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1 SÍNTESE PARA A DEFESA DA DISSERTAÇÃO DO MESTRADO – STRICTO SENSU – EM TEOLOGIA SISTEMÁTICA Título: Justiça de Deus e Justificação. Estudo exegético de Rm 1,16-17 Roberto Almeida da Paz – São Paulo, PUC-SP – 16.03.2015 - 1 . Estimados professores, membros da banca examinadora: Prof. Dr. Boris Agustín Nef Ulloa – meu orientador –; Prof. Dr. Waldecir Gonzaga e, Prof. Dr. Matthias Grenzer, que participou da qualificação. Saúdo os srs., de modo especial, por aceitarem o convite de participar desta banca e colaborarem comigo na reflexão crítica que apresentarão e nas propostas para prosseguirmos avante. Sou-lhes mui grato pela vossa presença. O tema proposto e pesquisado nesta dissertação, que ora os srs. tem em mãos, é o termo do trabalho – estudo e reflexão – que ultrapassa um pouco mais que o tempo convencional para se concluir uma pesquisa de Mestrado. A bem da verdade, se levarmos em conta as primeiras inquietações surgidas nos albores da minha adolescência frente a uma pergunta existencial, palmilhada pela (proveniente das leituras da epístola aos Romanos), que foi a motivação primeira para esta pesquisa. Como o homem é justificado aos olhos de Deus? Uma primeira e indiscutível evidência desse questionamento é encontrada no próprio tema-moto da epístola (Rm 1,16-17) e, que assumimos como o objeto-formal neste trabalho. A saber: “O é de Deus para todo aquele que crê em Cristo –, e nele se manifesta/revela a ” (1,16b). Um segundo indício, não menos irrecusável, nasce paradoxalmente do primeiro: o do progressivo esmaecer em seu horizonte simbólico e conceitual que orientaram e norteiam até o presente a compreensão da justiça divina, revelada no Evangelho, desconfigurando-a de sua originalidade (sentido primevo) concedida por Paulo. Tais são, por exemplo, a justiça divina tomada como “justiça retributiva”, as obras da Lei em detrimento da justiça da etc. Se para a inteligibilidade bíblica conhecer não é simplesmente “contemplar” o objeto à distância” (= pensamento grego), mas “fazer experiência”, entrar em relação com o texto bíblico (Sitz im Leben), deixar-se interpelar, examinar, escutá-lo, interrogá-lo etc. para atingir sua realidade (cf. 1Ts 5,21; Fl 3,10; P.C.B. A interpretação da Bíblia na Igreja. São Paulo: Paulinas, 1994, p. 89); então, trata-se de saber qual é a originalidade da intuição paulina ao apresentar seu tema-tese de que no evangelho se revela a nova economia salvífica, e esta é igual para judeus e gentios (1,16-17). – Para tentar alcançar o objetivo a ser arrostado, e tendo já estabelecido seu horizonte, foi escolhido o texto de Rm 1,16-17, por dois motivos principais: a) estes versículos apresentam o leitmotiv do “evangelho paulino” sob o ângulo específico da justiça e da justificação divinas; b) ao assumir esse caráter programático Rm 1,16-17 – demonstra que “o Evangelho é [...], salvífico de Deus”, palavra performativa; força divina capaz de transformar a realidade – “voltada para a salvação...” (= justiça de Deus: “conteúdo do evangelho paulino”). Desta sorte, possuindo uma vereda a ser trilhada e uma fonte primária (Rm 1,16-17), iniciamos o processo de estudo e estruturação da Dissertação, para cuja consecução contribuíram enormemente os diálogos com o prof. Boris Agustín e com os textos consultados (entre os quais: Marie-Joseph Lagrange, Joseph A. Fitzmyer e C. E. B. Cranfield) – cujo resultado encontra-se no sumário da supracitada Dissertação (cf. p. 13-14; p. 1-). O I capítulo teve por finalidade engendrar a 1 “Uma vida sem investigação não é digna de ser vivida” – Platão. Apologia de Sócrates, 38 a.

Sintese Para a Defesa Do Mestrado

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    SNTESE PARA A DEFESA DA DISSERTAO DO MESTRADO STRICTO SENSU EM

    TEOLOGIA SISTEMTICA

    Ttulo: Justia de Deus e Justificao. Estudo exegtico de Rm 1,16-17

    Roberto Almeida da Paz So Paulo, PUC-SP 16.03.2015

    - 1.

    Estimados professores, membros da banca examinadora: Prof. Dr. Boris Agustn Nef Ulloa

    meu orientador ; Prof. Dr. Waldecir Gonzaga e, Prof. Dr. Matthias Grenzer, que participou

    da qualificao. Sado os srs., de modo especial, por aceitarem o convite de participar desta

    banca e colaborarem comigo na reflexo crtica que apresentaro e nas propostas para

    prosseguirmos avante. Sou-lhes mui grato pela vossa presena.

    O tema proposto e pesquisado nesta dissertao, que ora os srs. tem em mos, o termo

    do trabalho estudo e reflexo que ultrapassa um pouco mais que o tempo convencional

    para se concluir uma pesquisa de Mestrado. A bem da verdade, se levarmos em conta as

    primeiras inquietaes surgidas nos albores da minha adolescncia frente a uma pergunta

    existencial, palmilhada pela f (proveniente das leituras da epstola aos Romanos), que foi a

    motivao primeira para esta pesquisa. Como o homem justificado aos olhos de Deus?

    Uma primeira e indiscutvel evidncia desse questionamento encontrada no prprio

    tema-moto da epstola (Rm 1,16-17) e, que assumimos como o objeto-formal neste

    trabalho. A saber: O de Deus para todo aquele que cr em Cristo , e nele se manifesta/revela a (1,16b). Um segundo indcio, no menos irrecusvel, nasce paradoxalmente do primeiro: o do progressivo esmaecer em seu

    horizonte simblico e conceitual que orientaram e norteiam at o presente a compreenso

    da justia divina, revelada no Evangelho, desconfigurando-a de sua originalidade (sentido

    primevo) concedida por Paulo. Tais so, por exemplo, a justia divina tomada como justia

    retributiva, as obras da Lei em detrimento da justia da f etc. Se para a inteligibilidade

    bblica conhecer no simplesmente contemplar o objeto distncia (= pensamento

    grego), mas fazer experincia, entrar em relao com o texto bblico (Sitz im Leben),

    deixar-se interpelar, examinar, escut-lo, interrog-lo etc. para atingir sua realidade (cf.

    1Ts 5,21; Fl 3,10; P.C.B. A interpretao da Bblia na Igreja. So Paulo: Paulinas, 1994, p.

    89); ento, trata-se de saber qual a originalidade da intuio paulina ao apresentar seu

    tema-tese de que no evangelho se revela a nova economia salvfica, e esta igual para

    judeus e gentios (1,16-17). Para tentar alcanar o objetivo a ser arrostado, e tendo j

    estabelecido seu horizonte, foi escolhido o texto de Rm 1,16-17, por dois motivos

    principais: a) estes versculos apresentam o leitmotiv do evangelho paulino sob o ngulo

    especfico da justia e da justificao divinas; b) ao assumir esse carter programtico

    Rm 1,16-17 demonstra que o Evangelho [...], salvfico de Deus, palavra

    performativa; fora divina capaz de transformar a realidade voltada para a salvao... (=

    justia de Deus: contedo do evangelho paulino). Desta sorte, possuindo uma vereda a

    ser trilhada e uma fonte primria (Rm 1,16-17), iniciamos o processo de estudo e

    estruturao da Dissertao, para cuja consecuo contriburam enormemente os dilogos

    com o prof. Boris Agustn e com os textos consultados (entre os quais: Marie-Joseph

    Lagrange, Joseph A. Fitzmyer e C. E. B. Cranfield) cujo resultado encontra-se no sumrio

    da supracitada Dissertao (cf. p. 13-14; p. 1-). O I captulo teve por finalidade engendrar a

    1 Uma vida sem investigao no digna de ser vivida Plato. Apologia de Scrates, 38 a.

  • 2

    matria-prima para o estudo exegtico do texto: aproximao textual, delimitao, crtica

    textual e traduo. Nos captulos subsequentes, (II): trabalhamos a exegese-teolgica de

    Rm 1,16-17, rememorando a tese-moto, culminando nossa investigao para a percope de

    Rm 3,21-27.[28-31], que apresenta o quadro-positivo da , mediante uma sntese coordenadora das razes teolgicos da tese paulina de que no evangelho se

    revela nova economia salvfica igualmente para Judeus e Gentios. Prosseguindo nossa

    anlise, seguindo os passos propostos visando compreender o texto como grandeza

    estruturada e coerente, integrada num processo mais amplo de comunicao (aspecto

    sincrnico), buscamos aprofundar os detalhes do objeto formal de nosso estudo: a prova

    escriturstica (Rm 4,1-25); o quadro descritivo da existncia dos justificados, assinalada

    pela paz e esperana na salvao escatolgica (Rm 5,1-11; 8,1s); a evidencia de que

    Cristo reconciliou a humanidade com Deus, vencendo o Pecado e a Morte (Rm 5,12-21).

    Enfim, o princpio da liberdade experimentada pelos justificados ao viverem sob o poder

    do Esprito (Rm 8). Ao Procedermos por esta vereda, constatamos elos mui prximos,

    entre a tese-moto apresentada em Rm 1,16-17 e o coroamento da pesquisa, (= parte

    dogmtica da epstola) onde nos oferecida uma descrio sinttica da existncia do

    crente: passado, presente e futuro, vistos em estreita sinergia entre si. A justia de Deus

    revelada no evangelho, a justificao/ reconciliao o ponto de partida, a virada decisiva

    e determinante. O ponto de chegada a glorificao/ salvao integral e definitiva do

    homem (Rm 8). Entre os dois extremos transcorre o tempo presente, vivido sob a graa e

    a paz () com Deus, na dimenso da segundo a lgica da gratuidade, na liberdade e capacidade da , efetivadora de um caminho humano alternativo aos sonhos alienantes da divinizao de si prprio e do domnio sobre os outros.

    Travessia rdua, amide, cansativa; no obstante no deveramos hesitar em palmilh-la.

    Antes de mais, voltar nossa ateno ao texto, auscult-lo, com o escopo de compreender

    melhor a mensagem que o hagigrafo pretendeu comunicar com seu texto, legando-nos sua

    experincia pessoal de um Deus que justifica amorosamente o ser humano mediante seu

    Filho e no Esprito.

    A partir dessas direes podemos identificar algumas contribuies para a questo acima

    aventada: Como o ser humano justificado aos olhos de Deus?

    -

    1 A experincia pessoal com Cristo, posta Paulo no centro do Evangelho transmite-nos

    uma irredutvel oposio entre dois percursos alternativos em direo justia: um erigido

    sobre as obras da Lei, e o outro fundado na graa da f em Cristo Jesus.

    Assim ele compreende que [...] ser justo significa estar com Cristo e em Cristo. Isto

    prescinde da observncia da Lei. Esse raciocnio confirma-se quando Pulo apresenta a

    justia graciosa de Deus mediante a f, em detrimento das obras da lei (e da circunciso),

    mostrando que Cristo verdadeiro caminho/acesso ao dom salvfico de Deus.

    Na economia do evangelho, o homem em virtude da justia de Deus, declarado justo

    mediante a f em Cristo e, por conseguinte, uma vez justificado em virtude do amor de Deus

    ser salvo (cf. Gl 3,11).

    2 Na compreenso soteriolgica de Paulo, a (justificao) o acontecimento

    do amor de Deus, que socorre sem perguntar se a pessoa merece. Ademais Paulo assinala

    que: todos erraram e esto em falta da glria de Deus (Rm 3,23); contudo, Deus, por puro

  • 3

    amor () e graa () restituiu a sua justia em Cristo, a fim de que o ser humano se

    tornasse justo () e justificado diante Dele.

    Portanto, a manifestao do direito (jP"v>mi) que Deus tem para ser bom,

    justo e misericordioso (Rm 3,23-26; cf. Mt 20,1-16); igualmente, a nova condio do

    humano num estado de justia diante de Deus, mediante sua associao com a atividade

    salvfica de Cristo pela incorporao no Filho pelo Batismo, na Igreja (Rm 6,4-6)2.

    A justia de Deus revelada pelo misericrdia () e salvao

    (), sendo comunicada ao ser humano como um dom (). Tal a afirmao

    essencial sobre a justificao. Por conseguinte, as obras da Lei no devero mais intervir no

    processo salvfico. A justificao como significao concreta ser o dom da justia em

    Cristo (, Rm 5,17).

    No se poderia, contudo, pretender que o seja aquele que Deus decidiu

    no consider-lo pecador. Tornar-se justo, obter a justia, ser justificado transcende

    qualquer compreenso meritria: no apenas o pecado foi expiado por Cristo, no somente

    esta expiao nos concedia pela eficcia da cruz (Rm 3,24-25) realizada pela

    mensagem do e na eficcia do Esprito.

    Deus possui em si mesmo a justia, sendo indefectvel nos seus julgamentos;

    que justifica aquele que cr em Cristo (Rm 3,26). Assim, Deus realiza sua justia no

    prprio ato em que justifica o ser humano3.

    Com efeito, Deus justifica o pecador numa atividade de amor e misericrdia que

    lhe comunicada, a qual a mensagem do Evangelho pe ao seu alcance e lhe interpela

    escuta (Rm 10,17; 1Ts 2,13). Basta ao crente aceitar a mensagem do evangelho

    pela f. A f comporta um aspecto intelectual: , no palavra vazia,

    morta. Mister se faz crer e mesmo confessar oralmente que Cristo morreu e que Deus o

    ressuscitou.

    Ora, somente o ato de f, plenamente livre, por definio, e completamente humano

    exclui por sua natureza a autossuficincia, a apropriao idneo para constituir essa

    participao humana dom de Deus na atividade essencialmente divina em que consiste

    a justificao do homem (Ef 2,8).

    2 O texto de 2Cor 5,17 elucida essa nova realidade: [...] o velho passou, fez-se um novo, e quem est

    em Cristo nova criatura. E ainda: A antiga aliana foi substituda pela nova aliana profetizada pelos profetas (Jr 31,33; Os 2,22; cf. 2Cor 3,6s), e o profetizado por Isaas se concretizou (Is 49,8; cf. 2Cor 6,2). 3 (1Ts 1,6).

  • 4

    Paulo condensou seu intento numa frmula clebre, quando fala da f que atua mediante o

    amor fides quae operatur per caritatem (Gl 5,6; 5,14; Rm

    13,9). Ou para rememorar o Doutor anglico: fides per dilectionem operans4.

    3 Last but not least a Igreja nasceu do Evangelho/querigma pregado em Esprito e

    poder e ainda hoje torna-se cada vez mais claro que uma Igreja renovada em sua fora

    apostlica s pode nascer de uma nova proclamao do Evangelho que poder de Deus

    para a todos os que creem (Rm 1,16) (cf. Raniero C., p. 11).

    - Resultados:

    1.1 Paulo afirma ser Deus quem justifica graciosamente o ser humano (Rm 3,24), e no o

    esforo pessoal deste mediante as obras da Lei (Rm 3,20). A verdadeira justia no , pois,

    obra e iniciativa humana, mas dom de Deus. Portanto, torna-se claro que a justia como

    atividade salvfica de Deus aquela pela qual opera a justificao do homem (Rm 5,17s; cf.

    Sl 143,2).

    --

    Pensar o evangelho como manifestao da justia salvfica de Deus foi, talvez, o leitmotiv

    maior da teologia epistolar paulina, como tentamos mostrar no captulo II da presente

    dissertao.

    Portanto, por uma retido de justia que, num julgamento justo, Deus

    perdoa o pecador.

    Isso demonstra a eficcia da justia de Deus operada pela f em Cristo Jesus, em

    favor de todos os que creem porque no h mais diferena, sendo que todos pecaram e

    esto faltos da glria de Deus e so justificados gratuitamente, por sua graa [...] (Rm

    3,22-24).

    De fato, fica-se tcito que somente aps ter construdo o raciocnio com

    objetivando apresentar a justia graciosa de Deus mediante a f, em detrimento das

    obras da lei (e da circunciso), que o insigne Paulo parte para outra etapa de seu

    discurso: mostrar que Cristo verdadeiro acesso ao dom gracioso de Deus.

    Veremos em Rm 8, Cristo e o Esprito pari passu como agentes de Deus no

    cumprimento das promessas: faz o que faz a Sabedoria, realiza o que a Torah

    queria na luta contra a mas no podia fazer. Essa intuio j aparece

    quando anunciado o tema da Carta (Rm 1,16-17), sendo desvelado em Rm 85.

    4 A f que opera por amor, cf. Thomas DAQUIN. Somme theologique, I-Iae, q. 108, a. 2. Paris: Cerf,

    1984. 5 Kurt ERLEMANN. Der Geist als (2Kor 5,5) im Kontext der paulinischen Eschtologie, in

    ZNW 82 (1992), p. 200-223.

  • 5

    Demais, conclui-se, que o ato de anulao da exigncia da pelo ato f

    (atribudo por Paulo a Deus: 4,23-25), estabelece a paz no tribunal (cf. 5,1).

    --

    Trata-se, pois, da manifestao concreta da retido divina, enquanto o homem pela

    f em Cristo participa dos efeitos da justificao. Tal ato consiste em crer (Rm 3,27), haja

    vista o ato de f ser uma adeso integral do homem inteligncia e vontade a Deus, tal

    como se revela em Cristo. Por conseguinte, uma ao de livre acolhimento da

    , pois o livre consentimento do homem na obra que Deus realiza nele6 (Rm

    4,1-25).

    Ao considerar a relao de Deus com o homem em termos legais e jurdicos, Paulo

    afirma que este, pecador, no simplesmente declarado justo, mas se torna efetivamente

    justo pela graa da f em Cristo (Rm 5,19; 4,6-8; 8,1). Portanto, a justificao enquanto

    efeito do evento Cristo, pode ser concebida como uma nova criao, na qual o pecador

    adquire a (2Cor 5,17-21), no como prmio ou mrito subjetivo, porm como

    dom (, ), pela superabundante de Deus (cf. Rm 5,20; 3,24; Gl 2,21).

    isso o que justamente acontece com aqueles que creem e so justificados

    gratuitamente, em virtude da redeno realizada em Jesus Cristo (3,24). E mais, no s so

    justificados em Jesus Cristo, mas tambm so redimidos () por Ele. Segundo o

    apstolo, tal redeno j aconteceu na morte e ressurreio de Cristo (3,25). No obstante,

    a sua realizao definitiva constitui ainda objeto da esperana escatolgica (Rm 8,23-24).

    A justificao na perspectiva paulina estabelece uma relao com o prprio

    Deus mediante Cristo. Paulo no reconhece ao homem a capacidade de obter a justificao

    pelos seus prprios mritos.

    A finalidade da ao de Deus que justo e justifica aquele que vive pela f em

    Cristo (Rm 3,26) fazer que o homem seja e viva justificado. Ora, isso demonstra a

    realizao da , haja vista Deus permanecer fiel s suas

    promessas, cuja fidelidade indefectvel jamais poder ser anulada pela infidelidade humana.

    A manifestao da justia de Deus traz em si como consequncia decisiva, a

    veracidade segundo a qual, o homem justificado pela graa da f em Cristo, sem as obras

    da lei (Rm 3,28). Obras essas, prescritas pela Lei do Antigo Testamento, no raramente

    vistas como fonte de salvao, precisamente porque o judeu piedoso associava a sua

    salvao observncia de tais obras.

    6 S. THOMAS AQUINATIS. Super Epistolam ad Romanos Lectura, cap. 4, lectio 1. Rome: Marietti,

    1953.

  • 6

    No processo de justificao ope-se a lgica da gratuidade lgica da

    retribuio devida. Paulo afirma a primeira em detrimento da segunda, pois a

    condio do existir humano num estado de justia diante de Deus, mediante a associao

    do homem com a atividade salvadora de Cristo Jesus, pela incorporao em Cristo e na

    Igreja, pela f e pelo Esprito (cf. Rm 8,9b; 8,1-11; 1Cor 15,45)7.

    A justia de Deus ao redentora (), propiciatria () e

    reconciliadora () que se enraza na fidelidade a si prprio e s suas promessas

    (Rm 3,23-25; 5,1s): Deus justo8. Por fora desta ao aquele que cr em Cristo torna-se

    novo ser, experimenta em profuso o perdo, a reconciliao, o resgate da submisso

    fora do pecado (), a parceria com o Deus da aliana, e a fraternidade com-os-

    outros. Na verdade, torna-se justo. Assim, o ser humano torna-se nova criatura pela justia

    divina (Ef 2,24).

    Abrao a tipificao dessa nova realidade, haja vista ser ele justificado, no pelos

    mritos de suas obras, mas pela confiana () naquele que justifica o pecador (Rm 4,1-

    3; Gl 3,6-19; cf. Gn 15,6; 17,24-26). Por ser dom divino, a justia revelada no Evangelho

    torna-se um estado, uma maneira de ser, uma qualidade permanente para o ser humano.

    Na verdade, o homem justificado () gratuitamente em virtude da

    redeno em Cristo Jesus (Rm 3,24). E consigna o apstolo: ns sustentamos que o

    homem justificado () pela f, sem as obras da Lei (Rm 3,28).

    tcito: Deus quem justifica a todo ser humano, haja vista o apstolo afirmar: ou

    acaso ele Deus s dos judeus? No tambm dos gentios? Sim, tambm das naes,

    visto que Deus um s, que justificar os circuncisos pela f e tambm os incircuncisos

    (Rm 3,29-30). Os textos no titubeiam ao afirmar ser Deus o agente efetivo da justificao

    do ser humano.

    O texto de Gl 2,16-17 elucida que a justificao se d gratuitamente, sem as

    obras da Lei (), mas mediante a f ( ) em Cristo Jesus. Assim, a

    justificao concretamente no outra coisa seno a justia de Deus, o dom concedido

    7 O vnculo entre Esprito e Cristo to estreito que Paulo julga impossvel ter um sem o outro: Se

    algum no tem o Esprito de Cristo, a este no pertence (Rm 8,9b). Mencionamos alhures que Cristo e o Esprito pari passu atuam como agentes do nico Deus no cumprimento das promessas (cf. Rm 8,1-11), realizando o que a TorH queria na luta contra a , mas no podia fazer. evidente que desde a ressurreio como Esprito ou no Esprito que Cristo entre em relao com os seus. O Cristo exaltado age como (1Cor 15,45) e concede aos seus o (1Cor 15,44). 8 A propsito do tema da redeno, ver: L. Alonso SCHKEL. La rdemption oeuvre de solidarit, in

    NRTh 93 (1971), p. 449-472; Stanilas LYONNET. Justification, jugement, rdemption, principalement dans lptre aux Romains, in Littrature et thologie pauliniennes (Recherches Bibliques, V), 1980, p. 164-184; . tudes sur Lptre aux Romains. Roma: Editrice Pontificio Istituto Bblico, 2003, p. 144-162.

  • 7

    como um bem para a salvao humana. Como fruto da ressurreio de Cristo, a justificao

    concretamente uma nova vida concedida a todos, indistintamente (cf. Rm 4,25; 5,18).

    Destarte, a justia de Deus para o homem, pode ser concebida como uma riqueza

    divina ofertada gratuitamente. Distinta da justia vindicativa, a justificao s poderia ser o

    ato pelo qual Deus nos insere nessa riqueza. Deus nos concede a profuso de sua justia,

    aps haver perdoado nossos pecados (Rm 3,24-25; 5,1-11); o dom precedido pela

    expiao e reconciliao.

    A inteligibilidade dessa bela expresso foi malgrado, ofuscado pelas controvrsias

    da Reforma e da Contra-Reforma. Em muitos momentos ao comentar Rm 1,16-17 e as

    passagens paralelas (Romanos e Glatas), Lutero disjungiu-se tanto de Agostinho seu

    mestre como de Paulo. Seu escrpulo no que respeita ao perigo da autossuficincia f-lo-

    , muitas vezes, chegar a concluses que soariam assaz abstrusas ao bispo de Hipona e ao

    servo de Cristo, escolhido para anunciar o evangelho de Deus, Paulo (Rm 1,1-5; cf. Gl

    1,15-16).

    Ora, se a plena gratuidade da justificao exige que se obtenha, num sentido

    perfeitamente ortodoxo, mediante a sola fide, a absoluta gratuidade da salvao no exige

    que se negue a realidade do ser cristo. Pelo contrrio, com a afirmao desta realidade do

    ser cristo, funda-se mais firmemente a total gratuidade da salvao.

    Destarte, a justificao e a justia divina, obedecendo a uma inspirao profunda do

    evangelho, no obstante, as controvrsias presentes em sua gnese, uma expresso

    radical do amor na forma mais alta da gratuidade segundo o modelo da divina. Amor

    de Deus no qual se entrelaam na vontade livre, no dom e na gratuidade do ato mesmo do

    Deus que visa salvao humana em Cristo.

    A anlise dos captulos I e II e, por conseguinte, o III, permite-nos concluir que a

    genuna natureza da e da traduz o modo pelo qual se expressa a

    essncia e a retido prprias pelas quais Deus justo juiz age, justificando o ser humano.

    Torna-se evidente porque a justia revelada no , capaz de reconciliar Judeus e

    Gentios, possibilitando a todo o ser humano ter acesso ao Esprito e salvao divina

    ofertada em Cristo Jesus.

  • 8

    Essa noo de justia permite-nos relacionar com pela

    graa mediante a f. Com efeito, o termo grego , traduzido por justia ou retido,

    encontra-se igualmente na raiz de (justificao), (justo), (justificar)9.

    Essa perspectiva torna-se mais legvel, quando se descobre que a justificao pela

    graa mediante a f expressa objetivamente o modo pelo qual Deus torna o ser humano

    justo.

    Portanto, agora ao relermos perscrutando as fontes a tese-moto da epstola

    com os olhos desnudos e sem a opacidade de lentes, tantas vezes ofuscadas por

    interpretaes enviesadas, compreenderemos porque Paulo afirma o evangelho, como

    sntese do evento-Cristo, o sentido da Pessoa, da vida, do mistrio, da paixo, morte e

    ressurreio do Cristo.

    Este evangelho deve ser corretamente interpretado como , o meio mediante

    o qual a atividade salvfica de Deus revelada de maneira inteiramente nova. Tal

    manifestao dinmica (Rm 1,16), no uma mensagem abstrata acerca da salvao ou

    contedos dogmticos referidos a Cristo Jesus. , igualmente, , que procede do

    prprio Deus mediante seu Filho (Rm 1,1-5).

    voltado para a salvao (preservao). Deus o tornou acessvel

    para todo aquele que cr, para o Judeu e para o Grego; enfim, para o homem de ontem,

    hodierno e do futuro porque manifestado em Cristo (Rm 1,3-4) essencialmente graa,

    dom do Esprito que justifica e d vida (Rm 8,11-13).

    Em suma, o revelado em Cristo, voltado para a salvao do ser humano,

    no letra, Palavra, Esprito de vida (Rm 8,2-4). Ele liberta do Pecado, justifica o ser

    humano e o conduz para a liberdade dos filhos de Deus (Gl 5,1-11; Rm 8,14-30.31-39).

    --

    Crer: acreditar torna-se vida, unidade com Cristo, transformao da nossa vida. E assim,

    transformados pelo seu amor, pelo amor a Deus e ao prximo, podemos ser realmente

    justos aos olhos de Deus (Bento XV).

    Deixar-se alcanar pela reconciliao, que Deus nos deu em Cristo, pelo amor louco de

    Deus por ns: nada e ningum jamais nos poder separar do seu amor (Rm 8,39). Viver

    nesta certeza, pois esta certeza que nos d a fora que possibilita viver justificado para

    viver concretamente a f que realiza o amor.

    --

    9 Cf. raiz de - (qyDic;): Helmer RINGGREN; B. JOHNSON. qD;c", qD

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    Bom, por ora encerramos aqui, pois almejamos deixar tempo propcio ao debate, que creio

    me possibilitar enriquecer embora capinando sentado no aprimoramento e prossecuo

    da pesquisa. Muito obrigado pela ateno!

    II. Uma religio que faz de si mesma o centro de seu interesse e s olha para si prpria, ainda que fale em transcendncia, acaba imanentizada, perde a mstica e a transcendncia. Segue-se que o caminho do ser humano para Deus no mais iniciativa dele, nem o resultado de uma pesquisa ou de um compromisso moral, mas dom de Deus que se lhe aproxima. Portanto, no preciso realizar aes particulares para alcanar o favor de Deus, mas responder ao seu chamado, abrindo o corao e reconhecendo que seu amor tem o primado na obra da salvao. A f a nica condio para ser salvo. F resposta ao anncio do evangelho pois a f vem da pregao e a pregao pela palavra de Cristo (Rm 10,17), obedincia ao querigma (1,5; 16,26); movida pela caridade, o pr-requisito indispensvel para alcanar a justificao. Em consequncia disso, o cristo no mais centrado em si mesmo, mas em Deus que o transforma. Seu baricentro est fora dele, porque se apoia em Deus. Com efeito, crer significa colocar a esperana em outro, aderir a ele para encontrar nele o terreno estvel sobre o qual ficar firme nas areias movedias da vida (Ef 4,14). A f que atua no amor (Gl 5,6) uma realidade dinmica que determina um crescimento interior e estimula a realizar obras exteriores que manifestam a renovao alcanada pela f, compreendendo sempre mais que Deus o Deus da ternura que ama o ser humano. A essa meta todos so convidados, judeus e pagos. Isto faz com que o Deus de Jesus Cristo se torne o Deus de todos (Rm 3,29). A compreenso de que as obras da Lei, feitas para alcanar a benevolncia de Deus, nada conseguem, e que com Jesus Cristo se torna possvel um caminho totalmente diferente, comparada por Paulo a uma nova criao. Lembrando o evento de Damasco, que constitui o mago da sua experincia crist, escreve: Deus que disse: Do meio das trevas brilhe a luz, foi ele mesmo quem reluziu em nossos coraes, para fazer brilhar o conhecimento da glria de Deus, que resplandece no rosto de Cristo (2Cor 4,6). A descoberta de Jesus que transformou sua vida, at ento vivida no zelo pelos preceitos judaicos, comparada luz da criao que derrota as trevas primordiais (Gn 1,3). Ele se deu conta de que no rosto de Jesus brilha o amor benevolente do Deus que faz misericrdia, sendo Jesus o novo resplendor da glria de Deus, superior luz da criao. - Nota: Paulo recusa a justificao pelas obras humanas, sejam as da Lei ou de qualquer instituio religiosa, destacando que o ser humano no pode alcanar a salvao por meio dos seus mritos. Frisa, porm, que o cristo justificado deve mostrar sua converso por meio de atos concretos, sinal da sua transformao interior. Tais atos so dom de Deus dos quais ningum pode se vangloriar (Ef 2,8-10). - II-III. Animado pelo amor de Deus, derramado nele por meio do Esprito Santo (5,4), pode dirigir-se a Deus chamando-o de Abb, Pai (8,15; Gl 4,6), assim como fez Jesus em virtude da sua relao nica e exclusiva com Deus (Mc 14,36; Mt 11,25-26; Lc 11,2; Jo 11,41). pois o Esprito nos d a certeza de ser verdadeiros filhos (Rm 8,16), amados pelo Pai como o Filho Jesus, e membro da famlia de Deus, herdeiro de Deus e co-herdeiro de Cristo, medida que participa do evento pascal, sofrendo com o Filho para tambm com Ele ser glorificado (Rm 8,17). O cristo convidado a conformar-se a Cristo (evento pascal). Nisto demonstra o desenvolvimento do plano salvfico de Deus;

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    nele tudo coopera para o bem dos eleitos (Rm 8,28): Os que de antemo ele conheceu, tambm os predestinou a serem conformes imagem de seu Filho.... E os que predestinou, tambm os chamou, e os que chamou, tambm os justificou, e os que justificou, tambm os glorificou (Rm 8,29-30). Ora, se o cristo experimenta e goza desde j, das primcias do Esprito (Rm 8,23), porque foi libertado da lei da morte e do pecado (8,2) e j possui o penhor da glria futura (Ef 1,14). Para descrever as etapas do plano (pedagogia) da redeno, Paulo se d conta de que uma corrente de ouro une os cristos desde a eternidade (e com eles o mundo todo), para conduzi-los felicidade do Reino. Com razo Irineu de Lyon fala da grande sinfonia da salvao (Adv. haer., IV, 14, 2). Assim, o que antes Paulo anunciara que no tema-moto da epstola ele pode encerrar reconhecendo que os decretos misteriosos de Deus (Rm 11,32) sobrepujam toda compreenso humano, pois tudo graa (cf. Is 55,8-9; J 9,10; Sb 17,1). Com a certeza de que o projeto salvfico de Deus manifestado em Jesus Cristo, Paulo pode concluir que Deus no pode abandonar o cristo na sua situao mais crtica da sua existncia: o julgamento final (Rm 8,31-39). Com efeito, Se Deus est conosco, ningum poder estar contra ns (cf. Is 56,10; 23,4; 43,5; Jz 6,12). Esta plena confiana fundamenta-se no amor de Deus pelos seus eleitos. De fato, ningum nos condena, pois, Deus mesmo, em Cristo nos justifica.

    Notas:

    - f.

    A f olhar Cristo, confiar-se a Ele, conformar-se com Cristo e com a sua vida. E a forma e

    a vida de Cristo o Amor. Assim, acreditar conformar-se com Cristo e entrar no seu amor.

    Com efeito, a f age mediante o amor (Gl 5,14; cf. Rm 13,9). [...] A comunho com Cristo,

    a f em Cristo, cria a mantm a caridade. E esta a realizao da comunho com Cristo.

    Assim, o ser justo permanecendo unido a Ele, e no de outro modo.

    2 A f uma realidade em movimento que leva a uma descoberta progressiva de Deus,

    em virtude do Esprito Santo que estimula o cristo a sondar todas as coisas, at mesmo as

    profundidades de Deus (1Cor 2,10). Sozinho no poderia fazer isso, mas o Esprito cria nele

    uma afinidade com o prprio Deus que lhe possibilita o conhecimento do plano da salvao

    e o modo com o qual Deus opera na histria.

    - Lei p. 51-

    - Uma justia que vem da Lei () ou uma justia que vem de Deus ()? (p. 282).

    - Como Paulo pode se dizer irrepreensvel diante da Lei? (p. 276).

    [...] Nesse sentimento de irrepreensibilidade que reside seu pecado (irrepreensvel diante

    da Lei Fl 3,6). Ele resume a autoafirmao do crente que exibe sua fidelidade diante de

    Deus. Esse cume de zelo farisaico percebido simultaneamente como o auge do pecado

    religioso. [...] Essa maneira de agir, por mais que seja zelosa, no muda em nada o fato de

    que o homem prisioneiro do poder malfico do pecado; ela no poderia justific-lo. O

    homem continua fechado a Deus e preocupado consigo mesmo. O Juiz zelador da Lei ,

    precisamente, para Paulo, o exemplo de um homem cativo de pecado: na iluso de sua

    piedade, ele imagina que o acesso a Deus, na realidade desesperadamente fechado, est

    aberto; ou cr poder abri-lo por suas obras (Gnther Bornkamm, Paul, p. 177, nota 4).

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    Dessa piedosa e mortfera iluso de irrepreensibilidade a experincia do caminho de

    Damasco (o que tal experincia?) teria livrado Paulo.

    O encontro de Paulo com o Jesus vivo na estrada de Damasco deu-lhe a intuio

    fundamental sobre a pessoa e a misso de Jesus e, ao mesmo tempo, abriu-lhe a

    possibilidade de salvao para os gentios, pois, se a lei tinha valor relativo, no era a nica

    vereda para Deus. [...] O encontro concedeu-lhe perspectiva radicalmente nova sobre ideias

    que at ento rejeitara: ideia que ele no aprendera pela vontade de mestre de instruir sua

    mente, mas ideias que ele tinha ouvido de passagem como exemplos de erro orgulhoso.

    Assim, ele no o recebeu nem aprendeu de algum homem. A experincia do Cristo vivo

    acendeu nele a verdade que inconscientemente possua (cf. J. Murphy-OConnor. A

    antropologia pastoral de Paulo, 1994, p. 25).

    [...] pois o fim da Lei Cristo, para que seja dada a justia a todo homem que cr (Rm

    10,4) (cf. , p. 289).

    - Liberdade p. 33-36.