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45 n° 24 - septembre 2005 LATITUDES sões e as correlativas frustrações, lhe impunham. A ideia grosseira de «utopia», tal como foi gerada em Portugal, que desvirtua o sentido crítico com que a palavra foi criada por Thomas More, tende a iludir a mediocridade e ausência de empenhamento polí- tico. A situação de luta revolucio- nária armada, numa guerra civil, exigia-o de todos os cidadãos. Verificou-se uma total ignorância de si mesmos na saída abrupta dos portugueses de África na ponte aérea, em 1975, a gestação dos governos africanos e os conflitos palacianos que marcam toda a história portuguesa dos últimos trinta anos. Posteriormente, até o sentido político foi desvirtuado para justificar a submissão a vozes e inte- resses alheios. O lugar de Alfredo Margarido é, mais ainda, o oposto da passiva autodesignada “oposição ao regime”, como está patente nos seus artigos na Diogène, na Mensagem (Casa dos Estudantes do Império), nos “prefá- cios” às antologias e livros da Colecção Autores Ultramarinos, nas reflexões publicadas em cima dos acontecimentos, internacionalmente aceites. Isto confere-lhe uma força testemunhal única. Dediquei-lhe um livro, Obra ao Branco, no qual procurei o traçado dentre os políticos e intelectuais portugueses a reflectir a descoloni- zação. Os seus artigos são o seu tempo, mais de meio século da vida portuguesa. O seu tempo foi o fim do império, os movimentos clan- destinos ou não. Escreveu de uma maneira directa e comprometida com o que estava a ser construído. Ao contrário do que escrevem memorialistas, que na época que referem não estiveram à altura dos acontecimentos, sobretudo quando neles participaram, a atitude de Alfredo Margarido nada tinha de assumidamente utópico ou quixo- tesco. Vistos os resultados e o desenvolvimento social, porém, calá-lo ainda é a atitude menos frus- trante. Em Alfredo Margarido existe o sentido de responsabilidade social que nenhum outro escritor portu- guês assumiu de modo estruturado, rebelde e persistente. É ousado dizê-lo mas isso, apesar de tudo, é muito mais claro, atendendo ao que tem de contraditório. Nunca se apresentou com as certezas dos militares nem com as artimanhas dos gestores “políticos”, deputados e líderes, tão pouco com a filosofia literária dos que têm sempre razão. Limitou-se a escrever com o ímpeto da sua subjectividade o que as fron- teiras do conhecimento, as obses- N as Selecções do Readers Digest havia uma secção, de leitura muito agradável, intitulada “o meu tipo inesquecível”. Nela alguém lembrava alguém pelos seus aspectos e comportamentos assumidos no quotidiano. Lembro- me de ter lido em casa de um amigo, cujos pais as reservavam mensalmente na livraria Lello, pelo menos a primeira centena de exem- plares publicados. Ter uma biografia escrita não era privilégio de gente «importante», como há séculos, no tempo de Gomes Eanes de Zurara e de Fernão Lopes de Castanheda, para delícia dos académicos do Estado Novo e seus descendentes intelectuais. As referidas crónicas das Selecções eram atraentes pela humil- dade da evocação breve, convin- centes pelos temas escolhidos. Mas o efeito dessa grandeza no jorna- lismo provinciano e distante foi terrível: o estilo arrastou imitações fáceis, que apenas banalizavam o que no original era enaltecido com qualidade e elevação. É também um risco idêntico o escrever história do presente sem cair na crónica. Passe a metáfora, entre essas duas margens há uma estreita “ponte” de toros irregulares, apoiados em forquilhas espetadas na lama, como por vezes se encon- travam sobre alguns estreitos e turbulentos rios africanos. Por mais próximo que alguém esteja de nós ninguém conhece ninguém com a clarividência que permita fazer um juízo correcto e à altura. Cada um vale mais do que aquilo que pensamos dele. Nos juízos ampliativos, o “objecto” da análise sai forçosamente diminuído. Não conheço Alfredo Margarido nem estudei a sua obra o suficiente para escrever uma crónica sobre ele, como ele tantas vezes fez sobre tantos. Perante uma exigência destas há que ser substantivo. Ele é contudo a maior figura Sentimento Africano: Alfredo Margarido António Faria Aquarelle d’Alfredo Margarido in “33-9 Leituras Plásticas de Fernando Pessoa”.

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sões e as correlativas frustrações,lhe impunham.

A ideia grosseira de «utopia», talcomo foi gerada em Portugal, quedesvirtua o sentido crítico com quea palavra foi criada por ThomasMore, tende a iludir a mediocridadee ausência de empenhamento polí-tico. A situação de luta revolucio-nária armada, numa guerra civil,exigia-o de todos os cidadãos.Verificou-se uma total ignorânciade si mesmos na saída abrupta dosportugueses de África na ponteaérea, em 1975, a gestação dosgovernos africanos e os conflitospalacianos que marcam toda ahistória portuguesa dos últimostrinta anos. Posteriormente, até osentido político foi desvirtuado parajustificar a submissão a vozes e inte-resses alheios.

O lugar de Alfredo Margarido é,mais ainda, o oposto da passivaautodesignada “oposição ao regime”,como está patente nos seus artigosna Diogène, na Mensagem (Casa dosEstudantes do Império), nos “prefá-cios” às antologias e livros daColecção Autores Ultramarinos, nasreflexões publicadas em cima dosacontecimentos, internacionalmenteaceites. Isto confere-lhe uma forçatestemunhal única.

Dediquei-lhe um livro, Obra aoBranco, no qual procurei o traçado

dentre os políticos e intelectuaisportugueses a reflectir a descoloni-zação. Os seus artigos são o seutempo, mais de meio século da vidaportuguesa. O seu tempo foi o fimdo império, os movimentos clan-destinos ou não. Escreveu de umamaneira directa e comprometidacom o que estava a ser construído.Ao contrário do que escrevemmemorialistas, que na época quereferem não estiveram à altura dosacontecimentos, sobretudo quandoneles participaram, a atitude deAlfredo Margarido nada tinha deassumidamente utópico ou quixo-tesco. Vistos os resultados e odesenvolvimento social, porém,calá-lo ainda é a atitude menos frus-trante.

Em Alfredo Margarido existe osentido de responsabilidade socialque nenhum outro escritor portu-guês assumiu de modo estruturado,rebelde e persistente. É ousadodizê-lo mas isso, apesar de tudo, émuito mais claro, atendendo ao quetem de contraditório. Nunca seapresentou com as certezas dosmilitares nem com as artimanhasdos gestores “políticos”, deputadose líderes, tão pouco com a filosofialiterária dos que têm sempre razão.Limitou-se a escrever com o ímpetoda sua subjectividade o que as fron-teiras do conhecimento, as obses-

N as Selecções do ReadersDigest havia uma secção,de leitura muito agradável,

intitulada “o meu tipo inesquecível”.Nela alguém lembrava alguém pelosseus aspectos e comportamentosassumidos no quotidiano. Lembro-me de ter lido em casa de umamigo, cujos pais as reservavammensalmente na livraria Lello, pelomenos a primeira centena de exem-plares publicados.

Ter uma biografia escrita não eraprivilégio de gente «importante»,como há séculos, no tempo deGomes Eanes de Zurara e de FernãoLopes de Castanheda, para delíciados académicos do Estado Novo eseus descendentes intelectuais.

As referidas crónicas dasSelecções eram atraentes pela humil-dade da evocação breve, convin-centes pelos temas escolhidos. Maso efeito dessa grandeza no jorna-lismo provinciano e distante foiterrível: o estilo arrastou imitaçõesfáceis, que apenas banalizavam oque no original era enaltecido comqualidade e elevação.

É também um risco idêntico oescrever história do presente semcair na crónica. Passe a metáfora,entre essas duas margens há umaestreita “ponte” de toros irregulares,apoiados em forquilhas espetadasna lama, como por vezes se encon-travam sobre alguns estreitos eturbulentos rios africanos.

Por mais próximo que alguémesteja de nós ninguém conheceninguém com a clarividência quepermita fazer um juízo correcto e àaltura. Cada um vale mais do queaquilo que pensamos dele. Nosjuízos ampliativos, o “objecto” daanálise sai forçosamente diminuído.

Não conheço Alfredo Margaridonem estudei a sua obra o suficientepara escrever uma crónica sobreele, como ele tantas vezes fez sobretantos. Perante uma exigênciadestas há que ser substantivo.

Ele é contudo a maior figura

Sentimento Africano: Alfredo Margarido

António Faria

Aquarelle d’Alfredo Margarido in “33-9 Leituras Plásticas de Fernando Pessoa”.

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bio-poético de Ernesto Lara (Filho),de quem foi um grande “amigomortal”, para usar a expressão dePablo Neruda e diz bem comoacabamos por ser igualmente unspara os outros.

Vimo-nos na Casa dos Estudantesdo Império em 1963. Ele fazia críticade “artes plásticas” num jornal lite-rário, escrevia os prefácios para asantologias de escritores africanosde expressão portuguesa que aC.E.I. publicou, tinha um livro depoemas com temas de Cabindapublicados pelas Edições Imbondeiro,romances, ensaios, estudos. Oascendente dele resultava sobre-tudo porque tinha sido expulso deAngola pelo Governo de Salazarcomo persona non grata poucoantes dos acontecimentos deLuanda e do Norte de Angola, quemarcaram o início da guerra civilnacionalista.

O seu elevado sentido de socie-dade e de História ou o seu sentidode revolta perante os crimes docolonialismo e a injustiça engen-drada, era muito claro. Mas tambémferia o pedantismo de quantospretendiam sobressair como résis-tants e exilés naquela situação dedesespero. Ele continuava a escre-ver como ninguém, a obrigar areflectir sobre as coisas, marcandocada página com o carácter do seutempo: emigração, literatura e arte,teoria política, cinema, vida social,trabalho, são aspectos de umamundivivência ou do itineráriopessoal, muito pessoal, atravésdesses temas.

Encontrávamo-nos quase diaria-mente no salão da Casa dosEstudantes do Império, onde haviaum pequeno palco e uma mesa deping-pong, onde a sua mulher,Manuela, poeta natural da ilha doPríncipe, normalmente chegavacom ele ou o aguardava e onde diri-gia a organização de eventos paraos estudantes.

Ele lá estava no sofá a ler, acorrigir dezenas de traduções quefazia, a tagarelar ou a jogar com osdemais estudantes. Íamos ao cinemae até às “festas populares” deAlfama, no Verão. Eles davam apresença adulta à Casa dosEstudantes do Império, esvaziada

pela súbita saída clandestina doselementos mais activos para darcorpo aos movimentos de liberta-ção. Aliás como Arménio Ferreira,incansável médico cardiologista doSporting Clube de Portugal, doJoaquim Agostinho e de todos nós.

Nenhum escritor portuguêsabordou como Alfredo Margaridoem quantidade e profundidade aquestão anti-colonial - como, pelomenos uma vez, num formidávelcolóquio no Instituto SuperiorTécnico em 1964, foi realçado porAlexandre Pinheiro Torres, que nãodissipava elogios a ninguém.

Era preciso conhecimento decausa e das pessoas, capacidade decompromisso e uma tenacidadeilimitada. Isso era notório nos conví-vios, palestras, colóquios realizadosna Casa dos Estudantes do Império,associação por onde passaram asfiguras determinantes da vida polí-tica portuguesa do século XX.

As intervenções de AlfredoMargarido, apoiadas num estudorigoroso da situação e na teoria polí-tica, eram sempre apreciadas com amaior atenção. Discutia-se umaguerra civil imparável e cujas conse-quências reais ninguém previa.Porém, a situação era analisada comconhecimento de pessoas, de acon-tecimentos, de possibilidades e,sobretudo, de projecto social.

Não é possível separar, isolar ouesquecer o colonialismo portuguêse a guerra colonial - que o EstadoPortuguês não admitia de jure comotal. Viver no medo e a exploraçãopolítica do medo são duas situaçõescorrelativas que engendram umagrande perplexidade, arrastam aopacidade na interpretação e criamcomportamentos muito controver-sos.

Esclarecer uma geração inteira,que participava numa guerra e igno-rava por completo o que se passavaconsigo própria, que se iludia emsaber mais da guerra no Vietnamedo que da Guiné, Angola ouMoçambique, sobre o colonialismoe a guerra colonial, não era fácil.Isso pode verificar-se hoje pelosresultados desastrosos na práticasocial, na teoria política e no ensino.É hoje essa geração o governo e ainteligência de Portugal.

Essa geração de políticos ehomens públicos portugueses colo-cou Portugal à deriva ao longodestes trinta anos porque não soubecriar infra-estruturas de unidadecultural nem fazer a crítica adequadaao desenvolvimento do País.Limitou-se a aplicar a cópia deteorias académicas divulgadas emuniversidades (por onde terãopassado ou não). Acabou porpermitir a apropriação devida eindevida de bens públicos ou havi-dos por públicos, criou castas buro-cráticas ou de “gestores”, estruturadasem partidos políticos de uma igual-dade confrangedora.

Ainda aqui Alfredo Margaridonão perdeu o vigor crítico, analisoua situação portuguesa, “intrometeu-se” na política africana exercitadapelos antigos companheiros da Casados Estudantes do Império, queentretanto ocuparam as estruturasdo poder em África e em nada lheretribuíram o que dele aprenderam.

A maior parte dos escritores“clássicos” africanos de línguaportuguesa devem a AlfredoMargarido a projecção internacionalque obtiveram. Alguns foram «feitos»por ele na convicção de que eranecessário uma base cultural paratornar credível o movimento polí-tico que os englobava. Textos semqualidade poética eram assumidoscomo expressão da aspiração legí-tima ao acesso à cultura. Ele nãoera o académico que se limita a tirarconclusões mais ou menos óbviasmas um escritor comprometidonuma acção que envolvia a criaçãode culturas nacionais originais,portanto uma produção literária eartística diversificadas a par daconsciência política da situaçãocolonial, necessariamente violenta.Alfredo Margarido é a expressãoviva de uma contradição políticanunca assumida em Portugal,excepto por ele e que marca o fimdo império.

Ele era um profissional daescrita, tradutor infatigável, leitordesenfreado, um criador de“nomes” para um movimento cultu-ral, coerente com o seu projectopessoal.

Antes da Casa dos Estudantes doImpério ter sido encerrada, já no

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altos funcionários de um tráficomiserável e uma indústria escava-cada, em novos analfabetos, exila-dos e noctívagos sem esperança ouem arrumadores de automóveis forados parques de estacionamento.Que me perdoe o poeta EduardoGuerra Carneiro. Por nada.

O diálogo, aliás, a julgar pelosacontecimentos que transcorreramem três décadas, continua a serfeericamente inútil. Porque, depoisdo IARN e das remessas dosemigrantes foi o grosso óbulo daComunidade Europeia, dissipado por

coruscantes “campo-neses”, “empresários”e “políticos”, queemergiram com esserelâmpago financeiromontados em jipesenormes, quando oscamponeses dasterras incendiadascomeçaram a engros-sar as filas da assis-tência social e osoperários o fundo dedesemprego, votantesbisonhos e quaseanalfabetos, novosescravos sem direitoefectivo à cidadania.

Já tinha chamado aatenção em qualquerlado para a grandeza“cultural” que foi, paraos jovens de então, oencontro com AlfredoMargarido, HerbertoHélder e CruzeiroSeixas, mas tambémcom os médicos

Cochat Osório e Julieta Gandra,com o advogado Eugénio Ferreira,em Luanda, em meados do séculoXX e da importância (o termoimportância é necessariamenteexagerado visto que, para os portu-gueses, o referido encontro nãovaleu rigorosamente nada, poisficou limitado a um caso que a polí-cia política portuguesa resolveufacilmente com a habitual destrezacriminosa e a cumplicidade do meiosocial) que isso teve para aconsciência da necessidade da lutade libertação nacional.

Como as novas gerações deportugueses já não precisam nem

derrota quando a forma e as fórmu-las contrariam as evidências invisí-veis a quem as não quer ver.

Aqueles que provavelmentenunca o leram assumiriam o poderpolítico em Portugal onde, há trintaanos, há uma “revolução abran-gente” comemorada de ano paraano destinada a omitir as quehouve. Alfredo Margarido, queconhece o problema melhor do queninguém, nunca escreveria nadaque se parecesse com o DoutorJivago. Fê-lo de outra maneira.Conheceu os arquétipos da revolta.

Não lhe faltam personagens queaproveitaram dele, que atravessa-ram os caminhos que ele iluminoue preenchem o carácter sinuoso, oespírito de acomodação e falta devergonha de Komarovski.

Falar em consciência política apropósito disso é vituperar os quese votaram ao justo silêncio que,em alguns casos, chegou ao suicí-dio. Foi grande a perplexidadeperante a vulgaridade, a ânsiadesenfreada e descontrolada porum lugar visível e bem remuneradona gestão pública.

É difícil suportar os que opta-ram por transformar os filhos em

estertor final, quando o decrépitoEstado Novo abriu uma Procuradoriados Estudantes Ultramarinos pararefrear a acção política que já setransformava em pânico, AlfredoMargarido obteve uma bolsa deestudos da Fundação CalousteGulbenkian e foi com Manuela paraParis.

Em Paris, durante meses, víamo-nos quase diariamente, ao fim datarde, na “embaixada” de Angola,em casa do “embaixador”. Poraquela casinha térrea de duasassoalhadas passavam todos quan-tos acreditavam quealguma coisa estavapara acontecer lá longee era preciso prepararos países que viriam asurgir.

Ouvia-o falar dosucesso de James Bond,da “redescoberta” deLuís Buñuel pelos ciné-filos parisienses e dodiscurso da recusa deSartre, na Mutualité.Assistia às suas conver-sas arrastadas comCastro Soromenho.Manuela Margarido,despida de preconcei-tos, esquecia as literati-ces e era incansável, acozinhar num cubículo,para os visitantes e convi-dados. Mas também paraaqueles que era precisomanter na construçãode uma ideia distantedaquele exílio sem fim.

Voltamos a desen-contrar-nos no Rossio dez anosdepois, na hora das independên-cias ou na hora do início da nostal-gia renovada. Continuou a viajar ea escrever. Depois disso em desen-contros de circunstância, dez anosdepois e, mais tarde, dez anosdepois. No século XXI ainda não ovi.

Alfredo Margarido não foicúmplice daquilo a que a maioriase submeteu ou a que cedeuvergonhosamente. Valeu a pena?

Esta pergunta só por si justificae arrasta uma dúvida que encobreuma resposta negativa desmorali-zada. É muito difícil assumir a

Feliciano Mira, “Mar Garido”, infographie, Paris 2005.

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L ongos anos decorridos nãoapagaram a estima e pre-sença literária desse Mestre

que nos deu a honra de uma visitano Rio de Janeiro, onde consegui-mos conhecê-lo pessoalmente comotestemunhar-lhe nosso apreço pelasua Obra de cultural profundidadecrítica: especialmente pelo estudosobre “Famintos” a nós dedicado,que supomos continuar inédito, oqual conservamos preciosamentepara reler com proveito.

Honrado pelo convite da revistaLatitudes em homenagem que sepretende para início de Julhopróximo, seria para nós, cabover-dianos, grave ausência não compar-ticipar ante a gratidão que lhedevemos como paladino da mesmacruzada libertária que nos uniu nodecorrer da Libertação africana sobjugo colonialista.

Qual combatente fortalecido poridealismo de inquebrantável deci-são, Alfredo Margarido como escri-tor e analista posiciona-se na fileira de raríssi-mos que se sacrificarampelo equilíbrio naturaldo bom senso contra odesequilíbrio galopantedo absurdo desumano.

Neste comportamentoé que se eleva à altura dedoutrinário malgrado es-colhos que atravancamroteiros de quantos,como ele, encaram oHomem como agentetransitório sujeito abonanças e intempéries,mas de que é molapropulsora vitoriosa ouplasma anódina inde-fesa.

Através da sua vastaprodução literária destaca-se o aprumo moral comque sempre se distinguiu,ao qualificar modalidadespolifacetadas de cada“assunto” que mereceu-lhe privilégio de even-

tual análise pela mensagem, ouainda acuidade crítica sob o pontode vista estético-analítico dalgumlivro que mereceu-lhe atençãointerpretar.

Com tais predicados acumuloufértil produção de estudos que,dispostos em colectânea popular,constituiriam não só preciosa fontede consultas como também fecundaAula Magna que já deveria ser leccio-nada em modernas Universidades,ou então difundida por magistérioslivres de missão internacional.

Admitimos que o instrumentomelhor indicado para esclarecer avida e a obra de Alfredo Margarido,(para nós Herói nacionalista +Professor emérito e polígrafo derara estirpe), seria a publicaçãoesmerada da sua bibliografia quenos traria renovados motivos deapreço intelectual, além de fraternaadmiração �

Brasil, Abril 2005

aceitam ser iludidas com «fantas-mas» africanos ou marítimos (odireito ao mar já foi retirado) nemse podem enganar por muito maistempo com a ausência de sentidopolítico nos projectos “políticos”(apenas administrativos) que hojelhes apresentam, podem todavia, sequiserem, encontrar em AlfredoMargarido um exemplo de combatepelas ideias, com uma coerênciacívica e intelectual excepcional, aclamar por mais e mais excepções,com a mesma raiva e um sorrisoresplandecente com que um entãojovem actor Kirk Douglas saltavapara a sela sem tocar no cavalo ecavalgava para todos os horizontes.

Essa canseira é evidente notrabalho sobre Teixeira de Pascoaese na tese de doutoramento deAdelino Gomes, que AlfredoMargarido orientou desenfreada-mente.

É uma tarefa ingrata, solitária,difícil, não caracteristicamenteportuguesa, mas é a dele. Suponhoque seja esse o lugar que escolheumesmo que não o tivesse desejado.

Este ano, em que a justa Europacelebra justamente o centenário deAlbert Einstein (1905) e teme fazerjustiça ao (sistematicamente omitido)fracasso decisivo da revolta de SãoPetersburgo (1905), que mudouigualmente o pensamento nomundo, uma vez mais se justifica osilêncio dos que perdem quandoganham.

Nunca pensei em poder escre-ver alguma vez esta frase mas voufazê-lo, com o mesmo carinho enostalgia de um tempo de revoltaexistencial, que me levou a tratá-lopor “amigo mortal”. Confesso queguardo a lembrança mais elevadadaquela secção das Selecções, deuma época e de um lugar onde,afinal, sempre era proibido ler.Contrariando o seu desdém pelopersonalismo e outras maneiraspessoais de tratar a História, digoapenas: Alfredo Margarido é “o meutipo inesquecível”.

É só �

Lisboa, 8 de Maio de 2005

Alfredo MargaridoLuís Romano

Aquarelle d’Alfredo Margarido in “33+9 Leituras Plásticas de Fernando Pessoa”