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 4 forum almanack braziliense n°06 novembro 2007 Senhores sem escravos: a propósito das ações de escravidão no Brasil Imperial Resumo O texto pretende contribuir para a exploração das práticas de re-escra- vização na região do Vale do Paraíba do século XIX, suas possibilidades efetivas e os significados a este processo atribuídos pelos diversos agentes sociais envolvidos. A partir da análise de ações de escravidão , processos em que o senhor acusa um suposto escravo de pretender ser livre, argumento que os senhores envolvidos em tais práticas eram senhores de poucas posses; em um contexto de alta do preço dos cativos, o recurso à Justiça era, provavelmente, a única maneira de tentarem reaver as propriedades que consideravam suas. Abstract The aim of the article is to understand reenslavement practices in the 19th century area of the river Paraíba valley (Vale do Paraíba), whether they were really effetctive and what they meant for those who were involved. From the analysis of enslavement law suits, in which masters accused would-be slaves of pretending to be free, it seems to me that these masters had few assets in a moment when slaves prices were high. There- fore, enslavement law suits were the only means these masters had to try to get back what they considered to be their properties. Palavras-chave escravos, forros, homens livres pobres, judiciário Keywords slaves, freedpeople, poor free people, judicial system Masters without Slaves: reenslavement Lawsuits at the Brazilian Empire Keila Grinberg Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Senhores Sem Escravos a Proposito Das Ações de Escravidao No Brasil Imperial

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artigo sobre escravidão

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  • 4 forum almanack braziliense n06 novembro 2007

    Senhores sem escravos: a propsito das aes de escravido no Brasil Imperial

    ResumoO texto pretende contribuir para a explorao das prticas de re-escra-vizao na regio do Vale do Paraba do sculo XIX, suas possibilidades efetivas e os significados a este processo atribudos pelos diversos agentes sociais envolvidos. A partir da anlise de aes de escravido , processos em que o senhor acusa um suposto escravo de pretender ser livre, argumento que os senhores envolvidos em tais prticas eram senhores de poucas posses; em um contexto de alta do preo dos cativos, o recurso Justia era, provavelmente, a nica maneira de tentarem reaver as propriedades que consideravam suas.

    AbstractThe aim of the article is to understand reenslavement practices in the 19th century area of the river Paraba valley (Vale do Paraba), whether they were really effetctive and what they meant for those who were involved. From the analysis of enslavement law suits, in which masters accused would-be slaves of pretending to be free, it seems to me that these masters had few assets in a moment when slaves prices were high. There-fore, enslavement law suits were the only means these masters had to try to get back what they considered to be their properties.

    Palavras-chaveescravos, forros, homens livres pobres, judicirio

    Keywordsslaves, freedpeople, poor free people, judicial system

    Masters without Slaves: reenslavement Lawsuits at the Brazilian Empire

    Keila GrinbergProfessora do Departamento de Histria da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

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    irrisrio que a testemunha que se diz professor de filosofia queira distinguir modos de vida prprios de livres, e modos de vida prprios de escravos. Declaro que to metafsico que no compreendo. Curador de uma suposta escrava, ao ironizar o comentrio da testemunha que diz saber que uma pessoa escrava por seu modo de vida. Rio de Janeiro, 1874.

    Muitos historiadores, nos ltimos anos, estudaram as formas pelas quais, durante a vigncia da escravido nas Amricas, o direito simultaneamente contribuiu para perpetuar o poder de proprietrios sobre seus escravos e para que escravos e libertos conseguissem desafiar o poder de seus senhores.1 No Brasil, em Cuba e no Sul dos Estados Unidos, para mencionar apenas os casos mais conhecidos, a pesquisa arquivstica descortinou evidncias de padres complexos de demandas judiciais por escravos e libertos, que encontraram diferentes graus de sucesso.2 No caso espec-fico do Brasil, o direito pode ser caracterizado, ao mesmo tempo, como elemento fundamental para garantir a manuteno da escravido e como veculo para garantia da cidadania. o que mostram os estudos sobre alforria e direito no sculo XIX de autores como Sidney Chalhoub, Hebe Mattos, Eduardo Spiller Pena, Elciene Azevedo e Joseli Mendona, que vm evidenciando a importncia das aes judiciais no processo de deslegi-timao da escravido na segunda metade do sculo XIX no Brasil, no apenas como recurso para pressionar pela obteno da alforria por alguns grupos especficos de escravos principalmente aqueles localizados em reas urbanas ou em zonas rurais prximas aos locais de atuao de grupos abolicionistas mas tambm no processo mais amplo de discusso da emancipao geral, pelo menos a partir da dcada de 1860.3

    O objetivo deste texto contribuir para a explorao das prticas de re-escravizao no Brasil do sculo XIX, refletindo sobre suas possibilidades efetivas e os significados a este processo atribudos pelos diversos agentes sociais envolvidos. Trata-se, neste sentido, de aproximar a lente da anlise para os indivduos que vivenciaram este processo, refletindo sobre os riscos que enfrentaram em suas trajetrias, sobre a fragilidade da condio de liberto e, principalmente, sobre a instabilidade de suas vidas, marcadas pelo temor em verem revertidas suas conquistas.4

    Vejamos, por exemplo, a atitude da parda Constana, que em 1874 procurou a Justia para propor o arbitramento de sua liberdade. Constana j havia pagado a Leopoldino, seu senhor, a quantia de 300 mil ris, j havia oferecido a ele mais 200 em juzo, mas Leopoldino s aceitava 1 conto e 100 mil ris, valor pelo qual foi avaliada, dois anos depois de ter sido avaliada em 500 mil ris. Por isso Constana pedia um novo arbitramento de seu valor. At a, nada de mais. So inmeros os casos nos quais senhor e escravo divergem sobre a quantia a ser paga pela obteno da liberdade.5 O interessante que ela demonstrava suspeitar da pessoa que a avaliaria, e pede sua substituio, por estar determinada em no deixar dvidas futuras sobre sua condio de livre, se a conseguir6. Se Constana estava preocupada em no deixar dvidas sobre sua nova condio, porque ela sabia que corria o risco.

    E o risco existia mesmo. Mais ou menos na mesma poca, no incio da dcada de 1870, a parda Braslia foi re-escravizada na Corte por Cllia Leopoldina de Oliveira, aps ter vivido vrios anos como liberta. Braslia veio da Bahia no processo, no mencionado quando isto aconteceu no paquete ingls Biela, onde no eram permitidos escravos, em companhia de sua suposta senhora. Ao chegar Corte, passou a viver como liberta,

    1 Ver, entre outros, as vrias anlises a respei-to na coletnea Direitos e Justias no Brasil: ensaios de histria social, organizada por Silvia Lara e Joseli Mendona. Campinas: Editora da Unicamp, 2006.

    2Ver, respectivamente, GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: escravido, cidadania e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouas. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002, princi-palmente parte 3 e GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambiguidade: as aes de liberdade da Corte de Apelao do Rio de Janeiro no scu-lo XIX. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1994; SCOTT, Rebecca. A Emancipao Escrava em Cuba: a transio para o trabalho livre, 1860-1899. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Campinas: Editora da Unicamp, 1991; HOWINGTON, Arthur. What Sayeth the Law: The Treatment of Slaves and Free Blacks in State and Local Courts of Tennessee. New York: Garland, 1986.

    3Para as aes de liberdade e sua vigncia mesmo antes do predomnio de uma dinmica crioula na relao entre senhores e escravos, ver, entre outros, CHALHOUB, Sidney. Vises da liberdade.Uma histria das ltimas dcadas da escravi-do na corte. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. GRINBERG, Keila. Op.Cit.; AZEVEDO, Elciene. Orfeu de carapinha. Campinas: Unicamp, 1999; PENA, Eduardo Spiller. Pajens da casa imperial. Campinas: Unicamp, 2001; MENDONA, Joseli. Entre a mo e os anis. Campinas: Unicamp, 1999. Para a relao entre a conjuntura aberta pela abolio do trfico inter-nacional e a intensificao das aes de liberda-de, bem como para o prprio conceito de des-legitimao da escravido, ver: MATTOS, Hebe. Das cores do silncio significados da liberdade no Sudeste escravista. Brasil. Sculo XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.

    4MATTOS, Hebe. Op.Cit. MATTOS, Hebe. Laos de famlia e direitos no fim da escravido. In: Histria da vida privada no Brasil II; Imprio: a corte e a modernidade nacional. So Paulo: Cia das Letras, 1997; CHALHOUB, Sidney. Op.Cit. GUEDES, Roberto. Pardos: trabalho, fam-lia, aliana e mobilidade social em Porto Feliz, So Paulo, c. 1798 c. 1850. 2005. (Tese de Doutorado). Programa de Ps-graduao em Histria Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005.

    5MENDONA, Joseli. Op.Cit.

    6Arbitramento (preo de escravos), caixa 02. 1 ofcio de notas, grupo cvel, Arquivo Cartorrio do Poder Judicirio. 1874. Centro de Documentao Histrica, Vassouras.

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    pagando, inclusive, os aluguis das casas onde morou. Ao ser perguntada por que veio como livre, respondeu que veio como livre porque nunca se considerou escrava. Mas sabia que poderia s-lo: provavelmente perce-bendo as intenes de D. Cllia, pedira e obtivera pelo Juiz Municipal da 2 Vara ser manutenida na posse de sua liberdade, tendo a sentena passado em julgamento7. Muitos aspectos podem ser discutidos neste caso. Um deles se Braslia foi registrada como livre apenas para poder embarcar em navio ingls. Outro se o fato de ter pisado no navio ingls j no seria argumento suficiente para mant-la em estado de liberdade argumento que no chegou a ser levantado por seus curadores. Por fim, caberia a pergunta se Braslia no estaria se aproveitando das circunstncias para conseguir sua carta de alforria. Mas as circunstncias, neste caso, importam menos do que o resultado da ao: Braslia, provavelmente nascida escrava mas tida como livre por seus vizinhos e pelo inspetor do quarteiro onde vivia, foi re-escravizada.

    Por incrvel que parea, problema semelhante enfrentou o ento heri da Independncia Antonio Pereira Rebouas, que, mesmo nunca tendo sido escravo, passou por diversos infortnios ao viajar da Bahia para a Corte na dcada de 1820. Ao chegar em Porto Seguro, foi embaraado de seguir viagem, mas valendo-lhe o conhecimento que j a tinha de seu nome e a persuaso de sua identidade pelo conhecimento pessoal que manifestou ter das mais notveis ocorrncias patriticas e profissionalmente da legislao em matria forense conseguiu prosseguir, no sem antes dar uma ajudinha ao Juiz ordinrio local.8 Rebouas contou o episdio em sua autobiografia e, embora no especifique os motivos que levaram ao incidente, claro est que ele poderia ser confundido com outra pessoa de status e condio inferior.

    Estes exemplos constituem apenas uma faceta das vrias prticas de re-escravizao existentes no Imprio Brasileiro, entre as quais podemos citar o roubo de pessoas, freqente na regio de fronteira entre o Brasil e seus vizinhos republicanos que j haviam abolido a escravido em seus terri-trios, e os temores e boatos presentes em alguns movimentos populares, como o caso da revolta dos marimbondos, em Pernambuco, originada pela promulgao do Regulamento do Registro de Nascimentos e bitos em 1851, sintomaticamente denominada, na poca, de lei do cativeiro9. Isto sem falar nos casos de re-escravizao que ocorriam cotidianamente, na Corte prin-cipalmente, mas tambm em outras cidades, em que qualquer pessoa que pudesse parecer escravo tinha, contra si, a presuno da escravido. Assim, como demonstram aqueles que estudaram as atitudes da polcia no sculo XIX, cabia queles que tinham sido detidos pela polcia provar a prpria liberdade, sob pena de serem reduzidos escravido.10

    Entre estes casos, chama a ateno um tipo especfico de ao judicial,ainda no suficientemente explorada pela historiografia a respeito, e sobre a qual no h, ainda, evidncias de existncia em outras paragens das Amricas: trata-se das aes de escravido. Ao contrrio das aes de liberdade nas quais um ou um conjunto de supostos escravos inicia um processo judicial contra seu suposto senhor, argumentando seu direito libertao e das aes de manuteno de liberdade em que um liberto procura a Justia para garantir seu status, quase sempre por estar amea-ado de re-escravizao, nas aes de escravido quem inicia o processo o senhor. Nelas, ele processa um outro cidado, alegando que a pessoa em questo se passa indevidamente por livre, sem s-lo. Em outras palavras, o

    7Ao de Escravido. Caixa 3688, Nmero 14318. Corte de Apelao. Arquivo Nacional, RJ.

    8Biografia de Antonio Pereira Rebouas. Coleo Antonio Pereira Rebouas, Seo Manuscritos, Biblioteca Nacional, I-3,24,61. Relatei este caso em GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: escravido, cidadania e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouas. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002. Cap.03.

    9Sobre a revolta de 1851, ver os textos de PALACIOS, Guillermo, Revoltas camponesas no Brasil escravista: a Guerra dos Maribondos (Pernambuco, 1851-1852), DANTAS, Monica Duarte, Cronica de um debate, MATTOS, Hebe Maria, Identidade camponesa, racializa-o e cidadania no Brasil monrquico: o caso da Guerra dos Marimbondos em Pernambuco a partir da leitura de Guillermo Palacios e OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de, Sobreviver presso escapando ao controle: emba-tes em torno da lei do cativeiro (a Guerra dos Marimbondos em Pernambuco, 1851-1852), todos publicados na Revista Almanack Brasiliense, nmero 3, maio de 2006. Sobre os casos de re-escravizao na fronteira do Brasil com os pases vizinhos, ver PETIZ, Silmei de SantAna. Buscando a liberdade: as fugas de escravos da provncia de So Pedro para o alm-fronteira (1815-1851). Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2006. GRINBERG, Keila. Escravido, alforria e direito no Brasil oitocentista: reflexes sobre a lei de 1831 e o princpio da liberdade na fronteira sul do Imprio brasileiro. In: CARVALHO, Jos Murilo de (org.). Nao e Cidadania no Oitocentos. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2007.

    10CHALHOUB, Sidney. Illegal Enslavement and the Precariousness of Freedom in Nineteenth-Century Brazil, indito; HOLLOWAY, Thomas H. Polcia no Rio de Janeiro: represso e resistn-cia numa cidade do sculo XIX. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1997. SOARES, Carlos Eugnio Lbano. A capoeira escrava e outras tradies rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas: Editora da UNICAMP, 2001.

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    objeto da ao de escravido justamente questionar a condio jurdica do ru, ao argumentar que ele seria no apenas escravo, como tambm propriedade do autor da ao.

    Encontrei as aes de escravido ao realizar levantamento das aes de liberdade existentes na Corte de Apelao do Rio de Janeiro, quando classifiquei-as, entre outros quesitos, de acordo com os argumentos e os motivos que seus autores supostos escravos apresentavam para obter suas liberdades.11 Na ocasio, interessada em outras questes, limitei-me a classificar as aes de escravido em conjunto com as aes de manu-teno de liberdade, sem, contudo, analis-las. (ver grfico 1). Grfico 1: Aes cveis relativas liberdade e reescravizao

    do Tribunal da Relao do Rio de Janeiro no sculo XIX

    27%

    73%

    Aes de manuteno de liberdade ou de escravido

    Demais aes

    Fonte: Tribunal da Relao do Rio de Janeiro - Arquivo Nacional - RJ Total: 402 aes

    11Cabe esclarecer, aqui, que as referidas aes situam-se exclusivamente no mbito dos tri-bunais de segunda instncia, a saber, a Corte de Apelao do Rio de Janeiro. Embora sejam encontrados processos relativos a todo o Brasil e ao sculo XIX como um todo, a maioria con-centra-se geograficamente, nas regies da Corte, das provncias do Rio de Janeiro, So Paulo, Minas Gerais, Paran e Rio Grande do Sul. Da mesma forma, embora haja aes pos-teriores a 1870, a maioria concentra-se entre 1830 e 1869. Para mais informaes sobre as fontes, ver GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambiguidade: as aes de liberdade da Corte de Apelao do Rio de Janeiro no sculo XIX. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1994.

    Embora os procedimentos jurdicos das aes de manuteno de liber-dade e de escravido fossem diferentes, ambos podem ser aqui definidos como sendo processos de re-escravizao, pois suscitaram debates distintos daqueles realizados nas aes de liberdade: alm da verificao da veraci-dade das verses contadas por ambas as partes, como em qualquer processo, nestes casos tratava-se de discutir em que medida era possvel voltar atrs em uma doao de liberdade, principalmente quando o indivduo em questo j foi libertado h muito tempo. Ao invs da passagem do estado de escravido para o estado de liberdade, que ocorria nas aes de liberdade, os processos de re-escravizao tratavam de discutir as possibilidades e a prpria legitimidade da passagem da liberdade para a escravido.

    Em texto anterior, para entender a ocorrncia destas aes, analisei as possibilidades jurdicas existentes no direito brasileiro de ento, buscando as leis que tornavam possvel a existncia destas aes e os instrumentos jurdicos efetivamente utilizados por advogados para argumentar a favor de seus clientes, fossem eles senhores ou escravos. Ao mesmo tempo, procurei concentrar-me nas solues encontradas pelos agentes da justia ao longo do sculo XIX para lidar com situaes como aquelas, avaliando a eficcia destes argumentos junto aos juzes e, principalmente, as sentenas que estes proferiram, para analisar sua legitimidade em um universo no qual a legitimidade da prpria escravido comeava a estar em jogo.12 Um dos argumentos que caiu em desuso ao longo do sculo XIX, como j o havia demonstrado Perdigo Malheiro em A Escravido no Brasil (1866), foi o da revogao da alforria por ingratido, conforme rezava o ttulo 63 do livro 4 das Ordenaes Filipinas.

    Na ocasio, cheguei a duas concluses: a primeira, analisando o nmero de aes de escravido e de manuteno de liberdade que chegaram Corte de Apelao do Rio de Janeiro no sculo XIX e seus

    12GRINBERG, Keila. Re-escravizao, direitos e justias no Brasil do sculo XIX. In: LARA, Silvia e MENDONA, Joseli (org.). Direitos e Justias no Brasil: ensaios de histria social. Campinas: Editora da Unicamp, 2006.

    Grafico 1: Aes civeis relativas liberdade e reescravizao do Tribunal da Relao do Rio de Janeirono sculo XIX

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    13Como as sentenas favorveis aos senhores eram automaticamente enviadas Corte de Apelao, estes resultados tambm podem indi-car uma progressiva dificuldade na obteno de sentenas favorveis nos tribunais de primeira instncia. Esta afirmao ainda carece de pes-quisa especfica sobre os tribunais de primeira instncia; alis, ainda est por ser feita a impor-tante comparao entre o desempenho dos tribunais de primeira e segunda instncia nas decises relativas liberdade de escravos.

    14Ver, por exemplo, MATTOS, Hebe. Das cores do silncio significados da liberdade no Sudeste escravista. Brasil. Sculo XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.

    Grfico 3: Ocorrncia de Aes de Escravido e de Manuteno de Liberdade no sculo XIX

    2

    10

    43

    3

    15

    22

    05

    101520253035404550

    1808-1830 1831-1850 1851-1870

    Perodo

    N

    me

    ro d

    e P

    roce

    sso

    s

    aes de manuteno de liberdade aes de escravido

    Grfico 2: Resultados das Aes de Re-escravizao no sculo XIX

    4

    14

    35

    1

    9

    25

    02

    5

    0

    5

    10

    15

    20

    25

    30

    35

    40

    1808-1830 1831-1850 1851-1870

    PerodoN

    mer

    o de

    A

    es

    liberdade escravido outros

    Reconhecendo que estes dados forneciam muitas informaes acerca do estado das relaes entre senhores e escravos na segunda metade do sculo XIX, conclu que eles informavam ainda mais acerca da legitimidade jurdica das aes cveis de escravido e manuteno da liberdade: eles demonstram que, paralelamente ao que ento acontecia nas ruas, dentro dos tribunais ao menos nos tribunais de segunda instncia , a legitimi-dade da escravido tambm estava com os dias contados.

    ***

    Sem questionar a validade deste argumento em termos gerais, hoje parece-me que os dados encontrados, analisados principalmente do ponto de vista quantitativo, foram olhados com excessivo otimismo. Em primeiro lugar, porque no se tratava, evidentemente, dos escravos de maneira geral: para fazer apenas uma clivagem genrica, basta confirmar o que tantos j disseram a respeito das maiores possibilidades dos crioulos chegarem Justia do que os africanos.14 No caso do mdio Vale do Paraba, o maior

    Grafico 2: Resultados das Aes de Re-escravisao no sculo XIX

    Grafico 3: Ocorrncia de Aes de Escravido e de manuteno de Liberdade no sculo XIX

    resultados (grficos 2 e 3), a constatao de que mais escravos iniciaram aes de manuteno de liberdade na justia do que o inverso; a segunda dizia respeito conscincia dos escravos de suas chances de vitria nestes processos, grandes principalmente em tribunais de segunda instncia.13

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    poder dos escravos crioulos em transformar a negociao privada em processo judicial fica evidenciada atravs da comparao entre os dados obtidos no levantamento das aes de liberdade em geral e os dados cole-tados nos inventrios arquivados no Centro de Documentao Histrica de Vassouras, todos referentes ao mesmo perodo:

    15Estes ltimos dados foram coletados no mbito da pesquisa Escravido, Liberdade e Direito em Vassouras no sculo XIX - Redes de sociabilida-de e ampliao de espaos de direitos da popu-lao escrava (c. 1840 1888), coordenada por Ricardo Salles, no mbito de Primeiros Projetos FAPERJ/CNPq, 2003-2006, do qual este texto resultado.

    Grfico 4: Comparao entre Origens dos Escravos --

    Aes de Liberdade e Inventrios - sc. XIX -- Vale do Paraba Fluminense

    0%

    10%

    20%

    30%

    40%

    50%

    60%

    crioulos africanos ignorados

    Aes Inventrios

    Embora haja um grande nmero de escravos de origem ignorada o que pode ser omisso da documentao, mas pode muito bem tratar-se de esperteza dos senhores, que omitiam dados relativos a africanos chegados no Brasil depois de 1831, para escamotear a escravizao ilegal , como demonstrado no grfico acima, o nmero de africanos que lograva alcanar a Justia era, de fato, muito pequeno. Esta constatao corroborada pela leitura prpria das aes de escravido, nas quais figuram, dentre todos os processos, apenas trs africanos.

    Em segundo lugar, se maior o nmero de aes que tm como resul-tado a liberdade do que o inverso, o nmero de processos que, ao final, reiteravam a escravido de seus atores ainda era grande. O mesmo vale para a ocorrncia das aes de escravido o que talvez seja o dado mais inte-ressante. Embora a quantidade de aes de manuteno de liberdade fosse maior crescentemente maior, ao longo do sculo XIX do que a ocorrncia de aes de escravido (grfico 3), impossvel deixar de perceber o ligeiro crescimento no nmero destes processos no mesmo perodo.

    Por fim, o prprio argumento do recurso Justia: como j o demons-traram Silvia Lara e A.J.R. Russell-Wood, entre outros, buscar a mediao da justia e do monarca para resolver contendas privadas era prtica comum desde o tempo do Antigo Regime portugus.16 Interessante que, nos processos de que dispomos, os argumentos encontrados j eram marcada-mente modernos. De todos os processos encontrados, apenas um, ocorrido em 1826, em Salvador, utiliza o argumento da ingratido da liberta para obter a revogao da alforria, como previa o ttulo 63 do livro 4 das Orde-naes Filipinas.17 Mesmo assim, era uma situao em que o argumento da ingratido servia, na verdade, de cortina para um tringulo amoroso entre o senhor, a escrava (com quem ele tinha dois filhos) e a senhora. Fica claro, lendo os argumentos de ambas as partes, que ele libertou a cativa a pedido de sua mulher e depois, com cimes, se arrependeu.18

    16LARA, Silvia. Introduo, Ordenaes Filipinas livro 5. So Paulo: Companhia das Letras, 1999; RUSSELL-WOOD, A.J.R. Acts of Grace: Portuguese Monarchs and their Subjects of African Descent in Eighteenth Century Brazil. Journal of Latin American Studies, vol. 32, p. 307-332, maio de 2000. WEHLING, Arno & WEHLING, Maria Jos. Direito e Justia no Brasil Colonial: o Tribunal da Relao do Rio de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004; HESPANHA, Antonio Manuel. Da iustitia disciplina. Textos, poder e poltica penal no Antigo Regime. In: Justia e Litigiosidade: his-tria e prospectiva. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1993.

    17Este ttulo da ordenao filipina foi citado em 12 outras aes, alm desta; mas a refe-rncia lei, nestes casos, no correspondia diretamente a seu contedo. Ver, a respeito, GRINBERG, Keila. Re-escravizao, direitos e justias no Brasil do sculo XIX. In: LARA, Silvia e MENDONA, Joseli (org.). Direitos e Justias no Brasil: ensaios de histria social. Campinas: Editora da Unicamp, 2006.

    18Ao de Escravido, caixa 3683, nmero 81828, Corte de Apelao, Arquivo Nacional RJ.

    Fonte: Aes de Liberdade da Corte de Apelao do Rio de Janeiro Arquivo Nacional e Inventrios relativos a proprietrios de escravos depositados no Centro de Documentao Histrica, Vassouras15

    Grafico 4: Comparao entre Origens dos Escravos - Aes de Liberdade e Inventrios - sc XIX - Vale do Paraiba Fluminense

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    Os outros argumentos encontrados, no entanto, so diferentes. Todos envolvem disputas sobre a validade de documentos como cartas de alforria, assentos de batismo, testamentos. Questiona-se se determinado fato citado por uma das partes aconteceu ou no, questiona-se se tal documento verdadeiro ou no. Isto no significa, evidentemente, que a pretenso de escravizao ilegal estivesse diminuindo com o tempo: muito pelo contrrio. Mas, ao que parece, a lgica da argumentao jurdica, tanto em termos formais citao da legislao quanto reais contedo da ao , estava efetivamente em mudana ao longo do sculo XIX. Coisa, alis, que j havia notado Perdigo Malheiro em 1866, ao estabelecer que, na prtica, a revogao da alforria por ingratido j no existia o que significava que a ordenao filipina correspondente, embora ainda em vigor, j no era mais legtima.19

    Para Perdigo Malheiro e outros jurisconsultos da poca, apenas os escravos que ainda estavam cumprindo condio poderiam ter suas alfor-rias revogadas por ingratido j que, por no estarem ainda no pleno gozo dos seus direitos civis, no podiam ser considerados cidados. Mas, se o indivduo j estivesse em posse plena de sua liberdade, no podia mais ser reduzido escravido por motivo de ingratido, porque j seria um cidado e cidados, de acordo com a Constituio de 1824, no podem perder seus direitos de cidadania ( exceo de 3 razes, no contempladas nesta questo). Curioso que nem Perdigo Malheiro nem seus colegas juriscon-sultos discutiram as questes jurdicas relativas s possibilidades de re-escravizao de africanos, ou seja, daqueles libertos que, mesmo estando em plena posse de sua liberdade, no eram considerados cidados porque no tinham nascido no Brasil.20

    Cabe esclarecer, no entanto, se o movimento da argumentao jurdica corresponde a alguma perda de legitimidade da proposio de aes de escravido ao longo do sculo XIX. No o que parece. Conforme demons-trado no grfico 3, embora o nmero de aes de manuteno de liberdade cresa num ritmo mais rpido do que as aes de escravido, principal-mente no perodo posterior a 1850, tambm h um crescimento no nmero de propostas destas aes. Neste sentido, a questo que se coloca : mesmo que os casos de re-escravizao tenham ocorrido ao longo de todo o perodo de vigncia da escravido e possivelmente tenham aumentado no final do sculo XIX, no seriam as aes de escravido (ou, pelo menos, seu uso recorrente) um produto do Oitocentos?

    Embora no se disponha de dados passveis de comparao para o perodo anterior a 1808, a situao da escravido no sculo XIX leva a crer que estamos diante de um quadro especfico. Vejamos. De acordo com os dados levantados por Manolo Florentino, Mary Karasch e Ricardo Salles, entre outros, o sculo XIX, principalmente na regio da Corte e do Vale do Paraba, conheceu uma retrao no nmero relativo de alforrias em relao ao sculo XVIII. Alforriava-se muito no sculo XVIII, muito pouco no sculo XIX, pelo menos at a entrada em vigncia da Lei de 1871.21 A razo principal? A alta dos preos dos escravos, decorrente das presses inglesas, da Lei de 1831 e, posteriormente, da Lei Euzbio de Queirz, de 1850.22

    Assim, com a alta sucessiva do preo dos escravos, era mais difcil, para aqueles cativos que vinham economizando para comprar suas liber-dades, que alcanassem seus objetivos. Isto fazia com que a negociao entre senhores e escravos, sempre existente nos processos de obteno de liberdade, muitas vezes, gerasse conflitos que tanto podia provocar

    19MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigo. A escravido no Brasil ensaio histrico, jurdico, social. Petrpolis: Vozes/INL, 1976 (1866), vol. 1, p. 167.

    20Para a discusso sobre o status dos libertos na Constituinte de 1823 e na Constituio de 1824, ver RODRIGUES, Jos Honrio. A Assemblia Constituinte de 1823. Petrpolis: Vozes, 1974; RODRIGUES, Jaime. O infame comrcio: pro-postas e experincias no final do trfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas: Unicamp, 2000 e Liberdade, humanida-de e propriedade: os escravos e a Assemblia Constituinte de 1823. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, N.39, p.159-167, 1995; MARQUESE, Rafael e BERBEL, Mrcia. La esclavitud en las experiencias constitucionales ibricas, 1810-1824. In: FRASQUET, Ivana (org.). Bastillas, cetros y blasones. La Independencia en Iberoamrica. Madrid: Fundacin Mapfre-Instituto de Cultura, 2006, p.347-374. GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: escravido, cidadania e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouas. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002. cap.03.

    21FLORENTINO, Manolo. Sobre minas, crioulos e a liberdade costumeira no Rio de Janeiro, 1789-1871. In: Trfico, cativeiro e liberdade Rio de Janeiro, sculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005 e SALLES, Ricardo. E o escravo era o Vale. Vassouras - sculo XIX. Senhores e cativos no corao do Imprio. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, no prelo.

    22Manolo Florentino demonstra que o valor de um escravo homem, entre 15 e 40 anos de idade, dobrou entre o final do sculo XVIII e os anos 1820; entre esta data e a dcada de 1830, o valor dobrou novamente. Finalmente, entre o preo deste escravo em 1840 e na dcada seguinte, o valor chegou a triplicar, continuando ainda a subir na dcada de 1860. FLORENTINO, Manolo. Op.Cit.

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    atitudes como fugas e crimes quanto podia gerar processos na Justia. Afinal, tanto as aes de manuteno de liberdade quanto as aes de escravido so a tentativa de solucionar, no mbito pblico, um longo processo de negociaes ocorridas na esfera privada.

    ***

    Todas estas razes me levam a crer que acabei deixando de considerar, na anlise anterior, o aspecto que hoje me parece crucial para entender as prticas de re-escravizao no Brasil oitocentista: as prprias razes da existncia das aes de escravido e de sua permanncia ao longo do sculo XIX, principalmente nas regies vizinhas Corte, no Vale do Paraba e em Minas Gerais. Afinal, por que um senhor sairia de sua casa para ir Justia reclamar seu suposto escravo? No haveria outros meios, mais rpidos e eficazes, para for-lo a voltar ao lugar de onde no deveria ter sado? Por que anos e anos de debate, por meio de curadores e advogados, em processos que transitavam em diversos tribunais, sem a certeza de um resul-tado favorvel? Ou seja: para alm das questes jurdicas, existentes a partir do momento que a ao iniciada, quais eram os motivos, na relao entre senhores e escravos, que provocavam uma ao de escravido?

    A situao inversa mais clara. Afinal, num contexto de crescente insta-bilidade do estado de liberdade e ameaas de re-escravizao, principalmente depois do fim do trfico atlntico quando a demanda por escravos no Vale do Paraba cresceu de tal maneira que muitos libertos, de diferentes regies, se viram ameaados, como demonstrou Judy Bieber23 , entende-se que libertos tenham procurado a Justia para garantir suas condies e refrear tentativas de captura. Mas, os senhores? Por que fariam o mesmo?

    Para aprofundar a discusso, vejamos o caso de Andr Luiz Quaresma, que foi a juzo tentar anular as liberdades de seus dois escravos mulatos Felisberto de 22 anos e Joo de 18 que sua me havia libertado na decrpita idade de mais de oitenta anos, cega e molesta, sem seu consen-timento nem aprovao. Andr argumentava que sua me no podia ter feito isto, at porque eram estes escravos que mantinham, com os seus servios, a subsistncia de ambos. Aconteceu em 1812, no Rio de Janeiro.24 As testemunhas reafirmaram a importncia dos dois escravos para a economia domstica. Em 1836, em Mag, caso semelhante ocorreu. Miguel Marques da Silva entrou com uma ao contra Maria crioula por ela ter sido libertada por sua me, senhora de 90 anos, enferma e sem juzo, sedu-zida por pessoas de m conduta25. Da mesma forma, Miguel argumentou que necessitava da escrava para sua subsistncia. Em ambos os casos, a sentena favoreceu os senhores, mandando que os ditos escravos voltassem ao poder de seus supostos senhores.

    Como estes, vrias so as aes de escravido nas quais o autor alega serem os escravos em questo os principais, se no os nicos, bens da famlia. Em outras, a ao uma maneira de tentar resolver disputas conju-gais, nas quais a mulher , formalmente, escrava de seu companheiro. Em outras, ainda, a contenda envolvia senhores que eram, eles prprios, forros. Como no caso de Anna Rosa de Vasconcelos, que em 1838 processou Antonia, de nao mina, por esta se recusar a servi-la. Antonia havia sido escrava de um certo Antonio Pinto, preto forro, tambm mina. Em dificul-dades financeiras, Antonio havia hipotecado sua escrava Antonia a d. Anna. Como no tivesse pago sua dvida no prazo acordado, perdeu a escrava

    23A autora cita casos de pessoas que j haviam conseguido suas alforrias em regies como Minas Gerais e Gois foram escravizadas e ven-didas para o sul, inclusive com a participao de autoridades municipais. FREITAS, Judy Bieber. Slavery and social life: in the attempts to redu-ce free people to slavery in the Serto Mineiro, Brazil, 1850-1871. Journal of Latin American Studies, vol.26, n.3, 1994, p.597-619; para pos-sibilidades de re-escravizao de indgenas, ver MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra. So Paulo: Companhia das Letras, 1995.

    24Ao de escravido, caixa 3690, nmero 9, 1812. Corte de Apelao. Arquivo Nacional RJ.

    25Ao de escravido, caixa 3695, nmero 7, 1836. Corte de Apelao. Arquivo Nacional RJ.

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    para ela. Mesmo assim, a nova senhora consentiu que Antonia continuasse vivendo com Antonio Pinto, trocando-a por um outro escravo, de nome Joo. Tempos depois, Antonio Pinto morreu, deixando Antonia forra em testamento. Foi quando Anna Rosa reclamou a posse de Antonia e de sua filhinha, nascida depois da transao, e comeou toda a confuso. Antonia alegou que era forra, mas os juzes entenderam o oposto: mantida como escrava, ela foi obrigada a passar posse de d. Anna.26

    Ou como o caso formalmente ao de manuteno de liberdade de Joaquim Francisco Pacheco, forro mina, e Rita, tambm mina, ocorrido em 1867 na Corte. Rita afirma ter pago 350 mil ris de uma vez a seu antigo senhor, Jos Gomes de Oliveira e Silva, e depois mais 368 mil ris em presta-es, sem que seu novo senhor tivesse passado documento algum referente ao dinheiro recebido. Joaquim, por sua vez, diz que nunca recebeu nada de sua escrava. A histria merece um olhar mais detido: pelo que relatam as testemunhas, Rita estaria em uma casa de comisso para ser vendida por 900 mil ris. Como no quisesse ser vendida e s dispunha de cerca de 300 mil ris o valor exato no est claro no processo , ela teria implorado a Joaquim para que este completasse seu valor. O que no est claro se ela teria ficado livre, tendo pago o que devia aos poucos, ou se teria passado a ser escrava de Joaquim, e o dinheiro que teria lhe dado seria referente aos jornais. O juiz concluiu que Rita era escrava de Joaquim.27

    Do conjunto destas citaes, alguns exemplos dos cerca de cem casos relativos re-escravizao encontrados na Corte de Apelao do Rio de Janeiro ao longo do sculo XIX, fica claro que os senhores envolvidos nestas aes esto longe da caracterizao genrica atribuda aos senhores de escravos, como elite branca. Brancos, at pode ser que alguns o fossem; mas elite com certeza no eram.

    Muito pelo contrrio: o que a anlise destes processos deixa entrever que estas disputas envolvem pessoas de situao social muito prxima. So forros, ou descendentes daqueles tantos que lograram conseguir suas alfor-rias ao longo dos sculos XVII e XVIII. O que os distingue a condio, ou melhor, a suposta condio de alguns, se livres, libertos ou escravos. No pouco, evidentemente. Mas trata-se de pessoas que freqentam os mesmos lugares, tm amigos em comum, falam a mesma lngua.

    Este o principal aspecto a ser ressaltado. Se as pessoas que iniciam as aes de escravido podem ser caracterizadas como senhores, so senhores de poucas posses. Da mesma forma, as pessoas a quem eles querem caracterizar como cativos, de fato, viviam como livres, agiam como livres, trabalhavam como livres. Impossvel, primeira vista, distinguir estes escravos dos livres. Foi, alis, o que disse o curador de um deles, ironizando uma testemunha, professor de filosofia, que afirmou ser a acusada escrava porque o modo de vida da r na Bahia prova sua escravido: irrisrio que a testemunha que se diz professor de filosofia queira distinguir modos de vida prprios de livres, e modos de vida prprios de escravos. Declaro que to metafsico que no compreendo28.

    Assim, no caso das aes de escravido, principalmente naqueles casos que o prprio senhor forro, a fronteira que o separa de seu prprio escravo parece ser muito tnue (no seria este senhor, ele tambm, no limite, passvel de re-escravizao?). No h, em nenhum dos casos, senhores de muitas posses envolvidos, em nenhuma poca do sculo XIX, em nenhuma regio.

    26Ao de escravido, caixa 3691, nmero 11, 1838. Corte de Apelao. Arquivo Nacional RJ.

    27Ao de manuteno de liberdade, mao 225, nmero 2536, 1867. Corte de Apelao. Arquivo Nacional RJ.

    28Ao de escravido, caixa 3688, nmero 14318, op. cit.

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    Interessante que, ainda seguindo estas indicaes, estas pessoas de ambos os lados das contendas estariam, se fssemos retomar a categoria de Maria Sylvia de Carvalho Franco, confortavelmente classificadas como homens livres e pobres, situadas no limbo entre os cativos do eito e os grandes proprietrios. Ou ento, como argumentou Manuela Carneiro da Cunha, justamente por se tratar de pessoas sem posses, fora da dinmica paternalista que ditava a relao senhor-escravo dita tradicional, ao Estado cabia a regulao de suas atividades, porque no havia quem deles se ocupasse.29

    Mas no o caso de retomar estas interpretaes. Ao contrrio: as aes de escravido analisadas demonstram justamente a capacidade e as tentativas de ao regulatria do Estado, tanto no que se refere ao controle da populao liberta de um modo geral, quanto a estas tentativas de rees-cravizao por parte de senhores e s resistncias de seus escravos. Estas constataes mudam completamente o sentido das questes enunciadas anteriormente. Nestes casos, um senhor sairia de sua casa para ir Justia reclamar seu suposto escravo porque este era, possivelmente, o bem mais valioso de que dispunha. Valia a pena, para eles, mesmo que tivessem que esperar vrios anos pelo resultado. Quanto aos meios, a Justia era, prova-velmente, o nico de que dispunham.

    As caractersticas das pessoas envolvidas nas aes de escravido demonstram que, sem deixar de ser senhores e escravos, eles esto no limiar de sua condio. Quase-senhores enfrentam ainda-escravos e vice-versa. desta zona de fronteira social que as aes de escravido falam. A instabilidade da situao dos envolvidos de tal monta que s o apelo Justia garantiria mesmo assim sem certeza absoluta, j que suas situa-es eram reversveis a segurana de suas condies.30

    Afinal, se em meados do sculo XIX, em poca de aumento brutal do preo dos escravos, se era difcil para um cativo alcanar a alforria nestas circunstncias, para o senhor de poucos escravos, a perda de um por qualquer motivo tambm era irreparvel. Literalmente: seria impossvel para ele conseguir comprar novamente um escravo. Estas so justamente as situaes descritas nas aes de escravido: um pequeno proprietrio herda alguns escravos com a morte de seus pais; ao abrir o testamento, no entanto, descobre que sua me, j velha e em sinal de gratido, libertou dois de seus trs escravos. Pronto, acabou-se a herana. Na maioria das vezes, seu futuro como senhor tambm.

    Em se tratando de forros e descendentes de africanos de maneira geral, este quadro torna-se ainda mais drstico. Perder o escravo comprado ou herdado a tanto custo significava, na prtica, perder o acesso ao mundo dos livres. Muito j se analisou sobre a importncia da concentrao da propriedade escrava no que diz respeito ao processo de perda de legitimi-dade da instituio escravista na segunda metade do sculo XIX;31 trata-se agora e esta uma questo que apenas se insinua, j no fim do texto de pensar o que a concentrao do nmero de escravos em poucos e pode-rosos proprietrios significa para quem a perdeu. Para estes, a discusso sobre uma carta de alforria ou sobre a legitimidade de uma doao de extrema importncia: no s que se tratava de muito dinheiro, s vezes todos os bens de que dispunham os autores das aes de escravido; tratava-se, fundamentalmente, de defender na Justia sua prpria condio senhorial. Sob o risco de virarem senhores sem escravos.

    29FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. So Paulo: tica, 1974. CUNHA, Manuela Carneiro da. Sobre os silncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias dos escravos no Brasil do sculo XIX. In: Antropologia do Brasil. Mitos, hist-ria, etnicidade. So Paulo: Brasiliense, Editora da Universidade de So Paulo, 1986. Para esta autora, a lgica da manuteno da ordem no Brasil Imperial supunha que os escravos seriam controlados por seus senhores, no mbito pri-vado; e o Estado cuidaria dos homens livres e pobres, no mbito pblico.

    30Aqui caberia explorar a diferenciao entre proprietrios feita por Ricardo Salles a respei-to dos senhores da regio de Vassouras, no sculo XIX: micro-proprietrios (de 1 a 4 escra-vos), pequenos (de 5 a 19), mdios (de 20 a 49), grandes (de 50 a 99) e mega-proprietrios (100 ou mais). Ver SALLES, Ricardo. E o escravo era o Vale. Vassouras - sculo XIX. Senhores e cativos no corao do Imprio. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, no prelo.

    31Ver, principalmente MATTOS, Hebe. Das cores do silncio significados da liberdade no Sudeste escravista. Brasil. Sculo XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.

    Recebido para publicao em setembro de 2007