Silvio Gallo Et Al Educacao Libertaria

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    Slvio Gallo .............................................................................................................................................03 * A EDUCAO BRASILEIRA CONTEMPORNEA NUMA PERSPECTIVA LIBERTRIA * A EDUCAO PBLICA COMO FUNO DO ESTADO * A FILOSOFIA POLTICA MODERNA E O CONCEITO DE ESTADO * CONHECIMENTO, TRANSVERSALIDADE E EDUCAO: PARA ALM DA INTERDISCIPLINARIDADE * EDUCAO E CONTROLE * PARADIGMA ANARQUISTA EM EDUCAO * PEDAGOGIA LIBERTRIA E IDEOLOGIA: VIAS E DESVIOS DA LIBERDADE * PEDAGOGIA LIBERTRIA: PRINCPIOS POLTICO-FILOSFICOS * UNIVERSIDADE LIBERTRIA E UTOPIA Roberto Freire .........................................................................................................................................83 * PEDAGOGIA LIBERTRIA * AMOR DE JARDINEIRO, NO DE BOTNICO Mikhail Bakunin........ .............................................................................................................................86 * A INSTRUO INTEGRAL Edson Passetti..........................................................................................................................................88 * EDUCAO E LIBERDADE * PAULO FREIRE, O ANDARILHO DO BVIO Maria Oly Pey..........................................................................................................................................96 * EDUCAO LIBERTRIA Jos Maria Carvalho Ferreira...................................................................................................................97 * PEDAGOGIA LIBERTRIA "VERSUS" PEDAGOGIA AUTORITRIA Lzaro Curvlo Chaves..........................................................................................................................113 * EDUCAO E REDENO Edgar Rodrigues.....................................................................................................................................128 * EDUCAO E CULTURA LIBERTRIA Carlos Baqueiro......................................................................................................................................134 * UM DEBATE SOBRE EDUCAO LIBERTRIA

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    A EDUCAO BRASILEIRA CONTEMPORNEA NUMA PERSPECTIVA LIBERTRIA* Slvio Gallo*

    RESUMO A educao contempornea pode ser analisada sob o prisma libertrio em seus mais diversos matizes. Nesta oportunidade, privilegiarei apenas um deles: um aspecto macropoltico, dizendo respeito s mediaes entre o Estado, a sociedade e a educao. Trata-se de debater aquilo que a maioria dos educadores progressistas considera bvio: a educao pblica e universal deve ser uma funo do Estado. Mas ser de fato necessria esta mediao do Estado entre a sociedade e a educao? Uma educao gerida pela Estado no estar merc de seus interesses polticos e sociais? A comunidade no pode gerar e gerir sua prpria escola, organizando-a segundo seus interesses e necessidades? Em outras palavras: entre o sistema pblico-estatal e o sistema privado de ensino, no podemos viabilizar um sistema pblico-comunitrio de ensino, com base nos princpios libertrios? Quando falamos em educao pblica, pensamos, de forma quase que imediata, em educao fornecida pelo Estado, como se entre as duas expresses houvesse um lao, invisvel e indissolvel; mas ser que conceitualmente podemos reduzir a educao pblica apenas quela fornecida pelo Estado? Num movimento que ganhou mais nfase durante as discusses que nortearam a redao da Constituio Federal promulgada em 1988 e que agitou-se novamente em torno das discusses sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, aprovada em dezembro de 1996, alguns grupos - bastante heterogneos em sua composio - defenderam e tm defendido atravs de seus poderosos lobbies que a educao pblica no pode ser resumida educao estatal, mas englobaria ainda outras modalidades de ensino. Um exemplo tpico seria a parcela das escolas confessionais que defendem para si prprias o epteto de escolas comunitrias, por pautarem-se em reais interesses sociais - calcados na chamada "opo preferencial pelos pobres" da Igreja Latino-americana - e no em meros interesses financeiros e empresariais, como as escolas privadas propriamente ditas. parte dos verdadeiros e honestos interesses sociais destas escolas, que em alguns dos casos realmente existem, no podemos deixar de explicitar que por trs desta simptica auto-denominao passa, sorrateiramente, o interesse de conseguir acesso s verbas que o poder pblico destina educao que, se no so no montante que seria minimamente desejvel para suprir nossas necessidades, tambm esto muito longe de serem desprezveis. Assim, as ditas escolas comunitrias tambm receberiam verbas estatais que, a princpio, deveriam ser encaminhadas apenas e to somente quelas escolas cuja manuteno e gerncia funo direta do Estado. Na 6 Conferncia Brasileira de Educao, realizada em So Paulo em 1991, Carlos Roberto Jamil Cury fez a crtica dos interesses destas escolas "pblicas no-estatais": "Na segunda vertente, caso do comunitrio defendido como 'publico no-estatal', a fundamentao levemente diferenciada. A escola privada-confessional, sobretudo aquela voltada para a 'opo preferencial pelos pobres', incluiria aquelas parcelas do povo marginalizado pelo Estado (isto : os 'pobres' no sentido bblico), nas quais confluem do direito diferena (j que a escola oficial no oportunizaria esta diferena), mas pela qual teriam que pagar, e a impossibilidade de pagar e com isto de ter acesso quela diferena.

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    "Aqui, o discurso da parte daquele que se autodelega poderes para se afirmar como voz de um todo sem vez e voz, mas um todo fora do mbito estatal. O discurso se tem na conta de um representante de uma outra totalidade, em que o lucro no seria a base da sociedade. "Por vezes, diria eu, h uma espcie de discurso quase-que-anarquista, pelo qual o Estado banca recursos, a comunidade gerencia a escola e, porque esta comunitria, a gesto da mesma implicaria a prestao aberta de contas. neste sentido que ela se autodenomina 'pblica no-estatal': pela absteno do lucro e pela transparncia nas contas e participao dos interessados." Para a questo que de nosso interesse e deixando de lado o juzo tico-poltico sobre essas escolas comunitrias, essa sua ao (ou seu discurso, pelo menos) importante e profcua, pois coloca em xeque a exclusividade do Estado em oferecer uma educao que seja pblica, isto , voltada para todos e para os interesses comuns. Se outros grupos sociais e/ou instituies tambm podem desenvolver um processo educacional pblico, ser mesmo necessria essa onipresente e onipotente mediao do Estado? Hoje vemos a educao, antes de tudo, como uma funo do Estado, assim como a sade; a iniciativa particular, no caso da educao, deve funcionar apenas no nvel complementar ou de escolha ideolgica dos pais. Esta escolha , porm, bastante limitada, pois os currculos, atividades etc. so todos definidos, regulamentados e fiscalizados pelo Estado. Mas por que precisamente esta a viso socialmente dominante entre ns? Se estudamos a questo conceitual do Estado moderno e a gnese da instruo pblica, fica claro que a educao como funo do Estado um fenmeno histrico, bem definido e bem caracterizado; podemos precisar como, quando e por que surgiu, como se desenvolveu, como se d o funcionamento dos vnculos com o Estado, a que interesses ela esteve e est vinculada, quais foram seus sucessos e seus fracassos e por que eles se deram. Uma das funes determinantes na gnese histrica da instruo pblica, talvez mesmo a mais importante, foi a da promoo da nacionalidade. Em um contexto bem especfico da Europa da poca, tratava-se de incutir na populao um sentimento cvico de nacionalidade que fortalecesse os laos eminentemente polticos que possibilitavam a constituio dos Estados nacionais. Uma populao largamente ignorante que pouco ou nada conseguia enxergar alm de sua estreitssima esfera social precisava ver crescer em si mesma um senso de abrangncia quase que impensvel: camponeses que nada conheciam alm das terras em que trabalhavam e das poucas pessoas com quem tinham contato, aldees que muito raramente conseguiam ultrapassar os limites da vila precisavam, de repente, conseguir intuir limites geogrfico-territoriais e populacionais muito alm de suas capacidades, para poder abarcar em si o conceito de nao e o de nacionalidade. A conceituao, porm, no era o bastante: era preciso criar laos afetivos; o indivduo precisaria sentir-se parte integrante da nao para defend-la, se preciso at com a prpria vida. Sem dvida alguma, a criao de laos sociais, profundamente entranhados nos indivduos, criaria uma "amarrao" muito mais forte. Podemos aqui traar uma analogia com a teoria do poder de La Botie: quanto mais disseminado entre os indivduos o sentido da nacionalidade, mais forte torna -se a Nao mesma. Neste contexto, urgia que aqueles indivduos, em sua maioria iletrados e ignorantes desenvolvessem uma maior capacidade de abstrao e conceituao, o que s seria possvel atravs da instruo, qual eles s poderiam ter acesso caso as condies fossem enormemente facilitadas. A educao pblica tinha, pois, no momento de sua origem, uma funo poltica especfica e importante a cumprir -

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    significava a manuteno e o crescimento do prprio Estado - alm de, claro, acalmar os nimos das massas que reivindicavam melhores condies sociais de vida. O processo que acontece tardiamente no Brasil anlogo a este, embora mudem bastante as especificidades; a importao das idias, porm, tanto do lado dos trabalhadores, cada vez mais influenciados pelo crescente fluxo de imigrao europia que trazia para c as "vises da modernidade", quanto do lado dos republicanos que, profundamente embebidos pelo positivismo europeu, vislumbravam um destino de "ordem e progresso" onde a educao pea-chave, garante a implantao de nosso sistema de instruo pblica, muito embora os interesses do Estado sejam outros. Voltando ao momento presente, no so poucos os que afirmam que o pas vive hoje uma crise de nacionalidade, e que urge que despertemos o sentimento cvico na populao. A campanha ganha a mdia de forma nada subliminar, mas intensamente: a grande imprensa, o rdio e a televiso pululam de discursos cvicos e nacionalistas; no bastando isso, novelas comearam, nos ltimos anos, a tratar o tema e at mesmo o marketing assume uma feio cvica, com o nacionalismo sendo usado para vender de sabonetes a servios bancrios. Numa outra face da moeda, empresrios abandonam seus interesses privados para assumir, na feio pblica, uma imagem de "defensores da ptria", de preocupados e comprometidos com a situao poltico-social do pas. Correndo o risco de sermos crucificados pelos defensores do "pensamento politicamente correto" - essa outra prola da modernidade! - cabe aqui que enfrentemos o problema com a profundidade conceitual que ele merece. Devemos, pois, colocar a questo: precisamos realmente desse sentimento de nacionalidade? Ou, aprofundando ainda mais: tem algum sentido para ns o nacionalismo? Para assegurar a pretendida profundidade da resposta, faz-se imprescindvel que busquemos o apoio da filosofia da cultura numa obra fundamental de Gilberto de Mello Kujawski, A Crise do Sculo XX. Nessa obra, ele analisa a crise contempornea como, antes de tudo, a crise da modernidade, apoiado um pouco mais em Ortega y Gasset e um pouco menos em Julian Maras. Nessa anlise, ele nos mostra que um dos conceitos cnones da modernidade exatamente o conceito de Nao, e orteguianamente demonstra que as naes no nascem nem da unidade lingstica nem das fronteiras territoriais comuns mas, ao contrrio, que essas duas caractersticas so decorrentes do prprio ato originrio de uma nao: o pacto poltico. Esse pacto um ato cotidiano, refeito e recriado a cada instante, lanando-se, como utopia, ao futuro. Aps demonstrar que a idia de nao representa um avano astronmico em abstrao, se comparada com a polis grega ou a urbs romana, nas quais, dada a limitao no tamanho populacional havia um relacionamento face-a-face entre os indivduos e, portanto, uma instituio poltica mais direta, ele afirma que a nao, ao contrrio, a constituidora dos indivduos. "O nome 'nao', assinala Ortega, sobremaneira feliz por insinuar desde logo que ela algo prvio a toda vontade constituinte dos seus membros. Est a antes e independente de ns, seus indivduos. algo em que nascemos, no algo que fundamos. A histria de toda polis comea por uma real ou legendria fundao (ktisis). Mas a nao ns a temos s costas, uma vis a tergo, e no s uma figura vista, diante de ns, como era a polis para o cidado. Ns no fazemos a nao, ela que nos faz, nos constitui, nos d substncia." Para manter essa abstrao constituinte dos indivduos preciso, porm, que eles a recriem permanentemente atravs do pacto; a estabilidade temporal de uma nao reside na re-criao contnua, ad infinitum, de sua instabilidade. Da o fato de a educao ser de suma importncia na construo e manuteno de um projeto nacional. No se constri uma nao, assim como ela no pode viver, sem o

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    concurso direto de toda a populao, e a educao vai justamente criar e animar os laos de civismo que constituiro o orgulho da nacionalidade - algo puramente artificial e abstrato, portanto. Assim, se realmente pretendemos fazer deste pas uma nao, a educao e a mdia tero importncia capital. Mas aqui que a filosofia da cultura de Kujawski vem em nosso apoio: faz sentido a defesa da construo de um projeto nacional para o Brasil hoje? O que o filsofo orteguiano vai demonstrar que a Amrica Latina em geral e o Brasil em particular "perderam o bonde da modernidade"; essencialmente, ns nunca fomos modernos, pois as condies histrico-culturais de nossa regio estiveram sempre muito distantes das condies europias, o palco por excelncia da modernidade. Deixando de lado a pluralidade de conceitos que sustentam a modernidade e atendo-nos apenas a um deles, o de nao, podemos afirmar, com toda certeza, que os pases latino-americanos jamais constituram-se em naes como as europias, assim como os Estados Unidos da Amrica nada mais so do que uma federao de cinquenta Estados. Mas, hoje, com a crise da contemporaneidade, a prpria nao est em crise: "O que est superado no propriamente a nao, como realidade social e histrica, mas sua personificao poltica, o Estado-nao, com seu ideal renitente de autarquia. As naes, enquanto formas histricas de convivncia, como estilos diferenciados e originais de vida, devem subsistir integradas em tipos mais amplos de organizao poltica, sem que para tanto devam perder suas caractersticas. As regies se conservam intactas no seio de naes unificadas h sculos." O possvel desenvolvimento poltico das atuais naes deve dar-se no sentido de uma supranacionalidade, com a diluio do poder dos Estados-nao: "Tudo inclina as naes contemporneas convergncia num novo tipo de poder, o poder supranacional, baseado na soberania compartilhada. Enquanto a soberania permanecer ciumentamente monopolizada pelas naes, individualmente, o mundo no ter paz e a ONU ser uma figura decorativa. O que falta Organizao das Naes Unidas um direito internacional que seja uma realidade, e no piedosa fico. Todo o direito sem poder de sano severa e efetiva no passa de fico. A ONU no tem meios de aplicar sanes eficazes aos Estados infratores devido falta de um verdadeiro direito internacional. E este s se poder constituir quando a carapaa da 'soberania nacional' for rompida, para possibilitar convivncia mais estreita, mais produtiva e dinmica entre as naes. Ademais, a soberania compartilhada no novidade. Maras lembra que a Espanha se formou quando os reinos de Castela e Arago passaram a 'mandar juntos'." Deste modo, a crise da modernidade no a nossa crise, assim como a busca de uma nova alternativa poltica, mais abrangente, para os Estado-nao no , necessariamente a nossa busca. neste contexto que levamos uma certa vantagem sobre a Europa: por no sermos modernos, muito mais simples para ns superarmos a crise da modernidade, achar nosso caminho prprio e particular, como tambm afirmava, partindo de um outro referencial, o francs Flix Guattari, ao explicar que a criatividade europia est morta, e que a esperana da humanidade hoje reside na inventividade do assim chamado Terceiro Mundo. Podemos, sem dvida alguma, engajarmo-nos no projeto de encontrar a modernidade, a despeito do atraso histrico e da busca que se assemelharia a correr atrs de um crepsculo que a cada instante mais e mais prenuncia o anoitecer, e a a construo de um projeto nacional ser de extrema importncia e a educao pblica ter seu papel cvico a desempenhar, de forma determinante. Mas qual seria o sentido de buscar uma frmula histrica que se "desmancha no ar", parafraseando Marx?

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    Mas, se mais sabiamente, optarmos por dedicarmo-nos socialmente a um projeto inovador e transformador em sua singularidade, teria ento sentido o papel que tradicionalmente se atribui educao pblica? No deveria ser ela profundamente reformulada, passando a ser construda comunitariamente, com o trabalho e o engajamento responsvel dos indivduos, em consonncia com o caminho escolhido que, pensamos, deveria ser o do desenvolvimento de uma nova vivncia comunitria, que resgatasse para a ao poltica a dimenso da ampla participao popular? Fechada esta contextualizao histrico-conceitual, podemos retomar, agora melhor amparados, o problema da educao pblica como funo exclusiva do Estado e perguntar: se no existem j as bases histricas que dariam sentido para um amplo sistema de educao pblica estatal, o que leva parcelas to significativamente esclarecidas e engajadas da populao a reivindic-la to intensamente? Em meio multiplicidade de sentidos que permeia toda situao concreta, duas circunstncias aparecem como as principais e determinantes a suscitar tal reivindicao. De um lado, significativo o fato de a sociedade estar imersa na ideologia liberal, to competentemente trabalhada e distribuda pela burguesia nos ltimos sculos. Essa ideologia liberal est de tal modo entranhada no imaginrio social e na conscincia individual do homem contemporneo que mesmo os crticos do liberalismo acabam por desenvolver, em ltima anlise, um esquema de pensamento que anlogo ao do liberalismo; isto , no existe um novo paradigma de pensamento, mas variaes positivas e negativas de um mesmo paradigma. Sartre argutamente afirmou a mesma coisa em seu Questo de Mtodo, ao definir o marxismo como a filosofia insupervel de nosso tempo; dizer que enquanto no forem superadas as condies histrico-sociais que deram origem ao marxismo no surgir uma nova filosofia, afirmar que o marxismo, apesar de expor e desmontar a lgica do capital, continua, em ltima instncia, a desenvolver a mesma lgica. A lgica implacve l do liberalismo instalou em cada um de ns, como corpo social, a idia de que o Estado o provedor da sociedade; sem Ele nada somos, sem Ele, o grande Senhor Civilizador, somos feito brbaros em luta pelo fogo. Assim, acostumamo-nos cmoda situao de termos um "indivduo coletivo", superior a ns mas que, no final das contas, constitudo por ns mesmos, que amavelmente assume por ns as nossas responsabilidades, como a de educar s nossas crianas. No nos debruaremos aqui sobre os traos psicanalt icos do ser humano que o levam a fugir de suas responsabilidades, de resto j bem explorados por investigadores da psiqu humana como Erich Frmm ou Wilhelm Reich, por exemplo, ou mesmo por filsofos como o prprio Sartre anteriormente citado; basta-nos assinalar que, inconscientemente, preferimos deixar por conta do Estado a tarefa de educar do que tom-la para ns, com todas as responsabilidades que isso significaria. De outro lado, a segunda circunstncia que anuncivamos diz respeito ao fato de o Estado ter tomado gosto pela atividade da educao. Sem sombra de dvida, o "indivduo coletivo" que exprime-se na abstrao do Estado tomou conscincia do poderoso instrumento que to inocentemente foi colocado em suas mos e, no maquiavelicamente - o que significaria uma ao consciente na perspectiva valorativa - , mas como resultado de sua prpria lgica interna, de seu modo de ser, arvora-se em Senhor Civilizador, Pedagogo-Mor das Massas Incultas que, sozinhas, estariam destinadas a perecer. Em outras palavras, experimentamos dois fatos complementares que se reforam reciprocamente: os indivduos fogem sua responsabilidade deixando a educao a cargo do Estado e passando a exigi-la deste; este, por sua vez, toma gosto pela idia e no quer mais abandon-la, fiscalizando mesmo as atividades educacionais que colocam-se fora de seu raio de ao ou, pelo menos, tentam construir-se sua sombra.

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    O fato que o fenmeno ideolgico muito mais amplo e, portanto, tem uma importncia maior do que aquela que deixa antever certo reducionismo marxista. Para alm da falsificao do real e da "cmara escura" que inverte a realidade, a ideologia pode e deve ser compreendida, em horizontes menos estreitos, como fenmeno encarnado no cotidiano da existncia concreta. No estamos negando a importncia da Ideologia Alem, que magistral na anlise do fato estrito que ela prpria se coloca como objetivo, mas apenas afirmando que outras anlises, como as de Max Weber ou as de Wilhelm Reich na Psicologia de Massas do Fascismo, por exemplo, podem nos trazer uma viso muito mais abrangente do fenmeno. Se escaparmos de nossa cegueira habitual, conseguindo ao menos vislumbrar a multiplicidade do real, poderemos entender a importncia que a educao assume para o Estado, como os anarquistas, dentro de sua relativa ingenuidade, perceberam e denunciaram j h tanto tempo. Se tomamos a ideologia como parte do aparelho reprodutor do Estado e da estrutura social que ele gerencia, percebemos que a escola , ainda hoje, um poderoso veculo ideolgico nas mos do Estado, embora esteja cada vez mais perdendo terreno para os meios de comunicao de massa. Como a educao no acontece apenas no contexto da instituio escolar, no nenhum absurdo prever que o Estado cada vez mais utilize-se da mdia, no s como veculo de informao ideolgica, mas tambm como veculo de educao ideolgica, o que j est implcito em alguns projetos de ensino distncia desenvolvidos pelo tecnicismo da dcada de setenta, cujo exemplo mais prximo hoje provavelmente esteja representado nos Telecursos e mesmo nas Telesalas. Deixando de lado os futurismos, hoje a escola ainda um veculo importante para levar a amplas camadas da populao, em idades em que so mais facilmente influenciveis, a ideologia que o Estado quer ver disseminada entre a populao. Algum poderia objetar que, no caso brasileiro, o descaso que o Estado vem, h dcadas, apresentando com relao educao, refutaria essa tese. Entretanto, esse suposto descaso do Estado tambm uma ao poltica e ideolgica muito clara: oferecer uma educao de baixa qualidade ou mesmo no oferecer vagas em quantidade suficiente para atender s necessidades da populao mais carente deix-las, cada vez mais, merc de um veculo mais dinmico na difuso ideolgica e menos crtico, por ser apenas receptivo que, a cada dia, chega a um maior nmero de lares, a televiso. No caiamos aqui, porm, no discurso demod de ver na televiso a "monstra condenada, a fenestra sinistra", pois bvio tambm seu contedo positivamente educativo, desde que bem utilizado. O fato que o aparente descaso do Estado com a educao pblica pode mascarar um interesse muito grande em dar ao povo uma iluso de educao; ainda em meados do sculo passado, Proudhon afirmava que a educao das massas no passava de rudimentos: "O que querem para o povo no a instruo; simplesmente uma primeira iniciao aos rudimentos dos conhecimentos humanos, a inteligncia dos signos, uma espcie de sacramento de batismo intelectual, consistente na comunicao da palavra, da escrita, dos nmeros e das figuras, mais algumas frmulas de religio e de moral. O que lhes importa que, ao ver estes seres que o trabalho e a mediocridade do salrio mantm em uma barbrie forada, desfigurados pela fadiga cotidiana, curvados sobre a terra, as naturezas delicadas que constituem a honra e a glria da civilizao possam constatar, ao menos, nestes trabalhadores condenados ao penar, o reflexo da alma, a dignidade da conscincia e que, por respeito a eles mesmos, no precisem envergonhar-se demais pela humanidade." Alm do carter de disseminao da ideologia, constituindo-se no aparelho de Estado que garante a reproduo da produo, poderamos agregar tambm importncia ideolgica da escola para o Estado a noo weberiana de que a escola no um instrumento de dominao propriamente dito, mas sim um instrumento de legitimao da dominao.

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    Posto que concordemos, pelo menos em parte, com a importncia ideolgica da escola para amanuteno da instituio poltica do Estado e do sistema social que ela suscita, seja no aspecto da disseminao dos contedos e formas ideolgicas, seja no aspecto da legitimao mesma da dominao, consideramos como absolutamente incuas - para no tax-las de absurdas as discusses que desenvolvem-se no sentido de exigir socialmente a melhoria da qualidade, a maior democratizao do sistema pblico de ensino e a sua atuao para o resgate da cidadania do povo brasileiro. Passaremos a discuti-las, comeando pela ltima, dado seu carter mais globalizante. A questo da educao como promotora da cidadania est, tambm, intimamente ligada gnese histrica dos sistemas de instruo pblica. Durante a Revoluo Francesa, tratava-se de transformar o sdito, que apenas obedecia, em cidado, que teria participao efetiva nos destinos da nao; para ns, aps dcadas vivendo sob regimes polticos que pouco ou nada respeitavam os direitos individuais e sociais, trata-se, argumentam seus defensores, de resgatar na populao a conscincia de seus direitos e deveres poltico-sociais. Mas, como belos discursos podem perfeitamente mascarar prticas sociais incuas ou at mesmo impossveis, cabe-nos perguntar: a cidadania, essa "noo ligada aos tempos hericos", pode, realmente, ser construda ou mesmo resgatada atravs da educao? Primeiramente, precisamos colocar com muita clareza o carter de historicidade do prprio conceito de cidadania; uma coisa era ser cidado numa polis grega, outra muito diferente era o ser no calor revolucionrio da Frana de fins do sculo dezoito, assim como outra coisa ainda ser cidado na sociedade contempornea que pretendemos democrtica. Procurando na filosofia poltica contempornea o sentido da sociedade democrtica, Patrice Canivez conclui que ser cidado nessa sociedade ser um "governante em potencial". Uma educao para a cidadania na sociedade democrtica consistiria, pois, em preparar cada indivduo para que seja um possvel governante dessa sociedade; em outras palavras, formar no indivduos passivos, mas indivduos potencialmente ativos, que podem entrar em ao a qualquer momento, de acordo com os desenvolvimentos polticos da sociedade. Esta noo poderia dar sustentao para uma certa viso "militantista", que procura fazer da escola um local de proselitismo poltico; nada mais errado, na concepo de Canivez: a escola o espao da cultura, e nela a construo da cidadania deve dar-se neste mbito. Baseada em Eric Weil, mostra que a escola no o lugar da poltica, isto , um espao de militncia, mas um lugar essencialmente poltico, pois nela que se assimila toda a base conceitual necessria para a ao poltica eficaz. A educao do cidado deve, pois, circunscrever-se muito mais ao campo da cultura do que ao da poltica propriamente dito, o que em nada diminui o seu carter essencialmente poltico. Para a constituio de uma sociedade democrtica, a educao do cidado deve privilegiar o aprendizado e o exerccio do dilogo, base da prpria democracia. A relao da educao com a cidadania s tem sentido, ento, se tomada num aspecto bastante restrito, delimitado pela historicidade da cidadania que ela vai promover; assim, no o mesmo sistema pblico de ensino idealizado para produzir a transformao do sdito em cidado durante a Revoluo Francesa que vai produzir o cidado ativo de uma sociedade democrtica contempornea. Dadas as caractersticas desse novo cidado, seria interesse do Estado financiar um sistema de ensino que o produzisse? Discutiremos essa questo quando abordarmos o aspecto da democratizao do ensino pblico, pois ambas esto muito intimamente relacionadas.

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    Passemos discusso do primeiro aspecto dos trs que havamos levantado anteriormente, o que diz respeito reivindicao da melhoria da qualidade do ensino oferecido pelo sistema estatal de educao. J ficou mais do que claro que o Estado percebe a necessidade de oferecer s massas uma certa educao; sem dvida, no a escola que queremos, mas a escola que Ele quer, embora na maioria das vezes os mecanismos de convencimento ideolgico dos quais falamos funcionem perfeitamente, e sejam mais do que suficientes para garantir que aquilo que ns queremos ou pensamos querer - seja exatamente aquilo que Ele quer. Assim, a escola pblica que temos a escola pblica que o Estado nos quer financiar, seja ela legitimadora da dominao, seja ela o mecanismo distribuidor de um arremedo de educao que mantenha o povo em um estado de semi-ignorncia e apatia poltico-social, parea isso um descaso do Estado com a educao pblica ou no. A reivindicao de uma educao pblica de qualidade, deste modo, parece encontrar limites muito estreitos; enquanto ela significar o atendimento de uma necessidade do Estado liberal de prover o sistema de produo com profissionais tecnicamente melhor preparados, pode at encontrar eco nos administradores da educao estatal e ser atendida, virando mesmo ponto de pauta dos discursos oficiais. Ir muito alm disso, porm, parece-nos improvvel. Uma educao de qualidade, o que significaria proporcionar aos educandos condies para que assimilem no s o conjunto do legado cultural historicamente produzido pela humanidade, mas tambm condies para que tornem-se metodologicamente aptos a produzir eles mesmos o saber cientfico, afasta-se demasiado de uma mera capacitao tecnolgica para um sistema de produo um pouco mais desenvolvido. Ora, no sejamos ingnuos: uma educao deste tipo choca-se frontalmente com os interesses estatais, seja de disseminao ideolgica, seja de legitimao da dominao; tal educao impossibilitaria o objetivo da dominao ideolgica e da manuteno da ordem social e, mais ainda, seria ela prpria uma subverso dessa ordem, pois colocaria em xeque o sistema de explorao e distribui o desigual da produo social. Deste modo, seria paradoxal esperar do Estado uma educao pblica de qualidade, obviamente tomando por princpio que a distribuio dessa educao fosse justa, alcanando amplas camadas da sociedade e no apenas uma elite de privilegiados, preparada para assumir os cargos da tecnocracia. Alguns eminentes educadores e filsofos brasileiros da educao, trabalhando na produo de anlises e concepes dialticas da educao, tm colocado a questo da qualidade do ensino; um bom exemplo estaria no da Pedagogia Histrico-Crtica, que vem sendo desenvolvida j h duas dcadas por Dermeval Saviani, acompanhado depois por um grupo de conceituados tericos da educao, que defende que a escola pblica deve dar instrumentos s classes desprivilegiadas para que possam enfrentar a burguesia em p de igualdade no processo da luta de classes. E este instrumental de luta estaria representado justamente no acesso a um ensino de qualidade, como o que vimos discutindo. Como concepo pedaggica que se prope pensar dialeticamente a educao e a ao transformadora em seu contexto, a Pedagogia Histrico-Crtica bastante coerente com seus princpios; mas tentando enxergar atravs dos monstruosos e abstratos olhos do "Leviat" - um imenso olho formado por milhes de olhos, provavelmente diria Hobbes - , teria praticidade tal concepo pedaggica?, isto , permitiria - e ainda mais, financiaria - o Estado tal educao? No, no estamos propondo a volta s teorias crtico-reprodutivistas da dcada de setenta, que cairiam no impasse da impossibilidade da ao educacional transformadora, mesmo porque tais teorias j foram desmanteladas por autores do calibre de Georges Snyders e pelo prprio Saviani; entretanto, se aceitamos as concepes filosfico-polticas do Estado aqui discutidas e estamos falando da escola essencialmente como unidade de um sistema pblico-estatal de ensino, no que a luta de classes seja

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    inexistente ou impossvel no espao social da escola, mas existem limites estreitos para a ao daqueles que procuram fazer da escola sua trincheira de lutas, seja em que aspecto for. Poder-se-ia objetar que o Estado somos ns, que ele nada mais do que o representante e promotor da rousseauniana "vontade geral" e que cabe ao conjunto da sociedade fazer com que o Estado promova e implemente a educao pblica que queremos. Retrucaramos, ento, com a prpria pergunta que intitula este captulo: seria necessria essa intermediao do Estado para a realizao de nossos interesses sociais? Devemos reiterar que no discordamos do fato de que existem no sistema educacional pblico-estatal brechas que podemos usar para o desenvolvimento de um processo de auxlio transformao da realidade social - j que a escola sozinha incapaz de mudar toda uma estrutura social. O Estado, porm, continua o gerenciador da educao pblica, e absolutamente nada nos garante que, a qualquer momento, ele no venha a retomar o absoluto controle do processo, destruindo os esforos coletivos que buscavam uma melhoria no ensino das classes populares, afrontando o prprio poder do Estado. Entretanto, se h o caminho da ao nas brechas deixadas pelo Estado, h tambm uma multiplicidade de caminhos novos a serem criados, margem da ao estatal... Mais interessante seria que buscssemos novas formas de fazer social, afrontando diretamente a instituio Estado, e no servindo-nos dela, habitando suas brechas como nossos milhes de miserveis habitam as brechas no concreto dos grandes viadutos de nossas ricas metrpoles. Deixando um pouco de lado a questo da qualidade de ensino, qual voltaremos adiante ao discutir o conjunto dos trs aspectos problemticos das reivindicaes progressistas em relao ao sistema pblico de educao, passaremos agora ao aspecto mais diretamente poltico dos trs, o da democratizao do ensino pblico. Esse aspecto divide-se em duas questes principais: de um lado, democratizar o acesso escola, que significa estend-la o mximo possvel, at abarcar toda a populao; de outro lado, democratizar a vivncia poltica na escola, que se traduziria no desenvolvimento de um processo de educao cvica, de formao de um "cidado consciente". Quanto primeira questo, muito pouco resta a ser dito, pois democratizar o acesso escola pblica consiste, do ponto de vista lgico, na prpria essncia do sistema: se pblico, deveria ser necessariamente dirigido a todos, a toda a populao. Neste aspeto, bastante questionvel chamar de pblico um sistema de ensino que no consiga abarcar, na prtica, a totalidade da populao em idade escolar, como o caso do sistema de educao brasileiro contemporneo em que, antes mesmo de faltar qualidade, falta vaga para atender completamente demanda. J a segunda questo ligada a este ltimo aspecto mais profunda e mais complexa, oferecendo uma maior margem para discusso. Devemos, de antemo, enunciar a tese que ser trabalhada, e que pode ser resumida na seguinte frmula: "a extremizao da vivncia e da gesto democrtica na escola pblica leva, necessariamente, ao rompimento desta com o Estado, assim como a extremizao da gesto democrtica do Estado leva sua prpria destruio." A tese acima enunciada est diretamente ligada questo da relao entre o poder e a democracia, que, tomada em seus princpios polticos e levada s ltimas conseqncias, significa que a democracia s tem sentido no contexto da existncia do poder que, por sua vez, pressupe a existncia da dominao; se no h domnio de uns sobre outros, no h poder e no necessria a organizao deste poder. Sendo a democracia uma das formas de organizao do poder aquela que, por princpio, tenta

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    minimizar o seu exerccio, dividindo-o entre o maior nmero possvel de indivduos - , se no h poder, temos a completa autonomia individual e a j no h mais lugar para a prpria democracia. Em outras palavra, levar a democracia s ltimas conseqncias significa a destruio da prpria democracia ou, se preferirem, tambm poderamos dizer que a verdadeira democracia seria a extino do poder personificado e, assim, s existiria democracia de fato no contexto da absoluta autonomia. Superando a discusso conceitual, dela podemos auferir que existe um limite muito definido para o discurso democrtico e que torna-se ainda mais ntido para a ao democrtica, sendo que este limite a prpria razo de sua existncia: levada at seus limites, a ao democrtica implica na dissoluo do poder e na destruio da prpria democracia, ou na instituio da verdadeira democracia, mas a a ao que leva at sua instituio no passaria de uma ao pr-democrtica, ou mesmo pr-democrtica... Poderamos citar um interessante cartum do saudoso Henfil que ficou muito conhecido ao ser utilizado em camisetas pelo Partido dos Trabalhadores, pouco tempo depois de sua fundao, muito usadas por sua militncia: abaixo da frase "Queremos o poder!" escrita em letras garrafais, uma srie de Granas - um de seus personagens mais conhecidos - absolutamente iguais, dando a idia dos indivduos que compem um grupo social, conjugava o verbo em todas as pessoas, "eu posso, tu podes, ele pode..."; o cartum transmite a idia do "queremos o poder para dividi-lo". No entanto, se dividimos o poder, no apenas com alguns, mas igualitariamente com toda a populao, ele acaba por perder o sentido, deixando mesmo de existir. Parece-nos que no era exatamente a idia que o Partido dos Trabalhadores queria transmitir - significaria, logicamente, a sua prpria extino enquanto agremiao poltica - mas exatamente o que significa se procurarmos o seu sentido ltimo. Sintetizando, a democracia - por mais absurdo e reacionrio que possa parecer para a mentalidade liberal que, como afirmamos, encontra-se disseminada ideologicamente entre ns - s tem sentido enquanto expresso de um sistema de poder, de dominao, por mais que represente um abrandamento da prpria dominao. Voltando ao contexto da educao, os discursos que se arvoram em "progressistas" lutam por uma maior democratizao da escola pblica. Depois de muita luta poltica e social, sem dvida alguma presenciamos uma srie de conquistas que, entretanto, colocam-se dentro de um limite muito especfico, limite este que o Estado faz toda a questo de mascarar. A educao pblica democrtica, ou pode s-lo, at onde interessa ao Estado; no podemos, porm, nos enganar: assim que essa democratizao colocar em risco suas instituies polticas - se que ela pode chegar a tanto - ela ser imediatamente desviada, abrandada ou mesmo extinta. Para compreender melhor este trplice aspecto da educao pblica - a melhoria da qualidade, a promoo da cidadania e a democratizao - gostaria de buscar no folclore infantil e na fbula, esse imenso depositrio do imaginrio coletivo que tem o poder de, atravs da simplicidade da palavra, desvendar a alma humana, a metfora perfeita: passeamos no bosque, enquanto "Seo Lobo" no vem... Brincamos de democracia na escola - se me permitem brincar com essa coisa to sria... - enquanto o "Lobo Estado" no aparece; mas, se tomarmos o "caminho do rio", aquele que os poderes institudos - os pais - nos alertaram para no seguir, se afrontarmos o territrio de domnio do "Lobo Estado", claramente demarcado, a ele aparece, implacvel... No confronto, experimentamos duas situaes-limite: ou somos devorados pelo "Lobo Estado" ou o matamos. A convivncia s possvel quando habitamos territrios diferentes ("esta cidade pequena demais para ns dois!"), no sendo, portanto, con-vivncia.

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    O que tentamos exprimir atravs desta pequena brincadeira metafrica que, na vivncia poltica no territrio do Estado, as aes progressistas encontram limites muito prximos. No que elas no sejam possveis, so at mesmo louvveis, embora sua eficcia poltica, se as tomarmos em suas ltimas conseqncias, seja dubitvel. J deixamos claro que, do ponto de vista da qualidade, a escola que queremos - falando na perspectiva das camadas progressistas da sociedade, que buscam a igualdade e a justia sociais - no aquela que o Estado capitalista quer; o assumir do discurso da qualidade de ensino pelas esferas oficiais significa, no limite mximo, a busca de melhor qualificao de trabalhadores, exigida pela complexificao tecnolgica da indstria. Forar socialmente o Estado a oferecer a escola que queremos, que seria um instrumento a mais no processo de luta pela transformao desta sociedade, seria levar a uma situao-limite em que o conflito s poderia ser resolvido atravs do confronto, estando o Estado numa posio ttica privilegiada para resolv-lo a seu favor. Na perspectiva da promoo da cidadania e da democratizao do ensino que, em ltima anlise podem ser reunidas numa nica, dado que a promoo da cidadania no se daria jamais atravs de discurso mas, como vimos anteriormente, atravs da assimilao dos conceitos bsicos para a compreenso da vivncia poltica, alm do aprendizado de uma ao que, se no estritamente poltica no contexto mais geral, o ao nvel especfico da convivncia em uma comunidade, a prpria escola, estando a de certo modo representada a sua democratizao, a questo no menos complexa. Assim como a extremizao da gesto democrtica da escola leva ao rompimento com a estrutura de poder sustentada pelo Estado capitalista e, conseqentemente a um necessrio rompimento com esse prprio Estado, a realizao de um processo educacional que seja responsvel pela formao de um cidado no real sentido contemporneo que a palavra alcana, e de um cidado de fato e no apenas de direito, representa, tambm, o acirramento de um confronto com o Estado que, enquanto provedor e gerenciador dessa educao, no teria o mnimo interesse em mant-la nessas condies. Ao levantar essas crticas, que buscam o sentido ltimo de uma educao pblica e de suas necessrias relaes com o Estado, no pretendo, de modo algum, defender a impossibilidade de uma ao poltico-pedaggica progressista no contexto do sistema pblico de ensino. Tambm no pretendo, como j foi frisado anteriormente, retomar as crticas produzidas no contexto das teorias crtico-reprodutivistas, que de resto j foram superadas por teorias mais lcidas e abrangentes. Meu objetivo foi trazer para a discusso uma perspectiva que, se no nova, estava h muito esquecida, ou feita esquecer pela intensa represso social e poltica. Os anarquistas procuraram sempre construir alternativas pedaggicas aos sistemas pblicos de ensino, como forma de escapar das bvias limitaes de uma educao comprometida com o Estado, o mximo representante e depositrio do poder social. No, a mediao do Estado no absolutamente necessria; os grupos sociais poderiam perfeitamente organizar e gerir os seus prprios sistemas de ensino, escapando das perniciosas influncias desta instituio que, ao fazer-se o Mediador, constitui-se, na verdade, em Interventor, gerenciando a educao que ele julga necessria e desejvel e no exatamente aquela que o grupo social deseja. Na perspectiva do modelo hegelo-marxiano da oposio Estado versus sociedade, podemos perceber que, embora aquele deva constituir-se na instncia poltico-administrativa desta, sua ao d-se no sentido de manter e perpetuar essa estrutura social; para aqueles que se prope s atividades de transformao da estrutura social, abrem-se, portanto, duas perspectivas de ao: trabalhar com as armas polticas do prprio Estado, sustentados por uma concepo filosfica que, se afasta-se radicalmente daquela que exprime essa estrutura social, em ltima instncia no abandona a lgica que estrutura essa concepo; tal parece ser a situao dos socialismos marxiano e marxista, que defendem

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    o "assalto ao Estado" como arma para a transformao. A outra perspectiva seria buscar a transformao j nos prprios meios, assumindo armas de luta que no so as mesmas usadas pela estrutura social vigente; no caso especfico, negando o prprio Estado de antemo, e no apenas aps a tomada do poder social, o que, em linhas gerais, carateriza a situao do socialismo libertrio, ou anarquismo. No contexto educacional em geral, e no da educao pblica tambm, os conceitos anarquistas representam um novo paradigma de pensamento, pois afastam-se tanto do liberalismo ou neo-liberalismo quanto das vises socialistas de inspirao marxista. Assumir a perspectiva anarquista no significa negar a eficincia de nenhuma das outras, mas sim a tentativa de um caminho diferente que, se traz determinadas inovaes, no deixa de apresentar tambm suas dificuldades, como o assumir abertamente a luta contra o Estado, com toda as conseqncias que ela deva trazer. No paradigma anarquista, a educao pblica no e nem deve ser uma funo do Estado, mas sempre uma responsabilidade da comunidade, da sociedade. Assim, cada grupo social deve se auto-organizar para constituir seu sistema de ensino, definindo-lhe os contedos, a carga-horria, a metodologia, os processos de avaliao etc., sempre num regime de autogesto. A ao poltico-pedaggica norteada por este outro paradigma implica, claro, numa responsabilidade imensamente maior de toda sociedade e em muito mais trabalho por parte de todos, estejam diretamente envolvidos com a escola ou no. Tal responsabilidade ganha contornos ainda mais abrangentes ao lembrarmos que estamos, todos, acostumados a esperar do Estado paternalista a resoluo dos nossos problemas. O paradigma anarquista apresenta tambm os seus problemas, talvez mais complexos at, mas problemas que devem ser encarados de frente, do mesmo modo que deixar a adolescncia assumindo cada vez mais as responsabilidades pela maturidade da "idade da razo" tampouco um processo simples e sem traumas, mas do qual no podemos jamais fugir...

    A EDUCAO PBLICA COMO FUNO DO ESTADO Slvio Gallo

    Artigo publicado em Comunicaes - Revista do Ps-Graduao em Educao da Unimep, 1998 1. Instruo Pblica: origens histricas A histria da educao mostra-nos que, de modo geral, a instruo quase sempre foi, em maior ou menor grau, um assunto mais prximo da sociedade que do Estado - salvo, talvez, nas burocracias orientais analisadas por Weber. A educao foi, durante a maior parte da histria, um assunto do mbito privado, e no do pblico. A ingerncia do Estado nas questes de educao comea a ganhar vulto a partir do sculo dezoito, concomitante com a idia do desenvolvimento de sistemas nacionais de educao, ligados aos processos poltico-sociais de consolidao dos Estados nacionais europeus, instncias que culminariam com o sistema de instruo pblica instalado com a Revoluo Francesa e que se estenderia depois pelo mundo. As razes da educao pblica encontram-se, porm, alguns sculos antes. Numa obra clssica sobre o tema, "Histria da Educao Pblica", Lorenzo Luzuriaga aponta quatro diferentes perfis dela que sucedem-se historicamente: a educao pblica religiosa, a estatal, a nacional e a democrtica. Enquanto a primeira, que vicejou entre os sculos dezesseis e dezessete tendo por base a Reforma Protestante, tinha como objetivo explicito a formao do bom cristo atravs da disseminao da

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    alfabetizao para a leitura da Bblia na lngua nativa - apresentando j, portanto, um carter nacionalista -, a segunda, que floresceu durante o sculo dezoito baseada nos ideais do Iluminismo visava formao do sdito, tanto o militar quanto o funcionrio; marcada que era pelo despotismo esclarecido, constitua-se numa educao autoritria, de carter disciplinar, mas tambm intelectual. A grande virada que marca a gnese da instruo pblica que nos interessa mais de perto acontece, segundo esse autor, ainda no sculo dezoito, estendendo-se tambm pelo seguinte; a Revoluo Francesa a grande desencadeadora do terceiro tipo de educao pblica, a nacional, que tem por objetivo a formao do cidado, constituindo-se numa instruo cvica e patritica do indivduo, com um carter popular, elementar e primrio. O quarto e ltimo tipo, a educao pblica democrtica , ainda de acordo com Luzuriaga, o desenvolvimento natural da anterior, marcada pelo crescimento da participao popular nas toma de deciso, processo que estende-se do sculo dezenove ao vinte. Esse quarto e ltimo tipo de educao pblica teria por meta a formao do homem completo, independentemente de sua posio econmica; apresenta um carter humanizador e aculturador, procurando levar um maior nvel ao maior nmero de homens possvel. Atravs desse brevssimo esboo, podemos perceber que a origem da instruo pblica repousa no movimento de Reforma Protestante, tendo em Martinho Lutero um dos seus principais expoentes. Embora essa educao tenha objetivos eminentemente religiosos, em alguns momentos saltam aos olhos tambm suas preocupaes sociais; este o caso de um escrito de Lutero de 1530, o "Sermo para que se enviem as crianas s escolas": "Sustento que a autoridade responsvel por obrigar os sditos a que mandem os filhos escola. Pois est indubitavelmente obrigada a conservar os cargos e empregos antes mencionados, para que haja pregadores, jurisconsultos, procos, escrives, mdicos e professores, pois no podemos prescindir deles. Se a autoridade pode obrigar os sditos que sejam capazes, em tempo de guerra, a manejar o mosquete e a lana, a assaltar muralhas e fazer coisas semelhantes, com muito mais razo pode e deve obrigar os sditos a mandar os filhos s escolas, porque nas escolas se sustenta mais dura guerra com o temvel demnio..." Ainda que religiosa - a escola como lugar da "guerra contra o demnio" - a educao pblica preconizada por Lutero j mostra preocupaes sociais, como a necessidade de instruo para a proviso de determinados profissionais que no podem ser formados na mais completa ignorncia. Obviamente, essa escola mantm fortes interesses classistas, pois no seriam os mais humildes homens do povo que tornar-se-iam jurisconsultos, mdicos, professores, procos... a eles bastaria os rudimentos da leitura para o contato purificador e pacificador com as escrituras. Esse perfil classista e pouco democrtico da educao pblica incipiente perdura por um bom tempo. Na Alemanha, por exemplo, em fins do sculo dezessete, o sistema de ensino previa trs nveis de escolas: a. escolas primrias: de carter estritamente religioso, eram destinadas ao povo em geral e as aulas eram ministradas em alemo; b. escolas latinas (ou secundrias): de carter humanista, eram destinadas aos burgueses, com aulas em latim; c. escolas superiores (universidades): de carter profissional e eclesistico, baseadas na religio reformada.

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    Essa necessidade de uma educao que abrangesse a totalidade da populao, obedecendo, porm, s especificidades de cada classe social foi defendida tambm por aquele que foi, qui, o maior terico da educao no perodo, o morvio Jan Ams Comenius: "Aqueles que, alguma vez, devero ser postos cabea dos outros, como os reis, os prncipes, os magistrados, os procos e os doutores da Igreja devem embeber-se de sabedoria to necessariamente como o guia dos viajantes deve ter olhos, o intrprete deve ter lngua , a trombeta, som e a espada, gume. De modo semelhante, tambm os sditos devem ser esclarecidos, para que saibam obedecer prudentemente queles que governam sabiamente: no coagidamente, com uma sujeio asinina, mas voluntariamente, por amor da ordem. Com efeito, a criatura racional no deve ser conduzida por meio de gritos, de prises e de bastonadas, mas pela razo. Se se procede de modo diverso, a ofensa redunda contra Deus que tambm nele deps sua imagem; e as coisas humanas estaro cheias, como de facto esto, de violncias e inquietao. "Fique, portanto, assente que a todos aqueles que nasceram homens necessria a educao, porque necessrio que sejam homens, no animais ferozes, nem animais brutos, nem troncos inertes. Da se segue tambm que, quanto mais algum educado, mais se eleva acima dos outros." Com o processo de secularizao do Estado e formao dos Estado-naes europeus, a educao pblica religiosa ganha cada vez mais os contornos de um educao estatal; como o Estado comea a regulamentar e a exigir a presena das crianas - e mesmo adultos - nas escolas, comea tambm a delinear o aparelho educativo de acordo com seus interesses prprios. Em uma outra obra, o mesmo Luzuriaga afirma que a educao do sculo dezoito pode ser sintetizada atravs das seguintes linhas de ao: "1) Desenvolvimento da educao estatal, da educao do Estado, com maior participao das autoridades oficiais no ensino. "2) Comeo da educao nacional, da educao do povo pelo povo ou por seus representantes polticos. "3) Princpio da educao universal, gratuita e obrigatria, no grau da escola primria, que fica estabelecida em linhas gerais. "4) Iniciao do laicismo no ensino, com a substituio do ensino de religio pela instruo moral e cvica. "5) Organizao da instruo pblica em unidade orgnica, da escola primria universidade. "6) Acentuao do esprito cosmopolita, universalista, que une pensadores e educadores de todos os pases. "7) Sobretudo, da primazia da razo, a crena no poder racional na vida dos indivduos e dos povos. "8) Ao mesmo tempo, reconhecimento da natureza e da intuio na educao." A influncia do Estado na educao cresce principalmente na Alemanha, de certo modo ainda sob influncia de Lutero e de suas escolas dominicais, esse profundo esforo de alfabetizao popular para

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    acelerar sua converso, ainda que distanciando-se sensivelmente do projeto pedaggico-religioso do monge protestante. Sob o reinado de dois Fredericos, os Kaisers Frederico Guilherme I e Frederico Guilherme II, implementa-se um sistema estatal de ensino, com vistas formao de competentes soldados e bons sditos, que seriam os pilares de um Estado prussiano forte e engrandecido. Esse sistema germnico j preconizava a laicizao da escola, paralelamente a sua obrigatoriedade: "todo pai tem o dever de mandar seu filho escola". Se o primeiro Frederico aproveita-se da estrutura das escolas religiosas, reformando-as a seu modo atravs de sucessivas leis de ensino, seu sucessor, Frederico Guilherme II, vai promover a total secularizao da escola, tornando-a plenamente estatal, embora no abandone o ensino de religio, agora porm submetido aos interesses do Estado. No Cdigo Geral Civil publicado em 1794 sob seu reinado, l-se: "As escolas e universidades so instituies do Estado, que tm por fim a instruo da juventude nos conhecimentos teis e cientficos. Todas as instituies escolares e de educao, pblicas ou particulares, esto submetidas inspeo do Estado e acham-se sujeitas, a qualquer tempo, a seus exames e visitas de inspeo... A ningum pode ser negada admisso na escola pblica pela diferena de confisso religiosa... As crianas que devem ser educadas, pelas leis do Estado, em outra religio que a ensinada na escola pblica, no podem ser obrigadas a freqentar o ensino religioso que este d." Tambm, em Frana, cuja educao estava principalmente em mos de congregaes religiosas, dos jesutas em especial, a educao estatal comea a ser alvo de significativos esforos governamentais, ainda no sculo dezoito, impulsionada pelos ideais iluministas, pleiteada por pensadores de vulto, como Voltaire ou Diderot, por exemplo. Paralelamente implementao de um sistema estatal de ensino que tornasse a educao parte da esfera pblica e no apenas da privada, mas afastando-se dos interesses unicamente religiosos, desenvolvia-se a discusso em torno da necessidade de desenvolver-se um ensino nacional, que tivesse por finalidade gerar na populao o sentimento do civismo e do patriotismo, possibilitando a consolidao do Estado-nao atravs de laos mais fortes que os estritamente polticos. Tambm essa discusso fomentada e alimentada pelos filsofos iluministas; mas mesmo Rousseau, um "outsider" do Iluminismo, mostrando o carter da poca, anuncia, em suas "Consideraes Sobre o Governo da Polnia" que s um povo livre pode ter uma educao nacional, ao mesmo tempo em que ela prpria quem garante a liberdade deste povo: "A educao nacional no pertence seno aos povos livres... A educao que deve dar s almas a forma racional e dirigir -lhes de tal modo opinies e gostos, que sejam patriotas por inclinao, por paixo, por necessidade." A conjuno desses dois processos - progressiva ingerncia do Estado nas questes de educao e constituio de uma educao cvica que desenvolvesse o senso de nacionalidade - a grande responsvel pelos primitivos delineamentos do sistema de ensino pblico que perdura at nossos dias. Sua gnese d-se em fins do sculo dezoito, com a Revoluo Francesa; nesse momento histrico e poltico, a educao estatal do despotismo esclarecido iluminista baseado na formao do bom sdito do Estado perde a razo de ser, tomando seu lugar a necessidade de preparar, atravs da instruo pblica, o cidado, aquele que deve participar ativamente da vida de sua nao. Se a educao pblica estatal nascia como resultado do processo de secularizao do Estado, essa nova modalidade aparece como resultado de sua progressiva democratizao.

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    No podemos imaginar, entretanto, que esse processo mecnico e simples; ao contrrio, resultado de tumultuadas discusses e reivindicaes que permearam os diversos momentos polticos da Revoluo Francesa. Esto j presentes como queixas populares (do Terceiro Estado) nos "Cahiers de Dolances" os registros das queixas dirigidas aos Estados Gerais. Como mostra Antoine LON, muitas reclamaes eram dirigidas contra a instruo eminentemente religiosa oferecida aos camponeses, embora alguns dos redatores julgassem oportuna essa situao, pois "a ignorncia dessa ordem baixa no somente til, como necessria, para preencher e prover a todos as necessidades da sociedade..." Esses "Cahiers" so extremamente heterogneos, por um lado devido s diferenas regionais e, por outro, devido prpria constituio do Terceiro Estado, composto por toda a sociedade francesa com exceo da nobreza e do clero: dos burgueses alijados dos direitos polticos aos despossudos de toda ordem. Assim, so mltiplas as queixas e muitas as exigncias, das mais diversas ordens. Durante o processo da Revoluo, essas questes vo ser exaustivamente examinadas e trabalhadas, com as discusses sendo embaladas de acordo com o momento poltico; muitas posies so assumidas e abandonadas, no processo de criao de um sistema estatal e nacional de ensino que se coloque de acordo com os preceitos da "Declarao Universal dos Direitos do Homem e do Cidado", adotada pela Assemblia Constituinte em 26 de agosto de 1789. Na Assemblia Constituinte, Mirabeau e Talleyrand foram as figuras que mais se destacaram em matria de educao; o segundo chegou a redigir um " Relatrio e Projeto de Decreto", que apresentou Assemblia em 1791 e onde sistematiza suas idias sobre a educao e como a Revoluo deve caminhar nesse aspecto especfico. Segundo ele, a nova Constituio - que institui uma nova sociedade - exige um novo sistema de educao, uma educao que seja a garantia da liberdade, pois "os homens declaram-se livres; no se sabe, porm, que a instruo amplia sem cessar a esfera da liberdade civil, e s ela pode sustentar a liberdade poltica contra todas as espcies de despotismo?" A educao , ainda, a possibilitadora da igualdade de fato: "Os homens so reconhecidos iguais; e no entanto como essa igualdade ser pouco sentida, ser pouco real, em meio a tantas desigualdades de fato, se a instruo no fizer, sem cessar, um esforo para restabelecer o nvel ou para ao menos minorar as funestas disparidades que ela no pode destruir!" Segundo Eliane Lopes - em "Origens da Instruo Pblica", os princpios bsicos da educao proposta por Talleyrand podem ser assim resumidos: "1) Ela deve existir para todos, pois j que ela um dos resultados, tanto quanto uma das vantagens da associao, deve-se concluir que ela um bem comum dos associados: ningum pode legitimamente ser excludo, e aquele que tem menos propriedades privadas, parece mesmo ter um direito maior de participar desta propriedade comum. "2) Esse princpio se liga a outro. Se cada um tem o direito de receber os benefcios da instruo, cada um tem reciprocamente o direito de contribuir para sua difuso. "3) A instruo, quanto ao seu objetivo deve ser universal . "4) A instruo deve existir para um e para outro sexo. "5) Enfim ela deve existir para todas as idades ."

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    Se o relatrio de Talleyrand toca em pontos importantes para a consolidao da instruo pblica, como sua necessria universalidade nos mais diversos aspectos, a garantia da liberdade e da igualdade etc., deixa de tocar em um ponto fundamental, a obrigatoriedade deste ensino. Dada a intransigente defesa da liberdade, a obrigatoriedade do ensino tambm no estaria presente no prximo relatrio sobre a educao, desta vez apresentado por Condorcet, em 1792, j a uma nova instncia da Revoluo, a Assemblia Legislativa. Condorcet inicia seu relatrio definindo j o carter da educao revolucionria: sua publicizao, sua universalidade, sua capacidade de promover a igualdade. "Oferecer a todos os indivduos da espcie humana os meios de prover a suas necessidades, assegurar seu bem-estar, conhecer e exercer seus direitos, compreender e cumprir seus deveres; assegurar a cada um a faculdade de aperfeioar seu engenho, de capacitar-se para as funes sociais a que h de ser chamado, desenvolver toda a extenso de aptides, recebidas da natureza, e estabelecer, desse modo, entre os cidados, uma igualdade de fato e dar realidade igualdade poltica reconhecida pela lei; tal deve ser a primeira finalidade de uma instruo nacional que, desse ponto de vista, constitui para o poder pblico um dever de justia." Mesmo no impondo a obrigatoriedade do ensino, Condorcet est preocupado com sua abrangncia, e procura instituir a gratuidade, pelo menos em alguns nveis, como forma de fomentar a maior assiduidade possvel do maior nmero de cidados; se a Constituio j previa a gratuidade do primeiro dos quatro nveis da instruo, prope ele que essa gratuidade seja estendida para todos os nveis, como forma de, ao garantir o desenvolvimento das habilidades dos mais pobres, possibilitar nao uma maior prosperidade. Sua justificativa: "...(a gratuidade) um meio no s de assegurar Ptria mais cidados em estado de a servir e cincia, mais homens capazes de contribuir para o seu progresso, mas ainda de diminuir essa desigualdade que nasce da diferena das fortunas e fundir entre si as classes que esta diferena tende a separar. "A ordem da natureza no estabeleceu na sociedade outra desigualdade, alm da que fundada na instruo e na riqueza e alargando a instruo atenuaremos ao mesmo tempo os efeitos destas duas causas da distino." Sem nos aprofundarmos nos meandros poltico-sociais deste processo de construo do sistema pblico de ensino em Frana, o que fugiria dos limites impostos pelos objetivos do presente trabalho aos quais podemos ter fcil acesso atravs das obras aqui citadas, importante ressaltar que, se a Revoluo Francesa no chega propriamente a instalar um sistema pblico de ensino em sua completude, fornece as bases polticas e sociais, tericas e prticas para que ele se consolide ao longo do sculo dezenove em toda a Europa. Na perspectiva de Luzuriaga, esse sistema de ensino nacional que evolui para o atual sistema de instruo pblica que conhecemos no sculo vinte e ao qual ele denomina democrtico, por contemplar, alm de todas as caractersticas j citadas, a gratuidade, o que possibilita sua extenso a todas as camadas da populao, independente de suas rendas especficas. Recorramos uma vez mais obra de Eliane Lopes, para uma viso sistematizada dos princpios pedaggicos estabelecidos pela Revoluo Francesa, baseados principalmente nos relatrios de Talleyrand e Condorcet:

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    "1 - a instruo assume um papel importante na promoo social dos indivduos, ao ser considerada um instrumento a partir do qual os indivduos adquiriro os meios de proverem as suas necessidades, de conseguirem o seu bem-estar; "2 - o cidado deve ser bem instrudo para que cumpra seus deveres e defenda seus direitos; "3 - o homem um ser perfectvel; assim, a instruo dever desenvolver os dons naturais de cada indivduo, para que este colabore para o progresso contnuo da humanidade; "4 - a instruo todo-poderosa; cabe a ela estabelecer a igualdade de fato (aquela que superar a desigualdade econmica) e tornar real a igualdade poltica, j estabelecida em lei." Salta aos olhos que estes pontos representam a base do projeto liberal de educao, com seus principais cnones, a defesa da educao como meio de ascenso social e fonte de igualdade, motor do progresso individual e da humanidade e base do civismo. Alm disso, tanto o relatrio Talleyrand quanto o de Condorcet defendiam a universalidade do ensino, embora o primeiro falasse nela referindo-se ao contedo da instruo e o segundo, pensando em sua clientela. Nesta perspectiva, de extrema importncia que percebamos os objetivos implcitos da publicizao do ensino, tambm explicitados pela autora: "O caso da publicizao da instruo significa, ao mesmo tempo, a retirada do controle ideolgico das mos da Igreja, passando-o ao Estado burgus, o atendimento de reivindicaes do Terceiro Estado e ainda a necessidade de recuperar o aparelho escolar, colocando-o em consonncia com o processo de industrializao incipiente e com a nova concepo de mundo." O prprio Condorcet, ao mesmo tempo em que propunha a gratuidade em todos os nveis da instruo, estabelecia tambm seu estrito controle pelo Estado, em dois nveis: primeiro, fazendo a seleo, contratao e alocao dos professores e, segundo, indicando os livros e materiais pedaggicos a serem utilizados. Se isso visa a garantir a universalidade e uniformidade do ensino em toda a nao, tem tambm o carter implcito do controle ideolgico: o Estado no abre mo de escolher e determinar quem vai trabalhar, onde vai trabalhar, com o que vai trabalhar e como vai realizar esse trabalho. Alm do controle ideolgico por parte do Estado, no podemos tambm deixar de perceber a gnese ideolgica do sistema pblico de ensino: " fundamental perceber, alm disso, que suas obras pedaggicas expressam a viso de mundo prpria de sua classe, e captar, a partir do trabalho particular de cada autor, de que forma essa viso de mundo se expressa pedagogicamente." 2. Estado e Educao no Brasil: brevssimas consideraes As relaes do Estado com a educao no Brasil so por vezes obscuras e freqentemente ambguas. Sem dvida, a principal questo que perpassa essas relaes a da publicizao ou privatizao do ensino, que hoje encontra eco nas propostas que se auto-intitulam "neo-liberais" e advogam a desestatizao das escolas, abrindo-as plenamente iniciativa privada. As contradies deste neo-liberalismo so apontadas e suas consideraes desmontadas, tanto pelo aspecto terico quanto pelo prtico, na exposio que Demerval Saviani realizou durante a 6 Conferncia Brasileira de Educao, intitulada "Neo-liberalismo ou ps-liberalismo? Educao pblica,

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    crise do Estado e democracia na Amrica Latina". Aps demonstrar que, tanto histrica quanto conceitualmente, a educao pblica a regra geral do liberalismo, considerando-se que o Estado deve ser o seu organizador e o seu gestor, o educador conclui que, longe de ser neo-liberal e moderna, essas posies hoje apregoadas melhor se caracterizariam pelos eptetos "ps-liberal" e "ps-moderna", com toda a carga de ambiguidades e dissoluo conceitual que eles acarretam. Essa discusso entre ns no , entretanto, nova. Ela permeia toda a histria da educao no Brasil, da colnia at nossos dias. Para situ-lo brevemente na tentativa de sua compreenso, tomaremos alguns momentos bsicos onde ela aparece de forma mais explcita. O primeiro momento que nos chama a ateno , ainda durante o perodo colonial, aquele das reformas pombalinas, aguando as rivalidades entre o Estado portugus e a Igreja, particularmente os jesutas, na segunda metade do sculo dezoito. Sabemos da importncia dos jesutas para o estabelecimento de um sistema de educao no Brasil. Chegados ao pas meio sculo aps seu descobrimento e uma dcada aps a fundao de sua Companhia de Jesus, esses padres tinham a funo original de converter os ndios, levando a eles a f crist. Entretanto, a vocao jesutica para a educao que se cristalizaria teoricamente na famosa "Ratio atque Instituto Studiorum Societas Jesu", promulgada definitivamente em 1599 e na prtica nas escolas de todos os nveis que estavam criando em vrias partes do mundo, fez com que eles se dedicassem, tambm no Brasil, educao em geral e no apenas catequizao dos ndios. O primeiro colgio jesuta no Brasil foi fundado ainda em 1550, apenas um ano aps sua chegada, na ento sede do governo, a capitania da Bahia. A este, vrios se seguiram, oferecendo cursos dos nveis mais elementares at o superior, com o ensino de Artes, Humanidades e Teologia, principalmente. Com a consolidao destas escolas, os jesutas comearam a reivindicar a extenso dos privilgios das escolas da metrpole para as da colnia. Nos sucessivos debates que se seguiram na busca do reconhecimento destes cursos, uma questo foi importante para a delimitao dos limites do pblico e do privado na educao brasileira, aquela que ficou conhecida historicamente como a "questo dos moos pardos", posto que esses se viram impedidos de estudar no Colgio da Bahia. Segundo Luiz Antnio Cunha, ela pode ser assim caracterizada: "Iniciou-se uma disputa entre o Estado e a Companhia de Jesus. O Estado dizia que os colgios eram pblicos porque sua atividade era subsidiada pelo Estado. No podiam, portanto, impedir admisso de candidatos de qualquer categoria social. A Companhia, por seu lado, dizia que a subveno do Estado era destinada converso dos indgenas, e seus colgios (principalmente os cursos de humanidades e os superiores) eram atividades adicionais, particulares. E sendo particulares, podiam escolher seus destinatrios como lhes aprouvessem." Vencidas essas dificuldades, as escolas jesutas floresceram e, sem exagero, dominaram plenamente a educao colonial at a segunda metade do sculo dezoito, quando principia o assim chamado perodo pombalino, dada a ao poltica do Marqus de Pombal em Portugal, que teve na expulso da Companhia de Jesus uma de suas aes centrais. So conhecidos os motivos e os atos de Pombal em sua tentativa de modernizao e industrializao de Portugal; deter-nos-emos aqui apenas nos efeitos da expulso dos jesutas para o sistema de ensino brasileiro. A sada dos jesutas da colnia significaria a completa desarticulao do sistema educacional escolar; sem jesutas, no haveria escolas no Brasil. Este era um grande problema para Pombal, como aponta Leonardo Trevisan:

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    "Contudo, o quadro que Pombal enfrentava era tenso e complexo. Por um lado, precisava eliminar o poder rebelde dos Jesutas e, por outro, precisava colocar um 'outro poder' nesse lugar. A opo natural - a expulso da Ordem - resolveu um aspecto do problema; manteve-se o outro: obter uma alternativa a esse poder. O jesuta conduzia o processo educacional na Colnia e, uma vez expulsa a ordem, outro processo educacional deveria ocupar o espao." Este "outro poder" oportunamente encarnado pelo Estado metropolitano que, aberto que estava para a modernidade europia, incorpora partes de discursos sobre a ao do Estado na educao e resolve ocupar o vcuo que seria deixado com a sada dos jesutas, pelo menos no que diz respeito ao controle e gesto administrativa do sistema escolar. Tal ao do Estado d-se, primordialmente, atravs do "Alvar Rgio de 28 de junho de 1759, em que se extinguem todas as Escolas reguladas pelo mtodo dos jesutas e se estabelece um novo regime. Diretor dos Estudos, Professores de Gramtica Latina, de Grego e Retrica". Esse documento oficial, ao decretar fechadas todas as escolas jesuticas no territrio colonial, faz uma dura crtica ao mtodo da "Ratio Studiorum": "... Tenho considerao outrossim a que, sendo o estudo das Letras Humanas a base de todas as Cincias, se v nestes Reinos extraordinariamente decados daquele auge, em que se achavam quando as aulas se confiaro aos Religiosos Jesutas; em razo de que estes com o escuro, e fastidioso Mtodo, que introduziro nas Escolas destes Reinos, e seus Domnios, e muito mais com a inflexvel tenacidade com que sempre procuraro sustent-lo contra a evidncia das slidas verdades, que lhe descobriro os defeitos e os prejuzos do uso de um Mtodo." Feitas as crticas e extintas as escolas, cabe Coroa que instale um novo sistema de ensino, e exatamente essa a linha pela qual segue o mesmo "Alvar Rgio":

    "... Sou servido da mesma sorte ordenar, como por este ordeno,$que no ensino das Classes, e no estudo das Letras Humanas haja uma geral reforma, mediante a qual se restitua o Mtodo antigo, reduzido aos termos simples, e de maior facilidade, que se pratica actualmente pelas naes polidas da Europa; conformando-me, para assim determinar, com o parecer dos Homens que doutos e instrudos neste gnero de erudies..." Com essa ao intensiva, o Estado portugus assume definitivamente o controle da educao colonial. A criao da figura do "Diretor dos Estudos" deixa bem clara, no mesmo "Alvar" a inteno da Coroa de uniformizar a educao na Colnia e fiscalizar a ao dos professores - desde j por ela nomeados - do material didtico por eles utilizado - tambm devidamente "recomendado" no mesmo documento - de modo a que no houvesse choque de interesses - isto , que no houvesse nenhum outro poder, como era o dos jesutas, a afrontar as determinaes da Coroa. Foi de quase trinta anos o tempo de que o Estado portugus necessitou para assumir o controle pedaggico da educao a ser oferecida em terras brasileiras; da completa expulso dos jesutas e do desmantelamento sistemtico de seu aparelho educacional, dos mtodos aos materiais didticos, at a nomeao de um Diretor Geral dos Estudos que deveria, em nome do Rei, nomear professores e fiscalizar sua ao. A educao no Brasil passa a ser uma questo de Estado. Desnecessrio frisar que este sistema de ensino cuidado pelo Estado servia a uns poucos, em sua imensa maioria, filhos das incipientes elites coloniais.

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    Um segundo momento importante para a compreenso das relaes Estado versus Educao no Brasil novamente um perodo de rupturas polticas e scio-culturais. Aps o grande impacto das reformas pombalinas, quando o Brasil declara sua independncia poltica de Portugal que a educao novamente lanada para a linha de frente das discusses. Tratava-se agora da necessidade da formao de quadros administrativos, da constituio de uma nova elite burocrtica que substitusse a administrao lusitana. Assim Leonardo Trevisan comenta o perodo: "Em carter de absoluta urgncia, o Estado recm-independente desenvolveu um processo educacional cujo primeiro objetivo foi a formao de quadros dirigentes em substituio queles que voltaram para a Metrpole. Com os recursos possveis, porm com a urgncia pedida, os Cursos Jurdicos formaram o juiz e o burocrata da administrao, escolhido, selecionado da classe dirigente local, da elite existente. A Escola os disciplinou para o exerccio do poder, atenta a todas as necessidades do Estado, formando os seus agentes." Tal preocupao do agora estado imperial brasileiro acabaria por consolidar como sua principal realizao a Academia de Direito do Largo de So Francisco, aps intensos debates parlamentares que delinearam os contornos do projeto. O Estado, obviamente, tomou as devidas precaues para o controle do ensino oferecido pela Academia: "A vigilncia estendia-se escolha dos 'lentes' que deveriam estar absolutamente concordes com os objetivos para a criao dos Cursos Jurdicos. Como se observa, os cuidados eram grandes, visando que a Escola de Direito cumprisse, rigorosamente, os desgnios do Estado de formar uma camada dirigente, um exrcito de fiis funcionrios que administrassem o Pas, que distribussem justias em um espao geogrfico de tamanhas propores." Lus Antnio Cunha aponta que nesse perodo, em que pese o processo largamente difundido a nvel mundial de publicizao e secularizao do ensino, no Brasil a educao prosseguia sob influncia da religio, dada a aliana constitucional da Igreja Catlica com o Estado. A linha geral era a da regulamentao do ensino estatal, deixando o aparelho particular - que com a sada dos jesutas perdeu quase a totalidade de sua importncia - funcionando por sua prpria conta e ordem. O ensino estatal, por sua vez, estava dividido em duas esferas: "A primeira era a esfera nacional, compreendendo os estabelecimentos criados por lei da Assemblia Geral. A segunda esfera, provincial, compreendia os estabelecimentos de ensino criados pelas assemblias provinciais. Na prtica, houve uma correspondncia entre essas esferas de competncia e graus de ensino. A esfera nacional abrangia as escolas que ministravam ensino primrio e mdio, no municpio da corte, e superior em todo o pas; a esfera provincial, as que se dedicavam ao ensino primrio e mdio nas provncias. "A esfera nacional tinha grande importncia, pois possua o poder de conferir ttulos acadmicos dotados de validade jurdica em todo o pas. O diploma de ensino secundrio da esfera nacional, o do Colgio Pedro II, dava direito ao ingresso em qualquer escola de grau superior, enquanto os egressos das escolas secundrias da esfera provincial eram obrigados prestao de exames de habilitao junto quelas escolas." Vemos, assim, que o ensino estatal brasileiro ficava circunscrito quase que apenas ao ensino superior, embora sua influncia se estendesse aos demais nveis dada a necessidade de seleo para o ingresso em sua escolas. Tal fato gerou diversos manifestos e movimentos em nome da liberdade de ensino, no qual os representante das escolas particulares reivindicavam a no regulamentao pelo Estado, discusso que arrastou-se sem maiores conseqncias prticas por longo tempo. Deste modo, a

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    educao estatal continuava atendendo a uma minoria, ainda bastante longe dos ideais de publicizao, gratuidade e obrigatoriedade do ensino bsico que j grassavam pela Europa. A preocupao com a publicizao do ensino bsico vai disseminar-se em um terceiro momento, o do advento da repblica. Embalado que foi pelos ventos de "modernidade" europeus, de cunho eminentemente positivista, o iderio republicano incorporou a defesa do ensino bsico como responsabilidade do Estado. Certamente mais por ver no Estado o promotor necessrio da ordem social que seria o nico caminho para o progresso do que por julgar que fosse esse um direito bsico do cidado; republicanos liberais e esclarecidos, entretanto, como foi o caso de Caetano de Campos que exerceu importante ao na educao pblica em So Paulo. defendia o carter humanitrio e cvico da educao pblica, afilado com os debates que j um sculo antes animaram as Assemblias durante a Revoluo Francesa. Sobre os vnculos entre educao e Estado, ele escreveu: "A democratizao do poder restituiu ao povo uma tal soma de autonomia que em todos os ramos da administrao hoje indispensvel consultar e satisfazer suas necessidades. J que a revoluo entregou ao povo a direo de si mesmo, nada mais urgente do que cultivar-lhe o esprito, dar-lhe a elevao moral de que ele precisa, formar-lhe o carter para que saiba querer (...) A instruo do povo , portanto, sua maior necessidade. Para o governo, educar o povo um dever e um interesse: dever porque a gerncia dos dinheiros pblicos acarreta a obrigao de fornecer escolas; interesse, porque s independente quem tem o esprito culto, e a educao cria, avigora e mantm a posse da liberdade." Fica claro, pois, que a aplicao do iderio liberal-positivista dos republicanos brasileiros passava por uma slida ao do Estado no campo educacional; entretanto, seria um contra-senso inibir ou proibir a ao de particulares na educao. A ao do Estado justificava-se, porm, dada a insuficincia dos esforos privados para suprir toda a demanda por escolas da populao. O Estado deveria reservar-se, por outro lado, o direito de fiscalizao sobre as escolas, para garantir uma ao didtico-pedaggica eficaz, tanto nas escolas sob a tutela quanto nas escolas mantidas pela iniciativa privada. Uma boa idia dessa ao dada por Bernardino de Campos, presidente do Estado de So Paulo durante a reforma do ensino de 1895: "O Governo tem prestado a devida ateno aos livros adotados e a adotar para o ensino e se esfora por desenvolver entre ns este utilssimo gnero de literatura, que muito convm aclimar no ponto de vista educativo e cvico." E, mais adiante: "Produziu os melhores resultados a exposio escolar, organizada no edifcio da Praa da Repblica, demostrada a bem orientada direo dos mestres e o aproveitado esforo dos alunos. Chamo a vossa ateno para a necessidade de proporcionar aos inspetores de distrito os recursos para que possam exercer a fiscalizao indispensvel manuteno do regime estabelecido." No podemos imaginar, porm, que esse perodo que acabaria sendo caracterizado pelos historiadores da educao como o de "entusiasmo pela educao" foi marcado apenas e to somente por uma efetiva e direta ao do Estado na educao, o que essa ao se deu de modo "desinteressado" e sem presses populares. Por trs do "entusiasmo" republicano, embalado pelo positivismo e pelos ideais da burguesia esclarecida europia que viam na educao o caminho da civilidade e da cidadania, estavam as presses e reivindicaes populares, que apareceriam cristalizadas nos discursos e publicaes do incipiente movimento operrio brasileiro, fruto dos primeiros esforos de industrializao do pas.

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    Fundamentais para esse processo e exemplos sintomticos das reaes populares mais esclarecidas ao governamental no mbito educacional fora as aes dos socialistas na virada do sculo e dos comunistas a partir da dcada de vinte; o hiato de duas dcadas foi preenchido por uma ao hegemonicamente anarquista no movimento operrio brasileiro que, como temos visto, pauta-se por um afastamento ttico e metodolgico do Estado, inclusive na questo educacional. Os socialistas parecem partilhar com os liberais positivistas seu "entusiasmo pela educao"; os motivos, porm, so outros. Se os primeiros vem na educao o caminho da construo da cidadania, da participao poltica numa sociedade liberal que marcada pela diferena de classes, embora a "igualdade de oportunidades" seja tomada por princpio, os outros a tm como um veculo necessrio para a tomada de conscincia destas diferenas sociais e a conseqente opo por sua transformao. Enquanto os liberais querem com a educao preparar pessoas que possam bem servir comunidade e tomam o Estado como seu necessrio organizador e controlador, os socialistas exigem do Estado que o dinheiro arrecadado com os impostos seja revertido em benefcios bsicos para a populao em geral, especialmente para os menos favorecidos, sendo a educao um desses benefcios. O que fazem os socialistas levar ao extremo a concepo de Estado dos liberais, cobrando sua coerncia e consistncia. Se o Estado tem a funo de administrar com justia os esforos sociais, garantindo a igualdade de oportunidades e a liberdade de ao, deve necessariamente garantir a educao pblica, laica e gratuita para todos e no para alguns privilegiados apenas. Este o mote do discurso socialista, que aparece em diversos artigos publicados na imprensa operria, como neste do jornal "Echo Operrio", de Porto Alegre (n 57, de 19/09/1897): "Ora, os governos republicanos que em seus manifestos tanto blasonam de defensores da instruo, pouco ou nada melhoram a instruo e o povo continua pagando, como se realmente estivesse bem servido, quando apenas tem uma pssima instruo primria para as crianas e nenhuma escola para os adultos. Aqui no Rio Grande, se bem que temos professores muito dedicados ao magistrio e muito ilustrados, so, entre tanto, insuficientes para atenderem ao nmero de alunos, razo pela qual existem muitos colgios particulares que levam a melhor parte dos ganhos exguos e as vezes miserveis dos operrios amigos de se instrurem." A reivindicao da educao pblica bsica, no apenas para as crianas, mas tambm para os trabalhadores desejosos de instruo, aparece primeiramente como uma tentativa de minorar a situao de misria e penria da classe operria, o que exigir nada mais nada menos do que a efetiva ao do Estado liberal republicano no cumprimento dos seus princpios. Num segundo momento, porm, o carter eminentemente poltico e contestatrio da reivindicao educacional socialista fica claro, mostrando a extremizao dos princpios liberais, que levariam dissoluo mesma desta sociedade. Um outro artigo, este de 13/11/1898, n 110 do mesmo peridico gacho espelha as intenes que tm os socialistas com a abrangncia da educao popular: "Uma das questes que maior cuidado e estudo deve merecer ao partido socialista sem dvida alguma a da instruo do povo, pois s pela instruo possvel emancip-lo da ignorncia que o faz escravo, e o mantm agrilhoado, pela misria e errneas concepes de justia, tutela do predomnio burgus (...) O que sucedeu com a insurreio comunal de Paris em 1871? O povo parisiense bateu-se heroicamente, mas foi vencido; cometeram-se grandes erros, leviandades de toda espcie: o povo queria, verdade, mas no sabia; e a Comuna caiu, banhada no sangue de seus prprios filhos (...) Instruindo o povo, como deve s-lo, por iniciativa prpria ele livremente nortear pelo caminho do bem e da verdade (...)"

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    A hegemonia anarquista no movimento operrio brasileiro durante as duas primeiras dcadas deste sculo, se significou um importante avano para a instruo da classe trabalhadora significou, tambm, um retrocesso nas reivindicaes operrias e populares por um ensino pblico a cargo do Estado. Tais reivindicaes voltariam a ganhar fora no cenrio poltico na dcada de vinte, aps a fundao do PCB em 1922; partindo da divulgao dos avanos da educao na Unio Sovitica e de seus novos mtodos de ensino popular, os comunistas chegaram formulao de uma poltica nacional de educao. Segundo Paulo Ghiraldelli Jr., a ao dos comunistas trouxe uma significativa evoluo na qualidade dos discursos reivindicatrios de uma educao pblica no Brasil: "Os comunistas ampliaram as reivindicaes dos socialistas e construram uma verdadeira plataforma partidria incluindo um plano nacional de poltica educacional. "O PCB passou a discernir, no Movimento Operrio, o que era do mbito da poltica educacional e o que era do mbito do pedaggico-didtico. Os planos de poltica educacional eram apresentados nas ruas, nas campanhas eleitorais do Partido. As idias e concepes referentes ao pedaggico-didtico diziam respeito ao modelo de escola desenvolvido na Rssia pela Revoluo, e eram apresentados nas publicaes tericas do Partido." Uma boa amostra do pensamento comunista sobre a educao no Brasil pode ser encontrada nos estatutos do BOC - Bloco Operrio e Campons - fundado pelo Partido em 1928 e que elegeu dois vereadores nas eleies municipais daquele mesmo ano: "Ensino e Educao - Nas questes referentes ao ensino pblico os candidatos do Bloco Operrio bater-se-o no s pela extenso e obrigatoriedade do ensino primrio, como ainda, complementarmente: a) pela ajuda econmica s crianas pobres em idade escolar, fornecendo-lhes, alm de material escolar, roupa, comida e meios de transporte; b) pela multiplicao das escolas profissionais de ambos os sexos como uma continuao necessria e natural das escolas primrias de letras; c) pela melhoria nas condies de vida do professorado primrio, cuja dedicao causa do ensino pblico deve ser melhor compreendida e compensada; d) pela subveno s bibliotecas populares e operrias." O processo de implantao sistemtica da escola pblica no Brasil aparece ento como resultado de reivindicaes oposicionistas e aes situacionistas que, partindo de pressupostos e objetivos dspares, concordam com a necessidade de consolidao de um aparelho estatal de ensino. Tal processo no simples nem tampouco homogneo; as aes do Estado flutuam ao sabor do momento poltico. Em momentos de ditadura, como as do Estado Novo e a mais recente, do Regime Militar, vemos aes incisivas do Estado no sentido de reformar a educao para possibilitar um controle maior e mais profcuo; em outros momentos, governos de orientao um pouca mais progressista agem no sentido de buscar uma maior democratizao do ensino, o que nem sempre surte os efeitos desejados. No perodo mais recente de nossa histria, pelo qual iniciamos estas consideraes sobre o Estado e a educao no pas, as contradies ganham vulto: se do processo de democratizao da sociedade parece aos poucos surgir tambm uma escola mais democrtica, aqueles que fazem planto na defesa de um suposto neo-liberalismo advogam uma ingerncia cada vez menor do Estado na educao, abrindo-a paulatinamente explorao pela iniciativa privada. Acontece que muitas vezes esses neo-liberais, quase inimigos do Estado, tomam-no de assalto - no para destru-lo, realizando o velho sonho anarquista, mas supostamente des-regulamentar a sociedade, tornando-a mais livre - e em lugar de desenvolver polticas pblicas no campo da educao cuidam de desmantelar e sucatear o pouco que existe.

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    Ao expor na 6 Conferncia Brasileira de Educao, Carlos Roberto Jamil Cury afirma que a tenso entre o pblico e o privado na educao brasileira atravessa toda a repblica, como temos podido ver aqui, e que permanece ainda na Constituio de 1988: "A educao, se direito de todos e dever do Estado, continua como dever da famlia, e o ensino livre iniciativa privada (art. 209), desde que atendendo determinadas condies. Tambm o ensino religioso mantido como disciplina obrigatria e de matrcula facultativa (art. 210, 1) e recursos pblicos podero ser destinados (e, aqui, uma modulao!) a determinado modo de ser da iniciativa privada. "Articulando-se os artigos 205, 209 e 213 entre si, entendo que a nova Constituio estabelece dois gneros de escolas: as pblicas e as privadas.