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Ficha Catalográfica

Anais do IV Encontro Internacional de História Colonial. A escravidão moderna no Atlântico sul português / Rafael Chambouleyron & Karl-Heinz Arenz (orgs.). Belém: Editora Açaí, volume 16, 2014. 234 p. ISBN 978-85-61586-64-5 1. História – Escravismo moderno. 2. Tráfico negreiro – Relações escravistas - História. 3. Resistência Escrava – Alforrias – Escravismo. 4. História.

CDD. 23. Ed. 338.9975

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Apresentamos os Anais do IV Encontro Internacional de

História Colonial, realizado em Belém do Pará, de 3 a 6 de

Setembro de 2012. O evento contou com a participação de

aproximadamente 750 pessoas, entre apresentadores de

trabalhos em mesas redondas e simpósios temáticos,

ouvintes e participantes de minicursos. O total de pessoas

inscritas para apresentação de trabalho em alguma das

modalidades chegou quase às 390 pessoas, entre

professores, pesquisadores e estudantes de pós-graduação.

Ao todo estiveram presentes 75 instituições nacionais (8 da

região Centro-Oeste, 5 da região Norte, 26 da região

Nordeste, 29 da região Sudeste e 7 da região Sul) e 26

instituições internacionais (9 de Portugal, 8 da Espanha, 3

da Itália, 2 da França, 2 da Holanda, 1 da Argentina e 1 da

Colômbia). O evento só foi possível graças ao apoio da

Universidade Federal do Pará, da FADESP, do CNPq e da

CAPES, instituições às quais aproveitamos para agradecer.

Os volumes destes Anais correspondem basicamente aos

Simpósios Temáticos mais um volume com alguns dos

textos apresentados nas Mesas Redondas.

Boa leitura.

A Comissão Organizadora

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Sumário Escravidão e liberdade entre espaços e negociações Aldinízia de Medeiros Souza.......................................................................................................1 Práticas de micro economia de escravos e quilombolas no sul da Bahia entre 1800-1850 Alex Andrade Costa.................................................................................................................14 Da Costa africana ao litoral amazônico: tráfico negreiro para o Estado do Maranhão e Grão-Pará (1707-1750) Benedito Carlos Costa Barbosa..................................................................................................27 Escravidão e mundos do trabalho: escravos e libertos enquanto exploradores do ouro - Minas Gerais, século XVIII Dejanira Ferreira de Rezende ....................................................................................................42 Revisitando o tráfico interno de escravos para o Maranhão no último quartel do século XVIII Diego Pereira Santos..................................................................................................................55 Diálogos atlânticos: mulheres escravizadas na São Paulo colonial (século XVIII) Fabiana Schleumer ....................................................................................................................68 Aspectos sobre escravidão e famílias de cor no Recife colonial (séculos XVIII-XIX) Gian Carlo de Melo Silva..........................................................................................................79 Do Engenho da Ponta à Prefeitura de Maragogipe: aspecto de superação social de uma família negra no Recôncavo Baiano Itamar da Silva Santos ..............................................................................................................91 Um olhar sobre os Angolas na capitania de Sergipe Del Rei setecentista Joceneide Cunha...................................................................................................................... 100 Identidades em movimento: “senhores” e “escravos” no cotidiano escravista brasileiro Josenildo de J. Pereira.............................................................................................................. 112

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Estratégias sociais utilizadas por senhores e escravos entorno das relações de compadrio: São Tomé das Letras – Minas Gerais (1840-1860) Juliano Tiago Viana de Paula................................................................................................ 125 Embriaguez, religião e patriarcalismo Lucas Endrigo Brunozi Avelar .............................................................................................. 131 Ser Senhor de Escravos no Recôncavo do Rio de Janeiro: estratégias de legitimação do poder senhorial na Freguesia de São Gonçalo do Amarante, século XVIII Marcelo Inácio de Oliveira Alves ............................................................................................ 141 Escravidão e Antigo Regime em tempos de mudanças: o conflito entre a Irmandade de São Crispim e São Crispiniano e a Câmara; Rio de Janeiro, segunda metade do século XVIII e início do XIX Mariana Nastari Siqueira...................................................................................................... 159 O tráfico transatlântico de escravos para o Maranhão: organização e distinções (séculos XVII – XVIII) Patricia Kauffmann Fidalgo Cardoso da Silveira Tarantini Pereira Freire.......................................................................................................... 170 A posse de escravos e seu cotidiano na capitânia de Goiás - (1808-1888) Pedro Luiz do Nascimento Neto............................................................................................. 186 Negros na sociedade colonial Acarauense Raimundo Nonato Rodrigues de Souza................................................................................... 198 No caminho das mulas (tropas): a instituição da escravidão no planalto da província de Santa Catarina, 1778 - 1788 Renilda Vicenzi ..................................................................................................................... 213 O Atlântico e a escravidão entre o XVII e o XVIII Suely Creusa Cordeiro de Almeida.......................................................................................... 227

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Escravidão e liberdade entre espaços e neçociações

Aldinízia de Medeiros Souza1

Desembarcados no Brasil como escravos, os africanos tiveram que construir novas formas de organização social e cultural. Embora a historiografia, durante muitos anos, tenha abordado prioritariamente o escravo como mão-de-obra, diversos estudos acerca da cultura desenvolvida pelos escravos e libertos de origem africana têm sido realizados e, com isso promoveram uma maior visibilidade à participação africana na sociedade brasileira, na medida em que enfatizaram o hibridismo da cultura e a ação dos escravos atribuindo-lhes o papel de sujeito da própria história.

Tanto os estudos econômicos quanto os culturais são de grande importância para uma melhor compreensão da sociedade brasileira e de como esta foi formada. Nesse sentido, a história social da escravidão tem trazido à luz novos olhares sobre os escravos enquanto atores sociais. Além disso, os estudos de africanistas também têm colaborado para uma visão mais positiva dos africanos, contrária à ideia de povos atrasados, revelando, desse modo, a multiplicidade e variedade existente na África tanto no que diz respeito à economia quanto à cultura. Destarte, John Thornton2 expõe que a África exerceu um papel ativo no comércio de escravos uma vez que “o processo de compra, transferência e venda de escravos estava sob o controle de estados e elites africanos” de maneira que o papel exercido pela África neste comércio foi voluntário e sob o controle dos detentores de poderes locais, pois entre os africanos existia um comércio de escravos decorrente da dinâmica interna,3 o que o autor expõe é a autonomia de governantes e elites locais neste comércio, fato que contesta a percepção de passividade da África no processo histórico. Igualmente, aborda a autonomia dos escravos para participar da vida cultural nas regiões onde se estabeleceram, demonstrando ainda, que a dinâmica de troca cultural com os europeus já existia na África, portanto não era algo exclusivo da diáspora.

Os africanos, ao chegarem ao continente americano, utilizaram a cultura para adaptar-se, sendo assim, “recriaram uma cultura africana na América, embora essa nunca fosse idêntica à que eles haviam deixado na África.”4 A adaptação envolve também a capacidade desses africanos e de seus descendentes de negociarem com seus senhores para as práticas de atividades culturais próprias. Logo, no contexto do cativeiro e em meio ao cumprimento de obrigações para com os seus senhores, os cativos desenvolveram uma dinâmica própria no mundo escravista.

1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em História e espaço, UFRN. Bolsista capes. 2 THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico: 1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 49. 3 Ibidem, p. 182. 4 Ibidem, p. 413.

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A historiografia recente da escravidão tem enfatizado o papel desempenhado por escravos, considerando-os pessoas ativas do processo histórico, capazes de realizar estratégias com a finalidade de conseguir melhores condições de vida. As estratégias poderiam ser de resistência ou mesmo de acomodação no intuito de obter algum benefício do senhor.

Essa linha de pensamento tem uma base teórica nas concepções de Thompson sobre a consciência de classe. Este autor não considera a consciência de classe como efeito do modo de produção, mas sim como uma consciência construída pela classe no próprio processo histórico, ou seja, a classe se auto reconhece como classe.5 Essa percepção permite uma abordagem dos sujeitos enquanto atores sociais conscientes de suas condições na sociedade, diminuindo o peso das estruturas sobre as ações humanas. Embora Thompson reconheça a dificuldade do termo classe para as sociedades anteriores ao capitalismo industrial, do século XIX, ele observa que o uso dessa categoria deve-se ao sentido de luta de classes.6 Para este autor, o conceito universal é o de luta de classes, as relações sociais perpassam pelos antagonismos existentes nas sociedades.

As concepções de Thompson sobre a consciência da própria condição de classe têm sido adequadas aos estudos sobre escravidão no Brasil, na medida em que o escravo é percebido enquanto sujeito, consciente de sua própria condição. Nessa linha de pensamento, Silvia Hunold Lara,7 bem como Sidney Chalhoub,8 procuraram observar na documentação analisada, tais como processos crime e ações civis de liberdade, a “voz” do escravo, de maneira que ambos opõem-se à ideia de coisificação do escravo enquanto ser incapaz de ação autônoma, muito difundida pelo que ficou conhecida como a Escola Sociológica Paulista.9 Na concepção daqueles autores, os escravos agiam de acordo com uma lógica própria e aproveitaram as oportunidades para agirem com mais autonomia.

As vilas e cidades no período colonial, enquanto espaços públicos, favoreciam a sociabilidade dos escravos. A circulação pela cidade possibilitava o contato com homens livres e libertos nas mercearias, praças, mercados e outras áreas públicas. Igualmente, nas vilas e cidades havia maiores possibilidades de desempenhar atividades que permitissem ao escravo a formação de um pecúlio, uma vez que a existência de escravos de ganho nesses espaços era bastante comum. A atuação de 5 SILVA, Sergio. Thompson, Marx, os marxistas e outros. In: THOMPSON. E. P; NEGRO, Antônio Luigi, SILVA, Sergio (org). A peculiaridade dos ingleses. Campinas: Ed da Unicamp, 2001. p. 66. 6 Ibidem, p. 273. 7 LARA, Silvia Hunold. Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 8 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 9 A Escola Sociológica Paulista tem entre seus representantes Florestan Fernandes; Fernando Henrique Cardoso; Otávio Ianni.

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negras vendendo doces, frutas e quitutes, as chamadas negras de tabuleiro é uma referência presente na historiografia. Outras atividades, como as artesanais, eram realizadas por escravos urbanos. Estes escravos de ganho trabalhavam ao longo do dia muitas vezes sem estar sob os olhos do senhor, mas tinham como obrigação pagar-lhe um jornal, uma parte do que era arrecadado com a realização do seu trabalho, o que ficava para si era, muitas vezes, acumulado para comprar a carta de liberdade.

Existiam, mesmo, redes de comunicação e informação – no meio das quais, não raras vezes integravam-se indivíduos brancos – que se encarregavam de vulgarizar as maneiras mais usuais e eficazes de sensibilizar os senhores, bem como de negociar acordos de diferentes tipos com eles. Além disso, divulgavam as possibilidades tanto de existirem possíveis legados materiais, deixados pelos defuntos proprietários, quanto do escravo procurar a justiça para requerer seus direitos, por vezes negados por herdeiros, em alguns casos.10

Outro aspecto favorável aos escravos nessa condição de ganho era a mobilidade

pela cidade e maior autonomia que possuíam em relação aos demais escravos, pois com o pecúlio que acumulavam poderiam “viver sobre si”, o que significava uma certa liberdade de circular pela cidade, ou mesmo de morar em lugar distinto dos senhores, e se auto sustentar.11 Além disso, na cidade, muitos escravos fugidos poderiam se passar por livres, usar outros nomes o que lhes permitia fazer da cidade esconderijo, pois a própria dinâmica da cidade tornava difícil distinguir escravos de libertos.12

Como se percebe, a rede de sociabilidades entre libertos e escravos se formava nos estabelecimentos comerciais, públicos, bem como nos espaços festivos. Apesar da desconfiança das autoridades, esses espaços, além de integrar o negro nas atividades das vilas e cidades, serviam também para a integração social entre libertos e escravos no sentido de cooperação para resolução de conflitos ou conquista de liberdade de cativos. Os proprietários e autoridades eram obrigados a reconhecer uma certa autonomia dos escravos, o que pode ser observado na permissão para que eles realizassem suas festas e praticassem seus cultos. “Instituições como essas são, claramente frutos de uma enorme negociação política por autonomia e

10 PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia: Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 35. 11 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade… 12 Ibidem.

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reconhecimento social. É nessa micropolítica que o escravo tenta fazer a vida e, portanto, a história.”13

As concepções historiográficas recentes sobre as alforrias também procuram ver a atuação do escravo no processo de obtenção da carta de liberdade, logo, estas são vistas como conquistas dos escravos e não como concessão dos senhores. Por essa percepção, observa-se a ação centrada no escravo, de maneira a reconhecer o esforço realizado por eles para obter a sua carta de liberdade, ao contrário de uma concepção centrada no senhor, na qual a alforria é dada por um senhor benevolente. O que se enfatiza nessa historiografia recente é o papel do escravo como negociador de sua liberdade, o que muitas vezes era realizado com o auxílio de intermediários, daí a importância das redes de sociabilidades estabelecidas por eles nas vilas e cidades. Os escravos procuravam aproveitar situações que lhes favorecessem conseguir a alforria.

A obtenção da carta de alforria poderia ocorrer por meio da compra, por meio de realização de condições impostas ao escravo por um determinado tempo, ou ainda poderiam ser conseguidas gratuitamente. Assim, as alforrias poderiam ser onerosas, ou gratuitas. Contudo, conseguir uma carta de alforria gratuitamente era mais difícil. Na maioria das vezes, como os estudos sobre alforria têm demonstrado, os escravos para tornarem-se libertos teriam que pagar com dinheiro ou trabalho ao longo de vários anos ou obtinham a liberdade mediante cláusulas de prestação de serviços, em caso de cartas de alforria condicional.

Autores como Stuart Schwartz14 e Mary Karasch15 deram grande contribuição ao estudo das alforrias ao percebê-las como uma conquista dos escravos, resultante do esforço dos cativos, com base em negociações muitas vezes difíceis, pois não havia lei que garantisse aos escravos a compra da liberdade, mesmo que estes possuíssem o recurso para o pagamento. No silêncio da lei, havia a prática da obtenção da alforria enquanto costume, contudo, a inexistência de uma garantia legal implicava necessariamente em uma negociação para a compra da alforria, pois somente em 1871, com a Lei do Ventre Livre,16 o direito ao pecúlio e à compra da alforria mediante indenização de preço tornaram-se garantias legais.

13 SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 21. 14 SCHWARTZ, Stuart. Alforria na Bahia, 1684-1745. In: Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001. 15 KARASCH, Mary C. A carta de alforria. In: A vida dos escravos no Rio de Janeiro 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 439-479. 16 A lei 2040, de 28 de setembro de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre, garantiu o direito do escravo acumular um pecúlio, transferível por herança aos filhos, garantiu o valor da alforria estabelecido pela justiça caso não houvesse acordo entre o senhor e o escravo, e ainda, limitou o tempo de prestação de serviços para sete anos nos casos das alforrias condicionais.

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Até pelo menos 1871, era preciso que o escravo não contrariasse o proprietário para que o seu reconhecimento viesse pela via espontânea. Mas isso não bastava. Era necessário ter meios de ganho, além de boas relações com os demais libertos, com outros escravos e, principalmente com alguém melhor relacionado junto à classe proprietária. Com sorte, este poderia indenizar o senhor, negociar sua liberdade, ou ainda orientá-lo na melhor estratégia para a alforria […]. O fato de as alforrias terem se restringido ao campo costumeiro até a década de 1870, baseada em acordos orais, obrigava que os escravos tivessem bom relacionamento com seus proprietários para intentarem a liberdade. Mostrar-se merecedor da carta de alforria era uma estratégia usada largamente pelos escravos.17

O costume da prática da alforria sob indenização de preço nem sempre era

reconhecido pelos herdeiros, como mencionou Bertin. Nesse caso pode-se perceber o costume como um lugar de conflito de interesses entre senhores e escravos.18 Embora a constituição do pecúlio e a compra da alforria fosse uma prática existente na sociedade escravista antes de 1871, muitas vezes os escravos poderiam encontrar barreiras na realização da compra de sua liberdade, caso isso contrariasse os interesses dos senhores. O reconhecimento do costume pela lei de 1871 para Chalhoub representa o reconhecimento legal de direitos conquistados pelos escravos.19

Percebe-se claramente na explanação de Bertin, anteriormente citada, o reconhecimento da ação consciente do escravo para que seu senhor o considere merecedor da alforria. Desse modo podemos supor que havia uma tensão velada entre ambas as partes envolvidas na negociação da liberdade.

Embora a carta de alforria fosse uma prerrogativa do senhor, esse documento dependia do esforço do escravo. Nesse sentido, os estudos sobre a manumissão, tendo como fonte as cartas de alforria, buscam nas entrelinhas destes documentos identificar a participação do escravo no processo de obtenção da liberdade. Maria Helena Machado também aborda a carta de alforria como um elemento de negociação entre senhores e escravos, “sendo a aquisição da liberdade pelo cativo, resultado de um jogo de perdas e ganhos, a depender da cobiça, mesquinhez e

17 BERTIN, Enidelce. Alforrias em São Paulo do século XIX: liberdade e dominação. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2004, p. 105-106. 18 A percepção do costume como lugar de conflito tem em Thompson um referencial teórico, uma vez que este historiador analisa os conflitos em torno de diferentes norma e valores. Ver THOMPSON, Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 19 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade… p. 159.

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hipocrisia senhoriais.”20 Para essa autora, “as cartas denunciam situações muito menos enobrecedoras do comportamento senhorial, situações na qual a escravidão/alforria foi duramente negociada.”21 As relações entre senhores e escravos são então percebidas como fruto de uma complexa rede de relações em que “escravos e senhores manipulam e transigem no sentido de obter a colaboração um do outro.”22 Em meio a complexidade das relações entre senhores e escravos, a alforria pode representar tanto uma promessa, enquanto elemento de dominação do senhor, como a ação do escravo que busca por sua liberdade; tanto a afinidade como o controle presentes nas relações entre senhores e escravos se entrelaçam no jogo de palavras das cartas.

A negociação é considerada por Sheila Faria23 um elemento importante mesmo nas cartas de alforria onerosas, e não apenas nas alforrias gratuitas. Aquelas também dependiam de uma negociação, pois não havia obrigação para o senhor aceitar a alforria mesmo sob indenização de preço. Silvia Hunold Lara interpreta essa negociação como forma de resistência. Não se trata de um conceito de resistência restrito a fugas, rebeliões e atos violentos. Para a autora, essa resistência não está moldada

pelo binômio ação-reação, nem por uma classificação baseada na violência […], são ações de resistência e ao mesmo tempo de acomodação, recursos e estratégias variados de homens e mulheres que, em situações adversas, procuravam salvar suas vidas, criar alternativas, defender seus interesses.24

A luta dos escravos pela liberdade não se configura apenas com revoltas ou fugas,

mas também como uma luta travada diariamente por meio das atitudes, de modo que “no Brasil como em outras partes, os escravos negociaram mais do que lutaram abertamente sobre o sistema.”25 As negociações e outras formas de resistências cotidianas surgem como forma de melhorar a situação do escravo dentro do sistema e, ocorreu em diversas sociedades. Para John Thornton26 esse tipo de resistência é

20 MACHADO, Maria Helena P. T. Sendo escravo nas ruas: a escravidão urbana na cidade de São Paulo. In: PORTA, Paula. História da cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 43. 21 Ibidem, p. 43. 22 SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito…, p. 16. 23 FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna, família e cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1998, p. 110. 24 LARA, Silvia Hunold. Campos da violência…, p. 345. 25 SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito…, p. 14. 26 THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico…, p. 364.

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resultante de um sistema de exploração e não uma forma de resistência exclusiva da África. Não se trata pois, de uma “herança” africana, mas de uma atitude autônoma do sujeito em meio à exploração do cativeiro.

É a partir das negociações estabelecidas com o senhor nessa complexa rede de relações que o escravo encontrava oportunidade de adquirir um pecúlio. A aquisição do pecúlio deixa clara a participação do escravo em atividades econômicas variadas e atesta que “a população cativa foi capaz de operar com êxito dentro da economia de mercado.”27 À custa do empenho pessoal, os escravos puderam juntar algum dinheiro e comprar sua alforria. Pelo menos é o que se pode perceber nos estudos aqui citados, seja nos de Kátia Mattoso28 e Stuart Schwartz29 para os séculos XVII e XVIII na Bahia, ou no de Mary Karasch30 para o século XIX no Rio de Janeiro. Estes historiadores têm demonstrado a existência de uma maior possibilidade de compra de alforria nas cidades, onde as atividades de ganho praticadas pelos escravos possibilitavam o acúmulo do pecúlio. Entre as principais atividades de ganho destacadas por estes autores encontram-se a venda de frutas e verduras pelas negras, conhecidas como negras de tabuleiro, além das lavagens de roupa. Entre os espaços ocupados por negros e mulatos, estavam as tabernas e lojas comerciais como mercearias que vendiam roupas, comidas, bebidas, utensílios domésticos além de ferramentas agrícolas e armas de fogo, e eram pontos de encontros de escravos e locais de circulação dos escravos de ganho. Além disso, serviam muitas vezes, nas vilas e cidades próximas aos quilombos, à atividades ilícitas como esconder escravos fugidos ou vender mercadorias para quilombos.31 Outras atividades, como as artesanais, também possibilitavam a formação de um pecúlio. Entretanto, a compra de alforria de um escravo artesão era mais cara, em razão dos rendimentos que estes proporcionavam ao senhor, mesmo assim, os estudos sobre alforria têm demonstrado um grande número de alforrias pagas.

Embora a historiografia enfatize os aspectos urbanos favoráveis à obtenção de alforria mediante indenização de preço, pode-se observar que mesmo em vilas de pouca expressividade econômica que favorecesses atividades de ganho pelos escravos há também uma predominância pagamentos pela aquisição da carta de liberdade. Na pesquisa com base nas cartas de alforria da Vila de Arez, no período de

27 SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito…, p. 17. 28 MATTOSO, Kátia de Queiroz. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 3 ed., 1990. 29 SCHWARTZ, Stuart. Alforria na Bahia, 1684-1745. In: Escravos, roceiros e rebeldes… 30 KARASCH, Mary C. A carta de alforria. In: A vida dos escravos no Rio de Janeiro 1808-1850…, p. 439-479. 31 RUSSELL-WOOD. A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 89-90.

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1775-179632, no Rio Grande do Norte colonial, também foi encontrada uma maioria de manumissões onerosas, pagas em moeda. A despeito do esforço realizado pelos escravos para acumular um pecúlio em um lugar, possivelmente com poucas possibilidades para isso, os textos das cartas costumam trazer as expressões do tipo: “pelo amor que lhe tenho”, ou, “pelo haver cercado com amor de filho”. Em um dos documentos, de 1775, registrado no livro de notas por Dona Francisca Barbosa Leitão, a alforria do “cabrinha” Ponciano é concedida mediante o pagamento de cinquenta mil réis em dinheiro e “pelo haver cercado com amor de filho”.33

A mesma senhora também liberta de forma onerosa a escrava Ana Maria, de 22 anos, irmã de Ponciano, de 20 anos. Contudo, a dita senhora faz questão de declarar que aprecia os escravos como filhos e que lhes tem muito amor, enfatizando assim o aspecto da afetividade.

Dona Tereza de Oliveira Freitas alforriou uma criança, o “mulatinho” Agostinho, com idade aproximada de dois anos. A carta menciona um pagamento de 25 mil reis, e expõem ainda que a criança é aleijada, mas o motivo alegado para a alforria é que a senhora o faz “por esmola, pelo amor de Deus, pelo haver criado e lhe ter amor”.34

Nos exemplos acima, observa-se a ênfase dos proprietários no aspecto afetivo, muito embora as alforrias tenham sido pagas, o que corrobora com as afirmações de Enidelce Bertin,35 já mencionadas, sobre a necessidade do escravo manter um bom relacionamento com seu senhor.

O maior número de manumissões pagas em Arez faz crer que nesta vila, os escravos também realizavam atividades que lhes garantissem um pecúlio, mas vale salientar que as alforrias são também de povoações do termo que se utilizavam do aparato jurídico.

Além das possibilidades econômicas e das redes de sociabilidades existentes nas vilas e cidades, havia também nestes locais uma estrutura jurídica e administrativa, dotada de juiz ordinário, a quem os escravos poderiam recorrer para conseguir comprar a liberdade, tendo em vista que o senhor não tinha obrigação em fornecer a carta de alforria, ou ainda em situações em que a alforria obtida era contestada por herdeiros, ou em casos de excesso de maus tratos. “A alegação de crueldade do senhor, conforme previam Cartas Régias do final do século XVII, podia dar origem a uma troca de Senhor ou a uma ação de liberdade.”36

32 O levantamento dos livros de notas da Vila de Arez identificou até o momento 43 cartas de alforrias, sendo 25 pagas; 13 condicionais e 5 gratuitas. IHGRN. Livro de notas de Arez, cx 75 e 77. 33 IHGRN. Livro de Notas de Arez, cx 75. 34 Ibidem. 35 BERTIN, Enidelce. Alforrias em São Paulo do século XIX… 36 LARA, Silvia Hunold. Campos da violência…, p. 263.

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Estas são algumas situações diante das quais os escravos poderiam recorrer às autoridades locais. No caso da carta de alforria já conquistada, poderiam registrá-la no cartório, como forma de garantir a liberdade adquirida, pois o risco de perda ou extravio do documento, bem como a mesquinhez de herdeiros que não reconheciam a liberdade obtida podia por em risco uma aquisição que na maioria das vezes levava anos para se concretizar. Assim, o registro da carta de alforria em cartório era essencial para a comprovação da liberdade.

A historiografia demonstra que nas vilas e cidades havia mais oportunidades de trabalhos que garantissem o pecúlio, além do maior número de escravos domésticos e de pequenos planteis favoreceram a proximidade entre senhores e escravos, no sentido de concessão das alforrias.37 Deste modo, era mais provável que um escravo que vivesse próximo ao seu senhor recebesse a alforria em testamento.

A escrava Antônia e seus quatro filhos, em Arez, no ano de 1793, obtiveram a liberdade em testamento, mas a cativa teve ainda que cumprir com a obrigação de mandar rezar missas para sua senhora falecida, D. Floriana Guedes de São Miguel.38 Certamente a proximidade da escrava com sua senhora favoreceu a obtenção da alforria dela e dos filhos, impedindo que algum deles entrasse na partilha dos bens e gerasse uma desagregação da família, o que certamente era algo temido pelas famílias escravas.

Chalhoub39 percebe a morte do senhor com uma possibilidade de mudança para o escravo, um momento de tensão, que pode representar uma esperança, mas também uma incerteza, pois o escravo poderia ser separado dos familiares ou ser obrigado a se adaptar a um novo senhor. Felizmente, para a escrava Antônia, foi possível conquistar a liberdade e manter a família.

Tanto os testamentos como as cartas de liberdade revelam alguns aspectos das relações entre senhores e escravos. Muitas vezes essa relação se estendia para o pós- morte. Analisando testamentos do século XIX, Reis identificou uma acentuada encomenda de missas destinada a diversos beneficiários. Os ex-escravos testamenteiros também costumavam encomendar missas para familiares, padrinhos, parceiros comerciais e antigos senhores, o que demonstra os laços de sociabilidades estabelecidos pelos escravos. O autor observa que os libertos ofereciam mais missas para seus ex-senhores, chamados de patronos, do que para parentes e infere que isso “reflete um compromisso ideológico com o paternalismo senhorial e com novas regras (católicas) de descendência, impostas pela escravidão […]”.40 Acrescenta ainda que a historiadora Inês Oliveira considera que essas missas podem estar relacionadas

37 EISENBERG, Peter. Homens esquecidos. Campinas: Ed. Unicamp, 1989, p. 278. 38 IHGRN. Livro de Notas de Arez, cx 77. 39 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade…, p. 111. 40 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 211-212.

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ao cumprimento de cláusulas de cartas de alforria41, mas para o autor a quantidade de missas encomendadas pelos libertos não equivalem ao valor da alforria e insiste na tese de que a encomenda de missas reflete a sujeição da ex-escrava ao ex-senhor. Embora uma razão não exclua necessariamente a outra, a hipótese de cumprimento de cláusula de carta de alforria é bem plausível, mesmo porque a encomenda de missas é acompanhada de outras condições que o escravo deve cumprir, portanto não são somente as encomendas de missas que pagam as alforrias e sim um conjunto de obrigações, as quais os escravos devem realizar enquanto o senhor estiver vivo, ou que também se estendem para além da vida do senhor. Quanto à hipótese da sujeição, pode-se concluir que esta se estende, do mesmo modo, para o pós-morte do senhor.

Seja por meio de testamento ou de cláusulas condicionais de cartas de alforrias, muitos escravos viam-se obrigados a aliviar a possível passagem de seus senhores pelo purgatório. Dona Catharina Barbosa registrou no Livro de Notas de Arez, em 1781, quatro cartas de alforria, todas sob condição: à crioula Maria do Rosário foi concedida a alforria:

por criá-la em meus braços […] por lhe ter muito amor […] a forro de hoje para todo o sempre de toda escravidão e cativeiro como se do ventre de sua mãe forra nascesse porém com a obrigação de me acompanhar e me servir enquanto eu for viva e morrendo eu mandar-me dizer uma capela de missas pela minha alma e cumprindo com as tais obrigações poderá gozar de sua liberdade.42

Percebem-se nas demais cartas, presentes na mesma nota, descrição semelhante.

A crioula Maria Lourença foi liberta:

por ter dado bom serviço e me ter acompanhado com fidelidade […] como de fato forra tenho de hoje para todo o sempre de minha livre vontade sem constrangimento de pessoa alguma com obrigação porém de me servir e acompanhar […] e morrendo eu mandar rezar-me uma capela de missas.43

41A carta de alforria condicional concede a liberdade ao escravo mediante o prestação de serviço, ou outras obrigações por um tempo determinado. É muito comum encontrarmos documentos em que o escravo recebe a alforria desde que acompanhe o senhor até a sua morte. Ou seja, o escravo permanece trabalhando para o senhor e fica livre de fato quando o senhor falece. 42 IHGRN. Livro de Notas de Arez, cx 75. 43 Ibidem.

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Já o escravo Antônio “crioulinho” foi liberto, “por lhe ter amor e ter criado em meus braços”, com a obrigação de

me servir e acompanhar enquanto eu for viva e depois de eu morta poderá o dito crioulinho tratar de sua vida e usar de sua liberdade como as mais pessoas forras e libertas como se do ventre de sua mãe forro nascesse porém com a obrigação de mandar dizer por minha alma uma capela de missas.44

Finalmente, as mesmas obrigações de servir e acompanhar até a morte da senhora

também foram impostas à “crioulinha” Januária, afilhada da senhora e filha de Maria Lourença, a mesma também foi liberta condicionalmente. A afilhada foi a única que não recebeu a obrigação de mandar rezar as missas.

Pode-se notar então, que nas cartas de alforria os senhores demonstravam uma preocupação com o lugar da sua alma, com isso, atribui aos escravos a tarefa de mandar rezar as missas como condição de liberdade. Pela somatória das missas mencionadas nas cartas supracitadas, uma vez que uma capela de missas equivale a 50 missas,45 somente nessas cartas, D. Catharina garantiu 150 missas para sua alma, uma quantia razoável, supondo-se que as missas em favor dessa senhora não tenham ficado à cargo apenas dos escravos.

João José Reis46 menciona também testadores que, na primeira década do século XIX, beneficiaram escravos falecidos com missas. Embora isso fosse mais raro, tais atitudes eram reflexos do discurso religioso. Segundo o autor, “os religiosos ensinavam aos senhores que beneficiar as almas de seus finados escravos era não só um dever cristão, mas até uma tática de salvação”.47 Logo, as missas cumpriam um relevante papel na economia da salvação, tendo em vista que eram pagas, também cumpriam um importante papel na economia da Igreja.

Ao citar o caso de um africano que, em 1790, inclui em seu testamento as almas do purgatório, João José Reis supõe ser possível “uma associação entre a experiência do purgatório e da escravidão na mente dessa gente que um dia fora escravizada.”48 Se for possível uma associação entre o purgatório e a escravidão, essa associação pode ser mais amiúde em se tratando das cartas de alforria condicionais. Compreendendo o purgatório como um lugar intermediário, um misto de sofrimento e esperança de salvação, é possível uma analogia com a liberdade condicional. As cartas de alforrias condicionais possuem cláusulas a serem cumpridas pelos escravos. São imposições determinadas pelo senhor por um tempo estipulado. Muitas vezes a 44 Ibidem. 45 REIS, João José. A morte é uma festa…, p. 212. 46 Ibidem, p. 214. 47 Ibidem, p. 213. 48 Ibidem, p. 217.

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condição referia-se a cuidar do senhor ou senhora até sua morte, o que significa que a conquista da alforria plena poderia demorar muito tempo.

Sob esse olhar, pode-se entender que, se a alforria condicionada ao exercício de funções até a morte do senhor não representava a liberdade plena, significava pelo menos, a possibilidade de liberdade, uma promessa de liberdade, assim como o purgatório é uma promessa de salvação.

As redes de sociabilidade estabelecidas pelos escravos contribuíam para que alguns conseguissem comprar ou adquirir a alforria por meio das relações de parentesco e compadrio. Sendo assim, as cartas de alforria também evidenciam aspectos das famílias escravas. Cacilda Machado49 observou na historiografia sobre escravidão, a respeito das relações de compadrio, que são poucos os casos em que os escravos procuram como padrinho os seus próprios senhores; análise reforçada pelos casos estudados pela autora, nos quais, em alguns casos os escravos estabelecem compadrio com membros da elite, mas que não eram seus senhores e, em outros casos, com membros da comunidade, livres e pobres. Dessa maneira, segundo Cacilda Machado50, os escravos procuram garantir uma proteção material ou de estreitamento dos laços com a comunidade livre de cor. Vale lembrar que esse estreitamento era favorecido pelas comunicações que mencionadas anteriormente, por Eduardo França Paiva.51

Sobre aspectos como esses, Andréa Lisly Gonçalves52 lembra que os laços de parentesco e compadrio exercem influência sobre as manumissões em outros momentos além do batismo, pois um padrinho poderia comprar a alforria de seu afilhado posteriormente ao batismo, já na idade adulta. Kátia Mattoso também destaca a importância dos vínculos familiares e não consanguíneos na obtenção da liberdade, sobretudo para a contribuição no pagamento da alforria, considerando que esta

nunca é uma aventura solitária. Resulta de todo um tecido de solidariedades múltiplas e entrelaçadas, de mil confabulações, processos de compensações, promessas feitas e mantidas, preceitos, até mesmo de conveniência.53

49 MACHADO. Cacilda. A trama das vontades. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008, p. 180-181. 50 Ibidem. 51 PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia… 52 GONÇALVES, Andréa Lisly. Práticas de alforria nas Américas: dois estudos de caso em perspectiva comparada. In: PAIVA, Eduardo França (org.). Escravidão, mestiçagem e histórias comparadas. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH-UFMG; Vitória da conquista: Edições UESB, 2008. 53 MATTOSO, Kátia de Queiroz. Ser escravo no Brasil…, p. 194.

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Foi justamente a ligação familiar que garantiu a liberdade do pardo Bento Estevão, cuja alforria foi comprada pelo seu irmão Silvestre.54 A mulata Thereza, por sua vez teve a liberdade paga na pia batismal pelo Capitão Francisco Tavares, provavelmente seu padrinho, visto que proporcionou sua liberdade no momento do batismo.55

José Mulatinho,56 de 11 meses, foi alforriado pela senhora Francisca Barbosa de Freitas pelo valor de 28 mil reis, pagos pelo pai, o capitão Antônio Lopes Galvão, apesar do pagamento, a senhora menciona, como em outras cartas, a liberdade concedia como esmola, contudo, podemos perceber aqui dois fatores importantes na obtenção da alforria: a relação de parentesco e o pagamento.

Os estudos sobre alforrias aqui já citados concordam que as alforrias gratuitas são mais raras, como já foi afirmado. Nos livros de notas de Arez somente cinco alforrias eram gratuitas, de um total de quarenta e três para o período de 1775-1796. Embora seja denominada de gratuita, por não implicar em ônus para o cativo, Silvia Hunold Lara57 considera que essa alforria finalizava a relação formal entre senhor e escravo, porém o escravo não recebia nenhuma compensação justa, dessa forma, a alforria gratuita, assim como a onerosa, constituía um tipo de exploração. Ou seja, nada havia de gratuito nessa modalidade de manumissão, pois o escravo muitas vezes, já havia trabalhado anos e investido todo um esforço pessoal para livrar-se do cativeiro, “é necessário considerar nesses casos todo o trabalho e todo o rendimento previamente auferidos do próprio forro ou de seus parentes mais próximos, quando o beneficiado era, por exemplo, muito jovem.”58

O esforço que a historiografia tem feito em mostrar o escravo como agente social é uma forma de atribuir humanidade a quem durante muito tempo foi visto apenas como mercadoria e mão de obra. Muito mais que isso, os africanos e seus descendentes criaram e recriaram identidades próprias. Em se tratando das alforrias, o que era visto como concessão de um senhor benevolente passou a ser visto como uma conquista, resultante de anos de trabalho, de empenho pessoal para que a alforria fosse aceita, mesmo sendo paga com dinheiro ou prestação de serviço. Fossem nas pequenas vilas, como a de Arez, ou nas cidades maiores, os cativos constituíram famílias e redes de sociabilidade, souberam aproveitar as oportunidades para constituir um pecúlio e adquirir a alforria, investindo diariamente em negociações com os seus senhores.

54 IHGRN. Livro de Notas de Arez, cx 77. 55 Ibidem, cx 75. 56 Ibidem. 57 LARA, Silvia Hunold. Campos da violência… 58 PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia…, p. 173.

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Práticas de micro economia de escravos e quilombolas no sul da Bahia entre 1800-1850

Alex Andrade Costa1

Diversos estudos, já há muito tempo2, vêm mostrando a existência de uma

economia própria por parte dos escravos, também chamada de microeconomia escrava, formada por um campesinato negro - para usar um termo muito utilizado por Flávio Gomes3 - seja em roças ou em quilombos. Também, diversos autores, entre eles João J. Reis4, Stuart Schwartz5, Ciro Cardoso6 e o próprio Flavio Gomes7 já mostraram que esta economia escrava era formada com grande participação de outros segmentos da sociedade, inclusive brancos, que compravam ou negociavam produtos das roças escravas ou acoitavam fugidos para usar da mão-de-obra.

Esta pesquisa vai se amparar na ideia de que a microeconomia escrava não se resumiu à roça, mas se estendeu a uma série de ações praticadas pelos escravos, de forma legal ou não, da qual resultava algum de tipo de ganho financeiro, procurando conhecer os principais destinos destes ganhos, analisando como se deu a formação dessa microeconomia nas comarcas de Valença e Ilhéus, entre 1800 e 1850, onde predominavam pequenas e médias propriedades e onde muitos dos senhores disputavam com os escravos a sobrevivência diária.

Utilizando documentos judiciais como processos crimes; documentos cíveis como testamentos, inventários e ações de liberdade, correspondências e outros documentos do governo e da polícia pretende-se compreender a origem étnica de alguns escravos que atuavam no mercado local, a estrutura familiar e as condições de vida no cativeiro, bem como a condição social e econômica dos senhores com o

1 Doutorando em História – UFBA. 2 São da década de 1970 os dois principais estudos sobre economia própria de escravos fugidos nas Américas. MINTZ, Sidney. Caribbean Transformations. New York: Columbia University Press, 1974; PRICE, Richard. Maroon Societies. Rebel Slave Communities in the Americas. Baltimore: The Johns Hopkins university Press, 1979. No Brasil, um dos primeiros a abordar o tema através de uma importante fonte foi REIS, João J. Resistência Escrava em Ilhéus: Um documento inédito. Anais da APEB, n. 44, p. 285-291, 1979. 3 GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas. Mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 4 REIS, João José. Escravos e Coiteiros no Quilombo do Oitizeiro-Bahia, 1806. In: REIS, João J. e GOMES, Flávio (org). Liberdade Por Um Fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 5 SCHWARTZ, Stuart. Escravos, Roceiros e Rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001. 6 CARDOSO, Ciro Flamarion S. Escravo ou Camponês – o protocampesinato negro nas américas. São Paulo: Brasiliense, 1987. 7 GOMES, Flavio dos Santos. A hidra e os pântanos. São Paulo: Editora UNESP, 2005.

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objetivo de se entender a formação de uma microeconomia escrava a partir das fugas, saques, roubos, formação de roças e outras atividades, bem como a relação com seus senhores.

Obter melhores condições de vida implicava, em alguns casos, em disputar, entre os seus, os recursos que pudessem melhorar a sua vida. É o caso do processo movido pelo crioulo liberto Manuel José do Espírito Santo, que teve a sua casa, localizada no município de Valença, arrombada e saqueada, supostamente por dois escravos da vizinhança, os quais teriam sido vistos carregando uma “trouxa de roupas e uma arquinha contendo moedas”8 que alcançaria trezentos mil réis. Os acusados, Hanibal e Gaspar, escravos de uma fazenda da região, apesar de, a princípio, negarem participação em tal crime, foram reconhecidos por diversas testemunhas que, acorrendo até a senzala onde os acusados moravam encontraram os “mulambos” que foram roubados da casa de Manuel José do Espírito Santo, mas não encontraram o dinheiro. Antes de levar o caso à justiça, o escravo Hanibal teria sido pressionado a entregar o dinheiro, ao que parece numa tentativa de Manuel José do Espírito Santo resolver a situação entre eles mesmos, “mas este longe de fazer nem dizer onde se achava declarou que não dizia nem entregava, porque tanto havia sofrer entregando, como não”.9

Este suposto caso de furto perpetrado pelos escravos Hanibal e Gaspar, traz uma gama de informações importantes que vão além do crime em si. Na qualificação dos acusados, ambos declararam que além do trabalho na lavoura exerciam uma segunda atividade, no caso eram mestres de lancha, o que faziam por conta própria. Exercendo uma segunda atividade a possibilidade de amealhar recursos era maior, inclusive pelo motivo de ampliar as redes de sociabilidades e atuarem com uma relativa autonomia diante de seu senhor.

Já a situação de Manuel José, a vítima, talvez não fosse muito diferente da situação dos escravos Hanibal e Gaspar, com exceção do primeiro ter a posse real da liberdade. Pelos depoimentos das testemunhas e da própria vítima, “a morada era velha e desprovida de cousa alguma”10 a não ser as roupas, chamadas pelo próprio Manuel José de mulambos e da qual não fazia questão, ao contrário dos escravos que lhes tinha roubado. Para esses, os mulambos de Manuel José certamente seriam de grande utilidade. Como eram os únicos escravos de seu senhor, pobre, eles talvez não fossem vestidos e nem alimentados pelo mesmo, daí o fato dos escravos terem uma outra atividade onde pudessem obter pecúlio por conta própria.

A precariedade das condições de vida não estava restrita aos escravos. Muitos libertos e muitos senhores viviam nas margens da pobreza e vivam situações semelhantes de vida. Ao mesmo tempo em que as condições materiais de vida dos

8 APEB – Seção Judiciária: Processo Crime: 22/778/7. 9 Ibidem. 10 APEB – Seção Judiciária: Processo Crime: 22/778/7.

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escravos permitem conhecer mais da escravidão e entendê-la, cada vez mais como uma instituição plural e com muitas variantes, elas também nos falam da liberdade não como ponto de chegada, mas como partida para o enfrentamento de novas lutas.

O que aqui tratamos por economia própria dos escravos, ou microeconomia escrava, é chamado também de “brecha camponesa” ou “economia autônoma do cativo”. De fato todos os termos se referem às atividades econômicas que driblavam os limites da plantation, no entanto, possuem divergências conceituais que ainda perduram.

A expressão “brecha camponesa”, ao que parece, foi utilizada pela primeira vez por Tadeusz Lepkowski na década de 1960, para tratar das atividades econômicas dos escravos no Haiti onde ele percebeu dois tipos de brechas: uma originária dos quilombos e outra de terras concedidas pelos senhores. Posteriormente, Sidney Mintz que muito se dedicou aos estudos sobre economia rural nas Antilhas teve como objeto questões parecidas com as de Lepkowski mas aprofundando-as, procurou entender a comercialização dessa produção como um protocampesinato escravo.11

Para Mintz, os cativos com o sistema de roças e os quilombolas organizados em comunidades, ao desenvolverem variadas práticas e relações econômicas (inclusive com acesso aos mercados locais), conquistaram margens de autonomia e acabaram por se transformar em protocamponeses.12

No Brasil o termo “brecha camponesa” foi utilizado por Ciro Cardoso para discutir a economia autônoma do cativo e mostrar como a mesma funcionou na reprodução do sistema escravista.13 Para Cardoso a “brecha” – o tempo e a terra para o trabalho - tinha como objetivo minimizar o custo de manutenção e reprodução da força de trabalho, e poderia ser “usurpada” pelo senhor em momentos que a sazonalidade das culturas exigisse. Gorender foi o maior crítico desta posição de Cardoso. Para ele Cardoso atribui à economia do cativo uma generalidade e estabilidade que ela não teve. Em suma, Gorender nega a existência de uma “brecha”, pois a considera parte integrante do modo de produção escravista colonial.14

Mesmo não discordando de Cardoso, Robert Slenes encontrou incoerências no pensamento do autor. Slenes observou que aquilo que Cardoso tratou “não é mais nem brecha nem, a rigor camponesa”, aproximando-se mais do que os historiadores norte-americanos chamam de “economia interna dos escravos”, isto é, “um termo que abrange todas as atividades desenvolvidas pelos cativos para aumentarem seus

11 MINTZ. Caribbean Transformations…, p. 146-179. 12 Ibidem. 13 Ver mais em CARDOSO, Ciro. Escravo ou Camponês… 14 GORENDER, Jacob. Questionamento sobre a teoria econômica do escravo. Estudos Económicos. Vol. 13, núm. 1, janeiro/abril de 1983.

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recursos, desde o cultivo de roças à caça e, inclusive, ao furto”.15 Nesse trabalho seguimos a dica de Slenes no esforço de compreender a microeconomia escrava a partir das roças, roubos, ganhos, e outras ações variadas que davam ao escravo acesso à condições de sobrevivência um pouco melhores. Não é possível, também, concordar inteiramente com Cardoso ou com Gorender, pois as práticas de microeconomia não eram todas pura conquista dos escravos, visto que havia interesse de senhores em algumas das práticas dos escravos, nem simplesmente derivavam do sistema escravista, pois se assim fosse não haveria rebeldias ou rebeliões. Como a bibliografia mais recente, em especial a de Reis e Gomes tem apontado isso consistia num jogo de lutas, interesses, acomodações e resistências de ambos os lados.16

A primeira metade do século XIX é marcada por dois movimentos contraditórios: de um lado a pressão inglesa para que o Brasil adotasse procedimentos para o fim do tráfico atlântico de escravos e, por outro, a intensificação deste negócio que já foi chamado por um importante intelectual da diáspora africana (W. Du Bois) como “o maior drama da história humana nos últimos 2.000 anos”. Nesse período os traficantes do Rio de Janeiro concentraram suas operações na costa oriental, na região que abrange o que são hoje o sul da Tanzânia, o norte de Moçambique, Malauí e o nordeste de Zâmbia. Os escravos da costa oriental da África eram aqui conhecidos como “moçambiques”. Já os traficantes envolvidos no comércio baiano, responsáveis pelo suprimento de escravos para várias regiões nordestinas a partir de meados do século XVIII e até o fim do tráfico em 1850, se concentraram sobretudo no comércio com a região do Golfo do Benim (sudoeste da atual Nigéria). Através do Golfo do Benim, os traficantes baianos importaram escravos aqui denominados dagomés, jejes, haussás, bornus, tapas e nagôs, entre outros. Estes grupos eram embarcados principalmente nos portos de Jaquin, Ajudá, Popo e Apá, e mais tarde Onim (Lagos). Assim, estima-se que dos cerca de 4 milhões de escravos desembarcados no Brasil ao longo do tempo, cerca de 1 milhão teria chegado nos últimos 20 anos de execução do tráfico. Mesmo a Bahia estando em declínio econômico ela ainda recebia número considerável de escravos que vinham para cá ou para serem redistribuídos para outras províncias. Desta forma temos uma grande população negra, escrava e 15 SLENES, Robert. Na Senzala, uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 199. 16 Ver, entre outros, os textos de: SILVA, Eduardo e REIS, João J. Negociação e Conflito - a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; CARVALHO, Marcus. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo, Recife, 1822- 1850. Recife: Editora da UFPE, 1998; BARICKMAN, Bert. Até a véspera: O trabalho escravo e a produção de açúcar nos engenhos do Recôncavo baiano (1850-1881). Afro-Ásia, n. 21-22, 1998-99.

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africana, circulando pela província que causava medo e, por que não dizer pânico, em parte da população, especialmente por conta das constantes notícias de insurreições e revoltas que pipocavam por todos os cantos da província. A grande maioria destas notícias não passava de boatos e outra parte em tentativas frustradas, reprimidas pelas autoridades. Apenas uma pequena parte dessas revoltas realmente frutificaram na Bahia – em engenhos e localidades específicas. O grande medo, mesmo, vinha daquilo que os escravos conseguiram fazer fora da província da Bahia, em especial no Haiti, isso sim causava medo e arrepios em grandes proprietários de escravos e nas autoridades civis.

Em 1831 o Juiz da Comarca de Valença enviou ofício ao presidente da Província da Bahia solicitando armas, munição e guardas para combater os escravos fugidos que roubavam na região e que se encontravam refugiados em mais de 50 quilombos.17 Esta não foi a primeira vez que tal pleito foi feito. Havia quatro anos, desde 1827, que o pedido era reiterado, ao menos uma vez por ano, apontando para uma situação que já se prolongava há algum tempo. Creio que o espantoso número de quilombos citados pelo juiz, situados em duas localidades: Galeão e Tororó, seja o conjunto de pequenas aglomerações de escravos, fato que pode ser possível por conta de que quando alguns quilombos de Valença foram destruídos o número de escravos presos ou mortos era relativamente pequeno, geralmente entre 10 e 20. Porém o interesse dessa pesquisa sobre os quilombos está na utilidade mais pragmática que o escravo deu a esse instrumento de resistência. Vejamos: no mesmo ofício enviado pelo juiz de Valença ao presidente da Província ele justifica o pedido como forma de impedir os roubos perpetrados pelos aquilombados. Segundo o juiz os fugidos “vagam nas noites de sábado e domingo amedrontando a população”18, roubando gado e “seduzindo escravos pacíficos”.19 Antes disso, em 1830, o Juiz de Paz de Camamu, localizada próximo de Valença, também já havia noticiado ao Presidente da Província que ali existiam escravos fugidos “que se acham aquilombados nas mattas deste termo, roubando e insultando os lavradores”20 e, mais tarde, em 1835, o mesmo juiz em ofício, mostrando-se insatisfeito com a falta de posição tomada pelas autoridades da província disse que “já tendo levado por duas vezes ao [conhecimento do] antecessor […] os sucessivos assassínios, roubos e ataques causados pelos escravos fugidos , aquilombados nas matas desta vila […] motivando que muitos lavradores abandonem suas lavouras a fim de escaparem de

17 APEB, maço 2626. 18 Ibidem. 19 Ibidem. 20 APEB, maço 2298.

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tão raivoso bando”21 pedindo providências para acabarem com os quilombos de “lá onde existe toda sorte de crimes”.22

Os dois ofícios dos Juízes de Valença e Camamu apontam para a questão da existência de uma prática econômica por parte dos aquilombados. Os roubos, fossem de gado ou de outros bens sugerem práticas organizadas e que estavam destinadas não apenas à sobrevivência interna do grupo, ou seja, não se roubava apenas para comer, mas, outros destinos se dava aos roubos, como por exemplo a venda para pequenos lavradores do entorno dos quilombos com quem esses se relacionavam cotidianamente e eram, até mesmo, protegidos pelos mesmos. O juiz de Valença chegou a dizer que tais praticas se davam de forma preponderante aos finais de semana, sábados e domingos o que aponta para o fato de que nos outros dias da semana eles se dedicavam às suas roças e plantações. Este fato aponta para um alto nível de planejamento das ações por parte dos quilombolas.

Com a destruição de um importante quilombo, o do borrachudo, localizado na comarca de Ilhéus, vizinha a Valença, acontecido no mesmo ano de 1835 é possível perceber outros traços da economia quilombola.

O quilombo Colégio Novo, um dos que pertenciam ao conjunto do Borrachudo, por exemplo, contabilizava roçado de mandioca, três mil covas de cana, bananeiras, canteiros de alface, de cebolas, de alhos, carás, mangaritos, quiçares, inhames; já o quilombo Colégio Velho apresentava roças de mandioca, bananeiras, cinco mil covas de cana, limoeiros, jaqueiras, laranjeiras, carás, mangaritos, quicares; o quilombo Santo Antonio do Bom Viver tinha sacos de farinha de mandioca, beijus, roçado de mandioca, três mil covas de cana, bananeiras, limoeiros, laranjeiras, jaqueiras, carás, quiçares, inhame da Costa, gengibre, batatas; outro, o quilombo Corisco, tinha roças de mandioca, cinco mil covas de cana, pés de algodoeiros, limoeiros, laranjeiras, limeiras, jaqueiras, pés de café e de cacau, plantações de fumo, gengibre e várias qualidades de inhames.23

Percebemos que nenhum quilombo que fazia parte do conglomerado do Borrachudo possuía gado entre os bens levantados pelas tropas, observando que o gado roubado deve ter servido de alimento, mas também deve ter sido utilizado, sobretudo, para a realização de negócios fora dos quilombos; percebemos, também, que todos, além de produzirem alimento destinado à sobrevivência interna do grupo como inhame, batata, mandioca e seus derivados e outras frutas, possuíam um significativo número de pés de cana de açúcar que, comparando com a quantidade de moradores do quilombo produziria um grande excesso, entendo que tal produção, também, era destinada ao mercado externo dos quilombos. A sobrevivência era o

21 Ibidem. 22 Ibidem. 23 APEB, maço 2246.

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objetivo imediato dos aquilombados, porém, pensavam também na sobrevivência à longo prazo.

A vida nos quilombos estava longe de ser uma vida sem um programa definida, ou marcada exclusivamente pela fuga e pela necessidade de se esconder. Os quilombos estavam longe de serem espaços únicos de refúgio, mas eles se caracterizavam como locais para o exercício de uma economia própria e os quilombolas contavam com objetivos muito claros ao passarem a viver nos quilombos. Quando o Juiz de Valença falou que os escravos roubavam aos sábados e domingos certamente não era por acaso: sendo aquilombados eles poderiam efetuar os roubos a qualquer tempo, mas não era isso que acontecia, segundo o juiz. Os roubos , preferencialmente se davam nas noites dos finais de semana o que talvez tenha a ver com a rotina destes aquilombados no decorrer dos dias de semana, para dar conta das plantações das roças e do beneficiamento da mandioca.24

Esta produção seja fruto de roubos ou do trabalho dos escravos no interior dos quilombos tinha como destino, muitas vezes, os moradores da redondeza com quem os aquilombados se relacionavam, ao que parece, muito bem, visto a crítica que o Juiz de Camamú faz dizendo que “as matas contiguas a esta vila estão há muito contaminadas de negros fugidos e aquilombados que de dia em dia tem aumentado pela comunicação com alguns habitantes que inconsideravelmente lhes dão apoio”.25 Certamente está se referindo a pessoas que se beneficiavam da produção dos quilombos para adquirir produtos por um preço mais baixo, ou mesmo melhor qualidade.

É preciso entender o quilombo dentro do contexto social e econômico onde se situa e mais, entender o quilombo como uma possibilidade do escravo constituir uma economia própria. Assim a noção de resistência escrava se amplia não se concentrando apenas na luta pela liberdade através das fugas para os quilombos, mas na prática do escravo constituir uma economia que garanta o seu sustento ou, quem sabe, a liberdade.

Em 08 de janeiro de 1827 o Juiz de Paz de Valença, João Ferreira Durão encaminhou correspondência ao Presidente da Província da Bahia, Manuel Inácio da Cunha e Meneses, futuro Visconde do Rio Vermelho, no qual o deixa a par da situação em que se encontrava aquela vila. Segundo o juiz, os proprietários de terras estavam impossibilitados de administrarem com suas assistências pessoais os serviços de suas lavouras por hum grande número de negros fugidos que unidos em bandos a outros malvados tem acontecido a cometer nos pacíficos lavradores pelas estradas por onde costumam transitar tomando-lhes suas cargas e alguns dinheiros.26

24 APEB, maço 2298. 25 Ibidem. 26 Ibidem.

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Com tal correspondência o juiz procurava receber do Presidente uma autorização para pôr em execução as medidas que reestabelecessem o sossego para os lavradores e para os viajantes. Tais medidas, segundo o juiz, seriam as mesmas indicadas anteriormente pelo Conselho Interino do Governo da Província quando dos combates com os portugueses por conta da guerra da Independência ocorrida quatro anos antes.

Observa-se que a exposição de motivos do juiz, apesar de muito sucinta, deixa perceber uma série de questões. A primeira delas o fato de que estes negros fugidos, mesmo não especificando o número, aparentemente representarem uma quantidade substancial que por si só já causava temor à população, em especial aos proprietários de terras e escravos da região, porém, outro fator que chama mais atenção é que eles não faziam as investidas sozinhos, ao contrário, é citado pelo juiz a existência de outras pessoas que os acompanhavam, identificados por “malvados”. Esta generalização pode esconder um grupo extremamente multifacetado, composto de libertos, crioulos, brancos e até mesmo índios, cujas ocupações poderiam incluir desde viajantes, aventureiros, ladrões e salteadores. Enfim, pessoas que uniam esforços de forma frequente ou esporádica em torno de um objetivo comum: a sobrevivência diária.

Muito provavelmente estes escravos denunciados pelo juiz de Valença fossem aquilombados, e como tais, mantinham uma estreita relação com gente de todo o tipo que vivia nas proximidades dos quilombos e deles também tirava proveito. Assim se justifica a heterogeneidade desse grupo que espalhava medo nos arredores de Valença.

Região de Valença, entrecortada por diversos rios e ilhas também possuíam muitas matas. Região litorânea, estava relativamente próxima de Salvador e de outros centros econômicos importantes como Nazaré e Cachoeira, que poderiam servir ao mesmo tempo para o desembarque de escravos fugidos ou traficados ilegalmente, quanto para transportar mercadorias ali produzidas para outros centros. Assim, Valença era um espaço ideal para a formação de quilombos que, ao mesmo tempo em que estavam protegidos dava ampla condição de comércio e comunicação.

Em abril de 1829 o Juiz de Paz de Valença, Manoel Joaquim do Espírito Santo, encaminhou correspondência ao Visconde de Camamú, então Presidente da Província da Bahia, comunicado da existência de um grande número de escravos fugidos e que se encontravam aquilombados na localidade do Galeão, naquela Comarca. Ao tempo em que solicitava reforço militar para o combate disse que, mesmo tendo capturado alguns escravos fugidos ainda não pudera destruir o quilombo por completo. Nessa correspondência o juiz aponta entre os fatores que estavam dificultando a tomada de posições mais eficazes contra os quilombolas à precariedade de armas, munições e guardas na vila. Essa precariedade de condições para combater os quilombos ou, ao menos, assegurar a mínima proteção para os habitantes das vilas é uma constante nas reclamações apresentadas pelos juízes de

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diversas vilas da região como Nazaré, Camamú e Cairú no transcorrer da primeira metade do século XIX.

Em 1831 o Juiz de Paz de Valença é surpreendido com uma correspondência do Presidente da Província suspendendo as rondas policiais nas localidades do Galeão e Tororó. Tal suspensão foi em atendimento à solicitação do guarda João José de Souza Macieira que alegou não serem mais necessárias as mesmas, a não ser em caso de manutenção da ordem. Estranho como um guarda encaminha solicitação diretamente ao Presidente da Província e é atendido pelo mesmo sem, sequer, consultar as autoridades locais.27

A localidade do Galeão, cercada de matas e manguezais, era situada na ilha de Tinharé, bem em frente à cidade de Valença no continente, de onde pode ser facilmente alcançada. Ali, habitavam cerca de 20 proprietários, muitos agregados e jornaleiros trabalhadores das onze embarcações utilizadas para a navegação e na construção de outras tantas, provavelmente saveiros responsáveis pelo transporte de mercadorias para os portos vizinhos e o de Salvador. Ainda é citada a existência de 120 escravos destes mesmos proprietários e que ali viviam trabalhando na extração de coquilho, piaçava e madeira.28

Segundo o juiz, em ofício de resposta ao presidente da província, o trabalho realizado pelas patrulhas nas duas localidades, em especial nas noites de sábado e domingo, é que tinham feito arrefecer a atuação dos quilombolas que antes vinham não só negociarem como também roubarem gados e toda criação; violentarem a cidadãos nos caminhos e tomarem armas, estuprarem e como tem sucedido conduzirem as mulheres e crianças para os ranchos e a escravos pacíficos para segui-los, principalmente as fêmeas; e finalmente assassinarem e espancarem aqueles que com eles não capitulam, como aconteceu a um Raimundo Muniz que morreu de um tiro dentro da própria casa na fazenda de seu senhor e outro de dona Maria da Conceição que foi esfaqueado e morreu.

Sem dúvidas essa localidade era uma área de forte atuação de escravos fugidos, nos cálculos do juiz cerca de cinquenta, que se agrupavam em diversos quilombos se utilizando de diferentes estratégias para prover a sobrevivência, entre elas a realização de negócios com habitantes daquelas localidades.

O juiz aponta que, entre os beneficiários das estratégias econômicas dos quilombolas estava o guarda, João José de Souza Macieira, autor do curioso pedido ao Presidente da Província. Segundo acusação do juiz, o guarda seria um dos que tinha escravos que vendiam e compravam produtos dos quilombolas e por isso, muitas vezes, se omitia em cumprir com as suas obrigações de realizar rondas. O que o juiz está querendo dizer, em sínteses, é que o guarda fechava os olhos diante das

27 Ibidem. 28 Ibidem.

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ações dos quilombolas pois, ele próprio era beneficiário do comércio existente entre os fugidos e seus escravos.29

Além disso, o juiz sempre aponta para o fato dos quilombolas seduzirem os “escravos pacíficos”30, chegando ao ponto de um proprietário perder todos os seus oito escravos de uma só vez para os quilombolas. Se levarmos em conta que a sedução se dá pelo convencimento, é plausível que o principal argumento destes tenha se dado no plano econômico, ou seja, com os fugidos apontando as vantagens da vida de quilombola para os escravos, em especial a oportunidade deles obterem ganhos com a venda de produtos que, muito provavelmente, deveriam ser aqueles mesmos que eram encontrados em abundancia na ilha e que tinham grande procura no continente: a piaçava e o coquilho .

Há cerca de 60 km ao sul de Valença estava a vila de Camamú, pertencente à comarca de Ilhéus era a mais populosa daquela região, possuía no início do século XIX cerca de 5.148 almas. Mesmo em comarcas diferentes a curta distância, os rios e o próprio mar que banhava as duas vilas facilitava a comunicação e o contato entre os habitantes das duas localidades e que envolvia também os quilombolas e demais fugidos ampliando de forma substancial as possibilidades de sobrevivência desses grupos.

Em 1825 a câmara de Camamú deu ciência ao presidente da província de que escravos fugidos de Nazaré acompanhados de “uma tropa de infames criminosos” , inclusive com a participação de um cigano, estaria a causar distúrbios naquela vila o que aponta para essa circulação de escravos num espaço geográfico para além das fronteiras da comarca a qual eram originários e, também, para a presença de pessoas “estranhas” ao mundo do cativeiro. O que as uniam? A sobrevivência diária. Porém não podemos desconsiderar que dentro de um grupo tão heterogêneo existissem projetos distintos que iam além da sobrevivência imediata, assim, uma real possibilidade é que os escravos fugidos estivessem arregimentados em torno de uma ideia de liberdade, embora essa, talvez, não fosse associada à alforria imediata.31

Ainda no ano de 1825, no mês de abril, o juiz de Camamú encaminhou outra correspondência relatando os diversos ataques que os escravos fugidos e aquilombados estavam fazendo nas matas daquela vila. Segundo o juiz Manoel José dos Santos os quilombolas invadiram o sítio do Capitão Arcangelo Ferreira Borges, que conseguiu fugir com sua família, roubando diversos bens e causando a morte de Dionísio de tal e ferindo gravemente o seu filho, os quais teriam saído em socorro do dito capitão.32 O mesmo grupo de quilombolas ainda teria atentado contra a vida de Manoel Marques da Silva, na povoação de Igrapiúna, que teria sido alvejado com

29 Ibidem. 30 Ibidem. 31 Ibidem. 32 Ibidem.

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tiros de espingarda, porém permanecendo com vida. Até aqui a documentação analisada dá conta de que as ações dos quilombolas se davam de forma predominante nas matas onde, creio, as possibilidades de sucesso nos ataques seriam maiores por conta dos proprietários viverem ali de forma mais isolada uns dos outros e da facilidade em fugir e se esconder propiciadas pelas condições geográfica.33

Longe dos centros urbanos o pânico se instaurou entre diversos proprietários da região que, segundo o juiz, abandonaram suas casas e lavouras nas matas procurando abrigo na vila. A lentidão na atuação do poder central da província fez com que os próprios moradores daquela localidade lançassem mão de “medidas que julgamos mais apropriadas para destruir aquela peste da sociedade que nos pode vir a ser muito perniciosa”.34 Desta forma, os próprios moradores contribuíram com dinheiro necessário para formar as tropas que se engajariam na luta contra os quilombolas, inclusive pagando o Tentente Coronel João Tavares de Melo, comandante do batalhão daquela vila, para auxiliar na expedição que contou com 50 milicianos.

O documento se encerra com um alerta: de que foi ordenado à tropa todo o cuidado para se manter as vidas dos escravos fugidos. Mais do que destruir os quilombos, era a captura, com vida dos fugidos que interessava às autoridades. Isso por vários motivos: em primeiro lugar pelo fato de que o escravo era um bem, que pertencia ao seu senhor – provavelmente um dos financiadores daquela jornada – e que precisavam recolocar o escravo no serviço; também, pelo fato de que ao traze-los com vida até a vila, ali provavelmente aconteceria um julgamento do mesmo e as condenações, fossem de punições como chicotadas ou a deportação, deveriam servir de exemplo para os demais escravos. Assim, antes de ser uma atitude humanitária, traze-los com vida para a vila era parte do jogo senhorial.

Esta não foi a primeira tentativa de se formar uma tropa para destruir aquele quilombo. Ao menos um ano antes, em 1824, já teria acontecido uma mobilização com esse fim. Naquele ano, “movida pelos roubos, insultos e mortes que faziam os escravos fugidos”35 foi pedido ao presidente da província, Visconde de Jaguaripe, que mandasse um grupo de índios de Pedra Branca para destruir aquele quilombo, ato que não foi atendido pelo presidente da província alegando grande distância entre a aldeia daqueles e a vila de Camamú, de sorte de não restou outra alternativa para o vilarejo a não ser organizar uma tropa com homens da própria localidade. Mesmo contando com mais de sessenta milicianos os resultados do ataque não foram satisfatórios: o encarregado da expedição mandou fazer fogo a alguma distância do quilombo; os fugitivos puderam evadir-se e concentra-se e poucos se

33 Ibidem. 34 Ibidem. 35 Ibidem.

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prenderam; contudo atemorizados deste assalto alguns procuraram a casa de seus senhores e por algum tempo cessaram os roubos e mortes.

A atuação aparentemente desastrada do grupo pode ter sido planejada cuidadosamente. O fato de disparar as armas de fogo a longa distância, deve ter servido justamente para assustar os quilombolas vez que os milicianos raramente tinham informações precisas sobre o número destes e o armamento que possuíam. Com uma fama de alta periculosidade, enfrentar os quilombolas era enfrentar o desconhecido de tal forma que, quanto menor fosse esse enfrentamento direto melhor. Em todo caso, além das prisões o retorno de alguns escravos para seus respectivos senhores acabou por dar um ar de vitória aos milicianos, ainda que momentâneo.36

Todas essas ações não passavam de paliativos, pois a “hidra” recuperava-se em pouco tempo e com mais força. A presença dos quilombos nessa região era endêmica e crônica e crescia a cada dia com a chegada de mais escravos fugidos das propriedades de perto e de longe. Em um rápido relato o Juiz ressaltou que “de Manoel Ferreira Borges de Santana fugiram 14; de João Jozé Tárcio, 12; de outros tem fugido três, quatro e mais”37, apontando para uma fuga que podemos considerar como em massa, em vista do que o próprio juiz afirmou que muitos proprietários ficaram sem nenhum escravo após a fuga. Posteriormente o juiz vai dizer que “os fugitivos tem se feito formidáveis pelo grande número dos que, todos os dias fogem para aquela guarida [ilegível] pelo amor à ociosidade”38 .

Aparentemente a situação chegou a tal ponto que muitos proprietários deixaram de castigar seus escravos pelo medo das fugas que começavam a prejudicar a produção da lavoura, especialmente a farinha e o arroz que dali eram exportados. Outro fator que pode ter colaborado para o aumento das fugas e consequentemente dos quilombos é o fato de que muitos proprietários moravam nas vilas, enquanto suas terras ficavam cuidadas por terceiros, o que aumentava muito o descontrole da escravaria. Outros eram pequenos proprietários que não tinha quem controlasse os poucos escravos a não ser ele próprio do qual dependia muito. Provavelmente esse tipo de proprietário tenha sido os que, com mais frequência recebiam seus escravos de volta após tentativas de invasões aos quilombos. Assim, para essa região a escravidão já começava a dar sinais de esgotamento.

As ações dos quilombolas foram caracterizadas pelos roubos de cargas e de animais, principalmente bovinos, provavelmente utilizados na alimentação própria, como o que aconteceu no dia 10 de abril de 1827 na propriedade de Jozé Soares Barboza quando lhe roubaram um boi.39 Na tentativa de detê-los o proprietário

36 Ibidem. 37 Ibidem. 38 Ibidem. 39 Ibidem.

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mandou sete homens armados, a maioria escravos de terceiros – provavelmente vizinhos -, atrás dos quilombolas no intuito de reaver o bem roubado no que foram surpreendidos pelos mesmos que estavam escondidos na casa do lavrador Antônio Pereira, de onde, através de buracos feitos na parede, dispararam contra seus perseguidores. Resultado: três fugiram ilesos; dois escravos de Manoel Pereira Castro feridos; outro de Mathias Pereira Guimarães foi espancado e o sétimo, um preto de nome Quirino, teve-lhe, segundo o juiz, arrancado as entranhas e talhado em postas.40

Mesmo levando em conta que o juiz possa ter carregado nas tintas ao descrever o acontecido naquelas matas é necessário salientar que os escravos aquilombados e os escravos que estavam sob um domínio senhorial pouco tinham em comum. Ao contrário, nessas disputas a condição social – ser escravo – e até mesmo a étnica – se africano ou crioulo – pouco importava, pois o que estava em jogo era a sobrevivência dos fugidos de um lado, e do outro a espera de alguma recompensa – que poderia ser em dinheiro, um melhor tratamento no cativeiro ou, até mesmo, a liberdade - pela captura ou morte dos quilombolas.

É nesse contexto que a ideia de campo negro formulada por Flavio Gomes para mostrar que os quilombos mantinham relações socioeconômicas – de proteção, comércio e solidariedade – é igualmente adequada para pensar os mundos da cultura.41 O que Gomes chama de cultura escrava e/ou quilombola podia alcançar os não-escravos, aqueles que estivessem fora dos quilombos (e que com eles mantivessem apenas contatos esporádicos), libertos, índios, brancos e outros setores da sociedade.42 Flavio Gomes define campo negro como práticas econômicas com interesses multifacetados. Tal qual uma arena social, constituiu-se palco de lutas e solidariedade conectando comunidades de fugitivos, cativos nas plantações e nas áreas urbanas vizinhas, libertos, lavradores, fazendeiros, autoridades policiais e outros tantos sujeitos que vivenciaram os mundos da escravidão.43

Esta multiplicidade de possibilidades do escravo desenvolver suas ações, inclusive de construção de uma economia própria deve ser levada em consideração ao analisar a escravidão no Recôncavo. Naquela região, como em muitas outras, os escravos não se limitaram aos ditames dos senhores ou às permissões legais, ali eles criaram um mundo dentro da escravidão.44

40 Ibidem. 41 GOMES, Flávio. Histórias de Quilombolas…, p. 45. 42 Ibidem. A Hidra e os pântanos…, p. 271. 43 Ibidem. Histórias de Quilombolas…, p. 45. 44 GENOVESE, Eugene. A Terra Prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra, Vol. I, 1988.

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Da Costa africana ao litoral amazônico: tráfico negreiro para o Estado do Maranhão e Grão-Pará (1707-1750)

Benedito Carlos Costa Barbosa1

Introdução

Segundo o amazonense Arthur Cezar Ferreira Reis, os primeiros escravos

africanos chegaram à Amazônia trazidos pelos ingleses, que os introduziram no extremo norte do Brasil entre os fins do século XVI e início do XVII, para o cultivo da terra.2 No decorrer do tempo, os portugueses, ao assentarem as bases da colonização, incentivaram gradativamente a comercialização de escravos africanos por meio de assentos com os homens de negócios e, sobretudo, através da regulamentação de companhias de comércio, que marcaram a história da escravidão na região amazônica, notoriamente no período pombalino (1750-1777).

Em nenhum momento quero desconsiderar a importância das companhias de comércio, mas pretendo mostrar que na administração de D. João V, momento que antecedeu a Era Pombalina, embora não existisse o estabelecimento dessas companhias de comércio, houve o tráfico negreiro que foi excessivamente incentivado pela Coroa portuguesa. Procuro, assim, analisar neste artigo, o comércio negreiro, destacando algumas características peculiares desse empreendimento na região amazônica como a organização, a rota traçada entre a costa africana e o litoral amazônico, o número fragmentado da entrada de escravos e o local de procedência dos escravos traficados nos anos de 1707 a 1750.

O Maranhão na rota do Atlântico

Até meados do século XVIII, o Estado do Maranhão era formado pelas

capitanias reais do Pará, do Maranhão, do Piauí e por outras capitanias particulares. Nesse período, o Estado do Maranhão configurava-se como uma área importadora de escravos das diferentes regiões da costa africana. No reinado de D. João V o tráfico negreiro constituía uma extensão do comércio lusitano, que se baseava na venda de manufaturados e na compra de gêneros da terra, envolvendo os moradores da Amazônia e os comerciantes de Lisboa.

1 Mestre em História pela Universidade Federal do Pará. Professor da Secretaria de Educação do Estado do Pará. 2 REIS, Arthur Cezar Ferreira. O negro na empresa colonial dos portugueses na Amazônia. Actas do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos. Lisboa: Comissão Executiva das Comemorações da Morte do Infante Dom Henrique, vol. V, II parte, 1961, p. 347-53.

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As embarcações, antes de chegarem aos portos da Amazônia, construíam um trajeto Lisboa-África, em que os portugueses negociavam escravos e os remetiam para o Estado do Maranhão. Em 1746 o mestre piloto Antônio Nunes de Sousa solicitou ao rei bilhete para continuar viagem ao Maranhão com escala em Cacheu, onde buscaria escravos.3 Os portos africanos constituíam os entrepostos nessas viagens. Os portugueses compravam escravos na África, vendiam aos colonos na Amazônia e ao mesmo tempo compravam as drogas do sertão, remetendo-as a Portugal.4 Parte desses gêneros da terra, grosso modo, formavam elementos importantes para dinamizar o comércio marítimo, pois servia para aquisição de mais escravos. Em 1721, D. João ordenou ao governador Bernardo Pereira de Berredo enviar sementes de cacau ao governador de Pernambuco para serem entregues ao Provedor da Fazenda da Ilha do Príncipe, pelos navios que comercializavam e resgatavam escravos na Costa da Mina.5 No ano seguinte, tratando da carta do governador João da Maia da Gama, “sobre vários pontos que inculcais para aumentarem os moradores desse Estado em cabedais”, o rei mencionava que “um deles [era] a grande falta que lhe faz não terem escravos da Costa de Guiné e o poderem-se remediar mandando ao resgate com os gêneros que têm a terra, como são os tabacos, e algodões”.6

Pelo trajeto das embarcações compreende-se que o tráfico estabelecido para a Amazônia obedecia a uma rota triangular tendo como pontos de referência Lisboa, África e o Estado do Maranhão, posto que as embarcações com mercadorias saíam de Portugal até as costas africanas, permutavam esses produtos com escravos, rumavam à região amazônica, e posteriormente retornavam a Lisboa carregando as drogas do sertão.

3 Requerimento do mestre piloto António Nunes de Sousa ao rei D. João V. Ant. 9 de dezembro de 1746. AHU, Avulsos (Maranhão), caixa 29, doc. 2993. 4 Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. João V. Lisboa, 15 de maio de 1750. AHU, Avulsos (Maranhão), caixa 31, doc. 3212 5 Secretaria da Capitania do Grão-Pará, Bernardo Pereira de Berrêdo e Castro, Lisboa Ocidental, 20 de setembro de 1721, caixa 8, doc. 41. 6 Carta de D. João para João da Maia da Gama, governador do Maranhão. Lisboa, 25 de março de 1722. ABNRJ, vol. 67 (1948), p. 189.

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Assim, o tráfico ocorrido à Amazônia diferenciou-se do de outras áreas do Brasil, que então baseava-se numa rota bilateral estabelecido diretamente entre a África e os portos brasileiros. De acordo com Jean-Baptiste Nardi, o tráfico bilateral ocorreu devido a problemas internos e ao enfraquecimento do poder político português, que deu margem para os traficantes buscarem mão de obra na África,7 fato não semelhante da Amazônia, onde o poder real participou ativamente na organização do tráfico negreiro, seja por meio de contrato com os assentistas ou promovendo a introdução de negros à custa da Fazenda Real. Essa intervenção da Coroa portuguesa

7 NARDI, Jean Baptiste. Sistema Colonial e Tráfico Negreiro: Novas interpretações da História Brasileira. Campinas: Pontes, 2002, p. 28-29.

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se manteve constante na Amazônia, diferenciando-se do tráfico negreiro para outras regiões do Brasil, em que sobressaiu o poder dos comerciantes brasileiros, como demonstra Manolo Florentino para o Rio de Janeiro. De acordo com Florentino, a Coroa portuguesa, embora se baseasse no “lucro sobre a alienação” conforme sugere Marx, não foi capaz de movimentar a economia carioca, ficando a cargo de grupos de comerciantes que investiram em diversos setores, inclusive no tráfico negreiro.8

Para o autor, o dinheiro movimentado no comércio negreiro provinha de atividades especulativas e rentistas com alta lucratividade, em destaque após a abertura dos portos, quando os traficantes aplicavam, para além do setor negreiro, em urbanização da cidade, prédios públicos, joias, metais preciosos e outros setores. Estes investimentos permitiram aos traficantes dominarem o mercado no Rio de Janeiro, criando-se assim um fluxo de capital que sustentou o comércio negreiro diretamente entre o porto carioca e Angola, sem a interferência da Coroa portuguesa, caracterizando um tráfico bilateral. Dentro desse comércio, os homens de negócios patrocinaram toda a infraestrutura para o tráfico negreiro que superava os problemas econômicos no Rio de Janeiro e na África, na medida em que parte dos traficantes dependia plenamente do capital carioca.9

Se no Rio de Janeiro a Coroa não teve uma participação ativa no comércio, fato que possibilitou aos traficantes desenvolverem seus negócios, em que a maior parcela dos lucros permanecia na cidade, na Amazônia a presença portuguesa foi crucial para a sua existência, pois sem a interferência do poder real dificilmente os moradores do Estado do Maranhão teriam condições econômicas de estabelecerem uma rota com a África. Essa interferência da Coroa fica visível nos assentos celebrado com os homens de negócios. O primeiro assento foi firmado com João Monteiro de Azevedo nos anos de 1707 e 1708 e tinha o objetivo de introduzir 200 escravos no Maranhão. Anos mais tarde, em 1718, a Coroa celebrou outro assento, desta vez com Manuel de Almeida e Silva. Apesar de toda a preocupação do monarca com a remessa desses escravos e os conflitos que dele foram suscitados, o assento acabou não tendo efeito, ajustando-se outro com Diogo Moreno Franco, em 1721. O novo assento previa a mesma quantidade e valor firmado com Manuel de Almeida e Silva, e também era de preferência dos senhores de lavouras e engenhos do Pará e Maranhão.10

8 FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 11-113. 9 Ibidem. 10 Carta Régia de D. João V, Rei de Portugal, a Bernardo Pereira de Berrêdo e Castro, governador e capitão general do Estado do Maranhão e Grão-Pará. Lisboa Ocidental, 1 de agosto de 1721. APEP, códice 8, doc. 40.

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Assentos de escravos celebrados pela Coroa portuguesa11

Ano Assentista Números de

escravos Preço por escravo

1707-1708

João Monteiro de Azevedo

200 78$000

1718 Manuel de Almeida e Silva

150 94$000

1721 Diogo Moreno Franco 150 94$000

Escravos desembarcados no Estado do Maranhão

Em 1708 chegaram ao Estado do Maranhão apenas 87 escravos, de um total de

102 embarcados na Baía de Benin. Foram transportados no navio Nossa Senhora do Monte e Santo Antônio, sob os cuidados do mestre José de Azevedo. Esses escravos correspondiam a uma parcela dos 200 escravos assentados com João Monteiro de Azevedo e destinar-se-iam aos senhores de engenhos, lavradores e moradores das capitanias do Estado.

O valor da venda equivalia a 160$000 por cabeça, mais que o dobro do valor pelo qual os escravos haviam sido comprados, capital que entraria como receita na Fazenda Real. Por isso, havia a preocupação do rei com o correto lançamento de todas essas transações, ordenando os compradores e os valores cobrados. 12

Na década seguinte, outras embarcações aportaram na região para desembarcar escravos nos portos do Estado do Maranhão. Em 1714, o navio Santo Antônio e Almas e Nossa Senhora do Bom Sucesso sob o comando de Domingos Veloso da Fonseca desembarcou na região, 356 escravos, de um total de 406 saídos da Baía de Biafra e Ilhas do Golfo da Guiné. No ano seguinte, mais um navio trouxe 85 escravos de um total de 100 embarcados na Costa da Mina.13

Desse período, as informações sobre a entrada de escravos datam dos primórdios da década de quarenta, e tudo indica que esses escravos entraram à custa de particulares que tinham negócios na região e não mais inteiramente sob os cuidados da Coroa. Em 1740, aportou no Maranhão, o iate São Francisco Xavier e Santa Ana,

11 Mapa de Contratos do Conselho Ultramarino (1641-1758). AHU, códice 1269, f. 13 12 Para o Governador e Capitão Geral do Maranhão. Sobre os oitenta escravos de que fez entrega Jose de Azevedo por conta dos duzentos que se tem ordenado vão para aquele Estado. Lisboa, 5 de março de 1709. AHU, códice 268, f. 242. 13 Base de Dados do Comércio Transatlântico de Escravos.

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proveniente de Cacheu, saindo da Senegâmbia com 77 escravos, dos quais apenas 69 chegaram, e o restante não se tem informação sobre o que aconteceu.14

Em 1741 entrou outro navio no porto do Maranhão. Tratava-se do bergantim Madre de Deus e Santo Antônio e Almas, de que era capitão Antônio José Veloso. Saiu de Lisboa em 20 de fevereiro de 1739 e aportou em Cacheu para trazer escravos ao Maranhão e Pará para trabalhar no “novo engenho de serrar madeiras”. Em Cacheu o capitão da embarcação faleceu, atrasando a viagem, chegando dois anos depois com apenas 7 escravos de um total de mais cem escravos.15

Esses escravos destinar-se-iam para os engenhos de madeiras que pertencia aos proprietários do referido bergantim. Essa atividade contava com o trabalho de muita mão de obra especialmente de indígenas e africanos. Dois anos se passaram para a mesma embarcação, ou outra de nome parecido, aportar na região trazendo mais escravos aos proprietários das fábricas de madeiras. O bergantim Madre de Deus e Santo Antônio e Almas saiu da região de Senegâmbia com 101 escravos, entretanto aportou somente com 92 que deviam trabalhar na extração e beneficiamento da madeira – outros escravos posteriormente foram solicitados para trabalhar nessas fábricas.16

A chegada dessas embarcações nos portos da região, trazendo escravos evidencia um tráfico organizado por particulares. Tratava-se de comerciantes que trouxeram escravos para trabalharem nos seus negócios na região, no caso específico, na fábrica de madeiras, atividade que contou constantemente com o apoio da Coroa.17 No entanto, é possível apontar que esse tráfico, embora fosse realizado pela iniciativa privada em muitos casos teve o apoio direto da Coroa com a isenção dos impostos, principalmente nos anos em que o Estado padecia por falta de braços em razão de vários fatores como as epidemias de bexigas que devastou a região, matando muitas

14 Carta do governador e capitão-general do Estado do Maranhão, João de Abreu Castelo Branco, ao rei D. João V. Belém do Pará, 16 de setembro de 1741, AHU Avulsos (Maranhão), cx. 26, doc. 2700. Anexo/ Para o Provedor da Fazenda Real da Capitania. Lisboa, 19 de maio de 1742. AHU, códice 270 ff. 358-358v. 15 Ofício do governador e capitão-general do Estado do Maranhão e Pará, João de Abreu de Castelo Branco, para o secretário de estado da Marinha e Ultramar, António Guedes Pereira. Pará. 11 de outubro de 1741. AHU, Avulsos (Pará), cx. 24, doc. 2263. 16 Requerimento do capitão do Bergantim Nossa Senhora Madre Deus e Santo António, José Paulo, ao rei D. João V. São Luiz do Maranhão, ant. 8 de maio de 1743, AHU, Avulsos (Maranhão), caixa 27, doc. 2774. / Carta do governador e capitão-general do Estado do Maranhão e Pará, João de Abreu Castelo Branco, para o rei D. João V. Pará, 8 de novembro de 1743. AHU, Avulsos (Pará), cx. 26, doc. 2445, Anexo 17 Para maiores informações sobre a atividade madeireira na Amazônia Colonial ver: BATISTA, Regina Célia Correia. Atividade madeireira no Estado do Maranhão e Grão Pará na primeira metade do século XVIII. Belém: Monografia de Conclusão de Curso apresentada à Faculdade de História/UFPA, 2008.

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pessoas, especialmente os povos indígenas, e as constantes fugas de índios que prejudicavam o desenvolvimento das atividades econômicas na região. Como forma de amenizar o problema da falta de mão de obra, a Coroa em vários momentos estimulou o tráfico negreiro chamando atenção dos homens de negócios para buscarem escravos por conta própria nas costas africanas e introduzirem na região amazônica para o crescimento de suas atividades.

Em 1708, os moradores do Pará queixavam-se de que ao entrarem no Estado, alguns navios deixavam todos os escravos na cidade de São Luiz, não sobrando nenhum escravo para eles. Para evitar a situação, D. João encomendava ao governador Cristóvão da Costa Freire e aos oficiais da Câmara da Capitania do Pará que os navios que descarregassem escravos fizessem uma repartição igual entre as duas capitanias, para não gerar conflitos entre os moradores. Além disso, determinava o soberano “vejais como podeis persuadir aos homens de negócio, e moradores dessa conquista mais ricos se unam entre si, a mandarem alguma embarcação por sua conta à Costa da Mina, ou a Angola” para trazerem escravos para se “remediarem”.18

Outro caso que evidencia essa relação entre a Coroa e os particulares ocorreu em 1749, mediante as severas epidemias de bexigas que assolaram a região. O governador, nesse momento, solicitou ao rei providências de carregações de escravos para atender a população. No ano seguinte, em carta régia, o rei reconhecia o “deplorável estado em que se acha [va] reduzida a cidade do Pará e suas aldeias e fazenda” em razão da carência de índios e mestiços que faleceram por ocasião do contágio de bexigas na região. O soberano também reconhecia ser conveniente socorrer os colonos “mandando algumas carregações de escravos para se repartirem pelos moradores dessas capitanias a proporção das suas lavouras e necessidade”. Entretanto, embora a Coroa houvesse determinado, a partir dos pareceres do procurador da Fazenda e do Conselho Ultramarino, que se fizesse um assento de escravos, o rei insistia que se convidassem “os homens de negócios para introduzirem por sua conta alguns pretos nessas capitanias” que não pagariam direito algum na entrada dessas alfândegas, somente “hão de pagar os pretos de Angola os direitos que se acham contatados na saída daquele Reino”.19

Dessa maneira, a Coroa esteve a frente em vários momentos na organização do tráfico negreiro, seja por conta própria ou com a ajuda de particulares, uma vez que o tráfico era um negócio rentável não somente para os proprietários de terras, mas também para a própria Coroa. A introdução de africanos significava indiretamente um aumento na arrecadação dos dízimos reais, beneficiando-se a Fazenda Real com esse comércio ao longo do tempo, principalmente nos anos em que a região padeceu com a

18 Carta de D. João V para o governador do Maranhão. 13 de junho de 1709. ABNRJ, vol. 67 (1948), p. 53 e 54. 19 “Para o governador do Estado do Maranhão”. Lisboa, 8 de julho de 1750. AHU, códice 271, f. 170 v.

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falta de mão de obra, fato que impulsionou a Coroa dinamizar a vinda e, consequentemente, a comercialização de escravos no Estado do Maranhão. É nesse contexto que podemos entender o comércio negreiro e a interferência da Corte nos assuntos relativos ao tráfico, na região amazônica durante a primeira metade do século XVIII e especialmente no reinado de D. João V.

Apesar de nenhuma outra informação referente a vinda de embarcação à região amazônica para descarregar escravos, argumento que talvez outras tenham cruzado o Atlântico rumo às capitanias do Estado do Maranhão com essa finalidade, se levarmos em consideração a falta de mão de obra pela reação dos povos indígenas, os constantes surtos de bexigas, as leis de arqueação e o apoio da Coroa com a isenção de impostos, que certamente tornaram os principais motivos para o prosseguimento do tráfico organizado tanto pela Coroa, quanto por particulares. No entanto, torna importante destacar que se isso ocorreu, o tráfico, mesmo assim, continuou modesto e esporádico como se apresentou durante todo o reinado de D. João V, quando comparado a outras praças do Brasil.

Navios que chegaram ao Estado do Maranhão e Grão-Pará com escravos

Ano Embarcação Procedência Capitão/ mestre

Embarc. Desembarc. Observação Documento

1708

Navio Nossa Senhora do Monte e Santo Antonio

Costa da Mina/ Senegâmbia

José de Azevedo

102 87

Repartição entre senhores de engenhos, lavradores, e moradores

AHU, cód. 268, f. 242 / BDTCE

1714

Santo Antonio e Almas e Nossa Senhora do Bom Sucesso

Baía de Biafra e Ilhas do Golfo da Guiné

Domingos Veloso da Fonseca

406 356 _ BDTCE

1715 _ Costa da Mina _ 100 85 _

AHU-MA, doc. 1247 / BDTCE

1740

Iate São Francisco Xavier e santa Ana

Cacheu Manoel Heges da Luz

77 69 _ AHU-MA, doc. 2700 / BDTCE

1741

Bergantim Madre de Deus e Santo Antonio e Almas

Cacheu Antonio José Veloso

100 7

Trazer escravos para o engenho de madeira

AHU-PA, doc. 2263 / BDTCE

1743

Bergantim Madre de Deus e Santo Antonio e Almas

Senegâmbia José Paulo 101 92

Trazer escravos para o engenho de madeira

AHU-PA, doc. 2445 / BDTCE

Total 886 696

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Estimativas fragmentadas do volume do tráfico de escravos Embora seja uma tarefa muito difícil precisar o número de escravos

desembarcados na Amazônia no Período Colonial, em razão da escassez de fontes, procuro estabelecer uma quantidade pelo menos aproximado do volume do tráfico negreiro. Primeiro torna-se importante destacar que os números até então apresentados pela historiografia não dão conta de pensar na dimensão do comércio de escravos e da própria escravidão assentada na Amazônia nessa época.

Kátia Mattoso, ao prever o número de escravos desembarcados no Brasil, estipula que 500 escravos entraram nos portos da Amazônia. A autora, certamente, baseou-se no Mapa de Contratos do Conselho Ultramarino. Esses dados, entretanto, consideram somente os assentos, e não as entradas efetivas de escravos. Mesmo tratando dos assentos, Mattoso equivoca-se, pois não diminuiu os 150 escravos contratados por Manuel de Almeida e Silva no ano de 1718 que foram ajustados posteriormente com Diogo Moreno Franco.20 (tabela 1) Deste modo, apenas dois contratos realizaram-se diminuindo essa porção para 350 escravos. No entanto, os dados estimados por Mattoso tornaram-se referência na historiografia para o estudo do tráfico e consequentemente da escravidão e serviram ainda para rotular a ausência de africanos na Amazônia para a primeira metade do século XVIII.

Nos últimos anos, esses dados vêm sendo repensado, por meio das informações contidas na Base de Dados do Comércio Transatlântico de Escravos que contabiliza um total de 696 escravos desembarcados na Amazônia no reinado de D. João V. (tabela 2) Essas informações contribuíram significativamente com a pesquisa de Daniel Domingues da Silva que estima 959 escravos traficados. (tabela 3) Para compor a estatística do volume do tráfico esse autor considera, além da entrada efetiva de escravos, os assentos, analisados por Kátia Mattoso, mas de maneira diferente, pois descarta 150 escravos provenientes dos assentos. Nessa contagem, o autor distribui os 200 escravos referentes ao assento de João Monteiro de Azevedo (1707 e 1708) em partes iguais. Da mesma forma que os 150, acerca dos assentos de Manuel de Almeida e Silva (1718) e Diogo Moreno Franco (1721), também em partes iguais, o que resulta em 350 escravos previamente assentados.

Na documentação, constatei semelhante quantidade de escravos que a Base de Dados do Comércio Transatlântico de Escravos com exceção dos 356 escravos entrados no ano de 1714, cuja existência se encontra documentada no Arquivo Público da Bahia e no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, equivalendo a 340 escravos. Apesar disso considero de grande importância as informações da Base de Dados do Comércio Transatlântico de Escravos, posto que apresenta 696 escravos efetivamente entrados na região.

20 MATTOSO, Kátia. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2003, p. 32.

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Esses dados me ajudaram de maneira crucial a repensar o tráfico negreiro. No entanto, é importante destacar que para entender esse número fragmentado do tráfico, considero os números de escravos efetivamente entrados e os assentos, mas de maneira ponderada. Antes de adicionar os 350 escravos dos assentos, subtraio os 87 escravos introduzidos no ano de 1708, que entendo ter sido uma parte dos 200 escravos assentados com João Monteiro de Azevedo, resultando em um total de 263 escravos desembarcados.

Adicionado esses 263 cativos referentes aos assentos com os 696 escravos efetivamente desembarcados, estimo que 959 escravos possam ter sido traficados. (tabela 4) Esse cálculo iguala ao de Daniel Domingues da Silva, em uma estimativa que teoricamente oscila em torno de 1.000 escravos introduzidos na região amazônica no período de 1707-1750.

Essa estimativa contrapõe-se com os números sugeridos até então pela historiografia que aponta uma porção menor de escravos desembarcados na região. Kátia Mattoso indica 500 escravos (se contarmos apenas os assentos, como vimos, esse número diminui para 350). Baseado nos dados apresentados por Mattoso, José Maia Bezerra Neto indica que para o período entre 1722 a 1755 não encontrou nenhuma referência sobre o tráfico negreiro na historiografia consultada, salvo pedidos de moradores por escravos africanos, em razão da “irregularidade do próprio tráfico”, uma vez que as fontes tornam-se confiáveis a partir da criação de Companhia de Comércio do Grão-Pará (1755-1777).21 Contrário a essas ideias, as informações obtidas revelam que o tráfico, embora modesto, não se limitou aos assentos, como sugeriu Mattoso, mas sobreviveu ao longo dos anos, com a participação da Coroa e de particulares que introduziram alguns escravos na região, após o período dos assentos, mesmo no período em que Bezerra Neto questiona a irregularidade do tráfico. Abaixo o quadro das estimativas de escravos desembarcados no Estado do Maranhão (1707-1750) possibilita visualizar esses números.

Tabela 1 – Estimativa Kátia Matoso

Ano Nº de Escravos desembarcados 1708 200 1718 150 1721 150 Total 500

21 BEZERRA NETO, José Maria. Escravidão negra no Grão-Pará/séculos XVII-XIX. Belém: Paka-Tatu, 2001, p. 23.

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Tabela 2 – Estimativa BDCTE

Ano Nº de Escravos desembarcados 1708 87 1714 356 1715 85 1740 69 1741 7 1743 92 Total 696

Tabela 3 – Estimativa Daniel Domingues da Silva

Ano Nº de Escravos desembarcados 1707 100 1708 100 1714 356 1715 85 1718 75 1721 75 1740 69 1741 7 1743 92 Total 959

Tabela 4 – Estimativa Benedito Barbosa

Ano Nº de Escravos desembarcados 1707 200 (assento) 1708 87 (-) 1714 356 (BDCTE) 1715 85 1721 150 (assento) 1740 69 1741 7 1743 92 Total 959

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A procedência dos escravos traficados à Amazônia Os escravos entrados na Amazônia no período da administração do soberano D.

João V provinham em sua maioria do Norte da África Ocidental ou Atlântico Equatorial. Tratava-se de um comércio que acontecia desde o século XVII. Na região conhecida por Senegâmbia e na Costa da Mina, o rei, a partir do início do século XVIII, chamava a atenção dos governadores para a importância do comércio de escravos.22 Essa região, desde finais do século XVII, era a rota negreira por excelência para a Amazônia.

Uma informação sobre a procedência de escravos provém das correspondências trocadas entre o soberano e o bispo frei José Delgarte a respeito do batismo de escravos. Em 1718, D. João advertia ao bispo todo o cuidado em mandar batizar os negros que iam de Angola e da Costa da Mina para o Maranhão. Por esse motivo, destacava que “contra a minha recomendação vêm muitos escravos de Angola por batizar e que o mesmo escuto de a todos os que se trazem da Costa da Mina, o que é em grande prejuízo do serviço de Deus e bem das almas dos ditos escravos”. Em 1720, entretanto, o bispo argumentava que “há três anos que assisto neste bispado e em nenhum de seus portos entraram escravos nem de Angola, nem da Costa da Mina que houvessem de batizar”.23

De acordo com as informações, parte dos escravos entrados no Estado do Maranhão provinha da Costa da Mina como ocorreu ao longo do tempo. Em 1723, o capitão de mar-e-guerra do Estado do Maranhão José de Torres pedia ao rei autorização para carregar os seus navios com os mantimentos e escravos necessários aos seus negócios na Costa da África. Este capitão mostrava-se bastante experiente no negócio negreiro.24

Segundo ele, “fez da costa da Bahia e do Rio de Janeiro em demandas dos piratas que a infestavam e foi à Costa da Mina e tirou em nove viagens mais de 7.000 escravos que conduziu à Bahia na sua fragata em que navegava”. Ainda nas suas incursões pela costa africana “se defendeu dos piratas e galera da Companhia de Holanda”. E naquele momento “estabeleceu na mesma costa e no melhor porto que é o de Ajudá a posse de uma fortificação e feitoria tudo a custa da sua fazenda 22 Carta de D. João para Cristóvão da Costa Freire. Lisboa, 13 de junho de 1708. ABAPP, tomo I (1902), doc. 87, p. 129-130. 23 Carta do bispo do Maranhão, D. fr. José Delgarte, ao rei D. João V sobre a resposta a uma provisão referente à ordem para mandar batizar os negros de Angola e da Costa da Mina. São Luiz do Maranhão, 9 de junho de 1720. AHU, Maranhão (Avulsos), caixa 12, doc. 1246 (a carta do rei encontra-se anexada)./ Para o Bispo do Maranhão. Sobre mandar examinar se os escravos que vão aquele Estado batizados e manda-los doutrinar. Lisboa, 13 de maio de 1721. AHU, códice 269, ff. 157-157v. 24 Requerimento do capitão de mar-e-guerra do Estado do Maranhão José de Torres, para o rei D. João V. Ant. 30 de outubro de 1723. AHU, Avulsos (Pará), caixa. 7, doc. 653.

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porque tudo o que adquiriu em negócio e o que poder adquirir deseja empregá-lo no serviço de V.M.”.

Após mostrar ser uma pessoa capacitada para o comércio negreiro, legitimando seu pleito, o capitão apresentava as vantagens para se introduzir escravos no Estado do Maranhão. Argumentava assim que o “Maranhão padecia por falta de escravos e que queria prover o mesmo Estado com dois mil escravos e o mais que pudesse tirar da costa da Mina e Angola em tempo de seis anos”. Pedia dessa maneira, “a permissão para poder navegar do mesmo dois navios cada ano carregados com gêneros para a mesma costa e a preferência para dois navios do mesmo Estado para este reino e uma para o de Angola”.25

Sobre o pedido deste capitão, a documentação de modo nenhum revela se o rei concedeu a licença que pretendia para a introdução dos ditos escravos, uma vez que para os anos posteriores não encontrei informação a esse respeito, mas torna importante para compreendermos a procedência dos escravos entrados na região no período estudado. Além de Angola, a Costa da Mina constituiu outra área de embarque de escravos. Em 1743, o governador João de Abreu Castelo Branco noticiou ao soberano sobre a quantia excessiva que se cobrou pelos escravos negros que entravam na capitania do Pará provenientes da Costa da Mina.26

Em 1750, os moradores solicitaram à Coroa escravos de várias partes da África para amenizar a falta de braços; na documentação, “Guiné” foi uma das áreas citadas.27 E ainda foi referida, anos antes, em 1722, quando o Conselho Ultramarino analisou uma correspondência do governador do Maranhão ao dar conta que a região estava prejudicada pela falta de braços e os escravos de Guiné constituíam uma das maneiras de resolver aquele problema.28

Além dessas áreas, no Golfo do Benin, a Costa dos Escravos tornou-se outra área provedora de cativos para a região. A rota para o Atlântico Equatorial talvez ocorreu em razão da ação da natureza, em que o vento e as correntes oceânicas mostravam-se mais favoráveis à navegação. Segundo Daniel Domingues da Silva, no Atlântico Norte o vento e as correntes oceânicas são orientados em sentido horário, enquanto no Sul se movem em sentido anti-horário. As embarcações que saíam de portos como Bissau ou Cacheu em direção ao Maranhão, precisavam somente navegar em direção à parte sudeste do Atlântico Norte até atingir as correntes do leste para o 25 Requerimento do capitão de mar-e-guerra do Estado do Maranhão José de Torres, para o rei D. João V. Ant. 30 de outubro de 1723. AHU, Avulsos (Pará) caixa. 7, doc. 653. 26 Carta do governador e capitão-general do Estado do Maranhão e Pará, João de Abreu Castelo Branco, para o rei D. João V. Pará, 8 de Novembro de 1743. AHU, Avulsos, (Pará), caixa 26, doc. 2445. 27 Consulta do Conselho Ultramarino para o rei D. João V. Lisboa, 16 de maio de 1750. AHU, Avulsos (Pará), caixa 31, doc. 2976. 28 Carta de D. João para João da Maia da Gama, governador do Maranhão. Lisboa, 25 de março de 1722. ABNRJ, vol. 67 (1948), p. 189.

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oeste exatamente a poucos graus do norte do Equador. Em contraste, navios que partiam de algum ponto do Atlântico Sul ao Maranhão navegariam nas águas calmas, atrasando a viagem por longos períodos nas águas tranquilas do Equador.29 Deste modo, Daniel Domingues da Silva considera que os portos localizados no Atlântico Norte tornaram os principais supridores de escravos para o Maranhão por muito tempo, especialmente Bissau e Cacheu.30

Portanto, os escravos traficados majoritariamente para a Amazônia na primeira metade do século XVIII e certamente nos anos seguintes provinham do Atlântico Equatorial e não do Atlântico Sul, como era de costume em outras praças do Brasil nessa época.

Considerações Finais

O desenvolvimento do tráfico negreiro ocorrido na Amazônia no reinado de D.

João V contou com a participação da Coroa portuguesa ao firmar contrato com os assentistas ou por meio da Fazenda Real que se encarregava com a infraestrutura necessária para a comercialização dos escravos, já que os moradores sem recursos financeiros capazes de traficar os africanos ficavam na dependência do poder real. Embora nesse período tenha ocorrido um tráfico particular, sem a interferência do poder real, caso observado nos anos de 1741 e 1743 quando os proprietários das fábricas de madeiras remeteram mais de cem escravos ao cuidado dos seus negócios na região, a Coroa sempre esteve presente no comércio negreiro ao estimular em vários momentos os homens de negócios e os moradores mais ricos da região no comércio de escravos da costa africana, certamente em razão dos custos que o empreendimento acarretava para a Fazenda Real.

Com a interferência do poder real, o tráfico, ainda que modesto, se desenvolveu na região ao longo do tempo. As embarcações negreiras vindas à Amazônia saíam dos portos de Lisboa, compravam os escravos nas praças africanas e os descarregavam nas capitanias do Estado do Maranhão, construindo um percurso diferente das outras praças brasileiras, principalmente o Rio de Janeiro e a Bahia em que as embarcações saíam para as costas africanas e refaziam o mesmo trajeto.

Os escravos traficados nesse período para a Amazônia vieram em sua maioria do Norte da África Ocidental ou Atlântico Equatorial principalmente da região da Senegâmbia, da Costa da Mina e do Golfo do Benin com destaque para Cacheu e Bissau que constituíam os portos de embarques e comércio de escravos. Dessas regiões cerca de mil africanos desembarcaram nos portos da Amazônia número pequeno se comparado com as demais praças negreiras do Brasil, mas importante

29 SILVA, Daniel B. Domingues. The Atlantic Slave Trade to Maranhão, 1680-1846. Volume routes an organization. Slavery an Abolition, vol. 29, n. 4 2008, p. 477-501, p. 485-486. 30 Ibidem.

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para se contrapor à historiografia, ao mostrar que o tráfico negreiro, embora modesto, se desenvolveu no decorrer da primeira metade do século XVIII. E não se resumiu apenas à solicitação de negros junto à Coroa portuguesa como até então sustentava a historiografia, mas sobreviveu ao longo dos anos, pois a estrutura econômica em todos os setores montou-se sob o trabalho escravo tanto de africanos e índios, como de outras categorias inserida na mesma condição – como os cafuzos e os mulatos – importantes para o cultivo de diversas lavouras, sobretudo, da cana de açúcar. Para este negócio, os senhores de engenhos, geralmente ameaçados pela falta de mão de obra, reclamavam atenção especial da Coroa, o que tornou-se um dos motivos para a concretização do tráfico negreiro.

Para finalizar, torna-se importante destacar que estudar o comércio negreiro, da mesma forma que qualquer outro tema do Período Colonial, esbarra no problema da escassez e do caráter fragmentário das fontes. A documentação, grosso modo, constituiu-se do acervo do Arquivo Histórico Ultramarino e da Base de Dados do Comércio Transatlântico de Escravos que embora contenham ricas informações, essas fontes não permitem uma vasta abordagem do contexto. Essa problemática abre espaço para muitos questionamentos, como as etnias dos escravos. Ainda que o estudo aponte as áreas pelo menos de embarque dos escravos, tornou-se impossível precisar dados fundamentais para entender os grupos étnicos vindos à região. Outro questionamento refere-se ao número de escravos embarcados nos portos da África e os desembarcados nos portos da Amazônia. A documentação em nenhum momento informa o motivo na diminuição dos números de escravos desembarcados nos portos da região amazônica, cabendo várias indagações ao assunto.

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Escravidão e mundos do trabalho: escravos e libertos enquanto exploradores do ouro - Minas Gerais, século XVIII

Dejanira Ferreira de Rezende1

Direito legal e costumeiro e a exploração do ouro

Quando dos primeiros achados auríferos nos sertões que viriam a constituir a

capitania de Minas Gerais, em finais do século XVII, o governo régio sentiu a necessidade de publicar um regimento para regular a exploração do metal precioso. O que foi feito em março de 1700, quando era governador da capitania do Rio de Janeiro, à qual pertenciam até então as novas áreas mineradoras, Artur de Sá e Meneses.2 Ainda em seu governo, em 19 de abril de 1702, foi promulgado um novo código, o Regimento dos Superintendentes e Guardas-Mores, e este sim seria a base da legislação sobre a exploração aurífera durante todo o século XVIII, ainda que com algumas alterações.3

Este último retomou quase todos os artigos do regimento anterior, porém, enquanto o regimento de 1700 estabelecia que os mineradores muito pobres e sem escravos, sendo brancos, teriam direito a concorrer a uma data mineral de cinco braças de terras, no regimento seguinte esta determinação desapareceu. A partir daí os não proprietários de escravos se viram definitivamente excluídos da partilha das datas minerais. Até então, as mesma tinham dimensões fixas, mas a partir do Regimento de 1702 a força de trabalho, ou seja, o número de escravos possuídos, passou a ser o fator determinante da extensão destas terras destinadas a exploração mineral.4 Segundo Francisco E. Andrade, enquanto a legislação vigente até então buscava assegurar a participação de todos nos trabalhos de mineração, o Regimento

1 Mestranda em História - Universidade Federal de Ouro Preto. 2 Regimento que se há de guardar nas minas dos Cataguases e em outras quaisquer do distrito destas capitanias de ouro de lavagem. ANRJ, códice 77, v. 7, f. 64-75v Apud ANDRADE, Francisco Eduardo de. A administração das Minas do ouro e a periferia do poder. In: PAIVA, Eduardo França (org.). Brasil - Portugal: sociedades, culturas e formas de governono mundo português (séculos XVI - XVIII) . São Paulo: Annablume, 2006, p. 77. 3 Regimento dos superintendentes, guardas-mores e mais oficiais, deputados para as minas de ouro. Códice Costa Matoso, 1999, p. 311-330. 4 No artigo 5º do Regimento dos Superintendentes e Guarda-mores de 1702 ficou estabelecido que o tamanho da data de cada requerente seria estabelecido de acordo com o número de escravos do mesmo. Proprietários com 12 escravos ou mais recebiam uma data de 30 braças (66 m), os demais recebiam 2,5 braças (5,5 m) por cada escravo.

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de 1702 estreitou o campo social dos que poderiam participar dos descobertos, e da aquisição de datas minerais.5

Porém, apesar de garantir ao superintendente a jurisdição sobre as contendas que viessem a surgir entre os exploradores, este último código não conseguia dar conta das várias situações conflituosas que iriam surgir e, portanto, não oferecia meios para a resolução das mesmas. Tal fator abriu espaço para que os próprios mineradores fossem construindo, em sua prática cotidiana, meios para solucionar tanto os problemas referentes às técnicas, quanto ao convívio social que se dava nas explorações e aos conflitos resultantes deste convívio.

Algumas práticas, sendo adotadas repetidamente pelos mineradores na solução das situações encontradas, acabariam se transformando em direitos costumeiros, reconhecidos pela população como legítimos, os quais, algumas vezes, seriam incorporados posteriormente pelo direito legal. Isto pode acontecer porque no período colonial, em alguns casos, foi possível perceber a adequação das ordens régias aos usos e costumes praticados pela população.6 Assim, podemos dizer que o aparato legislativo referente à mineração foi construído ao longo do século XVIII, pois foi sendo elaborado à medida que a prática da extração minerária se desenvolvia e surgiam, consequentemente, novos problemas a serem resolvidos.

Antônio Manuel Hespanha, analisando o caso de Portugal, mostra que até finais do Antigo Regime o direito letrado coexistiu, ainda que de forma conflituosa, com tradições jurídicas populares.7 Porém, a relação entre ambos não era de oposição total. O autor também diz que o direito local ou particular era o direito tradicional das comunidades, difundido como tradição e “publicado por bando ou pregão, ele materializava a tradição comunitária acerca do justo e do injusto, sendo, em principio, um direito intensamente vivido e conhecido por todos”.8

Parece-nos que o que ocorreu com relação à exploração aurífera nos morros das Minas Gerais guarda semelhanças com isto. Como, inicialmente, a legislação nada dizia a respeito da ocupação e exploração do ouro nestes locais, os próprios mineradores foram criando, cotidianamente, seus códigos de conduta, os quais, com o tempo, seriam conhecidos e aceitos de maneira geral. E entre estes exploradores que atuavam nos morros estavam os libertos e escravos faiscadores que, portanto, também devem ter ajudado a “construir as regras” de exploração no local, as quais 5 ANDRADE, Francisco Eduardo de. A invenção das Minas Gerais: empresas, descobrimentos e entradas nos sertões do ouro da América portuguesa. Belo Horizonte: Autêntica Editora/Editora PUC Minas, 2008, p. 271. 6 GONÇALVES, Jener Cristiano. Justiça e direitos costumeiros: apelos judiciais de escravos, forros e livres em Minas Gerais (1716-1815). Belo Horizonte: Dissertação de Mestrado - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, 2006, p. 17. 7 HESPANHA, Antônio Manuel. Sábios e rústicos: a violência doce da razão jurídica. Revista crítica de ciências sociais, nº 25/26, p. 31, dezembro de 1988. 8 Ibidem, p. 47.

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eram aceitas costumeiramente.9 Difundidas como tradição, estas “regras” seriam, pelo menos parcialmente, incorporados aos bandos que começaram a ser publicados para regular a exploração nesses locais, a partir da década de 1720.

Alysson Freitas também demonstra que o costume teve peso importante na conformação das relações cotidianas na colônia do século XVIII e que, mesmo não sendo um sistema codificado legalmente, foi constituindo um corpus de regras que funcionavam como reguladoras e mediadoras das relações sociais cotidianamente.10 Funcionavam ainda “como aparato de sustentação de um sistema judiciário frágil, que não respondia as várias questões inerentes à complexidade da sociedade”.11

Com relação à exploração do ouro no século XVIII, de maneira mais geral, é algo neste sentido que vemos ocorrer. Como as leis existentes não conseguiam dar conta dos vários problemas enfrentados na prática de tal atividade, não raro as contendas judiciais eram resolvidas de acordo “com o que é uso e costume nestas Minas”, expressão esta que aparece na documentação da época. E isto deve ter se dado ainda com mais frequência com relação à exploração do metal precioso nos morros e encostas mais baixas das montanhas, já que aquele regimento que esteve em vigor por todo o século XVIII nem sequer mencionava a exploração nestes locais. Assim, esta falta de legislação que regulasse a exploração nestes altos contribuiu para que, costumeiramente, estes locais fossem sendo deixados à exploração de todos, sem que neles fossem distribuídas datas minerais unicamente aos proprietários de escravos, como se dava nos rios e ribeiros auríferos.

As Ordenações Filipinas, legislação em vigor a partir de 1603 em Portugal e suas possessões ultramarinas, estabeleciam que as minas e os cursos de água eram realengos, ou seja, patrimônio da Coroa. Quando se descobria ouro nos rios, ribeiros e margens próximas esses deveriam ser repartidos em datas àqueles que requeressem, o direito de exploração da terra aurífera era então garantida ao minerador pela carta de data.12 Assim a Coroa “cedia” a terra mineral ao requerente, que em troca ficava obrigado a entregar à mesma parte do rendimento da extração aurífera, mediante o pagamento do quinto.13

Além destas propriedades particulares, havia aquelas terras auríferas que eram consideradas de uso comum, as quais continuavam sendo realengas por não haverem sido nelas concedidas cartas de data. Esta lei estabelecida nas Ordenações, mesclada 9 A busca do ouro por uma única pessoa, se utilizando de poucos instrumentos, era uma atividade conhecida como faiscar, e as pessoas que realizavam este tipo de trabalho eram chamadas, normalmente, de faiscadores. 10 JESUS, Alysson Luiz Freitas de. No sertão das Minas: escravidão, violência e liberdade (1830-1888). São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: Fapemig, 2007, p. 63. 11 Ibidem, p. 64. 12 A carta de data era um documento no qual se anotava o tamanho e localização das terras minerais concedidas aos exploradores. 13 O quinto correspondia a 20% de todo o ouro extraído.

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ao costume e a falta de regulamentação para a exploração nas encostas das montanhas, disseminou a prática de as terras auríferas dos morros serem entendidas como de utilização pública, já que não eram distribuídas em datas minerais.14 A posse e a apropriação da terra nestes lugares dependiam do serviço que se fazia no local – como desbarrancar a terra com o uso da água ou através de serviço braçal – e era reconhecida entre os próprios mineradores.15

Porém, os morros não foram os únicos locais costumeiramente considerados como deixados à exploração livre de todos. Em todas as lavras abandonadas ou já lavradas, tanto nas serras quanto nos rios e ribeiros, a exploração também era livre. Não era difícil encontrar alguma lavra abandonada com algum ouro ainda passível de exploração, ou áreas já lavradas que ainda pudessem trazer algum rendimento. A lógica político-econômica do mercantilismo, vigente no período aqui em questão, ensinava que se buscasse o maior lucro possível no menor tempo. Assim, logo que o rendimento de uma lavra começava a cair o minerador preferia requerer uma nova data mineral, em outra paragem, do que investir em trabalhos mais custosos para exploração do ouro mais difícil.

Esta atitude, que podemos considerar como uma racionalidade própria do período, permitiu que os mineradores tivessem uma grande mobilidade, principalmente nos primeiros anos de ocupação das Minas, quando o ouro de aluvião, de exploração mais fácil, era abundante. Mas, também podemos considerar que esta mesma atitude contribuiu para que fosse aberto um espaço de trabalho, na exploração do ouro, para aqueles que eram excluídos da divisão das datas minerais nos descobertos de grande rendimento. Desta forma, nestes locais abandonados antes que tivessem esgotado todo o ouro contido, os homens livres e libertos pobres e os escravos faiscadores podiam conseguir extrair uma quantidade de ouro considerável.

Voltando a falar dos morros auríferos, estes locais, que desde a primeira década de ocupação da região de Minas Gerais serviram de trabalho e moradia para uma parcela da população que não tinha acesso às grandes lavras, com o tempo também seriam alvo de interesse dos senhores poderosos donos de escravos. O que ocorreu principalmente quando o ouro de aluvião, depositado nos rios e ribeiros, não era mais tão abundante, já na segunda década do século XVIII. Neste sentido, é importante ressaltar que apenas o fato de ser considerado de uso comum, deixado à exploração livre de todos, não dava a estes morros um caráter democrático por excelência.16 O serviço conhecido como “talho aberto”, que exigia o uso da água, era

14 ANDRADE, A administração das Minas do ouro e a periferia do poder… 15 Códice Costa Matoso, 1999, vol. 1. Documento 109, Modo e estilo de minerar nos morros de Vila Rica e de Mariana, p. 766. 16 ANDRADE, Francisco Eduardo de. A invenção das Minas Gerais…, p. 298.

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o mais buscado na exploração destes locais, por permitir maiores lucros.17 Porém, poucos seriam aqueles que poderiam arcar com os custos vultosos de canalização da água para realização dos mesmos serviços. No entanto, ainda restava aos mais destituídos de capital a possibilidade de minerar através de serviços de catas e buracos.18

Estes homens sempre manteriam certo espaço de atuação já que, mesmo quando os senhores de escravos começaram a ter interesse pela exploração nos morros, não poderiam ser simplesmente banidos dos locais que ocupavam sem que esta ação tivesse maiores consequências. Isto se dava, em partes, justamente pela força dos costumes naquela sociedade, como apontado acima. Assim, pobres e senhores de escravos teriam que conviver, e a convivência destes “grupos” no mesmo espaço geraria vários conflitos de interesses e, portanto, contendas judiciais.

Destas relações conflituosas surgiu a necessidade de se determinar quais os direitos específicos de mineradores e faiscadores nos morros. Deveria se estabelecer qual o lugar daqueles que poderiam arcar com os autos custos dos serviços de condução e canalização da água e daqueles que eram despossuídos, como os libertos e escravos faiscadores, mas transitavam pelos morros desde os primeiros anos de ocupação das Minas. Estes, portanto, não poderiam ser simplesmente alijados do que para eles já era reconhecido como um direito costumeiro: a prática de andarem minerando naqueles locais. A década de 1720 foi, assim, marcada por vários bandos que buscavam abarcar as mudanças vivenciadas no espaço das lavras.19 Estes estabeleciam, em geral, que nos morros o local até onde fosse possível conduzir a água fosse concedido àqueles que possuíssem recursos para tal condução, e o restante do terreno fosse deixado para a exploração livre do povo.

A explicação que os estudiosos do tema dão para tal resolução é a de que os locais onde não era possível levar a água e, portanto, adotar o método do “talho aberto”, que em geral rendia mais do que a exploração por poços ou galerias, não

17 O método do talho aberto consistia em conduzir água até a jazida a ser explorada, onde algumas vezes era construído um reservatório superior. A água era então jorrada sobre a jazida e carregava a massa aurífera até o pé da montanha. 18 A cata era um método de extração aurífera adotado principalmente em rochas friáveis. Consiste em escavar um poço circular, tanto mais largo na superfície quanto mais profundo for, tendo sempre a forma de funil e apresentando uma espécie de banquetas. Para se sair do desmonte, transportando o material, sobe-se por um caminho em espiral – ESCHEWEGE, wihelm L. Von. Pluto Brasiliensis. tradução de Domício de Figueiredo Murta. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1979, p. 176. 19 Arquivo Público Mineiro (APM), Seção Colonial (SC) 21, fls. 4-5v, Bando de 26 de setembro de 1721; Arquivo Público Mineiro (APM), Seção Colonial (SC) 27, f. 50-50v, Bando de 24 de novembro de 1728.

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atraía o interesse dos mineradores mais abastados.20 Afirmam também que seria interessante para a Coroa permitir que essas terras fossem exploradas por qualquer pessoa, pois isso garantiria que todo o terreno fosse trabalhado, aumentando a arrecadação do quinto.

Concordamos com tais explicações, mas acreditamos também que as reivindicações daqueles agentes que não tinham acesso as datas minerais, como os libertos e escravos faiscadores, também podem ter influenciado para que, quando as autoridades régias começaram a legislar sobre a exploração aurífera nos morros, ficasse estabelecido que, ao menos parte deles, fosse deixada à exploração livre do povo. Pensamos que os funcionários régios ponderavam sobre a possível reação destes agentes se fossem afastados por completo da atividade a que se dedicavam desde os primeiros anos de ocupação das Minas: a faiscação nos morros. E os conflitos que surgiram das tentativas de redistribuição das terras minerais nestes morros pelos agentes régios, procurando aplicar também neste espaço o estabelecido pelo Regimento de 1702, ou seja, a divisão das terras minerais de acordo com o número de escravos de cada requerente, devem ter contribuído para tal ponderação.

Como exemplo, podemos citar a contenda que se deu em torno da divisão de águas minerais no morro de Matacavalos, localizado próximo a Vila do Carmo, hoje cidade de Mariana, no ano de 1713. Diante da tentativa do Ouvidor Geral Dr. Manoel da Costa de Amorim de redistribuir em datas o local em que faiscadores e mineradores, estes com maiores posses, já haviam se estabelecido, e vinham explorando o ouro há algum tempo, tais exploradores se uniram em defesa de uma causa comum. Causa esta que seria garantir que o local continuasse a ser explorado por todos e, possivelmente, da forma como os ocupantes locais já haviam “acordado” entre si como sendo o justo.21 Este conflito também mostra que a relação entre mineradores e faiscadores nos morros das Minas era marcada não só por conflitos, mas também por “acordos”. E quanto aos conflitos, estes não opunham, necessariamente, pobres e poderosos, também podiam possibilitar o estabelecimento de alianças entre eles.

Consideramos também que aqueles bandos vieram dar reconhecimento legal a algo que já ocorria nas práticas costumeiras. Naquele período, a segunda década do século XVIII, já conviviam nos morros de exploração aurífera os faiscadores e os

20 REIS, Flávia Maria da Mata. Entre faisqueiras, catas e galerias: explorações do ouro, leis e cotidiano nas Minas do século XVIII (1702-1762). Belo Horizonte: Dissertação de Mestrado - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, 2007, p. 197; RENGER, Friedrich E. Direito Mineral e Mineração no Códice Costa Matoso (1975), Varia História, n. 21, julho 1999. 21 REZENDE, Dejanira Ferreira de. “Arraia-miúda” nos morros das Minas: conflitos sociais na Vila do Carmo, década de 1710. Mariana: Monografia de Bacharelado - Instituto de Ciências Humanas e Sociais da UFOP, 2010, p. 49.

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grandes mineradores, e estes últimos se aproveitavam de seu poder para tomar posse das águas e, portanto, serem os exploradores por excelência das terras auríferas nas quais era possível se lavrar com o uso da mesma. Apesar de um dos motivos da promulgação da “Provisão das Águas”, no ano de 1720, terem sido as disputas que se davam em torno da divisão destas águas, e o fato de os poderosos acabarem sempre se apropriando delas, parece que esta apropriação passou a ser um direito, reconhecido por aqueles bandos.22

Com a intensificação da mineração, no final da década de 1720 os conflitos de jurisdição entre os guardas-mores, superintendentes e governadores tornaram-se cada vez maiores.23 Estes conflitos, juntamente com os estabelecidos entre os exploradores do ouro, fizeram com que a mineração fosse se refazendo ao longo do século XVIII.24 O Regimento de 1702 não foi anulado completamente, mas se mostrava deficiente e, como já vínhamos mostrando, as brechas deixadas por ele foram sendo preenchidas pelas práticas costumeiras, as quais eram construídas cotidianamente a partir das dificuldades e situações conflituosas enfrentadas pelos mineradores.

Tudo isto suscitou, na década de 1730, o debate em torno da necessidade de uma reforma geral no Regimento de 1702. A questão foi discutida pelos membros do Conselho Ultramarino, estes decidiram que deveria ser feito um novo regimento. Porém, como isto demoraria, foi tomada uma medida mais imediata e, em 13 de maio de 1736 foi promulgado, pelo governador Gomes Freire de Andrada, um aditamento ao regimento então em vigor.25 De acordo com Francisco Andrade, este aditamento funcionou como uma tentativa do governo régio de reafirmar sua autoridade frente à nova realidade vivenciada na prática minerária da região das Minas. Com tal medida Gomes Freire pretendia, dentre outras coisas, “solucionar os impasses das minerações nos morros”.26

Tal documento veio incorporar ao direito legal o que os mineradores já haviam estabelecido como legítimo entre si, no âmbito dos costumes. Em seu 12º artigo ficou estabelecido que quando se descobrissem depósitos auríferos nos morros, em locais onde não fosse possível conduzir a água, o descobridor deveria avisar ao

22 “Provisão das águas” foi uma carta enviada pelo rei que estabelecia que as águas passassem a ser divididas pelo guarda-mor, assim como já ocorria com as terras minerais, de acordo com o número de escravos possuído e o serviço realizado pelo requerente. 23 O guarda-mor era o agente encarregado, basicamente, da repartição das terras minerais entre os requerentes, e demarcação das mesmas, já ao superintendente cabia a resolução das disputas judiciais entre os mineradores. 24 ANDRADE, Francisco Eduardo de. A invenção das Minas Gerais… 25 Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana (AHCSM). Documentos Interessantes, Caixa 1, nº 20. Bando de 14 de maio de 1736, f. 7v-11. 26 ANDRADE, A administração das Minas do ouro e a periferia do poder…, p. 89.

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superintendente para que este ordenasse ao guarda-mor do distrito, agente encarregado da partilha dos descobertos, que repartisse o terreno ao povo.

Escravos e libertos como ativos exploradores, ou faiscadores, do ouro

Como já ressaltado, ao longo do século XVIII a legislação referente às práticas

minerárias pretendia excluir os não proprietários de escravos da partilha das terras auríferas. Segundo Francisco de Andrade, a posse ou não de escravos estabelecia a diferença entre ser mineiro e faiscador àquela época.27 Negros, mestiços e índios participaram ativamente das empresas descobridoras, e, muitas vezes, tiveram papel decisivo no encontro das jazidas preciosas, porém não podiam ser reconhecidos como “verdadeiros descobridores”.28 Assim, já nos primeiros anos de ocupação da região mineradora, àqueles que não eram brancos e proprietários de escravos coube a busca pelo ouro em espaços que inicialmente não despertaram o interesse destes senhores: as encostas das montanhas, ribeiros menos rendosos, locais já lavrados, restos de desmontes de grandes serviços minerais.

Muitos escravos faiscadores recebiam dos senhores o direito de andarem faiscando pelas áreas já lavradas de suas propriedades, pelas lavras abandonadas, tanto nos ribeiros quanto nas nas encostas, ou nas áreas consideradas realengas e comum a todos. Em troca, deveriam entregar ao senhor uma parcela do ouro extraído, o que consistia no pagamento do jornal, podendo ficar com o restante. Dessa forma, muitos escravos conseguiram acumular algum pecúlio, o qual poderia ser utilizado para pagar sua alforria aos poucos, através da coartação.

Os escravos coartados tinham assegurado, por meio da carta de corte, o direito de perambularem por certo espaço, com limite às vezes definidos nestas cartas, em busca de algum ganho para seu sustento e para o acúmulo de pecúlio necessário à quitação das parcelas de sua auto compra. Acreditamos que a faiscação foi uma das atividades a que estes escravos recorreram para isto. Considerando que a historiografia tem mostrado que em Minas Gerais a população de forros foi bastante expressiva, e que uma porcentagem bem significativa daqueles negros que alcançavam a liberdade o faziam por meio da coartação, pode se perceber a importância desta prática.29

27 ANDRADE, Francisco Eduardo de. A invenção das Minas Gerais…, p. 272. 28 ANDRADE, Francisco Eduardo de. A invenção das Minas Gerais…; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Metais e pedras preciosas. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand, 7 ed., 1993, p. 264. 29 Marcos Magalhães, em estudo feito na comarca de Vila Rica na segunda metade do século XVIII, constatou que a coartação correspondia a 28,5% do total de alforrias concedidas. E considerando apenas as alforrias pagas, que corresponderam a um total de 61% para o período pesquisado, a coartação somou um total de 48,8%. Ver AGUIAR, Marcos Magalhães

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Este costume de deixar os escravos andarem faiscando pelas vilas era algo praticado pelos senhores desde os primeiros anos de ocupação das Minas.30 O qual era praticado tanto pelos senhores mineradores, quanto pelos homens pobres com poucos escravos que não possuíam lavras próprias, estando entre estes alguns libertos, ou senhores que se dedicavam a outras atividades mais procuravam algum ganho extra, mandando alguns de seus escravos para faisqueiras. Segundo Flávia Reis, de acordo com a vontade de seu senhor o escravo faiscador podia se dedicar a essa atividade durante todo o ano ou apenas em determinados períodos, quando os serviços em que tais escravos eram normalmente empregados estivessem paralisados por determinado motivo; ou este trabalho de busca do ouro podia ainda ser alternado com outras atividades, como os serviços domésticos ou de roças.31

Essa prática de andar faiscando podia ser vantajosa para ambas as partes: para o senhor, porque não tinha que arcar com o sustento do escravo e recebia um jornal semanal, e para o escravo, que gozava de certa liberdade de ação e ainda podia acumular algum pecúlio. Mais uma vez levantamos a hipótese de que o fato de ser algo já praticado desde os primeiros anos de ocupação das minas contribuiu para que as autoridades régias estabelecessem alguns morros como realengos, sendo deixados à exploração livre do povo. Assim, não podemos limitar os motivos para tal estabelecimento ao fato de que o local não interessava aos mineradores mais abastados – até porque estes também chegaram a atuar explorando ouro nesses morros realengos – e de que era vantajoso para os cofres da Coroa garantir que todos os locais fossem explorados.

Segundo Antonil, também era comum os senhores deixarem seus escravos se dedicarem as faisqueiras nos domingos e dias santos, ou nas últimas horas do dia.32 Apresentaremos agora um caso que ilustra bem essa prática. Em 1735 Manoel da Costa Moniz acusou Guilherme Fixer de ter “dado pancadas” em seu escravo Alexandre, de nação mina, enquanto este andava a faiscar em um córrego da propriedade que tinham em sociedade, em local já lavrado. Em sua defesa Guilherme Fixer alegou que na referida sociedade eles costumavam usar a água do córrego para minerar durante o dia, “tapando-a a noite”, e nos dias santos utilizavam a mesma água para mover os moinhos. Porém, em um domingo ele foi informado, por um de seus feitores, que seu moinho estava parado. Em seguida fora tapar umas sobras de água de Francisco Lobo da Gama para que se juntassem as suas e fizesse o moinho funcionar.

de. Negras Minas Gerais: uma história da diáspora africana no Brasil colonial. São Paulo: Tese de Doutorado, 1999, p. 20. 30 ANDRADE, Francisco Eduardo de. A invenção das Minas Gerais… 31 REIS, Flávia Maria da Mata. Mineração Colonial…, 2007, p. 269. 32 ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil. São Paulo: Editora da USP, 1982.

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Continua dizendo que, chegando ao local, achou o negro Alexandre faiscando e lhe perguntou por que o mesmo abrira a dita água, ao que este respondeu que trabalhava com água de seu senhor. Guilherme Fixer afirma que isso não é verdade, por ser a dita água sobra de Francisco Lobo da Gama e ser dia santo, e ter ele réu “vinte e sete pessoas que sustentar, que estavam em primeiro lugar que a faisqueira dos negros”.33

Ainda segundo Guilherme Fixer fora o escravo quem o agrediu primeiro e ele só agiu em sua legítima defesa. Por sua vez, o autor Manoel da Costa Moniz, replicando, disse que a água com que seu negro faiscava era da sociedade e por isso não tinha o réu o direito de usá-la em um moinho que era só seu, e não da sociedade, sem o consentimento dele autor. Na instância do juizado da Vila do Carmo Guilherme Fixer foi considerado culpado e condenado. Porém, seguindo com apelação a Ouvidoria Geral de Vila Rica o réu foi absolvido, sentença esta que se manteve mesmo tendo o autor seguido com apelação para o Tribunal da Relação da Bahia.

O importante a perceber, por meio deste conflito, é que o negro Alexandre devia ter do seu senhor, o autor Manoel da Costa Moniz, o direito de faiscar pela propriedade durante os dias santos, como afirmou Antonil, já que a contenda ocorreu em um domingo. E é possível que o ouro extraído desta faiscação ficasse para o próprio negro. Levantamos esta hipótese devido à fala do réu Guilherme Fixer, quando este diz que o sustento de sua família era mais importante que “a faisqueira dos ditos negros”, ou seja, que o ouro extraído da faiscagem que os negros faziam aos dias santos não ia para as contas da sociedade. Tal atividade poderia ser em proveito dos ditos negros. Mesmo que Guilherme Fixer tenha se oposto ao fato de o negro Alexandre estar, com sua faisqueira, atrapalhando o funcionamento do moinho, a faiscação em si não chegou a ser questionada, esta devia ser uma atividade amplamente aceita pelos sócios.

A faiscação do ouro podia ser realizada individualmente ou em pequenos grupos. Neste último caso, podia ocorrer a associação de escravos, inclusive quilombolas, e homens pobres praticantes do mesmo serviço. Estes homens buscavam ouro também nos ribeiros e morros pouco explorados, em regiões afastadas dos núcleos mineradores. Podiam ainda, como já mencionado, explorar as áreas de rejeito, se aproveitando da massa contendo ouro que era arrastada pelas chuvas das grandes lavras. Segundo Eschwege, a areia que sobrava dessas lavras servia de meio de vida para muitos negros pobres.34

Não era impossível que desta atividade de constante busca do ouro, em todos os locais possíveis, resultasse algum “descoberto”, e negros e pobres não hesitavam em reagir a situações consideradas, por eles mesmos, injustas, como, por exemplo, a concessão de datas minerais, nos locais por eles encontrados e explorados, aos

33 AHCSM, Processo Crime. Códice 205, auto 5134, 2º ofício, 1735. 34 ESCHWEGE. Pluto Brasiliensis…, p. 69.

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senhores poderosos donos de escravos.35 Como já relatado anteriormente, estes homens pobres não tinham as qualidades necessárias para serem reconhecidos pelas autoridades régias como descobridores do ouro. Porém, não foi incomum que estes homens negociassem prêmios e recompensas com aqueles que tinham o prestígio social necessário para tanto, em troca da manifestação de tais achados. Esta era uma forma de negociação, do estabelecimento de acordos, entre poderosos e pobres, a partir de um mecanismo de trocas.36 Em meio às desigualdades que marcaram as explorações auríferas, a faiscação foi uma alternativa para aqueles que se encontravam a margem neste espaço.

Algumas vezes as autoridades coloniais manifestaram-se contra o ajuntamento de negros nos morros e contra os vendeiros e negras de tabuleiro que ali se estabeleciam, alegando que essa prática facilitava o contrabando e o extravio do ouro. Nesses morros esses faiscadores negros trabalhavam com certa autonomia e sociabilidade própria, o que as autoridades camaristas procuraram repreender ao longo do século XVIII.37 A mobilidade desses negros e mestiços pobres fez com que estes agentes régios, constantemente, se referissem a eles como vadios, como eram chamadas as pessoas sem ofício ou ocupação certa.

Não raras vezes os negros faiscadores foram confundidos, algumas delas intencionalmente, com negros fugidos ou quilombolas. Segundo Laura de Mello e Souza, era difícil distinguir o homem livre pobre, principalmente quando forro, do escravo e do quilombola, devido à indefinição e fluidez dessa camada da população.38 Para isto deve também ter contribuído o fato de que muitos escravos, quilombolas, e livres pobres realizavam atividades, inclusive a faiscação, em conjunto ou no mesmo espaço. Algo neste sentido ocorreu nas proximidades da Vila do Carmo. Em 1727 Pedro Teixeira Cerqueira acusou Timóteo Saraiva da Gama de ter prendido, indevidamente, quatro escravos seus que se achavam trabalhando nos serviços minerais que tinha em Guarapiranga. Segundo Pedro Teixeira, Timóteo se serviu dos tais negros em sua casa durante uma semana, e depois os entregou na cadeia de Vila Rica como se fossem negros fugidos, onde estiveram presos por um mês, tempo no qual um dos escravos veio a falecer.

Acrescenta que no dia em que o réu prendeu seus escravos lhes tomou os instrumentos com que trabalhavam: 2 alavancas, 4 almocafres e 4 bateas. Pedindo Pedro Teixeira que Timóteo Saraiva lhe devolvesse os negros que mantinha em seu poder esse lhe respondeu que só o faria se ele lhe pagasse vinte oitavas de ouro “pela

35 ANDRADE, Francisco Eduardo de. A invenção das Minas Gerais… 36 Ibidem. 37 Ibidem. 38 SOUZA, Laura de Mello e. Norma e conflito: aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006, p. 23.

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tomadia e prisão de cada um dos tais negros”.39 Uma das testemunhas, Salvador Pires Lemes, declarou que Timóteo Saraiva prendeu os escravos do autor enquanto estes andavam faiscando próximo a casa de Clara Vieira, mas declarou que não sabia se as terras minerais ali localizadas eram ou não do autor.

Para este caso podemos levantar algumas hipóteses. Pode ser que Timóteo Saraiva realmente tenha confundido os ditos escravos com negros fugidos, mas também é possível que só os tenha tratado enquanto tais com a intenção de receber, do senhor dos mesmos, a quantia que devia ser paga pela captura de tais escravos. Quem afirmou que os escravos andavam faiscando quando foram capturados foram as testemunhas, já o autor Pedro Teixeira disse que eles estavam em seus serviços minerais, onde o réu foi no intuito exclusivo de os apreender. Uma possibilidade é que tais escravos estivessem realmente andando a faiscar pela região, mas o autor preferiu não relatar tal fato já que os faiscadores eram comumente vistos como desordeiros. Outro fator possível é que, sendo Timóteo Saraiva também um minerador, este tenha se desentendido com Pedro Teixeira e seus escravos na exploração de alguma área e por isso tenha capturado estes últimos.

Mas, a mesma mobilidade espacial, e autonomia, que fazia os escravos faiscadores serem “confundidos” com vadios e quilombolas, e serem tratados pelas autoridades locais como tal, era um fator que favorecia o sucesso da empreitada de busca pelo ouro. Esta busca, naquele período em que os depósitos aluvionais eram consideráveis e as técnicas de mineração não muito sofisticadas, devia contar com um pouco da sorte do explorador. É neste sentido que a possibilidade de se deslocar aleatoriamente, sem ficar preso a uma lavra, deve ter sido um fator positivo.

A bateia e o almocafre foram os principais instrumentos utilizados na realização desta atividade de faiscagem do ouro. Porém, para a lavagem e apuração do metal extraído podiam também recorrer à canoa, já que esta era uma técnica que podia ser empregada sem muitos gastos.40 Flávia Reis acredita, inclusive, que pode ter sido justamente pelo fato de ver muitos negros faiscadores utilizando esta técnica que Eschwege afirmou, no inicio do século XIX, que a mesma havia sido introduzida, na região das Minas na colônia portuguesa, por escravos africanos.41 Assim, vemos que a atividade realizada pelos faiscadores não era necessariamente algo totalmente precário e sem nenhuma ordenação, já que, na apuração do ouro, podiam utilizar

39 AHCSM, Ação Cível. Códice 420, auto 12461, 2º ofício, 1727. 40 A canoa consistia em um fosso pouco profundo, que podia ser aberto no próprio solo ou construído de pedra, com o fundo inclinado e uma bica onde se colocava couro de boi ou lã grossa. A massa aurífera era colocada na canoa e por ela passava uma corrente de água, esta passava pela bica e ali ficavam retidas as partes mais pesadas da matéria lavada pela corrente da água. 41 REIS, Flávia Maria da Mata. Mineração Colonial…, 2007, p. 144.

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uma técnica considerada mais eficiente e, tal apuração, em alguns casos, exigia dos mesmos certa organização e divisão do trabalho.42

Tornou-se prática comum das autoridades régias, no século XVIII, não dividir em datas os descobertos de grande ajuntamento popular, mostrando que os interesses dos exploradores do ouro que não tinham muitas posses, entre eles os libertos e escravos faiscadores, tinham de ser minimamente considerados. Já em 1711, quando da instalação de Vila Rica, hoje cidade de Ouro Preto, os habitantes locais requereram ao governador Antônio de Albuquerque que os morros fossem considerados realengos e comum a todos, para que todos pudessem ali minerar, e foram atendidos em seu requerimento. Também os mineradores de São João Del Rei, em 1728, reclamaram que as terras minerais naquela localidade estavam todas nas mãos de poderosos e pediram que os morros fossem considerados terras realengas e fossem deixadas à exploração livre do povo.43 Percebemos, deste modo, que o “direito” de minerar dos homens que não eram grandes proprietários de escravos não foi totalmente negligenciado pelas autoridades, e também pela sociedade em geral, no século marcado pela exploração do ouro na capitania de Minas Gerais.

42 ANDRADE, Francisco Eduardo de. A invenção das Minas Gerais… 43 REIS, Flávia Maria da Mata. Mineração Colonial…, 2007, p. 199.

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Revisitando o tráfico interno de escravos para o Maranhão no último quartel do século XVIII1

Diego Pereira Santos2

Seja a partir do plano econômico, político ou religioso há muito já se pode constatar

enquanto parte significativa de trabalhadores compulsórios os africanos desembarcados na Amazônia. Para tanto uma gama de estudos vem corroborando esta tese: inicialmente os trabalhos pioneiros de Arthur Cezar Ferreira Reis (1961), Manuel Nunes Dias (1970), Vicente Salles (1971), Anaíza Vergolino e Napoleão Figueiredo (1990) ou mais contemporaneamente os estudos de José Maia Bezerra neto (2001), Rafael Chambouleyron (2006), Benedito Carlos Costa Barbosa (2008/2009) para o Pará; Matthias Rohrig Assunção (1993/2001), de Marinelma Costa Meireles (2006/2009), Maria Celeste Gomes da Silva (2009), Reinaldo dos Santos Barroso Júnior. (2008/2009), para o Maranhão. Apesar de mais tardia e quantitativamente inferior às outras regiões do sudeste do Brasil, a presença dos negros marcou profundamente a estrutura e a organização da sociedade amazônica. 3

1 Este texto é parte da pesquisa que desenvolvo como projeto de mestrado sob o título: Entre costas brasílicas: evidências do tráfico interno para o Maranhão (1778-1830). 2 Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, da Universidade Federal do Pará, bolsista de mestrado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. 3 REIS, Arthur Cezar Ferreira. O negro na empresa colonial dos portugueses na Amazônia. Lisboa: Papelaria Fernandes, 1961; DIAS, Manuel Nunes. Fomento e mercantilismo: A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, 1775-1778. Belém: UFPA, 1970, 2 vols.; SALLES, Vicente. O Negro no Pará sob o regime da escravidão. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas; UFPA, 1971; VERGOLINO, Henry & FIGUEIREDO, Arthur Napoleão. A presença africana na Amazônia colonial: Uma notícia Histórica. Belém: Arquivo Público do Pará, 1990; BEZERRA NETO, José Maia. Escravidão negra no Grão Pará: séculos XVIII-XIX. Belém: Paka-Tatu, 2001; CHAMBOULEYRON, Rafael. Escravos do Atlântico Equatorial: tráfico negreiro para o estado do Maranhão e Pará (século XVII e início do século XVIII). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 26, nº 52, p. 79-114, 2006; BARBOSA, Benedito Carlos Costa. Em outras margens do Atlântico. Tráfico Negreiro para o estado do Grão-Pará-Maranhão (1707-1750). Belém: Dissertação de Mestrado - UFPA, 2009; ASSUNÇÃO, Matthias Rohrig. Pflanzer, Sklaven und Kleinbauern in der brasilianischen Provinz Maranhão, 1800-1850. Frankfurt: Vervuet, 1993; BARROSO JUNIOR, Reinaldo dos Santos. Nas rotas do atlântico equatorial: tráfico de escravos rizicultores da Alta-Guiné para o Maranhão (1770-1800). Salvador: Dissertação de Mestrado, 2009; MEIRELES, Marinelma Costa. Tráfico Atlântico e procedências africanas no Maranhão Setecentista. Brasília: Dissertação de Mestrado - UNB, 2006; SILVA, Maria Celeste Gomes da. Alta Guiné e Maranhão: tráfico atlântico e

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A “lógica diferenciada” da Amazônia no seu processo de ocupação e a mão de obra predominante indígena, muitas vezes negou à região a contribuição dos negros africanos desembarcados, como se além de terem chegado em menor número, pouco ligados estiveram ao processo colonizador na Amazônia, na maioria das vezes analisado como vinculado determinantemente ao extrativismo vegetal. Este estereótipo esteve ligado ao que o historiador José Maia Bezerra Neto chamou de uma “leitura empobrecida”, a qual não dá conta da totalidade, ou pelo menos da maior parte das experiências construídas pelos negros no Grão Pará e nem do projeto colonizador pensado para a Amazônia. 4

A historiografia enfatizou duas imagens sobre o tráfico de escravos para a Amazônia entre meados do século XVIII e o início do século XIX. Em primeiro lugar, ressaltou o tráfico intercontinental em detrimento do tráfico interno e, como consequência desse, destacou tanto do ponto de vista comercial, como do abastecimento de escravos, desenvolvimentos a partir da criação da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão.5 Contudo, a produção historiográfica mais recente tem apontado outras possibilidades em relação ao número de escravos desembarcados após o fim do monopólio da Companhia Pombalina em 1778 via outras modalidades de tráfico.6 Ainda assim, os dados apontados nesses trabalhos carecem de uma perspectiva comparativa e, especialmente do cruzamento de fontes.

Se destacarmos os portos de procedência e a proporção de africanos desembarcados na Amazônia, durante a manutenção do regime de monopólio exercido pela companhia pombalina, identificaremos que o Grão-Pará recebera uma quantidade de escravos superior aos enviados à capitania do Maranhão, cerca 4600 a mais. Durante este período, rotas comerciais na segunda metade do século XVIII. 4º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 13-15 de maio 2009. 4 BEZERRA NETO. Escravidão negra no Grão Pará…, p. 17. 5 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico do Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; CARREIRA, António. As Companhias Pombalinas de Grão-Pará e Maranhão, Pernambuco e Paraíba. Porto: Editorial Presença, 1983; BEZERRA NETO. Escravidão negra no Grão Pará (séc. XVII-XIX)…; BARROSO JÚNIOR, Reinaldo dos Santos. Nas rotas do atlântico equatorial… 6 RUIZ-PEINADO ALONSO, José Luis. La “escravatura necessária para a cultura”. Esclavos africanos en la Amazonia tras la extinta Companhia do Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Revista Estudos Amazônicos, vol. IV, n. 1, p. 23-26, 2009; MEIRELES, Marinelma Costa. Tráfico Atlântico e procedências africanas no Maranhão Setecentista…, p. 97-101; SILVA, Maria Celeste Gomes da. Alta Guiné e Maranhão: tráfico atlântico e rotas comerciais na segunda metade do século XVIII…, p. 9-10. Ainda assim, o artigo de historiadora Maria Celeste Gomes da Silva – mesmo pensando uma perspectiva diferente do tráfico – apresenta em sua conclusão a inserção proporcionada pela capitania da criação de condições para o “desenvolvimento de uma economia regional baseada na “plantation” escravista com a produção voltada para o mercado externo”. Ou seja, pensa para o Grão-Pará e o Maranhão a mesma lógica de desenvolvimento que teve o sudeste, como um processo paulatino em direção a um suposto padrão de desenvolvimento – a plantation escravista.

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nas duas áreas, os escravos oriundos da Senegâmbia eram majoritários com uma predominância dos que provinham do Porto de Bissau para as duas paragens, no entanto, a participação deste porto africano fora mais acentuada no Grão-Pará que no Maranhão, enquanto a participação de Cacheu apresentou-se de maneira idêntica nos dois ditos lugares.

O Grão-Pará é também quem recebe um contingente nitidamente superior de escravos originários de Angola, pouco mais de três vezes que o do Maranhão. As outras origens, como Cabo Verde, são numericamente insignificantes ou pouco representativas, até, por vezes, totalmente ausente no que diz respeito ao Golfo de Guiné.

No decorrer do período seguinte, enquanto o regime de monopólio da Companhia Pombalina é oficialmente extinto, ainda que suas atividades possam ser percebidas pelo menos até 1784, uma nova tendência se desenharia e se confirmaria até o fim do tráfico para a região: a ampla diferença de entrada de mão de obra escrava nos dois principais portos da Amazônia, na verdade enorme descompasso, que nunca iria parar de crescer em favor do porto de São Luís. Globalmente, entre 1779 e 1799, enquanto o número de viagens em direção do Pará cai de um pouco mais da metade, ele quase duplica para o Maranhão. Os efeitos são imediatos: o número de escravos desembarcados em Belém cai também brutalmente para 9537, contra 27646 em São Luís.

A origem dos escravos e a desproporção do número de viagens entre os dois portos esclarecem os dados globais. Com 144 carregações de escravos identificadas, o tráfico atinge o seu apogeu no Maranhão, enquanto Belém, com 34 viagens já esta entrando numa fase de declínio em relação ao tráfico que se acentuaria nos decênios seguintes.

O discurso recorrente dos moradores do Maranhão e do Grão Pará em torno da necessidade de escravos negros para o “aumento e a conservação” das ditas capitanias e da agricultura a ser desenvolvida em ambas, remete quase que invariavelmente a ação dos administradores da Companhia no período da vigência do monopólio. A insatisfação dos moradores com o número de negros desembarcados, entretanto, abria espaço para o desenvolvimento de um comércio ilegal. Uma representação datada de 1771 sobre o Estado da Agricultura na capitania Maranhense alerta,

O interesse dos moradores em possuírem escravos, o que terão os comerciantes das outras Capitanias no preço por que os venderem, abrirão caminhos mais desconhecidos à sua introdução. Nenhuma vigilância será capaz de conter as irrupções que por esta parte farão os Particulares no Comércio exclusivo da capitania. (…) Estas consequências não se fundam em hum mero raciocínio, são já fatos notórios. Centos, e centos de escravos se introduzirão

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sempre da Bahia, Pernambuco, e Rio de Janeiro pelo Porto da Parnaiba, pertencente à capitania do Piauhi. 7

A ação de particulares aponta a autonomia dos capitães dos navios na compra de escravos e gêneros, transacionando com outros portos.8 Sendo assim, estabeleceu-se nas últimas décadas do século XVIII uma modalidade de tráfico costeiro que passou a interferir na quantidade de escravos desembarcados e na própria lógica do tráfico intercontinental estabelecido entre o Maranhão e os portos africanos.

As mais contundentes notícias desta modalidade do tráfico destacam-se a partir de 1778, ano do fim do regime de monopólio da companhia geral, o que não significou a extinção da mesma que continuou comerciando escravos e mercadorias entre o Maranhão e a África pelo menos por mais 10 anos. A maior relevância dada pelas autoridades do Maranhão em relação à chegada de embarcações de outras regiões podem se justificar pela exiguidade dos registros enviados para Lisboa que pelo seu caráter oficial ressaltavam, apesar do contrabando, a importância da Companhia.

Neste ano de 1778 chegaram ao porto do Maranhão, vindos de outros portos brasílicos 10 embarcações nas quais desembarcaram 1108 escravos. Vejamos a tabela:

7 Requerimento do governador da capitania do Maranhão, Clemente Pereira de Azeredo Coutinho de Melo, referente a diversas representações: o comércio pela Companhia Geral do Comércio do Grão Pará e Maranhão; o privilégio do comércio exclusivo à dita companhia; e que os índios da capitania do Maranhão não sejam levados para outras capitanias. Arquivo Histórico Ultramarino Lisboa (Projeto Resgate). Capitania do Maranhão, Caixa 46, Documento 4526. 8 CARREIRA, António. As Companhias Pombalinas de Grão-Pará e Maranhão…, p. 63.

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Tabela 1: Desembarque de escravos no Maranhão em 1778 de diversos portos

Chegada Origem Tipo Escravos

7/fev Bissau Corveta 162

10/fev Pernambuco Sumaca 27

21/mar Rio Grande Sumaca 5

10/abr Pernambuco Sumaca 32

4/mai Bahia Sumaca 92

31/mai Bahia Sumaca 51

12/jun Pernambuco Sumaca 40

20/jun Bahia Corveta 34

17/ago Bahia Sumaca 110

30/ago Cacheu Corveta 125

9/out Rio de Janeiro Navio 118

24/out Parnahiba Sumaca 24

17/nov Bissau Corveta 99

Sem data Bissau Corveta 184

Sem data Cabo Verde Sem 5

Total 1108 Fonte: AHU-Lisboa Caixa 54, Doc. 5124.

Observando o quadro acima podemos enfatizar em relação ao tráfico interno: 4

embarcações da Bahia, 3 de Pernambuco, 1 do Rio de Janeiro, 1 da Parnaiba e uma do Rio Grande. Cabe evidenciar que o comércio escravo estabelecido, particularmente em relação ao tráfico interno, é realizado predominantemente por pequenas embarcações, comumente as sumacas. Tomando isto por uma lógica seria previsível pensar que a quantidade de escravos desembarcados via esta modalidade também seria pequena se comparada ao tráfico intercontinental. Uma maior quantidade de escravos vindos diretamente da África pressupõe um comércio ávido pela mão de obra negra e que a lucratividade fosse proporcional a quantidade de escravos desembarcados. Seguindo essa lógica, como analisar as viagens tanto do comércio interno que do atlântico com um

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número muito reduzido de escravos entregues – como os dois exemplos, entre muitos outros, da tabela 1?

Existem várias hipóteses: Em primeiro lugar, havia a possibilidade de um determinado capitão/mestre

aproveitar a viagem desembarcando escravos em outros portos que comumente não receberiam esta embarcação. Em segundo lugar, e de forma complementar a argumentação anterior, pode-se supor esse modo de tráfico, de pequeno porte, estaria principalmente ligado a prática do comércio de gêneros, criando ou aproveitando redes e malhas comerciais. Assim, a corveta senhora da Victória, por exemplo, vinda da Bahia em 20 de junho trazia, além de 34 escravos, “fazendas fabricadas fora do reino e comestíveis”, para um valor total de 17, 959$389 réis, contando os escravos apenas por 2.700 réis. 9

Qualificamos de tráfico interno o movimento de embarcações oriundas de portos da costa brasílica, principalmente de Pernambuco e da Bahia que, em pequenos números e, por vezes, em carregações significativas, introduziram no Maranhão escravos cuja origem é até agora impossível saber. Os dados indicam que alguns desses navios chegavam de África, faziam escala num dos ditos portos, deixando nestes uma parte da carregação e seguiam em direitura a São Luís. Outros, em viagens aparentemente diretas da costa à Amazônia, traziam poucos escravos provavelmente ladinos, o que provocou reações por parte das autoridades que receavam que fossem vendidos como “refugos”, ou seja, de péssima qualidade ou “indesejados”. Relata em ofício de 1785 o governador da capitania do Maranhão, José Teles da Silva,

Regularmente entrão neste Porto cada hum anno, três, quatro, e neste consta seis sumacas vindas da Bahia, e Pernambuco, carregadas de escravatura, que he a pior, que vem a esta Colonia (…) que os lavradores da Bahia, e Pernambuco desprezão, e não querem comprar; alem disto neste número de escravos, entrão todos aqueles maos, e velhacos, que os senhores não querem conservar, e que mandam vender nesta capitania, e na do Para, de modo, que os escravos que trazem as ditas sumacas, ou são infeccionados de doenças epidemicas, e de bexigas mal cruel, e mortifero neste clima, ou ladrões e malfeitores, que vem exortar os seus vicios, e cometer crimes os mais fortes entre os bons escravos, que vem de Cacheu, Cabo Verde, Costa da Mina, o que produz um grande danno ao bem publico, pello augmento dos malfeitores, e

9 Arquivo Histórico Ultramarino Lisboa. Projeto Resgate. Capitania do Maranhão, Caixa 54, Documento 5124.

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hum gravíssimo prejuízo aos compradores, porque ou morrem (…) ou fogem. 10

No relato acima, o governador denuncia o desembarque dos escravos acima

referenciados, considerados prejudiciais para o desenvolvimento da agricultura, o mesmo aproveita para valorizar a mão-de-obra escrava vinda dos portos da África. O que pode ser entendido, de acordo com os interesses da capitania maranhense, como uma ligação que estava se perdendo gradativamente com a Companhia do Grão Pará e Maranhão após o fim do regime de monopólio. Ainda havia um agravante: a maioria dos negócios feitos por estas embarcações eram “a dinheiro” o que, segundo a administração pública, era igualmente prejudicial, já que deixava os comerciantes sem capital para desenvolverem a agricultura.

Modalidades do tráfico de escravos

Pensar as rotas de comércio escravo é tarefa sine qua non para entendermos as suas

dinâmicas. Segundo Jean Baptiste Nardi, o tráfico bilateral entre os portos brasileiros e os africanos teria se desenvolvido devido a problemas internos e ao enfraquecimento do poder político português, dando margem para que os traficantes buscassem diretamente mão-de-obra na África.11 O que fora o caso, por exemplo, do Rio de Janeiro, devido à centralidade que os traficantes cariocas passaram a desempenhar particularmente a partir da segunda metade do século XVIII.

Pouco ou nada se falou, entretanto, de outras modalidades de tráfico. Quando nos deparamos com o tráfico interno em direção ao Maranhão percebemos que ele fazia parte de um circuito mais geral. Ele poderia se estabelecer como uma extensão do tráfico entre Lisboa-África-Brasil, nos casos que nos interessam, Pernambuco e Bahia, em particular, mas raramente Rio de Janeiro.

Analisando todas as viagens, entre os séculos XVII, XVIII e XIX, que tinham como principal região de compra de escravos na Senegâmbia, e que desembarcaram na Bahia e em Pernambuco, entre todas as viagens repertoriadas na base de dados do Trans-Atlantic Slave Trade, podemos considerar os números: para a Bahia apenas 8 (oito) viagens fizeram carregamentos na Senegâmbia, sendo que, entre estes, nenhum deles conta-se como segunda praça de desembarque o Maranhão, o que não invalida completamente a hipótese de uma possível descarga no dito. Já em relação a Pernambuco, seguindo a mesma lógica, evidenciamos que a Galera Minerva que teve como principal área de compra de escravos Bissau desembarcou cativos nos portos do Rio Grande do Norte e

10 Arquivo Histórico Ultramarino Lisboa. Projeto Resgate. Capitania do Maranhão, Caixa 66, Documento 5832. 11 NARDI, Jen-Baptiste. Sistema Colonial e Tráfico Negreiro. Campinas: Pontes, 2002, p. 28-29.

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Bahia, antes de desembarcar em Pernambuco e seguir em direção ao Maranhão para desembarcar 13 escravos em 1793.12

Uma vez que a Senegâmbia, está fora das rotas tradicionais de Pernambuco e Bahia, acreditamos na possibilidade que viagens inicialmente não repertoriadas para o Maranhão, vindas do Golfo da Guiné ou de Angola deixaram, em seguida, uma parte da carregação de escravos em São Luís. 13

Gráfico 1: desembarques de africanos no porto do Maranhão

(1778-1799) via tráfico Atlântico e interno 14

Fontes: Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) - Lisboa sobre a capitania do Maranhão: Cx 54, Doc. 5124 – Cx. 55, Doc. 5166 – Cx. 56, Doc. 5263 – Cx. 59, Doc. 5432 – Cx. 61, Doc. 5562 – Cx. 64, Doc. 5730 – Cx. 67, Doc. 5840 – Cx. 68, Doc. 5938 e 5941 – Cx. 70, Doc. 6112 e 6115 – Cx. 73, Doc. 6288 e 6292 – Cx. 75, Doc. 6429 – Cx. 77, Doc. 6567 – Cx. 79, Doc. 6718 – Cx. 81, Doc. 6868 – Cx. 84, Doc. 7042 – Cx. 86, Doc. 7178 – Cx. 89, Doc. 7404 – Cx. 93, Doc. 7680 – Cx. 97, Doc. 7887 – Cx. 134, Doc. 9860; SENADO DA CÂMARA. Livro do Termo de visita (LTV) (1777-1800); Transatlantic Slave Trade. Base de dados on-line – fichas de dados por ano (1778-1800).

No gráfico 1 percebem-se dois momentos que devem ser analisados: primeiro o

período de 1778 a 1782, nesse o tráfico intercontinental aparece em um movimento

12 Disponível em <www.slaveryvoyage.org> viagem nº 47738. 13 Pesquisa em curso. 14 A partir do AHU-Lisboa sobre o Maranhão foi possível destacar nos mapas de importação de escravatura os números de escravos desembarcados tanto de portos africanos como de brasílicos. Cruzamos estes dados com os referentes à base de dados on line do slavery voyage (que somente trata dos dados do tráfico intercontinental) optando, quando surgiram diferenças aqueles números do Arquivo Ultramarino. Cotejamos ainda os dados e números com o termo de visita de saúde do Maranhão. Nesses últimos surgiu outro problema, a data a ser escolhida. A solução encontrada foi considerar sempre a mais antiga, uma vez que acreditamos ser mais próximo do real e menos manipulável por parte dos que registravam a entrada das embarcações.

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contrário ao tráfico interno, o que pode ser analisado como uma compensação do tráfico costeiro dos escravos devido a não satisfação deles pela Companhia Geral. Enquanto o interno cresce até 1785 o atlântico não para de cair entre 1782 e 1785. O ponto importante é porque 1786 marca o momento do declínio para o atlântico. A baixa no comércio interno e africano parece correlativa: provavelmente quando o comércio africano passava por dificuldade, por conseguinte, não havia necessidade de exportação da mão-de-obra para outros portos.

Temos que sublinhar que os dados representados no gráfico acima podem, pelo seu caráter não conclusivo, refletir uma falha importante no conjunto das fontes. Assim, analisando o códice do livro do termo de visita de saúde da capitania do Maranhão, entre 1777-1806, único hoje conhecido, conseguimos resgatar 55 viagens internas, bem como 32 registros do tráfico com a África, sem contar os registros ilegíveis. Não é descabido lembrar que havia um comércio de escravos, antes de 1777, e posteriores a 1806. Se, em alguns casos, não foi sempre possível, ler ou decifrar o número de escravos, o total de viagens resgatadas, em um período de 25 anos, evidencia o quanto o tráfico para o Maranhão e, de modo geral para o norte, foi subestimado. Fato interessante na medida de que temos igualmente que considerar tanto os portos africanos do tráfico, mas também o(s) movimento(s) dos portos de Pernambuco e Bahia.

Entre as embarcações registradas no Termo de visita, entre 1788 e 1805, 19 embarcações fizeram escala em Pernambuco.15 A importância desta escala pode ser verificada em ofício do governador de Pernambuco, D. Tomás José de Melo, em 1788, sobre as providências dadas em relação aos navios que transportam escravos da África para o Maranhão e o Pará e que usualmente fazem escala em Recife.16 Será que Pernambuco teria tido uma função de pólo redistribuidor de africanos, sobretudo da região congo-angolana, para a Amazônia, semelhante a do Rio de Janeiro para a região sul e sudeste, no final do século XVIII e início do século XIX?17 Nesse ponto, ressalte-se que é possível que tenha havido um deslocamento das rotas escravistas de Pernambuco para outras áreas, no caso a Amazônia, percebendo a possibilidade de manutenção do comércio, uma vez que no sudeste havia a concorrência com os fluminenses.

Chama a atenção à duração das viagens de embarcações que faziam parada em Recife. Em 5 de dezembro de 1802, desembarcou em Pernambuco vinda de Benguela a Galera Bella Elizia, capitaneada por Antônio José Correia, com 28 dias de

15 Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM). SENADO DA CÂMARA. Livro do Termo de Visita (LTV). (1777-1806). 16 AHU, Cx. 162, Doc. 11627. 17 Cf. FLORENTINO, Manolo & al. Aspectos comparativos do tráfico de africanos para o Brasil (séculos XVIII e XIX). Afro-Ásia, n. 31, p. 90, 2004.

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viagem. Marcus Carvalho chegou a números próximos a este para a década de 20 do século XIX, segundo o autor:

Aqueles navios, vindos da costa de Angola e Congo, levaram em média 28,1 dias para chegar ao Recife. O que mais demorou, levou 68 dias, vindo de Molembo. O mais rápido, fez a viagem em 20 dias apenas. A moda foi 26 dias, com 5 embarcações. Pode-se dizer com relativa segurança, portanto, que na segunda metade dos anos 1820, a travessia do sudoeste da África para Pernambuco era feita em menos de trinta dias, o que explica a baixa taxa de mortalidade dessa amostra, que gira em torno de 3,65 por cento do total de cativos desembarcados.18

Mas, por mais que a viagem para Pernambuco fosse considerada a mais rápida

entre os outros portos que receberiam escravos da África Centro Ocidental, nada se compara ao tempo de deslocamento de Pernambuco para o Maranhão. A galera acima citada não demorou mais de 8 dias para chegar ao porto de São Luis, concluindo a viagem no total de 36 dias.19 Essa agilidade se justifica pelas correntes de vento em determinadas épocas do ano. 20

Diante disso, a probabilidade que este comércio interno fosse feito via marítima, pelo menos na maior parte do percurso, era grande. Entre os registros de passaporte do Maranhão o modo de viagem, daqueles que vinham de Pernambuco, a “marítima” corresponde a 33 registros, sendo em número de 10 as viagens realizadas por “mar e terra”. Estes números equiparáveis somente as entradas do Pará que correspondem a viagem por “mar” e por “mar e terra”, 39 e 8, respectivamente.21

O papel dos negociantes após o fim da Companhia Pombalina

A Companhia possuía uma frota composta por naus de guerra, mercantes,

galeras, corvetas, bergantins, lanchas, chalupas, escunas e lambotes. Nos setores que compreendiam Bissau, Cacheu e Angola, o comércio centrava-se no tráfico de

18 CARVALHO, 2002, p. 117-118 19 Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM). SENADO DA CÂMARA. Livro do Termo de Visita (LTV). (1777-1806), folha 131 verso. 20 Para se ter um parâmetro de outros portos à barlavento, uma viagem da Bahia para o Maranhão durou a mais veloz 18 e a mais lenta 207 dias. 21 A contabilidade destes números corresponde ao período de 1786 a 1793. Livro de registro de passaporte. Maranhão. Acervo da Secretaria de Governo do Maranhão (APEM), nº 39. Reinaldo dos Santos Barroso Junior utilizando-se desses dados atribuiu para o trânsito entre as capitanias um papel significativo às correntes marítimas. Cf. BARROSO JÙNIOR. Nas rotas do atlântico equatorial…, p. 54-58.

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escravos. Os produtos manufaturados por Portugal serviam para a compra de cativos. Cabo verde, além de escravos exportava grande quantidade de urzela e na tecelagem de panos da terra.22 O então Estado do Grão Pará e Maranhão, o qual se desmembraria em duas capitanias a partir de 1772, importava tecidos, louças e gêneros alimentícios. As exportações consistiam em algodão, arroz, drogas do sertão e outros.

A morte de D. José colocara fim ao consulado do marquês de Pombal e, uma vez que este estava afastado do poder, as Companhias de comércio instituídas por ele entraram em declínio. Por decreto de 5 de Janeiro de 1778, a Rainha D. Maria I, após consulta ao Conselho de Fazenda, deu por “findo o privilégio exclusivo de comércio e navegação dos vinte anos da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, que de fato já havia terminado em 1776”, escreve Cunha Saraiva.23

Com o fim do monopólio comercial uma das consequências foi a consolidação das posses de negociantes que passaram a ocupar o espaço deixado pela companhia; um mercado frutífero, especialmente em relação ao Maranhão, devido a consolidação da agricultura em torno do arroz e do algodão. José Luiz Peinado Alonso apontou que após o fim do monopólio houve a necessidade de se manterem os vínculos com as rotas comerciais do Atlântico, onde teria papel fundamental os comerciantes implicados no tráfico de escravos levando a diante uma política de expansão econômica que se vinculasse as rotas comerciais portuguesas.24 A necessidade por escravos continuava imperiosa para o desenvolvimento do Pará e do Maranhão.

Percorrendo rapidamente a trajetória de um comerciante abastado da Praça do Maranhão evidenciamos a importância que possivelmente tiveram alguns comerciantes no comércio negreiro.

Em relação à capitania maranhense destaca-se a figura de João Belfort, um dos últimos filhos do segundo casamento de Lourenço Belfort. Este último abastado comerciante irlandês que se estabeleceu no início do século XVIII no Antigo Estado do Grão Pará e Maranhão se tornando um dos maiores proprietários de terras da região da ribeira do Itapecuru, além de ter ocupado diversos cargos, como o de oficial de milícias.25 O patrimônio da família se multiplicou depois de suas iniciativas, muitos de seus descendentes tornaram-se grandes proprietários rurais e urbanos no 22 CARREIRA, António. As Companhias Pombalinas de Grão-Pará e Maranhão…, p. 20. 23 CUNHA SARAIVA, 1938 Apud CARREIRA, António. As Companhias Pombalinas de Grão-Pará e Maranhão…, p. 39. 24 RUIZ-PEINADO ALONSO, José Luis. La “escravatura necessária para a cultura”…, p. 23. 25 Em 1774 fora feito por José Machado de Miranda um requerimento ao rei D. José, a solicitar ordem para punir Lourenço Belfort por este possuir mais terras de sesmarias do que as previstas em leis e ordens. Arquivo Histórico Ultramarino Lisboa. Projeto Resgate. Capitania do Maranhão, Cx. 47, Doc. 4606.

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final do século XVIII e início do XIX.26 Este fora o caso de João Belfort, que recebera do pai por herança parte das terras no distrito chamado Kelru na Ribeira do Itapecuru, sendo que esta mesma propriedade apareceu, em 1814, como parte do espólio do mesmo. Kelru era um complexo “agro-industrial” dividido em várias unidades. Nesta estrutura João Belfort possuía 130 escravos, que tinha, junto com a sua esposa Ana Isabel Lamagnère, em torno de duzentos e dez indivíduos ao todo.27

Mas além de dono de uma grande leva de escravos, João Belfort participou ativamente do tráfico. Em 1782, o proprietário de terras consignou 10 escravos vindos de Pernambuco na embarcação Piedade, cujos escravos foram desembarcados no dia 27 de Agosto em São Luis;28 no ano subsequente, 1783, ele aparece como proprietário e capitão da sumaca Nossa Senhora das Maravilhas vinda da África de um lugar não identificado com 50 escravos desembarcados.29

Os capitães de negreiros, muitas vezes tiveram importância vital para a consecução dos negócios acabando por aventurarem-se no patrocínio de expedições. Os capitães eram os mais importantes elos com os comerciantes africanos.30 Fora recorrente no caso das viagens para o Maranhão o fato das cargas estarem consignadas ao próprio mestre das embarcações. Alguns chegaram inclusive a se especializar em modalidades do tráfico, outros, entretanto, fizeram apenas uma viagem depois disso sumiram dos registros.

Apesar disso, a partir do cruzamento da documentação, conseguimos rastrear, na Amazônia, alguns capitães que traficaram tanto no comércio negreiro “via África”, quanto no comércio interno. Em geral, em embarcações pequenas, esses capitães cruzaram o atlântico em busca de novos mercados, os navios praticaram à rota da Senegâmbia para o Maranhão por esta ser a menor entre todas as outras viagens transatlânticas.31

Em 8 de outubro de 1780, o capitão Felix António de Pontes desembarcou no Maranhão vindo da Bahia na embarcação senhora dos Prazeres e Providência com

26 Cf. MOTA, Antonia da Silva. A dinâmica colonial portuguesa e as redes de poder na Capitania do Maranhão. Recife: Tese de Doutorado, Universidade Federal de Pernambuco, 2007, p. 26. 27 Ibidem, p. 61-62. 28 AHU Lisboa, Cx. 59, Doc. 5432. 29 No Grão Pará o coronel Ambrósio Henriques aparece em um dos mapas de escravatura como “senhorio” de escravos vindos da Parnaíba em 1779. Como não era o objetivo tratar sobre o Grão Pará optamos por apenas indicar o registro. Arquivo Histórico Ultramarino Lisboa. Projeto Resgate. Capitania do Pará, Cx. 84, Doc. 6905 e 6921. Disponível em: www slaveryvoyage.org – viagem nº 47222 e AHU Lisboa, Cx 61, Doc. 5567 30 FLORENTINO, Manolo & al. Aspectos comparativos do tráfico de africanos para o Brasil…, p. 103. 31 Cf. ELTIS & al., 2000, p. 37-38.

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21 dias de viagem.32 Em um curto espaço de tempo, a mesma embarcação voltou a remeter escravos via tráfico atlântico, em 1783.33

Ainda mais evidente parece ser o caso da corveta Correio de Angola, cujo capitão era Manoel Francisco Flamante, esta desembarcou na capital maranhense em fevereiro de 1793, vinda de Benguela.34 Em pouco mais de um mês depois a corveta já estava desembarcando novamente em São Luís, vinda de Pernambuco 35, com um detalhe, a embarcação voltou a fundear em São Luís em 1795, onde fez escala em direitura ao Pará vinda de Luanda.

Conclusão

Revisitar a memória histórica em relação ao tráfico interno de escravos e a

consolidação dos negócios de comerciantes no Maranhão após o final da Companhia Pombalina é um exercício necessário para que se possa compreender a importância dos portos costeiros que abasteceram o Maranhão com cerca de 10000 escravos até 1800. Além disso, torna-se imperativo (re) colocar a Amazônia como um pólo atrativo de a mão-de-obra escrava no último quartel do século XVIII e, assim, cada vez mais pensá-la com um dinamismo próprio, mas ao mesmo tempo conectada a realidade atlântica e brasílica.

32 Nesta embarcação desembarcaram além 43 escravos, açúcar e viradores de piaçaba. Arquivo Histórico Ultramarino Lisboa. Projeto Resgate. Capitania do Maranhão, Caixa 56, Documento 5263. 33 Em pouco mais de 2 anos, a embarcação chegou ao Maranhão, foi a África (antes provavelmente passou por Portugal) e voltou para São Luís. Caso a rota fosse longa dificilmente poderíamos constatar o trânsito tão rápido da embarcação. Disponível em <www slaveryvoyage.org> – viagem nº 40824 e AHU Lisboa, Cx 61, Doc. 5562 34 Disponível em <www.slaveryvoyage.org> viagem nº 46803 35 Arquivo Histórico Ultramarino Lisboa (Projeto Resgate). Capitania do Maranhão, Cx. 84, Doc. 7042.

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Diálogos atlânticos: mulheres escravizadas na São Paulo colonial (século XVIII)

Fabiana Schleumer1

Nos últimos anos, os estudos a respeito da escravidão negra no Brasil têm passado por uma série de questionamentos sobre as fontes, as temáticas e os modos de feitura desta história. A partir das décadas de 1950 e 1960 foram produzidos inúmeros trabalhos com o intuito de discutir o modelo de escravidão até então vigente, em outras palavras, a perspectiva proposta por Gilberto Freyre. Os novos questionamentos, assim como as novas proposições se mantiveram presentes nas décadas seguintes, fornecendo aos estudos sobre a escravidão brasileira novas dimensões que vão desde a incorporação de dados quantitativos à africanização da escravidão.

Apesar dos avanços e das mudanças na escrita da história da escravidão, o papel das mulheres escravizadas no bojo da sociedade colonial recebeu poucas atenções. É preciso, conforme afirmou Michelle Perrot (2006), (re) escrever a história das mulheres para que elas saiam do silêncio e da confinação.

No Brasil, uma das primeiras iniciativas neste sentido foi elaborada pela historiadora Sônia Maria Giacomini (1988). Em Ser escrava no Brasil, a autora se propôs a “pensar o papel social e as condições de vida da mulher escrava a partir de sua dupla identidade: escrava e mulher”.2 Por meio dos jornais cariocas do século XIX, procurou-se compreender os lugares femininos e a sua condição: as mães-pretas, a mulher escrava como objeto de desejo e a relação entre senhoras e escravas.

Maria Lúcia de Barros Mott (1991) no livro – Submissão e resistência: a luta da mulher contra a escravidão, também traz uma contribuição assaz importante: a reflexão sobre a participação da mulher no cotidiano da escravidão, em suma, uma escravidão no feminino, onde se destacam mulheres quilombolas e guerreiras, literatas e abolicionistas.

Em Caetana diz não, a historiadora norte-americana Sandra Lauderdale Graham ( 2005) edifica mais um passo significativo nesta direção, trazendo a público uma história das mulheres – escravas e senhoras – na sociedade escravista brasileira.

Em 2003, com a implementação da lei 10.639, novas demandas sociais e raciais são incorporadas ao fazer histórico. Questões pertinentes não só aos negros, mas também as negras ganham relevância no cenário nacional. Neste sentido, a contribuição do livro organizado pela historiadora Mariza de Carvalho merece destaque.

Em Rotas atlânticas da diáspora africana: da Baía do Benim ao Rio de Janeiro, coletânea de artigos, (2007), dois textos contemplam a condição feminina. Em Damas

1 Professora de História da África na Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP. 2 GIACOMINI, Sonia Maria. Ser escrava no Brasil. Estudos Afro-asiáticos, n° 15, 1988.

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mercadoras: as pretas minas no Rio de Janeiro (século XVIII-1850) de Sheila de Castro Faria, se discute às questões étnicas, às alforria e as atividades femininas, percebendo assim a predominância na aquisição de mulheres escravas por parte das pretas minas. Em outro artigo da mesma coletânea – Negras minas no Rio de Janeiro: Gênero, nação e trabalho urbano no século XIX - de Carlos Eugênio Líbano Soares e Flávio dos Santos Gomes, as mulheres quitandeiras da Costa da Mina, comerciantes no Rio de Janeiro oitocentista ocupam a cena. Os autores fizeram uso das fontes policiais, dos anúncios de fuga, percebendo novas questões relativas à etnicidade e ao mercado de trabalho.

Em trabalho posterior, Flávio dos Santos Gomes e Marcelo Paixão (2008) - História das diferenças e das desigualdades revisitadas: notas sobre gênero, escravidão, raça e pós-emancipação - apresentam um estudo sobre a condição da mulher negra na escravidão, na pós-emancipação e no mercado de trabalho contemporâneo. Segundo estes autores,

Há silêncios na historiografia de ontem e de hoje sobre o papel das relações de gênero e raça no passado escravista, entre a imagem das mucamas e a suposta permissividade sexual (…) Embora os estudos sobre gênero tenham ampliado horizontes e eixos teóricos-metodológicos, ainda pouco conhecemos a respeito das conexões históricas entre raça e gênero.

Em oposição ao Caribe e aos Estados Unidos, no Brasil são escassos os estudos

sobre as sociabilidades e o cotidiano das escravas, bem como a análise dos modos de vida das mulheres africanas no período pré-colonial e no contexto das transações transatlânticas. Sabe-se, no entanto, que “tanto nas sociedades africanas como na diáspora, as mulheres negras foram conhecidas por sua força e poder espiritual”3 Além disso, destacam-se os trabalhos que discutem, tanto na diáspora africana quanto nos dias atuais, a participação feminina no mundo do trabalho e no bojo da família.4

Recentemente, o livro da historiadora Solange Pereira da Rocha – Gente negra na Paraíba oitocentista: população, família e parentesco espiritual (2009), abrange a condição feminina no âmbito da família. Com enfoque na Paraíba, a autora demonstra as fortes relações familiares tecidas pelas mulheres escravas e libertas. Na história de Juliana, destaca o empenho de uma mulher escrava para compra de sua alforria. Símbolo da trajetória de muitas outras mulheres que escravizadas procuraram alternativas, caminhos para a libertação do cativeiro. 3 PAIXÃO, Marcelo & GOMES, Flávio. Histórias das diferenças e das desigualdades revisitadas: notas sobre gênero, escravidão, raça e pós-emancipação. Estudos Feministas, Florianópolis, vol. 16, n. 3, p. 950, setembro-dezembro 2008. 4 Sobre este assunto destacam-se os estudos desenvolvidos por Mary Del Priore (1989, 1995) e Maria Odila Leite da Silva Dias (1984).

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Evidentemente este texto não comporta e tão pouco objetiva o arrolamento exaustivo de todos os trabalhos que, de uma forma ou de outra, permeiam a questão. Porém, alia-se aos estudos que apontam a necessidade de se revisitar questões como história das mulheres e escravidão na diáspora e em África.5

Este texto procura contribuir com o debate sobre a condição feminina, o mundo da escravidão e a diáspora, trazendo como ponto de partida, o espaço de sociabilidade e as relações de poder relacionadas às mulheres escravizadas no cotidiano da escravidão em São Paulo colonial. Objetivamos com este texto pensar a condição feminina, possibilitando à compreensão das mulheres como agentes de tramas e situações.

A partir da análise da história de duas escravas - Joana e Isabel - pensamos a condição feminina no âmbito da antropologia africanista e da religiosidade como forma de identidade cultural na diáspora africana. Para isso, este texto foi dividido em duas partes. Na primeira, traçamos algumas considerações sobre as mulheres em África e na diáspora africana. Na segunda, analisamos os desdobramentos da participação da mulher, seu espaço de resistência e sociabilidade tendo como foco a cidade de São Paulo na segunda metade do século XVIII.

Mulheres escravizadas : das Áfricas à diáspora africana

Em Antropo-Lógicas, Georges Balandier (1976) questiona se a divisão dos sexos

afeta o sistema social e a cultura em seu conjunto. Também indaga como se exprime o dualismo sexualizado e como a oposição e a complementaridade dos sexos são, simultaneamente, geradoras de ordem e de desordem social.

A maior parte das narrativas mitológicas africanas concede um lugar privilegiado às relações entre homens e mulheres. Trata-se de relações que se apresentam em três planos distintos, isto é, nas narrações referentes à criação do mundo, nos modelos de interpretação e na constituição dos indivíduos. A relação entre os sexos apresenta-se como a fundadora da ordem, fonte da fecundidade e também a geradora da desordem e da morte. Entre os dogon do Mali e entre os bambara localiza-se essa concepção dual do mundo, um dualismo sexualizado e ambíguo.

Entre os mitos bambara, um se refere ao casal inicial responsável por uma parte da criação do universo. O elemento macho designa-se Pemba e o fêmeo Muso Koroni; o primeiro é o “portador” de sementes e conhecimentos, e o segundo é o “depositário” das mesmas. As relações que os unem levam ao fracasso, pois o elemento fêmeo rompe a união, recusando-se a cooperar na criação, vaga pelo universo causando a desordem, o mal, a desgraça e a morte. Enfim, é a oposição

5 Cabe-nos destacar os trabalhos desenvolvidos por Campbell, Gwyn, Miers, Suzanne, Miller, Joseph. Woman and Slavery (2008), Rebecca Scott (2005), Frederick Cooper, Thomas C. Holt e Rebecca Scott (2000).

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entre os dois elementos de sexos diferentes, seus desacordos, que são a fonte de todas as desordens cósmicas.

Neste contexto, surge uma terceira entidade, denominada Faro, um andrógino que possui a essência feminina e masculina. É por meio de sua obra que a criação do universo se completa. O caos do universo chega ao fim, instaura-se a ordem humana, os instrumentos da civilização e do progresso material. Em Faro verifica-se a união das diferenças.

A narração do mito bambara é ambígua e negativa. Por um lado, afirma-se que a ação criadora necessita do princípio feminino e masculino para se realizar; de outro, representa a força feminina relacionada ao movimento do caos. O princípio feminino se relaciona à noite, à feitiçaria. Enfim, à imagem da rebelião e da desordem.

A interpretação bambara alinha-se a muitas outras. O seu último aspecto, relacionado à depreciação da feminilidade, pode ser encontrado entre os malinkes , a maioria dos povos do Sudão ocidental. Entre os fon, do Daomei, a mitologia de criação do universo não apresenta uma versão única e completa, mas uma série de controvérsias sucessivas.

Na origem, tem-se uma entidade andrógina Nana Bulunku, que simbolizava o início, geradora de Mawu-Lisa, Mawu, o elemento fêmeo, e Lisa, o princípio macho, às vezes são definidos como gêmeos, outras como uma pessoa com duas faces. Mas, em qualquer interpretação, é evidente que a união entre ambos é a base da organização do universo e da sociedade. Eles representam uma união tensa, associam-se a símbolos contrários e, por isso, unidos. Mawu, a lua, e Lisa, o sol. O primeiro, a noite, e o segundo, dia; o primeiro, o frio e o segundo, o calor; o primeiro, à direta e o segundo, à esquerda; o primeiro, a fertilidade e o segundo, o poder; o primeiro, a maternidade e o segundo, a guerra.

O casal por si só não foi capaz de completar a formação do universo, por isso houve a intervenção de uma terceira força, Dã, identificada como a ordem vivente, o signo da prosperidade, o movimento que gera a ordem primordial. Comumente, é representado por uma figura andrógina.

Os elementos femininos estão em oposição aos masculinos. A mulher não está associada aos seus antepassados, mas à magia, à feitiçaria. A antiga feitiçaria era uma representação essencialmente feminina, transmitida de mãe para filha e considerada anti-social. A mulher fica estratificada, relacionada aos estranhos, dentro de seu próprio grupo.

O estudo da São Paulo colonial também apresenta situações de dita “feitiçaria”, onde duas mulheres escravas, uma africana e outra crioula são acusadas de roubar a saúde e matar seus senhores. Compreendamos a especificidade da situação:

Joana e Isabel eram duas cativas que viviam nos arredores de São Paulo. A primeira, uma escrava crioula, e a segunda, uma africana do Congo. As pretas

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pertenciam a Bento de Castro Carneiro e foram denunciadas no ano de 1759 por práticas de malefícios.6

De acordo com o processo, as rés manuseavam panelas, raízes, ossos e outras “imundícies”, por isso foram acusadas de prejudicar a vida e roubar a saúde de Teodósia da Silva Borges e seus filhos Bento Mariano de Castro, Joseph Foles de Castro, Ana Teresa de Castro e Teresa, uma carijó.

Nos autos, localizamos o depoimento de Manoel da Silva Borges, 34, viúvo de Ana Tereza de Castro, uma das filhas do senhor das denunciadas, morador na vila de Santos havia sete anos, onde vivia de suas agências.

Manoel relatou que havia discórdias entre os escravos pertencentes ao seu sogro, Bento Castro Carneiro e, por este motivo, um deles havia contado a uma das filhas de Bento (cujo nome não se encontra especificado) que Joana era feiticeira e com seus feitiços havia matado seus senhores.

Com a notícia, a denunciada foi capturada e forçada a confessar o mal que tinha feito. Sendo assim, declarou a preta Joana que, com o intuito de amansar e matar Teodósia da Silva Borges, Marianno de Castro, Joseph Foles de Castro e Ana Tereza, mulher da testemunha, juntamente com Isabel, de nação Congo, enterrou algumas panelas no sítio de seu senhor.

Na presença de Manoel da Silva Borges, do capitão João Teixeira de Carvalho, do tenente Manoel da Silva e de Torquato Teixeira de Carvalho, as ditas pretas mostraram cinco panelas, repletas de ossos, cabelos, raízes e folhas.

Isabel, a negra da nação Congo, também confessou aos presentes que havia tirado a vida de Teresa, uma carijó, por esta ter lhe roubado um galo. Disse, ainda, que além das pessoas já declaradas, havia prejudicado a muitas outras, na vida e na saúde.

Segundo o Tenente Manoel da Silva, 39, casado, morador na vila, natural da Freguesia de São Pedro, Joana teria dito que havia enterrado um cachorrinho, embrulhado em uma faixa da camisa do dito Manoel da Silva Borges. Porém, ao procurar pelo cachorro, os homens nada encontraram, localizando somente as panelas repletas de raízes, ossos, cabelos e folhas.

Em oposição, o capitão João Teixeira de Carvalho, 36, solteiro, natural e morador da vila, que vivia de seus soldos, sobrinho “por afinidade” do senhor das denunciadas, declarou que sabia, por “ouvir dizer” de Manoel da Silva Borges, que no caminho do porto para a casa havia uma panela com raízes, ossos, folhas e arroz com casca.

No interior do sítio, as raízes haviam sido enterradas na entrada da porta do quarto pelo lado de fora, onde a escrava costumava assistir, havendo, ainda, um cachimbo, cheio de raízes. A testemunha disse ainda que viu a escrava Joana confessar que, no alpendre da casa do sítio, havia enterrado o cachorrinho nascido

6 Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo. Processos - Crimes – Feitiçaria – Joanna, Santos, 1759.

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de dois dias, com o rabo cortado, com o objetivo de amofinar a Manoel da Silva Borges.

Até esse momento, todas as testemunhas do processo acusavam de forma contundente a escrava Joana, porém, a partir do depoimento de Bento Carneiro, percebemos uma mudança no rumo das acusações. A deposição de Bento de Castro Carneiro, 62, viúvo de Teodósia da Silva Borges, redimensiona a participação da escrava Isabel nesse processo.

Bento Carneiro afirmou que soube por “ouvir dizer” de um escravo que Isabel, estando no sítio da Guarapa com a sra. Teodósia da Silva Borges, ofereceu a esta um pombo assado que continha malefícios. A ingestão do pombo roubou a saúde da mulher, levando-a à morte, assim como a seu filho, Bento Mariano de Castro.

Este último foi ao Rio de Janeiro em busca de tratamento médico, o que de nada adiantou, vindo o rapaz a falecer em pouco tempo. De forma similar também falecera outro filho de Teodósia, Joseph Felis de Castro, apresentando os mesmos sintomas da mãe e dos irmãos. Um escravo em particular denunciou Isabel, afirmando que a mesma havia colocado feitiço em um peixe chamado Ambares.

A cativa Isabel também foi acusada pela morte da carijó Tereza. O motivo do crime foi o fato de Isabel desconfiar que Tereza havia matado seu galo. Diante deste fato, Isabel, escrava de origem Congo, teria dito, para todos os que quisessem ouvir, que “seu galo havia de parir galos”. A partir daí, Tereza, a carijó, foi definhando. Seus amigos procuraram a ajuda dos remédios humanos e para isso se serviram dos conhecimentos de um preto chamado João da Silva, que lhe preparou uns cozimentos de vinho com várias ervas. O resultado foi que, na frente de todos, a carijó começou a lançar várias coisas, todas amarradas, entre elas, um embrulho de uma pena grande, que parecia ser de galo.

Neste sentido, é válido lembrar que segundo Laura de Mello e Souza, vomitar, assim como chupar, defecar e desenterrar eram procedimentos que tinham como objetivo expulsar as energias negativas, causadoras de doenças e desgraças.7

Após as acusações, as escravas Joana e Isabel foram presas e sofreram castigos físicos para que dessem maiores detalhes sobre suas “feitiçarias.” Afirmaram que Ana foi morta por causa de um feitiço colocado em um mingau de camarões do Rio. Mesmo assim, os castigos continuaram, sendo as escravas obrigadas a conduzir os interessados aos locais onde estavam enterrados os objetos utilizados no malefício.

Elas apontaram o pé de um oratório, localizado na sala e onde se encontravam várias raízes, muitas das quais desconhecidas, tendo sido identificada somente a raiz de milhomens8, juntamente com um pedaço de gengibre e um osso pequeno.9

7 SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Cia das Letras, 1986. 8 A raiz de milhomens poderia ser encontrada no interior do sertão do Brasil, podendo ser aplicada como antídoto contra qualquer tipo de veneno. Explica-se, ainda, que caso se

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Diante desse quadro, o vigário da vila foi chamado. Ordenou que tudo que estivesse no quintal fosse queimado e as cinzas lançadas no mar. Logo após, mandaram chamar o escravo Ventura, marido da dita Isabel. Ele foi interrogado e lhe foi perguntado se sua esposa tinha em casa alguma coisa que pudesse ser considerada como feitiço. Ele respondeu que “ainda que preto não queria meter a sua alma no inferno, pois nunca vira coisa de que pudesse desconfiar”. Disse somente que haviam mandado vender a sua mulher por feitiçaria. Declarou ainda saber que ela possuía uma caixa, onde havia uma xícara e uma cinta, com um pouco de pomba. Foi pedido a Ventura que trouxesse a dita xícara, o que ele não fez, pois não teve permissão da sua esposa para tal ato.

Mesmo assim, Ventura foi trazido do sítio, juntamente com a xícara, que continha três raízes amarradas, um carvão, um pedaço de pano pequeno e cinco ou seis favas que foram todas queimadas.

A última testemunha, o reverendo Padre Faustino Xavier do Prado, vigário da vila de Santos e natural de Mogi, afirmou que um escravo do dito Bento de Castro havia entregado a ele uma bolsa de couro, no interior da qual localizou um corporal, um pedaço de pedra e duas orações. Eram orações proibidas, que pareciam ser dos maridos das ditas denunciadas.

No dia seis de maio de 1759, esse processo foi encerrado e as acusadas foram consideradas culpadas. Em resumo, as cativas foram denunciadas por matar pessoas para as quais trabalhavam, fazendo uso de raízes, peças de roupas, animais de estimação e comidas, sendo consideradas, portanto, as responsáveis pela saúde perdida, pelas doenças e pela morte dos familiares dos proprietários de escravos.

A historiadora Daniela Buono Calainho, num estudo sobre feitiçaria entre negros em Portugal, constatou explicações similares. Segundo a autora, grande parte das acusações de feitiçaria tinham como mote sentimentos de ódio, vingança, enfim, desafetos cotidianos.10

tratasse de bicho peçonhento, além de ser ingerida pela via oral, deveria ser administrada topicamente. Acrescentam-se também os efeitos curativos nos casos de febre maligna, inflamações do fígado e do bofe, assim como em cólicas. Além disso, combatiam a gangrena, devendo o pó da erva ser colocado no local afetado. Funcionou como um eficiente vomitório. Recebeu o nome de mil homens justamente devido as suas múltiplas qualidades curativas, na época, consideradas de caráter universal. 9 MARQUES, Vera Regina Beltrão de. Natureza em Boiões: medicinas e boticários no Brasil setecentista. Campinas: Editora da Unicamp/Centro de Memória-Unicamp, 1999. 10 CALAINHO, Daniela. Metrópole das mandingas: religiosidade negra e inquisição portuguesa no Antigo Regime. Niterói: Tese de doutorado - Universidade Federal Fluminense, 2000.

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Leituras, desdobramentos e condição feminina A apreensão da história relatada acima,, entre outros fatores, conduz ao resgate da

presença africana em São Paulo na segunda metade do século XVIII. Afinal de contas, Isabel, uma das protagonistas do enredo, era uma preta africana originária do Congo, detentora de conhecimentos próprios, específicos, voltados para a manipulação do universo mágico.

Segundo James Sweet, para se entender as práticas religiosas do continente africano é preciso compreender os sistemas que sustentavam o nascimento das idéias. Estas variavam de grupo étnico para grupo étnico. Sua compreensão relaciona-se ao conhecimento da diversidade das cosmologias.11

Uma das questões que distinguem as cosmologias centro-africanas era o fato de acreditarem que estruturas seculares estavam intimamente relacionadas às idéias religiosas, à política, à sociedade, à economia e às ideologias culturais. Todos estes fatores seriam parte de um mesmo todo. Enfim, acreditavam que todas essas facetas da sociedade estavam fortemente ligadas à cosmologia que explicava a origem do universo, a constituição da pessoa, e as relações entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos.

Na África Central, as doenças, os infortúnios e a fraqueza física eram considerados efeitos da ação de forças espirituais negativas. Essas situações raramente eram compreendidas como ocorrências naturais da vida.

A melhor maneira de se restabelecer o equilíbrio e restaurar a harmonia perdida era recorrer aos adivinhos que identificavam a causa do mal e prescreviam o remédio mais apropriado para a cura. Uma das formas mais comuns de “intervenção médica” e prática de advinhação eram a possessão de espíritos em seres humanos. Nesse processo, o espírito, que em geral era um ancestral do médium, manifestava-se, isto é, fazia uso do corpo físico do médium, podendo, assim, se comunicar oralmente com os seres vivos.

Através desse processo, o plano físico entrava em contato com o universo invisível. Desta maneira, os “clientes” tinham a oportunidade de expressar suas angústias, seus problemas de saúde e receber assim a indicação do remédio correto para a cura dos seus males.12

O padre italiano, Luca da Caltanisseta, em viagem ao Congo, no século XVII percebeu também que os congolenses interrogavam os espíritos com intuitos variados, entre eles, saber a causa de uma morte e das doenças que os acometiam.

A história de Joana e Isabel é extremamente significativa, pois possui como mote central a acusação de prática de feitiçaria para roubar a saúde, causar a doença,

11 SWEET, James. Recreating África: culture, kinship and religion in the African Portuguese World, 1441-1770. Chapel Hill and London: The University of North Carolina Press, 2003. 12 Ibidem, p. 105-106.

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conduzindo as vítimas à morte. Isabel foi vendida por feitiçaria e era dada a praticar calundus.

Segundo o Dicionário do Brasil Colonial “Calundu é palavra de origem banto – tronco linguístico da África centro-ocidental- que, a partir do século XVII, passou a designar um conjunto muito variado de práticas religiosas africanas de diversas procedências, não raro mescladas(…). Tudo indica porém que calundu era palavra que, apesar de sua filiação banto, era utilizada pelos colonizadores para definir cerimônias africanas muito diversificadas quanto às práticas e às origens étnicas. Não parece exata a hipótese de que o calundu seria uma espécie de protocandomblé(…)”

Segundo Nuno Marques Pereira, o calundu e a escravidão foram parceiros constantes na sociedade colonial. Aliás, alguns senhores de escravos acreditavam que os batuques lhes faziam bem, era sinal de diversão, em vez de conspiração.13

Na visão dos especialistas, calundu é um vocábulo que possui mais de um sentido, apresentando mudanças relacionadas ao tempo e ao espaço. No entanto, corroboramos as assertivas de James Sweet, historiador norte americano. Segundo este autor, a maioria das cerimônias de calundu foi realizada com o objetivo de determinar a causa das doenças. Os cativos sofreram grandes baixas devido às doenças, à má nutrição e ao excesso de trabalho no Brasil; todavia, a concepção africana de saúde não acreditava em causas naturais para a degradação física, fora o avanço da idade. Manteve-se, assim, o costume de se interrogar espíritos através de médiuns para se conhecer a origem dos males, das doenças. 14

Segundo Nicolau Pares, calundu, no século XVIII, foi um termo utilizado para designar diversas atividades religiosas de origem africana. As danças e os tambores, além de fazerem parte do ritual, possuíam uma função terapêutica e oracular. O calunduzeiro era, portanto, o curador e o adivinho.

Segundo as autoridades coloniais, o calundu de Joana e Isabel, por exemplo, era para matar as pessoas, enterrando panelas, raízes, ossos e unhas. Situação similar foi estudada por Laura de Mello e Souza em Minas Gerais. Aliás, em Minas Gerais, encontramos a maior parte dos casos de calundus de que se tem notícia, conseqüência do avantajado número de vilas e arraiais, razoavelmente próximos uns dos outros, fator que facilitava a propagação das práticas mágico-religiosas. Em acréscimo, em Minas Gerais, a população escrava era numerosa e constantemente renovada pelo intenso tráfico africano. 15

13 VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 14 SWEET, J. Recreating África…, p. 145. 15 SOUZA, Laura de Mello e. Revisitando o calundu. In: GORENSTEIN, Lina; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Ensaios sobre a intolerância: inquisição, marranismo e anti-semitismo. São Paulo: Humanitas Publicações, 2002, p. 315.

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Por volta de 1756, no Curral del Rei, um escravo não identificado, pertencente a Inácio Xavier, “amancebado” com uma preta forra de nome Francisca Correia, adorava deuses de sua terra, possuindo no teto de sua casa uma panela que reverenciava e ao redor da qual fazia suas festas e calundus.16

Segundo Farris Thompson, panelas de barro eram usadas em atividades mágicas no Congo. O progenitor de um reino preparava a medicina primitiva nessas panelas colocadas sobre três pedras e o fogo. Tais panelas funcionavam como nkisi. O nkisi era qualquer objeto da arte negra atlântica, usado para atividades mágicas a fim de proteger a alma humana, afastando-a das mais diversas enfermidades. Além disso, nkisi ainda pode ser também o nome do próprio conteúdo colocado nesses objetos, como folhas e medicamentos misturados, por exemplo.17

A cultura africana do Congo esteve presente também em Cuba, no século XIX. Lá as vasilhas e trouxas minkisi (plural de nkisi) eram abundantes na região oeste. Também nos E.U.A, os afro-cubanos, principalmente os residentes em Miami e Nova Iorque, produzem minkisi, que hoje são colocados em grandes panelas de ferro.18

O Royal Museu da África Central, em Tervuren, Bélgica, tem uma coleção de panelas para minkisi, incluindo algumas cobertas de barro branco para representar o outro mundo e outras cujas superfícies são espelhos para simbolizar a água que fica entre os reinos dos vivos e o reino dos mortos. Tais vasilhames eram preenchidos com terra, pedras e conchas.

Os recipientes dos minkisi são vários: folhas, pacotes, bolsas, vasilhames de cerâmica, imagem de madeira, estatuetas, trouxas etc. Cada nkisi contém uma alma (mooyo) e medicamentos (bilongo)

Em Cuba, uma atividade mágica de procedência do Congo inclui o desenho de imagens cruciformes, feitas com giz no fundo de um tacho de ferro. Essa seria a assinatura do espírito evocado.

Outro feitiço afro-cubano pede que se desenhe uma cruz, com giz ou cinzas brancas no fundo de um tacho que devia ser virgem. Acrescenta-se na prenda um pedaço de cana, água do mar, areia, mercúrio, o corpo de um cachorro macho negro, folhas, alho etc. A ideia é que este feitiço seja o mundo inteiro em miniatura, já que são colocados no tacho as forças do cemitério, da floresta, do mar etc.

Outro ponto que merece destaque é o fato de a história das cativas ter se desenvolvido em parte no sítio, na sala e no quarto. Nestes locais os objetos foram enterrados, visando à morte dos senhores e de seus familiares.

16 Ibidem, p. 318. 17 FARRIS THOMPSON, Robert. Flash of the spirit. Nova York: Vintage Books, 1983, p. 117. 18 Ibidem, p. 121.

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Na história das escravas Joana e Isabel, a última foi acusada de matar Tereza, uma carijó. Quando Teresa começou a definhar, seus amigos procuraram os remédios humanos. De acordo com o processo, esses remédios não foram ministrados por um médico, mas sim pelo negro João da Silva que preparou um cozido de vinho e de ervas. Tal cozido fez com que a carijó lançasse pela boca uma série de coisas, entre elas, a prova do crime de Isabel, a pena de um galo.

Nesse ínterim, cabe ainda ressaltar a dimensão econômica das curas. James Sweet afirmou que muitos escravos recebiam por suas curas e que até mesmo alguns proprietários se beneficiavam desse processo. Em geral, esses cativos eram tratados de forma diferenciada. Muitos escravos se beneficiaram dos seus poderes religiosos. Eram denominados como “nganga”.

Segundo James Sweet existiam vários tipos de nganga que adivinhavam em rituais de possessão. “O nganga nzambi foi o pai dos espíritos, o especialista no tratamento de doenças, particularmente doenças previstas como forma de punição e retribuição dos espíritos dos mortos esquecidos.”

Enfim, na África central, acreditava-se que os ancestrais participavam da vida dos vivos, auxiliando sempre que preciso. Em contrapartida, eles (os ancestrais) exigiam comidas, festas e esperavam ser consultados nas importantes decisões familiares. Quando isso não acontecia, eles traziam a doença como forma de punição. 19

Tanto em África quanto na diáspora africana, o domínio do sobrenatural, do mágico e das curas relaciona-se à condição feminina. Nestes contextos, as mulheres aparecem como guardiãs dos segredos, das práticas e dos rituais. Em suma, na diáspora, as práticas mágicas representam a não só uma faceta do cotidiano, mas também um espaço de sociabilidade e resistência permanentemente cerceado por aparelhos repressivos colonizadores.

19 SWEET, J. Recreating África…, p. 104-105.

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Aspectos sobre Escravidão e Famílias de Cor no Recife Colonial (Séculos XVIII-XIX)

Gian Carlo de Melo Silva1

A Família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado nem nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI o grande fator colonizador do Brasil…2

Gilberto Freyre Primeiras Palavras

Parece ser algo contraditório falar em escravos que tinham seus próprios cativos.

Em um primeiro momento seria mais lógico que ao sofrer as intempéries do cativeiro, os escravos buscassem a sua liberdade e dos seus, e não que estivessem perpetuando a relação de dominação exercida entre o senhor e escravo, tornando cativos outros iguais a ele em condição. Porém, tal situação existiu dentro do cotidiano colonial, afinal um das formas de diferenciação social era ser senhor, mesmo que dentro de um cativeiro. Tais “senhores-escravos” conseguiam alcançar um patamar diferente dos demais membros do grupo, em alguns casos vivendo uma dicotomia entre ser servo e senhor ao mesmo tempo.

No Recife colonial, - como em outras localidades marcadas pela dinâmica urbana, a exemplos de São João Del Rei e Rio de Janeiro - , foi possível encontrar casos de cativos que eram ou tinham tido como senhor outro escravo. Na freguesia de Santo Antônio do Recife, pano de fundo para os nossos estudos, as fontes nos possibilitaram pesquisar e entender um pouco de como era composto o cotidiano da localidade, marcado pela grande circulação de pessoas no seu burburinho diário. Iremos enveredar nossa análise com um aporte de fontes do Arquivo Histórico Ultramarino - AHU e pelos dados deixados nos registros eclesiásticos da época, que somados aos relatos dos viajantes e documentos cartoriais nos possibilitam descortinar um pouco do passado de uma sociedade envolta no processo de mestiçagem.3

1 Professor do curso de História na Universidade Federal de Alagoas – UFAL. 2 FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala - Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 51º Edição, 2006, p. 81. 3 Para Serge Gruzinski a mestiçagem é uma mistura de homens, imaginários e formas de vida oriundos das quatro partes do mundo (América, Europa, África e Ásia) em decorrência da ocidentalização. Processo que cria agentes mediadores entre a cultura ocidental e outras culturas (nativa, africana). Envolvendo não somente a mistura biológica, mais principalmente cultural. GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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Ordenar e Controlar Entre as consequências de uma vida desregrada e dissoluta estavam os danos

“moraes” e “physicos”, resultantes da conservação de uma vida dedicada a libertinagem e não ao vínculo familiar. A vida ladeada pela devassidão foi algo combatido pela Igreja católica e o Estado português ao longo do período colonial, ambos defendendo os seus interesses, mas com um mesmo objetivo de propagar a família. Mas, o temor causado pelo desregramento social, norteava algumas ações e pode ser percebido ainda no século XIX, na Ordem Régia do dia 27 de outubro do ano de 1817.4 Segundo a ordem, o governador e capitão de Pernambuco Luís do Rego Barreto, não deveria deixar de lado a ordenação e o controle da sociedade em Pernambuco, principalmente dos escravos.

Em sua resolução D. João ordena que o governador promova de maneira eficaz o casamento dos escravos da Capitania, algo que deveria ser feito com total zelo e prudência, honrando toda confiança depositada pelo Imperador no governador de Pernambuco. Tal medida visava diminuir os males detectados em decorrência do estado de libertinagem em que viviam os escravos da Capitania, algo que precisava ser controlado pelas autoridades. Como é possível perceber, a propagação da unidade familiar era tida como remédio ao descontrole social que a solteirice dos escravos causava no cotidiano da sociedade, uma visão bem semelhante a do Padre Antônio Vieira em meados do século XVI.5 Dessa forma, vemos nos oitocentos algo que era colocado nos manuais de conduta moral desde o seiscentos e que deveria ser seguido, não somente pelos escravos, mas por toda sociedade: a busca por um enlace como antídoto para o pecado e a barbárie.6

Seguindo o que pregava a lei eclesiástica, que tinha no casamento vários fins dentre ele um “remédio da concupiscencia” e a lógica de propagação da fé7, é possível identificar escravos que, exercendo os seus deveres cristãos, levaram seus escravos ao recinto sagrado e nos deixaram vestígios nos registros eclesiásticos, seja

4 Ordens Régias 38 – folha 9 – 1817/28 – 27-10-1817. Arquivo Publico Estadual Jordão Ermereciano. 5 NIZZA DA SILVA, Maria Beatriz. Sistema de Casamento no Brasil Colonial. São Paulo: EDUSP, 1984, p. 18. 6 Aqui nos referimos ao manual de conduta feito por Diogo Paiva de Andrada, datado do século XVII no qual o autor diz, entre outras coisas, que: Não houve nunca nação tão bárbara, nem parte do mundo tão remota que deixasse de conhecer o muito que deve ser estimado o estado do casamento. ANDRADA, Diogo Paiva. Casamento Perfeito. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1944, p. I. 7 DA VIDE, D. Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, Feitas e Ordenadas pelo Ilustríssimo, e Reverendíssimo senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, Arcebispo do dito Arcebispado, e do Conselho de Sua Majestade, Propostas e Aceitas em Sínodo Diocesano, que o dito Senhor Celebrou em 12 de Junho do ano de 1707. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2007, p. 107.

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na hora do casamento ou do batismo. Um exemplo disso ocorreu no segundo domingo de maio no ano de 17988, quando a preta Anna Maria, filha dos também pretos Maria e João, escravos de João Baptista, já não era mais uma escrava com a posse de outra escrava, neste caso, não era proprietária da crioula Feliciana Maria do Espírito Santo.

O fato de não ser mais dona da escrava não impediu que seu nome estivesse marcado no casamento da sua antiga cativa Feliciana, que no dia 13 de maio contrai matrimônio com o pardo Antonio Francisco Borges. Ambos, além de já possuírem a condição de forros, passam a ser um novo casal que descendia de pais escravos e estavam construindo uma nova família, que deixou para seus descendentes a condição de livres, afastando a cada geração o estigma do cativeiro existente na ascendência familiar. Já Anna Maria, antiga sinhá de Feliciana, não tivera o mesmo destino da sua ex-escrava, pois, segundo o registro, ainda continua cativa junto com seus pais, quem sabe até possuindo outros escravos que poderiam trabalhar para seu sustento e de seu senhor.

Sheila Faria nos lembra de que o uso do termo preto “para todos os locais em que há pesquisas sobre a temática era sinônimo de escravo nascido na África”9, mas para Recife não podemos considerar tal afirmação, pois ao longo do registro de casamento de Antônio e Feliciana, não existe referência a uma origem africana. Pelo contrário, o que aparece para todos, sem exceção, é o fato de serem “naturaes e moradores” da freguesia, o que não os liga diretamente a África, quebrando a assertiva de que todo preto foi automaticamente um africano. Assim, acredito em mais possibilidades de observação, no momento são duas: primeiramente a de que o termo preto, neste caso foi usado ligado a condição social dos envolvidos, os cativos João e Maria, pais de Anna Maria, a cativa que foi a última senhora de Feliciana. Outra vertente que emerge está associada literalmente ao tom da pele, quando o preto faz menção a cor do indivíduo. Desta forma, preto em algumas localidades pode ter tido um significado mais abrangente, englobando condição, origem ou somente a cor da pele. Porém, só um aprofundamento nas fontes documentais nos possibilitará ratificar ainda mais essa questão, fazendo emergir um pouco dos múltiplos significados dos termos encontrados nos registros da época.

Alguns cativos que alcançaram a liberdade e conseguiram constituir algum cabedal, também passaram a comprar os seus próprios escravos. Assim, além de forros, tornaram-se senhores passando a perpetuar o cativeiro entre os seus “irmãos”, iguais na cor, mas diferentes na condição social. Na análise dos registros

8 Livro casamento 2 - Matriz do Santíssimo Sacramento de Santo Antônio do Recife. p. 18. 9 FARIA, Sheila de Castro. Sinhás Pretas, Damas Mercadoras: as pretas minas nas cidades do Rio de Janeiro e de São João Del Rey (1700-1850). Niterói: Tese de professor Titular, 2004, p. 68.

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de batismo entre os anos de 1790 até 1801 é possível encontrar pessoas de cor que eram senhores de outros homens e mulheres, pardos, crioulos, pretos etc. O que pode ser destacado é a existência de uma preferência por africanos, sendo poucos os crioulos e pardos presentes como propriedade de outros homens e mulheres com o tom de pele mais próximos da tez negra.

Identificamos que a presença de escravos pardos ou crioulos estava diretamente ligada as suas mães, normalmente africanas, onde é possível associar que a vivência destes elementos de cor em meio a escravaria dos “senhores de cor” estaria condicionada a uma propriedade anterior, sendo o filho crioulo ou pardo um bem que surgiu posteriormente, nascido do ventre de uma mãe já cativa. Assim, detectamos que existiam famílias dentro de algumas dessas “senzalas” de “senhores de cor”, que aumentavam suas posses afastando cada vez mais a escravidão da sua existência anterior, mas a formação dessas famílias, mesmo que composta somente por mãe e filho, caracteriza a formação de laços familiares dentro do cativeiro.

Fonte: Levantamento de escravos nos registros de batismos da freguesia de Santo Antônio do Recife entre os anos de 1790-1801.

Ao analisar tais informações referentes aos batismos, Janaina Bezerra, em estudo

sobre os pardos em Recife, afirma que os dados apontam uma suposta autonomia financeira de algumas mulheres pardas e negras que, na ausência de maridos, gozaram do privilégio de possuir escravos.10 Em nossa perspectiva é possível ampliar o foco da análise ao observar que existe uma preferência por cativos africanos no momento da compra, não somente por parte desses “senhores de cor”. Ao

10 BEZERRA, Janaina Santos. Pardos na cor e impuros no sangue: etnia, sociabilidades e lutas por inclusão social no espaço urbano pernambucano do XVIII. Recife: Dissertação de mestrado – Universidade Federal Rural de Pernambuco, 2010, p. 59.

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compararmos com os escravos de um homem branco da época, que vivia constantemente no espaço da Igreja do Santíssimo, conhecido por Henrique José Brainer, veremos que permanece entre os proprietários de escravos uma predileção para obtenção de uma escravaria africana. Todos os escravos da família Brainer eram africanos e estavam envolvidos nas mais diversas atividades, ligadas ao abastecimento e o comércio nas propriedades da família.11

Entre os batismos podemos exemplificar o caso de José crioulo, filho de Marcella do gentio da Angola. Mãe e filho eram escravos de Joanna, uma preta casada com Jozé de Moura. O caso é ainda mais rico ao observarmos os padrinhos de José, que são os pretos Caetano de Souza e Francisca Barrozo, ele ainda cativo e ela forra. O batismo ocorreu no mês de maio de 1790 na matriz do Santíssimo Sacramento do bairro de Santo Antônio, um mês após o nascimento da criança.12 O registro deixa em suas entrelinhas um cotidiano marcado pela presença de laços familiares e de compadrio entre pretos e crioulos, que uniam dentro e fora do cativeiro homens e mulheres livre ou cativos, construindo uma rede social que poderia ser acionada em um momento de necessidade.

Muitas mulheres que foram escravas, principalmente africanas, tornaram-se senhoras de escravos, especialmente de outras cativas oriundas da África, formando famílias compostas principalmente por mulheres, que viviam das atividades de ganho dentro dos centros urbanos e que conseguiram movimentar o cotidiano colonial. Em estudo realizado para São João Del Rei, a historiadora Sheila Faria conseguiu rastrear o que chamou de Sinhás Pretas13, mulheres que formavam um grupo unido em torno de uma africana forra, normalmente sua alforria tinha sido conquistada pelo seu próprio esforço, e que após ser livre do cativeiro também constituiu um cabedal para comprar suas próprias escravas. Segundo Faria, “a aquisição destas escravas não se dava através de oferta de amantes generosos nem de senhores compassivos. Estas mulheres compravam escravas, e escravas africanas, porque tinham objetivos bem definidos”.14 Objetivos que podem ser compreendidos nas possibilidades oferecidas pela criação de laços que em sua maioria foram mais além do cativeiro.

11 SILVA, Gian Carlo de Melo. Famílias de cor, escravidão e mestiçagens no limiar do oitocentos em Pernambuco. In: CABRAL, Flávio Gomes e COSTA, Robson (orgs.) História da Escravidão em Pernambuco – no prelo. 12 Livro de Batismos I – Matriz do Santíssimo Sacramento de Santo Antônio do Recife. p. 15. 13 Para um maior aprofundamento ver: FARIA, Sheila de Castro. Sinhás Pretas, Damas Mercadoras… 14 FARIA, Sheila de Castro. Sinhás Pretas: acumulação de pecúlio e transmissão de bens de mulheres forras no sudeste escravista (sécs. XVIII-XIX). In: FRAGOSO, João; MATTOS, Hebe Maria e SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Escritos sobre História e Educação. Rio de Janeiro: Faperj, 2001, p. 317.

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Na hora da morte, estas senhoras deixavam para suas escravas bens que possibilitavam a permanência da unidade familiar ou a formação de novos núcleos comandados por africanas. Todo o trabalho estava voltado para as ruas, o abastecimento, serviços de costura, alimentos, mas também como agenciadoras de ouro, verdadeiros “bancos” para penhor de objetos em ouro que circulavam em um mercado comandado por mulheres negras. Sheila Faria e Eduardo França15 abordam o papel exercido socialmente por tais mulheres na sociedade colonial, constituindo cabedal, acumulando joias e movimentando um mercado voltado para o comércio, algo que facilitavam as trocas e o enriquecimento destas mulheres e de suas escravas, já que boa parte delas herdava das suas sinhás alguns bens, que dependiam em sua maioria do que foi acumulado em vida através do trabalho desta família de cor formada quase que exclusivamente por mulheres.

Em Pernambuco, os registros também indicam a existência das Sinhás Pretas no cotidiano urbano do Recife, inseridas na sociedade construindo laços e exercendo o seu lugar de senhoras de escravos. Entre os registros da época encontramos o caso de Thereza Afonço, que era dona de escravas16 e tem uma trajetória exemplar nas possibilidades que a escravidão poderia oferecer a um cativo.

Oriunda da Costa da Mina, Thereza fez questão de lembrar que conquistou sua alforria graças aos seus esforços, pagando pela sua liberdade. Em sua vida de forra, comprou duas cativas, Anna e Maria, ambas embarcadas na mesma localidade que sua senhora. Ajudavam sua dona a aumentar o pecúlio com as atividades de ganho que exerciam, muito provavelmente vendiam comidas, quitutes de milho, algo que justificaria os equipamentos de ralar milho, deixados como herança para as duas.

A partir da morte de Thereza, alguns dos laços que ligavam suas escravas são desfeitos e ambas passam a viver em realidades diferentes.

Anna teve sua alforria condicionada ao pagamento de 40$000 mil réis, que deveriam ser adquiridos em dois anos após a morte de sua senhora. Para isso, recebeu como herança instrumentos que a ajudariam conquistar o dinheiro para adquirir a carta de alforria. Já Maria, continuou cativa, tendo que pagar semanalmente um cruzado ao inventariante e responsável pelos bens de Thereza, o capitão Antonio Francisco Lessa. Algo que a diferenciou de Anna, que teve a possibilidade de conquistar sua alforria em um período determinado pela sua falecida Sinhá. Vale lembrar que com a morte de Thereza, o núcleo formado por ela e suas escravas foi desfeito, mas elas continuaram inseridas no cotidiano, exercendo suas atividades de “ganhadeiras” pelas ruas do Recife na segunda metade do século XVIII,

15 FARIA, Sheila de Castro. Sinhás Pretas, Damas Mercadoras…; PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na colônia. Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. 16 Inventário de Thereza Afonço – 1768. fls. 6-7. Instituto Histórico Arqueológico e Geográfico de Pernambuco.

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contribuindo juntamente com outros cativos na construção da sociedade da época. Talvez tenham constituído novos núcleos domésticos, casando, tendo filhos ou o que consideramos mais provável, tornaram-se novas Sinhás após conquistarem suas alforrias definitivas e passaram a reproduzir a formação de família chefiadas por mulheres africanas, sinhás de outros africanos. Famílias de Cor e as mestiçagens

Henry Koster, que esteve em Pernambuco no início dos oitocentos, deixou vários

registros sobre as localidades por onde passou, um deles nos chama atenção por se referir à vida dos escravos, em especial os que viveram maritalmente. O inglês diz que: “tenho visto vários casais felizes (tão felizes quanto o podem ser os escravos) com grande número de filhos crescendo ao redor deles. Os senhores estimulam os casamentos entre seus escravos porque o número de crioulos só pode aumentar por meio dessas uniões legais”.17 A partir de seu relato passamos a investigar um pouco das famílias escravas.

Talvez essa “felicidade” encontrada pelo viajante fosse reflexo não somente de uniões legítimas e de acordo com as leis católicas, mais de outras em que muitos casais poderiam manter laços afetivos sem as bênçãos eclesiásticas, realidade que não ocorria só entre os escravos, mas em toda sociedade. Esse fato foi decorrente de uma desigualdade que acabava para alguns por ser um impedimento, já que nem todos tinham condições de pagar o processo de banhos para contrair um matrimônio aos moldes de Trento. Entretanto, alguns casais conseguiram concretizar o seu desejo, às vezes saindo da condição de amasios ou concubinos, para tornarem-se um casal que seguia as normas da igreja.

Um detalhe que deve ter escapado aos olhos do viajante Koster é que nem sempre o estímulo ao casamento feito pelos senhores estaria atuando somente em seu benefício, os escravos poderiam aceitar a condição de casados para melhorar sua situação dentro do grupo. O fato de ter filhos ou não dependeria de uma ação que seria definida pela mulher escrava, o aborto e as práticas contraceptivas poderiam ser acionadas para que não tivessem filhos e, com o tempo, passassem a ver sua prole sofrer as consequências da condição escrava.

Nesse contexto de uniões, nos deteremos as que foram inscritas em nossas fontes, os casamentos legítimos, que deram origem as famílias escravas que circulavam pela freguesia de Santo Antônio e seus arrabaldes. Várias uniões e batismos foram realizados durante o período abordado. A grande quantidade de igrejas existentes na região e a circulação de pessoas sempre garantiram um cotidiano

17 KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Tradução e Prefácio de Luís da Câmara Cascudo; estudo introdutório e organizado por Leonardo Dantas Silva. Recife: Fundação Joaquim Nabuco / Ed. Massangana, 11. ed., 2002, 2v, p. 625.

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movimento diante dos santos que estavam nos altares. Os casamentos e batismos ocorreram em variados grupos, mas obedeceram a lógicas próprias e regras implícitas na sociedade, como por exemplo, as idades dos nubentes, a igualdade entre os consortes e a escolha de padrinhos.18

Para a freguesia de Santo Antônio, foram poucos os casos efetivos de cativos que recebem as bênçãos, sendo mais elevado o número de forros, sejam eles pretos, pardos, crioulos ou cabras. Essa constatação dentro dos assentos estudados pode ser um indício que confirme nossa hipótese de que os “vários casais felizes” vistos por Koster não tinham as bênçãos da Igreja, porém algo que não impediu a criação de laços e a vida conjugal aos moldes tridentinos, faltando somente o ego vos conjugo eclesiástico.

A escravaria que circulava pelas ruas da freguesia de Santo Antônio do Recife, não compareceu em grande número a igreja para casar, representando aproximadamente 10% do total de uniões analisadas. Alguns dos casos de cativos que contraem matrimônio são com pessoas forros(as), possibilidade que demonstra uma das várias existências familiares, casos semelhantes existiram no Brasil da época e foram detectados, por exemplo, na Capitania de São Paulo por Maria Beatriz Nizza da Silva.19 Ainda segundo a historiografia da escravidão20, o enlace entre homens de condições diferentes, um cativo e o outro forro ou livre, podia significar uma estratégia social que possibilitava a compra de alforria do parceiro cativo por parte do que já era forro.

Outra realidade que poderia ocorrer era o casamento de livres com cativos, algo que foi bem visto pelos senhores de escravos21, por significar um incremento de mão-de-obra disponível. No Recife a união de João Freira de Lima22 pode nos servir como possibilidade de estudo sobre o tema.

Vamos entender um pouco sobre João…

18 Para um maior aprofundamento ver: SILVA, Gian Carlo de Melo. Um Só Corpo, uma Só Carne: casamento, cotidiano e mestiçagem no Recife colonial (1790-1800). Recife: Editora Universitária da UFPE, 2010. 19 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. História da Família no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 147. 20 FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das Senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, 1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997; SLENES, Robert W. Na Senzala uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 21 FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento – Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 316. 22 Livro de Casamentos I - Matriz do Santíssimo Sacramento de Santo Antônio do Recife. p. 117.

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O nubente era filho de pais legítimos e casados, o que significa que foi gerado após a união matrimonial dos pais. João era um homem livre e que poderia ter contraído matrimônio com uma mulher pertencente ao seu grupo, com toda sorte de igualdade e condição. Porém, empreendeu o consórcio com a escrava Anna Maria da Conceição, que por sua vez pertencia à Dona Ursula Leitão de Mello. A condição de ambos, ele livre e ela cativa, representa uma diferenciação social que precisava ser transposta na realidade cotidiana. Afinal, não podemos esquecer que o cativeiro impunha limites para Anna Maria e que não precisavam ser seguidos pelo seu consorte. Entretanto, conhecendo a realidade urbana da freguesia de Santo Antônio é possível que o casal tenha passado a viver com certa liberdade, já que a esposa de João podia exercer as atividades colocadas por sua senhora, pagando semanalmente seu “jornal” e residir com seu marido em outro local, como fizeram tantos outros escravos que moravam nas terras que vieram a formar a freguesia de São José no século XIX.23

Esse enlace apresenta ainda uma singularidade entre os demais, o noivo é classificado como sendo um índio, conforme consta no registro, algo que para o período era difícil de ser encontrado, pois a maioria dos descendentes indígenas tinha adentrado para os sertões ou eram tratados por pardos. Com isso, inferimos que muitos indígenas podem ter sido ofuscados na documentação eclesiástica pela denominação mais generalizante de pardo. Investigando o período imperial, Ivana Lima, identifica que o termo índio não se referia a uma cor, mas a um grupo distinto da população, que às vezes aparece incorporado, mas de forma marginal.24

Entendendo um pouco dos costumes presentes na sociedade, foi possível identificar ao analisarmos os registros eclesiásticos a presença de alguns cativos que tinham como senhor um clérigo. Muitos dos homens e mulheres, que estavam presos à escravidão e encontramos casando, são propriedades de padres ou ordens religiosas. O próprio vigário Feliciano Joze Dornellas, da Matriz do Santíssimo Sacramento é um dos que une em matrimônio suas propriedades. A influência do padre Feliciano para realização do matrimônio de seus escravos João e Luciana fica clara dentro do documento, pois, os indícios nos levam a acreditar que o mesmo facilitou para que João conseguisse uma dispensa de banhos da sua naturalidade, algo que demandaria gastos e tempo. A dispensa dizia respeito à naturalidade do crioulo João, nascido em outra região da Capitania de Pernambuco, conhecida por freguesia

23 CARVALHO, Marcus J. De Portas Adentro e de Portas Afora: Trabalho Doméstico e Escravidão no Recife, 1822-1850. Revista Afro-Ásia, v. 29/30, 2003. 24 LIMA, Ivana Stolze. Cores, Marcas e Falas: sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 102.

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de Nossa Senhora da Conceição da Villa de Alagoas25, uma localidade que mantinha intensa movimentação com a Vila do Recife.

A união matrimonial não era algo alcançado somente pelos cativos de clérigos ou quando se uniam com pessoas forras ou livres, alguns moradores da freguesia também o faziam e não impediram os seus “bens” de casar, promovendo aos olhos da comunidade a expansão dos valores católicos e a formação de famílias. O enlace dos cativos de Joanna Rodrigues de Sa pode exemplificar, entre tantos, outros senhores tidos por brancos que permitiram a união dos seus escravos. Neste caso, estamos falando dos “pretos cativos” Domingos e Julianna26, que na quarta-feira, dia 30 de outubro de 1793, casam na Matriz do Santíssimo Sacramento, mostrando que este espaço não serviu somente para uniões de brancos ou pessoas com recursos, ao contrário encontramos inúmeros casos de cativos, forros e libertos casando e batizando dentro da Matriz.

Um dado importante que emerge dessa união é a origem dos nubentes, sendo referidos como “pretos cativos”, o que teoricamente os associa diretamente a uma origem africana e que foi possível comprovar ao longo da documentação, pois ambos os escravos vieram da Costa da Mina, algo que os diferenciava dos demais africanos que circulavam no cotidiano do Recife. Neste caso, o preto, ratifica o que é encontrado para outras regiões onde ser preto era sinônimo de ser africano.

Como mostramos anteriormente, quase todos os cativos encontrados nos registros eram originários da região de Angola, sendo raras as ocorrências de outras etnias. Algo revelador ao analisarmos somente os registros em que ambos os nubentes eram africanos é o fato de que estes seguem uma endogamia de grupo, Mina com Mina, Angola com Angola, sendo incomuns uniões entre homens e mulheres de origens diferentes e até mesmo com crioulos ou pardos.

Entre os casamentos envolvendo cativos de origens diferentes encontramos os escravos de Antonio Francisco Maia, que em 28 de novembro de 1793 tem seus escravos Affonso Angola e Maria Mina casados27, mesmo pertencendo a “nações” diferentes unem-se em matrimônio. Inferimos que tal união possa ter sido uma tentativa de unir forças dentro do domínio da escravidão ou simplesmente para deixar uma situação ilegítima, passando a ter maior reconhecimento social e sendo diferenciados dos demais escravos que o seu senhor possuía, subindo mais um degrau no caminho pela busca de “liberdade(s)” dentro da existência cativa. Conforme Robert Slenes, entre as vantagens que o escravo adquiria ao casar estaria uma melhor estabilidade psicológica e emocional, pois existiria uma “mão amiga”, alguém que poderia enfrentar o dia-a-dia e a luta em momentos de privações e

25 Livro de Casamentos I - Matriz do Santíssimo Sacramento de Santo Antônio do Recife. p. 16. 26 Ibidem, p. 89. 27 Ibidem, p. 92.

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punições. Além disso, o “casar-se significava ganhar um maior controle sobre o espaço da moradia”.28

A união entre escravos foi amparada pelas leis da igreja no Brasil e esteve presente nas leis sinódais. Nela, o casamento envolvendo cativos mereceu um título separado dos demais, por conter algumas especificações que deixam clara a opção pela manutenção da propriedade do cativo, fortalecendo a reprodução do sistema, mas também uma busca pela salvação das almas, afastando-as do pecado, da vida de libertinagem, igualmente ao que D. João queria evitar com sua Ordem Régia enviada ao governador Luís do Rego Barros. As Constituições Primeiras garantiam que os cativos tinham o direito divino e humano e que assim

podem casar com outras pessoas cativas, ou livres, e seus senhores não podem impedir o Matrimonio, nem o uso deles em tempo, e lugar conveniente, nem por esse respeito podem tratar pior, nem vender para outros lugares remotos, pra onde o outro por ser cativo, ou por ter outro justo impedimento o não possa seguir, e fazendo o contrario pecam mortalmente, e tomam sobre suas consciências as culpas de seus escravos, que por este termo se deixam muitas vezes estar, e permanecer em estado de condenação. Pelo que lhe mandamos, e encarregamos muito, que não ponham impedimentos a seus escravos para se casarem. Nem com ameaças, e mau tratamento lhes encontrem o uso do Matrimonio em tempo, e lugar conveniente, nem depois de casados os vendam para partes remotas de fora, para onde suas mulheres por serem escravas, ou terem outro impedimento legitimo, os não possam seguir. E declaramos, que posto que casem, ficam escravos como antes eram, e obrigados a todo serviço de seu senhor.29

A manutenção da ordem escravocrata e a não libertação do cativo após o

matrimônio era algo comum no cotidiano da escravidão. O único caso existente em nossos registros em que podemos considerar que o cativo é libertado por conta do matrimônio acontece no ano de 1799, onde Zeferina, uma preta Mina que tem sua alforria comprada pelo seu marido, o português Nicolau Santiago.30 Um caso que foge ao que consideramos regra ao ser comparado com os demais, dessa maneira, não acreditamos ser consistente a alegação de que muitos senhores não realizavam o casamento de seus escravos por ser considerado uma “ameaça” de alforria e

28 SLENES. Na Senzala uma Flor…, p. 149-150. 29 DA VIDE. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia…, p. 125. 30 Livro de Casamentos 2 - Matriz do Santíssimo Sacramento de Santo Antônio do Recife, p. 54

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libertação por parte de americanos (crioulos) e africanos já escravizados nos engenhos e fazendas.31

Pelo que foi possível observar, os aspectos que envolvem a família e escravidão são mais complexos e cheios de significados que só poderão ser compreendidos, em parte, ao realizarmos estudos comparativos com as mais diversas regiões do Brasil em que a presença da escravidão deixou registros. Resaltamos que casar o cativo podia ter diversas funções, desde acalmar as senzalas e promover a paz, passando pelo afastamento do pecado, da mancebia e do concubinato que poderia existir entre os cativos, bem como mostrar que o senhor seguia os preceitos católicos e casava suas propriedades, algo que melhorava sua imagem dentro do grupo social, afastando o que D. João considerava ser um dano moral e físico para sociedade brasileira no início do século XIX. Contudo, não podemos esquecer o desejo dos cativos, de formar família e construir laços horizontais e verticais dentro da sua comunidade, constituindo um espaço de negociação diante das vontades impostas pelo Estado e a Igreja. Muitos homens e mulheres, independentemente da condição social, fossem eles cativos, livres ou forros, conseguiram usar as frestas existentes no cotidiano e formaram as famílias de cor, que englobam elementos pardos, crioulos, cabras e pretos, pessoas que deram o tom e a dinâmica a sociedade existente no nosso passado colonial.

31 HOORNAERT, Eduardo História da Igreja no Brasil – Ensaio de Interpretação a partir do povo. Petrópolis: Paulinas e Vozes, 4º edição Primeira Época, 1992, p. 313.

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Do Engenho da Ponta à Prefeitura de Maragogipe: Aspecto de Superação Social de uma Família Negra no Recôncavo Baiano

Itamar da Silva Santos1

Apresentação

O que se pretende nesse projeto é percorrer através da memória dos seus

membros, a trajetória que a família Purificação dos Santos traçou no recôncavo baiano desde o Engenho da Ponta até a Prefeitura de Maragogipe, espaço que é ocupado por Silvio José de Santana Santos, o popularmente conhecido Ataliba.

Pretendemos transpor para o papel, histórias e lembranças dos seus membros que de forma surpreendente lembram datas, nomes e endereços de um período que teima em sair de suas mentes trabalhadas e exercitadas pelo tempo, e outros momentos que de forma guerreira lutam para não se esquecer. Por tanto, o que se percebe é que a oralidade desde já passa ser o suporte por onde percorrera a pesquisa, associados aos documentos e dados empíricos, todos orientados pelas falas e indicações dos que mantém e guardam a história dessa família.

E tais lembranças vão desde o tempo em que Dona Lourdes, a mais velha em vida, era uma simples jovem morando no Engenho da Ponta, que nesse período pertencia a senhor Carlitinho. Passa pela casa de Candomblé da Terra Vermelha onde após a dispersão da família, se configura como o ponto de reencontro de seus membros e onde as experiências e ensinamentos servem de exemplo de educação até os dias de hoje. E por fim, como todos esses ensinamentos contribuíram para que Ataliba pudesse transformar em carisma, e destreza política para se tornar o primeiro prefeito negro do município de Maragojipe, o mesmo lugar que recebeu sua família no pós-escravidão.

Há muito as histórias do Engenho da Ponta fazem parte do imaginário da família, os mais velhos que ainda moraram em suas dependências, recordam das relações entre os senhores e seus pais. Marcada ainda por resquícios do período da escravidão essas lembranças são carregadas de sentimento de subserviência a esses senhores, percebesse ainda um ar de gratidão pela ajuda desses brancos por acolher a família que não tinha para onde ir depois do processo de abolição.

É fato que não posso começar apresentar tal caminho sem ao menos fazer menção ao lugar inicio de todas as caminhadas da humanidade, África. Contudo essa não é a preocupação do presente trabalho, mesmo reconhecendo sua pertinência, de África nos interessa saber, como se organizavam socialmente os principais grupos de africanos que forçosamente foram escravizados para que através de suas forças

1 Graduado em Historia - Centro Universitário Jorge Amado - Membro do grupo de pesquisa Educação Cultura e Conhecimento – Universidade Estadual da Bahia.

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fossem abastecidos os centros de produção açucareiros do Brasil, mais especificamente os hauçás.

Extrair dessa analise as principais características, especificidades e peculiaridades desses grupos são de suma importância, quando da necessidade de relacionar esses aspectos com os escravos e afrodescendentes ex-escravos do engenho da Ponta no recôncavo baiano.

Engenho da Ponta, esse sim é o lugar onde nos debruçaremos exaustivamente para identificar seus membros e suas relações. Constituiremos também pela necessidade do recorte temporal o Engenho da ponta e sua fundação e a chegada dos negros, como marco inicial da trajetória familiar dos Purificações dos Santos, que passa pelo candomblé da Terra Vermelha em Cachoeira e por fim a chegada de um de seus membros à prefeitura de Maragogipe na condição de primeiro prefeito negro a assumir tal cargo. Entretanto não nos cabe aqui discutir ou até mesmo avaliar a sua gestão frente à prefeitura.

O que tentamos nesse trabalho, é primeiramente trazer a luz através da analise do processo de produção de cana-de-açúcar, a partir do Engenho da Ponta, que não gozou de tanta notoriedade quanto os demais engenhos de sua época mais aparece em momentos importantes da região. Confrontar as lembranças com os documentos do engenho, para atestar a veracidade do que nos é passado através da oralidade pelos os membros da família Purificação dos Santos e da atual família dona das terras. A partir desses dados e documentos mapear daqueles escravos que trabalharam no engenho, quais têm relação direta com a Família.

Na medida em que em um segundo momento, precisamos nos deter nos aspectos religiosos que nortearam o grupo familiar Purificação dos Santos, principalmente no inicio do século XX. Com hábitos religiosos muito fortes, os Purificação dos Santos eram adeptos do terreiro de Encimimó, na Terra Vermelha. Esse será o lugar da promoção de unidade familiar mesmo depois que esses se dispersam a procura de condições melhores de sobrevivência se deslocando alguns para Maragojipe, outros para Cachoeira e até mesmo Salvador.

Desses lugares o que melhor acolheu essa família sem sombra de dúvida foi Maragojipe. Lá o Senhor Renato da Purificação consegue emprego na já famosa Suerdieck enquanto sua esposa Eunice Gomes passa a mariscar e a partir daí tira o sustento dos seus 17 filhos, entre eles o Silvio José de Santana Santos, o caçula que mais tarde passaria a se chamar Ataliba.

Por fim cabe relacionar como essas características inerentes ao grupo de negros do engenho da Ponta e a tradição familiar adquirida no Candomblé de Encimimó proporcionou a Silvio Ataliba, construir um caminho sólido dentro da política local que o levaram até a prefeitura. Destacando que esse não foi um momento menos difícil que os seus antepassados viveram, guardando suas devidas proporções, mas que conta com preconceitos, discriminação e desconfiança por conta de suas origens e sua cor.

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Engenho da Ponta

Mesmo sendo um dos maiores engenhos da região do Iguape, e tendo como um

dos seus primeiros donos, o brigadeiro Felisberto Caldeira Brant, isso ainda no final do século XVIII, o Engenho da Ponta não goza de tanta notoriedade quanto os demais engenhos da época, tendo pouca coisa escrita. A posse do engenho por parte do brigadeiro provavelmente deve acompanhar os seus favorecimentos da família real, já que este acompanhou a corte de D. João VI de Portugal para o Brasil. Do qual recebeu o privilégio de poder explorar com exclusividade as navegações a vapor durante catorze anos.

Felisberto Caldeira além do empreendedorismo e da participação extremamente ativa na politica era um respeitado dono de engenhos e além do engenho da ponta constava em suas posses o Engenho Santana de Ilhéus, no Sul da Bahia.2 Toda essa respeitabilidade não impediu, porém que Felisberto Brant, sofresse com as agitações dos escravos principalmente no Iguape, onde seus escravos se rebelaram e tentando por em prática um grande plano, como narra João José Reis:

O levante parece ter começado entre quatro e cinco horas da tarde, em meio à jornada de trabalho dos escravos nos partidos de cana. Março era um período de trabalho intenso, quando se faziam tanto a colheita como a semeadura da cana. Mas essa não foi uma revolta repentina, um simples protesto contra o excesso de trabalho; ela tinha um “projeto”, segundo o juiz. O projeto era se agruparem os rebeldes no Engenho da Ponta, um dos maiores do lugar, e em seguida tomarem de assalto Maragogipe. Todas as estradas que levavam a esta vila foram por isso ocupadas por tropas regulares e milícia. Três libertos haussás que se comunicavam regularmente com os escravos do Engenho da Ponta foram presos, Infelizmente, isso é tudo que consegui averiguar sobre esse levante. Parece que, uma vez derrotados, muitos escravos retornaram a suas senzalas, outros a seus mocambos, seguindo um padrão já estabelecido por revoltas anteriores. 3

Essa como tantas outras revoltas ocorridas no Recôncavo baiano serviram de

motivação política para que Felisberto Brant liderasse um grupo de senhores de engenhos que eram contra a politica de tratamento de escravos adotada pelo Conde 2 REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, Ed. Revista e ampliada, 2003, p. 92. 3 REIS, João José. Recôncavo Rebelde: Revoltas escravas nos engenhos Baianos. Revista Afro-Ásia, p. 96.

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Arcos, os quais as consideravam muito brandas. Outro fato interessante da narrativa é o grupo de negros citado pelo autor, os haussás. Predominantes na região inclusive no Engenho da Ponta, a citação a esse grupo está intrinsicamente relacionada à religião mulçumana, haja vista ser a religião oficial dos mesmos e também a suas características guerreiras. Dizer das limitações de informações de um acontecimento tão importante só reforça o que já foi dito que o Engenho da Ponta carece de mais estudos.

Estes africanos vinham de regiões especificas da África, vinham em grande número de áreas do golfo de Benin, atualmente parte da Nigéria e da República Popular do Benin. Eram na maioria nagôs, jejes e hauçás, egressos de sociedades guerreiras e muitos deles eram adeptos do Islã, uma religião militante em expansão na África. Essas características facilitaram a criação de laços de solidariedade coletiva e a disposição para a luta contra o cativeiro em terras do Recôncavo.4

No Engenho da Ponta também serviu de estadia para os estudiosos alemães

Johann von Spix e Karl von Martius que resultou na publicação de Viagem pelo Brasil 1817-1820, que trata da fauna e flora brasileira. Na época eles foram hospedados por Manoel Ferreira de Câmara. Portanto, percebemos que o Engenho da Ponta é de fato um lugar importante no cenário da época, e que mesmo assim ainda carece de uma produção especifica. Mas apesar disso, o período engenho chega aos dias de hoje sobe a posse da família do senhor conhecido simplesmente como Carlitinho em boas condições de preservação, ao menos da casa central e visão privilegiada do Rio Paraguaçu.

Foi nesse ambiente que podemos identificar o gênese da família Purificação dos Santos, Dona Lourdes a mais velha em vida da família, ainda lembra-se das horas que precisava cuidar das filhas do dono da casa, e das canções que tinha que aprender para que as mesmas pudessem ouvir antes dormir. Entretanto, as entrevistas que se fazem necessárias para ouvir as histórias a exemplo das que Dona Lourdes tem a contar, carece de um cuidado acadêmico, sabendo distinguir cada discurso e sobretudo de que forma são produzidos. Já que estão embutidos sentimentos que perpassam o limite da pesquisa e se misturam com sentimentos e experiências particulares, ainda mais por se tratar de vivências sociais que foram marcadas pela desigualdade e se tratar de um resgate étnico.

Isto explica certamente a dificuldade não só de realizar entrevistas tendo como foco a questão étnica mas, sobretudo,

4 REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 101.

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de interpretar os textos e discursos produzidos pelos entrevistados. Assim, as condições da entrevista (local, duração, interferências de outras pessoas, barulho…); o momento vivido pelo entrevistado e pela comunidade do ponto de vista da questão etnoracial, do contexto social e político (representações, interesses e objetivos em jogo); o lugar e o papel do entrevistado na comunidade; a forma e o conteúdo da linguagem utilizada; a percepção mútua (em termo étnico também) e a comunicação estabelecida entre o entrevistador e o entrevistado são alguns dos principais parâmetros a serem levados em conta no exercício interpretativo.5

Tomando tal cuidado, percebemos que em torno da oralidade, cercada dos

devidos cuidados é que se estabelece boa parte da pretensão de se resgatar a trajetória da referida família, e atribuir uma direta relação dos elementos construtivos desse caminhar com o comportamento e características herdadas por esse grupo familiar que se faz refletir ainda hoje.

Família

A concepção de família abortada nesse trabalho, ajudado pelo excelente trabalho

da professora Isabel Cristina Reis, trata de família negra, inclusive diferente do conceito de família escrava, que deixa em aberto alguns elementos importantes dos estudos sobre o tema:

outra lacuna que consideramos importante na literatura sobre a família escrava. Buscar explorar este viés nos leva, inclusive, a sugerir a possibilidade de ampliar nosso campo conceitual de família escrava para família negra. 6

Também se faz necessário essa distinção, entre família escrava e família negra

pelo fato do período estudado perpassar pelo período escravista e o pós-escravidão. Outro aspecto importante a ser mencionado, é que não podemos considerar esta

família baseando nossa analise em uma família nuclear, haja vista a dificuldade de se estabelecer através dos laços matrimoniais oficiais, o que em nada tem haver com

5 RIBARD, Franck. Narrativas Orais e Etnicidade Afro-Brasileira: Considerações sobre a Pesquisa. X Encontro Nacional de História Oral Testemunhos: História e Política. Recife, p. 10, abril de 2010. 6 REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. Histórias de vida familiar e afetiva de escravos na Bahia do século XIX. Bahia: Edufba, 2001, p. 32.

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moral ou cultura. O fator de instabilidade da família escrava não era inerente à moralidade ou à cultura de seus membros, mas ao sistema escravista.7

O que também tem que se levar em consideração é que não podemos limitar a analise as questões consanguíneas, e que através dos apadrinhamentos a família crescia ainda mais. Entre estes fatores, ainda surge o principal aglutinador da família Purificação. O candomblé. A religião bem como seus ensinamentos servirá de base educacional para seus membros e refletem até os dias de hoje. Sendo considerado o principal motivo das conquistas sociais da família.

Terreiro Encimimó em Terra Vermelha

Já a partir do inicio do século XX, o Candomblé, religião que vai ser o

sustentáculo espiritual da família durante todo esse período, ganha mais uma característica. Passa a ser o ponto de reencontro de todos, que passam a se espalhar por várias pares do recôncavo chegando também a capital baiana. Os lugares que mais receberam os Purificações dos Santos foram Cachoeira e Maragogipe, sendo a ultima o lugar onde a família se sentiu mais a vontade e estabeleceu profundas raízes.

O encontro acontecia uma vez por ano, onde todos, imprescindivelmente todos os membros da família, precisavam cumprir diversos rituais, dentre eles o mais lembrado, o banho de pipoca. O terreiro Encimimó já é comum da memória de maior parte dos membros hoje vivos, e os principais nomes citados pelos seus membros principalmente Mamara, que é um exemplo de guardiã da família, são citados em um estudo da trajetória Jeje-Mahi na Bahia.

O terreiro Encimimó, na Terra Vermelha, comandado pela Ìyálórisá Judith Ferreira do Sacramento, falecida em 1940, teve como substituta Francisca Paula de Lima (Chica de Nã), faleceu na década de 1970 com 117 anos de idade e 102 de iniciação. Depois o comando passou para o sr. Antônio Gomes (Ogan Candola), confirmado por Mãe Judith.8

De Terra Vermelha além do conforto espiritual e o vinculo de unidade, o

Candomblé proporcionou um elemento fundamental para a manutenção familiar, o sentimento de respeito e obediência aos mais velhos. Me faz lembrar também dos ensinamentos de mãe Stella que escreveu em determinado periódico:

Para o bem da sociedade, o povo yorubá diz: “ola baba ni imú yan gbendeke”, mostrando que “é a honra do pai que permite

7 Ibidem, p. 35. 8 CARVALHO, Marcos. Gaiaku Luiza: e trajetória de Jeje-Mahi na Bahia. Rio de Janeiro: Pallas, p. 128.

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ao filho caminhar com orgulho”. E eu digo: Todo pai é um mestre e todo é filho é um discípulo! 9

Esses princípios norteiam até hoje os membros da família, e segundo Silvio

Ataliba foi fundamental em sua caminhada política.

Maragogipe e a Política Maragogipe foi a cidade que primeiro acolheu a família, tida como lugar de

possibilidade de se refugiar provavelmente lá se aquilombaram e deram inicio a reconstrução familiar. Em seguida, já no pós escravidão, as duas figuras que mais se destacaram no que diz respeito a resistência e respeito as tradições familiares foram, o Sr. Renato da Purificação dos Santos e Sra. Eunice Gomes de Santana Santos, ele foi funcionário da Suerdieck, tradicional empresa alemã de charutos, que nos anos 50 possuía mais de 2.000 funcionários no seu quadro de empregados. Dado interessante é que a maioria eram mulheres. Dona Eunice, ou Dona Nenega como gostava de ser chamada foi hábil marisqueira, principal ocupação das mulheres da cidade. Ambos se orgulhavam de em meio a tantas dificuldades, formarem todos seus dezessete filhos, inclusive o caçula Silvio José de Santana Santos, que mais tarde passaria a se chamar Silvio Ataliba. E se orgulhavam mais ainda desse sustento vir do suor de seus trabalhos.

Sua admiração e aprendizado com sua mãe são destacados por ele como elementos fundamentais para a sua chegada à vida pública. Segundo ele, ela o ensinou os princípios que norteiam sua carreira, como respeito, dignidade, superação, determinação e educação.

Carteira de filiação sindical de Renato da Purificação dos Santos.

9 Disponivel em: http://mundoafro.atarde.com.br/?tag=mae-stella-de-oxossi, acessado em: 8 de junho de 2011.

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No que se refere a manutenção da tradição, o papel feminino é de extrema importância, já que ela a educadora e socializadora maior nas sociedades pesqueiras. São as mulheres que parem, que cuidam, que orientam, que passam a maior parte do tempo com suas crianças numa partilha contínua de ensinamentos e aprendizados. São referências de valores e sentimentos. As memórias do exemplo de dignidade que ela própria representa para si são repassadas aos seus e trazidas com força suficiente a ponto de pormenores pouco representarem.10

Desde o período de escravidão as mulheres se destacaram na preservação

familiar: As mulheres foram as principais protagonistas de muitas histórias de resistência e luta pela preservação da família negra no período escravista.11

Em sua infância tal como ciente de uma predestinação, o menino Silvio falava para sua mãe que mudaria a realidade do seu povo e que quando crescesse se tornaria prefeito de Maragogipe. Sua mãe o retrucava e dizia que o ele tinha que fazer era estudar. Já em sua adolescência se destacava no grêmio estudantil de sua escola, devido ao posicionamento firme diante dos problemas da escola e do próprio município. Como professor da rede municipal integrou o sindicato dos funcionários municipais, já filiado ao Partido dos Trabalhadores, se candidatando a vereador. Mesmo não vencendo foi a principal voz de oposição do prefeito Raimundo Gabriel, o mesmo condenado de desviar dinheiro da Universidade Católica do Salvador.

Preconceito e superação

No ano de 2004 Silvio Ataliba concorre a sua primeira eleição a prefeito de

Maragogipe, ganhando com mais de 40% dos votos, contra pouco mais de 30% do segundo colocado. Isso não quer dizer que tenha sido uma eleição fácil, e que os problemas de preconceitos já no século XXI tenham sido superados no lugar onde mais se preserva as tradições africanas na Bahia, o recôncavo baiano.

Primeiro Ataliba teve que brigar exaustivamente para ter seu nome como representante da legenda, dentro do seu próprio partido, que ainda viam nos fatos dele ser negro e de suas origens como empecilho a sua candidatura. É óbvio que isso não foi dito explicitamente, decorrente do preconceito velado que ainda existe em nossa sociedade, mas se pode perceber nas entrelinhas dos discursos.

O que não aconteceu nas eleições, aí abertamente as declarações racistas e preconceituosas surgiram à tona. Como a do seu principal opositor em discurso

10 ROSÁRIO, Jeruza Jesus. Vivências no espaço, percepções do espaço: Marisqueiras e Pescadoras em Maragojipe-Bahia, Observatório Geográfico de América Latina, p. 10. 11 REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. Histórias de vida familiar e afetiva de escravos na Bahia do século XIX…, p. 55.

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eleitoral: Nunca vi estrela preta brilhar! Isso mostra que ainda estamos muito longe de ter uma sociedade em que as diferenças sejam respeitadas, necessitando assim de exemplos como o de Silvio, que vem de uma família em que estava fadada a fracasso e subserviência nesse país onde as “minorias” ainda têm que lutar para ocupar seus espaços, para que possamos nessa luta diária construir uma sociedade mais justa e igual entre os seus.

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Um olhar sobre os Angolas na Capitania de Sergipe Del Rei Setecentista

Joceneide Cunha1

Mãe de Deus do Rosário nos quêra ajuda Catirina de Congo de Congoriá A rainha de Congo de Congoriá A rainha de Congo mandou me chama Catirina de Congo mandou me busca…2 (grifos meus)

Esse é um trecho de uma das músicas das taieiras, e na citada música há

referências a um dos reinos mais importantes da África Centro-Ocidental: o Congo.3 Segundo Beatriz Dantas as taieiras nos Oitocentos tinham a função de acompanhar a realeza do Congo, que no momento da pesquisa dela, na década de 70, já eram denominados de reis do Rosário. A citada dança resiste e é apresentada no dia seis de janeiro, momento que se comemora São Benedito, em Sergipe. Ou seja, na atualidade persiste uma dança que rememora um reino na África e que construiu ritos relembrando uma linhagem real daquela região.

Um olhar sobre nomes de alguns logradouros sergipanos na atualidade nos dá indícios de uma vivência dos povos falantes das línguas bantu. Atualmente existem povoados denominados de Quissama, Caenda dentre outros. Além de um porto chamado de N´Angola. Ressalto que os três lugares ficam em regiões distintas do Estado, o que também evidencia que eles se fizeram presentes nas várias regiões do Estado. Assim pretendo traçar um perfil dos angolas e apontar alguns aspectos da vivência dos angolas na Capitania de Sergipe.

O marco temporal da minha pesquisa é de 1720 a 1835. No entanto, para este texto utilizarei apenas os dados do século XVIII. Para demarcar esse período utilizei como referência a documentação, sobretudo as datas dos primeiros inventários, dos registros paroquiais e alguns dados fornecidos pela literatura. O primeiro inventário post-mortem encontrado é de 1720, no final do XVIII também há alguns registros paroquiais o que permitirá um cruzamento de fontes. Retirei os dados de diferentes documentos e comparei e complementei as informações dos mesmos. E a data final é devido ao encerramento do tráfico África-Brasil e aos poucos as referências às

1 UNEB/UFBA. 2 DANTAS, Beatriz Góis. A taieira de Sergipe: pesquisa exaustiva sobre uma dança tradicional do Nordeste do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1972, p. 109-110. 3 O termo taieiras é polissêmico, e um dos significados é o de uma dança que ocorre desde o século XIX e ainda persiste em algumas cidades sergipanas, dentre elas Lagarto e Laranjeiras. Vê em: DANTAS, Beatriz Góis. A taieira de Sergipe…

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nações vão desaparecendo da documentação, sobretudo dos inventários, aparecendo apenas a nomenclatura genérica de africanos.

No período citado houve um crescimento no número de engenhos nas terras sergipanas. Em 1756, havia 46 engenhos, no ano de 1798, 140 unidades e em 1852, 680.4 Lembrando que nesse período ocorreu um aumento da produção açucareira, sobretudo baiana, e, ressalto que Sergipe pertenceu a Bahia até o ano de 18205, portanto, provavelmente o aumento da produção açucareira baiana tinha a participação do açúcar produzido nas terras sergipanas. E com o aumento da produção de açúcar, cresceu a população o que demandou uma maior quantidade de alimentos, a exemplo da farinha de mandioca, e boa parte desses alimentos também era produzida com mão de obra escrava. Além dos alimentos também tinha uma necessidade maior de fumo que era utilizado na comercialização dos escravizados. Assim, possivelmente, por conta desse crescimento houve uma maior importação de escravizados africanos. O ano de 1780 é marcado por uma recuperação no tráfico, principalmente entre o Brasil, mais especificamente Salvador e Recife, e a Costa da Mina.6 Sem a concorrência das Antilhas, o preço do escravo caiu e possibilitou que os senhores de engenho baianos e possivelmente sergipanos comprassem um número maior de escravizados. A produção de açúcar aumentou e a quantidade e viagens anuais para a África em busca de escravizados também aumentou.

Para Sergipe, há alguns indícios desse aumento no número de africanos, pois passaram a existir revoltas de escravizados africanos. O inicio do século XIX pode ter sido um momento de (re)organização das comunidades escravizadas, como também de re-definição da relação senhor e escravo. E talvez por esses motivos ocorreram inúmeras revoltas no período. Uma delas foi com escravizados jejes em São Cristóvão em 1808. Ressalto que Estância, Santo Amaro e São Cristóvão foram palcos de diversas revoltas de escravizados que continham apenas africanos, ou africanos com aliados; índios e crioulos.7 Outro aspecto é o surgimento de algumas irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos homens Pretos, em Santo Amaro (1813), Divina Pastora e Socorro (1817), Rosário do Catete (1818) e Brejo Grande em (1849).8 A existência de revoltas de grupos específicos e de irmandades mostra que nesse período havia um grande número de escravizados, muitos deles africanos e que se identificavam como nações. 4 MOTT, Luis. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: Fundesc, 1986, p. 145-146. 5 NUNES, Maria Thétis. Sergipe Colonial I. São Cristóvão: Editora UFS, 2006. 6 Sem a concorrência das Antilhas, o preço do escravo caiu e possibilitou que os senhores de engenho baianos e possivelmente sergipanos comprassem um número maior de escravizados. A produção de açúcar aumentou e a quantidade e viagens anuais para a África em busca de escravizados também aumentou. 7 NUNES, Maria Thétis. Sergipe Colonial I…, p. 57. 8 MOTT, Luis. Sergipe Del Rey…, p. 57.

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Para termos um melhor panorama da vivência dos africanos na capitania de Sergipe Del Rey, e posteriormente da Província, se faz necessário pesquisar algumas vilas e por isso escolhi seis vilas, a de São Cristóvão, Santo Amaro, Santa Luzia, Itabaiana, Vila Nova e Lagarto. Essa escolha se ampara no trabalho de Marcos Souza que cita as duas primeiras com grandes populações de negros e Santo Amaro como a vila mais rica da capitania e São Cristóvão foi a primeira capital da Província. Já a terceira, tinha a povoação Estância que era o local que mais recebia escravizados africanos9 e as três últimas tinham suas economias caracterizadas por criação de animais e produção de artigos voltados para o mercado interno.10

As três primeiras Vilas localizam-se na zona da Mata, e as demais em região de Agreste e/ou sertão. Os dados das seis Vilas permitirão ter um quadro mais complexo sobre os africanos nas terras sergipanas, já que as características econômicas eram diferentes e possivelmente esse elemento refletiria no número de escravizados por pessoa, na relação senhor e escravo e por fim, no número de africanos. Assim, poderei analisar as vivências de africanos em diversas situações em grandes, médias e pequenas posses; no eito e nas cidades.11

Um conceito que será de grande relevância para a pesquisa será o de construção identidade étnica e pensaremos a partir de um princípio que chamarei de teoria relacional por distinção. Trata-se da teoria relacional de Fredrik Barth que percebe os grupos étnicos como “categorias de atribuição e identificação realizadas pelos próprios atores e, assim, têm a característica de organizar a interação entre as pessoas”.12 Contudo, a organização se dá a partir da diferenciação entre contrastes que se ativam ou não conforme as necessidades apresentadas pelo contexto.

A existência e a permanência de fronteiras na etnicidade ocorrem não pelas semelhanças inerentes a cada grupo étnico, mas pela interação social entre diferentes grupos. Para Barth, quanto maior a interação, mais intensa e marcada se tornaria o limite étnico. Tal limite seria a fronteira dos grupos étnicos, fronteira que seria social, apesar das possíveis contrapartidas territoriais. Segundo o teórico, “se um grupo conserva sua identidade quando os membros interagem com outros, isso implica critérios para determinar a pertença e meios para tornar manifestas a pertença e a 9 NUNES, Maria Thétis. Sergipe Colonial I…, p. 227. 10 MACIEL, Carlos Roberto Santos; SANTOS, Carlos José Andrade e SANTOS, Ronaldo Pinheiro dos. Arraia-Miúda: uma analise sobre a propriedade escrava e da população cativa em Lagarto-SE (1880-1850). Estância: Monografia de conclusão de curso - UNIT, 2007. 11 Nicolau Parés analisando Santo Amaro, Salvador e Cachoeira percebeu que as redes de tráfico eram diferenciadas. E que havia regionalidades na classificação étnico-racial, e que as proporções de africanos variavam de acordo com o período e a região. Vê em: PARÉS, Nicolau. A formação do Candomblé: História e ritual da nação jeje na Bahia. São Paulo: UNICAMP, 2006. 12 BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: Teorias da etnicidade. São Paulo: UNESP, 1998, p. 189.

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exclusão”.13 Desse modo, o sentimento de pertencimento a um grupo se daria pela diferenciação e pelo contraste entre os seus respectivos sinais diacríticos. Esses sinais serão buscados nessa pesquisa.

Há diversos autores que abordam a cultura dos africanos e o seu legado no Brasil, e essa preocupação remete ao final do século XIX e início do XX. Dentre os autores principais que escreveram sobre a temática temos Nina Rodrigues e Arthur Ramos para Sergipe temos Silvio Romero e João Ribeiro.

O sergipano Silvio Romero já em 1888 chamava atenção para a necessidade e a urgência de se estudar os africanos no Brasil, já que eles estavam morrendo e também por serem um importante objeto das ciências humanas em potencial.14 Nina Rodrigues pouco depois escreveu “Os africanos no Brasil” no inicio do século XX15, com o intuito de entender algumas virtudes e os diversos “vícios” que os brasileiros possuíam provenientes dos africanos e atendendo ao apelo citado de Silvio Romero. Segundo Nina Rodrigues os africanos contribuíram poderosamente para a construção da nossa nacionalidade, com a sua língua e porque não dizer na religiosidade, elemento que tanto intrigou e fascinou o médico. Ele aponta que os africanos eram distintos e possuíam capacidades diferenciadas e por isso se faz necessário conhecê-los em separado.

Nina Rodrigues vê a Bahia como um lócus privilegiado para estudar os africanos, pois ainda existiam africanos vivos na Bahia no inicio do século XX, ou seja, contemporâneos ao autor. Segundo ele os “sudaneses” (africanos ocidentais) foram majoritários dentre os africanos traficados ao país. Ele critica Silvio Romero e João Ribeiro por dizerem que os bantus eram maioria entre os africanos no Brasil. Ele afirma que ambos observaram apenas Pernambuco e Rio de Janeiro por isso chegaram a essas conclusões. E João Ribeiro teria reproduzido as idéias de Spix e Martius de defesa da supremacia numérica dos chamados bantos. Nina Rodrigues acreditava que havia uma hegemonia dos bantus apenas em Pernambuco e no Rio de Janeiro, e um indicativo disso eram as coroações do reino do Congo, mas essa informação não refletiria a totalidade da realidade brasileira. Para ele havia uma superioridade intelectual e social dos “sudaneses” em relação aos demais africanos..16 13 Ibidem, p. 195. 14 ROMERO, Silvio. História da Literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, Tomo primeiro, 3ªed., 1943. 15 RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. Brasília: Editora de Brasília, 8ª ed., 2004. A obra começou a ser impressa em 1906, no entanto, foi interrompida por conta do falecimento do autor, só foi publicada em 1936, através dos seus discípulos. 16 Ibidem. Lucilene Reginaldo aponta os motivos que fez com que Nina Rodrigues visualizasse os yorubas na Bahia. Primeiramente por conta de uma atenção dada aos terreiros de candomblé desse grupo, segundo, por acreditar na superioridade desses africanos; Terceiro motivo é o fato do tráfico de escravizados no final do XVIII e século XIX ter importado um grande número de escravizados da região do Golfo do Benim e esses eram os africanos que

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Um aspecto de grande relevância para a nossa pesquisa é a discordância entre Silvio Romero, João Ribeiro e Nina Rodrigues. Podemos questionar se Silvio Romero e João Ribeiro analisaram somente Pernambuco e Rio de Janeiro. Silvio Romero nasceu em 1851 em Lagarto (Sergipe) onde viveu até os 14 anos. Trabalhou em Estância, também localizada em Sergipe, como promotor entre janeiro de 1873 e fevereiro de 1874.17 Também fez várias visitas a cidades do interior sergipano e menciona a grande influência que recebeu na sua infância dos escravizados.18 Conviveu possivelmente com africanos de nação angola, já que a senzala do seu pai era chamada de Angola do Velho André. E, João Ribeiro nasceu em Laranjeiras e viveu em Sergipe até os vinte anos, de 1860 a 1880. Então migrou para o Rio de Janeiro.19

Um dos pontos de distinção entre as correntes mais antigas e as novas da historiografia diz respeito à utilização das fontes históricas. Os primeiros utilizaram, principalmente, relatórios oficiais, relatos e crônicas de viajantes. Já os adeptos das novas correntes ampliaram o leque de fontes. Isto surgiu Brasil, sobretudo a partir da década de 1960, quando houve uma maior profissionalização dos historiadores com a criação e consolidação dos cursos de pós-graduação. Registra-se uma proliferação de pesquisas, inclusive na área da escravidão. Os documentos cartorários, documentos eclesiásticos dentre outros que passaram a ser considerados fontes históricas e foram incorporados nas pesquisas, além dos já citados anteriormente.20 Rodrigues conheceu e por fim por ter se concentrado sua pesquisa em Salvador. Vê em: REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Angolas: irmandades negras, experiências escravizadas e identidades africanas na Bahia setecentista. Campinas: [s.n.], 2005. 17 GUARANÁ, Armindo. Dicionário bio-bibliográfico sergipano. Rio de Janeiro: Governo do Estado de Sergipe, 1925, p. 492-493. 18 Sílvio Romero coletou vários contos em Sergipe e esses são provenientes de Lagarto e Estância. Nas memórias do livro do seu sobrinho, Abelardo Romero, ele menciona que o seu tio gostava de ouvir as histórias de Zefa Nó. Esta era uma mulher livre, negra e moradora de Lagarto. Um ponto interessante de um dos contos é que o negro é enganado por um macaco que acumulava trapaças para conseguir dinheiro e queria ir para Angola. Uma menção direta a uma das nações criadas no tráfico e que pelos indícios encontrados até o momento de boa parte da dos africanos que viveram em Lagarto. ROMERO, Silvio. O macaco e o rabo. In: Folclore Brasileiro 2: Contos Populares do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959, p. 389-390. E na entrevista concedida a João do Rio, menciona a vivência que teve com os escravizados em Lagarto. Vê em: ROMERO, Silvio. Resposta ao inquérito de João do Rio, realizado entre intelectuais do Rio. O Momento Literário, Rio de Janeiro, 1906. 19 GUARANÁ, Armindo. Dicionário bio-bibliográfico sergipano…, p. 271-272. 20 Ressalto que acerca desse tema houve, durante algum tempo, a idéia de não existirem documentos para pesquisar sobre a escravidão, por conta das ordens de Rui Barbosa que mandou queimar boa parte do acervo. Vide: SLENES, Robert. “O que Rui Barbosa não queimou: novas fontes para o estudo da escravidão no século XIX”. Estudos Econômicos, v. 13, n° 1, p. 117-150, 1983.

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Essas inovações foram mais sentidas na década de 1980, quando emergiram novos autores.21 Entre estes destacam-se João José Reis, Maria Odila Leite Dias, Silvia Lara, Robert W. Slenes, Flávio Gomes e Sidney Chalhoub. Alguns dessa corrente tiveram como influência teórica, entre outros, Eugene Genovese e Edward P. Thompson. Esses intelectuais buscaram ver o escravo como agente histórico e possibilitaram a emergência de estudos sobre, mulher, família escrava, os significados da liberdade e as estratégias para consegui-la, os africanos e suas identidades, e sinalizaram a importância das irmandades para compreendê-las, além de outras temáticas.

João José Reis, em um artigo mostrará que em torno de uma irmandade, como a de Nossa Senhora do Rosário se erguia uma identidade social, a mesma irmandade também era um espaço de solidariedade coletiva. As irmandades também gozavam de uma autonomia e eram um espaço para entender a alteridade no interior da comunidade africana.22 Um grande diferenciador das irmandades de pretos era a nação, as últimas se dividiam em crioulos e africanos, e esses em etnias de origem, ou em nações termo usado na época como os nagôs, angolas, benguelas dentre outras. Ressaltando que os termos nagôs, jeje, angola são referentes ao tráfico e aglutinam diversos grupos étnicos provenientes da África, por conta disso, esses termos são reveladores quando se trata de identidades assumidas e construídas pelos africanos. E as irmandades foram um espaço onde essas construções ocorreram. As identificações citadas eram feitas pelos senhores, no entanto, não satisfaziam aos escravizados. Essas identificações eram importantes na construção de alianças e de definição de opositores.

Segundo Slenes, as possibilidades de construções de identidade variaram, pois nas fazendas por conta das distâncias entre as propriedades, e por conta da pouca mobilidade espacial dos africanos dificultava a permanência de identidades oriundas da África. Por isso, as fronteiras étnicas tinham que ser (re)elaboradas. Nas cidades era mais fácil de encontrar pessoas do mesmo grupo étnico e com isso manter as

21 Ver em: CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: Uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1986; DIAS, Maria Odila Leite. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1992; SLENES, Robert W. Na Senzala, uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. LARA, Silvia H. Campos da Violência: Escravizados e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. REIS, João J. Rebelião Escrava no Brasil: A história do levante dos malês (1835). São Paulo: Brasiliense, 2. ed., 1987. 22 REIS, João José. Identidade e diversidade étnicas nas irmandades negras no tempo da escravidão. In: Tempo. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Universidade Federal Fluminense; Departamento de História, v. 2, n. 3, jun., 1997.

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antigas identidades. No mundo rural elas foram reconstruídas no cotidiano, na luta com o senhor e na busca de pessoas para se relacionar.23

Utilizando os inventários post-mortem e testamentos, cataloguei 1797 homens e mulheres escravizados na Capitania de Sergipe no período citado, desses 276 não tinha dados sobre a nacionalidade, outros 444 eram africanos e dentre esses 238 eram angolas. Os africanos eram 29,19% da população escrava. No entanto, essa porcentagem variou de Vila para Vila, a de Lagarto possuía a menor proporção de africanos 17,91%, as maiores proporções foram Itabaiana e Santo Amaro. A Vila de Lagarto conforme foi mencionado anteriormente tinha como principal característica a produção de artigos voltados para o consumo e mercado interno, e por isso os senhores possivelmente não acumularam capital suficiente para adquirir africanos. Itabaiana era uma Vila que tinha características próximas as de Lagarto, no entanto, alguns dos grandes senhores da Povoação de Laranjeiras, que produziam açúcar, tinham casas em Itabaiana e por isso optaram em fazer seus inventários na citada Vila, como também pela proximidade da povoação da Vila de Itabaiana. E a Vila de Santo Amaro era caracterizada por uma produção açucareira e por isso os senhores possuíam capital para a aquisição de escravizados africanos. Mott afirmou utilizando como referência uma lista de plantadores de mandioca de uma povoação de São Cristóvão que o número de africanos não era 1/3 da população escrava.24 Decerto em algumas localidades possivelmente chegou perto dessa cifra e em outras a porcentagem era menor. Ressalto que para algumas Vilas existe uma documentação parca, e por isso, essas porcentagens são apenas uma amostra.

Dentre os africanos que consegui identificar a nação, os angolas são majoritários. Os angolas eram 15,64% da população escrava e correspondiam a 53,60% dos africanos. Os demais africanos eram jejes, congos, minas, benguelas dentre outros.

Utilizando outra documentação a lista de plantadores de mandioca, produzida em 1785, também identifiquei que os angolas foram majoritários. Eles correspondiam a 72,65% dos escravizados que se envolviam com o cultivo da mandioca na Ribeira do Vaza Barris na Cidade de São Cristóvão.25Ou seja, eram a maioria dentre os africanos nas terras sergipanas.

O sentido do termo Angola variou no tempo e de acordo de quem estava chamando. Para os europeus do norte, os africanos da região ao sul do Cabo Lopes na África central eram denominados de angolas, para os portugueses em 1570 se referia a região que estava sob os domínios do Ngola a Kiluanje, que se localizava ao longo do rio Cuanza. Ainda no XVIII, os portugueses denominavam de angolas, os escravizados traficados pelo porto de Luanda que se referia a região conquistada

23 SLENES, Robert. “Malungu, ngoma vem!” África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP, 12, p. 48-67, 1991/92. 24 MOTT, Luis. Sergipe Del Rey… 25 Lista de plantadores de Mandioca, 1785, APEB.

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como reino e conquista d´Angola. Nesse período no Brasil o termo angola se referia a Luanda, ou seja, africanos escravizados através de protocolos governamentais pelo porto de Luanda. Já o termo angola para os ingleses e franceses no XVIII se refere aos africanos que foram traficados nas baías ao norte do Zaire-Mayumba, próximo a Cabo Lopez, depois Loango, Malimbo, Cabinda e da foz do rio Congo, maneira como era conhecida o rio Zaire. No final do XVIII, os franceses adquiriram angolas da região de Benguela.26 Assim, os angolas que vieram para Sergipe possivelmente foram exportados pelo Porto de Luanda.

A maioria dos centro-africanos tinham suas identidades sociais baseadas em laços familiares e de comunidades locais por isso lutavam para reconstruir esses laços e por uma identidade nos novos lugares que chegavam. As comunidades começaram a existir quando existia um número elevado de africanos de origens semelhantes e se confrontaram com outros escravizados de origens diversas. Características específicas de um grupo pouco contava na reelaboração dessa identidade, pois elas tendiam a ser gerais. Identificavam-se como escravizados para se contrapor aos seus senhores e velhas insígnias africanas serviam para se contrapor frente a outros africanos

Dessa forma, os angolas passaram a se identificar como angolas possivelmente no século XVIII, momento que entraram um número maior de angolas. E de outras nações como os jejes, assim esses angolas podem ter formado uma comunidade em algumas Vilas. Um indício disso, era a irmandade do Rosário dos Homens Pretos da Cidade de São Cristóvão. No estatuto dessa irmandade do século XVIII, os angolas dividiam a mesa diretiva com os crioulos, isso demonstra que eles tinham poder e eram numerosos. O número que conseguimos é apenas uma amostragem, pois inventários post-mortem era feito por uma parcela da população e possivelmente alguns desses documentos não chegaram ao século XXI.

Tem notícias dos angolas em Sergipe no inicio do século XVIII, na Vila de Santa Luzia, João, um escravizado angola, era caracterizado como um moleque em 1720. E Domingos era velho em 1759.27 Ou seja, o alvorecer dos Setecentos já havia angolas em Sergipe e eles continuaram entrando no decorrer de todo os Setecentos, pois Damião tinha aproximadamente 20 anos em 1798.28

Poucos desses angolas viviam nas senzalas sozinhos, boa parte deles tinham outros parceiros e dentre esses muitos angolas. Assim, eles tinham pessoas que podiam não falar a mesma língua, mas que compreendiam o que o outro falava.

26 MILLER, Joseph C. A África central durante a era do comercio dos escravizados de 1490 a 1850. In: HEYWOOD, Linda M. Diáspora Negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 29-80. 27 Ignacio da Costa Feyo, doc. 5 Cx32 coleção Sebrão Sobrinho, 1759. 28 Joana Maria de Deos, doc.5 Cx32a coleção Sebrão Sobrinho.

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Alguns proprietários possuíam 15 angolas29, mesmo considerando a possibilidade que eles viviam em propriedades distintas, todavia, possivelmente eles tinham outros parceiros de uma mesma nação. Foi comum nas terras sergipanas os angolas conviverem com dois ou três angolas na mesma propriedade. Essa convivência sob a escravidão, compartilhando de experiências comuns, línguas compreensíveis, contribuíam para a formação de uma identidade angola.

Grande parte dos angolas eram lavradores, muitos plantavam mandioca e faziam a farinha desse produto, outros eram de todo serviço, como Miguel, escravizado por Paulo Ribeiro e Maria de Oliveira em São Cristóvão.30 Tinha ainda os que plantavam cana de açúcar. Alguns autores pontuam que os traficantes faziam propaganda das habilidades dessa ou aquela nação e que os senhores compravam de acordo com essas propagandas, escravo apto para o trabalho no eito, ou nas minas, assim sucessivamente. Os senhores sergipanos ou optavam pelos angolas para o trabalho no eito, ou compravam os africanos que eram possíveis dentro da perspectiva de capital reduzido.

Poucos escravizados angolas tinham um oficio especializado, apenas 3, um banqueiro, uma purgadeira e um serrador. Os dois primeiros envolvidos no fabrico do açúcar, o banqueiro substituía o mestre de açúcar, era um oficio de grande responsabilidade e que recebia a confiança do Senhor. Manoel Pacheco, o banqueiro, era um escravizado velho e casado com Roseiria, ambos escravizados pelo coronel Manoel Joze Nunes Coelho de Vasconcelos e Figueiredo. Ou seja, um escravizado que tinha relações que ele possivelmente lutava por mantê-las e por isso não colocaria a produção de açúcar em risco, pois não ia querer ser castigado ou vendido e assim perder essas relações. Segundo Antonil, o banqueiro deveria conhecer os tipos de cana e de solo, para atingir um bom nível do açúcar. As canas de açúcar de lavradores distintos não podiam ser moídas juntas, pois as canas eram distintas, tinham pontos diferentes, e a mistura podia implicar na perda do açúcar.31 Esse escravizado passou por um processo de aprendizado, possivelmente havia na sua senzala outro escravizado mais antigo que ensinou o oficio e o trato com as canas, e outro escravizado que falava a sua língua ou o mesmo que permitiu eles serem compreendidos. A purgar possivelmente era uma atividade feminina, era o oficio responsável por limpar o açúcar das impurezas, segundo Antonil era uma atividade feminina, ele menciona que eram quatro escravizadas no engenho que ele observou.32 Da mesma maneira que a atividade anterior o purgar também exigia um

29 Joana Maria de Deos, doc.5 Cx32a coleção Sebrão Sobrinho. 30 Manoel Joze Nunes Coelho de Vasconcelos e Figueiredo, Arquivo Geral do Judiciário de Sergipe, cartório São Cristóvão, 1777, Cx. 01.14. 31 ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. Belo Horizonte : Itatiaia/Edusp, 3. ed., 1982, p. 34. 32 Ibidem, p. 57.

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aprendizado, de saber lavar o açúcar e retirar a água excedente, e saber a quantidade de vezes que precisava repetir o processo.

De acordo com os inventários post-mortem e os testamentos tinham 137 homens e 101 mulheres. E através da lista cheguei aos seguintes dados: 78 mulheres e 106 homens. Ou seja, não havia uma discrepância numérica tão acentuada dentre homens e mulheres angolas. Empregar as mulheres angolas podia ter vários motivos, as mulheres podiam trabalhar no eito, sobretudo, na produção de mandioca, outro motivo é que as mulheres eram mais baratas e por isso mais acessíveis para os senhores das terras sergipanas, por fim, a reprodução, essas mulheres teriam filhos escravizados por isso contribuiriam na reposição de mão de obra.

Em alguns casos, nos inventários que o escrivão foi mais minucioso, é possível identificar alguns casais de escravizados. Em São Cristóvão, encontrei três mulheres angolas que casaram, uma delas com um congo, outra com um identificado como apenas africano e o outro sem menção a nação. Também identifiquei dois homens angolas que casaram, ambos com mulheres geges.

Para Maruim, encontrei dois homens e duas mulheres angolas casados, os dois primeiros não consegui identificar suas noivas, no entanto, as mulheres eram casadas com os escravizados geges do mesmo senhor.33

Em uma das vilas têm registros de casamentos para o final dos Setecentos, entre 1791 a 1800, encontrei 25 casamentos na Vila de Lagarto que envolvia pelo menos um homem ou uma mulher escravizada angola. 20% dos casamentos realizados no período que envolvia um homem ou mulher escravizado, ou forro. Esses 25 casamentos ocorreram na Matriz da Freguesia. O casar significava ter acumulado algum dinheiro, ou conseguido negociar que os seus senhores pagassem. O pároco de Vila Nova menciona que o casamento na Vila em 1798 era 240 réis.34 além do consentimento, também era necessário um dia de folga, pois era necessário ir a sede da Vila, alguns deles foram com seus senhores, porque houve senhor que testemunhou casamento, bem como escravo. No entanto, as duas situações não foram comuns. Mas todos os casamentos tiveram duas testemunhas, e em sua maioria dois homens livres.

Dezesseis mulheres angolas e o mesmo número de homens angolas puderam oficializar seus relacionamentos na Freguesia de Nossa Senhora da Piedade na citada Vila. Das 16 mulheres angolas, sete casaram com angolas, duas com homens da Costa da Guiné, um deles era forro, por fim, sete mulheres angolas contraíram núpcias com homens nascidos no Brasil. Dos nascidos na própria Freguesia, cinco eram escravizados, quatro eram crioulos e um mestiço. Outro era um pardo forro e por fim um livre. Dos 16 homens angolas, nove casaram com escravizadas nascidas

33 Inventários post-mortem do cartório do Maruim, cx. 01/807 e 01/1764. 34 Inventário: 466, cx. 09, documento 5-A, 14 de dezembro de 1789, documentos da Capitania de Sergipe, Projeto Resgate.

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no Brasil, dentre essas oito eram crioulas e uma era índia. Ou seja, 28% dos casamentos foram endogâmicos, 43,75% dos homens e das mulheres contraíram esse tipo de união, 31,25% das mulheres casaram com brasileiros, enquanto que os homens a percentagem é de 56,25%, 12,5% das mulheres casaram com africanos da Costa da Guiné.

As posses de escravizados também eram em sua maioria de pequeno e médio porte, o que dificultava as possibilidades de escolha no interior da posse. Das 13 angolas que casaram com homens escravizados, doze eram casadas com parceiros de trabalho. E dos 15 angolas que casaram com escravizadas, 13 casaram com parceiras de trabalho. Ou seja, as mulheres e homens pertenciam ao mesmo senhor. Esse aspecto restringia as possibilidades de escolha de um companheiro, pois o primeiro limite era encontrar um escravizado pertencente ao mesmo senhor. Esse elemento não causava transtornos para o senhor, pois os escravizados não precisavam se deslocar para encontrar seus cônjuges, e para os escravizados também era mais cômodo, pois após um dia de labuta encontraria seus cônjuges nas suas senzalas cotidianamente.

As possibilidades de casar com um angola nessa Vila eram restritas, pois lembro que nesta Vila tinha um número restrito de africanos, incluindo os angolas. Contudo, boa parte dos homens e mulheres angolas preferia casar entre si ou com crioulos. Lembrando que parte dos crioulos eram filhos de africanos, abarcando os angolas. Assim, teriam facilidade de se comunicar, possuiriam valores culturais semelhantes o que facilitaria no cotidiano. As mulheres angolas tinham maiores possibilidades de casar com africanos que os homens, pois além dos angolas e crioulos, casaram com os homens da Guiné com mestiço e pardo. Incluindo homens não escravizados. Dos angolas apenas o que casou com a Índia casou com uma mulher não escravizada.

Algumas mulheres angolas possivelmente eram bem mais novas que seus noivos. Rose angola, de maior, casada com Antônio Congo, velho, caldeireiro, ambos escravizados pelo cel. Manoel Joze Nunes Coelho de Vasconcelos e Figueiredo.35 Ou ainda, Luis de Fransa, da costa da Guiné, viúvo de Luduvica escrava de Maria Francisca, era casado com Maria angola, escrava de João da Costa Pereira.36 Ou seja, casavam com homens que já possuíam uma vivência na Colônia, já conheciam a língua, e assim ajudavam-nas a familiarizar com a vida no Novo Mundo.

Ressalto que existiam outros arranjos familiares, as uniões formalizadas não eram as únicas e possivelmente não foram as mais comuns. As mulheres angolas tinham filhos e conviviam com eles, algumas delas, a exemplo de Mariana angola casada com

35 Inventário post-mortem de Manoel Joze Nunes Coelho de Vasconcelos e Figueiredo (cel), cx.01.14, cartório de São Cristóvão. Arquivo geral do Judiciário de Sergipe. 36 Livro de casamento, nº2, 31/05/1792, p. 77, Paróquia de Nossa Senhora da Piedade do Lagarto.

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João Angola, residiam em São Cristóvão, e ela conseguiu a alforria em 1808 por ter tido 10 filhos para o seu senhor.37

Em suma, os angolas foram majoritários na Capitania de Sergipe Del Rey. No entanto, o número de angolas variou de acordo com a Vila, algumas possuíam inúmeros africanos, outras o número era parco. Há indícios da presença deles na Capitania desde o inicio do século XVIII. Alguns homens e mulheres angolas tiveram a oportunidade de casar, e uma parte conseguiu contrair núpcias com pessoas que possuíam semelhanças.

37 Livro de Notas, São Cristóvão, p.121 e 121v, 26/08/1817.

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Identidades em movimento: “senhores” e “escravos” no cotidiano escravista brasileiro

Josenildo de J. Pereira1

A formação histórico-social e cultural brasileira, no contexto do “Novo Mundo”,

em linhas gerias, decorre de um processo tenso e complexo urdido a partir do encontro de povos com fundamentos culturais diferentes, a saber: europeus, africanos e nativos da terra; bem como do modo como os sujeitos egressos dessas sociedades foram inseridos na dinâmica desse processo; mas, também, da maneira como conseguiram refazer as suas experiências de vida em face das contingências que aquela realidade impôs aos mesmos. Desse modo, se compreende o Brasil como uma invenção transcultural a despeito do fato de homens e mulheres de Portugal terem sido tornados os proprietários rurais porque usurparam a terra daqueles que nelas viviam e que diversos povos africanos tenham, aqui, sido estabelecidos como escravos.

A complexidade da tessitura do Brasil no contexto do “Mundo Atlântico” não permite que esse processo histórico e os seus sujeitos sejam compreendidos a partir da formulação de identidades genéricas do tipo: “empresa mercantil”; “escravidão negra”; “colônia”; “senhores” e “escravos”. No entanto, ainda hoje, no Brasil contemporâneo, dado a força do pensamento iluminista, o liberal e o racista esse processo e os seus constituintes são lidos sob a ótica de um par dicotômico – a Colônia versos a Metrópole; a Casa-Grande versos a Senzala; os livres versos os escravos; os escravos versos os senhores; as mulheres versos os homens; os negros versos os brancos sugerindo que se trata de sujeitos e de territórios estanques e, no limite, a-históricos porque a tessitura de suas vidas não resultava do modo como urdiam o seu cotidiano a partir das relações que estabeleciam entre si, envolvidas por sobrevivências de suas heranças culturais ressignificadas em face das necessidades impostas pelas novas condições históricas.

Vale lembrar que os clássicos intérpretes do Brasil contribuíram com os seus argumentos para que estas noções se afirmassem no imaginário social brasileiro. Durante muito tempo acreditou-se que o Brasil foi um feito brilhante da saga portuguesa tal como sugeriu Varnhagen com a tese do “descobrimento do Brasil”.2 Caio Prado Jr3, por sua vez, embora critico desta tese com o argumento de que o Brasil foi, em sua gênese, um “empresa mercantil”, também fez uma interpretação essencialista do Brasil representando sua configuração histórica sob uma perspectiva

1 Prof. do Departamento de História da UFMA e do Programa de Pós-Graduação de História Social – CCH/UFMA. 2 VARNHAGEN, Adolfo. História do Brasil. 3 PRADO Jr., Caio. A formação econômica do Brasil.

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economicista e dicotômica uma vez que a Metrópole definiu os ritmos da história da Colônia estruturando-a com base na grande propriedade agrícola, na agro-exportação mercantil e no trabalho escravo; e, os seus sujeitos históricos – senhores e escravos – em seus lugares bem definidos – a Casa-Grande e a Senzala. Importa destacar que estes lugares foram ratificados por Gilberto Freyre. Este autor, ao desenvolver sua análise sociocultural da formação histórica brasileira salientando a sua dimensão mestiça. Conforme destacou,

O brasileiro, mesmo alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo – há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil – a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. No litoral, do Maranhão ao Rio Grande do Sul, e em Minas Gerais, principalmente do negro. A influência direta, ou vaga e remota, do Africano.4

Ainda assim, ele não conseguiu eximir-se da representação de seus sujeitos

históricos por meio de identidades fixas: “senhores” e “escravos” como urdidores dos mundos do trabalho; as mulheres “brancas” como se aptas para o casamento; as “mulatas” para o sexo e as “negras” para o trabalho. A esse respeito sublinhou que “em tudo que é expressão sincera da vida, trazemos quase todos as marcas da influência negra” (…) “Da mulata que nos tirou o primeiro bicho do pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem”. Em vista disso este autor destaca que, “já houve quem insinuasse a possibilidade de se desenvolver das relações íntimas da criança branca com a ama-de-leite negra muito pendor sexual que se nota pelas mulheres de cor no filho-familia dos países escravocratas”.5

Infere-se de seus argumentos que a mestiçagem brasileira foi biológica por conta das condições naturais das mulheres negras e mulatas pro sexo, bem como porque os homens portugueses foram flexíveis em se misturarem com estas; pois, com bem disse,

conhecessem-se casos no Brasil não só de predileção mas de exclusivismo: homens brancos que só gozam com mulher negra. De rapaz de importante família rural de Pernambuco conta a tradição que foi impossível aos pais promoverem-lhe o casamento com primas ou outras moças brancas de famílias igualmente ilustres. Só queria saber de mulecas.6

4 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 283. 5 Ibidem. 6 Ibidem, p. 284.

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Sob outra perspectiva, com o propósito de “explicar” o tipo brasileiro Sergio Buarque de Holanda (1936) propôs a tese do “homem cordial” como um resultado do fato de o homem português ao contrário do inglês não ter estabelecido nenhum rigor separatista em relação aos outros povos em contato, isto é, os indígenas e os africanos.7

Da análise crítica de tais formulações se infere que estes autores compreenderam a formação histórica brasileira a partir do colonizador europeu como sendo o agente ativo, por excelência, deste processo de tessitura do Brasil subordinando os africanos e os indígenas às suas lógicas econômicas, políticas e socioculturais. O domínio de tais interpretações no imaginário social brasileiro criou as dificuldades para a percepção da presença africana e indígena nesse processo demandadas, hoje, pelas leis 10 639/03 e a 11645/08.

A permanência destas identidades fixas no imaginário social do Brasil contemporâneo contribui para a reprodução de velhos problemas. Em vista disso, se desenvolve neste artigo um exame crítico desse processo à luz da perspectiva dos estudos culturais tendo por orientação teórica a análise do discurso. O foco da análise é a província do Maranhão, em sua área norte, por ter sido esse território no qual foi instalada a agricultura mercantil de exportação e escravista.

A escravidão moderna, em grande parte alimentada pelo tráfico internacional de escravos, tem uma centralidade no processo histórico brasileiro imprimindo marcas até hoje visíveis nas relações sociais, econômicas e culturais do país. No contexto da invenção do Brasil, a articulação entre os resíduos culturais europeus, africanos e as culturas indígenas, bem como, o lugar e as condições de trabalho, a condição jurídica das pessoas, o lugar de morar, as roupas, o padrão alimentação, bem como, as experiências do sagrado e o lazer foram elementos chaves de distinção no que diz respeito à visibilidade das pessoas no coletivo social.

Os estudos acerca da escravidão e da resistência escrava são antigos, diversos e diferentes devido aos problemas formulados e às abordagens teórico-metodológicas de seus autores. Nos anos de 1930, Gilberto Freire sugeriu que, nesse contexto, as relações escravistas de trabalho eram suaves e paternais em relação ao sul das colônias inglesas no Norte da América sublinhando que,

o Brasil nunca foi o país de extremismo, tudo aqui tende a amolecer-se em contemporizações, adocicar-se em transigências pelo senhor de engenho em geral gordo, um tanto mole com rompantes apenas de crueldade, pela mulher também gorda, às vezes obesa e pelo filho e filha, pelo capelão, pelo coronel do mato e pelo feitor”.8

7 HOLANDA, Sérgio B. Raízes do Brasil. 8 Ibidem.

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Essa imagem idílica nos anos 1940/1950 recebeu as devidas críticas.9 Mas, vale advertir que os autores da rebeldia escrava não fizeram mais que inverter o modelo de Freire pintando com obstinação os horrores da escravidão destacando a coerção e a violência física. Conforme VAINFAS, na crítica ao mito do “senhor bondoso” construíram a imagem inversa da escravidão cárcere e acabaram prisioneiros do paradigma que queriam combater, pois para explicarem a “rebelião negra” idealizaram o senhor cruel.10Nesse sentido, SCHWARCZ sublinha que “o escravo passou a ser descrito como um herói, de caráter impecável, bravura extrema e grande sentimento de solidariedade grupal. Assim, o escravo africano foi idealizado tal como o índio de José de Alencar.11

A crítica à estas abordagens abre veredas para novos trabalhos preocupados não em provar se o escravo foi ou não rebelde, mas, em compreenderem o alcance do exercício da subjetividade escrava por meio da análise de seu comportamento no cotidiano da vida social brasileira, pois, como bem sublinham João José Reis e Eduardo Silva, “Zumbi” e ‘Pai João” não esgotam as possibilidades humanas na história da escravidão porque existem tantas outras situações diferentes e complexas mediadas pela negociação.12

Nas últimas décadas, trabalhos como: Visões de Liberdade, de Sidney Shaloub; Negociação e conflito: a resistência escrava no Brasil escravista, de João J. Reis e Eduardo Silva e; Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850 de Marcus J. M de Carvalho têm enriquecido a historiografia brasileira da escravidão revolucionando a análise e a interpretação da condição social do escravo porque apresentam uma interpretação que realça a subjetividade destes na construção de táticas e estratégias para demarcarem o seu território no complexo mundo da escravidão.13

Os escravos, mediados pela submissão e a rebeldia criaram formas próprias de integração no mundo da escravidão instituindo espaços de autonomia e liberdade por meio, não só da fuga, da rebelião ou do quilombo. Considerando-se que não havia uma correspondência rigorosa entre as normas do paradigma jurídico e a experiência social efetiva dos escravos e demais sujeitos que constituintes da sociedade escravista sublinha-se que as identidades desses sujeitos foram construída na dinâmica do cotidiano de suas vidas em face de suas demandas.

9 MOURA, Clovis. Os quilombos e a rebelião negra. São Paulo: Brasiliense, 1981. 10 VAINFAS, R. Ideologia e escravidão: os letrados e a sociedade escravista no Brasil colonial. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 15. 11 SCHWARCZ, Lilia M. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadão em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das letras, 1987, p. 21. 12 REIS, J. J & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das letras, 1989. 13 CHALHOUB, S. Visões de liberdade. São Paulo: Companhia das letras, 1990. REIS, J. J. & SILVA, E. Negociação e conflito…; CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850. Recife: Ed. Universitária/UFPE, 1998.

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Tal proposição não implica em reabilitar a escravidão retirando-lhe o seu caráter violento expresso nas precárias condições sociais em que a maioria dos escravos foi submetida. Mas, chamar a atenção para o fato de que parte dos escravos dependendo das circunstâncias tomou atitudes que negavam a coisificação pretendida por seus proprietários e ou representantes configurando espaços de barganha para demarcarem territórios próprios. Contudo, sabe-se que nem sempre tais atitudes foram tomadas de modo radical e em prol da coletividade escrava; mas, nem por isso menos politizadas.

Desse modo, analisa-se o escravo nem como passivo e, por oposição, nem como um rebelde; mas, como um sujeito que interveio de diferentes modos no complexo mundo da escravidão. Essa interpretação implica em analisar o comportamento dos escravos e as relações escravistas para além de seu corolário jurídico e econômico, ou seja, não ver o escravo, apenas, como um bem móvel, uma propriedade de alguém. Enfim, não considerá-lo, somente, como uma “coisa” a ser comprada, vendida ou alugada no mercado de bens.

De acordo com Maria Odila Dias, no início do século XIX e nos anos que se seguiram apesar dos documentos oficiais estarem comprometidos com o processo da Independência e construção do Estado Nacional, eles registram fragmentos de outras histórias a revelia da vontade de seus autores: escrivãos, delegados, juizes e padres; pois, em meio às querelas entre segmentos das elites econômicas pelo poder político, outros sujeitos escreviam suas histórias.14 No que se refere aos escravos, uns escreviam histórias de luta pelo direito de autonomia e liberdade por meio de fugas, de quilombos e de insurreições; outros escravos, histórias a respeito de indiferenças e conflitos amorosos “resolvidos” por meio da embriagues, de crimes passionais ou de brigas e discussões em público; e alguns, histórias a respeito de angústias e soluções para aplacarem as nefastas consequências psicológicas da escravidão por meio do suicídio, do infanticídio e do homicídio.

Estas variáveis comportamentais são indicadoras do modo como os escravos compreendiam a si e aos seus proprietários e, da mesma forma como estes últimos compreendiam os primeiros. Assim, vale dizer estes eram revestidos de múltiplas identidades tecidas em sua experiência cotidiana gerada no contexto da escravidão - o fator basilar do prestígio, exclusão social e conflitos que se processaram entre os escravos e os proprietários destes, sobretudo. As vidas e as identidades escravas: a experiência do Maranhão

Na capitania do Maranhão, o estabelecimento da agricultura mercantil de

exportação e base escravista, no contexto do colonialismo português, só foi possível a partir de três elementos básicos: 1. a conjuntura econômica internacional favorável

14 DIAS, Maria Odila L. Cotidiano e poder. São Paulo: Brasiliense, 1984.

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aos produtos de exportação; 2. as condições da terra para o plantio de algodão e arroz; 3. a iniciativa de Marquês de Pombal, ministro do Rei de Portugal D. José I, de fundar em 1755, a Companhia Geral de Comércio do Estado Grão-Pará e Maranhão para capitalizar lavradores e abastecê-los de trabalhadores escravos.15 A articulação desses elementos fez com que a capitania do Maranhão fosse integrada ao império colonial português como importante núcleo produtor e exportador de produtos primários: algodão, arroz e açúcar no contexto do circuito das trocas internacionais cumprindo com as determinações do pensamento mercantilista que organizava as atividades econômicas e financeiras vigentes no século XVIII, isto é o comércio importador e exportador em escala internacional de artigos primários, de manufaturas e escravos realizado por meio do monopólio comercial.

No Maranhão, a exemplo de outras províncias, o fazendeiro orientado pelas noções de luxo e poder endividavam-se junto aos vendedores de escravos em decorrência da força da tradição nobiliárquica acrescida de um novo elemento: a escravidão conforme já sublinhou a Schwartz.16

Nas fazendas de algodão localizadas pelos vales dos rios Itapecuru e Mearim, os escravos moravam em ranchos. A maioria deles trabalhava em diferentes serviços de lavoura. Mas, alguns eram empregados nos serviços doméstico das casas-grandes. Nas cidades moravam em cortiços ou senzalas dos casarões - compartimentos pequenos localizados na parte inferior dos edifícios. Em 1811, o viajante inglês Henry Koster observou que

A proporção das pessoas livres é pequena. Os escravos têm muita preponderância, mas essa classe necessita de pouca cousa, no tocante aos gastos, quando o clima dispensa o luxo. as principais riquezas da região estão nas mãos de poucos homens, possuidores de propriedades prosperas, com extensões notáveis, grupos de escravos e ainda são comerciantes.17

Os escravos, por sua vez, tinham um duplo significado: por um lado eram “as

mãos e os pés do senhor”, o símbolo de prestígio e a garantia de acesso aos créditos financeiros no mercado de capitais na época. Mas, em contrapartida eram o motivo de medo e de pânico de seus senhores. Se compreende que a configuração das identidades dos sujeitos constituintes de uma determinada formação social se dá a partir das relações estabelecidas entre ambos e urdidas pelos significados por eles atribuídos a si nesse contexto relacional. Nesse sentido, as identidades de senhores e 15 DIAS, Manuel N. A companhia Geral do Grão Pará e Maranhão (1775-1778). Belém: UFPA, 1970. 16 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das letras, 1988, p. 209-223. 17 KOSTER, H. Viagens ao nordeste do Brasil, p. 234.

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escravos foram tecidas a partir das relações sociais constitutivas das atividades criadas no âmbito da agricultura mercantil de exportação de base escravista.

As tipologias escravos do eito e urbanos eram decorrentes da lógica das atividades rurais e as urbanas. Do mesmo modo, o estado do trabalhador escravo urbano, se de ganho ou de aluguel, o perfil da sua relação com o(s) seu(s) proprietário e o lugar onde desenvolvia as suas atividades. Nesse contexto, o recorte de gênero, também, permite-nos o estabelecimento de distinções quanto ao modo de vida de homens e mulheres, bem como, quanto aos perfis das relações estabelecidas entre estes e os seus proprietários e a demanda pelos mesmos. Por sua vez, o recorte geracional, isto é, se jovem, adulto ou idoso contribui para se compreender a seu significado de escravos quanto ao seu valor no mercado da troca, do aluguel e ou venda. Por sua vez estas variáveis tomadas em seu conjunto contribuem para a compreensão das representações destes por si mesmos, bem como pelos seus proprietários em se tratando do aguçamento dos diversos conflitos que permearam as suas relações.

Ao se considerar a lógica destas variáveis na tessitura do cotidiano da sociedade escravista moderna compreende-se que o sentido de ser escravo e de ser senhor transcende as identidades primárias definidas pelo ato de compra e venda de um escravo – proprietário e propriedade; ou seja, que ser escravo e ser senhor não estava, no limite, circunscrito às determinações jurídicas e econômicas. As vidas dos escravos: um esboço sumário

A vida de escravos, sobretudo, masculinos no cotidiano de fazendas maranhenses era extenuante e apática, salvo os momentos de lazer propiciado pelo toque de tambor. Com ou sem família moravam em ranchos precários e submetidos a uma jornada de 12 a 14 horas trabalho sob o rigor do sol e do chicote. O tempo do trabalho era constituído pelo conjunto de atividades que caracterizavam o método da coivara, ou seja: a queimada, a destocagem, a limpeza da terra, o plantio e, por fim, a colheita. Esse tempo de trabalho era mediado pelo tempo da natureza o qual, em parte, contribuiu para a configuração pelos escravos de seu tempo de fuga visto que muitos fugiam, geralmente, no período das chuvas, tempo de plantio de gêneros para alimentação como mandioca, feijão e milho; ou no verão, tempo em que se fazia a colheita de algodão.

As mulheres escravas, geralmente, cuidavam de atividades relativas ao trabalho doméstico e, ainda eram parteiras e amas de leite de filhos dos fazendeiros; por isso, em alguns casos eram alforriadas indicando alguma distinção de seus senhores. Contudo, isso não era a regra porque os escravos estando sujeitos às situações de violência física e simbólica eram levados, em alguns casos, à morte porque proprietários e feitores considerando aspectos jurídico e econômico que envolviam o escravo se achavam com direito de vida e de morte sobre os mesmos.

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Nesse sentido é lícito supor que a escrava Izidora foi surrada por não se submeter ao “apetite sexual” do feitor José Joaquim Moreira dos Santos, da fazenda Outeiro, de propriedade de Jacinto José de Sousa, localizada no termo do Codó, ribeira do Itapecuru. Em abril de 1860 foi instaurado o processo contra esse feitor por pratica de homicídio após ser constatado por meio de exame de corpo de delito que o ele aplicou-lhe, com violência, o castigo com uma taca (surra), de modo tal que poucas horas depois de o fazer, a escrava veio falecer.18 Desse modo, a violência como urdidura das relações sociais escravistas fez com que os escravos reagissem à mesma de o modo mais diverso possível.

Com a abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional, a cidade experimentou uma relativa prosperidade traduzida na edificação de prédios suntuosos enriquecidos com os azulejos portugueses. Segundo Koster, as pessoas ricas mesmo possuindo casas confortáveis, escravos e grandes somas de dinheiro não tinham onde gastar. Por isso, se dedicavam quase sempre ao jogo e, muito raramente, à leitura.19

As ruas da cidade eram lugares para quase tudo: torrar café, secar peixe, oficinas em plena via como nas cidades medievais, cadeiras nas calçadas, rios de águas servidas, amontoado de lama, sobretudo no inverno. Algumas vezes, também, animais mortos compunham o cenário urbanístico da cidade. Conforme Vieira Filho, em meio à circulação de mercadorias era comum, às seis horinhas, no luso-fusco, topar alguém com os escravos carregando os tigres e os cabungos, enormes recipientes contendo a vasa das casas de sobrados que iam a despejo nas praias que circundavam a cidade.20

Para os escravos as ruas, os becos e as esquinas eram lugares para muitas coisas: o trabalho, o namoro, a intriga, a vingança; mas, também, a diversão e o lugar para a organização e a efetivação da luta contra as intempéries do mundo urdido pela escravidão. Conta-nos Vieira Filho, que na atual rua Afonso Pena, esquina com a rua José Augusto Correia situava-se o Canto-Pequeno - o local preferido dos escravos de canga ou de ganho, no qual, em dias de semana, com suas rodilhas, esperavam quem deles quisesse para abastecerem de água as suas casas. E em alguns domingos antes do Carnaval, costumavam aí se reunirem em atordoada medonha. Tal alarido fez com que, em 1863, um morador reclamasse às autoridades policiais por meio de nota no Jornal Publicador Maranhense, assim:

Entrudo: - Sôbre este inocente brinquedo, pede-nos um nosso assinante, que chamemos a atenção da polícia para a grande algazarra e ajuntamento de prêtos, que todos os domingos

18 Oficio de delegado de polícia de Codó. Livro dos crimes e factos notáveis/APEM. São Luís-MA. 19 KOSTER, H. Viagens ao nordeste do Brasil. p. 244. 20 VIEIRA FILHO, Domingos.

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fazem no canto-pequeno, a ponto de impedirem o trânsito das famílias”.21

Do mesmo modo, Vieira Filho sublinhou que, em meio ao baixo arvoredo do

Apicum da Quinta, era comum nos fins de semana a reunião de escravos gerando um grande alarido por meio do rufar de seus tambores. Mas, segundo aqueles imersos em referentes culturais europeus, os sons, as falas e os requebros das danças dos escravos significavam apenas “magotes de escravos em algazarra infernal que perturbava o sossego público”. A esse respeito, em 1853, um morador dessas imediações reclamou pelas colunas do Jornal “Eco do Norte” contra a folgança dos escravos dizendo que “ali fazem certa brincadeira ao costume de suas nações, concorrendo para semelhante fim tôdas pretas que podem escapar ao serviço doméstico de seus senhores, de maneira tal que com êste entretimento faltam ao seu dever…”.22

Para os escravos, esses momentos significavam muitos mais do que o reviver de suas tradições africanas, mas, instantes de negação da lógica de exploração a que estavam submetidos, pois se trata como sugere o crítico misterioso – da experiência do não trabalho por parte dos escravos. Pois, tal como sublinha, concorriam “para semelhante fim tôdas pretas que podem escapar ao serviço doméstico de seus senhores, de maneira tal que com êste entretimento faltam ao seu dever…”.

As atitudes escravas foram quase sempre representadas pelos seus proprietários e interlocutores: autoridades políticas, judiciais e policiais, jornalistas, de modo preconceituoso e pejorativo, como atitudes de “mal feitores”, de vadios, de fujões. Mas, da perspectiva dos escravos, o que significava os furtos, as fugas, os quilombos, os homicídios, a insurreição, os suicídios, a embriaguez, o jogo, a transgressão de posturas urbanas? Entre os anos da independência e a década de 1870 a província do Maranhão foi palmilhada por inúmeras tensões e conflitos entre segmentos das elites como a Setembrada de 1823 e, entre esses segmentos e os trabalhadores: sertanejos e escravos, como a Balaiada em 1839/41.

Nesse intervalo de tempo, as autoridades públicas, os lavradores de algodão, de açúcar conviveram com fugas escravas, quilombos e insurreições escravas de modo descontínuo.Em relação ao campo destacam-se os seguintes fatores: 1. Os escravos estavam mais diretamente sujeitos à violência física e, por isso, parte deles estava sempre atenta às circunstâncias que lhes favoreciam definir espaços de autonomia e liberdade; 2. o perfil e o alcance da mobilização escrava quase sempre esteve articulado às condições conjunturais da Província nos aspectos socioeconômico, político, e ao tráfico internacional; 3. a precariedade da segurança oferecida pelo aparelho de Estado aos lavradores.

21 Apud. FILHO. VIEIRA FILHO, Domingos. p. 15. Ed. De 9.01.1863. São Luís. 22 Ibidem, p. 24. Ed. de 6 de junho de 1853, São Luís.

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As fugas de escravos na região de grande lavoura da Província do Maranhão sempre ocorreram. Nessa perspectiva, supõe-se que Matheus, idade 16 anos, escravo mulato, em junho de 1842, fugiu da fazenda de José Maria Viana, em de Caxias. Os sinais de castigos nas nádegas, um dedo torto em uma das mãos e, por ser prosista, indicam que Matheus apesar da pouca idade era conhecedor dos rigores da escravatura e das possibilidades que a cidade oferecia para os que nela buscavam “abrigo” e anonimato.23 A fuga do interior para a cidade devia-se ao fato de ser esta, um território tecido por diversos caminhos e veredas oferecendo aos “escravos fugitivos” oportunidades de trabalho.

As fugas, entre outros sentidos, significavam para os escravos um modo de realizarem suas aspirações quanto a vida. Mas, para os lavradores eram uma verdadeira ameaça deixando-os angustiados. Tal situação mobilizava-os em torno de autoridades públicas com o objetivo de resolverem o que concebiam como uma questão de segurança pessoal, familiar e propriedade entendendo que o Estado devia-lhes proteger e garantir os direitos de cidadãos.

Os quilombos, desde o Século XVIII já existiam no Maranhão.24 E ao longo do Século XIX, continuaram a existir, deixando ainda mais em pânico os lavradores, fazendo-os solicitar constantemente aos presidentes da Província, força policial, assim como, a construção ou reparos de cadeias. O processo de sua constituição fazia-se a partir da fuga para a mata de onde saíam em pequenos grupos para fazerem a “sedução” de outros escravos de fazendas dispostas pelo interior, pela Baixada e o Litoral da Província. Esse comportamento atemorizavam os lavradores, tal como informa o Sr. Faustino Mariano Lopes, Juiz de Paz de Santa Helena, ao Presidente da Província, no dia 30 de maio do ano de 1832, dizendo-lhe que:

O delegado Paulo Francisco Fernandes deste distrito, informa (…) sobre escravos fugidos, e se lhes consta que existão pelos circuitos de algumas fazendas e desencaminhado os escravos de alguns lavradores e a (?) passarem armados”.25

A representação – escravo fugido contém um duplo sentido. Por um lado, a

desqualificação da luta dos escravos pelos seus proprietários. Por outro, o conhecimento pelos escravos de suas potencialidades políticas em determinadas conjunturas. A este respeito vale citar e analisar o teor do abaixo assinado por proprietários de terras da região o Pericumã, na Baixada Ocidental maranhense. Em 23 JPM, 20 de janeiro de 1844. Repartição de Polícia. São Luís/APEM. Nesta seção há vários anúncios de prisão de escravos por prática de fuga, de furtos, de brigas em público, embriagues, por andar fora de horário e armados. 24 VIVEIROS, Jerônimo de. História do Comércio. São Luís: Associação Comercial do Maranhão, Vol. I, 1994, p. 88. 25 Ofício de Juiz de Paz ao Presidente da Província, 1832. São Luís/APEM: seção de avulsos.

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16 de Junho do ano de 1832, alguns tomados de pânico e preocupação dirigiram-se ao sr Joaquim Vieira da Silva Souza, presidente da província, e Faustino Mariano Lopes, Juiz de Paz de Santa Helena, nos seguintes termos

Os lavradores do Pericumam, districtos de São José de Guimarães abaixo assionados, reciosos pelas suas vidas e bens vão levar a presença de Vossas Execelencias a cauza dos seos bens fundados receios, para que Vossas Excelencias tomando-a na consideração que meresse, hajão de dar as providencias necessarias, e que os mesmos requerem para sua total extinção, e por esse modo restituir aos referidos lavradores o seo estado de socego e segurança tanto individual, como de propriedade tão recomendado e garantido pela sagrada Constituição q. nos rege e do qual presentemente os mesmos, se achão privados. 26

Continuando, diziam: consiste pois a causa daquelles receios. Em que um grande numero de escravos pretos fugidos acha-se espalhado por todo o pericumam, formando diferentes hordas ou mocambos, e alguns compostos de mais de trinta escravos, armados e bem municiados os quais constantemente andão a roubar, e a fazer toda a casta de insultos e ameaças a todos os lavadores daquelle districto, sahindo-lhes mesmo armados a vinte e mais pelas fazendas, levando com sigo mesmo de público os furtos por elles feitos de modo que são diferentes quadrilhas de ladrões que ali estão constantemente a ameaçar os bens, fazendas e vida de todos os lavradores.daquelle.districto…

Os lavradores insistiam em afirmarem que,

a impunidade senhores esta mais de todos os crimes não pouco tem concorrido para a criação e augmento daquelles malvados. Sim senhores se não tivessem ficado impunes roubos, assassinios e mortes tão escandaloza e publicamente por aqueles malvados perpetradas por aquelles lugares, de certo [?] não se teria augmentado, e chegado ao ponto de hoje fazer recear aos lavradores daquelle districto pelas vidas e bens. Face pois de um estado tão desgraçado geral o que vem [?] perante Vossas Excellências daquelles lavradores […]: juntando-se a facilitar com que os outros escravos se podem reunir aos

26 Ofício de Juiz de Paz ao presidente da Província, 1832. Seção de documentos avulsos APEM São Luís/MA.

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malvados e assim ameaçar aquelle districto e a Provincia de uma inssurreição geral esperão e requerem os mesmos lavradores a Vossas Excelências hajão de mandar estacionar em Santa Elena debaixo da direção do respectivo Juiz de Paz um destacamento de tropa de primeira linha de vinte homens, que se conservará ali pelo tempo necessario para destruição daquelles quilombos: coadjuvando assim a força que o referido Juiz de Paz deve de novo esforçar […] reunir: obrigando-se os mesmos lavradores a […] por cada escravo seo fugido que lhe for trazido prezo, a gratificar que segundo o [?] se acha estabelecido pelos regulamentos dos capitains do mato ate aqui existentes.

Deos guarde a Vossas Excellencias. Alcantara, 16 de junho de 183227

Essa carta-denúncia indica a mobilização de escravos para a construção de seus

territórios de sociabilidade e visibilidade na sociedade maranhense e, ao mesmo tempo, a reação de proprietários à ousadia escrava em querer quebrar a ética reguladora da dinâmica do processo constitutivo da riqueza na sociedade liberal escravista. Por isso, acrescentavam aos mesmos os adjetivos – fugitivos, malvados, facínoras, criminosos e insurretos. Tal procedimento indica, portanto, que as identidades – senhores e escravos estavam em constante movimento definido pelo perfil das relações sociais, mas, sobretudo pela percepção de si contexto da sociedade escravista. Os argumentos do delegado de polícia de Guimarães, o Sr. Joaquim Raimundo da Cunha são bastante elucidativos desta questão na advertência que fez ao subdelegado de Pinheiro sublinhando,

os fatos aterradores e sobre maneira graves que se dão em Viana, a insurreição que levantou o grito criminoso attentando não só contra as nossa instituições como ainda contra o direito de propriedade (…), urgem da autoridade muita attenção e energicas providencias para sufocar qualquer tentativa, cujos resultados serão sempre prejudiciais, qualquer que seja a força dela (…) Assim pois V. As,. Tomando na devida consideração os acontecimentos de que lhe tenho dado sciencia, tenha de baixo de vista a escravatura do termo de sua

27 Abaixo-assinado de lavradores da região do Pericumã, na Baixada ocidental, ao Presidente da Província e ao Juiz de Paz. Neste documento, assinavam lavradores que pertenciam às famílias Franco de Sá, Costa Moraes, Almeida e Silva. Famílias que se constituíam na expressão do mandonismo local.

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jurisdição (…) a fim de que a insurreição ahi não ganhe partidarios e os insurgido não achem abrigo.28

Os suicídios, também foram uma importante forma de luta e de resistência dos

escravos ao complexo e contraditório mundo da escravidão, embora aos olhos de algumas autoridades públicas e de proprietários de escravos não passassem de atitudes de indivíduos “com mentes fracas” ou de “índole perversa”. O presidente da Província Francisco Xavier Paes Barreto, acerca deste tema em seu relatório de abril de 1847 sublinhou “ … a respeito dos suicídios não será difícil explicar […] esses infelizes sujeitos à duros e constantes trabalhos, e muitas vezes seviciados horrivelmente por senhores poucos humanos, […] procurão com a morte pôr termo a seus sofrimentos.29

Mas o que faria um escravo cometer o suicídio? Responder a esta questão não é uma tarefa fácil. Os fragmentos a que se teve acesso indicam que além dos castigos comuns aplicados nos escravos, outras variáveis como o amor materno, a recusa do escravo às transações comerciais que separavam casais com ou sem filhos e a captura do escravo após uma fuga contribuíram para a ocorrência do suicídio. Para sublinhar-se a validade do amor materno como um fator relevante para o suicídio conta-se os momentos finais da trágica história de Luiza, escrava de José Francisco Nogueira Brandão. Tudo terminou assim: Por volta do dia 15 de agosto de 1873, na fazenda de José Francisco Nogueira Brandão, localizada no Termo do Coroatá, Ribeira do Rio Itapecuru, Luiza, escrava do referido fazendeiro, depois de desaparecida por alguns dois dias, foi “achada no poço da dita fazenda, onde se suicidou”. Luiza, ainda moça, antes de cometer o seu suicídio precipitando-se de cabeça no poço da fazenda de seu senhor havia praticado um infanticídio contra o seu filho, ainda muito pequeno, por “meio de estrangulamento”. Encontraram “com o cadáver da vítima, o filho que ainda amamentava, uma corda e uma faca ensanguentada no rancho da desnaturada mãe”. Do ponto de vista das autoridades, Luiza cometeu esse ato por causa de sua “índole perversa”, já que “não lhe foram encontrados no corpo sinais de sevicias, feitas por seu senhor”. 30

28 Ofício do Delegado de Polícia de Guimarães ao subdelegado de Pinheiro. APEM/Seção de documentos avulso. 29 Relatório datado de 13 de abril de 1847. APEM/São Luís: MA. 30 Livro dos crimes e Factos Notáveis. Lv. 02, p. 13. APEM/Setor de Códices. São Luís/MA.

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Estratégias sociais utilizadas por senhores e escravos entorno das relações de compadrio: São Tomé das Letras – Minas Gerais (1840-1860)

Juliano Tiago Viana de Paula1

Apesar do sentido religioso do compadrio havia também ganhos nessa relação

que extrapolava o sentido do sagrado. Ela era um importante mecanismos para a criação de solidariedades e relações sociais. Ellen Woortman, que estuda os colonos do sul do Estado Unidos e os sitiantes do Nordeste, corrobora com o argumento de Sheila Faria de que o compadrio era um instrumento eficaz de ampliação das redes de solidariedades para alem do parentesco, vizinhança e amizade, ou como uma forma de reforçar os laços já estabelecidos por essas relação.

Stanley percebeu o ato do compadrio como um momento de reforçar as aliança familia entre os cativos e seus parentes e amigos. O compadrio tornou um importante rito religioso para os pais, padrinhos e afilhados. Como afirma o pesquisador;

Em reforço das relações familiares existiam os laços de compadrio. Esses formavam um triangulo com os filhos, os pais e os padrinhos. Parentes e amigos intimos poderiam se tornar padrinhos. Sua responsabilidade pelos afilhados e sua autoridades sobre eles eram comparaveis a dos pais; em conseguencia, na época do batismo, os pais escolhiam os padrinhos e seus filhos com cuidadosa deliberação.2

Em se tratando das preferencias por compadres pelos pais cativos, Carlos Bacellar considera que estas relações não ocorreram de forma natural. De acordo com autor, é preciso ter uma certa cautela em advogar que pais escravos tinham reais e totais condições de selecionar padrinhos.. Segundo Bacellar; “Podermos tentar imaginar, por exemplo, como um escravo logravam escolher, ou convidar um capitão mor ou um outro ponteado local para apadrinhar o seu rebento. Como teriam acesso pessoal a um individuo que, muitas vezes, não tinham contato direto nem mesmo com seu senhor, e tambem não entretia com estes laços de parentesco? E, mais do que isto, como conseguiam organizar a ida de todos até a igreja, na Vila, muitas vezes no dia da semana, tirando estes padrinhos ilustres da rotina da lavoura, especialmentepara comparecerem na vila e cumprir a cerimônia?

Desta forma, mesmo se consideramos que havia uma certa autonomia dos pais escravos, não seria de todo irreal supor que seus senhores interferiam, ate facilitar as

1 UFRRJ/PPHG. 2 STEIN, Stanley. Grandeza e decadência do Café no Vale do Paraíba, com referencia espacial ao município de Vassouras. São Paulo: Brasiliense, 1961, p. 178.

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coisas, abrindo portas, fazendo de seu compadre um compadre de seu cativo, implementando redes de solidariedades mais complexas.3

Em resumo, os jogos de alianças propocionados pelas relações de compadrio demonstra mecanismos que regem esta instituição são complexas e diversificados, tornando praticamente impossivel delimitar padrões e modelos diante dos elementos hoje disponiveis. Muito nos resta, portanto, desvendar as fontes sobre a historia da familia e da população do nosso passado.

O apadrinhamento dos inocentes cativos

Partindo destas considerações sobre o parentesco entre os cativos, pretendo

proceder a uma primeira leitura acerca dos dados encontrados para a Freguesia de São Tomé das Letras em um dos livros de registro paroquial de batismo da referida região. Foram coletados 1.374 registros de batismo, sendo que 532 assentos pertenciam ao inocentes escravos da região entre os anos de 1841-1860. Os batizandos filhos de mães escravas tiveram como pais espirituais pessoas cativas ou livres e madrinhas forras, mas não houve nenhum padrinho identificado como forro nos registros paroquiais de batismo. A tabela a seguir proporciona um quadro geral dos padrinhos e madrinhas dos filhos de mães cativas da Freguesia de São Tomé. Os inocentes batizando filhos dos pais cativos da região tiveram como pais espirituais pessoas cativas, livres e forras. A tabela a seguir proporciona um quadro geral dos padrinhos e madrinhas dos filhos das mães cativas da Freguesia de São Tomé.

Quadro. 1.1 - Condições social dos padrinhos e madrinhas dos escravos

batizando da Freguesia de São Tomé das Letras, 1841-1859

Padrinho Escravo % Padrinho Livre % Padrinho Forro % Total %

212 62,5 122 35,9 5 1,4 339 100

Madrinha Escrava % Madrinha Livre % Madrinha Forra % Total %

215 64,3 113 33,3 11 3,2 339 100 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Campanha. Registros paroquiais de batismo da Freguesia de São Tomé das Letras (1841-1859). No que concerne à preferência por padrinhos, nota-se que os escravos foram os que

mais apadrinharam os batizando cativos da região de São Tome. Porém, os compadres

3 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Criando Porcos e arando terra: família e compadrio entre escravos de uma economia de abastecimento (São Luiz do Paraitinga, Capitania de São Paulo, 1773-1840)

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livres tiveram presenças significativas nas pias batismais. A predileção dos pais cativos em se ligarem a compadres escravos de alguma forma refletia na ampliação dos laços familiares e pessoais, que promoviam a consolidação de famílias e comunidades negras. Ao analisar os arranjos familiares entre os escravos da freguesia urbana de São José do Rio de Janeiro, Roberto Guedes Ferreira (2001) verificou que os laços de compadrio não reforçaram os vínculos entre senhores e escravos. Prevaleceram nas escolhas os laços estabelecidos entre padrinhos das mesmas condições, em que tais aspectos evidenciaram os fortes vínculos afetivos e parentais mantidos pelos escravos, através do compadrio.

Outro dado importante, consiste que a Freguesia de São Tomé das Letras era formada por grandes propriedades escravista especialmente aquelas vinculadas ao abastecimento interno.4 Diante deste quadro, os recentes estudos, apontam que as relações parentais que foram constituídas entre os cativos, foram mais intensas nas unidades de maior porte, e nos planteis menores, a maioria dos pais dos batizando escravos se relacionavam com pessoas livres.

De acordo Jose Roberto Gões, nas grandes propriedades escravista de Inhaúma, 75% dos padrinhos dos filhos dos pais cativos era da mesma condição, o que demonstra o empenho na formação dos laços familiares. Em Paraíba do Sul, Ana Lugão Rios, encontrou cerca de 40% de padrinhos livres e mais de 57% de compadres escravos, sendo os forros representando uma parcela minoritária no apadrinhamento de crianças escravas desta região. A autora acredita que este supremacia de padrinhos cativos se dava nos grandes planteis e nos menores cresciam as escolhas por compadres livres. Acredito que estes estudos que foram realizados por Gões e Rios nos ajuda a entender o predomínio na escolha de compadres escravos na Freguesia de São Tomé. Região que contava com grandes escravarias, o que poderia ter contribuído para a preponderância dos laços parentais desenvolvidos entre os mancipios.

Para a Vila de São João Del Rei próximo a Freguesia de São Tomé, Silvia Brugger constatou um amplo predomínio de homens livres sendo padrinhos dos filhos das mães escravas, e notou que entre o período de 1736 a 1850, eles representavam 62% dos compadres dos filhos de cativas. Considerando-se que a esta região tendiam a predominar unidades escravistas de pequeno porte, pode-se supor que isto seria uma explicação variável para a escolha majoritária de compadres livre para os filhos dos pais cativos. Ao contrario da urbana Vila de São João Del Rei, em São Tomé das Letras verificamos um expressivo numero de médios e grandes planteis escravistas, o que justifique a preferência majoritária dos padrinhos escravos em relação aos livres. Nota-se também diante dos dados obtidos que a escolha de padrinhos livre foi expressiva. Pois, compactuo com assertiva, que a escolha de compadres livres pelos escravos, era uma

4 ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites regionais e a formação do Estado Imperial Brasileiro: Minas Gerais – Campanha da Princesa (1799-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008.

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forma deles se ligarem a pessoas melhores posicionadas na sociedade. Talvez pessoas livres sem um passado escravo, que se afigurassem como uma melhor opção para os pais das crianças escravas. Mas a constituição de alianças com homens livres podia, de fato, ser um recurso importante nessa sociedade extremamente hierarquizada, onde escravos, forros e livres de cor eram vistos como pessoas de "menor qualidade". Portanto, ter um compadre livre seria um meio de garantir aliados e protetora para si e seus rebentos em um mundo hostil e incerto. Acredito que estas situações tiveram peso nas escolhas dos escravos em escolher um padrinho livre para os seus rebentos.

O compadrio sobre as estratégias senhoriais e escravas

Outro dado ser verificado nesta pesquisa é as relações de compadrio entre senhores e

seus escravos. Em varias regiões brasileiras muitas pesquisas vêm demonstrando que raríssimas vezes, os senhores foram compadre dos seus cativos.

Em estudos pioneiros no Brasil, Gudeman e Schwartz indicam que, no Recôncavo Baiano, na década de 1780, foi extremamente raro o apadrinhamento de cativos por seus senhores. Para os autores, havia uma incompatibilidade entre escravidão e parentesco espiritual, e a saída para esta incompatibilidade não foi abolir o compadrio e a escravidão, mas mante-los separados. Desta forma põe em duvida a existência de possíveis valores patriarcais entre senhores e escravos. Para explicar está dissidência entre compadrio e escravidão na Bahia, Stuart Schwartz apoio seus argumentos, numa serie de rebeliões escravas ocorridas na província baiana entre os anos 1807 a 1835. E, em decorrência destas tensões, as relações familiares entre senhores e escravos foram bastante prejudicas. Ana Lugão Rios, que estudou Paraíba do Sul entre 1872 e 1888, indicou que apenas 0,3% dos escravos batizados tiveram seus senhores como padrinhos. Para a região de São João del Rei, Silvia Brugger constatou que apenas 150, ou seja, 1,1% das crianças cativas, batizadas entre 1736 e 1850, foram apadrinhadas por seus senhores. Os dados que foram encontrados para a Freguesia de São Tomé das Letras não difere muito dos resultados acima.

Quadro. 1.2 - Padrinhos dos inocentes cativos da freguesia

de São Tomé das Letras. (1840-1860) Senhores como padrinhos

Parentes dos Senhores

Não-Parentes dos senhores

Total

2 18 81 101 1,9% 17,8% 80,1% 100% Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Campanha. Registros paroquiais de batismo da Freguesia de São Tomé das Letras (1841-1859).

De acordo com os percentuais apresentados nesta tabela, nota-se que

pouquíssimas vezes, os senhores de escravos foram compadres dos seus cativos.

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Nisto, foram ultrapassados numericamente por seus parentes e pessoas fora do seu grupo familiar consangüíneo. Antes de tece alguns exames tornam-se necessário apresentar alguns trabalhos que tratam destas questões.

Analisando o apadrinhamento de cativos pertencentes aos senhores da Freguesia de São Pedro e da Paraíba do Sul, Carlos Engeman verificou uma modalidade de “padrinhos preferenciais”. De acordo com o autor, estes seriam aqueles que batizavam pelos dois afilhados de um dos grandes senhores de escravos destas regiões. Entre estes padrinhos preferenciais, Engeman percebeu estratégias pessoais nestas relações. Segundo o autor, trata-se, destes compadres, investirem seu potencial em um único senhor, isto é, mesmo tendo batizado um numero considerável de cativos, por opção ou condição.

Engeman supõe que estes padrinhos, são elementos secundários na escala social da região, nisto, eram foreiros, pequenos proprietários e funcionários públicos, gente que vivia na orbitar dos senhores e de compadres. Seja como for, estes compadres preferenciais foram conectores, uma vez que batizam filhos de escravos de vários senhores, formando uma rede de associação com os senhores escravos.

De acordo com o raciocínio de Martha Hameister, a iniciativa dos senhores em torna seus cativos compadres de seus pares, era uma possibilidade de desvendarem os segredos internos de outras propriedades escravistas. Os cativos tendo compadres em outros planteis, tinham plenas condições de adentrar aos lares e circuitos mais íntimos dos rivais e inimigos do seu senhor. Mas, um escravo tendo como compadre senhores de planteis distintos, tem acesso a informações que seus senhores, se rivais ou inimigos forem, não podem obter. Um cativo insatisfeito por completo com o seu senhor, poderia fornecer informações precisas da propriedade da qual pertence, comprometendo as estratégicas políticas que seu senhor estabelecia com pessoas da mesma condição jurídica ou distintas. Ainda de acordo com a autora, um cativo que se sentissem hostilizados pelos seus senhores, poderiam disseminar informações da casa a qual pertencia em outras unidades produtivas através de suas relações de compadrio. Segunda a autora, ainda pode tecer, com alguma desenvoltura, a sua própria malha, estabelecendo compromisso de lealdade e solidariedades.

Para a região de São Tomé das Letras, a preferência dos senhores de escravos, por pessoas que não eram seus parentes consangüíneos, pode ser um indício, que suas redes relações políticas e sociais não se restringiram ao convívio familiar consangüíneos. Portanto, através do apadrinhado dos seus cativos por “não-parentes”, presumo que estes senhores pretendiam constituir extensas redes sociabilidade e solidariedade com outras pessoas, que poderia ser acionadas nos momentos de crise. Além dos senhores, seus cativos também, instrumentalizavam as práticas políticas e sociais do compadrio. Em um estudo anterior sobre a região de São Tomé, identifiquei que mais de 70% dos padrinhos do inocentes cativos pertenciam a outras unidades escravistas, e sobre este dado, podemos entender, que os escravos tinham interesse em estabelecer relações de parentesco com pessoas

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resididas em outros plantéis. Pois, tendo compadres cativos em diversas escravarias, seria um meio de fortalecer e ampliar as suas relações sociais na interior da comunidade escrava, pois, nos momentos que não poderia contar com o apoio de seus parceiros de senzala ou do seu próprio senhor, recorreria a extensa rede social que foi constituída através de seus laços de compadrio.

Em se tratando das pessoas de limitados recursos na sociedade, a pretensão de servirem de compadre para os cativos, não se limitava aos compromissos religiosos do ato do batismo. Presumo que por traz destes arranjos, havia estratégias, pois, o ato de apadrinhar os cativos pertencentes aos escravistas da região, poderia configurar numa proximidade com pessoas de ávidos recursos financeiros e detentoras de prestígios e respeito na sociedade.

Como foi mostrado, apenas dois senhores foram padrinhos de seus cativos na região de São Tomé das letras, e um deles, era João Gonçalves de Góis, tropeiro e detentor de um pequeno plantel escravista, com apenas 5 cativos. Dada a dimensão de sua escravaria e os poucos recursos disponíveis, acreditamos que, este pequeno escravista e sua família, teriam trabalhado juntamente com seus escravos no cultivo da terra, e esta labuta diária, promoveria relações de sociabilidades (sob trocas desiguais) no qual este escravista estreitando suas relações pessoais, serviria de compadres para os seus escravos.

Em se tratando mais uma vez, dos senhores de escravos da Freguesia São Tomé das Letras, a maioria deles não foram padrinho dos seus cativos. Presumo que mesmo não sendo compadre de seus escravos, não se distanciaram socialmente. Pois, a iniciativa de escolher compadres para os seus mancipios, sejam seus parentes/não-parentes, talvez, implique em uma preocupação, em escolher pessoas que compartilhasse responsabilidades sobre os inocentes cativos filhos dos seus escravos.

Acreditamos que está prática social, que talvez contivessem alguns valores paternalistas, envolviam os senhores na sociabilidade do compadrio, apesar de não serem compadres de seus cativos, estiveram envolvidos nas redes parentais que seus escravos estabeleciam com a comunidade local. Sobre estas considerações, cremos na hipótese, que o compadrio era uma pratica de sociabilidade que não se restringia aos laços parentais formalizados entre pais, crianças e padrinhos, mas, uma extensa rede social que envolvia outros agentes.

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Embriaguez, religião e patriarcalismo

Lucas Endrigo Brunozi Avelar1

Recomendação genérica para os estudos históricos, a eleição de um objeto de pesquisa a ser examinado deve estar assentada nas indagações que nos inquietam no tempo presente. Formular as questões no presente e trabalhar as respostas do passado. Se quisermos produzir conhecimento histórico de nível superior, recomenda-se fidelidade a esta premissa. As lutas de hoje pelo avanço da democracia no Brasil, em destaque aquelas ligadas aos movimentos que defendem a liberdade individual na relação com substâncias psicoativas, estimulam à busca de fontes de ontem que informam acerca dos agentes que pautaram seus envolvimentos por estes alteradores de percepção. Neste texto, pretendemos indicar alguns aspectos ligados aos usos de bebidas na sociedade colonial luso-americana nos séculos XVII e XVIII e vasculhar a posição de algumas autoridades religiosas neste recorte. Nossa sugestão é que a regulação dos usos de bebidas alcoólicas fora realizada por estes homens a partir do julgamento ancorado na moderação trazida de Portugal.

Existiram variados tipos de bebidas alcóolicas ingeridas na América Portuguesa. Desde bebidas fermentadas de frutas e legumes até a aguardente, passando pela garapa (doce e azeda) resultante do processo de produção do açúcar. Sem falar nos vinhos e aguardentes vindos do Reino. Os sentidos atribuídos a estes produtos variavam de acordo com os interesses do colonizador, de modo que às bebidas da metrópole sempre se depositaram os significados positivos de prevenir e curar doenças e conservar a saúde dos povos. Desde a Antiguidade, os homens atribuem ao vinho propriedades que não se reduzem ao campo da medicina. No plano político, os gregos acreditavam que durante o simpósio seu uso até a embriaguez ajudava a revelar o caráter do candidato a governante. Para saber bem governar aos outros, antes o homem deveria saber bem governar a si no estado de ebriedade. Esta função pedagógica do vinho foi drenada durante a época moderna pelos moralistas, médicos e teólogos lusitanos, que ficaram somente com as críticas dos gregos ao mal uso da substância. Críticas intensificadas e generalizadas para as bebidas dos territórios produzidos além-mar.

De modo geral, a bebida que competia com o vinho na América lusitana, tanto no que respeita ao comércio quanto ao que se refere ao consumo é a aguardente. Preferida pelos africanos fornecedores de mão-de-obra a ser vampirizada nos engenhos e minas de ouro e diamantes, o destilado de cana desbancou os vinhos reinóis no trafico atlântico já no final do XVII. Assim, os comerciantes brasílicos de aguardente adentram o século XVIII dominando o comércio de bebidas alcoólicas no Atlântico

1 UERR.

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Sul.2 Educados no ambiente moral que privilegiava a sobriedade e almejando reservar parte deste negócio para os vendedores portugueses, as autoridades religiosas e representantes da Coroa em geral se encarregaram de descrever os problemas morais, sociais e fisiológicos derivados da ingestão da aguardente por escravos e homens livres pobres dentro das fronteiras da América lusitana. Aliado ao medo de a bebida ser fonte de arruaças entre os negros, o comércio, produção e consumo de aguardente foi objeto de perseguições e críticas por parte dos responsáveis pela ordem na sociedade colonial.

Por outro lado, sobretudo na capitania mineira, onde as coisas do Reino chegavam com dificuldades às vezes intransponíveis, a bebida de cana era usada, mesmo por parte de cirurgiões vindo de Portugal, para fins reservados antes só ao vinho. Em mezinhas, nas assepsias e em curativos, ela aparece compondo as narrativas destes homens de cura encarregados de livrar os mineiros das moléstias do Novo Mundo. Restrita aos seus usos médicos, a aguardente de cana foi substituída pelo vinho nestas paragens carentes de recursos e de pessoal formado nas artes de Esculápio. Durante um certo tempo, minhas investigações só encontraram elementos que corroboravam estas duas formas de significação da aguardente. De um lado, era vista como fonte de distúrbios da ordem social vigente na colônia e, de outro, usada como remédio em tratamentos nas minas setecentistas.

À medida que a pesquisa do mestrado avançava, outras ocasiões de uso de bebidas alcoólicas foram descobertas. Em rituais indígenas, servindo como ponte que ligava o terreno ao sobrenatural e ao passado glorioso de tribos ameríndias. Para os tupinambá, as cauinagens eram momentos preciosos de conservação do equilíbrio psíquico da tribo, pois, durante aquele ritual os homens poderiam cometer “excessos” sem que fossem punidos por isto.3 Garantia a ocasião de extravasamento e era veículo de transmissão de valores através de narrativas dos antepassados, além de entrar nos rituais de cura dos xamãs enquanto estimulador da reconstituição subjetiva que preenche o vazio de sentido responsável pelo sofrimento.

Do ponto de vista econômico, além de moeda de troca preferida no trato de viventes na África, o comércio de aguardente ajudava no comércio de senhores em períodos de crise da produção açucareira.4 Há relatos também que informam a existência de famílias mineiras que viviam das rendas da substância e casos em que ela servia de moeda de troca dentro da própria colônia.

Entre os escravos, há fontes que apontam para a presença da aguardente em suas festas funcionando, nestes casos, para reforçar laços de solidariedade entre negros

2 ALENCASTRO, Luis Felipe. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Cia das Letras, 2000. 3 KOK, Maria Glória Porto. Os vivos e os mortos na América Portuguesa. Campinas: Editora da Unicamp, 2001. 4 SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial – 1550/1835. São Paulo: Cia das Letras, 1988.

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condenados à mesma condição. Vilhena5 relata episódio de desvio de garapa por parte de escravos de engenho baiano, atitude que requisitava o envolvimento de mais de uma pessoa. Além de desviar, Antonil deixa entrever que ela era deixada escondida para azedar e virar bebida alcoólica.

Em síntese, na América Portuguesa a aguardente estava presente em diversas ocasiões e articulava uma série de agentes entre si. Que relações mediadas pela aguardente os membros da Igreja estabeleceram com outros integrantes da sociedade colonial? Qual a posição das autoridades religiosas diante desta variedade de usos? É com parte dos resultados da pesquisa de mestrado que pretendemos refletir sobre estas duas questões.

Um dos espaços que preocupam os religiosos era o das festas de populares e gentes de cor. Muito embora houvesse empenho em modificar os códigos culturais existentes na colônia, Mary Del Priore6 insiste que houve lutas reais e simbólicas pela dominação destes lugares coletivos e, poderíamos acrescentar, da função social das bebedeiras dentro delas. Teólogos e moralistas enxergavam naquelas reuniões momentos de sacrilégios e blasfêmias escarnecedoras da religião e, por isso, insistiam na separação entre sagrado e profano para alterar a sensibilidade e mentalidade da população colonial. Daí a objeção ferrenha às comemorações, “tidas como ocasião de pecados múltiplos: a embriaguez, a glutonaria, a luxúria, a vaidade, o dinheiro desperdiçado no jogo, a ‘loucura’ das danças, todos os pecados que aproximavam os homens ao Demônio”. Nesse sentido, o alvo da Igreja era o conteúdo profano das festividades, que deveriam ser banidos das comemorações religiosas. Segundo Del Priore, a normatização das festas implicava no adestramento da experiência dos negros, muitas vezes vista como resquícios de paganismo. Tanto que

Antonio José de Moura Abreu, bispo visitador, de passagem por São Paulo em 1758, queixou-se amargamente do “abominável som de batuques e danças desonestas que muitas vezes se juntam a umas indecentes festas de São Gonçalo de que resultam graves ofensas a Deus no excesso de comer e beber com que se demasiam na gula e depois destas mesmas danças se passa a outras indecências que a modéstia cala mais [sic] ninguém ignora.7

Para uma Igreja preocupada em incutir nos fiéis o ideal de “temperança” nas

condutas, nada poderia ser mais ofensivo do que esses momentos de expansão de comportamentos – todavia, a autora ressalta que apesar disso, os batuques eram tolerados, pois eles garantiam a “boa paz” da sociedade. E, como os padres

5 VILHENA, Luis dos Santos. Cartas de Vilhena. Notícias Soteropolitanas e Brasílicas (1802). Salvador: Imprensa Oficial da Bahia, vol. I, 1922. 6 PRIORE, Mary Del. Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 2004. 7 Ibidem, p. 100.

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perceberam que não poderiam suprimir as festas, decidiram integrá-las à vida social das populações mediante regras do que seria considerada uma boa atitude, para isso, a Igreja investigava tudo que envolvia as festividades religiosas, desde a procissão até sua continuidade em bailes, bebedeiras, jogos e fornicação. Desta maneira, o ambiente festivo se tornou o canal por meio do qual se tentava impor regras às comunidades.

Mesmo com esses investimentos, as festas proporcionavam espaços para pecados que escapavam das amarras normativas dos preceitos cristãos. A disputa se polariza de um lado com as instituições tentando dar uma função sagrada às festas e, de outro, com os desvalidos fazendo delas um momento de encontro e protesto contra as mesmas instituições modernas que pretendiam adestrá-los. É o que se observa no período atravessado pela abstinência alimentar na Quaresma que, no entanto, era invertida pelos excessos do Carnaval: o entrudo representava a “revanche contra a fome quase crônica da Colônia”. Nele, as bebidas e comestíveis significavam a vingança contra a abstinência obrigatória da situação anterior, expressando, no limite, o caráter de enfrentamento da ordem social acachapante. Portanto, a possibilidade de “colocar a festa de ponta-cabeça” estava na maneira como as classes subalternas a encaravam: a começar pelo uso da bebida. Segundo Del Priore, “muito se bebia na Colônia graças, sobretudo, à fabricação artesanal e barata da cachaça conhecida como ‘jeribita’. Ninguém estava livre de se embebedar, mesmo quando ligado à organização da festa e mesmo quando esta se tratava de uma festa religiosa”.8 Pelo dito, os autores deixam entrever que houve um esforço para esquadrinhar a embriaguez com o fim de senão bani-la ao menos levá-la para o interior das festividades populares para que no interior delas, o álcool funcionasse para reproduzir o estado de coisas da colônia. Todavia, o álcool servia também como alavanca que impulsionava atos transgressores, atos que não condiziam àquele comportamento - exigido pela Igreja - que expressasse a usurpação da representação que os donos do poder metropolitano incidiam sobre os escravos, mulatos e pobres. A festa representava para os padres e autoridades o espaço da bebedeira tolerável e domesticada, pois ainda assim havia um comportamento recomendado quando naquele estado. Contudo, na festa, a bebedeira funcionava como catarse para as populações da colônia além de abrir caminho para transgressões escapando, portanto, do enquadramento que pretendia reprimi-la.

Além do mais, não podemos afirmar que havia um padrão regular de consumo alcoólico na América Portuguesa, pois ele dependia de uma série de condicionantes que se relacionavam com a capacidade de negociação dos bebedores, o acesso à bebida, o grau da fiscalização das autoridades régias, a subjetividade dos agentes em torno do álcool e todo um jogo de relações que variavam conforme o espaço-tempo considerados. Todavia, insistiríamos que houve um processo de regulação da experiência alcoólica na América Portuguesa que não aceitava qualquer tipo de

8 Ibidem, p. 111.

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embriaguez e que, para impor um modo de administrar as vidas da colônia, operou novos e diferentes tipos de exclusões.

Exemplo disso é a perseguição aos beberrões casados. Quando vieram fazer as visitações requeridas pela Inquisição portuguesa, os padres jesuítas relataram algumas denúncias que dão aspectos que nos parecem reveladores. Segundo Vainfas9, os religiosos insistiram na difusão e preservação do casamento como forma adequada para a vida em comum entre homens e mulheres da colônia. Todavia, no real vivido do sertão houve circunstâncias imprevistas que comprometeram a fiel consecução dos papéis sociais planejados. Alguns maridos mineiros que escapavam do papel austero que lhes cabia o matrimônio foram classificados nas visitações como responsáveis pela ‘má vida’ de suas mulheres. As violências conjugais desconheciam posição social, como o caso de um juiz de Cachoeira que “muitas vezes se embebeda e por essa razão dá má vida e pancadas a sua mulher que é honrada (…)”.10 E há notícias de um preto forro de nome Bartolomeu que, casado com a preta forra Antonia Coelha, tinha “bulhas” com sua esposa por andar vadiando e “tratando” com outras mulheres. Na mesma acusação de comprometer o casamento, “cairia um pardo forro que ‘costuma-se embebedar e por razão de tal bebedeira dá má vida a sua mulher e roga pragas a si mesmo, dizendo que o diabo o leva em corpo e alma’”.11

Ora, explicar que foi o diabo que provocou o efeito de o homem bêbado bater na mulher contribui para esconder as razões sociais que levavam os homens a beber e a cumprir o papel de marido. Logo, contribui para reforçar a explicação ideológica da violência provocada pelo estado de embriaguez. Portanto, desta forma os inquisidores colaboraram para demonizar o Novo Mundo e, com isso, colaboram para reforçar a legitimidade da exploração de seus habitantes. Explicar que era o diabo e não a pobreza, a miséria, a fome que levavam à embriaguez desativa a revolta e colabora para a anulação de conflitos.

Em tempo, estamos considerando que não era a embriaguez que comprometia a ordem social na colônia, mas que esta ordem é que era impraticável sem desvios, sem embriaguez. Não é à toa que a capitania mineira era onde muito se bebia. Ou melhor, não é à toa que os inquisidores se preocupavam com os homens livres, ainda mais os forros, pois estes representavam ou deviam representam o horizonte de expectativas da realização social dos escravos. Por isso, os inquisidores atacavam a embriaguez de homens livres ou libertos, sobretudo, porque aquele modo de organização social deveria se impor e ser aceito em especial pelos escravos. Desta maneira, os visitadores cristãos usavam suas forças para verificar a sobriedade, criminalizar sexualidades

9 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados. Moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1989. 10 FIGUEIREDO, Luciano. O avesso da memória. Cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais do século XVIII. Brasília: José Olympio, 1993. 11 Ibidem, p. 89.

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desviantes, valorizar o casamento e reprimir a feitiçaria, cumprindo assim a função precisa de regular a normatividade social, função de definir a norma a ser seguida. Em suma, quando os padres e visitadores estabelecem que a bebedeira é um problema demoníaco, eles pretendem reduzir ou até eliminar o espaço para se perguntar o que levava aqueles homens a beber e, na esteira de Paul Veyne12, o historiador deve se perguntar sobre o que para os homens do período estudado não pedia explicação, ele deve pretender explicar como a normalidade de uma época fora constituída.

Em todo caso, se é verdade que o marido batia na esposa quando naquele estado, não podemos ter certeza, pois, como informa Luiz Mott13, em inúmeros processos tanto de sodomia quanto de blasfêmia, solicitação ad turpia e outros crimes do conhecimento do Santo Ofício, os inquisidores habitualmente perguntavam o estado de consciência dos réus por reconhecerem que deviam ser relevadas ou consideradas menos graves aquelas faltas cometidas sob forte efeito da bebida. É o que percebemos ao ler a carta redigida em março de 1753 no Rio de Janeiro por um minerador que envia à Inquisição lisboeta o que segue: “Eu, Bernardo Gomes da Costa, me denuncio perante Vossas Mercês da culpa abaixo expressada: estando fora do juízo por demasia de vinho, chamei ao escravo mina Francisco, de Goiás, estando nas minas de Paracatu, sendo paciente do negro há três anos passados, não tendo confessado antes por estar preso’”.14 A carta é uma confissão redigida pelo próprio autor e enviada à Inquisição. Isto sugere que havia uma pressão social que não tolerava atos homossexuais. O fato de o sujeito nomear-se culpado pode indicar certa estratégia para escapar de penas mais severas – e como dá o nome inteiro indica que não era escravo, o que talvez possa explicar o fato de poder dirigir-se diretamente à Inquisição. A primeira informação que dá é a que estava “fora do juízo por demasia de vinho” justamente para alegar a situação excepcional em que se encontrava, situação na qual seu “juízo” estava suspenso. Se de fato o sujeito estava fora de si não podemos garantir, o que se pode inferir é que a Inquisição dava como legítimo e excepcional esse estado, mas por que? O que garante à embriaguez este argumento de autoridade que exime ou atenua a punição? Antes de encaminhar a resposta é preciso considerar que conforme esta e outras fontes fornecidas por Mott os réus tinham em vista que a confissão da embriaguez atenuava a prisão. Bem, mas a punição atenuada é a da sodomia e não a da embriaguez. Então, podemos inferir que a embriaguez não era alvo inquestionável de punição; não era alvo de perseguição sistemática na sociedade colonial.

Ainda assim, a resposta à questão talvez esteja justamente no dado “fora do juízo” – o que indicaria outra forma de julgar. Em ambos os casos quem resolve é a Inquisição. Forma de julgar não aceita, mas atenuada se a ponte que a acessa é a

12 VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Foucault revoluciona a História. Brasília: Ed. Unb, 1998. 13 MOTT, Luiz. Escravidão, sexualidade e demonologia. São Paulo: Ícone, 1988. 14 Ibidem, p. 68.

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embriaguez. No entanto, os inquisidores não podiam condenar totalmente o consumo de vinho porque eles também o usavam em seus ritos – se fosse aguardente a história talvez fosse outra, no caso da confissão acima. O que era condenável então é o que seu consumo gerava e como não se sabia com precisão a quantidade que os indivíduos podiam bebê-lo sem alterar sua percepção, o “termômetro” eram as práticas, as condutas – e uma das condutas inaceitáveis era a sodomia. Portanto, o estado de embriaguez era condenado porque nele, os agentes cometiam atos que comprometiam a imposição da moralidade cristã nos trópicos, como brigas entre cônjuges, relações homossexuais, transgressão da doutrina e com festas profanas. Para os padres então, o estado de ebriedade era problemático porque era o gatilho que disparava as ações que transgrediam a doutrina e, mais até, porque perturbava o “sossego público”, dificultando com isso não só a catequização, mas o projeto português de controle social.

Como ficou indicado, a experiência colonial de consumo alcoólico foi em parte assentada sobre a relação entre embriaguez e presença do diabo. Se considerarmos que natureza edênica, humanidade demonizada e colônia vista como purgatório foram as “formulações mentais com que os homens do Velho Mundo vestiram o Brasil nos seus três primeiros séculos de existência”15, ficaremos mais próximos de entender o lugar reservado à forma de repressão a quem se embriagava nas Minas coloniais. A representação do demônio encarnado no ameríndio é o que dava o sentido infernal da colonização. Seu tipo físico, cor e costumes se associavam à animalidade e humanidade diabólicas dos monstros medievais europeus, transpostas para os trópicos quando os colonizadores se depararam com a selvageria, a nudez e a antropofagia daqueles povos.

Havia três níveis que expressavam a percepção que tinham os europeus dos indígenas americanos, todos depreciativos: primeiro, o índio era adjetivado como “bárbaro”, cujo incesto, o canibalismo e a nudez eram comportamentos que o comprovavam; segundo, aparece sua “animalidade”, que dificultava a conversão pois tratava-se “de uma maneira de gente de condição mais de feras bravas que de gente racional”; por fim, aparece o terceiro nível em que se considerava o indígena como demônio: “uma gente ‘notável’ pela barbaridade de seus costumes e pela fereza do seu natural’”. Conforme detecta a historiadora Laura de Mello e Souza:

constatada nos hábitos e na vida cotidiana, confirmada nas práticas mágicas e na feitiçaria, a demonização do homem colonial expandiu-se da figura do índio – seu primeiro objeto – para a do escravo, ganhando, por fim, os demais colonos. […] A catequese e as medidas ‘normalizadoras’ das autoridades coloniais e dos dignatários da Igreja, a ação do Santo Ofício somaram esforços no sentido de homogeneizar a humanidade inviável,

15 SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

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animalesca, demoníaca do Brasil colonial. Cumpria ‘corrigir o corpo do Brasil’, afastar as populações do demônio e aproximá-las de Cristo, amansando-as.16

Daí ser legitimada a investida cristã sobre as cauinagens e sobre a bebedice dos

indígenas, escravos e colonos: elas expressavam a presença do demônio que deveria ser extirpado. Ao tratar das relações entre senhores e escravos, que eram o foco principal das tensões que permeavam a sociedade luso-americana na passagem do século XVII para o XVIII, os jesuítas passaram a se ocupar sistematicamente com a organização de projetos de regulação social. E, ao descrever os padrões ideais de comportamento que deveriam observar os senhores de engenho, Antonil dá pista de que participa da mesma lógica demonizadora. O temor que as autoridades tinham de uma revolta escrava, sem falar nas diversas formas de resistência como o assassínio do senhor, as fugas para os mocambos ou para os matos, o suicídio, o aborto, as práticas fetichistas configuradas nas “artes diabólicas” e no “feitiço”, além da embriaguez, determinaram tais projetos.17 A escala da pressão para que os agentes coloniais se convertessem ao cristianismo é expressa quando o jesuíta italiano recomenda que o primeiro oficial a ser escolhido no engenho seja o capelão, cujas obrigações são de evitar que os escravos cometam o pecado moral e de impor a lei segundo a qual

são dignos de abominação os feiticeiros e curadores de palavras, e os que a eles recorrem, deixando a Deus, de quem vem todo o remédio; os que dão peçonha ou bebidas (como dizem), para abrandar e inclinar as vontades; os borrachos, os amancebados; os ladrões, os vingativos, os murmuradores e os que juram falso.18

Trecho curto, mas importante. Primeiro, indica que havia um comportamento

social abominável, informando que o autor dirá como as coisas devem ser no tocante às crenças no interior do engenho. Além disso, indica que os feiticeiros eram conhecidos pelos escravos, tinham adeptos entre eles, mas que não seriam aceitos, pois o cristianismo é a única religião legítima para normatizar a vida social. “Peçonha” refere-se a substância que altera ou destrói funções vitais. Peçonha e bebidas são aproximadas enquanto produtos que abrandam ou “inclinam as vontades”, ou seja, enquanto substâncias que alteram a percepção dos indivíduos, logo, os escravos faziam e usavam misturas que serviam de aliciantes para manipular seus pares. É provável que os escravos usassem tais elementos entre si como instrumento de negociação e de

16 Ibidem, p. 71. 17 CANABRAVA, Alice P. João Antonio Andreoni e sua obra em Cultura e opulência do Brasil: por suas drogas e minas. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1966, p. 59. 18 ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil: por suas drogas e minas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966, p. 149.

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manipulação, escapando, com isso, da gerência dos senhores, padres e capelães. Podemos inferir também que havia beberrões (“borrachos”) entre os delitos morais: embriaguez e concubinato eram crimes no mesmo patamar de abominação. Isto nos permite questionar o que autoriza esta aproximação. O que havia em comum de relevante entre ambos? Vale lembrar que a mancebia era prática generalizada na colônia, fruto da falta de escolha dos pobres que viviam, em sua grande maioria, num mundo instável e precário. Estar concubinado “era contingência da desclassificação, resultado de não ter bens ou ofícios, da fome e da falta de recursos, não para pagar a cerimônia de casamento, mas para almejar uma vida conjugal minimamente alicerçada segundo os costumes sociais e a ética oficial”. Portanto, a aproximação talvez esteja na proximidade da condição de existência de ambos os tipos de pecadores. Seja como for, o excerto estabelece uma hierarquia entre atos abomináveis: os dois primeiros referentes às influencias sobre um maior número de escravos provavelmente; os outros relativos a casos individuais, aproximando o ébrio a ladrões, vingativos e “murmuradores” sugerindo que a bebedice provocava atos imorais segundo as leis cristãs, algo semelhante ao verificado nas afirmações dos moralistas lusitanos examinadas no capítulo anterior. Por sua vez, os escravos devem se persuadir de que devem respeitar tanto o capelão quanto o feitor que, no entanto, “não deve dar bater com pau neles, e aqueles que brigaram com feridas ou se embebedaram, devem ser presos para que o senhor os mande castigar como merecem, é diligência digna de louvor”. Então, os feitores batiam no ambiente hostil do engenho em que escravos brigavam, se embebedavam e, por isso, deveriam ser punidos. Mas não pelo feitor e sim pelo próprio senhor, assinalando alto grau de hierarquização no contexto, talvez até para facilitar a introjeção da condição escrava pelos negros. Se ele fizesse algo de errado seu dono iria puni-lo, pois seria o prejudicado.

Portanto, cada um com sua função e o senhor sendo aquele que concentra o poder de fazer justiça e fiscalizar a ordem, e ao escravo cabe reconhecer nele a autoridade. Quanto aos borrachos, devem ser presos e mandados castigar como merecem. De que tipo é este castigo, ficamos sem o saber. O que fica claro é que o aprisionamento não bastava. Importante destacar, todavia, que então no ambiente do engenho, a embriaguez em si era problema a ser resolvido. É o que fica claro no seguinte trecho:

o que se há de evitar nos engenhos é o emborracharem-se com garapa azeda ou água ardente, bastando conceder-lhes a garapa doce, que lhes não faz dano, e com ela fazem seus resgates com os que a troco lhes dão farinha, feijões, aipins e batatas.19

Como se vê, mais uma referência à embriaguez escrava, atingida por dois tipos de

bebidas: primeiro, a garapa azeda indica que era produto clandestino, indicando

19 Ibidem, p. 164.

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resistência do escravo. Depois, a aguardente que, como informam vários autores, havia engenhos que destilavam a bebida para a troca na África e não para uso no engenho.

Importante ressaltar a tentativa de fazer o escravo reconhecer a vantagem de beber garapa doce, por isso, o senhor a concede a ele: isto indica a intenção de forçar o próprio negro a admitir que fosse vantagem manter a sobriedade. Talvez seja o caso de afirmar que a oferta de garapa doce pelo senhor ao escravo indique a preocupação que tem Antonil em fazer o escravo introjetar sua situação. Chegamos a isso percebendo que Antonil por estar interessado em normatizar as relações entre senhor e escravo e sabendo que a embriaguez é um problema latente nos engenhos por comprometer o rendimento da produção, sugere que o senhor organize a ocasião adequada para se beber (nos dias santos e feriados) e, além disso, que o senhor indique a melhor bebida para se consumir nestas ocasiões. De qualquer modo, a oferta da bebida não alcoólica aparece como mais uma estratégia do senhor para fazer o escravo assumir a submissão – incorporando como seu o interesse do senhor, que neste caso é o de não consumir bebida alcoólica, e sim, a garapa doce, que também serviria como moeda para os escravos trocá-la por outros alimentos.

Este breve apanhado de pistas permite afirmar que desligar a embriaguez de fins práticos, vê-la como expressão de imoralidade e fonte de pecados e arruaças bem como organizar as escolhas dos escravos, são algumas características gerais que fizeram parte das formas de beber com vistas a colonizar sentidos e atos no território luso-americano. Significar negativamente a experiência de alteração da percepção provocada pela ingestão de bebida alcoólica interessava a uma classe senhorial preocupada em garantir o controle da mão-de-obra explorada. As autoridades religiosas recomendavam tipos de relação e alcançavam lá aonde o braço do senhor não chegava. Mas não se podia proibi-la completamente porque, afinal de contas, os escravos preferiam o destilado de cana de baixo preço. Potenciais preventivos, curativos e energizantes eram compartilhados entre a escravaria. Em todo caso, é desta forma ambígua que muitas vezes escapava dos trilhos, que as autoridades religiosas e as classes proprietárias instrumentalizaram a aguardente de cana na sociedade colonial.

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Ser Senhor de Escravos no Recôncavo do Rio de Janeiro: estratégias de legitimação do poder senhorial na

Freguesia de São Gonçalo do Amarante, século XVIII

Marcelo Inácio de Oliveira Alves1 Breve história de uma conquista portuguesa nos trópicos: São Gonçalo do Amarantes

A conquista e posterior colonização de São Gonçalo está imersa na história da

capitania do Rio de Janeiro. Após a definição das capitanias hereditárias, os jesuítas na localidade de São Gonçalo (Capitania de São Vicente) tinham a missão de catequizar os índios Tamoios e realizaram uma importante missão em 1551, através do Padre Manoel da Nóbrega.2 Com o processo de conversão/dominação dos índios, os portugueses passaram ao controle do território e, conseqüentemente, foi feita uma distribuição das terras em pequenas porções de sesmarias.3 Por volta de 1629, uma Capela, Filial á Matriz da Candelária do Rio de Janeiro, foi fundada por Gonçalo Gonçalves em sua fazenda, em Guaxandiba, e dedicada à. S. Gonçalo.4

Percorrendo o interior da freguesia de São Gonçalo no século XVIII, Pizarro esboça o seu mapa geográfico. Da parte esquerda, indo para esta Freguesia, acham-se várias casas térreas, que chegaram ao número de 30, ou pouco mais: umas delas são novas, outras antigas; umas cobertas de telhas, outras de palhas, e quase todas habitadas, ou ocupadas com atuais moradores. Da parte direita só duas ou três existem. Entre a Igreja Matriz e aquelas casas, fica a Estrada Geral, que dá acesso aos Portos. Dentre alguns outros rios, há o “memorável” Guaxandiba – navegável até certo lugar, e caudaloso, em “tempo d´água” –, o rio São Gonçalo – que corre por junto da Freguesia –, rio Gambá e o rio Aldêa. Todos estes são originados das Serras de Píiba, e fazem o seu desaguamento no mar.5

1 Mestrando em História no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (PPHR-UFRRJ). 2 BRAGA, Maria Nelma Carvalho. O município de São Gonçalo e sua história. São Gonçalo: Falcão, 2. ed., 1998, p. 24. 3 MOLINA e SILVA, Salvador Mata. São Gonçalo no século XVI. São Gonçalo: Companhia Brasileira de Artes Gráficas, 1996, (Coleção MEMOR), p. 48. 4 ARAUJO, José de Souza Azevedo Pizarro de (Monsenhor Pizarro). Memórias Históricas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: na Imprensa Régia, Tomo III, 1820, p. 18 e 19. Disponível em: http://www2.senado.gov.br/bdsf/ 5 ARAUJO, José de S. Azevedo Pizzaro de Araújo (Monsenhor Pizarro)… Apud GALDAMES, Francisco. Entre a Cruz e a Coroa: a trajetória de Mons. Pizarro (1753-1830). Niterói: Dissertação de mestrado – UFF, 2007, p. 527.

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Pizarro escreveu que é certo que a povoação são gonçalense se estende a maior número em finais do século XVIII, porém pode contar 789 Fogos o que se compreende 5.329 almas. Pessoas de Sacramentos são 167, de Confissão; e 604 “menores, boçais”, fazendo o total de 6.100 Almas.6

Ainda segundo Pizarro, no território paroquial havia 26 Fábricas de açúcar, 5 de aguardente, e 7 Olarias. Produzia-se cana, café, arroz, milho, feijão e outros legumes, como a mandioca, boa hortaliça e frutas de caroço, e de pevide, os quais eram levados a qualquer dos 13 portos dispersos pelo interior da marinha, e saiam diariamente para a ribeira da Cidade.7

Algumas estratégias de legitimação do poder senhorial na Freguesia de São Gonçalo do Amarante, século XVIII

É importante ressaltar o contexto de transformações pelas quais passa a

Guanabara no século XVIII. “Ao longo do Setecentos, o Rio de Janeiro transformou-se na principal praça mercantil do Atlântico Sul e da América portuguesa. Por exemplo, o Rio de Janeiro, na década de 1790, era o principal porto do tráfico internacional de escravos nas Américas.”8 Logo, “não seria absurdo pensar que o porto carioca tenha absorvido no mínimo 50% do total de exportações de africanos para o Brasil durante o século XVIII”.9

6 Ibidem, p. 519. 7 Ibidem, p. 23. 8 FRAGOSO, João. Efigênia angola, Francisca Muniz forra parda, seus parceiros e senhores: freguesias rurais do Rio de Janeiro, século XVIII. Uma contribuição metodológica para a história colonial. Topoi, v. 11, n. 21, p. 74, jul.-dez. 2010. Cf. SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do Império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650 – c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. 9 Para o aumento do tráfico, ver FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro: séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 46. Não é à toa que Silvia Lara observa uma “multidão de pretos e mulatos” no Rio de Janeiro setecentista. Ver LARA, Silvia. Fragmentos Setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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Tabela 1 Tráfico de escravos em áreas do Brasil durante o século XVIII10

Amazonia Bahia Pernambuco South-east Brazil (RJ) Embarked Disembarked Embarked Disembarked Embarked Disembarked Embarked Disembarked

1700 110 100 8,754 7,752 7,423 6,755 6,128 5,427 1701-1725

3,976 2,513 209,491 184,871 121,301 110,748 138,405 121,938

1726-1750

4,830 1,668 264,094 231,174 80,993 73,430 181,805 159,523

1751-1775

26,014 22,927 191,993 176,069 76,923 70,653 231,632 204,942

1776-1799

46,205 43,006 229,600 214,640 77,133 71,973 282,013 258,770

Total 81,135 70,214 903,932 814,506 363,773 333,559 839,983 750,601 Fonte: The Estimates database da Trans-Atlantic Slave Trade Database. Disponível em: http://slavevoyages.org/tast/assessment/estimates.faces?yearFrom=1700&yearTo=1799.

Daí cabe a pergunta: será que os plantéis de São Gonçalo eram constituídos e

mantidos via tráfico atlântico de cativos? Essa é uma importante questão que merece atenção. Pude perceber através de

registros de batismos de escravos, para os anos de 1722 a 1794, que há relativamente poucos escravos africanos – ou pelo menos registrados como tal – em São Gonçalo. Nesse período, foram apenas 90 batismos de cativos adultos, dos quais 77 tinham origem africana. No tocante aos pais (homens), esses números se alargam. De 554 pais, há apenas 64 africanos e 7 não-africanos, sendo 483 sem registros. Isto nos leva à uma hipótese, de que os cativos africanos estivessem sendo batizados em igrejas de outras freguesias antes de chegarem à São Gonçalo.

Tabela 2 Procedência/naturalidade dos pais escravos de São Gonçalo, de 1722-1794

Total de Pais Procedência/naturalidade 64 Africanos 6 Crioulos 1 índios 483 Sem registros 554 Total

10 Na tabela I, o século XVIII fluminense importava no total 750.601 escravos; sendo que de 1700 a 1750 chegam ao Rio 286.888 cativos, e desse período até 1799 desembarcam nos portos cariocas 463.712 africanos: um aumento de 38% na segunda metade do século XVIII. O que corrobora com tal crescimento é o fato de que nesse mesmo período os portos baianos foram superados pelos do Rio de Janeiro em torno de 15%.

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Quando analisamos as mães, com origens registradas, o cenário não é diferente. Dentre as 1.742 mães, há 681 com algum tipo de designação de procedência, das quais 303 são africanas e 378 são de variadas procedências/naturalidades. Apesar de ser quase cinco vezes o número dos pais que chegaram via tráfico, as africanas constituem apenas 17% do total de mães, pois também era grande (683, 39%) a presença de mães sem origem discriminada.

Tabela 3 Procedência/naturalidade das mães escravas de São Gonçalo, de 1722-1794

Mães com alguma Procedência11 Procedência/naturalidade 303 Africanas 8 Cabras 94 Crioulas 2 Mestiças 5 Mulatas 157 Pardas 112 Preta 681 Total

Com isso podemos chegar a algumas hipóteses. Primeiro, a reprodução da

escravaria em São Gonçalo setecentista não se dava apenas pelo tráfico de cativos, como João Fragoso já havia percebido para o século XVII. Se não era apenas via tráfico, a reprodução de escravos seria dentro das unidades produtivas, ou seja, “esses senhores […] apesar de poderem repor seus cativos via Atlântico, tinham parte expressiva de seus plantéis formada por famílias escravas.”12

No total dos rebentos, 554 (30%) tinham o pai registrado. Incluindo, há 212 mães casadas ou socialmente reconhecidas como “mulher de”, ou seja, 38% dos relacionamentos entre esses cativos eram dentro do casamento. Um número razoável de famílias escravas, portanto, vigia na freguesia – provavelmente, as mães não casadas se relacionavam com homens livres ou cativos de outros senhores.

11 Números relacionados somente às mães que possuem alguma referência à procedência e/ou naturalidade. 12 FRAGOSO, J. A Nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da terra do Rio de Janeiro, século XVII. Algumas notas de pesquisa. Revista Tempo (UFF), Niterói, v. 8, n. 15, p. 19, 2003.

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Tabela 4 Número de pais, mães, casamentos e família escrava de São Gonçalo (1722-1794)

Total de pais Total de mães Mães casadas ou “mulher de”

Porcentagem de Famílias Escravas13

554 1.742 212 38% Tal prática senhorial, de permissão da formação das famílias escravas, ultrapassa o

século XVII14 e estabelecesse-se entre os senhores do XVIII como forma de legitimar-se no poder. Pois a concessão senhorial para a formação das famílias escravas surge como uma barganha mútua e desigual entre escravos e senhores para o governo dos cativos.15

Não podemos esquecer, também, que, para além da dominação, permitir a família escrava16 era tentar incutir neles um dos sacramentos. A partir da análise da historiografia, percebem-se diversas construções para entender a legitimação do poder senhorial no Brasil colonial. Não obstante, as convergências salientam a importância da religiosidade conjugada à dominação senhorial,17 ou seja, não só de violência física viviam os senhores e escravos na (re)construção de suas inseguras vidas inseguras baseadas em laço pessoais.

Isso mostra a influência e importância desse sacramento na escravaria, sendo um dever do senhor permitir tal prática cristã. E, nesse caso, eles conseguiram que quase 40% das relações sexuais fossem sacramentadas e socialmente reconhecidas como tais. Em outras palavras, a permissão da formação da família era um das práticas senhoriais em São Gonçalo, como postulado pelos jesuítas na teoria cristã do governo dos escravos.18 E mais: tudo indica que era uma prática que atravessa as 13 Família nuclear, composta por pai e mãe, e não matrilinear. 14 Cf. FRAGOSO, João. Efigênia angola… Cf. FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790-c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. Ver também SLENES, R. W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 15 FRAGOSO, João. A Nobreza vive em bandos…, p. 19. 16 Não queremos entrar no debate historiográfico acerca da família escrava. Tratamos esse tema de forma mais singela crendo que a família escrava é uma forma de “amansar” o escravo, na medida em que lhe dá um privilégio e possibilidade de alianças e proteção, hierarquizando-os. Outrossim, estamos trabalhando com a noção de família nuclear, composta por pai e mãe, e não matrilinear, o que provavelmente alargaria, e muito, o número de famílias na escravaria. 17 Cf. BENCI, J. Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos (livro brasileiro de 1700). São Paulo: Grijalbo, 1977. Ver também, ANTONIL, A. J. Cultura e opulência do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1982. 18 BENCI, J. Ibidem, p. 102.

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gerações senhoriais são gonçalenses19 visando a manutenção do domínio senhorial. Essa passagem geracional de códigos “não se tratava tanto de um objetivo, e sim de um vinculo preliminar de comportamentos que tentavam melhorar o controle sobre o ambiente social e natural.”20 Em outros termos, perpetuar a condição senhorial das famílias.

O próprio ato do batismo revela a preocupação dos senhores com os sacramentos. Em 72 anos (de 1722 a 1794), 1.868 escravos foram levados à pia batismal. Mas, essa não seria apenas uma prática dos grandes senhores, cuja realidade material propiciasse celebrações de batismos inviáveis aos senhores menos abastados? Pelo contrário, podemos deduzir que em São Gonçalo setecentista qualquer senhor poderia levar seu escravo à pia batismal, pois segundo Pizarro, “as ofertas por batizados são voluntárias; e raras vezes se dão 640, e uma vela, sendo por livres: e sendo por cativos, não excedem a 320, e uma vela. As ofertas por casamentos de cativos, são ordinariamente uma galinha, ou 320Rs.” 21 Voluntariamente ou ao preço de uma galinha: o batismo era real para o “bolso” de qualquer senhor.

A religiosidade não era uma questão de retórica, estamos tratando de uma sociedade de Antigo Regime cujo temor a Deus era latente, como fica claro na maioria dos testamentos de senhores(as) de São Gonçalo. Foi o caso de um deles realizado em 7 de fevereiro de 1733.

Eu Joseph Duarte Lisboa […] Temendo-me da morte e desejando por mim alma no Caminho da Salvação por não saber o que Deus nosso senhor de mim quer fazer e quando será servido levar-me para si, faço esse meu testamento na forma seguinte – Primeiramente encomendo minha alma a Santíssima Trindade que a criou e rogo ao padre e temo pela morte e paixão de seu unigênito filho a queira receber como recebes a sua estando para morrer na árvore da vera cruz e a meu senhor Jesus cristo peço por suas divinas chagas, que já que nessa vida me fez mercê de dar seu precioso sangue e merecimento de sue s trabalhos. Me faça mercê também na vida que esperamos dar premio deles que é a glória e peço, rogo a gloriosa virgem Maria nossa Senhora madre de Deus e a todos os santos e sua corte celestial

19 As análises das relações geracionais entre famílias escravas e senhorias é uma pesquisa em aberto. Para o século XIX, Cf. GUEDES, Roberto. Egressos do Cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c. 1798 – c.1850). Rio de Janeiro: Mauad/FAPERJ, 2008. 20 LEVI, Giovanni. Herança Imaterial: Trajetória de um exorcista no Piemonte do Século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 99. 21 ARAUJO. Memórias Históricas do Rio de Janeiro… Apud GALDAMES, Francisco. Entre a Cruz e a Coroa…, p. 530.

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principalmente ao anjo de minha guarda e ao santo do meu nome e aos mais santos a quem tenho devoção queiram por mim interceder e rogar a meu Senhor Jesus Cristo agora e quando minha alma do meu corpo sair porque como verdadeiro cristão protesto de viver e morrer na santa Fe católica e crer o que tem e crê a santa madre igreja romana em […] Fe espero salvar minha [alma].22 (grifo nosso)

Em um documenta salienta mais a prestação de contas a Deus23 da vida pregressa

e a preparação para a passagem espiritual. O individuo, “temendo a morte”, preocupa-se primeiramente em “encomendar a alma”, para depois tratar dos bens materiais. E não só a dele, mas a dos próximos, mesmo em seu testamento. Maria de Oliveira da Cunha, uma senhora moradora de São Gonçalo, nascida na freguesia vizinha de Inhomirim, pedia missas em seu testamento pela irmã, pais e marido já falecidos.

Declaro que se digam cinco missas pela alma de minha irmã Ursula da Cunha com a esmola costumada – Item – Declaro que se diga meia capela de missas pela alma de meu marido Antonio de Caldas com a esmola costumada – Item – Declaro que se digam dez missas pelas almas de meus pais com a esmola costumada.24

E tais pedidos de missas, apesar de recorrentes, não eram gratuitos, ou seja, era

relativamente dispendioso rogar missas, mas, mesmo assim, não se poupava para salvar a alma. Por isso, essa mesma senhora, pedia que “no dia de [seu] falecimento se dirão por minha alma dez missas de corpo presente podendo ser no mesmo dia.”25 Pedir missas de corpo presente, e também para outrem, não era bagatela em São Gonçalo.

Havendo Ofício de Corpo presente, pela assistência á ela, Missa Cantada, e encomendação, tem 12$800 além de duas velas de libra pelo Ofício, e encomendação, a cera da banqueta, e Altares

22 Arquivo da Arquidiocese de Niterói. Livro de Testamentos da Freguesia de São Gonçalo 1733-1735. 23 Cf. SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos de Goitacases, c. 1750 - c. 1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009. Ver também, RODRIGUES, Cláudia. Nas fronteiras do além: a secularização da morte no Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005. 24 Arquivo da Arquidiocese de Niterói. Livro de Testamentos da Freguesia de São Gonçalo 1733-1735. 25 Ibidem.

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laterais. Sendo o Ofício fóra da Igreja Matriz, tem mais alguma coisa pelo caminho. Por Missa de Corpo presente, 640; e quotidiana, 320. Por encomendação de qualquér pessoa liberta adulta, ou inocente, dentro da Igreja, tem 1$600, e uma vela: por dtª no Cemiterio, 960.26

Como dito acima, se os senhores preocupam-se com os sacramentos, aliando

conversão/dominação dos escravos (batismo e casamentos), os cativos também não seriam esquecidos nos testamentos. Por isso, uma senhora de São Gonçalo, pede “missas pelas almas de meus escravos”27 em seu testamento. Além da alma, Maria de Oliveira da Cunha, por exemplo, preocupou-se com a vida de uns mulatinhos após sua morte, os quais criou como filhos.

Declaro que instituo por meus universais herdeiros de todos os meus bens uns mulatinhos que sempre os criei como meus filhos, Jeronimo, Joao e Maria, filhos de uma negra crioula forra por nome Phelipa e por achar em minha consciência que lhes devo fazer assim por cetros particulares que os não possa descobrir debaixo de minha consciência == + assim peço a dita mãe dos ditos mulatinhos que por minha morte venha assistir com os ditos seus filhos para ter cuidado deles até tomarem estado, principalmente a filha por ser já mulher, por eu não ter herdeiros forçados. […] Declaro que deixo a mulatinha Maria atrás declarada o valor de uma moleca que se lhe dará quando casar setenta mil reis para a compra da dita moleca […] como também se lhe dará toda a roupa de meu uso.28

Esta senhora atenta para a vida desses mulatos, assim como à liberdade de

escravos de outros senhores: “declaro que o Reverendo Gaspar de Barros liberte um mulatinho por nome Francisco, filho de Páscoa, escrava do dito Padre, e a tempo do meu falecimento esteja já liberto e […] pela sua alforria lhe darão cinquenta mil reis de esmola.”29

Interessante é que essa senhora possui parentes, quer dizer ela prefere se dispor com os mulatinhos e nem tanto com suas sobrinhas, para as quais

Declaro que deixo a minha sobrinha Maria filha de João de Brito e Maria da Cunha dez mil reis quando casar […] depois do

26 ARAUJO. Memórias Históricas do Rio de Janeiro…, p. 530. 27 Arquivo da Arquidiocese de Niterói. Livro de Testamentos da Freguesia de São Gonçalo 1733-1735. 28 Ibidem. 29 Ibidem.

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meu falecimento mando que se lhe dêem para seu vestuário, vivendo honradamente == Item == declaro que deixo a minha sobrinha Ignacia Gomes Castro mil e oitocentos reis para seu vestuário sendo que viva honradamente30

Resumindo, a senhora deixa com herdeiros universais alguns mulatinhos filhos de

uma forra, e pede que seus bens não sejam vendidos para o bom sustento e proteção de um dos mulatos, no caso a mulata Maria. E a senhora lhe dará, ainda, todas as roupas e o valor de uma moleca quando se casar, 70 mil réis. Fora a “esmola” de 50 mil réis ao padre em troca da liberdade de um mulatinho filho de sua escrava. Deixará, entretanto, a bagatela de dez mil a uma sobrinha, e mil e oitenta réis à outra, além de roupas para que vivam honradamente. Assim, a senhora presta mais atenção monetária aos mulatos, de sua casa e de fora, preterindo suas sobrinhas

Outro senhor – cujo nome é incógnito por faltar a última página do testamento – morador de São Gonçalo, português de São Tiago Arcuvello (arcebispado de Braga) demonstra a mesma preocupação com seus escravos. Sem herdeiros, assumiu os filhos tidos com uma forra, ex-escrava de outro senhor, e lhes instituiu como herdeiros universais.

Declaro que sou solteiro e nunca fui casado e sendo três filhos a saber Baltazar, José e Ana; os quais tive uma mulher preta forra por nome Francisca Pereira, escrava que foi de Pedro Barbosa, cujos filhos naturais instituo por meus herdeiros universais de todos os meus bens que se acharem por meu falecimento por estes me sucederem como homem.31

Ao referir-se aos demais escravos, sua prática, geralmente, é prometer alforria e

razoáveis quantias após alguns anos de serviço a seus filhos.

Declaro mais que possuo um escravo meu por nome Lourenço, de nação Cabo Verde, qual é meu afilhado o qual deixo a obrigação de que sirva a meu filho dois anos, tendo princípio dia do meu falecimento por diante; e acabados eles o dei por forra liberto e meus testamenteiros lhe passem liberdades e vá tratar de sua vida.32

No tocante à uma escrava de sua preferência, Maria Mina, vai além. Promete

alforriar seu filho, Zacarias, se o pai nomeado, Felix de Oliveira Costa, assumisse a 30 Ibidem. 31 Arquivo da Arquidiocese de Niterói. Livro de Testamentos da Freguesia de São Gonçalo 1733-1735. 32 Ibidem.

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paternidade. Mas, também, ganharia liberdade se apresentar outro pai, que, se fosse escravo, também o alforriaria. Se não fosse dessa maneira, ainda teria a terceira chance de receber a prometida liberdade:

e mais dando duzentas oitavas de ouro meus testamenteiros lhes passem carta de alforria e não havendo que os forre em tal caso deixo ao mulatinho Zacarias, filho da dita negra forra, com obrigação de assistir com os meus filhos, e estes o sustentarão até ter idade suficiente para poder governar-se meus testamenteiros o porão a um ofício o que ele se intimar e, estando capaz de poder governar-se, se lhe dara um vestido e cem mil reis em dinheiro para […] poder tratar de sua vida o quando a mais por nome Maria, nação mina, esta dando cem oitavas de ouro por […] meus testamenteiros lhe passaram carta de alforria. 33

Se em nenhuma das formas acima bastarem para o mulatinho e sua mãe

alcançarem a liberdade, como último esforço o senhor os deixava sobre a proteção dos filhos, os quais teriam que dar ofício, vestido e cem mil reis em dinheiro ao mulatinho.

Não podemos generalizar, mas através desses estudos de caso percebemos que, além de o aspecto religioso sobressair-se aos demais, há toda uma preocupação cristã em conceder a alforria. Diria mais, os senhores se preocupavam com o futuro de seus escravos, tidos como filhos, ou preferidos. No mínimo, há a promessa de liberdade após alguns anos de serviços prestados, até quantias maiores do que as direcionadas a parentes legítimos. Talvez, a relação senhor/escravo, como dissemos, fosse além da violência e a submissão nem sempre significava opressão, mas “negociações entre senhores e a hierarquia social existente nas senzalas. Um dos produtos de tal negociação era a legitimidade dada pelos cativos ao mando social e político aos seus senhores; outro produto era a alforria.”34 Assim, estabelecem-se códigos de poder senhorial.

É lógico que nem todos os escravos vão aparecer nos testamentos de seus senhores ganhando alforria ou recursos. Mas existe outra forma de o senhor, em vida, oferecer alianças e proteção ao seu cativo, além de corroborar com os aspectos religiosos: através do apadrinhamento. O mesmo senhor citado acima declarou “que tendo em meu poder dois moleques um por nome Ignácio e outro por nome Domingos, os quais pertencem a meus filhos. Inácio a Baltazar; e o Domingos a José os quais muleques […] por lhes haverem dado lhes os padrinhos e assim lhes tocao

33 Ibidem. 34 FRAGOSO, João. Efigênia angola…, p. 85. (grifo nosso)

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fora da herança por meu falecimento.35 Esses moleques já foram devidamente agraciados com proteção através dos padrinhos, podendo, por isso, estarem excluídos do testamento.

Eis a importância desse ritual religioso que implica relações sociais. Ter padrinhos era possuir a possibilidade de construir uma teia de proteção em uma sociedade insegura36, na qual os escravos “como fracos, vierem por si mesmos a pedir […] ao senhor […] padrinhos que os acompanhem.” 37 Em outras palavras, querer padrinho era um ato pelo qual o mais humilde pedia benesses ao seu protetor temporal, o qual inserirá o batizado na sociedade, para que se aglutine à uma proteção espiritual. É uma negociação que se estabelece quando o senhor não só permite, mas concede tal proteção ao subalterno em situação suplicante e mais frágil.

Além de geradora de proteção para os cativos, essas alianças advindas do apadrinhamento eram importantes para construir a legitimidade dos senhores perante os subalternos:

Seguia-se uma velha tradição, já presente nos batismos de São Gonçalo de meados do século XVII: a de membros da nobreza da terra, inclusive fidalgos da casa do rei, serem compadres de algumas e poucas famílias escravas. Tal parentesco entre diferentes estamentos sociais contribuía para produzir uma hierarquia nas senzalas e com isto viabilizar o governo dos engenhos.38

Nesse sentido, os 1.868 ex-pagãos em São Gonçalo no século XVIII tiveram

1.832 padrinhos e 1.619 madrinhas, sendo 636 (35%) padrinhos e 811 (50%) madrinhas escravos – supostamente com aprovação senhorial. Isso mostra a importância dessas alianças sociais e religiosas dentro da escravaria. Entre os egressos do cativeiro também, pois cerca de 80 padrinhos (4,36%) e 110 (6%) madrinhas eram forros.

Tabela 5

Número de padrinhos e madrinhas escravos e forros em São Gonçalo (1722-1794)

Total de padrinhos

Padrinhos escravos

% Padrinhos forros

% Total de madrinhas

Madrinhas escravas

%

Madrinhas forras

%

1.832

636

35

80

4,36

1.619

811

50

110

6

35 Ibidem. Imagem 014. 36 LEVI. Giovanni. A Herança Imaterial… 37 ANTONIL, A. J. Cultura e opulência…, p. 90. 38 FRAGOSO, João. Efigênia angola…, p. 79.

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Quando enxergamos um grande número de padrinhos e madrinhas escravos, isto leva-nos a crer que a questão da proteção vai por água a baixo? Os senhores que não batizam, deixando essa função a seus escravos, não estão estabelecendo um código para legitimar-se? Segundo João Fragoso, não. O apadrinhamento entre escravos era deveras importante, já que ultrapassava as porteiras da fazenda senhorial e, igualmente, construindo o poder dos senhores.

Os batismos sugerem […] a existência de redes de sociabilidade de escravos que ultrapassavam os engenhos. […] Uma mesma família escrava era capaz de manter, simultaneamente, compadrios com cativos de distintos engenhos. […] A estabilidade da família aparece associada a elos de compadrios entre senzalas de engenhos diversos. Evidentemente, […] insinuam redes de sociabilidades escravas que atravessavam a freguesia. Estas teias podiam ser ou não entre cativos de senhores aparentados.39

Esse último dado salientado por Fragoso merece ser mais explorado,

principalmente para o nosso tema. O fato de a teia ser, ou não, entre cativos de senhores aparentados demonstra algumas práticas dos senhores implícitas nos apadrinhamentos. Pode ser que o fato de muitos padrinhos e madrinhas serem cativos indique, além de laços entre escravos, a legitimidade, o status e o poder de seus senhores.

Para chegar próximo a uma resposta, ressaltamos que na “busca pela obtenção e manutenção da posição de mando dentro da sociedade, a elite, inevitavelmente, deveria adquirir legitimidade social. Nesse ponto, as negociações com a escravaria exerciam uma função primeira.”40 A constituição do ser senhor, como vimos, não é previa. E as estratégias desenvolvidas para tal não se remetem apenas aos estratos superiores, pelo contrário, a negociação com os subalternos fez-se urgente desde a conquista, e “destes entendimentos dependia a própria existência físicas daqueles fidalgos […] da mesma medida o grau de sintonia das relações senhores-escravos contribuía decisivamente para a plasticidade da estratificação social nos trópicos.” Para tanto, basta lembrar os conflitos bélicos intra-senhores nos quais se recorria aos escravos armados. Na mesma medida, “as malhas parentais, fictícias ou não, dos cativos com escravos de outros donos […] produziam a sua sociabilidade, entretanto podia aparecer como um canal de comunicação de um dado fidalgo tropical com tais segmentos sociais.”

39 FRAGOSO, João. A Nobreza vive em bandos…, p. 19. 40 MATHIAS KELMER, C. O Braço Armado do Senhor: recursos e orientações valorativas nas relações sociais escravistas em Minas Gerais na primeira metade do século XVIII. In. PAIVA. E & IVO, I (org.). Escravidão, mestiçagem e história comparada. São Paulo: Annablume, 2008, p. 91.

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Em outras palavras, eis “a possibilidade de os cativos surgirem como espécies de agentes políticos para seu senhor”41 na medida em que apadrinhavam escravos de outro senhor. Com tal estratégia, ambos (senhores e padrinhos escravos) legitimam-se perante outros cativos.

No caso de São Gonçalo setecentista, percebemos tal estratégia. O doutor desembargador Roberto Car Ribeiro, mesmo com importantes alianças parentais até para fora da capitania, não abriu mão de tal prática: dos 10 escravos que levou á Pia batismal, 8 padrinhos e 10 madrinhas eram cativos. O Visconde de Asseca tinha mais de 100 escravos em sua fazenda, dos quais muitos possuíam padrinhos cativos. Dos 36 batizados, têm-se como padrinhos 11 escravos, um pardo forro e um índio forro; entre as madrinhas, há 14 escravas e uma índia. Como se vê, é larga a rede de sociabilidade desse senhor. Ou seja, mesmo abastados e bem inseridos na sociedade, eles expandiam seu poder, também, através do apadrinhamento de seus escravos.

Esta situação salta à vista também quando percebemos a recíproca legitimidade entre senhores com postos semelhantes, notadamente militares. O Alferes Francisco Cordeiro Carvalho possui um escravo e uma escrava, os quais apadrinharam os cativos do também militar Tenente Bento Leite Andrade. Por sua vez, este senhor possui 3 escravos e 5 escravas apadrinhando os cativos do Alferes Francisco Cordeiro Carvalho em 13 batismos.

Isso mostra que essa prática de apadrinhamento recíproco de escravarias para legitimar-se é forte e estava presente entre os grandes senhores, os possuidores de postos e títulos. Há 1.832 rebentos com padrinhos, dos quais 636 são escravos, e 27% (170) dos seus senhores ou senhoras têm algum titulo de dona, militar ou eclesiástico. Em contrapartida, apenas 7,7% de padrinhos livres tinham títulos (vide a tabela 6).

Tabela 6 Número de padrinhos escravos e seus senhores com títulos, e os padrinhos livres

com títulos em São Gonçalo (1722-1794)

Total de padrinhos

Padrinhos escravos

%

Senhores dos padrinhos possuidores de títulos (militar, eclesiástico, régio ou dona)

% Padrinhos livres

%

Padrinhos livres com títulos (militar, eclesiástico ou régio)

%

1.832 636 35 170 27 1.196 65 92 7,7

41 FRAGOSO, J. À espera das frotas: a micro-história tapuia e a nobreza principal da terra (Rio de Janeiro, 1600-1750). Rio de Janeiro: Tese de Professor Titular - Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005, p. 93-94. Apud MATHIAS KELMER, C. O Braço Armado do Senhor…, p. 92.

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Com base nas madrinhas, observa-se o mesmo: dos 1.619 ex-pagãos que possuíam madrinhas, 807 (50%) eram escravas, e 245 (30%) senhores dessas madrinhas tinham algum titulo. E apenas 58 madrinhas livres (7%) possuíam títulos.

Tabela 7 Número de madrinhas escravas e seus senhores com títulos, e as madrinhas livres

com títulos em São Gonçalo (1722-1794)

Total de madrinhas

Madrinhas escravas

%

Senhores das madrinhas possuidores de títulos (militar, eclesiástico, régio ou dona)

% Madrinhas livres

%

Madrinhas livres com títulos (dona)

%

1.619 807 50 245 30 811 50 58 7

Daí pode-se extrair algumas conclusões e corroborar com o aspecto religioso e

social assinalado acima. O apadrinhamento intra-encravos era, de fato, uma prática senhorial em São Gonçalo do século XVIII, visando a legitimação desses senhores. Mas não de quaisquer senhores, e sim apenas dos possuíam determinado poder na sociedade, estabelecido por seus postos, títulos e número expressivo de escravos. Há 181 senhores que fazem alianças por apadrinhamento escravo e 696 que não fazem. Uma diferença considerável. Dos que fazem alianças, há a presença de 71% de médios/grande senhores42 dos quais 29% possuem algum tipo de título/posto.

Tabela 8

Senhores (e seus títulos) que fazem alianças através do apadrinhamento escravo em São Gonçalo (1722-1794)

Senhores que fazem alianças através do apadrinhamento escravo

% Médios/grande senhores

% Senhores possuidores de títulos (militar, eclesiástico, régio ou dona)

%

181 20,6 128 71 52 29

E na tabela 9, dos 696 senhores que não fazem alianças, apenas 18% são

médios/grande senhores, dos quais 17% são possuidores de títulos.

42 Consideraremos um médio/grande senhor aquele que possui mais de 6 escravos. Vide o critério de hierarquização dos senhores por quantidade de escravos abaixo, na tabela 10.

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Tabela 9 Senhores (e seus títulos) que não fazem alianças através do apadrinhamento escravo em São Gonçalo (1722-1794)

Senhores que não fazem alianças através do apadrinhamento escravo

% Médios/grande senhores %

Senhores possuidores de títulos (militar, eclesiástico ou dona)

%

696 79,4 125 18 119 17

Podemos concluir, então, como já indicado, que as relações de apadrinhamento

através dos escravos era um prática predominante entre os grandes senhores, e como eles eram minoria, entendemos porque 181 faziam as alianças e 696 não faziam.

O critério para estabelecer essa hierarquia entre os senhores é variado, um deles é a quantidade de escravos, pois

a posse de numerosa escravaria foi fundamental na definição de um indivíduo como elite e/ou poderoso não só porque a quantidade de escravos, juntamente com a posse de terras, ajudava na definição do lugar social, mas também porque a posse destes mesmos escravos era essencial para dinamizar e por em prática um mecanismo essencial de afirmação desta elite/poderosos: a prestação de serviços à Coroa. Para além disso, possuir muitos escravos e utilizá-los como braço armado em prestação de serviços a Coroa era essencial também porque indicava a legitimidade e o poder de mando destes indivíduos.43

Em São Gonçalo setecentista, do total de 877 senhores, 693 (79%) eram

possuidores de 1 a 5 escravos. 107 (12,2%) senhores possuíam de 6 a 10 escravos. De 11 a 15 possuidores de escravos, há 33 (3,7%) senhores. 23 senhores (2,6%) possuem de 16 a 20 escravos. E, finalmente, nesse alto escalão de mais de 20 escravos, há apenas 21 senhores (2,4%).

43 COSTA, Ana Paula. “Leais Vassalos e seu Braço Armado”: uma analise das interações entre potentados locais e seus escravos. Vila Rica, 1711-1750. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 10, n. 1 e 2, p. 63, Jan.-Dez., 2008.

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Tabela 10 Número de senhores por posse de escravos em São Gonçalo (1722-1794)

Número de escravos Senhores % De 1 a 5 693 79 De 6 a 10 107 12,2 De 11 a 15 33 3,7 De 16 a 20 23 2,6 Acima de 20 21 2,4 Total 877 100

Dos mais de 870 senhores analisados em São Gonçalo no século XVIII, 173

(19,7%) tinham títulos e 704 (80,2%) não os tinham. Nesse ranking, dentre os dez senhores com mais escravos há um visconde, 3 capitães, 2 tenentes, um padre e um doutor. Isto demonstra que realmente os postos eram importantes para diferenciar os senhores, já que foram assinalados em registros de batismos, documentos a época que, teoricamente, não se direcionam a isso.

Tabela 11

Quantidade de senhores com títulos/postos e seus escravos em São Gonçalo (1722-1794)

Postos Número de senhores com títulos/postos

Quantidade de escravos pelos ocupantes dos

postos

% Média

Ajudante 2 10 0,79 5 Alcaide-Mor 1 4 0,31 4 Alferes 18 201 15,9 11,16 Capitão 34 309 24,4 9,08 Capitão-Mor 3 41 3,20 13,66 Cônego 1 3 0,23 3 Coronel 3 13 1,02 4,33 Desembargador 1 34 2,68 34 Dona 75 305 24,1 4,06 Frei 1 3 0,23 3 Furriel 1 5 0,39 5 Mestre de Campo 1 36 2,84 36 Juiz do Fisco 1 3 0,23 3 Padre 16 115 9,09 7,18 Sargento-Mor 4 13 1,02 3,25 Tenente 10 157 12,4 15,7 Vigário 1 12 0,94 12

Total

173 (19,7% do total de senhores)

1.264 (35,6% do total de escravos)

100,0

173,0

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Tais práticas podem ser entendidas como códigos compartilhados pelos senhores setecentistas, dentro de suas estratégias para serem reconhecidos como tal em São Gonçalo do século XVIII, desde um Visconde, com quase 100 escravos, até forros com um escravo. Logo, dentre os códigos e práticas senhoriais em São Gonçalo – percebidas a partir de fontes eclesiásticas – alguns advinham da conjugação conversão/dominação. Se, de um lado, era, para o escravo, um privilégio casar-se, apadrinhar e ser apadrinhado, barganhando melhores condições de existência e proteção, de outro, os senhores exerciam sua dominação a partir de códigos e práticas que se confundem com obrigações senhoriais cristãs, justamente para manter seus cativos como cristãos obedientes integrantes de sua casa, com menos risco de desgoverno e de perda da fidelidade.

Considerações Finais

Como dissemos, os historiadores da escravidão analisam, prioritariamente, as

estratégias e o cotidiano dos escravos. Porém, para que o sistema escravista seja mais inteligível, temos de dar voz aos dois elementos principais de sua constituição: o escravo e os senhores. É através do entendimento também de quais são as estratégias para se construir-se em senhor, sua cultura política, suas formas de criar e manter seu poder, que compreenderemos os dois lados desse jogo de poder pessoalizado que imperava na escravidão.

E como o poder do senhor foi construído e mantido, é uma questão em aberto. O que fazer para ser um senhor, respeitado, acatado pelos escravos em regiões rurais cujo poder não é institucionalizado, não havendo aparatos estatais que garantiam, eficientemente, sua segurança, quanto mais seu poder? Não existe uma lei ou instituição que garantisse ao senhor, em uma fazenda, muitas vezes isolada ou de difícil acesso, o poder e a submissão dos escravos, numericamente superiores e armados com enxadas, foices, etc.

Nesse cenário, o “senhor” não surge no momento da aquisição do escravo, e não há forças institucionais para garanti-lo. Precisava constituir-se como tal através de estratégias. Mas apesar dessa latente importância, não encontramos na historiografia obras que dêem cont do assunto. Esse singelo trabalho monográfico busca, então, engatinhar nesse sentido, utilizando as fontes eclesiásticas e a micro-história, esmiuçando as relações sociais expressas no cotidiano, através das quais as redes de poder e estratégias para formar um senhor são nítidas. Os apadrinhamentos, a concessão da família escrava, a conversão/dominação e a alforria são apenas alguns aspectos da construção da legitimidade senhorial, que servem como um fio a ser desenvolvido em pesquisas futuras.

Não desconsideramos as estratégias de dominação senhorial direta ou indiretamente já assinaladas pela historiografia. Algumas já superadas, outras discutíveis. Enfim, o debate faz-se necessário para que o estudo da escravidão não

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seja unilateral. A escravidão não foi feita apenas pelo escravo. Se ele negociava, quais eram os principais termos exigidos pelo senhor? Se ele resistia, era contra quais práticas, costumes ou aspectos da mentalidade senhorial? Se ele era vítima, quem era esse que estava do outro lado do estalar do chicote? Se ele era reificado, através de quais artifícios os senhores faziam tal coisificação? Em outras palavras, independente da vertente através da qual se enxergue a escravidão, entender os senhores é fundamental para que o sistema e suas relações de poder interpessoal fiquem cognitivamente mais completos.

É impossível existir senhor sem escravo, e vice-versa. E da mesma forma é incoerente entender um sem a presença do outro. Analisar os escravos é uma tarefa para futuros trabalhos.

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Escravidão e Antigo Regime em tempos de mudanças: o conflito entre a Irmandade de São Crispim e São Crispiniano e a Câmara; Rio de Janeiro,

segunda metade do século XVIII e início do XIX

Mariana Nastari Siqueira1

Por cerca de cinco décadas (pelo menos, c.1764 a c.1820) verifica-se um conflito entre a Irmandade de São Crispim e São Crispiniano e a Câmara, sendo levado à frente ao longo dos anos pelos membros sucessores da irmandade. Este diz respeito à venda ambulante de calçados, comércio este que a irmandade tentava impedir. A Câmara, por sua vez, de forma geral contraria a pretensão dos confrades sapateiros ao longo dos anos.2

O ponto nevrálgico do conflito gira em torno de um termo feito pela irmandade em 1764, o qual esta tenta ver aprovado pela Câmara. O termo pleiteia que seja proibida a venda ambulante de calçados, pois, de acordo com o documento, eram escravos oficiais de sapateiro quem vendiam “obras imperfeitas” pelas ruas, a mando de seus senhores.3

A Irmandade de S. Crispim e São Crispiniano do Rio de Janeiro4 era uma instituição católica e que funcionava em bases marcadamente corporativas, de acordo com os referenciais do Antigo Regime ibérico. Esses referenciais fizeram sentido, igualmente, na América portuguesa, guardando-se, as devidas especificidades.5 1 Graduada e licenciada pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. 2 Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (doravante, AGCRJ), códices 50-1-11, “Sapateiros, autos, 1771-1772”; 50-1-12, “Documentos sobre ofícios de juízes e escrivães de sapateiros, 1813-1827”; 46-4-45: Classes de Ofícios (1792-1802/1813-1820), fls. 16, 16v, 19-21v, 40. 3 O termo encontra-se transcrito integralmente em AGCRJ, códice 50-1-12, fls. 5-7v. 4 A irmandade conhecida por congregar os sapateiros, surgiu provavelmente em 1754. Cf. CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade, da invasão francesa até a chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. Print. O autor baseia-se na seguinte referência: Arquivo Nacional, 1º ofício de notas, livro 125, Coleção Eclesiástica, cx. 926, documento 63, 1861. Infelizmente o documento encontra-se indisponível. Esta era uma irmandade de ofício, na medida em que a organização do ofício de sapateiro dava-se a partir da irmandade. Sobre o conceito de irmandade de ofício ver SANTOS, Beatriz Catão Cruz. Cantos Comuns: ofícios, irmandades e vilancicos no Rio de Janeiro do século XVIII (projeto apresentado à Fundação Biblioteca Nacional), 2007. Ibidem. Irmandades, oficiais mecânicos e cidadania no Rio de Janeiro do século XVIII. Varia História, vol. 26, n. 43, p. 131-153, jun. 2010. Em minha pesquisa de mestrado procuro analisar a vinculação entre o ofício de sapateiro e a referida irmandade. 5 A ordem social hierarquizada ganhou contornos próprios, sobretudo se levarmos em conta o aspecto escravista, que a tornava ainda mais complexa. Cf. FRAGOSO, João; BICALHO,

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No entanto, nosso recorte temporal implica que analisemos as transformações desse período, a qual abalou progressivamente o modelo mental do chamado corporativismo da segunda escolástica.

A circulação de idéias da Europa ilustrada no contexto da crescente e inequívoca importância assumida pelo Rio de Janeiro nos quadros do Império português6 e a política pombalina cujos traços revelam a influência iluminista e o empenho em estabelecer uma autoridade governamental secular7 golpeiam o paradigma cuja representação social era concebida em ordens ou estados, nomeadamente a partir do último quartel do século XVIII.8

Mas a par da erosão dos valores e referenciais de Antigo Regime, calcados no paradigma corporativo, é preciso ter em mente que estamos lidando com dois contextos um tanto quanto distintos em fins do século XVIII e início do XIX, época em que transcorre o conflito entre a Irmandade de São Crispim e São Crispiniano e a Câmara do Rio de Janeiro.

Um evento prestou-se a divisor de águas: a vinda da Família Real para o Brasil, em 1808, marcando o fim de uma colônia, com a instalação de uma monarquia européia nos trópicos.

Com a chegada da Corte ao Rio de Janeiro, uma série de alterações e adaptações técnicas, administrativas e culturais foram levadas a cabo na cidade para que esta pudesse receber a Família Real e todo o aparato monárquico.9

Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 6 Manolo Florentino e João Fragoso demonstraram a importância adquirida pela cidade já na primeira metade do século XVIII, com sua integração à economia atlântica. Por volta de 1730 consolida-se como “principal centro comercial da América portuguesa”, ao passo que em meados do século já estaria “efetivamente aberto ao Atlântico, especialmente por intermédio do comércio negreiro para as Gerais”. A cidade configura-se, desta forma, como centro abastecedor da região mineira, estabelecendo-se “circuitos mercantis regionais e locais” e como “o maior e mais importante centro de importação e reexportação de africanos para o Brasil”, transparecendo o predomínio do capital mercantil. Cf. FLORENTINO, Manolo; FRAGOSO, João. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia. Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 74-79. 7 MAXWELL, Keneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 99. 8 HESPANHA, A. M; XAVIER, A. B. A representação da sociedade e do poder. In: HESPANHA, António Manuel. (coord.); MATTOSO, J. (dir.). História de Portugal: o Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Círculo de Leitores, 1993, v. IV, p. 137, 139. 9 CAVALCANTI, Nireu. A cidade do Rio no período joanino. In: IPANEMA, Rogéria Moreira de (org.). D. João e a cidade do Rio de Janeiro (1808-2008). Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, 2008, p. 367, 368.

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Ao mesmo tempo, transformações econômicas também puseram em xeque a base fundamental do sistema colonial, quando da abertura dos portos às nações amigas e da permissão da instalação de indústrias manufatureiras no Brasil.10

Sendo assim, mudanças políticas e econômicas fundamentais estiveram em curso desde o fim do século XVIII, algo que se exacerba com a vinda da corte; não obstante, segundo João Fragoso e Manolo Florentino, o conceito de Antigo Regime ainda pode ser aplicado. Os autores sustentam a manutenção de uma “estrutura colonial tardia”, de forma que se pôde perpetuar as bases sócio-econômicas do Antigo Regime, por meio da consolidação de uma nova elite de comerciantes de grosso trato residentes no Rio de Janeiro.11

Mas, no que tais mudanças afetaram o mercado varejista, especialmente aquele relacionado à produção dos ofícios mecânicos e em particular ao ofício de sapateiro?

A importância do Rio de Janeiro nos quadros do Império Português desde a primeira metade do século XVIII acarreta intenso influxo populacional e comercial. Além disto, a cidade consolida-se enquanto “o maior e mais importante centro de importação e reexportação de africanos para o Brasil”.12

Neste sentido, a conjuntura de uma cidade que crescia provocava reflexos na configuração dos ofícios mecânicos. A Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano procurava responder aos seus efeitos buscando normatizar cada vez mais o ofício de sapateiro, contendendo com a Câmara quando julgava necessário.

Mais tarde, a abertura dos portos permitiu que uma enxurrada de variados produtos abarrotasse a cidade. Dentro deste contexto, o alvará de 27 de março de 1810, permitia livremente a venda de calçados no Rio de Janeiro, desde que despachados na alfândega.13 Os confrades sapateiros tiveram de conviver com este tipo de concorrência, que estava à margem da ingerência da estrutura corporativa sobre a produção e comercialização de calçados levada a cabo pela referida irmandade.

Diante de todas as transformações e ameaças, a estrutura tradicional e corporativa desta irmandade de ofício lutava para sobreviver.

Não obstante todas essas transformações é imprescindível a análise das permanências de valores e códigos de Antigo Regime adaptados a uma sociedade escravista e hierárquica que ainda os levava em conta.

Dentro deste contexto, importa perceber que, no século XIX, a “política da diferença”, que, segundo Larissa Viana “era o traço dominante da constituição das

10 BELCHIOR, Elysio de Oliveira. A economia no Rio de Janeiro Joanino. In: IPANEMA, Rogéria Moreira de (org.). D. João e a cidade do Rio de Janeiro (1808-2008). Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, 2008, p. 345-355. 11 FLORENTINO, Manolo; FRAGOSO, João. O arcaísmo como projeto… 12 Ibidem, p. 79. 13 AGCRJ, códice 50-1-12, fls. 20-21.

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irmandades coloniais”14, ainda pode ser verificada na Corte do Rio de Janeiro, na Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano.

Na esteira do conflito entre a irmandade e a Câmara, desde o início chama a atenção a constante atualização, por parte dos confrades, da tentativa de restrição à estrutura do ofício de sapateiro aos “pretos e pardos cativos”. Para isto, de modo geral e ao longo dos anos, recorriam ao já mencionado Termo de 1764, que proibia o exame15 desses indivíduos, além da restrição de que os mesmos estivessem à frente de lojas de sapateiro. 16

No edital que alcançam da Câmara em 1770 para o cumprimento do termo, acrescentam que “os três aprendizes permitidos a cada Mestre Sejam meninos brancos, ou ao menos Pardos livres e nunca pretos e Pardos cativos”. 17

Mais tarde, ao confeccionarem o Regimento dos sapateiros, em 1817, estabeleceram no 28º capítulo: “E não poderão os examinadores examinar a pardos, nem a pretos, sem que estes lhes mostrem por Certidão em como são livres e forros (…)”.18

Sendo assim, é válido supor que a tentativa dos confrades sapateiros de impedir a entrada de indivíduos cativos em sua confraria tivesse a ver, igualmente, com um desejo de manterem-se desvinculados de uma associação direta com a escravidão. O que estava em jogo para esses oficiais de sapateiro em específico era a construção ou a manutenção de uma imagem mais valorosa para o grupo dos sapateiros congregados na referida irmandade.

No entanto, numa sociedade escravista como a do Rio de Janeiro, onde “todas as principais riquezas movimentadas (…) dependiam das relações escravistas”19, a estrutura de organização dos ofícios mecânicos não poderia deixar de ter um forte

14 VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América Portuguesa. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p. 167. 15 Teste prático ao qual o oficial se submetia, após o período de aprendizagem, para poder exercer legalmente determinado ofício mecânico. O teste era aplicado pelo juiz do ofício, juntamente com o escrivão do ofício. Caso fosse aprovado, sua “carta de exame” era passada pela Câmara. Cf. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (doravante ANRJ), códice 773: “Regimento do Governo econômico da Bandeira e ofício de sapateiro do Rio de Janeiro” (1817), fl. 7. 16 No ano de 1813 a irmandade volta a mencionar o Termo de 1764, junto a outros documentos posteriores, evidenciando os meandros do conflito com a Câmara. Cf. AGCRJ, códice 50-1-12 17 Cf. AGCRJ, códice 50-1-12, fl. 11. Grifo meu. 18 Cf. ANRJ, códice 773, fl. 7. 19 FALCI, Miridan Britto. A escravidão no tempo de D. João. In: IPANEMA, Rogéria Moreira de (org.). D. João e a cidade do Rio de Janeiro (1808-2008). Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, 2008, p. 331.

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elo de dependência em relação à necessidade de braços escravos para o trabalho. Os sapateiros não constituíam exceção. Utilizavam-se de escravos em suas lojas.

O que os confrades desta irmandade tentavam impedir, ao contrário, era que esses oficiais pudessem ser incorporados na escala hierárquica do ofício. Ao arbitrarem sobre a proibição do exame de “pardo e preto cativo”, frisando que os aprendizes deveriam ser “brancos” ou pelo menos “pardos livres”, tentava-se bloquear a ascensão social de cativos no interior da regulação do ofício de sapateiro, buscando manter esses elementos apenas como força de trabalho complementar.20

Os confrades não queriam escravos como Mestres Sapateiros, a mais alta posição da hierarquia profissional. Não queriam que esses elementos – ao seu lado e em pé de igualdade – pudessem tomar participação no pleno exercício do ofício. No entanto, a julgar pela constante atualização da norma restringindo a inserção destes elementos no ofício, é de se imaginar que essas situações ocorressem e que fossem constantemente fontes geradoras de conflitos.

Portanto, no correr da longa contenda envolvendo a Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano e a Câmara, fica claro que um dos pontos críticos, para a irmandade, estava relacionado à escravidão.

Em contraposição, desde a década de 70 do século XVIII que os vereadores da Câmara, não viam motivo para a proibição do comércio de calçados pelas ruas.21 Já em novembro de 1821, os vereadores retrucam numa representação ao rei contra a intenção dos sapateiros de proibirem o comércio ambulante de calçados. Dizem que eram “pessoas pobres” que recorriam aos serviços dos sapateiros a oferecerem seu trabalho pelas ruas; depois, que, da mesma forma, eram os “mais pobres moradores da Cidade”, ou as “famílias pobres” quem ofereciam esses serviços, colocando escravos para fabricarem calçados “no interior de suas casas” e, posteriormente, venderem estes artigos pelas ruas, “a fim de tirarem deles [escravos] um jornal mais vantajoso”.22

De acordo com o que os vereadores expõem, fica subentendido, portanto, que as pessoas de menor poder aquisitivo da cidade não recorriam às lojas de sapateiro que estavam sob a estrutura e controle organizadas pela irmandade. Seriam estas lojas, então, destinadas a atender público diferenciado, as pessoas de maior distinção, o que 20 Carlos Alberto Medeiros de Lima já apontou para a “função complementar” de cativos em diversos ofícios no Rio de Janeiro em fins do século XVIII e o início do XIX, sobretudo aqueles que concentravam um número maior de oficiais livres em relação aos oficiais escravos. Entre os ofícios apontados com maior concentração de livres, encontra-se o de sapateiro. De acordo com seus dados, os “livres examinados” seriam 179, ou 27,5% e os “escravos”, 20, ou 8,4%. Cf. LIMA, Carlos Alberto Medeiros. Pequenos Patriarcas: pequena produção e comércio miúdo, domicílio e aliança na cidade do Rio de Janeiro (1786-1844). Rio de Janeiro: Tese de doutorado - UFRJ, 1997, p. 36, 37. 21 Cf. AGCRJ, códice 50-1-11, esp. fl. 21. 22 Cf. AGCRJ, códice 50-1-12, fl. 31v.

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levava em conta, sem dúvida, os códigos de hierarquia social tão comuns à representação corporativa das sociedades de Antigo Regime? Possivelmente sim; se não a totalidade delas, pelo menos as que os confrades estavam tão empenhados em defender contra o comércio ambulante de calçados, afinal o que produziam era um artigo nobre, signo de liberdade – já que escravos não se calçavam.

Sendo assim, essas “famílias pobres” às quais os vereadores se referem tinham a alternativa de colocarem seus poucos escravos para vender calçados pelas ruas da cidade, após estes aprenderem pelo menos basicamente o ofício e servirem uma clientela composta de pessoas humildes em termos financeiros e de baixa estima social.

Mas o escravo colocado no ganho diário como jornaleiro era apenas parte do problema para os confrades da irmandade empenhados em proibir a venda ambulante.23

Em 1780, José da Silva, Manoel Francisco e outros “sapateiros examinados” representam-se à Câmara advogando a favor da venda de calçados pelas ruas. Os confrades que se opõem a tal prática retrucam justamente com a menção ao termo [1764], que proibia a venda ambulante de calçados.

Explicita-se, assim, um conflito entre os próprios oficias de sapateiro e, em última instância, entre os que pleiteavam a venda ambulante contra o juiz do ofício24, acusado de responder com “indiscrição” e “calúnia” ao requerimento daqueles à Câmara. 25

O serviço de sapateiro oferecido pelas ruas da cidade devia ser mais comumente aquele do sapateiro remendão, o que consertava, mas também fabricava calçados grosseiros – podemos imaginar – para a massa de pessoas livres e libertas, que eram pobres.

23 A tentativa de proibição do comércio ambulante não era preocupação exclusiva aos sapateiros. Numa representação que fazem ao rei em 1815 “os homens de Negócio, e mais Comerciantes da Praça desta Cidade, e Corte do Rio de Janeiro” denuncia-se a venda generalizada de artigos por “tendeiros volantes”. Entre estes, “o Artifice, e Jornaleiro, e deste modo apodrecem na mesma Cidade não só elles, mas tão bem dous ou trez negros; que cada hum traz consigo com taboleiros, nos quais conduzem as fazendas”. No termo de 1764 elaborado pela Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano, ademais, um dos argumentos contra a venda de calçados pelas ruas é o advento de restrições anteriores à venda ambulante de “qualquer gênero de fazendas”, em 1749 e, em 1757, a proibição à Câmara de conceder licenças a “Estrangeiros vagabundos e desconhecidos” na venda ambulante de “bebidas e comestíveis”. Cf. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (doravante, BNRJ) códice II-34, 27, 24. Representação dos comerciantes desta Corte, contra os Mascates, Rio de Janeiro; AGCRJ, códice 50-1-12, fl. 6. 24 O cargo de juiz do ofício estava relacionado à fiscalização das lojas ou oficinas mecânicas. 25 Cf. AGCRJ, códice 39-4-48: Auto de apelação e agravo de Manoel Francisco da Silva e outros do ofício de sapateiro, novembro de 1780, série B.

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Esses sapateiros trabalhavam no interior de suas próprias casas, ou em estabelecimentos de menor porte e encontravam-se pelas ruas com seus escravos a vender suas mercadorias às quais as pessoas de menor condição iam procurar-lhes os serviços.

Os confrades que divergiam com a Câmara, lutavam por enquadrar, justamente, esses sapateiros com lojas de menor porte e que porventura ainda não estivessem incorporados aos quadros da irmandade, mas, sobretudo aqueles que “ocultamente”, ou seja, fugindo por completo da estrutura que a irmandade forjava para o ofício, vendiam calçados e artigos do gênero juntamente com seus escravos. Este era o ramo do ofício marginalizado por excelência.

Assim, é plausível sugerir que os sapateiros que buscaram sustentar um conflito tão longo com a Câmara – amparados, sem dúvida, na estrutura organizacional da irmandade, através de sua mesa diretora e dos juízes e dos escrivães do ofício – fizessem parte de uma “aristocracia” dos sapateiros, que certamente buscavam satisfazer a demanda – sobretudo – da elite de uma cidade colonial que se tornou Corte e que, com seus apetrechos, comportamentos e riqueza continuavam a diferenciarem-se dos demais em signos de distinção e hierarquia social.

Sendo assim, tudo leva a crer que, nesta contenda com a Câmara, a irmandade buscava representar os mestres sapateiros de maior proeminência e estima social perante este ofício e quiçá perante a sociedade do Rio de Janeiro de forma geral. Eram os sapateiros fabricantes de calçados de luxo que se voltavam contra os que saíam da esfera de controle da irmandade e que tentavam impedir a escalada social de cativos nos quadros da irmandade e do ofício.

Ao mesmo tempo, as irmandades leigas eram pólos de intensa sociabilidade e as irmandades que congregavam oficiais mecânicos não fugiam à regra. Podemos dizer que os confrades sapateiros devotos de São Crispim e Crispiniano acionavam uma identidade que implicava um viés sócio-religioso para pessoas que estavam congregadas numa irmandade marcada, sobretudo, pela pertença ao ofício de sapateiro. Afinal, os confrades mantinham laços mutualistas, prestavam culto aos seus santos oragos e buscavam estabelecer controle, mas também garantias para o trabalho do grupo. Assim, a devoção estava diretamente relacionada a determinados aspectos da inserção social dos confrades.26

Mas, a despeito dos laços de coesão e solidariedade grupal e profissional que a Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano ensejava, havia em seu interior gradações hierárquicas. No entanto, certamente faziam parte da irmandade aqueles sapateiros cujas lojas eram de menor porte, ou mais modestas. Esse era o espaço daqueles que,

26 VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem…

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mais do que fabricar calçados de luxo, imiscuíam-se, também, dos trabalhos dos ofícios anexos27 ao ofício de sapateiro.

À luz dessas considerações, é possível aventar a hipótese de que as nuances de hierarquia a partir da irmandade estavam relacionadas em boa parte com a qualidade do calçado que fabricavam e com o seu público alvo, algo que ia, de um extremo a outro, do sapateiro que vivia apenas de fabricar calçados de luxo até aquele que,

27 A configuração dos ofícios mecânicos na América Portuguesa tem como exemplo as corporações de ofícios em Portugal, sobretudo na cidade de Lisboa. Essas corporações eram caracterizadas pela união, ou associação de vários ofícios afins, subdivididos em ofício(s) cabeça e ofício(s) anexo(s). O(s) ofício(s) cabeça detinha(m) uma série de prerrogativas frente aos ofícios anexos, estando estes submetido àquele(s). No entanto, a constituição dessas corporações de ofícios não permaneceu estática ao longo do tempo. O quadro associativo que envolvia diversos ofícios em corporações alterou-se de acordo com o tempo, não raras vezes à custa de conflitos. Sobre o assunto ver CAETANO, Marcelo. A antiga organização dos mesteres da cidade de Lisboa. In: LANGHANS, F. P. As corporações dos ofícios mecânicos: subsídios para a sua história. Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa, 1943, v. 1. A primeira regulação dos ofícios mecânicos é empreendida em 1539, a mando de D. João III. No caso dos sapateiros, este ofício aparecia como cabeça junto aos borzegueiros (fabricantes de borzeguins, espécie de sapatos) e chapineiros (“oficial que faz ou vende chapins”, “calçado de 4 ou 5 solas (…) para realçar a estatura de mulheres”) . Como ofícios anexos vinham os curtidores (“cortidòr; o que curte coiros”) , surradores (“surrador; o que surra”. No caso, o oficial surrador de couros) e odreiros (“odrèiro; o que faz ou vende odres”, “vaso para vinho, vinagre, &c. feito de pelle de bode curada de certo modo”). Já em 1771, sob nova organização das corporações de ofícios, sapateiros e curtidores vinham como cabeças do ofício (as nomenclaturas borzeguieiro e chapineiro desaparecem, sendo estas atividades enquadradas no ofício de sapateiro), enquanto que surradores e odreiros constituem-se como ofícios anexos. Cf. Ibidem, p. LV. Apesar de ter o Reino como parâmetro, a configuração dos ofícios mecânicos no Rio de Janeiro, para o período analisado, apresentava-se de forma distinta. Em minha pesquisa de mestrado, defendo que, no caso desta cidade, o ofício de sapateiro e os seus anexos apresentavam uma linha divisória mais tênue e que era a partir da Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano que os sapateiros buscavam exercer controle sobre um leque de oficiais mecânicos que se enquadravam sob a designação genérica de sapateiros, muito embora esses oficiais frequentemente se imiscuíssem de tarefas outras que não propriamente as relacionadas com a fabricação de calçados. Por exemplo, o ofício de sapateiro interpenetrava-se ao de correeiro, ofício relacionado à fabricação de correias de couro. No entanto, o oficial de correeiro, para abrir uma loja deveria passar por exame do ofício de sapateiro. Cf. AGCRJ, códice 50-1-12, fl. 31v. Para as definições de chapineiro, curtidor, surrador, odreiro e correeiro ver, respectivamente, SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da lingua portugueza - recompilado dos vocabularios impressos ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado, por ANTONIO DE MORAES SILVA. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813, p. 384, 482, 742, 360 e 475. Em: http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/edicao/2 Acessado em 07/03/2010.

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muito mais do que fabricar, consertava calçados e produzia artigos afins ao ofício de sapateiro em sua modesta loja, servindo a público humilde.

Creio que poderíamos falar, neste sentido – ao lado de uma hierarquia dos sapateiros –, em uma hierarquia dos calçados, que devia ser visível em meio ao ir e vir das pessoas pela cidade; algo que ia desde o mais nobre e bem acabado calçado, nos pés de gente da elite – mas também nos pés daqueles que buscavam se vestir como a elite –, até aqueles mais grosseiros, feitos para agüentar a lida diária, nos pés de livres e libertos pobres.

Contudo, o fato de haver um nicho de poder no interior da irmandade – reservada àqueles Mestres mais proeminentes –, acarretava desdobramentos nas filiações religiosas dos oficiais alijados daqueles espaços de participação mais diretos.

Neste sentido, podemos imaginar que oficiais de sapateiro que não faziam parte do núcleo mais primordial de poder na instituição, buscassem construir espaços de sociabilidade em outras irmandades, onde talvez pudessem ser mais atuantes. Essa, quem sabe, era uma possibilidade aos “pretos forros” e “pardos livres”, os quais eram aceitos como oficiais de sapateiro, sob ressalva que já evidencia o contraste em relação a sapateiros que, ao que tudo indica, se consideravam brancos.28 Afinal, não queriam como aprendizes escravos. Deixavam claro sua preferência por meninos brancos, mas ao menos poderiam ser pretos forros ou pardos livres.

Esses confrades agiam no sentido de controlar e exercer hegemonia, a partir do ambiente da irmandade, sobre todo aquele leque de oficiais que se enquadravam sob

28 Na Relação Geral de todos os Oficiais examinados, que se acham trabalhando ao Público com Lojas abertas dos diferentes Ofícios mecânicos existentes nesta Cidade, até ao princípio do presente ano de 1792. O documento apresenta uma listagem com os nomes de vários oficiais examinados, de acordo com o ofício que exerciam. Aparecem oficiais examinados nos ofícios de ourives (16), alfaiate (12), sapateiro (28), ferreiro (4), serralheiro (2), espingardeiro (5), carpinteiro (7), marceneiro (8), pedreiro (7), barbeiro e sangrador (9), tanoeiro (2), caldeireiro (2) e funileiro (1). Apresenta-se a especificação quanto à cor e/ou condição social apenas nos ofícios de marceneiro (Baltazar e Hilário são classificados como mulatos forros); barbeiro e sangrador (Christóvão Pedro é classificado como branco; os demais, com exceção de um nome sem especificação, são escravos, donde ao lado consta a quem pertencem e o último, Bernardo forro. Note-se que é significativo o cuidado de classificar um oficial como branco, já que estes ofícios geralmente eram exercidos por escravos). O restante dos oficias não têm ao lado de seu nome nenhuma classificação, inclusive os 28 sapateiros cujos nomes aparecem transcritos. Portanto, dada a ausência de especificação relacionada à cor/condição social vinculada à escravidão ou que aludisse ao passado escravo, é de supor que os sapateiros que foram examinados em 1792 se considerassem e fossem considerados como brancos. Vale comentar, ainda, o caso de Joaquim José Pereira, que exercia o ofício de corrieiro – um dos ofícios anexos ao ofício de sapateiro –, mas que, por conta do falecimento de seu irmão, que era juiz do ofício de funileiro, assume a loja do mesmo e passa a comandá-la “com um Oficial mulato que tem”. Cf. BNRJ, códice 7,4,4.

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a designação de sapateiros; ambiente no qual e a partir de onde emanava forte sociabilidade entre os confrades, mas onde havia, igualmente, exclusão.

Desta forma, é bem provável que os elementos que se encontravam excluídos da coesão sócio-religiosa mais nuclear, buscassem outras maneiras de inserirem-se socialmente em outras irmandades, sob o manto de outras devoções. Falta-nos, por hora, uma pesquisa mais aprofundada investigando nominalmente esses indivíduos nas fontes paroquiais, como registros de testamentos e óbitos, os quais podem ajudar a descortinar os vínculos do trabalho ao das filiações religiosas nas irmandades. Certamente estas vinculações se faziam plurais, já que uma mesma pessoa podia filiar-se a várias irmandades e que, conforme esclarece Laurinda Abreu, os círculos de sociabilidade profissionais, paroquiais e devocionais não eram estanques.29

Sobre esta complexa teia das sociabilidades, então, os Mestres sapateiros mais proeminentes buscavam estabelecer uma esfera de poder a partir da Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano, procurando exercer a hegemonia sobre a regulação, a produção e a comercialização da atividade de sapateiro e outras afins, mediante o estabelecimento da “construção de relações socialmente úteis”30 na irmandade, a partir de onde procuravam dominar, ou monopolizar o poder de exercer a hegemonia sobre este ramo de comércio a varejo. No entanto, como procuramos demonstrar, a questão é ainda mais complexa, dado a multiplicidade de alternativas de construções de sociabilidades para oficiais que se sentiam alijados desse mesmo centro de poder.

Considerações Finais

Ao abordamos o longo conflito entre a Irmandade de São Crispim e São

Crispiniano e a Câmara do Rio de Janeiro, em fins do século XVIII e o início do XIX, procuramos evidenciar que as transformações políticas, econômicas e culturais que estavam em curso na cidade já desde o final do século XVIII, refletiram na irmandade e, por conseguinte, na estrutura do ofício de sapateiro, esta conjuntura tendo se acentuado com a vinda da Corte.

O período abordado aqui é alusivo e instigante, algo entre a tradição e a modernidade, entre o velho e o novo, entre aquilo que muda e aquilo que permanece. Porém, o mais sugestivo é que estas polaridades não se excluem necessariamente. É o caso dos confrades sapateiros, que certamente estão recebendo novas influências e tendências para seu próprio trabalho, numa cidade cosmopolita por excelência como era o Rio de Janeiro do XIX. No entanto, ao mesmo tempo,

29 ABREU, Laurinda Faria dos Santos. Confrarias e irmandades: a santificação do quotidiano. In: SANTOS, Maria Helena Carvalho dos (coord.). VIII Congresso Internacional A Festa. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Estudos do século XVIII, v. 2, p. 429-440, 1992. 30 Ibidem, p. 431.

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buscavam a todo custo manter a estrutura tradicional de seu ofício, que se confundia com a irmandade. E faziam isto recorrendo aos tradicionais códigos do Antigo Regime, seja no empenho em dissociarem o seu ofício em relação à escravidão, seja na tentativa de manterem “pretos forros” e “pardos livres” sob seu controle, definindo gradações hierárquicas que levavam em conta o critério da cor.

Por outro lado, aceitando as instigantes sugestões de Silvia H. Lara, tentamos “ir além das relações entre a nobreza e o rei (…) para lidar também com aqueles que eram considerados excluídos da política”.31 Os sapateiros que, em nome da Irmandade de São Crispim e São Crispiniano, contendem com a Câmara expressam claramente uma atuação política e se apropriam das “instituições e mecanismos da política e do governo para fazê-los funcionar de algum modo na direção de seus objetivos e interesses”. 32

Dentro deste contexto, a escravidão estava no cerne das questões que motivavam esses sapateiros a contenderem com a Câmara, movimentando-se em uma sociedade escravista e hierárquica que ainda pressupunha valores e códigos de Antigo Regime, por mais ameaçados que estes elementos estivessem a esta altura. Sendo assim, buscamos refletir como a questão da escravidão relacionava-se a tais códigos, na medida em que esses confrades demonstraram ser essencial para aquele grupo a desvinculação do ofício de sapateiro em relação aos escravos.

Desta forma, procuramos abordar o tema da escravidão por outro viés. Buscamos contribuir para a reflexão deste tema pensando na maneira através da qual parte dos sapateiros colocava um ponto de tensão e se contrapunha em relação aos elementos escravos, algo que estava diretamente relacionado aos princípios hierárquicos dessa mesma sociedade. Indagamos, novamente seguindo o que sinalizou Lara, “sobre o modo como escravidão e Antigo Regime estiveram intrinsecamente ligados”.33

31 LARA, Silvia Hunold. Conectando historiografias: a escravidão africana e o Antigo Regime na América Portuguesa. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral (orgs.). Modos de governar: idéias e práticas políticas no Império português, séculos XVI a XIX. São Paulo: Alameda, 2005, p. 34. 32 Ibidem, p. 35. 33 Ibidem, p. 38.

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O tráfico transatlântico de escravos para o Maranhão: organização e distinções (séculos XVII – XVIII)

Patricia Kauffmann Fidalgo Cardoso da Silveira1

Tarantini Pereira Freire2

Introdução O trafico transatlântico de escravos para o Maranhão só passou a ocorrer de

maneira regular na segunda metade do século XVIII – tardiamente, se o compararmos a outras áreas da colônia. Para termos uma idéia, carregações provenientes de portos africanos já despejavam escravos regularmente na Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro desde meados do século XVII. Nesta comunicação, propomos abordar o tráfico de escravos para o Maranhão em três etapas distintas.

Num primeiro momento, que podemos considerar como aquele que vai das últimas décadas do século XVII até as primeiras do XVIII, a entrada de carregações provenientes de portos africanos é bastante parca e irregular. Os vestígios documentais são escassos no tocante aos registros de entradas de escravos. Portanto, nem sempre é possível precisar o porto de origem ou então a quantidade de escravos que efetivamente desembarcou nos portos do Maranhão – São Luís e Belém.

Para fins de esclarecimento, o Maranhão a que nos referimos nesta primeira fase do tráfico, corresponde ao Estado do Maranhão, cuja capital era São Luís – criado em 1621, independente do Estado do Brasil e diretamente subordinado à Coroa. A partir de 1626, o Estado do Maranhão passaria a compreender as capitanias do Ceará, Pará e, Maranhão. Mais tarde, em 1654, o estado passaria a ser designado de Estado do Maranhão e Grão-Pará.

Essa divisão da então América portuguesa em dois estados autônomos era perfeitamente compreensível, pois respondia perfeitamente às condições de navegabilidade no Atlântico Equatorial na época. Até o advento dos barcos a vapor, era mais fácil e mais rápido estabelecer comunicações marítimas entre o norte (Estado do Maranhão) e Lisboa, do que com a Bahia – capital do Brasil è época. Para termos uma idéia, uma embarcação que saísse do Maranhão rumo à Bahia, deveria

1 Mestranda em História Social pela Universidade Federal do Maranhão (PPGHIS/UFMA) e bolsista CAPES. Autora. 2 Mestrando em História Social pela Universidade Federal do Maranhão (PPGHIS/UFMA) e bolsista FAPEMA. Co-autor.

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navegar até o arquipélago do Açores para então fazer a volta e dirigir-se ao seu destino final. 3

O segundo momento a ser analisado possui o recorte temporal que vai de 1756 a 1777 – período em que estiveram em vigor os direitos de monopólio da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, criada em 1755.

Uma das medidas político-administrativas instituídas pelo Marquês de Pombal poucos anos antes da criação da referida companhia havia deslocado a capital do Estado do Maranhão e Grão-Pará de São Luís para Belém, resultando na inversão do nome para Grão-Pará e Maranhão. Compunham o dito Estado duas capitanias: Maranhão e Pará. Na década de 1770, houve outra alteração, resultado da divisão do Grão-Pará e Maranhão em dois estados autônomos: Estado do Grão-Pará e Rio Negro e o Estado do Maranhão e Piauí.4

Cabe lembrarmos que os dados concernentes ao tráfico de escravos no período em questão referem-se àqueles registrados na capitania do Maranhão ou, mais tarde, no Estado do Maranhão e Piauí, mais precisamente no porto de São Luís.

Por fim, o terceiro momento do tráfico é aquele que começa após o fim do monopólio da Companhia Geral de Comércio, ou seja, a partir de 1778. Tal período é marcado pelo predomínio da rota transatlântica entre o Maranhão e a Alta Guiné, mas também pelo início do movimento de carregações provenientes do Brasil, nomeadamente da Bahia e de Pernambuco.

Colonos, religiosos e a Coroa

O domínio português da região norte do Brasil fora efetivado ao longo do século

XVII por meio da ocupação militar, religiosa e econômica. Esta última, tendo sido apresentada na historiografia como um dos esforços dos portugueses na busca pelas drogas do sertão e pelos escravos indígenas, e com a atividade das ordens missionárias.5

A captura de índios, chamados de “escravos da terra”, podia ocorrer de três diferentes formas. A primeira era o resgate, uma espécie de negociação realizada com grupos nativos aliados aos colonizadores em que prisioneiros eram trocados por mercadorias. A segunda era conhecida como cativeiro, apresamento de indígenas capturados nas chamadas “guerras justas” – ofensivas autorizadas pela Coroa contra

3 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 12-29; SILVA, Alberto Costa e. A Manilha e o Libambo. A África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p. 4. 4 AHU, Maranhão, doc. 4628. 5 CHAMBOULEYRON, Rafael. Plantações, sesmarias e vilas. Uma reflexão sobre a ocupação da Amazônia seiscentista. Nuevo Mundo, Mundos Nuevos Debates, p. 1-8, 2006ª. URL http://nuevomundo.revues.org/index43703.html, Acesso em 10/04/2012, p. 3.

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determinadas etnias. Por fim, havia os descimentos, deslocamentos forçados de aldeias inteiras para áreas próximas das povoações.6

A presença de missionários – sobretudo jesuítas – junto aos colonizadores é mencionada desde o início do povoamento. Embora estes últimos fossem mais numerosos, mercedários, franciscanos e carmelitas também se faziam notar. Não obstante o primeiro relato da presença da Companhia de Jesus no subseqüente Estado do Maranhão seja de 16077 – quando os padres Francisco Pinto e Luís Figueira partiram da capitania de Pernambuco para a serra de Ibiapaba (Ceará) com o propósito de catequizar índios tapuias – sua invasão sistemática só se deu a partir de 1622, com a chegada do mesmo Luís Figueira à cidade de São Luís, com o apoio do então capitão-mor Antonio Moniz Barreiros.8

O principal expoente da Companhia de Jesus, Padre Antônio Vieira, só chegaria ao Maranhão em 1653, incumbido de efetivar o projeto das missões. Sua presença contribuiu para acirrar os já exaltados ânimos da população local acerca do controle exercido pelos religiosos sobre a mão-de-obra indígena. As queixas a respeito da escassez de braços para as lavouras pioraram ainda mais com a publicação naquele ano, da ordem régia conhecida como Lei das Liberdades, que determinava que todos os índios, até então cativos, eram livres. Diante do problema, “Vieira negociou, obtendo o acordo de não intervir no caso de indígenas que já estivessem com os colonos, contanto que estes lhes pagassem salários”.9

O desagrado não atingiu somente os moradores, mas também o prestigiado mestre-de-campo André Vidal de Negreiros que teria escrito uma petição ao Conselho Ultramarino pedindo que se declarasse que os governadores, capitães-mores e moradores do Estado do Maranhão pudessem usar do serviço e ministério de seus escravos. O Conselho remeteu parecer ao rei D. João IV para que concedesse ao mesmo, autorização para “faser e lavrar tabaco e os mais fruitos da terra, por seus Escravos, sendo elles das conquistas de África e não Índios, dispensando para isso no que dis e declara a Ley, cuja cópia se envia com esta Consulta…”.10 A carta de Vidal de Negreiros fora enviada meses depois da publicação do decreto real que garantia a liberdade ao indígena, ressaltando, no entanto, que a captura poderia ser feita caso ocorresse em função de “guerra justa”. Na prática, qualquer hostilidade ou ataque ofensivo por 6 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes…, p. 19. 7 MORAIS, Pe. José de. História da Companhia de Jesus na extinta província do Maranhão e Pará, pelo Pe. José de Morais da mesma Companhia. Rio de Janeiro: Alhambra, 1987, p. 33-36. 8 TAVARES, Célia Cristina. A escrita jesuítica da história das missões no Estado do Maranhão e Grão-Pará (século XVII). Actas do Congresso Internacional “Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedade”. Lisboa: Biblioteca Digital do Instituto Camões, 2005, p. 5 9 Ibidem, p. 6. 10 AHU, Maranhão, doc. 348.

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parte de colonos estava proibido. Aos jesuítas coube a jurisdição exclusiva sobre as aldeias e indígenas, além da autonomia para edificar missões no sertão.11

O decreto era fruto direto da ação de Antonio Vieira que havia retornado a Lisboa em 1654 a fim de relatar pessoalmente ao rei a situação dos gentios do Maranhão, narrando a violência cometida pelos colonos nos apresamentos. Após o retorno de Vieira ao Maranhão, este passou a redigir o regulamento das aldeias indígenas, concluído por volta de 1660. O regulamento versava sobre os preceitos a serem observados quando da administração de aldeias: observância religiosa dos padres, cura espiritual das almas, e administração temporal dos índios.12

Afora a contenda envolvendo os jesuítas e os colonos, havia a questão do arremate de dízimos. E esta, incomodava diretamente a Coroa. O dízimo constituía uma espécie de imposto – a décima parte – sobre todos os produtos cultivados e extraídos do sertão, sendo obrigatório a todos os colonos. O recolhimento era feito através de arrematação, em contratos que duravam três anos. Aos arrematadores cabia a recolha e o repasse à Fazenda Real.

Num estado com grandes distâncias a serem cobertas, a cobrança e o recolhimento dos dízimos eram irregulares, o que afetava diretamente Lisboa no tocante à construção de fortalezas, manutenção de tropas e conseqüente ampliação do esforço militar de defesa. Essa questão enfrentava ainda outro obstáculo: as ordens religiosas presentes no Maranhão multiplicavam seu patrimônio, mas não pagavam dízimos. Ressaltemos, porém, que a recusa por parte dos jesuítas no tocante ao repasse de dízimos não foi exclusiva desta Ordem, tampouco eram eles os únicos a deterem privilégios e isenções.13

Para os colonos do Maranhão, as lavouras não se podiam cultivar sem escravos. Com o advento da Lei das Liberdades de 1653, o controle exercido pelos missionários sobre o gentio ganhara ainda mais abrangência. Os colonos que já possuíam escravos indígenas viram-se obrigados a reconhecer-lhes a liberdade e ao pagamento de salários mediante a utilização de sua mão-de-obra. A alta mortalidade entre o gentio devido aos surtos de varíola registrados entre as décadas de 1660 e 1690 agravaram ainda mais a situação econômica da capitania e levaram à conseqüente diminuição da arrematação de dízimos para a Fazenda Real. Neste

11 TAVARES, Célia Cristina. A escrita jesuítica da história das missões no Estado do Maranhão e Grão-Pará (século XVII), p. 7. 12 Ibidem. 13 CHAMBOULEYRON. “Isenção odiosa”. Os jesuítas, a Coroa, os dízimos e seus arrematadores na Amazônia colonial (séculos XVII e XVIII). Revista de Histórica do Arquivo do Estado. São Paulo, n. 37, p. 4, agosto de 2007.

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cenário, a lógica de substituição da mão-de-obra indígena pela africana se fazia urgente em virtude das circunstâncias.14

A organização do tráfico de escravos para o Maranhão a partir das últimas décadas do século XVII foi feita por iniciativa da Coroa, fato expresso através dos contratos e assentos celebrados entre particulares e a administração régia. Outro fator interessante é que, ao contrário do que ocorria nas capitanias do Estado do Brasil, onde os braços africanos eram escravizados numa cultura açucareira para exportação, no Maranhão sua necessidade ainda era pensada para suprir o consumo interno, exportando-se uma pequena parte.

Num período de 25 anos (1680-1705), apenas 11 contratos foram estabelecidos entre a Coroa e particulares, sendo que quatro deles não chegaram a sair do papel. Já um contrato estabelecido em 1682, proveniente da criação da Companhia de Estanco de Maranhão, que previa a entrada de 10 mil escravos em 20 anos, provavelmente não introduziu mais que 600 deles num período de três anos, quando foi extinto.

A parca entrada de navios trazendo escravos não significa que o movimento de embarcações com outras finalidades não acontecesse nos portos de São Luís e de Belém. Havia uma rota bilateral entre o Estado do Maranhão – de onde eram exportados gêneros como arroz, algodão, tabaco, drogas tintoriais, madeira e couros, e Portugal – de onde eram enviados gêneros de primeira necessidade, tais como gêneros alimentícios, boticas, vestuário, armas, mobília, ferramentas, objetos de toalete, cortes de tecidos, pedras, papel, utensílios caseiros etc. Também essa modalidade gerava queixas por parte dos colonos do Maranhão, pois tanto a vinda quanto à saída daquele Estado, deviam ser feitas quando da “monção das frotas”, ou seja, através dos comboios organizados nos meses de agosto, novembro e dezembro, por razões de navegação e segurança. Orientação semelhante também era dada às embarcações que fariam a viagem no sentido contrário: a saída de Lisboa deveria ser feita nos meses de março e abril.15

Até o início das atividades da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, os registros referentes à introdução de escravos no Maranhão são – como já dissemos – bastante escassos e, conforme podemos observar na tabela a seguir, num período de pouco mais de 70 anos, há menos de vinte carregações documentadas.

Ainda que nem todos os registros contenham dados completos, é pouco provável que a entrada de escravos africanos no Maranhão tenha superado a cifra de 1.500 indivíduos nesse período. É o que nos mostra a tabela a seguir.

14 CHAMBOULEYRON. Escravos do Atlântico Equatorial: tráfico negreiro para o Estado do Maranhão e Pará (século XVII e início do século XVIII). In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 26, n° 52, p. 79-114, 2006b. 15 AHU, Maranhão, doc. 2443.

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Tabela 1: Referências a navios que chegaram ao Estado do Maranhão até 1755

Ano Escravos Embarque Referências

1671 50 Angola O governador Pedro César de Meneses levou 50 escravos de Angola para construir o engenho de anil

1671 [400] Angola Duas naus holandesas chegam a São Luís, mas são impedidas de comerciar com a população pelo governador

1673 - Guiné Capitão Domingos Lourenço, nau Nossa Senhora do Rosário e Almas

1682 - [Guiné] Chegada de Pascual Pereira Jansen (estanco) ao Maranhão – contrato 4

1684 200 Guiné Chegada de navio do estanco a São Luís durante a revolta – contrato 4

1684-85 “poucos escravos”

[Guiné] Chegada de navio do estanco a São Luís – contrato 4

1685 - [Guiné] Capitão Silvestre da Silva chega ao Estado, pago pelo estanco, que já havia sido abolido – contrato de assento nº 4

1690 - Angola O governador Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho refere-se a um navio vindo de Angola que teria naufragado na costa do Pará

1693 139 Mina e Guiné

Assento com a Companhia de Cabo Verde e Cachéu; capitão Manuel Luís – contrato de assento nº 5

1695 [103] [Guiné] Assento com a Cia de Cabo Verde e Cachéu; vendidos aos senhores, lavradores e distribuídos “por particulares” – contrato de assento nº 7

1696 18 - Provavel assento; escravos vendidos aos senhores de engenho e lavradores – provavelmente contrato de assento nº 8

1698 108 Mina

Assento com Antonio Freire de Ocanha e Manuel Francisco Vilar; o capitão Diogo da Costa deveria entregar 218 escravos; uma das naus queimou na costa da Mina – contrato de assento nº 9

1702 110 [Mina] Assento com Antonio Freire de Ocanha e Manuel Francisco Vilar; capitão Diogo da Costa – contrato de assento nº 10

1705 153 Mina Assento com Antonio Freire de Ocanha e Manuel Francisco Vilar; capitão Diogo da Costa – contrato de assento nº 12

1715 - Guiné O provedor-mor da Fazenda Real do Maranhão refere-se à entrada de escravos da Guiné

1740 69 Cacheu Chegada do iate São Francisco Xavier e Santa Ana, do capitão e mestre Manuel [ilegível] da Luz em 02 de setembro; escravos vendidos a vários comerciantes

1743 92 Cacheu Chegada do Bergantim Nossa Senhora Madre de Deus e Santo Antonio, do capitão José Paulo; escravos trazidos para os senhorios da fábrica de madeiras

Fonte: CHAMBOULEYRON, 2006, pp. 79-114; AHU, Maranhão, docs. 2700, 2761e 2774.

A Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão

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Após a coroação de D. José, em 1751 e ascensão de Pombal delineou-se uma política específica para o Estado do Maranhão. A Coroa entendeu que era necessário instituir um novo modelo de colonização para a região amazônica, cujas bases assentavam-se na reestruturação político-administrativa, na dignificação social dos índios, na resolução do conflito com os jesuítas, na reorganização da defesa militar e no incremento da atividade econômica.16

O principal expoente do gabinete josefino, em Portugal, era Pombal. No Maranhão quem o representava era seu irmão – Francisco Xavier de Mendonça Furtado – empossado ainda em 1751, como governador do agora renomeado, Estado do Grão-Pará e Maranhão.

Quatro anos mais tarde, foi criada a Companhia, inserida no contexto das mudanças instituídas no período pombalino. Sua principal função seria libertar o Estado da interferência dos religiosos nos negócios seculares e impedir a ação de mercadores estrangeiros, sobretudo aqueles a serviço dos interesses ingleses.17

A Companhia era constituída de capital privado, possuindo ainda, autonomia governativa e tribunal privativo. Era um empreendimento particular com concessão de serviço público. A cessão do monopólio compreendia o tráfico para o Estado do Grão-Pará e Maranhão, ilhas de Cabo Verde e Guiné por um período de vinte anos a partir da primeira viagem realizada.18

A criação de uma companhia monopolista suscitou queixas antes mesmo do início de suas operações. Ainda em 1755, sete membros da chamada Mesa do Espírito Santo dos Homens de Negócios de Lisboa redigiram uma representação “demonstrando o quanto era nociva ao País a concessão do exclusivo do comércio e da navegação por tão dilatados anos”. Por essa ousadia, alguns de seus membros foram desterrados para diferentes destinos e por variados períodos, e a Mesa foi abolida por decreto em setembro daquele ano.19 Entretanto, dois meses depois, os membros da Mesa acabaram sendo perdoados em virtude do grande terremoto que abalou Lisboa em 1º de novembro.20

Mesmo após o início das atividades da Companhia, os descontentamentos não findaram. A partir de 1770, as queixas referentes à escassez de braços escravos somaram-se às reclamações sobre os preços praticados, demora no embarque da

16 SILVA, Alberto Costa e. A Manilha e o Libambo, p. 1. 17 DIAS, Manuel Nunes. A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão. 1755-1778. Belém: Universidade Federal do Pará, 1970, p. 207. 18 Ibidem, p. 224. 19 CARREIRA, Antonio. As companhias pombalinas de navegação comercial e tráfico de escravos entre a costa africana e o nordeste brasileiro. Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Bissau, p. 33, 1968. 20 DIAS, Manuel Nunes. A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão. 1755-1778…, p. 180.

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crescente produção de arroz, administradores da empresa e, sobre o endividamento de parte dos colonos – lavradores e alguns fabricantes.21

Do outro lado do Atlântico, em Cabo Verde, as reclamações sobre a Companhia referiam-se ao baixo preço pago pelos escravos que seriam traficados e à falta que estes fariam nas lavouras locais. Para o Senado e demais homens bons, tal situação só fazia aumentar-lhes o receio de que suas dívidas fossem executadas, deixando todos à ruína.22

Após a morte de D. José I em 1777 e conseqüente queda de Pombal, inúmeras petições passaram a ser entregues à rainha, D. Maria I. Muitas das quais, aproveitando o ensejo para também tecerem severas críticas ao Marquês. Numa delas, redigida no Pará, Pombal é descrito como o “homem mais ávido, mais insaciável, mais turbulento que se conhece no Ministério”.23

O monopólio foi extinto naquele mesmo ano, mas a companhia continuou operando em regime de livre comércio até 1788.24 Entretanto, mesmo com o fim do monopólio, o endividamento não se extinguiu: numa relação compilada no Maranhão em 1790, a grande maioria dos 420 devedores era composta de lavradores. Mas na lista havia também: o Convento do Carmo e o Hospício do Bonfim, fabricantes de canoas e de solas, meirinhos, mercadores, caixeiros da Companhia, almoxarifes, comerciantes, carpinteiros, ferreiros, alferes, taverneiros, capitães de regimento e de infantaria, religiosos, um juiz de fora, falidos, viúvas e muitos defuntos.25

Durante a atuação da Companhia, a importação de escravos mostrou-se irregular quanto à frequência, e quanto às quantidades trazidas. No tocante à procedência, é possível estabelecer que, com exceção de 2 indivíduos embarcados em Lisboa em 1758, todos os demais vieram de portos africanos. A análise dos números apresentados por Carreira mostra que quase 90% dos indivíduos desembarcados no Maranhão vieram da região denominada pelos portugueses como Alta Guiné, e o restante da região de Angola. No regime que vai de 1756 a 1777, contabilizamos o desembarque de 9.166 escravos no porto de São Luís.26

A respeito da utilização do termo guiné no Brasil colônia, é comum encontrarmos inúmeras referências quanto a esta procedência nos estudos relativos ao tráfico de 21 Ibidem, p. 160-181. 22 CARREIRA, Antonio. As companhias pombalinas de navegação comercial e tráfico de escravos entre a costa africana e o nordeste brasileiro…, p. 364-365. 23 DIAS, Manuel Nunes. A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão. 1755-1778…, p. 180-181. 24 CARREIRA. As companhias pombalinas de navegação comercial e tráfico de escravos entre a costa africana e o nordeste brasileiro…, p. 45. 25 AHU, Maranhão, doc. 5123. 26 CARREIRA. As companhias pombalinas de navegação comercial e tráfico de escravos entre a costa africana e o nordeste brasileiro…, p. 367-373.

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escravos da África para a América. Soares nos explica que uma das mais significativas transformações ligadas à formulação de uma cultura moderna, derivada da edificação de uma extensa rede comercial portuguesa a partir do século XV, foi o surgimento de uma nova geografia que incorporou a Guiné ao universo cognoscitivo europeu. Para a autora, a Guiné “é o lugar dos tempos modernos. É na exploração de suas terras e de seus mares que os portugueses constroem a modernidade ibérica”.27

Os primeiros registros da presença portuguesa na costa africana remontam ao século XV. Nas crônicas surgidas ao longo da expansão marítima lusitana, “a cartografia mostra a passagem da chamada África saariana (branca e islâmica) à África equatorial (negra e idólatra)” e ainda, “a separação entre a ‘terra de mouros’ (também chamada Zaara) e a ‘terra dos negros’ (designada Guiné)”. 28

Conforme veremos, no tocante às procedências africanas, após o fim do monopólio da Companhia, o grande contingente de escravos trazidos para o Maranhão continuará sendo embarcado na Alta Guiné – região que hoje corresponde às áreas de Senegal, Guiné-Bissau, Guiné e Gâmbia.

Naufrágios, corsários, extravios, contrabando e deserções

Navegar até o Maranhão implicava considerar uma série de ameaças possíveis à

integridade da embarcação; num litoral traiçoeiro, repleto de baixios, correntezas violentas e ventos cortantes, os naufrágios eram corriqueiros. Repleto de armadilhas, e contando com a singularidade da tábua de marés, o canal da barra de São Luís causou muitos transtornos e prejuízos à navegação, pois entrar ou sair do porto exigia, além de perícia, muita sorte.

Muitas vezes, as embarcações sofriam danos ao se aproximar do porto de São Luís e começavam a “fazer água” (afundar) sem que a “equipagem” (tripulação) pudesse notar qualquer estrago aparente. Foi o que aconteceu com o navio Enéas, que fundeou na Baía de São Marcos em 12 de abril de 1790. Como de praxe, esperou que o “piloto da Barra” subisse a bordo para conduzi-lo ao porto e ancorar. Naquela mesma noite, sem qualquer alarde, o navio naufragou, levando consigo parte considerável da carga de secos e molhados, mas sem vítimas. Ao narrar o ocorrido para o Conselho Ultramarino, o governador Fernando Pereira Leite de Foios explicou que “o casco era velho, não [tendo sido] possível resistir ao Choque das agoas (…) do Canal deste Porto”.29

27 SOARES, Mariza. Descobrindo a Guiné no Brasil Colonial. In. RIHGB. Rio de Janeiro, 161, p. 72, abr-jun. 2000a. 28 Ibidem. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000b, p. 39-45. 29 AHU, Maranhão, doc. 6459.

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Nas últimas décadas do século XVIII, as rotas transatlânticas de tráfico e comércio estavam há muito consolidadas, sendo amplamente conhecidas e vigiadas. Não é surpreendente, portanto, que tais rotas fossem repletas de corsários e piratas. A ameaça concreta erigida pelo corso permeou o cotidiano dos navios mercantis, não apenas em alto-mar, mas também em zonas costeiras – notadamente a do Maranhão. É provável que a presença constante de relatos de atividade corsária nessa área fosse resultado da própria geografia, uma vez que a maioria das grandes embarcações precisava navegar lentamente, tomando cuidado para não encalhar nos baixios. Além disso, a capitania do Maranhão e Piauí não dispunha de largo aparelhamento ofensivo e embarcações de guerra como o Estado do Brasil.

Uma medida protecionista aos navios mercantis foi decidida em 1798. Sob ordem de Sua Majestade, nenhum navio poderia seguir viagem sem comboio.30

A cabotagem entre os portos de São Luís e Belém já era comumente efetuada em pequenos comboios compostos principalmente de sumacas, e que não apresentavam qualquer resistência às investidas estrangeiras.31 Já os comboios em alto-mar eram flanqueados por navios de grande porte que faziam a segurança armada, geralmente bergantins. Ainda assim, os confrontos ocorriam constantemente. Num ofício redigido pelo capitão do bergantim de guerra Espadarte, Nicolau Woolfe, há o relato de um ataque efetuado a um comboio de 12 embarcações que se dirigia ao Maranhão e Pará, escoltado pelo Espadarte e por outro bergantim, o Minerva. A ofensiva corsária teria durado dias, resultando na morte de um homem e no desembarque de vários feridos.32

A capitania do Maranhão vivia em função de seus portos, sendo o de São Luís o maior e mais importante. Através dele circulavam mercadorias, pessoas e idéias e a comunicação com o mundo exterior dependia dos navios que para lá navegassem. Portanto, geri-lo era parte fundamental da administração, e as controvérsias que ocasionalmente ali surgiam, eram repassadas ao governador em gestão que, por sua vez, as relatava ao Conselho Ultramarino.

A administração do porto de São Luís contava com uma Superintendência de Contrabandos, que elaborava os pareceres que seriam encaminhados ao Conselho. A esta superintendência cabiam os casos de contrabando, extravios de carga, deserções e quaisquer inobservâncias durante o período de atracação de um navio.

O contrabando abarcava qualquer mercadoria e as acusações geralmente recaíam sobre os mestres das embarcações, que eram os responsáveis pelo Mappa dos effeitos que acompanhava as importações. Ao adentrarem o porto, todas as embarcações eram vistoriadas pelos oficiais da Alfândega e, havendo carga que não constasse da relação, o embaraço estava posto. A julgar pelas referências encontradas na

30 AHU, Maranhão, doc. 8018. 31 AHU, Maranhão, doc. 8057. 32 AHU, Maranhão, doc. 8727.

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documentação, é provável que o produto mais contrabandeado fosse farinha. Numa inspeção em 1783, o capitão de um navio que estava prestes a partir para Lisboa foi preso, após terem sido encontradas sacas de tapioca e goma.33

Extraviar escravos era outra modalidade que tirava o sossego das autoridades portuárias. O mestre do navio Minerva, procedente de Bissau com escravatura, foi preso após se descobrir que da relação de 130 peças, onze haviam desaparecido. Segundo denúncia enviada ao Conselho, o mesmo teria ofertado bebidas aos guardas do porto que, depois de bêbados e adormecidos, não teriam percebido a desembarque dos escravos no meio da noite.34

As deserções também são mencionadas, mas não tão maciças quanto a que ocorreu no Navio Macário e Penha da França que, de uma só vez, perdeu doze tripulantes tão logo ancorou em São Luís.35

Outra ocorrência de deserção, no ano seguinte, chamou mais atenção pela natureza do desertor, do que pela quantidade. Numa queixa redigida pelo governador de Bissau ao governador do Maranhão, este denuncia o mestre da galera São Macário, que teria transportado um soldado daquela praça, Antonio Martins – condenado a pena de morte – num carregamento de escravos que levava para o Maranhão. E, além de trazer um desertor, o mestre desembarcara os escravos “comprehendidos na Epidemia [de bexigas] sem fazerem a quarentena determinada (…) com aqual [se tinha evitado] as funestas resultas daquella que produzio tantos estragos”. O mestre da galera, Joaquim Jozé [ilegível] ficou preso em São Luís.36

A partir de 1780, o tráfico de escravos para o Maranhão passou a ser efetuado também por embarcações que partiam de portos brasileiros, principalmente da Bahia e Pernambuco. Esse tráfico era realizado sobretudo por sumacas, sendo seus mestres conhecidos por “sumaqueiros”. A sumaca era uma embarcação de médio porte, constituída de dois mastros, velas latinas triangulares e um pequeno camarote sobre o convés. Seu calado era apropriado para áreas de média ou baixa profundidades, adequando-se com perfeição às necessidades da zona costeira do Maranhão.37

A importação de escravos vindos dos portos do Brasil, começou em 1780, com uma carregação do Rio de Janeiro e outra da Bahia, intensificando-se a partir de 1784. Até 1802, o tráfico brasileiro responderia por cerca de 30% do total.

Qual seria o perfil do escravo exportado do Brasil para o Maranhão?

33 AHU, Maranhão, docs. 5509 e 6706. 34 AHU, Maranhão, doc. 6819. 35 AHU, Maranhão, doc. 6445. 36 AHU, Maranhão, doc. 6818. 37 RODRIGUES, Jaime. De Costa a Costa. Escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 149.

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Na documentação analisada, não é possível inferir se os escravos vindos dos portos do Brasil eram africanos ou crioulos – termo usado para definir os escravos nascidos no Brasil.38 Dados referentes à população de Salvador em 1835 mostram que, entre a população escrava, nada menos que 63% eram africanos. Média que, de acordo com João José Reis, mantinha-se desde o censo de 1775.39

Em Pernambuco, a cultura açucareira desenvolveu-se a partir do século XVII, contabilizando 212 engenhos em 1640, prósperos à custa de braços africanos.40 Na virada do século XVIII, o percentual de escravos entre a população mantinha-se em 30%, dos quais cerca de 50% eram africanos.41

Numa queixa redigida pelo governador da capitania em 1785, há referências às doenças e maus modos dos crioulos, bem como uma explícita preferência pelos escravos africanos. Segundo ele, os escravos trazidos da Bahia e de Pernambuco produziam “hu grande danno ao bem público, pello augmento dos malfeitores e hum gravissimo prejuízo aos Compradores porque [morriam] das moléstias deque [eram] inficcionados ou [fugiam], e [eram] prezos pelos malefícios que [cometiam]…”42 Alguns anos mais tarde, outra reclamação a respeito das sumacas foi feita ao Conselho, mas dessa vez mencionando apenas os altos preços cobrados pelos escravos.43

Na documentação pesquisada, há referência a cinco portos brasileiros, sendo eles: Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande (no atual estado do Rio Grande do Norte) e Aracaty (atual Ceará). Dos 10.252 escravos chegados vivos ao Maranhão, 97% eram provenientes da Bahia e Pernambuco, o que representa uma média anual de 540 indivíduos, se considerarmos apenas os anos com registros de entrada.

A historiografia brasileira há muito ajudou a elucidar as rotas transatlânticas. A predominância dessas conexões propiciou ao Estado do Brasil o incremento da produção e sucessiva exportação de gêneros para os mercados consumidores africanos. Ou seja, as ligações entre a África e o Brasil eram bilaterais, não somente comerciais, mas políticas e culturais também.

Diferente das rotas Bahia-Costa da Mina e Rio de Janeiro-Angola, a conexão entre a Alta Guiné (Bissau e Cachéu) e o Maranhão surgiu mais tarde, a partir da criação da CGCGPM, e foi responsável por grande parte das carregações do tráfico

38 MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2003, p. 105. 39 REIS, João José Reis. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 20-25. 40 PUNTONI, Pedro. A mísera sorte: a escravidão africana no Brasil holandês e as guerras do tráfico no Atlântico Sul, 1621-1648. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 85-102. 41 CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1998, p. 41-91. 42 AHU, Maranhão, doc. 5832. 43 AHU, Maranhão, doc. 6480.

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destinadas ao Estado. Entre 1788 e 1794, há registros também do envio de cera para o estado, juntamente com lotes de escravos, provenientes do porto de Bissau.44

Os mapas anuais de exportação do Maranhão mostram que toda a sua produção era destinada às cidades de Lisboa e Porto, e os registros de entrada das embarcações com escravatura mostram que muitas delas faziam uma única rota, Alta Guiné – Maranhão – Alta Guiné, porém outras praticavam rotas triangulares, Alta Guiné – Maranhão – Lisboa – Alta Guiné.45

A cultura material que atravessou o Atlântico com os escravos, obviamente, não consta dos mapas. Definir o porto de embarque, não esclarece a etnicidade desses homens e mulheres. Estudos recentes sobre a origem étnica/cultural dos escravos traficados para o Maranhão têm demonstrado a presença significativa de indivíduos, cujo grupo de origem ou nação, foi definido na documentação como mandinga.46

O termo mandinga deriva de Mande, um dos três grupos lingüísticos encontrados na região da Alta Guiné e que era falado sobretudo no interior e na zona costeira de Gâmbia e Serra Leoa. A liderança política e comercial de Mande acabou por aproximá-la culturalmente de outros grupos, tornando o mandinga “uma língua franca usada no comércio e na política”.47

Um indício bastante concreto da presença cultural mandinga foi apontado por Carreira ao constatar que no Maranhão havia um prato conhecido por arroz de cuxá, cujo vocábulo é de origem mandinga. Naquela língua, kutxá, significa baguiche, uma espécie de pasta de sabor acidulado, muito apreciado por quase todos os povos da Guiné e áreas adjacentes.48

Há, no regime de 1778-1802, o registro de sete portos na África, sendo que quatro deles (Cachéu, Bissau, Guiné e Malagueta) estão dentro da zona compreendida como Alta Guiné. Por conseguinte, ao calcularmos o volume de

44 FARO, Jorge. O movimento comercial do porto de Bissau de 1788 a 1794. Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Bissau, p. 232-251, 1959. 45 AHU, Maranhão, docs. 5356, 5355, 5432, 5552, 5562, 5567, 5730, 5840, 5843, 5938, 6115, 6288, 6429, 6567, 6719, 6868, 7042, 7178, 7179, 7404, 7680, 7887, 8313, 8479, 9101, 9416, 9861. 46 ASSUNÇÃO, Mathias Röhrig. Maranhão: terra mandinga. CMF – Boletim do Folclore. Nº 20. Agosto de 2001. Disponível em http://cmfolclore.sites.uol.com.br, Acesso em 10/04/2012; MEIRELES, Marinelma Costa. Tráfico transatlântico e procedências africanas no Maranhão setecentista. Brasília: Dissertação de Mestrado - UNB, 2006; BARROSO JR, Reinaldo dos Santos. Nas rotas do atlântico equatorial: tráfico de escravos rizicultores da Alta-Guiné para o Maranhão (1770-1800). Salvador: Dissertação de Mestrado - UFBA, 2009. 47 THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico – 1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 257-259. 48 CARREIRA, Antonio. As companhias pombalinas de navegação comercial e tráfico de escravos entre a costa africana e o nordeste brasileiro…, p. 324.

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entradas, concluímos que a referida área responde por cerca de 82% das procedências africanas no Maranhão. Na tabela seguinte, podemos observar que, no período vigente, ao somarmos as procedências, temos um total de 35.943 indivíduos, 67% traficados da África, 28,5% do Brasil, 4,3% sem identificação de origem e apenas 0,4% vindos de Lisboa.

Tabela 2

Total de escravos desembarcados no Maranhão (1778-1802)

ANO África Brasil Lisboa Sem definição TOTAL 1778 287 287 1779 1474 1474 1780 691 227 8 926 1781 944 944 1782 659 93 752 1783 1602 1602 1784 1033 342 1375 1785 1022 323 1345 1786 403 259 662 1787 1460 700 2160 1788 2112 769 13 2894 1789 1548 559 2107 1790 1054 357 1411 1791 707 459 1166 1792 1087 100 1187 1793 1141 1210 2351 1794 1146 1040 2186 1795 1138 606 1744 1796 938 916 1854 1797 1333 140 1473 1798 780 780 1799 945 945 1800 580 57 637 1801 569 759 1328 1802 1017 1336 2353

TOTAL 24068 10252 8 1615 35943 67% 28,5% 0,2% 4,3% 100%

Fonte: AHU, Maranhão, docs. 5355-56, 5432, 5552, 5562, 5567, 5730, 5840, 5843, 5938, 6115, 6288, 6429, 6567, 6719, 6868, 7042, 7178-79, 7404, 7680, 7887, 8313, 8479, 9101, 9416, 9861.

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Os habitantes do Maranhão na virada do século XVIII Apesar de o tráfico regular só ser verificado a partir de 1756 – com a primeira

carregação da Companhia, vinda de Angola – em pouco mais de quatro décadas, os escravos já representariam quase metade da população absoluta. E, apesar da regularidade tardia, o Maranhão ocuparia a quinta posição dentre as províncias escravistas já no século XIX.

Dos presumíveis 1.500 traficados antes do monopólio, passando aos 9.166 computados pela Companhia, registrou-se no regime 1778-1802 a assombrosa cifra de 35.943, totalizando 46.609 escravos no período pesquisado. Ainda que em números absolutos a quantidade de escravos desembarcados no Maranhão sequer possa ser comparada àquelas registradas em outras províncias, em termos populacionais, porém, foi a única província em que a população escrava chegou a superar a população livre.

Num levantamento populacional de 1823, os escravos correspondem a 59% da população geral do Maranhão, já no de 1872, representam apenas 20%. Essa tendência demográfica pôde ser observada nos levantamentos realizados nos anos de 1798, 1800 e 1801 respectivamente.49 Entretanto, os números da população da capitania apresentados nestes recenseamentos contêm uma discrepância, explicada pela ausência de determinadas vilas. O levantamento de 1798 está completo; o de 1800 não inclui os habitantes de São Luís; e o de 1801 exclui a capital, Alcântara, Guimarães e Icatu. Todavia, mesmo com a ausência de certas vilas, o percentual de habitantes livres e escravos se mantém. É o que nos mostra a tabela a seguir.

Tabela 3

Percentual de habitantes livres e escravos (Censos 1798, 1800 e 1801)

CENSO ESCRAVOS LIVRES TOTAL

36944 41916 78860 1798 (toda a capitania) 46,8% 53,2%

29900 29505 59405 1800 (excluídos os habitantes de São Luís) 50,3% 49,7%

17306 18870 36176 1801 (excluídos os habitantes de São Luís, Alcântara, Guimarães e Icatu) 47,8% 52,2%

MÉDIA 48,3% 51,7% 100% Fonte: AHU, Maranhão docs. 8313, 9101 e 9416.

49 MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil…, p. 64.

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Esses homens, mulheres e crianças escravizadas contribuíram diretamente para a tessitura demográfica, cultural, religiosa e econômica das sociedades em que estiveram inseridos, ajudando a delinear seus contornos. Lembremos que as relações entre homens livres e homens escravizados não eram rígidas, pois, ainda que sob a ótica da escravidão, o espaço social é constituído de negociações. Se de um lado os senhores infligiram um bárbaro regime de trabalho à custa de castigos e supressão da liberdade, de outro, os escravos infundiram o medo – através de fugas, quilombos, mocambos, protestos e revoltas – e difundiram suas crenças, trejeitos, gostos, hábitos, e vocábulos.

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A posse de escravos e seu cotidiano na capitania de Goiás - (1808-1888)

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A partir de alguns pressupostos e resultados de estudos realizados por Kátia Mattoso em sua obra clássica Ser escravo no Brasil (1992), que fez um estudo mais específico da sociedade escravista baiana, bem como, dos resultados de pesquisas realizadas por Silvia H. Lara na sociedade escravista carioca em seu trabalho Campos da violência (1998) e Luiz Felipe Alencastro em seu artigo, Vida provada e ordem privada no Império (2001) através da análise de documentos como inventários post-mortem, relatos de viajantes, escrituras de compra e venda de escravos, cartas de alforrias, relatórios dos presidentes de província e registros de matrícula de escravos os resultados preliminares apresentados neste relatório suscita que nas regiões interioranas do Brasil, como por exemplo, Goiás do século XIX as relações entre senhores e escravos poderiam ter sido bem mais fluídas, uma vez que, o senhor proprietário de rebanhos de gado possuía também, um número muito reduzido de escravos que o ajudavam na lida diária do gado e no cultivo de uma lavoura extensiva, voltada para o abastecimento da família.

Neste contexto as atividades econômicas em Goiás fundamentavam-se na agricultura itinerante de subsistência e na pecuária extensiva nas quais havia de um lado, as famílias detentoras de grandes propriedades com lavouras e campos de criação, onde o proprietário lavrava a terra com os filhos, filhas, noras e genros, e de outro, inúmeras famílias de agregados com residências e trabalhos provisórios, que praticamente faziam parte da propriedade, muitas vezes ligada ao proprietário por relações de parentesco ou compadrio. Como agregados, os lavradores geralmente não recebiam em dinheiro pelos serviços prestados, diariamente, nas propriedades, como a lida do gado, a construção de cercas, a derrubada de matos e o preparo das roças. As relações sociais e de trabalho fundamentavam-se nos laços familiares, no compadrio, camaradagem e escravidão. O pagamento costumava ser feito em mantimentos. Alguns negros libertos chegaram a confessar a Saint-Hilaire, em 1819, que preferiam ganhar um vintém por dia catando ouro no córrego de Santa Luzia do que receber quatro vinténs trabalhando nas fazendas.2

As características da sociedade goiana do século XIX podem ser consideradas similares, às demais regiões do interior do Brasil e que ainda não haviam se integrado a um mercado de maiores proporções através da lavoura de exportação, neste caso, destaque para as plantações de cana-de-açúcar e café, bem como, regiões que tiveram seu período áureo com a extração aurífera. Os relatos de viajantes que percorreram o Brasil, principalmente nos séculos XVIII e XIX e, sobretudo, os resultados de

1 Especialização em História e Cultura Afro-Brasileira – FAPAF. 2 SAINT-HILAIRE, 1976.

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pesquisa de historiadores mais recentes que se utilizavam de documentação serial, como os inventários post-mortem, já comprovam em parte o que estes viajantes relataram: nas regiões mais afastadas da orla marítima, as atividades sociais, econômicas e culturas tinham um ritmo cadenciado e diferenciado das regiões litorâneas onde se localizavam os principais centros urbanos e as grandes lavouras de cana-de-açúcar e café, e respectivamente, onde se localizavam o centro das decisões econômicas e políticas comandados pelos grandes proprietários de terras e de escravos e que ostentavam títulos da Guarda Nacional e de nobreza.

Apesar de todas as dificuldades e adversidades relacionadas aos meios de comunicação e transporte a partir dos fins do século XVIII, e principalmente, após a chegada da Família Real ao Brasil em 1808, ocorreu um crescimento do fluxo migratório relativamente grande de pessoas oriundas da região sudeste, especialmente, de Minas Gerais para a região sul de Goiás. Conforme os levantamentos estatísticos a população de Goiás saltou de 30 mil habitantes em 1804, para 122 mil em 1858, um crescimento médio de 400% no período de pouco mais de 50 anos. Diante destas questões, a partir do cruzamento das informações presentes na documentação consultada pretendeu-se compreender além da estrutura e processo de formação da riqueza na região, que apresentava como principais elementos constitutivos o escravo, a terra – incluindo as benfeitorias – e o gado. Foi possível perceber a partir da estrutura e composição da riqueza, que a conjuntura econômica de Goiás, seguiu seu ritmo e curso de acordo com as condições naturais, sociais e culturais disponíveis.

Fazendo uma análise comparativa a partir dos resultados de trabalhos de pesquisa de outras regiões, principalmente de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, Goiás apesar de possuir uma estrutura econômica predominantemente voltada para abastecimento familiar e local e de todos os percalços que apresentaremos, revelou dinamismo e crescimento.

Após se estabelecerem os lavradores que chegavam a região sul de Goiás na primeira metade do século XIX, divididas as terras entre os familiares e agregados – que poderiam ser parentes ou não – o preparo da terra para o cultivo e pastagem requeria um esforço conjunto de todos os componentes do núcleo familiar extenso3, 3 “A família nuclear, composta apenas de pai, mãe e filhos, só muito tardiamente aparece na sociedade brasileira, que conheceu durante tanto tempo a família tipo patriarcal, na qual o pater familias reúne sob sua autoridade e sob o seu teto, tias e tios, sobrinhos, irmãos solteiros, vagos primos, bastardos, afilhados, sem contar os agregados. Estes últimos são livres ou alforriados, brancos pobres, mestiços ou negros, que vivem na dependência tutelar da família e são considerados como parcelas dessa comunidade familiar. Também os escravos fazem parte da família. […] No campo, os agregados trabalham a terra do chefe da família, que lhes dá alimento e proteção. São como força policial a serviço do senhor naqueles lugares em que a administração pública é ausente; são os jagunços do chefe da casa. […] Alforriados ou livres, vivem à sombra da família da qual dependem, mas que necessita de seus serviços.

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incluindo os poucos escravos, utilizando-se de instrumentos básicos de trabalho como: a enxada, o machado e a foice gradualmente as famílias construíam as benfeitorias: áreas cercadas de lascas de aroeira ou madeira branca, valos e batumes e córregos ou rios, construção da sede com currais e quintais com mangueiro, rego d’água, monjolo, paiol, engenhoca e moinho; o quintal, por sua vez, era formado com uma grande variedade de arvoredos frutíferos.

Conforme descrição nos inventários post-mortem, escrituras de compra e venda de terras e nos relatos deixados por viajantes que percorreram Goiás no século XIX descrevem que as casas dos proprietários eram erguidas sob uma estrutura de madeira, assoalhadas, geralmente de pau-a-pique ou adobe, barreadas, caiadas e cobertas por telhas. Possuíam sempre uma planta retangular, com telhado de duas águas e uma repartição interna simples. Geralmente, eram sem forro sobre um porão e às vezes de terra batida. O mobiliário era sempre rudimentar. Não tinham nenhuma função agrícola. As habitações dos escravos, lavradores agregados e pequenos proprietários eram predominantemente de pau-a-pique e barro, coberta de palhas de palmeira, de capim, raramente de telhas. O mobiliário também era muito escasso, restringindo-se a bancos e mesas toscas e alguns utensílios básicos de cozinha, algumas peças de roupas e de cama. Dormia-se sobre girais fixos de madeira roliça presos ao chão, forrados com colchão de palha ou capim. As casas de uma maneira geral eram construídas em locais que não exigiam movimento de terras e na proximidade de cursos d’água, erguidas sobre uma estrutura de madeira com ripas e troncos tirados do mato, cobertos de telhas ou com folhas de buriti ou bacuris. O barreamento era feito geralmente com barro misturado com estrume de gado. Para iluminação utilizava-se do candeeiro de barro ou de metal umedecidos em algodão torcido com banha de porco ou azeite de mamona.

Neste contexto histórico e social não havia a possibilidade de haver senhores com grandes plantéis de escravos, o que pode subentender que as relações entre escravos e senhores eram mais fluídas. As relações escravistas de trabalho e de sociabilidade eram bem mais próximas e solidificadas por relações de compadrio e camaradagem envolvendo senhores e escravos. Os resultados apontam que essas peculiaridades levam a supor que os escravos da região sul de Goiás eram mais humildes, fiéis e obedientes para com os seus senhores. Em primeiro lugar o trabalho não era tão intenso e fadigado quanto nas regiões de lavoura de exportação; em segundo lugar, por serem poucos, havia entre os escravos e senhores uma maior socialização tanto no trabalho quanto na família nuclear em que estavam inseridos, na maioria das vezes, até como criados da casa; em terceiro lugar, devido a uma maior socialização

Contudo, para os senhores poderosos: donos de engenhos, concessionários de minas de ouro ou plantadores de café, com seus grandes lucros, é uma questão de prestígio manter sob o mesmo teto e gratuitamente a multidão de parentes e agregados. MATTOSO, Kátia. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Ática, 1990, p. 124.

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entre senhores e escravos e a vida rústica as relações deixam de ser menos hierarquizada; em quarto lugar, a maioria quase que absoluta dos escravos era de crioulos, nascidos principalmente em Goiás e Minas Gerais, sendo, portanto, crias da casa e já se encontravam adaptados à sociedade dos brancos.

Tabela 1 – Quantidade de escravos por proprietário

N.º de escravos Total %

0 01 a 02 03 a 05 06 a 10 Acima de 10

177 68 35 26 10

56 21,5 11,1 8,2 3,2

Soma 316 100 Taxa Média Global 3,5 escravos Fonte: Escrivania de Família e Sucessões do Fórum Dr. Guilherme Xavier de Almeida de Morrinhos-GO. - inventários post-mortem de 1843-1910.

Em um total de 300 inventários que foram pesquisados entre os anos de 1843 a

1888, 56% declararam não possuir nenhum escravo relacionados aos bens inventariados; 21,5% possuíam de 01 até 02 escravos; 11,1% tinham entre 03 e 05 escravos; 8,2% de 06 a 10 escravos; e apenas 3,2% tinham mais de 10 escravos arrolados nos bens inventariados. Na média geral, havia 3,5 escravos por senhor, conforme se observa na tabela 1.

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Fonte: Escrivania de Família e Sucessões do Fórum Dr. Guilherme Xavier de Almeida de Morrinhos-GO. - inventários post-mortem de 1843-1910.

Ao analisar os inventários post-mortem da região sul de Goiás pode-se concluir que

as famílias mais abastadas, com riqueza avaliada no monte-mor acima de 7.000$000 contos de réis possuíam, na década de 1840, 11,4 escravos em média; enquanto que quem detinha uma riqueza intermediária entre 4.001$000 e 7.000$000 contos de réis tinham em média 8,3 escravos. Na década de 1850, que coincidiu em seu princípio com o fim do tráfico internacional de escravos, ocorreu uma significativa queda no número médio de escravos entre as famílias que tinham riqueza acima de 4.000$000 contos de réis. Coincidentemente, com o fim do tráfico internacional de escravos, o preço médio destes elevou-se em todo o Brasil, inclusive em Goiás, quando um escravo entre 18 e 35 anos, chegou a ultrapassar cifra de 2.000$000 contos de réis na década de 1860. Conforme os resultados apresentados no Gráfico 2, com a elevação dos preços dos escravos entre os anos de 1850 a 1860, pressupõe-se que muitos senhores, em virtude do crescimento da demanda por mão-de-obra escrava nas

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províncias de Minas Gerais e São Paulo viu-se tentados a comercializar parte de sua pequena escravaria nestas províncias, sobretudo, com a primeira cujas relações econômicas do sul de Goiás com a região do Triângulo Mineiro eram intensas no período. No entanto, na década de 1870, principalmente, a partir da publicação da Lei do Ventre Livre que foi editada no ano de 1871, com o estímulo e incentivo à vinda de imigrantes europeus para trabalhar como mão-de-obra livre nas lavouras de café e construção de estradas de ferro, bem como, o crescimento do movimento abolicionista, o trabalho e o investimento em mão-de-obra escrava foi deixando de ser um negócio lucrativo e, consequentemente, os preços dos escravos gradativamente desabaram em todo o Brasil repercutindo, também, no sul de Goiás que refletiu diretamente no número médio escravos entre os senhores mais ricos.

No capítulo II da Lei n.º 2040 – Lei do Ventre Livre - regulamentava o estabelecimento de um Fundo de Emancipação, que em seu artigo 27, estabelecia a alocação dos recursos para emancipação – meia sisa - que deveria obedecer a seguinte ordem: em primeiro lugar, libertar-se-iam as famílias escravas; em seqüência, os indivíduos.

Na libertação por famílias, a classificação prevista era: 1º) os cônjuges que fossem escravos de diferentes senhores; 2º) os cônjuges que tivessem filhos nascidos livres em virtude da lei nº 2.040 e menores de oito anos; 3º) os cônjuges que tivessem filhos livres menores de vinte e um anos; 4º) os cônjuges com filhos menores escravos; 5º) as mães com filhos menores escravos; 6º) os cônjuges sem filhos menores. Os demais cativos eram também ordenados: 1º) mãe ou pai com filhos livres; 2º) os de doze a cinqüenta anos de idade, começando pelos mais jovens do sexo feminino e pelos mais velhos do sexo masculino.4 Em decorrência dessa legislação foram elaboradas as Listas de Classificação dos Escravos para Emancipação, fontes de inegável relevância para o estudo da escravidão no Brasil, muito embora nem toda a população cativa viesse a constar, como se depreende dos critérios acima, da classificação efetuada.5

Com a Lei n.º 2.040 todos os senhores de escravos deveriam registrá-los, nesta matrícula o n.º de matrícula, o nome do senhor e do escravo, cor, idade, naturalidade,

4 Ver: Colleção das leis do Império do Brasil de 1872 (1873, v. 2, p. 1059) e, também, GRAF, Márcia E. de Campos. População escrava da Província do Paraná, a partir das listas declassificação para emancipação (1873-1886). Dissertação de Mestrado. Curitiba: UFPR, 1974, cap. 1, p. 5-37. Citados em: MARCONDES, Renato Leite; MOTTA, José Flávio. Família escrava em Lorena e Cruzeiro (1874). Disponível no site: www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/pdf/2000/Todos/hist13_3.pdf. 5 Ibidem.

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ocupação e filiação. O imposto arrecadado era convertido em um Fundo de Emancipação. Pesquisado os inventários post-mortem foram encontrados anexos aos processos alguns registros de matrícula de escravos. Foram computados 117 escravos no período de 1872 a 1886. Conforme resultados apresentados no Gráfico 2, a maioria absoluta (95%) dos escravos declarados nos registros de matrícula eram nascidos no Brasil. Destes, 58,1%, foram declarados goianos e, 33,3%, mineiros. Somente 6% foram professados como africanos. Ou seja, a maioria pode ser considerados escravos que são considerados cria da casa.

Segundo Kátia Mattoso o crioulo era objeto de contradições irredutíveis entre brancos e negros, era o que tinha as maiores dificuldades de assumir sua individualidade, pois, os senhores esperam muito mais de um escravo crioulo do que do africano, uma vez que, este aprendia desde criança o negro boçal (africano) deveria absorver durante toda a sua vida de trabalho.6

Graças a este estado de espírito, vê-se o escravo africano alforriar-se mais facilmente que o crioulo: na verdade aos olhos do branco, o africano representa concorrência bem menos perigosa do que a dos crioulos, dar liberdade ao primeiro é perda pouco importante, ao menos em certos casos. Além disso, a solidariedade é muito mais forte no grupo dos africanos do que no dos crioulos.7

Na sociedade brasileira escravista a criança-escrava brasileira era na maioria das vezes objeto de uma dupla criação: de um lado, seus senhores e os homens livres requeriam sua afeição, porém, desejavam que ela crescesse obediente, humilde e fiel. Desta forma, para Kátia Mattoso, a criança-escrava que era cria da casa e que crescia na maioria das vezes no convício com as crianças brancas, não deixava de ser um protegido do seu senhor, mesmo que este fosse considerado por estas, como um burro de carga, o pequeno escravo estava bem mais perto da comunidade branca do que da negra. É por isso que as exigências do senhor tornavam-se mais precisas e indiscutíveis.8

6 MATTOSO, Kátia. Ser escravo no Brasil… 7 Ibidem, p. 105-106. 8 Ibidem.

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Fonte: Escrivania de família e sucessões. Cartório de Família do Fórum Dr. Guilherme Xavier de Almeida. Registro de matriculas de escravos, 1872-1886.

Fonte: Escrivania de família e sucessões. Cartório de Família do Fórum Dr. Guilherme Xavier de Almeida. Registro de matriculas de escravos, 1872-1886.

Os poucos escravos trabalhavam juntamente com familiares e, principalmente,

agregados no trabalho da lavoura, criação de gado e em serviços domésticos, estes último realizado pelas mulheres que se ocupavam de ofícios de cozinheira, tecedeira, fiandeira, costureira e farinheira e sapateiro. Dentre estas as principais ocupações estão relacionados à lavoura (30%) e aos serviços domésticos (30%), quanto aos

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escravos sem ocupação nenhuma (39%), correspondem às crianças menores de 10 anos, alguns portadores de deficiência física e idosos. As escravas além de ocuparem-se com as atividades domésticas, os senhores também as utilizavam em serviços da lavoura. Apesar de haver um equilíbrio entre homens e mulheres escravas, os senhores, como na maioria das regiões brasileiras em Goiás não faziam questão que seus escravos se casassem. Nos registros de matrículas cerca de 86% dos escravos adultos foram declarados solteiros.

Por se tratar de uma sociedade de senhores com um número muito reduzido de escravos, que viviam em fazendas isoladas ás vezes por léguas de distância uma das outras, os escravos acabavam praticamente não se relacionando entre si, mas socializando e mantendo laços de amizade e compromisso com uma maior intensidade com a família do seu senhor e seus agregados o que os impossibilitava a existência de vida comunitária entre os mesmos. Ao contrário das grandes fazendas de café e cana-de-açúcar onde os senhores possuíam grandes plantéis de escravos, onde havia uma grande de africanos, em cujo grupo os laços de solidariedade eram bem mais forte do que entre os escravos crioulos nascidos no Brasil. Desta forma “os escravos isolados não podem haurir força e alegria da consciência pertence a um núcleo vivo e fraterno. Esses tratarão certamente de imitar os brancos, depressa perderão as tradições comunitárias e o senso do sagrado vindos da África”.9

Esses primeiros entrantes compostos de senhores e escravos que habitavam a região sul de Goiás procediam, em grande parte, de Minas Gerais, conforme se constatou nos registros de casamentos realizados na Capela de Nossa Senhora do Carmo dos Morrinhos entre os anos de 1836 a 1854. A partir destes dados tornou-se possível ter uma idéia da condição social, da procedência das correntes migratórias e a composição étnica dos primeiros povoadores do atual sul de Goiás, conforme se observa no Gráfico 4.

9 MATTOSO, Kátia. Ser escravo no Brasil…, p.136.

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Fonte: Registros de casamentos realizados na Capela de Nossa Senhora do Carmo dos Morrinhos, Livro I - 1849-1854… OLIVEIRA, Hamilton Afonso de. A construção da riqueza no sul de Goiás, 1835-1910. Franca: Tese de Doutorado – UNESP, 2006, p. 57. * Total de 102 registros de casamentos.

Tabulados os dados conclui-se que os mineiros foram responsáveis pela ocupação

da região sul de Goiás, possivelmente devido à dificuldade de acesso a terra, em Minas Gerais, elemento substancial à sobrevivência das famílias. Centenas de mineiros, a partir dos fins do século XVIII, começaram a deslocar de suas regiões em direção às então disponíveis terras do Triângulo Mineiro e Goiás. Os registros de batismo, embora sejam relativamente tardios, mostram que mais de 56% dos noivos e noivas que se casaram na capela de Nossa Senhora do Carmo dos Morrinhos, que abarcava grande parte da atual região sul de Goiás era oriundos de Minas Gerais, 35% de Goiás e apenas 3% de São Paulo. Especificamente, 73% dos noivos eram mineiros, enquanto que, 54% das noivas nasceram e foram batizadas na referida paróquia de Morrinhos.

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Fonte: Registros de casamentos realizados na Capela de Nossa Senhora do Carmo dos Morrinhos, Livro I - 1836-1849. OLIVEIRA, Hamilton Afonso de. A construção da riqueza no sul de Goiás, 1835-1910. Franca: Tese de Doutorado – UNESP, 2006. * Total de 161 registros de casamentos.

Os registros de casamento revelam que a maioria dos noivos e noivas que se

casaram entre os anos, de 1836 a 1849, na capela de Nossa Senhora do Carmo dos Morrinhos eram livres 84%, de condição escrava apenas 16%. Os pardos livres representavam 51%, os brancos 33 %. Os dados apresentados no Gráfico 5 evidenciam que destes primeiros entrantes colonizadores da região sul de Goiás, além de origem mineira, era composto em sua grande maioria de pardos e negros que, conjuntamente correspondiam a cerca de 70% da população. Os registros de casamento mostram que o que prevalecia no matrimônio não havia uma interação étnica, ao contrário das relações extraconjugais. No casamento noivos e noivas eram escolhidos no seu grupo étnico: brancos casavam-se com brancos, pardos com pardos e negros com negros. Muito raramente ocorriam matrimônios entre noivos de etnia diferente.

No total de 161 registros de casamentos foi encontrado apenas dois casos de casamentos exoétnico: o noivo Luciano José de Magalhães, crioulo forro, que contraiu núpcias com Maria Antônia Hipólita, parda livre, em 15 de outubro de 1839, e, o caso de Serafim Soares de Sousa, pardo livre, que contraiu matrimônio com Joana Simplícia de Jesus, branca, em 28 de janeiro de 1842. Estas evidências podem levar a outras hipóteses e discussões sobre o debate em relação ao processo de miscigenação cuja ocorrência se dava nas relações extraconjugais, portanto, fora do matrimônio.

Por fim, o que foi constatado pelos registros de casamentos ocorridos na capela de Nossa Senhora do Carmo de Morrinhos, entre os anos de 1836 a 1849, foi

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comprovado nos censos posteriores de 1872 e 1890, que apontam que região Sul de Goiás os pardos representavam 43,2% e 33,1%; negros 7,2% e 8,2%; caboclos 2,5% e 9,8%; brancos 38,2 e 48,1% respectivamente.10Portanto, no final do século XIX, os pardos e negros ainda representavam um quantitativo muito significativo da população.

10 Dados dos recenseamentos gerais do Brasil de 1872 e 1890. FRANÇA, Maria de Sousa. Povoamento no Sul de Goiás: estudo da dinâmica da ocupação espacial. Goiânia: Dissertação de Mestrado apresentado no Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Goiás em convênio com a Universidade de São Paulo - UFG, 1975, p. 112.

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Negros na sociedade colonial Acarauense

Raimundo Nonato Rodrigues de Souza1

Introdução

O presente artigo analisa a vida de negros no Sertão do Acaraú, Noroeste do Ceará, como uma espécie de filtro em que se possa penetrar a organização social local para compor um conjunto de ações desses sujeitos e, assim, pretende ampliar o olhar para a temática, problematizando as temporalidades e espacialidades que se engendraram no cotidiano como estratégias de sobrevivências.

Ao estudar as populações negras (cativas e libertas) no sertão do Acaraú, no século XVIII e XIX, nos deparamos com diversas questões como: trabalho, tamanho dos planteis, constituição de famílias, relações de parentescos, fugas, revoltas, vivências religiosas, alforrias, relações de sociabilidades e solidariedades.

Os cativos foram registrada em diversos documentos, como nos inventários (1709 a 1822); nos livros de licenças da Câmara da Vila de Sobral (1773-1822); na documentação eclesiástica: livros de batismo, casamento, óbito, foro, irmandades (1725-1822) e outros. Neles é possível perceber como foram nomeados e classificados, suas idades, doenças, seus preços, seus pais, padrinhos, esposos e esposas, sua profissão, sua morte e seu sepultamento, pecúlio, alforrias, suas dívidas. Isto aponta para pensar as diversas estratégias utilizadas para viver numa sociedade escravocrata.

Ao ler a documentação foi possível observar um universo de práticas culturais e espaços de sociabilidade dos negros (livres e cativos), que colocavam problemas à rigidez hierárquica de uma sociedade, baseada nas concepções do “Antigo Regime”. Ao investigar as trajetórias de pessoas negras é fundamental a compreensão da estrutura social e dos mecanismos que permitem a mobilidade numa sociedade agropastoril e escravocrata. Por isso, ao analisar as informações contidas na documentação utilizada neste trabalho para compor a narrativa sobre os negros, foram surgindo nomes, famílias, irmandades, escravos, terras, casas, títulos militares, ou seja, outras histórias. Como diz Levi (2009), não devemos lamentar as ausências dos sujeitos na história, mas “o importante é como falar desse alguém”. Para ele,

[…] a micro-história não é, necessariamente, a história dos excluídos, dos pequenos, dos distantes. Pretende ser a reconstrução de momentos, situações, de pessoas que investigadas com olho analítico, em âmbito circunscrito,

1 Doutorando em História Social pela Universidade Federal do Ceará e Professor Assistente da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA.

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recuperam um peso e uma cor; não como exemplos, na falta de explicações melhores, mas como referências dos fatos à complexidade dos contextos nos quais os homens se movem.2

São outras histórias, a de José Monteiro de Melo, em 1809, em seu testamento fez

registrar que sua riqueza é fruto do seu trabalho. Ele era filho de uma preta Mina, morava nas Oficinas do Acaraú, era oficial de calafate, proprietário de terras, escravos e comerciante. Manoel de Sousa Leal, negro Mina, egresso do cativeiro, possuidor de terras e escravos, reconhecido como tenente e pertencia a irmandade do Rosário dos Pretos; Manoel Gomes Correia do Carmo, também, filho de uma preta Mina, foi proprietário de escravos e professor. Todas estas histórias foram vividas em terras da ribeira do Acaraú, sertão cearense, no período do século XVIII e nas duas primeiras décadas do século XIX.

Estas trajetórias de vidas ocorreram numa região agropastoril, escravocrata e de rígidas hierarquias sociais, onde prestígio e distinção faziam parte do seu cotidiano. Nesta sociedade colonial rural, parte da mão-de-obra utilizada nas fazendas e sítios era escrava, posse inclusive de muitos egressos do cativeiro. Ao tratar destes libertos possuidores de bens, distintos e reconhecidos, cabe indagar como foi possível a eles ascenderem nesta sociedade colonial e naquele espaço sertanejo.

A resposta a estas e outras indagações será possível a partir da leitura de diferentes registros dos séculos XVIII e XIX, como a documentação arquivada no Núcleo de Documentação de História (NEDHIS), composta de livros de registros de licenças, cartas de alforrias, testamentos, livros de atas e almoteceria e, em especial, de uma coleção de inventários do século XVIII-XIX; documentos dos arquivos eclesiástico das dioceses de Sobral e Itapipoca – livros de óbito, casamento, batizado, foro e os Livros da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Sobral. Soma-se a isso a documentação conservada no Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), composta de inventários, livros administrativos da Capitania do Ceará e livros de sesmarias.

São histórias de cativos e egressos do cativeiro, sujeitos sociais, que produziram suas aspirações, desejos, emoções, sentimentos, razões, como sujeitos históricos, que forjaram saídas, muitas vezes, no caso dos escravos, resistindo nos quilombos e nas fugas, se submetendo, vivendo enfim, numa relação contraditória que possibilitou a reelaboração da sociedade escravocrata para tirar dela proveito. Da mesma forma, os libertos precisaram reconstituir suas vidas, serem reconhecidos, honrados e distintos diante da comunidade local, seja como senhores de escravos e de terras ou como

2 LEVI, Giovanni. Economia camponesa e mercado de terra no Piemonte do Antigo Regime. In: OLIVEIRA, Monica Ribeiro de e ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de, (Org.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, p. 14.

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trabalhadores livres pobres, muito deles vivendo de seus parcos recursos obtidos através das atividades agropastoris, do comércio e de seus ofícios.

Negros livres: elites negras no sertão

As migrações de negros livres para o Acaraú, principalmente das vilas açucareiras

e dos sertões de outras capitanias, esteve ligada à ocupação agropastoril das terras acarauense. Diversos negros, do terço de Henriques Dias ou das chamadas tropas pagas estabeleceram-se no Ceará desde a restauração portuguesa em 1654. Alguns destes militares fixaram-se na capitania e solicitaram terras para criar seus gados e suas famílias. Um destes mulatos, Felipe Coelho de Moraes, e sua prole conseguiram terras do rio Ceará até a ribeira do Caracu.

Felipe Coelho de Morais e seus parentes obtiveram diversas datas de sesmarias nas ribeiras do Acaracu. Eles combateram os povos do sertão, matando-os e escravizando-os, e assim fortalecendo o poder familiar. No livro de sesmarias, foram registrados 28 pedidos para esta família. Inclusive Bento Coelho de Moraes, foi eleito vereador da Câmara de Aquiraz 3

A grande quantidade de sesmarias tornava esta família negra poderosa, o que, talvez, explique a preocupação dos padres em solicitarem ao rei medidas para coibrir abusos aos índios, como a mortandade destes pelas tropas enviadas ao sertão, que tinham como cabos os mulatos. Segundo o padre, o poder dos Coelhos de Moraes e dos Dias se fazia sentir, também, aos brancos, como no caso relatado:

Félix Coelho com uns tapuia seus escravos, prendera um branco que morava no Curuguayu, querendo lhe cortar as mãos, por lhe ter desfeito um curral, que as escondidas fizera num seu terreno. No mesmo ano, o mesmo mulato com dois escravos {moeu a paos} Luis Pereira Coutinho, moço branco e bem procedido, obrigando-o a ausentar-se dentro do prazo de quinze dias. Assim os mulatos tinham tomado posse do Ceará, sem que ninguém se atrevesse a acusá-los ou repreendê-los.4

Outros sesmeiros estiveram presentes na conquista e colonização, como casal

Pedro Cardoso de Abreu e Clara de Azevedo Farias, que foram uma das famílias de negros que migraram da Capitania de Pernambuco. Ele natural da Vila de Iguarassú e ela de Santo Amaro de Jaboatão. Em relação aos seus escravos só temos referência a Bonifácio de Abreu e a Clara de Azevedo Farias. Bonifácio casou com “(…) Maria

3 PINHEIRO, Francisco José. Formação histórica do Ceará. Fortaleza: Fundação Ana Lima, 2008, p. 90. 4 RAU, Virgínia. Documentos manuscritos da Casa de Cardaval. Respeitantes ao Brasil. Lisboa: Livraria Portugália, Vol. II, 1943, p. 393.

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Dias, índia forra e viúva”.5 A escrava Clara no registro do seu casamento aparece como liberta e casou com o preto Nicolau da Silva Roxo, forro e natural da cidade de Olinda.

O filho do sesmeiro Pedro Cardoso, Eusébio de Azevedo Farias, foi procurador e tesoureiro da Irmandade do Rosário dos Pretos, proprietário da fazenda Cruz do Padre. Ele declarou a câmara da Vila de Sobral em 1788, que era morador e proprietário das fazendas Ipueira da Cruz do Padre e Livramento, do sítio São Domingos. Possuía um rebanho de 896 cabeças de gados vacum, cavalar, miúdo e 14 escravos, Em suas propriedades tinha os seguintes instrumentos agrícolas: 06 machados, 03 foices, 07 enxadas e 04 cavadores. Seus escravos, agregados e familiares, dedicavam-se ao trabalho da agricultura: na plantação e produção de farinhas, no cultivo do milho, na produção e colheita do feijão e do algodão. De acordo com as informações prestadas por Eusébio, os gados eram criados nas fazendas e os escravos estavam espalhados nas fazendas e sítio de produção agrícola na serra da Meruoca. A produção agrícola era utilizada para o consumo e venda para os moradores. Em relação ao gado de açougue ele mandou vender 26 reses para a capitania de Pernambuco.6

Em seu inventário, foi declarado pela inventariante, sua esposa, que ele possuía 21 escravos, avaliados em 1.635$000 rs. Seus bens de raízes: moradas de casas, a fazenda Cruz do padre, os sítios de plantar lavoura na serra da Meruoca denominados Boa Vista de7 Todos os Santos, São Domingos, Almas, Palmeiras e Oiteiro foram avaliados a 640$000 rs.

Outro exemplo é o negro livre chamado José Monteiro de Melo, proprietário de terras e de gentes, morador nas oficinas, hoje cidade do Acaraú. Afirmava em seu testamento, redigido em 1805, que tinha os seguintes escravos:

Francisco Angola e outro do mesmo nome também angolla, outro do mesmo nome crioulo, Lino crioulo, João Angolla, outro do mesmo nome Angolla, Manoel Angolla, Antonio Angolla, Matheus Angolla, Estevão crioulo, Ignácio Angolla, Antônio Caxeo, Bernardo cabra, Valentim cabra, Joaquim Angola, Manoel Crioulo, Pedro Angolla, Severino crioulo, Antônio da Costa da Mina, alguns destes tenho, mas Francisco Angola ladino, outro do mesmo nome também Angolla ainda

5 Livro de casamento (1741-1769), n°. 01, fl, 81 (ACDS). 6 FROTA, Luciara S. de Aragão (Org.). Estudo do Remanejamento da Pecuária na Zona Norte do Estado do Ceará. Fortaleza: SUDEC, vol. 1, 1974, p. 134-136. 7 Inventário post mortem de Eusébio de Azevedo Farias (1801), caixa 35. Arquivo do NEDHIR/UVA.

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novo, e estes dous estam fugidos, femêas as seguintes: Angela crioula, Florinda cabra, Catharina Benguella, Vicência crioula.8

Dos 25 escravos; 48% são africanos e os 52% restantes nascidos na colônia. Os

africanos eram 12: 10 vindos de Angola, um da região do Caxeu e outro da Costa da Mina. Dos nascidos na colônia foram identificados 03 cabras, 08 criolos e 02 pardos. A maioria destes escravos era formada por cativos do sexo masculino (20 homens e apenas 05 mulheres). Das mulheres, 04 nasceram na colônia e uma na África que aparece descrita no testamento como sendo de procedência de Benguela e no inventário foi descrita como angolana.

Seus cativos, conforme a faixa etária: eram 03 crianças e 22 adultos. O cabra Antonio e o preto Antonio eram velhos, com 60 anos de idade. A maioria dos escravos tinha entre 20 e 50 anos. Estes provavelmente eram utilizados nos serviços de roça, afazeres domésticos, servindo no comércio, no criatório e na profissão de calafete. Funes (2000), ao tratar do mundo do cativo no Ceará, diz que:

A mão-de-obra escrava no Ceará se faz presente em todo o campo de trabalho, seja no espaço rural ou no urbano. Se num primeiro momento, ainda no século XVIII, as primeiras “peças” estavam sendo adquiridas para trabalhar num projeto que frustou, “as minas de São José do Cariri”, posteriormente o cativo foi incorporado ao setor produtivo estando presente na pecuária, na agricultura, em serviços especializados, nos serviços domésticos ou ainda como escravo de aluguel e de ganho.9

Numa sociedade escravocrata a posse de escrava permitia aos proprietários

acumular capital e investimento tanto no Vale do Acaraú quanto na África. John Thornton afirma que na África “o único recurso era comprar escravos, os quais como sua propriedade, poderiam ser herdados ou gerar riquezas.”10 Assim, ao comparar o valor do montante do inventário de Melo, avaliado em 22.943$119, com o valor dos escravos orçados em 2.410$000, percebemos como investir em escravos no Brasil também era algo lucrativo. Pois o item escravos equivalia a 11%, conforme somatório dos preços dos escravos.

8 Testamento de José Monteiro de Melo. In: Irmandades e Confrarias – Ceará (1814-1821). Cx. 293 pac. Fundo: Mesa de Consciência e Ordens. Cod. do Fundo: 4J Secção de Guarda: SDE. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. 9 FUNES, Eurípedes A. Negros no Ceará. In: SOUZA, Simone de (Org.). Uma Nova história do Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000, p. 110. 10 THORNTON, John. A escravidão e a estrutura social da África. In: A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800). Rio de Janeiro: Editora Campus/Elsevier, 2004, p. 140.

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Escravidão de africanos, mulatos, cabras e pardos

A presença da mão-de-obra escrava no sertão do Acaraú não ficou exclusiva a

africanos e a seus descendentes, desde o processo de colonização, outros povos, também, como os indígenas, foram utilizados nas fazendas de gados e sítios de plantar lavouras.

Em 478 inventários do século XVIII e XIX, situados no período de 1709 a 1822, 62 não constavam nenhum escravo e em 416 foram registrados a presença de cativos. Segundo Frota, os escravos negros “eram bastante numerosos e vinham de Pernambuco, Maranhão e Bahia”11 , trazidos através das compras que os proprietários de gados e terras faziam nas praças do Recife, Goiana, Salvador e São Luís, após a venda de gado, no período em que se constituíam grandes boiadas para suprimento desses mercados. Com o desenvolvimento das charqueadas, além dos lucros com a carne, estes vendiam couros e solas, aumentando seus ganhos, ocasionando a necessidade de investirem em compra de cativos. Neste sentido, a tabela abaixo é demonstrativa dos investimentos de capital na compra de escravos.

Tabela 1 Inventários

PLANTEL PROPRIETÁRIOS PERCENTUAL 01 – 05 274 65,9 06 – 10 11 26,7 11 – 15 19 4,6 16 – 20 08 2,0 21 – 25 03 0,8 26 – 30 01 0,3 Fonte: Coleção de inventários post mortem (NEDHIS – UEVA).

Ao analisar a tabela acima, percebe se que na maioria dos inventários, os

proprietários detinham de 01 a 05 escravos. Nesta faixa, 64 deles eram donos de apenas 01 escravo. Os detentores de 02 escravos eram 62 proprietários; com 03 existiam 54, 04 com 55 e 39 proprietários tinham 05 cativo.

Neste universo de proprietários, podemos citar Timoteo Pereira Brito, falecido em 1799, que possuía uma escrava, chamada Isabel, de 50 anos, procedente da Costa da Mina, e avaliada por 80$000. Entre seus bens de maior valor constavam suas 05 terras de criar gados e plantar lavouras avaliadas em 610$000 rs. O Cel. Sebastião de Sá, falecido em 1742, possuía apenas uma escrava, quando foi feito seu inventário. 11 FROTA, D. José Tupinambá da. História de Sobral. Fortaleza: IOCE, 1995, p. 540.

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Mas, no ano de 1734, este coronel libertou diversos escravos, como consta de diversas cartas de alforria:

que passa o Cel. Sebastiam de Sá a hum seu escravo por nome Domiciano em 23 de dezembro de 1734, no sítio do Olho dágua do Muritiapuá (…)” e outras “a seu escravo do gentio da terra Francisco e sua mulher Catharina e a seus filhos Lourenço, Bernaldo, Vericimo e Geraldo, em 29 de dezembro de 1734, no sitio do Muritiapuá.12

O segundo maior plantel de escravos era de 06 a 10 cativos, que totalizava 111

proprietários. Destes, 31 tinham 06, como Ana Ferreira Torres, falecida em 1797. Em outros 21 inventários continha apenas 07 escravos. Outros 25 proprietários possuíam 08 escravos, como a finada Ana Maria, que foi casada com Domingos de Paiva Dias. Seu marido, inventariante, descreveu os seguintes escravos:

Paulo, com idade de 40 annos pouco mais ou menos, do Reino de Angola, avaliado pelos avaliadores em 60$000; Joam, Mina, com 40 anos e com uma perna mais fina que a outra, avaliado por 40$000; José, do reino de Angola, com 32 anos, avaliado por 60$000, Antonio, criolo, com 03 anos, avaliado por 25$000; Josepha, Mina, com 25 anos, parideira e com cravos nas solas dos pés procedidos de moléstia bobahia, avaliada em 75$000; Fernanda, criola, com 04 anos, avaliada em 30$000 e Anna, criola, com 03 meses avaliada por 10$000.13

Antonio Rodrigues Magalhães, proprietários da fazenda Caiçará, que atualmente é

celebrado como fundador da cidade de Sobral, ao falecer em 1759, deixou de herança 09 escravos, todos eles africanos, do gentio da guiné.14

Os planteis de escravos de 11 a 15, equivaliam a um percentual de 4,6 do total dos inventários, correspondendo a 19 proprietários. Um exemplo destes proprietários é o de Manoel Mendonça Silva, cujo inventário foi redigido em 1794 e que constava ter 15 escravos.

Entre os proprietários de 16 a 30 cativos, correspondendo a um percentual de 3,1% dos inventários analisados, temos alguns que exerceram atividades durante sua vida na Irmandade do Rosário. Entre eles citamos o Coronel Matias da Silva Bonito, detentor de 19 escravos e que foi procurador da Irmandade do Rosário dos Pretos da

12 Revista do Arquivo Público Estadual, n°. 01. 1987, fl. 14. 13 Inventário post mortem de Ana Maria, 1763, caixa 09. Arquivo do NEDHIS/UVA. 14 Inventário post mortem de Antonio Rodrigues Magalhães, 1757, caixa 05. Arquivo do NEDHIS/UVA.

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Vila de Sobral. O Capitão Eusébio de Sousa Farias, falecido em 1801, em cujo inventário foi descritos 21 escravos, exerceu a função de tesoureiro e procurador da respectiva Irmandade.

Na somatória de escravos descritos nos 416 inventários temos 2.402 cativos, sendo 1.451 homens e 951 mulheres. Deste total foram descritos 625 nascidos na África e 1455 nascidos na América portuguesa. Os nascidos na África foram qualificados como Guinés, Angolas, Cabindas, Benguelas, Caxeus, Coyranas e Mina. Soares diz que “(…) mais que uma forma de identificar escravos, este é um recurso adotado para classificar e organizar a escravaria na África para a América”.15

Em relação aos africanos, o maior grupo era de angolas, como os cativos de Ana Maria, falecida em 1762, que tinha 08 escravos sendo 03 angolas “o escravo Paulo, com idade 40 anos mais ou menos e avaliado por 60$000; José, com 32 anos mais ou menos e avaliado por 60$000 e Joam, com 22 anos mais ou menos e avaliado por 70$000”.16 Seus outros escravos eram 02 Minas, um cabra e um crioulo.

Nos inventários, os cativos vindos do continente Africano, foram, também, classificados como “Francisco do Gentio de Angola”17 e “o escravo denominado Pedro de nação Angola”18 Estas denominações: Reino, Gentio ou Nação denotam formas de classificação e organização que os sujeitos envolvidos no tráfico de escravo utilizam a partir de suas vivências, como europeus e africanos, para melhor facilitar os seus negócios. Ao analisar os significados dessas palavras, Soares afirma:

A categoria genérica <gentio> aplicada inicialmente aos povos a serem convertidos – é substituída pela categoria <nação>, não menos genérica, mas que melhor atende às novas exigências do tráfico. De um ponto de vista mais secularizado, o escravo passa a ser identificado não por sua contribuição ao projeto de expansão cristã, mas por sua importância no quadro dos conflitos em território africano e das rotas e portos de embarque do tráfico negreiro. Neste sentido a alteração na terminologia corresponde a uma mudança nas próprias relações que os portugueses estabeleceram com as populações africanas.19

Se de um lado estas categorias classificatórias possibilitaram uma melhor

15 SOARES, Mariza de Carvalho. Mina, Angola e Guiné: nomes d’África no Rio de Janeiro. Tempo, vol. 3, nº 6, p. 01, dezembro de 1988. 16 Inventário post mortem de Ana Maria, 1763, caixa 09. Arquivo do NEDHIS/UVA. 17 Inventário post mortem de José Duarte Pereira, 1737, caixa 04. Arquivo do NEDHIS/UVA. 18 Inventário post mortem do Coronel José da Costa e Sá, 1746, caixa 06. Arquivo do NEDHIR/UVA. 19 SOARES, Mariza de Carvalho. Mina, Angola e Guiné …, p. 8.

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organização do tráfico para os comerciantes envolvidos, por outro, elas esconderam a diversidades dos povos. Elas fizeram com que, em determinada época, uma pessoa fosse reconhecida como do Gentio da Guiné e, em outro momento, como da Costa da Mina. Manuel de Sousa Leal, por exemplo, foi classificado como Gentio da Guiné e no registro de seu falecimento consta como da Costa da Mina.

Da mesma forma, os escravos nascidos na América portuguesa, não escaparam às mãos e olhos dos colonizadores. Estes utilizaram suas categorias classificatórias para apreendê-los, reconhecendo-os como gentio da terra, índio ou tapuia. E utilizando adjetivações para sua cultura como selvagem e bárbara.

No Acaracú, os nativos foram classificados e registrados nos inventários, como negros, gentios da terra, índios e tapuias. No inventário de Antônio Correia Peixoto, foram declarados como seus escravos: a tapuia Margarida e outro chamado Teodósio.20 Os escravos Luzia e Mandú foram classificados, respectivamente, como sendo tapuia e gentio da terra.21Outros cativos foram qualificados como pertencente a uma etnia indígena, como Gracia do gentio Caratihu.

Da mesma forma, a pigmentação da pele e as relações interétnicas foram utilizadas para classificá-los como: crioulos, pardos, cabras, mulatos e curibocas. Estas classificações não ficaram restritas aos inventários, estavam presentes em outras documentações, como nos livros eclesiásticos, passando a ter outra identidade.

No livro Remanejamento da pecuária na Zona Norte do Estado do Ceará, organizado a partir da leitura de documentos das "Relações das plantações e criações de gado existente no termo da Vila de Sobral – 1788” foram relacionados: “gado caprino: 13.005; gado ovino: 7.336; gado cavalar: 14.578; gado vacum: 80.447; instrumentos agrícolas: 4.232 e escravos: 1.424.22

Essa relação teve como finalidade taxar impostos para o patrimônio da Câmara da Vila, sobre as fazendas de criar e sítios de lavouras. Foram levantadas 826 propriedades, pertencentes a 565 proprietários. Nestas propriedades, em 491, delas existiam 1.432 escravos e 335 delas não declararam ter cativos, sendo assim a média de 2,9 escravos por propriedade.

Da totalidade dos escravos, 172 foram declarados como machos, 79 fêmeas, 78 registrados como escravos e 1.103 não identificados quanto ao sexo. Entre os proprietários arrolados, 52 possuíam apenas um escravo. O número maior era do Coronel Jerônimo Machado Freire, que disse possui 73 escravos, nas suas diversas propriedades, sendo 34 não identificados, 28 machos, uma fêmea, um escravo

20 Inventário post mortem de Antônio Correia Peixoto, 1755, CAIXA 07. Arquivo do NEDHIR/UVA. 21 Inventário post mortem de Inês Alvares, 17165, CAIXA 01. Arquivo do NEDHIR/UVA. 22 FROTA, Luciara S. de Aragão (Org.). Estudo do Remanejamento da Pecuária na Zona Norte do Estado do Ceará. Fortaleza: SUDEC, 1974, vol. 1, p. 195.

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alugado, dois escravos de fábrica e oito declarados apenas como escravos. Outro grande proprietário de escravo foi o Cap. Pedro da Rocha Franco, que detinha 39 escravos, quando fez seu testamento no ano de 1754.23

Outro documento para analisar a presença de cativos na região estudada são os censos. No censo de 1804, a população da Vila de Sobral era composta de 9.952 habitantes. Os brancos eram 2.781, pretos e pardos livres, 4.193 e pretos e pardos escravos somavam 2.978. Ou seja, 72% da população eram compostos por negros e pardos (livres e escravos).24 Já em 1808, para a Vila de Sobral foram registrados 14.629 habitantes, sendo 3.636 brancos (25%), 397 índios (2%), 2.907 pretos (14%), 8.589 mulatos (59%). Segundo esses dados, a população afro-brasileira era de 63%.25

Em 1813, foi registrada na Vila de Sobral uma população de 15.218 habitantes. Os pretos e os mulatos correspondiam, respectivamente, a 1.061 e 1.022 escravos. Este mapa da população dividiu-os quanto ao sexo (homens e mulheres) e seu Estado (casado, solteiro e viúvo). Sendo os pretos cativos num total de 528 homens e 533 mulheres. Os mulatos escravos correspondiam a 448 homens e 574 mulheres. Os cativos casados eram 413, os solteiros 1.461 e os viúvos 209.26

Os dados demonstram como a escravidão na pecuária concentrou-se em pequenos grupos, em razão do tipo de atividade econômica que exigia pouca mão-de-obra no trato com o criatório. Segundo Funes, “A pecuária não demanda um número significativo de mão-de-obra; a lavoura não é extensiva não configurando a estrutura de plantation, daí a predominância, em relação a outras áreas onde a escravidão foi significativa, de pequenos plantéis”.27

Nos sítios de plantar lavouras, localizados em sua maioria nas serras da Uruburetama, Meruoca e Rosário, são pouquíssimos os que detêm escravos. Estes eram administrados pelos rendeiros ou por moradores, não exigindo a presença de um grande número de escravos, sendo o trabalho baseado na unidade familiar cuja renda era destinada apenas à subsistência e para suprir o mercado da Vila de frutas, mel, rapadura e cachaça. O maior número de escravos estava nas fazendas de criar, atividades domésticas, na agricultura, em particular nas áreas de cultivo de algodão.

A presença de escravos numa região de pecuária leva a perceber o seu emprego no salgamento das carnes, na curtição dos couros para transformação em solas, necessitando dessa forma do uso de escravos com conhecimento profissional; na lida

23 O Capitão-Mor Pedro da Rocha Franco e sua prole. Revista do Instituto do Ceará (RIC), Ano XXXVI, p. 394, 1922. 24 SILVA, Pedro Alberto de Oliveira. O declínio da escravidão no Ceará. Recife: Dissertação de Mestrado - UFPE, 1998, p. 49. 25 Ibidem, p. 50. 26 Censo da População da Capitania do ceará, 1804. Manuscritos II, 32, 23, 3. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 27 FUNES, Eurípedes A. Negros no Ceará…, p. 105.

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do gado, no processamento de salga e secagem da carne na sombra, além de ser utilizado em maior monta, também, na agricultura, em particular no período do apogeu do algodão.

Como se pode perceber pelos dados referidos, a região do Acaraú foi uma das áreas de maior concentração de população negra (escrava e liberta), aspectos esses que passaram despercebidos aos olhos dos estudiosos da História do Ceará, em particular da região Noroeste. A especificidade do uso da mão-de-obra escrava está na diversificação do emprego dos escravos como tangedores de gado, vaqueiros, na produção de charqueadas, no trabalho doméstico, na lavoura, em especial de algodão, e atividades urbanas. Todavia, não basta percebê-los como força de trabalho, mas como atores sociais que, mesmo escravizados, gestaram diversas estratégias que possibilitaram a sobrevivência na ordem escravista e constituíram a sua história.28 Negros forros: senhores, trabalhadores livres e pobres

As diversidades de estratégias utilizadas por negros escravos possibilitaram a

libertação de muitos deles. Estes adquiriram sua alforria através dos bons serviços prestados, da compra ou troca por outros bens. Nobre transcreveu dados dos livros de notas da Vila de Fortaleza, onde foram registradas diversas cartas de alforrias como a “carta de alforria do criolo Severino”, passada em 1738 ou o “papel de alforria que faz Nazária Ferreira a uma sua escrava tapuia por nome Clara” e a “carta de alforria e liberdade que dá Teresa Maria de Jesus, mulher de Manuel Ferreira da Cruz, a uma escrava do gentio da costa da Mina por nome Maria”29, em 1740.

O escravo Gonçalo conseguiu sua liberdade sendo trocado por outro escravo, como consta dos autos de conta dos bens do órfão João filho, do inventariado João de Sousa da Conceição:

que o escravo cabra denominado Gonçalo, em cujo valor tocou a este órfão quarenta e nove mil quinhentos e secenta reis, a viúva, mai do mesmo órfão, que nelle detinha maior parte, o forrou, por ele havia dado por si hum escravo moço de nação angolla denominado Francisco que existe em seo poder da mesma viúva, trabalhando para ella, e o mesmo órfão.30

28 SILVA, Eduardo e REIS, J. J. Entre Zumbi e Pai João, o escravo que negocia. In: Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. 29 Publicação do Arquivo Público Estadual, no. 01. Fortaleza – Ceará, 1987, p. 19; 25 e 26. 30 Inventário post mortem de João de Sousa da Conceição (1803), caixa 37. Arquivo do NEDHIR/UVA.

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Isso nos possibilita pensar as diversas estratégias de sobrevivência e de ascensão social, passando da condição de cativos para forro, chegando, às vezes, a serem proprietários de terras e de pessoas.

Dentre eles, podemos citar Manuel de Souza Leal, preto, do gentio da Guiné, que segundo os Livros de Registros de Licenças da Câmara, Inventários e Testamentos, foi, durante muito tempo, encarregado do contrato das carnes verdes da Villa de Sobral, porteiro do Juízo dos Órfãos, proprietário de terras, além de possuir um comércio de venda de todos os gêneros e de ser membro e benfeitor da Irmandade do Rosário.

Manuel Sousa Leal casou com Victorina da Silva Dorneles, em 1761, na matriz de Nossa Senhora da Conceição, do povoado da Caiçara, conforme registro:

Aos vinte e oito do mês de Junho de mil setecentos, e hum, nesta matriz pelas coatro horas da tarde, corridos os banhos sem impedimento se receberão por palavras do presente na forma do Sagrado Concílio Tridentino, Manoel de Sousa preto do gentio da guiné, forro, escravo que foi de Francisco Lopes Galvão, e Victoria da Silva escrava que foi de Antonio Coelho de Albuquerque, filha do preto Antonio Benguella, escravo do mesmo Antonio Coelho, e de sua mulher Catarina da Silva, índia; e logo tomarão as bênçãos nupciais, conforme os ritos, e cerimônias da Igreja, sendo presentes por testemunhas o Capitão Manoel Carneiro Rios, e Miguel Correia de Miranda, homens casados, fregueses deste curato e moradores nesta povoação, de que fiz este termo em que me assigno.31

Tiveram 11 filhos, dos quais 02 faleceram, um, no ano de 1772 e o outro, em

1787. No auto de seu inventário, Victorina, como inventariante, declara o nome de seus filhos, a idade e a condição civil:

Francisco de Sousa, solteiro e viúvo; Manoel com idade de 25 anos; José com 20 anos; Antonio com 19 anos; Domingos com 09 anos; Alexandre com 05 anos; Ignácia de Sousa, casada com Francisco Gonçalves de Almeida; Matilde, solteira, com 15 anos e Joana com 14 anos. 32

31 Livro de Batismo e Casamento, No. 01, (1725-1950), fl. 49 v. Arquivo da Cúria Diocesana de Sobral. 32 Auto de Inventário de Manoel de Sousa Leal, fl. 1, 1796. Arquivo do NEDHIR/UVA.

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Manuel de Sousa Leal declara que as suas propriedades, em 1788, eram uma terra de criar gados de “um quarto de terras de cumprido com meya légoa de largo”33 , um sítio de plantar lavoura com “meya legoa de terra de cumprido e meya de largo…” . Em sua fazenda de criar, tinha “20 gados caprinos, 19 gados cavalar, 251 gados vacum, 03 escravos e em seu sítio de plantar lavoura, denominado São Pedro, produzia mandioca, milho, feijão e algodão. O algodão plantado, em duzentas braças de terra, produziu cinqüenta arrobas e meia”.34 A produção de algodão foi vendida para Pernambuco. Todas estas informações foram dadas a Câmara e compuseram o livro de registro de plantação do ano de 1788. Ao tratar da origem da cidade de Sobral, Araujo diz que:

A parte central, exatamente cercando as casas da povoação, tocou ao filho Matias Mendes Machado que era soldado servindo na guarnição do forte de N. Sra da Assumção, fortaleza, que foi assim o sexto proprietário. Por residir em fortaleza, impossibilitado de ocupar e administrar estas terras, o soldado Matias as vendeu ao preto forro Manoel de Sousa Leal era negro natural da Àfrica, nascido na costa da Mina casado com Victorina da Silva Dorneles, fila de Antonio natural de Angola e escravo do Cap. Antonio Coelho de Albuquerque..35

Em seu inventário, feito em 27 de Novembro de 1795, seus bens eram de

555$480 rs. Dentre esses bens, podemos citar instrumentos agrícolas, bens móveis, trastes velhos, moradas de casas aforadas a Nossa Senhora do Rosário, sítio de plantar, dívidas a receber e a pagar. Também era proprietário de escravos, entre eles, Joana, originária da Costa da Mina, com 30 anos de idade, avaliada por 100$000 rs, doada como dote para o casamento de sua filha Ignácia com o forro Francisco Gonçalves de Sousa de Almeida; Anastácia, com 12 anos de idade, muito doente do fígado e valendo 30$000 rs. Possuía, ainda, outro escravo que não temos informações sobre ele.

Seus filhos Francisco de Sousa Leal e Inácio de Sousa Leal foram membros da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos de Sobral, fundada em meados do século XVIII, e ocuparam o cargo de irmãos de Mesa, no ano de 1798, e tiveram ainda como companheiros e irmãos seus escravos, Ventura e João, respectivamente. Ela congregava como irmãos, negros de diversas etnias e condições sociais. Era

33 FROTA, Luciara S. de Aragão (Org.). Estudo do Remanejamento da Pecuária na Zona Norte do Estado do Ceará…, p. 195. 34 Ibidem, p. 196. 35 ARAÚJO, Sadoc de. História da cultura sobralense. Sobral: Imprensa Universitária, 1978, p. 26-27.

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administrada por uma Mesa diretora, por um juiz, escrivão, mordomos e escolhia anualmente um rei e uma rainha do Congo.

O tenente Manuel de Sousa Leal teve sua vida vinculada a Irmandade do Rosário dos pretos. Ele participou como membro, teve seus filhos batizados e casados, vendeu terreno para o patrimônio da igreja dos pretinhos, cuja terra foi aforada e seus chãos possibilitaram capitais para serem investidos na referida igreja e nos seus festejos. Sua moradia era edificada próxima as terras da igreja dos pretinhos. Como devoto a Nossa Senhora do Rosário, provavelmente, participou de várias celebrações e festejos. Pôde votar e ser votado para escolha dos cargos da Irmandade e do reinado do congo. Nesta capela assistiu missas, participou de cerimônias sacramentais e após o seu falecimento teve seu corpo encomendado e sepultado. Ele faleceu com 86 anos, em 27 de novembro de 1795, sendo sepultado na Capela do Rosário, conforme registro de óbito:

Aos vinte, e oito de Novembro de mil, sete centos, e noventa, e sinco faleceo da vida prezente com todos os Sacramentos Manuel de Souza Lial de idade de oitenta, e seis annos cazado com Victorina Dornelles, moradores no Rozario e foi sepultdo o seo corpo em habito Franciscano na Capela do Rozario filial desta Matriz do Sobral encomendado por mim, de fiz este assento, e asignei. Joaquim da Costa Mendonça. Cura e Vigro da Vara do Sobral.36

Outro exemplo de negros libertos é o de Manuel Gomes Correia do Carmo e sua

esposa Germana de Sá e Oliveira. Esta fora escrava do Cap. Antônio Coelho Albuquerque. O referido Manuel era professor na Vila Distincta e Real de Sobral e vivia de sua escola de meninos. Araújo, ao comentar sobre a cultura sobralense informa que ele foi o primeiro professor da Vila:

Esta honra deve ser atribuída ao preto Manoel Gomes Correia do Carmo que desde de 1761, pelo menos, mantinha sua escola de ensinar meninos nesta povoação da Matriz de Nossa Senhora da conceição do Acaraú, tirando o sustento do trabalho de alfabetizar. Foi ele, realmente, o fundador da primeira escola existente na Caiçara, Natural de Olinda onde nascera em 1723, era homem de cor, filho de natural de Antonia Gomes, preta forra, escrava do Conego Mestre-escola Bernardo Gomes Correia, cujos sobrenomes herdou(…). emigrou para o Ceará, residindo inicialmente em amontada onde passou rápida temporada. (…) Evidentemente seus alunos não eram os filhos de famílias de destaques, já que os preconceitos raciais do

36 Livro de Óbitos No. 02, 1774-1798, fl. 247. Arquivo da Cúria Diocesana de Sobral.

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tempo da escravatura impedia que um preto fosse preceptor de um branco.37

Manoel Gomes aparece como testemunha em diversos casamentos de negros

escravos, libertos e livres. No ano de 1764 foi testemunha de “Luzia Ferreira da Ponte forra natural do Recife, filha de Anna Saldanha do Gentio de Angola, solteira com Pedro Quaresma forro do gentio de Angola”.38 Em 1766, participa como testemunha do casório de “Manoel Ferreira da Silva filho legítimo de Albino Ferreira preto forro natural da freguesia da Luz, e de Antonia Dias natural da Vila Viçosa americana, com Eleusa da Costa”.39 Em 1767, ele testemunha quatro casamentos: de Francisco do Gentio da Guiné com Andreza, criola, ambos eram escravos de Manuel Ferreira Torres; de Teodozio Pereira, filho de José Correia do Gentio de Angola e de Margarida da Silva, natural do Ceará, com Joana Marques da Costa, viúva; de Ventura, do gentio da Guiné, com Luzia da Costa, filha legítima de Manuel, preto, escravo; dos escravos do Capitão Domingos Rodrigues Lima, Mateos e Ana, ambos do gentio da Guiné.40 Em 1788, ele testemunha o casamento de Paulo com Maria, naturais do Gentio de Angola. 41

Considerações finais

A temática dos negros (escravos, livres e libertos), possibilita levantar diversas

questões de como numa sociedade eminente rural, eles construíram vivências baseadas em solidariedade e tensão, engendrando estratégias para se alforriarem, adquirirem bens e construírem seus espaços de sociabilidades, como nas irmandades. Lembramos que aqueles que se tornaram proprietários de homens, terras e animais, devem ser considerados como exceção, pois, em sua maioria, os negros encontravam-se no rol de escravos e livres pobres.

37 ARAÚJO, Sadoc de. História da cultura sobralense…, p. 26-27. 38 Livro de Casamento no. 01, 1741-1769, fl. 221. Arquivo da Cúria Diocesana da Sobral. 39 Ibidem, fl. 121, (ACDS). 40 Ibidem, fl. 121, (ACDS). 41 Ibidem, fl. 221, (ACDS).

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No caminho das mulas (tropas): a instituição da escravidão no planalto da província de Santa Catarina, 1778 - 1788

Renilda Vicenzi1

O escravo na província: algumas considerações

A composição étnica de Santa Catarina é assim definida: majoritariamente

descendentes de alemães e italianos e minoritariamente, indígenas e negros. Esta concepção tem por pressupostos os homens que passaram a viver nesta província a partir do século XIX, isto é, as levas imigratórias de alemães e italianos.

Podemos dizer que o indígena foi desterritorializado com a chegada dos “colonizadores” europeus e seus descendentes, refugiando-se em espaços de difícil acesso e com declínio demográfico significativo.

O negro – africano ou descendente - trazido como escravo fora submetido a um sistema de escravidão que lhe roubou a identidade, tendo sua vida periferizada pela ordem política e econômica. O significado de ser negro no contexto de exaltação do europeu não possibilitou a inserção dele na vida política, seja através da ideologia do branqueamento ou pelas práticas de discriminações cotidianas.

A identidade em Santa Catarina se construiu pela negação do negro2:

O Estado não dependeu da mão de obra escrava. (…) os negros que aqui ficaram foram suplantados pelo contingente de imigrantes. (…) Graças à imigração, regiões antes mergulhadas no atraso e na estagnação se desenvolveram e progrediram. (…) Foram a raça, o vigor e a superioridade do imigrante europeu, assim como o seu trabalho e a sua inteligência, que construíram um sul desenvolvido. (…) Ao contrário de outras regiões, foi a não dependência da mão de obra escrava, principalmente, que possibilitou tudo isso. (…) O preenchimento deste espaço com uma raça superior (…) a sua vocação européia pôde desenvolver-se graças à ausência do Negro.

Em muitos momentos esquecidos pelas políticas públicas e pesquisas científicas,

os negros deixaram de fazer parte do perfil étnico do Sul do Brasil. Ou invisibilizados pelas várias formas de representação literária e política, foram segredados social e espacialmente, de modo a serem tratados como não existentes.

1 Doutoranda em História – UNISINOS / São Leopoldo/RS. Professora do Curso de História da UFFS - Campus Chapecó. 2 LEITE, Ilka Boaventura. (Org.) Negros no sul do Brasil: invisibilidade e territorialidade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1996, p. 49.

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Significativa parcela da literatura catarinense de inspiração positivista atribui todo o ‘sucesso’ e progresso econômico do Estado exclusivamente à tradição europeia, ocorrendo uma participação reduzida do escravo negro na formação étnica e econômica catarinense.

Pesquisas tradicionais sobre os descendentes de africanos em Santa Catarina afirmam sua especificidade com relação a outras regiões do país. Primeiro, pelo passado colonial, afirmar que o negro teve e tem presença rara, inexpressiva ou insignificante, atribuindo a isso a inexistência de um sistema escravista. Segundo, que existiram relações mais democráticas e igualitárias, em função do modelo econômico e de um menor contingente de escravos. Reproduziram-se representações simplistas para o pano de fundo do papel desempenhado pelos negros, e contribuindo, assim, para uma simplificação da história do escravo3 negro.

De acordo com Cabral4: “[…] não é, pois de admirar, com a reduzida percentagem de cativos existentes em Santa Catarina que nada ou quase nada tenha ficado em nossa literatura e em nossa história a respeito”. Criaram-se mitos a cerca da escravidão, como, evidenciando que os senhores possuíam menor número de escravos e trabalhavam lado a lado com eles, ou, os negros eram raros e não ameaçavam os interesses dos brancos.

No litoral eram pequenas e médias propriedades, opondo-se ao sistema de plantation do restante da colônia. O território aparece vazio de gente e de impulsos econômicos para projetá-lo no cenário nacional. Num primeiro momento é apenas ponto de apoio da navegação para a bacia do Prata e no interior da Província, como rota do charque, isto é, terras de passagem.

Não podemos simplificar a pesquisa e a análise histórica comparando a província de Santa Catarina na atividade da pesca e do gado, com as províncias de Pernambuco e da Bahia na atividade canavieira.5 É importante não nos determos somente na analise do grau de contingentes de escravos, mas na efetivação do trabalho escravo. Nenhuma região brasileira (maior ou menor grau) passou sem a mão de obra escrava africana ou indígena. Em Santa Catarina, a utilização de escravos se fez presente nas expedições de conquista e ocupação, na construção dos fortes, nas fazendas de gado, nas armações baleeiras, servindo aos funcionários do governo, nos serviços de navegação e cabotagem (costeira), aos comerciantes, aos serviços domésticos,

3 Walter Piazza em sua obra ‘o escravo numa economia minifundiária’, realiza nas conclusões (p. 219-220) afirmações acerca da pouca participação do negro na economia da Capitania e depois Província de Santa Catarina. 4 CABRAL, Oswaldo Rodrigues. História de Santa Catarina. Florianópolis: Lunardelli, 3ª ed., 1987, p. 77. 5 SCHWART, Stuart. Segredos internos. Engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

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enfatizando-se o comércio e a pesca, mas foi o setor agrícola que absorveu uma quantia mais significativa.

Houve a presença escrava nas diferentes regiões da província catarinense. É possível citar que, os primeiros negros trazidos foram para Desterro, na condição de escravos, pelos imigrantes açorianos. O número de escravos por família era pequeno e estes desenvolviam vários ofícios.6 No planalto objeto de nossa investigação, denominado campos das lagens, o escravo fora introduzido, as atividades de criação de gado, extração de madeira, cultivo do solo e domésticas. Mas, neste espaço, a atividade principal girava em torno da criação de gado associada ao caminho das tropas.

Novos homens, velhas estruturas nos campos de Lages

O planalto catarinense, ou ‘região dos campos’ de Lages, insere-se no contexto de ampliação do caminho das tropas, isto é, no itinerário entre Sorocaba e Viamão7, estabelecendo a ligação entre o Sul e o Sudeste brasileiro. É a partir do século XVIII que começa a povoação da região ligada ao estabelecimento do gado muar8, vacum, cavalar (cavalos, éguas, burros e potros) e ovinos.

Conforme Machado9:

Com o caminho das tropas, formou-se um longo curso de fazendas de invernada e criação, locais de importância fundamental ao repouso e engorda do gado extenuado pelas longas jornadas, o que acabou por transformar esta região em fronteira de expansão da pecuária paranaense e gaúcha.

O transporte dos animais exigia locais de pouso, pois era lento e a distância

percorrida longa. Nos mapas a seguir temos o itinerário.

6 CARDOSO, Fernando Henrique; IANNI, Octávio. Cor e mobilidade social em Florianópolis. São Paulo: Nacional, 1960; PIAZZA, Walter. A escravidão negra numa província periférica. Florianópolis: Garapuvu/Unisul, 1999. MAMIGONIAM, Beatriz G. Africanos em Santa Catarina: escravidão e identidade étnica (1750-1888). Seminário Internacional Nas Rotas do Império: Eixos Mercantis, Tráfico de Escravos e Relações Sociais no Mundo Português. Rio de Janeiro, 2006. 7 DEL PRIORI, Mary; VENÂNCIO, Renato. Uma história da vida rural no Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, p. 77. 8 A mula (híbrido) é o resultado do acasalamento do jumento com a égua. 9 MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado: a formação e a atuação das chefias caboclas (1912-1916). Campinas: Ed. da UNICAMP, 2004, p. 61.

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Caminho das Tropas: Mapas que demonstram Lages como ponto de integração para os caminhos que ligavam o Sul ao Sudeste brasileiro.

Mapa 01

Fonte: SANTOS, 2004.

Mapa 02

Fonte: EHLKE, 1989.

Caminhos conforme Mapa 01 – Legenda: 1. Caminho da prata: Colônia de Sacramento ↔ Montevidéu ↔ Rio Grande ↔ São José do

Norte ↔ Araranguá ↔ Laguna. 2. Caminho de Souza Farias, partindo do Morro dos Conventos (1771/72) :

Araranguá ↔ Lages. Liga-se ao caminho 1. 3. Caminho de Cristovão Pereira, partindo das proximidades de Palmares: Litoral norte de

São Pedro ↔ Santo Antônio ↔ São Francisco de Paula ↔ Passo de S. Vitória ↔ Lages. 4. Caminho das missões (1816): São Borja ↔ Cruz Alta ↔ Passo de S. Vitória ↔ Lages.

De acordo com o viajante alemão Robert Avé-Lallemant, ao visitar os campos de

Lages em 1858: “Todo meu desejo e esperança de repouso estavam em Lages, lugar principal do planalto”.10 De Lages em direção aos campos de Curitiba e São Paulo. O

10 AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagens pelas províncias de Santa Catarina, Paraná e São Paulo (1858). Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980, p. 67.

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tropeirismo dos séculos XVIII e XIX foi responsável pela abertura de estradas e caminhos que ligaram o litoral ao interior. Neste sentido, o planalto passa a servir de elo para o transporte de mercadorias destinadas ao centro comercial da colônia portuguesa.

A estrada dos Conventos ou Caminho de Souza Farias, seguindo em direção a Sorocaba, foi responsável pela inserção dos campos de Lages na rota dos tropeirismo. Logo, este trânsito de animais e homens possibilitou a criação da Vila de Lages no século XVIII. Nos campos de Lages, a vida econômico-comercial não dependia exclusivamente do mercado externo, mas do mercado paulista e mineiro.11

Evidencia-se que o desenvolvimento econômico e a ampliação demográfica nos campos de Lages (séculos XVIII e XIX), esteve relacionado diretamente à atividade pastoril e ao comércio do gado, no caminho das tropas, interligando a região com outras províncias e utilizando escravos nestas atividades. Neste sentido, Nilsen Borges enfatiza12:

Em um contexto mais amplo, em conformidade com estudos recentes sobre a importância da escravidão no mercado interno e na dinâmica da economia de abastecimento […] Lages estava ligada às demais localidades e províncias […], não apenas pelos caminhos das tropas e comercialização de animais, mas também pelo grau de importância da mão-de-obra cativa na estratificação sócio-econômica.

O povoamento ocorreu tendo em vista dois processos. O primeiro relaciona-se à

continuidade dos campos de Curitiba em direção ao Sul, organizado por criadores de gado e por incentivo do Estado no século XVIII, os paulistas fundaram Lages em 22 de maio de 1771, no contexto do estabelecimento do caminho das tropas. Daí a vila de Lages ter sido fundada por Corrêa Pinto13 a mando do presidente da província de São Paulo, o Morgado Matheus. Segundo Cabral,14 11 Na obra História Geral da Civilização Brasileira, organizada por Sérgio Buarque de Hollanda, volume 2, há referência da ocupação das terras do Brasil Meridional enfatizando o fornecimento de mulas e gado para São Paulo e para as Minas (p. 475-476). 12 BORGES, Nilsen. Terra, gado e trabalho: sociedade economia escravista em Lages (1840-1865). Florianópolis: Dissertação de Mestrado, UFSC, 2005, p. 165. 13 Antônio Corrêa Pinto nasceu no antigo arcebispado de Braga, ao norte de Portugal, filho de Luis Corrêa Pinto e Antonia Isaura de Macedo. Casou em 1759 com Maria Antonia de Jesus, filha do alferes Baltasar Rodrigues Fan (Port.) e Isabel da Rocha do Canto (SP).. O capitão-mor regente e fundador, Antônio Correia Pinto de Macedo, tinha 60 anos de idade em 1777. Morreu em 1783 com 66 anos. PEREIRA, Claúdio Nunes (org.). Genealogia tropeira: Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Séculos XVII, XVIII E XIX. 2006, vol. I, p. 111-125. 14 CABRAL, Oswaldo Rodrigues. História de Santa Catarina…, p. 74-75.

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Corrêa Pinto chegou ao local que lhe fora indicado, nas Taipas em novembro de 1766 e logo tratou de levantar um a capela de madeira, colocando-a sob a invocação de Nossa Senhora dos Prazeres, da especial devoção do Morgado. Teve, entretanto, de mudar por três vezes, o local da fundação, devido à impropriedade do terreno, até que, a 22 de maio de 1771, reuniu os habitantes e declarou fundada a vila de N. Sra. Dos Prazeres das Lages […]. Corrêa Pinto permaneceu na vila, […]. Dela, entretanto, partiram os pioneiros que descobriram e desbravaram os Campos Novos e Curitibanos.

O segundo, iniciado no século XIX, partiu da província do Rio Grande do Sul,

com famílias oriundas dos campos de Vacaria e de Passo Fundo. À medida que as paragens de gado aumentavam novas vilas criavam-se, atraindo cada vez mais homens ligados à pecuária.

No planalto dos campos gerais da província catarinense, a presença de africanos esteve, sobretudo, relacionada à atividade dos tropeiros. O tropeirismo era realizado entre São Paulo e São Pedro do Rio Grande, locais onde a escravidão era presente, e no caso do último relacionado com a pecuária. No Rio Grande do Sul, a escravidão era presente na indústria do charque.

A presença escrava no planalto catarinense foi parte do processo de povoamento e exploração realizado pelos paulistas em direção ao Sul. Para Joana Maria Pedro15:

No século XVIII, caçando o gado solto e selvagem nos vastos territórios entre a Capitania de São Vicente e a Colônia de Sacramento e levando-o através de Santa Catarina para as áreas de mineração. Nessa atividade destacou-se […], a região do Planalto, especialmente Lages.

Presa a esta realidade, onde prevaleceu à continuidade da ‘estância’ riograndense,

temos a formação populacional do planalto.16

No ano de 1728, Francisco Souza Faria conseguiu abrir uma picada que subia pelo rio Araranguá, atingia os campos de Lages e daí seguia para Curitiba e São Paulo. Por esse novo caminho, o gado aprisionado no Rio Grande passou a seguir diretamente para São Paulo […]. O comércio de gado tornou comum pelos

15 PEDRO, Joana Maria, et al. Negro em terra de branco: escravidão e preconceito em Santa Catarina no século XIX. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, p. 17. 16 SANTOS, Sílvio Coelho dos. Nova História de Santa Catarina. Florianópolis: Edição do autor, 2ª ed., 1997, p. 52-53.

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dois séculos seguintes à presença de tropas no caminho que seguia do Rio Grande a São Paulo. E, paralelamente, foram surgindo nos locais de pouso e de descanso do gado, especialmente nos campos de Lages, os primeiros moradores permanentes.

Sendo este território a passagem e o estabelecimento das tropas de gado, principalmente muar e vacum oriundos da criação realizada na província vizinha, o tropeirismo ensejou a principal atividade econômica. Os animais viviam soltos e as divisas ou limites entre as propriedades eram, principalmente, os marcos naturais, como rios e riachos. Além da criação do gado, houve a extração e comercialização de madeira.

Para o trabalho no campo, isto é, na lida com os gados, o escravo tornava-se indispensável. Portanto, o comércio negreiro era intenso, desde a África (internacional) até os portos e pontos de venda17 no Brasil. Conforme afirma Manolo Florentino18:

Entre a eclosão da Revolução Francesa e o fim do tráfico legal para o Rio de Janeiro, importavam-se africanos, sobretudo, para garantir a expansão das plantations de açúcar e de café do Sudeste, o crescimento das estâncias de gado do Sul do Brasil, a economia urbana e a produção para o abastecimento. Por isso, boa parte dos 715 mil escravos africanos desembarcados no porto do Rio era praticamente redestribuída, por via marítima, para as províncias do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo.

Havia mão de obra disponibilizada pelo comércio de almas. Os fazendeiros paulistas e riograndenses, que se estabeleciam ao longo do planalto na província de Santa Catarina, mantinham contato com o comércio escravagista do Rio de Janeiro.

Gradativamente, com o estabelecimento dos fazendeiros em suas propriedades e com o trabalho dos escravos, começaram a se construir muros de pedras, as denominadas ‘taipas’. Estes muros erguidos em pedra eram destinados ao cercamento de espaços, para divisas com outras propriedades ou espaços internos da

17 Manolo Florentino na obra - Em costas negras – descreve a distribuição dos africanos a partir do porto carioca no início do século XIX, indicando as cifras nos carregamentos para Santa Catarina. 18 FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo; JUCÁ, Antônio Carlos; CAMPOS, Adriana. (org.). Nas rotas do Império: eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português. Vitória: Edufes; Lisboa: IICT, 2006, p. 186.

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fazenda, como hortas, jardins.19 A mão de obra escrava era utilizada em diversas atividades como de peão, lavrador, na extração da madeira e serviços domésticos.

Em 1777, o governo da Capitania de São Paulo, o Capitão-General Martins Lopes Lobo de Saldanha, solicitou o primeiro cadastramento da população da vila de Lages. Antonio Corrêa Pinto de Macedo (capitão-mor regente da vila de Nossa Senhora dos Prazeres do Sertão de Lages, Fronteira da capitania de São Paulo) declarou que a população era de 662 pessoas. Dessas, eram 367 entre brancos e pardos, 94 índios, 119 cativos e 10 pretos forros. . Neste primeiro senso populacional temos 18% de escravos e 1,5% de forros, possibilitando afirmarmos sua presença na composição social.

A pecuária extensiva foi uma das atividades econômicas que acentuou maior distribuição da mão de obra escrava na província de Santa Catarina20, embora o número de escravos, se comparado, ao nordeste açucareiro e ao sudeste minerador, fosse de menor expressão.

Na análise da população escrava no planalto serrano catarinense, Cabral informa21:

[…] Quanto à formação social obedeceu ela ao tipo geral das sociedades pastoris. Em torno dos senhores das terras e do gado, da sua família que constituíam o núcleo da organização – as tarefas pesadas do pastoreio repartiam-se entre os escravos e os agregados, aqueles parte do domínio como propriedade do senhor, estes, a ele ligados pelos laços invisíveis, mas indiscutíveis de uma lealdade absoluta, dum pleno respeito e duma tal dependência econômica.

19 SANTOS, Fabiano Teixeira dos. Fazenda serrana: arquitetura pastoril nos Campos de Lages e Cima da Serra, séculos 18 e 19. In: MAESTRI, Mario (org.). Peões, gaúchos, vaqueiros & cativos campeiros: estudos sobre a economia pastoril no Brasil. Passo Fundo: UPF, 2010. 20 Ressaltamos que os escravos em nenhum momento formaram a maioria da população da província. Em Lages, no ano de 1840, a população escrava representava 18, 89%; em 1851, eram 14%; em 1872, eram 10,9% e, em 1881, houve o aumento para 20%. No ano de 1875, quando o número de escravos em Lages supera o da capital Desterro. Era o segundo lugar na província, totalizando 1.658, atrás somente de Laguna. Chama a atenção, a partir dos percentuais citados e levando-se em consideração que já estava em vigor a Lei do Ventre Livre (1871), que o escravo representava nos campos de Lages uma significativa parcela da mão de obra e de capital aos seus proprietários. COSTA, Licurgo. O continente da Lages sua história e influência no sertão da terra firme. Florianópolis: FCC, 1982; MARCON, Frank. Visibilidade e resistência negra em Lages. São Leopoldo: Unisinos, 1998. (Dissertação do Mestrado). 21 CABRAL, Oswaldo Rodrigues. História de Santa Catarina…, p. 93.

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É possível explicar a atuação e a participação escrava no planalto, partindo da concepção que neste espaço houve a formação de uma sociedade escravista, pois a pecuária extensiva e a indústria do charque, aliadas à locomoção do gado de São Pedro do Rio Grande para São Paulo, propiciaram a utilização da mão de obra escrava. Sendo assim, incidiu-se um vasto fluxo de escravos africanos e afrodescendentes para esse local.

A povoação por fazendeiros na segunda metade do século XVIII – os sesmeiros22 – propiciou gradativamente a formação de núcleos populacionais, pois traziam consigo suas famílias, animais e a mão de obra escrava.

há a tentação de afirmar que a escravidão estava se tornando uma instituição mais amplamente difundida em fins do período colonial do que em qualquer outra época […], estava ocorrendo no Brasil, em fins do período colonial o crescimento da economia interna e, por intermédio do desenvolvimento e da integração regionais, o início de um mercado nacional.23

Os tropeiros, mesmo que de passagem com suas mercadorias, impulsionam o

desenvolvimento econômico e populacional local. Os dados estatísticos e demográficos apontam para a existência de escravos e

descreve como oriundos do Rio de Janeiro e das áreas mineradoras. O Rio de Janeiro foi o principal porto do tráfico negreiro na América portuguesa:

em 1789 a capitania possuía 82 448 cativos, chegou há 146 060 trinta anos depois, e a 150 549 em 1823. A única resposta para este fenômeno é que o Rio de Janeiro contava com um poderoso fluxo externo e contínuo para a reposição de sua escravaria, representado pelo tráfico atlântico de africanos. […] Ao menos no que se refere ao século XIX, há sólidas indicações de que o Rio provia por via marítima boa parte dos africanos importados pelo Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo.24

No caso do Rio Grande do Sul, o suprimento de escravos para atividade

charqueadora, especialmente a partir de 1825, era abastecido pelo mercado interno.

22 OLIVEIRA, Sebastião Fonseca de. Aurorescer das sesmarias serranas: história e genealogia. Porto Alegre: EST, 1996. Na obra há listagens de sesmeiros da província de Santa Catarina. 23 SCHWARTZ, Stuart. Escravos, Roceiros e Rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001, p. 129-169. 24 FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

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Como o Rio Grande do Sul a província de Santa Catarina também era dependente do mercado localizado no sudeste.

Nos assentos eclesiásticos

Para nos reportamos à presença escrava, utilizamos registros de batismos encontrados nas fontes eclesiásticas da Paróquia Nossa Senhora dos Prazeres de Lages. O historiador, ao trabalhar com estas fontes, entra em contato com registros realizados pela Igreja Católica, que no período possuía importância e relevância política e social.

O universo religioso instituído no Brasil desde o período colonial garantiu a instituição religiosa católica um considerável poder ao dar-lhe o monopólio da produção dos assentos batismais. De acordo com Mariza de Carvalho Soares25: “[…], o assento de batismo identifica a população, registrando, para vários fins, o nome do batizando, o nome dos pais e, no caso dos escravos, o dos proprietários”. Além disso, visualizando os padrinhos e madrinhas, podemos promover uma cartografia das redes de solidariedade e aliança que eram estrategicamente tramadas.26

No viés da organização da família escrava, em suas singularidades, e da política eclesiástica, instituída desde os primórdios pela Coroa Portuguesa que ‘incentivavam’ o batismo aos negros escravos, garantindo desta forma a ampliação do catolicismo e de seus dogmas, vamos descortinando a vida íntima na sociedade escravista. As amostras utilizadas permitem o aumento em nossa lente de observação e a variação da escala investigativa.27

Temos:28 A pia batismal é um dos espaços mais loquazes que se possa citar. Trata-se, de fato, de outro meio de se conquistar aparentados, instituindo um rito que sanciona formalmente uma aliança forjada anteriormente. O compadrio na sociedade luso-brasileira funcionou como um desses mecanismos de aparentar,

25 SOARES, Mariza. Devotos da cor: Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 26 MACHADO, Cacilda. A Trama das vontades: negros, pardos e brancos na construção da hierarquia social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri. 2008. SCHWARTZ, Stuart. Escravos, Roceiros e Rebeldes… BRÜGGER, Silvia. Minas Patriarcal: família e sociedade ( São João Del Rei- Séculos XVIII e XIX). São Paulo: Annablume, 2007. 27 REVEL, Jacques. A história ao rés do chão. In: LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 28 FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo; JUCÁ, Antônio Carlos; CAMPOS, Adriana. (org.). Nas rotas do Império…, p. 189.

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constituindo alianças desejadas por ambas as partes, pais e padrinhos, estendida a uma terceira parte, o batizado.

No período de 09 de julho de 1778 a 26 de novembro de 1788, primeiros dez

anos de povoamento de Lages, tivemos 45 batismos de escravos.29

Batismos – 1778 a 1788

Tabela 1: distribuição por sexo

Sexo Abs. %

Feminino 24 53,33

Masculino 21 46,67

Total 45 100%

Tabela 2: Mães escravas e forras

Condição das mães Abs. % Mães escravas 38 84,44 Mães forras 07 15,56 Total 45 100 %

Tabela 3: Pais

Registro que consta: Abs. %

nome da mãe e do pai 19 41,22

somente nome da mãe 26 58,78

somente nome do pai 00 00

Total 45 100 %

Fonte: Arquivo da Paróquia Nossa Senhora dos Prazeres de Lages. Livro de Registros. Batismo 1-3. Lages / SC.

29 Conforme: Livro de Registros. Batismo 1-3. Paróquia Nossa Senhora dos Prazeres de Lages. Lages / SC. Sendo 24 meninas e 21 meninos. Somente um menino com mais ou menos nove anos, os demais inocentes (zero a um ano). Com relação às mães são 38 escravas e 07 forras. Destas forras 04 casadas com escravos. O nome do pai consta em 19 registros, os demais são denominados incógnitos. Nestes registros encontramos 04 mães, 02 pais, 07 padrinhos e 04 madrinhas escravos do fundador de Lages Capitão Mor Antonio Correia Pinto.

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O batismo era a comprovação da existência do indivíduo. Esse ritual integrava-o

socialmente. Os dados apresentados demonstram que os senhores batizavam seus escravos. Neste período não temos um desequilíbrio significativo entre os sexos dos batizados, mas sim pequeno percentual de meninas maior.

O número maior de mães escravas, se comparadas às forras, pode ser explicado pela política da Coroa Portuguesa na manutenção da escravidão. O índice de crianças em que consta somente o nome materno associa-se à organização de famílias matrifocais ou de uniões conjugais não aprovadas pelo catolicismo. A presença feminina nestes registros poderá indicar o aumento no ‘plantel’ de escravos, isto é, na procriação.

Os registros com identificação dos pais de 41,22% possibilitam a interpretação da existência de casais, logo teríamos neste espaço a formação e presença de famílias escravas, apesar de inexistência de grande número de escravos por proprietários.

Segundo Slenes30:

Os índices de casamento entre escravos, a proporção de mães casadas, e a percentagem dos filhos que viviam com os dois pais, eram bem mais baixos nos plantéis pequenos (com menos de 10 pessoas) – plantéis que, por seu tamanho e instabilidade, limitavam severamente as chances de o escravo encontrar um cônjuge ou manter a família nuclear unida.

Corrêia Pinto trouxera31 escravos adultos consigo. Os mesmos foram

responsáveis pela reprodução endógena de novos sujeitos para o cativeiro.

30 SLENES, Robert W. Lares Negros, Olhares Brancos: Histórias da família Escrava no século XIX. Revista Brasileira de História. V. 8, nº 16, p. 189-203, São Paulo, mar./ago. 88. 31 Famílias que constam da "Relação do Número de Pessoas que há no Distrito de Cima da Serra, Vacaria e Lages, em 1766", conforme documento juntado por Conselheiro Mafra ao Processo Judicial da questão de limites com o Estado do Paraná (Transcrito de: Histórico da Cidade de São Joaquim, Maria Batista Marcolini): Corrêia Pinto se estabelece com 10 pessoas. PEREIRA, Claúdio Nunes (org.). Genealogia tropeira…, p. 111-112.

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Tabela 4 Escravos do ‘fundador’ Corrêia Pinto e suas participações

nos registros de batismo Batismos – 1778 a 1788

Escravos pertencentes ao Capitão-Mor Corrêia Pinto

Abs. %

Mãe 04 8,89

Pai 02 4,44

Madrinhas 04 8,89

Padrinhos 07 15,56

17 37,78

Total de batismos 45 100% Fonte: Arquivo da Paróquia Nossa Senhora dos Prazeres de Lages. Livro de Registros. Batismo 1-3. Lages / SC.

Os escravos do Capitão-Mor Corrêia Pinto representam 37,78% na participação

na pia batismal, destaque as 04 mães e os 02 pais. Em 05 de julho de 1779, o escravo Elias, natural de São Paulo casava-se com Apolinea, também natural de São Paulo.32 No dia 21 de setembro de 1779 batizava-se Ignácio33, filho de Elias e Apolinea, e como padrinho temos Adão, todos escravos de Corrêia Pinto.

A igreja não se opunha a realizar cerimônias e distribuir sacramentos aos escravos, ela facilitava e fiscalizava para não deixá-los a mercê de sua organização, desde que não significasse alteração em sua condição de homens e mulheres escravos. Africanos, pardos, crioulos tinham acesso ao casamento. Os casamentos sancionados propõem uma família nuclear, aquela que irá socializar pais e filhos no mesmo espaço.

Os casamentos entre cativos não ocorriam por acaso e não fugiam a expectativas de formar família no âmbito de relações amorosas e da cumplicidade. Ser escravo é ter humanidade, e por mais que os excessos de castigos e de trabalho procurassem eliminá-la, não era fato em todos os espaços ocupados pelos mesmos. Slenes34 afirma que no meio rural, entre um terço e um quarto dos escravos adultos casavam, podendo aumentar, dependendo da região. As uniões poderiam evitar fugas, unir escravos de diferentes fazendas e em alguns momentos impedir a venda separada do

32 Livro de Registros de Casamentos. Paróquia Nossa Senhora dos Prazeres. Lages /SC. 33 Livro de Registros de Batismos 1-3. Paróquia Nossa Senhora dos Prazeres. Lages /SC 34 Ver: SLENES, Robert. na obra: Na senzala, uma flor: esperanças e recordações da família escrava, onde realizou porcentagens de escravos casados, no século XIX em várias regiões do sudeste brasileiro.

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casal. No espaço da negociação poderia servir como controle ao senhor e como conquista aos cativos.

A escolha de padrinhos e madrinhas da mesma condição jurídica aproximava-os nas relações sociais, ao mesmo tempo em que, nas escolhas de condições jurídicas diferentes, poderiam barganhar benefícios, entre eles o da segurança. A porcentagem maior é de padrinhos livres. Para Sheila de Castro Faria, “[…] praticamente nenhum homem livre ou liberto tinha como padrinho de seus filhos algum escravo, enquanto constantemente estes últimos tinham como padrinhos pessoas livres e libertas” (FARIA, 1998, p. 292).

Vimos que escravos nasceram nos campos de Lages, outros foram trazidos por seus proprietários, oriundos do comércio interno ou internacional e foram incluídos nos censos. A propriedade suprida pela mão de obra escrava tornou exeqüível a organização da pecuária, através dos preadores de gado e com a efetivação de novos núcleos populacionais.

A fundação/criação da Vila de Nossa Senhora dos Prazeres de Lages significou um ponto de estratégia e vigilância no domínio da Coroa Portuguesa, além de ligação pelo interior da colônia e posterior do Império entre Rio Grande de São Pedro a Sorocaba.

Os dados e análises realizados têm por objetivo conduzir a novas fontes e a novas produções historiográficas acerca do trabalho escravo no interior da província de Santa Catarina.

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O Atlântico e a escravidão entre o XVII e o XVIII

Suely Creusa Cordeiro de Almeida1

Na península Ibérica a escravidão é uma herança medieval. Com a expansão ultramarina, aqueles que eram usados como escravos, nomeadamente os mouros foram sendo gradativamente substituídos pelos africanos. Em Lisboa 10% da população era escrava, mas com a anexação do Brasil, as necessidades de mão de obra para o trabalho na lavoura sacarina intensificaram a busca por uma área que pudesse se constituir em um mercado fornecedor de outra mercadoria, agora não branca, mas negra e humana, e que pudesse complementar esse circuito de trocas.2 Não entraremos aqui no clássico debate, de por que o africano e não o índio? Mas, salientaremos a importância da constituição de um mercado onde outra mercadoria que não o açúcar, pudesse complementar o circuito atlântico. Assim serão os homens e mulheres de vários locais da África que estarão na ponta contrária desse esquema.

Quando os lusos chegaram a Angola, ali a escravidão já era uma velha conhecida. O conhecimento de seus mecanismos, e a documentação produzida pelos portugueses legou o conhecimento de que ali a escravidão se fazia pela guerra, pela prática de crimes hediondos, por dívidas. Já os da região de Angola vivam a instituição escravidão de forma muito diferenciada do que foi vivido na América Portuguesa. Lá não se impunha a execução de tarefas árduas e prolongadas, não se desenraizava culturalmente o sujeito, com o traslado para outro continente completamente estranho. Mary Kingsley definiu a escravidão na África como um estado de servidão amparada por certos direitos. John Thornton, que ela era diferente, perfeitamente adequada à noção de que propriedade privada era o escravo, e não a terra. Mas, apesar das diferenças não foi difícil que ela, a escravidão, tomasse o formato de empresa necessária aos europeus. Por seu turno, a já existente prática em Angola e outros territórios da África justificavam a ação dos cristãos ibéricos, que se utilizaram do argumento da salvação das almas dos cativos, através do batismo e cristianização. Elaboraram-se linhas gerais de ação, que foram econômicas, mas também de salvação, imbricadas e indissociadas.

1 Universidade Federal Rural de Pernambuco. 2 Cf. FONSECA, Jorge. Escravos em Évora no Século XVI. Évora: Câmara Municipal de Évora, 1997, p. 127. Sobre os escravos no reino português podem ser consultados: SAUNDERS, A. C. de C. M. História Social dos Escravos e Libertos Negros em Portugal (1441 -1555). Lisboa: IN/CM, 1994, ed. original em língua inglesa, 1982. Com limites cronológicos mais amplos: TINHORÃO, José Ramos. Os Negros em Portugal. Uma Presença Silenciosa. Lisboa: Caminho, 1988.

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Em 1594 foi transportado para o Brasil uma quantidade significativa de escravos, adquiridos não só pela guerra, mas muito mais comprados nas feiras, transações realizados com os autóctones. As feiras em território africano eram acontecimentos cercados de tensão, pois ao longo de sua realização as relações poderiam descambar para a violência e a pilhagem, sem contar com os ataques furtivos para supressão das mercadorias preciosas por grupos rivais. Essas práticas acabaram corroendo as possibilidades que tinham os portugueses comerciantes que se arriscavam em Angola. O fetiche que essa mercadoria humana acabou exercendo, levou aos mais variados expedientes de violência para sua aquisição. Preciosa internamente, pois se tornou elemento de troca para aquisição de artigos de luxo, armas e munição, produtos que acabavam fazendo a diferenciação de poder entre grupos locais rivais, mas também externamente, pois era a força que movia a economia da possessão ibérica, do outro lado do Atlântico, que a pouco e pouco tomou o lugar do Oriente: o Brasil!3

Muitos dos Governadores que foram designados para Angola envolveram-se completamente nas atividades de comércio de escravos. Instituíram pesados tributos com o intuito de amealhar vultosos recursos. O depoimento de Baltasar Rabelo de Aragão, por volta de 1618 fala de um tributo cobrado pelo governador Luis Mendes de Vasconcelos nas feiras que consistia em tomar para si 01 (uma) em cada 10 peças. A narrativa esclarece que após a autoridade tomar para si as melhores, outros representantes do poder colonial, também o faziam, ficando à população impedida de ter acesso à mercadoria. Isso levou a estratégia das expedições para o interior, promovida pelos habitantes, que buscavam resgatar escravos em regiões afastadas fora do raio de ação do poder local.4

Governadores como Fernão de Sousa tentaram normatizar as atividades das feiras, consideradas muito vantajosas ao ponto de perdoar débito de tributos devidos pelos reis Ngola, numa tentativa para manter a paz, esperando que vingasse o comércio. Promoveram a fiscalização com a nomeação de guardas e meirinhos, a exemplo, para garantir a realização da feira do presídio5 de Ambaca. A ideia era um preço justo para os pumbeiro,6 pois suas atividades exigiam investimentos. A viagem 3 Monumenta Missionaria Africana - África Ocidental (1570-1599), coligida e anotada pelo P. António Brásio, Vol. III, Lisboa, 1953, p. 227-229. 4 CADORNEGA, Antonio e Oliveira. História Geral das Guerras Angolanas. 1680. Anotado e corrigido por José Matias Delgado. Lisboa: Agência-Geral do Ultramar, 1972, Tomo I, p. 127. 5 Fortaleza militar portuguesa no interior de Angola em cujos arredores aconteciam feiras para comercialização de variadas mercadorias, inclusive cativos. 6 Os resgates nas feiras ou pumbos eram realizados em Angola principalmente pêlos pumèeiros, já escravos dos portugueses, incumbidos por estes das deslocações ao sertão com fins comerciais. Como salienta Frédéric Mauro, distinguem-se dos lançados, mulatos ou brancos ativos, sobretudo na região da Guiné, que viviam nas cortes das autoridades africanas e se

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era demorada e difícil sertão adentro. Eram necessários recursos para garantir a alimentação da tropa e das peças resgatadas, além de fazendas para a realização do negócio. A tropa deveria ser formada homens aptos para: guias, interpretes, carregadores e soldados, prontos a defender os bens adquiridos, das feras e dos homens, e isso, custava dinheiro. No entanto, essas medidas não eram longevas, pois já em 1633, Gonçalo de Souza, superior dos Jesuítas em Angola, queixa-se ao rei de Portugal da pobreza dos rendimentos. Relatava que as feiras existentes próximas a Luanda que já haviam sido riquíssimas, estavam quase desaparecendo, desestruturação provocada pelas guerras impostas pelos exércitos da rainha Ginga. Essa inviabilização das feiras levava aos moradores embrenharem-se pelo sertão em busca de escravos,7 a custo e risco.

No regimento dos governadores de Angola consta a proibição da presença de homens brancos nos pumbo8 para negociar. Essa precaução comprova a argumentação de John Thornton, quando demonstra em sua obra “A Africa and Africanos in the making of the Atlantic Word, 1400-1800” uma lógica completamente diferenciada da europeia sobre a escravidão nas sociedades africanas. Que os negros negociassem a compra de negros, mas não os brancos. Essa estratégia utilizada pelos portugueses demonstra que tinham clareza dos objetivos diferenciados acerca da utilização que fariam dos homens que adquiriam. A escravidão americana era outra. Mantinham-se as aparências, para evitar guerras, embora possamos inferir que ninguém era inocente, talvez, apenas a mercadoria. No entanto, as ordens eram desobedecidas. É claro que europeus da várias nacionalidades penetravam no interior através dos rios, indo fazer mercancia nas feiras nos arredores dos presídios, resgatando todas as peças. Essa mercadoria seria exportada para a América portuguesa, hispânica, saxônica, francesa, holandesa etc., deixando a elite local de Luanda, sem recursos humanos para explorar a terra, o que provocava muita revolta Os mercadores brancos, por sua vez, usavam de todo o expediente para garantir carga substancial em seus navios, pois, também invadiam as propriedades locais tomando à força a mão de obra existente.9

encarregavam da venda dos seus escravos. Os pumbeiros tomavam por vezes a decisão de se eximirem ao domínio dos senhores. Era frequente aproveitarem as suas deslocações para ficarem no sertão com a fazenda dos amos, provocando grande prejuízo. 7 AHU, Angola, cx. 9; Doc. 25; 10 de Abril de 1666. 8 Pumbo: Local das feiras no interior do território africano, aqui especificamente em Angola setecentista. Também pode ser entendido com lugar de reunião das peças descidas do interior e que ali se reunião e recebiam algum tratamento antes de serem vendidas para a primeira etapa do comércio. 9 CARREIRA, António. Angola-. Da Escravatura ao Trabalho Livre. Subsídios para a História demográfica do século XVI até à independência. Lisboa: Arcádia, 1977, p. 71. Como explica António Carreira, “O uso de calças de tipo europeu definia o aculturado, e a detenção

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Bento Teixeira de Saldanha analisando a proibição de brancos comercializarem escravos nas feiras, sugeriu que essa proibição deveria transformar o ato em crime, passando o infrator a ser sujeito a degredo e confisco de bens, excetuando a região do Congo adaptado a essa atividade. Nunca chegou a tomar uma feição mais rígida a proibição, mas continuou-se exigindo fiscalização dos governadores, acrescentando-se ainda que mulatos e negros com sinais de aculturação e poder, também deveriam ser proibidos de ir ao sertão resgatar escravos.10

Durante a ocupação holandesa a Angola os portugueses continuaram procurando abastecer a colônia americana indo os navios a foz do rio Cuanza. Eles desceriam até as embarcações as peças cativadas no interior, e que estivessem guardadas nas quatro fortalezas que os portugueses dominavam rio adentro.11 Em tempos de paz o resgate de escravos dava-se nas feiras realizadas pelos nativos, sobas vassalos do rei português, e nos presídios do Libolo, Dembos e Benguela entre outros. No sertão o comércio fazia-se através dos rios Cuanza, Bengo e Dande. Ainda citamos o pumbo do sertão do Congo que canalizava escravos para Luanda, embora tenha havido uma completa desestruturação das redes de ação nos finais da dominação holandesa. Já no final do XVII foi despontando o porto de Benguela, abre-se um pumbo que segundo o governador Luis Lobo da Silva comercializava-se em liberdade e pacificamente.12

Mas, negócio tão lucrativo suscitava a cobiça, assim em poucos anos, mais uma vez a paz tão almejada pelos portugueses se esvanecia abalada pelas lutas internas entre os soberanos do Congo e a presença estrangeira que disputava a preciosa mercadoria utilizando-se das mais variadas estratégias. Mais uma vez os moradores de Luanda se viam impossibilitados de mandar comprar escravos em todos os portos da costa do Loango como faziam com a licença dos contratadores de Angola. A presença estrangeira inviabilizava os esquemas de funcionamento da mercancia de escravos, e as estratégias das redes portuguesas. Os produtos utilizados para a realização das trocas no interior eram majoritariamente álcool, fumo e tecidos, mas também as armas de fogo e munição eram muito procuradas pelos potentados locais. Vender armas e munição aos nativos sempre foi uma estratégia dos estrangeiros para dificultar as coisas para os portugueses. 13 do bastão simulava a legalidade da presença do seu portador nas feiras, já que o bastão era o símbolo da autoridade dos sobas”. 10 PEREIRA, Maria da Conceição Gomes. As Feiras - Sua Importância no Contexto Comercial de Angola. Sécs. XV a XIX. Africana. Revista do Centro de Estudos Africanos da Universidade Portucalense. Porto, nº 6, p. 209-232, Março de 1990; SILVA, Rosa Cruz e Silva. As Feiras do Ndongo. A Outra Vertente do Comércio no Século XVII. In: Actas do Seminário Encontro de Povos e Culturas em Angola, Luanda 3 a 6 de Abril de 1995. Lisboa, 1997, p. 405-422. 11 AHU. Angola, Cx.4. Doc. 17, 8 de Janeiro de 1643. 12 Ibidem. 13 AHU. Angola, cx. 04, Doc. 55/28 de Julho de 1645.

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O vinho português e a Gerebita fabricada no Brasil foram concorrentes no paladar e no bolso dos angolanos. Para o Estado Português impor o vinho significava controlar o mercado angolano de bebidas alcoólicas e ao mesmo tempo controlar a elite brasileira do comércio atlântico. Utilizar-se de um produto secundário derivado da cana de açúcar para financiar a compra da mão de obra, atividade altamente lucrativa para os contratadores e, que tirava grande parcela dos lucros do açúcar às elites brasileiras, seria inverter em parte a acumulação da riqueza. Comprando escravos com cachaça, resguardava-se parcela significativa do açúcar, produto imensamente mais caro para o comércio no mercado internacional, liberando os senhores de engenho de parte das infinitas dívidas com os comerciantes de escravos dando assim, mais autonomia ao grupo. Tanto para os moradores de Angola como para os senhores de engenho do Brasil e os negociantes e transportadores com eles relacionados, era muito mais que de uma contenda pela obtenção de lucros, era sim um caminho rápido para a emancipação de ambas as colônias tornando a intermediação de Portugal desnecessária, embora não significasse uma separação política. A proibição da Gerebita brasileira em 1679 foi uma “faca de dois gumes”, pois já fazia parte do elenco de produtos essenciais para a troca por farinhas, fundamental ao abastecimento de tropas portuguesas, em Angola. É fato que a bebida nunca deixou de circular, e até em maior quantidade, contrabandeada e adentrando pelos portos de Benguela e Barlavento chegando a Massangano e depois em Luanda. Ora foi o Senado que perdeu um imposto com essa proibição e, ao mesmo tempo viu-se desorganizada a vida dos soldados, além de dificultado o abastecimento dos navios negreiros. O Governador Henrique Jaques de Magalhães pede a supressão da proibição em nome de uma redução de problemas como fome e miséria e anexa um parecer dos cirurgiões de Luanda, que afirma não serem nocivas à saúde.14

O ano de 1695 é o momento da reabilitação das Gerebitas no comércio atlântico desde que pagasse impostos de saída, no Brasil, e de entrada na África, direito estabelecido por contrato e, arrematado pelo melhor peço oferecido em leilão. É evidente que os vinhos portugueses continuaram fazendo parte do menu do mercado alcoólico angolano, mas era a cachaça brasileira um produto fundamental para os negócios com os nativos.15

Militares encarregados para comando nos presídios no interior da Angola, capitães-mores, tinham como atividades designadas o de ser intermediário no ajuste de preços das mercadorias que se utilizava no resgate de escravos. Mas, além desses ajustes comerciais, havia outras formas de obtenção de negros para o trabalho nas lavouras brasileiras. Uma estratégia era a do envio dos pumbeiros ao sertão para fazerem resgates, essa era a fórmula mais comum. Além disso, impor-se aos sobas o

14 CORREIA, Elias Alexandre. História de Angola. Lisboa, v. 1, p. 39 e 40, publicação 1782, 1937. 15 AHU. Angola, cx. 12, doc. 161/12 de Dezembro de 1684.

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pagamento de tributos (baculamentos) devidos aos portugueses em escravos, que eram vendidos em hasta pública na Praça de Luanda aos moradores, e por fim, o recurso da guerra de pilhagem, seque e sequestro.16

No entanto, o recurso de cobra tributo em peças aos sobas, era cercado pelas impossibilidades circunstanciais deles poderem oferecer o quantitativo exigido, o que os fazia fugir para os matos, ou juntarem-se aos mais variados rebeldes ao governo de Lisboa como: os Jagas e a rainha Ginga. Mas, os registros mostram que os chefes locais vão continuar sendo pressionadas pelos Governadores portugueses e comandantes de presídios para que entregassem escravos, sendo muitos chefes, submetidos as mais variadas vexações, entregando alguns, mulher e filhos para os leilões luandenses. Essa atitude, sempre contribuiu para manter a paz portuguesa em Angola por um fio. A ansiedade por braços e lucros levou a maior parte dos governadores portugueses a optarem pela guerra aberta para resgatar negros para o cativeiro da América. Exemplo dessa prática foram as ações do Governador Luis Mendes de Vasconcelos. Esse administrador português venceu o rei Ngola e inaugurou um período de três anos de abundância de peças aumentando o comércio de escravos, mas também se beneficiando pessoalmente. A angústia desses comerciantes se justificava pelo fato de escravos serem o único rendimento importante que poderia advir de Angola. Assim, muitos pretextos para fazerem a guerra tinham os governadores, mas o Estado português advertia sempre de só as realizar, em casos de “novas culpas”, ou seja, quando os locais perseguissem vassalos da coroa, impedissem o comércio com os sobas, quando se aliassem aos inimigos da monarquia, ou entravassem a pregação do evangelho.17

Mas, rendosas mesmo eram as guerras entre os africanos. Eram sem custos materiais para os portugueses, bem como, sem os sustos das derrotas e as consequentes perdas. Já se disse que era o esporte preferido dos portugueses incitarem as guerras entre os nativos para obterem mão de obra para a plantation do Brasil. Muito se beneficiaram os portugueses das lutas intestinas e intertribais, cuja chama contribuíam para acender e não deixavam de atiçar. “Sintomaticamente, em 1690, o governador D. João de Lencastre escrevia exultante, que os potentados de Loango, Cabinda e Sonho estavam sempre envolvidos em guerras, cativando-se nelas uns aos outros, do que resultava uma venda contínua de prisioneiros que originava excelentes perspectivas para o negócio naquelas regiões.” 18 Assim a guerra e paz em Angola, estavam nas mãos da política escolhida pelos governadores. Como sua permanência era temporária, tinham pressa em enriquecer com o comércio de escravos, enquanto os comerciantes locais preferiam obter anualmente, menos peças, contanto que tivessem a garantia de abastecimento ininterrupto, sem contar que

16 AHU. Angola, cx. 03, doc. 05/06 de Julho de 1633. 17 AHU. Angola, cx. 13, doc. 97/23 de Fevereiro de 1689. 18 AHU. Angola, cx. 14, doc. 15/18 de Março de 1690.

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tinham seus lucros diminuídos e perdiam seu espaço de atividade quando as autoridades optavam por uma intervenção violenta.19

Além das dificuldades em obter cativos, as doenças eram outro óbice aos negócios negreiros. Há indicativos de que em 1666 houve um surto de bexigas em Angola, mas esses se sucederam em direção a nova centúria impossibilitando embarques e desembarques ao ponto de se fazer exigir a certidão e saúde dos navios.

As fugas e a resistência ao embarque eram outros problemas enfrentados pelos comerciantes. Se desejassem vender escravos de seus Arimos,20 os portugueses tinham que pô-los a ferros, a todos, no mesmo dia e vendê-los de uma só vez, para que não fugissem. Enfrentado todos esses problemas cotidianos o comércio atlântico de escravos adentra a nova centúria.

Para além dos anos de 1770, com o fim das companhias de comércio, os negociantes, principalmente os do Rio de Janeiro, passaram a controlar as trocas com Luanda através do regime de comissões e correspondência mercantis, pois os capitais lisboetas procuraram uma atividade menos perigosa intermediando as trocas entre o Brasil e a Europa. Joseph Miller também vai se referir ao contrabando de mercadorias manufaturadas inglesas que no Brasil ajudava aos colonos a formar o conjunto de produtos que interessava ao mercado angolano.21

Pelas argumentações de Acioli, Menz, Luis Felipe de Alencastro e José Curto, podemos inferir que os comerciantes brasileiros usaram a estratégia de adquirir dos mais variados centros de produção dentro do Império Português aqueles artigos que interessavam ao mercado angolano no XVIII complementando o banzo22 com os produtos da colônia. Assim em alguns momentos eram “produtores” quando comerciavam a cachaça e o fumo, em outros intermediários, contanto que pudessem concorrer nos portos de Luanda e Benguela. Há indicações que entre os produtos oriundos das capitanias do Norte está a carne seca do Ceará, que era embarcada entre os artigos que partiam do porto do Recife ou até do porto de Itamaracá. No que tange a Luanda as Instruções dadas a D. Antonio de Lancaster em 1779, apontam uma carência de pastos, o que não ocorre no sertão de Benguela, assim a coroa orienta o Governador no sentido e buscar desenvolver uma indústria local de carnes secas em Benguela, afastando as que chegam do Brasil, nomeadamente do Ceará, que segundo a referida Instrução já chegam arruinadas e ressecadas.23 Essas 19 AHU. Angola, cx. 05, doc. 101/14 de Dezembro de 1652. 20 Arimos eram propriedades agrícolas. 21 ACIOLI, Gustavo; MENZ, Maximiliano. Resgate e Mercadorias: uma análise comparada do tráfico Luso-Brasileiro de escravos em Angola e Costa da Mina (século XVIII). Afro - Ásia, 37, 2008, p. 53. 22 Banzo: cesta de mercadorias, o banzo, composta por produtos de procedências diversas: têxteis asiáticos, armas européias e mesmo alguns produtos africanos. Ibid,.p.8. 23 AHU – Ordens e Avisos de Angola – Instruções: Dadas a D. Antonio de Lancaster, Livro 549, p. 12

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IV Encontro Internacional de História Colonial

ISBN 978-85-61586-64-5

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carnes eram fundamentais para atender a equipagem dos navios que saiam de Luanda. Assim, os brasileiros, contribuíam com produtos que atendiam a logística do comércio de cativos, atividade de responsabilidade daqueles que administravam o cotidiano do porto de Luanda.24 Partindo dessas considerações é possível entender tom melancólico das instruções Dadas a D. Antonio de Lancaster:

Nesta certeza não se pode ver sem grande dor que os nossos domínios do Brasil tenham absorvido em si todo o comércio e navegação da Costa da África, com total exclusão de Portugal, e aquela parte, que os brasileiros não fazem, pára tudo em poder das nações estrangeiras.25

Em 1779, as Instruções ao Governador de Angola já adiantam os administradores

no sentido de buscaram um entendimento com os comerciantes brasileiros para conter o avanço de estrangeiros pelo interior de Angola. Os presídios que outrora eram dominados pelos portugueses ao longo do Rio Dande para o norte, seguindo para Loango e o porto do mesmo nome, Motembo, Cabinda e Peritungo, todos se encontravam abandonados aos ingleses, franceses e holandeses. A outra parte, que corre do Dande para o sul, eram os únicos portos restantes, os de Luanda e Benguela, mas estavam nas mãos dos Americanos. Ainda estatisticamente apontam que dos 30 a 40 navios que chegavam anualmente ao porto de Luanda apenas 02 ou 03, eram de Portugal, os demais haviam partido dos portos do Brasil.26

E seguem em um processo de conscientização das perdas nas últimas décadas do domínio português dentro do império: na Ásia os navios oriundos da Índia e demais regiões do Oriente passavam direto para os Portos do Rio de Janeiro e da Bahia e nesses portos vendiam as fazendas da Índia, artigos de interesse para aquela praça, bem como as chamadas de “fazendas de negro”, do interesse da Praça de Angola e só depois iam a Portugal com o resto ou o refugo, no que ficava a Praça de Lisboa sem artigos que pudessem interessar ao comércio com a África. E conclui a Instrução afirmando que existe si um intenso comércio entre os domínios portugueses da América, Ásia e África, mas, neste Portugal não participa, além de realizar despesas para sustento e conservação de suas colônias.27

24 Ibidem. 25 Ibidem, p. 17. 26 Ibidem. 27 Ibidem, p. 18.