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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X SILENCIAMENTO E PRODUÇÃO DE NOVAS MEMÓRIAS SOBRE A MULHER MUÇULMANA Gabriella Silveira Hóllas 1 Resumo: O presente trabalho procura questionar os processos de construção que constituem a imagem da mulher muçulmana no ocidente. Com base no conceito de memória discursiva de Michel Pêcheux (1999), abordamos duas questões principais: o silenciamento e a produção de novas memórias. Para nossa reflexão, foram selecionadas publicações em blogs que resgatam o modo de vida das mulheres árabes em países como Egito, Irã e Afeganistão entre os anos 50 e 70, em que, a partir de fotos, é possível ver mulheres com saias curtas e biquínis, por exemplo. Também selecionamos postagens de grupos que lutam pelos direitos das mulheres, como o Free Women Writers, do Afeganistão, que contestam a imagem da mulher muçulmana propagada no ocidente. Em relação ao primeiro tópico, apontamos um apagamento em relação ao modo de vida das mulheres até a chegada ao poder de grupos como o Talibã, o que contribui para a formação de uma imagem ocidental de retrocesso e de submissão em relação à mulher árabe, aparentemente inerente à religião islâmica. Em nossa próxima análise, observamos um movimento de contestação desta imagem comumente divulgada no ocidente a respeito da mulher muçulmana como submissa e sem condições de lutar por igualdade. Assim, publicações como as analisadas agem no sentido de inscrever, no domínio das representações, novas memórias e novos discursos a respeito da mulher árabe-muçulmana Palavras-chave: islã, mulher, memória, silenciamento A memória e a construção de imaginários Para dar início à reflexão que pretendo realizar neste trabalho, proponho um rápido exercício de interpretação. Apresento a reprodução da capa da edição 193, de 23 de abril de 2012, da revista americana Foreign Policy 2 . Vejamos como se dão os processos que nos permitem interpretar a imagem e os enunciados a seguir: 1 Universidade Estadual de Campinas Campinas SP - Brasil 2 http://foreignpolicy.com/2012/04/23/why-do-they-hate-us/ Figura 1 - capa da revista Foreign Policy

SILENCIAMENTO E PRODUÇÃO DE NOVAS MEMÓRIAS …...A condição das mulheres no Islã constitui um dos assuntos mais controversos da atualidade. No ocidente, esse tema é ligado à

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

SILENCIAMENTO E PRODUÇÃO DE NOVAS MEMÓRIAS SOBRE A MULHER

MUÇULMANA

Gabriella Silveira Hóllas1

Resumo: O presente trabalho procura questionar os processos de construção que constituem a imagem da mulher

muçulmana no ocidente. Com base no conceito de memória discursiva de Michel Pêcheux (1999), abordamos duas

questões principais: o silenciamento e a produção de novas memórias. Para nossa reflexão, foram selecionadas

publicações em blogs que resgatam o modo de vida das mulheres árabes em países como Egito, Irã e Afeganistão entre

os anos 50 e 70, em que, a partir de fotos, é possível ver mulheres com saias curtas e biquínis, por exemplo. Também

selecionamos postagens de grupos que lutam pelos direitos das mulheres, como o Free Women Writers, do Afeganistão,

que contestam a imagem da mulher muçulmana propagada no ocidente. Em relação ao primeiro tópico, apontamos um

apagamento em relação ao modo de vida das mulheres até a chegada ao poder de grupos como o Talibã, o que contribui

para a formação de uma imagem ocidental de retrocesso e de submissão em relação à mulher árabe, aparentemente

inerente à religião islâmica. Em nossa próxima análise, observamos um movimento de contestação desta imagem

comumente divulgada no ocidente a respeito da mulher muçulmana como submissa e sem condições de lutar por

igualdade. Assim, publicações como as analisadas agem no sentido de inscrever, no domínio das representações, novas

memórias e novos discursos a respeito da mulher árabe-muçulmana

Palavras-chave: islã, mulher, memória, silenciamento

A memória e a construção de imaginários

Para dar início à reflexão que pretendo realizar neste trabalho, proponho um rápido exercício

de interpretação. Apresento a reprodução da capa da edição 193, de 23 de abril de 2012, da revista

americana Foreign Policy2. Vejamos como se dão os processos que nos permitem interpretar a

imagem e os enunciados a seguir:

1 Universidade Estadual de Campinas – Campinas – SP - Brasil 2 http://foreignpolicy.com/2012/04/23/why-do-they-hate-us/

Figura 1 - capa da revista

Foreign Policy

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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Temos o seguinte título da reportagem de capa. Por que eles nos odeiam? E o subtítulo A

guerra contra a mulher no oriente médio.3 O primeiro enunciado, destacado pelo tamanho da fonte

e centralizado, apresenta um pronome dêitico eles, que não possui um referente explícito nessa

imagem. Para estabelecer a referência, precisamos reconstruir os sentidos possíveis desta capa.

Primeiramente, reconhecemos que a pintura negra sobre o corpo da mulher, expondo apenas seus

olhos, é uma representação de um niqab. Este, por sua vez, é uma vestimenta encontrada em países

muçulmanos e que simboliza no ocidente a opressão feminina nestes países. Entendemos, assim,

que o segundo pronome dêitico nós refere-se à mulher muçulmana da imagem, representando

metonimicamente todas as mulheres muçulmanas. Associando estas duas informações, a mulher

muçulmana ocupando a posição de objeto do verbo odiar e a vestimenta como símbolo de uma

opressão exercida pelos homens às mulheres muçulmanas, chegamos à conclusão que homens

muçulmanos constitui o referente de eles. A revista apresenta, portanto, uma mulher muçulmana,

oprimida pelo uso do niqab, em posição acuada, de medo e de insegurança. Seu “algoz” é o homem

muçulmano, responsável pela guerra às mulheres de que trata o subtítulo da capa. Entendemos a

guerra e o ódio às mulheres como frutos da estrutura opressora das sociedades muçulmanas, em que

mulheres são violentadas, mutiladas e proibidas de estudar, trabalhar e frequentar espaços públicos

sem a presença de um familiar masculino.

Para fornecer essa interpretação para a capa, foi necessário que preenchêssemos as lacunas

dos implícitos desse enunciado. As condições que nos conduziram a uma compreensão da capa da

revista Foreign Policy dizem respeito aos discursos que previamente circulam sobre a religião e a

cultura islâmica, ou seja, ao que denominamos de pré-construído (PÊCHEUX, 2014, p. 89). É esse

já-dito implícito, portanto, que sustenta os sentidos desse novo enunciado, conforme descreve

Achard:

Do ponto de vista discursivo, o implícito trabalha então sobre a base de um imaginário que

o representa como memorizado, enquanto cada discurso, ao pressupô-lo, vai fazer apelo a

sua (re)construção, sob a restrição “no vazio” de que eles respeitem as formas que

permitam sua inserção por paráfrase. (ACHARD, 1999, p. 13)

Como podemos ver nesse excerto, Achard menciona um “imaginário memorizado”. Assim,

à noção de pré-construído, podemos associar o conceito de memória:

Memória como estruturação de materialidade discursiva complexa, estendida em uma

dialética de repetição e de regularização: a memória discursiva seria aquilo que, face a um

texto que surge como acontecimento a ler, vem reestabelecer os implícitos (que dizer, mais

tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc)

de que sua leitura necessita” (PÊCHEUX,1999, p.52)

3 Em tradução livre

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Essa memória não diz respeito à memória cognitiva, individual, mas é entendida como

noções comuns aos membros de uma comunidade (DAVALLON, 1999, p. 25), constituído pelo já-

dito e que possibilita o sentido (ORLANDI, 1999, p.64)

O que nos permite, portanto, a leitura e a compreensão da capa analisada é a regularização

de uma memória perpetuada em nossa sociedade ocidental a respeito da religião islâmica, de seus

hábitos e, principalmente, das condições impostas à mulher.

A repetição de determinadas noções acerca da cultura e religião islâmicas conduz à

formação de um imaginário social:

A condição das mulheres no Islã constitui um dos assuntos mais controversos da atualidade.

No ocidente, esse tema é ligado à representação que se faz geralmente do Islã e dos

muçulmanos, percebendo-se apenas os aspectos mais negativos e mais espetaculares,

amplamente cobertos pela mídia e divulgados sem nenhum discernimento. É uma

representação que é constituída de estereótipos e de esquematizações reducionistas e

também por confusões conceituais. Ela é ainda mais exacerbada pela homogeneização dos

modelos referenciais produzidos pela globalização. (HAJJAMI, 2008, p.3)

Como nos mostra Hajjami, constrói-se no ocidente uma imagem do que seria a mulher

muçulmana e o seu modo de vida na sociedade árabe. Para nós, ela se constitui como um sujeito

passivo, oprimido, inferior, que desconhece a liberdade e que não tem condições para lutar por seus

direitos, conforme vemos também no relato de Hoodfar:

Whenever I meet a person of white/European descent, I regularly find that as soon as he/she

ascertains that I am Muslim/Middle Eastern/Iranian, the veil very quickly emerges as the

prominent topic of conversation. This scenario occurs everywhere, in trains, the grocery

store, the laundromat, on the university campus, or at a party. The range of knowledge of

these eager conversants varies: some honestly confess total ignorance of Islam and Islamic

culture or Middle Eastern societies; others base their claims and opinions on their

experiences in colonial armies in the Middle East, or on their travels through the Middle

East to India during the 1960s; still others cite films or novels as their reference. What I

have found remarkable is that despite their admitted ignorance on the subject, almost all

people I met were, with considerable confidence, adamant that women had a particularly

tough time in Muslim cultures. Occasionally western non - Muslim women would tell me

they are thankful that they were not born in a Muslim culture. Sometimes they went so far

as to say that they were happy that I am living in their society rather than my own, since

obviously my ways are more like theirs, and since now, having been exposed to western

ways, I could never return to the harem! (HOODFAR, 1992)

Vemos, portanto, a regularização de uma memória que veicula a imagem de opressão da

mulher islâmica associada à religião. Essa memória se perpetua na sociedade ocidental, sendo

reproduzida nas grandes mídias, estampando capas de revista e se materializando em enunciados

produzidos na esfera pública. Contudo, conforme Pêcheux, essa memória é suscetível a mudanças

promovidas por novos acontecimentos discursivos que a reescrevem:

Essa regularização discursiva é sempre suscetível de ruir sob o peso do acontecimento

discursivo novo, que vem perturbar a memória: a memória tende a absorver o

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acontecimento [...] mas o acontecimento discursivo, provocando interrupção, pode

desmanchar essa “regularização” e produzir retrospectivamente uma outra série sob a

primeira, desmascarar o aparecimento de uma nova série que não estava constituída como

tal e que é assim o produto do acontecimento; o acontecimento, no caso, desloca e

desregula os implícitos associados ao sistema de regularização anterior” (PÊCHEUX, 1999,

p. 52)

Dessa maneira, apresentarei, na próxima seção, algumas materialidades que se propõem a

descontruir e reconstruir novas memórias acerca da imagem da mulher muçulmana, de seu

protagonismo em sua sociedade e da relação, ou desvinculação, entre os preceitos corânicos e as

práticas do Estado.

Novas memórias

Como vimos, há uma imagem no ocidente que associa a religião islâmica à opressão à

mulher. Contudo, muçulmanas contestam essa relação, pois estas proibições não seriam imposições

corânicas, mas sim fruto de uma interpretação patriarcal do livro sagrado islâmico:

Se é verdade que a questão de igualdade entre os sexos confronta o referencial islâmico e

coloca o mundo muçulmano no tribunal das nações em função das leis de desigualdade que

regem as relações sociais entre os sexos, principalmente na esfera privada, não é menos

verdade que a condição de inferioridade e de precariedade nas quais estão confinadas a

maior parte das mulheres nas sociedades árabe-muçulmanas são oriundas principalmente da

hegemonia de uma mentalidade (de um sistema) patriarcal que instrumentaliza sua leitura

da religião para legitimar as situações de dominação, de violência e de exclusão em relação

às mulheres.(HAJJAMI, 2008, p.3)

Através de publicações em blogs e nas redes sociais, grupos visam desconstruir a imagem da

mulher muçulmana oprimida e passiva, propor uma nova leitura do alcorão que promova a

igualdade social e questionar a visão imperialista ocidental sobre sua cultura. Selecionei algumas

dessas publicações para propor uma reflexão sobre o imaginário da mulher muçulmana e a

formação de novas memórias.

Quando falamos em memória, falamos também em silenciamentos e esquecimentos

(ORLANDI, 1999, p.59). Uma questão que parece fugir à nossa memória ocidental é o modo de

vida das mulheres em países árabes até a década de 80. Imagens que exibem cenas cotidianas de

mulheres caminhando em Cabul ou se divertindo em uma praia no Egito confrontam-se com nosso

imaginário e desestabilizam as representações ocidentais.

O site The Uniplanet4 publicou uma

compilação com 25 fotos de mulheres em países

como Afeganistão, Egito, Irã e Iraque, entre as

4 http://www.theuniplanet.com/2016/02/sabia-que-as-mulheres-arabes-nao-usavam.html

Figura 2 –Praia no Egito, anos 50

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décadas de 50 a 70. Abaixo, algumas destas imagens:

O título desta publicação, Sabia que as mulheres muçulmanas não usavam burcas ou hijabs

antes dos anos 80?, já nos conduz a uma interpretação de que se trata de uma curiosidade, de uma

informação que não é partilhada em nossa sociedade, devido ao encadeamento da estrutura você

sabia que.

A sequência traz ainda fotos de mulheres como estudantes em universidades, dividindo

ambientes com homens, usando saias curtas e trabalhando como estilista, por exemplo.

Estas imagens contrastam com a memória que comumente circula em nossa sociedade, em

que mulheres aparecem cobertas por hijabs, niqabs ou burcas e são impedidas de participar

ativamente da sociedade e é justamente a partir deste contraste que produzimos sentido.

Ao nos depararmos com estas fotos, tentamos reconstruir em nossa mente a sociedade dos

anos 60/70 em que estas mulheres viveram e em que eram consideradas livres, não sofriam

Figura 3

Miss Universo, Iraque, 1972

Figura 4 – Cabul, 1972

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restrições quanto ao vestuário, estudavam e trabalhavam. Esta visão descontrói a imagem a que

comumente temos acesso, em que acreditamos que a vida das mulheres em sociedades islâmicas foi

“desde sempre” do modo como a conhecemos hoje, com todas suas opressões e limitações.

É importante ressaltar que o sentido não está contido nas imagens em si, mas se constrói a

partir de gestos de interpretação do analista, levando em consideração também o contexto histórico

do momento da análise, além de outras memórias e discursos, que atravessam e constituem os

processos de significação. Nesse sentido, é também importante considerar dois momentos distintos:

o de produção da imagem e o de nossa leitura. Assim, “vemos que entre o simples registro da

realidade e a memória social; que entre a reprodução de um acontecimento e a função social de

instituição/reinstituição do tecido social atribuído à memória, há toda a distância que separa a

“realidade” do “fato de significação” (DAVALLON, 1999, p. 24). Em outras palavras, a “realidade”

constitui-se como o momento em que a imagem foi capturada e que poderá ser significada de

diferentes formas. Em nosso caso, aquela imagem representava, na época, um registro do cotidiano

e do modo de vida daquelas mulheres. Hoje, após a revolução islâmica no Irã e a tomada de poder

no Afeganistão pelo Talibã e a consequente imposição de um regime fundamentalista islâmico, com

diversos retrocessos para a mulher, os efeitos de sentido produzidos sobre essas imagens são outros.

Ao ver mulheres de saia, vemos a ausência da burca; ao vê-las “sozinhas” na rua, vemos a ausência

da figura masculina que as acompanha. Compreendemos o cenário atual em que vivem as mulheres

árabes atualmente não mais como intrinsecamente associado ao islamismo desde sua expansão no

século VII, mas como uma ruptura. As sociedades, que, sob uma perspectiva ocidental, seriam

vistas como culturas “menos desenvolvidas” devido às imposições radicais da sharia5, tornam-se

mais próximas do ocidente, assim como a figura do Outro não nos parece mais tão distante.

Há, ainda, outras publicações semelhantes a do The Uniplanet que resgatam essa memória

do passado dos países islâmicos, como a divulgada pela organização Anistia Internacional do Reino

Unido6. Destaco um excerto que contrasta a imagem que comumente constitui imaginário ocidental

sobre a mulher afegã e o passado:

(1) Think of women in Afghanistan now, and you'll probably recall pictures in the media of

women in full-body burqas, perhaps the famous National Geographic photograph of 'the

Afghan girl', or prominent figures murdered for visibly defending women's rights. But it

hasn't always been this way. / 'As a girl, I remember my mother wearing miniskirts and

taking us to the cinema. My aunt went to university in Kabul.' / Until the conflict of the

1970s, the 20th Century had seen relatively steady progression for women's rights in the

country.

5 Conjunto de leis islâmicas baseadas no Alcorão. 6 https://www.amnesty.org.uk/womens-rights-afghanistan-history

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Este fragmento descreve primeiramente o imaginário do ocidente sobre o Afeganistão com

suas mulheres trajando burcas ou assassinadas pela defesa de seus direitos. Uma adversativa,

porém, adiciona a informação mas nem sempre foi desse modo. Dessa forma, o enunciador contesta

explicitamente o imaginário atual no ocidente acerca da mulher afegã. É inserido no texto um

depoimento pessoal para sustentar esse posicionamento sobra a situação do país antes da ocupação

soviética.

Outra publicação, do site Diário Norte7, também reivindica antigas memórias do

Afeganistão:

(2) Fotografías de otro tiempo más feliz han sido recogidas por una pagina de Facebook para

dar testimonio de aquella época de tolerancia frente al oscurantismo, ignorancia y miseria

que reinan hoy en Afganistan. Mohammad Qayoumi, creador de la pagina de facebook,

creció en Kabul en los años 60 y 70 y ofrece sus fotografías para concienciar a la población

mundial sobre lo ocurrido en Afganistán

Neste fragmento, o enunciador utiliza os seguintes substantivos e adjetivos para contrapor as

duas realidades afegãs: tempo mais feliz e época de tolerância, referindo-se ao Afeganistão pré-

talibã; e obscurantismo, ignorância e miséria para descrever as condições atuais do país. Ele

também determina como objetivo da divulgação deste arquivo de fotos a conscientização da

população mundial sobre o ocorrido no Afeganistão. O emprego do verbo conscientizar produz

efeitos de sentido de que esta informação é desconhecida pela população mundial, porém é

necessária para a compreensão da historia afegã e para a luta pela equidade de gênero no país.

A partir destas análises, considero que há um apagamento desse passado em que as mulheres

árabes-muçulmanas desfrutavam de uma sociedade mais igualitária. Pêcheux (1999, p.50) descreve

dois modos distintos pelos quais o processo de apagamento pode se realizar: a) “o acontecimento

que escapa à inscrição, que não chega a se inscrever” e b) “o acontecimento que é absorvido na

memória, como se não tivesse ocorrido”. Entendo que o apagamento do passado árabe encaixa-se

neste último modo. Aquele cenário próspero para as mulheres, que conquistaram o direito ao voto

em 1919, 13 anos antes do Brasil, que frequentavam universidades e faziam parte da força de

trabalho, foi absorvido pela história de invasões, guerras, intervenções estrangeiras e apoio

internacional a grupos fundamentalistas que chegaram ao poder e instauraram um governo

opressivo, com inúmeras restrições às mulheres. Aquele passado, semelhante ao das sociedades

ocidentais, foi encoberto pelas sombras de um regime como o do Talibã no Afeganistão ou do

aiatolá Khomeini no Irã, a ponto de ser praticamente desconhecido no ocidente atualmente.

7 http://www.diarionorte.com/article/115557/un-repaso-de-lo-que-era-afganistan-y-su-triste-actualidad

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Outras publicações disponíveis na internet visam não a recuperação de memórias apagadas

ao longo da história, mas, acredito, a inserção de novas. Grupos identificados como feministas, ou

não, reivindicam a desconstrução da imagem da mulher islâmica como oprimida por sua religião e o

reconhecimento das lutas de mulheres árabes-muçulmanas por seus direitos. Selecionei alguns

fragmentos destas publicações para uma breve análise.

O blog ativista pelos direitos das mulheres Girls Globe reproduziu uma publicação

realizada pelo grupo Free Women Writers para resgatar a memória de cinco mulheres afegãs que

desempenharam um importante papel na luta por direitos, intitulado Five Afghan Women Who

Made History8. Apresento aqui o texto introdutório da postagem:

(3) The history of women’s struggle for equality and liberation in Afghanistan is often

misunderstood and misrepresented. Many still believe that the movement for gender

equality in the country began in 2001, with the help of international forces. While Afghan

women have reached unprecedented heights in many fields due to increased opportunities

since 2001, we have a long history of fighting for our rights. We were never weak and

voiceless. We have always found ways to speak up, even under the oppressive Taliban

regime.

A enunciadora questiona nesta passagem a imagem que se construiu sobre as lutas das

mulheres afegãs por direitos, a qual ela caracterizou como mal entendida e mal representada,

contestando, dessa forma, a crença que predomina no ocidente de que a intervenção norte-

americana em 2001 seja a principal responsável pela conquista de direitos das mulheres no

Afeganistão. O emprego dos advérbios nunca e sempre em Nós nunca fomos fracas e sem voz e Nós

sempre encontramos maneiras de falar, mesmo sobre o regime opressivo do Talibã pressupõe que

há discursos que veiculam estes características às mulheres. Em certas formações discursivas

ocidentais, a imagem que se constrói é justamente de mulheres, fracas, sem voz, que não lutam por

seus direitos e são salvas pelo ocidente. Ocorre postagem semelhante em outra publicação do

mesmo blog.9:

(4) Even under the disastrous regime of Taliban, many women in Kabul and beyond took

immense risks and protested. Many started secret schools for girls or secret literary circles.

Risking beatings and worse, many brave women continued the fight for equality by

educating young girls. There are many stories of women who confronted the Taliban and

there is a need to collect all these stories. There are even narratives of confrontation with

the “vice and virtue” police, where women would carry copies of the Quran with them and

ask the Taliban to show where the verse is that women are not allowed to leave the house or

wear burqas. One particularly famous story in Kabul tells of a woman named Sajida who

8 https://girlsglobe.org/2016/12/08/five-afghan-women-who-made-history/ 9 http://www.freewomenwriters.org/afghan-women-history/

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took off all her clothes in protest of the Taliban’s strict rules on women’s clothes. The

Taliban sidelined us, but they could not silence Afghan women- not for long, anyways.

Além de também contestar a concepção de que as mulheres afegãs não lutam por seus

direitos, citando exemplos de resistência dessas mulheres, vemos, neste excerto, outra questão

importante: a associação das restrições impostas às mulheres a um grupo político específico e não à

religião islâmica. A enunciadora cita narrativas em que as mulheres que carregam cópias do

Alcorão com elas e perguntam ao Talibã para que mostre onde está escrito que as mulheres não

podem sair de casa ou que devem usar burcas. As mulheres, portanto, questionavam o regime a

partir do próprio islamismo. A luta por direitos não é contra uma religião, mas contra um governo,

como podemos ver a partir de um efeito de repetição em que Talibã é evocado em quase todos os

períodos deste parágrafo e a ele são atribuídos os problemas enfrentados pelas mulheres e não ao

islamismo: I) sob o regime desastroso do Talibã II) mulheres que confrontaram o Talibã III)

pediram ao Talibã IV) protesto contra as restrições do Talibã sobre as roupas das mulheres V) o

Talibã nos deixou de lado, mas eles (Talibã) não podem silenciar as mulheres afegãs. Assim, a

enunciadora apresenta uma nova visão ao imaginário ocidental, este que compreende a opressão de

gênero como resultante da religião.

Considerações finais

O resgaste de uma memória das condições das mulheres árabes-muçulmanas até a década de

80 e o acesso ao material produzido por elas na luta por direitos desestabilizam o imaginário

ocidental a seu respeito. A imagem até então construída da mulher oprimida pela religião e sem

condições de questionamentos e capacidade de lutar por seus direitos dá lugar a novos discursos no

domínio das representações. As fotografias de mulheres caminhando livremente nas ruas, usando

saias e frequentando a universidade produzem novos efeitos de interpretação sobre a historia dos

países árabes, sobre as condições ofertadas às mulheres e sobre a quem recai a responsabilidade

acerca das restrições impostas ao gênero feminino. Entender que estes países já apresentaram

cenários semelhantes aos de países ocidentais gera efeitos de empatia e aproximação do ocidente

com essas culturas. Vemos que o modo de vida das mulheres árabes a que temos conhecimento hoje

não se trata de uma condição enraizada através dos séculos nestes países, mas decorrente de uma

ruptura histórica após intervenções estrangeiras e a chegada de determinados grupos ao poder.

Assim, compreendemos que os regimes atuais de países como Irã e Afeganistão não são

consequências imutáveis de preceitos corânicos, como se constitui em nosso imaginário, mas são

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resultantes de uma determinada interpretação patriarcal e radical do Alcorão. Desloca-se, dessa

forma, o foco no tratamento dado a essa questão. O entendimento sobre a libertação da mulher não

diz mais respeito a trazer um suposto esclarecimento a um determinado povo em relação a sua

religião, mas retoma condições e direitos que já fizeram parte daquele país.

Nos fragmentos relativos à luta feminista no Afeganistão, a enunciadora contesta a imagem

de que a intervenção norte-americana tenha sido a responsável pelos direitos conquistados no país.

A época da intervenção, um dos argumentos norte-americanos era, inclusive, a necessidade de

libertação das mulheres afegãs. A opressão sofrida em países muçulmanos é, nesse sentido, muitas

vezes instrumentalizada para justificar intervenções que atendam a interesses dos países ocidentais,

como foi o caso da invasão no Afeganistão em 2001.

Nesse sentido, podemos relacionar essa questão com a abordagem de Fernández (2007, p.

86) sobre os imaginários sociais atuarem como dispositivos de poder. A manutenção de um

imaginário opressor e pouco desenvolvido das sociedades islâmicas consistiria, portanto, uma forma

de firmar uma soberania dos países tido como desenvolvidos, como os da Europa ocidental e os

EUA, sobre os países muçulmanos, principalmente no contexto mundial atual que vê o islã como

um inimigo a ser combatido.

Para finalizar, as publicações das mulheres que lutam pela igualdade de gênero em seus

países de origem desestabilizam e promovem novas interpretações e reflexões sobre a complexidade

das relações de poder, tanto local, como também globalmente. Elas tendem a amenizar tendências

imperialistas dos países ocidentais que, a partir de seu posicionamento ideológico, consideram o

oriente como menos desenvolvido, necessitando, portanto, de orientação para atingir os níveis de

esclarecimento das sociedades “desenvolvidas”. Acima de tudo, as publicações inserem novas

memórias e alteram imaginários, promovendo o conhecimento e o reconhecimento da resistência

das mulheres árabes-muçulmanas.

Referências

ACHARD, Pierre. Memória e produção discursiva do sentido. In Papel da Memória. Achard, Pierre

et al. Campinas: Pontes, 1999

DAVALLON, Jean. A imagem, uma arte de memória? In Papel da Memória. Achard, Pierre et al.

Campinas: Pontes, 1999

FERNÁNDEZ, Ana Maria. Las Lógicas Colectivas. Buenos Aires: Biblos, 2007

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Five Afghan women who made history. Disponível em: https://girlsglobe.org/2016/12/08/five-

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Silencing and production of new memories about the Muslim Woman

Abstract: This paper aims to discuss the construction process that establish the Western image of the

Muslim woman. Based on the concept of Discursive Memory by Michel Pêcheux (1999), we try to

approach two main questions: the silencing and the production of new memories. For our study, we

selected some publications on the internet concerning the way of life of Arab women in countries

like Egypt, Iran and Afghanistan, between the 50s and 70s, in which it is possible to notice women

wearing skirts and bikinis, for example. We also selected some posts by groups that fight for gender

equality, such as "Free Women Writers", from Afghanistan, which challenge the Western image of

the Muslin woman. Regarding the first topic, we point out a silencing considering the way of life of

Muslim women until the rise to power of groups like Taliban, which contributes to the image of

setback and submission apparently inherent to the Islamic religion. In our next analysis, we notice a

movement contesting the image commonly disseminated in the West of the Muslin woman as

12

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

submissive and without conditions to fight for gender equality. In this way, publications, such as the

ones we analyzed, work towards inscribing, in the domain of representations, new memories and

new discourses about the Arab Muslin woman.

Keywords: islam, woman, memory, silencing