa, em viagem de estudos. Na volta ao Brasil, partiram como comissionados do Estado brasileiro para trabalhar na vistoria e no aperfeiçoamento de portos e fortificações litorâneas. Na guerra do Paraguai, André serviu como engenheiro militar, entre maio de 1865 e julho de 1886, quando retornou ao Rio de Janeiro, por motivos de saúde. Os estudos na Europa foram fianciados pelo pai Antônio Rebouças, que vendeu alguns bens.

Em 1873, desembarcou em Nova Iorque. Seu principal interesse era o de realizar visitas de estudos aos portos, às indústrias navais e aos escritórios de engenharia, mas a sua estada nos EUA não deixou boas lembranças. Ele sofreu odiosa discriminação racial. Inutilmente, procurou alugar um quarto nos hotéis de Nova Iorque. Todos lhes foram negados, até que um amigo, o jornalista José Carlos Rodrigues, conseguiu um quartinho de fundos num hotel de terceira categoria, onde André teria de tomar as refeições sem sair do quarto, porque fora proibido de frequentar o restau-rante e entrar pela porta principal. Foi impedido de entrar em hotéis de New Jersey, Massachussets, Pensilvânia e New York. A viagem mostrou-lhe que a competência não era suficiente num país em que a discriminação era explícita e a segregação formalizada41.

41 Informações fornecidas por Leiliane Rebouças, publicadas no blogue Perturbando o Status Quo. http://blogdaleili.blogspot.com.br/

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A partir de 1880, se engajou na campanha abolicionista e ajudou a criar a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão, ao lado de Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e outros. Participou também da Confederação Abolicionista e redigiu os estatutos da Associação Central Emancipadora.

Paradoxalmente, participou com o Visconde de Taunay da Sociedade Central de Imigração – organização que notoriamente propunha o bran-queamento da população. Esse ponto controverso da biografia de André Rebouças está analisado no livro de Maria Alice Rezende de Carvalho, “O Quinto Século”42.

Assim como Joaquim Nabuco, era um adepto convicto da monarquia, o que o levou a embarcar com a família imperial para a Europa, após a procla-mação da República em 15 de novembro de 1889. Por dois anos, ele perma-neceu exilado em Lisboa, como correspondente do “The Times” de Londres. Transferiu-se, então, para Cannes, na França, até a morte de D. Pedro II.

Em 1892, com problemas financeiros, aceitou um emprego em Luanda, Angola, onde permaneceu por 15 meses. Fixando-se a partir de 1893 em Funchal, na Ilha da Madeira, seu abatimento intensificou-se e, no dia 9 de maio de 1898 seu corpo foi resgatado na base de um penhasco, próximo ao hotel em que vivia. Apesar da ausência de confirmação, suspeita-se que teria cometido suicídio.

André Rebouças foi um dos primeiros intelectuais brasileiros a publicar estudos sobre a reforma agrária no Brasil que envolveria e solucionaria problemas relacionados à interiorização do país através da criação de novas estradas de ferro; envolveria também a inserção do negro após a abolição com a criação de colônias agrícolas nos arredores destas ferrovias.

Algumas de suas manifestações foram não apenas abolicionistas, mas preo-cupadas com o desenvolvimento e, sobretudo, com a necessidade de educação, como pode ser visto pelos dois pensamentos citados por Carlos Nobre43.

(...) o que falta a este Império, como a todos paizes do mundo, é capital, é indústria, é trabalho, é instrução, é moralidade. Esse não-estar, que obriga a dizer – há falta de braços – significa realmente que o paiz está tão mal governado que não pode garantir trabalho e pão para os seus habitantes.

42 O quinto século. André Rebouças e a construção do Brasil, de Maria Alice Rezende de Carvalho. 1998. Editora Revan. ISBN 8571061386

43 Jornalista; Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio; Pesqui-sador de Segurança Pública, Direitos Humanos e Processo Abolicionista.

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Tudo isso demonstra que é necessário educar a geração que cresce, para a agricul-tura, para a indústria, para o comércio, para o trabalho em uma só palavra! Até aqui a educação era meramente política. Sahia-se da academia para os collégios eleitorais, e muitas vezes para as assembleas legislativas provinceaes, e até para o parlamento nacional. Dahi essa repugnância geral para o trabalho produtivo.

Bibliografia:

PESSANHA, Andréa Santos. Da Abolição da Escravatura à Abolição da Miséria: A vida e as ideias de André Rebouças. Editora Belford Roxo, 2005.

CARVALHO, Maria Alice Rezende de. O quinto século. André Rebouças e a cons-trução do Brasil. Editora Revan, 1998. ISBN 8571061386

André Rebouças - Reforma & Utopia no Contexto do Segundo Império, de Joselice Jucá. Rio de Janeiro: Construtora Norberto Odebrecht, 2001.

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JoSé Do pATroCíNIo – 1853-1905

José do Patrocínio nasceu em Campos dos Goytacazes no dia 9 de outubro de 1853. Era filho do padre João Carlos Monteiro com Justina do Espírito Santo, uma jovem escrava de quinze anos, cedida por sua proprietária ao serviço do cônego.

Sem reconhecer a paternidade, o religioso encaminhou o menino para a sua fazenda na Lagoa de Cima, onde José do Patrocínio passou a infância como liberto, porém convivendo com os escravos e com os rígidos castigos que lhes eram impostos.

Aos catorze anos de idade, tendo completado a sua educação primária, pediu e obteve do pai autorização para ir para o Rio de Janeiro. Em 1868, encontrou trabalho como servente de pedreiro na Santa Casa de Miseri-córdia, empregando-se posteriormente na casa de saúde do doutor Batista Santos. Atraído pelo assunto de saúde, retomou, às próprias expensas, os estudos no colégio João Pedro de Aquino, prestando os exames prepara-tórios para o curso de farmácia.

Aprovado, ingressou na Faculdade de Medicina como aluno de Farmácia, concluindo o curso em 1874. Nesse momento, desfazendo-se a república de estudantes com que convivia, Patrocínio viu-se na iminência de precisar alugar moradia, sem dispor de recursos para tal. Um amigo convidou-o a morar no tradicional bairro de São Cristóvão, na casa da mãe, então casada em segundas núpcias com o capitão Emiliano Rosa Sena, abastado proprietário de terras e imóveis. Para que Patrocínio pudesse aceitar sem constrangimento a hospedagem que lhe era oferecida, o capitão Sena propôs-lhe que, como pagamento, lecionaria aos seus filhos. Patrocínio aceitou e, desde então, passou também a frequentar o “Clube Republicano”, que funcionava na residência, do qual faziam parte Quintino Bocaiuva, Lopes Trovão, Pardal Mallet e outros. Não tardou que Patrocínio propu-sesse casamento a Maria Henriqueta, uma das filhas do militar, que por isso ficou ofendido a princípio, porém vindo, após o matrimônio (1879), a auxiliar Patrocínio em diversas ocasiões.

Nessa época, Patrocínio iniciou a carreira de jornalista em parceria com Dermeval da Fonseca, publicando o quinzenário satírico “Os Ferrões”, que circulou de 1 de junho a 15 de outubro de 1875, no total de dez números.

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Os dois colaboradores se assinavam com os pseudônimos Notus Ferrão (Patrocínio) e Eurus Ferrão (Fonseca).

Dois anos depois (1877), admitido na Gazeta de Notícias como redator, foi encarregado da coluna Semana Parlamentar, que assinava com o pseu-dônimo de Prudhome. Foi neste espaço que, em 1879, iniciou a campanha pela Abolição da escravatura no Brasil. Formou-se um grupo de jorna-listas e de oradores, entre os quais Ferreira de Meneses (proprietário da Gazeta da Tarde), Joaquim Nabuco, Lopes Trovão, Ubaldino do Amaral, Teodoro Fernandes Sampaio, Francisco Paula Nei, todos da Associação Central Emancipadora. Por sua vez, Patrocínio começou a tomar parte nos trabalhos da associação.

Fundou, em 1880, com Joaquim Nabuco, a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão. Em 1882, a convite de Francisco de Paula Ney44, Patrocínio visitou a província do Ceará, onde o movimento abolicionista já era uma realidade estabelecida. Em 1881, adquiriu a Gazeta da Tarde, assumindo-lhe a direção. Em maio de 1883, articulou a Confederação Abolicionista, congregando todos os clubes abolicionistas do país, cujo manifesto redigiu e assinou, juntamente com André Rebouças e Aristides Lobo. Nesta fase, Patrocínio não se limitou a escrever: também preparou e auxiliou a fuga de escravos e coordenou campanhas de angariação de fundos para adquirir alforrias, com a promoção de espetáculos ao vivo, comícios em teatros, manifestações em praça pública, etc.

Em 1885, visitou sua cidade natal, Campos dos Goytacazes. De volta ao Rio de Janeiro, trouxe a mãe, idosa e doente, que viria a falecer no final desse mesmo ano. O sepultamento transformou-se em um ato político em favor da abolição, tendo comparecido personalidades como o ministro

44 Francisco de Paula Ney nasceu em Aracati no dia 2 de fevereiro de 1858 e faleceu no Rio de Janeiro, no dia 13 de novembro de 1897. Era filho de Mariano de Melo Nei – alfaiate – primeiro Mestre do corte em Fortaleza e D. Carlota Cavalcanti de Sousa Pinheiro. Foi poeta, jornalista, e nutria um grande amor pelo Ceará. Ele costumava dizer: “Pelo Brasil eu morro e pelo Ceará eu mato!”. Foi uma figura marcante no Rio de Janeiro, fazendo parte de uma brilhante geração de literatos. O grupo frequentava a Confeitaria Pascoal, na Rua do Ouvidor e, posteriormente, migraram para a Confeitaria Colombo, na Gonçalves Dias em 1894. Seus companheiros de boemia eram: Olavo Bilac, Coelho Neto, José do Patrocínio, Pardal Mallet, Luís Murat e Guimarães Passos. Desde cedo descobriu que sua verdadeira vocação era o jornalismo e, por essa profissão, largou o curso de medicina. Trabalhou com José do Patrocínio no jornal Gazeta de Notícias. Ambos propagavam a abolição dos escravos, tendo trabalhado com afinco em prol dessa causa. Foi Paula Ney quem levou José do Patrocínio ao Ceará para trazer mais um incentivo à causa abolicionista.

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Rodolfo Dantas, o jurista Rui Barbosa e os futuros presidentes Campos Sales e Prudente de Morais.

No ano seguinte (1886), iniciou-se na política, sendo eleito vereador da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, com votação maciça.

Em Setembro de 1887, abandonou a “Gazeta da Tarde” para fundar e dirigir um novo periódico: o “A Cidade do Rio”. À frente deste periódico, inten-sificou a sua atuação política. Aqui, fizeram escola alguns dos melhores nomes do jornalismo brasileiro da época, reunidos e incentivados pelo próprio Patrocínio. Foi nele que Patrocínio comemorou, após uma década de intensa militância, o 13 de Maio de 1888, o advento da Abolição.

Obtida a vitória na campanha abolicionista, as atenções da opinião pública se voltaram para a campanha republicana. O “A Cidade do Rio” e a própria figura de Patrocínio passam a ser identificados pela opinião pública como defensores da monarquia em crise. Nessa fase, Patrocínio, rotulado como um “isabelista”, foi apontado como um dos mentores da chamada

“Guarda Negra”, um grupo de ex-escravos que agia com violência contra os comícios republicanos.

Após a proclamação da República (1889), entrou em conflito em 1892 com o governo do marechal Floriano Peixoto, pelo que foi detido e deportado para Cucuí, no alto rio Negro, no estado do Amazonas. Retornou discre-tamente ao Rio de Janeiro em 1893, mas com o estado de sítio ainda em vigor, a publicação do “A Cidade do Rio” continuou suspensa. Sem fonte de renda, Patrocínio foi residir no subúrbio de Inhaúma.

Nos anos seguintes, a sua participação política foi inexpressiva. Concen-trando sua atenção no moderno invento da aviação. Iniciou a construção de um dirigível de 45 metros, o “Santa Cruz”, com o sonho de voar, jamais realizado. Numa homenagem a Santos Dumont, realizada no Teatro Lírico, quando discursava saudando o inventor, foi acometido de uma hemoptise, sintoma da tuberculose que o vitimou. Faleceu pouco depois, no dia 29 de Janeiro de 1905, aos 51 anos de idade, ficando afirmado como o maior jornalista da Abolição. Ficou também sua fidelidade à Abolição acima de todas as querelas políticas. Esta coerência lhe fez parecer oscilante, ao se manter monarquista enquanto os amigos se faziam republicanos, quando na verdade era o mundo ao redor que oscilava, enquanto ele mantinha a própria coerência e o propósito, abolir a escravidão.

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MANUEL QUErINo – 1851-1923

Manuel Raimundo Querino nasceu no 28 de julho de 1851, em Santo Amaro, Bahia. Ficou órfão aos quatro anos de idade e foi confiado a um tutor que o alfabetizou e ensinou-lhe as primeiras lições.

Tendo apenas o curso primário, aos 17 anos alistou-se como recruta na guerra do Paraguai mas, por motivos de saúde, não foi mandado ao campo de batalha. Foi então para o Rio de Janeiro onde ficou empregado no escritório do quartel. Em 1870, foi promovido a cabo de esquadra, e logo depois teve baixa no serviço militar.

Voltando à Bahia, começou a trabalhar como pintor e decorador. Com suas inclinações para o desenho, matriculou-se na Escola de Belas Artes, onde se distinguiu entre os alunos. Obteve o diploma de desenhista em 1882. Seguiu depois o curso de arquiteto. Obteve várias medalhas em concursos e exposicões promovidos pela Escola de Belas Artes e o Liceu de Artes e Oficios.

Foi republicano, liberal, abolicionista. Com outros do grupo da Sociedade Libertadora Sete de Setembro, assinou o manifesto republicano de 1870. Fundou os periódicos “A Provincia” e “O Trabalho”, onde defendeu os seus ideais republicanos e abolicionistas.

Tornou-se um líder em campanhas pelas causas trabalhistas e operárias que o conduziram à Camara Municipal.

E assim foi toda a sua vida. No seu modesto cargo de 3°. Oficial da Secretaria da Agricultura, sofreu os mais incríveis vexames. Foi consecutivamente preterido em todas as ocasiões em que lhe era de justiça a promoção.

Com a passagem do século dedicou muito de seu tempo e energia a estudos históricos, em particular à pesquisa e ao registro das contribuições dos africanos ao crescimento do Brasil. Foi pioneiro nos registros antropoló-gicos da cultura africana na Bahia. Esses estudos tinham dois objetivos: por um lado, ele queria mostrar a seus irmãos de cor a contribuição vital que deram ao Brasil; e por outro, desejava lembrar aos brasileiros brancos a dívida que tinham com a África e com os afro-brasileiros.

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Trouxe à história do Brasil a perspectiva do negro. Morando na comu-nidade de africanos, ele conhecia com intimidade os hábitos, aspirações e frustrações dos afro-brasileiros. Muitas de suas informações vinham diretamente dos idosos.

Além de escrever sobre os negros, Querino também ajudava a defendê-los. Preservou um considerável montante de informações sobre as artes, artistas e artesãos da Bahia. Em seu “As Artes na Bahia” incluiu biografias de pessoas comuns que fornecem uma perspectiva das vidas dos escravos, com informações sobre costumes, cultura e religião. Uma das maiores contribuições de Querino à historiografia brasileira foi sua insistência para que a história nacional levasse em consideração seu componente africano, cuja contribuição estava sendo minimizada.

Faleceu na Bahia no 14 de Fevereiro de 1923

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JoAQUIM NABUCo – 1849-1910

Joaquim Nabuco nasceu em 19 de Agosto de 1849, filho do jurista e político baiano, senador do Império José Tomás Nabuco de Araújo Filho, e de Ana Benigna de Sá Barreto Nabuco de Araújo. Foi político, diplomata, histo-riador, jurista formado pela Faculdade de Direito do Recife, jornalista, e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras.

Foi um dos grandes diplomatas do Império do Brasil, além de orador, poeta e memorialista. “O Abolicionismo”, “Minha Formação” e “Um Estadista do Império” figuram como importantes obras de memórias, e base do pensamento brasileiro, onde percebe-se o paradoxo de quem foi educado por uma família escravocrata, mas optou pela luta em favor dos escravos, por humanismo e por sentimento nacional ao perceber os malefícios da escravidão para o País. “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característ ica nacional do Brasil”, sentenciou.

Muito cedo foi viver no engenho Massangana, no atual município de Cabo de Santo Agostinho em Pernambuco. Foi neste engenho que teve contato direto com a escravidão, desenvolvendo o sentimento de solidariedade e compaixão pelo povo negro, que o marcou e ajudou a compreender a crueldade e o mal que a escravidão fazia ao País.

Em 1857 transferiu-se para a residência dos pais, no Rio de Janeiro, onde realizou os estudos de nível primário e secundário, este último feito na cidade de Nova Friburgo. Em 1866 iniciou os estudos de Direito na Facul-dade de São Paulo, destacando-se como orador. Em 1869 transferiu-se para a Faculdade de Direito do Recife, em 1869 onde escandalizou a elite local, por defender, em um júri, um escravo negro que assassinara o seu senhor.

Diplomou-se no Recife em Ciências Sociais e Jurídicas e retornou ao Rio, tentando advocacia no importante escritório de seu pai e iniciando-se no jornalismo no jornal “A Reforma”, defendendo princípios monárquicos.

Em 1872 publicou o seu primeiro livro, “Camões e os Lusíadas”. Anterior-mente publicara dois opúsculos: “O gigante da Polônia”, em 1864, e “O povo e o Trono”. Passou um ano na Europa, viajando, fazendo contatos com intelectuais e políticos.

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Em 1876 obteve o cargo público de adido de legação nos Estados Unidos, em Nova Iorque e em Washington.

Foi eleito deputado pela província de Pernambuco em 1878, passando no ano seguinte a participar do parlamento, com destaque, em face da sua origem, ao valor de sua oratória e da independência frente ao governo Sinimbu, do seu próprio partido. Ao lado de outros jovens deputados iniciou a campanha contra a escravidão, em favor da abolição da escravatura. Combateu um projeto de exploração do Xingu, defendendo os direitos dos indígenas e criticou o envio de uma missão governamental à China, visando estimular a migração de chineses que deveriam substituir os escravos nas fainas agrícolas. Organizou e instalou em sua residência em 1880 a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão, desafiando a elite conservadora da época, que considerava a escravidão uma instituição natural, inconstentável e indispensável ao bom funcionamento da sociedade e ao desenvolvimento do Brasil. Com isso, ele aprofundou as divergências com o seu partido, o Liberal, e inviabilizou a sua reeleição em 1882.

Derrotado nas eleições para a Câmara dos Deputados, onde se propunha ser o representante dos abolicionistas, partiu para a Europa, no que chamou de exílio voluntário. Em Londres viveu como advogado e jornalista (representante do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro) e escreveu um dos seus principais livros, o clássico “O abolicionismo”, publicado em 1884.

Regressou para continuar sua vocação política, fazendo a campanha outra vez para a eleição, por Pernambuco, à Câmara dos Deputados, defendendo ao lado de José Mariano, a causa do abolicionismo. Seus discursos e confe-rências foram reunidos no livro “A campanha abolicionista”, publicado em 1885, onde defendeu ideias bastante avançadas. Vitorioso sobre o candidato conservador, Machado Portela, foi, entretanto, excluído da lista de eleitos.

O expurgo causou revolta em Pernambuco, e o 5º Distrito, formado pelos municípios de Nazaré e Bom Jardim por decisão dos chefes liberais Ermírio Coutinho e Joaquim Francisco de Melo Cavalcanti, elegeu Joaquim Nabuco para a Câmara.

Joaquim Nabuco se opôs de maneira veemente à escravidão, contra a qual lutou por meio de seus escritos e de suas atividades políticas. Apesar da sua cultura e da variedade de suas precupações, pode-se dizer que foi intelectual e político de uma “nota só”: a escravidão. Fez campanha contra

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a escravidão na Câmara dos Deputados em 1878 e fundou a Sociedade Antiescravidão Brasileira. Entre dezenas de outros, pode-se considerá-lo a principal força na realidade da abolição.

A abolição da escravatura, no entanto, não deveria ser feita de maneira violenta, mas assentada numa consciência nacional dos benefícios que resultariam à sociedade brasileira. Também não creditava a movimentos civis externos ao parlamento o papel de conduzir a abolição. No seu entender a abolição só poderia se dar no parlamento. Fora desse âmbito cabia somente assentar valores humanitários que fundamentariam a abolição quando instaurada.

Criticou também a postura da Igreja Católica em relação ao abolicionismo, chamando-a de “a mais vergonhosa possível”, pois ninguém jamais a viu tomar partido dos escravos. E emendou: “A Igreja Católica, apesar do seu imenso poderio em um país ainda em grande parte fanatizado por ela, nunca elevou no Brasil a voz em favor da emancipação”45.

Assim como Ruy Barbosa, Nabuco defendia a separação entre Estado e Religião, bem como a laicidade do ensino público.

Em um discurso proferido em 15 de maio de 1879 que abrangia tanto o tema da educação pública quanto o da separação entre Estado e Religião, a um aparte de vários deputados, responde:

Eu desejava concordar com os nobres deputados, em que se deveria deixar a liberdade a todas as seitas; mas, enquanto a Igreja Católica estiver, diante das outras seitas, em uma situação privilegiada (…), os nobres deputados hão de admitir que (…) ela vai fazer ao próprio Estado, de cuja proteção se prevalece, uma concorrência poderosa no terreno verdadeiramente leigo e nacional do ensino superior. Se os nobres deputados querem conceder maiores franquezas, novos forais à Igreja Católica, então separem-na do Estado.

Em outro trecho coloca:

A Igreja Católica foi grande no passado, quando era o cristianismo; quando nascia no meio de uma sociedade corrompida, quando tinha como esperança a conversão dos bárbaros, que se agitavam às portas do Império minado pelo egoísmo, corrompido pelo cesarismo, moralmente degradado pela escravidão. A Igreja Católica foi grande quando tinha que esconder-se nas catacumbas, quando era perseguida. Mas, desde que Constantino dividiu com ela o império do mundo, desde que de perseguida ela passou a sentar-se no trono e a vestir a púrpura dos césares, desde que, ao contrário das palavras do seu divino fundador, que disse: - O meu reino não é deste mundo, - ela não teve outra religião senão

45 NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo, Rio de Janeiro: Nova fronteira; São Paulo: Publifolha, 2000.

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a política, outra ambição senão o governo, a Igreja tem sido a mais constante perseguidora do espírito de liberdade, a dominadora das consciências, até que se tornou inimiga irreconciliável da expansão científica e da liberdade inte-lectual do nosso século!

Na Câmara dos Deputados, Nabuco defendeu o Gabinete Dantas e o seu projeto de libertação dos sexagenários, apesar de considerá-lo muito moderado. Em seguida à queda do governo Dantas, atacou as modificações feitas ao projeto para os propósitos abolicionistas pelo novo presidente do Conselho, J. A. Saraiva, que seria transformado em lei pelo Gabinete Cotejipe, a 28 de setembro.

Ainda em 1885 Nabuco apresentou à Câmara dos Deputados um projeto de lei em favor da federação das províncias, tentando concretizar velha aspiração regionalista brasileira.

Em 1886 Nabuco foi outra vez derrotado em eleição para a Câmara dos Deputados ao tentar eleger-se pelo Recife. Dedicou-se ao jornalismo escre-vendo uma série de opúsculos, em que identificou a monarquia com a escravidão e fez sérias críticas ao governo. Estes opúsculos se intitulavam

“O erro do Imperador”, “O Eclipse do Abolicionismo e “Eleições Liberais e Eleições Conservadoras”, publicados em 1886.

Em 1887 Nabuco derrotou Machado Portela em eleição memorável no Recife. Este é um dos casos em que um pequeno fato local provoca grandes eventos históricos: difícil imaginar o Parlamento Brasileiro sem a presença de Joaquim Nabuco, naqueles anos e naqueles dias de Maio de 1888.

Coerente com as propostas de sua campanha, dedicou-se com ênfase e de forma incansável à luta pela abolição. Com este propósito, teve audiência particular com o papa Leão XIII e relatou a luta pelo abolicionismo no Brasil, acreditando-se que possa ter influenciado o grande pontífice na elaboração de uma encíclica contra a escravidão.

Em Março de 1888, o gabinete João Alfredo assume o governo com o obje-tivo deliberado de abolir a escravatura no Brasil. Apesar do Gabinete ser conservador, Nabuco o apoiou e deu uma grande contribuição à apro-vação da Lei Áurea. Em seguida, quando os ressentidos com a abolição se lançaram contra João Alfredo, Nabuco veio em sua defesa, realizando, a 22 de maio de 1889, um dos seus mais memoráveis discursos na Câmara dos Deputados.

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Nas eleições de 1889, sem ir ao Recife e sem solicitar o apoio do eleitorado foi eleito deputado por Pernambuco, para a última legislatura do Império. Começava a se desiludir dos processos políticos no País e temia pela queda da Monarquia, a quem era fiel, embora procurasse liberalizá-la e não poupasse críticas à instituição e ao próprio Imperador.

Com a Proclamação da República, posicionou-se em favor da Monarquia, recusando-se inclusive, apesar de solicitado, a postular uma cadeira na Assembléia Constituinte de 1891. Justificou sua posição no opúsculo “Por que sou monarquista”.

Era um monarquista e conciliava essa posição política com sua postura abolicionista. Atribuía à escravidão a responsabilidade por grande parte dos problemas enfrentados pela sociedade brasileira, defendendo que o trabalho servil fosse suprimido antes de qualquer mudança no âmbito político.

Quando surgiu o “Jornal do Brasil”, fundado por Rodolfo Dantas, em 1891, com a finalidade de bem informar a população e de defender, de forma moderada, a restauração da Monarquia, Nabuco tornou-se colaborador. Para sobreviver, voltou à advocacia, abrindo escritório em sociedade com o conselheiro João Alfredo. Não foram bem sucedidos e um ano depois fecharam o escritório.

Viajou à Inglaterra com a família, aí permanecendo por alguns anos. Fazendo um balanço de sua vida, voltou à Igreja Católica, que havia abandonado na juventude. O livro “Minha Fé”, publicado em 1986 pela Fundação Joaquim Nabuco, relata o processo de sua conversão.

Escreveu também um opúsculo, “O dever dos monarquistas”, em resposta a outro escrito pelo almirante Jaceguai, este favorável ao novo regime, intitulado “O dever do momento”. Assumiu em 1896 o manifesto do Partido Monarquista, recém-fundado, tendo como signatários, além dele os conse-lheiros João Alfredo, Lafaiete Pereira, o visconde de Ouro Preto, Afonso Celso e outros.

Não aceitando cargos da República, Nabuco dedicou-se às letras, escre-vendo livros e artigos para jornais e revistas. Alguns livros foram escritos inicialmente para publicação como artigos, em jornais e revistas. Entre estes, cabe citar “Balmaceda” (publicado em 1895) sobre a guerra civil no

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Chile e “A Intervenção Estrangeira na Revolta de 1893” (publicado em 1896) onde, além de analisar o desenrolar da luta, faz confronto entre Saldanha da Gama, maior líder da Revolta, e Floriano Peixoto, que encarnava a legalidade. Também deste período é “Um Estadista do Império (1896)”, seu principal livro, em que analisa a vida do senador Nabuco de Araújo e a vida política, econômica e social do País durante a atuação do mesmo. Ainda desta época é o seu livro de memórias, intitulado “Minha Formação”, publicado parcialmente na imprensa e reunido em livro, em 1900.

Em 1896 participou da fundação da Academia Brasileira de Letras, que teve Machado de Assis como seu primeiro presidente e Nabuco como secretário perpétuo. Entre os acadêmicos, manteve uma grande amizade com o escritor Machado de Assis, que mantinha até mesmo um retrato de Nabuco pendurado na parede de sua residência, e com quem costumava trocar correspondências, que acabaram publicadas. Ingressou no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1896.

Em 1899 aceitou convite do governo da República para defender o Brasil na questão de limites com a então Guiana Inglesa de que seria árbitro o rei Victor Emanuel, da Itália, iniciando o processo de afastamento do grupo monarquista e passando à conciliação com a República. Sua adesão defi-nitiva ocorreu com discurso que proferiu, no Rio de Janeiro, em dezembro de 1900, em banquete que lhe foi oferecido, discurso considerado como a sua declarada adesão à República. Aceitou o cargo de chefe da delegação em Londres e tornou-se, finalmente, funcionário da República.

Em março de 1900 morreu Sousa Correia, ministro brasileiro na Inglaterra, provocando o convite do gabinete do governo para que Nabuco aceitasse este lugar, passando a ser funcionário da República. Nabuco inicialmente aceitou ser “plenipotenciário em missão especial” deixando a chefia da legação com o encarregado de negócios.

Criada a Embaixada do Brasil em Washington, Nabuco foi nomeado embaixador, apresentando suas credenciais ao presidente Theodore Roosevelt em maio de 1905. Como embaixador em Washington ligou-se muito ao governo norte-americano e defendeu uma política pan-americana, baseada na doutrina de Monroe. Também viajou bastante pelos Estados Unidos e proferiu dezenas de conferências em universidades americanas e organizou a “III Conferência Pan-americana”, realizada no Rio de Janeiro, com a presença do secretário de Estado dos Estados Unidos.

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Faleceu em Washington, em janeiro de 1910, como embaixador, após um longo período de doença.

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CASTro ALvES – 1847-1871

Antônio Frederico de Castro Alves é um dos maiores exemplos mundiais de poeta engajado. Nasceu na fazenda Cabaceiras, hoje Castro Alves, no estado da Bahia. Era filho de Antônio José Alves e Clélia Brasília da Silva Castro. Em sua casa encontrou uma atmosfera literária, produzida pelos oiteiros, ou saraus, festas de arte, música, poesia, declamação de versos, tendo feito aos 17 anos as suas primeiras poesias.

Em maio de 1863, foi reprovado na prova de admissão para o ingresso na Faculdade de Direito do Recife. Mas seria em Recife tribuno e poeta sempre requisitado nas sessões públicas da Faculdade, nas sociedades estudantis, na plateia dos teatros, incitado desde logo pelos aplausos e ovações, que começava a receber e ia num crescendo de apoteose. Publicou nesse ano no primeiro número da revista “A Primavera” seu primeiro poema contra a escravidão: “A canção do africano”. Ainda em 1863 a tuberculose se manifestou.

Enfim consegue matricular-se na Faculdade de Direito do Recife e em outubro viaja para a Bahia. Só retornaria ao Recife em 18 de março de 1865, acompanhado por Fagundes Varela, em agosto no Batalhão Acadêmico de Voluntários para a Guerra do Paraguai. Em 16 de dezembro, voltou a Salvador. Seu pai morreu no ano seguinte, e ele retornou ao Recife, matri-culando-se no segundo ano da faculdade. Nessa ocasião, fundou com Rui Barbosa e outros amigos uma sociedade abolicionista.

Teve fase de intensa produção literária e a do seu apostolado por duas grandes causas: uma, social e moral, a da abolição da escravatura; outra, a República, aspiração política dos liberais mais exaltados. Data de 1866 o término de seu drama “Gonzaga ou a Revolução de Minas”, representado na Bahia e depois em São Paulo, no qual conseguiu consagrar as duas grandes causas de sua vocação. Na estreia de “Gonzaga...”, dia 7 de setembro, no Teatro São João de Salvador, foi coroado e conduzido em triunfo.

Em janeiro de 1868, embarcou com a amante Eugênia Câmara para o Rio de Janeiro, sendo recebido por José de Alencar e visitado por Machado de Assis. A imprensa publica troca de cartas entre ambos, com grandes elogios ao poeta. Em março, viajou com Eugênia para São Paulo. Aí decidiu continuar seus estudos, e se matriculou no terceiro ano na Faculdade de Direito de São Paulo.

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Continuou a produção dos seus poemas líricos e heroicos, publicados em jornais ou recitados nas festas literárias, fazendo parte do que talvez tenha sido a geração mais marcante de intelectuais brasileiros, que deu os mais famosos talentos e capacidades literárias e políticas do Brasil: basta lembrar os nomes de Fagundes Varela, Ruy Barbosa, Joaquim Nabuco, Afonso Pena, Rodrigues Alves, Bias Fortes, Martim Cabral, Salvador de Mendonça, e tantos outros, que lhe assistiram aos triunfos e não lhe disputaram a primazia.

A 7 de setembro de 1868, fez a apresentação pública de “Tragédia no Mar”, que depois ganharia o nome de “O Navio Negreiro”. No dia 25 de outubro, foi reapresentada sua peça “Gonzaga...” no Teatro São José.

Tuberculoso, aventara uma estadia na cidade de Caetité, onde moravam seus tios e morrera o avô materno (o Major Silva Castro, herói da Inde-pendência da Bahia), dois grandes amigos (Otaviano Xavier Cotrim e Plínio de Lima), de clima salutar. Mas, antes disso, ainda em São Paulo, na tarde de 11 de novembro, resolveu realizar uma caçada na várzea do Brás e feriu o pé com um tiro. Disso resultou longa enfermidade, cirur-gias, chegando ao Rio de Janeiro no começo de 1869, para salvar a vida, mas com o martírio de uma amputação. Os cirurgiões e professores da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Andrade Pertence e Mateus de Andrade, amputaram seu pé esquerdo, em um tempo em que não havia qualquer tipo de anestesia.

No dia 31 de outubro, assistiu a uma representação de Eugénia Câmara, no Teatro Fênix Dramática. Ali a viu por última vez, pois a 25 de novembro decidiu partir para Salvador.

Em fevereiro de 1870 seguiu para Curralinho para melhorar a tubercu-lose que se agravara, viveu na fazenda Santa Isabel, em Itaberaba. Em setembro, voltou para Salvador. Ainda leria, em outubro, “A cachoeira de Paulo Afonso” para um grupo de amigos, e lançou “Espumas Flutuantes”.

Sua última aparição em púbico foi em 10 de fevereiro de 1871, em um recital beneficente. Tinha 24 anos e deixou uma das mais profundas, talvez a maior de todas as marcas das letras da história política de seu país. Morreu às três e meia da tarde, no solar da família no Sodré, Salvador, Bahia, em 6 de julho de 1871.

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ANTôNIo BENTo – 1843-1898

Antônio Bento de Souza e Castro nasceu em São Paulo em 17 de fevereiro de 1843, filho de Bento Joaquim de Sousa e Castro e D. Henriqueta Viana, na rua São José, (hoje rua Libero Badaró, centro velho da cidade de São Paulo).

Em 1864, matriculou-se na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, formando-se em 1868. Foi promotor público nas cidades de Botucatu e Limeira, juiz na cidade de Atibaia, onde foi o responsável pela libertação dos escravos negros contrabandeados depois de 1831 para esta cidade.

Voltou a São Paulo em 1877, onde reorganizou a Confraria de Nossa Senhora dos Remédios e em 1880 conhece Luís Gama, negro e líder do movimento emancipador dos escravos na então Província de São Paulo. Com a morte de Luís Gama em 24 de agosto de 1882, Antônio Bento assume a liderança do movimento abolicionista paulista. Dentre os membros deste movimento estavam Macedo Pimentel, Arcanjo Dias Baptista, cônego Guimarães Barroso, Hipólito da Silva, Carlos Garcia, Bueno de Andrada e Muniz de Sousa, na Capital da província, o major Pinheiro, Santos Garrafão e o negro Quintino de Lacerda, na cidade litorânea de Santos.

Até então, trabalhavam principalmente nas lojas maçônicas, na propa-ganda abolicionista no arbitramento das leis que garantiam a liberdade aos contrabandeados após a proibição inglesa. Antonio Bento organizou o Movimento dos Caifazes que enviava emissários ao interior da Província de São Paulo, e incentivavam a fuga e garantia recursos para as viagens e refúgios.

Após a fuga, os negros eram acomodados nas casas de Antonio Bento e outros aliados à ideia da abolição, daí enviados para a Província do Ceará que já havia decretado a abolição.

Com o crescimento da consciência de igualdade racial e cedendo às pres-sões populares a milícia passou a se recusar a perseguir os negros em fuga. Algumas cidades decretaram a libertação dos escravos antes da Lei Áurea. Com isto, Antônio Bento conseguiu convencer senhores a contratar os fugitivos como trabalhadores livres e assalariados.

Morreu em novembro de 1898.

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JoSé MArIANo CArNEIro DA CUNhA – 1850-1912

José Mariano Carneiro da Cunha nasceu em 8 de agosto de 1850, em Gameleira-PE.

Estudou na Faculdade de Direito do Recife, na mesma turma em que estudou Joaquim Nabuco, e conheceu Rui Barbosa, formando-se em 1870.

Logo se vincula ao movimento abolicionista e funda o jornal “A Província”, de filosofia abolicionista, que iniciou a circular em 6 de setembro de 1872.

Juntamente com outros pernambucanos (entre eles Joaquim Nabuco) foi membro da associação emancipatória “Clube do Cupim”.

Assim como Joaquim Nabuco, Barros Sobrinho, João Ramos, Alfredo Pinto, Phaelante da Câmara, Vicente do Café e Leonor Porto, José Mariano era membro da associação emancipatória “Clube do Cupim”, fundado em 1884, que alforriava, defendia e protegia os escravos.

Conseguiu ser eleito deputado em 1886, mas a eleição foi impugnada e José Mariano perdeu a cadeira. Em 1890 foi eleito deputado à Constituinte, e, em 1891, foi eleito Prefeito do Recife. Pouco tempo depois, quando Alexandre José Barbosa Lima assume o Governo de Pernambuco, José Mariano lança-se em sua oposição, publicando artigos contra ele e o Presidente Marechal Floriano Peixoto. Em decorrência, foi preso em sua residência e na fortaleza do Brum, sob a acusação de pactuar com a revolta da Armada.

A esposa de José Mariano, a recifense Olegaria da Costa Gama é apelidada de “mãe dos pobres” e “mãe do povo” por sua bondade e dedicação aos escravos. Olegaria apoiava os escravos fugidos ou alforriados. E quando ele foi preso e torturado, ela continuou lutando pela abolição. Chegando a empenhar as próprias joias para financiar as despesas referentes à eleição de Joaquim Nabuco - colega abolicionista - em 1887, ao cargo de deputado-geral.

José Mariano consegue ser libertado e assume a cadeira de deputado. As ruas e casas, de Recife, do cais do porto, até sua casa no Poço da Panela, ficaram ornamentadas e embandeiradas para saudar seu retorno. Na ocasião fez um discurso na Câmara, com cinco horas de duração, narrando o martírio vivenciado como prisioneiro.

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Segundo a historiadora Semira Adler Vainsencher, quando no dia 24 de abril de 1898 morre dona Olegarinha, muitos pretos se suicidaram, enve-nenando-se ou jogando-se no rio Capibaribe.

Após a morte da esposa, José Mariano se afasta das lutas políticas. Em 1899, é nomeado Oficial do Registro de Títulos, pelo Presidente Rodrigues Alves, e presenteado com um Cartório de Títulos e Documentos, no Rio de Janeiro.

Não muito tempo depois, adoece e vem a falecer no dia 8 de junho de 1912. Seu corpo embalsamado foi transportado ao Recife, onde as pessoas jogaram flores em seu esquife enquanto muitas choravam.

FONTES CONSULTADAS:

SILVA, Jorge Fernandes da. Vidas que não morrem. Recife: Secretaria de Educação, Departamento de Cultura, 1982.

PARAHYM, Orlando. José Mariano. Recife: Dialgraf, 1976.

Semira Adler Vainsencher Pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco [email protected]

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Líderes Educacionistas

gUSTAvo CApANEMA – 1900-1985

Gustavo Capanema Filho nasceu em Pitangui - MG, em 1900. Formou-se pela Faculdade de Direito de Minas Gerais, em 1923. Durante seus tempos de universitário vinculou-se, em Belo Horizonte, ao grupo de intelectuais da rua da Bahia, do qual também faziam parte Mario Casassanta, Abgard Renault, Milton Campos, Carlos Drumond de Andrade e outras futuras personalidades das letras e da política no Brasil. Em 1927 iniciou sua vida política ao eleger-se vereador em sua cidade natal.

Nas eleições presidenciais realizadas em março de 1930 apoiou a candida-tura presidencial de Getúlio Vargas, que depôs o presidente Washington Luís em novembro de 1930.

Em 1934, Vargas nomeou Capanema para dirigir o Ministério da Educação e Saúde, cargo no qual permaneceu até outubro de 1945.

Sua gestão no ministério foi marcada pela centralização, a nível federal, das iniciativas no campo da educação e saúde pública no Brasil. Na área educacional tomou parte do acirrado debate então travado entre o grupo renovador, que defendia um ensino laico e universalizante, sob a respon-sabilidade do Estado, e o grupo católico, que advogava um ensino livre da interferência estatal.

Imbuído de ideais nacionalistas, Capanema promoveu a nacionalização de cerca de duas mil escolas localizadas nos núcleos de colonização do sul do país. No campo do ensino profissionalizante criou, através de convênio com o empresariado, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai).

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Segundo Simon Schwartzman, Gustavo Capanema, quando Ministro da Educação de 1937 a 1945, “foi responsável por uma série de projetos impor-tantes de reorganização do ensino no país, assim como pela organização do Ministério da Educação em moldes semelhantes ao que ainda é hoje. O apoio dado por Capanema a grupos intelectuais e, mais especialmente, a arquitetos e artistas plásticos de orientação moderna, contribuiu para cercar sua gestão de uma imagem de modernização na esfera educa-cional que ainda não havia sido examinada em mais detalhe”. Na sua gestão, a Igreja cessou seu ataque tradicional à interferência do Estado nas atividades educacionais, e o Estado, por sua vez, tratou de adotar os preceitos doutrinários e educacionais da Igreja no ensino público que ora se implantava.

Ficou lembrado como o ministro que nacionalizou o ensino, com escolas federais de qualidade, embora para poucos, onde ele dizia saber o que estava sendo ensinado em cada sala de aula no instante em que falava. É devido ao sistema nacional que ele implantou que ficou a ideia de que “no passado a escola pública tinha mais qualidade do que a particular”, cabendo lembrar que naquele Brasil o ensino era limitado a uma pequena percentagem de crianças.

Morreu no Rio de Janeiro, em 1985.

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João CALMoN – 1917-1999

João de Medeiros Calmon, advogado e jornalista, nasceu em 7 de setembro de 1916 em Colatina – ES. Em toda nossa história, foi um dos maiores defensores da melhoria da educação no País, com sua constante palavra e com uma emenda decisiva à Constituição, conhecida como Emenda Calmon, promulgada em 1º de dezembro de 1983.

O art. 156 da Carta de 1934 determinava que a União e os municípios eram obrigados a aplicar, no mínimo, 10% de sua receita de imposto em educação, e os estados e Distrito Federal deveriam obedecer a um mínimo de 20% de vinculação de suas receitas. A Constituição de 1946 também adotou esta determinação. No entanto, a Carta de 1967, elaborada pelo regime militar, suprimiu o dispositivo, desobrigando os entes federados a investir percentuais mínimos em educação. Depois que o mandamento foi retirado, os recursos da pasta caíram mais de 50% em cinco anos.

O artigo 176 da Constituição Federal passa a vigorar com o acréscimo do seguinte parágrafo: “§ 4º - Anualmente, a União aplicará nunca menos de treze por cento, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, na manu-tenção e desenvolvimento do ensino.”

A batalha pela reinserção da emenda foi iniciada por Calmon em 25 de maio de 1976 com a apresentação da proposta, e durou quase dez anos. Quando a emenda foi finalmente aprovada, a Ministra da Educação e Cultura na época, Professora Esther de Figueiredo Ferraz, afirmou em entrevista concedida à televisão que a data da aprovação da Emenda Calmon “deveria figurar no nosso calendário nacional como uma espécie de 13 de maio”.

Em 1994, em pleno regime democrático, em um retrocesso surpreendente, foi aprovada a Emenda que permitiu a desvinculação de receitas da União, liberando o governo federal da obrigação de cumprir integralmente a Emenda Calmon. Só em 2009, graças a uma emenda (EC 59/2009) da Senadora Ideli Salvatti, esta desvinculação começou a ser gradualmente extinta e a Emenda Calmon voltou a vigorar plenamente em 2011.

Faleceu em 11 de janeiro de 1999 em São Paulo.

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ANySIo TEIxEIrA – 1900-1971

Anísio Teixeira foi jurista, educador e escritor, nascido em Caetité - BA, em 12 de julho de 1900. Ocupou papel central na história da educação no Brasil.

Nas décadas de 1920 e 1930, difundiu o movimento da Escola Nova, que tinha como princípio a implantação de escolas em horário integral, e a ênfase no desenvolvimento das capacidades cognitivas, em preferência à memorização.

Foi um dos mais destacados redatores e signatários do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, em defesa do ensino público, gratuito, laico e obrigatório, divulgado em 1932.

Em 1935, fundou a Universidade do Distrito Federal, depois transformada em Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Durante a última fase do Estado Novo, afastou-se da vida pública e dedicou-se às questões educacionais como Conselheiro da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).

Voltando o país ao regime democrático em 1946, foi convidado por Octávio Mangabeira, então eleito para o Governo da Bahia, a ser o Secretário de Educação e Saúde. Dentre outras realizações, construiu no bairro da Liber-dade, o mais populoso e pobre da capital baiana, o “Centro Educacional Carneiro Ribeiro”, mais conhecido por Escola Parque, para educação em tempo integral e que serviria de modelo para os futuros CIEPs e CIACs.

Em 1952, assumiu a direção do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, ou INEP, órgão do Governo Federal que, em 2001 (Lei 10.269/2001) passou a se chamar Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.

Ao assumir a direção do Instituto, Anísio Teixeira passou a dar maior ênfase ao trabalho de pesquisa e estabelecer centros de pesquisa como um meio para fundar em bases científicas a reconstrução educacional do Brasil. A ideia concretizou-se com a criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), com sede no Rio de Janeiro, e dos Centros Regionais, nas cidades de Recife, Salvador, Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre vinculados à então nova estrutura do INEP.

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Foi o criador e primeiro dirigente da Campanha Nacional de Aperfei-çoamento de Pessoal de Nível Superior (atual CAPES), que dirigiu até o golpe de 1964.

Foi um dos idealizadores do projeto da Universidade de Brasília (UnB), inaugurada em 1961, da qual veio a ser reitor em 1963, para ser afastado após o golpe militar de 1964.

Anísio Teixeira morreu em 1971, em circunstâncias consideradas obscuras. Seu corpo foi achado num elevador na Avenida Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, onde teria caído ao sair do apartamento de Aurélio Buarque de Holanda, após visita para pedir o voto dele para ingressar na Academia Brasileira de Letras.

No livro “Educação para a Democracia”46 Anysio deixou uma frase que resume seu legado pela educação e deixa claro o alvo de sua maior luta: “Só existirá democracia no Brasil no dia em que se montar no país a máquina que prepara as democracias. Essa máquina é a da escola pública”.

46 Educação para a Democracia, Rio de Janeiro: José Olympio; 1936, p. 247

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pAULo FrEIrE – 1921-1997

Nascido em Recife - PE, no dia 19 de setembro de 1921, Paulo Freire é consi-derado um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia mundial. Empenhou-se principalmente na área da educação popular, voltada para a formação da consciência política. Sempre defendeu o diálogo com as pessoas simples, não só como uma questão de democracia, mas também como método pedagógico.

Entrou para a Universidade do Recife em 1943, para cursar a Faculdade de Direito, mas também se dedicou aos estudos de filosofia da linguagem. Não chegou a exercer a profissão, pois preferiu trabalhar como professor numa escola de segundo grau lecionando língua portuguesa.

Em 1946, foi indicado ao cargo de diretor do Departamento de Educação e Cultura do Serviço Social no Estado de Pernambuco, onde iniciou o trabalho com analfabetos pobres.

Em 1961 tornou-se diretor do Departamento de Extensões Culturais da Universidade do Recife e, no mesmo ano, realizou junto com sua equipe e com universitários voluntários as primeiras experiências de alfabetização popular que levariam à constituição do Método Paulo Freire. Seu grupo foi responsável pela alfabetização de 300 cortadores de cana em apenas 45 dias. Em resposta aos eficazes resultados, o governo brasileiro (que, sob o presidente João Goulart, empenhava-se na realização das reformas de base) aprovou a multiplicação dessas primeiras experiências num Plano Nacional de Alfabetização, que previa a formação de educadores em massa e a rápida implantação de 20 mil núcleos (os “círculos de cultura”) pelo País.

Em maio de 1964, meses depois de iniciada a implantação do Plano, o golpe militar extinguiu esse esforço. Freire foi encarcerado por 70 dias. Passou por um breve exílio na Bolívia e trabalhou no Chile por cinco anos para o Movimento de Reforma Agrária da Democracia Cristã e para a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação. Em 1967, durante o exílio chileno, publicou no Brasil seu primeiro livro, “Educação como Prática da Liberdade”, baseado fundamentalmente na tese “Educação e Atualidade Brasileira”, com a qual concorrera, em 1959, à cadeira de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas Artes da Universidade do Recife.

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O livro foi bem recebido, não apenas no Brasil. Como consequência, Paulo Freire foi convidado para ser professor visitante da Universidade de Harvard, em 1969. No ano anterior, havia concluído a redação de seu mais famoso livro, “Pedagogia do Oprimido”, que foi publicado em vários idiomas. No Brasil, o livro só seria publicado em 1974, quando se iniciou o processo de abertura política.

Em 1979, com a Anistia, pôde retornar ao Brasil, o que fez em 1980.

Filiou-se ao Partido dos Trabalhadores na cidade de São Paulo; de 1980 até 1986 atuou como supervisor do programa do partido para alfabetização de adultos. Em 1988, com a eleição de Luiza Erundina (1989-1993), foi nomeado Secretário de Educação da Cidade de São Paulo. Dentre as marcas de sua passagem pela secretaria municipal de Educação está a criação do MOVA

- Movimento de Alfabetização, um modelo de programa público de apoio a salas comunitárias de Educação de Jovens e Adultos.

Em 1991 foi fundado em São Paulo o Instituto Paulo Freire, para manter suas ideias vivas. O Instituto mantém até hoje os arquivos do educador, além de realizar numerosas atividades relacionadas com o legado do pensador e a atuação em temas da educação brasileira e mundial.

Desde sua obra mais famosa, Pedagogia do Oprimido, até o último livro publicado, “Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educa-tiva” (1996), o educador Paulo Freire sempre tratou da questão da educação como ato libertador e transformador. Dizia que “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão.” (Peda-gogia do Oprimido, 1987, p. 29.)

Paulo Freire delineou uma Pedagogia da Libertação, intimamente relacionada com as classes oprimidas na tentativa de elucidá-las e conscientizá-las politicamente. As suas maiores contribuições foram no campo da educação popular para a alfabetização e a conscientização política de jovens e adultos operários, mas Paulo Freire não se limitou a esses campos. Sua obra teve alcance mais amplo, pelo menos para a tradição de educação marxista, que incorpora o conceito básico de que não existe educação neutra. Segundo sua visão, todo ato de educação é um ato político.

A pedagogia do oprimido foi definida por Freire como

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“aquela que tem que ser forjada com ele (oprimido) e não para ele, enquanto homens e povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Peda-gogia que faça da opressão e de suas causas objeto de reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará. O grande problema está em como poderão os oprimidos, que ‘hospedam’ o opressor em si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos, da pedagogia de sua libertação” (Freire, 1987, p.32).

Paulo Freire morreu de um ataque cardíaco em 2 de maio de 1997, no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, devido a complicações em uma operação de desobstrução de artérias.

Por seu empenho em ensinar os mais pobres, Paulo Freire tornou-se uma inspiração para gerações de professores, especialmente na América Latina e na África.

Desde 13 de abril de 2012, por lei de autoria da Deputada Luiza Erundina, foi declarado como patrono da educação brasileira.

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DArCy rIBEIro – 1922-1996

Darcy Ribeiro foi um antropólogo, escritor e político brasileiro conhecido por sua dedicação à pauta indigenista e educacionista no país.

Nasceu em Montes Claros - MG em 26 de outubro de 1922. Filho de Reginaldo Ribeiro dos Santos e Josefina Augusta da Silveira. Em sua cidade natal fez os estudos fundamental e secundário no Grupo Escolar Gonçalves Chaves e no Ginásio Episcopal de Montes Claros.

Em 1946, formou-se em antropologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e dedicou seus primeiros anos de vida profissional ao estudo dos índios do Brasil Central e da Amazônia.

Em 1949, entrou para o Serviço de Proteção aos Índios (antecessor da Funai), onde trabalharia até 1951. Passou várias temporadas com os indí-genas do Mato Grosso (então um só estado) e da Amazônia, publicando as anotações feitas durante essas viagens sob o título de “Diários Índios”. Colaborou ainda para a fundação do Museu do Índio (que dirigiu) e a criação do parque indígena do Xingu.

Na época, Darcy Ribeiro escreveu diversas obras de etnografia e defesa da causa indigenista, contribuindo com estudos para a Unesco e a Orga-nização Internacional do Trabalho. Em 1955, organizou o primeiro curso de pós-graduação em antropologia, na Universidade do Rio de Janeiro, onde lecionou etnologia até 1956.

No ano seguinte, passou a trabalhar no Ministério da Educação e Cultura. Ao lado do amigo Anísio Teixeira, foi um dos responsáveis pela criação da Universidade de Brasília, da qual foi seu primeiro reitor. Também foi o idealizador da Universidade Estadual do Norte Fluminense.

Mais tarde, como chefe da Casa Civil no governo João Goulart, desempe-nhou papel relevante na elaboração do conceito e da luta pelas chamadas Reformas de Base. Com o golpe militar de 1964, Darcy Ribeiro teve os direitos políticos cassados e foi exilado, vivendo durante alguns anos no Uruguai, no Chile e no Peru.

Foi professor na Universidade Oriental do Uruguai e assessorou os presidentes Allende (Chile) e Velasco Alvarado (Peru). Naquele período, Darcy Ribeiro

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redigiu grande parte de sua obra de maior fôlego: “Antropologia da Civili-zação”, em seis volumes. O último, “O Povo Brasileiro”, ele publicaria em 1995.

Em 1976, retornou para o Brasil, dedicando-se à educação pública.

Quatro anos depois, foi anistiado, iniciando uma bem-sucedida carreira política.

Em 1982, elegeu-se vice-governador do Rio de Janeiro, ao lado de Leonel Brizola. Nesse cargo, Darcy Ribeiro criou, planejou e dirigiu a implantação dos Centros Integrados de Ensino Público (CIEPs), um projeto pedagógico visionário e revolucionário para o Brasil, de assistência em tempo inte-gral a crianças, incluindo atividades recreativas e culturais para além do ensino formal – recuperando 60 anos depois as ideias e propostas dos “Pioneiros da Educação”. Com os CIEPs, Darcy defendeu e praticou a estratégia da revolução educacional pela implantação de um novo sistema, nova escola, substituindo o sistema tradicional da velha escola. Ele não se satisfazia com melhorar o sistema vigente, ele acreditava que o salto-educacional viria de um novo sistema que iria sendo implantado substituindo o tradicional.

Em 1990, foi eleito senador, posto em que teve destacada atuação, princi-palmente como relator da “Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional”.

Foi um incansável batalhador da educação e desabafou ao fim sobre o seu legado:

“Sou um homem de causas. Vivi sempre pregando, lutando, como um cruzado, pelas causas que comovem. Elas são muitas demais: a salvação dos índios, a escolarização das crianças, a reforma agrária, o socialismo em liberdade, a universidade necessária. Na verdade somei mais fracassos que vitórias em minhas lutas, mas isso não importa. Horrível seria ter ficado ao lado dos que nos venceram nessas batalhas”47

Morreu em Brasília no ano 1996, aos 74 anos, depois de um lento processo canceroso que comoveu todo o Brasil com reconhecimento e admiração em torno de sua figura. Já sabendo que sua doença era terminal, Darcy Ribeiro confessou no livro de memórias: “Termino esta minha vida já exausto de viver, mas querendo mais vida, mais amor, mais saber, mais travessuras.”

47 Ribeiro, Darcy. O Brasil como problema - Publicado por F. Alves, 1995 ISBN 8526503235, 9788526503236 - 320 páginas

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FLorESTAN FErNANDES – 1920-1995

Florestan Fernandes nasceu em São Paulo - SP, no dia 22 de julho de 1920. Filho de uma família muito pobre, começou a trabalhar aos seis anos, o que o levou a abandonar os estudos, forçando-o a fazer o curso básico no então chamado madureza (supletivo). Vendia produtos farmacêuticos quando, aos 18 anos, ingressou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, formando-se em ciências sociais em 1947.

Doutorou-se em 1951 e foi assistente catedrático, livre docente e professor titular na cadeira de sociologia, substituindo o sociólogo e professor francês Roger Bastide em caráter interino até 1964, ano em que se efetivou na cátedra.

Cassado com base no AI-5, deixou o país em 1969 e lecionou nas univer-sidades de Columbia (EUA), Toronto (Canadá) e Yale (EUA). Retornou ao Brasil em 1972 e passou a lecionar na PUC-SP. Não procurou reintegrar-se à USP, da qual recebeu o título de professor emérito em dezembro de 1985.

Em 1986 foi eleito deputado constituinte pelo Partido dos Trabalhadores, do qual foi um dos fundadores, tendo atuação destacada em discussões nos debates sobre a educação pública e gratuita. Em 1990, foi reeleito para a Câmara.

O nome de Florestan Fernandes está obrigatoriamente associado à pesquisa sociológica brasileira. Sociólogo e professor universitário com mais de cinquenta obras publicadas, transformou as ciências sociais no Brasil e estabeleceu um novo estilo de pensamento: tentou romper com o dogma da neutralidade da ciência e defendeu análises críticas comprometidas com a mudança social. Dizia que: “Em nossa época, o cientista precisa tomar consciência da utilidade social e do destino prático reservado a suas descobertas”.

Refletiu sobre a educação brasileira, apontando seu caráter elitista e lutou pela igualdade no acesso à educação. Vários escritos de Florestan e parte de sua atuação na Câmara dos Deputados estiveram concentrados na área do ensino.

A preocupação com a instrução era um desdobramento natural de sua obra de sociólogo. Sempre afirmou que a cultura cívica só poderia ser

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construída com a democratização do ensino. Em seus dois mandatos de deputado federal, esteve envolvido em todos os debates importantes que ocorreram no Congresso no campo da educação. Participou ativamente da elaboração, tramitação e discussão da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que só seria aprovada em 1996, um ano depois de sua morte.

Afirmava que as péssimas condições de ensino e o sucateamento das escolas era um tentativa deliberada das elites de sufocar a democratização e a emancipação cultural e política das camadas mais vulneráveis. Criticou também a forma de transmissão do saber em sala de aula, fundada na hierarquização entre professor e aluno. Aquele como mero transmissor e este como mero receptor. Para Florestan, o conhecimento só pode ser construído se a educação se desfizer das práticas de servidão.

Hoje é consenso entre os educadores e elaboradores de políticas públicas que a educação deve ser democrática e livre, que é seu dever deixar de reproduzir os mecanismos de dominação das classes letradas sobre as classes oprimidas.

Florestan Fernandes morreu em São Paulo no dia 10 de agosto de 1995.

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FErNANDo DE AzEvEDo – 1894-1974

Fernando de Azevedo, professor, educador, crítico, ensaísta e sociólogo, nasceu em São Gonçalo do Sapucaí, (MG) em 2 de abril de 1894.

Filho de Francisco Eugênio de Azevedo e de Sara Lemos Almeida de Azevedo, cursou o ginasial no Colégio Anchieta, em Nova Friburgo. Durante cinco anos fez cursos especiais de letras clássicas, língua e literatura grega e latina, de poética e retórica; e, em seguida, cursou Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade de Direito de São Paulo.

Começou a dar aulas aos 22 anos como professor substituto de latim e psicologia no Ginásio do Estado em Belo Horizonte. Depois se tornou professor de latim e literatura na Escola Normal de São Paulo e de socio-logia educacional no Instituto de Educação da Universidade de São Paulo. Catedrático do Departamento de Sociologia e Antropologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, recebeu desta faculdade o título de Professor Emérito em 1964.

Foi diretor geral da Instrução Pública do Distrito Federal (1926-30) quando projetou e defendeu uma ampla reforma de ensino para o país; diretor geral da Instrução Pública do Estado de São Paulo (1933); membro da comissão organizadora da Universidade de São Paulo (1934); diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo (1941-42); membro do Conselho Universitário por mais de doze anos, desde a fundação da Universidade de São Paulo; secretário da Educação e Saúde do Estado de São Paulo (1947); diretor do Centro Regional de Pesquisas Educacionais, que ele instalou e organizou (1956-61); Secretário de Educação e Cultura no governo do prefeito Prestes Maia (1961); redator e crítico literário de O Estado de São Paulo (1923-26), jornal em que organizou e dirigiu, em 1926, inquérito sobre Educação Pública em São Paulo, abordando os problemas fundamentais do ensino de todos os graus e tipos, e iniciando uma campanha por uma nova política de educação e pela criação de universidades no Brasil.

Em 1933, quando Diretor Geral da Instrução Pública do Estado de São Paulo, promoveu reformas, baseadas no Código de Educação. Em 1931, fundou e dirigiu por mais de 15 anos, na Companhia Editora Nacional, a Biblioteca Pedagógica Brasileira, de que faziam parte a série Iniciação Científica e a coleção Brasiliana.

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Foi o redator e o primeiro signatário do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova - A Reconstrução Educacional no Brasil, de 1932, em que se lançaram as bases e diretrizes de uma nova política de educação.

Com a proposta de renovar a escola tradicional, objetivava-se a aplicação da verdadeira função social da escola, pautada na democracia e no desen-volvimento das capacidades. O documento destacava a importância da educação pública, única, da laicidade, gratuidade e obrigatoriedade da educação. Defendia que a educação era para todos, portanto a escola pública deveria ter a mesma qualidade das particulares. E terem, a mesma quali-dade independente da cidade onde mora o aluno e da renda de sua família.

Segundo o Manifesto, o Estado só pode tornar o ensino obrigatório e igual para todos se este for gratuito e atender a todos os níveis econômicos e sociais presentes na nação. O que implica na nacionalização da educação.

Fernando de Azevedo foi presidente da Associação Brasileira de Educação em 1938 e eleito presidente da VIII Conferência Mundial de Educação. Eleito no Congresso Mundial de Zurich (1950) vice-presidente da International Sociological Association (1950-53), assumiu com os outros dois vice-pre-sidentes, Morris Ginsberg, da Inglaterra, e Georges Davy, da França, a direção dessa associação internacional por morte de seu presidente, Louis Wirth, da Universidade de Chicago. Membro correspondente da Comissão Internacional para uma História do Desenvolvimento Científico e Cultural da Humanidade (publicação da Unesco); um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Sociologia, de que foi presidente, desde sua fundação (1935) até 1960; foi presidente da Associação Brasileira de Escritores (seção de São Paulo).

No momento em que estas ideias eram apresentadas, elas pareciam não apenas utópicas, mas também absurdas. Alguns anos depois, já não parecem absurdas mas, absurdamente, ainda parecem utópicas.

Fernando de Azevedo faleceu em São Paulo - SP, em 18 de setembro de 1974.

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LoUrENço FILho – 1897-1970

Manuel Bergström Lourenço Filho nasceu em Porto Ferreira-SP, em 10 de março de 1897. Sendo o primogênito de oito filhos, Manuel Bergström Lourenço Filho teve uma formação marcada pela influência do pai, o português Manuel Lourenço Júnior, comerciante criativo e empreendedor ávido, casado com a sueca Ida Christina Bergström. Desde menino, em contato com vasta literatura, tornou-se um leitor compulsivo.

Iniciou a vida escolar aos seis anos em sua terra natal, dando sequência aos estudos na cidade na vizinha Santa Rita do Passa Quatro. Por insis-tência de seu professor, Ernesto Moreira, matricula-se no Ginásio de Campinas, mas, devido à família numerosa, o pai teve dificuldade em custear-lhe os estudos, de modo que, ao fim daquele ano, Manoel deixa o Ginásio. Em 1912 retoma os estudos, após obter o primeiro lugar nos exames de admissão para a recém-inaugurada Escola Normal Primária de Pirassununga. E após formar-se como normalista, no ano de 1914, retorna a Porto Ferreira, onde exerceu o magistério. Em 1917, diploma-se na Escola Normal Secundária da capital, Matriculando-se, em seguida, na Faculdade de Medicina para estudar psiquiatria, a qual abandonara dois anos depois. Em 1919, ingressa na Faculdade de Direito de São Paulo, vindo a bacharelar-se em 1929, depois de longa trajetória interrompida por várias atividades paralelas que desenvolve, com destaque, no campo educacional.

Em 1920 leciona diversas disciplinas pedagógicas na Escola Normal Primária de São Paulo. No ano seguinte é nomeado para a cátedra de Psicologia e Pedagogia da Escola Normal de Piracicaba. Ali funda a “Revista de Educação.

Em 1922, a convite do governo cearense, assume o cargo de Diretor da Instrução Pública e leciona na Escola Normal de Fortaleza. Montou um laboratório na Escola Normal de Fortaleza para o estudo biológico e psico-lógico dos alunos. As reformas por ele empreendidas no Ceará repercutem no país e podem ser entendidas como germe dos conhecidos movimentos nacionais de renovação pedagógica das primeiras décadas do século.

De volta a São Paulo, leciona na Escola Normal de Piracicaba durante o ano de 1924. Em seguida, assume a vaga de Psicologia e Pedagogia da Escola Normal de São Paulo, função que ocupa por seis anos, com produção de

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muitas publicações, inclusive traduções. A influência da Psicologia Expe-rimental é evidente em sua obra, sobretudo nesse momento.

No segundo semestre de 1925 assume o cargo de professor de Psicologia e Pedagogia da Escola Normal de São Paulo. Reativa o laboratório de psicologia experimental, onde se dedica à pesquisa sobre a aprendizagem, investigando atentamente a maturidade necessária à aprendizagem dos processos de leitura e escrita, que resultarão na publicação dos Testes ABC. É nessa época também em que traduz livros como Psicologia Experimental, de Henri Pierón, e A Escola e a Psicologia Experimental, de EDOUARD CLAPARèDE.

Sua participação política também merece destaque: presente nas Confe-rências Nacionais de Educação de 1927 e 1928, respectivamente em Curitiba e Belo Horizonte, apresenta suas ideias quanto ao ensino primário e à liberdade dos programas de ensino. Se não autor, é certamente um dos atores mais importantes do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932.

A vasta obra de Lourenço Filho, entretanto, não pode ser vinculada, de modo simplista, apenas à temática do manifesto escolanovista. Mais do que signatário do Manifesto, foi um educador sedento do novo, que bebia nas fontes do novíssimo, das últimas novidades pedagógicas do cenário internacional. Sua preocupação, de fato, voltava-se também para o fazer pedagógico.

A realidade educacional brasileira é terreno carente mas fértil para contri-buições. A preocupação com a educação movia Lourenço Filho. Suas experiências, as viagens pelo Brasil e ao exterior, sua ampla cultura lhe possibilitaram escrever em áreas como Geografia e História do Brasil, Psicologia (testes e medidas na educação, maturação humana), Estatística e Sociologia.

Sua contribuição abrange temas como educação pré-primária, alfabetização infantil e de adultos, ensino secundário, ensino técnico rural, universi-dade, didática, metodologia de ensino, administração escolar, avaliação educacional, orientação educacional, formação de professores, educação física e literatura infanto-juvenil – textos espalhados por numerosos livros, revistas, jornais, cartilhas, conferências, apresentações e prefácios. Há publicação de alguns de seus escritos em inglês, francês e espanhol.

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A formação profissional e os profundos vínculos dessa com sua produção e atuação, conferem a Lourenço Filho o perfil de intelectual educador. Apesar de ter exercido cargos na administração pública federal – como diretor de gabinete de Francisco Campos (1931), como diretor geral do Departamento Nacional de Educação (nomeado por Gustavo Capanema, em 1937) e como diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (1938-46) –, foi sobretudo um professor e um estudioso de assuntos didá-tico-pedagógicos.

Foi um educador e pedagogo brasileiro conhecido, sobretudo, por sua participação no movimento dos pioneiros da Escola Nova. Sua obra nos revela diversas facetas do intelectual educador, extremamente ativo e preocupado com a escola em seu contexto social e nas atividades de sala de aula. Foi duramente criticado por ter colaborado com o Estado Novo de Getúlio Vargas.

Em 1926, em resposta ao inquérito acerca do ensino paulista promovido pelo jornal O Estado de S. Paulo, apresenta com extraordinária clareza e precisão as características do movimento renovador: “A escola tradicional não serve o povo, e não o serve porque está montada para uma concepção social já vencida, senão morta de todo... A cultura, bem ou mal, vinha servindo os indivíduos que se destinavam às carreiras liberais, mas nunca às profissões normais de produção econômica”.

Esta concepção nos dá margem para confirmar o entendimento do autor, naquele momento, da profunda articulação existente entre a escola e a vida social. Assim, uma escola Moderna só seria a “escola do trabalho”. Lourenço Filho tinha claro que a elitização e o intelectualismo da educação brasileira não atendiam às necessidades das classes populares, antes as privavam de participar no esquema produtivo.

Em seu livro mais famoso, Introdução ao estudo da Escola Nova, (São Paulo: Melhoramentos, 1978, 271 p.) procurou dar caracterização nacional à temática.

Outra ação importante desenvolvida por Lourenço Filho foi a organização e implementação da coleção pedagógica Biblioteca de Educação, respon-sável pela publicação de livros que explicitavam as ideias da Escola Nova. São exemplos dos títulos dessa coleção: “Introdução ao Estudo da Escola Nova”, de 1930, que trazia informações sobre o movimento e as ciências

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que o fundamentavam e Testes ABC, de 1933, que além de fornecer condi-ções de classificação das aptidões para leitura e escrita, tinha por objetivo auxiliar os educadores na organização das classes escolares.

Tanto a Cartilha do Povo, de 1928, elaborada com o objetivo de popularizar a educação de crianças e adultos, quanto os Testes ABC demonstram as bases teóricas de seu projeto de alfabetização, fundado nas questões relativas à maturidade da criança e em conhecimentos psicológicos.

Viveu os últimos anos no Rio e, vítima de colapso cardíaco, faleceu em 3 de agosto de 1970, aos 73 anos.

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Ilustração: Ralfe Braga

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Brasília – 2016

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B917d Buarque, Cristovam Dez dias de Maio em 1888/ Cristovam Buarque. 3ª Edição - Brasília, DF: Senado Federal, 2016.

174p.

1. escravidão. 2. abolição da escravidão. 3. história do Brasil. I. Título

CDU: 94(81). 063

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Nota de Agradecimento 7Introdução 11A abolição começou antes 15

A ACEITAÇÃO DA ESCRAVIDÃO 15A lenta descoberta da escravidão 19

A mARChA DA ABOlIÇÃO 26ABOlIÇÃO nOS DEmAIS pAíSES DAS AméRICAS 30

Dez Dias de Maio 44DIA 3 – QuInTA FEIRA 44A ESCRAVIDÃO nÃO FOI ABOlIDA, ElA SE ESgOTOu. 48DIA 7 – SEgunDA FEIRA 52DIA 8 – TERÇA FEIRA 65DIA 9 – QuARTA FEIRA 70DIA 10 – QuInTA FEIRA 72DIA 11 – SExTA FEIRA 74DIA 12– SáBADO 89DIA 13 - DOmIngO 100

Depois de 13 de maio 109A ABOlIÇÃO nÃO TERmInOu 112nOSSOS ERROS 120A REDESCOBERTA DA ABOlIÇÃO 127nOVA ABOlIÇÃO 128A REVOluÇÃO EDuCACIOnISTA 130A ChAmA DA InDIgnAÇÃO 131

Líderes Abolicionistas 133luíS gAmA – 1830-1882 133AnDRé REBOuÇAS -1838-1898 135JOSé DO pATROCínIO – 1853-1905 138mAnuEl QuERInO – 1851-1923 141JOAQuIm nABuCO – 1849-1910 143CASTRO AlVES – 1847-1871 150AnTônIO BEnTO – 1843-1898 152JOSé mARIAnO CARnEIRO DA CunhA – 1850-1912 153

Líderes Educacionistas 155guSTAVO CApAnEmA – 1900-1985 155JOÃO CAlmOn – 1917-1999 157AnySIO TEIxEIRA – 1900-1971 158pAulO FREIRE – 1921-1997 160DARCy RIBEIRO – 1922-1996 163FlORESTAn FERnAnDES – 1920-1995 165FERnAnDO DE AzEVEDO – 1894-1974 167lOuREnÇO FIlhO – 1897-1970 169

Sumário

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Aos taquígrafos, bibliotecários, secretários e servidores do Senado e da Câmara dos Deputados, sem os quais esta história não teria sido guardada, em 1888. Esperando que as falas de hoje sejam lembradas quando for resgatada a história de nossas lutas por uma Segunda Abolição: a revolução que assegure escola de qualidade a toda criança brasileira, independente da renda da família e da cidade onde viva. Diretamente preciso agradecer a Fernanda Andrino pelas pesquisas feitas, especialmente na elaboração dos capítulos com as curtas biografias de Abolicionistas e Educacionistas; e a Priscila Alves de França pelas sucessivas e cansativas digitações e redigitações dos textos.

Brasília, Julho de 2016.

Nota de Agradecimento

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Apresentação

Foi com alegria que recebi o convite do Senador Cristovam Buarque para escrever algumas palavras sobre a sua mais nova obra “Dez dias de maio em 1888”. O livro faz um resgate de documentos da época em que o Parlamento brasileiro debateu e votou a Lei Áurea.

Fiquei impressionado ao saber que vários nomes de senadores, deputados, escravocratas, gente da sociedade e, até mesmo seus discursos, artigos e opiniões, praticamente desapareceram, a não ser em raras exceções.

A maioria dos textos e documentos da época foram incinerados como se isso pudesse diminuir a dor e o sofrimento de um povo e de uma negra nação que foi sequestrada no seu torrão natal e marcada a ferro e fogo.

Considero o Senador Cristovam o grande timoneiro da educação em nosso País, um verdadeiro abolicionista. Com sua marca de mestre, ele demonstra, nesta obra, que os direitos humanos, a liberdade e a igualdade de oportunidades são o esteio de todos os países que perseguem a justiça social e o desenvolvimento sustentável.

Creio que todos nós, homens e mulheres, negros, brancos e índios carre-gamos essa chama que deve iluminar a humanidade: a luz eterna da liberdade, da fraternidade e da solidariedade.

A publicação desta obra é essencial para todos aqueles, jovens ou não, que querem entender a construção do nosso País e, fundamentalmente, compreender melhor o porquê de ações afirmativas e do Estatuto da Igualdade Racial.

Senador Paulo Paim

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Introdução

A propriedade de seres humanos aparece quase simultaneamente com o próprio conceito de propriedade. A escravidão é um fenômeno social antigo. Por um longo período da história da humanidade, era uma instituição aceita, mesmo por sociedades humanistas e progressistas.

Os gregos e os romanos mantiveram a escravidão, enquanto implan-tavam suas repúblicas democráticas. A “República” de Platão, do século VI a.C., previa com naturalidade a escravidão, dentro dos sonhos por uma sociedade justa.

Na Utopia de Thomas More, que difundia o sonho do funcionamento de uma sociedade perfeita, a escravidão era um instrumento normal. A Europa atravessou todo o Renascimento convivendo com formas de escravidão em seus territórios e suas colônias.

No exemplo de democracia que foi a república norte-americana, o grande sonho libertário da modernidade, antes mesmo da Revolução Francesa, a escravidão foi mantida por quase 100 anos. E para eliminar essa barbari-dade, foi preciso uma trágica Guerra Civil, com a morte de 970 mil pessoas para libertar os 3 milhões de escravos.

O Brasil nasceu com a escravidão. Logo nos primeiros encontros com os indígenas, os portugueses começaram a escravizá-los. O Reino de Portugal combinou simultaneamente o solo do novo território na América com a mão-de-obra vinda da África para produzir o açúcar, depois o ouro, o café que os ricos europeus consumiam.

Foi uma escravidão diferente da antiga. Antes, os escravos eram parte da família, do exército, da pequena produção, conviviam com as pessoas livres e seus donos. No mundo árabe antigo ou na Grécia e Roma, e mesmo na Europa medieval havia trabalho escravo, mas essa escravidão não tinha a brutalidade e desumanização do escravo nas Américas. A escravidão

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Senador Cristovam Buarque

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antiga era utilizada, sobretudo, para o trabalho doméstico, em casas ou plantações familiares, salvo em tempos de guerra ou em jogos de gladia-dores. Alguns alcançavam posições sociais de destaque dependendo da precisão de suas habilidades.

Na América, eles foram desumanizados. Transformados em coisa. O escravo doméstico, serviçal familiar do passado, foi transformado em massa, e tem a vida degradada ao ponto de ser confundido com uma ferramenta de produção.

Por isso, a escravidão tornou-se, ao mesmo tempo, mais abjeta e mais necessária.

Os historiadores costumam dividir a abordagem sobre a escravidão em períodos históricos para diferenciar a escravidão da antiguidade e a escravidão na era moderna. Há diversas ocorrências de escravatura sob diferentes formas ao longo da história, praticada por civilizações distintas.

No geral, a forma mais comum de escravatura se deu quando povos adver-sários guerrearam, resultando em prisioneiros de guerra condenados ao trabalho forçado. Mesmo os brancos condenados por crimes eram levados ao trabalho forçado, mas não eram escravos, não podiam ser vendidos. Apesar de na Antiguidade ter havido comércio escravagista, não era necessariamente esse o fim reservado a esse tipo de espólio de guerra.

A Mesopotâmia, a Índia, a China e os antigos egípcios utilizaram escravos, porém, não se tem notícia da exploração de um povo com base em suas constituições físicas e culturais para justificar a dominação, como foi o caso do tipo de escravidão nas Américas.

Ao longo de quase quatro séculos a escravidão foi aceita plenamente pela Igreja, pelos dirigentes, pelos intelectuais. A única exceção eram os próprios escravos, que lutavam como Zumbi, e formavam quilombos. A parcela livre ignorou totalmente a existência da escravidão, como um problema moral e aceitou-a como uma situação econômica óbvia.

É vergonhoso como 400 anos de história se passaram ante a insensibilidade das classes dirigentes, dos estudantes, das faculdades criadas no século XIX, dos padres, dos escritores e mesmo dos brancos pobres.

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Dez dias de maio em 1888

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Só no século XIX, e muito lentamente, começaram a surgir pequenos movimentos pela redução da barbaridade dentro da escravidão, mas ainda não pela Abolição. Eram movimentos limitados a diminuir castigos corporais ou a evitar a venda de crianças separadas de suas mães.

A verdadeira luta pela Abolição começou devagar e veio de fora. O primeiro ato de combate à escravidão – a Proibição do Tráfico – não surgiu dentro do Brasil. Foi o resultado de pressão da Inglaterra, que forçou a aprovação da Lei de 1831. Mesmo assim, foi uma “lei para inglês ver” 1. O trafico só parou quando, anos depois, a Marinha Britânica passou a interceptar os navios negreiros e libertar os escravos. Fomos forçados pelos ingleses a pôr fim ao crime hediondo de arrastar africanos através do Atlântico e sujeitá-los ao rigor da escravidão, por toda a vida e – inacreditável – de seus descendentes também.

Até então, os cursos superiores, a Igreja, a quase totalidade dos parla-mentares do Império ignoravam a escravidão como problema. Ela era parte do sistema social brasileiro, um instituto normal, como são hoje a pobreza, a desigualdade, o abandono dos serviços sociais para os pobres, o desprezo pela educação dos pobres.

Machado de Assis, que era mulato e tão bem descreveu a vida social brasileira, nunca fez manifestação qualificada sobre a escravidão. Como na literatura de hoje, que raramente tem personagens vindos do grupo social dos excluídos, os escravos eram invisíveis aos olhos da elite social. Em seus romances e contos, os escravos eram como mobílias. Não tivemos nenhum romance como “A Cabana do Pai Tomás”, nem enaltecemos heróis escravos, como o romano Spartacus, ou Zumbi dos Palmares.

Quando surgiram grupos, ações e movimentos isolados contra a escravidão, era por meio da alforria graças à compra de escravos individualmente, para libertá-los. Em Pernambuco, o Clube do Cupim escondia escravos fugidos. A luta continuou paulatinamente, com a Lei do Ventre Livre em 1871 e dos Sexagenários em 1885. No Ceará, em 01 de janeiro de 1883, o fazendeiro Coronel Gil Ferreira Gomes libertou todos os seus escravos e conseguiu convencer os vizinhos a venderem os seus, com o compromisso

1 A expressão “para inglês ver” surgiu da hipocrisia com que os brancos brasileiros, ricos ou pobres, se submeteram à pressão inglesa, decididos a não cumprir a lei que proibia a impor-tação de escravos africanos. Uma postura que caracterizaria a alma do brasileiro: submissão aos acordos impostos pelo exterior, maldade com os excluídos e desrespeito com os acordos.

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de jamais voltarem a comprar mão-de-obra servil. Foi o primeiro a abolir a escravidão no Brasil.

Só bem avançada a segunda metade do século XIX é que alguns come-çaram lutar por uma lei simples: que emancipasse todos os escravos, sem pagamento indenizatório aos seus donos.

As palavras abolicionismo e abolicionistas só surgem no Brasil em 1871, segundo consta no dicionário Houaiss. Só então, tardiamente, uma pequena parte da elite brasileira começou a falar em abolição: o puro e simples fim do sistema escravocrata. Ainda assim, eram palavras marginais, usadas por contestadores, jamais pelos donos do poder. Os poucos projetos de lei apresentados nesse sentido foram ignorados, arquivados ou rejeitados, como os projetos de lei dos deputados Pedro Pereira da Silva Guimarães (1814/1876), João Maurício Wanderley (1815/1889), Tavares Bastos (1839/1875), e dos senadores Silveira da Mota (1811/1893) e Visconde de Jequitinhonha (1794/1870).

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A abolição começou antes

A ACEITAção DA ESCrAvIDão

Foi provavelmente o navegador português Gil Eanes quem, em 1432, levou para Portugal a primeira carga de escravos vindos da África. A partir de então os portugueses começaram o secular tráfico que marcaria a huma-nidade de riquezas econômicas e de vergonhas morais.

Segundo os historiadores, os primeiros escravos chegaram ao Brasil em 1533, quando Pero de Góis, Capitão-Mor da Costa do Brasil, solicitou ao Rei a remessa de 17 negros para a sua capitania de São Tomé, onde hoje se situa o estado do Rio de Janeiro. Outros afirmam que foi em 1538, quando Jorge Lopes Bixorda, arrendatário de pau-brasil, teria traficado os primeiros escravos africanos para a Bahia.

A escravidão já estava institucionalizada pela coroa portuguesa com a bênção papal, documentada nas bulas de Nicolau V, principalmente na Dum Diversus, de 1452, que autorizava os portugueses a escravizarem os africanos com o intuito de cristianizá-los. Na legislação portuguesa da época, também aplicada no Brasil colonial, a regulamentação da escra-vatura aparecia compilada nas Ordenações Manuelinas2 .

A justificação era que faltava mão de obra por toda a Europa, devido à recorrência de epidemias. A explicação moral, no entanto, estava na arrogância branco-europeia e na ganância do capitalismo nascente.

2 As Ordenações Manuelinas foram os três diferentes sistemas de preceitos jurídicos que reuniam toda a legislação portuguesa, de 1512-13 a 1605. Fizeram parte do esforço do rei Manuel I de Portugal para adequar a administração no Reino ao enorme crescimento do Império Português na era dos descobrimentos. Consideradas como o primeiro corpo legislativo impresso em Portugal, elas sucederam as Ordenações Afonsinas e vigoraram até a publicação das Ordenações Filipinas, durante a União Ibérica.

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A escravidão era aceita por quase todos os brancos como um benefício dado por Deus aos de sua cor, e tolerado por quase todos os resignados negros como uma condenação natural à sua cor. Foi sobre os ombros e a dor desses milhões de escravos traficados desde a África, ou nascidos nas Américas, que o capitalismo fez sua acumulação de capital.

O Brasil foi carregado pelos pés e moldado nas mãos dos escravos. E ao longo dos séculos, a Igreja Católica, os intelectuais, depois os alunos e professores das faculdades, os dirigentes, todos pensavam, transitavam socialmente e agiam com toda naturalidade diante da brutalidade da escravidão.

Se começou em 1533 ou cinco anos depois, o sistema escravocrata demoraria mais de 350 anos para ser abolido no Brasil e, em consequência, em todo o território americano, porque fomos o último país desse continente (com Cuba) a proibir a escravidão como meio oficial de atividade socioeconômica.

Estes quase quatro séculos, até 1888, representam uma das mais vergo-nhosas fases da história humana. Em nada menor do que o holocausto feito pelos nazistas na Alemanha e certamente ainda pior do que o horrível crime contra a humanidade no apartheid cometido pelos brancos na África do Sul.

Nesse período, o Brasil foi o país que mais recebeu escravos no mundo. Foram trazidos para cá cerca de 38% de todos os escravos africanos trafi-cados para as Américas. Entre 1501 e 1866 foram embarcados 5,5 milhões de africanos com destino ao Brasil, dos quais 4,9 milhões chegaram vivos (quase 700 mil africanos teriam morrido durante o trajeto da África ao Brasil)3 . A estimativa mais confiável, dada pelo IBGE4 , informa que o número total de africanos que chegou ao Brasil foi de quatro milhões5 , dos quais cerca de 720.000 eram mulheres. Estes quatro milhões foram apenas uma parte dos escravos que viveram no Brasil, porque ao longo de dez gerações, os milhões de filhos e seus descendentes também foram escravos. Embora não haja referências confiáveis, pode-se estimar que

3 The Trans-Atlantic Slave Trade Database, base de dados desenvolvida pela Emory University (EUA) em parceria com W.E.B. Du Bois Institute (Harvard University), The Universit of Hull (UK), UFRJ (Brasil) e Victoria University of Wellington (Nova Zelândia).

4 Censo de 1872, disponível em http://www.nphed.cedeplar.ufmg.br/5 No mesmo período, com destino à América do Norte foram embarcados 472 mil africanos,

dos quais 389 mil chegaram vivos (84 mil não teriam sobrevivido).

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pelo menos cinco milhões de escravos nasceram no Brasil, o que faz o total de 10 milhões de escravos ao longo dos séculos6 .

A escravidão não representou apenas um gesto econômico injusto, como a exploração dos trabalhadores pelo capitalismo, ou a sangria de rendas provocadas pelo imperialismo ao longo de séculos. A venda de pessoas e seus filhos, o trabalho obrigatório em regimes desumanos, a ausência de qualquer direito até mesmo ao corpo e à vida, o racismo, a possibilidade de ser morto por seu proprietário sem punição, são tratamentos que carac-terizam o máximo de brutalidade humana. Esta realidade ocorreu em outros momentos e circunstâncias, mas em nenhum outro momento na dimensão, na forma e na lógica vista ao longo dos séculos da exploração escravocrata nas Américas.

Ao contrário do ocorrido em outros lugares e períodos históricos, a escra-vidão praticada nas Américas legitimou a dominação de um povo a partir de critérios raciais com finalidade puramente econômica. Apesar de que na Antiguidade as diferenças raciais já eram apontadas, a justificativa da escravização naquela época foi mais a conquista dos povos por meio da guerra do que questões raciais. Não era a cor da pele que servia de sustentáculo ideológico para legitimar a escravidão. O que tornava uma pessoa em escravo era o fato de ter perdido uma guerra, e não o fato de pertencer a um grupo racial diferente de seus conquistadores. Por esse motivo, em Roma era possível encontrar escravos brancos, e nas Américas não. E não era escravo como peça mecânica.

Nas Américas, o escravo era ferramenta, e era ferramenta por ser negro. Não tinha valor, apenas preço, inferior a muitos dos demais insumos do processo produtivo. Eram chamados de “peças”, não gente.

O tipo de escravidão que se deu nas Américas a partir de seu descobrimento era inédito por ser baseado na dominação de um povo, pelo excesso de desumanização e devido a sua proporção em escala de milhões.

6 Este último dado é uma estimativa muito aberta feita pelo autor deste livro a partir das seguintes considerações: se convencionarmos 6 escravos chegados para cada escrava, e quatro filhos por mulher com mortalidade de 50% na infância,sendo um menino e uma menina, a população não cresceria, porque cada casal só teria um casal, mas a soma de todos os filhos, sem contar os mortos ou os abortados na infância, seria de 5 milhões, nos 350 anos. Esta é provavelmente uma estimativa conservadora, o número de nascidos e sobreviventes deve ter sido maior.

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Entre os mais brutais aspectos desta coisificação do escravo foi fazê-lo sentir-se coisa, perder o sentimento de humano semelhante aos brancos. Por sucessivas gerações, do nascimento à morte, se autoconsideravam como objetos, resignados a ver os filhos, esposos e irmãos como coisas. Esta coisificação assumida pelos brancos e também pelos escravos fez com que a abolição não chegasse a ser uma consideração por parte dos escravos em geral, nem da sociedade escravocrata, inclusive entre os mais humanistas intelectuais e religiosos.

Mesmo assim, o espírito da abolição esteve latente, ainda que inconscien-temente, em raras vozes de brancos e nas arriscadas fugas de negros. Era como se um espírito pairasse sobre as mentes, esperando para se manifestar.

Embora politicamente a Abolição foi um tema do final do século XIX, espiritualmente o Treze de Maio de 1888 teve início no começo do século XVI, quando o primeiro grupo de escravos chegou ao Brasil. Ou talvez antes, quando homens livres foram agarrados no território africano e transformados em mercadoria. Ali, na inconsciência dos assustados prisioneiros, num sonho de liberdade, estava o embrião da Abolição.

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A lenta descoberta da escravidão

Diferentemente da divisão nos EUA entre estados do Norte e estados do Sul, no território brasileiro não existiam áreas geográficas separando escravidão e liberdade. Isto impedia ver a própria escravidão. A escravidão não era percebida como uma anomalia, porque não havia a perspectiva de uma realidade não escravocrata. Eram os visitantes estrangeiros de passagem pelo Brasil, com distanciamento cultural, que percebiam a tragédia da escravidão. Ou então, já no século XIX, por brasileiros que haviam vivido na Europa.

Salvo raros episódios de descontentamento e até rebelião. Os escravos foram submetidos à situação de escravidão não apenas social e econômica, mas também psicológica. No máximo, usavam a cultura – a música e dança – como forma de afirmação, e alguns cultos religiosos como libertação espiritual. Mesmo assim, fazendo um processo de sincretismo que lhes permitia disfarçar a própria identidade, embranquecendo-a.

A ESCrAvIDão Não ErA vISTA

Mesmo quando alguns perceberam a escravidão, como padre Viera, ela foi descoberta sem que se descobrisse a Abolição. Percebeu-se a ignonímia do flagelo, mas sem o sentimento de opressão de um povo, ainda menos a crítica ao sistema. A maldade era vista sobre indivíduos, homens maltra-tados, famílias dispersas, mas ainda não a maldade do sistema.

Diferentemente de outros países onde a oposição à escravidão contou com manifestações de instituições religiosas, como o caso dos discursos do dominicano De las Casas, na América Central e no Caribe, no Brasil nossos padres e bispos chegaram a defender os indígenas, mas não os escravos. Padre Vieira, nosso maior orador, nunca se manifestou com clareza em oposição ao regime escravocrata. No máximo criticava certos casos de

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excesso de punição, da mesma maneira que alguns administradores também faziam esta crítica porque a punição poderia reduzir a eficiência do escravo no processo produtivo: deixar de trabalhar por causa de maus tratos ou de morte, reduzindo a produção e o patrimônio do dono.

No seu famoso Sermão da Primeira Dominga da Quaresma, em 1653, em S. Luís do Maranhão, apesar da crítica ao tratamento dado aos índios, de uma forma que não eliminava a servidão, não há palavra contrária ao escravismo dos negros, como pode ser visto pelos trechos abaixo onde o grande orador trata diretamente do assunto.

Todos os índios deste Estado, ou são os que vos servem como escravos, ou os que moram nas aldeias de El-Rei como livres, ou os que vivem no sertão em sua natural e ainda maior liberdade, os quais por esses rios se vão comprar ou resgatar - como dizem - dando o piedoso nome de resgate a uma venda tão forçada e violenta, que talvez se faz com a pistola nos peitos.

Diferentemente dos escravos negros, no caso dos índios havia aqueles que eram livres. Esta diferença permitia descobrir a escravidão, por antinomia; o que não acontecia com os negros, todos escravos, salvo raras exceções posteriores de alforria comprada ou concedida.

Mesmo com sua capacidade para ver a escravidão dos índios, Padre Vieira não despertou para a abolição, apenas para a necessidade de tratamento menos brutal aos nativos; sem referência ao sistema escravocrata que oprimia aos africanos e seus filhos.

Ao sertão se poderão fazer todos os anos entradas, em que verdadeiramente se resgatem os que estiverem - como se diz - em cordas, para ser comidos, e se lhes comutará esta crueldade em perpétuo cativeiro. Assim serão também cativos todos os que sem violência forem vendidos como escravos de seus inimigos, tomados em justa guerra, da qual serão juízes o governador de todo o Estado, o ouvidor-geral, o vigário do Maranhão ou Pará, e os prelados das quatro religiões, carmelitas, fran-ciscanos, mercenários, e da Companhia de Jesus. Todos os que deste juízo saírem qualificados por verdadeiramente cativos, se repartirão aos moradores pelo mesmo preço por que foram comprados. E os que não constar que a guerra em que foram tomados fora justa, que se fará deles? Todos serão aldeados em novas povoações, ou divididos pelas aldeias que hoje há, donde, repartidos com os demais índios delas pelos moradores, os servirão em seis meses do ano alternadamente de dois em dois, ficando os outros seis meses para tratarem de suas lavouras e famílias. De sorte que nesta forma todos os índios deste Estado servirão aos portugueses, ou como própria e inteiramente cativos, que são os de corda, os de guerra justa, e os que livre e voluntariamente quiserem servir, como dissemos dos primeiros; ou como meios cativos, que são todos os das antigas e novas aldeias, que, pelo bem e conservação do Estado, me consta que, sendo livres, se sujeitaram a nos servir e ajudar a metade do tempo de sua vida.

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É neste contexto de tolerância com a naturalidade da escravidão que ganha importância a resistência no Quilombo de Palmares no século XVII, sob a liderança de Zumbi – e anteriormente de Ganga-Zumba. Em Palmares foi possível criar um território livre da escravidão colonial, representando o primeiro gesto de alforria conquistada e mantida pela luta, e por isso reprimido com toda brutalidade pelos senhores brancos, com aceitação de toda a sociedade, e sem manifestações contrárias a essa dura repressão.

Mas, mesmo entre libertários como no Quilombo dos Palmares, a escravidão era tolerada como sistema, pois ainda não havia um movimento consciente da necessidade de abolição da escravatura em todo o território nacional.

Deve-se a José Murilo de Carvalho7 o relato histórico de que no próprio Quilombo dos Palmares havia escravidão, ainda que praticada nos moldes da cultura africana, longe da aberração de tratar escravos como ferra-menta econômica. De acordo com ele,

(...) os quilombos que sobreviviam mais tempo acabavam mantendo relações com a sociedade que os cercava, e esta sociedade era escravista. No próprio quilombo dos Palmares havia escravos. Não existiam linhas geográficas sepa-rando a escravidão da liberdade. [CARVALHO, 2009]

Era uma luta pela libertação pessoal, não por uma revolução social.

Não era apenas o regime econômico que era escravocrata: a cultura, a alma e a mente dos brasileiros, brancos e negros, era escravocrata; os primeiros como opressores, os outros como submissos. O desumanismo era tão grande que demorou a ser percebido8 .

Havia uma equação pela qual se o escravo, como uma máquina quebrando, morresse antes de alguns anos de trabalho, haveria uma perda no patri-mônio, porque o investimento não tinha produzido ainda o resultado que compensasse a sua compra. Alguns senhores mais inteligentes passavam a dar mais comida a seus escravos, como a seus animais, para que não morressem cedo e trabalhassem mais.

7 Carvalho, José Murilo de.“Cidadania no Brasil: o longo caminho”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

8 Como se verá em detalhes no capítulo III, “1888 ainda não terminou”, esta cegueira cultural e sua indignidade moral continua. É isso que permite a convivência tolerada até hoje entre a riqueza e a pobreza, a aceitação da brutal desigualdade de renda, e, sobretudo, a imoralidade como se aceita a desigualdade no acesso à saúde e à educação. Não é por acaso que todas as formas de desigualdade, até hoje, pune especialmente aos negros e seus descendentes.

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A inconfidência mineira (1789), primeiro gesto concreto visando à inde-pendência, não era abolicionista. Como também não foi a luta pela inde-pendência dos Estados Unidos, por líderes divididos entre proprietários de escravos e opositores à escravidão: conviviam em tolerância por neces-sidade política de uma aliança entre independentistas.

Foi com a Conjuração Baiana (1798) – chamada Revolução dos Alfaiates – que, pela primeira vez, o Brasil teve um movimento que se referia à Abolição. A Conjuração Baiana foi uma revolta popular, mais movimento social que eclodiu influenciado pelas ideias da Revolução Francesa. Os mulatos baianos – como eram chamados os revoltosos - se opunham não só ao colonialismo português, mas também às desigualdades sociais. Estavam motivados pelos ideais de igualdade, fraternidade e liberdade. Haviam aprendido com os haitianos que os negros poderiam vencer e por isso pregavam a abolição da escravatura. Tratar a escravidão como eticamente injustificável, e falava na necessidade de sua abolição.

Antes da Conjuração Baiana, ocorreram lutas e revoltas na colônia, mas nenhuma – incluindo-se os quilombos – possuía caráter abolicionista9 .

Em algumas delas poderia haver dissidentes que pregavam a abolição, mas estas posições nunca se tornaram unânimes nos movimentos porque, em sua maioria, os movimentos eram liderados por proprietários e membros da elite. Quando se falava em abolição, o movimento perdia apoio e estes proprietários se alinhavam ao governo imperial e escravocrata. Mas na Conjuração Baiana os revoltosos eram membros das camadas populares e não perdiam força quando falavam em abolição.

A proposta da abolição continuou ausente na pauta das revoltas que ocorreram no século XIX. A Conspiração dos Suassunas (em 1801 ocorrida em Pernambuco), a Revolta Liberal de 1821, a Revolta Independentista da Bahia (de 1821 a 1823), nenhuma delas reivindicou a abolição da escravatura.

9 Levante dos Tupinambás (1617-1621); Invasão e presença holandesa no Brasil, Guerra Luso-Ho-landesa e Insurreição Pernambucana (Guerra da Luz Divina) (1630-1654); Revolta de Amador Bueno (1641); Motim do Nosso Pai (1666); Revolução de Beckman (1684-1685); Confederação dos Cariris (1686-1692); Guerra dos Emboabas (início de 1700); Revolta do Sal (1710); Guerra dos Mascates (1710-1711); Motins do Maneta (1711); Revolta de Felipe dos Santos (1720); Guerra dos Manaus (1723-1728); Resistência Guaicuru (1725-1744); Guerra Guaranítica (1751-1757); Inconfidência Mineira (1789); Conjuração Carioca (1794-1795).

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Salvo pequenas dissidências internas no movimento, a Confederação do Equador, revolta separatista que ocorreu no Nordeste em 1823-1824, não possuía caráter abolicionista em suas propostas. A proposta de Paes de Andrade – presidente da província de Pernambuco - no sentido de libertar os escravos a exemplo do Haiti - que recentemente se libertara do domínio francês através de uma revolta popular - não tranquilizavam as elites, e para evitar a abolição os proprietários de terras preferiram colaborar com o governo imperial10 .

A Noite das Garrafadas no Rio de Janeiro (1831) e a Cabanagem no Pará (1834-1840), nenhuma carregava a bandeira da abolição entre seus motivos de luta.

De parte dos escravos, com exceção dos quilombos, a primeira rebelião organi-zada com referência à Abolição foi a Revolta dos Malês, em 1835, na cidade de Salvador. Mesmo assim, parcial: os Malês, escravos muçulmanos, se organi-zaram para conseguir a libertação dos escravos islâmicos, mas não dos cristãos. A revolta foi rapidamente controlada pelas forças oficiais e muitos escravos morreram; aqueles que sobreviveram aos confrontos e que não conseguiram fugir foram condenados à pena de morte, isolamento ou chibatadas.

Neste perfil de revoltas, os poucos abolicionistas eram indivíduos que jamais conseguiam ampliar o apoio a suas lutas e forças. Algo parecido ocorre hoje com aqueles que defendem uma revolução que permita colocar filhos de pobres em escolas equivalentes àquelas dos filhos de ricos. Ao ouvir esta ideia surge o mesmo riso sarcástico dos que viam a abolição da escravidão como uma quimera inalcançável.

A questão da abolição da escravatura esteve indiretamente referenciada na Revolução Farroupilha - revolta separatista e republicana ocorrida no Rio Grande do Sul entre 1835 e 1845. Os exércitos farroupilha contavam com estancieiros, militares-libertários, abolicionistas e escravos que buscavam a liberdade, em uma combinação e identidade ideológica sem qualquer unidade, salvo a república e o separatismo.

Depois da Revolução Farroupilha, a eclosão de revoltas pelo país continuou intensa, a maioria de caráter independentista, mas não mencionavam a abolição da escravatura.

10 Não é obra do acaso que, por ironia da história, a Monarquia foi derrubada no ano seguinte à abolição patrocinada pelo Imperador.

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A Insurreição Praieira, revolta ocorrida em Pernambuco entre 1848 e 1850, tinha caráter liberal e republicano; seus líderes defendiam, entre outras propostas, o voto livre e universal; a plena e absoluta liberdade de imprensa; o trabalho, como garantia da vida para o cidadão brasileiro; a indepen-dência dos poderes; a extinção do Poder Moderador que permitia ao Imperador intervir nos trabalhos legislativos; a completa reforma do Poder Judiciário, de forma a assegurar as garantias dos direitos individuais dos cidadãos; mas não cogitavam a abolição da escravatura.

Gilberto Freyre em seu Os escravos nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX11 fala que o lema da redação de O Povo, do Rio Grande do Sul, era “o Império brasileiro é uma anomalia incompatível com as luzes do século”- mesmo assim o jornal era pródigo em anúncios oferecendo escravos à venda, ou pedindo que castigassem os que fugiam. Seus redatores eram republicanos, mas escrava-gistas. Como foram muitos dos fundadores dos Estados Unidos da América.

Como exceção, de forma pioneira, importante, mas isolada, em 1823, logo depois da independência, José Bonifácio de Andrade e Silva apresentou à Assembleia Constituinte12 sua Representação, onde chamaria a escravidão de “cancro moral que ameaça os fundamentos da nação”. A Representação não foi proferida porque a Constituinte foi dissolvida, mas o documento foi preservado e publicado pelo autor em 1825.

O documento de Bonifácio de Andrade contém, embora ainda tímida, uma manifestação pelo fim da escravatura, carrega a dimensão da imorali-dade da escravidão e apela para uma mudança na mentalidade nacional que há 300 anos tolerava o escravismo como fato natural. Mesmo assim, apesar de se pronunciar pela emancipação, “por ser cristão”, propõe uma estratégia de fim do tráfico e melhor tratamento aos escravos até que fosse promovida uma progressiva emancipação.

Na bela biografia Amazing Grace, Eric Metaxas diz que o grande abolicio-nista inglês William Wilberforce iniciou seu caminho rumo à aprovação da lei que aboliu a escravidão na Inglaterra ao perceber que o desafio era mudar a mentalidade escravocrata, convencer a sociedade do mal ético e humano que ela representava.

11 FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. São Paulo, Global Editora, 2010. p.161.

12 SILVA, JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E. Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura, Typ. J. E. S. Cabral: Rio de Janeiro, 1840.

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Apesar de nosso verdadeiro Willbeforce ter sido Joaquim Nabuco, Bonifácio de Andrade, meio século antes, tendo vivido mais de dez anos na Europa, e sabendo, portanto, da luta de Wilbeforce e da abolição na Inglaterra, conseguiu livrar-se da mente escravocrata do Brasil e tentou romper com esta mentalidade nacional.

Em sua Representação à Constituinte ele apresenta frases como:

É de espantar pois que um tráfico tão contrário às leis da moral humana, e às santas máximas do evangelho, e até contra as leis de uma sã política, dure há tantos séculos entre homens que se dizem civilizados e cristãos! Mentem, nunca o foram.13

A sociedade civil tem por base primeira a justiça, e por fim principal a felicidade dos homens; mas que justiça tem um homem para roubar a liberdade de outro homem, e o que é pior, dos filhos deste homem, e dos filhos destes filhos? Mas dirão talvez que se favorecerdes a liberdade dos escravos será atacar a propriedade.14

Este comércio de carne humana é pois um cancro que rói as entranhas do Brasil (...)

Mas propõe uma emancipação apenas gradual:

(...) que os muitos escravos, que já temos, possam, às abas de um governo justo, propagar livre e naturalmente com as outras classes, uma vez que possam bem criar e sustentar seus filhos, tratando-se esta desgraçada raça africana com maior cristandade, até por interesse próprio; uma vez que se cuide enfim na emancipação gradual da escravatura, e se convertam brutos imorais em cidadãos úteis, ativos e morigerados.15

Concentra a proposta no fim do tráfico:

Acabe-se pois de uma vez o infame tráfico da escravatura africana; mas com isto não está tudo feito; é também preciso cuidar seriamente em melhorar a sorte dos escravos existentes, e tais cuidados são já um passo dado para a sua futura emancipação.16

Ou no melhor tratamento aos escravos:

Acabado o infame comércio de escravatura, já que somos forçados pela razão política a tolerar a existência dos atuais escravos, cumpre em primeiro lugar favorecer a sua gradual emancipação, e antes que consigamos ver o nosso país livre de todo deste cancro, o que levará tempo, desde já abrandemos o sofrimento dos escravos, favoreçamos, e aumentemos, todo os seus gozos domésticos e civis; instruamo-los no fundo da verdadeira religião de Jesus Cristo, e não em momices e superstições: por todos estes meios nós lhes daremos toda a civilização de que são capazes no seu desgraçado estado, despojando-os o menos que pudermos da dignidade de homens e cidadãos. Este é não só o nosso dever mas o nosso maior

13 [idem] p.2014 [idem] p.2115 [idem] p.2316 [idem] p.24

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interesse, porque só então conservando eles a esperança de virem a ser um dia nossos iguais em direitos, e começando a gozar desde já da liberdade e nobreza de alma, que só o vício é capaz de roubar-nos, eles nos servirão com fidelidade e amor; de inimigos se tornarão nossos amigos e clientes. Sejamos pois justos e benéficos, senhores, e sentiremos dentro da alma que não há situação mais deliciosa que a de um senhor carinhoso e humano, que vive sem medo e contente no meio de seus escravos, como no meio da sua própria família, que admira e goza do fervor com que estes desgraçados adivinham seus desejos, e obedecem a seus mandos, observa com júbilo celestial o como maridos e mulheres, filhos e netos, sãos e robustos, satisfeitos e risonhos, não só cultivam suas terras para enriquecê-lo, mas vêm voluntariamente oferecer-lhe até as premissas dos frutos de suas terrinhas, de sua caça e pesca, como a um Deus tutelar. É tempo pois que esses senhores bárbaros, que por desgraça nossa ainda pululam no Brasil, ouçam os brados da consciência e da humanidade, ou pelo menos o seu próprio interesse, senão, mais cedo do que pensam, serão unidos das suas injustiças, e da sua incorrigível barbaridade.Eu vou, finalmente, senhores, apresentar-vos os artigos, que podem ser objeto da nova lei que requeiro: discuti-os, emendai-os, ampliai-os segundo a vossa sabedoria e justiça. Para eles me aproveitei da legislação dos dinamarqueses e espanhóis, e mui principalmente da legislação de Moisés, que foi o único, entre os antigos, que se condoeu da sorte miserável dos escravos, não só por humanidade, que tanto reluz nas suas instituições, mas também pela sábia política de não ter inimigos caseiros, mas antes amigos, que pudessem defender o novo Estado dos hebreus, tomando as armas, quando preciso fosse, a favor de seus senhores, como já tinham feito os servos do patriarca Abraão antes dele.17

A MArChA DA ABoLIção

O chamado movimento abolicionista só adquiriu relevância a partir de 1850 e caráter amplo a partir de 1870, graças à Guerra da Tríplice Aliança (Guerra do Paraguai) e da participação de escravos e negros libertos como soldados e heróis.

O passo decisivo no sentido da Abolição foi proporcionado com a Guerra do Paraguai – 1864 a 1870. A inépcia do Brasil na mobilização inicial para a guerra despertou os civis para o atraso do país nas áreas básicas como educação e transporte. Além disso, a falta de voluntários aceitáveis para o Exército devido à ausência de um número significante de homens livres e aptos obrigou o recrutamento de escravos. Como retribuição ganhavam a liberdade. Logo após a guerra, sob a autoridade do Imperador D. Pedro II e de seus ministros, a Polícia do Exército foi incumbida de caçar os escravos fugidos e devolver aos seus senhores, ou seja, o Exército deveria

17 [idem] p.25

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cumprir o papel de “capitão do mato” a mando da Coroa. O resultado foi uma contradição. Essa anomalia tornou os oficiais do Exército - que presenciaram a boa atuação dos escravos na guerra, quando alforriados – mais receptivos às ideias abolicionistas depois da guerra.

A partir de então, o movimento abolicionista contou com inúmeros defen-sores da causa, muitos até anônimos. Além de Nabuco, se levantaram contra a escravidão nomes como André Rebouças, Alfredo Taunay, João Fernandes Clapp, Luís Gama, Antônio Pereira Rebouças, Rui Barbosa, José do Patrocínio, Tobias Barreto, Manuel Querino, Castro Alves, Antonio Bento, José Mariano Carneiro Cunha, Tavares Bastos, Benjamin Liberato Barroso, Antônio Tibúrcio, Justiniano Cerpa, Ferreira de Menezes, Vicente de Souza, Francisco Gê Acaiaba de Montezuma, Cristiano Otonni, João Alfredo, Jerônimo Sodré, Gusmão Lobo, Nicolau Moreira, Antônio Prado, Joaquim Serra, Ângelo Agostini, Pimenta Bueno, Souza Dantas e outros.

Mas só a partir da década de 1880, a campanha contra a escravidão inten-sificou-se em todo o Brasil. Especialmente a partir da decretação pelo Ceará da libertação dos escravos em 24 de março de 1884, quando um senhor de engenho, chamado Gil Ferreira Gomes, decidiu alforriar os seus escravos. Depois foi aos seus vizinhos, donos de escravos, e tentou convencê-los a fazer o mesmo. Alguns aceitaram, outros disseram que se ele queria que libertassem seus escravos, que os comprasse, depois poderia libertá-los, como novo dono.

Gil Gomes foi em busca de dinheiro em Fortaleza e, por intermédio da Sociedade Abolicionista Brasileira, conseguiu recursos e comprou todos os escravos que existiam na área, com a condição de que os vendedores não voltassem a comprar novos escravos. Fizeram esse grande acordo e a escravidão foi abolida em Acarape, que por isso, passou a se chamar Redenção.

Na solenidade de compra, alforria e compromisso de não mais comprar escravos, um dos donos, chamado Coronel Bernardino, disse que a maior mancha da sua vida era ter sido dono de escravos.

Após a decretação da abolição no Ceará, surgiram vários movimentos para ajudar os escravos a fugirem para esta província, nos moldes do que ocorreu por séculos no EUA entre o Sul escravocrata e o Norte libertário.

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Em São Paulo, surgiu o Movimento dos Caifazes, grupo que organizava a fuga dos escravos em direção ao Quilombo do Jabaquara, em Santos, e de lá os enviava para o Ceará. Liderado pelo paulista Antonio Bento os membros do Movimento dos Caifazes acomodavam os escravos em suas próprias residências, e pressionavam os proprietários a contratá-los como trabalhadores livres.

Em 8 de outubro de 1884 surgiu o Clube do Cupim , uma associação aboli-cionista criada no Recife, Pernambuco, por defensores do abolicionismo de vários pontos do Brasil. Seu idealizador foi o maranhense João Ramos, que sonhava em realizar em Pernambuco a mesma façanha dos cearenses. Os membros do Clube do Cupim tinham a missão de proteger os escravos, escondê-los e angariar fundos para comprar cartas de alforria. Historia-dores apontam que, além dos membros efetivos, o Clube do Cupim contava com mais de trezentos associados.

Devido às perseguições à sua sede, o Clube foi dissolvido em 1885, e passou a agir clandestinamente. Não se sabe ao certo quantos escravos o Clube do Cupim ajudou a libertar, mas a atuação deste movimento ficou famosa inclusive entre os membros do movimento abolicionista do Rio de Janeiro.

Quando estes movimentos surgem no Brasil, os EUA já tinham dois séculos de movimentos neste sentido, até graças ao fato de que a escravidão não era um sistema unânime em todo o território daquele país, porque as colônias do Norte nunca tiveram escravos. Havia uma linha que dividia o território norte-americano entre os estados com escravidão e aqueles sem escravidão, para onde, correndo riscos, alguns podiam fugir em busca da liberdade. No Brasil, qualquer escravo estava prisioneiro pela cor, em qualquer parte do território nacional, com exceção do Ceará, nos quatro anos que antecederam a Lei Áurea. Fugir de um lugar para outro não levava à liberdade além de alguns poucos meses ou dias.

Além disso, nos EUA, os protestantes anglicanos, batistas e sobretudo os quakers eram muito mais sensíveis à humanidade do escravo, inclusive ao direito à religião, do que a Igreja Católica, que legitimava a escravidão, tanto quanto na África do Sul a Igreja Reformada Holandesa legitimou

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o apartheid. De certa forma, foi a teologia desta Igreja que se antecipou como o embrião ideológico da maldita mentalidade que serviu de base à política e ao marco legal do apartheid18.

Entre a Representação de José Bonifácio de Andrada e a Lei Áurea se passaram 65 anos com raras vozes em defesa da extinção da escravatura, como mostra a cronologia abaixo, cuja parte sobre o Brasil está apresen-tada no livro A Abolição no Parlamento – 65 anos19

No resto da América Latina a escravidão foi abolida no momento da independência. Bolívar era antiescravidão. Nosso império se manteve escravocrata por mais 80 anos depois da Independência.

18 Ainda no século XVII, a Igreja Reformada (NGK) estabeleceu-se entre população de origem holandesa e, em 1850, acabou se dividindo por razões doutrinárias. Em 1912 a facção predomi-nante promulgou o tristemente conhecido “The Dutch Reformed Church Act”, negando aos negros a condição de membros. Para absorver o grande número de cristãos não brancos foram criadas pequenas denominações. Assim, antes mesmo de se tornar lei, já que foi estabelecido em 1948, o apartheid tinha sido praticado primeiramente no interior de uma ordem religiosa. As outras igrejas reformadas de origem holandesa, seguindo o lamentável exemplo, também estabeleceram organismos eclesiásticos separados para não brancos.

19 “A abolição no parlamento: 65 anos de luta”, (1823-1888) – 2.ed. –Brasília: Senado Federal, Secretaria Especial de Editoração e Publicação, 2012.

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ABoLIção NoS DEMAIS pAíSES DAS AMérICAS

DATA

pAíS INDEpENDêNCIA ABoLIção Tempo de Independência

com Escravidão (Anos)

hAITI (SAInT DOmInguE)

1804 1794 10

COlômBIA (VICE-REInO DE nOVA gRAnADA)

1810 1821 11

ChIlE 1818 1823 5

BOlíVIA 1825 1826 1

uRuguAI 1828 1842 19

EQuADOR (VICE-REInO DE nOVA gRAnADA)

1810 1852 42

ARgEnTInA 1816 1853 37

VEnEzuElA 1811 1854 43

pERu 1821 1855 34

BRASIl 1822 1888 66

A MArChA pArA A ABoLIção No BrASIL20

No BrASIL No ExTErIor

1772 –O julgamento do escravo fugitivo Somersett, abre precedente para que a Justiça britânica não mais apoie a escravidão.

1794 –primeiro país a proibir a escravidão, o haiti tem sua legislação abolicionista revogada por napoleão em 1802.

20 Informações retiradas das pesquisas, artigos e livros do pesquisador Seymour Drescher, principalmente livro referenciado a seguir: DRESCHER, Seymour. Abolição: Uma história da Escravidão e do Antiescravismo. São Paulo: Editora UNESP, 2011,736p. ISBN 978-85-393-0184-3.

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No BrASIL No ExTErIor

1807 –O parlamento britânico aprova o Abolition Act, que proibia o tráfico de escravos na Inglaterra.

1810 –

Tratado de Aliança e Amizade entre portugal e Inglaterra. Estabelece a abolição gradual da escravidão e delimita as possessões portuguesas na áfrica como as únicas que poderiam conti-nuar o tráfico.

1823Representação de José Bonifácio à Assembleia geral Constituinte legislativa do Império do Brasil.

é aprovada a lei que proíbe a escravidão no Chile.

1826

projeto de lei do Deputado Clemente pereira extinguindo o comércio de escravos (31-12-1840). –

Acordo Anglo-Brasileiro (extinção do tráfico), de 23-11-1826.

1829projeto dispondo sobre pena de morte para os escravos (11-04-1829).

Durante o governo de Vicente guerrero, é decretada a abolição da escravatura no méxico.

1830

projeto do Deputado Antonio F. França, acabando com a escravidão em 1880 (15-05-1830).

–projeto dos Deputados B. p. de Vasconcelos, mendes Viana, Duarte Silva e m. F. R. de Andrade, sobre a venda em hasta pública de escravos do Arsenal de marinha (17-07-1830).

1831

projeto dos deputados sobre extinção da escravidão no Brasil, compra de alforria e liberdade para os africanos contrabandeados (16-6-1831)

lei do governo Feijó (lei de 7-11-1831)

1832

Decreto de 12-04-1832 sobre exames de embarcações suspeitas de importação e reexportação de escravos.

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No BrASIL No ExTErIor

1833

proposta do ministro Aureliano de Souza sobe pena de morte para escravos que matassem ou ferissem seu senhor. (10-06-1833)

é sancionada no parlamento Inglês a extinção da escravatura, que é estendida a todo o Império britânico.

1834

Dois projetos do Senador J. A. Rodrigues de Carvalho sobre matrículas de escravos e apreensão de embarcações que tragam escravos (25-04-1834).

1835

lei n°4, de 10-06-1835 (pena de morte).

– projeto do Senador João V. de Carvalho, Conde lages, sobre a proibição de escravos no serviço dos estabelecimentos nacionais, exceto em agricultura ou criação (22-09-1835).

1837

Decreto sobre direito de petição de graça ao poder moderador na pena de morte (9-3-1837). projeto do Senado n° 133, do marquês de Barbacena, proibindo a importação de escravos para o Brasil (30-3-1837).

1844

nota do ministro paulino J. S. de Souza sobre violação do Acordo Anglo-Brasileiro de 1826 (11-1-1844).

1845

protesto de legação Imperial do Brasil em londres contra o “Bill” (25-7-1845). Slave Trade Suppression Act (Bill Aberdeen).

lei britânica que proibia o comércio de escravos entre a áfrica e a América.

O “Bill Aberdeen” (8-8-1845).

protesto do governo Imperial contra o “Bill Aberdeen” (22-10-1845).

1848 –

Em 1794, a convenção republicana francesa votou pela abolição nas suas colônias, mas somente em 1848 os escravos são emancipados.

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No BrASIL No ExTErIor

1850

projeto do Deputado Silva guimarães a favor da liberdade para os nascidos de ventre escravo (22-3-1850).

projetos dos Senadores holanda Cavalcanti e Cândido B. de Oliveira sobre o tráfico de escravos (maio de 1850).

pedido de discussão do art. 13 do pl n°133/1837 do marquês de Barbacena (Filisberto Caldeira Brant) sobre tráfico de escravos (12-7-1850).

lei n° 581, de 4-9-1850 (lei Eusébio de Queiroz) sobre tráfico de africanos.

Decreto n°708, de 14-10-1850, regulando a lei n°581.

1852

projeto do Deputado Silva guimarães considerando livres os que nasceram de ventre escravo (4-6-1852).

projeto contra tráfico de africanos (apud perdigão malheiro). –

1853

Resolução sobre a competência dos Auditores da marinha para processar e julgar réus envolvidos em tráfico (23-9-1853). A abolição da escravatura na Argentina

é confirmada pela Constituição de 1853Decreto n° 1.303 emancipando, depois de quatorze anos, os africanos livres que foram arre-matados por particulares.

1854

Decreto n° 1.310, de 2-1-1854 manda executar a lei de 10-6-1835 sem recurso, salvo o do poder moderador, em caso de pena de morte para escravos.

é decretado o fim da escravidão na Venezuela.

lei n° 731, de 5-6-1854 – punição para capitão ou mestre, piloto ou contramestre de embarcação que fizesse tráfico de escravos.

projetos nº 117 e s/nº do Barão de Cotegipe (J,m,Wanderlei) sobre comercio interprovincial de escravos e sobre alforria (11-8-1854)

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Senador Cristovam Buarque

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No BrASIL No ExTErIor

1860

projeto do Senador Silveira da mota proibindo a venda de escravos em leilões e exposições públicas (18-6-1860).

1862

projeto n° 39, de 1862 do Senador Silveira da mota proibindo venda de escravos em pregão e em exposição pública (9-5-1862).

1864

projeto do Senador Silveira da mota relacionando os que não podem possuir escravos (26-1-1864).

Decreto nº 3.310 de 24-9-1864, concedendo emancipação a todos os africanos livres no Império.

lei nº 1.237, de 24-9-1864 conside-rando os escravos pertencentes às propriedades agrícolas como objeto de hipoteca e de penhor.

1865

projeto do Senador Visconde de Jequitinhonha sobre alforria para os “achados de vento”.

Com o fim da guerra de Secessão nos Estados unidos (1861-1865), o presidente lincoln declara extinta a escravidão em todo o território norte-americano.

projeto do Senador Visconde de Jequitinhonha sobre a alforria aos escravos que estivessem sentado praça nos corpos de linha como voluntários.

projeto do Senador Silveira da motta proibindo estrangeiros residentes no Império de adquirirem ou possuírem escravos.

projeto de resolução do Senador Visconde de Jequitinhonha conside-rando livre o ventre da escrava que tivesse sido legada ou doada para serviço, por determinado tempo, sem a transmissão de domínio e sem cláusula expressa de voltar ao antigo cativeiro.

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No BrASIL No ExTErIor

1866

Exposição de motivo do marquês de São Vicente (pimenta Bueno) ao Imperador apresentando projetos de sua autoria.

projeto do marquês de São Vicente, n° 1 – liberdade para os filhos de mulher escrava.

projeto do marquês de São Vicente, n° 2 – criação de junta central protetora de emancipação em cada província.

projeto do marquês de São Vicente, n° 3 – matrícula de escravos (isentos de taxa) na coletoria das respectivas paróquias ou municípios.

projeto do marquês de São Vicente, n° 4 – libertando todos os escravos em cinco anos.

projeto do marquês de São Vicente, n° 5 – emancipação dos escravos de ordens religiosas.

Trecho de Joaquim nabuco sobre os projetos dos marquês de São Vicente.

Decreto da Assembléia geral legislativa estabelecendo o conceito de livre ventre.

projeto do Deputado Tavares Bastos mandando dar “cartas de alforria a todos os escravos e escravas da nação” (aditivo à lei do Orçamento) 26-6-1866.

1867

Fala de Trono de 22.5.1867 (cf, elemento servil)

Discurso de José Bonifácio sobre as questões financeira e servil (sob enfoque econômico), em 17.7.1867

projeto de José Thomaz nabuco de Araújo sobre emancipação de escravos (fusão dos cinco projetos do marquês de São Vicente, de 1866). De 20-08-1867.

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1869

projeto n° 30, de 1869, do Deputado manoel Francisco Correa, concedendo loterias para libertação de escravos.

portugal torna ilegal a escravidão, mas já havia decretado a liberdade dos escravos em seus territórios desde 1854.

projeto nº 31, de 1869, do Deputado manoel Francisco Correa, mandando proceder a nova matrícula de escravos e considerando livres os que fossem dela excluídos.

projeto s/nº 1869, proibindo venda de escravos em leilão hasta publica, (ACD, 1869, T II, p. 53)

Decreto nº 1.695, de 15-9-1869, proibindo venda de escravos em pregão e em exposição pública.

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1870

projeto nº 3, do Deputado Teodoro m. F. pereira da Silva (sobre penas para escravos)

projeto nº 18, 23-5-1870, do Deputado Araújo lima (libertando os filhos de mulheres escravas)

projeto nº19, de 23-5-1870, do Deputado perdigão malheiro (contra pena de açoites para escravos)

projeto n°20, de 23-5-1870, do Deputado perdigão malheiro (sobre alforria).

projeto n°21, de 23-5-1870 do Deputado perdigão malheiro (dando ao filho da mulher escrava a obrigação de servir gratuitamente ao senhor até 18 anos).

projeto nº 22, de 23-5-1870, do Deputado perdigão malheiro (sobre alforria).

projeto n°69, de 3-6-1870, de Theodoro m, p. da Silva (registro de escravos).

projeto n° 121, de 7-7-1870, do Deputado José de Alencar (isenção de taxa dos escravos comprados para serem libertados).

Relatório da Comissão Especial da Câmara dos Deputados, encarre-gada de dar parecer sobre o elemento servil.

projeto nº 200, de 1.870, apresen-tado pela Comissão encarregada de dar parecer sobre o elemento servil. Voto em separado de Rodrigo da Silva (membro da Comissão encarregada de dar parecer sobre o elemento servil).

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1871

parecer da Comissão Especial nomeada para estudar o projeto (contendo a proposta e as emendas).

lei n° 2.040 - de 28 de setembro de 1871.

Decreto n° 4.81 5, de 11-11-1871, regulamentando o artigo n° 6º do § lº da lei 2.040.

Decreto n° 4.835, de 11-12-1871, aprova o regulamento para a matrí-cula especial dos escravos e dos filhos livres de mulher escrava.

1872

Decreto n° 4.960, de 8-5-1872, alte-rando o regulamento aprovado pelo Decreto n° 4.835, na parte relativa a matrícula dos filhos livres de mulher escrava. Decreto n° 5.135, de 13-11-1872 regulamentando a lei n° 2.040, de 28-9-1871 (lei do Ventre livre).

–manifesto da Sociedade Abolicio-nista Baiana ressaltando o papel do legislador na luta pela abolição e propondo medidas de libertação de escravos com 50 anos (para homens) e 45 (para mulheres) e fixação do valor para o escravo e para seu trabalho (cf. auto-resgate pelo seu serviço).

1874 –Os escravos são emancipados na Costa do Ouro (atual gana) após a conquista do reino de Axante pelos ingleses.

1877projeto “g” e 3-5-1877, sobre o tráfico interprovincial –

1880manifesto da Sociedade Brasileira contra a escravidão. –

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1883

Discurso do Senador Silveira da mota em 26-6-1883, sobre a sentença dada por Juiz de Direito de pouso Alto a respeito da liber-dade de africano introduzido como escravo no Brasil depois da lei Feijó.

Discurso do Senador lafayette em 27-6-1883 sobre requerimento do Senador Silveira da mota.

Discurso do Senador Christiano Attoni, em 30-6-1883, na discussão do requerimento de Silveira da mota e sobre matrí-cula de escravos.

manifesto da Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro.

1884-1885

projeto “h”, de 1884, do Senador Silveira da motta pela libertação dos escravos do Império em sete anos.

Cronologia da tramitação legislativa do projeto de lei nº 48, de 15-7-1884, de Rodolfo Dantas.

parecer n° 48-A de Rui Barbosa sobre o projeto n° 48.

lei nº 3.270 de 28-9-1885 (lei dos Sexagenários).

Decreto n° 9.517 de 14.11.1885 que regula a lei n° 3.270, de 28.9.1885.

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1886

projeto “C” de 1° 6. 1886, do Senador Souza Dantas, que libe-raria os escravos em cinco anos.

O tráfico foi oficialmente extinto em Cuba, que passou a receber mão de obra chinesa para trabalhar no plantio de cana-de-açúcar.

Discurso do Senador Souza Dantas, em 30.7.1886, denunciando a morte de cinco escravos por açoites (com requerimento de informações).

Discurso de Ribeiro da luz, ministro da Justiça, sobre o requerimento de Souza Dantas.

Discurso do Senador martins apre-sentando projeto sobre a abolição de pena de açoites (2.8.1886).

Discurso do Senador Souza Dantas (pena de açoites), em 6.8.1886.

Discurso de Ribeiro luz (pena de açoites), 6-8-1886.

Discurso de José Bonifácio, em 11-8-1886, em debate com Ribeiro da luz.

Discurso do Senador Souza Dantas, em 16.08.1886 (pena de açoites)

Discurso do Senador Correia em 16.08.1886 (pena de açoites)

primeira discussão do plS “g”, de 1886 (açoites)

Discurso do Senador Ribeiro da luz (açoites) em 20.08.1886

Discurso do senador Souza Dantas (açoites) em 20.08.1886

Discurso de José Bonifácio (balanço do processo abolicionista, em 17.9.1886)

Discurso de José Bonifácio (em debate com Ribeiro da luz) sobre a reforma servil (8.10.1886)

projeto nº 87-A/1886, do Senado (4.10.1886), revogando o art. 60 do Código Criminal e a lei nº 4, de 10.06.1835.

projeto nº 89 do Deputado Affonso Celso Junior, sobre dedução anual do valor do escravo (12.10.1886)

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1887

projeto nº 1, do Deputado Affonso Celso Junior, libertando todos os escravos desde que prestassem serviço por mais dois anos a seus ex-senhores.

projeto nº 5, do Deputado Domingos Jaguaribe, libertando os escravos matriculados até 28-9-1888, com obrigação de trabalharem mais cinco anos (23.5.1887)

projeto “O”, do Senador Floriano de godoy, extinguindo a escravidão (24.9.1887)

projeto “p”, do Senador Escragnolle Taunay, extinguindo a escravidão em 1889 (24.9.1887)

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1888

Fala da princesa Isabel na abertura da legislatura, em 3.5.1888.

Discurso de Joaquim nabuco, em 7.5.1888, pela Abolição da Escravatura.

Original da proposta de Rodrigo Augusto da Silva, ministro da Agricultura.

Cronologia da tramitação legislativa da proposta de Rodrigo Augusto da Silva até transformar-se na lei n° 3.353 de 13.5.1888.

Discurso de Joaquim nabuco entusiasmado com a proposta.

Discurso do Deputado Duarte de Azevedo.

Discurso do Deputado Andrade Figueira.

Discurso do Deputado Joaquim nabuco.

Discurso do Barão de Cotegipe.

Discurso do Senador paulino de Souza.

Discurso do Senador Dantas.

Discurso do Senador Correia.

Discurso do Senador Affonso Celso.

lei n°3.353 de 13.5.1 888 “lei áurea” .

projeto n° 10, de 24.5.1888, do Deputado A. Coelho Rodrigues (indenização aos ex-senhores de escravos).

projeto “C”, de 1888, do Barão de Cotegipe autorizando “o governo emitir apólices da divida pública para indenização dos ex-proprieta-rios de escravos” (19.6.1888)

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No BrASIL No ExTErIor

1890

ADEnDO - Decisão de 14.12. 1890, assinada por Rui Barbosa, ministro da Fazenda, mandando “queimar todos os papéis, livros de matrícula e documentos relativos à escravidão existentes nas repartições do minis-tério da Fazenda”.

moção do Congresso (10.12.1890), congratulando-se com o governo provisório por haver mandado eliminar dos arquivos nacionais os últimos vestígios da escravidão no Brasil.

Circular n° 29, do ministério da Fazenda sobre a incineração dos livros de lançamento e as declarações feitas para a cobrança da taxa de escravos.

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Dez Dias de Maio

DIA 3 – QUINTA-FEIrA

No dia 3 de maio de 1888, a princesa Isabel, que ocupava o trono como Regente, enquanto seu pai estava em viagem ao Exterior, leu o Discurso da Coroa, na abertura da 20ª Legislatura da Assembleia Geral.

Estavam presentes quase todos os parlamentares, os Deputados eleitos com mandatos temporários e 73 Senadores escolhidos pelo Imperador, com cargos vitalícios.

É surpreendente como, tanto tempo depois, a Fala do Trono feita pela Prin-cesa aborda problemas parecidos com os de hoje: os acordos e desacordos internacionais, a insegurança, o funcionamento imperfeito da justiça, a crise na saúde, a necessidade de saneamento e de reforma na educação, especialmente no ensino técnico. Mas naquela época, a novidade foi a referência à escravidão.

Pela primeira vez, a Coroa Imperial brasileira manifestou-se oficial-mente sobre a necessidade de extinguir a escravidão no Brasil. Foi uma referência curta, mas fez imensa diferença. Finalmente, o Brasil assumia oficialmente a necessidade de enfrentar o problema do então chamado

“elemento servil”. Foram apenas três parágrafos no final do longo discurso, mas que finalmente propunha o que parecia óbvio: eliminar a vergonha do trabalho escravo. Foi o passo decisivo para completar uma luta e reorientar o futuro do País.

Ao final do seu discurso, as palavras da Princesa foram:A extinção do elemento servil, pelo influxo do sentimento nacional e das libe-ralidades particulares, em honra do Brasil, adiantou-se pacificamente de tal

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modo, que é hoje aspiração aclamada por todas as classes, com admiraveis exemplos de abnegação da parte dos proprietarios.Quando o proprio interesse privado vem espontaneamente collaborar para que o Brazil se desfaça da infeliz herança, que as necessidades da lavoura haviam mantido. Confio que não hesitareis em apagar do direito patrio a unica excepção que nelle figura em antagonismo com o espirito christão e liberal das nossas instituições.Mediante providências que acautelem a ordem na transformação do trabalho, apressem pela immigração o povoamento do país, facilitem as comunicações, utilizem as terras devolutas, desenvolvam o crédito agrícola e aviventem a industria nacional, pode-se asseverar que a produção sempre crescente tomará forte impulso e nos habilitará a chegar mais rapidamente aos nossos auspi-ciosos destinos.

Depois de 66 anos de Império, 48 anos no reinado de seu pai, a Princesa assumia que a Abolição (palavra que evitou usar durante o discurso) era uma aspiração quase generalizada no País. Não disse que éramos o último país do Ocidente a tomar esta decisão, décadas depois dos demais países latino-americanos, a exceção de Cuba. A fala era o resultado de um longo processo de quase 400 anos, desde que o primeiro grupo de escravos chegou ao Brasil, vindos da África. Durante esse período, a escravidão era normal, legal, mesmo sem uma lei que a autorizasse. Os poucos que lutaram pela libertação dos escravos, de Zumbi a Joaquim Nabuco, foram perseguidos, ridicularizados, considerados loucos.

Com aquele discurso, a vida parlamentar brasileira entrava, por dez dias, no mais intenso período de debate político reformista de nossa história. Desde então, o Congresso brasileiro teve grandes momentos, debates intensos, mas ou ficaram limitados a mudanças políticas, como nas Diretas, nos anos 1980, ou não foram consequentes, como na frustrada luta pelas Reformas de Base nos anos 60. Naqueles dez dias de maio de 1888, o Parlamento debateu e fez uma revolução no Brasil: a Abolição da Escravatura, mesmo que uma abolição até hoje incompleta.

As atas da Assembleia Geral Legislativa descrevem a solenidade:

A 1 hora da tarde, annunciando-se a chegada de Sua Alteza e Princesa Imperial Regente do império e de Seu Augusto Esposo Sua Alteza Real o Sr. Conde D’ Eu, foi a deputação, a convite do Sr. Presidente, recebl-os á entrada do Paço do Senado; e, entrando Suas Altezas Imperial e Real no salão, foram pelos Srs. Presidente e secretarios recebidos fora do estrado do throno.

Logo que Suas Altezas Imperial e Real tomaram assento nas cadeiras de espaldar collocadas abaixo do throno, e que assentaram-se os Srs. Deputados e senadores, Sua Alteza a Princeza Imperial Regente do Império leu a seguinte menssagem:*

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Senador Cristovam Buarque

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Augustos e Digníssimos Srs. Representantes da Nação. A vossa reunião, que sempre desperta fundadas esperanças, causa-Me grande jubilo pelo muito que

Confio em vossas luzes e patriotismo.

Sua Magestade o Imperador, Meu muito Amado Pai, obteve na Europa o proveito que os medicos prognosticaram. Tudo indica que brevemente Elle regressará a Patria para lhe consagrar de novo incansavel dedicação.

A Sua Magestade a Imperatriz, Minha Prezada Mãi, Deus concedeu a graça do conservar a saude afim de que pudesse continuar durante a viagem nos cuidados de desvelada esposa.

Satisfaz-Me a certeza de ser compartido por todos os Brazileiros o prazer com que vos Faço esta communicação.

Persistem as amigaveis relações do Imperio com as potencias estrangeiras.

A commisão mixta nomeada em virtude do tratado de 25 de Setembro de 1885, entre o Imperio e a Republica Argentina, adiantou quanto possivel os respectivos trabalhos e em breve os terminará.

Está concluida a missão do arbitro nomeado por parte do Brazil para completar as commissões mixtas internacionais reunidas em Santiago. Foram resolvidas por transacção as reclamações que as commissões não julgaram.

Celebrou-se nesta Côrte com os Plenipotenciarios das Republicas Argentinas e Oriental do Uruguay uma convenção sanitária que ainda não foi ratificada

A ordem e a tranquilidade publica não soffreram alteração. Alguns tumultos locaes, de origem restricta e fortuita, foram immediatamente apaziguados.

Espero de vossa sabedoria providencias que melhorem a condição dos juizes e tornem mais efectiva a sua responsabilidade. A organização do Ministerio Publico é de indeclinavel urgencia, como tambem a reforma do processo e julgamento dos delictos sujeitos a penas leves.

O governo renovará esforços para dotar a nossa Patria com o Codigo Civil fundado nas solidas bases da justiça e equidade.

Até hoje o Brasil discute a elaboração de um código civil. Se descesse hoje no Parlamento, a Princesa pensaria que seu discurso não fora escutado pelos políticos de 31 sucessivas legislaturas de quatro anos cada.

A força policial da capital do Imperio carece de organização mais adaptada ás funcções que lhe são proprias.

Muito importa á segurança publica aperfeiçoar a nossa legislação repressiva da ociosidade, no intuito de promover pelo trabalho a educação moral.

Quando observam o fato de que hoje morrem mais de 50.000 brasileiros por ano vítimas de violência, surge a dúvida se a Princesa é contemporânea ou se as lideranças nacionais continuam omissas até hoje neste assunto que ela considerou naquele dia de maio de 1888.

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O estado sanitário do paiz em geral é bom, e ha vastas regiões que offerecem permanentes condicções de salubridade.

Medidas adequadas impediram ou attenuaram certas enfermidades que perio-dicamente apparecem em alguns pontos do littoral, e nos preservaram do cholera-morbus que invadira Estados vizinhos.

Convém que attendais ainda ao saneamento da capital do Imperio, para o qual existem planos e estudos sujeitos ao vosso esclarecido exame.

Até hoje, a população brasileira tem um acesso restrito à água potável e esgoto, em suas casas.

A administração provincial e a municipal exigem reformas que alarguem a respectiva esphera de acção.

O aumento do federalismo é hoje ainda mais crítico, pela política fiscal certamente caótica, pela desigualdade financeira na renda e falta de poder dos Estados e Municípios.

Reorganizar o ensino nos seus diversos graus e ramos, diffundindo os conhe-cimentos mais uteis á vida pratica e preparando com estudos serios e bem dirigidos os aspirantes a carreiras que demandam superior cultura intelectual, é assumpto que muito se recommenda á vossa patriotica solicitude.

Apesar de estarmos melhor hoje do que há 125 anos, as preocupações da Princesa ainda são igualmente válidas. Apesar de substancial melhora no quadro da educação desde 1888, aumentou a brecha educacional (diferença entre o grau de necessidade e qualidade da educação ofertada). Em 1889, 65% da população era de analfabetos, mas eles conseguiam emprego, agora é de 10% (13 milhões), mas o analfabeto está totalmente excluído.

As rendas publicas cresceram no ultimo exercicio, e deram sobejamente para a despeza ordinaria. O que se despendeu de mais, por operações de credito, representa melhoramentos que, si não promettem immediata remuneração, asseguram bons effeitos economicos.

A mesma velha preocupação com o desequilíbrio nas contas públicas.

A nossa organização militar requer algumas reformas, entre as quaes avultam os codigos penal e do processo, cujos projectos dependem de vossa definitiva deliberação.

Também o código penal continua com discussão de forma cada vez mais urgente e dramática por causa da violência que então não existia nos níveis atuais.

A extinção do elemento servil, pelo influxo do sentimento nacional e das libe-ralidades particulares, em honra do Brazil, adiantou-se pacificamente de tal

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modo, que é hoje aspiração acclamada por todas as classes, com admiraveis exemplos de abnegação da parte dos proprietarios.

A Princesa constata que o Brasil só acaba com a escravidão quando este sistema já praticamente abolido: “adiantou-se pacificamente de tal modo, que é hoje aspiração aclamada por todas as classes”. E lembra que mesmo os proprietários já estavam emacipando seus escravos, “com admiráveis exemplos da abnegação da parte dos proprietários”, mas também porque o trabalho livre havia ficado mais eficiente.

A ESCrAvIDão Não FoI ABoLIDA, ELA SE ESgoToU.

O Brasil caminha para fazer o mesmo com o analfabetismo: esperar a morte dos analfabetos, até sua erradicação graças à lenta alfabetização de seus netos. Como foi feito com a Lei do Ventre Livre.

Quando o proprio interesse privado vem espontaneamente collaborar para que o Brazil se desfaça da infeliz herança, que as necessidades da lavoura haviam mantido. Confio que não hesitareis em apagar do direito patrio a unica excepção que nelle figura em antagonismo com o espirito christão e liberal das nossas instituições.

“Única exceção que nele figura em antagonismo com o espírito cristão e liberado das nossas instituições”. Na sua visão, o abandono dos ex-escravos, a desigualdade entre brancos e negros, isso não feria o espírito cristão.

Até hoje não se considera fugir ao espírito cristão o tratamento desigual entre os “homens livres”, especialmente as crianças. Não se considera ferir ao “espírito cristão” uma trabalhadora doméstica que prepara os filhos da patroa para ir a uma boa escola, depois à natação, ao inglês, ao balet, sabendo que os seus filhos estão em uma escola que não oferece aula, não promove aprendizagem, nem seu desenvolvimento intelectual. Na verdade sob a ilusão da matrícula condena seu filho à exclusão em comparação aos filhos dos outros que ela cuida. O excelente livro The Help de Brunson Green mostra a realidade das empregadas dométicas negras na década de 1960 no Sul dos Estados Unidos da América. Poucas coisas são mais dramáticas da realidade brasileira atual do que o serviço de empregadas domésticas cuidando dos filhos de seus patrões, vestindo-os com belos uniformes, mochilas com livros e computador para irem à escola de qualidade, enquanto seus próprios filhos, em casa sem escola ou

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com escola sem qualidade. É fácil saber o que passaria na cabeça destas trabalhadoras se tivessem plena consciência da injustiça que sofrem. Se não vissem a situação pelo lado da vantagem de ter o emprego, não percebendo que comemoram a própria exploração por causa da lógica do sistema em que vivem.

Mediante providencias que acautelem a ordem na transformação do trabalho, apressem pela immigração o povoamento do paiz, facilitem as comunica-ções, utilizem as terras devolutas, desenvolvam o credito agricola e aviventem a industria nacional, pode-se asseverar que a producção sempre crescente tomará forte impulso e nos habilitará a chegar mais rapidamente aos nossos auspiciosos destinos.

Apesar de sua referência à boa vontade da parte dos proprietários, o seu reinado durou apenas mais um ano e meio e uma das causas de sua derrota foi certamente sua ousadia da Abolição. Mesmo que o trabalho servil já estivesse obsoleto, uma vez que o trabalho livre era mais barato

- o custo em salário do trabalhador livre já era inferior ao custo de um escravo -, os proprietários viam o seu plantel de escravos como capital. A Abolição foi uma desapropriação de capital. Mesmo os proprietários que defendiam a emancipação para substituir os escravos pelo trabalho livre, porque este era mais barato, queriam uma indenização do governo para alforriar seus escravos. A princesa não se submeteu às fortíssimas pressões neste sentido. Mostrou-se mais comprometida socialmente do que as classes políticas de hoje que não aceitam um imposto sobre as grandes fortunas, nem fazer a reforma agrária.

Vale lembrar que o Imperador D. Pedro II optara por não ter escravos, o que corresponderia hoje a ter seus filhos na escola pública. Mas, no século XXI, os dirigentes políticos, responsáveis pela gestão dos serviços públicos, protegem-se da má qualidade usando os caros serviços públicos. As classes abastadas recebem fortes subsídios do tesouro, sob a forma de isenção fiscal, para proteger-se do abandono da escola pública do povo financiando a escola privada da elite.

Augustos e Digníssimos Senhores Representantes da Nação.

Muito elevada é a missão que as circumstancias actuaes vos assignalam. Tenho fé que correspondereis ao que o Brazil espera de vós.

Está aberta a sessão.

Izabel, Princeza Imperial Regente.

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Terminado este acto, retiraram-se Suas Altezas Imperial e Real com o mesmo ceremonial com que foram recebidos e immediatamente o Sr. Presidente levantou a sessão.

Três parágrafos do discurso indicavam de que aquela Legislatura teria o privilégio de realizar o maior feito político de impacto social do Brasil, até hoje. De lá para cá tivemos a Consolidação das Leis do Trabalho, a Lei do Salário Mínimo, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, sete Constitui-ções, o Voto Universal, inclusive do analfabeto, recentemente a Lei do Piso Nacional do Salário dos Professores e a PEC das Domést icas. Cada lei trouxe uma evolução social, mas nenhuma trouxe uma ruptura, como foi o caso da Lei Áurea. Mesmo assim, pela análise dos três parágrafos, nota-se o cuidado da Princesa com a reação dos latifundiários donos de escravos.

Quando faz uma lei libertadora a favor da parte excluída, o poder no Brasil se dirige aos ricos e incluídos. A Princesa diz que os donos dos escravos estão espontaneamente colaborando para o fim da escravidão. O que, em parte, era verdade, porque a escravidão já estava exaurida, era questão de tempo: a Proibição do Tráfico, a Lei do Ventre Livre, a Libertação dos Sexagenários, o descontrole sobre os escravos, o fato de que o Exército deixou de perseguir e passou a proteger escravos fugitivos, os movimentos independentes de alforria, faziam o “elemento servil” agonizar como sistema social e econômico.

Vale a pena lembrar também a insensibilidade da elite, quando a Princesa diz que a escravidão é a única exceção brasileira ao espírito cristão. Como se a pobreza, o analfabetismo e a desigualdade não o ferissem também.

Não é por acaso que, além da Abolição, nada mais mudou substancialmente na busca da emancipação do povo pobre do Brasil. Em 1888, havia 800 mil escravos no Brasil, em 2014, precisa-se do programa Bolsa Família para atender 53 milhões de pessoas oferecendo renda básica de R$ 77,00per capita por mês, chegando com demais benefícios à média de R$167,00. Em vez de emancipar, a Lei Áurea apenas tornou a escravidão ilegal, mas não a eliminou porque sem educação de base com qualidade é possível reduzir a fome, mas não emancipar o beneficiário. Nestes anos, dezenas de milhões de brasileiros viveram e morreram em condições materiais próximas às dos escravos de antes de 13 de maio de 1888.

Depois da fala da Princesa, o governo de João Alfredo trabalhou na elabo-ração do texto do projeto de lei. Uma minuta manuscrita, que afirmam

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ter sido do punho de Joaquim Nabuco, e está no arquivo da fundação que leva seu nome, em Recife, foi a base do texto enviado ao Parlamento pela Câmara dos Deputados, no dia 7 de maio.

Era o projeto de uma lei curta, talvez a menor em toda a história legal do Brasil, com apenas um artigo de oito palavras além do título e do

“Revogam-se as disposições em contrário”. Possivelmente a menor e a mais importante socialmente: a única lei realmente libertária.

Apesar do longo processo anterior, de quase 400 anos e da surpreen-dente simplicidade da lei, sua votação não foi um processo simples, nem unanimemente favorável, embora tenha levado apenas dez dias, da Fala do Trono à sanção da lei, e somente cinco, contando da sua apresentação na Assembleia.

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DIA 7 – SEgUNDA-FEIrA

Quatro dias depois da Fala do Trono, incluindo sábado e domingo, Joaquim Nabuco discursou anunciando a chegada próxima do projeto de lei. Na sua primeira frase, ele se refere a um Deputado que fizera um discurso contrário à aprovação da Lei Áurea:

Sr. Presidente, ao contrario do meu illustre amigo, deputado pelo Rio Grande do Sul, cuja intenção ficou mais clara do que elle nos disse e cujas ironias cahiram sobre o ministerio e a Corôa, eu levanto-me para offerecer ao honrado presidente do conselho, para a realização do seu grande programma, o apoio desinteressado, si não de toda, de uma parte daquela fracção do partido que foi sempre antes de tudo abolicionista. (Muito bem!)

Trata-se de uma referência à tentativa, que ele previa, de procrastinar a votação da lei, provocando um debate regimental que adiaria, porque já não havia como impedir a aprovação do projeto de lei. Essa era a estra-tégia dos escravagistas. Eles já não podiam ser abertamente contra, mas diziam que o País não suportaria o fim do trabalho escravo. Era preciso apoiar o fim da escravidão, mas “não já”, “a economia e sociedade preci-savam de tempo”.

Quase 40 anos depois da proibição do tráfico, quase 30 anos depois da libertação dos filhos dos escravos, e alguns anos depois da emancipação dos sexagenários, a escravidão iria acabar naturalmente pela biologia, matando os que ainda não eram beneficiados pelas leis“generosas”, mas não abolicionistas. Mesmo assim, os escravagistas queriam ganhar tempo, motivados pela expectativa de compra dos escravos feita pelo governo: a abolição indenizada. Numa situação muito parecida com a disputa, no final do século XX, pela tardia reforma agrária, queriam transformar a nobreza da Abolição no negócio da desapropriação.

Não, Sr. Presidente, não é este o momento de se fazer ouvir a voz dos partidos. Nós nos achamos á beira da catadupa dos destinos nacionaes e junto della é tão impossivel ouvir a voz dos partidos, como seria impossivel perceber o zumbir dos insectos atordoados que atravessam as quedas do Niagara. (Apoiados. Muito bem!)

A ideia de não se orientar pela voz dos partidos é muito atual. Joaquim Nabuco percebeu e explicitou que nenhum dos três partidos era abolicio-nista e em todos havia abolicionistas. O mesmo acontece hoje sobre qual-quer dos grandes problemas nacionais. Nenhum partido tem identidade com um dos problemas e em cada um há defensores das boas propostas em discussão.

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É este incomparavelmente o maior momento de nossa patria, a geração actual ainda não sentiu cousa semelhante e precisamos lembrar-nos do que nossos paes que viram o 7 de Abril21 ouviram aos nossos avós que viram a Independencia, para imaginar que nesta terra brazileira houve de geração em geração uma cadeia de emoções perecidas com esta. (Apoiados. Muito bem!).

Dentro dos limites de nossa vida nacional é feito o desconto da marcha de um século todo, 1888 é um maior acontecimento para o Brazil do que 1780 foi para a França. (Apoiados. Muito bem, bravos.) É litteralmente uma nova patria que começa e assim como á mudança de uma fórma de governo cahem automati-camente no vacuo ás instituições que a sustentavam ou viviam della, é o caso de perguntar, Sr. presidente, si os nossos velhos partidos, manchados com o sangue de uma raça, responsáveis pelos horrores de uma legislação barbara, barbaramente executada, não deviam ser na hora da libertação nacional, como o bode emissario nas festas de Israel, expulsos para o deserto, carregados com as faltas e as maldições da nação purificada.

A nação, neste momento, não faz distincção de partidos, ella está toda entregue á emoção do ficar livre, ella confunde no mesmo sentimento Dantas e João Alfredo, José Bonifacio morto e Antônio Prado vivo; ella não pergunta si quem vai fazer a abolição é liberal ou é conservador, como á repercussão estrondosa das victorias contra o Paraguay, para deixar pulsar os seus corações de brazileiros, os conservadores não queriam saber si Osorio, o vencedor de 24 de maio, era liberal, nem os liberais indagavam si quem tinha tomado Assumpção, Caxias, era conservador. (Apoiados e bravos nas galerias.)

Este pensamento, velho de mais de cem anos, é perfeitamente atual: nossos partidos continuam manchados com o sangue do povo, responsáveis pelos horrores da ausência de legislações civilizadoras.

Embora fosse um filiado do Partido Liberal, Nabuco era, sobretudo, um militante da causa abolicionista. Por isso, defendeu a lei, mesmo o projeto lei tendo chegado ao Parlamento pelas mãos de um governo do Partido Conser-vador. Essa foi uma das provas de sua grandeza de estadista, mostrando não ser um político que pensava na próxima eleição, mas sim na causa que defendia. Hoje, vemos políticos da oposição que defendem uma causa e mudam de lado quando o governo passa a defendê-la. E, ainda mais comum, partidos que ao chegarem ao poder agem cometendo todos os atos que antes criticavam quando na oposição. Porque não têm causa, apenas reivindicações comprometidas com o voto da próxima eleição. Os liberais eram, em sua maioria, favoráveis à Abolição, mas o processo polí-tico e o destino histórico fizeram com que fosse o gabinete presidido pelo conservador João Alfredo que apresentasse a Lei Áurea, e Nabuco apoiou.

Quando a abolição estiver feita, Sr. Presidente, então sim, podem recomeçar essas nossas lutas partidarias que se travam de facto em torno das comarcas

21 7 de Abril de 1831, o dia em que D. Pedro I abdicou do trono.

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para juizes de direito e das patentes de guarda nacional (riso), parecendo que se travam em torno de ficções constitucionaes; neste momento, porém, o terreno é outro e muito diverso, porque do que se trata é nada menos do que de fechar a cova americana, de que falla Michelet: onde, por amor do ouro, foram atirados dous mundos, negro por sobre o índio. (Apoiados. Muito bem!)

Seria bom se os políticos ainda colocassem de lado seus interesses menores e imediatos, e buscassem um grande acordo para definir um programa

– como fizeram com a Lei Áurea – para enfrentar a exclusão social, para fazer uma Segunda Abolição: um pacto que garantisse escola igual para todos, com o filho do empregado na mesma escola que o filho do patrão. Acabando com a escravidão do século XXI: a desigualdade na educação que escraviza os pobres, e a falta de qualidade na educação que escraviza o País inteiro, no cenário global.

Na Inglaterra, quase cem anos antes, William Wilberforce defendeu e convenceu a opinião pública ao criticar a escravidão como uma indecência contra a moral cristã. Hoje a indecência é oferecer escola com qualidade desigual: é contra a moral cristã não convidar todas as crianças para a mesma mesa da educação.

Depois da abolição, podem voltar os velhos partidos com os seus chefes aos quaes, si eu tivesse que pedir alguma cousa, não pediria, por certo, Sr. Presidente, a coherencia rigorosa que o meu illustre amigo, no fim do seu discurso, exigiu como primeira condição para um politico impôr-se ao respeito da opinião; eu lhes pediria exactamente o contrario, isto é, uma incoherencia tão grande que parecessem outros e a nação não os pudesse reconhecer pelos mesmos que fizeram o nosso povo perder a fé no governo parlamentar.

Esta parte é de fina ironia. Pede a incoerência daqueles que sempre estiveram ao lado da manutenção da escravidão. Mostra que a coerência impatriótica, antissocial, é um pecado maior do que a incoerência dos que mudam de lado para se colocarem a favor da Pátria e do povo.

Sim, Sr. Presidente, si é o Partido Conservador que vai declarar abolida a escra-vidão no Brazil, eu digo-o sem recriminação, a culpa dessa substituição de papeis ha de recahir toda sobre essa dissidencia liberal de 1884, que impediu o ministerio Dantas de vencer as eleições daquelle anno, de arrastar consigo o eleitorado todo do paiz, e de realizar uma reforma muito mais larga do que seu projecto. (Apoiados.)

Totalmente válido para hoje: os progressistas, inclusive de esquerda, não foram capazes, com os últimos governos democráticos, de fazer as trans-formações necessárias a um abolicionismo moderno. No lugar de escola para os filhos, repartiram migalhas de pequenas distribuições de renda,

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por bolsas, aos pais. Fizeram uma lei que oferece direitos trabalhistas às empregadas domésticas, mas mantiveram os filhos delas em escolas totalmente diferenciadas daquelas que recebem os filhos de seus patrões dos quais elas cuidam.

Da mesma forma como os condenados ao trabalho nos “lixões” come-moram os luxos dos lixos dos ricos, sem os quais eles não sobreviveriam.

Houve, porém, sempre no Partido Liberal uma minoria de homens timidos que fizeram com que os grandes nomes de nossa historia, na questão que mais interessa ao Partido Liberal, a da abolição, isto é, da formação do povo brazileiro, fossem conservadores em vez de liberaes: foram elles que impediram Antonio Carlos de fazer o que fez Eusébio, que impediram Zacharias de fazer o que fez Rio Branco e que impediram Dantas de fazer o que vai fazer João Alfredo, que nunca tiveram fé nem no povo, nem nas idéas liberais. (Muitos apoiados). Mas o escravo já tem sido por demais explorado ...

Aqui ele faz o mea culpa dos liberais. O governo liberal de Dantas, que havia durado 11 meses, foi seguido de mais um gabinete liberal, de José Antonio Saraiva, que durou só três meses. A seguir, os conservadores retornaram ao poder, com o Barão de Cotegipe, que governou por três anos, até que viesse o gabinete de João Alfredo, cujo destino e lucidez reservaram-lhe a chance de apresentar e defender a Abolição. Se a Abolição chegava pelas mãos dos conservadores, é porque os liberais não tinham sabido aproveitar o momento deles, quando até três anos antes tinham estado no governo. Isto lembra a história atual do Brasil: como os governos liderados por partidos e pessoas progressistas, entre 1994 e 2014, nenhum deu os saltos que o País precisa, limitando-se apenas às minúsculas transferências de renda aos pobres, sem medidas concretas para erradicar a pobreza. Da mesma maneira que ao longo do século XIX, lentamente em doses homeopáticas abrandava-se, sem abolir, o regime servil da escravidão.

Dá para imaginar, daqui a alguns anos, os educacionistas apoiando leis que façam a revolução educacional num governo conservador, lembrando que, se isso não ocorreu antes, foi porque políticos progressistas não quiseram fazer a revolução de que o Brasil precisa, e com a qual eles haviam se comprometido. Muito mais culpa há agora, quando o regime é presidencialista e tem governos liderados por políticos com trajetórias muito mais à esquerda do que os liberais do século XIX.

Eu sei, Sr. Presidente, que os liberaes estão soffrendo em todas as provincias do jugo conservador, mas estão soffrendo em suas garantias constitucionaes apenas, ao passo que os escravos estão soffrendo em suas pessoas e no seu

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corpo. Antes de pensar nos nossos correligionarios, temos que pensar em nossas victimas, e os escravos o são, victimas da politica estreita até hoje de ambos os partidos... É exactamente porque esquecemos o que estamos soffrendo para salval-os do captiveiro em que ainda estão por nossa culpa, mostrando assim sermos abolicionistas antes de sermos partidarios, que ha merito no apoio que prestamos ao ministerio conservador. Nós temos muito que nos fazer perdoar pela raça negra e eu acredito estar servindo os interesses do Partido Liberal, que não é outra cousa sinão o povo, o qual não é outra cousa em vastissima extensão sinão a raça negra, tomando a attitude que tomo ao lado do gabinete no baptismo da liberdade que elle vai agora receber...

Nabuco põe a Causa da Abolição acima do partido. Uma lição para os polí-ticos de hoje– considerava-se servindo ao seu Partido Liberal ao defender o projeto de lei oriundo do governo do Partido Conservador, porque era sua causa, a causa dos escravos que estava em discussão.

Discutir, Sr. Presidente, si é Partido Liberal ou o Partido Conservador que tem direito de fazer esta reforma, é cahir sob o rigor de uma etiqueta constitucional muito peior do que essa etiqueta monarchica, que fazia um rei de Hespanha morrer suffocado por não se achar perto o camarista que tinha direito de tocar no brazeiro. (Apoiados. Riso) Por ventura, os escravos são liberais? (Riso. Apoiados) Fazem elles questão de serem salvos por este ou por aquelle partido? Não, Sr. Presidente, o que elles querem é ver-se livres do captiveiro, seja quem for o seu libertador, e eu colloco-me no mesmo ponto de vista que elles e penso que essa é a unica verdadeira theoria constitucional, porque é a única de accôrdo com a urgência da salvação que elles esperam de nós...

Eu comparei em Pernambuco esta lei á uma capella dos Jesuitas perto de Roma, onde se vêm nas paredes, como trophéus da religião, os punhaes e as pistolas entregues pelos bandidos arrependidos, e disse que essa lei era a verdadeira igreja nacional onde o Partido Conservador vinha depôr as armas com que combatera a abolição e os escravos e na qual elle tinha o mesmo direito de ajoelhar-se e rezar que os mais antigos abolicionistas... É que, Sr. Presidente, o exemplo dado hoje pelo Partido Conservador corresponde á noção do único verdadeiro conservatismo. Ainda recentemente um estadista inglez, em cujo procedimento eu procuro muitas vezes inspirar-me, o Sr. John Morley, querendo exemplificar o que elle entendia pelo verdadeiro espirito conservador em politica, tomava o exemplo de Lincoln. Ao subir á presidencia em 1860, Lincoln queria somente que a escravidão não se estendesse aos novos territorios da União, que se respeitasse o direito dos Estados de tratar exclusivamente da questão, mas que, á medida que os acontecimentos se foram desdobrando, resolveu dar o golpe final e decretou a abolição no dia em que as victorias de Grant puderam da força de lei em todo o territorio americano á proclamação do governo de Washington.

Esse é o conservatismo nacional e politico, Sr. Presidente, por opposição ao conservatismo doutrinario, que até hoje tem perdido todas as instituições que se confiaram á sua obstinação e á sua cegueira e que ainda não resuscitou nenhuma com o seu despeito.

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Nabuco faz um discurso moral, grande, erudito, mas não se esquece do jogo da política no chão do Parlamento e investe contra a tentativa em marcha, para impedir a votação da lei. Mostra-se um estadista que conhece o regimento da Casa.

O meu illustre amigo, deputado pelo Rio Grande do Sul, fallou-nos da illegitimi-dade do actual gabinete. O que é que constitue tal illegimidade? Ter a Princeza Imperial demitido um ministerio que gozara até ao ultimo dia de sessão passada da confiança da Camara? Mas não o demitiu ella por factos supervenientes e inspirando-se com tal segurança no pensamento da illustre maioria que o novo gabinete veio encontrar o mais forte apoio nesta Camara? Ha muito tempo, Sr. Presidente, que eu abandonei o caminho das subtilezas constitucionaes que se adaptam a todas as situações possiveis. Pelo estado do nosso povo e pela extensão do nosso territorio, nós teremos por muito tempo, sob a monarchia ou sob a republica, que viver sob uma dictadura de facto. Ha de haver sempre uma vontade directora, seja do monarcha, seja do presidente. Esta é a verdade, tudo mais são puras ficções sem nenhuma realidade a que correspondam no paiz.

Pois bem, todo o meu esforço em politica ha bastantes annos tem consistido em que essa dictadura de facto se inspire nas necessidades do nosso povo até hoje privado de tecto, de educação e de garantias e que ella comprehenda que a verdadeira nação brazileira é cousa muito diversa das classes que se fazem representar e que tomam interesse na vida politica do paiz. E para as necessi-dades moraes e materiaes da vastissima camada inferior que formam o nosso povo, e das quaes a abolição é a primeira, sem duvida alguma, que eu tenho trabalhado para voltar as vistas da dictadura existente.

Joaquim Nabuco percebeu a resistência que encontraria entre alguns de seus pares, e mostrou capacidade de antecipar-se aos problemas e atrair apoio, usando inclusive brechas do Regimento. Logo no terceiro parágrafo do seu discurso, ele busca construir a unidade, mesmo sabendo das dificuldades.

É possível imaginar o clima que prevalecia no Parlamento naquele dia: euforia nas galerias, constrangimento de alguns dos parlamentares, entusiasmo dos abolicionistas. Um Parlamento com causa. Diferente do clima apático do Congresso vazio de causas e bandeiras do início (até quando?) do século XXI.

Agora, porém, o que se vê, Sr. Presidente é essa dictadura de facto assumir o caracter de governo nacional no mais largo sentido da palavra, promovendo a abolição, e é por isto que eu entendo que, longe de merecer as censuras, as ironias e até os ultrages que estão sendo accumulados pelo despeito partidario sobre a sua cabeça, a Princeza Imperial merece a maxima gratidão do nosso povo. Nos mezes em que o Imperador lhe confiou o imperio, ella achou tempo de fazer delle uma patria, um paiz livre, com uma lagrima do seu coração de mãi ella cimentou em um dia essa união do throno com o povo que, com toda a sua experiencia dos homens e das cousas, seu pae não pôde consolidar inteiramente

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em 47 annos de reinado. (Apoiados.) Não ha nada mais bello, Sr. Presidente. A simples intuição de uma brazileira, que não é mais do que qualquer de nossas irmãs, com a mesma singeleza, a mesma honestidade e o mesmo carinho, escreve a mais bella pagina de nossa historia e illumina o reinado inteiro do seu pae. 1887 é todo delle, mas 1888 é todo della.

Ha neste momento uma manhã mais clara em torno dos berços, uma tarde mais serena em torno dos tumulos, uma atmosphera mais pura no interior do lar... Os navios levarão amanhã por todos os mares a bandeira lavada da grande nodoa que a manchava, os nossos compatriotas nos pontos mais longiquos da terra onde se achem sentirão que é um titulo novo de orgulho e de honra o nome de Brazileiro... A quem se deve essa mutação tão rapida si não á Princeza Imperial? Os grandes pensamentos vêm do coração, ao dito de Vauvenargues, Sr. Presi-dente, pode-se accrescentar – e tambem os grandes reinados, como esta curta regência que em tão pouco tempo deu ao sentimento de partida outra douçura e á palavra humanidade outro sentido... (Apoiados. Muito bem!)

O reconhecimento pelo gesto da Princesa não era somente o sentimento de um monarquista, era a constatação do papel decisivo que ela teve ao apressar ainda que por poucos anos a decisão de abolir a escravatura no Brasil. A Abolição era inevitável, mas ela decidiu, contra muitos, inclusive ao seu redor, correr o risco de apresentar a lei emancipatória. Enfrentou resistências com rigor que não se vê hoje em dia. É certo que não vieram com a reforma agrária – terra para todos –, nem a reforma educacional – escola igual para todos –, nem o fim do preconceito racial. Mas finalmente, foi dado o passo decisivo para abolir a escravidão.

O nobre Presidente do Conselho mostrou comprehender que o que faz o homem de Estado é a imaginação que penetra o mais fundo do coração do povo e lhe adevinha o segredo de que, ás vezes, elle mesmo não tem consciencia. Leis, grande leis encommendam-se, Sr. Presidente, á sciencia dos juristas; a eloquencia acha-se ás vezes em inspirações alheias, mas essa chamma sagrada que a alma do povo accende de muito longe no coração do estadista, que põe o coração de Bismarck em contacto com o coração da Allemanha, o de um Gavour com o da Italia, o de um Gladstone com o da Inglaterra e hoje o de um João Alfredo com o do Brazil (applausos), inspiração do verdadeiro homem de estado, Sr. Presidente, não se encommenda, não se aprende, não se estuda, é uma revelação divina dessa luz que illumina o universo e que dirige a humanidade.

Eu, Sr. Presidente, tenho dez annos de vida politica e nesse tempo tenho visto como neste paiz crescem e consolidam-se as reputações solitarias dos homens que se inspiram somente nos principios... Eu vi com que reputação subiu o Sr. Dantas e com que reputação baixou ao tumulo José Bonifacio, eu vi com que reputação appareceu de repente o Sr. Antônio Prado... em todos os casos, eu tenho visto sempre a reputação politica dos homens que se inspiram em si mesmos e não egoisticamente, mas como instrumentos desinteressados de uma idéa, crescer cada vez mais forte, ao passo que os outros, para ficar de pé, precisam encostar-se uns aos outros, apoiar mutuamente as suas ambições contrarias,

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e ainda assim um sopro da opinião os abateria, si o meu verdadeiro ponto de apoio não fosse essa grande e mentirosa ficção do Senado Vitalicio. (Muito bem!)

É uma lição de humanismo, porque fala da sintonia da alma do estadista com a alma do seu povo. Faz um enfático reconhecimento ao seu adversário João Alfredo, chefe de governo naquele momento, que não só era de outro partido, mas também seu duro opositor em Pernambuco, contra o qual se batera especialmente nas eleições de 1884, quando, por manipulação e abuso de poder, tentaram impedir sua eleição. O Senado publicou um lúcido livro com os discursos de Joaquim Nabuco nessa campanha de 188422 . Uma campanha, pelo que se observa, em seus discursos, de uma só nota: a emancipação.

Sim, Sr. Presidente, ao pensar na sessão de hoje do Senado, eu lastimava que o tumulo da escravidão não fosse largo bastante para conter tudo o que devera desapparecer com ella. Quando morre o rei de certos paizes africanos, o seu cavallo, o seu cão, os seus escravos favoritos são sacrificados sobre o seu tumulo e os herdeiros obrigados a matar-se alli mesmo para que nada reste delle. Pois bem, eu quizera que no tumulo da escravidão se fizesse pelo menos o sacrificio da vitaliciedade do Senado para que elle não venha a herdar-lhe o espirito e, abrigado por traz de uma irresponsabilidade absoluta, tornar-se o foco da conspiração que deve resuscitar o escravismo politico.

Ele não fala só da escravidão. Critica a própria instituição do Senado e seus privilégios. Crítica que se mantém necessária contra privilégios sob outras formas, menos definitivas, mas, não menos eficientes para proteger os mandatos dos que estão no poder. Hoje a vitaliciedade está no uso do cargo público para obter recursos que financiem as custosas campanhas eleitorais; no uso dos programas eleitorais dando mais destaques aos que já têm mandato, não definindo limites ao número de mandatos, fazendo uma vitaliciedade possível embora não assegurada por lei.

É duro para o Partido Liberal, Sr. Presidente, eclypsar-se neste momento em que se passa uma verdadeira apotheose nacional. Mas, como eu disse, a culpa é sómente delle, a culpa é sómente nossa. Fomos nós que não acreditamos que a abolição immediata pudesse ser feita, embora hoje todos a achem facil. Não o acreditavamos ainda o anno passado! Faltou-nos fé na idéa e as idéas querem que se tenha fé nellas. Hoje, que a abolição immediata e incondicional é apre-sentada pelo governo, todos dizem que elle não podia ter apresentado douto projecto. É a mesma do ovo de Colombo! Porque não a fizemos nós? Porque não a propuzemos, sinão porque estavamos divididos no nosso proprio partido? Quando se olha para a situação passada, excepto o ministerio abolicionista, o que resta de tantos governos liberaes? O que resta do ministerio Lafayette, quando no paiz o movimento abolicionista já libertava provincias, além da

22 Nabuco, Joaquim. Campanha abolicionista no Recife: eleições de 1884. Brasília: Senado federal – Conselho Editorial, 2005.

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cedula de cinco tostões que elle pedia como captação ao Imperio para fazer a abolição? (Muito bem!)

Este trecho é de uma força excepcional:

É duro para o Partido Liberal, Sr. Presidente, eclipsar-se na aprovação de uma lei que ele defendia, mas que tinha sido apresentada por seus adversários do Partido Conservador. Embora a “culpa” fosse somente dele – do Partido Liberal, seu partido – que não acreditou, não teve lucidez para aproveitar o momento que a história lhe ofereceu meses antes, quando estava no poder. Os atuais partidos com tradição de esquerda estão no poder há 20 anos e repetem este mesmo erro, não dão os passos necessários à emancipação do povo pela educação de quali-dade aos filhos dele, povo. Por temor, por falta de convicção, por oportunismo, se acomodam, esquecem as promessas e compromissos, fecham os olhos ao drama da escravidão de hoje sob a forma da exclusão educacional.

Seria bom que os partidos progressistas de hoje se perguntassem por que não estão fazendo o que sempre defenderam, o que prometeram ao longo de décadas; e que os conservadores se inspirassem no Partido Conservador de 1888 e fizessem a reforma que os progressistas não querem fazer: o educacionismo.

Ainda na ultima sessão do parlamento, viu-se que a minoria liberal desta Câmara não julgava possível que se fizesse tão depressa a abolição imediata e incondi-cional. Eu acabei de dizer ao honrado deputado: não acredito aos meus olhos, não acredito aos meus ouvidos quando ouvi o nobre Presidente do Conselho pronunciar aquelas palavras – abolição imediata e incondicional.

Da mesma forma, muitos hoje duvidam ser possível adotar horário integral em todas as escolas, aumentar radicalmente o salário dos professores e as exigências sobre eles, e implantar a escola igual para todos.

Todos se transformam, Sr. Presidente, não foram somente os conservadores; transformou-se o meu nobre amigo, o Sr. Maciel, não pessoalmente, porque bem conheço seus antigos sentimentos abolicionistas, mas como homem de partido, porque ainda ha pouco elle por certo não julgava possivel uma solução tão rapida; como elles, transformou-se o nosso partido todo que, apezar de ter caminhado muito desde 1884, não tinha chegado ao ponto de inscrever no seu programa de governo a abolição immediata incondicional, e como o Partido Liberal e o Partido Liberal transformou-se a opinião toda, transformaram-se os proprios fazendeiros, cujas festas maiores são agora as libertações dos seus escravos: é a graça divina que, talvez pela intercessão do honrado Ministro da Justiça (riso), desceu sobre nós todos.

O que nós temos a fazer primeiro é sustentar o ministerio para que elle realize o mais breve possivel a obra da abolição e, depois de realizada essa obra, devemos levantar a grande bandeira da autonomia das provincias; sem a qual não teremos base possivel para nenhuma politica de futuro. (Apoiados)

Defende o governo mesmo sendo de outro partido, mas alerta que, aprovada a Abolição, lutará por novas eleições, para que, com seu partido no governo,

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outras reformas sejam feitas, como a reforma agrária, a política, a educa-cional. Tudo o que até hoje esperamos. Na perspectiva de hoje, entretanto, pode-se dizer que comete o erro de preferir a autonomia das províncias, no lugar de um centralismo que igualasse os direitos em todas as partes. Naquele tempo ele tinha razão. A desigualdade entre o resto do país e o norte e o nordeste era menor do que hoje. Na verdade havia províncias até mais ricas que o Rio e São Paulo. Hoje, sem dar responsabilidade à União para cuidar da educação, ela continuará desigual.

Mas, Sr. Presidente, isto não quer dizer que devamos mandar no mesmo dia aos escravos a noticia de que estão livres e a noticia de que derrubamos o gabinete que os libertou. Isto não teria sinão uma significação: que o escravismo tinha tomado a sua desforra logo depois da abolição. Nós temos de ficar solidarios até sua completa execução com essa politica abolicionista representada pelo actual gabinete; e si com ella obtivermos outra reformas, si tivermos de facto por algum tempo o dominio liberal no paiz, teremos preparado o melhor terreno para as futuras eleições; no que não podemos pensar é em forçar o actual governo a uma dissolução, depois da lei, não lhe seria por certo negada, antes dessa lei ter tido execução inteira, porque isto seria complicar com uma questão politica e eleitoral a libertação effetiva da raça negra. Seria pôr em duvida a verdadeira execução da lei, por que nós, senhores, sabemos o que são candidatos em vespera de eleições, não haveria nada que os candidatos liberaes não promettessem aos senhores de escravos despeitados. Em um paiz em que todos os acontecimentos politicos estão nas mãos da grande propriedade territorial, depois de um golpe terrivel como este é, torna-se altamente impolitico appellar para ella.

A sua ferida está ainda sangrando, ainda está vivo o momentaneo despeito, que ella ha de guardar áquelles que fizeram a abolição.

Nós somos uma minoria nesta Camara, não podemos subir ao poder pela escada das reformas liberaes porque não temos votos para faze-las; para derrotar o gabinete teriamos, portanto que unir-nos a alguma conjuração, que surgisse no proprio Partido Conservador. Teriamos que ser os alliados do escravismo, e entrariamos, por consequencia, em combate com o mesmo vicio de impopu-laridade que hoje caracteriza o partido republicano, somente porque teve a fraqueza de aceitar, em vez de repellir, o concurso da escravidão desvairada.

Mais uma lição para os que mudam de lado por falta de crença em uma Causa. Oportunismo não é deixar a Sigla para prosseguir com a Causa, mas sim, deixar a Causa para ficar com a Sigla, como se vê hoje todos os dias nas votações e eleições.

Hoje, Sr. Presidente, a situação é uma, no dia que se fizer a abolição a situação será outra: - uma raça nova vai entrar para a communhão brazileira.

É quando se entra na vida civil que se escolhe um partido. Isto aconteceu a cada um de nós... E agora que a raça negra vai escolher o seu partido, vai dar o seu coração, e si mostrassemos indifferença pela sua sorte ou preocupação exclusivamente de nós mesmos, eu tenho medo, Sr. Presidente, que a raça negra,

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que no fundo é o povo brazileiro, se filiasse ao Partido Conservador acreditando que foi elle e não o Partido Liberal sinão quem mais concorreu, quem maior alegria teve na sua liberdade.

Eu fallo, Sr. Presidente, como um homem que está habituado, no seu partido, a ver-se muitas vezes isolado e a ver outras tantas o partido reconhecer que a estrada na qual elle se achava será a estrada que levava ao coração do povo, ao passo que a outra só levava, quando levava, um poder de que o partido não podia usar com liberdade e que eu nada aproveitava ás grandes causas liberaes.

Sinto-me bastante fatigado, Sr. Presidente, mas creio ter dito bastante a favor da politica abolicionista do gabinete, para ter o direito de exigir que elle execute a lei com a lealdade que nos deve a nós que o auxiliamos, como deve a si mesmo...

O Honrado Presidente do Conselho foi o principal auxiliar da lei de 187123 e agora vai ser o autor da lei de 1888; atravez dos 17 annos decorridos, esse facto mostra uma persistencia da fortuna que, si entrar bem no fundo da sua consciencia abolicionista dos ultimos annos, S. Ex. reconhecerá que não foi de todo merecida.

Insinua que o pernambucano João Alfredo, que participou da Lei do Ventre Livre e era o Chefe de Governo na Abolição, não merecia essa posição histórica, uma vez que historicamente suas funções políticas eram contraditórias com a Abolição. Em “suas memórias”, escritas por Alexandre Dumas, Garibaldi diz que, mais do que o talento, é a sorte que define a posição do estadista na história. Foi isso o que favoreceu João Alfredo. Mas esta sorte de pouco serve se o estadista não tiver o sentimento dos anseios de seu país, nem a coragem de enfrentar os desafios adiante. Isto lembra uma frase supostamente de Napoleão em que dizia: “Não há grandes homens, há grandes desafios, e homens que os enfrentam”. João Alfredo soube aproveitar a chance e enfrentar o desafio. Apesar de um conservador, naquele instante foi Garibaldi e Napoleão.

Pois bem, é no modo de apressar a passagem do Projecto nas duas camaras e depois no modo de executar a lei que S. Ex. poderá fixar para sempre no seu nome essa gloria que adeja em torno delle. Não seria possivel neste momento prejudicar o prestigio siquer do honrado Presidente do Conselho, sem prejudicar por alguma forma a perspectiva brilhante que se abre diante da nação.

Eu, pela minha parte, não tomo a responsabilidade de nenhum acto de tanta significação. O que faço, o armisticio que eu proponho, a alliança abolicionista que eu sustento, tudo se passa á luz desta tribuna. Ha raças que por não fallarem não se entendiam no escuro. Eu espero que não se possa dizer dos partidos brazileiros que não se entendam na claridade, que não podem trazer para o parlamento o fundo dos seus corações, que não ha entre elles nenhum terreno commum, nem a patria nem a humanidade...

23 Lei do Ventre Livre

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A “aliança abolicionista” que ele propõe com seu adversário eleitoral e aliado programático é um exemplo de grande política, em torno a causas, aos interesses maiores do País. Nabuco faz uma apologia sincera ao adversário de ontem e de amanhã, mas aliado hoje. Um trecho de poucas palavras, que merecem atenção e reflexão. Sobretudo o último parágrafo.

O honrado Presidente do Conselho, Sr. Presidente, tem direito neste momento de todo o povo brazileiro, ao maior apoio que o povo americano dava a Lincoln na vespera da abolição, o maior apoio que a nação italiana dava a Cavour na vespera da sua unificação, ao maior apoio que o povo brazileiro dava a José Bonifacio na vespera da Independencia. São tres grandes objectos em uma só bandeira de que elle é o portador e é assim que eu lhe repito por outras palavras a saudação que lhe fez o grande jornalista do norte, Maciel Pinheiro:

“Pudestes ser meu inimigo hontem, has de com certeza voltar a ser meu inimigo amanhã, mas por emquanto, és o pontifice de uma religião sublime, vais coberto pelo pollio da comunhão nacional e levas nas mãos a hostia sagrada da redempção humana!” (Muito bem! Muito bem! Applausos prolongados nas galerias.)

Os últimos parágrafos mostram porque naqueles dias o povo jogou flores para os parlamentares de um Congresso que se une às aspirações da popu-lação e ao futuro histórico da Nação: quando a moral se une à política e a política se une à história. Isto é o que caracteriza o estadista: identificar-se com a alma do povo, que é eterna na história, e convencer a população a fazer os sacrifícios necessários no presente para construir uma nação melhor para os filhos e netos. São momentos grandiosos de quem faz política no momento em que se reorienta o destino de um povo.

Isso aconteceu naqueles dias de Maio de 1888 dentro do Congresso. Desde então, os grandes momentos da história foram externos: a Repú-blica foi um Golpe de militares e civis, a Revolução de 30 foi uma ação de tropas, o golpe de 64 surgiu nos quartéis, a Redemocratização foi um pacto entre líderes, civis e militares, impulsionados pelas ruas e redações de jornais e revistas. O Congresso só referendou quando foi chamado. Hoje, o Congresso se nega a fazer a revolução que pode fazer, aprovando as medidas que garantam educação com a mesma qualidade para todos, uma mudança no padrão de desenvolvimento para a sustentabilidade, a redução das desigualdades sociais e regio-nais, a proteção do meio ambiente, o fim da corrupção. Temos uma Casa fundamental para denunciar erros e riscos, mas irrelevante para definir novos rumos para a Nação.

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É possível imaginar o clima que prevalecia na Câmara dos Deputados: euforia no plenário e nas galerias, constrangimento de alguns dos parla-mentares, entusiasmo dos abolicionistas. Um Parlamento com Causa.

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DIA 8 – TErçA-FEIrA

No dia seguinte logo que o Projeto de Lei foi aceito, Joaquim Nabuco foi o primeiro a falar, defendendo um mecanismo rápido para discutir a lei, para evitar tentativas de procrastinação.

Sr. Presidente, eu peço a V. Exa e peço á Camara que tenham tolerancia para esta manifestação que o povo brazileiro acaba de fazer dentro do seu recinto. (Acclamação. Applausos.) Não houve dia igual nos nossos annaes. (Acclamações. Applausos.) Não houve momento igual na historia da nossa nacionalidade. (Acclamações. Applausos.) É como si o territorio brasileiro até hoje estivesse ocupado pelo estrangeiro e este derepente o evacuasse e nos deixasse senhores de nossa vida nacional. (Acclamações. Applausos.)

Essa abertura mostra que o povo nas galerias estava eufórico. Provavel-mente não havia escravos, todos ali defendiam uma causa de interesse nacional, nenhum interesse próprio. Hoje, ao contrário, cada vez que as galerias se enchem ou que os corredores ficam cheios, é por causa dos lobistas defendendo interesses pessoais ou corporativos. Nada que diga respeito aos interesses dos outros, do povo, da Nação Brasileira como um todo.

É como se o todo se diluísse e só as partes restassem, como se a nação fosse feita de ilhas isoladas. Hoje não se vê, como em 1888, brancos defendendo os interesses de negros; no máximo o direito às cotas nas universidades, para raros negros que concluem o ensino médio; não se vê o movimento negro defender a melhoria da educação de base para todos, brancos e negros, concluírem o Ensino Médio; luta-se por mais vagas para negros na universidade, mas não pela abolição do analfabetismo em todas as raças.

Eu desejaria que no peito de cada deputado brazileiro batesse o coração, como neste momento pulsa o meu, para que a Camara se elevasse á altura do governo libertador; para que ella mandasse para o Senado, votada de urgencia como a maior das necessidades publicas, a abolição total da escravidão. (Applausos.)

Aqui, ele defende a urgência, deixa a esfera da ética e entra nos procedi-mentos regimentais.

É preciso que se respeitem somente as normas que a Constituição estabelece e nosso regimento: é preciso que se nomeie uma commissão especial que dê immediatamente parecer, e que numa espécie de sessão permanente, seja votada a proposta do governo.

Esta lei, Sr. Presidente, não pode ser votada hoje, mas, por uma interpretação razoável de nosso regimento, á qual estou certo que se não poderia oppor, nem

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mesmo o coração de bronze do nobre deputado pelo 11o districto do Rio de Janeiro... (Apoiados e applausos das galerias.)

Pelo nosso regimento esta lei não pode ser votada hoje, mas pode ser votada amanhã, porque podemos nomear uma commissão especial para dar parecer. Podemos suspender a sessão por meia hora, porque bastam cinco minutos, um minuto mesmo, para dar o parecer: podemos dispensar a impressão, o praso para ter logar a discussão; podemos dispensar os intersticios, e depois de amanhã mesmo podemos mandar a lei para o Senado, votada por acclamação e coberta das bençãos do paiz. (Apoiados, bravos e applausos das galerias.)

Venho propor, que se nomeie a commissão especial, que a sessão seja suspensa até ser apresentado o parecer, e para isso faço appelo aos sentimentos, mesmo os mais zelosos e mais obstinados de qualquer lado da Camara, não esquecendo a responsabilidade do governo, pois que, abrindo-se uma crise nacional, é preciso que ella se feche quase immediatamente; para que ninguem fique em duvida, nem o escravo, nem o senhor.

É o exemplo que eu offereço á nação brazileira. (Muito bem!)

Hoje temos no Parlamento diversos regimentalistas que muitas vezes usam os artifícios para ganhar tempo na aprovação de leis, mas quase sempre são em defesa de algum grupo de pressão, raramente em benefício do conjunto da nação.

A escravidão occupa o nosso territorio; opprime a consciencia nacional, e é o inimigo peior do que o estrangeiro pisando no territorio da patria. (Applausos.)

É a segunda vez que ele usa a metáfora da ocupação. O Brasil era um país com escravos que aqui tinham nascido e viviam, mas tratados como se não fossem brasileiros. Uma semelhança com os brasileiros do século XXI que não estudaram: um exército atual de 73 milhões de adultos que não terminaram o ensino fundamental. Em 1871, quando o Brasil convocou escravos para a guerra contra o Paraguai, mesmo analfabetos, eles desempenharam as funções de soldados com as armas daquele tempo; hoje, os sem-educação dificilmente poderiam ser convocados, porque não saberiam usar as armas modernas. A brecha educacional se ampliou.

Precisamos de apressar a passagem do Projecto de modo que a libertação seja immediata. (Muito bem!)

Lembro-me, Sr. presidente, que, quando á Convenção franceza foi proposta a abolição da escravidão, e um deputado começava a fallar, ouviu-se logo esta interrupção: Presidente não consintas que a Convenção se deshonre discutindo por mais tempo este assumpto.

E a assembléa levantou-se unanime, e o presidente declarou abolida a escravidão, aos gritos de viva a Convenção! e viva a republica! Como eu quizera, agora, que aos gritos de viva a Princeza Imperial (longos applausos) e viva a Camara dos

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Srs. Deputados (Applausos.) decretassemos neste momento a abolição immediata da escravidão no Brazil. (Muito bem!)

Estou certo que a Camara aprovará a minha proposta; cada um de seus membros vai elevar-se a uma altura que nunca attingiu nenhum membro do parlamento brazileiro.

De fato, em nenhum outro momento da história brasileira o Parlamento tinha atingido um grau tão elevado de sintonia com a formação do futuro do País. E talvez em nenhum outro momento desde então, até hoje, o desempenho do Congresso superou aqueles dias de Maio.

Teremos, assim, Sr. Presidente por parte desta Camara, uma demonstração de patriotismo, que ficará sendo a epopéa da gloria brazileira, do mais bello movi-mento de unificação nacional que registra a historia do seculo, do mais sublime exemplo de generosidade de um povo que registra a historia toda. (Muito bem, muito bem; prolongados applausos.)

O presidente da Câmara dos Deputados pede que seja apresentado o reque-rimento de Joaquim Nabuco, solicitando urgência. O deputado Duarte Azevedo diz que a comissão já estava constituída, com o parecer feito e pede dispensa da impressão do parecer, para a Proposta entrar logo na Ordem do Dia seguinte:

Senhor Presidente, a commisão nomeada pela Camara dos Deputados para dar parecer a respeito da proposta do governo, convencida de que nesta materia não é possivel retardar um momento só a longa aspiração do povo brazileiro (apoiados, muito bem, bravos) no sentido de satisfazer uma necessidade social e politica, que é ao mesmo tempo um preito de homenagem prestado á civilização do seculo e á generosidade do coração de todos aquelles que amam o bem da humanidade (apoiados, muito bem, muito bem,) deu-se pressa em formular o parecer a respeito da proposta, e pede licença a V. Exa e á Camara para lel-o, apresentando depois um requerimento de urgencia, a fim de que seja dispensada a impressão do projecto da commissão, para que possa ser dado para a ordem do dia de amanhã. (Muito bem!)

Lê, então, o Parecer pela extinção da escravidão:

A commissão especial nomeada por esta Augusta Camara para examinar a proposta do governo sobre o elemento servil, convencida de que essa proposta satisfaz em tudo a longa aspiração do povo brazileiro, é de parecer que ella seja convertida no seguinte Projecto de lei:

Acrescente-se no logar competente:

A Assembléa Geral decreta:

Art. 10 (como na proposta).

Art. 20 (como na proposta).

Sala das Comissões em 8 de maio de 1888.

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Duarte de Azevedo. Joaquim Nabuco. Affonso Celso Júnior. Gonçalves Ferreira. Alfredo Correira.

Em seguida Duarte de Azevedo requer nova dispensa da impressão, e urgência para entrar na ordem do dia seguinte. Requerimento de Joaquim Nabuco é lido, apoiado e posto em discussão, solicitando que a Presidência da Casa nomeie uma Comissão especial de cinco membros para dar parecer imediato sobre a proposta:

Requeiro que o Sr. Presidente nomeie uma commissão especial de cinco membros para dar parecer sobre a proposta do Poder Executivo que extingue o elemento servil.

Sala das sessões, 8 de maio de 1888.

J. Nabuco.

São nomeados Duarte de Azevedo, Joaquim Nabuco, Gonçalves Ferreira, Affonso Celso Júnior e Alfredo Corrêa. A comissão se reúne imediatamente para dar o parecer sobre a proposta de lei. Retorna logo depois. Mas aí começam as reações contrárias, com as palavras do Deputado Andrade Figueira que tenta recusar a urgência na votação, exigindo que se cumpra plenamente o Regimento da Casa que, no seu entender, seria descumprido se a votação fosse imediata. Vale a pena ler nas atas o registro do discurso, dos apartes e da aprovação de urgência:

O Sr. Andrade Figueira começa observando que qualquer que sejam as impa-ciencias para converter em lei proposta do governo, acha que é preciso collocar acima de tudo a legalidade dos actos do parlamento. (Alguns apoiados.)

O Sr. Presidente, representante do regimento, não pôde aceitar o parecer da commissão especial, porque no regimento é expresso que as commissões eleitas têm um processo a observar para os seus trabalhos. Era preciso uma indicação reformando o regimento; e somente depois desta reforma poder-se-ia permitir a urgencia.

Si não fosse o muito respeito e consideração que voto ao Sr. Presidente, teria reclamado já ha alguns minutos contra factos que aqui se passaram; contra a invasão de pessoas estranhas á Camara, convertendo a augusta magestade do recinto em circo de cavalinhos! (Apoiados e não apoiados e signaes de repro-vação das galerias.)

Como si não bastassem taes transgressões que importam ao decóro da Camara, o nobre relator da commissão especial, sem observar os processos estabelecidos para os termos dos trabalhos das commissões, pede que seja dispensada a impressão do projecto para entrar na ordem do dia. O Sr. Presidente não pôde aceitar como parecer o papel que foi enviado á mesa, e que é contrario aos termos do regimento.

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O Sr. Duarte de Azevedo – O regimento não dispõe sobre os pareceres de commis-sões especiaes.

O Sr. Andrade Figueira diz que o regimento no capitulo V trata dos pareceres em geral sem fazer distincções. Confia bastante no Sr. Presidente que, além de tudo, é magistrado, para que S. Ex. faça observar o regimento.

Aproveitando-se da palavra, dirá ao nobre deputado pelo 10º districto da provincia de Pernambuco24 , que se julgou apto para conhecer de que material era formado o coração do orador, que não sabe si esse coração é de bronze; mas si o é, prefere que seja de bronze, a que seja de lama.

Disse que Nabuco estava usando métodos imorais, propondo que passassem por cima do Regimento. Nabuco respondeu que “a Câmara dos deputados está perfeitamente dentro da letra do Regimento aceitando o Parecer da Comissão, que não precisa das 24 horas” exigidas para as comissões ordinárias.

O presidente da Câmara aceita o requerimento de Nabuco e o põe em votação. O Deputado Andrade Figueira então acata a decisão do Presidente da Casa (de que a Câmara pode dispensar o prazo de 24 horas), mesmo achando que a decisão não seja acertada.

O requerimento do Deputado Joaquim Nabuco, posto a votos, é aprovado.

24 Joaquim Nabuco

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DIA 9 – QUArTA-FEIrA

O Deputado Andrade Figueira faz um discurso contra o Projeto. Lamen-tavelmente, esse discurso não se encontra nas Atas daquele dia. Apenas consta que ele fez um discurso contra o projeto de lei. Ficamos sem seus argumentos contrários à Abolição.

Talvez ele tenha conseguido retirar o discurso da Ata, com medo do julgamento histórico. Neste caso, demonstrou mais sensibilidade do que muitos parlamentares de hoje, que sabem que seus discursos serão guar-dados em texto, vídeo, áudio, para que as gerações futuras julguem por omissão ou ação. O que dirão de parlamentares de hoje, daqui a décadas anos, quando analisarem as faces da escravidão moderna decorrentes da omissão diante do quadro de deseducação e depredação ambiental.

O Deputado Rodrigo Silva, que era Ministro da Agricultura no regime parlamentarista de então, e assinava o projeto de Lei junto com a Princesa, defendeu a aprovação, afirmando:

A lei de 1885, acabando com a legitimidade da instituição, levou-a para o terreno das transações; já não era dado discutir o direito sobre a propriedade escrava, mas somente o prazo em que o poder publico deveria intervir para declara-la extinta.

O Deputado Alfredo Chaves faz um discurso favorável ao Projeto, anali-sando a legislação anterior sobre o elemento servil. O Deputado Affonso Celso Júnior requer o encerramento da discussão. O Deputado Araújo Góes apresenta emenda com o seguinte teor: “Ao art. 1o acrescente-se: “desde a data desta lei”. Por fim, o Deputado Zama requer votação nominal para a Proposta, a fim de que “nos Anais fiquem gravados os nomes dos votantes”.

O artigo 1º é aprovado.

Dos 94 deputados presentes, 83 votaram a favor, 9 contra. Na véspera do século XX, 10% dos representantes do povo brasileiro votaram pela conti-nuação da escravidão. Voto aberto. Se o voto fosse secreto, esse número certamente teria sido maior. Note-se que Andrade Figueira votou contra. Sua defesa de procedimentos mais demorados não era por legalismo regimental, era possivelmente tentativa de ganhar tempo para impedir a aprovação da lei que liberaria os escravos.

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Nesse dia, outra vez Joaquim Nabuco pediu que se passasse imediatamente à votação. Mas, apesar do belo e convincente discurso, a ideia não foi aceita de imediato.

As atas dizem:

O Deputado Joaquim Nabuco requer e a Câmara aprova o encerramento da discussão. Solicita ainda que se consulte ao Plenario sobre a dispensa de impressão e intersticio para que o Projecto entre no dia seguinte em 3a discussão.

O deputado Pedro Luiz diz que o requerimento de Joaquim Nabuco só pode ser aceito depois de o Projecto voltar da Comissão de Redação, a qual deveria ser remetido para redigi-lo de acordo com a emenda.

O deputado Matta Machado requer que se prorrogue a sessão por meia hora, o que é aprovado.

A Assembléa Geral decreta:

Art. 1o (substitutivo). É declarada extinta, desde a data desta lei, a escravidão no Brasil.

Art. 2o (Como na proposta).

Sala das Comissões, em 9 de maio de 1888.

Duarte de Azevedo, Joaquim Nabuco, Affonso Celso Júnior, Gonçalves Ferreira, Alfredo Corrêa.

A votação incorpora o substituto ao artigo primeiro que determina “desde a data desta lei”.

O deputado Affonso Celso apresenta um Projeto de Lei transformando em feriado o dia em que a lei for sancionada e entrar em vigor.

O Deputado Affonso Celso Júnior apresenta Projecto de Lei nos seguintes termos.

A Assembléa Geral resolve:

Art. 1º Será considerado de festa nacional o dia em que for sacionada a lei que declara extinta a escravidão no Brasil.

Art. 2º Revogam-se as disposições em contrário.

Mesmo não sendo feriado, já temos o Dia do Piso Nacional do Salário dos Professores, em 23 de março, Lei 11.738, de 2008. Mas tudo indica que vai demorar muito para termos o dia da libertação educacional para comemorar a adoção pela União do Sistema Nacional da Educação Básica.

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DIA 10 – QUINTA FEIrA

NAQUELE 10 DE MAIO DE 1888, O DEPUTADO LOURENçO DE ALBU-QUERQUE TECE CONSIDERAçõES SOBRE O PROJETO E SUAS REPERCUS-SõES. O DEPUTADO PEDRO LUIZ CRITICA O PROCESSO DE DISCUSSãO DO PROJETO.

Nesse momento, o Presidente declara encerrada a discussão e o Projeto é aprovado para ir à Comissão de Redação.

Joaquim Nabuco é o primeiro a solicitar que a Presidência nomeie uma Comissão de Redação para redigir o Projeto, a fim de que ele seja imedia-tamente votado, já que ainda não há Comissão eleita. O requerimento é aprovado e o Presidente nomeia Duarte de Azevedo, Joaquim Nabuco e Rosa e Silva, que apresentam uma redação idêntica à preparada pela Comissão Especial.

O deputado Affonso Celso Júnior requer que se consulte aos deputados sobre a dispensa da impressão, para que a redação do Projeto possa ser votada imediatamente. O requerimento é aprovado e a redação do Projeto, posta em discussão, é aprovada, também sem debates.

Joaquim Nabuco volta a falar, parabenizando a Princesa Regente, a Câmara e os partidos pela votação, manifestando sua confiança na sabedoria, gene-rosidade e patriotismo do Senado. Em comemoração a esse dia memorável, requer a suspensão da sessão, o que é aprovado.

É seu grande dia, a conclusão da história de milhões de escravos e da luta iniciada sob o desprezo dos donos de terra, enfrentou a ironia dos que duvidavam que uma pessoa negra pudesse ser livre e a raiva dos escra-vocratas. Por isso, vale a pena rever seu discurso, conforme transcrito nas Atas do dia:

A victoria final do abolicionismo no parlamento não é a victoria de uma lucta cruenta, não ha vencidos nem vencedores nessa questão (Muitos apoiados), são ambos os partidos politicos unidos que se abraçam neste momento solemne de reconstituição nacional, são dous rios de lagrimas que formam um mar bastante largo para que nelle se possa banhar inteira a nossa bandeira nacional. (Muito bem! Apoiados.) Facto unico da nossa historia, quanto ao orador, que representa

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desde o principio apenas a orientação abolicionista, o que pode dizer é que o abolicionismo é quem mais lucra nesta questão.

Nós estaremos tão cançados como os escravos; mas o nosso cançasso não era de trabalhar; mas porque estava ligada ao nosso nome a idéa, sinão de uma degra-dação, ao menos de uma humilhação para a nossa patria. (Apoiados. Muito bem).

É tempo que a democracia nacional tenha um nome que de alguma forma não seja uma ofensa ás outras partes da communhão brazileira. (Apoiados.)

Nós, abolicionistas, retiramo-nos desta campanha certos de que nada tiramos e, pelo contrario, tudo demos não só á dignidade do cidadão brazileiro, mas tambem a dignidade de ambos os partidos constitucionaes. (Apoiados.)

Ainda ha pouco, dizia um escriptor que o primeiro dever das grandes nações é produzir os grandes homens.

Nós offerecemos ao Partido Liberal occasião de ter um grande homem e offe-recemos ao Partido Conservador agora outra occasião igual, para que deixem as offensas ao passado na escuridão da noute da escravidão.

Não penso que o abolicionismo tivesse sido outra cousa mais do que o instincto nacional. (Apoiados.) Não foi outra cousa mais do que o sentimento verdadeira-mente inconsciente do nosso povo que, educado nas senzalas e na escravidão, não podia ter outra visão no seu espirito si não esta primeira aspiração nacional.

Não penso que o abolicionismo tivesse sido outra coisa mais do que o instinto nacional.

Nesta frase, ele aplica o sentido de “instinto nacional” para Causa política e social. Coisa que falta hoje entre os 200 milhões de brasileiros. Nada indica termos hoje um instinto que encarne o sentimento de desejo comum a todos os brasileiros e pode ser esta ausência que esteja colocando o País em sua atual sutiações de conflito geral explícito ou latente.

Nós todos, que fomos o fermento de ambos os partidos, nós que devemos tanto ao Partido Conservador, como ao Partido Liberal, como ao Partido Republicano; nós que não representavamos outra cousa mais do que as trevas da nação até ao dia em que a raça negra fosse definitivamente emancipada no Brazil; nós devemos continuar no nosso posto, pedindo apenas aos partidos que se levantem, como neste momento, sempre á altura das grandes necessidades da nossa patria, e que comprehendam que não ha para o homem publico, como não ha para os partidos, verdadeira prosperidade sinão no momento em que elles se esquecem das preocupações individuaes e se recordam simplesmente do bem publico, do bem da patria. (Muito bem, muito bem. Bravos, palmas e applausos repetidos nas galerias.)

O requerimento foi votado e aprovado. O projeto foi enviado ao Senado naquele mesmo dia. Hoje em dia esta eficiência acontece, mas não por causas nobres, apenas para atender o rolo compressor da maioria gover-namental para projetos pequenos.

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DIA 11 – SExTA-FEIrA

A PARTIR DA PROPOSTA DO PODER EXECUTIVO SER APROVADA PELA CÂMARA, O PROJETO FOI LIDO NO SENADO. O TEXTO ERA ASSINADO POR HENRIQUE PEREIRA DE LUCENA, PRESIDENTE; CARLOS PEIXOTO DE MELLO, 1º SECRETÁRIO E JAYME DE ALBUQUERQUE ROSA, 2º SECRE-TÁRIO.

Imediatamente após a leitura, o Senador Dantas requer a nomeação, pelo Presidente do Senado, de uma comissão especial de cinco membros para dar parecer. São nomeados os Senadores: Dantas, Affonso Celso, Teixeira Júnior, Visconde de Pelotas e Escragnolle Taunay. Em regime de urgência a proposta é encaminhada à Comissão, que se reúne imediatamente e oferece parecer favorável. Como se os parlamentares quisessem correr para recuperar os quatro séculos perdidos.

Parecer

A commissão especial, nomeada pelo Senado para examinar a proposta do Poder Executivo convertida em Projecto de Lei pela Camara dos Deputados e que declara extincta a escravidão no Brasil:

Considerando que o mesmo Projecto contém providencia urgente por inspirar-se nos mais justos e imperiosos intuitos e consultar grandes interesses de ordem econômica e de civilisação; considerando que elle satisfaz a mais vehemente aspiração nacional; e abstendo-se de offerecer qualquer emenda, tornando expresso que ficam igualmente abolidas todas as obrigações de prestação de serviço provenientes da legislação em vigor, ou de libertações condicionalmente conferidas, por entender que isto se acha virtualmente comprehendido no allu-dido projecto; é de parecer que entre em discussão para ser adoptado pelo Senado.

Com o parecer da Comissão Especial, inicia-se a discussão do art. 1º da Proposta do Poder Executivo, convertida em Projeto de Lei pela Câmara dos Deputados, de 1888, declarando extinta a escravidão no Brasil.

Ali não estava Nabuco para falar. Quem fala primeiro é o Barão de Cotegipe, declarando que não colocará obstáculo “á rápida passagem da proposição do governo”, mas manifestando suas preocupações relativas à posição dos proprietários de escravos – e dos próprios escravos – em face da extinção da escravidão no Império.

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Ele começa perguntando se vai contar com a Presidência da Mesa para garantir plena liberdade de discurso. O presidente e os outros senadores lhe asseguram que sim.

Depois de quatro séculos em que seres humanos eram agarrados como animais, arrancados de suas casas, famílias e nações, colocados em navios, forçados a atravessar o oceano, acorrentados e condenados a trabalhar, podendo ser vendidos mesmo tendo nascido no Brasil, tendo seus filhos retirados e vendidos como gado, depois de quase quatro séculos desse maldito sistema, um senador que é contra a Abolição pergunta se terá liberdade para se pronunciar sobre sua oposição ao fim deste modelo social e econômico. Não se sentindo em condições de impedir a aprovação da proposta, ele fez um discurso preocupado com o futuro da economia e – hipocritamente – com o futuro de cada escravo libertado.

Vale a pena ler as Atas do Senado para saber o que ele disse:

Vou, portanto, acolher-me á sua protecção. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Christo.

Senhores, quando o honrado senador pela Bahia, meu amigo, o Sr. Conselheiro Dantas, propoz a nomeação de uma comissão especial para que esta proposição tivesse o mais rapido andamento, procedeu o seu requerimento de poucas e eloquentes palavras. Nada menos disse S. Ex. de que “esta proposta entrava triumphante neste recinto”

Ora, os triumphadores antigos permittiam que ao carro triumphal acompa-nhassem mesmo aqueles que lhes dirigiam remoques e até injurias.

Eu não venho imitar esses que acompanhavam na antiga Roma o carro triumphal; não dirigirei injurias, não dirigirei remoques. Mas peço que, ao menos, não me obriguem a acompanhar o festim quando entendo que não devo acompanhal-o. É tudo quanto exijo.

Não pretendo pôr o menor obstaculo á rapida passagem da proposição do governo; ao contrario, entendo que quanto mais depressa fôr ella votada, tanto melhor.

(Rumores nas galerias, produzidos pela entrada de espectadores. O Sr. Presidente reclama attenção.)

O Sr. Barão De Cotegipe: (depois de alguma pausa) V. Exa. viu que com a entrada dos espectadores era preciso que eu me interrompesse.

Conforme acabava de dizer, quando suspendi a exposição em que ia entrar, não pretendo oppor o menor obstaculo á passagem da proposta do governo, convertida em projecto de lei pela Camara dos Srs. Deputados; ao contrario, entendo que quanto mais rapido andamento ella tiver, quanto mais depressa fôr votada, tanto melhor.

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Ha, porém, posições que obrigam, e aquella em que me acho é uma dellas. Por uns, sou accusado de haver, por meus erros, precipitado a solução desta questão: por outros, por ter, contra a razão e justiça, procurando entibiar o zelo dos que a prometiam.

Quer dizer isto que não ha ninguem actualmente mais impopular nesta terra do que eu.

Mas, Sr. Presidente, é um dos deveres do homem publico, principalmente daquelles que tomam a si a grave responsabilidade do poder, como eu tomei, fazer publico, tornar conhecido da nação o como e o por que procederam.

As grandes manifestações de enthusiasmo, em todos os tempos, nunca foram permanentes, ou muito duradouras; e os homens praticos sabem, as lições da historia demonstram, que muitas vezes o trimphador de hoje é a victima de amanhã.

Voltava Cromwell da expedição da Irlanda victorioso. Saltava em Bristol e um dos seus ajudantes de ordens dizia-lhe: - Veja V. Exa. que multidão para appaudil-o em seu triumpho!

Elle respondeu-lhe de modo brusco: - Seria muito maior si me fosse ver enforcar.

Isto prova que nem sempre devemos confiar na opinião do momento. É o futuro, são as consequencias dos actos praticados que hão de, na historia, traçar o credito ou descredito dos que os praticaram.

Senhores, tem-se querido tornar odiosos aquelles que pugnaram pela restricta execução da lei 28 de setembro de 188525 Pretendeu-se dividir os brasileiros em escravocratas e não escravocratas; e aquelles que não examinam de perto as cousas acreditam que existe no Brazil um partido numeroso, como é o Partido Conservador, que quer a permanencia ou a eternidade da escravidão no Imperio.

Ora, a questão não consistia na extincção da escravidão: esta estava extincta pela lei de 1885; a questão era de maior ou menor prazo.

Deixa claro que não havia mais como frear a Abolição, discutia quando. É o mesmo que se diz hoje em relação, a uma revolução que faça iguais as escolas dos pobres e dos ricos. Muitos se dizem a favor, só divergem quanto ao prazo em que isso será possível, e dizem que ainda não há recursos para fazê-la. Como dizia o Barão de Cotegipe naqueles dias de maio de 1888, “somos a favor, mas ainda não é a hora”.

O governo de 20 de Agosto, de acordo, nessa epoca, com o Partido Liberal, entendia que algum tempo se devia dar para que se fizesse essa transformação social, que todos acclamam como necessaria, certos, entretanto, de que ha de trazer grandes inconvenientes a este paiz. Outros queriam que immediatamente se realizasse esta aspiração chamada nacional.

25 Aqueles que defendiam esperar que a abolição fosse feita aos poucos na medida em que os escravos morriam os escravos libertos aos 60 anos pela Lei dos Sexagenários.

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E com effeito, tal foi a propaganda, tal a precipitação dos acontecimentos, que venho eu aqui confessar e dizer que o ministerio actual não tinha outra cousa a fazer, e cumpre que quanto antes isto se realize. (Apoiados)

Defendendo eu o Partido Conservador, a cuja frente estava, tambem defendendo todos os meus compatriotas, porque esta magna questão nunca deixou de ser objecto de estudo em todas as epocas.

Rapidamente recordarei algumas. Logo depois da independencia o tratado feito com a Inglaterra acabava com o trafico de africanos, origem, fonte da escravidão no Brasil, e herança, seja dito, de nossos antepassados.

Em 1831, votada a lei que tem servido para a libertação de alguns africanos, posteriormente, em 1850, pela lei de 4 de Setembro, foi completamente extincto o contrabando africano; lei proposta pelo sempre lembrado senador, o Sr. Conse-lheiro Euzebio de Queiroz Coutinho.

Não diz que o fim do tráfico foi o resutado de pressão inglesa e que uma das razões para se aceitar o fim do tráfico foi uma tentativa de aumentar o valor dos escravos que aqui estavam, pela redução da oferta. Até a Lei do Ventre Livre, 20 anos depois,milhares de novos escravos nasceram no Brasil.

Eu fui um dos seus executores, como chefe de policia da minha provincia; e appelo para os desta epoca, para que digam si a execução correspondeu ou não á intenção.

O Sr. Dantas: Portou-se com a maior lealdade e energia na execução dessa lei; é exacto.

O Sr. Barão De Cotegipe: Em diversas Fallas do Throno foi aventada esta questão, que era, por assim dizer, a que mais preocupava o nosso saudoso Imperador. (Apoiados.)

Até que, em 1871, foi votada a lei chamada aurea, que libertou o ventre das escravas. De então em diante, Sr. Presidente, ninguém mais nasceu no Brasil que não nascesse livre.

Hoje a execução desta lei tem dado ao nosso paiz talvez 500.000 cidadãos livres.

Deixou de citar que o escravo recém-nascido só ficava livre quando chegasse aos 21 anos, no caso de nesse período nenhum de seus parentes fugisse.

São escravocratas, ou foram escravocratas aquelles que propugnaram por esta Lei e que a executaram?

Hoje é igual: na educação, nos contentamos em fazer FUNDEF, FUNDEB, merenda, livro didático. Passos tão tímidos quanto aqueles dados contra a escravidão. A lei 17.738 de 2008 que define um piso nacional para o salário dos professores ainda não é plenamente cumprida.

Na votação de uma dessas leis tímidas e parciais, Joaquim Nabuco deixou claro que votava a favor, mas que lamentava votar em uma lei ainda escravocrata e não diretamente na abolição. Hoje, muitos parlamentares

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votam assim quando decidem por avanços tímidos, que servem pouco para mudar o País e muito para a publicidade do governo dizer, como Cotegipe, em maio de 1888: “não somos escravocratas”. Podiam não ser escravocratas, mas não eram abolicionistas. Como hoje podem não ser contra a educação de qualidade para todos, mas não são educacionistas.

Pareceu, porém, que o processo adoptado pela lei, era moroso; que nos levaria talvez meio seculo para que a escravidão completamente desapparecesse do solo brasileiro. Então fomos testemunhas, é de hontem, por assim dizer, dos esforços que o Partido Liberal fez para resolver o problema.

Tambem fomos testemunhas de como decahiram todas as suas esperanças.

Ahi não tratava de uma medida extrema, como hoje se trata; e, não obstante, tal foi a opposição, que afinal foi de mister que a lei de 28 de setembro de 1885 fosse votada por accordo de ambos os partidos, ou da maioria, para ser exActo, de ambos os partidos.

Considera que a Abolição foi uma medida extrema, como hoje considera-se radicalismo e até desvario ridículo, a defesa de escola igual para todos, professores com salários equivalentes aos melhores do setor público. Ontem, liberdade para todos; hoje, escola igual. Os filhos dos pobres na mesma escola dos filhos dos ricos. Tudo isso é considerado extremismo, como era vista a Abolição.

A ata registra então:

O Sr. Presidente: Peço a V. Exa licença para interromper o seu discurso, emquanto é admittido no recinto o Sr. Ministro da Agricultura, que está na ante-sala.

O Sr. Barão de Cotegipe: Oh! Sr. Presidente, com muito gosto.

(Com as fomalidades de estylo é recebido, entra no recinto e toma assento á direita do Sr. Presidente o Sr. Ministro da Agricultura.)

O Sr. Presidente: O Sr. Barão de Cotegipe terá a bondade de continuar o seu discurso.

O Sr. Barão de Cotegipe: Foram elles que levantaram a questão de filiação desco-nhecida; foram elles que propuzeram, embora o governo concordasse, a abolição do castigo de açoutes; enfim, foram elles que nunca perderam uma occasião, quer apresentando projecto, quer argumentando em diversas discussões, para apressar e promover a prompta extinção da escravidão.

A idéa do honrado senador paulista era dar o prazo de tres annos para que os lavradores se pudessem preparar, do modo o menos prejudicial, para a passagem do trabalho escravo ao trabalho livre; mas em taes materias não é licito parar; desde que se dá o impulso ao corpo, por uma lei physica, o movimento se vai accelerando.

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Não pode, porém, o nobre senador fazer vingar as suas idéas; outros mais adiantados, e outros, me desculpem si sou injusto, despeitados, redarguiram: não, três annos, nem dous, nem um: é preciso que a liberdade seja immediata.

A hipocrisia e o cinismo da democracia é melhor do que a sinceridade dos ditadores. Mas é triste ver a democracia servir de palco para a crítica aos que têm pressa de justiça e liberdade. No Brasil de hoje, diz-se que fixar um prazo para erradicar o analfabetismo “é insensatez”26 . Dar um prazo de sete anos para que os políticos eleitos coloquem seus filhos em escolas públicas é visto como falta de liberdade. Estabelecer prazo para que as escolas sejam iguais para todos é pressa. Dizer que o filho do trabalhador deve estudar em escolas iguais àquelas de seus patrões é maluquice. Muito parecido ao que dizia Cotegipe naquele dia de maio, com respeito à Abolição.

S. Ex. arreou bandeira; aceitou esta solução extrema.

Qual o resultado? Uma perturbação quasi geral em toda a lavoura de S. Paulo. Uns alforriavam os escravos, estes ou ficavam ou se retiravam; o vizinho não podia mais manter a disciplina na sua fazenda, e tambem era obrigado a seguir o exemplo ou via desaparecerem todos os seus trabalhadores.

Diz-se que ali não tem havido estes inconvenientes. É, senhores, porque nós não podemos saber qual é a extensão do mal que tem sofrido a lavoura de S. Paulo. Em todo o caso, argumentar de uma provincia, que tem recebido colonos em avultado numero, aos milhares, argumentar com aquellas para onde se encami-nham os emigrantes, onde o thesouro do Estado, quer dizer tanto as provincias ricas como as mais pobres, tem derramado grandes sommas, para applicar o mesmo argumento aquellas provincias que, como Rio de Janeiro, Minas Gerais ou como a Bahia, não tem recebido um só emigrante, é considerar os negocios publicos por um lado muito erroneo e por vidros muito escuros.

Ainda hoje li no Jornal do Commercio uma estatistica que é official, e digo que li no Jornal do Commercio, porque ainda não tivemos as infomações do Ministerio da Agricultura. Por essa estatistica se vê qual é o numero de escravos que possuiam as provincias do Rio de Janeiro, Minas, Bahia e mesmo S. Paulo; ainda uns 62.000.

O que fizestes para conter este movimento, estas desordens nas fazendas?

Senhores, nas occurrencias de S. Paulo ha duas épocas muito distinctas: uma, em que os trabalhadores escravos desertaram das fazendas; outra, depois

26 No dia 23 de abril de 2003, quando da assinatura do convênio entre o Ministério da Educação e a Confederação Nacional da Indústria para alfabetizar dois milhões de adultos, o Presidente Lula, no lugar de incentivar o acordo e cobrar seu cumprimento disse, dirigindo-se diretamente ao Ministro da Educação: “quem come apressado, come cru”. E poucos meses depois demitiu o ministro e o novo encerrou o programa de erradicação do analfabetismo, transformando-a em um simples e tradicional programa de alfabetização. O resultado é o estancamento na redução no número de analfabetos e até mesmo uma elevação entre 2012 e 2013.

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da reunião dos fazendeiros. Na primeira, o proprio nobre senador declara que a força publica não devia ser empregada na manutenção da propriedade escrava; que a força publica não era destinada a servir de capitão do mato. Por conseguinte, menos poderiam apprehender homens que tinham sido libertos. Como distinguir entre os que fugiam, os que eram escravos e os que não eram?

Antes havia sido contido este movimento, quanto possivel. As cousas iam um pouco melhoradas, ou menos mal em S. Paulo, quando a libertação as complicou.

A libertação complicaria a agricultura, logo o certo seria complicar a vida de seres humanos. Como hoje muitos dizem: gastar mais em educação de base é um complicador para as finanças, toleram-se crianças sem educação, em falsas escolas. Se impedir a derrubada de árvores é reduzir o crescimento do PIB, deve-se continuar derrubando as árvores; se reduzir o número de carros fabricados contraria os interesses das fábricas e dos compradores, deve-se engarrafar o trânsito das cidades, e deixar que percam suas vidas os motoristas e passageiros parados no trânsito.

Nas outras provincias nada appareceu. Em Campos o movimento havia sido suffocado.

Eis o modo por que o governo procedeu. Nunca poz obstaculos a todas libertações voluntarias; pelo contrario, muitos vezes as animou dando premios áquelles que voluntariamentte praticavam este acto de caridade.

Não ha um exemplo com que se possa accusar o governo passado de haver posto uma pedra na marcha desse movimento voluntario; só poderá ser accusado por ter querido manter a lei. Ora, este é o dever primordial de todos os governos.

Retirando-me do poder quando o nobre senador pela provincia de S. Paulo, que me substituía, declarava não poder a força publica apprehender escravos fugidos; e mais, que as autoridades não deviam prestar apoio aos proprietarios, estava por esse facto feita a abolição.

Portanto, a extinção da escravidão, que ora vem neste projecto, não é mais do que o reconhecimento de um facto já existente. Tem a grande razão, que reconheço, de acabar com esta anarchia não havendo mais pretextos para taes movimentos, para ataques contra a propriedade e contra a ordem publica. Eis como considero a vantagem do projecto.

Para ele, a vantagem da Lei Áurea seria acabar com a anarquia, no tempo em que a escravidão ainda era legal, mas os movimentos libertários já tinham se espalhado. Em parte o escravocrata Cotegipe tem razão. A escra-vidão acabara de fato: com a Lei Áurea, Nabuco e os demais parlamentares apenas apressavam seu fim legal, proibindo a venda de seres humanos.

Simplesmente devia-se legalizar o que ainda era ilegal mas estava se tornando realidade. Pena que hoje, para fazer a revolução educacional não seja possível seguir este caminho de fazer de fato o que ainda não é

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legal. Até porque um escravo podia ganhar sua liberdade fugindo, mas uma criança pobre não pode ganhar educação invadindo escola de ricos. Mas, no lugar do entusiasmo com a lei que acabava com o crime que a escravidão oferecia, com a mancha que representava, ele se preocupava com as dificuldades sociais e econômicas que as incertezas produziam.

Essa lei, tão malsinada, de 188527 demonstrou que os brazileiros, por iniciativa propria, haviam reduzido a classe dos escravos á metade, ou quase metade, attendendo á parte que pertence á morte.

Verificado este facto, continuou, durante a lei de 1885, não só o movimento das libertações voluntarias, como segundo as estatisticas que o nobre ministro confirmará, só em sexagenarios foram libertados mais de 100 mil.

Quando a historia registrar todos esses factos ver-se-á que a cada um tocou seu trabalho e a cada um a honra desse trabalho; uns começaram, outros levantaram mais uma pedra, outros, finalmente, coroaram o edificio. Mas pretender-se que a solução hoje é a condemnação de todos quantos praticaram os actos anteriores é a mais flagrante injustiça que se pôde imaginar.

Senhores, ha ainda um ponto de que me devo defender, e é mais politico do que social: ora, segundo aqui declarastes na ocasião das explicações, sentistes que vos ia faltando a confiança da Côroa e auguraveis a retirada do ministro; por que razão immediatamente não depuzetes as pastas?

Trago este ponto porque me consta que alguem disse que o ministerio, assim não praticando, havia faltando á dignidade. Ora, em actos de dignidade, eu desafio a esse senhor, e a qualquer outro, que me dê lições.

Sr. Presidente, eu tinha uma responsabilidade perante a Côroa, tinha uma responsabilidade perante um partido, tinha uma responsabilidade ainda mais alta perante a nação; para mim tinha a minha consciencia. Depôr as pastas quando as camaras não estavam reunidas, depôr as pastas quando eu procu-rava dar á Regente do Império occasião para, á vista do pronunciamento das camaras, decidir-se pelo que fosse mais util ao nosso paiz, era uma precipitação. Quantas vezes soffremos, não em nossa dignidade, mas em nosso amor proprio, e somos obrigados a disfarçar para não commetter algum acto que nos possa ser imputado ou á má fé ou á indiscrição, ou mesmo á precipitação.

Finalmente, senhores, vou pronunciar mais uma razão que ha de agradar aos illustres adversários e ser censurada pelos meus co-religionarios, a saber: que, na minha opinião, o poder nesse caso devia passar aos liberaes.

O Sr. Candido de Oliveira: Perfeitamente.

O Sr. Barão de Cotegipe: E por que? Serei franco, tanto quanto o moribundo ditando seu testamento. Não tenho aspirações, nem ambição sinão de servir o meu paiz; hei de fallar-lhe a verdade seja contra quem fôr. Perdoem-me os meus illustres co-religionarios; foi um erro que não passasse a ser feita pelo Partido Liberal a solução dessa medida radical, e mesmo sem ser radical, esta ou outra qualquer. O ministerio de que eu fazia parte não podia propôr na lei

27 Lei que libertava escravos aos 60 anos.

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modificações que fossem aceitas pelo Partido Liberal; seria continuar a lucta sem gloria e sem vantagens, perturbando todas as outras relações do Poder Legislativo com o Poder Executivo.

Pois os conservadores dir-me-ão que puderam fazer a lei de 1871, que puderam, mas aqui com alguma differença, tomar a responsabilidade da lei de 1885, não podiam tomar a responsabilidade desta?

Não podiam: esta responsabilidade é muito maior, porque desta lei ha de vir a transformação dos partidos. O nobre ministro da Justiça, tão censurado porque em um banquete fez a declaração que o ministerio 10 de março trará a recomposição dos partidos, fallou a verdade...

O Sr. Candido de Oliveira: O ministerio nada tem de conservador.

O Sr. Barão de Cotegipe: ... e tanto mais conscienciosa quanto S. Exa achava-se em um banquete e ahi não ha reservas. (Risadas.)

Si o poder fosse ter ás mãos dos liberaes, a consequencia seria o abandono de todos os partidarios liberaes que são contrarios á rapida extincção da escravidão, esses viriam augmentar a força e o numero do Partido Conservador.

Nos últimos parágrafos, ele diz que os liberais deveriam assumir a respon-sabilidade pelas consequências da Abolição. Eram tantos os problemas que ele previa para o País, que a “culpa” da Abolição deveria recair sobre os abolicionistas liberais, não sobre os conservadores. E ainda diz que, nessas condições, alguns liberais contrários à pressa para libertar os escravos teriam migrado para o Partido Conservador.

Agora, ha de acontecer o inverso; os conservadores vão ser liberaes. Não digo que todos, mas grande parte; muitos ficam indifferentes. O partido enfraquecido terá de reorganizar-se debaixo de outro ponto de vista; porque haverá sempre um Partido Conservador na sociedade, mesmo nas republicas.

Demais, si o Partido Liberal tomasse a si a solução da questão, tenho a convicção de que elle faria mais alguma concessão; e neste caso, auxiliado por nós outros, a sustentaria.

Sr. Presidente, ninguém acraditará, no futuro, que se realizasse com tanta precipitação e tão poucos escrupulos a transformação que vai apparecer.

Para o leitor de hoje, é inacreditável que na véspera do século XX, quando a Inglaterra já tinha feito a revolução industrial, um senador da importância de um Barão dissesse que a Abolição da Escravidão, no último país a fazer este gesto no ocidente, foi feita com precipitação e irresponsabilidade. Mas, se olhamos ao redor nos dias de hoje veremos que Cotegipe ainda estava vivo, apenas alertou para o risco de “comer cru”, para a necessidade de calma na hora de fazer as mudanças sociais, como muitas lideranças continuam fazendo, sobretudo quando se fala em escola igual para toda criança, independente da renda dos pais e da cidade onde elas vivem. Acabar

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com a imoralidade e a estupidez de condenar o futuro de cada criança ao CPF de seus pais e ao CEP de sua casa. Faz pouco que muitos levantaram os riscos por causa da aprovação da Proposta de Emenda à Constituição que assegurava direitos trabalhistas aos empregados domésticos.

A propriedade sobre o escravo, como sobre os objectos inanimados, é uma creação do direito civil. A Constituição do imperio, as leis civis, as leis eleitoraes, as leis de fazenda, os impostos, etc., tudo reconhece como propriedade e materia tributavel o escravo, assim como a terra.

Aqui vem a defesa pela legalidade. Alguns fazem a lei, depois ela é usada como argumento para sua manutenção. É o que continua acontecendo desde 1888 com a terra, porque a lei assegura o direito à exclusão, à miséria, como antes era aceita como legal a escravidão. A escravidão nunca teve uma lei que a legalizasse, mas foi preciso uma lei para fazer a Abolição. Ainda assim, defenderam a legalidade de manter o que não tinha sido legalizado.

Dessas relações sociaes, da incarnação, por assim dizer, da escravidão no seio da familia e no seio da sociedade, resultam relações multiplas e obrigações diversas. E de um traço de penna se legisla que não existe mais tal propriedade, que tudo podia ter relação com ella desapparece, que nem contractos, nada absolutamente pode ter mais vigor.

Agora ele critica a Abolição em nome do hábito e da tradição social da escravidão.

O proprietario que hypothecou a fazenda com escravos, porque a lei assim o permittia, delibera de seu motu proprio alforrial-os, o que pela nossa lei cons-titue um crime, e é por isso remunerado!

Os bancos, os particulares adiantaram sommas immensas para o desenvolvi-mento da lavoura, das fazendas. Que percam!...

As atas não registram risos nesta hora. Mas seria de rir se não fosse trágico: criticar-se os fazendeiros que alforriam seus escravos, porque eles faziam parte do acervo hipotecado pelo fazendeiro.

Emfim, senhores decreta-se que neste paiz não ha propriedade, que tudo pode ser destruído por meio de uma lei, sem attenção nem a direitos adquiridos, nema inconvenientes futuros!

O direito do ser humano fica menor do que o direito do fazendeiro, ou do banqueiro. Porque a lei não é considerada no terreno da ética.

Sabeis quaes as consequencias? Não é segredo: daqui a pouco se pedirá a divisão das terras, do que ha exemplo em diversas nações, seja de graça ou por preço minimo, e o Estado poderá decretar a expropriação sem indemnização!

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E, senhores, dada a differença entre o homem e a cousa, vê-se que a propriedade sobre a terra tambem não é de direito natural. Não é aquella propriedade natural de que fala o jusrisconsulto Cardoso.

Aqui, a ameaça: hoje é a escravidão que acaba, amanhã será toda a proprie-dade. Estava errado porque mais de um século depois, ainda não houve a reforma agrária com que ele ameaçava aos fazendeiros.

É um dos inconvenientes, Sr. Presidente, que noto, no modo por que se quer resolver esta questão, pura e simplesmente; acrescentando sempre, em nota, que não havia outro remedio. Sou constrangido a dar as razões por que não invejo a gloria, que será, no futuro, uma gloria da humanidade.

Passemos a considerar qual será a sorte da nossa lavoura. Ouço elogios, dythi-rambos sobre o reinado de Saturno, que vai surgir com o desapparecimento da escravidão.

Os parágrafos abaixo merecem leitura cuidadosa, e que o leitor faça a comparação com os discursos de hoje.

A verdade é que ha de haver uma pertubação enorme no paiz durante muitos annos, o que não verei, talvez, mas aquelles a quem Deus conceder mais vida, os que forem mais moços presenciarão. Se não me engano, lavrem na minha sepultura este epitaphio: “O chamado no seculo Barão de Cotegipe, João Mauricio Wanderley, era um visionario!”

Tenho algum conhecimento das circumstancias da nossa lavoura, especialmente das provincias que citei em principio; e afianço que a crise será medonha; escaparão do naufragio muitos, uns que já estão munidos de salva-vidas; outros que, no meio do naufragio, apanharem alguma taboa, em que se salvem; outros, finalmente, que lucrarão, quando o navio vier dar á costa. Mas a crise ha de ser grande. Estarei illudido, estimarei mesmo estar; porém a convicção intima que me domina, não me permitte que eu pense diversamente. Acompanho a sorte do meu paiz; para hoje onde hei de ir? Sou daquelles que aqui nasceram e aqui hão de morrer, si não me deportarem algum dia. (Risadas.)

Finalmente, as atas registraram risadas.

O progresso da civilização tem sido tal, que mesmo a moral privada e pública, segundo alguns escriptores, deve ser completamente reformada; e, pois, devo ser considerado um homem de outro seculo, e a este tudo se perdoa.

Si esta é a minha convicção a respeito dos proprietarios, ou, na phrase de um amigo de quem ha pouco recebi carta, a sorte dos lavradores (não lavraram outra cousa); si esta é a sua sorte, pergunto (e agora entro em cheio no mar da caridade e da philantropia) qual é a sorte dos libertados, quaes os preparativos para que aquelles que abandonarem as fazendas tenham occupação honesta? Qual é a sorte dos 500.000 ingenuos, que estão sendo alimentados, vestindo e tratados pelos respectivos proprietarios em suas fazendas? Acompanharão as mãis e os pais? Mas os que não os tiverem, seguirão a mesma sorte? Os proprie-tarios continuarão a sustentar maior numero de ingenuos de que de escravos?

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Mas uma vez, a hipocrisia: preocupação com os libertos. É certo que a Bolsa Família e o salário mínimo asseguram menos comida do que recebiam os escravos dos seus senhores, interessados em não perder o investimento feito; é certo que a desigualdade no atendimento médico era muito menor entre o escravo e seu dono do que hoje entre um rico e um pobre; é certo que, naquele tempo, quase todos eram igualmente sem educação; nesse sentido, Cotegipe tinha razão. Mas eles ficaram livres.

Até hoje, uns trabalham para sustentar os outros; mas, desde que falte o braço valido, a sustentação do braço invalido não pode de modo algum continuar. O que será feito dos velhos, daquelles que estão incapazes de serviços, e que, segundo a lei de 1885, estavam a cargo dos ex-senhores?

Sr. Presidente, temos um frisante exemplo ainda que em menor escala, pelo que aconteceu na republica do Perú. Alli, o numero do escravos existente era do 80.000; foram de uma vez libertados, e dizem os contemporaneos que uma pequena parte continuou nas fazendas; outra parte morreu pelas estradas e nos hospitais; e a outra parte foi morta a tiro! Quer dizer que tornaram-se salteadores; atacavam os viandantes, atacavam as fazendas e praticavam toda a casta de barbaridade que podia praticar gente ignorante.

Si nós outros não tomarmos muita cautela, digo que o mais diffícil do problema não fica resolvido; o mais diffícil será o evitar e o providenciar, para que os resultados, que eu, talvez erroneamente, prevejo, não se realizem.

Para Nabuco, era preciso avanço: Abolição, escola e reforma agrária. Para Cotegipe, era preciso cautela: manter os escravos sob a tutela e a “proteção” do senhor, como todo patrimônio.

Falla-se em sociedades de protecção a libertos; sim, senhores, são necessarias sociedades de protecção aos libertos, para dar-lhes occupação e collocal-os.

O Sr. Candido de Oliveira: Não ha mais libertos; são cidadãos brazileiros.

O Sr. Barão de Cotegipe: São libertos; mas direi, si quizer, até que são inglezes. (Risadas.) Eu uso do termo proprio. Venham as sociedades particulares; mas sejam para a collocação e não para especulação.

Tenho encarado a questão pelo lado dos inconvenientes praticos para a lavoura; pelo lado humanitário para com os libertados; agora, seja-me permittida uma rapida vista de olhos sobre as consequencias politicas deste acto.

É cívico.

Por ora, Sr. Presidente, tudo é festa, tudo é alegria, tudo são flores; emfim, o prazer é unanime, universal, por esse grande acto da extincção da escravidão. Estão, porém, persuadidos ou convencidos, os nobres senadores, de que o negocio fica ahi? (Pausa.) Estão convencidos? Declaro que não; sou mais franco. Vossas Excelencias não querem responder, mas eu respondo talvez por todos: não, não fica ahi.

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O nobre Ministro da Justiça disse: “Sou amigo de todo o progresso” Pois bem: mas qual a direcção do progresso? É a questão.

Vejam as duas perguntas que ele formula abaixo:

Um acto destes fortifica a ordem publica? Um acto destes reune um pensamento commum em favor das instituições, de todos os brazileiros? (Pausa.)

Não, senhores. Este acto crêa muitos descontentes: as instituições perdem muito apoio com a irritação de uns, e com a indiferença de outros.

Seccas as flôres, dissipadas as nuvens ou o fumo das girandolas, apagadas as illuminações, vereis surgir mais de uma questão grave.

Não é, Sr. Presidente, uma prophecia, que eu esteja fazendo, ou que as minhas palavras sejam de um vidente. Não faço mais do que julgar as intenções dos indivíduos pelos seus actos e palavras.

Abstraindo de certas publicações cujos autores são conhecidos: mas que são anonymas, me referirei a uma que tem para mim grande importancia; e a tem porque si não é o éco, é um dos mais esforçados coadjuvadores da politica do meu honrado amigo o Sr. Conselheiro Dantas.

Hontem recebi de minha provincia alguns impressos, e, por acaso, cahiram as minhas vistas um discurso de um nobre conselheiro ex-deputado geral, cujo elogio não cabe a mim.

Disse commigo: amanhã tenho de fallar perante o Senado; as minhas vozes têm de chegar...porque o paiz é pequeno... ao extremo do Imperio, não perco estas palavras que para mim são de ouro.

Sr. Presidente, V. Exa conhece-me, porque temos convivido juntos, que não ha nada que mais me repugne do que as leituras. Mas para não debilitar a força da eloquencia a fazer um resumo magro e chato como eu faria, vou repetir alguns trechos deste discurso-programma. Foi elle proferido em uma reunião politica na minha provincia, não direi que perante cinco mil pessoas, por ser numero official (hilaridade), direi seis mil pessoas. (Hilaridade.)

Aqui, ele lê panfleto abaixo de um grupo republicano que comemora a Abolição e critica o Império. É um texto progressista, em defesa de um programa que se tivesse sido cumprido teria construído um Brasil diferente, mas que é apresentado como uma ameaça do que viria. Ele certamente não esperava os prolongados aplausos que as atas registraram em apoio ao panfleto.

Circumstancias, com que ainda ha pouco ninguém poderia sonhar, vieram facilitar singularmente a nossa tarefa. Fazendo da abolição uma empreitada commettida ao partido reactor, a Corôa enfraqueceu substancialmente um dos seus baluartes mais fortes e melhor construidos, porque vê pouco quem não percebe o golpe republicano, que candidamente descarregou em seus proprios interesses. (Apoiados.)

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Hoje, a regência pratica ás escancaras, em solemnidades publicas, o acoitamento de escravos, depois de terem fulminado contra nós o anathema, por uma lei informe do Imperio, lei de odio á raça escrava; hoje, depois de ver que a avalanche negra vinha destroçal-o todo, declara que não quer mais escravos; hoje, que só vemos na politica da Regencia o merito de ter aberto os olhos á luz meridiana e de não chicanar mais diante de factos consummados, merito que não desco-nhecemos, mas que não admirmos; hoje, ainda nós cruzamos os braços, sem consciencia, talvez, de nós mesmos, e sem discernimento da responsabilidade que pesa sobre nossos hombros. (Prolongados applausos interrompem o orador.)

O Sr. Affonso Celso: Isso mesmo, mais ou menos, se disse no club Beethoven.

O Sr. Barão de Cotegipe (continuando a ler):

Senhores, a grande transformação se approxima; a cerração negra desapparece, rejeitada pela força irresistivel dos acontecimentos que operam as mutações do tempo no seio da historia, e por esses espaços immensos, que se abrem, entrarão os fachos deslumbrantes de um novo sol, e o oxigenio poderoso da civilisação americana purifica essa atmosphera saturada de emanações cadavericas. É uma ressurreição, é um passado que volta ao abysmo de onde sahiu. É uma idade que acaba e uma nova éra que começa; de todos os pontos de nossas fron-teiras, do norte e do sul, os ventos nos trazem as idéas vivificadoras da nossa rehabilitação; a liberdade religiosa; a regularização da legislação em todos os seus ramos; a diffusão do ensino; a universalidade do voto; a desenfeudação da propriedade; a federação dos Estados-Unidos Brazileiros. ... (Estrepitosos applausos prolongados.)

Percebe-se claramente o alerta de que a Monarquia havia perdido sua base de sustentação. E não foi por acaso que 18 meses depois, dia a dia, a República foi proclamada. Com ironia ele saúda os novos tempos para assustar os que não queriam ir além da simples Abolição. Como hoje alertam o que vai acontecer se o Brasil virar um país com uma escola igual para todos.

Tudo isto precisamos, e o faremos, apezar da Corôa e contra Corôa, si ella se oppuzer, porque já nos devemos convencer de que não é possivel amalgamar a liberdade com o absolutismo: são duas cousas que se excluem. (Applausos prolongados.)

Tudo isto era impossivel antes da abolição, e hoje torna-se inevitavel. Estas são as nossas reformas proximas, muito proximas, e que hão de modelar os novos partidos politicos, de cujas evoluções dependem as nossas futuras instituições, que não podem ter outro principio, sinão o da más ampla liberdade no estylo americano. (Applausos e vivas.)

Eis aqui, senhores, o que nos espera. Preparemo-nos para esses novos combates.

O Sr. Dantas: - Que virão; nem podem deixar de vir.

O Sr. Barâo de Cotegipe: Os partidos terão naturalmente de formar novos agrupamentos, e quem sabe a força que elles terão para dominar semelhante tentamen? Seguir, custa pouco; tirar o terço, é mais difficil; acompanhal-o não.

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Concluo, Sr. Presidente, resumindo o que disse, passe o projecto já e já; e, si o regimento o permite, que se vote duas vezes na mesma sessão, estou prompto a continuar aqui. Entendo que grandes males vão surgir desta medida; que convem que sejam quanto antes tomadas providencias em beneficio, não só da lavoura, como dos que vão ser libertados. Chamo tambem a attenção do paiz e do governo para as tendencias, que já apparecem, e, afinal, pedirei a Deus, do mais intimo do meu coração, que separe de nós todos os males que eu prevejo.

Peço tambem desculpa aos meus concidadãos, si, pelas razões que acabo de dar, faltei ao que lhes devia; não faltei de modo algum á minha consciencia. O Senado me desculpará, si lhe tomei tanto e tão precioso tempo. (Muito bem, muito bem.)

O Sr. Jaguaribe: Tenhamos fé nas instituições: se ellas valem alguma cousa, não ha de ser por falta de escravos que hão de cahir. (Apoiados.)

Se substituimos a escravidão pela reforma agrária, pela federalização da educação, ou por impostos sobre as grandes fortunas, muitos parla-mentares de hoje farão discursos parecidos com este do escravocrata Barão de Cotegipe. Sem coragem de opor-se, mas convencidos dos riscos que estas reformas representariam. Afinal, foram exatamente discursos como esses que levaram à interrupção da democracia em 1964. Medo de reformas, como Cotegipe temia o fim da escravidão.

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DIA 12– SáBADo

As atas dizem o seguinte:

Prossegue em 2a discussão o art. 2o da Proposta. Postos a votos, são aprovados o art. 1o, com a emenda da Câmara, e o art. 2o.

O Senador Cândido de Oliveira apresenta requerimento pedindo dispensa do intersticio para que o Projeto fosse para a Ordem do Dia de 13 de maio, convoncando-se para esse fim uma sessão extraordinária em pleno domingo. O requerimento foi aprovado.

A Proposta entra na terceira discussão. O primeiro a falar, Paulino de Souza, é contra.

O Sr. Paulino de Souza: Eis-nos, Sr. Presidente, quasi chegados ao momento final em que se vai dar o passo decisivo na questão mais grave e importante até hoje agitada no Brazil.

A solução está dada, e o transito pressuroso que vai tendo neste recinto a proposta do governo, não é sinão um tramite mais, com que se quer dar apparencia de legalidade a uma medida, na concepção e no alcance, francamente revolucio-naria. Nesta conjuctura, que a muitos se afigura o ponto de partida em uma senda gloriosa, mas que persisto em reputar arriscadissima para a ordem social e economia da Nação, parece que aquelles sobre quem pesa a responsabilidade desta medida, allucinam-se na precipitação, com receio de ver sobrevir alguma hora de reflexão e de prudencia.

No meio de tantas impaciencias o debate é impossivel. Não vou, pois, discutir a proposta, nem preciso lavrar protestos. Venho sómente justificar, em poucas palavras, o meu procedimento, qualificar a medida proposta e confessar-me vencido.

Acredito que nunca houve neste paiz quem sustentasse em principio a escra-vidão. Por minha parte, estou convencido de que ninguém, que me conheça, atribuir-me-ha a intenção de querer manter o trabalho servil como a fórma mais perfeita ou definitiva do trabalho nacional.

Mais um que se diz a favor, mas contra a pressa: diz que é difícil e arriscado, até impossível. O mesmo que hoje se fala sobre uma revolução na educação.

Como também nunca houve neste país quem se dissesse contra a educação. Do ponto de vista lógico, excluída a moralidade, até seria explicado temer a Abolição diante dos riscos de desarticulação da agricultura e serviços domésticos. No caso da educação, a única explicação para não ser feita é a proteção da propriedade do capital conhecimento nas classes dirigentes através de seus filhos. Em nome da moral, Abolição ameaçava a economia, a educação ameaça privilégios.

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O discurso é igual ao daqueles que se dizem comprometidos com a neces-sidade do equilíbrio ecológico, mas a necessidade de energia exige destruir florestas com hidrelétricas, poluir o ar com derivados de carbono, ameaçar a vida com os riscos decorrentes de energia nuclear.

No fundo, a lógica do progresso se sobrepõe à sua imoralidade.

Quando, porém, se levantou primeiro a questão de abolir o elemento servil, eu, que por mim, por meus amigos, por meus comprovincianos, por todos os Brazileiros que collaboram na produção da riqueza nacional, sabia ser esse o unico trabalho organizado em quase todo o paiz, não podia convir em que fosse elle tão rapida si não subitamente supprimido. Era elle então, Sr. Presidente, o unico, como ainda é hoje, ou quase unico trabalho que existe na maior parte das provincias do Imperio, e tambem nessa zona, extenssissima e rica, das margens do Parahyba e dos valles fertilissimos dos seus innumeros tributarios; região que se póde dizer ter sido nestes ultimos 50 annos a officina da riqueza nacional, de onde partiram os recursos com que se encheram as arcas do Thesouro para se converterem em todos esses melhoramentos com que proseguio no actual reinado, até o ponto em que a vemos hoje, a civilização no Brazil.

É interessante, e triste, como os interesses impedem ver a perversão da realidade. A escravidão é vista apenas como o trabalho organizado, não como sequestro para o trabalho forçado, não é considerado ignóbil, atrasada; é apenas a forma existente de trabalho organizado. Desfazê-lo é arriscado.

Representante da provincia do Rio de Janeiro, ligado por muitos laços com os outros productores da região a que me referi, tinha, Sr. Presidente, o deve impres-criptivel de collocar-me na resistencia em defesa de tamanhos e tão legitimos interesses que, seja dito por demais, entendem tanto com a fortuna particular como com a ordem econômica e financeira do Estado. Foi assim que resisti em 1869 e 1870, quando ministro do gabinete de 16 de julho; fundado nos mesmos motivos que achei-me, em 1871, collocado á frente da opposição ao gabinete de 7 de março, em uma das nossas mais memoraveis campanhas parlamentares.

Estranhei, pois, Sr. Presidente, que um honrado representante da provincia das Alagoas, na outra casa do parlamento, viesse dizer-me agora, á ultima hora, como uma exprobração, que eu concorrera para este resultado e que era responsavel pelo desenlace que estamos vendo. A parte que este illustre parlamentar me quis dar nas magnificencias da victoria de hoje, e de uma gloria que só Erostrato invejaria, não me pertence e nem preciso recusal-a.

Perco-me, porém, em um mar de conjecturas para devassar os motivos, que não foram ditos, de semelhante asserção. Será porque a resistencia foi execessiva? Ou porque não foi sufficiente e efficaz?

Que não foi excessiva, mostra-o o facto de chegar-se, mais cedo do que se deveria esperar, ao ponto em que nos achamos. Si não foi sufficiente e efficaz, posso dizel-o com inteira segurança, não tive outros meios licitos e prudentes de resistir sinão os de que lancei mão.

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Reconhece como mérito ter resistido à Abolição. Além de seus interesses ele era um político como os de hoje: defende seus interesses e de seus apoiadores, não os interesses da ética, da Pátria, do futuro.

Si o illustre deputado quiz alludir ao meu procedimento depois da organização do actual gabinete, devo francamente explicar por que não organizei agora resistencia igual á de 1871. Dil-o-hei desde já e nuamente – porque era impossivel fazel-o nas condições actuaes dos partidos e á vista de outras circumstancias, sem que, arrastado pelos acontecimentos, tivesse depois de chegar a um ponto em que não quero achar-me, e de que me afastam as tradições do nome, que tive a formatura de receber e os antecedentes da minha vida publica.

Não era preciso, Sr. Presidente, muito atilamento e grande esforço de engenho, para comprehender, quando retirou-se o gabinete de 20 de Agosto e formou-se o actual, que a abolição do elemento servil estava feita. A historia e a experiencia politica attestam que todas as vezes que a realeza, por amor da popularidade, por motivos de sentimentalismo, ou por calculo politico, accórda-se, ainda que em pensamento, com qualquer propaganda popular, energia e activa, a insti-tuição contra a qual se dirigem os esforços combinados, póde-se contar que está fatalmente derrocada, e com ella sacrificada a classe ou classes interessadas na sua manutenção. E si á frente dessa propaganda se acham homens resolutos, enthusiastas e ousados, o arrastamento é invencivel, e não ha mais poder que consiga encadear ou encaminhar a torrente, uma vez solta da represa. Sirva o que neste momento occorre, de exemplo e lição no futuro. Chegou-se logo ao fim, houvesse ou não a intenção de ir tão longe.

Em taes condições, vendo-me sem meios efficazes de resistir, na esphera em que, por mais de um motivo, devo manter-me; convencido de que tudo se ia precipitar, como os factos estão justificando, antes que os meios dispostos pudessem sortir effeito para o seu fim especial, não tinha outro procedimento correcto e reflectido sinão manter a maior reserva e prudencia, para não ser arguido de ter provocado quaesquer demasias que apparecessem e deixar inteira a responsabilidade a quem de direito possa caber. E demais, Sr. Presidente, como resistir, si os que se achavam a meu lado, na resistencia, estão á frente da acção; si o ministerio foi dominado e absorvido pelo partido abolicionista; si o Partido Liberal, accórde com os seus principios e antecedentes, tem de receber, com a maior longanimidade, a realização por outros da idéa que era sua; si todas as influencias, e entre ellas a mais alta e irresistivel, todas se conjuraram e conjurarão para se fazer o que hoje será feito??!

É a primeira vez no debate que se fala no part ido abolicionista. Os taquí-grafos deveriam ter colocado aspas, porque esse partido não existia: a Abolição era uma Causa. Conquistada, os parlamentares voltariam a ser republicanos, liberais ou conservadores. Isto é o que falta hoje no Parla-mento brasileiro: partidos de Causas. O último part ido-causa foi aquele que reunia os que defendiam a democracia durante o regime militar. Hoje, os part idos-sigla nada significam, e as bancadas são corporativas, não há part idos-causa nacional, como foi o part ido abolicionista.

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Examinemos, porém, ainda que rapidamente, o estado das cousas á luz dos últimos acontecimentos.

Ha três annos, em 1885, quando entrei nesta casa, achavamo-nos em plena propa-ganda abolicionista, estando o governo sob a influencia e responsabilidade do honrado senador pela Bahia (o Sr. Dantas), meu particular amigo, que trouxera, como disse, para o parlamento, a solução da questão, por elle achada nas ruas. Houve, é certo, naquelle tempo, muito ruido e alguns excessos; mas devo dizer, em honra daquella administração, que nos estabelecimentos agricolas, nas officinas do trabalho nacional, a ordem e a traquilidade não foram perturbadas; antes manteve-se em todos os pontos a regularidade da producção e o respeito da legalidade. Si o honrado senador quizesse então pôr em pratica o processo conservador ultimanente empregado em S. Paulo, e, depois da ascensão do actual gabinete, assestado como um morteiro de anarchia contra os proprietarios da minha provincia, teria necessariamente feito em poucos dias a abolição. Achavam-se aqui unidos e accórdes contra as intenções do Ministerio de 6 de junho, todos os conservadores do Senado, com exceção de algum que fizesse reservas abolicionistas.

Foi principalmente aos golpes da resistencia que succumbiu aquelle Ministerio, quando se achava talvez pouco expressiva a imagem tornada popular, da junta do couce, e se acreditava que o menos que se poderia fazer era escorar o carro pelo recavem.

Retirando-se o gabinete de 6 de junho, veio a transacção iniciada pelo Sr. Conse-lheiro Saraiva afinal levada a effeito sob a influencia do meu ilustre amigo, o Sr. ex-Presidente do Conselho. Durante a ultima administração, o Partido Conservador unido nesta e na outra casa do Parlamento, como em todo o paiz, prestou-lhe o mais decidido e constante apoio, não, certamente, como home-nagem devida unicamente á sua posição, talentos e serviços; mas por adhesão á sua politica, e ás idéas de que era fiel interprete no governo. Ao passo que todo o Partido Conservador se mantinha unido na sustentação da politica de 20 de agosto, o Partido Liberal, pelos mais activos e adiantados dos seus chefes, esposava francamente a causa da abolição, e em dias de Maio do anno passado, ao abrir-se a sessão legislativa, apresentava o Projecto para a extinção do elemento servil, com prazo definitivo para 31 de Dezembro de 1889. Travou-se a luta entre os dous partidos nos termos strictos e legítimos do systema cons-titucional: a acção, promovida pelo Partido Liberal; a resistência, sustentada pelo Partido Conservador.

Ou não sei, senhores, o que é o Partido Liberal e o que é Partido Conservador, ou nesta questão incumbe a este a defesa dos grandes interesses de ordem social e economica arraigados na nossa sociedade, impossiveis de eliminar e extinguir sem grande abalo e pertubações de mais um genero, ao passo que aquelle tem mais isenção, podia preoccupar-se menos com os interesses existentes, quando se tratasse de conferir liberdade a individuos della privados no seio da nação.

Os conservadores do Senado sustentaram todos os actos do Ministerio 20 de Agosto, relativos á execução da lei de 28 de Setembro de 1885, actos estes que merecem tambem o apoio da Camara dos Deputados. E nos ultimos dias da sessão passada, quando o meu illustre amigo e sempre respeitado mestre, o nobre senador pela provincia de Goyaz, requereu urgencia para entrar na Ordem do Dia o projecto abolicionista, assignado por todos os liberaes do Senado, com

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excepção dos collaboradores da lei de 1885, o voto desta Camara foi terminante e decisivo, por parte dos conservadores que nela têm assento.

Parece, Sr. Presidente, á vista de taes antecedentes, que ao Partido Liberal competia realizar a sua idéa. E como não foi assim, o que vemos? Perturbadas todas as noções até hoje recebidas na pratica do systema constitucional, confun-didas todas as idéas, dislocados os homens publicos das suas posições naturaes e anteriores, revolvida toda a esphera em que se movem os partidos, vemos a mesma situação inaugurada a 20 de Agosto, com duas politicas diversas, a politica conservadora e a politica liberal.

Pena que hoje nem esta divisão temos. Os partidos-sigla significam que eles mudam de lado conforme a conveniência de ser ou não governo. Partidos apenas de ser governo ou oposição.

Qual, Sr. Presidente, a posição dos meus illustres adversarios? Aceitaram a que lhes foi imposta com longanimidade, digna certamente do maior elogio, mas que importa a sua suppressão como partido politico militante. O seu papel foi, durante o Ministerio ultimo, como deveria ser, combater as idéas adversas, crear os maiores embaraços á realização destas; hoje, espoliados da honra de levar a effeito um plano, que seria um florão a elles destinado na história, vêm-se na posição dos membros de outra irmandade que tomam logar na procissão para unicamente pegar nas tochas e allumiar o caminho ao andor na confraria rival.

Sr. Presidente, V. Exa sabe que não é de hoje que sustento a necessidade de partidos fortes, regulares e sinceros, cada um delles com a sua bandeira bem definida, fieis ás suas idéas, dirigidos pelos seus chefes: são elles necessários, no interesse do progresso nacional, no interesse do livre jogo das instituições e principalmente no interesse da propria realeza constitucional, a que servem de anti-mural para manter-lhe a inviolabilidade perante a opinião.

O senador Paulino de Souza não se mostra apenas um opositor da Abolição ao menos naquele momento, mostra-se como um bom político de uma linha ideológica defensora do status quo.

Que resguardo podem offerecer ao soberano irresponsavel, homens que pensaram hontem de um modo, e procedem hoje de outro, que politicamente não têm corpo para a responsabilidade que cabe aos ministros nesta forma de governo? E a responsabilidade dos partidos, personificada nos seus chefes leaes e coherentes no poder, que mantém uma das bases essenciaes da nossa fórma de governo? Os homens, que disseram hontem de uma fórma e procedem hoje de outra, poderão ser muito capazes e honrados na vida particular; mas não têm, como disse o nobre senador pelo Rio Grande do Sul, a honrabilidade precisa para a missão do governo que, na forma das nossas instituições, é a realização das idéas com que se conquista perante a opinião nacional aquella ardua posição.

A grande propriedade agricola em nosso paiz, que é, por sua constituição, uma especie de feudalismo patriarchal, tem opposto até hoje, por sua indole, habitos e interesses, embaraço poderosissimo á realização dos fins a que se propõe o partido ultra-democratico. Si a impresa, que o representa, hostilisa francamente e por todas as fórmas ao seu alcance, adversario de tamanho peso na organização

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social e procura enfrequecel-o, sinão desrespeital-o para tel-o como auxiliar em qualquer acção conjunta posterior, é bem de ver que não faz sinão promover o seu proprio interesse, alargar e facilitar o seu caminho, mediante a destruição de uma força essencialmente conservadora. É essa imprensa sagacissima e muito habil para não aproveitar o concurso do actual gabinete, valiosissimo auxiliar, que seduz e attrahe por todos os modos, favoneando-lhe a vaidade e a ambição.

A historia moderníssima, a historia recente ainda dos nossos dias apresenta um exemplo de abolição do elemento servil, levado a effeito em plena revolução. Em 184828 , a revolução de fevereiro depois de derribar a monarchia de julho, teve para ser logica, de promover a emancipação dos escravos das colonias francezas, reputando a escravidão incompativel com o novo regimen, que assentava na liberdade, igualdade e fraternidade. O governo provisorio, que se compunha, como o Senado se ha de recordar, de Lamartine, o poeta, de Arago, o astronomo, de Luis Blanc, o publicista de desorganização, de Garnier-Pagés, o doutrinario da anarchia, de Ledru-Rolin, o incendiario politico, e de outros, a quem poderia dar analogas qualificações; esse governo revolucionario não se animou a praticar o que em plena tranquilidade e em uma época regular, vai-se, em poucas horas, praticar no Brazil, não, sob a direcção, mas com a complicidade de homens politicos que se dizem conservadores.

A coerência reacionária do senador Paulino diz que os conservadores favoráveis à Abolição tiveram cumplicidade com a passagem da Lei, seriam traidores. Hoje se vê posição parecida, de cabeça para baixo, quando os militantes de esquerda, depois de chegarem ao poder mudam de lado e criticam aqueles que saíram do partido para não mudarem de lado ideo-lógico, não abandonarem as bandeiras.

O contraste é tão saliente, que o Senado me ha de permittir referir o que alli se passou. A 27 de abril expediram-se 12 decretos e duas deliberações, declarando-se no primeiro daquelles que eram livres todos os que se acham em qualquer terra do mundo á sombra da bandeira franceza; mas logo no art. 1o do mesmo decreto se determinou que a emancipação não se tornaria effectiva sinão dous mezes depois da promulgação do acto nas colônias, para se dar tempo a effectuar-se a safra daquelle anno.

O governo revolucionário de 1848 na França lidou com a escravidão fora da França, nas colônias. O Brasil lidava com o problema dentro das fronteiras. Obviamente, não era ético aceitar escravidão nas colônias, até mesmo ter colônia deveria ser incompatível com o espírito revolucionário de uma nação. O governo francês de 1848 aboliu a escravidão em todas as partes do mundo sob bandeira francesa, dando o prazo de dois meses, necessários até para que os decretos abolicionistas chegassem em lugares distantes, como Haiti e Taiti.

28 Na França.

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Em outro artigo do mesmo decreto, se assegurou que a Assembléa Nacional attribuiria, como de feito fez, os fundos necessarios para idemnização dos proprietarios.

Não convinha, dizia-se, que no dia em que as mãos dos trabalhadores servis fossem livres, as mãos dos proprietarios estivessem vazias. Para continuarem os trabalhos era necessario pagar salarios e estes não podiam sahir senão da indemnização, aliás devida em toda desapropriação; estando os lavradores das colonias francezas tão oberados como os nossos, e sujeitos a uma liquidação repentina e atropellada, que aliás não foi tão afflictiva como se figura a que vamos presenciar.

Outros decretos estabeleceram o direito ao socorro por parte dos invalidos, dos enfermos, dos velhos, dos orphãos, das crianças abandonadas; crearam hospicios, salas de asylo, escolas profissionaes agricolas, escolas de instrucção primeira gratuita e obrigatoria, para os libertos; instituiram jurys cantonaes, compostos de numero igual de proprietarios e de operarios, para decidir as questões que sobreviessem nos estabelecimentos agricolas, entre os lavradores e os novos trabalhadores livres, com alçada no civel até 300 francos, e com ampla jurisdicção correccional para punir as desordens dos operarios e reprimir as coalições e paredes; fundaram casas de trabalhos disciplinares, para a repressão de mendicidade e da vadiação; providenciaram sobre a liquidação das proprie-dades empenhadas; levantaram bancos especiaes, com organização adequada; formularam o projecto de diminuição dos impostos sobre a importação dos productos coloniaes para o consumo da metropole.

Logo a 2 e 3 de Maio se expediram novos decretos sobre o recrutamento e inscripção marítima, e organizando a guarda nacional nas colonias. Proveu-se assim a todos os interesses da ordem moral, da ordem economica, e satisfizeram-se todas as exigencias da tranquillidade publica e da segurança individual.

Pois bem, Sr. Presidente, é o governo regular do Brazil que, em contraposição áquelle governo revolucionario, faz decretar, de um dia para outro, a abolição immediata, pura e simples, sem uma garantia para os proprietarios, espolian-do-os da propriedade legal, abandonando-o a sua sorte nos ermos do nosso interior, entregando-os á ruina, expondo-os ás mais temerosas contingencias, sem tambem por outro lado tomar uma providencia qualquer a bem daquelles, que vota em grande parte á miseria e ao exterminio, nos primeiros passos de uma liberdade, de que, não preparados convenientemente, difficilmente saberão usar a seu beneficio.

Em um ponto tem razão o senador Paulino quando critica o governo da Princesa de fazer a Abolição sem complementá-la com medidas de inclusão dos libertos. Nabuco dizia que era forçoso distribuir terra e fazer escolas, mas jamais usaria a falta destas medidas como desculpas para atrasar a liberdade. Ele critica o que faltava, o conservador Paulino manipulava o que faltava para tentar abortar a Abolição. Como hoje alguns manipulam possível descumprimento de leis trabalhistas para abortar a oferta de médicos às populações carentes de atendimento.

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Ele diz que os proprietários merecem estar preparados, e que liberdade não pode ser súbita de um dia para o outro, mas não cita que, entre a Abolição de 1848 na França e a de 1888 no Brasil, se passara quarenta anos – mais de 15 mil dias – quase duas gerações de escravos continuaram nascendo e vivendo sob a vergonhosa bandeira da escravidão.

A proposta que vai votar é inconstitucional, anti-economica e deshumana. É deshumana, porque deixa expostos á miseria e á morte os invalidos, os enfermos, os velhos, os orphãos e crianças abandonadas da raça que quer proteger, até hoje nas fazendas a cargo dos proprietarios, que, hoje arruinados e abandonados pelos trabalhadores validos, não poderão manter aquelles infelizes, por maiores que sejam os impulsos de uma caridade, que é conhecida e admirada por todos os que frequentam o interior do paiz. É anti-economica, porque desorganiza o trabalho, dando aos operarios uma condição nova, que exige novo regimen agricola; e isto, Sr. Presidente ao começar-se uma grande colheita, que aliás poderia, quando feita, preencher apenas os desfalques das falhas dos annos anteriores. Ficam, é certo, os trabalhadores actuais; mas questão não é de numero, nem de individuos, e sim de organização, da qual depende principalmente a effectividade do trabalho, e com ella a produção da riqueza. É inconstitucional porque ataca de frente, destroe e aniquila para sempre uma propriedade legal, garantida, como todo o direito de propriedade, pela lei fundamental do imperio entre os direitos civis de cidadão brazileiro, que della não póde ser privado, sinão mediante previa indemnização do seu valor.

O oportunismo ideológico era tão grande que os ex-escravos passariam fome na liberdade, e a responsabilidade seria dos abolicionistas e da Abolição, e não dos fazendeiros interessados apenas na exploração da mão de obra escrava. A cegueira via os escravos na fome, não com terra e seus filhos na escola.

Hoje, é comum o argumento de inconstitucionalidade cada vez que se defende fazer o que não foi feito mais de cem anos atrás: distribuir terra improdutiva a trabalhadores desempregados é visto como inconstitucional; responsabilizar o governo federal pela educação das crianças é tido como inconstitucional; determinar que os filhos dos políticos com mandato estudem em escolas públicas é inconstitucional.

Os perigos que se antolham com este precedente, já foram assignalados, do modo o mais claro e positivo, pelo meu ilustre amigo, que me precedeu na tribuna.

Preciso terminar, Sr. Presidente, e chego á ultima parte do meu discurso. Confesso-me vencido.

Si nesta adversidade da fortuna politica, eu, que nunca as procurei, precisasse hoje de consolações, teria entre outras as seguintes: é hoje a minha sorte a do Partido Conservador. Emquanto a resistência prevalece, está elle triunphante; no momento em que é supplantada, deve reconhecer o predomínio de idéa triumphante. Sou vencido, é verdade; mas na ordem material, pelo numero e

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pela força das circumstancias, porque na ordem moral, a minha personalidade não se aniquiliou; mantém-se illesa, como sempre. Não sou, porém, o unico vencido; sorte analoga de um companheiro illustre não permite que neste momento me apresente só. Refiro-me a um honrado membro, de cujas opiniões talvez o Senado se não recorde, mas cujas palavras, proferidas não ha muito tempo, parece que o foram na previsão desta proposta, á qual se adaptam de tal maneira, que, não tendo esse meu companheiro de adversidade se pronunciado até hoje sobre a proposta, desejo, Sr. Presidente, que fique consignado o modo porque considerou, em sua previsão, acto que se vai praticar.

A Abolição era uma derrota para ele. Para ele a moral era compatível com a luta pela manutenção da escravidão. E critica João Alfredo por ter mudado de lado, citando texto dito no passado por este.

O Senado relevará que eu leia, com alguma emphase, as palavras que vai ouvir; li-as, porém, uma e cem vezes, e quase as leis de cor, tão incisivas e terminantes são ellas. Quando sentia entibiar-se-me um pouco a coragem, eu as relia nova-mente e nellas achava sempre conforto seguro á minha crença, novo vigor, nova animação, novas esperanças:

Eu estou convencido de que o Brazil não ha de perecer pela falta de escravos: mas não posso deixar de ter na maior consideração as difficuldades desta liquidação, que a politica, todas as razões de Estado, os interesses economicos, os interesses industriaes, aconselham se faça com a maxima prudencia, com o menor prejuizo possivel das fortunas em boa fé adquiridas. (Apoiados.)

O Sr. João Alfredo: - Mas, senhores, em todo caso hão de ser medonhas as deslocações das fortunas, as transmutações rapidas de situação, e por uma engrenagem forçada, eu pergunto: durante esse annos affilictivos de transição onde iremos buscar meios que bastem para todos os encargos do Estado, para toda a nossa vida e serviços da administração?

O Sr. Fernandes da Cunha: - Deus permita que a crise se estenda apenas a um período decennal.

O Sr. João Alfredo: - Senhores, muito infeliz foi o Brazil, herdando esta instituição; porém, mais infeliz será si a sua extincção não for conseguida mediante sabias cautelas e previsões, de modo que não acarrete graves perturbações. Como quer que seja, eu applico a esta questão o que dizia Thiers, da Turquia: A Turquia vive, porque é dificil supprimil-a, e quando a matarem, o seu cadaver ha de empestar a Europa por mais de 50 annos.

É sintomática da cultura política da elite brasileira, que entre as “sábias cautelas” não estava dar terra para os ex-escravos trabalharem, nem escolas para seus filhos estudarem.

Nós temos o duro engargo desta liquidação; procedamos, não como homens que se deixam levar pelas ameaças e vivorios, mas como homens que se compene-traram do seu dever, e que, em vez dessas glorias da praça publica, querem uma gloria real e verdadeira, que propocione dias tranqüilos e felizes á sua patria.

O Sr. Fernandes da Cunha: - Um estadista não se deixa levar pela popularidade.

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O Sr. João Alfredo: - Podem ser muito seductoras as glorias de Lincoln e seu partido, inundando de sangue o solo da patria, accumulando ruinas, destruindo, brusca e violentamente, a propriedade servil, de que o Estado tinha maior culpa que os particulares, não admittindo indemnização, nem permittindo ente os antigos senhores e os libertos nenhuma condição de serviços tempora-rios, e até confiscando as demais propriedades daquelles... A mim mais seduz e admira a corajosa honestidade com que o presidente Johnson resistiu aos vencedores, procurando evitar, e em todo caso moderando, a revolução social que se operava ao sul.

Ninguém aspira com mais ardentes votos do que eu a extincção da escravatura no Brazil; mas desejo a reforma com espirito e processo conservador. Desejo ver a corrente da opinião, que está formada, prosseguir dentro da lei, sem offensa dos principios fundamentaes da sociedade, como o rio, que, embora volumoso e rapido, corre pacificamente em seu leito, sem transbordar.

Pior é que provavelmtente não era hipocrisia, era a arrogância que até hoje se mantém nas classes e grupos conservadores que não acreditam que oferecendo terra e escola, naquela época, os escravos não apenas sobreviveriam, como também construiriam um novo país. O Sul dos EUA, até cem anos depois, tampouco liberou os ex- escravos para a vida moderna. Por meio da segregregação mantiveram-nos excluídos.

“Ninguém mais deseja do que eu” era a frase mais ouvida da boca de cada escravocrata; “mas me preocupo com a pressa e com os riscos” é o que eles diziam para justificar “apenas o adiamento”. Como se adiar uma situação não fosse mantê-la.

O mesmo fazemos hoje, com o quadro de apartação que substituiu a escra-vidão. Todos dizem “ninguém mais do que eu” e “apenas defendo o adia-mento das medidas para quebrar a apartação, porque não há recursos suficientes.”

A verdade de tudo mudar, para nada mudar. Repetindo, como disse ex-pre-sidente Luiz Inácio Lula da Silva: “quem come apressado, come cru”.

Os Srs. Fernandes da Cunha e Presidente do Conselho trocam apartes.

O Sr. João Alfredo: Eu referi-me ás grandes desgraças do sul dos Estados-Unidos. Si aquella grande nação pôde resistir á extincção brusca e violenta do elemento servil, é porque tinha grandes condições de prosperidade, e a parte importante do Norte não dependia do trabalho escravo.

O Sr. Dantas (presidente do conselho): A questão lá foi resolvida de modo differente.

O Sr. João Alfredo: Mas as desgraças que pesam sobre o Sul são tantas e tamanhas, que em meio seculo talvez não possam ser reparados.

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O nobre presidente do conselho é hoje, com grave injustiça feita a S. Exa, collo-cado entre os vencedores; não posso, conhecendo suas opiniões, proclamando a sinceridade dellas, deixar de assignalar-lhe, neste momento, o seu logar, para que venha tomal-o aqui ao lado vencidos.

O Sr. João Alfredo (presidente do conselho): Nunca estivemos juntos nesta questão: ella nos separou desde 1871.

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DIA 13 - DoMINgo

Em seu livro “A Escravidão Africana no Brasil”29 , Evaristo de Moraes Filho descreve os últimos debates.

“No último dia da escravidão, ainda uma voz se ergueu no Senado para fazer oposição platônica ao projeto vitorioso. Foi a de Paulino de Sousa. Reeditou os argumentos de Figueira e de Cotegipe. Fez um pouco de história política e atirou-se contra João Alfredo.”

As atas descrevem esse momento:

O Sr. Paulino de Sousa: - São tantas as impaciencias, que não posso deixar de concluir, e sem demora; tanto mais quanto é sabido, Sr. Presidente, e os jornaes todos que li esta manhã annunciam, que Sua Alteza a Serenissima Senhora Princeza Imperial Regente desceu de Petropolis e está á 1 hora da tarde no paço da cidade a espera da deputação desta casa, para sanccionar e mandar promulgar já a medida ainda ha pouco por V. Exa sujeita á deliberação do Senado. Cumpri, como as circumstancias permittiram, o meu dever de senador; posso cumprir o de cavalheiro, não fazendo esperar uma dama de tão alta jerarchia; e si assignalo o facto, é para a todo o tempo ser memorado nos annaes do nosso regimen parlamentar.

Devo, antes de terminar, dizer que illudem-se ou querem illudir-se aquelles que acreditam remover uma grande difficuldade com esta lei da abolição do elemento servil; pelo contrário, é agora que recrescem, com a desorganização do trabalho e com a entrada de 700 mil individuos não preparados pela educação e pelos habitos da liberdade anterior para vida civil, as contingências previstas para a ordem economica e social. Si para amparal-os, ajudal-os e defendel-os, nesta transição, inesperada e talvez affictiva, precisarem de mim, a minha provincia e a classe da lavoura, a que pertenço, continuarão a encontrar em mim a mesma dedicação, o mesmo esforço e a mesma coragem.

Ele reclama que o Brasil está recebendo 700 mil novos indivíduos “não preparados pela educação e pelos hábitos da liberdade”. Como se este despreparo fosse culpa da Abolição, dos abolicionistas, e não da escravidão, dos escravocratas. Como conservador, alerta para a tragédia de escravos deseducados. Sem pensar nem propor em como educá-los e inseri-los. Mas, como criticá-lo se até hoje não fizemos o que ainda é necessário. O fato é que o Brasil, antes e agora teve seu projeto de desenvolvimento visto do topo, nunca da base da pirâmide da sociedade. Daí decorre todo o desastre social que atravessamos. Somos todos Paulinos de Souza.

29 MORAES, Evaristo de. “A escravidão africana no Brasil”. Ed: Brasília/INL. 1986.

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Mas... não quero deter por mais tempo o prestito triumphal, que já se enfileira na sua marcha festiva! Quando elle passar por mim achar-me-ha neste logar representando a minha provincia, os meus companheiros no trabalho agri-cola, coherente com os deveres, já preenchidos, da missão que me incumbi de desempenhar em nome e em defesa de grandes interesses nacionaes. Sejam quaes forem os sentimentos que no coração se me possam expandir na hora em que todos forem livres nesta terra do Brazil, os guardarei commigo, silencioso, vencido, mas sem que se me possa contestar um titulo a respeito publico – o de ter preferido até hoje, como hei de preferir sempre, a lealdade, a integridade e honra politica a todas as glorias, a todas as grandezas. (Muito bem! Muito bem!!)”

Evaristo de Moraes Filho nos brinda com outra bela descrição: “O hino da vitória cumpria fosse entoado por um propulsor da ideia, e o foi por Sousa Dantas, que com extrema delicadeza não se mostrou ressentido com os ataques dos escravocratas, nas duas câmaras, quando, historiando os antecedentes, se referiam ao seu Ministério. Não havia, na alma do esta-dista baiano, lugar para sentimentos depressivos; toda ela, de si mesma expansiva e exuberante, irradiava alegria.”

As atas detalham o momento grandioso da fala do senador Souza Dantas:

Não é para fazer um discurso que me levanto, contrariando, bem o sinto, a impaciência geral, aliás louvável. Chegamos ao termo da viagem emprehendida, e, mais feliz do que Moyses, não só vemos como pisamos a Terra Promettida. (Muito bem!)

Sendo assim, Sr. Presidente, nada de recriminações, nada de retaliações!

Mas o Senado, hontem e hoje, pela voz de dous de seus mais illustres membros, ao mesmo tempo dos mais respeitaveis e eminentes chefes conservadores, ouviu, com o publico que nos honra com sua presença, dous discursos, qual mais importante, ambos igualmente identificados no mesmo fim: annunciar á nossa patria, por este acontecimento que se está realizando e que a todos enche dos mais vivos e intensos regozijos, grandes perigos, quer para sua vida financeira e economica, quer para a sua vida politica.

Ao mesmo tempo as palavras destes dous illustres senadores mais de uma vez envolvem uma condemnação do ministro 10 de Março por ter, no entender delles, commettido a alta imprudencia de incumbir-se desta gloriosa tarefa; mas que teve, para nós liberaes abolicionistas, alto merito de comprehender que esta questão não podia comportar um minuto sequer de adiamento.

Eu não venho agora apurar, diante do Senado, nem a queda do gabinete 20 de Agosto, nem a organização do 10 de Março. Tão pouco indagarei si este ministro deixou de inspirar-se nos sentimentos do conservadorismo partidario.

Mas devo declarar que, nesta occasião, sinto o maior desvanecimento, estendendo-lhe mão agradecida em nome de todos os Brazileiros, em nome particularmente daquelles que eram as victimas e que comparticipam desta victoria, devida ao passo glorioso, que deu o gabinete para attingir com desassombro ao desenlace final e completo deste grande problema. (Apoiados.)

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Sr. Presidente, é justo, é de toda a necessidade que partam de mim, em nome do partido abolicionista, palavras de esperança e de animação que façam desaparecer as de desanimo e de desalento dos honrados senadores que me precederam. (Apoiados.)

Senhores, a abolição da escravidão não marcará para o Brazil uma epoca de miseria, de soffrimentos, uma epoca de penuria. (Apoiados.)

Isso vale para um projeto de revolução na educação, que reserve os recursos nacionais, financeiros, humanos e organizacionais necessários para este fim.

Uma simples consideração, porque a discussão longa virá depois, bastará para tranquilisar os que se aterrarem com os presagios dos dous honrados senadores que me precederam: dentro do espaço de 17 annos, 800.000 escravos têm desa-parecido do Brazil. Pois bem, senhores, é justamente neste periodo que se nota maior riqueza no paiz, grande augmento de trabalho e com elle maior produção, e, como consequencia, consideravel augmento na renda publica.

Si, pois, este facto se deu; si foram estas as consequencias da diminuição, em mais de metade, do trabalho escravo, o que se deve esperar é que o desapparecimento de 600.000 creaturas escravas não produzirá a nossa ruina, antes augmentará a nossa prosperidade e o engrandecimento do Brazil, graças ao trabalho livre, ao trabalho, o que não só levantará os creditos da nossa patria, como attrahirá para nós o estrangeiro, que encontrará no solo fecundo e uberrimo deste paiz certas e inexcediveis vantagens.

Mesmo os abolicionistas falavam em desaparecimento, e não em incorpo-ração dos escravos, da vida nacional. Não é de admirar que o preconceito racial continue até hoje. Que o Brasil tenha abolido a escravidão sem fazer a inclusão.

Eu devo tambem dizer ao Senado e ao paiz que não vejo esses perigos de que se fizeram écho aqueles que impugnaram o projecto que, dentro em pouco, estará convertido em lei.

Quer me parecer que tremem diante do facto de praticar uma reforma tão radi-calmente liberal, porque isso servirá de incitamento para que outras reformas, igualmente liberaes, se possam emprehender e realizar em nossa patria.

Mas, senhores, que perigo haverá? Por minha parte não creio nelles. (Apoiados.)

Dado, porém, que surjam taes perigos e que subam tão alto que ameacem até a primeira e a mais elevada entidade do nosso systema politico, taes perigos se dissiparão desde que no coração do povo Brazileiro estiver arraigado o amor das instituições que nos regem; sómente assim ellas encontrarão em cada um quem as sustente!

Fallando deste modo, eu não faço sinão dizer a verdade ao paiz, sinão apontar o caminho a seguir, e este deve ser o da manutenção das instituições liberaes, o que só se conseguirá praticando-se uma politica de liberdade e de democracia. E nem esta linguagem metta medo a ninguem, dentro e fora deste recinto.

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Não ha muitos mezes, Sr. Presidente, Sagasta (actual presidente do conselho) e Martos, dous grandes estadistas da velha Hespanha, terra onde imperou a inquisição e de tradições seculares, disseram da tribuna parlamentar, e em um dia de festa nacional, á Rainha Regente que, si ella queria ver radicada e consolidada na Hespanha a instituição de que era a primeira representante, adoptasse fracamente a politica de expansão e de liberdade.

As reformas liberaes não podem, portanto, ser um perigo no Brazil.

Ellas serão, sim, o complemento, o remate, a consequencia natural do passo que estamos dando; e si nossas instituições se vissem ameaçadas pelo que estamos fazendo, eu diria: mais vale, Sr. Presidente, cingir uma corôa por algumas horas, por alguns dias, comtanto que se tenha a immensa fortuna de presidir á existencia de um povo e de com elle collaborar para uma lei como esta, que tirar da escravidão a tantas creaturas humanas, do que possuir essa mesma coroa por longos e dilatados annos, com a condição de conservar e sustentar a maldita instituição do captiveiro. (Apoiados. Muito bem!)

Esta frase ficou profética: 18 meses depois, a República retira a coroa da cabeça de D. Pedro II, de sua sucessora, a Princesa Isabel e seus descen-dentes. De que teria valido mais alguns anos de Monarquia, no lugar da honra de terem, tardiamente, depois de quase 50 anos no Trono, abolido a escravidão? Essa reflexão deveria ser feita também pelos políticos de hoje, que olham o poder sem olhar a história.

Não ha, portanto, perigo algum; e até onde a minha voz, a minha responsa-bilidade, a confiança que eu possa inspirar aos meus concidadãos; até onde a minha experiência dos negocios, o meu estudo de todos os dias, me puderem dar alguma autoridade, eu direi desta cadeira a todo o Brazil que nós hoje vamos constituir uma nova patria; que esta lei vale por uma nova Constituição. (Muito bem, muito bem!)

O Sr. Jaguaribe: - É o complemento da Independencia do Brazil.

Substituam as palavras “escravo”por “deseducado”, “escravidão” por “educação”, e essa frase pode ser dita hoje com a mesma força. Sobretudo lembrando que o verdadeiro complemento da Independência no século XXI seria acesso à educação de qualidade para todos, e qualidade igual. No século XIX era preciso incorporar os braços fortes e livres dos escravos, no século XXI é preciso incorporar os cérebros livres e bem educados de todos.

Mas a cegueira ideológica não era apenas de conservadores, os liberais não viram que as classes dirigentes aprovariam a Abolição, mas não incorporariam as massas no projeto nacional. Quando necessário dariam golpe militar, cooptariam progressistas, mas não fariam do Brasil um país de todos.

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O Sr. Dantas: - Neste caso, Sr. Presidente, eu vou concluir, pedindo a todos que nos levantemos, que façamos ala á passagem dessa lei, que marcará para nós o maior acontecimento da nossa historia; e que todos, ao mesmo tempo, congratu-lando-nos, honrando mesmo aos nossos adversarios, á frente dos quaes se acham dous cidadões cobertos de serviços, cheios de meritos, merecendores de toda a veneração de nossa patria, digamos: Gloria a Deus na alturas! E, proseguindo neste caminho, o Partido Liberal francamente tal, o Partido Liberal, que não tem medo das idéas liberaes, nem das suas consequencias, uma vez convertidas em lei, poderá contar que ha de ter o mesmo apoio que sempre teve de mim nesta questão da redempção dos captivos. (Bravos! Muito bem!)

Eu devo, Sr. Presidente, como homenagem de gratidão, de amisade e de saudade, recordar neste momento palavras que por um acaso feliz vi hontem transcriptas na Redempção, de S. Paulo, e foram aqui proferidas por José Bonifacio. Na sessão de 8 de Outubro de 1886, dirigindo-se ao então ministro da Agricultura, o honrado senador Antonio Prado, José Bonifacio disse:

O estado do paiz ha de convencel-o de que é necessario acabar o quanto antes com a escravidão, lepra que nos corroe e vulcão que nos ameaça. Tenho profunda convicção que o maior perigo da actualidade é o escravo, com todos os seus direitos illudidos. O captiveiro está morto e não póde resuscitar; é preciso enterral-o. Não teremos partidos, não teremos governo, não teremos cousa alguma, emquanto a escravidão entrar como elemento perturbador da ordem moral e social.

Hoje, esta “lepra” que nos corrói, este “vulcão” que nos ameaça, é a degra-dação a que deixamos chegar a educação de nossas crianças. “Não teremos coisa alguma, enquanto o abandono da educação entrar como elemento pertubador da ordem moral e social”.

Pois bem, senhores, a nossa tarefa, por este lado, está terminada; e como nos annunciou ha pouco o nobre senador pela provincia do Rio de Janeiro que do desapparecimento da escravidão outras necessidades, outras reclamações vão apparecer, oriundas dos interesses creados por aquellas maldita instituição de envolta com outras necessidades e outras necessidades e outras reclamações de nossa vida politica, eu, desde agora, ponho-me á disposição de quem quer que esteja no governo, para constinuar a servir ás idéas liberaes, porque, paro-diando um pensamento resumido em três pequenos versos do XIII século; direi:

Ó Libertad! Luz Del dia! Tu me guia! Vozes: - Muito bem, muito bem. (Bravos e repetidos applausos das galerias.)

“Nossa tarefa, por esse lado está terminada”, frase que não podemos dizer os que substituímos os parlamentares de então, ao longo de mais de um século.

Ainda descreve Evaristo:

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“Falou, também, mas com espírito de polêmica, o senador Manuel Francisco Correia, que servira como ministro de Estrangeiros com Rio Branco e que, saindo do ministério, sempre ligado ao glorioso visconde, presidira a Câmara de 1847 a 1875. Parecia a ele que não eram de temer as catástrofes anunciadas pelos adversários do projeto. Transformando, como ia ser, em lei, só traria benefícios econômicos e políticos para o Brasil.”

O Senador Correia, do Partido Conservador, fez um discurso declarando que a Proposta era uma questão social e que“é grande fortuna para o Império que a lei possa ser promulgada, revisitada da força moral e do prestígio que lhe dá o acordo refletido e quase unânime de ambas as parcialidades políticas.”

O momento não é para discutir, é para deliberar; mas podem ser convenientes algumas palavras opportunas da parte de um membro do Partido Conservador, que aceita, convencido, a proposta sobre que vamos votar.

Tem-se apontado na discussão o perigo, o risco das instituições.

Senhores, si as instituições pudessem neste instante estar em questão, ellas teriam hoje o seu dia derradeiro. Mas assim não é, assim podia ser, assim não era justo que fosse.

Tem-se feito tambem referencia a mudanças bruscas de opinião na questão servil. É facto previsto. E seja-me licito recordar poucas palavras que aqui proferi na sessão de 26 de Setembro do anno passado (lê):

Ha questões que marcham. A que nos occupa é uma. Os que têm de lidar com ella não podem perdel-a de vista. Distanciam-se, e não mais podem consideral-a qual é.

Á proporção que a idéa caminha, os horisontes se modificam, o panorama varia. Os obstaculos que surgem em um ponto desfazem-se adiante. O terreno acci-dentado se vai aplainado pouco a pouco, e descobre-se afinal o leito por onde as aguas, antes caudalosas, podem seguir serenamente para o natural escoadouro.

Eis o que explica, nas questões em marcha, mudanças que parecem bruscas na opinião. O ponto cobiçado tem de ser necessariamente attingido; á proporção que elle se avisinha, a impaciencia cresce. E si á força da idéa reune-se o brado da consciencia, a distancia encurta-se illuminando o espirito, despertada a consciencia, a cujos dictames todos obedecem por lei providencial, a resistencia cessa, as vozes confundem em um só clamor, a politica alia-se á philantropia, o bem triumpha.

Com taes elementos, que estão em jogo, não ha negar, a escravidão será em poucos annos apenas uma sombra no passado, sem pertubar com desastres e ruinas ás alegrias do futuro, absolvido por nobre expiação o erro de hontem, pelo qual não é originalmente responsável a nação brazileira.

Tem-se ainda appelado para os transtornos que desta proposta hão de porvir. Sei bem que não se extirpa do organismo social um cancro secular sem que pertubações se operem. Nunca mais ha de abrir-se, porem, a cicatriz desta ferida:

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e sobre ella se levantara – o patriotismo e o bom senso dos brazileiros o indica – o grande edificio da crescente prosperidade de nossa patria. (Muitos apoiados.)

Tem-se querido ver uma questão politica no melindroso assumpto sobre que estamos resolvendo. Ainda ha pouco o meu illustre amigo senador pelo Rio de Janeiro dizia: não compete aos conservadores presidir á extincção da escravidão: mas ao Partido Liberal pela natureza da materia.

Divirjo do meu nobre amigo.

Trata-se de uma questão social, ou, si quizerem, de um ponto de politica nacional: e é grande fortuna para o imperio que a lei possa ser promulgada, revestida de força moral e do prestigio que lhe dá o accôrdo reflectido e quase unanime de ambas as parcialidade politicas (Apoiados; muito bem, applausos das galerias.)

Os assistentes tem o dever de não interromper-me, e eu o peço tambem como obsequio. Concluindo direi: convém que o projecto que se discute, e que o honrado ex-presidente do conselho, com sua autoridade e experiencia, declarou inadiavel, saia desta casa com inteira adhesão, e sob a responsabilidade dos partidos politicos do Brazil. (Muito bem: muito bem, applausos das galerias.)

Chegaram a um acordo suprapartidário. A Proposta entra em votação, é aprovada com apenas dois votos contra: dos senadores Paulino de Souza e do Barão de Cotegipe, e vai para sanção Imperial. As Atas descrevem o processo:

O Sr. Presidente designa a deputação que apresentará á Sereníssima Princesa Imperial Regente do Império os autógrafos do Decreto. Foram escolhidos os Senadores Dantas, Affonso Celso, Teixeira Junior e Escragnolle Taunay (Membros da Comissão Especial) que deu parecer sobre a proposta aprovada, com excepção do Visconde de Pelotas (por motivo de doença), mais os Senadores sorteados Visconde de Paranaguá, Ignácio Martins, de Lamare, Franco de Sá, Barros Barreto, Correia, Pereira da Silva, Cândido de Oliveira, Ferreira da Veiga e Jaguaribe.

Em uma bela descrição, Evaristo de Moraes Filho diz: “Em seguida, parti-cipou o presidente do Conselho que a princesa regente estaria à disposição dos representantes do Senado no Paço da Cidade, às 3 horas. Viera ela, desde Petrópolis, recebendo manifestações. No Arsenal da Marinha era aguardada por grande massa popular, que a acompanhou até o Paço, na hoje Praça 15 de Novembro.”

“Fora o edifício invadido por pessoas de todas as classes sociais. Derredor dele, moviam-se para mais de cinco mil pessoas, presas de transbordante entusiasmo, numa expansão incoercível de sentimentos efusivos.

Penetrou a regente no Paço acompanhada do marido, e dos ministros da Agricultura e do Império, dirigindo-se para a sala do trono. Entregou-lhe o senador Dantas os autógrafos, dizendo-lhe algumas palavras.”

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Palavras descritas nas Atas:

Senhora, A commissão especial do Senado, tendo cumprido o dever de apresentar á sancção de vossa Alteza Imperial Regente a lei que extingue desde hoje a escravidão em nossa patria, pede reverentemente vênia a Vossa Alteza Imperial para: em primeiro logar congratular-se com Vossa Alteza Imperial e com todos os Brazileiros, pelas auspiciosas noticias, que o telegrapho nos transmitiu, de achar-se melhor de seus graves padecimentos Sua Magestade o imperador, o Primeiro Representante da Nação, e tambem o primeiro entre os mais esforçados propugnadores do grande e jubiloso acontecimento que acaba de realizar-se;

E em segundo logar para felicitar a Vossa Alteza Imperial, por caber-lhe a gloria de Assignar a lei que agora dos nossos codigos a nefanda macula da escravidão, como já Lhe coube a de Confirmar o decreto que não permittiu nascerem mais captivos no Imperio do Cruzeiro.

Sua Alteza Imperial Regente Dignou-se Responder:

Seria o dia de hoje um dos mais bellos da minha Vida, si não fosse Saber Meu Pai enfermo. Deus permittirá que Elle nos volte para Tornar-se, como sempre, tão util á nossa Patria.

Termina a vergonha moral de quase meio milênio, a luta social de séculos e luta política de décadas para eliminar a escravidão. O projeto se trans-forma na Lei no 3.353, de 13 de maio de 1888.

As palavras da lei que mudou o Brasil, a partir de 13 de Maio, não começaram naquele ano de 1888, foram aprovadas com manifestações contrárias, e até hoje não trouxeram todos os benefícios esperados.

Evaristo de Moraes Filho descreve a comoção daquele instante: “Assinados os autógrafos, ouviram-se estrepitosas aclamações nas janelas do Paço e na rua. Como alucinado, José do Patrocínio atirou-se aos pés da princesa, procurando beijá-los. De uma das janelas, Joaquim Nabuco comunicou à multidão que não mais existiam escravos no Brasil”.

Um país é feito das emoções de sua história, em geral com uma frase de algum líder. Esta comunicação de Nabuco é um destes momentos, talvez o maior até hoje.

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Com a assinatura da Princesa Isabel e do Ministro da Agricultura, mudava radicalmente a vida dos 800 mil escravos brasileiros, que trocavam a vergonha pela esperança. Em mais de um século de história, nenhuma outra legislatura fez qualquer outro gesto tão radical a favor do nosso povo. É como se todos os parlamentares que o Brasil teve desde então tenham se negado a completar o que foi feito naqueles dias de maio.

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Depois de 13 de maio

No dia 24 de maio, mesmo depois da sanção da Lei pela Princesa, os escra-vagistas não se deram por derrotados. Já que não seria possível manter escravos, passaram a lutar por uma indenização.

Foi lido, na Câmara dos Deputados, o Projeto no 10, de 1888, de autoria do Deputado A. Coelho Rodriguez que mandava o governo indenizar os prejuízos resultantes da extinção do elemento servil. Para tanto autorizava a emissão de títulos da dívida pública para pagar aos proprietários de escravos, ressarcir o valor do capital em seres humanos. Não se pensou em emitir títulos da dívida para indenizar ex-escravos pelo sofrimento ao longo da vida, nem para financiar escolas para seus filhos, mas tomou-se a iniciativa de indenizar escravagistas, que surpreendentemente não prosperou.

Foi para evitar que, em nome do direito adquirido, os ex-proprietários entrassem em juízo pedindo indenização, que o regime republicano, em 14 de dezembro de 1890, determinou a incineração de todos os “livros e papéis referentes ao elemento servil”. O documento está assinado por T. de Alencar Araripe, e não por Rui Barbosa, que parece ter sido o autor da decisão.

Aqui, a disputa não foi entre a ética e a política, como ao longo de todo período da escravidão, mas entre a política e a história. Esta foi sacrificada, como meio de reduzir o poder dos escravocratas e seus descendentes. Estivessem aqueles papéis guardados, o conceito de direito adquirido dos ricos certamente permitiria que herdeiros dos donos de escravo encon-trassem, ainda hoje, algum juiz que lhes daria ganho de causa, aplicasse juros e correção monetária e cobrasse do governo a desapropriação feita em 13 de maio de 1888.

Algum juiz provavelmente daria direito a um dono de escravo e seus descendentes, mesmo que em nenhum momento tenha havido uma lei

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autorizando a escravidão. A lei foi necessária para abolir, nunca para escravizar. Os ricos se beneficiam dos hábitos sociais, mas, para mudá-los, são necessárias leis. Em 13 de Maio de 1888 foi aprovada uma lei, depois de décadas de batalha política, para eliminar a escravidão que não se baseava em lei alguma. Se aqueles papéis tivessem sido guardados, a lei certamente teria servido, em algum momento de nossa história, para ressarcir os escravocratas.

Segundo consta na página 339 das Obras Completas de Rui Barbosa30 : “Base jurídica não havia, mas existia o problema latente. A ameaça da indemnização sem dúvida o atormentava. Não obstante a ausência de fundamento jurídico para tanto, mas isso não bastava, sabendo-se que no Brasil até mesmo a posição do alfabeto se controverte, e, por vezes, vence o sofisma.”

Circular nº 29, do Ministerio dos Negocios da Fazenda. – Rio de Janeiro, 13 de maio de 1891.

Convido, para cumprimento das instrucções expedidas por este ministerio em 14 de dezembro de 1890, que fiquem extinctos todos os livros e papeis referentes ao elemento servil, recommendo aos srs. Inspectores das thesourarias da Fazenda que providenciem, com toda a urgencia, para que sejam incinerados sem demora os livros de lançamento e as declarações feitas para a cobrança da taxa de escravos, e os mandados devolvidos ao juizo que os houver expedido, ex-vi do art. 5o da lei no 3396 de 24 de novembro de 1888; desapparecendo por este modo os últimos documentos que attestam a ex-propriedade servil.

A incineração será feita em presença da Junta da Fazenda, e disto se lavrará uma acta minuciosa, da qual se remeterá copia a este ministerio.

E, para que a falta de taes livros não affecte á responsabilidae dos exactores, cujas contas ainda não tenham sido tomadas, quanto á arrecadação daquelle imposto, deverá a verificação dessa resposabilidade ser feita pela confrontação da importancia das certidões ex-trahidas dos talões, com as partidas do livro da receita. – T. de Alencar Araripe.

A história perdeu, mas a Abolição foi protegida pela incineração dos documentos e informações relacionadas à escravidão. Um caso em que a política do momento se faz mais justa do que o conhecimento histórico no futuro.

Em 20 de dezembro de 1890, foi publicada uma moção do Congresso, apoiando o Decreto que determinava a queima de todos os papéis em

30 Obras Completas de Rui Barbosa - Atos Legislativos, Decisões Ministeriais e Circulares, com Prefácio e Notas de José Gomes Bezerra Câmara, organizadas pela Fundação Casa de Rui Barbosa.

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arquivo sobre a posse dos escravos.Apagavam-se muitos comprovantes da maldade histórica, mas evitava-se o risco da maldade jurídica.

MOçãO DO CONGRESSO, DO DIA 10-12-1890, MAS PUBLICADA NA SESSãO DE 20 de DEZEMBRO

“O Congresso Nacional congratula-se com o governo Provisorio por ter mandado fazer eliminar dos archivos nacionaes os ultimos vestigios da escravidão no Brazil.

Em 10 de dezembro de 1890.

Barão de S. Marcos – General Almeida Barreto – Matta Bacellar – Annibal Falcão – Luiz Delfino – Urbano Marcondes – Fonseca Hermes – Domingos Rocha – D. Manhães Barreto – João Lopes – José Avelino – Barbosa Lima – Uchôa Rodri-gues – Serzedello Corrêa – Oliveira Pinto – João de Siqueira – Espírito Santo Pereira de Lyra – J. Ouriques – Jesuino de Albuquerque – Pedro Velho – José Bernardo – Epitácio Pessoa – Prisco Paraíso – Theodureto Souto – Dr. Ferreira Cantão – Paes de Carvalho – Frederico Borges – Costa Rodriques – L. Mullir – Tolentino de Carvalho – A. Milton – Santos Pires – Marciano de Magalhães – B. Mendonça – Augusto de Freitas – Rosa Junior – M. Valladão – A. Stockler – Amorim Garcia – José Bevilaqua – Paula Guimarães – Dionysio Cerqueira – Francisco Argollo – A. Ornellas – Conde de Figueiredo – José Simeão de Oliveira – Frederico Guilherme de Souza Serrano – Virgilio C. Damásio - Juvêncio de Aguiar – A. Azeredo – Joaquim Moutinho – Lauro Sodré – Victorino Monteiro – Índio do Brazil – Lopes Trovão – Carlos Campos – Athayde Junior – Moniz Freire – Gil Goulart – J. Retumba – Menna Barreto – Marcolino Moura – S. L Medrado – Artur Rios – J. J Seabra – Custodio José de Mello – Belfort Vieira – A. Moreira da Silva – F. Mayrink – Coronel Pires Ferreira – Antonio Justiniano Esteves Junior – Raulino Horn – Raymundo de Andrade – José Mariano – Belarmino Carneiro – Pedro Américo – Almeida Pernambuco – Luiz de Andrade – Zama – André Cavalcante

– João Barbalho – J. Meira de Vasconcellos”

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A Abolição não terminou

No dia seguinte ao 13 de Maio, o Brasil acordou com os negros em festa, os brancos em uma indiferente perplexidade e os latifundiários indignados. Os jornais transcrevem a realidade de um país que acaba com a escravidão, trezentos e cinquenta anos depois de iniciada.

Em 14 de maio de 1893, Machado de Assis, rememorando o dia da Abolição, disse: “Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra ter visto.”

O tempo mostraria que o otimismo não se justificava plenamente. Apesar do fim da possibilidade de venda de pessoas e de imposição do trabalho forçado pela violência do chicote, a Abolição pouco representou na quali-dade de vida dos ex-escravos. A maior parte deles continuou trabalhando nos mesmos postos, sem salários ou com de salários extremamente baixos. No campo, esta situação foi ainda pior, porque se manteve uma relação de escravidão sem escravos.

Eliminaram dos arquivos, mas não eliminaram das ruas, nem da realidade. Ao redor continuam até hoje muitos dos sinais da escravidão: a desigual-dade social, liberdade para sobreviver no abandono, um círculo vicioso que há mais de um século mantém os filhos dos pobres tão distantes dos filhos da elite quanto no tempo de seus antepassados.

Paramos as chicotadas, paramos a venda de seres humanos, o trabalho forçado, mas no lugar mantemos o analfabetismo, esta chicotada perma-nente; o abandono dos filhos dos pobres; o desemprego que representa uma forma moderna de escravidão temporária.

Todos os dados mostram uma sociedade amarrada, dividida, pervertida, apesar de muito mais rica e tecnicamente moderna. Amarrada, porque a população não dispõe de mão de obra com capacidade para fazer funcionar plenamente uma economia baseada no conhecimento; dividida, porque o Brasil continua uma sociedade não integrada, onde, no lugar de escravos

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e senhores, está dividida entre elite e povão, incluídos e excluídos dos benefícios da contemporaneidade; pervertida, porque a desigualdade social se manifesta na exclusão da maior parte da população aos bens e serviços como educação, saúde e justiça, cuja desigualdade é imoral, indecente, não apenas desigual.

Mas mantemos o discurso político parecido com aquele do passado, dos Paulinos e dos Cotegipes: comemoravam a lei do Ventre Livre, mantendo-se a escravidão; comemoramos a Lei das Domésticas, negando escola para os seus filhos. Continuamos recusando a ideia do filho do pobre na mesma escola do filho do rico. Como se isso fosse tão impossível, tão original, quanto era a ideia da Abolição.

A situação dos pobres continuou de exclusão, como era a dos escravos; e embora a exclusão não seja uma característica apenas de negros, a raça negra é aquela que mais paga o preço da exclusão.

O Brasil ainda espera completar a Abolição. O caminho do desenvolvimento econômico seguido ao longo do século XX não trouxe esta complementação. O crescimento econômico já mostrou que não é o caminho automático para completar a Abolição.

A Abolição merece ser comemorada. Merece o feriado que foi determinado ainda durante as discussões sobre a Lei Áurea. Graças à luta de milhares de abolicionistas, ao longo de décadas, à revolta de escravos ao longo de séculos, à vontade, embora tardia, da Coroa, representada pela Princesa Izabel, ao esforço de políticos no Parlamento, esta data determinou o fim da perversidade da escravidão, da venda de seres humanos, do trabalho forçado, das sevícias legalizadas.

Cento e trinta anos depois da Abolição e da República, oitenta e cinco anos depois do primeiro salto de industrialização, trinta anos depois da redemocratização, quando o Brasil se afirma no cenário mundial como um dos países com mais elevado PIB no mundo, sua população continua indecentemente dividida quanto, embora a divisão não seja tão determi-nista, nem apenas por raça, ainda que a maioria das vítimas da exclusão social continue sendo de descendentes raciais dos escravos.

Em pleno século XXI, a Abolição não está completa. Diversos fatos da sociedade indicam a persistência da situação pré-Abolição, inclusive

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em condições mais desiguais do que antes do Treze de Maio. O Muro da Escravidão foi derrubado, mas no lugar foram feitos fossos que separam os brasileiros por classes sociais.

a) Concentração de renda

Até 1888, salvo alguns poucos latifundiários, todos eram pobres, embora nem todos fossem escravos. A concentração de renda era brutal entre um minúsculo grupo de “nobres” e a massa de brancos pobres; entre estes brancos pobres e os negros escravos havia a brutalidade da falta de liber-dade, do ser peça para venda, mas do ponto de vista de renda, os escravos não tinham nada e os outros, salvo raríssimos nobres, tinham muito pouco. Mais de um século depois, temos uma realidade de concentração de renda que fere qualquer imagem de abolição.

A classificação dos países do mundo segundo o Coeficiente de Gini31 nos mostra que o Brasil está na posição 121 entre 139 países, com um índice de 0,507. Isso significa que 120 países são menos desiguais do que o nosso32. Dentro do país a desigualdade se repete: os 40% mais pobres da população brasileira respondem por 13,3% da renda total do País, enquanto os 10% mais ricos detêm 41,9%; os 20% mais ricos ganham 16 vezes mais do que os 20% mais pobres33.

b) Brecha educacional

Salvo os casos de poucos latifundiários que enviavam seus filhos para estudar no exterior, a quase totalidade dos brasileiros era de analfabeto pleno ou analfabeto funcional. Entre escravos e pobres brancos, todos analfabetos ou semi-alfabetizados a brecha educacional era pequena. Em 1889, dos 10 milhões de brasileiros, 6,5 milhões eram analfabetos e apenas 600 mil34 eram escravos, quase seis milhões, portanto, eram analfabetos não-escravos.

31 O Coeficiente de Gini é uma medida comumente utilizada para calcular a desigualdade de distribuição de renda. Consiste em um número entre 0 e 1, onde 0 corresponderia à completa igualdade de renda e 1 à completa desigualdade. Ou seja, quanto mais alto o Coeficiente de Gini, mais desigual é o país

32 Fonte: CIA World Factbook (www.cia.gov)33 Fonte: Síntese de Indicadores Sociais 2012, IBGE.34 Fonte: Senado Federal (http://www.senado.gov.br/noticias/jornal/arquivos_jornal/arqui-

vosPdf/encarte_abolicao.pdf)

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Ao longo das décadas desde o “Treze de Maio”, a percentagem de analfa-betos diminuiu para 10%, mas o número absoluto dobrou para 13 milhões; o número de crianças que se matriculam chegou a mais de 90%, mas ainda temos 49% da população brasileira sem concluir o Ensino Fundamental35, e apenas 25% tendo concluído o Ensino Médio, e menos da metade desses com boa qualidade. E quase todos esses saídos de escolas privadas caras, ou de raríssimas públicas de qualidade, em geral federais.

O Brasil passou a ter 5,9 milhões de universitários, 161 mil alunos em cursos de pós-graduação, mas os descendentes sociais dos escravos continuam sem saber ler plenamente.

No mesmo período, as classes médias e altas passaram a ter uma educação aonde ir à universidade é quase um destino previsto em carimbo recebido ao nascer, mesmo sem talento; enquanto os outros recebem o carimbo de que ficarão analfabetos ou não terminam a educação básica com qualidade, mesmo que tenham talento potencial. E a escolha se dá, em grande parte, por transmissão hereditária por meio da renda da família, embora não apenas pela cor.

Ainda mais grave: antes a educação não era uma condição fundamental para a garantia de um emprego e inclusão na vida social, hoje para a mínima inclusão faz-se necessário educação de qualidade.

A brecha educacional entre os ricos e os pobres de hoje é maior do que era entre os escravos e os brancos pobres. Os primeiros, na quase totalidade, eram analfabetos; os outros, raramente sabiam ler.

c) A saúde desigual

Em 1888, a esperança de vida pode ser estimada em 27,8 anos36, hoje é de 74,637 . Mas este avanço tem uma cara diferente quando se analisa a desigualdade na esperança de vida das pessoas conforme a renda. Antes do Treze de Maio, havia uma desigualdade na esperança de vida entre um brasileiro escravo e um livre, devido às condições de trabalho forçado, assassinatos tolerados, maus tratos recebidos, e das condições sanitárias durante a travessia do Atlântico, mas esta desigualdade não derivava dos serviços médicos, que não eram muito diferentes entre a Casa Grande

35 Fonte: IBGE – Pesquisa Educação e Deslocamento - 2012, com base nos dados do Censo 2010.36 Fonte: IPEADATA (www.ipeadata.gov.br)37 Fonte: IBGE / PNAD 2012

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e a Senzala. Todos eram servidos por sistema precário: o conhecimento primário dos médicos e os chás medicinais não eram diferentes entre ricos ou pobres, escravos ou livres.

Graças à fragilidade dos serviços médicos, ricos e pobres, livres e escravos dispunham apenas de chazinhos como remédios, nenhum tinha os sistemas de higiene, nem qualquer dos equipamentos de prevenção, nem os mágicos medicamentos de hoje em dia. As doenças em geral não tinham cura igualmente para pobres e ricos, escravos e livres. Em alguns casos os ricos levavam desvantagem pelo excesso de comidas gordurosas, e a vida sedentária, e por desconhecerem os males que derivavam do estilo de vida.

Apesar de toda maldade, os escravos eram uma propriedade, um capital do seu senhor que se sentia prejudicado com a morte de uma de suas peças, tanto quanto um fazendeiro quando perde um animal caro. Isso não acontece com o trabalhador moderno, cuja morte não representa perda para o patrão, às vezes é uma vantagem pela “demissão” sem pagar direitos, nem risco dedisputas judiciais.

Passadas treze décadas, a medicina deu um salto que permite a cada pessoa com recursos financeiros ter as informações, comprar serviços e medicamentos que alongam sua vida; mas por falta de recursos os descendentes sociais dos escravos continuam excluídos dos mais modernos instrumentos de aumento na esperança de vida.

Antes, a esperança de vida, salvo a morte por fadiga ou por maus tratos, era a mesma para todos. Hoje, com o avanço das técnicas médicas a serviço das minorias privilegiadas, aumentou a brecha tanto na saúde quanto na esperança de vida. Pode-se estimar que aqueles com renda familiar per capita abaixo de um salário mínimo têm esperança de vida inferior a 72 anos; enquanto aqueles com renda superior a três salários mínimos é de quase 79 anos. Uma diferença de 7 anos38 . A Abolição libertou os escravos, mas desigualou o que há de mais fundamental nos direitos sociais: o direito a viver conforme o conhecimento técnico-científico permite. Além de viverem mais, os que podem comprar os modernos serviços médicos vivem com menos dores, são mais fortes e inclusive mais inteligentes.

O serviço dentário talvez seja o mais visível caso da ampliação da brecha. O senhor do escravo sofria a mesma dor de dente que seu escravo; o número

38 Estimativas feitas pelo economista Waldery Rodrigues Filho a pedido do autor.

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de dentes na boca era o mesmo independente da posição social. Hoje a parcela rica sofre dor de dente e não perde ou repõe os dentes que perde, enquanto a parcela mais pobre é desdentada, até ainda mais do que os escravos, em decorrência do tipo de alimentação no mundo moderno e da disponibilidade de dentistas prontos a arrancar-lhes os dentes.

A brecha na esperança de vida se elevou ao longo de anos.

d) Desigualdade na habitação

Os escravos viviam em senzalas, mas os livres viviam em pequenas casas, raros senhores em casas grandes, nenhum com qualquer dos modernos instrumentos do conforto. Hoje, em seus palácios com ar condicionado, com banheiros, cozinhas modernas, as classes médias em seus condo-mínios ou bairros nobres estão mais distantes dos moradores das favelas pobres do que os senhores nas casas grandes estavam de seus escravos na senzala. Estudo realizado pelo Sinduscon-SP e a Fundação Getúlio Vargas (FGV), considerando dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revela que em 2011 o déficit habitacional brasileiro fica em 5,5 milhões de habilitações incluindo aglomerados subnormais (favelas), estimado em 2,2 milhões.

Antes da Abolição, todos os habitantes do Brasil viviam sem acesso a saneamento, água corrente. Hoje, 57,1% das residências já dispõem destes serviços, 42,9 continuam nas mesmas condições de higiene, não têm nenhum esgotamento, mas alguns milhões vivem ao lado de resíduos sujos e contaminados. Em alguns casos em situação pior, do que antes do Treze de Maio devido à urbanização agravar a situação de insalubridade em comparação à vida rural.

e) Pobre sistema de transporte

Na escravidão, o meio de transporte era o cavalo e a liteira para os ricos, e andar a pé para os pobres livres e para os escravos. A brutalidade estava no poder do senhor escolher o destino, e no transporte de ricos deitados ou sentados em liteiras nas costas de escravos, mas não havia diferença no tempo gasto no deslocamento. Desde então, as facilidades de transporte melhoraram para todos; já não há carregadores de liteiras; os pobres, embora nem todos, conseguem usar ônibus e os engarrafamentos de trânsito aprisionam a todos.

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Mesmo assim, há uma enorme brecha entre uma pessoa das classes abastadas que pode se deslocar para o outro lado do mundo no período de uma poucas horas, enquanto boa parte dos pobres continua condenada a caminhar ou em alguns casos usar transporte público de má qualidade depois de horas de espera, enquanto os ricos usam automóveis com ar condicionado, sistemas de som e outros equipamentos, sobretudo, sem necessidade das longas e imprevisíveis esperas nas abomináveis paradas de ônibus das cidades brasileiras.

Com o agravante de que até muito recentemente as necessidades de deslocamento eram reduzidas, toda a vida social das pessoas se passava em um raio pequeno em relação à casa onde morava; agora são obrigadas a desperdiçar horas por dia em deslocamentos entre a casa e o lugar de trabalho: uma pessoa morando na cidade de São Paulo passa em média 2 horas por dia prisioneira de esperas ou de engarrafamentos ao longo dos 35 anos de vida útil. Isto equivale a perder quase dois anos de vida; muitos perdem três e até mais horas por dia, o que equivale a três anos ao longo de sua vida útil.

f) A Cortina de Ouro

A Abolição mudou o caráter da linha que separava escravos dos senhores, mas não aboliu a cortina que separa os ricos dos descendentes sociais dos escravos. O Brasil era antes um país dividido por uma cortina de ébano ou de marfim, dependendo da ótica, que separava brancos e negros, os escravos das demais pessoas; hoje é dividido por uma cortina de ouro que separa os incluídos dos excluídos nos benefícios da modernidade. Não conseguimos fazer um país que seja, apesar da desigualdade na renda, integrado no social em um só povo, como aspiravam muitos dos abolicionistas.

No dia 14 de maio, os negros brasileiros acordaram cansados das mani-festações de alegria das festas, sem o carimbo que pesava há quase quatro séculos na testa de cada um deles e de seus antepassados. A borracha que apagou estes carimbos, fazendo todos brasileiros igualmente livres, foi construída por longa luta e por Dez Dias em que o Parlamento debateu e aprovou a Lei Áurea. Mas, ao acordarem sem a marca definida pela raça e pelas regras sociais, os ex-escravos perceberam que o carimbo não tinha sido apagado.

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Mudou de significado, mas a testa de cada brasileiro continua carregando um ou outro de dois carimbos: aquele que indica possibilidade de inclusão e aquele que condena à exclusão. É certo que depois do Treze de Maio alguns podem saltar o muro que divide a população brasileira, mas o salto acontece como raridade, resultado de acasos ou de talento muito especial de poucos.

A sociedade brasileira saiu de um tipo de segregação para outro: da escra-vidão para a exclusão. Mantendo a divisão entre beneficiários e vítimas do modelo social e econômico. A Abolição foi um avanço na Lei do Ventre Livre que, em 1871, começou a apagar o carimbo nos que nasciam, e na Lei dos Sexagenários, que apagou o carimbo daqueles com mais de 60 anos de idade. Da mesma forma que já havia carimbos apagados por meio das diversas formas de emancipação personalizada pela alforria. Mas a sepa-ração continuou. Até hoje as crônicas sociais mostram isso: ao dizerem

“todo mundo” referindo-se apenas aos incluídos. Os demais são invisíveis, como os escravos, que eram tratados como objetos. Isso é tão verdade que um bom programa como o “PROUNI”, que financia universidade particular para alunos carentes, tem o nome de Universidade para Todos, mesmo que apenas pequena parte da população possa disputar a chance de ser beneficiada, uma vez que muitos não saem do analfabetismo, poucos concluem o ensino médio sem o que não podem disputar o vestibular. É que na visão de um país de exclusão, conta apenas os que já são incluídos no mundo pós-educação de base.

A Abolição foi determinante para ampliar o grau de miscigenação racial, mas não permitiu a miscigenação social no Brasil. De um lado, o “povão”, de outro, os ricos incluídos na modernidade. Mesmo sem escravos, a sociedade continuou dividida, segregada, em uma forma de apartheid não puramente racial e sem necessidade de regras explícitas, como na África do Sul, até 1994, ou no Sul dos Estados Unidos, até o começo dos anos 1960. Aqui, como se dizia até muito recentemente, e muitos ainda dizem, os “negros e os pobres brancos sabem o devido lugar deles”, não ameaçam a ordem, em uma forma de apartação implícita que o Treze de Maio não aboliu.

Essa apartação se mostra por toda estrutura social: na desigualdade de renda, de salários, de alimentação, de consumo, de atendimento à saúde, mas, sobretudo e como causa da própria segregação, no acesso à educação. Antes de 1888, Joaquim Nabuco, como Bonifácio de Andrada ainda antes

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dele, diziam que a Abolição não estaria completa sem que os ex-escravos recebessem terra e tivessem seus filhos na escola.

No lugar de uma simples Lei Áurea com um único artigo essencial, a Segunda Abolição exige um conjunto de políticas que permitam apagar o grande carimbo, atraso científico e tecnológico sobre o mapa do Brasil e os dois carimbos que marcam as testas de suas crianças, definindo o futuro de cada uma delas.

O caminho para a Segunda Abolição está, sobretudo, na escola igual para todos. Felizmente como os enlouquecidos Abolicionistas do século XIX, nos séculos XX e XXI há alguns educacionistas.

NoSSoS ErroS

Os historiadores não gostam do conceito de erro histórico, uma vez que a história seguiu seu rumo, de certa maneira inevitável quando vista desde o futuro; os sociólogos e economistas tampouco consideram o conceito de erro, uma vez que teriam acontecido por interesse de alguma classe social que dele se beneficiou. Mas como um exercício de reflexão histórico-sociológica é perfeitamente possível tratar certas decisões ou suas ausências como erros cometidos pelo conjunto de uma sociedade, por decisões e ações de obscurantismo, egoísmo e imediatismo de suas classes dirigentes.

No livro A Revolução nas Prioridades – da modernidade-técnica à modernidade-ética39, coloco dez erros cometidos pelo Brasil a partir de 1930, quando se inicia nossa modernização.

primeiro erro A implantação de uma política de substituição de importações de bens industriais, sem modificação na estrutura da propriedade da terra e no produto da agricultura que continuou baseada em latifúndios voltados às exportações.

39 A Revolução nas Prioridades - da modernidade-técnica à modernidade-ética. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1993

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segundo erro A industrialização com base em uma opção por técnicas desadaptadas aos recursos naturais, às características culturais, às neces-sidades sociais e ao potencial econômico no Brasil.

terceiro erro A ditadura.

quarto erro: Concentração de Renda.

quinto erro Endividamento

sexto erro Ênfase nas exportações em lugar da construção de um mercado interno.

sétimo erro Prioridade à infraestrutura econômica, com abandono da infraestrutura social.

oitavo erro Criação de cartorização, corporativização e concentração econômica.

nono erro A implantação de um sistema de produção do saber e de comu-nicação social voltados aos interesses individuais, à dinâmica do mercado e à alienação cultural, sem compromisso educativo nem sintonia com a cultura nacional.

décimo erro Democratizar politicamente sem mudar as prioridades socio-econômicas.

Se considerarmos o momento imediatamente seguinte à Abolição, dois erros foram cometidos por não terem sido tomadas as decisões corretas, ambas previstas por muitos abolicionistas, especialmente por Joaquim Nabuco.

a) A falta da reforma agrária

O primeiro erro foi não ter havido distribuição de terra, uma reforma agrária, nos anos seguintes à Abolição. Se naquele momento o Brasil, por meio de suas classes dominantes, tivesse tido a coragem, a boa vontade, a lucidez, o patriotismo de distribuir a terra aos trabalhadores brancos e aos ex-escravos, a história teria sido completamente diferente. Pelo menos nove de nossos problemas atuais teriam sido reduzidos ou evitados.

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Explosão Urbana: A história mostra a urbanização como uma tendência das sociedades humanas, especialmente depois da industrialização. Mas a velocidade e desorganização como elas ocorreram no Brasil provocaram efeitos dramáticos. A migração se inicia logo nos primeiros anos depois da Revolução. Não é por acaso que a palavra “favela” foi criada pelos descedentes de escravos para se referir aos lugares onde recorriam para viver nas cidades, fugindo do campo onde a terra era oligopolizada, nas mãos de poucos.

Se o fluxo migratório era inevitável, a velocidade que ele tomou no Brasil foi fruto da falta de sintonia entre a dinâmica industrial urbana voltada para o mercado interno e o arcaísmo da agricultura latifundiária orientada para o exterior. A urbanização foi provocada, por um lado, por medidas de política econômica que incentivaram a industrialização e a urbani-zação, atraindo população para as cidades; e por outro pela expulsão da população rural, em decorrência da ausência de políticas agrícolas que a beneficiassem. A previdência, o salário mínimo, os benefícios sociais foram implantados na cidade e na indústria, não no campo e na agricul-tura. A atração das cidades se industrializando e a expulsão do campo organizado em latifúndios levou a população à migração descontrolada.

O resultado são nossas metrópoles superdimensionadas, transformadas nas “monstrópoles” de hoje, com extrema pobreza, sem água nem esgoto, sem transporte, violentas, degradadas em todos os aspectos. Tivesse o Brasil feito a reforma agrária nos dias das festas da Abolição, nossas cidades seriam menores e harmônicas.

Violência: A escravidão é a mais brutal das violências que uma sociedade pode provocar. Três séculos e meio desta violência deixaram marcas quase definitivas na sociedade brasileira. Mas, desde então o Brasil não tomou as medidas necessárias para construir uma sociedade pacífica. E por isso ajudamos a consolidar uma sociedade violenta como a brasileira de hoje. Uma das omissões foi não fazer a reforma agrária nos anos seguintes à Abolição.

A violência tem a ver, sobretudo, com a forma como a agricultura brasileira foi tratada: a violência rural decorre do atraso da estrutura fundiária; a violência urbana, da pobreza consequente da explosão da população nas cidades.

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Inf lação: A falta de uma agricultura voltada para o mercado interno e a evasão de mão de obra para a cidade provocaram uma pressão nos preços dos alimentos, com repercussão direta sobre a inflação.

Além dos gastos públicos para financiar o processo de industrialização, na gênese das inflações está o fato de que, ao impedir a distribuição da terra, o latifúndio concentrou-se na exportação, e ao concentrar seus objetivos no mercado externo, não elevou suficientemente a produtividade dos produtos voltados para a alimentação da população brasileira. O preço dos alimentos subiu. E em consequência subiram os demais preços.

Persistência da pobreza: A falta de terra para trabalhar deixou a população rural sem renda média, o que impediu o atendimento de suas necessidades básicas. O aumento da população urbana e sua baixa qualificação jogou os salários a níveis inferiores ao custo de manutenção da mão de obra. A pobreza foi uma consequência natural, no campo e na cidade.

Freio na demanda: Diferentemente dos demais países, em que a agricultura servia como fonte de alimentos e como compradora de bens industriais, no Brasil a agricultura não forneceu alimentos na proporção da demanda pelo setor urbano, nem exerceu demanda para os bens industriais, salvo de parte da limitada oligarquia compradora de bens de consumo duráveis para alta renda.

Sem uma mudança na estrutura agrária, a grande maioria da população rural que não emigrou para o desemprego e a pobreza na cidade ficou à margem da economia: não conseguiu ser compradora dos bens industriais básicos para baixa renda.

A concentração de renda: A falta de demanda para a industrialização nascente levou o sistema econômico à heterodoxa alternativa de criar demanda concentrando a renda. Já que não havia demanda ampla para produtos voltados à população de baixa renda optou-se por uma demanda restrita à alta renda: o automóvel e outros sofisticados bens de consumo passaram a ter demanda dinamizada, mas criaram uma dependência de concen-tração de renda que depois passou a dificultar a sua distribuição. O estado de pobreza da população funcionou como entrave à dinâmica industrial, por limitação de demanda, mas para crescer a economia tem precisado de renda concentrada.

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Desart iculação cultural: Depois de 430 anos de história, o Brasil tinha 30% de sua população vivendo nas cidades. Os demais 70% viviam no campo, tinham uma cultura e um modo de vida rural. Nos trinta anos seguintes, em menos de uma geração, essa proporção inverteu-se. Quase a metade da população migrou do campo para a vida na cidade. Nesse mesmo período, a sociedade urbana brasileira mudou radicalmente seus costumes e seus modos de vida, devido à industrialização, à televisão, à liberalidade sexual. A população migrante sofreu assim uma dupla ruptura cultural.

O resultado foi uma desarticulação cultural da sociedade, especialmente das parcelas que migraram do campo para as cidades sem tempo para uma reciclagem que permitisse uma lenta adaptação, tal como ocorrida na urbanização dos países europeus.

Sem uma rápida absorção educacional e cultural da população rural nas cidades, o Brasil passou a ser um país no qual sua própria população se sente estrangeira, como os imigrantes estrangeiros nos países europeus.

A situação de estranhamento é mútua: dos imigrantes, que se sentem deslo-cados e sem acesso à modernidade urbana onde vivem, e dos que fazem parte da modernidade, que os veem como invasores e “instrangeiros”40.

Desemprego: Até iniciar-se o processo de industrialização, o conceito de desemprego carecia de sentido na sociedade brasileira. A população rural era mantida ativa, ainda que fosse por meio do subemprego e do trabalho servil. Por falta de acesso à terra, a população migrou às cidades cuja indústria não era capaz de absorvê-la. A mão de obra passou a sobreviver no desemprego, no subemprego informal ou em empregos temporários como acontece com o setor de construção civil.

Visão oligárquica dos polít icos: A tolerância com a qual o processo de indus-trialização conviveu com o latifúndio exportador provocou uma das principais causas da crise brasileira: a existência de uma classe política que assume a forma de baronato isolado do povo, insensível às exigências sociais. O País não conseguiu romper com a visão arcaica, medieval da política dos grotões.

40 Ver do autor o livro “Os Instrangeiros”, publicado pela Editora Garamond, Rio de Janeiro, 2002.

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A política continua sendo feita na forma de compadrios, assistencialismos, fisiologismos, curto prazo, arranjos, jeitinhos, pacotes que servem sempre para manter o status quo.

Caso a estrutura agrária tivesse sido modificada logo no início do século XX, as forças conservadoras urbanas e industriais teriam sido obrigadas a um comportamento mais lúcido diante das relações sociais. O corte entre elite e população não teria atingido o enorme fosso atual. Caso fosse menos dependente e vinculada ao baronato, a elite política brasileira não teria se comportado com a insensibilidade e o desprezo que demonstra para com o conjunto da população, sobretudo no abandono dos serviços públicos.

Mesmo as forças progressistas, mais ligadas ao setor trabalhista do que ao setor empresarial, também se comportam com um razoável grau de desprezo às necessidades do conjunto da população. Em um país de baronato, a esquerda urbana tende a se comportar como um baronato sindical nas suas relações com o povo.

Instabilidade social: A desarticulação entre agricultura e indústria é a causa inicial da grande instabilidade social que leva o país a uma sociedade de apartação, inviabiliza a democracia, não permite a solução dos problemas sociais e emperra o crescimento econômico.

b) A falta da educação

Da mesma maneira, o Brasil seria outro se naquele momento houvesse se iniciado uma reforma na educação brasileira, nos moldes do que já havia ocorrido algumas décadas antes nos países da Europa Ocidental e mesmo na Argentina. Se algum governo, naquele momento, especialmente os primeiros governos republicano tivesse iniciado o esforço de colocar na escola todas as crianças brasileiras, as brancas e as negras, os filhos das oligarquias e de trabalhadores livres e de ex-escravos, o Brasil seria um país completamente diferente do que é hoje.

Se houvesse uma educação de qualidade para todos não teríamos pelo menos sete problemas contemporâneos:

Baixa produtividade: Com exceção de raros bolsões, como o agronegócio das últimas décadas, o Brasil tem historicamente mostrado baixa produtividade. A principal causa disso são as décadas de desprezo à educação de nossa população. Nos últimos anos isso se agravou porque a produtividade não

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está apenas em produzir mais do mesmo produto, mas em criar novos produtos. Na economia do conhecimento, a produtividade passa a exigir elevada formação profissional e criatividade científica e tecnológica dos agentes econômicos.

Pobreza: Não há razão natural para explicar a permanência da pobreza em um país com a riqueza do Brasil. As explicações são políticas e sociais: as prioridades equivocadas ao longo de séculos. Entre estas prioridades equivocadas está o abandono da educação. Além de impedir o Brasil de aproveitar a revolução industrial, por falta de, ainda no final do século XIX e no início do XX, um sistema educacional de qualidade, a má distribuição da educação manteve uma parcela excluída do saber e em consequência de produtividade e de salário. E acomodou a parcela educada na falta de competitividade e de cooperação intelectual fundamental para o avanço intelectual.

Desigualdade: Além da pobreza, o Brasil é uma sociedade tão desigual que historicamente se encontra entre as cinco mais desiguais no mundo com base nos tradicionais indicadores, como o índice de GINI. Pode-se apontar diversas decisões políticas que levaram a este quadro, tão vergonhoso no século XXI quanto era a escravidão no século XIX, mas certamente o quadro seria completamente diferente se desde o início da República o Brasil tivesse oferecido a oportunidade de educação de qualidade para os herdeiros, biológicos ou sociais, dos escravos.

Baixa part icipação cívica: A democracia brasileira é nitidamente deficiente: votos de cabresto, corrupção, distanciamento entre elite dirigente e povo. Por trás desta deficiência está, sem qualquer dúvida, a baixa formação educacional da população. Se em 1888 o Brasil tivesse ingressado em uma revolução educacional ampla, universal, com qualidade, o quadro da democracia brasileira seria mais participativo, com menos corrupção, partidos com mais identidades éticas e ideológicas.

Preconceito racial: Por mais que o Brasil se orgulhe de sua miscigenação racial, ainda é um país de preconceitos raciais. Cento e trinta anos depois da Abolição, os negros ainda não são tratados como cidadãos plenos. Têm empregos de baixa qualificação, considerados inferiores e de menor salário. Por trás deste preconceito estão raízes escravocratas de três séculos e meio tratando negros como raça inferior e subalterna, mas não há outra explicação para a permanência secular do preconceito, salvo a exclusão

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educacional dos ex-escravos e dos pobres livres, em relação à educação recebida pelos brancos ricos.

Dependência tecnológica: Dificilmente o trabalho servil permitiria o pleno aproveitamento do potencial do escravo. Condenado ao trabalho forçado, o escravo não tinha incentivo, nem condições para ser elemento dinâmico, na criatividade da economia. Os abolicionistas usavam o argumento de que a liberdade dos escravos seria instrumento necessário para apro-veitar o potencial de cada um deles. A abolição não foi capaz, porém, de transformar o Brasil em um celeiro de tecnologia. Os anos pós-abolição nos mantêm à margem dos centros gestores e dinâmicos do desenvolvi-mento científico e tecnológico do mundo. A principal razão é, obviamente, o atraso no desenvolvimento científico e tecnológico decorrente da falta de formação educação básica de qualidade para todos.

Economia baseada em commodit ies e indústria primária: A escravidão foi o recurso usado para a produção de commodities no Brasil. Inicialmente o açúcar, depois o café, ou minerais inclusive o ouro e a prata. A eliminação do trabalho servil não foi suficiente para que o Brasil substituísse plena-mente a dinâmica baseada na produção e exportação de commodities. A economia adquiriu dinâmica no setor industrial da metal-mecânica - usando técnicas importadas para produzir bens criados no exterior, - mas continua prisioneira de uma dinâmica baseada no agronegócio. E a causa é a baixa capacidade do país para inovar, devido ao baixo nível educacional, por não termos completado a abolição por meio de uma revolução educacional.

O país se industrializa com uma economia que produz quase tudo, mas não cria quase nada. Por sua incapacidade para inventar novos produtos e novas formas mais baratas de produzir. Sem nenhuma das duas produti-vidades dos tempos atuais, de inventar a baratear a produção, dependente do exterior para abastecer sua demanda por produtos modernos.

A rEDESCoBErTA DA ABoLIção

A elite brasileira do século XXI, como os latifundiários do século XIX, começa a perceber o alto custo da segregação: a violência, a ineficiência

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da mão de obra, o caos urbano começam a pesar no cotidiano da socie-dade brasileira.

O reconhecimento do apagão de mão obra corresponde hoje ao sentimento da baixa produtividade do trabalho escravo, há 150 anos. Naquela época a elite percebeu que para implantar o capitalismo no Brasil era preciso abolir a escravidão. Apenas alguns ficaram contra, voltados para o passado. Para entrar na economia do conhecimento no século XXI será preciso mais do que trabalho livre, será preciso trabalho qualificado profissionalmente, o que passa cada dia mais por educação. O trabalhador de hoje não é mais um operário com mão de obra hábil, é um operador capaz de fazer funcionar as máquinas digitalmente. Isso já parece até em setores tradi-cionais como na construção civil e na agricultura de alta produtividade.Da mesma forma, se percebe a necessidade de organizar a vida social e o cotidiano do país, com eficiência.

Nas próximas décadas, a elite brasileira será obrigada a abolir a segregação social, como antes aboliu a segregação racial escravocrata. O caminho para isso é uma revolução educacional que assegure a toda criança uma educação de qualidade, com a mesma qualidade, independente da classe social em que nasceu e de onde vive. Apagar o carimbo indicador da quali-dade da sua educação, conforme a renda da família ou a cidade onde mora.

NovA ABoLIção

A Abolição não foi completada, ela representou uma evolução no sistema econômico, mas não o salto moral na construção de uma sociedade decente. A nova abolição será feita por um processo organizado em um conjunto de ações que tenham o objetivo de construir uma sociedade sem exclusão, eficiente e sustentável.

Durante décadas, esta nova abolição consistiria no avanço da economia capitalista ou pela implantação do socialismo. A primeira alternativa não construiu utopia e ainda desarticulou a sociedade e desequilibrou a ecologia; os regimes socialistas ocorreram mostrando que este não era o caminho, não abolia totalmente a servidão, não atendia aos sonhos de liberdade, nem oferecia a eficiência produtiva necessária para satisfazer a demanda da população.

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O esgotamento do capitalismo como alternativa utópica, e o fim das expe-riências socialistas, caracterizado teoricamente na prática pela queda do Muro de Berlim, trouxeram um vazio de propostas utópicas. Mesmo assim, não é difícil imaginar que os sonhos que se mantêm acesos devam ser atendidos por uma sociedade que seja capaz de:

• dar sustentabilidade ecológica;

• superar as necessidades essenciais;

• oferecer as vantagens do conhecimento, tanto na economia, quanto na cultura;

•garantir a liberdade de expressão e de escolha no estilo de vida.

De certa forma, este mundo pós Nova Abolição pode ser representado pelo gráfico abaixo, onde a sociedade dispõe de um piso social, impõe um teto ecológico e constrói uma escada de ascensão social.

O vetor de construção desta sociedade consiste no acesso universal à escola com a mesma alta qualidade. Como já previa Nabuco, é a oferta de educação que assegura a completude da Abolição. Se isso era certo no seu tempo, ainda mais hoje, quando o Capital deixou de ser máquinas e pessoas, e passou a ser o Conhecimento.

Seria simples trazer o Treze de Maio de 1888 para o século XXI com lei tão simples quanto a Lei Áurea, com apenas um artigo:

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A Lei Áurea Plena consistiria de um artigo e um parágrafo:

Artigo 1º – Cada criança, não importa a família ou a cidade, receberá o mesmo valor necessário para ter a educação que o mundo moderno exige.

Parágrafo único - A educação de cada criança brasileira é de responsabilidade de toda a nação representada pela União Federal.

Mas tal simplicidade não teria nas escolas o impacto que a Lei áurea trouxe sobre a escravidão. Por isso, para completar a Abolição, o desafio será fazer uma revolução no quadro educacional brasileiro, de maneira a eliminar toda forma de exclusão educacional, fazendo com que a escola tenha a mesma alta qualidade para qualquer que seja a criança, independente da renda de seus pais e da cidade onde vive.

A rEvoLUção EDUCACIoNISTA.

Há duas maneiras de se imaginar uma revolução na educação. A primeira é por meio de uma lenta melhoria em todo o atual sistema educacional. A outra é dar um salto com a construção de um sistema novo que substitua o atual. A evolução do sistema atual tem mostrado que a simples melhoria não transforma o sistema. Não permite o Brasil chegar aos níveis de excelência que o momento exige e ainda menos assegurar a igualdade que se necessita. Ela continua degradada e aumentando três brechas: uma vertical entre nosso grau de educação e a educação necessária; outra horizontal entre nossa educação e a educação nos demais países; e ainda outra brecha social entre a educação dos filhos dos ricos e a educação dos filhos dos pobres.

O salto abolicionista exigirá a substituição do atual sistema educacional brasileiro por um novo sistema. Este novo sistema vai exigir:

• uma nova carreira do professor, bem remunerado, com dedicação exclu-siva e avaliação constante;

• edificações com a máxima qualidade e contando com os mais modernos equipamentos pedagógicos da tecnologia da informação;

• todas em horário integral.

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A atual municipalização das escolas não permitirá ao Brasil dar o salto de que necessita para todas as crianças: as herdeiras sociais da Casa Grande e as herdeiras sociais da Senzala. A desigualdade de recursos, financeiros e humanos entre municípios, não permite igualar a qualidade das escolas municipais ao longo do território brasileiro. Os municípios são pobres e desiguais entre eles. A única forma de homogeneizar qualidade da educação das crianças brasileiras, inde-pendente da cidade onde vivem e da renda de seus pais, é por meio da Federalização do Sistema Educacional.

Só a União cuidando da educação de base de todas as crianças permitirá que elas sejam tratadas igualmente como brasileiras, não municipalizadas. Deixar a educação municipalizada é como se a abolição da escravidão tivesse sido deixada a critério de cada cidade, no lugar de uma Lei Áurea nacional.

Esse sistema federal não poderá ser implantado de imediato em todo o território brasileiro. Por isso, a Lei Áurea do século XXI, para completar a Abolição do século XIX, vai exigir a substituição paulatina do atual sistema municipal e estadual por um novo sistema federal. Esta subs-tituição poderia ser feita por unidades, espalhadas aos poucos pelo território nacional, ampliando as atuais escolas federais até atingir todas as escolas públicas do País. Esta dinâmica dificilmente daria o resultado esperado, porque a escola federal terminaria sendo compro-metida pela má qualidade do sistema municipal que a rodeia. Tudo indica que o melhor caminho seria a adoção pelo governo federal de todas as escolas de determinadas cidades.

Nestas cidades todas as escolas seriam reconstruídas e equipadas, implantando-se horário integral com professores de uma nova carreira federal.

A ChAMA DA INDIgNAção

A maior tragédia da escravidão não foi o trabalho forçado, nem mesmo o cativeiro, mas é a desumanização que o sistema escravocrata implica sobre o escravo, sobre o seu proprietário e sobre quem assiste omisso ao seu funcionamento. O livro e o filme “Doze Anos de Escravidão” mostram

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com clareza esta desumanização. Foi preciso um ex-escravo, reescravizado, para perceber a desumanização do sistema. Os escravos cativos foram tão desumanizados e seus donos eram tão desumanizados que não viam a desumanização. A luta contra a escravidão não foi apenas o resultado de uma lógica econômica, fazendo-a um sistema obsoleto, mas o resultado de uma indignação moral vendo-o como um regime indecente.

Nos tempos atuais, a desumanização está na aceitação de que é natural o acesso desigual à escola, conforme a renda dos pais ou o município onde vive a criança. A revolução educacional passa pela tomada de um senti-mento de indignação a ser despertado pelo absurdo de em um mesmo país as crianças terem tão desigual sistema de educação.

A realidade do século XXI está forçando, como no final do século XIX, com a escravidão, uma reorientação do futuro do Brasil na linha de completar a Abolição.

Por um lado, percebe-se que o atraso educacional deixará o Brasil fora da economia do conhecimento já em marcha. Como aconteceu no século XIX com a exclusão do Brasil, como economia periférica, excluída dos benefícios da revolução industrial, por causa da escravidão, que deixava uma imensa massa de seres humanos impossibilitada de participar do sopro que ocorria na economia no exterior, por falta aqui de mão de obra, de consumidores e de empreendedorismo; deixando o país fora da inovação. Agora ficamos para trás por falta do principal capital do novo século: o Conhecimento. O Brasil sente que precisa apagar o carimbo de

“atrasado”, do ponto de vista científico e tecnológico, que marca todo o mapa de seu território. Por outro lado, sente a necessidade de apagar o carimbo que diferencia os brasileiros desde o berço, independente de seu talento, levando a uma divisão social que degrada hoje tanto nosso país quanto no passado a escravidão, ao longo de sucessivos séculos.

É esta chama da indignação que precisa ser acesa no Brasil.

A escravidão era um sistema social em que as crianças nasciam com uma marca na testa dizendo se cresceriam livres ou escravizadas.

O sistema brasileiro de apartação carimba na testa das crianças se elas terão ou não acesso à educação de qualidade; e através dela dos benefícios de liberdade e qualidade de vida.

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Líderes Abolicionistas

LUíS gAMA – 1830-1882

Luís Gama nasceu em Salvador-BA em 24 de Junho de 1830, foi advogado, jornalista e escritor e um dos mais importantes líderes abolicionistas. Era filho da africana livre Luiza Mahin, uma das principais figuras da Revolta dos Malês, com um fidalgo branco de origem portuguesa, de uma rica família baiana.

Sua mãe trabalhava como quitandeira, sendo conhecida na cidade de Salvador. Em 1837, acusada de participação na Sabinada, foi deportada para o Rio de Janeiro, onde desapareceu. Logo depois disso, em 10 de novembro de 1840, o jovem, então com dez anos de idade, foi vendido como escravo por seu próprio pai, afirma-se que para pagar uma dívida de jogo.

Luís Gama foi transportado como escravo até à cidade do Rio de Janeiro, ficando com um comerciante de nome Vieira. Ainda em 1840 foi vendido para o alferes Antônio Pereira Cardoso e trazido para a província de São Paulo. Em Campinas ninguém o comprou por que os escravos baianos tinham fama de revoltosos (“negros fujões”). Sem conseguir vendê-lo, foi utilizado na fazenda do alferes em Lorena, onde aprendeu os ofícios do escravo doméstico - copeiro, sapateiro, lavar, passar e engomar.

Em 1847, um estudante de nome Antônio Rodrigues de Araújo hospedou-se na fazenda do alferes e tornou-se amigo de Luís Gama, ensinando-o a ler e escrever. Com isso, Gama conscientizou-se da ilegalidade de sua condição, pois era filho de mãe livre, e resolveu fugir para a cidade de São Paulo em 1848, inscrevendo-se no exército.

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Após 7 anos de tumultuada carreira nas Forças Armadas, onde relatam-se espisódios de insubordinação, deu baixa em 1854 e resolveu estudar Direito por conta própria.

Na década de 1860 tornou-se jornalista de renome, ligado aos círculos do Partido Liberal. Entre 1864 e 1875 colaborou com diversos jornais.

Em 1869 fundou com Rui Barbosa o jornal “Radical Paulistano”. Parti-cipou da criação do “Club Radical” e, mais tarde, da criação do “Partido Republicano Paulista” (1873), ao qual se manteve ligado até sua morte, em 1882. Por volta de 1880, foi líder da “Mocidade Abolicionista e Republicana”.

Trabalhou como amanuense – transcrevia e copiava textos oficiais à mão – quando foi demitido por causa de sua atuação jurídica em favor da liber-tação dos escravos. Passou a ganhar a vida como rábula. Foi o responsável pela libertação de mais 500 escravos (algumas fontes apontam mais de mil) usando as leis abolicionistas que já existiam naquela época, mas que não eram respeitadas, como por exemplo, a Lei Feijó – que extingia o tráfico e declarava como livres os africanos aportados no Brasil após 1831

-, a Lei do Ventre Livre e demais legislações que eram burladas para que se pudesse escravizar ilegalmente quem já era legalmente livre.

A sua morte, no dia 25 de agosto de 1882, vítima de diabetes, comoveu a cidade de São Paulo, e o funeral é até hoje relatado como o mais concor-rido daquela época. Deixou uma extensa obra literária, especialmente poética, muitas em tom de sátira que ridicularizava a aristocracia e os poderosos da época.

Entre os muitos pensamentos que deixou, dois ilustram a força radical de suas ideias:

O escravo que mata o seu senhor pratica um ato de legítima defesa.

Em nós, até a cor é um defeito. Um imperdoável mal de nascença, o estigma de um crime. Mas nossos críticos se esquecem que essa cor é a origem da riqueza de milhares de ladrões que nos insultam; que essa cor convencional da escravidão, tão semelhante à da terra, abriga sob sua superfície escura, vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade.

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ANDré rEBoUçAS -1838-1898

André Rebouças, filho de Antônio Pereira Rebouças e de Carolina Pinto.

Nasceu em Cachorira – BA, no dia 13 de janeiro de 1838, em plena Sabinada - a insurreição baiana contra o governo regencial – filho de uma liberta com alfaiate português.

Tinha sete irmãos, sendo mais ligado a Antônio, que se tornou seu grande companheiro na maioria dos seus projetos profissionais. André e Antônio foram alfabetizados por seu pai e frequentaram alguns colégios até ingres-sarem na Escola Militar. Em fevereiro de 1846, a família mudou-se para o Rio de Janeiro e em 1857 André bacharelou-se em Ciências Físicas e Matemáticas, obtendo o grau de engenheiro militar no ano seguinte.

Entre fevereiro de 1861 e novembro de 1862, os irmãos André e Antônio foram pela primeira vez à Europa, em viagem de estudos. Na volta ao Brasil, partiram como comissionados do Estado brasileiro para trabalhar na vistoria e no aperfeiçoamento de portos e fortificações litorâneas. Na guerra do Paraguai, André serviu como engenheiro militar, entre maio de 1865 e julho de 1886, quando retornou ao Rio de Janeiro, por motivos de saúde. Os estudos na Europa foram fianciados pelo pai Antônio Rebouças, que vendeu alguns bens.

Em 1873, desembarcou em Nova Iorque. Seu principal interesse era o de realizar visitas de estudos aos portos, às indústrias navais e aos escritórios de engenharia, mas a sua estada nos EUA não deixou boas lembranças. Ele sofreu odiosa discriminação racial. Inutilmente, procurou alugar um quarto nos hotéis de Nova Iorque. Todos lhes foram negados, até que um amigo, o jornalista José Carlos Rodrigues, conseguiu um quartinho de fundos num hotel de terceira categoria, onde André teria de tomar as refeições sem sair do quarto, porque fora proibido de frequentar o restau-rante e entrar pela porta principal. Foi impedido de entrar em hotéis de New Jersey, Massachussets, Pensilvânia e New York. A viagem mostrou-lhe que a competência não era suficiente num país em que a discriminação era explícita e a segregação formalizada41.

41 Informações fornecidas por Leiliane Rebouças, publicadas no blogue Perturbando o Status Quo. http://blogdaleili.blogspot.com.br/

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A partir de 1880, se engajou na campanha abolicionista e ajudou a criar a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão, ao lado de Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e outros. Participou também da Confederação Abolicionista e redigiu os estatutos da Associação Central Emancipadora.

Paradoxalmente, participou com o Visconde de Taunay da Sociedade Central de Imigração – organização que notoriamente propunha o bran-queamento da população. Esse ponto controverso da biografia de André Rebouças está analisado no livro de Maria Alice Rezende de Carvalho, “O Quinto Século”42.

Assim como Joaquim Nabuco, era um adepto convicto da monarquia, o que o levou a embarcar com a família imperial para a Europa, após a procla-mação da República em 15 de novembro de 1889. Por dois anos, ele perma-neceu exilado em Lisboa, como correspondente do “The Times” de Londres. Transferiu-se, então, para Cannes, na França, até a morte de D. Pedro II.

Em 1892, com problemas financeiros, aceitou um emprego em Luanda, Angola, onde permaneceu por 15 meses. Fixando-se a partir de 1893 em Funchal, na Ilha da Madeira, seu abatimento intensificou-se e, no dia 9 de maio de 1898 seu corpo foi resgatado na base de um penhasco, próximo ao hotel em que vivia. Apesar da ausência de confirmação, suspeita-se que teria cometido suicídio.

André Rebouças foi um dos primeiros intelectuais brasileiros a publicar estudos sobre a reforma agrária no Brasil que envolveria e solucionaria problemas relacionados à interiorização do país através da criação de novas estradas de ferro; envolveria também a inserção do negro após a abolição com a criação de colônias agrícolas nos arredores destas ferrovias.

Algumas de suas manifestações foram não apenas abolicionistas, mas preo-cupadas com o desenvolvimento e, sobretudo, com a necessidade de educação, como pode ser visto pelos dois pensamentos citados por Carlos Nobre43.

(...) o que falta a este Império, como a todos paizes do mundo, é capital, é indústria, é trabalho, é instrução, é moralidade. Esse não-estar, que obriga a dizer – há falta de braços – significa realmente que o paiz está tão mal governado que não pode garantir trabalho e pão para os seus habitantes.

42 O quinto século. André Rebouças e a construção do Brasil, de Maria Alice Rezende de Carvalho. 1998. Editora Revan. ISBN 8571061386

43 Jornalista; Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio; Pesqui-sador de Segurança Pública, Direitos Humanos e Processo Abolicionista.

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Tudo isso demonstra que é necessário educar a geração que cresce, para a agricul-tura, para a indústria, para o comércio, para o trabalho em uma só palavra! Até aqui a educação era meramente política. Sahia-se da academia para os collégios eleitorais, e muitas vezes para as assembleas legislativas provinceaes, e até para o parlamento nacional. Dahi essa repugnância geral para o trabalho produtivo.

Bibliografia:

PESSANHA, Andréa Santos. Da Abolição da Escravatura à Abolição da Miséria: A vida e as ideias de André Rebouças. Editora Belford Roxo, 2005.

CARVALHO, Maria Alice Rezende de. O quinto século. André Rebouças e a cons-trução do Brasil. Editora Revan, 1998. ISBN 8571061386

André Rebouças - Reforma & Utopia no Contexto do Segundo Império, de Joselice Jucá. Rio de Janeiro: Construtora Norberto Odebrecht, 2001.

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JoSé Do pATroCíNIo – 1853-1905

José do Patrocínio nasceu em Campos dos Goytacazes no dia 9 de outubro de 1853. Era filho do padre João Carlos Monteiro com Justina do Espírito Santo, uma jovem escrava de quinze anos, cedida por sua proprietária ao serviço do cônego.

Sem reconhecer a paternidade, o religioso encaminhou o menino para a sua fazenda na Lagoa de Cima, onde José do Patrocínio passou a infância como liberto, porém convivendo com os escravos e com os rígidos castigos que lhes eram impostos.

Aos catorze anos de idade, tendo completado a sua educação primária, pediu e obteve do pai autorização para ir para o Rio de Janeiro. Em 1868, encontrou trabalho como servente de pedreiro na Santa Casa de Miseri-córdia, empregando-se posteriormente na casa de saúde do doutor Batista Santos. Atraído pelo assunto de saúde, retomou, às próprias expensas, os estudos no colégio João Pedro de Aquino, prestando os exames prepara-tórios para o curso de farmácia.

Aprovado, ingressou na Faculdade de Medicina como aluno de Farmácia, concluindo o curso em 1874. Nesse momento, desfazendo-se a república de estudantes com que convivia, Patrocínio viu-se na iminência de precisar alugar moradia, sem dispor de recursos para tal. Um amigo convidou-o a morar no tradicional bairro de São Cristóvão, na casa da mãe, então casada em segundas núpcias com o capitão Emiliano Rosa Sena, abastado proprietário de terras e imóveis. Para que Patrocínio pudesse aceitar sem constrangimento a hospedagem que lhe era oferecida, o capitão Sena propôs-lhe que, como pagamento, lecionaria aos seus filhos. Patrocínio aceitou e, desde então, passou também a frequentar o “Clube Republicano”, que funcionava na residência, do qual faziam parte Quintino Bocaiuva, Lopes Trovão, Pardal Mallet e outros. Não tardou que Patrocínio propu-sesse casamento a Maria Henriqueta, uma das filhas do militar, que por isso ficou ofendido a princípio, porém vindo, após o matrimônio (1879), a auxiliar Patrocínio em diversas ocasiões.

Nessa época, Patrocínio iniciou a carreira de jornalista em parceria com Dermeval da Fonseca, publicando o quinzenário satírico “Os Ferrões”, que circulou de 1 de junho a 15 de outubro de 1875, no total de dez números.

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Os dois colaboradores se assinavam com os pseudônimos Notus Ferrão (Patrocínio) e Eurus Ferrão (Fonseca).

Dois anos depois (1877), admitido na Gazeta de Notícias como redator, foi encarregado da coluna Semana Parlamentar, que assinava com o pseu-dônimo de Prudhome. Foi neste espaço que, em 1879, iniciou a campanha pela Abolição da escravatura no Brasil. Formou-se um grupo de jorna-listas e de oradores, entre os quais Ferreira de Meneses (proprietário da Gazeta da Tarde), Joaquim Nabuco, Lopes Trovão, Ubaldino do Amaral, Teodoro Fernandes Sampaio, Francisco Paula Nei, todos da Associação Central Emancipadora. Por sua vez, Patrocínio começou a tomar parte nos trabalhos da associação.

Fundou, em 1880, com Joaquim Nabuco, a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão. Em 1882, a convite de Francisco de Paula Ney44, Patrocínio visitou a província do Ceará, onde o movimento abolicionista já era uma realidade estabelecida. Em 1881, adquiriu a Gazeta da Tarde, assumindo-lhe a direção. Em maio de 1883, articulou a Confederação Abolicionista, congregando todos os clubes abolicionistas do país, cujo manifesto redigiu e assinou, juntamente com André Rebouças e Aristides Lobo. Nesta fase, Patrocínio não se limitou a escrever: também preparou e auxiliou a fuga de escravos e coordenou campanhas de angariação de fundos para adquirir alforrias, com a promoção de espetáculos ao vivo, comícios em teatros, manifestações em praça pública, etc.

Em 1885, visitou sua cidade natal, Campos dos Goytacazes. De volta ao Rio de Janeiro, trouxe a mãe, idosa e doente, que viria a falecer no final desse mesmo ano. O sepultamento transformou-se em um ato político em favor da abolição, tendo comparecido personalidades como o ministro

44 Francisco de Paula Ney nasceu em Aracati no dia 2 de fevereiro de 1858 e faleceu no Rio de Janeiro, no dia 13 de novembro de 1897. Era filho de Mariano de Melo Nei – alfaiate – primeiro Mestre do corte em Fortaleza e D. Carlota Cavalcanti de Sousa Pinheiro. Foi poeta, jornalista, e nutria um grande amor pelo Ceará. Ele costumava dizer: “Pelo Brasil eu morro e pelo Ceará eu mato!”. Foi uma figura marcante no Rio de Janeiro, fazendo parte de uma brilhante geração de literatos. O grupo frequentava a Confeitaria Pascoal, na Rua do Ouvidor e, posteriormente, migraram para a Confeitaria Colombo, na Gonçalves Dias em 1894. Seus companheiros de boemia eram: Olavo Bilac, Coelho Neto, José do Patrocínio, Pardal Mallet, Luís Murat e Guimarães Passos. Desde cedo descobriu que sua verdadeira vocação era o jornalismo e, por essa profissão, largou o curso de medicina. Trabalhou com José do Patrocínio no jornal Gazeta de Notícias. Ambos propagavam a abolição dos escravos, tendo trabalhado com afinco em prol dessa causa. Foi Paula Ney quem levou José do Patrocínio ao Ceará para trazer mais um incentivo à causa abolicionista.

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Rodolfo Dantas, o jurista Rui Barbosa e os futuros presidentes Campos Sales e Prudente de Morais.

No ano seguinte (1886), iniciou-se na política, sendo eleito vereador da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, com votação maciça.

Em Setembro de 1887, abandonou a “Gazeta da Tarde” para fundar e dirigir um novo periódico: o “A Cidade do Rio”. À frente deste periódico, inten-sificou a sua atuação política. Aqui, fizeram escola alguns dos melhores nomes do jornalismo brasileiro da época, reunidos e incentivados pelo próprio Patrocínio. Foi nele que Patrocínio comemorou, após uma década de intensa militância, o 13 de Maio de 1888, o advento da Abolição.

Obtida a vitória na campanha abolicionista, as atenções da opinião pública se voltaram para a campanha republicana. O “A Cidade do Rio” e a própria figura de Patrocínio passam a ser identificados pela opinião pública como defensores da monarquia em crise. Nessa fase, Patrocínio, rotulado como um “isabelista”, foi apontado como um dos mentores da chamada

“Guarda Negra”, um grupo de ex-escravos que agia com violência contra os comícios republicanos.

Após a proclamação da República (1889), entrou em conflito em 1892 com o governo do marechal Floriano Peixoto, pelo que foi detido e deportado para Cucuí, no alto rio Negro, no estado do Amazonas. Retornou discre-tamente ao Rio de Janeiro em 1893, mas com o estado de sítio ainda em vigor, a publicação do “A Cidade do Rio” continuou suspensa. Sem fonte de renda, Patrocínio foi residir no subúrbio de Inhaúma.

Nos anos seguintes, a sua participação política foi inexpressiva. Concen-trando sua atenção no moderno invento da aviação. Iniciou a construção de um dirigível de 45 metros, o “Santa Cruz”, com o sonho de voar, jamais realizado. Numa homenagem a Santos Dumont, realizada no Teatro Lírico, quando discursava saudando o inventor, foi acometido de uma hemoptise, sintoma da tuberculose que o vitimou. Faleceu pouco depois, no dia 29 de Janeiro de 1905, aos 51 anos de idade, ficando afirmado como o maior jornalista da Abolição. Ficou também sua fidelidade à Abolição acima de todas as querelas políticas. Esta coerência lhe fez parecer oscilante, ao se manter monarquista enquanto os amigos se faziam republicanos, quando na verdade era o mundo ao redor que oscilava, enquanto ele mantinha a própria coerência e o propósito, abolir a escravidão.

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MANUEL QUErINo – 1851-1923

Manuel Raimundo Querino nasceu no 28 de julho de 1851, em Santo Amaro, Bahia. Ficou órfão aos quatro anos de idade e foi confiado a um tutor que o alfabetizou e ensinou-lhe as primeiras lições.

Tendo apenas o curso primário, aos 17 anos alistou-se como recruta na guerra do Paraguai mas, por motivos de saúde, não foi mandado ao campo de batalha. Foi então para o Rio de Janeiro onde ficou empregado no escritório do quartel. Em 1870, foi promovido a cabo de esquadra, e logo depois teve baixa no serviço militar.

Voltando à Bahia, começou a trabalhar como pintor e decorador. Com suas inclinações para o desenho, matriculou-se na Escola de Belas Artes, onde se distinguiu entre os alunos. Obteve o diploma de desenhista em 1882. Seguiu depois o curso de arquiteto. Obteve várias medalhas em concursos e exposicões promovidos pela Escola de Belas Artes e o Liceu de Artes e Oficios.

Foi republicano, liberal, abolicionista. Com outros do grupo da Sociedade Libertadora Sete de Setembro, assinou o manifesto republicano de 1870. Fundou os periódicos “A Provincia” e “O Trabalho”, onde defendeu os seus ideais republicanos e abolicionistas.

Tornou-se um líder em campanhas pelas causas trabalhistas e operárias que o conduziram à Camara Municipal.

E assim foi toda a sua vida. No seu modesto cargo de 3°. Oficial da Secretaria da Agricultura, sofreu os mais incríveis vexames. Foi consecutivamente preterido em todas as ocasiões em que lhe era de justiça a promoção.

Com a passagem do século dedicou muito de seu tempo e energia a estudos históricos, em particular à pesquisa e ao registro das contribuições dos africanos ao crescimento do Brasil. Foi pioneiro nos registros antropoló-gicos da cultura africana na Bahia. Esses estudos tinham dois objetivos: por um lado, ele queria mostrar a seus irmãos de cor a contribuição vital que deram ao Brasil; e por outro, desejava lembrar aos brasileiros brancos a dívida que tinham com a África e com os afro-brasileiros.

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Trouxe à história do Brasil a perspectiva do negro. Morando na comu-nidade de africanos, ele conhecia com intimidade os hábitos, aspirações e frustrações dos afro-brasileiros. Muitas de suas informações vinham diretamente dos idosos.

Além de escrever sobre os negros, Querino também ajudava a defendê-los. Preservou um considerável montante de informações sobre as artes, artistas e artesãos da Bahia. Em seu “As Artes na Bahia” incluiu biografias de pessoas comuns que fornecem uma perspectiva das vidas dos escravos, com informações sobre costumes, cultura e religião. Uma das maiores contribuições de Querino à historiografia brasileira foi sua insistência para que a história nacional levasse em consideração seu componente africano, cuja contribuição estava sendo minimizada.

Faleceu na Bahia no 14 de Fevereiro de 1923

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JoAQUIM NABUCo – 1849-1910

Joaquim Nabuco nasceu em 19 de Agosto de 1849, filho do jurista e político baiano, senador do Império José Tomás Nabuco de Araújo Filho, e de Ana Benigna de Sá Barreto Nabuco de Araújo. Foi político, diplomata, histo-riador, jurista formado pela Faculdade de Direito do Recife, jornalista, e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras.

Foi um dos grandes diplomatas do Império do Brasil, além de orador, poeta e memorialista. “O Abolicionismo”, “Minha Formação” e “Um Estadista do Império” figuram como importantes obras de memórias, e base do pensamento brasileiro, onde percebe-se o paradoxo de quem foi educado por uma família escravocrata, mas optou pela luta em favor dos escravos, por humanismo e por sentimento nacional ao perceber os malefícios da escravidão para o País. “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característ ica nacional do Brasil”, sentenciou.

Muito cedo foi viver no engenho Massangana, no atual município de Cabo de Santo Agostinho em Pernambuco. Foi neste engenho que teve contato direto com a escravidão, desenvolvendo o sentimento de solidariedade e compaixão pelo povo negro, que o marcou e ajudou a compreender a crueldade e o mal que a escravidão fazia ao País.

Em 1857 transferiu-se para a residência dos pais, no Rio de Janeiro, onde realizou os estudos de nível primário e secundário, este último feito na cidade de Nova Friburgo. Em 1866 iniciou os estudos de Direito na Facul-dade de São Paulo, destacando-se como orador. Em 1869 transferiu-se para a Faculdade de Direito do Recife, em 1869 onde escandalizou a elite local, por defender, em um júri, um escravo negro que assassinara o seu senhor.

Diplomou-se no Recife em Ciências Sociais e Jurídicas e retornou ao Rio, tentando advocacia no importante escritório de seu pai e iniciando-se no jornalismo no jornal “A Reforma”, defendendo princípios monárquicos.

Em 1872 publicou o seu primeiro livro, “Camões e os Lusíadas”. Anterior-mente publicara dois opúsculos: “O gigante da Polônia”, em 1864, e “O povo e o Trono”. Passou um ano na Europa, viajando, fazendo contatos com intelectuais e políticos.

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Em 1876 obteve o cargo público de adido de legação nos Estados Unidos, em Nova Iorque e em Washington.

Foi eleito deputado pela província de Pernambuco em 1878, passando no ano seguinte a participar do parlamento, com destaque, em face da sua origem, ao valor de sua oratória e da independência frente ao governo Sinimbu, do seu próprio partido. Ao lado de outros jovens deputados iniciou a campanha contra a escravidão, em favor da abolição da escravatura. Combateu um projeto de exploração do Xingu, defendendo os direitos dos indígenas e criticou o envio de uma missão governamental à China, visando estimular a migração de chineses que deveriam substituir os escravos nas fainas agrícolas. Organizou e instalou em sua residência em 1880 a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão, desafiando a elite conservadora da época, que considerava a escravidão uma instituição natural, inconstentável e indispensável ao bom funcionamento da sociedade e ao desenvolvimento do Brasil. Com isso, ele aprofundou as divergências com o seu partido, o Liberal, e inviabilizou a sua reeleição em 1882.

Derrotado nas eleições para a Câmara dos Deputados, onde se propunha ser o representante dos abolicionistas, partiu para a Europa, no que chamou de exílio voluntário. Em Londres viveu como advogado e jornalista (representante do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro) e escreveu um dos seus principais livros, o clássico “O abolicionismo”, publicado em 1884.

Regressou para continuar sua vocação política, fazendo a campanha outra vez para a eleição, por Pernambuco, à Câmara dos Deputados, defendendo ao lado de José Mariano, a causa do abolicionismo. Seus discursos e confe-rências foram reunidos no livro “A campanha abolicionista”, publicado em 1885, onde defendeu ideias bastante avançadas. Vitorioso sobre o candidato conservador, Machado Portela, foi, entretanto, excluído da lista de eleitos.

O expurgo causou revolta em Pernambuco, e o 5º Distrito, formado pelos municípios de Nazaré e Bom Jardim por decisão dos chefes liberais Ermírio Coutinho e Joaquim Francisco de Melo Cavalcanti, elegeu Joaquim Nabuco para a Câmara.

Joaquim Nabuco se opôs de maneira veemente à escravidão, contra a qual lutou por meio de seus escritos e de suas atividades políticas. Apesar da sua cultura e da variedade de suas precupações, pode-se dizer que foi intelectual e político de uma “nota só”: a escravidão. Fez campanha contra

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a escravidão na Câmara dos Deputados em 1878 e fundou a Sociedade Antiescravidão Brasileira. Entre dezenas de outros, pode-se considerá-lo a principal força na realidade da abolição.

A abolição da escravatura, no entanto, não deveria ser feita de maneira violenta, mas assentada numa consciência nacional dos benefícios que resultariam à sociedade brasileira. Também não creditava a movimentos civis externos ao parlamento o papel de conduzir a abolição. No seu entender a abolição só poderia se dar no parlamento. Fora desse âmbito cabia somente assentar valores humanitários que fundamentariam a abolição quando instaurada.

Criticou também a postura da Igreja Católica em relação ao abolicionismo, chamando-a de “a mais vergonhosa possível”, pois ninguém jamais a viu tomar partido dos escravos. E emendou: “A Igreja Católica, apesar do seu imenso poderio em um país ainda em grande parte fanatizado por ela, nunca elevou no Brasil a voz em favor da emancipação”45.

Assim como Ruy Barbosa, Nabuco defendia a separação entre Estado e Religião, bem como a laicidade do ensino público.

Em um discurso proferido em 15 de maio de 1879 que abrangia tanto o tema da educação pública quanto o da separação entre Estado e Religião, a um aparte de vários deputados, responde:

Eu desejava concordar com os nobres deputados, em que se deveria deixar a liberdade a todas as seitas; mas, enquanto a Igreja Católica estiver, diante das outras seitas, em uma situação privilegiada (…), os nobres deputados hão de admitir que (…) ela vai fazer ao próprio Estado, de cuja proteção se prevalece, uma concorrência poderosa no terreno verdadeiramente leigo e nacional do ensino superior. Se os nobres deputados querem conceder maiores franquezas, novos forais à Igreja Católica, então separem-na do Estado.

Em outro trecho coloca:

A Igreja Católica foi grande no passado, quando era o cristianismo; quando nascia no meio de uma sociedade corrompida, quando tinha como esperança a conversão dos bárbaros, que se agitavam às portas do Império minado pelo egoísmo, corrompido pelo cesarismo, moralmente degradado pela escravidão. A Igreja Católica foi grande quando tinha que esconder-se nas catacumbas, quando era perseguida. Mas, desde que Constantino dividiu com ela o império do mundo, desde que de perseguida ela passou a sentar-se no trono e a vestir a púrpura dos césares, desde que, ao contrário das palavras do seu divino fundador, que disse: - O meu reino não é deste mundo, - ela não teve outra religião senão

45 NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo, Rio de Janeiro: Nova fronteira; São Paulo: Publifolha, 2000.

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a política, outra ambição senão o governo, a Igreja tem sido a mais constante perseguidora do espírito de liberdade, a dominadora das consciências, até que se tornou inimiga irreconciliável da expansão científica e da liberdade inte-lectual do nosso século!

Na Câmara dos Deputados, Nabuco defendeu o Gabinete Dantas e o seu projeto de libertação dos sexagenários, apesar de considerá-lo muito moderado. Em seguida à queda do governo Dantas, atacou as modificações feitas ao projeto para os propósitos abolicionistas pelo novo presidente do Conselho, J. A. Saraiva, que seria transformado em lei pelo Gabinete Cotejipe, a 28 de setembro.

Ainda em 1885 Nabuco apresentou à Câmara dos Deputados um projeto de lei em favor da federação das províncias, tentando concretizar velha aspiração regionalista brasileira.

Em 1886 Nabuco foi outra vez derrotado em eleição para a Câmara dos Deputados ao tentar eleger-se pelo Recife. Dedicou-se ao jornalismo escre-vendo uma série de opúsculos, em que identificou a monarquia com a escravidão e fez sérias críticas ao governo. Estes opúsculos se intitulavam

“O erro do Imperador”, “O Eclipse do Abolicionismo e “Eleições Liberais e Eleições Conservadoras”, publicados em 1886.

Em 1887 Nabuco derrotou Machado Portela em eleição memorável no Recife. Este é um dos casos em que um pequeno fato local provoca grandes eventos históricos: difícil imaginar o Parlamento Brasileiro sem a presença de Joaquim Nabuco, naqueles anos e naqueles dias de Maio de 1888.

Coerente com as propostas de sua campanha, dedicou-se com ênfase e de forma incansável à luta pela abolição. Com este propósito, teve audiência particular com o papa Leão XIII e relatou a luta pelo abolicionismo no Brasil, acreditando-se que possa ter influenciado o grande pontífice na elaboração de uma encíclica contra a escravidão.

Em Março de 1888, o gabinete João Alfredo assume o governo com o obje-tivo deliberado de abolir a escravatura no Brasil. Apesar do Gabinete ser conservador, Nabuco o apoiou e deu uma grande contribuição à apro-vação da Lei Áurea. Em seguida, quando os ressentidos com a abolição se lançaram contra João Alfredo, Nabuco veio em sua defesa, realizando, a 22 de maio de 1889, um dos seus mais memoráveis discursos na Câmara dos Deputados.

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Nas eleições de 1889, sem ir ao Recife e sem solicitar o apoio do eleitorado foi eleito deputado por Pernambuco, para a última legislatura do Império. Começava a se desiludir dos processos políticos no País e temia pela queda da Monarquia, a quem era fiel, embora procurasse liberalizá-la e não poupasse críticas à instituição e ao próprio Imperador.

Com a Proclamação da República, posicionou-se em favor da Monarquia, recusando-se inclusive, apesar de solicitado, a postular uma cadeira na Assembléia Constituinte de 1891. Justificou sua posição no opúsculo “Por que sou monarquista”.

Era um monarquista e conciliava essa posição política com sua postura abolicionista. Atribuía à escravidão a responsabilidade por grande parte dos problemas enfrentados pela sociedade brasileira, defendendo que o trabalho servil fosse suprimido antes de qualquer mudança no âmbito político.

Quando surgiu o “Jornal do Brasil”, fundado por Rodolfo Dantas, em 1891, com a finalidade de bem informar a população e de defender, de forma moderada, a restauração da Monarquia, Nabuco tornou-se colaborador. Para sobreviver, voltou à advocacia, abrindo escritório em sociedade com o conselheiro João Alfredo. Não foram bem sucedidos e um ano depois fecharam o escritório.

Viajou à Inglaterra com a família, aí permanecendo por alguns anos. Fazendo um balanço de sua vida, voltou à Igreja Católica, que havia abandonado na juventude. O livro “Minha Fé”, publicado em 1986 pela Fundação Joaquim Nabuco, relata o processo de sua conversão.

Escreveu também um opúsculo, “O dever dos monarquistas”, em resposta a outro escrito pelo almirante Jaceguai, este favorável ao novo regime, intitulado “O dever do momento”. Assumiu em 1896 o manifesto do Partido Monarquista, recém-fundado, tendo como signatários, além dele os conse-lheiros João Alfredo, Lafaiete Pereira, o visconde de Ouro Preto, Afonso Celso e outros.

Não aceitando cargos da República, Nabuco dedicou-se às letras, escre-vendo livros e artigos para jornais e revistas. Alguns livros foram escritos inicialmente para publicação como artigos, em jornais e revistas. Entre estes, cabe citar “Balmaceda” (publicado em 1895) sobre a guerra civil no

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Chile e “A Intervenção Estrangeira na Revolta de 1893” (publicado em 1896) onde, além de analisar o desenrolar da luta, faz confronto entre Saldanha da Gama, maior líder da Revolta, e Floriano Peixoto, que encarnava a legalidade. Também deste período é “Um Estadista do Império (1896)”, seu principal livro, em que analisa a vida do senador Nabuco de Araújo e a vida política, econômica e social do País durante a atuação do mesmo. Ainda desta época é o seu livro de memórias, intitulado “Minha Formação”, publicado parcialmente na imprensa e reunido em livro, em 1900.

Em 1896 participou da fundação da Academia Brasileira de Letras, que teve Machado de Assis como seu primeiro presidente e Nabuco como secretário perpétuo. Entre os acadêmicos, manteve uma grande amizade com o escritor Machado de Assis, que mantinha até mesmo um retrato de Nabuco pendurado na parede de sua residência, e com quem costumava trocar correspondências, que acabaram publicadas. Ingressou no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1896.

Em 1899 aceitou convite do governo da República para defender o Brasil na questão de limites com a então Guiana Inglesa de que seria árbitro o rei Victor Emanuel, da Itália, iniciando o processo de afastamento do grupo monarquista e passando à conciliação com a República. Sua adesão defi-nitiva ocorreu com discurso que proferiu, no Rio de Janeiro, em dezembro de 1900, em banquete que lhe foi oferecido, discurso considerado como a sua declarada adesão à República. Aceitou o cargo de chefe da delegação em Londres e tornou-se, finalmente, funcionário da República.

Em março de 1900 morreu Sousa Correia, ministro brasileiro na Inglaterra, provocando o convite do gabinete do governo para que Nabuco aceitasse este lugar, passando a ser funcionário da República. Nabuco inicialmente aceitou ser “plenipotenciário em missão especial” deixando a chefia da legação com o encarregado de negócios.

Criada a Embaixada do Brasil em Washington, Nabuco foi nomeado embaixador, apresentando suas credenciais ao presidente Theodore Roosevelt em maio de 1905. Como embaixador em Washington ligou-se muito ao governo norte-americano e defendeu uma política pan-americana, baseada na doutrina de Monroe. Também viajou bastante pelos Estados Unidos e proferiu dezenas de conferências em universidades americanas e organizou a “III Conferência Pan-americana”, realizada no Rio de Janeiro, com a presença do secretário de Estado dos Estados Unidos.

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Faleceu em Washington, em janeiro de 1910, como embaixador, após um longo período de doença.

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CASTro ALvES – 1847-1871

Antônio Frederico de Castro Alves é um dos maiores exemplos mundiais de poeta engajado. Nasceu na fazenda Cabaceiras, hoje Castro Alves, no estado da Bahia. Era filho de Antônio José Alves e Clélia Brasília da Silva Castro. Em sua casa encontrou uma atmosfera literária, produzida pelos oiteiros, ou saraus, festas de arte, música, poesia, declamação de versos, tendo feito aos 17 anos as suas primeiras poesias.

Em maio de 1863, foi reprovado na prova de admissão para o ingresso na Faculdade de Direito do Recife. Mas seria em Recife tribuno e poeta sempre requisitado nas sessões públicas da Faculdade, nas sociedades estudantis, na plateia dos teatros, incitado desde logo pelos aplausos e ovações, que começava a receber e ia num crescendo de apoteose. Publicou nesse ano no primeiro número da revista “A Primavera” seu primeiro poema contra a escravidão: “A canção do africano”. Ainda em 1863 a tuberculose se manifestou.

Enfim consegue matricular-se na Faculdade de Direito do Recife e em outubro viaja para a Bahia. Só retornaria ao Recife em 18 de março de 1865, acompanhado por Fagundes Varela, em agosto no Batalhão Acadêmico de Voluntários para a Guerra do Paraguai. Em 16 de dezembro, voltou a Salvador. Seu pai morreu no ano seguinte, e ele retornou ao Recife, matri-culando-se no segundo ano da faculdade. Nessa ocasião, fundou com Rui Barbosa e outros amigos uma sociedade abolicionista.

Teve fase de intensa produção literária e a do seu apostolado por duas grandes causas: uma, social e moral, a da abolição da escravatura; outra, a República, aspiração política dos liberais mais exaltados. Data de 1866 o término de seu drama “Gonzaga ou a Revolução de Minas”, representado na Bahia e depois em São Paulo, no qual conseguiu consagrar as duas grandes causas de sua vocação. Na estreia de “Gonzaga...”, dia 7 de setembro, no Teatro São João de Salvador, foi coroado e conduzido em triunfo.

Em janeiro de 1868, embarcou com a amante Eugênia Câmara para o Rio de Janeiro, sendo recebido por José de Alencar e visitado por Machado de Assis. A imprensa publica troca de cartas entre ambos, com grandes elogios ao poeta. Em março, viajou com Eugênia para São Paulo. Aí decidiu continuar seus estudos, e se matriculou no terceiro ano na Faculdade de Direito de São Paulo.

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Continuou a produção dos seus poemas líricos e heroicos, publicados em jornais ou recitados nas festas literárias, fazendo parte do que talvez tenha sido a geração mais marcante de intelectuais brasileiros, que deu os mais famosos talentos e capacidades literárias e políticas do Brasil: basta lembrar os nomes de Fagundes Varela, Ruy Barbosa, Joaquim Nabuco, Afonso Pena, Rodrigues Alves, Bias Fortes, Martim Cabral, Salvador de Mendonça, e tantos outros, que lhe assistiram aos triunfos e não lhe disputaram a primazia.

A 7 de setembro de 1868, fez a apresentação pública de “Tragédia no Mar”, que depois ganharia o nome de “O Navio Negreiro”. No dia 25 de outubro, foi reapresentada sua peça “Gonzaga...” no Teatro São José.

Tuberculoso, aventara uma estadia na cidade de Caetité, onde moravam seus tios e morrera o avô materno (o Major Silva Castro, herói da Inde-pendência da Bahia), dois grandes amigos (Otaviano Xavier Cotrim e Plínio de Lima), de clima salutar. Mas, antes disso, ainda em São Paulo, na tarde de 11 de novembro, resolveu realizar uma caçada na várzea do Brás e feriu o pé com um tiro. Disso resultou longa enfermidade, cirur-gias, chegando ao Rio de Janeiro no começo de 1869, para salvar a vida, mas com o martírio de uma amputação. Os cirurgiões e professores da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Andrade Pertence e Mateus de Andrade, amputaram seu pé esquerdo, em um tempo em que não havia qualquer tipo de anestesia.

No dia 31 de outubro, assistiu a uma representação de Eugénia Câmara, no Teatro Fênix Dramática. Ali a viu por última vez, pois a 25 de novembro decidiu partir para Salvador.

Em fevereiro de 1870 seguiu para Curralinho para melhorar a tubercu-lose que se agravara, viveu na fazenda Santa Isabel, em Itaberaba. Em setembro, voltou para Salvador. Ainda leria, em outubro, “A cachoeira de Paulo Afonso” para um grupo de amigos, e lançou “Espumas Flutuantes”.

Sua última aparição em púbico foi em 10 de fevereiro de 1871, em um recital beneficente. Tinha 24 anos e deixou uma das mais profundas, talvez a maior de todas as marcas das letras da história política de seu país. Morreu às três e meia da tarde, no solar da família no Sodré, Salvador, Bahia, em 6 de julho de 1871.

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ANTôNIo BENTo – 1843-1898

Antônio Bento de Souza e Castro nasceu em São Paulo em 17 de fevereiro de 1843, filho de Bento Joaquim de Sousa e Castro e D. Henriqueta Viana, na rua São José, (hoje rua Libero Badaró, centro velho da cidade de São Paulo).

Em 1864, matriculou-se na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, formando-se em 1868. Foi promotor público nas cidades de Botucatu e Limeira, juiz na cidade de Atibaia, onde foi o responsável pela libertação dos escravos negros contrabandeados depois de 1831 para esta cidade.

Voltou a São Paulo em 1877, onde reorganizou a Confraria de Nossa Senhora dos Remédios e em 1880 conhece Luís Gama, negro e líder do movimento emancipador dos escravos na então Província de São Paulo. Com a morte de Luís Gama em 24 de agosto de 1882, Antônio Bento assume a liderança do movimento abolicionista paulista. Dentre os membros deste movimento estavam Macedo Pimentel, Arcanjo Dias Baptista, cônego Guimarães Barroso, Hipólito da Silva, Carlos Garcia, Bueno de Andrada e Muniz de Sousa, na Capital da província, o major Pinheiro, Santos Garrafão e o negro Quintino de Lacerda, na cidade litorânea de Santos.

Até então, trabalhavam principalmente nas lojas maçônicas, na propa-ganda abolicionista no arbitramento das leis que garantiam a liberdade aos contrabandeados após a proibição inglesa. Antonio Bento organizou o Movimento dos Caifazes que enviava emissários ao interior da Província de São Paulo, e incentivavam a fuga e garantia recursos para as viagens e refúgios.

Após a fuga, os negros eram acomodados nas casas de Antonio Bento e outros aliados à ideia da abolição, daí enviados para a Província do Ceará que já havia decretado a abolição.

Com o crescimento da consciência de igualdade racial e cedendo às pres-sões populares a milícia passou a se recusar a perseguir os negros em fuga. Algumas cidades decretaram a libertação dos escravos antes da Lei Áurea. Com isto, Antônio Bento conseguiu convencer senhores a contratar os fugitivos como trabalhadores livres e assalariados.

Morreu em novembro de 1898.

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JoSé MArIANo CArNEIro DA CUNhA – 1850-1912

José Mariano Carneiro da Cunha nasceu em 8 de agosto de 1850, em Gameleira-PE.

Estudou na Faculdade de Direito do Recife, na mesma turma em que estudou Joaquim Nabuco, e conheceu Rui Barbosa, formando-se em 1870.

Logo se vincula ao movimento abolicionista e funda o jornal “A Província”, de filosofia abolicionista, que iniciou a circular em 6 de setembro de 1872.

Juntamente com outros pernambucanos (entre eles Joaquim Nabuco) foi membro da associação emancipatória “Clube do Cupim”.

Assim como Joaquim Nabuco, Barros Sobrinho, João Ramos, Alfredo Pinto, Phaelante da Câmara, Vicente do Café e Leonor Porto, José Mariano era membro da associação emancipatória “Clube do Cupim”, fundado em 1884, que alforriava, defendia e protegia os escravos.

Conseguiu ser eleito deputado em 1886, mas a eleição foi impugnada e José Mariano perdeu a cadeira. Em 1890 foi eleito deputado à Constituinte, e, em 1891, foi eleito Prefeito do Recife. Pouco tempo depois, quando Alexandre José Barbosa Lima assume o Governo de Pernambuco, José Mariano lança-se em sua oposição, publicando artigos contra ele e o Presidente Marechal Floriano Peixoto. Em decorrência, foi preso em sua residência e na fortaleza do Brum, sob a acusação de pactuar com a revolta da Armada.

A esposa de José Mariano, a recifense Olegaria da Costa Gama é apelidada de “mãe dos pobres” e “mãe do povo” por sua bondade e dedicação aos escravos. Olegaria apoiava os escravos fugidos ou alforriados. E quando ele foi preso e torturado, ela continuou lutando pela abolição. Chegando a empenhar as próprias joias para financiar as despesas referentes à eleição de Joaquim Nabuco - colega abolicionista - em 1887, ao cargo de deputado-geral.

José Mariano consegue ser libertado e assume a cadeira de deputado. As ruas e casas, de Recife, do cais do porto, até sua casa no Poço da Panela, ficaram ornamentadas e embandeiradas para saudar seu retorno. Na ocasião fez um discurso na Câmara, com cinco horas de duração, narrando o martírio vivenciado como prisioneiro.

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Segundo a historiadora Semira Adler Vainsencher, quando no dia 24 de abril de 1898 morre dona Olegarinha, muitos pretos se suicidaram, enve-nenando-se ou jogando-se no rio Capibaribe.

Após a morte da esposa, José Mariano se afasta das lutas políticas. Em 1899, é nomeado Oficial do Registro de Títulos, pelo Presidente Rodrigues Alves, e presenteado com um Cartório de Títulos e Documentos, no Rio de Janeiro.

Não muito tempo depois, adoece e vem a falecer no dia 8 de junho de 1912. Seu corpo embalsamado foi transportado ao Recife, onde as pessoas jogaram flores em seu esquife enquanto muitas choravam.

FONTES CONSULTADAS:

SILVA, Jorge Fernandes da. Vidas que não morrem. Recife: Secretaria de Educação, Departamento de Cultura, 1982.

PARAHYM, Orlando. José Mariano. Recife: Dialgraf, 1976.

Semira Adler Vainsencher Pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco [email protected]

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Líderes Educacionistas

gUSTAvo CApANEMA – 1900-1985

Gustavo Capanema Filho nasceu em Pitangui - MG, em 1900. Formou-se pela Faculdade de Direito de Minas Gerais, em 1923. Durante seus tempos de universitário vinculou-se, em Belo Horizonte, ao grupo de intelectuais da rua da Bahia, do qual também faziam parte Mario Casassanta, Abgard Renault, Milton Campos, Carlos Drumond de Andrade e outras futuras personalidades das letras e da política no Brasil. Em 1927 iniciou sua vida política ao eleger-se vereador em sua cidade natal.

Nas eleições presidenciais realizadas em março de 1930 apoiou a candida-tura presidencial de Getúlio Vargas, que depôs o presidente Washington Luís em novembro de 1930.

Em 1934, Vargas nomeou Capanema para dirigir o Ministério da Educação e Saúde, cargo no qual permaneceu até outubro de 1945.

Sua gestão no ministério foi marcada pela centralização, a nível federal, das iniciativas no campo da educação e saúde pública no Brasil. Na área educacional tomou parte do acirrado debate então travado entre o grupo renovador, que defendia um ensino laico e universalizante, sob a respon-sabilidade do Estado, e o grupo católico, que advogava um ensino livre da interferência estatal.

Imbuído de ideais nacionalistas, Capanema promoveu a nacionalização de cerca de duas mil escolas localizadas nos núcleos de colonização do sul do país. No campo do ensino profissionalizante criou, através de convênio com o empresariado, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai).

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Segundo Simon Schwartzman, Gustavo Capanema, quando Ministro da Educação de 1937 a 1945, “foi responsável por uma série de projetos impor-tantes de reorganização do ensino no país, assim como pela organização do Ministério da Educação em moldes semelhantes ao que ainda é hoje. O apoio dado por Capanema a grupos intelectuais e, mais especialmente, a arquitetos e artistas plásticos de orientação moderna, contribuiu para cercar sua gestão de uma imagem de modernização na esfera educa-cional que ainda não havia sido examinada em mais detalhe”. Na sua gestão, a Igreja cessou seu ataque tradicional à interferência do Estado nas atividades educacionais, e o Estado, por sua vez, tratou de adotar os preceitos doutrinários e educacionais da Igreja no ensino público que ora se implantava.

Ficou lembrado como o ministro que nacionalizou o ensino, com escolas federais de qualidade, embora para poucos, onde ele dizia saber o que estava sendo ensinado em cada sala de aula no instante em que falava. É devido ao sistema nacional que ele implantou que ficou a ideia de que “no passado a escola pública tinha mais qualidade do que a particular”, cabendo lembrar que naquele Brasil o ensino era limitado a uma pequena percentagem de crianças.

Morreu no Rio de Janeiro, em 1985.

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João CALMoN – 1917-1999

João de Medeiros Calmon, advogado e jornalista, nasceu em 7 de setembro de 1916 em Colatina – ES. Em toda nossa história, foi um dos maiores defensores da melhoria da educação no País, com sua constante palavra e com uma emenda decisiva à Constituição, conhecida como Emenda Calmon, promulgada em 1º de dezembro de 1983.

O art. 156 da Carta de 1934 determinava que a União e os municípios eram obrigados a aplicar, no mínimo, 10% de sua receita de imposto em educação, e os estados e Distrito Federal deveriam obedecer a um mínimo de 20% de vinculação de suas receitas. A Constituição de 1946 também adotou esta determinação. No entanto, a Carta de 1967, elaborada pelo regime militar, suprimiu o dispositivo, desobrigando os entes federados a investir percentuais mínimos em educação. Depois que o mandamento foi retirado, os recursos da pasta caíram mais de 50% em cinco anos.

O artigo 176 da Constituição Federal passa a vigorar com o acréscimo do seguinte parágrafo: “§ 4º - Anualmente, a União aplicará nunca menos de treze por cento, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, na manu-tenção e desenvolvimento do ensino.”

A batalha pela reinserção da emenda foi iniciada por Calmon em 25 de maio de 1976 com a apresentação da proposta, e durou quase dez anos. Quando a emenda foi finalmente aprovada, a Ministra da Educação e Cultura na época, Professora Esther de Figueiredo Ferraz, afirmou em entrevista concedida à televisão que a data da aprovação da Emenda Calmon “deveria figurar no nosso calendário nacional como uma espécie de 13 de maio”.

Em 1994, em pleno regime democrático, em um retrocesso surpreendente, foi aprovada a Emenda que permitiu a desvinculação de receitas da União, liberando o governo federal da obrigação de cumprir integralmente a Emenda Calmon. Só em 2009, graças a uma emenda (EC 59/2009) da Senadora Ideli Salvatti, esta desvinculação começou a ser gradualmente extinta e a Emenda Calmon voltou a vigorar plenamente em 2011.

Faleceu em 11 de janeiro de 1999 em São Paulo.

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ANySIo TEIxEIrA – 1900-1971

Anísio Teixeira foi jurista, educador e escritor, nascido em Caetité - BA, em 12 de julho de 1900. Ocupou papel central na história da educação no Brasil.

Nas décadas de 1920 e 1930, difundiu o movimento da Escola Nova, que tinha como princípio a implantação de escolas em horário integral, e a ênfase no desenvolvimento das capacidades cognitivas, em preferência à memorização.

Foi um dos mais destacados redatores e signatários do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, em defesa do ensino público, gratuito, laico e obrigatório, divulgado em 1932.

Em 1935, fundou a Universidade do Distrito Federal, depois transformada em Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Durante a última fase do Estado Novo, afastou-se da vida pública e dedicou-se às questões educacionais como Conselheiro da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).

Voltando o país ao regime democrático em 1946, foi convidado por Octávio Mangabeira, então eleito para o Governo da Bahia, a ser o Secretário de Educação e Saúde. Dentre outras realizações, construiu no bairro da Liber-dade, o mais populoso e pobre da capital baiana, o “Centro Educacional Carneiro Ribeiro”, mais conhecido por Escola Parque, para educação em tempo integral e que serviria de modelo para os futuros CIEPs e CIACs.

Em 1952, assumiu a direção do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, ou INEP, órgão do Governo Federal que, em 2001 (Lei 10.269/2001) passou a se chamar Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.

Ao assumir a direção do Instituto, Anísio Teixeira passou a dar maior ênfase ao trabalho de pesquisa e estabelecer centros de pesquisa como um meio para fundar em bases científicas a reconstrução educacional do Brasil. A ideia concretizou-se com a criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), com sede no Rio de Janeiro, e dos Centros Regionais, nas cidades de Recife, Salvador, Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre vinculados à então nova estrutura do INEP.

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Foi o criador e primeiro dirigente da Campanha Nacional de Aperfei-çoamento de Pessoal de Nível Superior (atual CAPES), que dirigiu até o golpe de 1964.

Foi um dos idealizadores do projeto da Universidade de Brasília (UnB), inaugurada em 1961, da qual veio a ser reitor em 1963, para ser afastado após o golpe militar de 1964.

Anísio Teixeira morreu em 1971, em circunstâncias consideradas obscuras. Seu corpo foi achado num elevador na Avenida Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, onde teria caído ao sair do apartamento de Aurélio Buarque de Holanda, após visita para pedir o voto dele para ingressar na Academia Brasileira de Letras.

No livro “Educação para a Democracia”46 Anysio deixou uma frase que resume seu legado pela educação e deixa claro o alvo de sua maior luta: “Só existirá democracia no Brasil no dia em que se montar no país a máquina que prepara as democracias. Essa máquina é a da escola pública”.

46 Educação para a Democracia, Rio de Janeiro: José Olympio; 1936, p. 247

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pAULo FrEIrE – 1921-1997

Nascido em Recife - PE, no dia 19 de setembro de 1921, Paulo Freire é consi-derado um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia mundial. Empenhou-se principalmente na área da educação popular, voltada para a formação da consciência política. Sempre defendeu o diálogo com as pessoas simples, não só como uma questão de democracia, mas também como método pedagógico.

Entrou para a Universidade do Recife em 1943, para cursar a Faculdade de Direito, mas também se dedicou aos estudos de filosofia da linguagem. Não chegou a exercer a profissão, pois preferiu trabalhar como professor numa escola de segundo grau lecionando língua portuguesa.

Em 1946, foi indicado ao cargo de diretor do Departamento de Educação e Cultura do Serviço Social no Estado de Pernambuco, onde iniciou o trabalho com analfabetos pobres.

Em 1961 tornou-se diretor do Departamento de Extensões Culturais da Universidade do Recife e, no mesmo ano, realizou junto com sua equipe e com universitários voluntários as primeiras experiências de alfabetização popular que levariam à constituição do Método Paulo Freire. Seu grupo foi responsável pela alfabetização de 300 cortadores de cana em apenas 45 dias. Em resposta aos eficazes resultados, o governo brasileiro (que, sob o presidente João Goulart, empenhava-se na realização das reformas de base) aprovou a multiplicação dessas primeiras experiências num Plano Nacional de Alfabetização, que previa a formação de educadores em massa e a rápida implantação de 20 mil núcleos (os “círculos de cultura”) pelo País.

Em maio de 1964, meses depois de iniciada a implantação do Plano, o golpe militar extinguiu esse esforço. Freire foi encarcerado por 70 dias. Passou por um breve exílio na Bolívia e trabalhou no Chile por cinco anos para o Movimento de Reforma Agrária da Democracia Cristã e para a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação. Em 1967, durante o exílio chileno, publicou no Brasil seu primeiro livro, “Educação como Prática da Liberdade”, baseado fundamentalmente na tese “Educação e Atualidade Brasileira”, com a qual concorrera, em 1959, à cadeira de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas Artes da Universidade do Recife.

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O livro foi bem recebido, não apenas no Brasil. Como consequência, Paulo Freire foi convidado para ser professor visitante da Universidade de Harvard, em 1969. No ano anterior, havia concluído a redação de seu mais famoso livro, “Pedagogia do Oprimido”, que foi publicado em vários idiomas. No Brasil, o livro só seria publicado em 1974, quando se iniciou o processo de abertura política.

Em 1979, com a Anistia, pôde retornar ao Brasil, o que fez em 1980.

Filiou-se ao Partido dos Trabalhadores na cidade de São Paulo; de 1980 até 1986 atuou como supervisor do programa do partido para alfabetização de adultos. Em 1988, com a eleição de Luiza Erundina (1989-1993), foi nomeado Secretário de Educação da Cidade de São Paulo. Dentre as marcas de sua passagem pela secretaria municipal de Educação está a criação do MOVA

- Movimento de Alfabetização, um modelo de programa público de apoio a salas comunitárias de Educação de Jovens e Adultos.

Em 1991 foi fundado em São Paulo o Instituto Paulo Freire, para manter suas ideias vivas. O Instituto mantém até hoje os arquivos do educador, além de realizar numerosas atividades relacionadas com o legado do pensador e a atuação em temas da educação brasileira e mundial.

Desde sua obra mais famosa, Pedagogia do Oprimido, até o último livro publicado, “Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educa-tiva” (1996), o educador Paulo Freire sempre tratou da questão da educação como ato libertador e transformador. Dizia que “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão.” (Peda-gogia do Oprimido, 1987, p. 29.)

Paulo Freire delineou uma Pedagogia da Libertação, intimamente relacionada com as classes oprimidas na tentativa de elucidá-las e conscientizá-las politicamente. As suas maiores contribuições foram no campo da educação popular para a alfabetização e a conscientização política de jovens e adultos operários, mas Paulo Freire não se limitou a esses campos. Sua obra teve alcance mais amplo, pelo menos para a tradição de educação marxista, que incorpora o conceito básico de que não existe educação neutra. Segundo sua visão, todo ato de educação é um ato político.

A pedagogia do oprimido foi definida por Freire como

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“aquela que tem que ser forjada com ele (oprimido) e não para ele, enquanto homens e povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Peda-gogia que faça da opressão e de suas causas objeto de reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará. O grande problema está em como poderão os oprimidos, que ‘hospedam’ o opressor em si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos, da pedagogia de sua libertação” (Freire, 1987, p.32).

Paulo Freire morreu de um ataque cardíaco em 2 de maio de 1997, no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, devido a complicações em uma operação de desobstrução de artérias.

Por seu empenho em ensinar os mais pobres, Paulo Freire tornou-se uma inspiração para gerações de professores, especialmente na América Latina e na África.

Desde 13 de abril de 2012, por lei de autoria da Deputada Luiza Erundina, foi declarado como patrono da educação brasileira.

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DArCy rIBEIro – 1922-1996

Darcy Ribeiro foi um antropólogo, escritor e político brasileiro conhecido por sua dedicação à pauta indigenista e educacionista no país.

Nasceu em Montes Claros - MG em 26 de outubro de 1922. Filho de Reginaldo Ribeiro dos Santos e Josefina Augusta da Silveira. Em sua cidade natal fez os estudos fundamental e secundário no Grupo Escolar Gonçalves Chaves e no Ginásio Episcopal de Montes Claros.

Em 1946, formou-se em antropologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e dedicou seus primeiros anos de vida profissional ao estudo dos índios do Brasil Central e da Amazônia.

Em 1949, entrou para o Serviço de Proteção aos Índios (antecessor da Funai), onde trabalharia até 1951. Passou várias temporadas com os indí-genas do Mato Grosso (então um só estado) e da Amazônia, publicando as anotações feitas durante essas viagens sob o título de “Diários Índios”. Colaborou ainda para a fundação do Museu do Índio (que dirigiu) e a criação do parque indígena do Xingu.

Na época, Darcy Ribeiro escreveu diversas obras de etnografia e defesa da causa indigenista, contribuindo com estudos para a Unesco e a Orga-nização Internacional do Trabalho. Em 1955, organizou o primeiro curso de pós-graduação em antropologia, na Universidade do Rio de Janeiro, onde lecionou etnologia até 1956.

No ano seguinte, passou a trabalhar no Ministério da Educação e Cultura. Ao lado do amigo Anísio Teixeira, foi um dos responsáveis pela criação da Universidade de Brasília, da qual foi seu primeiro reitor. Também foi o idealizador da Universidade Estadual do Norte Fluminense.

Mais tarde, como chefe da Casa Civil no governo João Goulart, desempe-nhou papel relevante na elaboração do conceito e da luta pelas chamadas Reformas de Base. Com o golpe militar de 1964, Darcy Ribeiro teve os direitos políticos cassados e foi exilado, vivendo durante alguns anos no Uruguai, no Chile e no Peru.

Foi professor na Universidade Oriental do Uruguai e assessorou os presidentes Allende (Chile) e Velasco Alvarado (Peru). Naquele período, Darcy Ribeiro

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redigiu grande parte de sua obra de maior fôlego: “Antropologia da Civili-zação”, em seis volumes. O último, “O Povo Brasileiro”, ele publicaria em 1995.

Em 1976, retornou para o Brasil, dedicando-se à educação pública.

Quatro anos depois, foi anistiado, iniciando uma bem-sucedida carreira política.

Em 1982, elegeu-se vice-governador do Rio de Janeiro, ao lado de Leonel Brizola. Nesse cargo, Darcy Ribeiro criou, planejou e dirigiu a implantação dos Centros Integrados de Ensino Público (CIEPs), um projeto pedagógico visionário e revolucionário para o Brasil, de assistência em tempo inte-gral a crianças, incluindo atividades recreativas e culturais para além do ensino formal – recuperando 60 anos depois as ideias e propostas dos “Pioneiros da Educação”. Com os CIEPs, Darcy defendeu e praticou a estratégia da revolução educacional pela implantação de um novo sistema, nova escola, substituindo o sistema tradicional da velha escola. Ele não se satisfazia com melhorar o sistema vigente, ele acreditava que o salto-educacional viria de um novo sistema que iria sendo implantado substituindo o tradicional.

Em 1990, foi eleito senador, posto em que teve destacada atuação, princi-palmente como relator da “Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional”.

Foi um incansável batalhador da educação e desabafou ao fim sobre o seu legado:

“Sou um homem de causas. Vivi sempre pregando, lutando, como um cruzado, pelas causas que comovem. Elas são muitas demais: a salvação dos índios, a escolarização das crianças, a reforma agrária, o socialismo em liberdade, a universidade necessária. Na verdade somei mais fracassos que vitórias em minhas lutas, mas isso não importa. Horrível seria ter ficado ao lado dos que nos venceram nessas batalhas”47

Morreu em Brasília no ano 1996, aos 74 anos, depois de um lento processo canceroso que comoveu todo o Brasil com reconhecimento e admiração em torno de sua figura. Já sabendo que sua doença era terminal, Darcy Ribeiro confessou no livro de memórias: “Termino esta minha vida já exausto de viver, mas querendo mais vida, mais amor, mais saber, mais travessuras.”

47 Ribeiro, Darcy. O Brasil como problema - Publicado por F. Alves, 1995 ISBN 8526503235, 9788526503236 - 320 páginas

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FLorESTAN FErNANDES – 1920-1995

Florestan Fernandes nasceu em São Paulo - SP, no dia 22 de julho de 1920. Filho de uma família muito pobre, começou a trabalhar aos seis anos, o que o levou a abandonar os estudos, forçando-o a fazer o curso básico no então chamado madureza (supletivo). Vendia produtos farmacêuticos quando, aos 18 anos, ingressou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, formando-se em ciências sociais em 1947.

Doutorou-se em 1951 e foi assistente catedrático, livre docente e professor titular na cadeira de sociologia, substituindo o sociólogo e professor francês Roger Bastide em caráter interino até 1964, ano em que se efetivou na cátedra.

Cassado com base no AI-5, deixou o país em 1969 e lecionou nas univer-sidades de Columbia (EUA), Toronto (Canadá) e Yale (EUA). Retornou ao Brasil em 1972 e passou a lecionar na PUC-SP. Não procurou reintegrar-se à USP, da qual recebeu o título de professor emérito em dezembro de 1985.

Em 1986 foi eleito deputado constituinte pelo Partido dos Trabalhadores, do qual foi um dos fundadores, tendo atuação destacada em discussões nos debates sobre a educação pública e gratuita. Em 1990, foi reeleito para a Câmara.

O nome de Florestan Fernandes está obrigatoriamente associado à pesquisa sociológica brasileira. Sociólogo e professor universitário com mais de cinquenta obras publicadas, transformou as ciências sociais no Brasil e estabeleceu um novo estilo de pensamento: tentou romper com o dogma da neutralidade da ciência e defendeu análises críticas comprometidas com a mudança social. Dizia que: “Em nossa época, o cientista precisa tomar consciência da utilidade social e do destino prático reservado a suas descobertas”.

Refletiu sobre a educação brasileira, apontando seu caráter elitista e lutou pela igualdade no acesso à educação. Vários escritos de Florestan e parte de sua atuação na Câmara dos Deputados estiveram concentrados na área do ensino.

A preocupação com a instrução era um desdobramento natural de sua obra de sociólogo. Sempre afirmou que a cultura cívica só poderia ser

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construída com a democratização do ensino. Em seus dois mandatos de deputado federal, esteve envolvido em todos os debates importantes que ocorreram no Congresso no campo da educação. Participou ativamente da elaboração, tramitação e discussão da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que só seria aprovada em 1996, um ano depois de sua morte.

Afirmava que as péssimas condições de ensino e o sucateamento das escolas era um tentativa deliberada das elites de sufocar a democratização e a emancipação cultural e política das camadas mais vulneráveis. Criticou também a forma de transmissão do saber em sala de aula, fundada na hierarquização entre professor e aluno. Aquele como mero transmissor e este como mero receptor. Para Florestan, o conhecimento só pode ser construído se a educação se desfizer das práticas de servidão.

Hoje é consenso entre os educadores e elaboradores de políticas públicas que a educação deve ser democrática e livre, que é seu dever deixar de reproduzir os mecanismos de dominação das classes letradas sobre as classes oprimidas.

Florestan Fernandes morreu em São Paulo no dia 10 de agosto de 1995.

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FErNANDo DE AzEvEDo – 1894-1974

Fernando de Azevedo, professor, educador, crítico, ensaísta e sociólogo, nasceu em São Gonçalo do Sapucaí, (MG) em 2 de abril de 1894.

Filho de Francisco Eugênio de Azevedo e de Sara Lemos Almeida de Azevedo, cursou o ginasial no Colégio Anchieta, em Nova Friburgo. Durante cinco anos fez cursos especiais de letras clássicas, língua e literatura grega e latina, de poética e retórica; e, em seguida, cursou Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade de Direito de São Paulo.

Começou a dar aulas aos 22 anos como professor substituto de latim e psicologia no Ginásio do Estado em Belo Horizonte. Depois se tornou professor de latim e literatura na Escola Normal de São Paulo e de socio-logia educacional no Instituto de Educação da Universidade de São Paulo. Catedrático do Departamento de Sociologia e Antropologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, recebeu desta faculdade o título de Professor Emérito em 1964.

Foi diretor geral da Instrução Pública do Distrito Federal (1926-30) quando projetou e defendeu uma ampla reforma de ensino para o país; diretor geral da Instrução Pública do Estado de São Paulo (1933); membro da comissão organizadora da Universidade de São Paulo (1934); diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo (1941-42); membro do Conselho Universitário por mais de doze anos, desde a fundação da Universidade de São Paulo; secretário da Educação e Saúde do Estado de São Paulo (1947); diretor do Centro Regional de Pesquisas Educacionais, que ele instalou e organizou (1956-61); Secretário de Educação e Cultura no governo do prefeito Prestes Maia (1961); redator e crítico literário de O Estado de São Paulo (1923-26), jornal em que organizou e dirigiu, em 1926, inquérito sobre Educação Pública em São Paulo, abordando os problemas fundamentais do ensino de todos os graus e tipos, e iniciando uma campanha por uma nova política de educação e pela criação de universidades no Brasil.

Em 1933, quando Diretor Geral da Instrução Pública do Estado de São Paulo, promoveu reformas, baseadas no Código de Educação. Em 1931, fundou e dirigiu por mais de 15 anos, na Companhia Editora Nacional, a Biblioteca Pedagógica Brasileira, de que faziam parte a série Iniciação Científica e a coleção Brasiliana.

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Foi o redator e o primeiro signatário do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova - A Reconstrução Educacional no Brasil, de 1932, em que se lançaram as bases e diretrizes de uma nova política de educação.

Com a proposta de renovar a escola tradicional, objetivava-se a aplicação da verdadeira função social da escola, pautada na democracia e no desen-volvimento das capacidades. O documento destacava a importância da educação pública, única, da laicidade, gratuidade e obrigatoriedade da educação. Defendia que a educação era para todos, portanto a escola pública deveria ter a mesma qualidade das particulares. E terem, a mesma quali-dade independente da cidade onde mora o aluno e da renda de sua família.

Segundo o Manifesto, o Estado só pode tornar o ensino obrigatório e igual para todos se este for gratuito e atender a todos os níveis econômicos e sociais presentes na nação. O que implica na nacionalização da educação.

Fernando de Azevedo foi presidente da Associação Brasileira de Educação em 1938 e eleito presidente da VIII Conferência Mundial de Educação. Eleito no Congresso Mundial de Zurich (1950) vice-presidente da International Sociological Association (1950-53), assumiu com os outros dois vice-pre-sidentes, Morris Ginsberg, da Inglaterra, e Georges Davy, da França, a direção dessa associação internacional por morte de seu presidente, Louis Wirth, da Universidade de Chicago. Membro correspondente da Comissão Internacional para uma História do Desenvolvimento Científico e Cultural da Humanidade (publicação da Unesco); um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Sociologia, de que foi presidente, desde sua fundação (1935) até 1960; foi presidente da Associação Brasileira de Escritores (seção de São Paulo).

No momento em que estas ideias eram apresentadas, elas pareciam não apenas utópicas, mas também absurdas. Alguns anos depois, já não parecem absurdas mas, absurdamente, ainda parecem utópicas.

Fernando de Azevedo faleceu em São Paulo - SP, em 18 de setembro de 1974.

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LoUrENço FILho – 1897-1970

Manuel Bergström Lourenço Filho nasceu em Porto Ferreira-SP, em 10 de março de 1897. Sendo o primogênito de oito filhos, Manuel Bergström Lourenço Filho teve uma formação marcada pela influência do pai, o português Manuel Lourenço Júnior, comerciante criativo e empreendedor ávido, casado com a sueca Ida Christina Bergström. Desde menino, em contato com vasta literatura, tornou-se um leitor compulsivo.

Iniciou a vida escolar aos seis anos em sua terra natal, dando sequência aos estudos na cidade na vizinha Santa Rita do Passa Quatro. Por insis-tência de seu professor, Ernesto Moreira, matricula-se no Ginásio de Campinas, mas, devido à família numerosa, o pai teve dificuldade em custear-lhe os estudos, de modo que, ao fim daquele ano, Manoel deixa o Ginásio. Em 1912 retoma os estudos, após obter o primeiro lugar nos exames de admissão para a recém-inaugurada Escola Normal Primária de Pirassununga. E após formar-se como normalista, no ano de 1914, retorna a Porto Ferreira, onde exerceu o magistério. Em 1917, diploma-se na Escola Normal Secundária da capital, Matriculando-se, em seguida, na Faculdade de Medicina para estudar psiquiatria, a qual abandonara dois anos depois. Em 1919, ingressa na Faculdade de Direito de São Paulo, vindo a bacharelar-se em 1929, depois de longa trajetória interrompida por várias atividades paralelas que desenvolve, com destaque, no campo educacional.

Em 1920 leciona diversas disciplinas pedagógicas na Escola Normal Primária de São Paulo. No ano seguinte é nomeado para a cátedra de Psicologia e Pedagogia da Escola Normal de Piracicaba. Ali funda a “Revista de Educação.

Em 1922, a convite do governo cearense, assume o cargo de Diretor da Instrução Pública e leciona na Escola Normal de Fortaleza. Montou um laboratório na Escola Normal de Fortaleza para o estudo biológico e psico-lógico dos alunos. As reformas por ele empreendidas no Ceará repercutem no país e podem ser entendidas como germe dos conhecidos movimentos nacionais de renovação pedagógica das primeiras décadas do século.

De volta a São Paulo, leciona na Escola Normal de Piracicaba durante o ano de 1924. Em seguida, assume a vaga de Psicologia e Pedagogia da Escola Normal de São Paulo, função que ocupa por seis anos, com produção de

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muitas publicações, inclusive traduções. A influência da Psicologia Expe-rimental é evidente em sua obra, sobretudo nesse momento.

No segundo semestre de 1925 assume o cargo de professor de Psicologia e Pedagogia da Escola Normal de São Paulo. Reativa o laboratório de psicologia experimental, onde se dedica à pesquisa sobre a aprendizagem, investigando atentamente a maturidade necessária à aprendizagem dos processos de leitura e escrita, que resultarão na publicação dos Testes ABC. É nessa época também em que traduz livros como Psicologia Experimental, de Henri Pierón, e A Escola e a Psicologia Experimental, de EDOUARD CLAPARèDE.

Sua participação política também merece destaque: presente nas Confe-rências Nacionais de Educação de 1927 e 1928, respectivamente em Curitiba e Belo Horizonte, apresenta suas ideias quanto ao ensino primário e à liberdade dos programas de ensino. Se não autor, é certamente um dos atores mais importantes do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932.

A vasta obra de Lourenço Filho, entretanto, não pode ser vinculada, de modo simplista, apenas à temática do manifesto escolanovista. Mais do que signatário do Manifesto, foi um educador sedento do novo, que bebia nas fontes do novíssimo, das últimas novidades pedagógicas do cenário internacional. Sua preocupação, de fato, voltava-se também para o fazer pedagógico.

A realidade educacional brasileira é terreno carente mas fértil para contri-buições. A preocupação com a educação movia Lourenço Filho. Suas experiências, as viagens pelo Brasil e ao exterior, sua ampla cultura lhe possibilitaram escrever em áreas como Geografia e História do Brasil, Psicologia (testes e medidas na educação, maturação humana), Estatística e Sociologia.

Sua contribuição abrange temas como educação pré-primária, alfabetização infantil e de adultos, ensino secundário, ensino técnico rural, universi-dade, didática, metodologia de ensino, administração escolar, avaliação educacional, orientação educacional, formação de professores, educação física e literatura infanto-juvenil – textos espalhados por numerosos livros, revistas, jornais, cartilhas, conferências, apresentações e prefácios. Há publicação de alguns de seus escritos em inglês, francês e espanhol.

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A formação profissional e os profundos vínculos dessa com sua produção e atuação, conferem a Lourenço Filho o perfil de intelectual educador. Apesar de ter exercido cargos na administração pública federal – como diretor de gabinete de Francisco Campos (1931), como diretor geral do Departamento Nacional de Educação (nomeado por Gustavo Capanema, em 1937) e como diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (1938-46) –, foi sobretudo um professor e um estudioso de assuntos didá-tico-pedagógicos.

Foi um educador e pedagogo brasileiro conhecido, sobretudo, por sua participação no movimento dos pioneiros da Escola Nova. Sua obra nos revela diversas facetas do intelectual educador, extremamente ativo e preocupado com a escola em seu contexto social e nas atividades de sala de aula. Foi duramente criticado por ter colaborado com o Estado Novo de Getúlio Vargas.

Em 1926, em resposta ao inquérito acerca do ensino paulista promovido pelo jornal O Estado de S. Paulo, apresenta com extraordinária clareza e precisão as características do movimento renovador: “A escola tradicional não serve o povo, e não o serve porque está montada para uma concepção social já vencida, senão morta de todo... A cultura, bem ou mal, vinha servindo os indivíduos que se destinavam às carreiras liberais, mas nunca às profissões normais de produção econômica”.

Esta concepção nos dá margem para confirmar o entendimento do autor, naquele momento, da profunda articulação existente entre a escola e a vida social. Assim, uma escola Moderna só seria a “escola do trabalho”. Lourenço Filho tinha claro que a elitização e o intelectualismo da educação brasileira não atendiam às necessidades das classes populares, antes as privavam de participar no esquema produtivo.

Em seu livro mais famoso, Introdução ao estudo da Escola Nova, (São Paulo: Melhoramentos, 1978, 271 p.) procurou dar caracterização nacional à temática.

Outra ação importante desenvolvida por Lourenço Filho foi a organização e implementação da coleção pedagógica Biblioteca de Educação, respon-sável pela publicação de livros que explicitavam as ideias da Escola Nova. São exemplos dos títulos dessa coleção: “Introdução ao Estudo da Escola Nova”, de 1930, que trazia informações sobre o movimento e as ciências

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que o fundamentavam e Testes ABC, de 1933, que além de fornecer condi-ções de classificação das aptidões para leitura e escrita, tinha por objetivo auxiliar os educadores na organização das classes escolares.

Tanto a Cartilha do Povo, de 1928, elaborada com o objetivo de popularizar a educação de crianças e adultos, quanto os Testes ABC demonstram as bases teóricas de seu projeto de alfabetização, fundado nas questões relativas à maturidade da criança e em conhecimentos psicológicos.

Viveu os últimos anos no Rio e, vítima de colapso cardíaco, faleceu em 3 de agosto de 1970, aos 73 anos.