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SERRA, Elizabeth D'Angelo. 30 Anos de Literatura para Crianças e Jovens

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ELIZABETH D’ANGELO SERRA (ORG)

30 ANOS DE LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS

ALGUMAS LEITURAS

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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO ( CIP) (CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO, SP, BRASIL)

30 anos de literatura para crianças e jovens: algumas leituras / El,zabeth D’Angelo Serra (org.). — Campinas SP : Mercado de Letras •. Associação de Leitura do Brasil, 1998. Coleção Leituras no Brasil) Vários autores. ISBN 85 85725-31.1 1. Crianças — Livros e leitura 2. Literatura infanto-juvenil brasileira — História e crítica 3. Poesias escolares brasileiras 1. Serra, Elisabeth D’Angslo. II. Série. 98.3277 CDD-869.9099282

Índice para catálogo sistemático:

1. Literatura infanto-juvenil brasileira — História e crítica 869.9099282

Capa: Vande Rotta Gomide

Ilustração da capa (detalhe): Manoel Victor Filho, da obra Serões de Dona Benta de Monteiro Lobato.

15 ad., 1984, Editora Brasiliense Revisão dos originais: Ninfa Parreiras Copidesque: Marília Marcello Braida

Revisão: Roberta Mazia Munhoz

COLEÇÃO LEITURAS NO BRASIL Coordenação: Luis Percival Leme Brilto

Conselho Editorial: Gláucia MolIo Pécors. Valdir Heitor Barzotso, Maris José Nóbrega Wilmar da Rocha D’Angalis e Márcia Abreu

ESTA OBRA TEM O APOIO DO FINEP DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA:

MERCADO DE LETRAS 13023-191 — Campinas SP Brasil

Telefax: 019) 234-1214 http: //mercado-de.letras.com E-mail: [email protected]

ASSOCIAÇÃO DE LEITURA DO BRASIL Faculdade da Educação/Unicamp

Cidade Universitária “Zeterino Vaz” 13081970— Campinas SP Rrasil

Proibida a reprodução dessa obra sem a autorização prévia doe editores.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO Elizabeth D’Angelo Serra 7 1. DE LOBATO À DÉCADA DE 1970 Laura Sandroni 11 2. BALANÇO DOS ANOS 60/70 Maria Antonieta Antunes Cunha 27 3 A LITERATURA INFANTIL NOS ANOS 80 Maria da Glória Bordini 33 4. A LITERATURA INFANTIL DOS ANOS 80 Ana Lúcia Brandão 47 5. A LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS NOS ANOS 90 Nilma Gonçalves Lacerda 59 6. CEM ANOS DE POESIA NAS ESCOLAS BRASILEIRAS Graça Paulino 75 7. UM PANORAMA DA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS Elizabeth D’Angelo Serra 89 8. TEXTO E IMAGEM: DIÁLOGOS E LINGUAGENS DENTRO DO LIVRO RicardoAzevedo 105

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APRESENTAÇÃO

Este livro reúne algumas das palestras do 1° Seminário sobre Literatura para Crianças e Jovens, ocorrido no 11º Congresso de Leitura, promovido pela Associação de Leitura do Brasil (ALB), em julho de 1997, na cidade de Campinas. O seminário foi planejado e organizado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), seção brasileira do International Board on Books for Young People (IBBY), órgão ligado à UNESCO para o livro infantil ejuvenil e apromoçãoda leitura, como parte da programação do 11º COLE que compreendia 14 encontros com temáticas diferentes sobre a leitura. O convite da ALB para organizar esse 1º Seminário, no COLE, reflete a importância da literatura infantil e juvenil para o desenvolvimento da habilidade leitora e o reconhecimento do trabalho que a FNLIJ realiza, desde 1968, pioneiramente, no país. Em 1985, 1987 e 1989 a FNLIJ organizou três congressos nacionais de literatura infantil ejuvenil, no Rio de Janeiro, com enorme sucesso, demonstrando que a presença da literatura infantil e juvenil, nas escolas e nas bibliotecas brasileiras, existe de maneira forte apesar de sua utilização ainda representar uma minoria. Em geral, a literatura

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infantil e juvenil é reduzida a exercícios de ensino da gramática, perdendo-se a oportunidade de o contato com a língua ser provocador, crítico, original e prazeroso, potencial que a literatura, como arte, oferece. Infelizmente, com a ação destruidorado governo ColIor na área da cultura, a FNLIJ não conseguiu dar seqüência a seus congressos. Assim, para a FNLIJ, o 11º COLE trouxe a possibilidade de retomar o encontro com especialistas, professores e bibliotecários a fim de discutir e refletir sobre o tema, bem como conhecer as inúmeras experiências existentes hoje no país. O encontro apresentou um panorama crítico sobre as três décadas de produção de literatura infantil e juvenil brasileira, considerando o objeto-livro portador de literatura quanto à qualidade de texto, ilustração e projeto gráfico, quanto à sua função social, avaliando a sua relação com a educação e a cultura, a produção e as condições de acesso a ela. Também analisou o seu valor como bem para a conquista da cidadania, para a maioria da população brasileira. Inserido dentro da programação geral do congresso, o Seminário sobre Literatura para Crianças e Jovens reuniu o maior número de participantes, como também o maior número de comunicações inscritas. Foi utilizada para a reflexão a palestra de AnaMaria Machado, proferida no encerramento do 21° Congresso do IBBY, ocorrido em Sevilha, na Espanha, em outubro de 1994, intitulado “Ideologia e Livro Infantil”, e que se encontra publicado na Revista Latino-Americana de Literatura Infantil n° 1, das seções Latino-Americanas do IBBY. Essa palestra apontou na direção de um olhar em que a contradição é elemento importante do viver e criar. E como tal é um importante vetor de transformações. Todos os particípantes receberam uma cópia do texto que não será publicado neste livro, já que se encontra na revista mencionada acima. A escritora Ruth Rocha, autora pioneira de livros infantis e juvenis, travou com Ana Maria Machado um interessante debate sobre a dimensão profissional do escritor de literatura infantil e juvenil, que muitas vezes não é considerado como tal. Esta publicação

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inicia-se com a palestra de Laura Sandroni, cuja história está ligada à história da FNLIJ, como sua fundadora e crítica pioneira, bem como grande incentivadora do gênero no país, tendo sido a criadora do 1° Projeto de Promoção de Leitura do Pais, quando estava na FNLIJ, o “Ciranda de Livros”, detentor de um prêmio internacional. O texto “De Lobato à década de 1970” é baseado na sua tese de mestrado De Lobato a Bojunga, publicada pela editora Agir. O segundo artigo é de Maria Antonieta Antunes Cunha, também uma das pioneiras da defesa da literatura infantil e juvenil, tendo sido secretária de Cultura de Belo Horizonte, editora e autora. Sob outro enfoque, Antonieta aborda os anos que precederam o chamado boom da literatura infantil e juvenil, ocorrido em 1970. Para tratar da literatura infantil e juvenil dos anos 80, contamos com Maria da Glória Bordini, da PUC do Rio Grande do Sul, especialista que se dedica ao tema há três décadas. E Ana Lúcia Brandão, representando o trabalho da Biblioteca Infantil Monteiro Lobato, em São Paulo, que produz análises da literatura infantil e juvenil, através das publicações de bibliografias analflicas. A professora e escritora Numa Lacerda, do Rio de Janeiro, autora e especialista em literatura infantil ejuvenil, votante do prêmio da FNLIJ, traz sua reflexão literária sobre a produção dos anos 90. Para falar da poesia para crianças, Graça Paulino, da UFMG de Minas Gerais, traz uma preciosa reflexão sobre os 100 anos de poesia nas escolas brasileiras. A imagem no livro de literatura infantil e juvenil assume uma dimensão especial. Para tratar do tema, o ilustrador e autor Ricardo Azevedo apresenta uma importante contribuição. No seminário, a ilustradora Ciça Fittipaldi partilhou a mesa com Ricardo, também traçando um perfil do trabalho do ilustrador como um criador de imagens e não como um descritor de textos, apresentando a dimensão da ilustração como linguagem. Infelizmente, este livro não contempla o texto de Ciça, que ficamos a dever. De nossa autoria, o último texto tenta traçar um panorama geral da literatura infantil ejuvenil produzida no Brasil, sua dimensão

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artística e sua importância na escola, além de apresentar algumas estatísticas referentes aos anos de 1995 e 1996. Ao final do livro trazemos urna síntese das 75 comunicações apresentadas sobre literatura infantil e juvenil. O 11º Congresso da Associação de Leitura do Brasil, sob o tema “A letra e a palavra dos excluídos” marcou mais um importante trecho da caminhada dos profissionais que lutam pela democratização do acesso à leitura e à escrita, críticas e criadas, em nosso país. Se nos primeiros congressos esses profissionais representavam a classe de educadores, hoje, refletindo o caráter abrangente da responsabilidade social de formar uma sociedade leitora, eles representam a variedade de áreas afins que, trazendo suas visões particulares e próprias sobre o problema da leitura, contribuem para desenvolver uma atuação crftica e interdisciplinar de todos os envolvidos no processo de leiturização da sociedade brasileira. A literatura infantil e juvenil, parte integrante do processo formador de leitores se faz presente, como tema de destaque, nos congressos de leitura. A Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, completando 30 anos neste ano de 1998, vem acompanhando o trabalho da ALB como parceira na luta pelo mesmo objetivo — promover a democratização da leitura em nosso país, participando de todos os congressos e divulgando-os entre seus associados. Agradecemos à ALB e à editora Mercado de Letras a oportunidade de vermos publicadas as palavras dos especialistas que gentilmente cederam seus direitos dos textos para a FNLIJ. Assim, gostaríamos de encerrar rendendo-lhes nossa homenagem.

Elizabeth D’Angelo Serra

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1. DE LOBATO À DÉCADA DE 1970 1

Laura Sandroni

Embora o tema deste artigo se intitule De Lobato à década de 1970, considero importante lembrar alguns autores, que podemos chamar, genericamente, de precursores de uma literatura infantil brasileira. Como deve ser do conhecimento de todos vocês, até fins do século XIX a literatura destinada a crianças e a jovens que se encontrava no mercado — acessível apenas à elite brasileira era toda importada, constituindo-se principalmente de traduções feitas em Portugal. Não havia aqui editoras e os autores brasileiros tinham seus textos impressos na Europa. No primeiro decênio do século XX nota-se o início de uma reação a esse estado de coisas. A literatura escolar talvez tenha sido a primeira etapa. Autores brasileiros já começavam a ser incluídos em seletas preparadas e impressas em Portugal. Alguns deles dedicaram-se a esse tipo de literatura do qual ficaram poucos livros de

1. Este texto é um resume dos capítulos iniciais do livro De Lobato a Bojunga, da Editora Agir.

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valor, como por exemplo Através do Brasil, de Manuel Bonfim e Olavo Bilac, Contos pátrios, deste último e Coelho Neto ou Saudade, de Tales de Andrade. No gênero destacam-se as edições Garnier com uma contribuição decisiva para nosso desenvolvimento cultural. Também na área da tradução as coisas começaram a mudar. Escritores brasileiros já eram chamados para esse trabalho, se bem que por serem muito mal remunerados não permitiam que seus nomes constassem no livro. Aí, a livraria Quaresma Editora teve grande importância. O velho Quaresma chamou Figueiredo Pimentel encomendando-lhe uma coleção especialmente destinada às crianças. A escolha deveu-se ao fato de que o escritor já havia publicado, em 1894, os Contos da Carochinha, pela mesma editora, reunindo histórias de Perrault, Grimm e outros. Outro tradutor de mérito foi Carlos Jansen, que se dedicou à tradução de obras clássicas da literaturajuvenil. Olavo Bilac,já poeta consagrado, traduziu muito para a editora Lammert, sob o pseudônimo de Pantásio. Jura e Chico, relançado há alguns anos, é sua obra mais conhecida nessa área. Em 1915, quandojá está caracterizada, nitidamente, uma fase de transição, a Weiszflog Irmãos Editores, de São Paulo, hoje Melhoramentos, encarrega Arnaldo de Oliveira Barreto da organização de uma “Biblioteca Infantil” que se inicia com O patinho feio, de Andersen. O caráter revolucionário dessa coleção está, sobretudo, em seu aspecto gráfico. Ilustrações em cores, de Francisco Richter, da mais alta qualidade, impressão e acabamento primorosos. Esse esforço de Quaresma e alguns poucos não chegou a modificar o aspecto geral pois, ainda em 1925, dizia Monteiro Lobato em carta a Godofredo Rangel publicada em A barca de Gleyre:

Estou a examinar os contos de Orimm dados pelo Garnier. Pobres crianças brasileiras! Que traduções galegais! Temos que refazer Ludo isso — abrasileirar a línguagem.

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A importância da literatura oral para as crianças, num país onde apenas uma pequena elite cultural dominava o código escrito, é fácil de se imaginar. Os depoimentos de nossos escritores em seus livros de memórias mostram o quanto a própria ama teve influência na formação cultural e ampliou a imaginação. Alguns deles chegaram a transcrever, mais tarde, essas histórias ouvidas na infância, como José Lins do Rego em Estórias da velha Totônia,

Monteiro Lobato, o inovador

Com a publicação de A menina do narizinho arrebitado, em 1921, José Bento Monteiro Lobato inaugura o que se convencionou chamar de fase literária da produção brasileira destinada a crianças e ajovens. Como veremos, sua obra foi um salto qualitativo comparada aos autores que o precederam,já que é quase toda permeada do ânimo de debates sobre temas públicos contemporâneos ou históricos, que problematiza de modo a ser compreendido por crianças e expressa em linguagem original e criativa, na qual sobressai a busca do coloquial brasileiro antecipatória do Modernismo. Zinda Vasconcellos, autora do excelente livro O universo ideológico da obra infantil de Monteiro Lobato, afirma:

A partir do exame da vida de Lobato e da leitura dos seus Prefácios e enrrevisras, poderíamos resumir sua ideologia econômico-social, por um lado, como a de alguém rebelde contra aestrutura oligárquica do poder vigente; nacionalista; cada vez mais preocupado com a miséria do povo e consciente de que a prosperidade das elites dela dependia; adversário de idéias, crenças, valores — principalmente os da educação católica — que favorecessem a manutenção do status quo; vago defensor, em teoria, de idéias socializantes

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contra o obscurantismo autoritário do poder. Mas, por outro lado, poderíamos definir essa ideologia como a de uma pessoa que na prática acreditava no desenvolvimento econômico capitalista para a resolução dos problemas brasileiros e na ação da iniciativa privada — de preferência a de indivíduos bem intencionados, modernos e arejados, iluminados pelo conhecimento científico; que tinha profundo horror à estatização, associada por ele à ineticiente e corrupta máquina burocrática brasileira, que estaria irremediavelmente ligada à velha ordem de coisas e que queria libertar o país; presa, de um modo geral, aos termos liberais (liberdade, democracia etc.).

Desiludido com os adultos, acredita que só as crianças poderão modificar o mundo, torna-as suas interlocutoras privilegiadas. Por isso trata em sua obra de temas sérios e complexos que até então não eram considerados apropriados à infância como: guerras, política, ciência, petróleo. Os problemas são apresentados de maneira simples e clara, por vezes didática, de modo adequado à compreensão do leitor. A simplicidade da linguagem, marcada pelo coloquialismo e por “brasileirismos” inovadores, visa a tornar agradável a leitura. Com Lobato os pequenos leitores adquirem consciência crítica e conhecimento de inúmeros problemas concretos do país e da humanidade em geral. Ele desmistifica a moral tradicional e prega a verdade individual. Instaura, portanto, a liberdade. Sem coleiras, pensando por si mesma, a criança vê, num mundo onde não há limites entre realidade e fantasia, que ela pode ser agente de transformação.

As características do literário e a brasilidade na obra de Lobato

Podem-se observar em Lobato alguns aspectos básicos que evidenciam o nível de criação artística. O primeiro diz respeito à

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linguagem, cujo registro é predominantemente coloquial e na qual se nota a busca da fala brasileira, o tom de oralidade que pouco depois o Modernismo iria consagrar. Como observa Maria Teresa Gonçalves Pereira em sua dissertação de mestrado:

Lobato busca constantemente uma renovação nas possibilidades inúmeras que a língua oferece, dinamizando-a, explorando ao máximo suas potencialidadcs, as suas diversas realizações, não se prcndendo ao convencional, mesmo quando dele precisa para reavaliá-lo ou reaproveitá-lo.

Além desses aspectos com que Lobato procurava despir seu estilo de toda “a literatura” no sentido da retórica tradicional, a criatividadc que demonstra é marcada pelo humore aponta no sentido da modernização que preconiza. Ele foi o primeiro a fazer do folclore tema sempre presente em suas histórias através das personagens do Sítio, como Tia Nastácia e Tio Barnabé. A primeira, ponte de ligação entre o mundo racional repi-esentado por Dona Benta, c as superstições e as crendices próprias das populações analfabetas; o segundo, conhecedor dos mistéiios, dos mitos que habitam o folclore. Em alguns livros como O saci e Histórias de Tia Nastácia, o folclore é a temática central. Não se trata mais aqui de um pesquisador que registra a tradição oral como fizeram Alexina de Magalhães Pinto e os demais já citados, mas de buscar nessa fonte inesgotável da literatura, que é o folclore, os elementos necessários a uma criação original. Outra das grandes inovações de Lobato é a de trazer para o universo da criança os grandes problemas, até então, considerados como parte exclusiva do mundo adulto. Assim, discutem-se no Sítio as terríveis conseqüências das guerras em A chave do tamanho, os problemas do desenvolvimento brasileiro em O poço do Visconde, o conhecimento intuitivo ti-ente ao predomínio da lógica e da razão em O saci.

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1 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras. Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.

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Lobato acreditava profundamente na democracia como forma de governo e não se contentava em transmitir suas convicções de maneira abstrata. O sítio do Picapau Amarelo é um microcosmo onde cada um é livre para expressar sua opinião e onde as decisões são tomadas pelo voto. Ao lado dessa realidade evidente no texto e que reflete o contexto histórico e social de seu tempo e do ambiente rural em que se criou, Lobato mostra-nos um mundo mágico do qual a fantasia é parte integrante. Nele reina o faz-de-conta, solução para todos os problemas, o pó de pirlimpimpim, que permite viagens através do tempo e do espaço. Convivem aí personagens do mundo real, ou seja, os habitantes do Sítio e personagens do mundo das maravilhas, protagonistas dos contos tradicionais, na mais perfeita harmonia, seja através de deslocamentos do bando, como, por exemplo, quando vão ao país das fábulas em Reinações de Narizinho ou quando em O sítio do Picapau Amarelo recebem o mundo encantado de príncipes e de princesas que se muda para o Sítio em terras especialmente compradas por Dona Benta. Interessante é notar como Lobato estabelece a relação real/mágico numa ótica perfeitamente adequada à psicologia infantil. É importante salientar, no entanto, que em Lobato a fantasia é sempre uma forma de iluminar a realidade, nunca ela é alienante. Outros meios empregados pelo escritor para levar à reflexão são o humor, a ironia, a crítica. Nesse aspecto Emília é seu porta-voz. Personagem transgressora por excelência, sempre contestando as verdades estabelecidas em busca de suas próprias verdades, Emília é a “independência ou morte” na sua autodefinição em Emília no país da gramática . Monteiro Lobato foi o primeiro escritor brasileiro a acreditar na inteligência da criança, na sua curiosidade intelectual e capacidade de compreensão. Seus textos estão cheios de citações e de alusões que remetem a outros personagens, a outras épocas históricas e seus protagonistas. Ele foi um autor engajado, comprometido com os

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problemas de seu tempo. Tinha um projeto definido: influir na formação de um Brasil melhor através das crianças. A partir dele, no Brasil, a literatura infantil perde uma de suas principais características, a de ser um instrumento de dominação do adulto e de uma classe, modelo de estruturas que devem ser reproduzidas. Patsa a ser fonte de reflexão, de questionamento e de crítica.

A década de 1970 e suas raízes lobateanas

A obra de Lobato revestiu-se de tanta importância e conheceu tão grande sucesso de público, concretizado em sucessivas reedições que, durante largo tempo, o panorama da literatura destinada a crianças e a jovens permaneceu semi-estagnado, com várias e frustradas tentativas de tmitação. Destacam-se alguns autores que souberam manter sua originalidade e escreveram livros que, até hoje, permanecem nos catálogos das editoras enquanto os demais foram rapidamente esquecidos. Entre os primeiros não podemos deixar de citar Menotti DeI Picchia, Malba Tahan, José Lins do Rego, Viriato Correia, EriDo Veríssimo, Vicente Guimarães, Ofélia e Narbal Fontes, Francisco Marins, Orígenes Lessa, Lúcia Machado de Almeida e Maria José Dupré que, em maior ou menor grau, realizaram obras nas quais o imaginário e o lúdico encontraram uma linguagem adequada para expressar-se, abordando temas históricos ou de inspiração folclórica ou ainda criando aventuras maravilhosas. A partir dos anos 70 notam-se algumas modilicações nesse quadro, que se vai alterando no sentido de uma grande diversificação da produção com o aparecimento de novos autores para atender ao crescimento do público leitor provocado pela lei da refirma de ensino que obriga a adoção de livros de autor brasileiro nas escolas de 1º

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grau. Mais uma vez a literatura infantil se vê ligada ao sistema de ensino. Esse fato que, por um lado, põe em risco a leitura como fonte de prazer e de fruição, quando a escolha do professor recai sobre textos que não conseguem prender a atenção da criança, por outro lado, tem propiciado um clima favorável ao aparecimento de autores que voltando às raízes lobateanas, vêm produzindo obras que, sem perder de vista o lúdico, o imaginário, o humor, a linguagem inovadora e a poética, tematizam os atuais problemas brasileiros levando o pequeno leitor à reflexão e à crítica. Tentou-se aqui reunir esses autores em torno de algumas das inovações introduzidas por Lobato, buscando-se estabelecer paralelos e analogias que levem a uma visão geral do caminho percorrido pela literatura infantil na década de 1970, até nossos dias. Uma das principais conquistas de Lobato foi trazer para o universo infantil a discussão de temas atuais, antes pertencentes exclusivamente ao mundo adulto. Essa representação da realidade pode se dar de várias maneiras, sob diferentes enfoques e tratamentos e, talvez, por isso, aí encontramos um maior número de obras significativas. Seguindo uma ordem cronológica quanto às primeiras edições dos títulos citados, tem-se em 1971 A fada que tinha idéias e Soprinho, de Fernanda Lopes de Almeida. Aqui se retoma a linha de ficção lobateana na qual realidade e fantasia se interpenetram com absoluta naturalidade, para a discussão de temas tais como os abusos do poder totalitário, no primeiro caso, ou a alegórica caminhada do universo psicológico infantil em direção à maturidade e ao mundo adulto, no segundo. ComO reizinho mandão (1978), Orei que não sabia de nada (1980) e O que os olhos não vêem (1981), especialmente, Ruth Rocha retoma a discussão, decompondo os elementos do conto de fadas tradicional para reconstruí-los, invertendo as relações do poder. Ana Maria Machado realiza o que talvez seja o texto exemplar desse grupo de autores com História meio ao contrário (1978), em que mantém, para desmistificá-los através da paródia, alguns dos clichês da linguagem típica da tradição oral. Assim, por exemplo, começa discutindo o conceito dc “E foram felizes para sempre”, fecho

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comum de tantos contos tradicionais, para terminar com o conhecidíssino “Era uma vez...”. Desta forma está também, como Lobato, retomando personagens conhecidos do leitor, parte de suas referências culturais, para renová-los, enriquecê-los, reinventá-los. O rei de quase tudo (1974), de Eliardo França, e Onde tem bruxa, tem fada (1979), de Bartolomeu Campos Queirós, situam-se na mesma vertente, guardando-se os diferentes estilos e as particularidades de cada um dos autores. Claro está que neles encontramos, em maior ou menor grau, outras qualidades como o humor, o lúdico verbal, a linguagem poética, mas todos dão à criança um papel ativo e transformador, identificando-a com as personagens. No gênero contos de fadas e explicitando na aprcsentação do livro — ‘meu interesse e minha busca se voltam para aquela coisa temporal chamada inconsciente” —, Marina Colasanti redescobre em Uma idéia toda azul (1979) e Doze reis e a moça no labirinto do vento (1982) o encanto de um gênero desgastado por incontáveis pastiches. Longe das fadas, mas com muita fantasia, a obra de Lygia Bojunga Nunes situa-se ainda nesse mesmo grupo de escritores que tematizam os problemas da sociedade contemporânea, seja no aspecto das relações humanas, seja nas implicações psicológicas de que a criança é vítima. Com altíssimo nível de criação e originalidade de linguagem, a autora se coloca entre os grandes autores brasileiros contemporâneos e mesmo internacionais, como o comprova o Prêmio Internacional Hans Christian Andersen que recebeu em 1982 pelo conjunto de sua obra. Outro tratamento dado à representação da realidade na literatura destinada a crianças e ajovens e que muito tem a ver com Lobato é ode Viriato Correia era Cazuza (1938). Nelly Novaes Coelho nota nesse livro:

O paralelismo entre a experiência de vida do menino em sua evolução para a idade adulta e a do progresso brasileiro. Evolução ou progresso que, em ambos, radicam em um dado comum: a conquista da cultura através da Educação, em clima de aberto otimismo, apesar de não ignorar o lado precário ou limitado da realidade.

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A intenção iluminista portanto liga os dois autores além da linguagem simples e ágil, aproximada do coloquial. Na mesma linhagem situam-se Cabra das rocas (1966), de Homero Homem, e Justino, o retirante (1970), de Odette de Barros Mott, ao incorporar a seca nordestina aos temas tratados pela moderna literatura infantil brasileira . Carlos Marigny, com Lando das ruas (1975) e Detetives por acaso (1976), e Eliane Ganem, com Coisas de menino (1978), acrescentam à amplitude dos temas do momento histórico nacional o personagem do pivete, o menor abandonado, que vive em grupos nas áreas urbanas constituindo um dos mais graves problemas sociais de nosso tempo. Ambos aprofundam uma das aberturas de linguagem inauguradas por Lobato: o uso da gíria. Aqui, como não poderia deixar de ser para obtenção da verossimilhança, o vocabulário é tão marginal quanto os personagens retratados, correndo o risco de ver comprometido o tempo de vida desses textos que, no entanto, são vigorosos e belos na denúncia que fazem. Há ainda uma corrente que se quer realista mas cuja filiação ao naturalismo é evidente na escolha temática de situações problema da sociedade contemporânea e dos temas considerados tabus para o público infantil. Ela está representada na “Coleção do Pinto” que contava em 1970 com mais de 30 títulos de qualidade desigual e que tem entre seus autores nomes já consagrados nas letras nacionais. É o caso de Wander Piroli, com O menino e o pinto do menino (1975) e Os rios morrem de sede (1976). Escritos numa linguagem direta e concisa, despida de adjetivações, transmitem, no entanto, a tristeza de uma sociedade que se afasta cada vez mais da natureza, contribuindo para sua destruição. Na mesma coleção, abordando diferentes temas tabus, encontram-se Eu vi mamãe nascer (1976), de Luiz Fernando Emediato, que trata das tentativas de uma criança de procurar entender a morte de sua mãe ou O primeiro canto do galo, de Domingos Pellegrini, em que um menino descobre sua sexualidade, mesmo tema de Rita está acesa, de Teresinha Alvarenga, ambos de 1979. As injustiças sociais por demais flagrantes em nossa época

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são tematizadas por Henry Corrêa de Araújo, em Pivete (1977), e os preconceitos em relação às diferentes raças por Ary Quintelia, em Cão vivo, leão morto (1980). A revalorização da cultura popular através de suas raízes orais, uma das vertentes do modernismo como busca de valores nacionais trazida por Lobato para a literatura infantil, é retomada na década de 1970 por alguns autores que fazem do folclore ponto importante de sua obra. Ziraldo, com sua Tunna do Pererê (1972-1973) é, sem dúvida, um momento significativo, pois realiza a simbiose de traço e de palavras através da linguagem dos quadrinhos, trazendo a problemática rural para esse moderno meio de comunicação de massa. Antonieta Dias de Moraes, entre outros temas que aborda em seu trabalho, reconta lendas da mitologia indígena em A varinha do Caapora (1975) e posteriormente em Contos e lendas dos índios do Brasil (1979). Joel Rufino dos Santos dedica muitos de seus livros à reelaboração de contos folclóricos ou ainda à criação oiiginal inspirada na tradição oral. O caçador de lohisom,m (1975), O curumim que virou gigante (1980) e Histórias do Trancoso (1983) são bons exemplos de seu fazer literário em que a poesia se alia a uma linguagem de cunho marcadamente oralizante. Poesia e folclore são também fios com que Walmir Ayala tece seu texto. Vejam-se Histórias dos índios do Brasil (1971) e O burrinho e a água (1982), entre outros. Ana Maria Machado faz constantemente alusões e citações de elementos colhidos do folclore como em Bem do seu tamanho (1980) ou reconta em histÓrias cumulativas por ela descritas como “as que a nossa gente gosta de inventar, contar e ouvir” na “Coleção Conte Outra Vez” (1980-1981) e em vários outros contos. Vale lembrar ainda seu De olho nas penas, que recebeu o Prêmio Casa de Las Américas de 1980, onde o folclore transpõe as fronteiras do país e abarca o continente sul-americano e a África. Para os jovens com o hábito da leitura já enraizado há dois textos primorosos de Haroldo Bruno nos quais prepondetam elementos do folclore nordestino: O viajante das nuvens (1975) e O misterioso rapto de Flor-de-Sereno (1979).

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O humor, como instrumento de desmistificação e reflexão crítica sobre dados do contexto histórico e social, foi, como já visto, outra das inovações lobateanas. É claro que tais elementos são fartamente encontrados nas histórias da tradição oral, desde aquelas que remontam ao romance picaresco ibérico, como as aventuras de Pedro Malasartes, até a literatura de cordel. No entretanto, os textos que no início do século traziam o rótulo de “literatura infantil” eram sisudos e exemplares, o que faz do criador da irreverente Emilia o reintrodutor do riso como arma da crítica, nos livros destinados às crianças. Edy Lima em uma série iniciada com A vaca voadora (1972) mistura o insólito de uma vaca não-antropomorfizada à personagem que faz uso da magia e da alquimia para obter o riso e ainda questionar as várias faces de uma sociedade consumista, alheia ao mágico e à fantasia. Elvira Vigna, escritora e artista gráfica criou Asdrúbal, o terrível (1978), um engraçado monstrinho para exorcizar o medo. Mesmo quando apenas ilustra, como em O sofá estampado, seu desenho cria uma história paralela ao texto em que o humor é fundamental. Sylvia Orthof, embora questione a autoridade constituída, como em Mudanças no galinheiro mudam as coisas por inteiro (1981), estrutura sua narrativa em situações inesperadas ou absurdas que provocam riso e reflexão. Os bichos que eu tive (1983) talvez seja o texto em que melhor desenvolve suas potencialidades de humorista. João Carlos Marinho, escrevendo para jovens adolescentes, expressa através do humor e da ironia, como em O gênio do crime (1969) e O caneco de praia (1971) ou ainda da sátira, como em Sangue fresco (1982) uma severa crítica social, inovando ainda na estrutura narrativa muito fragmentada. Na prosa poética, Bartolomeu Campos Queirós é o primeiro a ser lembrado com O peixe e o pássaro (1974) e os premiados Pedro (1977) e Ciganos (1983). Neles, a ambigüidade e a imprecisão são estímulos à imaginação criadora do leitor. A rima, as aliterações, a sonoridade da língua, sua possibilidade de jogo, ou seja, o lúdico na linguagem, campo em que Monteiro Lobato também abriu novas possibilidades, estão presentes não só na obra de Campos Queirós,

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como na de Ruth Rocha em livros destinados a crianças bem pequenas como Palavras, muitas palavras e Marcelo, marmelo, martelo, ambos de 1976. Ana Maria Machado trabalha igualmente seus textos sob este aspecto, Um avião e uma viola (1982) é um bom exemplo, entre vários outros. 1-lá ainda os livros de Maria Mazzetti, precursora dos autores aqui lembrados e cuja obra para o pequeno leitor é exemplar, graças à linguagem poética e coloquial adequada às suas histórias simples e encantadoras, como O casacão mágico (1966) ou as histórias da “Coleção Curupira” (1968-1969). A poesia pós-modernista destinada às crianças até então resumia-se a quatro poetas. Dois precederam a década de 1970: Sidônio Muralha e Cecflia Meireles; os outros situam-se dentro dela: Vinícius de Moraes e Mário Quintana. Sidônio Muralha, poeta português da geração néo-realista, exilou-se por motivos políticos e viveu no Brasil de 1962 até sua morte, em 1982. Aqui lançou, logo de chegada, A televisão da bicha rada, inaugurando a “Coleção Giroflê-Giroflá” e sua editora, na qual em 1964 Cecília Meireles publicava Ou isto ou aquilo, um clássico da lírica infantil. Sidônio Muralha e Cecília Meireles fazem de seus versos brincadeiras sonoras e encantam crianças e adultos com a redescoberta da beleza das coisas simples. Não consideramos poesia a quantidade de versos reproduzidos em livros didáticos e que se destinam a comemorar datas cívicas ou festas do calendário escolar. A poesia que aqui referimos é aquela que só tem compromisso com a beleza, a emoção e a reinvenção da linguagem. Nessa linha, Vinícius de Moraes destaca-se com A arca de Noé (1971), onde os versos captam a sensibilidade e o lirismo que perpassa toda sua obra: a graça da exploração lúdica dos sons atinge plenamente a alma infantil. Mário Quintana, com Pé de pilão (1975), inova na forma poética com narrativa em que o non sense e o humor prevalecem. Seu livro Lili inventa o mundo (1983) é também prova de que, como Lobato, acredita na inteligência e na sensibilidade das crianças. Muitos dos grandes poetas brasileiros têm em suas obras poemas que poderiam ser amados pelas crianças se as editoras

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acreditassem que a poesia é necessária. Em Bandeira e Drummond, por exemplo, encontram-se vários poemas que fariam a delfcia da garotada à espera de uma adequada edição, que agora começa a ser publicada. No mesmo caso está o belo O menino poeta, de Henriqueta Lisboa, já editado. Esta dificuldade, no entanto, vem sendo aos poucos vencida. Alguma poesia começa a ser publicada e podem-se citar entre os novos autores Elza Beatriz com Pare no P da poesia (1980), Elias José com Um pouco de tudo, Antonieta Dias de Moraes com Jornal falado, Sérgio Caparelli com Boi da cara preta, todos de 1983. Outro componente importante na produção editorial para crianças e jovens é a ilustração. Num mundo em que o visual tem função preponderante sobre o texto através dos meios de comunicação de massa, o livro infantil não poderia deixar de aperfeiçoar seus aspectos gráficos a fim de competir no mercado, como objeto de consumo que é. Por outro lado, é importante lembrar que num país onde o analfabetismo continua desafiando planos e campanhas governamentais e em que a maior parte dos que ingressam na rede oficial de ensino provém de famílias que não aprenderam a ler, a linguagem pictórica tem valor próprio e, no processo de elaboração da linguagem, tem papel primordial. Também nesse aspecto Lobato foi antecipador. Suas primeiras histórias, hoje reunidas e mal editadas constituem o volume Reinações de Narizinho, eram inicialmente álbuns ilustrados em cores por Voltolino. Assim, ele foi fiel à sua idéia: fazer livros em que as crianças quisessem morar dentro. Também aí existem precursores e dos mais notáveis. Paulo Werneck, Santa Rosa e Luís Jardim concorreram ao primeiro concurso de álbuns ilustrados promovidos, em 1937, pelo Ministério da Educação e Saúde. Seus livros foram editados e hoje são raridades bibliográficas à espera da atuação de órgãos que preservem a memória literária nacional. Portinari foi resgatado com seu belo trabalho para Maria Rosa, da americana Vera Kelsey, em tradução de Laura Sandroni, em 1983. Os desenhistas de humor e de quadrinhos que brilhavam nas páginas de O Tico-Tico como Renato de Castro, Luís

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Gomes Loureiro, Alfredo Storni, Max Yantock, Angelo Agostini, Luiz Sá e J. Carlos foram rapidamente postos de lado com a invasão do produto norte-americano mais barato. A qualidade do desenho nos livros infantis brasileiros voltou a crescer em conseqüência da ampliação do mercado que se situa na década de 1970. Data de 1972 a ilustração de Gian Calvi para Os colegas, de Lygia Bojunga Nunes e de 1973 A toca da coruja, de Walmir Ayala, ambos premiados no concurso promovido pelo Instituto Nacional do Livro. Eliardo França, já com alguns livros publicados, recebeu em 1975 menção honrosa da Bienal de Ilustrações de Bratislava — a mais importante mostra internacional do setor— com O rei de quase tudo. Já em 1980, Rui de Oliveira recebe o Prêmio Noma do Centro Cultural da UNESCO, em Tóquio, por seu trabalho para A menina que sabia ouvir, de Michael Ende. A mesma láurea é ganha por Gian Calvi, em 1982, com Um avião e uma viola, de Ana Maria Machado. A Câmara Brasileira do Livro dá outro impulso à produção de nossos artistas, instituindo o Prêmio Jabuti para ilustração, ganho por Angela Lago e Regina Yolanda em 1982 e 1983. Mas são poucos os prêmios e muitos os artistas. Entre eles citamos Gê Orthof, Patrícia Gwinner, Ana Raquel, Gerson Conforti, Flávia Savary, Walter Ono, Humberto Guimarães, Ivan e Marcelo e ainda Ricardo Azevedo — premiado em Bratislava em 1983 — e Eva Furnari, que vem se especializando em livros sem texto especialmente destinados ao pré-leitor. O teatro infantil é outro gênero em que as editoras tradicionalmente não gostam de investir. Embora existam no país inúmeros grupos amadores necessitando de bons textos para seu repertório, são poucos os autores que têm sua obra publicada. Maria Clara Machado, é a exceção. Realizando há mais de 30 anos seu trabalho artístico no Tablado, tem nos cinco volumes do Teatro de Maria Clara Machado editadas quase todas as suas peças. Dentre elas destacamos Plufi, o fantasminha e O cavalinho azul, duas pequenas obras-primas traduzidas e publicadas em vários países. Ambas foram adaptadas pela autora em forma de narrativa e encontram-se entre os mais bem

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editados livros infantis brasileiros. Sylvia Orthof teve seus primeiros sucessos como escritora através do teatro com A viagem do barquinho (1975) e Eu chovo, tu choves, ele chove (1976), nas quais sua inventividade já era marcante. Ilo Krugli com sua bela História de lenços e ventos é outro importante autor do gênero que Ana Maria Machado também domina. Por trás desse crescimento que se pode ainda aferir através das muitas livrarias especializadas que surgem nessa época por todo o país, está um trabalho fecundo realizado nas universidades através dos cursos de literatura infantil, nos seminários, nas mesas-redondas e nos congressos promovidos por entidades públicas, como as Secretarias de Educação, e privadas, Como a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, dos quais participam centenas de professores e de bibliotecários que atuam no primeiro grau de ensino. E ainda nas colunas de crítica que começavam a ocupar espaços em vários jornais. O trabalho na área da cultura é lento e o que agora se denomina impropriamente boom do livro infantil nada mais é do que o resultado da semeadura não tão recente, aliada ao crescimento natural do público leitor e ao crescimento da classe média urbana. Muito há, ainda, a ser feito especialmente ria área do acesso ao livro, seja através da melhor distribuição comercial, na qual Lobato também interferiu, seja através da melhoria da rede de bibliotecas públicas e escolares. Conscientes de que o bom leitor adulto é aquele que cedo teve a oportunidade de leitura, todos os envolvidos no processo de produção, do autor ao livreiro, passando pelo editor e pelo crítico, devem trabalhar para permitir o acesso cada vez maior ao livro destinado a crianças e a jovens e o permanente processo de melhoria do produto.

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2. BALANÇO DOS ANOS 60/70

Maria Antonieta Antunes Cunho

O primeiro ponto que gostaria de enfatizar é que quase todas as trilhas mais interessantes da literatura infantil brasileira foram ensaiadas na segunda metade dos anos 60 e dos anos 70. Muitos dos melhores nomes de nossa literatura infantil de 1997 estavam lançando-se àquela época, prenunciando trajetórias vitoriosas. Se na poesia contávamos com obras primorosas de Cecília, Sidônio, Quintana e Vinícius, também a prosa poética nos oferecia Bartolomeu Campos Queirós e Luiz Raul Machado, com seu nem sempre louvado quanto mereceria João teimoso, sem falar numa obra especialíssima de Jorge Amado, com as melhores qualidades da produção do escritor para adultos, e que cabe magnificamente nesse caso: O gato malhado e a andorinha Sinhá, uma história de amor. No caso do teatro, além da prodigiosa obra de Maria Clara Machado, vale sublinhar a importância de Lúcia Benedetti, cujas peças há muito — infelizmente — não são reeditadas. Sua obra, clássica como a da autora de Pluft, o fantasminha, também entende o teatro como uma forma de participação afetiva, pessoal e “interna” da criança nos acontecimentos do drama, sem a preocupação com a

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“participação” muitas vezes forçada, sem sentido e histérica da criançada no desenvolver da ação dramática.. Também à época aparecia com seu Vento forte a inventiva de Ilo Krugli. Os contos de fadas, retomados de maneira absolutamente ímpar, (mesmo considerando a literatura estrangeira) por Marina Colasanti, eram revisitados já, sobretudo em forma de paródias, com Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Fernanda Lopes de Almeida e Chico Buarque. Tínhamos ainda a produção de Érico Veríssimo. Hoje, inspiradas ou não na idéia do “politicamente correto”, são várias as propostas desse tipo. A comicidade, o non sense e a irreverência, juntos, ganharam um nome definitivo e iluminado: Sylvia Orthof. E o livro de imagens já apresentava obras-primas de Juarez Machado: Ida e volta e Domingo de manhã, este inexplicavelmente fora de circulação há muitos anos. Mas gostaria de ressaltar alguns pontos do legado de Monteiro Lobato e de seus herdeiros. Lembro uma frase de Nietzsche que ele gostava muito de citar, como o fez na Barca de Gleyre: “Se quiser me seguir, seja você mesmo”. Pois há grandes autores que, influenciados certamente por Lobato, criaram obras originalíssimas. Lobato, por exemplo, criou uma boa quantidade de narrativas com as mesmas personagens, sem qualquer concessão (o que é muito comum hoje em dia) à “produção em série”. Ao contrário, sem se repetir, as personagens criam um universo surpreendente a cada obra propriamente sua, além da intromissão sempre interessante na sua “releitura” das narrativas da literatura mundial. Nisso, podemos dizer com toda segurança que Lobato é único no mundo. Nesse item, João Carlos Marinho segue as pegadas de Lobato e cria a turma do Gordo, envolvida em aventuras policialescas e de mistério, com altas doses de originalidade, de humor e de sátira. Outro ponto importante da obra de Lobato é seu gosto pela aventura aliada ao questionamento. Era, sem dúvida, um grande contador de casos cheios de ação buscando novas interpretações para os fatos.

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Nesse aspecto ao nome do próprio Marinho deve-se acrescentar o de Orígenes Lessa. Amigo de mestre Taubaté e como ele também começando a escrever tardiamente para crianças (depois de premiadíssimo romancista e contista para adultos), Lessa surpreendeu o público com Os homens de cavanhaque de fogo, Jasão e os centauros invisíveis, Confissões de um vira-latas, entre muitos outros títulos. Cito obras de Orígenes porque tenho percebido certo esquecimento do autor, o que em parte se explicará pelo que se dirá mais adiante. Um terceiro ponto para mim fundamental para caracterizar a obra de Lobato é a criação de narrativas longas. É até interessante notar que sua obra para adultos se notabilizou sobretudo pelo conto. No entanto, para crianças escreveu em geral romances. Essa última característica, sem dúvida das mais positivas, acabou por colaborar em grande parte com seu pequeno aproveitamento na escola fundamental brasileira e, conseqüentemente, com a sua ausência no lar brasileiro. De certo modo, nossa escola não tem conseguido encontrar o espaço e o tempo adequados para a leitura de suas obras. Muitos educadores o consideram extremamente difícil e “pesado” para as nossas crianças, hoje. Outros consideram-no ultrapassado — como se isso ocorresse com as grandes obras de arte. Com relação a essa opinião, vivemos em Belo Horizonte uma situação exemplar, que gostaria de relatar aqui. Preparávamos diretores e técnicos das escolas de Belo Horizonte (notem: da capital mineira) para uma feira de livros onde cada escola escolheria, de uma seleção feita por equipe de especialistas, os livros de literatura infantil que comporiam o Cantinho de Leitura de cada sala das escolas da rede estadual onde funcionassem turmas até 4a série. Pois uma diretora, ao consultar a lista de obras selecionadas, quis ir embora, com a seguinte frase: “Não tenho o que fazer aqui. Eles ainda estão no tempo do Lobato!”. Pois bem: nessa característica Lobato não tem muitos seguidores, a não ser Marinho e Lessa e um que outro autor em alguma obra isolada. Não se trata, evidentemente, de desvalorizar obras menos extensas, que podem ser excelentes e importantíssimas Trata-se, isso

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sim, de considerar que a criança alfabetizada pode e deve ter acesso também a narrativas de maior fôlego. Afinal, a nossa geração e outras leram Lobato na 3ª e 4ª séries ‘do Grupo” (antes o tinham ouvido na leitura dos pais). Não há por que nos considerar mais inteligentes do que a geração de crianças de hoje. Certamente, mudou a cultura da leitura — e é exatamente isso que se deveria discutir. Essa ausência de Lobato e de outros autores de narrativas mais alentadas tem a ver com uma política equivocada, ditada ou seguida pela produção editorial, que optou por uma atitude extremamente paternalista no tratamento da leitura: a de “ganhar” o leitor (mesmo o que deveria ter o domínio da leitura) com livros de textos curtos (às vezes, ruins) e muitas ilustrações, de preferência em quatro cores, mesmo que eventualmente sem qualidades estéticas. Aqui, a importante idéia do “desafio”, que mobiliza as pessoas e as leva para frente, desaparece, no campo da leitura. Não há desafios para a criança, como não há também para o professor, que tem “a vida facilitada” não só pela obra pouco instigadora e muito curta, além de vir acompanhada de ficha de leitura com “sugestões”, nem sempre criativas e interessantes e que viram dicas infalíveis para o uso do livro. Parece-me que essa questão, de enorme significado para uma pedagogia da leitura, tem de ser enfrentada rapidamente. Convém lembrar que os anos 60 e 70, como não poderiam deixar de ser, apresentaram os “desbravadores” também na área da pesquisa, da crítica e de uma divulgação mais refinada da literatura infantil. Autores e estudiosos da área enfrentavam o “nariz torcido” e a incredulidade da universidade, da escola, da crftica e até das editoras. Foi necessário muito debate, em encontros e em seminários, muito curso, até que as instituições percebessem a seriedade da literatura infantil e suas possibilidades estéticas. Hoje, solidificado esse reconhecimento (ou quase), temo que estejamos vivendo um outro preconceito, tão prejudicial como o que combatíamos naquele primeiro momento: o crescimento da área, como o melhor filão do mercado editorial (com menos riscos do que os do

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livro didático), acaba deixando de certa fonna implícita a idéia de que toda obra que chega às crianças corno literatura tem o mesmo valor literário. Talvez o maior problema não seja a sua indicação (normalmente, obrigatória) para leitura. Os maiores problemas talvez sejam sua leitura acrítica, como boa literatura, e a tendência dos educadores (pais e professores, por exemplo) a priorizarem de maneira quase exclusiva esse típo de obra, não possibilitando pela experiência diversificada o cotejamento entre propostas literárias, para a escolha cada vez mais sensível e inteligente de leituras pessoais.

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3. A LITERATURA INFANTIL NOS ANOS 80 1

Maria da Glória Bordini

Não é possível compreender a literatura infantil ou a juvenil da década de 1980 sem um retrospecto aos anos 70, marcados por uma sociedade estrangulada, dividida entre contradições radicais, iludindo-se com grandes empreendimentos desenvolvimentistas, enquanto os problemas seculares das relações campo-cidade, latifundiários e camponeses, capitalistas e operários continuavam a se reproduzir sem nenhuma perspectiva de solução. Desde os anos 60, para a burguesia industrial, mais progressista do que a agrária, o país devia alinhar-se ao capitalismo internacional e as estruturas arcaicas teriam de ser abandonadas. Houve por isso uma tolerância atípica ante reivindicações nacionalistas e anti- imperialistas que deu abertura ao governo Jango, com suas propostas de reformas de base (reforma agrária e impedimento da remessa de lucros para o exterior). A necessidade de modernização da sociedade,

l. Este texto deve muito ao artigo de Regina Zilberman, “Literatura para crianças dos últimos 20 anos”. Litterature D’America, Roma: Buizoni, v.8, no 35, 1987, pp. 45-56.

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para atingirem-se os patamares de riqueza dos países do Primeiro Mundo, requeria a diminuição das desigualdades sociais crônicas que sempre assolaram o Brasil. Sabe-se o que aconteceu: os movimentos intelectuais e populares de esquerda tentaram a mudança, que atemorizou as classes conservadoras, as quais, aliadas ao Exército, puseram rápido fim a tais esperanças. O nacionalismo é substituído por um alinhamento com as posições políticas norte-americanas para a América Latina, de ordem colonialista e anticomunista, o regime democrático se torna ditatorial, as medidas impostas à força passam a ser combatidas também pela força da guerrilha, o clima de terror se instala, as relações trabalhistas são engessadas e o sistema educacional é desmantelado pelo acordo MEC/Usaid, cujo espírito é falsamente profissionalizante e decididamente contrário ao cultivo das idéias. Nos anos 70, surge o chamado ‘milagre brasileiro”, que eleva a dívida externa a níveis inauditos. Constroem-se obras faraônicas como a Transamazônica e a Itaipu, que nada resolvem das questões de base. Os benefícios do crescimento do mercado interno, à custa do endividamento individual pelos crediários fáceis e pelo progressivo achatamento dos salários, as manipulações financeiras que produzem uma espiral inflaciorária compensada artificialmente pela correção monetária levam o país ao fundo da crise social: arrocho salarial, carestia, empobrecimento da classe média, falta de investimentos na industrialização para pagar a dívida externa, tortura e morte de presos políticos denenciadas internacionalmente desgastam a imagem desenvolvimentista da ditadura militar. O movimento operário e o estudantil tentam se rearticular em face da miséria econômica e caltural insuportáveis e as próprias elites empresariais percebem que conseguiram apenas uma riqueza volátil, sem o lastro de um mercado consumidor sólido. Há uma crise econômica internacional, a ciptação de recursos se torna difícil, e a saída prevista é a redemocratitação, para que a própria sociedade trate de cuidar de si e de enfrentar cagravamento dos problemas que meras soluções tecnoburocráticas não conseguem superar.

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Os governos Geisel e Figueiredo efetuam uma transição do regime ditatorial para o democrático e entregam o país ao governo Sarney, um seguro velho aliado, partidário das mesmas velhas soluções, uma vez que não se pode pensar no governo Tancredo como algo que tenha se concretizado além do plano das aspirações idealistas de certos segmentos políticos nacionais. Ou seja, os anos 80 vêem o país anistiado politicamente, com novos partidos — de ideologias ambíguas, é verdade — disputando o poder, mas inviável na esfera econômica, como os sucessivos planos e pacotes antiinflacionários vieram a provar. A industrialização do campo, com as facilidades de empréstimos, determina a migração dos camponeses para as cidades, nas quais a industrialização não avança e o desemprego progride. Se a cultura nos anos 80 parece atingir a mais pessoas, com a escolarização, apesar de sua debilitação em termos de qualidade, espalhando-se pelo país e recebendo o apoio de veículos de massa e mesmo de fundações de grandes empresas internacionais como a Hoescht e sua Ciranda de Livros, a produção cultural começa a padecer da doença de seu contexto: querendo-se emancipatória, libertária, não obstante depende dos mecanismos do mercado, Torna-se bem de consumo, a ser propagado, para a sobrevivência da indústria e dos produtores culturais, da mesma forma que outros produtos, ou seja, dirigindo-se para necessidades reais ou criando na maioria das vezes necessidades artificiais, para aplacá-las, com a conseqüente perda de sentido crítico. Tudo isso tem sentido quando se pensa que a literatura, como objeto cultural produzido num sistema capitalista, depende das macroestruturas econômicas tanto quanto do ímpeto criativo de seus cultores. Foi especialmente no cenário contraditório dos anos 70 que a indústria editorial expandiu-se, confiante nos ganhos com a inflação da moeda e com o surgimento de um público cativo, o único efetivamente forçado a comprar, o das escolas, que se multiplicaram em massa pelo país, oferecendo, evidentemente, uma educação também massificada e alienante.

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A resistência ao regime discricionário entre as elites intelectuais, por seu lado, manifestou-se sobretudo como luta contra a censura e em favor das novas causas humanistas mundiais: os direitos humanos, a ecologia, o antibelicismo, a recusa à racionalidade instrumental do capitalismo avançado. Campanhas pela leitura, o fortalecimento do Instituto Nacional do Livro, que se torna co-editor de grandes casas editoriais, incentivando novas publicações e novos talentos, o deslocamento dos escritores para áreas afins, como o jornalismo e a publicidade, proporcionam outros níveis de profissionalização, o que por sua vez demanda leitores e canais mais amplos de circulação, numa cadeia expansionista contínua. Com o aumento do mercado e a demanda incipiente de idéias, o número de escritores aumentou, assim como as estratégias de apelo ao público. Trata-se de conquistar leitores em todas as faixas etárias, desde a criança até o operário. A literatura abandona o esteticismo existencialista dos anos 50, a rigidez ideológico-pedagógica dos anos 60, vale-se da ironia e da fantasia para driblar a censura nos 70 e, finalmente, nos anos 80, lança-se à apropriação dos meios da cultura de massa, então já garantida pelo agigantamento das redes de televisão, parodiando-os. As obras tornam-se ilusoriamente mais leves, brincam com a História, com os gêneros populares, com o estilo jornalístico e televisivo, abandonam a dificuldade narrativa dos anos 70 — aqueles textos fragmentários alineares e fantásticos que fizeram a fama de Callado ou J.J. Veiga — e, na poesia, antes adepta das técnicas de alta comunicabilidade da literatura marginal e da música popular brasileira, os novos expoentes voltam-se para os pilares do vanguardismo internacional, Eliot e Mallarmé, em termos de procedimentos, e aos temas do cotidiano citadinu ou provincial. A euforia da redemocratização e da expansão mercadológica para o livro continua. Como a base econômica assenta sobre a especulação financeira, a indústria editorial, em expansão nos anos 70, agora nos 80 se consolida, a partir das facilidades de capital de giro oferecidas pela inflação. A concorrência cresce na mesma medida que o número de lançamentos o que obriga a especializarem-se

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mais as fatias de mercado; os incentivos oficiais para a compra de papel se mantêm e, se os órgãos de fomento ao livro esgotam suas campanhas de divulgação assim que os parceiros da iniciativa privada se desinteressam pelo processo de democratização, ainda persistem algumas iniciativas em que a demanda da sociedade se tornou habitual, como a distribuição de livros em massa às escolas e o contato entre autores e estudantes. Publica-se mais nas áreas da moda internacional: biografia, viagens, auto-ajuda; assim como nas áreas de retorno seguro: clássicos literários brasileiros em edições escolares, autores já consagrados. Os adultos e os adolescentes lêem sempre menos, com o advento de novos meios de lazer e de conhecimento, como os programas de cuidado físico em academias, os espetáculos televisivos, especialmente desportivos e telenovelísticos, os shopping centers, verdadeiros quadros-vitrine da produção industrial esteticizada, os videogames e os computadores pessoais, que começam a fascinar os mais jovens nas famílias abonadas. A demanda por livros se torna bem mais especializada. Compram os que precisam ler por razões de atualização profissional ou de formação geral e profissional. Livros de entretenimento tradicionais, como romances picantes e vertiginosos, são quase a única forma de leitura das horas ociosas, cada vez menores, da classe média. As classes ditas populares ficam restritas aos livros de bancas de revista, versões degradadas dos gêneros chamados de triviais, e aos livros da escola, uma vez que o sistema de bibliotecas públicas e escolares no país sofre da mesma contradição que cerca o objeto que o justifica: os livros ali estão para serem guardados e utilizados devotamente. Embora produtos industriais como qualquer sabonete ou sapato, são o receptáculo sagrado de idéias e de sonhos da humanidade e devem ser contemplados à distância, com reverência. Não admira que alunos da Y série em diante, perdida a relação lúdica que suas professoras de Currículo por Atividades sabiam emprestar à leitura, deixem de ler e tornem-se adultos desinformados. Esse público, com essa (de)formação, não reconhece

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nem procura qualidades artísticas. Quando consome literatura, faz parte do grupo que Roman Ingarden classifica de leitor egotista, ou seja, aquele que procura no texto o seu prazer, não o da obra. No caso da literatura infantil, a situação não evolui de maneira muito diversa. Também nas águas do processo de modernização empreendido tecnoburocraticamente nos anos 70, o gênero, que sempre, desde seu nascimento, vinculou-se à sociedade burguesa industriaL, beneficiou-se dessas condições de incremento capitalista. Foi, porém, um tanto paradoxalmente, o lugar em que muitas mentes progressistas puderam exercer um trabalho de caráter humanístico e emancipatóriO mais claro num país sob regime de força. Como se escrevia para crianças, um segmento social historicamente ignorado pela assimetria de poder entre adulto e infante, este no máximo encarado como futuro material humano da nação, foi nesse setor que a resistência ao regime militar passou despercebida e plantou sementes de liberdade. Autores como: Ruth Rocha e seu O reizinho inandão, Ana Maria Machado com De olho nas penas e Do outro lado tem segredo, Lygia Bojunga Nunes com Os colegas, Angélica e A bolsa amarela, Carlos de Marigny, com Lando das ruas, Fernanda Lopes de Almeida com sua fadinha contestadora, Sérgio Caparelli e seus meninos da Rua da Praia, a “Coleção do Pinto” e outros tantos, através do universo mágico dos livros infantis, puderam desacreditar os valores que sustentavam a política de linha dura dos militares, de certo modo induzindo uma geração a pensar por si e a desconfiar de idéias que matam. A reforma de ensino dos anos 70 aumentara o número de professores, de alunos e de escolas, incentivara os cursos universitários e instituíra os cursos depós-graduação, favorecendo o incremento da produção industrial de livros, os quais passavam a contar com um segmento de demanda bastante segura. Entretanto, a maior parte dessa imensa rede escolar atend[ia populações de baixa renda, sem recursos para material didático e muito menos livros. Foi esse o motivo dos programas oficiais de fomento ao livro, como o Plidef e o Plidem, que nos anos 80 foram desativados e substituídos pela ação

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da FAE, com suas Salas de Leitura, sempre, porém, com a finalidade de baratear a produção das obras, ou de levá-las diretamente às escolas e às bibliotecas escolares, através de compra aos editores. Esses programas tornaram o governo o principal cliente da indústria editorial, em especial nos anos 80, em que a rede escolar foi fartamente abastecida de livros não apenas didáticos e paradidáticos, mas de literatura infanto-juvenil, determinando um novo panorama na produção e recepção nessa área. Novos autores surgiram, gêneros proliferam, e alguns até se aperfeiçoam, como poesia infantil, que desde 1980 se reformula, cresce em número de autores e títulos e se afasta em definitivo do modelo bilacquiano do poema cívico-exortativo. Se o processo de redemocratização exigiu essa reformulação nas relações entre indústria e público, a presença forte do governo como principal cliente não alterava em muito o relacionamento unilateral vigente na década anterior, Os órgãos continuam a ditar regras, afeiçoando os acervos a serem postos à disposição do público infantil. Todavia, nesses árgãos a antiga tecnoburocracia encontrou a resistência de funcionários de mentes abertas e, em especial no Programa Salas de Leitura, a seleção de títulos foi da melhor qualidade, por meio de um sistema de consultores da sociedade civil, especialistas em literatura infantil, o que igualmente incentivou a permanência no mercado de autores de boa qualidade e de ideologias progressistas. Como afirma Regina Zilberman, todo esse movimento de reação se deveu à constatação de que o ensino oferecido pelo regime militar nos anos 70 visava apenas a qualificar uma mão-de-obra egressa do meio rural, ignorante, para as tarefas menos exigentes do sistema industrial urbano. A denúncia da crise deformação, refletindo-se sobre a leitura, espalhou-se como um incêndio social:

as crianças [...] estão submetidas à escravidão do livro didático, este é autoritário e expressa a ideologia conservadora. Várias instituições e associações criticaram o modelo vigente,

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revelaram suas fraquezas e propuseram alternativas. Como uma delas confundia-se com o aproveitamento da literatura infantil pelo professor em sala de aula e o trabalho pedagógico com leitura, ficaram bastante prestigiadas as que lidavam com aquele gênero: a Fundação Nacional dio Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), o Centro de Estudos de Literatura Infantil e Juvenil (CELIJU), a Associação de Leitura do Brasil (ALB), entre outras. Estas entidades, e outras, oficiais, como o Instituto Nacional do Livro e a Fundação de Assistência ao Estudante (FAE), adotaram políticas de estímulo à leitura, especialmente do texto literário, concebendo—o como motivador de posicionamento lúcido perante o imundo e favorecedor de habilidades de escrita e reflexão na escola. A literatura infantil, principal iniciadora ao ritual da leitura, colocou-se em posião privilegiada; e seu consumo foi considerado positivo.” 2

Essa explosão orientada da literatura infantil nos anos 80 trouxe conseqüências que perduram até hoje. Suas motivações incidiram mais no plano ideológico, em que conservadores e progressistas viam o papel da arte literária — pragmaticamente — ou como civilizatório ou como emancipatório, do que no plano estético. Apesar disso, o gênero adquiriu uma identidade própria, renovou estilos e conteúdos, penetrou em regiões onde antes a palavra em estado de arte jamasis alcançara e produziu efeitos benéficos: atraiu jovens para a leiturat literária. Pensando-se esta como uma simulação do mundo, como queir o semioticista eslavo luri Lotman, muitas crianças e muitos adolescentces conheceram pelos livros de literaturaem suas escolas aspectos da realidade que antes nem imaginavam poderem existir. Se ao fim dos anos 70 a tendência dominante no gênero era a contestatória, expressando as insatisfações populares ou humanistas com os resultados da política desenvolvimentista do rregime militar, nos anos 80, mais liberalizados, tudo podia ser matériáa para a ficção infanto-juvenil. Pesquisando uma amostra de 300 títullos publicados

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2. Id., ibid.

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nessa década, encontram-se as seguintes linhas de ação: 30% de obras sobre o cotidiano infantil (vida doméstica, curiosidade infantil, brinquedos e travessuras, relações com pais e irmãos, aquisição de noções ou desejo de crescer), sejam de características fantásticas ou realistas; 27% incidem no âmbito do conto fantástico, especialmente antropo- mórfico, em que animais substituem a criança como herói, objetos ou elementos naturais são animados ou se propõem remos encantados e seres egressos do conto de fadas, sob vestes modernas; 17% dedicam-se à representação da vida de pessoas, meninos e meninas, velhos e tolos, e 10% a questões de História e da modernidade recente (ecologia, vultos históricos, veículos, guerras, violência urbana); 7% referem-se a gêneros de massa, em especial mistério e detecção e honor; 5% são dedicados no folclore e à religião; e os percentuais restantes a adaptações paródicas ou a clássicos simplificados. Nos anos 80, o modelo criança vence o adulto dos anos 70, originário do conto de fadas compensatório, torna-se menos militante e mais dúctil. Tanto pode retrabalhar e inverter esse conto de fadas, como em A fada enfadada, de Eliane Ganen, ou em Uxa, ora fada, ora bruxa, de Sylvia Orthof (1985), quanto o conto policial, como em João Carlos Marinho, em Sangue fresco, ou Paulo Rangel, em O assassinato do conto policial (1989), como a literatura social, como em Meg foguete (1985), de Sérgio Caparelli, ou Ciganos, de Bartolomeu Campos Queirós. O que distingue essas obras de suas respectivas tradições é o predomínio da verossimilhança sobre a veracidade, o emprego da fantasia sem hesitações e com caráter metafórico e não apenas compensatório e a criação de personagens infantis fortes, mesmo diante de barreiras sociais intransponíveis. Também em contigüidade com a década de 1970, há na de 1980 a ficção realista, seguindo o modelo do Romance de Trinta, de denúncia dos problemas sociais, encontrável em obras contundentes como Cão vivo, leão morto (1980), de Ary Quintella, Porã (1980), de Antônio Hohlfeldt ou Você viu meu pai por aí? (1987), de Charles Kiefer. Essa tendência não elege o modelo criança versus adulto e sim criança e/ou adulto versus condições sociais adversas, como a

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degradação da natureza, o genocídio das nações indígenas, a desestruturação familiar. Nessa corrente de continuidades, mantém-se igualmente o modelo intimista que Lygia Bojunga Nunes praticara nos anos 70 e que em Corda bamba, de 1979, atinge seu ápice de exploração da interioridade infantil. Na década de 1980 a própria Lygia escreve obras como Tchau (1985), sobre a emancipação da mulher-mãe e encara temáticas dificultosas, como o entendimento infantil sobre a separação dos pais, o abandono dos filhos, os desníveis gerados pela má distribuição de rendas, ao lado de uma defesa da fantasia como refúgio e sentido para a vida, na história da amizade do pescador com seu barco ou do ciúme que impulsiona positivamente a criatividade. Seus novos textos, porém, beiram à depressão e se afastam do público infantil. Quem sustenta a narrativa intimista, num clima fantástico, abordando os temas existenciais da emancipação feminina é Marina Colasanti em obras como Doze reis e a moça no labirinto do vento, de 1982. Também Ana Maria Machado, com Bisa Bia, Bisa Bel (1982), mergulha fundo e liricamente nas relações infância-velhice, sem a tentação do sentimentalismo ou do realismo de exterioridades. O curumim que virou gigante (1980), de Joel Rufino dos Santos, O short amarelo da raposa (1980), de Maria Heloa Penteado, Pinote o fracote e Janjão o fortão (1980), de Fernanda Lopes de Almeida, As muitas mães de Anel (1980), de Mima Pinsky, A viagem de Clarinha (1984), de Maria Clara Machado, O dicionário de Serafina (1984), de Cristina Porto, O galo maluco (1985), de Sônia Junqueira, A menina de sol e areia (1989), de Ana Maria Bobrer, são outros textos que tematízam, de modo sjmbólico, o mundo interior da criança, procurando expressar suas necessidades e apresentar soluções a seu alcance. Duas outras tendências avultam nos anos 80. A primeira delas aproveita o folclore nacional, não como antes, com seu componente crítico ou anedótico muitas vezes reprimido ou substituído por um sentido pedagógico. Joel Rufino dos Santos, desde Histórias do

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Trancoso, de 1984, atua na recuperação do elemento cômico-satírico dos contos populares — seu A botija de ouro (1984) é modelar —-e Ricardo Azevedo, com ênfase na linguagem das quadras populares, igualmente retoma seres e causos lendários. A série da Editora Ática dedicada ao conto de fadas de origem nacional — na verdade, ibérica —ganha espaço com obras cativantes como A caranguejinha de ouro (1986), de Aramis Ribeiro Costa. Também Ana MariaMachado, com Uma boa cantoria (1980) e O barbeiro e o coronel (1984), renova a narrativa com os recursos de repetição das trovas populares. Na poesia, Guriatã (1980), de Marcus Accioly, recria o estilo dos cantadores nordestinos. e autores como José Paulo Paes, Sérgio Caparelli, Ciça e Tatiana Belinky desenvolvem poemas a partir de fragmentos de poesia folclórica nacional e internacional. A segunda dessas correntes adapta os gêneros da literatura de massa. O conto de horror, o conto policial, a história de aventuras, a novela sentimental, a de ficção científica proliferam em geral com os mesmos traços de trivialidade dc seus modelos, destinados a um entretenimento fácil e descartável. Todavia, essa área da produção também tem dado abertura à criatividade solta, freqüentemente lúdica e paródica, resultando em obras inovadoras e cativantes, como o Jacaré cosmonauta, de Ayaia, A operação do tio Onofre (1985), de Tatiana Belinky, ou O barulho fantasma (1984), de Sônia Junqueira. Antes de 1980, poucos livros com poemas para crianças tinham sido editados, embora o gênero já contasse com exemplares de qualidade indiscutível: O menino poeta, de Henriqueta Lisboa, A arca de Noé, de Vinícius de Moraes, e Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles. Essas obras resultaram da incursão ocasional de nossos grandes poetas na literatura infantil; mas estimularam escritores como Sérgio Caparelli, Elias José, José Paulo Paes, Bartolomeu Campos Queirós, Roseana Murray, a dedicarem sua poesia exclusivamente ao público infantil, fortalecendo uma áreade criação literária e respondendo a uma demanda que se revela convidativa. A par dessas tendências de renovação ou de uma continuidade produtiva e instigante, as necessidades de atender a um

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mercado com características de consumo e de profissionalizar os autores conduziram a literatura infanto-juvenil dos anos 80 por outros caminhos às vezes nem tão recomendáveis. Multiplicaram- se as séries ou coleções, freqüentemente de autoria única, ameaçando os escritores com os inevitáveis altos e baixos. A demanda gulosa por novidades conduziu a uma pulverização temática e estilística em que muito se escreve, mas sempre sobre o mesmo. A massa da produção se apresenta como redundância anódina, viciada pela ânsia de agradar, mesmo que isso signifique reapresentar sempre o mesmo prato cnm outra decoração. Multiplicam-se os autores caudatários, com obras sem nenhuma relevância, salvo a de poder alimentar um impulso para a leitura mais exigente, quando a náusea dos assuntos e dos heróis repetidos se torne insuportável. Todavia, pelas mesmas razões, algumas vantagens em termos de emancipação do leitor criança vieram à tona, à medida que a década avançava. A necessidade de esteticização do produto livro para uni mercado em larga escala determinou uma melhoria significativa na produção gráfica, com excelentes ilustradores e programadores visuais. As séries proporcionaram o aumento quantitativo de clássicos adaptados — no geral com fidelidade e ótimo estilo —, colocando o acervo da literatura ocidental ao alcance das mãos dos jovens. Bons autores estrangeiros voltaram a ser traduzidos, rompendo-se uma espécie de xenofobia que se insinuara nos meios educacionais e culturais na década anterior. Solidificando-se, nos anos 80, a partir do novo processo de modernização da sociedade, com sua débil redemocratização e contínuas tentativas de chegar a uma economia de escala, sem inflação e com a aspiração de garantir o bem-estar social a setores mais amplos da sociedade, a literatura infantil brasileira detiniu seu próprio sistema de produção e de circulação de bens culturais, a partir da demanda de um público cativo — o escolar— e do estímulo estatal à empresa privada. Com isso, assumiu o risco das oscilações dos modelos econômicos governamentais, o comprometimento com os valores

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pseudo-emancipatórios da burguesia urbana e com sua representan educacional, a pedagogia de massa, o que a ameaçou de perder em qualidade artística e força transformadora. Associando-se aos mesmos aparatos que sustentam a cultura de massa, embora evitando modelar-se por ela, passou a depender entretanto, dos gostos voláteis dos setores cada vez mais segmen tados do público infanto-juvenil, que a obrigaram a diversifícars, em busca da perpétua novidade que alimenta o mercado de consu. mo, e a produzirem ampla escala, o que determina a estética d repetição, de que desde então vem se ressentindo. Faça-se, porélr[, a reserva devida aos criadores realmente originais que nessa década propuseram às crianças um olhar não mais “protegido” às mazelas nacionais e às angústias pessoais, mas souberam direcionar essas visões com elevada dose de humor, de sinceridade e de esperança nos próprios jovens

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4. LITERATURA INFANTIL Dos ANOS 80

Ana Lúcia Brandão

O grande marco da literatura infantil e juvenil dos anos 80 acontece por duas vias em diálogo: produção e reflexão. Primeiramente vamos tecer considerações sobre as mais importantes características dessa produção. Bem, de uma forma geral, a produção de livros infantis e juvenis na década de 1980 cresce vertiginosamente e consolida-se em termos de mercado editorial, em quantidade e também em qualidade de propostas em ficção, poesia e livro de imagem. De 1980 a 1985 são publicados inúmeros títulos de literatura infantil, apresentando uma grande diversidade de autores e de propostas e poucos tftulos juvenis, com exceção a ser feita a famosa “Série Vaga-lume”, da Editora Ática, fenômeno de comunicação de massas, que já veio vindo dos anos 70. Um bom número de escritores que vinham se dedicando à literatura infantil se consolidam no mercado pela qualidade de suas propostas e seus questionamentos, como Ana Maria Machado, Ruth

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Rocha, Joel Rufino dos Santos, Sylvia Orthof, Maria Heloísa Penteado, Ziraldo e Elvira Vigna, por exemplo. De 1985 a 1990 a vasta produção de livros infantis mantém-se, consolidando um novo número significativo de bons escritores na área, como: José Arrabal, Tatiana Belinky, Ciça Fittipaldi, Rogério Borges, Anna Flora, Ana Maria Bohrer, Márcia Kupstas, Terezinha Alvarenga e outros. Nessa mesma fase, de 1985 a 1990, os livros de literatura juvenil são publicados em maior número, por diversas editoras, fazendo emergir nesse campo conhecidos autores de literatura infantil como Luiz Galdino, Ana Maria Machado, Sylvia Orthof, Lygia Bojunga Nunes, Terezinha Éboli. Paralelamente a isso, novos autores e novas propostas dedicadas ao público jovem surgem através de obras de Luiz Antonio Aguiar, Liliana Iacocca, Paulo Rangel, Álvaro Cardoso Gomes, Ivan Ângelo, Marcelo Carneiro da Cunha e outros. O livro de imagem, inserido no mercado editorial como proposta única e inovadora por Juarez Machado em Ida e volta nos anos 70, consolida-se como gênero na literatura infantil, graças aos livros que realizam visualmente idéias inteligentes e sensíveis de Angela Lago, Eva Furnari, Rogério Borges, Maria José Boaventura e Regina Coeli Rennó. No campo da poesia, encontramos o novo diálogo prosa e poesia, dando vazão ao gênero prosa poética tão bem exemplificada nas obras de Bartolomeu Campos Queirós, no humor questionador de Ruth Rocha, Sylvia Orthof e Ana Maria Machado, por exemplo. No campo da poesia ainda contamos com a presença preciosa de Roseana Murray, Sérgio Caparelli, José Paulo Paes, Wania Amarante, Elias José, Ciça Alves Pinto, MônicaVersiani, Antônio Barreto e Dilan Camargo. Nos anos 80, percebe-se que algumas editoras abrem espaço para os coordenadores editoriais que sejam profissionais que vêm burilando um questionamento lúcido sobre a literatura infantil e juvenil, seja em trabalho como educadores atuantes, seja

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como especialistas, junto à imprensa ou ao mercado editorial, ou mesmo aqueles que levaram em conjunto várias dessas atuações. Logo, no começo dessa década encontramos publicações com coordenação editorial de Ziraldo e Jaguar com a “Coleção Pasquinzinho” no Rio de Janeiro (editora Codecri); de Edmir Perrotti com a “Coleção Ponto de Encontro” (Edições Paulinas), de Fanny Abramovitch com as coleções “Sem-vergonha” (Editora Escrita) e “Cometa” (Salesiana Dom Bosco), de Ruth Rocha com “Coleção Peixinho” (Cultrix), Regina Mariano com as coleções “Lagarta Pintada”, “Série Pique”, “Boca de Forno” e “Curupira” (Ática) e lone Meloni Nassar com as coleções “Primeiras Histórias”, “Segundas Histórias”, “Terceiras Histórias” e “Falas Poéticas” (FTD), em São Paulo; de Maria da Glória Bordini com a “Coleção Infantil Ilustrada” (L&PM), Regina Zilberman com a “Série Menino Poeta” (Mercado Aberto), em Porto Alegre. Vale registrar as editoras que nessa época apresentaram um trabalho inovador como a Miguilim e a Vigília, em Belo Horizonte; Memórias Futuras, Agir, José Olympio, Nova Fronteira, Berlendis & Vertecchia e Salamandra, no Rio de Janeiro; Melhoramentos e Epopéia, em São Paulo; Mercado Aberto e L&PM, em Porto Alegre. Não resta dúvida que todas essas coleções e essas editoras têm hoje o privilégio de dizer que foram as primeiras a abrir as portas ao trabalho inovador de diversos escritores e ilustradores que estão até hoje no mercado de livros infantis e juvenis. Um campo muito interessante de atuação das editoras nessa década foram as traduções. Talvez essa conscientização de um trabalho mais profissional nessa área seja resultado das inúmeras discussões trazidas pelo livro de Bruno Bettelheim, A psicanálise dos contos de fadas, e ode Marie Louise Von Franz, A interpretação dos contos de fadas, sobre a importância de se contar os contos de fadas nas suas versões originais, como também pela exposição comemorativa de 200 anos dos Irmãos Grimm em 1984, que resultou inclusive na difusão do contar histórias nas mais diferentes instituições culturais, livrarias, escolas e creches nos grandes centros urbanos.

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Logo, registram-se nessa época excelentes traduções de contos de diversas culturas feitas diretamente da língua em que a obra foi escrita originalmente. Desse modo as crianças tiveram acesso, por exemplo, aos contos dos Irmãos Grimm em publicações traduzidas diretamente do alemão, com texto integral, por Tatiana Belinky, Contos de Grim para as Edições Paulinas, por Verônica Sônia Kühle para a “Coleção Era uma vez Grimm” para a editora Kuarup, por Maria Heloisa Penteado para Contos de Grimm da Ática ou as de Ana Maria Machado para Chapeuzinho e outros contos de Grimm feitas para a Nova Fronteira. Essa conscientização se estendeu também à coordenação e consultoria a profissionais da área para organizar e publicar coleções de contos específicas como “Contos Orientais de Hauff” com tradução feita diretamente do árabe por Naumin Aizem e coordenação da professora Samira Chalhub e de Samir Meserani, publicados pela Kuarup; a tradução do original inglês de Alice no país das maravilhas, por Ana Maria Machado para Ática, a “Coleção Contos, Mitos e Lendas para Crianças da América Latina” com coordenação de lone M. Artigas de Sierra, uma co-edição da Ática com o Cerlalc (Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e Caribe); a “Coleção Contos da velha Europa”, com tradução de Naumim Aizem, pela Ebal; a reunião de lendas indígenas feita por Antonieta Dias de Moraes, em “Contos e Lendas de Índios do Brasil” pela Editora Nacional; e a releitura de mitos e lendas indígenas feita pela escritora Ciça Fittipaldi para a “Série Morená”, publicada pela Melhoramentos. Para os adolescentes vale apontar a “Coleção Aventuras Mitológicas”, onde vários autores consagrados escrevem sobre diversos episódios da mitologia grega. como José Arrabal, Luiz Galdino e Antônio Hohlfeldt, publicada pela FTD. A década de 1970 é conhecida por ter sido o grande boom da literatura infantil, pois um enxame de livros e de autores foram

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publicados, sem que houvesse a possibilidade de uma reflexão sobre o que se publicava, por quê e para quê. Era a época do chamado espontaneísmo apontado pelo pedagogo Paulo Freire em seu livro Ação cultural para a liberdade, onde o ensino não-repressor abriu espaço para a expressão dos alunos de forma assistemática, fruto de uma ideologia que, fugindo do autoritarismo, mostrava-se sem direções, sendo anárquica por excelência. Esse espontaneísmo também se refletiu no mercado de livros infantis e juvenis, inclusive porque essa produção entra de sola na indústria cultural, tornando-se produto de leitura de entretenimento nas escolas. Já nos anos 80 percebe-se que os profissionais da área começam a sentir necessidade de refletir sobre o papel da literatura infantil e juvenil, apontando caminhos e começando a detectar tendências, o que vai ajudando a esboçar possíveis diretrizes. Paralelamente a essas preocupações com análise de textos, de análise e crítica sobre a produção e de tecer arcabouços teóricos que dessem conta do objeto literatura infantil e juvenil, vivíamos no país a abertura política, após 20 anos de regime político militar. Isso significa que a opinião própria e a reflexão começam a ser exercitadas. 1 Primeiro de forma muito melindrada, e, depois de algum tempo, passam a ser aceitas, valorizadas e conseqüentemente ouvidas. Foi um tempo em que a barreira do medo de opinar começa a ceder e dar lugar a diversidade de opiniões e de posicionamentos. E o pensar, o dizer, o refletir, o concordar e o discordar passa a ser exercício de construção do conhecimento, fazendo dos anos 80 um tempo de amadurecimento de idéias e de posicionamentos sobre a literatura, a política democrática que se iniciava e a sociedade em seus acertos e desacertos. Entre os teóricos que refletiam sobre a questão temos o professor Edmir Perrotti, que faz a distinção fundamental entre texto utilitário e estético em O texto sedutor na literatura infantil. Ele diz

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1. A professora Maria da Glória Bordini inclusive tem um artigo sobre o panorama da literatura nos anos 70 e 80, em Literatura infantil: um gênero polêmico.

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ser o texto utilitário aquele que apresenta objetivos pedagógicos, de ensinamento, útil aos propósitos imediatistas na sala de aula. Ou seja, se você quer que seu filho não fique na rua até tarde, dá para ele ler a história de um gato que se perde dos pais e sofre muito, tendo aprendido através da leitura o quanto é perigoso ficar longe de casa, em uma visão empobrecedora sobre a fundamental questão da liberdade. Já o texto estético tem um compromisso com a Arte, onde o autor apropria-se do imaginário através de uma linguagem de elaboração literária incontestável, de conteúdo imaginativo no tratar de questões pertinentes ao universo da infância ou da adolescência. São textos que respeitam a infância e a adolescência como fases de transformação, onde esses seres possam se sentir aptos a modificar uma realidade dada e a atingir uma nova realidade conquistada. A professora Laura Sandroni afirma que todo livro traz em si um projeto de criança conformista ou transformador ante a uma realidade dada em De Lobato a Bojunga: as reinações renovadas. E, realmente, esse “projeto de criança” evidencia a relação subjetiva que o próprio autor tem coma infância ou a adolescência: se ele tem uma visão romântica e cor de rosa, se ele apresenta um profundo respeito a esses seres enquanto seres que se abrem para o mundo em busca de novas experiências, cheios de buscas, dúvidas e inseguranças, ou se apresenta uma visão desses seres como pobres sofredores de um mundo cão que está por vir. Foram importantes para a época também os questionamentos levantados em Literatura infantil: autoritarismo e emancipação, escrito pelas professoras Regina Zilherman e Ligia Cadermatori Magalhães, que retoma o papel da crança diante da sociedade de diversos tempos, onde cada época apresenta uma ideologia vigente ou ideal, pondo ainda em diálogo essas idéias evários textos de literatura infantil instigantes. Foi marcante também o questionamento levantado pela professora Marisa Lajolo sabre a história da leitura no Brasil, cheia de

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atropelos, de acertos e de erros, sempre tendo como paradigma a relação entre Educação e Política vigente. Vale registrar que nos anos 80 a literatura infantil e juvenil é comentada com certa freqüência na mídia impressa, em artigos de Laura Sandroni, Edmir Perrotti, Fanny Abramovich, Tatiana Belinky, Marisa Lajolo e outros. Nessa década a professora Nelly Novaes Coelho publica o seu dicionário de literatura infantil e juvenil, um trabalho de fôlego que registra autores, sua formação, resenhas e comentários sobre suas obras. É a primeira obra de consulta na área. É nos anos 80 que a literatura infantil e juvenil é tida como produção cultural em processo de consolidação. Nota-se então um bom grupo de autores dedicados a escrever somente textos da literatura infantil e juvenil. Entre os autores que se destacam pela qualidade e pela quantidade de textos publicados estão Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Sylvia Orthof, Lúcia Pimentel Góes e Elvira Vigna. O reconhecimento da existência do autoritarismo despótico, assim como a sua superação, é preocupação latente em diversos textos como em Uma boa cantoria e Era uma vez um tirano, de Ana Maria Machado, em O que os olhos não vêem, prosa poética contra a insensibilidade do poder do rei que não enxerga os problemas sociais de seu reino, escrito por Ruth Rocha, ou em Mudanças do galinheiro mudam as coisas por inteiro, de Sylvia Orthof, onde em um galinheiro é chegada a vez dos fracos e dos oprimidos como a galinha e o dragão Severino. Os papéis sociais da mulher e do homem são postos em cheque em Procurando firme e Faca sem ponta, galinha sem pé de Ruth Rocha, no menino Daniel que aprende a expressar sua dor pelo choro, acabando com o machismo em Zero zero alpiste, de Mima Pinsky. Nessa mesma linha, mas em uma narrativa mais longa e mais complexa, coberta de humor, Sylvía Orthof, com A gema do ovo da Ema, apresentanos Josefa, uma adolescente, filha de um coronel machista

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que deseja casá-la com um bom partido, expondo para o leitor o quanto a menina tinha sua autoexpressão cassada. Pouco a pouco, Josefa apaixona-se e vai adquirindo a sua personalidade e seu o querer. Em O equilibrista, Fernanda Lopes de Almeida põe os opostos para conviver: o equilibrista que tem o prazer de viver e que vai construindo sua vida, dia após dia e o desiquilibristra, o materialista. Sylvia Orthof faz o mesmo em Gato pra cá, rato pra lá, que revela que os eternos inimigos admiram-se mutuamente, apesar de enxergarem a vida de modo diverso. Logo, esses são exemplos que englobam grande número de textos que evocaram a questão emergente da relatividade de valores, num tempo em que nossa sociedade se abria para a democracia. Entre os autores estreantes na literatura infantil quejá deixam marcas por sua criatividade e estilo estão Angela Lago, com a exploração bem-humorada do folclore em Sangue de barata; Lúcia Miners, que escreve de forma poética sobre o amor filial em Tião que morou num bumbo; Eva Furnari, com suas narrativas visuais Zuza e Arquimedes, Filó e Marieta, revelando perfeita sintonia com a curiosidade infantil. Ciça Fittipaldi, com João Lampião, que em um estilo literário próximo à linguagem oral, conta a história de um homem que vai mudando de profissão conforme vai vivendo, enfrentando assim as adversidades e tornando-se um homem experiente. Marina Colasanti descobre a linguagem literária belíssima com que tece verdadeiros contos contemporâneos em Ofélia, a ovelha e A mão na massa, assim como José Arrabal em A princesa Raga-Si. Lia Zatz, expõe facetas nada santas do modelo de mãe em Suriléia, mãe monstrinha. Luís Camargo dá um tratamento lúdico original aos objetos cotidianos em Maneco chapéu, chapéu de funil; Lino de Albergaria em Túlio e a chuva, que conta a história de um

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menino entediado em um dia de chuva, evidenciando que nem sempre a infância é fase fácil de ser vivida. Entre os autores que se mantêm no mercado temos por exemplo: Ziraldo, Joel Rufino dos Santos, Fernanda Lopes de Almeida e Maria Heloísa Penteado. Ziraldo vive um período extremamente criativo com a publicação de A bela borboleta, onde os personagens dos contos de fadas avisam do seu desaparecimento se as crianças não lhe derem vida, ou O menino mais bonito do mundo, onde texto e imagem acompanham a passagem de um menino para a puberdade. Muitos textos parodiam os contos de fadas, ora com humor, ora com ironia, outros fazem mesmo uma releitura de sua existência, como Pedro Bandeira em O mistério de Feiurinha, releitura do conto tradicional A moura torta, recolhido por Câmara Cascudo, e A bela borboleta, de Ziraldo. Sylvia Orthof questiona o casamento como valor social por meio da paródia Uxa, ora fada, ora bruxa, onde Uxa, uma bruxa que sai fazendo “fadices” quando encontra o noivo a ela destinado opta por não se casar, vivendo feliz com sua nova paixão: a tecnologia, ou seja, o computador. E inúmeras outras paródias foram publicadas nessa linha de desconstrução dos contos ou das releituras. Nessa primeira etapa da década nota-se ainda um grande número de livros em duas cores, com um projeto gráfico acanhado, ou, ainda, projetos em que as capas dos livros são em quatro cores e o miolo em duas. Algumas coleções destacam-se por empregar quatro cores, como é o caso da “Lagarta Pintada”, “Boca de Forno” e “Gato e Rato” com texto para crianças recém-alfabetizadas escritos por Mary França e ilustrações de Eliardo França, belíssimas em quatro cores, a série “Ponto de Encontro”, a “Menino Poeta,” a produção infantil de Ziraldo pela Melhoramentos. Merece menção o trabalho inovador e de extrema qualidade de texto e gráfica da “Coleção Arte para Crianças”, com a coordenação

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de Donatela Berlendis, que começou publicando a paródia de Chapeuzinho vermelho feita por Chico Buarque de Holanda chamada Chapeuzinho amarelo, quando a menina transforma em bolo bobo o terrível lobo, terminando assim com o seu poder repressor e ameaçador. Toda a coleção apresenta um trabalho gráfico impecável, capas duras, revelando que o diálogo entre texto, imagem e qualidade deveria ser uma constante na literatura infantil. Entre os autores estreantes que deixam marcas por sua criatividade e estilo estão Rogério Borges, que fala da amizade de Bernardo e Bronto, um dinossauro muito divertido e amável; Márcia Kupstas com Mata vermelha, um dos primeiros textos ecológicos sobre a relação entre a aventura de caçar e a morte dos animais e o posterior remorso sentido pelo menino-caçador; Anna Flora com Ariovaldo, o bode espiatorio; Terezinha Alvarenga com A mãe da mãe da minha mãe, onde a ilustração de Angela Lago apresenta a porta como elemento vazado, elemento simbólico da entrada da bisneta na vida da bisavó; Liliana lacocca com a ‘Série Labirinto”; Tatiana Belinky com a divertida história policial A operação do tio Onofre, onde Onofre é o cofre que está sendo assaltado e que o menino avisa o pai sobre o assalto graças ao fato de chamarem o cofre de casa de Onofre. Nessa época os projetos gráficos melhoram, o papel empregado em várias publicações é de melhor qualidade, começam a surgir projetos gráficos para as coleções, que facilitam a visualização do leitor, as ilustrações em quatro cores começam a dominar o mercado e ilustradores como Walter Ono, Gerson Conforti, Rui de Oliveira, Helena Alexandrino, Rogério Borges, Ana Raquel, Ziraldo, Angela Lago, Tato Gost e outros começam a criar um diálogo entre texto e imagem tão originais a ponto de criar uma nova expressão do livro infantil brasileiro, onde esse diálogo torna-se fundamental e enriquecedor como experiência estética. E entre os autores que se mantêm estão Marina Colasanti, Lúcia Miners, Ricardo Azevedo, Luís Galdino, Vivina de Assis

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Viana, Ronaldo Simões Coelho, Ciça Fittipaldi, Lúcia P. Góes, Luís Camargo, Cora Ronaí, Ziraldo, Mima Pinsky;, Joel Rufino dos Sarntos, Fernanda Lopes de Almeida, Maria Heloíísa Penteado. Ainda em termos sociais há temas qtue passam a ser maids abordados na literatura infantil e juvenil e que eram esquecidos até então, evidenciando o princípio de uma comscientização sobre aas minorias étnicas e sociais como a cultura indífgena, representada erm textos como Çarungaua e Terra sem males, de Luís Galdino, a “Série Morená” de Ciça Fittipaldi e a fantástica Aventura aventurosa die Acanai contra a grande cobra Sucuri na terra: sem males de Antonio Hohlfeldt; a cultura do negro, presente na “Coleção Curupira”, die Joel Rufino dos Santos e nos textos de Sônia Demarquet. Ou mesmo a questão ecológica aponta já em O verde briliha no poço, de Marinia Colasanti, em Araújo ama Ophélia, de Ricardo Azevedo, no Mata vermelha, de Márcia Kupstas e O jacaré, cde Cora Ronaí, comao denúncia e na “Coleção SOS Natureza”, de Luiz Gouvéa de Paula enquanto valorização dos animais. Um tema extremamente explorado pela literatura infantil ejuvenil por volta de 1988 até 1990. A literatura juvenil, marcada como uma Iliteratura de hest-seller, começa a ter novos ares com a presença de esccritores que vinham se dedicando à literatura infantil, como Lygia Bojunga Nunes, Ana Maria Machado, Sylvia Orthof, Luís Galdino, Lino de Albergaria e Vivina de Assis Viana. Mas novos autores começam a despontar com trabalhos interessantes como Sonata ao luar, de Álvaro Cardoso Gomes; O poderoso Zé, de Luiz Antonio Aguiar; Manhas comuns, de Mônica Versiani; Indez, de Bartolomeu Campos Queirós; A cor da ternura, de Geni Guimarães; A medida do possível, de Eliane Gahem; Pé de guerra, de Sônia Robatto; O diário do outro, de Ronald Claver e Na praia da Ferrugem, de Marcelo Carneiro da Cunha, entre outros. Os diários íntimos também são um destaque nessa época com inúmeras confissões de adolescentes com seus acertos, suas inseguranças

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e suas desilusões, momento em que um grande número de escritores se dedicou a eles e as editoras os publicaram aos montes, e que mereceriam um estudo mais aprofundado. Enfim, procuramos detectar muitos dos elementos importantes dessa produção editorial, revelando a dinâmica de suas propostas, a consolidação de outras e apontamentos de questões que adentram os anos 90. Claro que como todo panorama, nem todos os nomes estão presentes, nem todas as obras citadas, apenas buscamos dar uma noção geral de um mercado até então tão instável como as chuvas de verão.

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5. A LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS NOS ANOS 90

Numa Gançaives L.acerda

Voltamos a Camus: o que alguém é e pensa aparece forçosamente no que esse alguém escreve, apesar de si mesmo. A única maneira de mostrar traços mais positivos numa obra não é se encher de boas intenções: é ser uma pessoa melhor, Ana Maria Machado

Maria Machado. Minhas filhas Cíntia e Lorena, já na casa dos 20 anos, cresceram ouvindo, contadas por mim, as histórias que ela criou. E eu, já adulta e crescida, tomei — e continuo tomando — um bocado das suas vnaminas,Para Ana, então, é que dedico o pensamento, a criação que aqui se produz. Para Apia, e ‘para aqueles de nós interessados na construção de utopias...”, como diz o sociolingüista Gunther Kress. Do amor por crianças e por histórias—-raiz forte na pessoa e na obra de Ana é que me valho para começar a tessitura deste pensamento.

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Uma menina de 11 anos morando no cemitério da Consolação

Botou a menina de castigo, e ficou cheia de remorso. O pior castigo de uma criança é não poder ser criança, lembrou da propaganda no rádio. A filha dela não podia ser criança. Aí, essa culpa de mãe, que a mulher tanto carrega. Não era culpa dela, não era mesmo culpa dela se tinham que morar nos fundos de um cemitério, a menina brincando entre sepulturas, convivendo com enterros, estátuas de mármore. Seu maior sonho era que o marido arranjasse emprego de porteiro num edifício, um apartamentinho que fosse para eles morarem, e vizinhança barulhenta, bem barulhenta, assim um edifício onde morasse uma banda de rock inteirinha. A menina ficou de castigo, e muito “p” da vida. Não podia ser criança. Bem que o rádio tinha razão, naquela propaganda que diz que o pior castigo para uma criança é não poder ser criança. Pois é: que criança no mundo se chamava Florípedes, esse nome horroroso, e aindapor cima não podia soltar pipa? Não via nunca a mãe tão brava como quando ela estava correndo bem lá no finzinho do terreno,junto das covas rasas, a pipa voando no alto, o fio na mão dela controlando pra lá e pra cá. Era estar nessa alegria e o grito vinha na certa, aquele pides esticado, o flori se perdia pelo caminho. — Quantas vezes já te disse que não te quero aí pra trás, no meio dessas covas recentes, desses buracos abertos?, a aflição da mãe era sincera. — Mas pra onde é que eu posso ir, mãe? Eu quero soltar pipa. Sempre a mesma coisa, e mais uma vez. Estava cheia de verdade, chamar-se Florípedes e não poder brincar por entre as tumbas, correr sobre as covas, acompanhando a pipa no céu, era mesmo o seu maior castigo. Paciência, o nome ela não podia mudar. Agora, ficar sentada, parada, naquele castigo, não ficava não. A mãe estava lá entretida com o irmão, com as coisas da casa, e ela — ela

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ia lá pra fora, correr, correr atrás da vida, atrás daquele papagaio lindo que apareceu de repente, ela já está correndo atrás do papagaio estrelado de roxo e abóbora, soltinho no céu, vai cair. Quem foi o besta que perdeu uma pipa linda dessas? Nossa! Vai cair aqui perto, aqui dentro da Consolação, se cair aqui eu pego, pego mesmo, não tem dúvida, que fôlego tem esse papagaio, mas já está ficando cansado, tá caindo, tá caindo, já vejo ele na minha mão, e daqui a pouco vou empinar ele de novo. Assim que fizer a maior das rabiolas, boto ele de novo pra ir passear nas alturas. De repente, o papagaio caiu por trás de umas árvores, Florípedes deu um grito de vitória, o papagaio logo ali, atrás dos últimos carneiros.

A biblioteca, nos anos 90

Não podia acreditar. Florípedes não podia acreditar no que via. Na frente dela, sentada em cima de uma campa antiga, uma menina que regulava com o seu tamanho, usando umas roupas esquisitas, segurava o papagaio na mão, o seu papagaio. “É meu”, foi logo dizendo, “me devolve por favor”. “Seu?”, a menina fez uma cara de pouco caso, e disse, para surpresa de Florípedes, “está bem, pode pegar”. Nossa, que mão mais quente, parece que saiu do fogo. E afinal de contas o que estava aquela menina fazendo ali? “Em que enterro você veio? Se perdeu da sua mãe? Não é bom ficar atidando sozinha aqui pelos fundos do cemitério”, e respondendo ao olhar crítico da outra, “bem, eu moro aqui, moro já tem muito tempo, estou mais que acostumada, mas a minha mãe diz até hoje que isso aqui é muito perigoso, imagina só”, falou, parecendo ter vislumbrado de súbito uma parceria inusitada.

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Não sabemos ainda quiem é essa menina que aparece a Florípedes, nos fundos do cemitériio da Consolação. Reparem que as duas meninas podiam estar em ouitros cemitérios, do Caju, do Catumbi, das***, mas elas estão no cermitério da Consolação. Um cemitério é uma grande enciclopédia, erm versão econômica, nome, datas de nascimento e morte dos verbeltes. Viramos verbetes depois de mortos, e verbetes mínimos. Pode ser que a menina vá dizer isso à Florípedes, se ela for uma humorista. Se não, vai é dar a mão à nova colega, saindo pelas alamedas atrás de pandorgas, papagaios, pipas. Não podemos ficar atrás delas o tempo todo, é melhor que vamos também a nosso destinio, supondo que as duas desobedeçam de vez aos bons conselhos de todas as mães e saiam a dar um giro pelas ruas de São Paulo. Uma jovem vê pelas ruas de São Paulo (a literatura vê pelas ruas de São Paulo) — e de qualquer outra cidade do seu porte, se eu conhecesse um cemitério semelhante no México, é lá que botava as duas para conversar — vê outros jovens iguais a ela, menores, e maiores, famintos, violentos, perdidos; vê o progresso, a produção da riqueza; vê dignidades perdidas, faróis fechados. Vê grandes centros de consumo e diversão, vê o aviltamento dos seres, a felicidade e a ruína estampada nas faces anônimas, vê esperança, desesperança, a falta de perspectiva qiue leva a população, majoritariamente, a apoiar o crime financeiro,1 duas jovens pelas ruas de São Paulo vêem os tamagotchis chegando, vêem o pequeno traficante de nove anos sendo preso, perguntando apavorado ao repórter: “O juiz vai me bater?”, vê a vida e vê a morte, nisso Florípedes é craque. Tenho motivos para cirer que as duas saíram a dar esse giro, talvez a outra garota fosse de fora, e Florípedes quisesse levá-la a conhecer um pouco da sua cidade. Quem sabe a gente não vai até a minha escola? Foram, na certa. “Quem sabe você não dá uma olhadinha ali na Adriana, está dando aula na 5ª agora de tarde, é a melhor

1. Folha de S. Paulo, 12/7/1997, sobre programa da rede Globo ‘Você Decide” de 10/7/1997.

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professora de História do mundo, precisa ver quando ela fala dos egípcios e dos colonizadores espanhóis. E quem sabe a gente não passa pela cantina, você tem uns trocados aí?, a cantineira faz um pastel do outro mundo — “, e Florípedes sentiu que a menina dava um risinho meio estranho. Se perguntou então se a outra seria um fantasma, não, fantasmas não sabem segurar uma pipa tão bem como ela havia segurado, se a gente ficar amiga (continuou a pensar), ela não tem cara de quem deve ter medo de ser amiga de filha de coveiro, se a gente ficar amiga —, e a garota tinha mesmo uns trocados meio amassados no fundo do bolso do vestido, e compraram dois pastéis, e duas coca-colas, e foram lanchar sentadas no banco debaixo da árvore, que a escola de Florípedes era uma escola antiga (antiga e amiga), tinha dessas delícias: banco debaixo de árvore, pastel e coca-cola, Florípedes pensou que preferia guaraná, e pensou “para uma visita a gente sempre oferece coca-cola”, e cobriu a boca envergonhada, pois na verdade a visita é que estava pagando a festa, de seu Florípedes só tem umas moedinhas rastaqüeras, que é uma palavra do Mário de Andrade de que ela gosta muito. “O Mário? Ah, é um escritor. Dos bons. Quer dizer, a Rosa diz isso toda hora. Minha professora de Português. Assim, assim. Não é tão boa como a Adriana, mas dá pro gasto. Meio chata, mas gosta de levar a gente pra biblioteca.” O lanche acabou, cada migalha catada com prazer, os beiços lambidos e relambidos, não ficava bem Florípedes pedir à companheira para comprar outro pastel. Irem à biblioteca implicava passar na frente da cantina, e quem sabe, o cheiro da massa fritando... O cheiro da letra deve ter sido mais forte. As duas meninas estão dentro da biblioteca.

A Utopia não mora mais aqui

A ilha da Utopia, criação do inglês Thomas Morus (1516), tem servido à humanidade como ideal de vida justa e livre. Não é o

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paraíso e tem também suas contradições. É porém uma das melhores conquistas do imaginário do homem rumo à consolidação da fratura capital dentro da própria espécie. Seu maior mérito é o de apontar para a construção possível de um modo de vida livre, atento às necessidades individuais e aos projetos coletivos. Atravessando quase cinco séculos de história, especulam agora certas fontes que a Utopia terá morrido há uns bons sete, oito anos, por ocasião da queda dos governos socialistas do Leste europeu. Que ingenuidade! Que construção do imaginário humano morre assim tão facilmente? Um sonho, uma crença partilhada por muitos, não são um muro, derrubado à picareta. Idéias não caem por terra à força de marretadas. Dizemos ainda que o Sol nasce, o Sol se põe, embora saibamos há muito que é a Terra que vive de visita ao dia ou à noite. Que má-fé quererem nos fazer acreditar que a Utopia morreu. Mudou de endereço, isso sim, coisa muito normal, com que vive sonhando a mãe da nossa Florípedes. Vai acabar o cemitério da Consolação quando ela não morar mais lá’? A questão é que mora dentro de cada um de nós a fábula de uma pequena Géia que de dentro de seu quarto escuso escreve a história da Astronomia à luz de uma vela bruxuleante. O muro caiu? Ah, foi a Utopia que morreu — nem reparamos que a letra que assim escreve está borrada, tremida. Temos fortes razões para crer que a biblioteca é o endereço atual da ilha da Utopia. Na biblioteca estão os teimosos, aqueles de que se costuma dizer que não têm nenhum senso: professores, poetas, alguns intelectuais, que não acreditam que os ideais da Utopia sejam uma quimera da qual devam rir aqueles que dizem ter bom senso. Esses outros que apregoam ter bom senso e que continuam a escrever sua astronomia dentro do quarto escuro, sem nenhum instrumento de alcance. Florípedes e sua companheira acabaram de pegar na estante O minotauro (1939), de Monteiro Lobato. Sentam-se juntas para ler. Como o jovem Krabat— que vira as costas à magia, cujos segredos tornavam suportáveis as duras tarefas cotidianas, e opta pelo enfrentamento das dificuldades do trabalho para poder ter na vida um projeto de liberdade, a se construir com a luminosidade da razão —

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vão as crianças do Picapau Amarelo atrás do monstro sanguinário para encontrá-lo bem domado, derrotado antes pelas lições de democracia e de arte grega, que pelos bolinhos de Tia Nastácia. Na atitude do protagonista de Krabat, do alemão Otfried Preussler (1981), se reconhece o abandono de um período histórico governado pelo misticismo e pela crença na magia (os pactos com o Bem ou com o Mal, mulheres feitas bruxas para arderem nas fogueiras) em prol da transformação que enha como molas propulsoras da civilização o investimento na aventura de busca pessoal e no trabalho. Krabat assinala o fim da Idade Média, o início da Idade Moderna: heróis como ele precisam de muita coragem. Fim da Idade Prescritiva, início da Idade Investigativa: os personagens de Lobato abrem à criança brasileira a Era da Biblioteca, e o fazem tão bem, a maneira tão competente, que, algumas décadas mais tarde, o leitor jovem no Brasil vai poder participair da luta de Pedro Luís, que busca também a passagem do tempo da Corrupção para o tempo da Ética. Pedro é protagonista de Atentado, de Sonia Rodrigues Mota (1994), obra ccrajosa que traz à luz questões que ojovem brasileiro, entre 13 e 18 anos, não quer ter apenas como distantes referenciais tomados de empréstimo à conversa dos pais. Tratar corrupção, escândalos financeiros, sexualidade juvenlil, como matéria de literatura, visando à reepção também de um leitor jovem é sinal indubitável de que a Utopia mora mesmo na Biblioteca, em cuja era entramos pelo trabalho de Lobato e onde continuamos a ficar por conta de seus herdeiros literários. Primeira conclusão crítica neste trabalho, esta de que os anos 90 trazem ao jovem brasiileiro a possibilidade cada vez mais ampla de usufruto da biblioteca — esta biblioteca em que Lobato acreditou e construiu —, é também o reconhecimento de que a literatura aí pesente é literatura — e ponto. A literatura para crianças e jovens que remete para dentro da pópria hilbioteca é uma dias grandes linhas de força na literatura para jovens nestes anos 90. Não quero investir muito na enumeração de títulos mas vale lembrar Amigos secretos (1996), de Ana Maria

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Machado, como exemplo de narrativa que põe em cena personagens recém-criados, contemporâneos ao leitor de hoje, visitando outros personagens e textos clássicos.

Visitas ao coração das trevas

Em artigo publicado no “Caderno Mais!” da Folha de S. Paulo, de 18/8/1996, o escritor Javier Marías, autor de Coração tão branco (1992), chama, muito oportunamente, a atenção para as mudanças brutais que a humanidade foi se oferecendo durante os últimos 80 anos — responsáveis segundo o escritor por uma diferença que equivale à que há entre as vidas de um homem do século V e outro do século XIX. A vertiginosidade das mudanças culturais e sociais fazem, assim, de uma criança e de um jovem de hoje, seres radicalmente diversos daqueles do início do século XIX, quando se inicia o reconhecimento de sua própria identidade peculiar. Dentre as mudanças que Marías enumera se destaca a relação dos homens com o horror. O Mal se torna cotidiano, banal, vida e morte se equivalem no desastre das ações cruéis. Todas as idades sentam-se juntas para tomar a refeição do telejornal diário, assistir à indiferença com que redatores e locutores ocupam-se da aventura humana, de sua dor e perplexidade. Em meio ao desenho animado da tarde o Papa tomba ferido, a criança de quatro anos vê misturadas às imagens simpáticas de gato e passarinho na perseguição doméstica aquelas outras que lhe são estranhas, e para as quais não tem ainda instrumentos de assimilaçào, um homem ferido, as vestes brancas ensangüentadas. Não é mais possível aos adultos baixar a voz quando tratam de seus assuntos, de forma que apenas uma ou outra palavra chegue, sedutora e libertina, ao ouvido da criança. Por outro lado, meios de comunicação de massa são mesmo contrários à sensibilidade e sutileza, à idéia de quebra-cabeça, de investigação. Viajar a viagem já

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viajada — é toda a sua promessa. Pobres de nós, de nossas crianças e jovens: cabe-nos a condenação à banalidade no espetáculo do mal? Fernanda Lopes de Almeida tnvestiu na profissão de equilibrista (O equilibrista, 1980). Muito necessários ao mundo, equilibristas devem ser mesmo o sal da terra. Vivem a inventar suas próprias viagens, e fazem perguntas, muitas perguntas. Não costumam se deter fácil. Gostam, especialmente, de abrir gavetas onde estejam guardados temas e situações que costumavam freqüentar tão-somente a literatura instalada nas prateleiras mais altas das estantes. Abrem gavetas e encontram assuntos como crime, tortura, suicídio, corrupção, estupro, Mefistófeles e Faustos. Um problema, esses jovens, e os autores que lhe fazem sintonia. O Mal. O Mal sempre me horroriza — sem que negue o tanto de atração que também exerce sobre mim. Não quero dar a ele o olhar que dou a um campo de cebolas, ou à poeira sobre os móveis. O Mal é uma questão do homem. O jovem anseia por participar do debate ético e espera encontrar uma posição edificante nas experiências que lhe permitem essa participação. Não rejeita, porém, a consciência do abismo, ciente de que esta é uma condição à qual o homem não foge e cuja travessta, bem ou mal sucedida, é que melhor fala de sua condição. Também as crianças e os jovens enfrentam tal travessia, e devem, portanto, encontrar uma literatura que tome esses assuntos por tema, permitindo ao leitor discutir o lado escuro, a sombra, do homem, Não para trazer respostas, e sim para deixar perguntas — segundo Proust em seu belo Sobre a leitura —,os livros oferecem a experiência do humano. A problematização do Mal é provalmente a linha de força mais consistente na literatura para jovens dos anos 90 e os títulos de obras de qualidade são muitos. O abraço, Seis vezes Lucas, Lygta Bojunga (1996), o já citado Atentado, o magnífico Grogue, de Toni Brandão (1993), dentre outros. É tão consistente esta linha que se mostra até mesmo no livro de imagem. Cena de rua (1994), de Angela Lago, traz nas cenas de rapina, da violência, da exclusão, a própria estampa do Mal.

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Passeio à roda da palavra morfina

Passeamos pelo Mal, olhando títulos que Florípededes e a amiga iam tirando das estantes, colocando sobre as mesas. A amiga de Florípedes — de quem ainda não sabemos o nome — mostrava-se bastante interessada nessa história de “A literatura é o essencial ou não é nada”, expressão do pensamento de Georges Bataille, filósofo francês. Quem lhe dizia isso por outras palavras era Rosa, a professora de Português que apareceu por ali e como sempre muito entusiasmada por literatura aproveitou para conversar um pouco com as duas meninas. Mas Florípedes não prestava mais muita atenção nela. Pensava no essencial, o essencial era o seu nome, e a amiga que ganhara. Talvez fosse isso o mesmo que pensava certo menino, indo à estação, pegar o remédio que vinha pelo trem para aplacar a dor da mãe doente. Pegava o pacote, e desobedecendo pai, professora, lia: morfina. Sentia um arrepio, sentia vários arrepios: morfina, dor fina, Josefina. Não sabia ainda (era só um menino), e estava lidando com a morfina —a maior fineza dentro da língua. Bartolomeu Campos Queirós mantém o denso investimento na produção poética, buscando a constituição da grande aventura, não pelo viés heróico, e sim pelo viés da existência. Pelas linhas da da herança, e daquilo que se é. Por parte de pai (1995) e Ler, escrever e fazer conta de cabeça (1996) são o deságüe natural de sua produção poética anterior. Escrevendo um mesmo grande livro, o autor se insere na rica linhagem da literatura ocidental das autobiografias literárias em que o escritor volta o olhar para sua juventude e sua infância. Retrato do artista quando jovem, de James Joyce (1916); As palavras, Jean-Paul Sartre (1964); Infância, Graciliano Ramos (1945); Menino antigo, de Drummond (1973), são nutrientes, diretos ou indiretos, dessa linha de saga poética que ganha força na literatura brasileira para jovens, atualmente. Viver éfeito à mão/Viver é risco em vermelho, de minha autoria (1989); Livro, um encontro com Lygia Bojunga Nunes (1991) e O sonho no caroço do abacate, de Moacyr Scliar (1995), tematizam ím a formação

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desse pirata fin-de-siècle, torto e avesso: o poeta. Distribuindo — em vez de roubar — emoções, percepções, o poeta cresce como ser caro na biblioteca infantil e juvenil, cujos usuários vão percebendo que a poesia veste várias fantasias. Chifre em cabeça de cavalo (1995), de Luiz Raul Machado, borda em prosa poética o ato, doloroso e emocionante, de adolescer. Roseana Murray, Elias José, Ângela Leite de Sousa, José Paulo Paes continuam a trazer, em sua forma tradicional — infelizmente não é em todos os momentos que estes poetas investem na veia de corte mais criativo —, a poesia que apesar de internets e afins não deixa de latejar nos corações e nas mentes. Lateja ainda a poesia, apesar de sofis e de games. Lateja e se puder latejar também no ciberespaço e na realidade virtual, tem-se assegurado o mercado sensível. 33 Ciberpoenzas e uma fábula virtual (1996), de Sérgio Capparelli, investe nessas antenas. A presença de uma contemporaneidade tecnológica aparece no interessante Duda 2: a missão (1994), de Marcelo Carneiro da Cunha, que vai navegar pela lnternet em Insônia (1996), obra em que se concentra quase inteiramente nos cacoetes de um universo urbano e burguês conectado virtualmente com o resto do mundo. Marcelo bem poderia ter investido no nome da banda do garoto apaixonado — Insônia, que dá título ao livro mas não tira o sono de ninguém.

Para ficar acordado

Rosa tentava dizer a Florípedes que o livro que puxava distraída da estante era uma obra-prima, dessas que só aparecem de tempos em tempos. Não era um livro brasileiro, mas isso não tinha a menor importância. Um escritor chamado Ivanir Caliado tinha traduzido O doador, da americana Lois Lowvry (1993).

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“Você já pensou ficar sem lembrança de tudo o que aconteceu para trás? Não saber como era a vida de antes, dos seus pais, dos seus avós, não saber dos mitos e lendas que muitas crianças e muitos jovens ouviram antes de você? Esquecer o Caapora, o Saci, a Uiara, o Boitatá, a Mula-sem-Cabeça?” perguntava Rosa. A companheira de Florípedes deu um salto de espanto para trás, arregalando os olhos. Um calor repentino, um bafo de dragão passou por elas, no corredor estreito. Florípedes assustou-se, Rosa brincou: “Vai ver uma mula- sem-cabeça acabou de passar por aqui pertinho.” Brincou e emendou a conversa, resumindo O doador, que é a história de uma sociedade futura onde as pessoas são inteiramente destituídas de emoções e de lembranças. Um menino de 12 anos é escolhido para ser o guardião dessas lembranças, dessas emoções, suportando sozinho, no lugar de toda a comunidade, o regozijo, a dor e a lição do passado. A outra menina põe na mesa, encantada, Maria Teresa, de Roger Mello (1996). Florípedes se entusiasma, pega Bumba meu boi, também do Roger, Viva o Boi Bumbá, do Rogério Andrade (1996), Menino do Rio Doce, de Ziraldo (1996) e Comadre Florzinha contra a Mula-sem-Cabeça, de Regina Chamlian (1996). Rosa exulta e nós também. Que facilidade falarmos assim dessa vigorosa linha de força na literatura que analisamos: o imaginário popular brasileiro. Liberação das vozes recalcadas (é a carranca humanizada que fala em Maria Teresa), investimento no humor, no peculiar, na recuperação para a sala de jantar e para a biblioteca daquilo que por tanto tempo ficou confinado à cozinha, ao campo, à senzala. São inúmeras as publicações — com destaque para as coleções — de contos populares, de mitos e de lendas, muitas delas de esmerado cuidado. Parece que estamos descobrindo que

....o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia. 2

2. Fernando Pessoa. Ficções do interlúdio; poemas completos de Alberto Caiero. In: Fernando Pessoa. Obra poética, Org., introd. e notas de Maria Aliete Galhoz. Rio de Janeiro: Aguilar, 1965. p. 215.

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Estamos descobrindo também que o rio da nossa aldeia dá belos; cartões-postais, que vendem bastante. Não me incomoda essa coisa de comércio. A troca é uma coisa boa, e tem lugar para ela na ilha da Utopia, no continente da Leitura. O ruim é trocar um mau artigo por uma boa moeda. Ou pagar com má moeda um artigo de boa qualidade.

A má moeda, a boa moeda

Se ainda paira qualquer dúvida sobre o lugar da literatura de entretenimento na formação do leitor, a leitura de Infância e de As palavras há de dar conta dela. Ler gratuitamente o que está fora das recomendações familiares ou escolares está na base da constituição do sujeito-leitor. Ler sem ter que prestar contas a ninguém da nossa leitura é a essência mesma da leitura. A essencial gratuidade da leitura tem-se encontrado ameaçada pelo casamento, às vezes espúrio, às vezes muito bem-sucedido, de leitura literária e escola. Passando a ser a grande mediadora entre livro e criança, entre livro e jovem a escola terá sido responsável de um lado, pelo acesso de imuito leitor ao livro, de outro pelo estabelecimento de uma industria de sucata livresca para o consumo de crianças e de jovens. Encontram-se nessa indústria obras repletas de clichês, construídas à base de cacoetes estilísticos, obedecendo a receitas temáticas, e que primam por defeitos de vária sorte. A fórmula de jovens detetives resolvendo mistérios por conta própria, de sucesso com João Carlos Marinho em anos anteriores, esgota-se numa repetição irritante, onde a verossimi1hança narrativa nada conta, e tomado à conta de uma figura rasa e destituída de inteligência o leitor é desrespeitado

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flagrantemente, com a absoluta deatenção às técnicas narrativas e a ostensiva ignorância à construção iterária Anos cínicos, e banais, estes anos 90 vivem o tempo do descartável. Descartável, uma grande parte da produção livresca para jovens, seja nas páginas que se soltam à primeira leitura, na capa que supõe seja o leitor um ser incapaz de apreciação estética, seja no texto que revela redatores de má qualidade. Uma das lutas a se travar ainda neste final da década de 1990 é fazer dos livros de entretenimento um bom artigo, uma vez que os pagamos com boa moeda: nossos reais suados, nosso tempo de leitura. Nessa luta, o respeito ao leitor precisa ser substantivo. Respeito que se consegue em Caixa postal 1989, de Ángela Carneiro (1992); O Gato que amava Girl, de Antônio de Pádua e Silva (1994); Um pai para Vinícius, de Maria Dinorah (1995); Contos da infância e da adolescência, de Luiz Vilela; Marta & William, de Álvaro Cardoso Gomes; Sardenta, de Mirna Pinsky; As senhoritas de Nova York, de Daniel Piza, esses últimos presentes à lista de Acervo Básico de 1996, elaborada pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.

Uma identidade, alguma confusão

Não falamos dos livros informativos que vêm crescendo em quantidade e qualidade, com tradução de invejáveis produções estrangeiras. Uma rota que se tem mostrado instigante é a que revela aproximação e tangenciamento de informação e ficção, como nos recentes Democracia: cinco princípios e um fim, organizado por Carla Rodrigues; Serafina e a criança que trabalha de Jô Azevedo e outros, ou ainda Um fotógrafo diferente chamcado Debret e Em cena Rex, apresentando

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vida de cachorro; um passeio pela obra de Ángelo de Aquino, de Mércia Leitão e Neide Duarte, publicações de 1997. Essas investigações de gênero são uma das questões mais instigantes da produção para crianças e jovens nesta década. Fazendo Ana Paz e Paisagem, ambos de 1992 e da autoria de Lygia Bojunga Nunes, vêm diluir fronteiras entre o ficcional e o teórico-crítico, sendo também uma abertura do laboratório da escritora. À maneira do que fez José de Alencar em Como e por que sou romancista (1893), Lygia faz — por meio da ficção — uma declaração ao público-leitor sobre os métodos de sua construção literária, sua relação com o livro e com o leitor, ambas contaminadas de um erotismo vital. Afastando-se dos lugares já estabelecidos na literatura de crianças e jovens, Lygia, com O abraço, e Luiz Raul Machado, com Cartão- postal (ambos de 1996), causam um desconforto à crítica habitual, na medida em que apontam — percebo-o muito claramente — para sua instalação na biblioteca misturadamente a outros livros, sem que os acompanhe qualquer outra definição ou qualificação. São contos e estão no formato em que estão por escolha do editor, para alcançar também os leitores crianças ejovens. Como a obra-prima de Jean-Claude Bernardet, A doença: uma experiência (1996), que vem num formato pequeno, semelhante ao do livro para crianças, por mera escolha editorial. Temos nisso uma expectativa produtiva, com a visão de Silviano Santiago apontando os anos 90 como um tempo em que está latejando a representação de um Brasil autêntico.

O Brasil é autêntico desde que falando pela voz individual dos arquivos da memória afetiva. Voz tolerante, fragmentada e epidérmica, livre das centralizações abusivas do poder econômico e direcionada para os novos leitores e a platéia jovem.3

3. Jornal do Brasil. ‘Caderno Idéias”. 22/2/1997 p. 5.

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O Brasil é o Brasil, e não um arremedo de nostalgias do primeiro mundo, é um país de violências, e que pode pactuar com seus monstros, sentando para negociar um equilíbrio entre a força da terra e a força do fogo. É justamente isso que a menina que entregou o papagaio à Florípedes quer lhe propor. Primeiro quer lhe contar que é, na verdade, uma pequena mula-sem-cabeça, uma mulinha que a mãe, arrependida por deixar destino tão triste à filha, pediu à mucama de estimação que batizasse, e lhe pusesse por nome Helena, Marilena. A mucama, na dúvida, chamou-a Lena e com muitas promessas aos orixás conseguiu que a menina pudesse manter — pelo tempo necessário — a forma humana, sempre que quisesse se aproximar das pessoas para fazer amigos, só voltando a sofrer os efeitos do encantamento quandojá estivesse assegurada a nova amizade. E Lena fazia isso, para aquecer a vida dos amigos que fizesse, para que eles viessem, por sua vez, a contar para jovens leitores, de sensibilidade fresca e corajosa, sua história de monstro que cavalga pela noite, botando fogo pelas ventas, e conhece este país como ninguém. Lena corre por este país, vê a Cena de rua terminando da mesma forma que começou — para dar à sociedade brasileira a chance de escrever essa história, uma outra vez, de outra forma.

2

2 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras. Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.

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6. CEM ANOS DE POESIA NAS ESCOLAS BRASILEIRAS

Graça Paulino

Dizem os partidários de uma concepção cíclica da história que todos os fins de século são iguais. Mais recomendável seria a pesquisa de suas semelhanças e diferenças, sem dar, por outro lado, espaço à ilusão de que nada se repete. Neste final de século XX, aliás, tudo é de fato suficientemente estranho, quer seja pelos impactos tecnológicos, quer seja pela anunciada morte da arte, da educação ou da filosofia, sob as leis absolutizadas do mercado. Especialmente no que diz respeito à arte, o trabalho de comparar as apropriações e as leituras que se fizeram e se fazem sob um mesmo espaço institucional — a escola, por exemplo — com 100 anos de distanciamento cronológico, exige certas precauções dos analistas, visto que uma das mitificações estéticas que presidiram nosso século é a da superioridade das vanguardas estéticas, isto é, o império do novo. Na literatura, é surpreendente, como exemplo desse preconceito vanguardista contra a tradição, o esvaziamento de valor que a historiografia literária promoveu com relação às manifestações denominadas “pré-modernistas”. Textos da época foram considerados

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redundantes ou banais, quando na verdade estavam ligados a uma proposta de popularização da leitura, mal compreendida pelas elites intelectuais e artísticas, que logo se apegaram às experimentações ligadas a movimentos europeus. Essa radicalização da crítica afastou consideravelmente os padrões escolares de qualidade literária daqueles dominantes entre os chamados “homens de letras”. A escola quase sempre continuou querendo textos bem comportados lingüisticamente, textos de bom tom, que não chocassem os pequenos leitores, e que não apresentassem propostas revolucionárias, nem no âmbito das formas, nem dos costumes ou da organização política e econômica. Isso provocou situações de exclusão e de recuperação de escritores, como é o caso de Graciliano Ramos que, perseguido por Getúlio Vargas, pôde finalmente ser lido por colegiais durante uma próxima ditadura, a de 1964. Provocou também um comportamento típico de muitos autores para crianças, que é o de escrever sobre um universo a-histórico, afastado do cotidiano, repleto de bichinhos inocentes ou muito maus, sendo estes invariavelmente castigados. Na verdade, a maior parte dos pedagogos e professores permaneceu, aliás, como as camadas populares em geral, fiel aos cânones românticos e parnasianos. O problema é que os especialistas em literatura e os autores considerados de vanguarda estavam jogando outro jogo, o da fragmentação, o da alogicidade, o da reinvenção radical da língua. NelIy Novaes Coelho, analisando essa especificidade da relação literatura/escola, detém-se na caracterização do período entre-séculos, quando o sistema escolar (se é que assim se poderia denominar a nossa incipiente coexistência de estabelecimentos de ensino) passou a considerar a leitura como “pedra-base da sociedade letrada”, sinal de civilização e forma mais nobre de acesso ao verdadeiro conhecimento humano. Diz a ensaísta:

Nessa ordem de idéias, compreende-se por que a literatura destinada a crianças e jovens surgiu e se desenvolveu sob a tutela da escola. Por um lado, essa literatura sempre fora

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entendida como agente mediador de valores, normas ou padrões de comportamento exemplares. Isto é, consagrados pela sociedade, para perpetuar, através das novas gerações, o sistema em que ela se organizara. Por outro lado, a sociedade tradicional, consolidada no Romantismo, valorizava a cultura, o saber, a leitura.., como índices da erudição que deveria identificar o “homem culto” .1

Estabelecida essa ligação que se estreita sob razões ideológicas, vai-se caracterizando uma produção literária com certos traços peculiares: pueril, humanista, religiosa, “dramática”, moralizante, fantasista, nacionalista, como assinala Nelly no mesmo texto. Entretanto, seria necessário acrescentar às observações da autora outras que se referissem às produçoes literárias para os adultos da mesma época. O academicismo, o filosofismo ingênuo e o conservadorismo caracterizam o gosto literário dominante no final do século XIX. Não caracterizam toda a literatura, mesmo porque precisamos contextualizar produções como as de Machado de Assis, Euclides da Cunha, Lima Barreto, Augusto dos Anjos e as de outros “estranhos” escritores. Mas caracterizam o gosto dominante. Assim, não é tão evidente a separação entre o gosto das crianças e o dos adultos há 100 anos atrás. Aliás, nunca seria possível separar inteiramente as preferências literárias desses dois universos de leitores, porque as estratégias de condução e de controle das leituras infantis são desenvolvidas pelos adultos. O que seria necessário definir é a composição sociocultural dos grupos de adultos que teriam maior poder de interferência sobre as práticas de seleção de leituras escolares. Cem anos de história da literatura, e eis-nos em outro período entre-séculos. Os livros mais vendidos para adultos hoje tematizam o misticismo, a violência, a sexualidade. Alguns componentes realistas

1 Nelly Novaes Coelho. Dicionário crítico de literatora infantil e Juvenil brasileira. São Paulo: Edusp, 1995. p. 22.

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integram-se aos romances, como aconteceu no final do século passado. Permanece forte, por outro lado, o filosofismo ingênuo, idealista. Acrescenta-se a isso, ou permanece nisso, a retórica da consolação, apontada por Umberto Eco nos anos 70 2 como o componente fundamental para o mercado. Vale a pena pesquisas o que aconteceu com a literatura infantil no rápido pulo de um século. No que diz respeito às direções textuais e sociais da recepção literária, Mansa Lajolo e Regina Zilberman fizeram um bom trabalho, tanto em A leitura rarefeita, de l99l, 3 quanto no mais recente A formação da leitura no Brasil.4 Através desse último livro podemos acompanhar a história das primeiras reações e organizações de escritores brasileiros na defesa de seus direitos, como marcas de fim do século XIX. Textos cortados, textos republicados sem pagamento de direitos autorais, textos usados na imprensa e em antologias sem ao menos a permissão do autor, foram alguns fatos que levaram à criação, em 1896, da Academia Brasileira de Letras. Hoje, 100 anos depois, seus objetivos já não são mais tão claros, e os verdadeiros “homens de letras” não são tantos fazendo-se, talvez por isso mesmo, acompanhar-se de fortes mulheres como: RacheI de Queiroz, Lígia Fagundes Teles, Nélida Piñon. Fica evidente, todavia, que objetivos materiais sempre estiveram ligados à produção literária. Uma antologia, por isso, jamais é uma seleção inocente e desinteressada de textos. E, como as antologias freqüentam amiúde as salas de aula, toma-se muito importante axrnlisar seus critérios de seleção, seus direcionamentos de leitura, seus interesses simbólicos, políticos, éticos, estéticos. Nesse intuito, li e analisei uma antologia poética publicada em 1897: Álbum das crianças, livro organizado por Figueiredo

2. Embora Umberto Eco tenha desenvolvido sua crítica a essa retórica da consolação em Apocalípticos e integrados, já nos anos 60, em Obra aberta, sua própria definição dc mensagem estética exclui o final feliz monológico e assertivo, 3. Marisa Lajolo e Rcgina Zilberman. A leitura rarefeita. São Paulo: Brasiliense, 1991. 4. Marisa Lajolo e Regina Zilberman. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1996.

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Pimentel, sucesso de vendas entre as crianças braileiras — aliás, entre os pais e os professores dessas crianças —e comparei-a com outra, de 1995, publicada por uma pequena editora do Rio Grande do Sul, a Projeto: Poesia fora da estante, organizada por Vera Aguiar. A importância dessa antologia de fins nosso século cresceu com sua premiação pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, como o melhor livro de poesia infantil do ano. Se sua presença nas escolas ainda não é tão grande por faltar à editora um bom esquema de distribuição, a possibilidade de sua aquisição pelo MEC para as escolas públicas existe e deve ser considerada como sinal de importância na área. Aliás, pouco se publica de poesia dirigida a pequenos leitores, no Brasil. E, muito mais do que se publica, estraga-se a experiência poética sobretudo nos livros didáticos. Zélia Versiani retoma a constatação de Magda Soares de que os manuais praticamente ignoram os textos poéticos, e, quando os incluem, usam-nos como pretextos para exercícios gramaticais. Fixando-se nos livros de 5ª série, Versiani observa:

O número de poemas é bastante reduzido quando comparado com outros gêneros. Quanto ao lugar que ocupam nos livros, percebemos que quase nunca aparecem como texto principal da unidade. São eles, na maioria das vezes, utilizados para memorizar gramática ou para marcar datas de circnstância, como o dia dos pais, das mães, do índio etc. 5

Importa verificar como se caracterizava a situação da poesia na escola há 100 anos atrás. É importante assinalar que o trabalho de Figueiredo Pimentel se dá antes da produção de Monteiro Lobato, numa fase que se costuma considerar como a dos precursores da literatura infantil brasileira.

5. M. Zélia Versiani Machado. “Cadê a poesia que estava aqui?” Intermédio (cadernos Ceale). Belo Horizonte, v. 2, ano 1, maio de 1996

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Também do ponto de vista editorial, a publicação desse Álbum das crianças, integrado à Biblioteca Infantil da Livraria do Povo, merece especial atenção. Pedro da Silva Quaresma havia fundado em 1879 a Livraria do Povo, que editava e comercializava livros de apelo popular, tais como trovas, manuais de feitiçaria, guias de comportamento, modelos de cartas. Laurence Hallewell, em O livro no Brasil, destaca a importância das iniciativas de Pedro Quaresma no âmbito da literatura infantil: revoltado com as dificuldades de leitura que as crianças brasileiras enfrentavam, às voltas com livros importados de Portugal, o editor contrata um jornalista brasileiro, Alberto Figueiredo Pimentel, para produzir, em português do Brasil, a coleção que seria intitulada Biblioteca Infantil, e que se iniciaria em 1894 com os Contos da carochinha. Diz ainda Hallewell:

Os tradicionalistas ficaram horrorizados, mas a inovação garantiu a Quaresma o virtual monopólio do mercado de livros infantis. Após o falecimento de Quaresma, a série foi reeditada, em 1967, pela editora de livros de bolso Edições de Ouro. 6

Embora a coleção misturasse os gêneros literários, o caso da poesia manteria certas peculiariedades com relação à narrativa em prosa. Vários poetas portugueses, como Antônio Feliciano de Castilho, Antônio Nobre, Guilherme de Azevedo, Guerra Junqueiro, Júlio Diniz, estão presentes no Álbum, e, ao que tudo indica, seus textos foram cortados, mas não foram abrasileirados. Quando não se revela a nacionalidade portuguesa pelo vocabulário, mostra-se ela pela percepção de espaço e de tempo do hemisfério norte, como ocorre no poema ‘Velhos e crianças”, em que o mês de abril está associado ao início da primavera, desorientando, certamente, a seqüência das estações na mente dos leitores brasileiros:

6. L. Hallewell. O livro no Brasil. São Paulo: T. A. Queiroz/Edusp, 1985. p. 201.

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(.... ) Cingiu-lhe o triste inverno um resplendor de neve, na fronte que adormece a meditar na cruz! Oh! quanto o doce abril fortalecer não deve aquelas frias mãos, aquele olhar sem luz!...7

Entretanto, o que melhor distingue as propostas de leitura desse livro de poesias das de outros livros da época são os objetivos que o organizador — e, implicitamente, os pais e os educadores — projetam nos pequenos leitores. A apresentação de Pimentel dirige-se claramente aos adultos que irão comprar o livro. Começa falando das dificuldades na seleção de versos para crianças, continua explicando a recusa de “moldes velhos”, de “trechos clássicos e arcaicos”, e acaba por explicitar a utilidade de formação moral e cívica que a poesia escolhida apresenta:

Na presente obra enfeixamos poesias modernas de notáveis poetas, escolhendo aquelas que não só divertissem as crianças, como também lhes incutissem bons e generosos sentimentos, fazendo vibrar nelas o amor dos pais, da família, do lar e da pátria; a simpatia pelos velhos; a compaixão pelos desgraçados; a piedade pelos animais — todas as virtudes de um coração bem formado. 8

Também se explicita, logo na página de rosto, o modo de ler poesia que era julgado ideal na época: os poemas são próprios para serem decorados pelas crianças, “que assim aprendem a recitar e declamar”. Hoje essa prática de leitura caiu em desuso, e prova disso é a quase ausência dos chamados “poemas dramatizados” nas escolas.

7. Guilherme Azevedo. “Velhos e crianças”. In: Figueiredo PtMENTEL (org.) Álbum das crianças. Rio de Janeiro: Quaresma & Cia, 1897, p. 20. 8. Op. cit., p. 8.

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Dos 137 poemas que se apresentam na coletânea de Pimentel, os que se prestam à dramatização constituem a maioria. A intenção de emocionar as crianças é flagrante também na escolha de temas. Mais de 20 poemas tratam direta ou indiretamente da morte. São referidas mortes de parentes, tais mo pais, filhos, avós; e também de animais, especialmente pássaros e cães. A surpresa doída da perda de um ente querido é muito explorada nos poemas. Até a avó de Chapelin (sic) Vermelho está grmente enferma:

Não embargam crentes esses teus temores, que me importa a noite, mais os seus horrores, se a minha avozinha tão doente está? 9

São poucos os bons poemas que tratam da morte. Em geral muito apelativos, sua linguagem sofre do mesmo mal que caracteriza toda a poética parnasiana, e que destaca quando as obras são de poetas menores: o discurso vazio, o gosto de ‘falar bonito”, o empolamento. Aliada ao exagero patético do ultra-romantismo, tem-se exatamente a construção dessa poesia feitapara declamar e chorar. Nesse sentido, é quase irônico encontrar um poema de B. Lopes, apresentando uma seqüência de metáforas sonoras que iria influenciar um dos poetas modernistas mais cáusticos com relação ao Parnasianismo, que é Manuel Bandeira. Trata-se do poema “Mauro”, que expressa primeiro a alegria depois a tristeza por meio dos sons dos sinos, como faria depois Bandeira no poema “Os sinos”. A temática voltada para formação moral e afetiva das crianças perpassa também grande número de poemas. Os pequenos são considerados símbolos da inocência e da perfeição. Mas sofrem, e muito, essas criancinhas. Há as enjeitadas, as órfãs, as enfermas e as aleijadas. As crianças más castigadas com dureza, mesmo fisicamente, e por Deus, como é o caso do menino que se vê beliscado

9. Op,cit, p.48.

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por um caranguejo. Na temática da relação das crianças com os velhos, da qual tratam 10% dos textos, aquelas são exortadas a respeitar, a obedecer e a enaltecer a estes. Compõe esse cenário de convocação à virtude infantil a insistente referência à caridade, assim como a santos, a milagres e ao próprio Deus criador e juiz maior. As questões sociais ocupam poucos versos da antologia de Pimentel. Quando aparece a fome, um milagre ou a caridade encarregam-se de mitigá-la. O operário é retratado como um velho magro e cansado, de cabeça branca, que ainda assim é convidado a não deixar o trabalho, para evitar a miséria:

Ó nobre herói do trabalho, Deus te há de abençoar! VaL ergue o pesado malho, que falta pão no teu lar! 10

Também o militarismo se faz presente nos poemas. Há inclusive uma verdadeira convocação para a guerra, em meio a outras formas mais amenas de fervor patriótico. Trata-se, na maior parte das vezes, de um forte apelo retórico, que mistura chavões religiosos ao sentimento de dever e à necessidade de defesa do Brasil, do lar e da família. Nesse ponto ficam bem separados os meninos das meninas: para eles, hinos, conclamações à coragem e ao heroísmo; para elas, histórias de bonecas, de gatinhos, preces e conselhos pela obediência como instrumento de obtenção da felicidade. Talvez possa ser considerado como o que haveria de melhor na antologia de Pimentel alguns raros poemas satíricos. Um padre cruel, um médico incompetente, alguns comiptos de plantão compõem a fauna selecionada para perturbar a sisudez do encontro poético no século XIX. Bem pouco, evidenciando que a educação da época era rígida e seus rituais costumavam excluir o riso, sinônimo de falta de educação.

10. Op. CII., p. 155.

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Outra será a montagem formal, temática e interlocutória de Poesia fora da estante. O selo da FNLIJ, com duas carinhas de crianças lendo juntas um grande livro, prova, para os adultos, evidentemente, a qualidade da publicação. Mas a apresentação tenta, logo no primeiro parágrafo, questionar o leitor-modelo: “A idéia deste livro surgiu da certeza de que a poesia não tem idade”. Entretanto, faz-se, aparentemente, uma inversão na condução dos critérios de valor poético. Em vez de assumir que os poemas coletados estão sendo considerados pelos especialistas adultos como obras dirigidas às crianças, as organizadoras — Vera Aguiar e suas auxiliares Simone Assumpção e Sissa Jacoby — dizem que “a poesia de gente grande pode passar pelo crivo dos pequenos leitores”. Logo adiante, fica claro que o objetivo que norteou a escolha foi o de colocar ao alcance das crianças versos que tradicionalmente não costumam ser indicados para elas, Alguns poetas novos, alguns consagrados e considerados não destinados a leitores infantis. Mas não deixa de estar presente o viés parnasiano, através de uma citação de Olavo Bilac, segundo a qual o poeta exigia de si mesmo o esforço de se colocar ao alcance das crianças com assuntos simples, versos bons e ausência de complicações formais. Ora, sabemos, especialmente através do trabalho de Mansa Lajolo, Usos e abusos da literatura na escola, que o Bilac presente nas escolas brasileiras é o pior Bilac, dos poemas de temática mais convencional e de linguagem mais hiperbólica. Assim, a referência ao poeta vem apenas comprovar sua “respeitabilidade” na história da poesia infantil brasileira. De qualquer forma, os poemas escolhidos para estar fora da estante em nada lembram Bilac. Mais restrita que a antologia de Pimentel, traz 75 poemas de 29 autores, dentre os quais Drummond, Oswald de Andrade, Haroldo de Campos, Ferreira Gullar, Leminski, Jorge de Lima e outros que podem ser considerados respeitáveis figuras da poesia brasileira de século XX, sem nada de dedicação explícita às crianças como leitores. Todavia, mesmo sem querer ser “infantis”, às vezes alguns poemas chegam a ser bobinhos mesmo. Não só os parnasianos

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menores, que queriam escrever bonito e caíam na mais estreita concepção de poesia, deixavam os pequenos leitores sem muito nais que efeitos retóricos para se apegarem. Também a negação do refinamento poético, em nome de um ludismo fácil, vira brincadeira boba, trazendo aos leitores a sensação de que tudo vale, de que é muito fácil fazer poesia, mesmo sem ter nada ou quase na nada a dizer. Veja-se, como exemplo, este poema de Milton Camargo: “Enquento peixe-martelo/ bate: toque, toque, toque/ peixe-serra vai serrando:/roque, roque, roque, roque.” Inevitavelmente, lembra a história da babá e do bebê babando na cartilha... Certas diferenças marcam bem claramente esses 100 anos entre as duas antologias. Uma delas é a presença de muitos poemas que exigem uma experiência visual e não oral de seus leitores. Na parte denominada “A gente constrói com palavras’ aparecem poemas concretos que não são legíveis em voz alta. Trata-se de um componente da poesia de vanguarda da primeirira metade de nosso século, quase impensável para Figueiredo Pimentel e os leitores de seu tempo. Somam-se a isso outros recursos que foram conquistados pelos modernistas, tais como o emprego de versos livres, a alogicidade, a ampliação do universo temático para esferas anteriormente consideradas antipoéticas, a quebra de padrões da chamada “língua culta” em nome do coloquialismo, a recriação de versos populares. 11. Tudo isso já “velho” para um aficcionado por poesia mas talvez novo demais para alguns pedagogos que se restringem à poesia antológica tradicional, aos poemas educativos de livros didáticos convencionais e a uma concepção de poesia a serviço da formação lingüística, moral e cívica dos pequenos cidadãos de nossa sociedade Se os críticos de arte e os especialistas em lilteratura infantil e juveniI premiaram o livro, ainda nos falta saber o que será dele nas escobolas As professoras sem formação literária encontrarão nele algum mérito? Talvez esses condutores escolares da leitura — que pouco lêem — possam mais facilmente identificar-se com alguns temas

11. Há uma parte inteira do livro, intitulada Os poemas de sempre não têm dono, que dedica espaço à “poesia que nasce do povo” e à sua recriação

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presentes na antologia de Vera Aguiar. Estão bem cotados, no caso, os poemas que falam das mães e os que tratam dos bichos, ocupando duas partes inteiras do livro. Não se apresenta mais a trágica história de Veludo, o cão que se sacrifica por fidelidade; são sete poemas brincando com os bichos, de modo que os versos ficam leves e rápidos, entrando formalmente nas brincadeiras. Quanto às mães, fica um resquício de seriedade e de nostalgia, como a que existe no belo poema Para sempre, de Drummond: ‘Por que Deus permite/ que as mães vão-se embora?” 12 São cinco poemas que nos fazem lembrar as mães distantes, doentes, carinhosas ou imortais da antologia de Figueiredo Pimentel. Afinal, as rupturas modernistas para com as poéticas do século passado não são tão radicais a ponto de cortar todos os laços... Se os poetas não mais falam diretamente de religião como um pregador, se a caridade deixou de ser a musa inspiradora, se a pátria amada não se salva mais com heróis nacionalistas, os bichos e as mães continuam movendo mentes e corações não só de pequenos leitores como de antologistas, pesquisadores grandes. Seria interessante também pesquisar se o universo de recepção poética pressuposto em Poesia fora da estante estaria de fato compondo harmoniosamente o universo mais amplo de textos poéticos que fazem parte do cotidiano dos leitores em idade escolar. Quando vemos ser editado um Fernando Pessoa 13 para leitores jovens, parece que o repertório textual está mudando. Entretanto, as besteiras em versos são muito numerosas no mercado editorial brasileiro. Os temas ecológicos ou metatísicos atraem poetas medíocres em grande número. Não há uma formação poética sustentada por leituras de grandes autores clássicos e contemporâneos. A hanalização da linguagem é justificada pela intenção de atingir jovens leitores. Apenas como exemplo de como se publica obra sem qualidade literária:

12. Op. cO.. p. 103. 13. Fernando Pessoa. Mensagem. (Livro do professor). .São Paulo: FTD. 1992— (Coleção Grandes Leituras). Idem. Pedacinho de Pessoai. Ilustrações de Angela Lago. Belo Horizonte: RHJ, 1996

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Coração

Coração tem pernas, braços, cabeça em euforia e tronco em movimentos. Tem olhos baços, Nariz

Ouvidor e boca abertos a dizerem para Deus em agradecimentos o que calam as palavras e o corpo estático nos apoteóticos momentos.14

Evidentemente, esse poema separado dos outros que compõem o livro pode ser lido de uma maneira menos condescendente que a esperada. De qualquer modo, seria necessário que se fizesse uma leitura crítica desses eventos poéticos pouco expressivos, saturados, gratuitos, que mal compõem um texto, e que não ampliam os horizontes culturais e estététicos de seus leitores. Com muito medo de julgar mal os textos que se publicam no país, os adultos condutores da leitura infantil parecem aceitar docilmente as banalizações do gosto. Nem seria necessário , esse procedimento. Se a poesia não termina, felizmente, em Roseana Murray ou Sergio Caparelli, exemplos de bons poetas que escrevem literatura infanto-juvenil, pode começar com eles, para um leitor ir que está dando seus primeiros passos e precisa mover-se para a frente. E, se todos nós sempre lemos um texto em vez de outro, pois ninguém consegue lê-los todos, as práticas de seleção de leituras devem ser conscientes e críticas, seja no âmbito escolar, seja na visitação pessoal a livrararias e a bibliotecas. Tal procedimento, pelo visto, não caracterizou ainda a algum fim de século no Brasil. As antologias, a seu modo, propõeõem-se, enquanto isso, a facilitar a vida dos leitores iniciantes.

14. A Antonio Carlos Tórtoro. Estrelas no mar, são Paulo: Moderna, 1994, p43.

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Referências bibliográficas

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7. UM PANORAMA DA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS

Elizabeth D‘Angelo Serra

No 11º Congresso de Leitura, da Associação de Leitura do Brasil, que tem, como tema geral, A voz e a letra dos excluídos, o Seminário sobre Literatura para Crianças e Jovens”, ao fazer uma avaliação da produção cultural no livro para crianças e jovens no Brasil, nos últimos 30 anos, visou discutir, também, a função social dessa literatura. Sobre a análise literária, tratou o próprio seminário, trazendo a experiência de autores, de ilustradores e de especialistas, pioneiros e estudiosos no assunto, num processo crítico — cronológico de avaliação. A apresentação desses artistas e desses especialistas aborda também a função social da leitura. Acreditamos que o livro para crianças e jovens como produto cultural não pode deixar de refletir a sociedade onde está inserido, com suias contradições e suas influências, Ao mesmo tempo que serve aos interesses de mercado, o livro, quando é resultado de criação artística, ou quando trata de informação científica de maneira criteriosa, sem estereótipos ou sem preconceitos, transforma-se em importanite instrumento de formação intelectual e afetiva de nossas

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crianças, na direção de uma educação libertadora. Vemos, portanto, o livro de literatura para crianças e jovens inserido num contexto socioeconômico cultural e educacional, com importante função social. Falar do livro para crianças ejovens e sua função social é falar nos adultos que estão entre o livro e a criança. O modo de proceder do adulto criador é aquele que pensa e cria o texto e a ilustração.Há aquele que o produz e o divulga e há o educador, o mais próximo à criança, aquele que apresenta o livro e introduz ou não a atividade na sua vida. Para que o livro exerça a sua função social é necessário que a criança se torne leitora. Isto se dá quando o mediador de leitura — o adulto — é um leitor e quando o livro oferecido a ela é uma criação artística e/ou científica e o editor trata esse objeto com cuidado, sabendo o seu valor para as gerações em formação. Porém, entre a criação e a produção, a criança e o educador, há o problema do acesso ao livro. Para quem (criança) pode comprar o livro o problema é resolvido pela vontade e decisão de um adulto. Para quem (criança) não pode comprá-lo, há um entrave. Mesmo que haja vontade não há condição. A alternativa é dada por adultos, que ela não conhece, e que decidem o que ela deve principalmente ler. Em geral, o livro didático, embora não sejamos contra o livro didático.

A avaliação escolar: texto escrito

A constatação da baixa qualidade da educação básica brasileira remete a uma idéia de qualidade, que é medida pela avaliação anual do desenvolvimento da capacidade da criança para expressar, através da escrita, sua compreensão decorrente da leitura dos problemas apresentados em diversas matérias. Vejamos quais as condições para ela desenvolver essas duas habilidades tão poderosas que são a leitura e a escrita.

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O desempenho escolar: responsabilidade de quem?

Até há pouco a escola responsabilizava as crianças pelos resultados do seu desempenho formal. Hoje, felizmente, isto mudou. A criança, de maneiras diferentes, cada uma, tem potencialidades e habilidades a serem desenvolvidas que dependem principalmente de condições emocionais e materiais externas a ela. Nesse sentido a sociedade reconhece que a família e a escola exercem a função de agentes, de mediadores do sucesso ou do fracasso da vida escolar de cada criança. Esta é uma grande conquista para as crianças, pois tirou de seus ombros e de seu coração a culpa pelo seu insucesso e abriu a possibilidade de mais sucessos individuais e coletivos, e de corações mais alegres. Conseqüentemente, de adultos mais felizes, esperamos — nada mais justo —, já que os padrões sociais estabelecidos, que indicam o que é sucesso ou fracasso da criança, na escola e em casa, são criados pelos adultos e, portanto, de responsabilidade deles e não das crianças. Nesse redirecionamento importante de responsabilidades sobre a educação de nossas crianças o foco passou a centrar-se no adulto.

A clientela da escola pública

A criança

Ao falarmos sobre educação básica brasileira, suas dificuldades, seus problemas e seu desempenho, teremos que conhecer qual a sua principal clientela, para pensarmos alternativas que a tornem, de fato, democrática. Felizmente, a cada dia que passa, a convivência familiar e da sociedade quanto ao direito universal da criança freqüentar

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a escola vem crescendo. Assim, a maioria das crianças, até então, excluída do contato com os bens culturais e do ensino formal vem tendo acesso à escola.

Porém, essas crianças, quando têm uma família que pode oferecer-lhes um mínimo de segurança afetiva e material, não têm, em geral, contato diário com o instrumento principal que avalia o seu desenvolvimento na escola, o texto escrito. E, quando não têm o mínimo de estrutura familiar, a situação é ainda pior. Assim, a criança entra com enorme desvantagem em relação a uma minoria privilegiada que também passa pelo sistema escolar e que vai competir com ela mais à frente, cuja cultura e o conseqüente processo educacional têm, no texto escrito, sua principal expressão de comunicação, de registro e de construção social.

O jornal diário, a revista semanal, o dicionário, uma pequena coleção de livros, uma enciclopédia, o texto no computador, os livros de literatura infantil, a literatura adulta não fazem parte do cotidiano dessas crianças, distanciando-as do contexto que qualifica a educação para o convívio em sociedade: o texto escrito variado e de qualidade. A maioria tem o primeiro contato diário com o texto escrito ao entrar na escola. E, lamentavelmente, esse contato é, somente, através do livro didático.

O livro didático, quando é o único livro, não contribui para uma convivência instigadora e prazerosa com o texto, Assim, além de não ter contato em casa, a convivência com a palavra na escola é desanimadora e empobrecedora, não conquistando o aluno para a leitura e, conseqüentemente, para a escrita.

Para não falarmos da falta de qualidade do livro didático (que vem, neste momento, sendo questionado pelo Governo Federal no sentido de melhorá-lo), falemos sobre o conceito pronto e acabado do conhecimento, que ele apresenta, em oposição ao conceito dinâmico e mutável. Não há espaço, no livro didático, para o questionamento, base do pensamento criador.

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A vontade de perguntar, de questionar fica represada, sem alternativas que motivem a aproximação com o texto e com o aprofundamento do conhecimento. A relação é de pura obrigação sem um sentido afetivo. Assim, a oportunidade de ter acesso ao conhecimento é direcionada pelo ponto de vista do livro didático e da orientação pedagógica que está na moda. No momento, uma visão deformada do construtivismo O jeito é procurar respostas para as dúvidas, para os questionamentos, próprios de qualquer criança ou jovem, onde a palavra surge mais fácil, na televisão, no rádio, nos dramas da vizinhança, da cidade, onde não há texto escrito explícito. Assim, a distância do texto escrito da medida da avaliação escolar aumenta. Isto é injusto. Cada criança é um ser precioso que deve ser cuidado e atendido, individualmente, com todo o carinho, paciência e amor. A cada criança brasileira deve ser oferecida a variedade e a qualidade de ofertas culturais em que o texto escrito tenha particular importância. As dúvidas, as perguntas, as inseguranças que tomam conta de qualquer um de nós para ser enfrentadas e terem condições de serem vencidas de maneira inteligente, precisam ser elaboradas e entendidas, tanto emocional quanto intelectualmente. Sabemos que a inteligência humana, para ser desenvolvida em toda sua potencialidade, tem que ser provocada, alimentada. E isto só pode acontecer por meio do contato, da troca com o outro, pela ampliação do conhecimento acumulado historicamente e pela alimentação constante do imaginário, O principal instrumento para que essa interação de pessoas, de experiências, de informações e de ficção aconteça é apalavra que, quando escrita, ganha força para multiplicar- se e perpetuar-se. Apesar de não estar claro para a maioria, é por este motivo que a avaliação escolar se faz pela palavra escrita. Essa força da palavra não é apresentada claramente para as famílias das classes excluídas dos bem culturais e a maioria dos professores também não tem, na sua formação, a dimensão do seu poder. Assim, a escola como meio de ascenção social,para a maioria, é uma meia-verdade.

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Essa maioria, sem a consciência de que o domínio crítico e criador do texto só se consegue em contato permanente com ele, credita o seu fracasso à incompetência pessoal e não luta para vencê-lo. A falta de competência verbal para expressar o seu sentimento subjuga-a e ela não tem instrumentos para enfrentar e questionar as razões das suas dificuldades.

Os professores

A saudosa escola pública que tinha qualidade não existe mais. Por que será? Aquela escola, apesar de pública, atendia a uma classe média que coinvivia com o texto escrito e tinha acesso à arte, tendo-a como valor ciultural e, por isso, o processo educacional valorizava a palavra. Estarmos falando dos anos 40 e 50, entrando pelos anos 60. Era uma minoria que tinha direito à escola. Foi só com a Constituição de 1946 que a educação básica passou a ser obrigatória e a construção de escolas pasou a ser bandeira política nos anos 50 e 60. Assim, entrou para a escola um contingente de crianças que estava excluído dela, até então. Para atender a essa nova clientela, que chegava às escolas, os cursos de magistério tiveram que formar mais professores. A necessidade de atender à demanda e a falta de compromisso democrático dos governantes e dos administradores de oferecer em ‘variedade e qualidade à maioria contribuiu para uma formação diferente dos alunos das escolas normais, não oferecendo uma formação de qualidade aos seus professores e seus alunos. A abrangência do conceito de aprender a ler e a escrever e quais as suas relações com a cultura não faziam parte do entorno cultural dos novos professores que se formavam no magistério. A expectativa era de cumprir a exigência do mercado de trabalho: decodificar os signos escritos. A palavra escrita em suas formas variadas, artísticas ou informativas, como instrumento para refletir e fazer pensar, foi desaparecendo do contexto escolar. A educação básica era vista em sua aparência menor, mais reduzida.

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A clientela, sem clareza do que cobrar, insegura, aceitava o mínimo apresentado. A memorização de conhecimento era a forma para passar pela avaliação escrita. Assim, autonomia, criatividade, desenvolvimento do raciocínio foram sendo desprezados. Para atender ao aumento da demanda pela escola aligeirou-se a formação do professor a tal ponto que se passou a considerar que para garantir a escolaridade básica bastava o professor saber decodificar, ter noções básicas de matemática, aprender técnicas e alguns métodos. A qualidade da expressão oral e escrita não foi preocupação dessa escola que cresce nos anos 60, durante o período ditatorial em que a técnica foi enfatizada em detrimento de uma educação integral e humanista. A educação, como direito de qualquer criança desenvolver, em condições de igualdade, suas capacidades afetivas e cognitivas, não era praticada. O que norteou, principalmente, a democratização das vagas foi o desenvolvimento do mercado e não uma preocupação com o desenvolvimento da pessoa, como direito. As características do leitor em convivência diária com a arte, com o texto escrito, de pesquisador, de estudioso afastaram-se da formação do professor. Também ele não tem segurança sobre o instrumento pelo qual a escola avalia seus alunos: o texto escrito. Porém, o conhecimento se tornou dinâmico e a memorização perdeu a sua função. É a dialética de vida. A mão e a contra-mão da história provocando o movimento, a mudança. O mercado se sofisticou e a necessidade de pessoas criativas derrubou a necessidade de memorizar. Tornou-se necessário que as pessoas pensem, tenham iniciativa, se sintam seguras para opinar, falar, transformar. E o que temos como resultado da educação oferecida para a maioria: crianças, e seus professores, aprisionados a um único tipo de texto. Sem autonomia de pensamento, que só a leitura variada e de qualidade oferece, a interpretação e a aprendizagem ficam comprometidas pois a palavra escrita não faz parte de suas vidas como algo de valor. As respostas, como resultado do raciocínio individual, não existem. Fora dos modelos não há saída!

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Para respostas originais e criativas é necessário o contato com o texto escrito, que entra em diálogo com o leitor e que o capacita a entrar em diálogo com o seu pensamento, desenvolvendo-o, problematizando-o com o do outro. Esse investimento no professor leitor e na escola não aconteceu ao longo dos últimos 30 anos. Assim, a maioria do professorado brasileiro, aquele que está na escola pública e, também, hoje, nas escolas particulares, não domina o texto escrito, para ler ou escrever, da maneira como deveria fazê-lo: crítica, criadora e autonomamente.

O que fazer?

Abolir o texto escrito da escola como meio de avaliação porque a maioria de alunos e de professores não vive a cultura do texto escrito? Não. Pelo contrário. Se o domínio do texto escrito é instrumento de poder em nossa sociedade todos têm que ter o direito de ter contato com ele, de ter oportunidades iguais de conhecê-lo e, assim, se apropriarem dessa cultura que, como privilégio da minoria, subjuga a maioria. Questioná-la e pensar alternativas a ela é tarefa que só acontecerá se tornando íntimo da sua variedade. A palavra para ser libertadora e transformadora da sociedade deve ser de todos com’o é de poucos. É pelo seu valor subversivo e revolucionário, portador da liberdade, que ela está aprisionada e reservada. Nosso trabalho é libertá-la para a maioria. É esta a tarefa do professor leitor.

As políticas de educação

Como já vimos, as políticas. educacionais têm sido orientadas somente para atender a demanda do mercado. Quando reconhecem a importância do acesso democrático ao conhecimento e resolvem

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considerar que o livro didático é o portador dessa informação não consideram a falta de contato com o texto escrito da maioria de professores e de alunos a que nos referimos aqui. Despejar parâmetros curriculares e livros didáticos (texto e texto) sem que a valorização da leitura, a condição de ser leitor, e de seu acesso à biblioteca estejam dispostas, é não querer desatar o nó que impede o desenvolvimento do leitor. Trata-se de uma incoerência por parte daqueles intelectuais que pensam a transformação da escola básica não considerarem a distância que há entre texto escrito e a maioria da população. Não é suficiente mudar os métodos, as abordagens, os temas a serem trabalhados em sala de aula. Não se trata de treinar professores ou de reciclá -los. Não adianta aumentar o número dos livros didáticos e de fazê-los chegar à escola no início do ano letivo. É necessário, como ponto de partida, valorizar o texto escrito e dar as condições para tal, das quais desfrutam a minoria da população. Se o instrumento de avaliação da escola é o texto escrito, é ele que deve permear a cultura de nossa sociedade através da sua valorização, nas escolas e nas famílias, cotidianamente. Só assim, a educação pública poderá ser, de fato, um instrumento importante e valioso de ascenção social para a maioria. O acesso através das bibliotecas públicas e escolares e das livrarias, para aqueles que podem, é condição básica para que todos tenham contato permanente com o instrumento que serve para avaliar a capacidade de cada aluno na escola. o que lhe permitirá ser livre, autônomo e capaz.

A importância do texto literário

Ao falarmos sobre o texto escrito e sua importância em nossa sociedade, como instrumento de poder e de avaliação escolar, consideramos

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a sua enorme variedade de formas: as revistas, os jornais, as enciclopédias bem como os textos escritos para serem lidos, recitados, cantados, no rádio, na televisão, no teatro, no cinema, nas músicas e, é claro, nos vários gêneros de livros. A maioria tem contato com as formas ocultas desses textos, mas não percebe que eles estão presentes, como é o caso dos textos falados da TV, do rádio, do cinema, do teatro, dos shows etc. Vamos, porém, aqui, destacar o texto literário. E, em particular, o texto literário para crianças e jovens, O motivo é o aspecto artístico desse texto e sua importância para ler os outros textos e expressar o próprio texto. A arte é a expressão mais forte e importante da capacidade humana para interpretar a realidade. Arte e ciência andam juntas nos grandes avanços das sociedades. Dissociá-las é comprometer a individualidade e a coletividade. Disso, infelizmente, sabem poucos. O artista é aquele que sofre e vê, como ser humano que é, as angústias e as alegrias comuns a todos. É ele que consegue melhor expressar os sentimentos humanos, problematizando-os, projetando-os e pensando-os, de maneira diferente. Ver, ouvir, ler, sentir uma obra de arte é ver a si próprio e à sociedade de maneira mais clara e provocadora. É olhar perto e longe, ao mesmo tempo. E isto nos ajuda a compreender o mundo à nossa volta. A literatura é o melhor texto de auto-ajuda. A capacidade humana de fazer arte é preciosa e revolucionária. Por isso os artistas, nos regimes ditatoriais, são os principais atingidos. A arte de mexer com as palavras e registrá-las através da escrita, publicando-as em livros, é a mais poderosa das artes, já que ao multiplicar-se em várias cópias possibilita a sua democratização. Porém, fazer arte é elaboração, é trabalho, é reflexão e esforço. Assim, desfrutá-la não é simples, requer, também, uma construção laboriosa daquele que toma contato com o texto literário. Todos os intelectuais, os artistas que se destacaram e se destacam têm na sua

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formação básica de leitores a leitura literária. O exercício de pensar a vida se enriquece com a leitura do texto literário. Se queremos uma escola básica brasileira que tenha qualidade, o texto literário tem que estar presente, com destaque, em meio a outros textos. Deve ser trabalhado de maneira completa como obra de arte que é, dando vida ao diálogo entre professores e alunos e não fragmentado como exercício gramatical ou como pretexto para animação e dramatização que acaba por encobrir a própria força do texto. A força e a importância do texto literário devem ser apresentadas com clareza para os alunos, contribuindo para que eles o desejem e dele apropriem-se, como seu. O professor, para ser um leitor crítico dos vários textos com que trabalha, precisa do texto literário para enriquecer seus argumentos, seu vocabulário e para perceber e valorizar as diferenças de seus alunos e a relatividade dos fatos, ampliando sua generosidade, sua compreensão e, assim, ser o promotor do texto escrito na sua escola. Ciente da sua importância, porque será um dos que vivem o texto escrito como seu instrumento de libertação, o professor leitor será capaz de mudar a qualidade da escola ao instrumentalizar, competentemente, seu aluno e cativá-lo para a leitura do texto escrito. Além disso, o texto literário permitirá que a leitura da teoria, que orienta a prática seja percebida do seu ponto de vista pois é ele — o texto literário — que dá ao professor a autonomia de leitor. Assim, a reflexão sobre a sua prática pedagógica emergirá em produção de conhecimento ao escrever seu próprio texto. E é deste professor que a criança brasileira e a escola brasileira precisam. Aquele que domina o código escrito de maneira própria e original e que instrumentaliza seu aluno para tal. O processo de domínio do conhecimento é uma conseqüência da capacidade de melhor ler e melhor escrever. A tarefa é longa e esse caminho não se constrói num estalar de dedos, em poucos anos. É necessário calma, paciência e esforço. E às vezes dói. Não é só prazer. Porém, há que se investir nele pois qualquer outra saída para a educação básica será um paliativo e não resolverá o problema da falta de qualidade e da incompetência profissional pelo qual passamos.

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Alguns números

É interessante verificar, estatisticamente, como está a relação entre a produção de livros e a formação de leitores. Para isto, utilizamos a pesquisa encomendada pela Câmara Brasileira do Livro à Fundação João Pinheiro. Desde 1990, a Fundação João Pinheiro vem pesquisando as informações sobre a produção editorial no país. Trata-se de um esforço importante e pioneiro, feito pela iniciativa privada, em que o governo ainda não investiu. Tratar de pesquisa no campo da leitura deveria ser uma das prioridades do governo, na área cultural e educacional, considerando a importância do texto escrito para a ascensão social em nossa sociedade. Os cruzamentos que fizemos merecem ser analisados, do ponto de vista da formação cultural e educacional de nossa população escolar. A produção de livros didáticos nos últimos três anos (1993 a 1996) cresceu 79%, enquanto a de livros não-didáticos aumentou 58% entre 1992e 1995. O volume de faturamento em dólares de livros didáticos, entre 1990 e 1996, aumentou 195%. O de livros não-didáticos, 89%. Vejamos a produção de 1996: Por exemplares: Do total de 386.747.134 exemplares publicados foram distribuídos, por categoria:

Literatura infantil e juvenil 56.150.090 14% Educação básica (EB) 276.398.644 71% Literatura adulta 8.198.805 2% Outros 13%

Por títulos: Do total de 41.670 títulos, 1ª edição e reedições:

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Literatura infantil e juvenil 11.669 28% Educação básica (EB) 16.489 39% Literatura adulta 3.158 7% Outros 26%

Sem dúvida há uma prioridade na produção editorial brasileira para a criança e, por conseqüência, para a educação básica, considerando-se que tanto em títulos (67%) quanto em exemplares (85%) a literatura infantil e juvenil e a educação básica, somadas, representam a maioria da produção editorial brasileira. Porém, o número dos livros de educação básica (didática e paradidática) é maior em relação à literatura infantil e juvenil, principalmente em número de exemplares. Vejamos:

• Título _ Educação básica = 39% / Literatura infantil e juvenil = 28%

• Exemplares _ Educação básica = 71% / Literatura infantil e juvenil = 14%

Constata-se, por outro lado, a baixa produção de literatura adulta:

• Exemplares = 2%

• Títulos = 7%

Ao considerarmos:

• que a formação do leitor crítico é básica pra atingirmos uma educação de qualidade na escola fundamental; • que a formação desse leitor se constrói através do acesso variado e permanente da leitura de vários textos, com ênfase na leitura literária; • que o livro didático não forma leitores, que sua função é a de informar, suprindo, sofrivelmente, a falta de acervos; • que o educador adulto, promotor da leitura, supostamente um leitor, não tem demandado a leitura literária,

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concluímos que a formação de uma sociedade leitora, crítica e criativa, não está sendo considerada pela produção editorial brasileira. A ênfase dada ao livro didático determina, sem dúvida, a qualidade da formação cultural e educacional de nossas crianças e nossos jovens e, é claro, de nossos adultos. A baixa produção de literatura adulta apresenta-nos um quadro pouco animador quanto ao perfil de leitor do nosso educador que, afastando-sede uma convivência artística, está mais próximo de uma leitura técnica, imediatista, o que vai refletir no tipo de formação de nossas crianças e de nossos jovens. Como esperarmos que a qualidade da educação brasileira vá atingir níveis altos se a leitura, principal instrumento de trabalho de qualquer professor, não está presente em sua mais forte expressão cultural, a leitura literária, e que a prioridade dada ao tipo de livro, para a maioria, é o livro didático? O futuro cultural de uma sociedade que privilegia a formação da maioria de sua população, de maneira pontual e pragmática, sem considerar a formação estética, integrada com a formação técnica, estará projetando uma sociedade empobrecida culturalmente. O enorme esforço que vem sendo feito por alguns autores, editores e professores, no sentido de considerar o acesso à literatura infantil e juvenil como decisiva para a formação do leitor, vem refletir, sem dúvida, um aumento na produção e um cuidado maior na qualidade. E isto a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) pode comprovar ao longo dos seus 30 anos de existência e 23 anos de premiações. Porém, é ainda pequeno o resultado diante do enorme volume de livros didáticos e a enorme lacuna a ser preenchida quanto à oferta de qualidade e variedade para todos. A relação da produção percapita entre livros didáticos e literatura infantil e juvenil considerando alunos matriculados é a seguinte:

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Alunos matriculados produção per capta Livro didático livro não-didático

1993 40.513.392 3,03 2,4

1994 42.576.123 3,42 2,3

1995 43.586.657 5,36 3,1

1996 44.204.154 4,98 3,7

Considerando os números de 1996, em que a produção de literatura infantil e juvenil foi de 56.150.090 e o número de alunos matriculados de 44.204.124, encontramos o percentual de 1,2% per capita de literatura infantil e juvenil, para unia relação de 4,98% per capita do livro didático. É quatro vezes mais. Esses são os números: 1 livro de literatura para 4 didáticos!

A questão da qualidade

Outro aspecto que resringe a oportunidade de contato com um universo cultural variado e rico é a falta de qualidade. A pesquisa mostra que, em 1996, em primeira edição de literatura infantil e juvenil foram editados 2.563 títulos. A FNLIJ recebeu cerca de 703 títulos, um pouco mais que 1/5 dos títulos editados e dentre esses, só cerca de 300 foram considerados para a pré-seleção. Para nós fica evidente que a maioria, provavelmente, não tem qualidade. Questionamos pois, qualitativamente, o investimento editorial na educação. Apesar de expressivo quantitativamente, quanto à prioridade que é dada ao livro didático (representou, em 1996,0 quádruplo da literatura infantil e juvenil) a literatura infantil e juvenil de qualidade, além de ser minoria, não chega à maioria de nossas escolas. O que será de uma nação que oferece qualquer produto cultural, para construir o futuro de seus jovens, sem estabelecer critérios de qualidade?

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8. TEXTO E IMAGEM: DIÁLOGOS E LINGUAGENS DENTRO DO LIVRO

Ricardo Azevedo

O fato de ser escritor e desenhista tem me possibilitado certas experiências curiosas. Volta e meia, sou convidado a visitar escolas para conversar com professores sobre literatura infantil. Nessas ocasiões, recebo muitas perguntas sobre os textos: como surgiu a idéia de tal livro; como foi criado tal personagem?; por que em certo texto a narrativa obedece determinada ordem e não outra?; se tal assunto pertence ou não ao “universo infantil”? (aliás, o que seria mesmo esse aparentemente tão nítido “universo infantil”?) e coisas assim. Só quando chega o intervalo, na hora do cafezinho, vêm as perguntas sobre ilustração: que técnica usei em tal livro?; por que optei por usar duas linguagem visuais em certo trabalho?; por que antecipei ou omiti tal cena em tal história?; qual o papel adequado para a aquarela? E assim por diante. Deve haver mil motivos originando essa situação, mas dois deles me parecem bastante prováveis: a) as pessoas costumam ter uma formação mais sólida em literatura que em artes plásticas, e b) as pessoas, talvez por isso mesmo, acabam não valorizando muito os desenhos, acham que o texto é mais importante, acham que ilustrações

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são uma espécie de enfeite e que perguntar sobre o assunto não passa de mera curiosidade pessoal. Se o leitor perguntar a um professor quantos escritores ele conhece, vai ouvir (com um pouco de sorte) uma lista de nomes, antigos e atuais. Se perguntar sobre artistas plásticos a lista vai murchar completamente. Essa falta de informação sobre imagens, claro, não contribui para o exame e a avaliação das ilustrações de um livro, pois, afinal, se existe uma frondosa, complexa e colorida árvore formada pelas artes plásticas (pintura, escultura, desenho, gravuras, cenografia, fotografia etc.) a ilustração é, sem dúvida, uma de suas ramificações. Como o assunto é muito amplo, vou tentar colocar algumas questões e adotar certas posições no intuito de, sem querer ser conclusivo, alimentar uma discussão sobre o tema ilustração de livros. 1

1) Exposições importantes como a “Bienal de Ilustração de Bratislava” ou a “Exposição da Feira de Bolonha” costumam expor e premiar ilustrações sem tocar na questão do texto. Observamos lindos desenhos mas não conhecemos os textos ilustrados. Como saber, então, se essas ilustrações são boas ou não? Como saber como dialogam, se é que dialogam, com o significado do texto? Como saber se acrescentam, ou não, significado ao texto? Como saber, em que pese serem tecnicamente bem realizadas, se são óbvias ou não? Como saber a forma com que se relacionam com a mancha do texto dentro da página? Como saber como tal situação, fundamental na estrutura do texto, foi resolvida?

Na minha visão, se essas exposições são super interessantes no sentido de mostrar originais, apontar novas técnicas etc., são, por outro lado, incapazes de distinguir boas e más ilustrações.

1. Há outros tipos de ilustração, por exemplo, a publicitária.

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Um desenho simples, feito com poucos traços, sem maiores pretensões técnicas pode ser, sempre a meu ver, infinitamente melhor ilustração do que um desenho rebuscado, construído apartirde uma técnica requintadíssima, mas que em relação ao texto só consegue ser redundante. Nada contra, evidentemente, que ilustrações sejam expostas como pinturas. Esquecer, porém, as diferenças estruturais entre os dois gêneros me parece um tremendo equívoco. Pinturas não têm textos como referência, não foram feitas para ser impressas e nem para ocupar, antes de qualquer coisa, páginas dentro de um livro.

2) Fica difícil falar em ilustração sem lembrar que, necessariamente, um livro ilustrado, no nível da linguagem 2 é composto de, pelo menos três sistemas narrativos que se entrelaçam: a) o texto propriamente dito (sua forma, seu estilo, seu tom, suas imagens, seus motivos, seus temas etc.); b) as ilustrações (seu suporte: desenho? colagem? fotografia? pintura? e, também, em cada caso, sua forma, seu estilo, seu tom etc.); c) o projeto gráfico (a capa, a diagramação do texto, a disposição das ilustrações, a tipologia escolhida, o formato etc.).

Examinando bem, há livros em que esses três sistemas têm autoconsciência e procuram o diálogo e outros em que isso não ocorre.

3) É importante notar que um mesmo texto dado para 10 ilustradores terá sempre 10 soluções diferentes. Caberá ao editor, e este, a meu ver, é um de seus papéis mais importantes, escolher o ilustrador que, com seu trabalho e sua criatividade, possa ampliar o potencial significativo do texto.

2. Simplificando, um sistema de signos com função simbólica e capacidade de formar discursos que transmitem vários tipos de mensagem.

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4) É impossível negar que todo texto ilustrado vai, necessariamente, receber interferência de suas ilustrações. A energia, a linguagem, as cores, o clima, a técnica, o imaginário, tudo o que o ilustrador fizer vai alterar e interferir na leitura (e no significado) do texto.

Mal comparando, é como um pianista acompanhado pelo contrabaixo. Os dois instrumentos, as idéias dos dois músicos, as referências e a cultura musical de cada um, tudo vai entrar na construção do som. Dependendo da música, o solo predominante será de um ou de outro instrumento. Mesmo quando o solo é feito pelo piano tendo por trás o contrabaixo, este, de repente, cresce enquanto o piano fica só na base. De repente, parece que ouvimos dois contrabaixos tocando. É o piano imitando o baixo. Outras vezes, o baixo vai para o agudo e finge ser um violão. Algo parecido pode acontecer, em graus diferentes, entre o texto e as imagens de um livro. Um autor ou editor que pretenda publicar um texto sem interferências deve publicá-lo sem ilustrações. O texto, em todo caso, continuará sujeito às influências do formato, do papel, do tipo de letra (um livro sobre computação e outro sobre floricultura não deveriam, em princípio, ter a mesma tipologia), da capa etc.

5) Vamos agora imaginar a seguinte situação: o carro quebra numa noite escura. O leitor acende a luzinha do teto, vasculha o porta-luvas e acha o manual de instruções. Descobre, faz de conta, que o manual não tem imagens mostrando as partes do painel, o motor, os pneus, nada. Todas as informações vieram por escrito e ainda por cima em corpo 8!

Eis um exemplo em que a linguagem visual ganha força. Uma descrição verbal do painel, por remeter à abstração, é incomparavelmente mais complicada do que um simples desenho esquemático com umas setinhas.

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Agora, suponhamos que a companhia telefônica decidiu fazer uma lista diferente: no lugar do convencional texto com nomes e endereços, optaram por colocar a foto do rosto é da casa de cada assinante. Imagine a confusão: Fulano não usava barba? Antes ela era tão magrinha! Será que esse careca de bigode é ele? Mas a casa dela não tinha uma árvore na frente? Eis um caso em que a linguagem visual, concreta e direta, pode ser bastante inadequada. Tudo isso importa quando pensamos em iluistração de livros. Como, por exemplo, identificar, dentro de um determinado texto, as situações que, em princípio, não devem ser ilustradas (por serem literárias, 3 o ideal é deixar sua construção para a imaginação do leitor), de outras onde as imagens podem e devem crescer, deitar e rolar?

6) Na literatura infantil há textos que prescindem da imagem e outros em que texto e imagem são indissociáveis. O que acontece quando um texto que prescinde de imagem é ilustrado? Seu universo de significação alterado? Como funciona a parceria da palavra com a imagem na construção da narrativa? Falando de crianças: uma criança de seis anos, recém-alfabetizada, precisa de ilustrações que a ajudem a compreender o texto. Três anos depois, já lendo com fluência, as ilustrações para ela teriam exatamente que função?

7) Outro aspecto vale a pena ser ressaltado: que tipo de texto, afinal, vai ser ilustrado? A questão é imensa mas pelo menos uma diferenciação bem genérica é possível fazer: a) há textos didáticos, ou seja, textos com motivação utilitária, que pretendem transmitir informações ojetivas sobre determinado assunto e necessitam de atualização periódica (novas informações, métodos e teorias vivem surgindo) e

3. imagine ilustrar, literalmente, ao pé da letra, a ‘virgem do lábios de mel”!

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b) literários, ou seja, resumindo, 4 textos com motivação estética, que pretendem abordar os assuntos de forma (sempre) subjetiva, através da ficção e da linguagem poética e que, além disso, não são passíveis de atualização a não ser ortográ apelando

Dois exemplos de textos nitidamente didáticos:

Aimorés ou Aimberés. Povo indígena extinto que, no século XVI, vivia em regiões hoje situadas em Minas Gerias, Bahia e Espírito Santo. Os Aimorés usavam botoques e eram mais altos e mais claros que os Tupinambás. Referidos genericamente como Tapuias, supõe-se que falavam língua do tronco Macro-Jê. Bastante aguerridos, não se deixavam seduzir e escravizar. Entraram em muitos conflitos com os colonos e índios a eles aliados. 5

Ou então:

É muito grande a diversificação morfológica externa dos caules, sendo facilmente reconhecidos os caules aéreos: haste (cravo), prostrado (abóbora), estolho (morango), volúvel (campânula), colmo (cana), estipe (palmeiras), tronco (mangueira, carvalho). 6

Textos desse tipo apresentam sempre um referencial nítido e objetivo. Para ilustrá-los, em princípio, é necessário recorrer a imagens impessoais e unívocas que não dêem margem a outras leituras,

4. Naturalmente não pretendo definir o que seja literatura, assunto complexo e cheio de teorias antagônicas, mas sim apenas apontar algumas de suas características mais evidentes. 5. LARROUSSE CULTURAL. Dicionário temático. São Paulo: Nova Cultural, 1995. 6. Sezar Cesar. Biologia 2. 4ª ed, São Paulo: Atual, 1984, p. 20.

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Apelando, em geral, para a linguagem fotográfica, desenhos comprometidos com o “realismo” , com a documentação, esquemas etc.

Agora vejamos dois textos nitidamente literários:

Cheguei em casa e arrumei tudo que eu queria na bolsa amarela. Peguei osnomes que eu vinha juntando e botei no bolso sanfona. O bolso comprido eu deixei vazio, esperando uma coisa bem magra para esconder lá dentro (...) Abri um zípe; escondi fundo minha vontade de crescer; fechei. Abri outro zipe; escondi mais fundo minha vontade de escrever; fechei. No outro bolso de botão espremi a vontade de ter nascido garoto (ela andava muito grande, foi um custo pro botão fechar). Pronto! A arrumação tinha ficado legal. Minhas vontades tavam presas na bolsa amarela, ninguém mais ia vr a cara delas. 7

Ou então

Amostra da poesia local

Tenho duas rosas na face Nenhuma no coração No lado esquerdo da face Costuma também dar alface No lado direito não. 8

Textos assim primam peela subjetividade, pela ambigüidade, pela motivação estética, pelo estranhamento, pela plurissignificação, pela visão poética e particular da realidade. Como desenhar “objetivamente” uma bolsa amarela que guarda “vontades” coma a de crescer, ter nascido garoto e ser escritora? A que referência recorrer, por outro lado, diante de um poema que menciona uma certa “poesia local”? Local onde? Que significa ter duas rosas na face e nenhuma nio coração?

7. Lygia Bojunga Nunes. A bolsa amarela 6ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 1981, p.30. 8. Murilo Mendes, O menino experimental 2ª ed. São Paulo: Summus, 1979, p. 26.

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Diante do texto literário (= poético), cada um de nós vai ter um sentimento, uma leitura e uma explicação. Imagine, agora, ilustrá-lo. As imagens, tal como o texto, também sairão, necessariamente, creio eu, marcadas pela subjetividade, pela ambigüidade, pela plurissignificação, pelo enfoque poético, pela visão particularepessoal da realidade. Distinguir livros didáticos de livros de literatura pode ser um excelente começo para se pensar em ilustração de livros. Para encerrar, proponho uma brincadeira. Como vimos, o ilustrador costuma partir de textos para construir suas imagens. Vamos tentar fazer o inverso e partir de imagens para criar textos? Imagine, leitor, três imagens: a primeira é o Mapa-múndi. Crie mentalmente, por favor, uma legenda para essa imagem. Imagine, depois, a foto de uma praia, Ipanema por exemplo, em pleno domingo de sol. Crie mentalmente uma legenda para essa segunda imagem. Imagine, agora, duas outras imagens: a) um homem sentado numa cadeira, diante de uma tela, está pintando um quadro. Seu modelo, em cima de uma mesinha ao lado, é um ovo. Na tela, entretanto, vemos um pássaro (e não um ovo) pintado; 9 b) um sujeito de costas para nós olha para um espelho. No espelho vemos que sua imagem refletida, paradoxalmente, também está de costas. É como se ele estivesse olhando para trás de si mesmo.10 Tente criar, caro leitor, legendas para essas duas últimas imagens. Tenho certeza de que se mostrarmos as imagens do mapa e da praia para 100 pessoas, vamos obter legendas bastante parecidas. No caso das últimas imagens, se bobear, vão surgir 100 legendas diferentes. Diante do texto literário, poético, lúdico e singular, o ilustrador vê-se na mesmíssima situação. Textos e imagens, como se vê, podem ser lados dessa multifacetada, essencialmente humana e valiosa moeda: a arte.

9. Refiro-me ao quadro La clairvoyance, de René Magritte. 10. Refiro-me ao quadro La reproduction interdite, de René Magritte.

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