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will franco

Smirnakoff, Nastassja, eugenia - Contos sobre a beleza e a não existência entre o DNA e o absurdo

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Esse livreto reúne contos sobre Boris Smirnakoff, um emigrado russo que mergulhou em projetos eugênicos em Holambra, apaixonou-se em Valência e, quando era de si o auge, não existiu.

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Smirnakoff, Nastassja, Eugenia

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Nota do autor

Estes textos foram escritos em 2010, ano em que criei o blog “Errâncias”.

Podem ser lidos individualmente (particularmente o primeiro e o segundo), até

porque o conjunto não chega a compor uma obra – dão, isso sim, notícia de uma

obra fraturada – a obra de Smirnakoff.

Organizei esse breve volume, antes de mais nada, para que pudesse

conhecer as peculiaridades e intempéries da publicação virtual; se puder, além

disso, oferecer alguma alegria ou pensamento em quem porventura se depare

com esses textos, tanto melhor.

Aos que se interessarem, ponho-me pessoalmente à disposição para

trocas e opiniões através de meu e-mail ([email protected]) , bem

como a meu blog, http://errancias.com, e ao livro de contos que lancei no início

de 2015, “Gente só”, publicado pela editora Chiado.

Boa viagem!

will franco, junho de 2015

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Prólogo a “eugenia, genocídio e genética”, de Boris Smirnakoff

Roberto Jabeiro, jornalista, filósofo e teólogo,

escreve quinzenalmente para Nova Medicina: avanços em

Genética e Teoria Social

A revista IstoÉ da última semana de julho, que caiu acidentalmente em

minhas mãos em momento de incomum ócio, apresentava uma matéria rica,

parcamente aproveitada: tratava de programa inaugurado pelo site de

relacionamentos Beautiful People, que possibilitava a seus membros escolher o

material genético dos filhos que desejavam, tendo em vista o aumento das

probabilidades de que ditos filhos viessem a ser bonitos. “Aqueles que se

dispõem a doar seu material genético podem ser encontrados no grupo Beautiful

Baby Service, um fórum aberto dentro do site. O problema é que, numa

sociedade que já viveu episódios hediondos como o Holocausto, ofertar um

critério de seleção baseado na beleza dá arrepios. “É uma iniciativa inaceitável,

que lembra a eugenia”, diz Salmo Raskin, presidente da Sociedade Brasileira de

Genética Médica”, informa a revista.

O tema suscitado por Raskin, de que a iniciativa “lembra a eugenia”,

motivou-me a glosar tão polêmica revista. O médico parece excepcionalmente

feliz pela associação estabelecida – fortúnio quase cancelado pela parcimônia

excessiva e imprecisa em afirmar que a iniciativa “lembra” eugenia – o próprio

site e o fórum de “fomento aos bebês bonitos”, a confiar na matéria, exala

eugenia e quilômetros.

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Seja como for – sendo alheia a meus interesses a polêmica com o

periódico, o médico e quetais – decido aproveitar o ensejo para a lembrança de

um trabalho memorável, pouco ou nada conhecido do grande público. Trata-se

do livro fictício “eugenia, genocídio e genética – ritornelo”, de autoria do artista

búlgaro de ascendência russa Boris Smirnakoff.

Boris Smirnakoff, nascido em 1894 e falecido em 1976, era artista e, mais

devota e assiduamente, um boêmio e um degenerado. Pouco devoto a estudos e

trabalho, ingressou na Escola de Artes Clássicas de Moscou em fevereiro de 1912,

somente para abandoná-la dois anos depois, trazendo como bagagem uma

coleção de desafetos, intrigas e paixões cortadas. De volta à Bulgária, encontra

ofício como retratista em expedições européias a suas colônias, vida que lhe

aumentou o erário, as inspirações artísticas e as oportunidades para a vida ébria,

bem-aventurada e descompromissada que cultivava.

Em sua estada no Brasil, inicialmente planejada para o período de agosto

de 1948 e março de 1949, por ocasião de festividades marcando a

municipalização de Holambra, Smirnakoff passaria por radicais alterações de

rumo em sua trajetória errante, fincando no torrão holambrense raízes até seus

últimos dias. Mudança tão drástica seria motivada por seu encontro com Corrie

Ten Boom, esposa do então presidente da Associação Neerlandesa dos

Lavradores e Horticultores Católicos, Jaan Ten Boom. Corrie motivaria, ainda

que inadvertidamente, a crise que instigou Smirnakoff em direção à ávida

pesquisa que fundamenta seu único livro, pauta do presente texto.

Contratado para confeccionar uma série de retratos e gravuras da cidade

e colônia em seu estabelecimento, Smirnakoff regava, como de costume, seus

trabalhos a vinhos, vodka e noitadas despretensiosas e muitas vezes adúlteras.

Em um jantar social frequentado pelas autoridades locais – dentre as quais Jaan

figurava como um dos mais eminentes e poderosos – Smirnakoff seduz Corrie

Ten Boom, verdadeira Bovary holandesa.

Quase a despeito de Smirnakoff e para sua grande surpresa, Corrie

insere-o no ideário e nos planos eugenistas que ouvia de seu esposo; Smirnakoff

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fica desconcertado com a amplitude de seu desconhecimento em torno dos

rumos da sociedade. Smirnakoff, um romântico admirador das paixões e belezas

humanas, cai refém da volúpia e beleza do projeto eugenista “De schoonheid van

de zuiverheid” ou “De SZ” – em português, projeto A Beleza da Pureza.

Segundo depreendido da introdução de tons autobiográficos da vultosa

obra de Smirnakoff, o projeto De SZ partia dos processos de seleção artificial

para o refinamento dos exemplares florais cultivados com maestria pelos

holandeses, do qual retirava os prepostos teóricos, lógicos e argumentativos para

a defesa do processo eugênico holandês – ao que tudo indica, a Holanda pode ter

sido um dos primeiros países europeus a apresentar um programa neonazista.

Perdidamente apaixonado, mas não mais pela bela Corrie, e sim pelo

projeto De SZ, Smirnakoff dá uma guinada em sua forma de vida e galga seu

lugar entre os escalões da alta sociedade holambrense, tendo sempre em vista o

ingresso no projeto, obviamente mantido em segredo dada a péssima reputação

conferida ao eugenismo pelo nazismo. Não por acaso, o projeto holandês

assumia em muitos aspectos propostas e ideais semelhantes aos defendidos pelo

nazismo – à exceção, talvez, do papel da nação, que no projeto De SZ seria

substituído pelo papel central do agropecuarismo e do ideal do “homem forte

agricultor”, com a desmontagem das grandes cidades e metrópoles quando da

efetivação da Nova Raça, ou, no vocábulo da época, a Florada Humana.

O ímpeto cego de Smirnakoff não conhece limites, e é apenas questão de

tempo até que seja plenamente aceito e integrado à frente da missão

holambrense do De SZ: em 1953, Smirnakoff é legitimado, no culto d’A

Inseminação da Semente Pura, retratista oficial e membro do corpo ideológico

do projeto. Mas sua paixão pela eugenia não se sacia, e ele aproveita seu prestígio

no grupo para granejar acesso a todo tipo de material produzido a respeito – e é

então que Smirnakoff é mais uma vez atirado de seus sonhos por suas próprias

paixões… desta vez em definitivo. É de sua última – e maior – epifania que trata

o volume “eugenia, genocídio e genética – ritornelo”, que contava 1088 páginas

em sua única edição, escrita em russo e publicada no Brasil em tradução indireta,

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com tiragem e vendagem mínima e, por isso mesmo, uma raridade sem preço

para o estudioso do assunto.

As noites e noites de estudos e leituras de Smirnakoff, acompanhadas de

suas intermináveis reuniões com os demais membros da frente holambrense

para discussão da Floração da Nova Raça, a vodka e a alimentação indisciplinada

com certeza estimularam seu desvario, fortaleceram as associações, favoreceram

e apressaram as conclusões: o portentoso volume apresenta sem lacuna ou vazio

a civilidade humana, desde a agricultura, como uma escalada eugênica.

Para Smirnakoff, “a conquista do fogo desempenhou nos homens o papel

de Prometeu e, desde então, a evolução tem-se dado, contínua, determinada, em

direção a nossos dias” (SMIRNAKOFF, p. 433).

Pensar-se-ia, ao longo de todo o primeiro tomo, que Smirnakoff redigia

mais um elogio eugenista da Florada Humana; o segundo e terceiro tomos, no

entanto, representam o auge da epifania smirnakoffiana, prova de seu gênio e

arauto de sua derrocada em Holambra.

No tomo dois, denominado “o DNA e o engodo genético”, Smirnakoff

insere entre as referências canônicas da historiografia eugenista clássica a

descrição por James Watson e Francis Crick do DNA, publicada em 1953 e tema

de debate breve e desinteressado entre os escalões do De SZ. Em minuciosa – e

parcial – leitura da premiada publicação anglo-americana, Smirnakoff leva o

leitor à conclusão de que a descoberta do DNA é apenas a ponta de um sistema

muito mais amplo – em poucas palavras, Smirnakoff demonstra que o DNA já

foimanipulado há pelo menos vinte anos, e que a Florada Humana é muito

menos um projeto eugenista do que uma maquiagem de um projeto mais

secreto, mais amplo e determinado, falido ao fim da Segunda Guerra Mundial.

O argumento de Smirnakoff é assustadoramente complexo e sutil. A idéia

básica é que a tecnologia utilizada por Crick e Watson para comprovar o DNA

seria suficiente, na realidade, para manipulá-lo – esta é a ponta do iceberg de

toda uma série de elementos não declarados, segundo a argumentação do livro

nos sugere a pensar. Smirnakoff argumenta argumenta que tal tecnologia deveria

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estar disponível já desde meados da década de 30 (sem se demorar muito na

justificativa deste ponto específico). Deriva, daí, o argumento (que demonstra

longamente e por diversas vias) que a Segunda Guerra foi pouco mais que uma

cortina de fumaça, por meio da qual Alemanha e Holanda se muniam de judeus

– quase-humanos, em sua concepção – tendo como objetivo a manipulação

genética, por meio da qual se atingiria, efetivamente, a Florada Humana. O

sucesso da empreitada levaria à criação do Novo Homem e à detonação do

Projeto Pesticida, que varreria da terra (com bombas atômicas) os humanos, já

que a presença das Estirpes Involutas implicava em grande risco de degeneração;

a obra de Nietzsche, a seu ver, trazia em códigos esta mensagem, com Zaratustra

representando, alternada e veladamente, o suposto mentor ideológico do projeto

e o Novo Homem.

Mas a obra não adquire seu vulto na história do pensamento sobre a

eugenia em função da assombrosa teoria resenhada (breve e injustamente)

acima. O tomo três, que conta apenas cinquenta das 1088 páginas da obra,

assusta pelo marcante contraste com o restante da obra: nele, Smirnakoff afirma

que é – ele – o herdeiro intelectual de Hitler, e que o plano de purificação

dependia apenas de seu gênio.

O livro, publicado entre os membros do grupo em função da grande

influência de que ainda desfrutava até então, foi recebido com ira e

inconformação; em ríspida discussão com seu companheiro (talvez único que

ainda guardasse admiração por seus anos de lucidez e produtividade) Jörgen van

Baals – que tentava convencê-lo a forjar uma cena em que se diria difamado por

algum malfeitor com o lançamento do livro em seu nome, Smirnakoff salta sobre

Baals, agride-o até quase a morte e foge da cidade, levando consigo apenas as

roupas.

As cópias do livro foram recolhidas e arquivadas nos cofres particulares

de Ten Boom; por ocasião da morte de seu sobrinho e sem herdeiros diretos

declarados, os livros são doados à Biblioteca de Estudos sobre a Genética e

Eugenia, em Londrina; pouco interessados no material, guardam uma cópia, sem

catalogação – é desta cópia, encontrada por acaso pelo cientista e grande colega

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pessoal Efrânio Baptista, que levantou a história errante do livro e confiou-me

em conversa particular.

As idéias de Smirnakoff não constituem um marco na ciência e jamais

adquiriram visibilidade ou credibilidade; seu livro foi esquecido e jamais se

soube seu fim depois de sua fuga de Holambra – parece-me melhor assim, haja

vista o ideário sugerido. Parece-me, no entanto, que há uma lição a se

depreender da biografia de Smirnakoff.

O programa paranóico de Smirnakoff comporta como preposto um fim

da história e uma quebra do ritornelo, a superação da escalada eugenista e o

nascimento da Florada Final; a recepção de seu livro e a história subsequente a

seu desaparecimento atestam a inverdade de sua obra. No entanto, a história de

Smirnakoff pode ser aproveitada e conter grandes lições do ponto de vista do

papel da utopia e da crítica do sistema como forma de constituição de um

sistema estável, ou seja: sua utopia, seu telos não se provaram procedentes, mas

sua teoria do ritornelo, de alguma forma, sim – e disso a matéria na IstoÉ é

prova.

Desta proposição, derivaríamos as seguintes questões: talvez seja

razoável imaginar que as proposições de utopia, de fim da história e de solução

definitiva sejam simplesmente elementos catalisadores do ritornelo basal que

marca a suposta escalada técnica da espécie humana. Se assim for, os sonhos e

ambições são motores a nos impulsionar em direção a conquistas e progressos e

descobertas… e de volta aos mesmos motivos.

Smirnakoff, em sua errância, atesta a multiplicidade de sentidos

atribuíveis a uma empreitada desmedida e desligante: seria possível e até

provável que Smirnakoff pudesse, em seu afã revolucionário, desmascarar o

DeSZ e, com isso, granjear seu lugar na história, talvez como herói; em seu tomo

primeiro, Smirnakoff dá mostras de uma historiografia impecável e memorável

da eugenia holandesa; sua vida e a relação desta com seu desvario, mais que

tudo, dão-nos sinais das delicadas redes que ligam um homem aos meios pelos

quais seus desígnios e envios se revertem em formas de interação e intercâmbio

social.

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Gostaria de agradecer, antes de mais nada, a Jorge Luís Borges, por

fornecer os princípios do recurso estilístico que hoje gloso, descarado e inábil.

Peço-vos, por fim, que encham seus copos de vodka e, nesta terra

disgênica, brindemos à memória de Boris Smirnakoff, artista, boêmio, cavaleiro

andante, eugenista e inexistente.

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Carta de B.Smirnakoff a Nastassja

| o cartão postal reproduzido abaixo se encontrava sobre a carta; as condições de

conservações de ambos eram deploráveis.|

Prezada Nastassja,

Assusta, se disser que ainda a amo? Não tenho como saber, e isso me

entristece profundamente.

Que aconteceu com você? Como foi sua festa de 18 anos? Fez faculdade?

Casou-se? Teve filhos? Trabalha? Está viva? Entristeço profundamente – hoje,

sou um homem muito triste.

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Sabe que a encontrei recentemente? Ainda hoje. Não sabia, então, que de

nada se tratava, senão de grande infortúnio.

Sei que provavelmente não receberá esta carta e, mesmo assim, sinto-me

impelido a explicar… o mais honesto seria contar meus caminhos desde que saí

da Rússia; isso, no entanto, seria aborrecido e pouco útil. Retomo meus passos

desde a calmaria que prenunciava a terrível tempestade que ainda hoje arrasta

meus pilares – resta-me, hoje, pouco mais que sua lembrança e um medo, um

horrível medo…

Acredito que muita gente consideraria como problemática minha saída

de Holambra; hoje, olhando para trás, acredito que tenha sido uma decisão feliz

– pouco consciente e bastante desastrada, mas feliz.

Desde que saí de lá (já não lembro que ano foi) pouco parei; estive por

inúmeras cidades do Brasil, muitas das quais não sei, ou não recordo, os nomes.

Por muito tempo estive disfarçando minha presença, preocupado que estava em

romper meus laços com a história que escrevi em meus anos holambreses;

nesses tempos, por onde passava inventava para mim um nome, uma história,

um destino novos. Errantes eram os dias, meus passos e minhas palavras,

vagueando entre os seres como almas penadas, desafetados de si próprios, e eu

desafetado de mim mesmo. A depender de meu desempenho na cidade e do

acaso, vestia-me bem ou mal, comia ou não, festejava ou dormia sob pontes –

sem que as mudanças implicassem em alegria ou tristeza para mim.

A distância entre mim e Holambra, cada vez maiores, e o meu desapego

em relação a mim mesmo e meu destino me levaram, pouco a pouco, a reassumir

meu nome de batismo e meus atributos mais salientes; não posso dizer que era

um resgate ou um ressurgimento – estes detalhes, a esta altura, já não me

convenciam de que eu era alguém e de que a prevalência destes ornamentos em

minha história faziam deles parte de mim. Retomei a verdade histórica por pura

preguiça. Apenas um detalhe, secundário em princípio, fez-se decisivo: a pintura.

Há muito não pintava – desde meus dias como membro de um grupo de

que tive a infelicidade de participar, em Holambra. Este atributo, este despojo de

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meu distante passado, retomei-o em conversa com um pintor de rua, em uma

feira clandestina em uma cidade apagada em minha memória por completo,

salvo pelo pintor.

Ao conversar com ele percebi o quanto a pintura, o próprio ato de pintar,

fazia dele alguém – ele, a depender dele mesmo, provavelmente se chamaria

“pintor”, sem mais nem menos – sem nome, sem idade, seria ele O Pintor da

Praça de… uma cidade que esqueci o nome. Decidi que eu retomaria minha vida

de pintor. Seria Pintor.

Acho que é importante que você saiba que fui pintor por muitos anos.

Quando nos conhecíamos eu quase não me importava com as artes, se pintava e

desenhava era porque o mundo da escola e das regras me aborrecia; depois que

você saiu da cidade, e muito além, eu me interessei mais e mais pelas artes, e

estudava o belo – queria ter o belo em minhas mãos e sob meu controle. A

verdade é que se você tivesse ficado na cidade e eu tivesse a coragem de dizer que

te queria comigo, que não queria que se fosse, talvez eu hoje fosse um pedreiro

ou um professor primário – um pedreiro ou um professor primário feliz.

… foi como pintor que cheguei ao Brasil, e a Holambra. Teria sido pintor

a vida inteira, se meus passos em Holambra não me tivessem levado a destinos

absolutamente distintos e à errância que já contei. Curiosamente, minhas

experiências em Holambra fizeram de mim um pintor bastante diferente de

todos os outros que já conheci. Mas chego aí, logo logo.

Onde parei, mesmo? Tendo conversado com o pintor e ficado…

emocionado com o quanto ele se reconhecia e tinha paz porque se via a si como

pintor, decidi que seria, eu mesmo, mais uma vez, um pintor. Um Pintor. Pensei

em começar lá mesmo, na cidade que não lembro o nome (Valença! Estava em

Valença.), na feira de artesanato e antiguidades onde o Pintor pintava – mas não

consegui, justamente porque não tolerava a idéia de disputar com o Pintor que

me restituíra um plano e um sentido o pão de cada dia. E assim segui viagem.

Daí em diante meus passos já eram um pouco mais meus, e lembro por

onde passei; estava então na Bahia (Valença fica na Bahia, aqui no Brasil) e

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rumava sempre ao Norte – talvez rumo à Rússia, talvez fosse para longe de

Holambra, talvez seguisse a orla porque me agradavam o sol e o mar, mas na

época não era isso, não sei o que era. E na próxima cidade que parei me informei

logo onde ficava a feira de artesanato e fui retomar meu destino – fui pintar, era

Pintor.

Estava muito feliz quando recebi a primeira encomenda – uma paisagem

de praia ao poente. Eu sempre fora mais habituado às figuras, era um

profissional dos retratos, um retratista, na maioria de meus trabalhos, mas só

queria pintar.

E pintei. Caprichei muito, e tratei muito bem a cliente, porque queria me

estabelecer, queria ser Pintor e viver minha vida em paz.

E ela gostou do que fiz, e na semana seguinte recebi outras duas pessoas,

e algumas vieram junto para observar. A primeira delas me pediu um retrato;

fiquei muito feliz – estava fazendo as pazes com o mundo!

Como era bom sentir o corpo leve de preocupações e angústias, sentir-se

pintar e sentir o corpo a mover-se, envolvido pelas artes e pelo conhecimento

acumulado, sem que eu me preocupasse com nada a não ser aquele momento e

aquela… libertação. Nem me vi pintar, nem via o que pintava, era um retratista

nato e aquilo saía de mim naturalmente.

E então ficou pronto. Olhei para o que havia criado com espanto. Fez-se

silêncio à minha volta.

Não havia retratado a mulher que me pediu o retrato.

|A carta reproduzida acima foi encontrada aberta e sem

endereço sobre a mesa da residência de Smirnakoff; tudo indica

que ela não está completa mas, considerando que ela

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provavelmente não foi escrita para ser remetida, pode-se

especular que Smirnakoff tenha se detido sobre ela apenas

enquanto convinha, interrompendo-a quando parou de fazer

sentido. Nada disso poderá ser esclarecido, e só nos resta

especular.|

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Notas do obituário d’O Valenciano de dezembro de 1955

[Notas para o obituário de Boris Smirnakoff, que seria publicado na coluna

“Personalidades” do jornal “O Valenciano”, de 12 de dezembro de 1955. O

obituário foi redigido por João Mendes e entregue aos cuidados do editor da

seção de Personalidades de Valência (também encarregado das colunas de

Esportes, Cotidiano, Notícias Internacionais e direção geral) Pedro Mendes. Não

foi encontrado nenhum exemplar desta edição de “O Valenciano” para

conferência da publicação. Em verdade, o jornal “O Valenciano” faliu em 1957 e

não teve sua circulação retomada até esta data. A carta estava anexa às notas e

foi jogada no lixo do escritório de Pedro, por ele mesmo].

Caríssimo Pedro,

desde a morte de nosso pai e sua entrada na direção do jornal você tem me

mantido na seção de personalidades, escrevendo sobre os pequenos pudores

desta cidade esquecida por Deus. Agora, quinze dias após recusar minha

proposta de inauguração de uma coluna cultural em honra de nosso pai, passa-

me como tarefa a redação do obituário deste homem maldito!

Sabemos, por acaso, se ele morreu de verdade? Ana o disse, mas como

sabemos a verdade do que ela diz? Ela não esteve, afinal de contas, mentindo a

você pelos últimos meses? Não percebe que ela o está protegendo? Ele saiu da

cidade e está alhures, e jamais o encontraremos, e todos nós devemos ser

responsabilizados por nossa passividade e cumplicidade nos gestos destrutivos

do maldito russo!

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… até quando vai fingir que nada aconteceu?

Eu desisti de jogar este jogo com você. Seguem as notas que consegui

coletar – última tentativa de atuar com dignidade neste jornal. Considere este

trabalho uma carta de demissão; vou-me com Maria e meus dois. Espero

escrever-te um dia e receber resposta de alguém que retomou os sentidos.

Apesar de tudo, ainda te amo, irmão. Só quero que melhore, e se

reencontre e, esquecendo de vez esta idéia de honrar nosso pai e o nome que

carrega, possa enfim carregá-lo com alguma honra, para onde quer que seja. Da

forma como tem agido, definitivamente não o honra.

Mandarei notícias quando souber com certeza que não fará nada tentando

me trazer de volta. Abandono Valência de vez. Lembranças a Ana, e melhoras – a

ela e a você.

Seu,

João

1. O levantamento documental acerca de Smirnakoff se deu de forma rápida e

sem sobressaltos – sua estada na cidade foi breve e, ao fim e ao cabo, não há

nenhum documento oficial dele ligando-o à cidade ou ao passado que ele

declarava, aqui e ali. A grande verdade é que ninguém em Valência – e eu não

sou exceção – sabe nada a respeito do russo, que pode bem nem ter este nome;

de fato o obituário só é tratado com algum respeito porque ele se tornou notícia

de ponta em toda a região ultimamente, com sua vida “polêmica”, e pelo

desconhecido de seu passado há possibilidade de haver algum interesse que

ainda não apreciamos nas circunstâncias de sua estada aqui. (Eu, por mim, não

faria nada disso, e sempre detestei a figura). As informações que angariei decorre

basicamente de observações e impressões da população da cidade, que fui

cruzando e cheguei, com alguma violência, aos dados das notas, que espero

tornar em texto e vender o mais breve possível.

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2. Boris chega a Valência em 1953; inicia sua participação na feira de artesanato

na semana seguinte; em um mês vira atração turística. Passa o próximo ano

trabalhando para personalidades de Salvador e redondezas, sob encomenda.

Espalham-se rumores de que ele se engaja sexualmente com a maioria de suas

retratadas. Adota um estilo boêmio e lânguido e destrata todas as pessoas da

cidade. O trabalho e a vida de Boris passam a ser marcados pela bebida e drogas,

e há notícias de que ele chega a passar dias sem conseguir se lembrar do

português, falando apenas russo com aqueles que o visitam. Vira estrela das

prostitutas e dos pequenos traficantes da região, que vêem nele financiamento de

boas festas e altos lucros com as orgias que promove em sua própria homenagem

em sua casa a beira-mar. Até a noite de novembro de 1955 – cujo dia exato passa

a ser impreciso, tamanhas as polêmicas e burburinhos que se seguiram à sua

morte – quando todos os membros da festinha que estava em andamento foram

enxotados violentamente por ele, evento que dá início à marcha (desconhecida)

de fatos que culminará em sua morte nesta mesma noite.

3. Falta na região um especialista em retratos que possa explicar de onde deriva

todo o fascínio que as obras de Smirnakoff despertam, e que fizeram seu trabalho

prosperar a despeito do desrespeito que tinha por tudo e todos à sua volta. A

verdade é que seus retratos parecem em tudo versões perfeitas das pessoas

retratadas – sempre que penso a respeito imagino que isso é loucura e que com

certeza perceberia o truque vendo algum quadro seu novamente; sempre que

tenho oportunidade de observar um quadro seu sou tomado pela mesma

sensação e fico quase extasiado com as obras.

4. De volta à noite derradeira. Sabe-se que Smirnakoff se descontrola enquanto

retrata, completamente ébrio, uma de suas prostitutas. Segundo notícias, os

retratos, ainda de alto valor artístico, há muito haviam deixado de lado o

retratismo em si, passando a representar mistos indecifráveis de memórias de

Smirnakoff, elementos da beleza pura que o fez famoso e elementos fantásticos,

como cores vibrantes e artificiais que ele imiscuía com inegável talento nas

obras.

5. O quadro inspirado na prostitua foi encontrado incompleto. Isso em si não

impressiona, já que ele teria perdido de vez a sanidade justamente a partir desta

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pintura; o que impressiona é o fato de que o rosto retratado não parece nem de

longe com a prostituta, e isso nunca havia acontecido nos retratos de Smirnakoff.

Se, por um lado, os retratos não aspiravam mais à fidedignidade, sempre foi

possível reconhecer quem era retratada e afirmar que se tratava de um retrato

“aperfeiçoado” de tal ou qual pessoa. No caso da pintura encontrada na casa,

sabe-se que estava sendo retratada Janaína, e a pintura apresenta uma moça que

jamais foi vista em Valência, aparentando seus quinze anos, com traços europeus

– talvez a tal Nastassja mencionada na carta da escrivaninha?

6. … esse obituário é impossível. Não sabemos sequer o nome do morto, nem se o

morto está morto. E se alguém em Valência merece respeito, este alguém não é o

russo. Desista, irmão.

Smirnakoff, Nastassja, Eugenia

w i l l f r a n c o – h t t p : / / e r r a n c i a s . c o m

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Smirnakoff, Nastassja, Eugenia

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