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Dissertação de Mestrado - Daniel P Silva - Versão FinalNeste trabalho de economia política, tratamos de apresentar uma forma de conceber o sujeito econômico através da abordagem psicanalítica de Jacques Lacan. Por esses meios, buscamos abranger os caracteres que contemplam a subjetividade do homem e as complexas relações de composição entre sujeito e a sociedade. Nesse intuito, para muito além de uma aproximação interdisciplinar, nos munimos das severas implicações analíticas que se estabelecem a partir da declaração de Lacan quanto à existência uma homologia estrutural entre o conceito marxiano de mais-valia e o seu conceito de mais-de-gozar. Mostramos, então, como se estabelece essa homologia e de que forma ela proporciona uma abordagem dos sujeitos econômicos no capitalismo. Por fim, tomados dos elementos analíticos que articulamos, empreendemos uma apreciação dos sujeitos econômicos contemporâneos em suas ações de consumo, tendo em vista o estabelecimento de uma sociedade de produção em massa.
Citation preview
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DANIEL PEREIRA DA SILVA
Elementos para uma abordagem psicanaltica do sujeito da economia capitalista
Campinas 2015
iii
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ECONOMIA
DANIEL PEREIRA DA SILVA
Elementos para uma abordagem psicanaltica do sujeito da economia capitalista
Prof. Dr. Paulo Srgio Fracalanza orientador Profa. Dra. Adriana Nunes Ferreira co-orientadora Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias Econmicas da Universidade Estadual de Campinas para obteno do ttulo de Mestre em Cincias Econmicas ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE VERSO FINAL DA DISSERTAO DEFENDIDA PELO ALUNO DANIEL PEREIRA DA SILVA E ORIENTADA PELO PROF. DR. PAULO SRGIO FRACALANZA.
CAMPINAS 2015
iv
v
vii
dedico
Anita Barreto da Silva e a
Jos Salvador da Silva,
meus avs
e os amores da minha vida.
ix
Agradecimentos
Agradecer a todos que, ao logo desses trs anos de mestrado, contriburam para
a execuo dessa empreita e escrita dessa dissertao , sem dvida, para mim, um
ato de alegria e de angstia. Alegria por poder registrar meu reconhecimento e minha
dvida a tantas pessoas que me dedicaram afeto, energia, pacincia, tempo, ateno e
conhecimento; e angstia por saber que esses agradecimentos me reservam o fado de
serem insuficientes e negligentes, razo essa pela qual eu, desde j, me desculpo.
Do ponto de vista institucional, quero agradecer CAPES por proporcionar
aporte financeiro ao meu mestrado e ao Instituto de Economia da Unicamp, escola da
qual eu tenho enorme orgulho de fazer parte como discente h 10 anos e que, por
tantas vezes, significou, para mim, um osis de possibilidades de estudo crtico e
consistente de cincias econmicas.
Agradeo profundamente ao meu orientador, Prof. Paulo Srgio Fracanlaza, que
significou no s a possibilidade de execuo de um trabalho com tema to sui generis
na economia, mas que tambm foi um grande incentivador e um grande suporte
intelectual dessa dissertao. Conjuntamente, manifesto minha gratido Prof. Adriana
Nunes Ferreira, minha coorientadora, que dedicou tantas leituras e tanto tempo a mim e
que, de forma decisiva, comprou a temtica desse trabalho. Foi uma honra t-los como
orientadores.
Quero agradecer tambm ao Prof. Jos Carlos de Souza Braga, pelas
inspiradoras aulas de economia poltica e por, gentilmente, aceitar participar da banca
avaliadora dessa dissertao, e Prof. Nina Virgnia de Arajo Leite, cuja contribuio
excedeu largamente a participao na qualificao e na defesa desse trabalho, se
fazendo fundamental nos rumos tomados pela minha pesquisa, dada a sua enorme
generosidade e pacincia em instruir um economista nos caminhos rduos da
psicanlise.
Ainda no sentido de reconhecer a contribuio intelectual para essa dissertao,
quero agradecer dois grandes interlocutores e, devo dizer, inspiradores desse trabalho:
meus amigos Manuel Ramon Souza Luz e Douglas Emiliano Batista. Ramon foi no s
x
uma grande referncia na teoria econmica, mas tambm um grande e atencioso
colega, promotor de grandes discusses e de conversas riqussimas que tanto
iluminaram esse texto. Ao Douglas, devo imensamente, uma vez que ele o meu
padrinho e meu grande professor de psicanlise, com sua inteligncia assombrosa e
que s perde em magnitude para a sua generosidade.
Agradeo aos professores do Instituto de Economia, sobretudo ao professor
Denis Gimenez, que participou da minha qualificao e contribuiu consideravelmente
com o desenvolvimento dessa dissertao; aos professores Andr Biancareli, Pedro
Rossi, Simone Deos e Jos Dari Krein que participaram desse trabalho com suas aulas
e suas disponibilidades; e ao professor David Dequech que, provocativamente, me
incitou a cuidar da consistncia epistemolgica na aproximao entre psicanlise e
economia.
Agradeo a todos meus amigos, companheiros de ps-graduao, em especial
ao Leandro cujos conselhos foram absolutamente decisivos para que eu lograsse xito
no processo seletivo do mestrado; ao Maurcio (Mosquito), ao Jaime e Luma, por me
proporcionarem momentos de descontrao em meio s tenses das matrias; ao Alex,
pelas grandes e inspiradoras discusses, ao Roney por ter me ajudado a encontrar
guarida em Campinas; e ao Danilo, meu parceiro de trabalhos nas disciplinas.
Preciso imensamente registrar minha gratido a dois lares que me adotaram
por seis meses nas terras campineiras. O primeiro, de Elyson, Gisele e Davi,
maravilhosos acrianos que recolheram um completo estranho em sua casa e o fizeram
sentir como um irmo. O segundo, da Wanessa, que tambm me recebeu
seguidamente na sua casa na moradia, que cuidou com um carinho imenso de mim e
me mostrou tanta coisa bonita da sua vida amarelo caf. Vocs foram umas das
pessoas mais importantes dessa caminhada.
Aos demais amigos que a Unicamp me proporcionou, quero registrar um
agradecimento especial Luciene, que me deu tanto amparo emocional e institucional
para conseguir entrar no mestrado; ao Aliomar, Ana e ao Aldo, meus amigos-irmos
que me deram tanto apoio; e Carol, que me indicou a professora Nina e praticamente
me introduziu na psicanlise.
xi
Ainda, nessa jornada, outra instituio, a Fecap, me proporcionou o contato com
pessoas incrveis e s quais devo agradecimento pela contribuio intelectual e afetiva.
Nesse sentido, sou grato ao Jos Carlos, ao Pedro, Gabriela, Juliana, ao Nelson e
ao Andr, companheiros de dcimo andar. Todos tiveram, sem dvida, direta ou
indiretamente, participao importante na realizao desse trabalho.
Resta agradecer queles que representam o maior tesouro da minha vida, a
quem eu me derreto de amores: minha famlia. Inicio pelo meu compadre, Rafael,
pessoa inacreditvel, que se dedicou tanto a mim, me ajudou tanto na construo da
casa (uma das realizaes mais importantes desse perodo) e que, juntamente com a
Anna e a Jlia, foi responsvel por grande parte das alegrias que tive nesses ltimos
trs anos. Agradeo tambm a minha famlia de Bauru, Maurcio (Amigo), Adriana,
Roger e Conceio que, mesmo de longe, sempre estiveram extremamente prximos
com seu carinho, sua ateno, suas oraes e seu apoio. Amo vocs demais.
No posso deixar de expressar minha gratido ao meu tio Carlos e a minha tia
Claudete, grandes amigos e to importantes referncias que tive toda a vida. Agradeo
vocs, ao Maurcio, Mayra e Marina por terem me acompanhado nessa caminhada,
por terem sempre torcido por mim e por me ajudarem tanto na construo da casa.
Vocs so meus segundos padrinhos. Agradeo, tambm, meu irmo, Andr, por tantas
conversas, tantos conselhos, tantas barras familiares e tantas risadas divididas. Apesar
de eu ser o irmo mais velho, um cara como voc que eu quero ser quando crescer.
minha me, Maria de Ftima, aquela que significa toda a segurana que eu
tenho na vida, eu devoto uma gratido enorme. Obrigado por ter me acolhido em sua
casa, por ter me aturado, por ter me ajudado incondicionalmente com os estudos, com
a casa, com os perrengues da vida. A vida acadmica reserva diversas incertezas e
limitaes, mas, sem dvida, graas a voc, me, ao seu enorme afeto, tudo parece
transponvel e alcanvel. Eu te amo muito.
Agradeo ao meu pai, o eterno e maior mestre da minha vida, meu muso
inspirador. Devo muito desse mestrado a voc, pai. Se os estudos so dos maiores
prazeres da minha vida, bvio, eles o so por voc, so dedicados aos valores que
voc imprimiu em mim. Voc sempre aquele que eu busco, e essa busca me faz
xii
imensamente realizado.
Quanto aos meus avs, a v Nita e o v Jos, eu no tenho palavras. Dedico a
vocs, humildemente, essa dissertao. Vocs so os maiores amores da minha vida.
Eu os amo to perdidamente e, mesmo assim, isso to pouco perto da imensido do
que vocs fazem por mim. Obrigado por terem me feito filho de vocs. Obrigado por
terem, com as prprias mos, construdo minha casa. Obrigado pelas oraes que
sempre resolveram todos os meus problemas. Obrigado por cuidarem to
minuciosamente de mim. Obrigado por serem as pessoas mais maravilhosas que j
existiram.
Por fim, agradeo Joice, minha mulher, aquela que pode ser chamada to
inequivocamente de companheira. Esses trs anos de mestrado foram intensos para
ns dois. Passamos por tantas dificuldades, lutamos tanto e construmos tanto. Sem
dvida, tambm sofremos como nunca. Mas voc to maravilhosa, to forte, to linda
que eu s posso pensar que quero voc pra vida inteira. Obrigado por ter me dado tudo
o que eu mais valorizo. Obrigado por ser meu suporte acadmico, intelectual,
emocional, afetivo. Obrigado por me dedicar um amor to verdadeiro. Obrigado por ter
construdo comigo uma casa e uma famlia. Eu te amo muito. Voc a razo da minha
vida.
Depois de escrever esses agradecimentos, de reconhecer a importncia de
tantos para a concluso dessa dissertao e do meu mestrado, s posso dizer que o
que eu fiz pequeno e simples, ainda mais quando comparado com a vastido de
pessoas maravilhosas que me ajudaram nesse caminho.
Obrigado a todos.
xiii
Resumo
Neste trabalho de economia poltica, tratamos de apresentar uma forma de
conceber o sujeito econmico atravs da abordagem psicanaltica de Jacques Lacan.
Por esses meios, buscamos abranger os caracteres que contemplam a subjetividade do
homem e as complexas relaes de composio entre sujeito e a sociedade. Nesse
intuito, para muito alm de uma aproximao interdisciplinar, nos munimos das severas
implicaes analticas que se estabelecem a partir da declarao de Lacan quanto
existncia uma homologia estrutural entre o conceito marxiano de mais-valia e o seu
conceito de mais-de-gozar. Mostramos, ento, como se estabelece essa homologia e
de que forma ela proporciona uma abordagem dos sujeitos econmicos no capitalismo.
Por fim, tomados dos elementos analticos que articulamos, empreendemos uma
apreciao dos sujeitos econmicos contemporneos em suas aes de consumo,
tendo em vista o estabelecimento de uma sociedade de produo em massa.
xv
Abstract
In this political economy study, we aim to present a way of conceiving the
economic subject through the psychoanalytic approach of Jacques Lacan. By such
means, we seek to comprehend the characters which contemplate the subjectivity of the
human and the complex relation of composition between the subject and the society. For
that purpose, far beyond of an interdisciplinary approximation, we equip ourselves of the
severe analytical implications which are set up from the Lacans declaration on the
existence of a structural homology between the Marxian concept of surplus value and
his concept of plus-the-jouissance. We demonstrated, then, how to establish this
homology and how it provides an analysis of the economic subjects in the capitalism.
Finally, we undertook an assessment of the contemporary economic subjects in their
consumer actions, in view of the mass production society settlement.
xvii
ndice de figuras
Figura 1: Crescimento da renda real per capita (1930 - 2000)............................. 71
Figura 2: Horas semanais trabalhadas (1930-2030)................................... ......... 72
Figura 3: O gozo na sociedade de produo........................................................ 74
Figura 4: O gozo na sociedade de consumo........................................................ 75
xix
Sumrio
Introduo ................................................................................................................... 1
Por que economia e psicanlise? ................................................................................ 3
Captulo 1 - Economia convencional e psicanlise: do indivduo ao sujeito. ............... 7 1.1 O homem na teoria econmica convencional. .................................................... 8 1.1.1 O indivduo ..................................................................................................... 8 1.1.2 O indivduo e os princpios de economia ...................................................... 10 1.1.3 O indivduo e a economia contempornea ................................................... 14
1.2 Elementos para uma abordagem lacaniana do homem .................................... 17 1.2.1 O Imaginrio, o Eu e o outro ......................................................................... 19 1.2.2 O Simblico, o Outro e o sujeito ................................................................... 22 1.2.3 O Real e objeto a .......................................................................................... 27
Captulo 2 - O fetiche do Outro: a existncia do capital e a existncia no capital ..... 31
2.1 Fetiche: o modo de existncia do capital .......................................................... 32 2.1.1 O fsico valor de uso ..................................................................................... 32 2.1.2 A introduo do homem ................................................................................ 33 2.1.3 O trabalho, essncia do valor ....................................................................... 36 2.1.4 A autonomia do valor de troca ...................................................................... 38 2.1.5 O dinheiro, o signo do valor .......................................................................... 42 2.1.6 O fetiche: o modo de existncia do capital. .................................................. 43 2.1.7 A mais-valia e o capital em processo ............................................................ 46
2.2 O Outro do capital ............................................................................................. 48 2.2.1 A indiferena travestida de igualdade ........................................................... 51 2.2.2 Possuo logo existo ........................................................................................ 53 2.2.3 O valor e a autonomia da mercadoria ........................................................... 56 2.2.4 O Dinheiro e o Fetiche .................................................................................. 57 2.2.5 A mais-valia e o mais-de-gozar..................................................................... 60 Captulo 3 - As possibilidades econmicas de nossos netos e a sociedade de consumo. ................................................................................................................... 65
3.1 A atualidade: uma sociedade de consumo ....................................................... 70
Concluso ................................................................................................................. 81
Bibliografia................................................................................................................. 89
1
Introduo
Este um trabalho de economia poltica que visa apresentar a possibilidade de
concebermos o carter subjetivo do homem1 na economia e as complexas relaes que
se estabelecem entre ele e a sociedade capitalista, atravs de uma abordagem terica
deveras peculiar: a psicanlise de Lacan. Como, obviamente, no temos a pretenso de
criarmos todo um constructo econmico particular, nos aventuramos na direo de
estabelecer a adequao entre a estrutura lacaniana que concebe o sujeito e o campo
em que Marx o insere em sua anlise capitalista. Aps assentar essa relao
epistemolgica, lanamo-nos investida de utiliz-la para compreender os implicantes
subjetivos dos homens da economia contempornea no que diz respeito a sua
expresso em uma sociedade de consumo.
Iniciemos por dizer que se, por um lado, a abordagem psicanaltica na teoria
econmica pouco explorada, por outro, a interlocuo entre a psicanlise lacaniana e
o pensamento de Marx bastante importante. Na verdade, o prprio Lacan remete ao
filsofo alemo, atribuindo a ele grande influncia no desenvolvimento de sua teoria
psicanaltica. Esse imbricamento, sem dvida, significa uma oportunidade significativa
de ns, economistas, nos utilizarmos dos rduos, porm elucidativos, escritos
lacanianos, no intento de buscar absorver, em nossas teorias, elucubraes relevantes
sobre a forma de conceber o homem em suas atuaes econmicas, no que diz
respeito a seu carter subjetivo, social e inconsciente.
Ademais, vale destacar que nos utilizaremos de Marx muito mais do que como
um vetor que possibilite a articulao do conhecimento da economia e da psicanlise.
De fato, a importncia de Marx nesse trabalho vai muito alm dessa convenincia, uma
vez que condensa as condies de uma abordagem crtica que se estende das
convenes da economia tradicional, passando pelas formas de concepo de si e do
1 Por homem ou homem da economia, queremos dizer a pessoa que, subjetiva ou objetivamente, sustenta a
teoria econmica. Como veremos adiante no texto, trata-se da concepo ontolgica que pode caracterizar esse homem como um indivduo, como na teoria econmica convencional, ou como um sujeito, pela abordagem marxiana e pela lacaniana. O termo homem, ento, ser usado de forma geral (no sentido de uma amostra individual da espcie humana) e antes de (ou quando no) estabelecermos as distines das diferentes abordagens tericas. Como sinnimos de homem usaremos tambm o termo pessoa.
2
outro e atingindo a construo de uma realidade social historicamente determinada e
crescentemente perversa.
Para dar conta da nossa proposta, aps uma breve justificativa, ainda nesse
captulo introdutrio, sobre o porqu da articulao entre economia e psicanlise,
faremos, no captulo 1, duas aproximaes tericas. A primeira delas intenta situar
nossa discusso. Atravs de breves apontamentos de como se transformou a forma de
conceber o homem na teoria econmica tradicional, buscamos evidenciar a relevncia
de estabelecermos um tratamento alternativo no que diz respeito caracterizao dos
homens na economia poltica. A segunda aproximao terica psicanaltica e tem
como norte apresentar os conceitos lacanianos mais importantes para a compreenso
da abordagem que propomos.
Em seguida, no captulo 2, iniciaremos uma leitura de parte pertinente de O
Capital, fazendo sobressair, nessa apropriao, o movimento de sucessivas abstraes,
como sugeridas por Marx, que dialeticamente baseiam o capitalismo. Feito isso,
reiniciaremos a mesma leitura, na inteno de atrelar tais movimentos de abstrao
construo de um arcabouo inconsciente producente, de onde partem as formas de
estar no mundo das pessoas na economia. Indicaremos, assim, a homologia entre os
elementos lgicos que possibilitam o capital, conforme Marx, e aqueles que formam as
estruturas lacanianas que fundam o sujeito.
O captulo 3 ser nosso espao de experimentao. Usaremos o texto As
possibilidades econmicas de nossos netos, do economista ingls John Maynard
Keynes, como ponto de partida para discutirmos a dinmica de transformao, a partir
do sculo XX at os tempos contemporneos, das relaes entre o homem e as
mercadorias. Queremos dizer que versaremos a respeito das posies de consumo das
pessoas na sociedade, identificando modificaes que ocorreram entre a primeira e a
segunda metade do sculo passado. Nosso desejo aludir que a passagem da
chamada sociedade de produo para a sociedade de consumo se deu muito menos
como uma quebra e muito mais como um desenrolar lgico da estrutura iluminada no
captulo 2.
Por fim, em guisa de concluso, buscaremos sintetizar o produto terico e
3
analtico desse trabalho.
Por que economia e psicanlise?
A relativa originalidade da aproximao entre economia e psicanlise, sobretudo
a partir de economistas, carece de uma explicao. A justificativa embrionria para a
aproximao entre essas duas esferas do pensamento no poderia ser outra: a
economia uma cincia humana e social. Queremos dizer que os agentes econmicos
so homens e que, como homens, se organizam em sociedade. Se esse enunciado
parece trivial e desnecessrio, o escrutnio de seu significado pode indicar o contrrio2.
Se a humanidade a promotora do econmico, ento os objetos que atravessam
o estudo da economia devem conter em si a humanizao. Valor, troca, distribuio,
necessidades e desejos, consumo, trabalho, deciso, futuro, moeda... Todos esses
elementos, de uma forma ou de outra, passam por concepes ontolgicas de
processos de significao individual e social. Destarte, as diferentes concepes de
economia, bem como as (ainda mais diversas) correntes de pensamento econmicos,
no escapam de definir, explicita ou implicitamente, reducionista ou sistematicamente, o
comportamento das pessoas e a forma com que, delas, deriva a sociedade.
Pode-se advogar que vlido, com maior ou menor prejuzo, relegar a outras
disciplinas as questes relativas ontognese das instituies sociais, s capacidades
prtico-cognitivas e ao processo de subjetivao das pessoas; encerrar essas
concepes em arqutipos e agentes representativos convenientes e, sobre eles,
construir o pensamento econmico - esse recurso, inclusive, especialmente
considervel quando a inteno manter um determinado rigor cientfico na base da
2 De maneira nenhuma queremos negligenciar as existentes tentativas de conciliar o homo economicus com uma
abordagem psicolgica do homem. A Economia Comportamental, bem como o embasamento da Economia Institucional na psicologia cognitiva, so exemplos das possibilidades das consideraes psicolgicas das pessoas em suas expresses econmicas. No entanto, a despeito de importantes avanos no sentido de flexibilizar o dito indivduo racional, entendemos que essas abordagens prosseguem adequando o homem a uma determinada (e teleologicamente, conveniente) concepo normativa; concepo essa que pretende fazer-se apoltica e a-histrica e que, na realidade, como intentamos indicar aqui, parte de um momento do pensamento em que diversos pressupostos lgicos esto apagados e contraditos.
4
elaborao terica. Entrementes, a aproximao entre a economia e outras disciplinas
(como a filosofia, a psicologia, a sociologia, a antropologia, a histria, o direito, etc.)
significa, no mnimo, um ganho de relevncia, alm de achegar o pensamento
econmico das fronteiras de desenvolvimento intelectual das demais humanidades3.
A psicanlise tem a contribuir na anlise do econmico, pois apresenta uma
noo absolutamente particular de abordar o homem: sua aproximao profundamente
no utilitarista e no naturalista das relaes entre as pessoas, os objetos, e os
terceiros revela que essas relaes extravasam sobremaneira as concepes correntes
de racionalizao. Isso porque a psicanlise se aventura a estudar como se configura a
estrutura subjetiva das pessoas, lanando bases para explicar - para alm dos agentes
alegricos de total conscincia e discernimento o carter inconsciente que transpassa
as atuaes dos atores sociais.
Exatamente por propor uma tica bastante elucidativa das formas de interao
entre o homem, sua histria e seu meio, a psicanlise pode ser uma abordagem
relevante na ampliao da apreenso das relaes de produo, das relaes
monetrias, da alocao de recursos, das concepes de valor, da formao de
instituies, da escolha de objetos, etc. Esperamos que esse esforo sirva para
incentivar a investigao psicanaltica como forma pertinente de anlise econmica e
social.
Como veremos mais detalhadamente no captulo a seguir, dentre as diversas
correntes tericas de psicanlise, aquela com base nos escritos lacanianos a que
ser, aqui, explorada. O motivo pelo qual optamos por Lacan essencial e permear
fundamentalmente todo esse trabalho. De fato, no se trata apenas de um esforo
interdisciplinar, se no que, antes, ele a um movimento de perscrutao das
possibilidades epistemolgicas que surgem do estabelecimento de uma lgica de
anlise comum.
3 bastante digno de nota a posio de Bernard Doray que afirma que: Inventar um conceito-mestre do homem,
ao preo da pura e simples evacuao da questo perturbadora do sentido social de suas atividades, colocar o sujeito fora do sujeito, fora de considerao, para o que tende, de maneira consciente ou no, essa forma particular de materialismo objetivista no qual o positivismo mdico entre outros pode ficar vontade. Este tipo de pensamento que, para ser breve, chamaremos de naturalismo econmico, influencia profundamente a psicologia do trabalho e aquilo que as vezes chamado de psicopatologia do trabalho, isto , a aplicao do saber psiquitrico ao mundo do trabalho. (Doray, 1989, p. 82)
5
Dissemos isso, pois Lacan institui uma homologia entre o elemento dinmico que
determina a existncia de seu objeto (a subjetividade humana) e o elemento dinmico
que constitui a existncia do objeto de Marx (o capital). Ao fazer isso, Lacan, mais do
que estabelece paralelos em vez que se trata de uma homologia e no de uma
analogia -, ele, na realidade, pe a subjetividade humana e a organizao social
capitalista sob uma mesma estrutura lgica. O campo de possibilidades de investigao
que se abre da extremamente vasto, e em parte desse conduto que intentamos,
aqui, adentrar.
7
Captulo 1 - Economia convencional e psicanlise: do indivduo ao sujeito.
A articulao de duas esferas do pensamento nesse trabalho requer que
faamos importantes consideraes tericas. Por um lado, mister situar nosso
objetivo no rol das problemticas da economia, ou seja, soerguer (e brevemente
destrinchar) a forma como a econmica convencional tem concebido o homem em seu
tratamento terico. Por outro lado, no que diz respeito psicanlise, e tendo em vista
que este um trabalho de teoria econmica, ser necessrio apresentarmos os
principais elementos psicanalticos que fundamentam a anlise que propomos do
homem na economia. Buscaremos dar conta dessas tarefas nessa seo.
Nesse sentido, primeiro poremos os olhos no tratamento da ideia de pessoa, da
maneira como ela entendida na economia ortodoxa. Para tanto, iluminaremos, a partir
de Adam Smith, um desenvolvimento da forma de pensar o homem no processo de
construo do pensamento econmico do mainstream capitalista4. Em seguida, faremos
uma nova exposio terica, dessa vez com o carter de apresentar os fundamentos da
teoria psicanaltica de Jacques Lacan, que nos servir de instrumento de anlise na
elaborao de uma forma alternativa de pensarmos a pessoa contempornea que atua
na economia5.
Iniciemos, ento, nossa situao e iluminao terica.
4 Vale destacar que no pretendemos desenvolver uma anlise da concepo de homem de nenhum autor
especfico. Isso sim, a proposta situar o leitor a respeito da maneira geral pela qual se concebe a pessoa e sua forma de ser no arcabouo terico de maior prestgio nas cincias econmicas.
5 A teoria lacaniana, mister logo adiantar, de uma tortuosidade e desorientao fundamental. Lacan no se furta da complexidade e da conturbao que o subjetivo do ser homem. E a maneira que encontra para transmitir sua abordagem uma fala um tanto livre, por vezes desconexa, difusa e repetitiva, de onde emerge um contedo para alm daquele que possvel expressar em sentenas diretas. Exatamente por utilizar esse mtodo, grandes citaes de textos lacanianos so raras; como tambm raro encontrar definies diretas e claras dos conceitos de Lacan. Muito pelo contrrio, esses conceitos parecem assomar em meio a disposies dialticas das ideias e da fala do psicanalista francs, de modo que no difcil nos depararmos com posies distintas, por vezes contraditrias, em seus textos. Nesse sentido, parece que Lacan integra, redundantemente, em sua teoria, a complexidade 'entontante' do homem que analisa.
8
1.1 O homem na teoria econmica convencional.
1.1.1 O indivduo
O ponto central dessa primeira empreita aventar a concepo de homem que
atravessa a economia, sobretudo no que diz respeito s formas de interao ontognica
entre esse homem e a sociedade em que ele, inescapavelmente, se insere6. Cabe,
nesse sentido, nos apropriarmos da posio de Dumont (1985) que distingue duas
espcies de pontos de partida das abordagens sociolgicas. Diz-nos o autor:
Na primeira, parte-se (...) dos indivduos humanos para v-los em seguida em sociedade; por vezes tenta-se at fazer nascer a sociedade da interao dos indivduos. Na outra espcie de sociologia, parte-se do fato de que o homem um ser social e, portanto, considera-se irredutvel a toda e qualquer composio o fato global da sociedade no de a sociedade em abstrato, mas de tal ou tal sociedade concreta, com suas instituies e representaes especficas. (Dumont, 1985, p. 12, grifo nosso)
a partir da primeira espcie de abordagem apresentada por Dumont que se
estabelece a forma pela qual a teoria econmica convencional caracteriza o homem,
isso , ela o concebe como um indivduo. Significa dizer que, enquanto tal, o homem
um indiviso, um ente autnomo e independente que, a partir de sua integridade,
constitui a sociedade. A caracterizao das pessoas como indivduos, vale denotar,
essencial para a elaborao de inmeros conceitos poltico-econmicos do ocidente,
como a liberdade, a democracia e a prpria concepo de mercado (Luz, 2013, p. 16).
A importncia dessa concepo tal que, segundo Paulani (2005, p. 81):
A existncia do indivduo e de sua liberdade de deciso um dos pressupostos fundamentais da esfera de saber que conhecemos por cincia econmica. Desde seus primrdios, nas consideraes de A. Smith, at os atuais e sofisticados modelos de inspirao neoclssica, o indivduo se coloca como pea fundamental. Sem ele nem propenso
6 Dizemos aventar, pois, de maneira nenhuma, nos propomos a desfraldar o que seria o homem da teoria
econmica tradicional; mas sim, apenas apontar o norte em que segue essa concepo. Para tanto, usaremos como base dois textos e neles assentaremos essa prvia discusso. So eles: Luz (2013), Porque a Economia no uma Cincia Evolucionria: Uma hiptese antropolgica a respeito das origens crists do Homo Economicus; e Paulani (2005), Modernidade e discurso econmico.
9
troca, nem preo de mercado girando em torno de preo natural, nem maximizao sujeita a restries, nem preferncias reveladas, nem propenso a consumir e a poupar, nem decises de investimento, nem demanda efetiva como ponto de oferta, nem antecipao racional de medidas de poltica econmica, nem progresso tecnolgico, nem concorrncia, nem crises... nem mercado.
Para iniciar, situemos o tratamento das concepes analticas e subjetivas do
indivduo em suas aes econmicas na poca em que se convencionou atribuir como
sendo aquela que assistiu o nascimento da economia enquanto esfera dspar do
conhecimento: a modernidade7. Foi na sociedade moderna fruto da inter-relao dos
referenciais perdurantes da sociedade feudal (sobretudo as estruturas socioculturais
verticais) com aqueles que emergem do Renascimento (a viso antropocntrica e o
advento das cincias) e do Iluminismo (os ideais de liberdade e igualdade) que o
capitalismo se formou de um processo de deposio das relaes estabelecidas entre
homens para dar lugar s relaes entre homens e coisas (Luz, 2013, p. 59), novas
relaes, essas, que se faziam como mediadoras da vida social8.
Ademais, de acordo com Dumont (1985, p. 21), a ideologia moderna
individualista sendo o individualismo definido sociologicamente do ponto de vista dos
valores globais. Quer dizer que o indivduo na modernidade um valor fundamental,
7 Paulani (2005) acompanha Habermas em seu conceito de modernidade. Segundo a autora, vislumbra-se, desde
o sculo XVIII, que o entorno dos anos 1500 foram aqueles que assistiram gnese da era moderna. Mas o que nos permite realizar essa discriminao histrica? Ainda nos passos de Habermas, Paulani suscita que Hegel descobriu que a subjetividade era o princpio dos termos modernos. E, enquanto subjetividade, queria conotar: a) o individualismo, ou seja, a possibilidade de que a singularidade infinitamente particular tem no mundo moderno, de fazer valer suas pretenses; b) o direito da crtica, vale dizer, o princpio que exige que aquilo que deve ser reconhecido por todos se mostre a cada um como legtimo; c) a autonomia da ao, isto , o desejo natural que os tempos modernos infundem de que cada um responda por seus atos; e finalmente d) a filosofia idealista, cuja a tarefa apreender a ideia que se sabe a si mesma. (Paulani, 2005, p. 26). No significa dizer, de maneira alguma, que a modernidade marcou o incio da compreenso subjetiva de indivduo que deu origem sua abordagem terica em economia. Na verdade, como bem demonstra Luz (2013), as razes dessa compreenso de si que marcam o Homo Economicus, remetem elaborao crist de indivduo.
8 Luz sustenta que as ideias de razo e de igualdade, que emergem no Renascimento e no Iluminismo, tm razes em elaboraes crists, com bases platnicas e estoicas: A razo seria uma caracterstica divina, que estaria presente no homem (Luz, 2013, p. 132). Se os estoicos declaravam que todos os homens eram iguais enquanto seres portadores de razo e o platonismo entendia que todos os homens eram iguais pelo fato de possurem uma alma celeste, o cristianismo seguia uma rota parecida. (Luz, 2013, p. 136). Para Paulani (2005), os marcos histricos que destacam esses novos tempos so a Reforma, o Iluminismo e a Revoluo Francesa. Segundo a autora: A partir deles, o mundo divino transforma-se em algo postulado por ns, o livre arbtrio surge como fundamento de Estado, em detrimento do direito histrico, a eticidade funda-se na vontade do homem, a Natureza perde sua magia porque a cincia objetivamente libera o sujeito cognoscente, e, por fim, a arte passa a ter como princpio a auto-realizao expressiva dos indivduos. (Paulani, 2005, p. 26 e 27).
10
valor esse repleto de atributos e implicaes - tais como a liberdade de conscincia, o
nominalismo e a sobreposio dos elementos ao conjunto9. O homem, enquanto
indivduo, o ser moral independente, autnomo e, por conseguinte, essencialmente
no-social, portador dos nossos valores supremos, e que se encontra em primeiro lugar
em nossa ideologia moderna do homem e da sociedade (Dumont, 1985, p. 37, grifos
do original)10.
1.1.2 O indivduo e os princpios de economia
Nesse contexto, a cincia econmica, ento economia poltica, desponta como a
aquela responsvel por tratar da lgica dos laos materiais que geriam a sociedade.
Mais do que isso, a configurao econmica a expresso acabada do individualismo
(Dumont, 1985, p. 24). Do ponto de vista terico, praticamente consenso que
elaborao da economia poltica nasce nos trabalhos de Adam Smith (1723-1790).
Smith ascende como a condensao das ideias de origem renascentistas e iluministas
de indivduo e se insere no marco newtoniano de explicaes dos fenmenos
naturais, atravs da utilizao de princpios simples.
Dessa forma, o economista ingls parte de uma descrio de um tipo de homem
especfico para posteriormente construir o mundo social como ordem que emerge a
partir das caractersticas combinadas destes indivduos idealmente definidos (Luz,
2013, p. 71). Para tanto, Smith empresta de Locke a concepo de indivduo cujo
9 Se entendermos que a realidade humana se define pelo princpio da individualidade, e que a organizao social
deriva de necessidades pragmticas que jamais podero superar o direito natural do indivduo a afirmar-se em si mesmo, ento temos de considerar a intersubjetividade concretamente vivida como uma rede de ligaes extrnsecas reguladas institucionalmente. A relao com o outro se encerra na dimenso da sociabilidade estabelecida por acordo ou por contrato. A solidariedade torna-se uma questo de regras de convivncia. As sociedades modernas, frutos das teorias polticas liberais clssicas, atendem a esse perfil. (Silva, 2012, p. 35 e 36)
10 So seres que se opem a toda e qualquer afirmao de humanidade que no derive de sua prpria interioridade (Dumont, 1985, p. 94). A Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, adotada pela Assembleia Constituinte dos Estados Unidos, em 1789, um documento que marca a vitria do valor do individualismo. Nela, temos: Art. 1 Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distines sociais somente podem fundar-se na utilidade comum. Art. 2 A finalidade de toda a associao poltica a conservao dos direitos naturais e imprescindveis do homem. (Dumont, 1985, p. 109)
11
interesse est ligado exclusivamente ao ganho econmico. Locke entendia que o
primeiro e mais forte desejo que Deus havia implantado nos homens no seria a
preocupao com o prximo, nem com os seus prprios descendentes, mas sim, o
desejo de sua prpria conservao (Luz, 2013, p. 60). Destarte, a busca de riqueza,
como um acmulo de possibilidades de automanuteno, seria uma obstinao
designada por Deus, um trao da natureza humana. As inclinaes individuais, ento,
teriam nome e preo, de modo que o sentimento motor dessa volpia humana seria a
avareza, representante excelente das paixes do indivduo11.
Se o individualismo um trao da subjetividade moderna, podemos dizer que
Jeremy Bentham (1748-1832) - que teve forte influncia dos trabalhos de Smith - foi um
dos porta-vozes dessa referncia de estar no mundo. Para esse autor, a sociedade
no passaria da soma de seus membros, sendo que esses membros seriam a partcula
promotora do significado comunal. Em outras palavras, na viso de Bentham, o
indivduo seria um elemento absoluto, concreto e principal, de modo que a partir de
suas proposies essenciais a verdade se expressaria12. Essas proposies seriam
sentenciadas pela mxima do interesse, ou o princpio da utilidade, que dita que cada
indivduo, autnoma e independentemente, age sempre na busca por aumentar sua
felicidade ou diminuir sua infelicidade13. Dessa forma, o bem estar social s pode ser a
soma da felicidade individual, conseguida a partir de uma inerente busca autnoma e
egosta:
Ora, o que as ideias de Bentham simbolizam a condicionalidade de uma
verdade a preceitos ontolgicos que so resultados de extrema reduo. Essa verdade
est atrelada concepo de indivduo como um elemento autnomo, independente e
particular. Alegoria da construo subjetiva da ideia de si e do outro na modernidade,
11 De acordo com Hirschman, em Smith os motivos no econmicos, poderosos como so, foram todos feitos para
alimentar-se dos motivos econmicos e no fazem nada mais do que refor-los, estando assim privados de sua antiga independncia (Hirschman, 1977, p. 109, apud Luz, 2013, p. 72).
12 Paulani (2005, p. 39) ressalta que, para Bentham, qualquer coisa que v alm do indivduo mera fico. 13 Nos Princpios da moral e da legislao, Bentham postula que a utilidade aquele princpio que aprova ou
desaprova qualquer ao, segundo a tendncia que tem a aumentar ou diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse est em jogo, ou, o que a mesma coisa em outros termos, segundo a tendncia a promover ou a comprometer a referida felicidade (Bentham, 1979, p. 3, apud Paulani, 2005, p. 39, nota 4)
12
esse processo de reduo do indivduo se torna, gradualmente, um axioma social14.
Se o pensamento de Bentham um emblema da forma de se conceber o
indivduo como autnomo, independente, livre e a-histrico; foi, segundo Paulani, John
Stuart Mill (1806-1873), quem adaptou tais concepes na elaborao de um constructo
analtico: o agente econmico. Essa construo significou uma enorme mudana
metodolgica que deu condies para a revoluo marginalista e, no s isso, marcou
tambm a iseno das cincias econmicas em tratar de assuntos concernentes s
especificidades scio-histricas do funcionamento social:
Com a vitria do novo paradigma, o palavrrio antigo do velho sistema - capitalistas, trabalhadores, donos de terra - tinha sido cientificamente suplantado pelo agente econmico, este sim suficientemente abstrato e, pois, universal. (Paulani, 2005, p. 44).
Mill, em The Logic of Moral Science, postula que o tratamento cientfico dos
fenmenos humanos deveria seguir aquilo que denominou de mtodo dedutivo
inverso (Paulani, 2005, p. 46). O mtodo institui que a averiguao das regularidades
empricas anteceda dedues analticas e as assunes abstratas, de modo que as
consideraes e as leis cientficas se estabeleam a partir da abordagem dos
fenmenos regularmente observados.
Como relata Paulani, se, por um lado, Mill acaba negligenciando que, nos
fenmenos sociais, h sempre em ao uma multiplicidade de causas (motivaes
humanas) e que toda e qualquer esfera de operao da sociedade acaba por ter
influncia sobre todas as demais (Paulani, 2005, p. 50); por outro, por determinar que o
comportamento humano, concernente cincia econmica, deriva de uma nica
motivao natural, a preferncia, em todos os casos, por uma maior poro de riqueza
a uma menor, o autor alcana estabelecer, de fato, uma autonomia dos assuntos
econmicos.15 Ora, circunscreve-se uma nica causa dos fenmenos perscrutados e,
14 Note-se que, segundo Paulani (2005), essas autonomia, independncia e particularidade do indivduo
representam um processo de abstrao, proporcionado pela realidade material de um modo de organizao social de extrema interdependncia pessoal. Tal paradoxo, segundo a autora, teria levado Marx a elucidar que o indivduo s pode isolar-se em sociedade (Paulani, 2005, p. 40).
15 Se assim no for, se esses fatores (culturais, institucionais, histricos) fossem determinantes de cada um dos fenmenos sociais em particular, ento implica erro partir de uma suposta natureza humana e, erro talvez ainda maior, partir de uma nica lei da mente para constituir o homem econmico, que embasa a cincia da economia
13
sobretudo, estabelece-se uma cincia que se coloca acima dos fatores contingenciais
representados pelos condicionantes histricos e culturais, pelo carter das instituies
sociais, pelo estado da civilizao e do progresso, etc., o que indicaria a universalidade
de seu mtodo (Paulani, 2005, p. 51).
Trata-se da proposio do individualismo metodolgico como forma de adaptar a
economia poltica ao rol das cincias, sobretudo daquelas de inspirao newtoniana. O
individualismo metodolgico:
(...) um preceito metaterico atinente ao mundo dos fatos sociais e segundo o qual a explicao de um fenmeno social qualquer s pode ser considerada cientfica se, por intermdio dela, pudermos reduzir tal fenmeno s aes intencionais (particularmente ao grupo das concebidas como racionais) dos indivduos e forma como elas interagem. () no se pode dizer que no seja legtima tal reivindicao, considerando-se a natureza da sociedade moderna: se o que o caracteriza precisamente a constituio do indivduo enquanto ser livre e autnomo para decidir e agir, nos indivduos que eu preciso colocar o foco (). (Paulani, 2005, p. 91, grifo do original)
Como bem grifa a autora, se o indivduo o agente que implica a sociedade, se
dele que partem as determinaes e as ocorrncias do sistema analisado, ou seja, o
comportamento social, ento s podemos explicar esse comportamento como estando
em funo das intenes declinadas dos indivduos, sujeitos da ao (Paulani, 2005,
p. 93, grifo meu). Em outras palavras, h que existir sempre microfundamentos que
justifiquem as explicaes elaboradas com respeito s macroestruturas.
Por influncia da energtica de Newton, os microfundamentos econmicos
partem da ao de indivduos cujo comportamento concebido de forma muito bem
definida, reduzida e uniforme. Ocorre, ento, a excluso de toda e qualquer
singularidade, bem como se apaga as especificidades das diversas situaes. Com
comportamentos to bem delineados, os agentes econmicos se tornam absolutamente
previsveis, da mesma forma que as economias e instituies que eles compem.
Resumindo: se se parte da concepo de indivduo como um agente
poltica. Pelo contrrio, ter-se-ia que admitir que a motivao, busca de riqueza s pode se impor nos casos em que os fatores que constituem um dado estado de sociedade acabam por produzi-la. (Paulani, 2005, p. 51).
14
realmente autnomo, autocentrado, inteiramente determinado por si mesmo, sua descrio s pode ser essencialista e ele se transforma num tomo que, combinado com outros milhares, produz uma sociedade que pode ser perfeitamente planejada (eventualmente com melhores resultados). Isso acaba por retirar do indivduo a primazia que ele tinha como fonte por excelncia da ao. (Paulani, 2005, p. 99).16
O resultado de se conceber o homem como um indivduo na teoria econmica
contraditrio e muito bem diagnosticado por Luz (2013, p. 31): o carter dispensvel da
existncia humana. como se toda a histria pudesse ser de antemo contada, uma
vez que ela construda por indivduos, dos quais se conhece perfeitamente as aes.
1.1.3 O indivduo e a economia contempornea
No sculo XX, a economia assiste o desencadear desse modo terico de se
conceber o indivduo, em processo que engendra a elaborao da teoria econmica
neoclssica. Luz ilustra o homem dessa teoria como sendo aquele que emerge
logicamente do hardcore de seu programa econmico.17 Segundo o autor:
Nessa perspectiva os indivduos so definidos como seres autointeressados e totalmente referidos aos objetos, tendo preferncias exgenas, objetivas e fixas, ou seja, seres dispostos a realizar a troca tendo todas as preferncias j definidas de antemo e no sendo afetados diretamente pelas escolhas dos outros. (Luz, 2013, p.26)
Esses indivduos econmicos, ento, so aqueles que se sujeitam s relaes
objetais bem definidas, cujas bases se assentam sobre propenses naturais - quase
instintivas - de autointeresse. So indivduos prontos, atmicos e elementares. Eles no
so concebidos a partir da cultura, de suas relaes sociais ou histricas, mas de
16 Nesse trecho, Paulani soergue a crtica que Hayek levanta contra os falsos individualistas, a quem Hayek
acusa de promover um apagamento do poder ativo do indivduo frente a mo invisvel do mercado. 17 Luz se baseia em Waintraub (1985, p. 25), que defini as seguintes proposies nucleares do programa de
pesquisa neoclssico: HC1. Existem agentes econmicos; HC2. Os agentes possuem preferncias acerca dos resultados; HC3. Os agentes otimizam sujeitos a restries; HC4. As escolhas so feitas em mercados interrelacionados; HC5. Os agentes possuem conhecimento completo; HC6 Os resultados observveis so coordenados, assim, devem ser discutidos com referncia ao equilbrio. (Luz, 2013, p. 25)
15
caractersticas individuais transcendentes e no idiossincrticas. a marca do
individualismo associal18, que elimina a possibilidade de que haja interaes
intersubjetivas e heternomas entre os agentes econmicos. Compreende-se, por
esses meios, que objetivamente em nome de si da autonomia que agem os
indivduos19.
Podemos nos questionar: quem esse ser autnomo e independente que age
em direes bem estabelecidas? ele um artifcio analtico, um agente representativo,
cuja funo propiciar inferncias econmicas? Ou seria, antes, uma abordagem do
homem agindo economicamente? Nesse primeiro momento, nos atemos primeira
hiptese. Sem dvida, este homem constitudo de maneira axiomtica, submetido s
exigncias do mtodo que o criou (Luz, 2013, p.29). O individualismo metodolgico,
ento, constri um homem para o mtodo, um criador para a criatura20.
Para Luz, parte do pice metodolgico da negligncia do homem representada
por duas construes: o conceito de preferncia revelada de Samuelson (1938) e a
tratamento de como se de Friedman (1953). Na primeira construo, o imbrglio que
surge de se considerar um ser subjetivo, o homem, como um agente de volies bem
comportadas resolvido por um artifcio metodolgico que intensifica a excluso da
humanidade na teoria econmica. Essa excluso feita, vale dizer, porque Samuelson
tratou de iniciar pelas escolhas dos indivduos. Na abordagem de Samuelson, como faz
notar Luz (2013, p. 32):
18 O individualismo associal, conforme aponta Luz (2013, p. 26), um termo utilizado por Ackerman para apontar
uma das hipteses centrais da teoria neoclssica: o carter exognico dos desejos e preferncias dos consumidores, que so tomados como um dado, de modo que no so afetados pelas instituies sociais e pelo contato com o desejo dos outros
19 Em passagem deveras interessante, a analogia com Robinson Crusoe, to frequentemente utilizada como parmetro de comportamento individual, autnomo e utilitarista pela economia convencional, problematizada por Lacan. Nos diz ele: Quanto a Daniel Defoe, extraordinariamente curioso que no se perceba que Robinson no tinha que esperar por Sexta-Feira, que o simples fato de ele ser falante e conhecer perfeitamente sua lngua, isto , a lngua inglesa, era um elemento to essencial para a sua sobrevivncia na ilha quanto sua relao com algumas bagatelas naturais com que ele tinha conseguido fazer uma cabana e se alimentar. (Lacan, 2008, p. 176 e 177). Lacan quer dizer que o fato de ser o homem um ente que se articula pela linguagem, faz com que ele carregue em si as formas lgicas e sociais que a linguagem implica. Ento, de maneira nenhuma, Robinson um elemento autnomo.
20 Vale notar, novamente, a influncia da fsica Newtoniana na maneira de abordar o econmico. O individualismo metodolgico trata de aproximar o homem de uma partcula o fazer particular e apanh-lo sob leis gerais, externas e que no so relativizadas em sua composio. Segundo Luz, o homem se transforma independente e associal, um indivduo com preferncias, com conhecimento perfeito [ou, poderamos pensar, que no tem o conhecimento como caracterstica] e que se movimenta no espao atravs da sinalizao dos preos (Luz, 2013, p. 29).
16
(...) as preferncias humanas s poderiam ser cientificamente entendidas a partir das escolhas que os indivduos realmente realizam, ou seja, as preferncias seriam observveis e reveladas nas escolhas dos indivduos, as quais, a partir de ento poderiam ser ordenadas21.
Trata-se de um recurso absteno do humano, afinal, nada importa 'quem
prefere', 'quando prefere', 'onde prefere', 'porque prefere', 'em que condies prefere' ou
'em nome de que prefere'. Nada importa o que h antes e alm da escolha, inclusive a
pessoa que escolhe. Ocorre que, se o indivduo desimportante e a sentena
econmica se produz a partir da revelao de uma ocorrncia - como em choveu 25
milmetros - ento no h sujeito que intencione a ao (no caso, o 'preferir'). O
quiproqu : como garantir um agente maximizador, se no h indivduo que, da
inteno, produza o gesto? Ou seja, como garantir que os agentes so maximizadores
(), sem fazer referncia introspeco dos indivduos? (Luz, 2013, p. 33). O
agravante dessa aporia exatamente o fato de que a preposio os agentes
econmicos so indivduos maximizadores basilar da teoria neoclssica22.
A resoluo dessa controvrsia sugerida por Friedman, e caminha ainda mais
no sentido da desumanizao da teoria econmica. Friedman, segundo Luz (2013,
p.34), redefiniria inclusive o estatuto ontolgico dos agentes. A soluo vale dizer, de
compromisso - estabelecida por Friedman foi a de propor que, por mais que as firmas
(agentes econmicos) no maximizassem deliberadamente seus lucros, elas o faziam
sem saber. Para sustentar essa proposio, o autor argumenta que se as firmas que se
mantm ao logo do tempo no maximizassem seus lucros, elas teriam sucumbido frente
aquelas que o fizeram, e deixariam de existir, como no mecanismo de seleo natural.
Logo, se no o fazem deliberadamente em seu funcionamento, como se o fizessem
em seu comportamento.
Observemos que esse recurso utilizado por Friedman em muito se aproxima
21 Trata-se de compreender as preferncias pelo preferido. Dadas duas cestas de mesmo preo, x e x', se um
indivduo escolhe, inclusive intertemporalmente, a cesta x ao invs da cesta x', essa escolha revela que ele prefere x a x'. Ora, se o custo menor ou igual despesa real no primeiro perodo em que o primeiro lote de bens [x] foi comprado, ento isso significa que o indivduo poderia ter comprado o segundo lote de bens [x'] com o preo e renda do primeiro perodo, mas optou por no faz-lo. Isto , o primeiro lote (x) foi preferido em relao (x') (Samuelson, 1938, p. 65, apud Luz, 2013, p. 71)
22 Ver Luz, 2013, p. 25
17
daquele de Samuelson. Em ambos, os indivduos so suplantados por determinaes
que os atravessam. As pessoas no sabem, mas, em suas escolhas, revelam a gama
de preferncias pessoais, da mesma forma que a firma uma instituio humana
desconhece, mas est condicionada no tempo estipulao de preos que maximizem
os lucros. Sendo assim, de que me serve o indivduo, a partcula metodolgica de onde
partiria a anlise, se ele, no fim, sucumbe s determinaes que lhes escapam? Na
realidade, o que a teoria neoclssica nos oferece uma abordagem econmica que
independe de indivduos.
O Homo Economicus pode ser qualquer coisa que contenha uma lista ordenada de preferncias (). A abstrao neoclssica chegou a tal ponto que mal poderamos identificar mais o Homo Economicus como algo que possa ser considerado um homem, pois a teoria colocou a prpria ideia de existncia humana fora do campo analtico. (Luz, 2013, p.37)
Como incluir a existncia no rol das questes substncias das cincias humanas
e, em especial, da economia? Para tanto, exporemos, a seguir, uma espcie de
introduo ao pensamento de Lacan, no que concerne aos conceitos lacanianos que
sero usados em nossa anlise de como se pode abordar a subjetividade do homem na
economia contempornea.
1.2 Elementos para uma abordagem lacaniana do homem
Qualquer espcie de personalismo em psicanlise propcio a todas
as confuses e desvios. Aquilo que se marca como sendo a pessoa em
outros registros, ditos morais, no pode ser situado em outro nvel, na
perspectiva psicanaltica, seno o do sintoma. A pessoa comea ali onde
o sujeito est ancorado de maneira diferente da que lhes defini, ali onde
ele se situa de maneira muito mais ampla, aquela que faz entrar em jogo
o que sem dvida se situa na origem do sujeito, isto , o gozo. (Lacan,
2008, p. 308)
Cabe, antes de adentrarmos na apresentao dos fundamentos da trrida
18
psicanlise lacaniana, situarmos, um tanto, Lacan e sua posio no desenvolvimento da
teoria psicanaltica e intelectual do sculo XX.
Lacan (1901-1981) foi um dos principais pensadores a formular sua abordagem
da teoria psicanaltica, desprenhada por Sigmund Freud23. Dentre os grandes
intrpretes da histria do freudismo, Jacques Lacan foi o nico a dar obra freudiana
uma estrutura filosfica e a tir-la de seu ancoramento biolgico, sem com isso cair no
espiritualismo (Roudinesco e Plon 1998, p.445). Se Freud cuidou deliberadamente de
se afastar do pensamento filosfico alemo, foi exatamente munido desse ferramental
terico que Lacan se volta teoria freudiana e a reinterpreta de forma absolutamente
engenhosa24:
Com relao a outras escolas, a primeira coisa que chama a ateno o teor filosfico da teoria de Lacan. Para ele, fundamentalmente, a psicanlise no uma teoria e tcnica de tratamento de distrbios psquicos, mas uma teoria e prtica que pe os indivduos diante da dimenso mais radical da existncia humana. Ela no mostra a um indivduo como ele pode se acomodar s exigncias da realidade social; em vez disso, explica de que modo, antes de mais nada, algo como realidade se constitui. Ela no capacita simplesmente um ser humano a aceitar a verdade reprimida sobre si mesmo; ela explica como a dimenso da verdade emerge na realidade humana. (iek, 2010, p. 10)
Em seu retorno obra de Freud, Lacan baseia-se na fenomenologia hegeliana,
onde assenta seu conceito de desejo, o elemento negativamente dinmico de sua
anlise; na lingustica saussuriana, de onde extrai sua concepo de significante e de
inconsciente organizado como linguagem; e na antropologia de Lvi-Strauss, atravs da
qual faz sua deduo do Simblico.
Desenvolvendo seu trabalho com crescente repercusso e prestgio25, Lacan
23 Alm de Lacan, podemos citar outros importantes pensadores ps-freudianos como Melanie Klein, Donald
Winnicott, Anna Freud, etc., alm de Carl Gustav Jung, contemporneo de Freud. 24 Lacan redigiu cerca de cinquenta artigos. Desses, os considerados mais importantes, foram reunidos pelo editor
Franois Wahl em 1966 numa obra denominada crits (Escritos, em portugus). Ademais, Lacan proferiu seus famosos seminrios anuais, num total de 26, dentre os quais, at ento, 18 j foram publicados. Segundo Roudinesco e Plon (1998, p.445) o seminrio XXVI (o ltimo segundo os autores), foi proferido no ano 1978-1979 e silencioso, pois Lacan no mais podia falar. Segundo iek (2010, p 153), os artigos de Lacan so de extrema sofisticao o que, escrito num estilo barroco, torna sua compreenso bastante rdua; enquanto a transcrio dos seminrios por ele proferidos demonstra um estilo um tanto distinto, de erudio relativamente mais acessvel.
25 A primeira edio de crits, em 1966, vendeu 5.000 exemplares em apenas 15 dias.
19
alcana, em 1974, a diretoria do departamento de psicanlise na Universidade de Paris-
VIII, encorajando, ento, a transformao de sua doutrina em um corpo de doutrina
fechado, enquanto trabalhava para fazer da psicanlise uma cincia exata, baseada na
lgica do matema, e na topologia dos ns barromeanos (Roudinesco e Plon, 1998, p.
450).
A extenso da interlocuo intelectual de Lacan com os pensadores franceses de
sua poca vasta: estabelece relaes com Claude Lvi-Strauss, Maurice Merleau-
Ponty, Roman Jakobson, Franoise Dolto, Louis Althusser, Michel Foucault e Gilles
Deleuze. Morre em nove de setembro de 1981, em decorrncia de distrbios cerebrais
e de uma parcial afazia, aps realizar uma ablao de um tumor maligno que lhe
agredia o clon.
Feito isso, iniciemos nossa apresentao dos elementos tericos lacanianos
fundamentais para o desenvolvimento desse trabalho. Escolhemos, pertinentemente, a
exposio de trs registros que formam a estrutura da possibilidade da experincia
humana segundo Lacan: o Imaginrio, o Simblico e o Real26. Nesse nterim,
buscaremos abordar, em cada registro, as experincias subjetivas do homem (o Eu e o
sujeito), situando-o, sempre em relao a um terceiro, seja esse terceiro um semelhante
(um outro), um lugar (o Outro) ou um elemento lgico (o objeto a). Sigamos.
1.2.1 O Imaginrio, o Eu e o outro
A concepo lacaniana de Imaginrio foi inspirada alm de pelo trabalho do
26 Em um exerccio de extrema simplificao, que guarda os prejuzos que as simplificaes impem, iek associa
os trs registros da estrutura subjetiva do homem a um jogo de xadrez. Diz ele: Para Lacan, a realidade dos seres humanos constituda por trs nveis entrelaados: o simblico, o imaginrio e o real. Essa trade pode ser precisamente ilustrada pelo jogo de xadrez. As regras que temos de seguir para jogar so sua dimenso simblica: do ponto de vista do simblico puramente formal, cavalo definido apenas pelos movimentos que essa figura pode fazer. Esse nvel claramente diferente do imaginrio, a saber, o modo como as diferentes peas so moldadas e caracterizadas por seus nomes (rei, rainha, cavalo), e fcil imaginar um jogo com as mesmas regras, mas com um imaginrio diferente, em que esta figura seria chamada de mensageiro, ou corredor, ou de qualquer outro nome. Por fim, o real toda srie complexa de circunstncias que afetam o curso do jogo: a inteligncia dos jogadores, os acontecimentos imprevisveis que podem confundir um jogador ou encerrar imediatamente o jogo. (iek , 2010, p. 16 e 17)
20
psiclogo Henri Wallon e pela fenomenologia hegeliana - pelo conceito de Umwelt, de
Jakob von Uexkll, um bilogo alemo que viveu entre 1884 e 1944. Uexkll utilizava o
termo Umwelt para definir o mundo tal como vivido por cada espcie animal. Segundo
Roudinesco e Plon (1998, 371), as ideias desse bilogo revolucionaram o estudo do
comportamento, mostrando que o pertencimento a um meio devia ser pensado como a
internalizao desse meio em cada espcie27. De acordo com Lacan (2008, p. 287):
O que nos fora a conceber o imaginrio so os efeitos pelos quais o organismo subsiste, j que preciso que alguma coisa lhe indique que um dado elemento do exterior, do meio, do Umwelt, como se diz, absorvvel por ele, ou, em termos mais gerais, propcio sua preservao. Isso significa que o Umwelt uma espcie de halo, de duplo do organismo, e pronto. isso que se chama imaginrio.
Nesse sentido, Safatle (2007, p.30) afirma que grosso modo, podemos dizer que
o Imaginrio aquilo que o homem tem em comum com o comportamento animal (grifo
do autor). H um conjunto de representaes externas, de imagens ideais, que guiam o
desenvolvimento do indivduo e constroem sua realidade. Esta, a realidade, seria a
forma individual como o homem representa a histria, a verdade, o outro, a si prprio e
tudo mais.
Quando dizemos que a realidade individual, acusamos que ela parte de uma
individualidade, que, em temos lacanianos, como um movimento de individuao ou
seja, de fazer individual, de apropriar-se - a partir de processos de identificao. Por
sua vez, identificar-se , grosso modo, fazer como, atuar a partir de tipos ideais que
servem de modelo e de plo de orientao para os modos de desejar, julgar e agir
(Safatle, 2007, p. 17, grifo do autor). Nesse sentido, h uma internalizao alegrica de
ideias de ser e existir, que partem do outro ou seja, dos semelhantes, dos familiares,
da cultura, etc. - e servem de referncia para o desenvolvimento de um Eu. O Eu se
constitui em relao ao outro. Ele o seu correlato (Lacan, 2009, p. 72).
Da, flagrantemente, assumimos na socializao a (con)formao de 'ser' a partir
da encarnao de um ideal de outro. Alienamo-nos, inescapavelmente, j que alienar-se
27 E continuam, Roudinesco e Plon: Da [a partir do conceito de Umwelt] a ideia de que o pertencimento de um
sujeito a seu ambiente j no podia ser definido como um contato entre um indivduo livre e uma sociedade, mas sim como ema relao de dependncia entre um meio e um indivduo.
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significa ter sua essncia fora de si, ter seu modo de desejar e de pensar moldado por
um outro. (Safatle, 2007, p. 18,) 28. constituio da imagem de um Eu, Lacan associa
a um processo fundamental que denomina de estdio de espelho29.
Nesse processo, a possibilidade de ocorrncia do reconhecimento do Eu como
um depende da percepo e identificao do semelhante, ou do reconhecimento da
imagem de si, quando instrumentada pela existncia do outro. Conforme iek (1996, p.
309): somente ao se refletir num outro ser humano isso , na medida em que esse
outro ser humano oferece uma medida de sua unidade que o eu [moi] pode chegar
sua auto-identidade; a identidade e a alienao, por conseguinte, so estritamente
correlatas.
O estdio do espelho, ento, uma operao psquica, ou at ontolgica, pela
qual o ser humano se constitui numa identificao com seu semelhante (Roudinesco e
Plon, 1998, p. 194).30 A criana, nos primeiros meses de vida31, construiria
inconscientemente um esquema mental de unidade do prprio corpo como totalidade, o
que lhe permitiria, em seu desenvolvimento fsico e sensrio, operar distines entre
interno e externo, fazer-se individual, particular, e, assim, experimentar-se32. O processo
de formao do Imaginrio, ento, no trata apenas da projeo do Eu sobre o mundo,
em vez que a perspectiva de apreenso da realidade desse Eu se d a partir da
28 Da por que umas das temticas clssicas da teoria freudiana a de que toda socializao alienao,
processo fundamentalmente repressivo por exigir a conformao a padres gerais de conduta. Para Freud, h algo anterior aos processos de socializao, algo que no ainda um Eu, mas um corpo libidinal polimorfo e inconsistente. Isso nos explica por que os processos da socializao tendem a se impor atravs da represso do corpo libidinal, da culpabilizao, de toda existncia de satisfao irrestrita perpetuando, com isso, reaes de agressividade profunda contra aquilo que serve de ideal. H um preo alto a pagar para ser um Eu. (Safatle, 2007, p. 18, grifo do nosso)
29 Em 1931, o psiclogo Henri Wallon (1879-1962) deu o nome de prova do espelho a uma experincia pela qual a criana, colocada diante de um espelho, passa progressivamente a distinguir seu prprio corpo da imagem refletida deste. Essa operao dialtica se efetuaria, segundo Wallon, graas a uma compreenso simblica, por parte do sujeito, do espao imaginrio em que ele forjava sua unidade. (Roudinesco e Plon, 1998, p. 194)
30 Segundo Lacan, que retirou essa ideia do embriologista holands Louis Bolk (1866-1930), a importncia do estdio do espelho deveria ser ligada prematurao do nascimento, objetivamente atestado pelo carter anatomicamente inacabado do sistema piramidal e pela falta de coordenao motora dos primeiros meses de vida. Por conseguinte, Lacan afastou-se da viso psicolgica prpria de Wallon, ao descrever esse processo pelo prisma do inconsciente, e no mais pelo da conscincia, e ao afirmar que o mundo especular onde se exprimia a identidade primordial do eu no continha nenhuma alteridade.(Roudinesco e Plon, 1998, p. 194)
31 Entre sexto e o dcimo oitavo ms de vida, segundo Safatle (2007, p.27) 32 Vale dizer, sem no entanto nos adiantar demais, que a percepo cognitiva do meio no neutra para a
psicanlise. Certo, os processos cognitivos so dependentes de um sistema de interesses, ou da posio subjetiva que os indivduos tm em relao ao mundo (Safatle, 2007, p 31)
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imagem dos semelhantes e dos condicionantes histricos e sociais.
Em nossa perscrutao por uma forma de abordar o homem, nos deparamos, at
aqui, com esse Eu assim, imaginado do outro. Por certo, esse resultado inquietante e,
a despeito de uma relativa complexidade, parece no abarcar suficientemente uma
interpretao da subjetividade do homem. Afinal, as pessoas so somente o resultado
de um processo de identificao social, ou h algo mais nelas para alm do outro e
para alm do Eu? Sem dvida algo nos falta.
1.2.2 O Simblico, o Outro e o sujeito
Se o Eu a manifestao desse processo de identificao social; se ele a
alienao de si, ento, logicamente, h que existir, alhures, um si latente e premido. Da
mesma forma, se o que constitui a imago do Eu a introjeo do outro, ou o desejo do
desejo do outro - com todos os sentidos em que cabem a essa expresso -, ento h
algum alm que, numa outra cena, deseja. Esse si desejante, Lacan chama de
sujeito; a outra cena, denomina Outro; e a estrutura que articula esses elementos
chama de Simblico.
Podemos dizer que o Simblico o inconsciente por si mesmo. Ele um
sistema lingustico que estrutura o campo da experincia (Safatle, 2007, p. 43, grifo
nosso). O Simblico, ento, o arcabouo articulado que inconscientemente sentencia
a conduta e os processos de produo de sentido. Ele o sistema de regras, normas e
leis que determinam a forma geral do pensvel33 (Safatle, 2007, p. 45):
Quando falamos (ou quando ouvimos), nunca interagimos simplesmente com outros; nossa atividade de fala fundada em nossa aceitao e dependncia de uma complexa rede de regras e outros tipos de pressupostos. Primeiro h regras da gramtica, que tenho de dominar de maneira cega e espontnea: se eu tivesse de ter essas regras em mente o tempo todo, minha fala se desarticularia. Depois h o
33 Vejam, aqui vale denotar algo que tende a provocar confuses. Quando dizemos que a possibilidade do pensado
se estrutura atravs de regras, normas e leis, no estamos querendo atribuir ao inconsciente nenhum carter normativo. A Lei social que estrutura o universo simblico simplesmente organiza identidades, distines e oposies que, em si, no enunciam sentido algum (Safatle, 2008, p. 47).
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plano de fundo de participar do mesmo mundo/vida que permite que eu e meu parceiro na conversao compreendamos um ao outro.34 (iek, 2010, p. 17)
Ento, o produto da nossa relao imaginria e identitria com o outro e, logo,
com o Eu - condicionado pela possibilidade de formao de sentido que a
organizao dos elementos lingusticos da estrutura simblica nos proporciona. Tudo
se passa como se as relaes com o outro, nossas aes ordinrias, escondessem as
mediaes das estruturas sociolingusticas que determinam a conduta e os processos
de produo de sentido (Safatle, 2007, p. 43). Significa dizer que, antes de nos
relacionarmos com o outro, nos relacionamos com a estrutura. Essa relao primeira,
Lacan designar como autenticamente intersubjetiva, em contraposio
intersubjetividade imaginria, que ocorre entre o sujeito e o outro (Safatle, 2007, p.43 e
44).
As possibilidades de formao de sentido esto diretamente ligadas quele
arcabouo de significantes constantes no que Lacan denomina de Outro - traado
assim, com O maisculo, em contrastes com o outro do Imaginrio35. O Outro o
recinto do Simblico, a outra cena onde se articulam os elementos lingusticos da
contingncia dos sujeitos. o campo da verdade que defini como sendo o lugar em
que o discurso do sujeito ganharia consistncia, e onde ele se coloca para se oferecer a
ser ou no refutado (Lacan, 2008, p. 24). Nesse territrio inconsciente, os sujeitos
buscam os termos para subjetivamente definirem a si prprios, os outros e todo o
mais. Assim, no Simblico que se constitui o sujeito, onde o sujeito pensa, fala, sente
34 E continua: As regras que eu sigo esto marcadas por uma profunda diviso: h regras (e significados) que sigo
cegamente, por hbito, mas das quais, se reflito, posso me tornar ao menos parcialmente consciente (como as regras gramaticais comuns); e h regras que ignoro que sigo, significados que ignoro que me perseguem (como proibies inconscientes). E h regras e significados cujo conhecimento no devo revelar que tenho insinuaes sujas ou obscenas que silenciamos para manter o decoro. (iek, 2010, p. 17)
35 Como todos os freudianos, Lacan situou a questo da alteridade, isto , da relao do homem com seu meio, com seu desejo e com o objeto, na perspectiva de uma determinao inconsciente. Mais do que os outros, entretanto, procurou mostrar o que distingue radicalmente o inconsciente freudiano como outra cena, ou como lugar terceiro que escapa conscincia de todas as concepes do inconsciente oriundas da psicologia. Por isso que cunhou uma terminologia especfica (Outro/outro) para distinguir o que da alada do lugar terceiro, isto , da determinao pelo inconsciente freudiano (Outro), do que do campo da pura dualidade (outro) no sentido da psicologia (Roudinesco e Plon, 1998, p. 558).
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e age (Quinet, 2012, p. 22)36.
Apesar de todo o seu poder fundador, o Outro inconsciente e vazado. Na
medida em que do lugar do Outro que depende a possibilidade do sujeito, no que ele
se formula, das coisas mais importantes saber que o que o garantiria, ou seja, o lugar
da verdade, , em si mesmo, um lugar vazado (Lacan, 2008, p. 58, grifo nosso)37. O
inconsciente um lugar vazado, exatamente por se articular pela linguagem e, logo, ser
incapaz de compreender o todo, uma vez que na, linguagem, a falta fundamental.
Mais do que uma falta na palavra, a palavra que introduz essa falta; o dizer introduz o
impossvel, e no simplesmente o enuncia (Lacan, 2008, p. 64)38.
a existncia desse falta estrutural e inconsciente que faz Lacan subverter o
sujeito da conscincia (como em Descartes e Kant) em um sujeito do desejo39. O
desejo entendido por Lacan como sendo a demanda por esse algo sempre faltante
na linguagem40. De fato, o desejo se fundamenta no impossvel do dizer. Do dizer, o
desejo apenas a desinncia, e por isso que primeiro essa desinncia deve ser
estritamente situada no puro dizer, ali onde somente o aparato lgico pode demonstrar
36 O grande Outro como discurso do inconsciente um lugar. o alhures onde o sujeito mais pensado do que
efetivamente pensa. a alteridade do eu consciente. (...) de onde vm as determinaes simblicas da histria do sujeito. o arquivo dos ditos de todos os outros que foram importantes para o sujeito em sua infncia e at mesmo antes de ter nascido. (Quinet, 2012, p.20 e 21)
37 Ademais, os sujeitos s podem definir o que est ao alcance do limitado conjunto de elementos e de cadeias significantes que detm, mas, da mesma forma, o conjunto de elementos e cadeias significantes s pode existir enquanto e na forma pela qual, em suas aes, os sujeitos o realizam. Esse carter virtual do grande Outro significa que a ordem simblica no uma espcie de substncia espiritual que exista independente dos homens, mas algo que sustentado pela contnua atividade deles. (iek, 2010, p. 19).
38 Mais do que isso, o Outro vazado porque as fronteiras entre o que ntimo e o que externo ao homem so indefinveis. Por isso Lacan cria o neologismo xtimo, para designar aquilo que nos concomitantemente externo e interno. Topograficamente, ento, para a psicanlise lacaniana, o sujeito se faz de tal forma que se avanarmos em sua intimidade, nos encontraremos naquilo que lhe exterior, da mesma forma que se avanarmos no que lhe exterior nos acharemos, de repente, no centro de sua interioridade, como em uma garrafa de Klein. Alis, essa indefinio das fronteiras entre interno e externo na formao subjetiva das pessoas j encontrada em Freud (1996b, p. 75): (...) numa expresso mais correta, originalmente o ego inclui tudo; posteriormente, separa, de si mesmo, um mundo externo. Nosso presente sentimento do ego no passa, portanto, de um mirrado resduo de um sentimento muito mais inclusivo na verdade, totalmente abrangente -, que corresponde a um vnculo mais ntimo entre o ego e o mundo que o cerca. Supondo que h muitas pessoas em cuja vida mental esse sentimento primrio de ego persistiu em maior ou menor grau, ele existiria nelas ao lado do sentimento do ego mais estrito e mais nitidamente demarcado da maturidade, como uma espcie de correspondente seu. Nesse caso, o contedo ideacional a ele apropriado seria exatamente o de ilimitabilidade e o de um vnculo com o universo as mesmas ideias com que meu amigo elucidou o sentimento ocenico.
39 O conceito de desejo tomado por Lacan de Alexandre Kojve. Alexandre Kojve (1902-1968) foi um filsofo francs que, em seu curso na cole Pratique des Hautes tudes sobre a Fenomenologia do Esprito enunciou a Lacan a fenomenologia hegeliana.
40 Esse algo sempre faltante no universo simblico e que cria o desejo, como veremos a frente, trata-se do objeto a.
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sua falha (Lacan, 2008, p. 73). E, vertido em direo a algo sempre ausente, o desejo
se torna, por excelncia, insacivel. Para Lacan, o que falta ao desejo , propriamente
falando, o infinito. Da trama entre o arcabouo significante inconsciente (o Outro) e o
desejo, o sujeito desvela-se:
O desejo propriamente a paixo do significante, isto , o efeito do significante sobre o animal que ele marca e cuja prtica da linguagem faz surgir um sujeito um sujeito no simplesmente descentrado, mas fadado a se sustentar num significante que se repete, isto , como dividido (Lacan, 2003b, p. 228).
Se se trata de um sujeito do desejo, de um desejo por algo sempre faltante,
ento o sujeito um ser que falta. Que no consegue encerrar-se em si. Dessa forma,
diremos que, em ltima instncia, o sujeito, como quer que tencione subsumir-se (),
no pode ser universalizado. No h definio englobante em relao ao sujeito, nem
mesmo sob a forma de uma preposio que diga que o significante no um elemento
dele mesmo (Lacan, 2008, p, 74). Assim, faz-se muito mais elucidativo, evocarmos a
no definio do sujeito. O sujeito tem sua no definio realizada no campo do
Simblico atravs dos significantes do Outro41. Essa no definio, ou esse furo, ocorre
porque a preciso de qualquer coisa inatingvel; ela se estende e se transforma
interminavelmente. Por esses meios, o sujeito segue como um inacabado, um faltante,
um desejante que emerge da representao de um significante a outro significante. Ele
existe na busca simblica de algo que no simbolizvel:
Observem bem que, quando falo do significante, falo de algo opaco. Quando digo que preciso definir o significante como aquilo que representa um sujeito para outro significante, isso significa que ningum saber nada dele, exceto o outro significante. E o outro significante no tem cabea, um significante. O sujeito, a, sufocado, apagado, no instante mesmo em que aparece. Como que alguma coisa desse sujeito que desaparece por ser o que surge, que produzido por um significante para se apagar prontamente em outro, pode se constituir e, no fim, fazer-se tomar por um Selbstbewusstsein, isto , por algo que se satisfaz por ser idntico a si mesmo? (Lacan, 2008, p.21)
Por isso a falta o mago do ser sujeito, o que levar Lacan a falar do desejo
41 No Outro est a causa do desejo, donde o homem decai como resto (Lacan, 2003b, p. 228).
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como falta-a-ser. A falta, na verdade, a partcula lgica da existncia do homem, o
elemento dinmico que lhe garante a inquietude pulsante, que a vida. Talvez essa
seja a melhor interpretao para a pulso de morte de Freud42: a pulso de morte a
negatividade expansiva, que destri todas as coisas s quais fixamos nossas volies,
que impede que sejamos plenos, que encontremos o objeto perdido da nossa
completude e nos encerremos antes de morrer.
Inequivocamente instveis na compreenso do que ser-si, de sua origem e
finalidade, do que existir, os sujeitos tm no campo do Outro43 a organizao de
significantes disponvel para alcanar acesso a formas, mesmo que efmeras, de
nomear-se e sujeitar-se44. Ademais, se os elementos e as cadeias significantes que
constituem o Outro so internalizados do contato sociolingustico45, ento, de maneira
alguma, podemos pensar na existncia de uma nica forma de organizao significante
no Outro. Antes, os arranjos Simblicos que referenciaram a organizao subjetiva dos
sujeitos foram to diversos quo diversas foram as formaes sociais, desde a menor
estrutura grupal, at as culturas que se estenderam largamente no espao e no tempo.
42 Freud concebe a pulso como um conceito limite entre o psquico e o somtico, como o representante psquico
dos estmulos que provm do interior do corpo e alcanam a psique, como uma medida de exigncia de trabalho imposta ao psquico em consequncia de sua relao com o corpo (Freud, 2004, p. 148). De forma prxima ao desejo de Lacan, a pulso uma fora, que pem o homem em movimento e no se comporta como um mpeto momentneo, mas como uma exigncia constante e essencialmente insacivel que provm do interior do organismo do homem e o impele a obter alguma forma de satisfao (prazer), que para Freud a diminuio do estmulo pulsional. Tambm de forma bem prxima ao desejo de Lacan, a pulso, se insacivel, no tem finalidade, de modo que o alcance de alguma satisfao s pode vir por uma alterao direcionada e especfica do estmulo em direo a algum objeto, no originalmente vinculado pulso, mas apenas associado a ela em razo de sua aptido de propiciar satisfao.
43 Se o sujeito desejante aquele que est na outra cena do Eu ou poderamos dizer que ele 'obs-ceno' do Eu ento se forma uma subjetividade, uma subjetivao da falta (Safatle, 2007, p. 37), em que subjetivao significa: transformar algo em modo de manifestao de um sujeito. (Safatle, 2007, p.37).
44 Simplificadamente, Quinet constri uma imagem do que seria o sujeito representado em uma cadeia de significantes: No se define o sujeito, ao contrrio, por definio ele indefinido, indefinvel. Ele , por exemplo, homem, mdico, flamenguista, paulista, de esquerda etc., sendo que cada um desses significantes o representa para outro ou outros significantes: ele homem em relao mulher, ou em relao a uma criana, ou em relao a um marciano; ele mdico em relao a um engenheiro ou em relao ao paciente; ele flamenguista em relao a um fluminense ou a todos os times de futebol etc. Assim, o sujeito vai deslizando de significante em significante pelo conjunto da linguagem que compe o Outro. Quando o velho Salomon diz a Peter Pan que ele um menino e no um pssaro e que, portanto, no pode voar, Peter Pan pergunta: Vou ser o qu ento? A resposta poderia ser a prpria definio de inconsciente: Voc ser nem-isso-nem-aquilo. Isso no um alvio, a gente saber que, estruturalmente, no est preso a ter que ser tal ou tal coisa? O sujeito no isso ou aquilo. Ele um vazio, um furo no conjunto da linguagem, deslizando nas cadeias significantes. Em outros termos, como diz Lacan, ele o significante pulado na sequncia de significantes do Outro. (Quinet, 2012, p. 22 e 23)
45 Eis a alteridade descoberta por Freud, a qual arranca o sujeito do centro do psiquismo, na medida em que o sujeito no autnomo e determinante, e sim determinado pelo o que se desenrola no Outro do inconsciente. (Quinet, 2012, p. 24).
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Em suma, o sujeito, para Lacan, aquele que emerge da falta, da irresoluo da
existncia. Sendo assim, o sujeito se sujeita a existir, isso , se sujeita procura da
forma de ser, de desejar, buscando solutos efmeros, descobrindo que no era isso e
vivendo o insimbolizvel.
1.2.3 O Real e objeto a
exatamente esse algo no simbolizvel que compe o ltimo elemento da
tpica lacaniana: o Real. O Real um resto no simbolizvel e no imaginarizado. Ele
forma com os registros Imaginrio e Simblico a estrutura que abrange o campo
possvel da experincia subjetiva (Safatle, 2007, p.30). O Real, nessa estrutura, o que
est inacessvel ao significante. A despeito de parecer um componente residual, ele ,
na verdade, a causao lgica do sujeito; tanto que impera sobre o Simblico que, por
sua vez, tem lugar determinante sobre o Imaginrio, formando a tpica lacaniana Real-
Simblico-Imaginrio (R.S.I)46.
Talvez o principal representante da ordem do Real o que Lacan denomina de
objeto a ou mais-de-gozar47. Tido para o prprio Lacan como a sua principal
contribuio para a psicanlise, o objeto a exatamente aquele que, faltante, motiva o
desejo. Ele o elemento lgico que garante a dinmica da existncia, a incapacidade
de nomeao do sujeito, do outro e de tudo mais. Ele algo que o sujeito perdeu e,
assim, pode se inserir na ordem simblica e no processo de socializao48.
O sujeito, seja qual for a forma em que se produza em sua presena, no pode reunir-se em seu representante de significante sem que se produza, na identidade, uma perda, propriamente chamada de objeto a. isso que designado pela teoria freudiana concernente repetio. Assim, nada identificvel dessa alguma coisa que o recurso ao gozo,
46 Conforme destacam ainda Roudinesco e Plon (1998, p. 710), com essa concepo de estruturao da ordem
simblica, Lacan passa de uma teoria do Simblico calcada em Lvi-Strauss, para outra, alicerada na lgica do significante.
47 Lacan denomina, ainda, o objeto a de objeto-causa-de-desejo. 48 Por isso, acima, dizemos ser o Real o motivo da nsia de uma existncia verdadeira. Se em parte alguma do
Outro possvel assegurar a consistncia do que chamado verdade, onde ela est, a verdade, a no ser naquilo que corresponde a noo do a? (Lacan, 2008, p. 24)
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ou seja, o trao que o marca. Nada pode produzir-se a sem que um objeto seja perdido. (Lacan. 2008, p. 21)
O nome lacaniano do modo de acesso ao Real gozo (Safatle, 2007, p. 74).
O gozo tem aqui a importncia de nos permitir introduzir a funo propriamente
estrutural que a do mais-de-gozar49. Ele a forma com que o sujeito toca
negativamente o Real, o no simbolizvel. E essa abordagem negativa se d, porque
pela manifestao psquica da impossibilidade (ou da frustrao) da simbolizao do
Real que ele, o gozo, se manifesta. como quando damos nomes outros ao objeto a, e
ao alcan-lo descobrimos que, nele, no acabamos. como quando sonhamos
irrepresentveis desejos. Quando somos nitidamente inexplicveis:
() Lacan insiste que a lgica do comportamento humano no pode ser totalmente explicada pela lgica utilitarista de maximizao do prazer e afastamento do desprazer. H atos cuja a inteligibilidade exige a introduo de um outro campo conceitual com sua lgica prpria, um campo que desarticula distines estritas entre prazer e desprazer por colocar o Eu sempre diante de certa dissoluo de si que produz, ao mesmo tempo, satisfao e terror. Indistino entre satisfao e terror que Lacan chama de gozo. (Safatle, 2007, p. 74)
exatamente nesse ponto em que nos