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O presente trabalho propõe a partir da metodologia da História Oral, a análise das memórias concernentes ao Solar Lopo Gonçalves representadas nas narrativas de três interlocutores, Leandro Telles, Nestor Torelly Martins e Sergio Traunetti. Estes que possuem perfis distintos de narrativas na constituição do espaço enquanto Museu de Porto Alegre. Assim, a partir da perspectiva de que entrevistados selecionam as memórias que os identificam com o espaço do Solar, estes elementos constituem-se em produtos de suas reminiscências, que passam a assumir o caráter de patrimônio cultural, acrescentando informações à produção histórica, em especial em sua relação com instituição museológica. Este trabalho propõe uma reflexão a partir das próprias reminiscências produzidas sobre o espaço, estas que além do acréscimo da produção de novas versões da história, trazem a compreensão da importância do espaço de memória como elemento de interação e representação da comunidade a qual pertence. Destacamos a acuidade da promoção de uma afinidade onde a comunidade se sensibilize e entenda seu papel social na luta pela preservação do patrimônio cultural.
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1
UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL
CURSO DE HISTÓRIA
LEANDRO BARBOSA
SOB A SOMBRA DA MAGNÓLIA: UM SOLAR, UM MUSEU, UM FLORESCER DE
MEMÓRIAS.
CANOAS
2014
2
LEANDRO BARBOSA
SOB A SOMBRA DA MAGNÓLIA: UM SOLAR, UM MUSEU, UM FLORESCER DE
MEMÓRIAS.
Monografia de Conclusão de Curso de Graduação apresentada ao Curso
de História da Universidade Luterana do Brasil – Campus Canoas, como
requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em História.
ORIENTADORA: Evangelia Aravanis
CANOAS
2014
3
Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera
do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites,
porque é apenas uma chave para tudo que veio antes e depois.
Walter Benjamin.
4
AGRADECIMENTOS
O meu especial agradecimento a Amanda Coffi Andrade por todo o apoio nestes anos.
Secou-se a erva e caiu a flor, mas nos permanecemos para ver muitas novas primaveras (Te
amo). Também não menos importantes foram os amigos, e todos aqueles que de alguma
maneira sempre estiveram presentes torcendo por nós. Ao recorrer à lembrança, percebo
imagens e rostos que não desvanecem na sombra, mas são despertos na memória, aquecidos
pelo coração e sempre preservados na alma. Aos mestres, professores, amigos, que me
ensinaram a caminhar os meus passos em direção ao futuro, eu faço parte de vocês, assim
como sempre serão parte de mim. Os carrego em cada palavra dita e aprendida nesta linda
profissão.
5
RESUMO
O presente trabalho propõe a partir da metodologia da História Oral, a análise das
memórias concernentes ao Solar Lopo Gonçalves representadas nas narrativas de três
interlocutores, Leandro Telles, Nestor Torelly Martins e Sergio Traunetti. Estes que possuem
perfis distintos de narrativas na constituição do espaço enquanto Museu de Porto Alegre.
Assim, a partir da perspectiva de que entrevistados selecionam as memórias que os
identificam com o espaço do Solar, estes elementos constituem-se em produtos de suas
reminiscências, que passam a assumir o caráter de patrimônio cultural, acrescentando
informações à produção histórica, em especial em sua relação com instituição museológica.
Este trabalho propõe uma reflexão a partir das próprias reminiscências produzidas sobre o
espaço, estas que além do acréscimo da produção de novas versões da história, trazem a
compreensão da importância do espaço de memória como elemento de interação e
representação da comunidade a qual pertence. Destacamos a acuidade da promoção de uma
afinidade onde a comunidade se sensibilize e entenda seu papel social na luta pela
preservação do patrimônio cultural.
Palavras Chave: Memória, oralidade, patrimônio, comunidade, cultura
6
ABSTRACT
This work proposes, using the methodology of Oral History, the analysis of memories
concerning the Solar Lopo Gonçalves in the narratives of three personalities, Leandro Telles,
Nestor Torelly Martins and Sergio Traunetti. Those who have different profiles in the
constitution of space as Museum of Porto Alegre. Thus, from the perspective that the
interviewed select the memories that identify them with the space of the Solar, these elements
while his reminiscences products start to assume the character of cultural heritage, adding
information to the historical production, especially in relation to museum institution , place of
its materialization. This paper proposes a reflection from their own reminiscences produced
on space, these that besides the addition of new versions of the story, bring understanding of
the importance of memory space as interaction element and community representation to
which it belongs. We highlight the accuracy of promoting an affinity where the community
raises awareness and understand their social role in the struggle for preservation of cultural
heritage.
Keywords: Memory, orality, heritage, comunity, culture
7
Lista de Imagens e Figuras
Figura 1 Vista da cidade Baixa | Fonte: Fototeca Sioma Breitman .......................................... 31
Figura 2 Casas localizadas a Beira do Arroio | Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman ....... 32
Figura 3 Lopo Gonçalves Bastos | Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman .......................... 32
Figura 4 Aquarela de Hermann Rudolph Wendroth (1852) | Fonte: Acervo Fototeca Sioma
Breitman ................................................................................................................................... 33
Figura 5 Albano Volkmer e sua esposa Elisa Laydner, Bodas de Ouro (1962) | Fonte: Acervo
particular José Carlos Volkmer ................................................................................................ 34
Figura 6 Fachada do acesso principal | Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman ................... 35
Figura 7 Construção do Viaduto dos Açorianos (1970) | Fonte: Acervo Fototeca Sioma
Breitman ................................................................................................................................... 36
Figura 8 Museu em processo de restauro - Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman ............. 37
Figura 9 Leandro Telles - Fonte: Arquivo do Museu de Porto Alegre..................................... 41
Figura 10 Aquarela, de Alberto Scherer, Porto Alegre/RS/Brasil ............................................ 42
Figura 11 Nestor Torelly Martins - Fonte: Arquivo do Museu de Porto Alegre ...................... 44
Figura 12 Madeiramento em condições Precárias - Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman 46
Figura 13 Restauro do Madeiramento - Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman .................. 46
Figura 14 Sérgio Traunetti - Fonte: Arquivo do Museu de Porto Alegre ................................ 48
Figura 15 Arroio Dilúvio. - Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman ..................................... 50
Figura 16 Bodas de Ouro de Albano Volkmer (1962). No centro da foto, Albano, sua esposa e
filha que residiram no Solar. Fonte: Acervo particular José Carlos Volkmer .......................... 52
8
Sumário
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 9
1 O PORQUÊ NARRAR É TAMBÉM FAZER MUSEU? ............................................................. 11
1.1 Metodologia e reflexões sobre patrimônio ..................................................................... 11
1.2 O Museu com cultura e a cultura com o Museu ............................................................ 14
1.3 Os jogos entre memória e história .................................................................................. 18
1.4 Narrando memórias e contando histórias: considerações sobre a história oral .............. 23
2. UM SOLAR QUE VIROU MUSEU: Museu José Joaquim Felizardo ....................................... 31
2.1 O Solar da família Gonçalves Bastos: Um centenário de história (1845-1945) ............. 31
2.2 O Solar enquanto residência da família Volkmer ........................................................... 34
2.3 O Solar como propriedade da SASSE ............................................................................ 34
2.4 O Solar Lopo Gonçalves como espaço preservado ........................................................ 35
3. AS ENTREVISTAS ........................................................................................................................ 38
3.1 Os Personagens e suas Narrativas .................................................................................. 39
3.1.1 Leandro Telles ...................................................................................................................... 39
3.1.2 Nestor Torelly Martins ......................................................................................................... 44
3.1.3 Sérgio Traunetti .................................................................................................................... 48
Considerações Finais ........................................................................................................................... 54
REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 58
9
INTRODUÇÃO
A perspectiva do presente trabalho surge na analise dos resultados da pesquisa ao qual
participei, no projeto em história Oral do Museu de Porto Alegre Joaquim José Felizardo sob
a orientação da Drª Maria Angélica Zubaran. A pesquisa foi vinculada à Universidade
Luterana do Brasil (ULBRA), intitulada de “Narrar Outras Memórias, Contar Outras
Histórias: Museu, Comunidade e Patrimônio Cultural”. Também destaco a importância de
minha participação em outro projeto do Museu sob a mesma orientação, com o título de "As
Narrativas Preservacionistas e o Museu de Porto Alegre: Memória, Patrimônio Cultural e
Identidades (1970-1980)". Igualmente destaca-se a relevância de minha atuação no projeto de
educação patrimonial Caixa de Memórias, mantido pela secretaria de Cultura da prefeitura
Municipal de Porto Alegre, também sediada no Museu de Porto Alegre.
O estudo dá-se mediante ao desenvolvimento de uma análise que busca evidenciar
fundamentos históricos que ressaltem importância da instituição museológica, bem como a
sua representação através da oralidade. Através do uso da História Oral como ferramenta na
produção de um indicativo para o registro da memória e a produção histórica, reconhecendo
sua importante função como meio de constituição de identidade para os grupos. Este
questionamento perpassa a relação entre relatos produzidos por um preservacionista, o
responsável técnico pelo restauro do prédio, e um antigo morador do entorno do museu.
Todos estes envolvidos no processo de patrimonialização e reconhecimento da estima do
Solar Lopo Gonçalves para a cidade. Também será destacada a análise de como esta afinidade
se reflete na produção destas histórias e narrativas.
Através de um exame dos relatos, ofereceremos a importância da formação deste
espaço de memória, bem como daremos destaque as reminiscências dos entrevistados como
construtoras de sentidos, estes que são parte integrante e essencial da história da cidade,
elemento evidente para o patrimônio cultural imaterial de Porto Alegre. Frente às oscilações
temporais percebidas através do decorrer dos anos pelos entrevistados, notamos um esforço
em reatualizar o habitual, reencontrando os laços de sociabilidade e solidariedade que
fundamentam uma apropriação do espaço. Nesta perspectiva encontra-se uma “ambiência”
peculiar para com o prédio do Solar Lopo Gonçalves1,
hoje reservado para uso do museu.
1 O Museu Joaquim José Felizardo, Museu Histórico da cidade de Porto Alegre, tem como sede o Solar Lopo
Gonçalves, construído entre 1845 e 1855, na antiga rua da Margem (atual João Alfredo), com arquitetura de
influência luso-brasileira, para ser “residência da chácara”, lugar de descanso da família do comerciante
português Lopo Gonçalves, nos fins de semana e feriados.
10
Quanto à metodologia de pesquisa utilizada para composição desta monografia, foram
aproveitadas uma série de entrevistas semi-abertas que faziam parte do arquivo museológico
do Museu de Porto Alegre José Joaquim Felizardo, estando preservadas no acervo. Estas
seguem a abordagem da história de vida, profissão, experiências relativas às próprias questões
de preservação e restauro do espaço. Na observação ressaltaram-se as reminiscências dos
entrevistados, estes homens em uma faixa etária no entorno dos 70 anos, possuindo uma
diversidade de experiências implicadas com prédio, outras recorrentes a formação do bairro,
mas que perpassavam a constituição do Solar Lopo Gonçalves enquanto Museu de Porto
Alegre. Na escolha dos depoentes levou-se em conta que esses sujeitos sociais possuíam ou
produziram memórias relevantes sobre o Museu, e que evocavam a importância da
preservação do espaço de memória. Neste sentido, visamos ressaltar a importância da
emergência dessas reminiscências coletivas contemplando a diversidade social, étnica,
cultural e, fundamentando os laços de pertencimento dessas populações às suas comunidades
e ao patrimônio cultural de suas cidades.
11
1 O PORQUÊ NARRAR É TAMBÉM FAZER MUSEU?
1.1 Metodologia e reflexões sobre patrimônio
Nas últimas décadas a história tem passado por uma auto avaliação, onde temas como
a memória e patrimônio além de encontrar força nos debates, apresentam a possibilidade de
uma abertura maior para as novas metodologias na constituição da escrita da história. Destes
temas, os debates sobre a memória protagonizam as reflexões, impulsionando cada vez mais
os pesquisadores a um aprofundamento nas diferentes manifestações e produções de sentidos,
que decorrem destes estudos sobre as diferentes reminiscências. Atualmente tornou-se
evidente a abrangência dos debates a respeito do conceito de patrimônio cultural, identidade e
etnicidade, em dimensões que estão além das discussões já estabelecidas. Ainda hoje
encontramos certa resistência sobre o seu reconhecimento como um ponto de partida e
chegada de um indivíduo, em questões que abrangem a sua diversidade, levando em conta a
capacidade criativa humana de transformar o seu meio.
Por varias razões o tema patrimônio tem permeado os debates nas mais diversas
categorias de análise na atualidade. O passado e o presente, inclusive o futuro, estão cada vez
mais se “patrimonializando”. Na atualidade há uma diversidade de grupos, populações,
práticas e culturas que conquistaram o reconhecimento como patrimônio humano. Sendo que
estes assumiram o caráter e a importância como constituidores de identidade, agregando valor
aos mais diversos debates políticos, fortalecendo as reivindicações de grupos que antes não
possuíam reconhecimento. Tornou-se fundamental percebermos a memória2
enquanto a
capacidade de reter, recuperar, armazenar e evocar ideias, saberes, sensações, emoções,
sentimentos, informações e experiências do passado, que constituem sentidos no presente
apresentando diferentes durações. Assim, neste trabalho objetivamos constituir a pesquisa
incorporando esta perspectiva sobre a memória, entendendo que dar voz aos relatos pessoais
na elaboração de uma narrativa do grupo, possibilita constituição do patrimônio possibilita a
integração dos indivíduos sociais ao processo de construção biográfica coletiva, esta
recorrente às memórias compartilhadas sobre o espaço que hoje é apropriado pelo museu.
2 Para Lê Goff a memória tal como ela, surge nas ciências humanas (fundamentalmente na história e na
antropologia), e se ocupe mais da memória coletiva que das memórias individuais, importa descrever
sumariamente a nebulosa memória no campo científico global. A memória, como propriedade de conservar
certas informações, reenvia-nos em primeiro lugar para um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o
homem pode atualizar impressões ou informações passadas, que ele representa como passadas.
12
Esta diversidade nos usos da memória, encontramos facilmente incorporados nos
projetos de história oral, onde o mapeamento de testemunhos orais para a constituição da
memória coletiva ultrapassam as diferentes formas de narrar, manifestando a pluralidade
como parte da identidade e cultura destes grupos. A história oral surge para cumprir também
uma função social, permitindo a apropriação por parte dos habitantes, os tornando herdeiros
de um legado. Uma vez que relatos não se evidenciaram na construção histórica,
lamentavelmente faz-se a falta do reconhecimento e identificação da maioria da população em
relação ao bairro, por não compreenderem a sua importância histórica. Lembrar e reconhecer
o que passou é continuar a vida, cônscio de que outros virão e passarão a ter consciência do
que ocorreu, sabendo que cada geração assim desejou, e assim contribuiu para a difusão do
conhecimento.
(...) o importante é compreender que uma coisa ou objeto só se
transforma em bem cultural quando alguém (indivíduo ou coletivo) por ato
de vontade afirma, descreve e garante a sua passagem simbólica para uma
nova condição. A constituição do bem cultural implica um processo de
atribuição voluntária e significados e valores. (CHAGAS, 2002, p. 18)
Precisamos reconhecer que há uma problemática nas relações de memória e poder no
que tange a produção da história. Por isso na atualidade destacam-se estas iniciativas que
questionem o que já foi elaborado sobre o tema, em uma importante abertura para precedentes
que produzirão novas perspectivas para história. Os surgimentos destes relatos que partem das
memórias populares são um exemplo de como muitas vezes a diversidade de percepções sobre
um mesmo evento pode exibir elementos conflitantes com as narrativas oficiais. É um
abrolhar de muitas narrativas desvelando facetas da história que em outro período foram
intencionalmente conduzidas para não desprestigiar as versões que partiam das fontes oficiais.
Não podemos descartar que a história em momentos foi propositalmente manuseada, e
utilizada até como instrumento de propaganda no sentido de favorecer grupos, poderes e
interesses.
(...) preciso reconhecer a inseparabilidade da entre memória e poder,
entre preservação e poder, implica em aceitação de que esse é um terreno de
litígio e implica também a consciência de que o poder não é apenas repressor
e castrador, é também semeador e promotor de memórias e esquecimentos,
de preservação e destruição. (CHAGAS, 2002, p. 18)
Atualmente, através da percepção do elemento cultural, novos rumos surgem, abrindo
possibilidades para novas versões sobre os mais diversos eventos descritos. Chartier (2002)
oferece destaque à importância de identificar a maneira como em diferentes lugares e
momentos uma realidade social é construída, pensada e lida. Ao analisarmos a vida social,
13
esse campo pode adotar por objeto as formas e os motivos das suas representações e pensá-las
como análise do trabalho de representação das classificações e das exclusões, estas que
constituem as configurações sociais e conceituais de um tempo ou de um espaço. No entanto,
a História Cultural deve ser compreendida como o estudo dos processos com os quais se
constrói sentido, uma vez que as representações podem ser pensadas como esquemas
intelectuais, que criam as figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro
tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado .
Já Paulo César Tomaz (2010) ressalta que as memórias que cada indivíduo possui de
sua cidade estão intensamente vinculadas às construções que apontam um passado comum.
Para o autor, a memória pode ser despertada através de lugares e construções que, em sua
concretude, são capazes de fazer memória a vida passada. Neste sentido, a importância desse
trabalho está em realizar uma leitura do bairro-cidade através das multíplices representações
urbanas dos entrevistados sobre o patrimônio cultural urbano. Preservar essas memórias é o
ato de zelar pelos significados e valores que os entrevistados imputam as práticas do cotidiano
e ao patrimônio cultural da cidade, além de contribuir para a ampliação dos vínculos e
apropriação entre a comunidade e o espaço de memória.
Quando pensamos nos museus, podemos identificar uma enormidade de práticas
significativas nos processos de investigação, ordenação de acervo, e configuração de projetos
para exposições. É fato que os museus foram o berço para muitas das ciências na atualidade,
e em especial no caso da história, onde ela se vê marcada pela presença de um ideal de
preservação, este que rememora os profissionais que reuniam objetos e documentos na
elaboração de seus ofícios. Neste sentido refletir sobre o conceito de patrimônio tornou-se
uma questão contundente dentro das mais tradicionais disciplinas, e vem cada vez mais
corroborando para a compreensão dos processos sociais atualmente.
O autor Françoise Choay (2001) quando propõe uma “arqueologia” para o conceito de
patrimônio, destacando que o termo está incorporado na origem humana, unido às estruturas
familiares, econômicas e jurídicas de uma sociedade estável, este arraigado no espaço e no
tempo. O autor explora em profundez a definição de patrimônio no decorrer dos últimos cinco
séculos, destacando que a significação que é agregada a este possui motivações existenciais.
Ele acaba por empregar uma formulação de conceito "nômade3", este que vem sendo
3 Segundo Choay a palavra patrimônio tornou-se polissêmica. Os adjetivos que hoje lhe aparecem conectados
possuem grande variação que segue desde o histórico, cultural, intangível, paisagístico, coletivo, natural, etc. O que
aponta um longo trajeto semântico e histórico que é atribuído de conceito “nômade”. Esta palavra é empregada
desde a Antiguidade, já constando a sua referência no direito romano, onde a palavra patrimônio (do latim
14
largamente empregado no cotidiano para definir um adjacente de bens, materiais ou
imateriais, direitos, ações, posse e tudo o mais que determine esta definição de pertencimento
a um indivíduo, ou seja, algo que possa estar dependente à apreciação econômica. O Autor
comenta que essa transmitância ou empréstimo de uma geração para a próxima, seja de um
bem considerado como patrimônio do grupo e da família, ou do status respectivo a tal
propriedade, é de vital acuidade para a continuidade de um grupo social. Essa passagem é
feita na forma de herança de bens ou de práticas sociais. A partir desta proposta de conceito
patrimonial como transmitância ou empréstimo de uma geração, poderíamos propor uma
análise de como é construído este processo de pertencimento no que tange a constituição
identitária.
Ao debater a noção de patrimônio como um elemento agregador de memórias
coletivas, Le Goff (1998) aponta três etapas históricas para a elaboração desta perspectiva. O
primeiro momento que destaca se encontra no amago do processo de desenvolvimento dos
Estados Nações, onde a construção do significado deu-se na identificação simbólica de um
passado nacional comum para o grupo. As abrangências dos usos deste conceito permearam-
se por entre as duas grandes guerras mundiais. Em um segundo momento o conceito passou a
ser utilizado por diversas instituições internacionais, adquirindo uma perspectiva de maior
abrangência. A partir da década de 60, esta noção de patrimônio ampliou a sua condição
dentro da história, incorporando elementos do social, em uma transição que vai desde o
patrimônio herdado até o reivindicado, do que era palpável e material, passa assumir agora
uma perspectiva invisível e imaterial. A noção de patrimônio imaterial possui uma relação
direta com a concepção de cultura, em especial quando esta imaterialidade simbólica traça
caminhos dentro desta construção de bem patrimonial.
1.2 O Museu com cultura e a cultura com o Museu
Para o historiador Pierre Nora (1993) o patrimônio cultural é entendido como um
amplo e diversificado conjunto de bens culturais (materiais ou imateriais) que permite a cada
segmento social se aproximar do passado, compondo imagens de sua identidade, quer
individual ou coletiva. A partir da reflexão do autor, poderíamos destacar que o espaço de
patrimonium) possuía o significado de um conjunto de bens que deveria ser atravessado, transmitido dos pais aos
filhos, não vislumbrados conforme o seu valor econômico, mas na condição de bens a serem transmitidos.
15
memória deixaria o caráter de local meramente contemplativo e colecionista, e tornar-se-ia em
um ponto de tensões. Este ambiente se constituiria em um espaço adequado para refletirmos
sobre estas articulações entre o passado e o presente, sendo que nesta relação tonar-se-ia
possível ampliar o valor social de cada objeto a partir das diversas perspectivas propostas.
Soares (2003) propõe a sensibilização como uma forma de aprendizado onde ocorra uma
influência mútua para com a comunidade, provocando uma apropriação dos espaços e objetos
considerados como patrimônios. A sua importância esta justamente na carência de que haja
uma melhor apreensão, onde os indivíduos se apropriem do patrimônio de maneira concreta,
frequentando os lugares de memória, reconhecendo saberes e percebendo os objetos das mais
variadas formas.
Neste sentido pode-se ressaltar que através da inclusão desta proposta na educação
patrimonial, o objeto museológico é ressignificado abandonando a condição de relíquia fora
de sua época, personificando a força de elemento constituidor de sentido. Porém é importante
destacar que a educação patrimonial ainda é um pensamento considerado recente, que não
conseguiu afastar-se do senso comum que encara o espaço do museu como um local de
objetos antigos, incomuns, um espaço de espetáculo silencioso, sem vida e sem possibilidade
de questionamento. Quando pensamos na importância da cultura como elemento político
determinante na construção do conceito de patrimônio, devemos nos perguntar sobre o sentido
amplo que abarca este conceito, pois somente conhecendo a sua razão de ser profunda, e o
atrelamento com o próprio surgimento da história enquanto disciplina, seremos capazes de
produzir as ações eficazes na valorização das diferentes culturas materiais e imateriais.
É importante destacar que a justificativa de pautarmos o tema da identidade e cultura
de forma ampla ao debate, em especial no que tange o tema do patrimônio, se dá na
necessidade de constituirmos elementos conceituais para uma base teórica em torno destes
conceitos no contexto contemporâneo. É a busca de uma explicação para a formação sócia
identitária nas conjunturas mais intricadas. Neste sentido a abordagem se constituiria de uma
apreciação destas definições de identidade e cultura enquanto categorias de análise política,
proporcionando elementos na compreensão do conceito de patrimônio, este que também opera
como uma categoria nestas disputas. Ao refletirmos sobre as questões relacionadas às
perspectivas constitutivas da identidade cultural, e sua relação com o conceito de patrimônio,
teríamos que nos acercar especificamente a alguns temas importantes decorrem da
compreensão destes conceitos. Nesta perspectiva, destacam-se os processos que induzirão às
alterações no conceito de identidade na percepção moderna até a pós-moderna, bem como os
elementos limitados a esta análise. Os estudos de Stuart Hall (2005) foram fundamentais na
16
ampliação desta perspectiva, em especial em sua conceituação de cultura, e sua abordagem
sobre Estudos Culturais alcançando reconhecimento como uma das principais referências no
debate sobre cultura, identidade e etnicidade.
Ele propõe um breve conceito de cultura que é fundamental na concepção de
identidade cultural e suas articulações. Nesse sentido Stuart Hall propôs uma reflexão sobre as
mutações sofridas pelos sujeitos ao decorrer da constituição do pensamento moderno,
evidenciando que houve uma forte alteração no sentido das antigas identidades que davam
harmonia e equilíbrio aos indivíduos. Esta perspectiva moderna carrega consigo um universo
de possibilidades para a composição da identidade cultural, estas que são distintas nos
elementos de coexistência dos grupos.
A cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu
"trabalho produtivo". Depende de um conhecimento da tradição enquanto "o
mesmo em mutação" e de um conjunto efetivo de genealogias. Mas o que
esse "desvio através de seus passados" faz e nos Capacitar, através da
cultura, a nos produzir a nos mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos.
Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo
que nos fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades
culturais, em qualquer forma acabada, estão a nossa frente. Estamos sempre
em processo de formação Cultural. A cultura não e uma questão de
ontologia, de ser, mas de se tornar. (HALL, 2006, p.44)
Desse modo, o autor elucida a complexa interpretação do contraponto existente entre
os contrastes, do pertencimento e não pertencimento, as etnias, nacionalidade, religiosidade
etc. Ele oferece destaque à questão dos distintos códigos simbólicos que amparam os
intercâmbios de identidade cultural existentes na sociedade. Hall destaca como elemento
central o tema concernente às identidades culturais, ante ao debate do que se compreende por
identidade:
Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é
interpelado ou representado, a identificação não é automática, mas pode ser
ganha ou perdida. Ela tornou-se politizada. Esse processo é, às vezes,
descrito como constituindo uma mudança de uma política de identidade de
classe para uma política de diferença. (HALL, 2005, p. 21)
Já Gonçalves (2003) segue apontando que o patrimônio e a memória coletiva, ambos
compõem um conjugado de significados que vem a comportar dentro de si uma pluralidade de
sentidos que lhe são designados. Mesmo quando o conceito é abordado como um receptáculo
de um passado protegido, ou como uma reminiscência necessária para a constituição do
presente apontando para um futuro, em sua materialidade ou imaterialidade ele vem a
constituir-se em guardião do tempo e experiências. Neste sentido o autor destaca a
necessidade desta abordagem compor-se em uma categoria do pensamento e da cultura. O
17
compartir de uma cultura em comum é um elemento considerado como valor essencial nesta
construção do que se constitui como patrimônio. Através do processo histórico, das relações,
e intercâmbios étnicos, é possível compreender que os grupos acabam por desenvolver uma
consciência de si, resultando no fato de que a identidade étnica sofrerá transformações de
acordo com os diferentes eventos e "histórias de contato". O mesmo poderia se pensar a
respeito do simbólico representado no patrimônio, este que assumiria novos significados a
partir destas leituras do presente e do passado4.
Incidiria no emprego da cultura pesquisada e a reação de distinção ocasionada na
cultura de origem. Neste sentido através da entrada do pesquisador em uma sociedade
estranha a sua, eventos específicos iriam surgir de modo a demonstrar para si a visão de
mundo, e os modos como os outros instituem funções de forma diferente da sua. Tal fato
tornaria o contato com a cultura como uma experiência multifacetada, mostrando como
diferentes povos fazem coisas dessemelhantes uns dos outros, atribuindo significados
diferentes. É Através da objetificação da cultura se torna possível compreender o seu objeto
de estudo. Sendo o patrimônio uma importante representação da cultura, é importante
entender o que a cultura procura dizer, levando em conta que esse aprendizado acontece
paralelamente junto com a objetificação e a cultura do pesquisador.
É apenas mediante uma "invenção" dessa ordem que o sentido abstrato de
cultura (e de muitos outros conceitos) pode ser apreendido, e é apenas por
meio do contraste experienciado que sua própria cultura se torna "visível".
No ato de inventar outra cultura, [...] inventa a sua própria e acaba por
reinventar a própria noção de cultura. (WAGNER, 2010, p.31)
Portanto se faz necessário que compreendamos o patrimônio material e imaterial como
um pujante instrumento de análise da concepção da vida social e cultural. Nesta constituição o
patrimônio possuiria agregado em si, uma importância como elemento de resistência,
tornando-se um conceito essencial na valorização da diversidade cultural dos grupos sociais.
Ele evocaria a força representativa da “cultura” esta que desafia as violências proporcionadas
pela globalização. Quando utilizamos o conceito patrimônio cultural, é imperativo
oferecermos ciência de que tratamos da dimensão da cultura do patrimônio ao qual estamos
discutindo. Neste sentido, faz-se necessária a discussão dos elementos que constituem esta
noção moderna de patrimônio, que envolve questões primordiais como o conceito de cultura,
4 O historiador Reinhart Koselleck, em sua obra “O Futuro passado (1979)”, ampliou a perspectiva de que cada
presente não apenas reconstrói o passado a partir de problematizações geradas na sua atualidade, como era a
proposta dos Annales e outras linhas historiográficas do século XX , mas acresceu que também cada presente
ressignifica tanto o passado (definido por Koselleck como o “campo da experiência”) quanto o futuro (abordado
conceitualmente por ele como o “horizonte de expectativas”). Para Koselleck, cada presente cria a sua nova
forma de relação entre futuro e passado. Uma assimetria entre estas duas instâncias temporais.
18
a noção de pessoa e a relação com o simbólico no processo de construção identitária de um
indivíduo ou uma sociedade.
1.3 Os jogos entre memória e história
Nos últimos anos, uma das áreas de estudo dentro da historiografia5 que têm proposto
de forma incisiva o debate da relação história/memória é a história oral. Muitas são as
reflexões, que procuram decifrar os mistérios da memória, definir suas características,
altercações, paridades, dentro dos aspectos coletivos e individuais. Nisso é possível perceber o
destaque para as diferentes formas como a mesma é concebida, suas diversas
compreensões, seguidas de uma complexidade de definições.
Segundo Burke (2000) a visão tradicional das relações entre a história e a memória se
dava sob uma forma relativamente simples. As funções do historiador eram delimitadas em
ser o guardião da memória dos episódios públicos, quando escritos para proveito dos autores,
lhes proporcionando notoriedade, e também em proveito do futuro, no sentido de um
aprendizado a partir do exemplo dos que passaram. Hoje as memórias e narrativas que
remetem ao passado conseguiram maior visibilidade através de seus valores patrimoniais e
museológicos, despertando o interesse da mídia para as muitas reminiscências e depoimentos
que são atribuídos como versões legítimas do passado.
É importante entendermos o papel político que a memória assume na prática
historiográfica, principalmente no que tange a vida diária de comunidades que se colocam
como carentes de memória. Ela produz uma demanda de direitos e deveres que só se
legitimam se atestados pela própria memória. Uma reminiscência que se projeta com aspecto
social, político, e culturalmente relevante, assume uma condição desafiadora para
historiografia. Essa reflexão sobre o presente e suas demandas clama por respostas impondo
permanências, questionando gestões e tentativas de cristalizações do passado em sua função
político/social. Nisto destaca-se a importância da memória como instrumento de militância:
“vivemos um tempo nas sociedades ocidentais contemporâneas em que ganharam força os
investimentos sociais nas tarefas de memória” (GUIMARÃES, 2007, p.12).
5Historiografia de "historiógrafo", do grego Ιστοριογράφος, de Ιστορία, "História" e γράφος, da raiz de
γράφειν, "escrever": "o que escreve, ou descreve, a História". Designa não apenas o registro escrito da História, a
memória estabelecida pela própria humanidade através da escrita do seu próprio passado, mas também a ciência
da História.
19
Para o historiador esta relação entre história e memória, tornou-se um desafio
teórico/intelectual, que destaca uma grande carência dentro da escrita da história,
especialmente no que se refere á questões políticas da memória e do passado. São muitas as
tentativas em diversos campos história, que buscam demarcar fronteiras, apontando
aproximações e entrecruzamentos nas concepções de história e memória. Neste sentido os
historiadores devem estar interessados no que Peter Burke nomeia como “história social do
lembrar”. Isto se refere à premissa de que tanto a memória social, como individual, é seletiva.
Neste processo de composição da história é importante identificarmos os princípios de seleção
e observar como estes se alteram de um lugar para outro, recebendo diversos significados
culturalmente, e se transformando conforme o decorrer do tempo. “As memórias são
maleáveis, e é necessário compreender como são concretizadas, e por quem, assim como os
limites dessa maleabilidade” (BURKE, 2000, p.73).
Podemos entender que a explicação clássica, na qual se aponta que a memória reflete
fatos verdadeiros e a história reflete a memória, assume um caráter simplista na
contemporaneidade. A história e a memória passaram a se mostrar cada vez mais intricadas.
Rememorar o passado desenvolvendo a escrita sobre mesmo, não pode ser considerada mais
uma atividade inocente como julgávamos até pouco tempo. As histórias e memórias não
assumem mais um caráter objetivo. Neste sentido os historiadores aprenderam a avaliar
fenômenos com a seleção consciente ou inconsciente, a interpretação e a distorção. “Nos dois
casos, passam a ver o processo de seleção, interpretação e distorção como condicionado, ou
pelo menos influenciado, por grupos sociais. Não é obra de indivíduos isolados” (BURKE,
2000, p.69-70).
A Memória, em seu sentido mais primordial é a presença do passado. Ela seria uma
constituição psíquica e intelectual que provém de um fato. Podemos dizer que ela é uma
reprodução seletiva do passado, que nunca se condiciona somente ao indivíduo, mas provém
de um indivíduo que esta localizado em um contexto de âmbito familiar, social, comunitário.
Nisso podemos afirmar que toda memória é uma reprodução do coletivo. Neste sentido Henry
Rousso (1998) destaca sobre a memória:
[...] seu atributo mais imediato é garantir a continuidade do tempo e permitir
resistir à alteridade, ao ‘tempo que muda’, as rupturas que são o destino de
toda vida humana; em suma, ela constitui – eis uma banalidade – um
elemento essencial da identidade, da percepção de si e dos outros (ROUSSO,
1998, p.94-95).
É importante enfatizar que a memória carrega em si uma intencionalidade que é
superior ao aspecto da distinção do passado. Reconstruí-lo, revivê-lo na sua multiplicidade, é
20
permitir a fluência das reminiscências, deixando vir à tona as memórias, com toda a carga
emocional que elas possuem. Estas que irão delimitar ações e reações necessárias á ação
política, seja no aspecto individual ou coletivo, oferecendo destaque as identidades e lutas.
Pierre Nora (1993) nos adverte a identificarmos a distinção entre história como objeto e a
história como conhecimento. Uma percepção da história vivida, acompanhada do processo
intelectual que a torna inteligível. Este poderia ser indicado como um dos últimos o
contrapontos da memória. Segundo Nora, a memória e a história estão longe de serem
sinônimos, tomamos consciência de que diversos elementos apontam há uma oposição. A
memória é apontada como um processo de vida, gerido por grupos vivos. Por assim dizer, que
ela estaria em constante evolução, demonstrando certa suscetibilidade as diversas
manipulações.
A memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse
sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e
do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a
todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas
revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta
do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo
vivido no eterno o presente; a história, uma representação do passado
(NORA, 1993, p.9).
Neste sentido Le Goff (1996) aponta que a memória e a história se integram dando
uma noção de volume e completude para a narrativa. Unidas produzem uma seleção de
relevância das reminiscências, onde ambas se nutrem em um processo de construção do
tempo histórico. A história escrita sozinha assume um caráter impessoal, pois nela grupos
seguidos de suas construções culturais desaparecem para ceder lugar a outros, pois a escrita de
certa maneira acaba por renegá-los. A memória personifica a história viva e habitada,
preservando as suas permanências no tempo, reconstruindo-se. Podemos dizer que a história é
viva quando assume o seu lugar de permanência, não condenando ao desaparecimento às
criações comunitárias, atribuindo as mesmas, somente o caráter de uma imagem desfocada.
Hoje, a aplicação à história dos dados da filosofia, da ciência, da
experiência individual e coletiva tende a introduzir, junto destes quadros
mensuráveis do tempo histórico, a noção de duração, de tempo vivido, de
tempos múltiplos e relativos, de tempos subjetivos ou simbólicos. O tempo
histórico encontra, num nível muito sofisticado, o velho tempo da memória,
que atravessa a história e a alimenta (LE GOFF, 1996, p.13).
Assim como pudemos identificar no texto, a memória busca realizar uma seleção dos
eventos individualmente, pelo fator da dependência que possui definida pelo modo de vida do
interlocutor. Desta maneira cada indivíduo preservará em suas lembranças o mesmo episódio,
mas de maneiras diferentes. Como as reminiscências pessoais são renovadas cada vez que
21
lembramos, elas não estarão completas automaticamente assim que as acessamos. O ato do
recordar, esta ligada a cada sujeito. A memória é vinculada diretamente à pessoalidade, isso
porque nós decidimos como reconstruímos nossas lembranças. Assim a memória torna-se
uma busca por sentido, ela se interliga com outras concepções do ponto de vista identitário
individual, criando sentidos, intermediando os conflitos, sanando as feridas, edificando os
destroços, calando as consternações. A memória vinculada ao ato de recordar, evidentemente
também ao esquecimento. Recordar e esquecer se constituem em uma dualidade que se
integra, opondo-se ao mesmo tempo. Neste sentido o autor nos diz que:
Reminiscências são passados importantes que compomos para dar
um sentido mais satisfatório à nossa vida, à medida que o tempo passa, e
para que exista maior consonância entre identidades passadas e presentes (...)
Sentimentos e impulsos reprimidos (...) são descarregados atravessando
sorrateiramente as barreiras da coerência consciente de forma específica.
Sonhos, erros, sintomas físicos e piadas que permitem vislumbrar os
significados pessoais ocultos (THOMSON, 1997, p. 57-8).
Outro elemento importante para destacarmos é o olhar do narrador no tempo através
do tempo, carrega em si as marcas da historicidade. São os indivíduos constroem as
representações das distintas temporalidades e eventos que marcam sua história individual. As
percepções sobre o passado serão sempre influenciadas pela marca da temporalidade. Ao
fazermos a leitura da história vivida no resgate das memórias visando o processo de
constituição da história, os historiadores são influenciados pelas representações do tempo
presente, voltando suas percepções para o vivido reinterpretando-o.
O tempo, a memória e história, não caminham isoladamente. Existe grande tensão
nesta busca por apropriação, afetando diretamente a reconstituição da memória pela história.
Percebemos com mais clareza estes elementos quando se resgatam reminiscências atreladas a
guerras, vida cotidiana, movimentos étnicos, conflitos ideológicos, embates políticos, lutas
pelo poder. Existe certa impossibilidade de alterar-se em relação ao passado, o tempo age em
uma esfera de transformação, constantemente se re-significando em relação ao passado. É
uma ação não previsível em relação ao que poderá ser. Ele tenciona utopias elaborando-se
com as ferramentas do presente, reconstruindo-se com as do passado, se permitindo a uma
série de deficiências de interpretação:
Nas manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse, a
afetividade, o desejo, a inibição, a censura exercem sobre a memória
individual. Do mesmo modo, a memória coletiva foi posta em jogo de forma
importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da
memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes,
dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades
históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses
mecanismos de manipulação da memória coletiva (LE GOFF, 1996 p. 368).
22
A memória ainda sujeita a controles e percepções do presente, possui como ponto de
partida o processo histórico do grupo que a resguarda dando suporte à identidade. Ela
possibilita a noção de procedência mantendo suas ligações e vínculos com o presente e
passado. As reproduções de acontecimentos, lugares e costumes, são indicadores de
significados, e ao mesmo tempo revelam permitindo delinear o trajeto histórico do grupo.
Entre os múltiplos aspectos referentes à construção da identidade contemporânea, a memória
é apontada como mecanismo fundamental para a composição da identidade social.
Maurice Halbachs (1990) contribuiu absolutamente com a historiografia ao sugerir o
conceito de memória coletiva, definindo os quadros sociais que compõem esta memória.
Segundo o autor a memória puramente individual não existe, posto que todo indivíduo está
em constante interação, sobre o efeito da ação direta da sociedade por meio de suas diversas
instituições sociais. A identidade se constrói em um indivíduo, a partir de sua cosmovisão,
abrangendo seu sistema de ideias políticas agregado as experiências históricas que possui em
comum com o grupo social em que habita. Neste sentido a memória coletiva se constituiria
pela continuidade, e deve ser destacada por sua pluralidade. Este apontamento refere-se ao
fato de que a memória de um indivíduo ou de um país estão arraigadas no alicerce da
constituição de suas identidades. Portanto, percebe-se uma a tradicional maneira de se fazer
História, onde o foco esta localizado na súmula dos grandes acontecimentos da história
nacional minimizaria o poder contido nas memórias coletivas.
“O que justifica ao historiador estas pesquisas de detalhe, é que o detalhe
somado ao detalhe resultará num conjunto, esse conjunto se somará a outros
conjuntos, e que no quadro total que resultará de todas essas sucessivas
somas, nada está subordinado a nada, qualquer fato é tão interessante quanto
o outro, e merece ser enfatizado e transcrito na mesma medida. Ora, um tal
gênero de apreciação resulta de que não se considera o ponto de vista de
nenhum dos grupos reais e vivos que existem, ou mesmo que existiram, para
que, ao contrário, todos os acontecimentos, todos os lugares e todos os
período estão longe de apresentar a mesma importância, uma vez que não
foram por eles afetadas da mesma maneira” (HALBACHS, 1990: pp. 89-90).
Segundo Halbachs, a memória histórica se constitui como o circuito de episódios
pontuais na biografia de um país. Sendo assim, a constituição do termo “memória histórica”
se comporia em uma tentativa de embaralhar temas que são contrapostos. Para
compreendermos onde estão alocadas estas tensões entre a História contrapondo-se à
Memória, é preciso que se compreenda a concepção de História ao qual o autor se utiliza. A
memória ampara-se na experiência com “passado vivido”, o qual comporta a composição de
23
uma narrativa concernente ao passado do sujeito de forma viva e natural, mais do que sobre
o “passado apreendido pela história escrita” (HALBACHS, 1990: p.75).
Portanto é importante ressaltar que a memória compõe um elemento de identificação
humana, é o indicador ou sinal de sua cultura. Ela é responsável pelas aproximações e
distanciamentos. Esta identificação cultural é que define cada grupo, sendo o principal
elemento que destaca estas nossas diferenças. Pensar em recompor a história de uma cidade
ou bairro deve-se levar em conta as diversas representações produzidas sobre o mesmo
evento. Devem-se destacar as perguntas que nos instigam a compreensão de como e quando
estas histórias assumem caráter documental, qual o propósito destes relatos e que relação eles
possuem com as memórias culturais produzidas pela cidade.
1.4 Narrando memórias e contando histórias: considerações sobre a história oral
Por tamanha complexidade do debate, só nos é possível compor uma breve análise da
relação controversa entre memória e História Oral, mas, ainda podemos apontar certa
interdependência, assinalando alguns de seus distanciamentos e aproximações. Será um
destaque que aportará às dificuldades propostas nesta comunicação. Abordaremos como se
compuseram estas afinidades, ou por que existe esta altercação entre a história oral e a
memória. É importante compreender que isso faz parte de um longo processo histórico que
precede os princípios da modernidade. Momento este em que a História passou a ser
ponderada como uma ciência objetiva, que é fruto de uma historiografia que eliminou a
possibilidade do uso da oralidade.
Por um longo tempo, empregou-se de um discurso que carecia elaborar antagonismos
entre o passado e o presente promissor, entre o que era de conhecimento popular, e a ciência
classificada como coerente e culta. No entanto, a oralidade não foi abandonada como forma
de transmissão de saberes, principalmente daqueles ligados às reminiscências populares. Estes
questionamentos ditos “científicos” invalidaram a importância das narrativas individuais,
descaracterizando tudo o que não fosse de ordem documental, com isso, não levando em
conta a oralidade como elemento importante na composição da história. Discussão esta
abordada nos debates historiográficos da Escola dos Annales6, e criticada por seguimentos da
nova história cultural7.
6 Em 1929, surgiu na França uma revista intitulada Annales d’Histoire Économique et Sociale, fundada por
LucienFebvre e Marc Bloch. Ao longo da década de 1930, a revista se tornaria símbolo de uma nova corrente
24
Se nos permitirmos uma aproximação do assunto, perceberemos que História Oral
seria uma adjacência extensa, que recupera os mais variados perfis de relatos alcançados
através das narrativas. Queiroz (2009, p.53) destaca que são eventos não catalogados por
outro tipo de documento, episódios estes cuja documentação complementa, ou viabiliza uma
visão diversificada da produção histórica. A História Oral registra a experiência de vida de um
indivíduo, ou de vários indivíduos em uma mesma coletividade. O Autor segue afirmando que
as fontes orais podem adquirir o formato de histórias orais de vida. Estes relatos orais de vida
ou narrativas possuem sua referência na individualidade e experiência do narrador,
descrevendo em fatos o que presenciou.
Pensando na utilização da História Oral, podemos interpretar a oralidade como um
fundamental meio de comunicação na história humana. Ela abre espaço para as diversas
narrativas promovendo o diálogo entre os grupos. Ela torna possível a comunicação entre
diversas culturas, também a representação e aprimoramento dos meios de subsistência. Sobre
a história oral Thompson observa que: “Na verdade a história oral é tão antiga quanto à
própria história. Ela foi à primeira espécie de história. E apenas muito recentemente é que a
habilidade em usar a evidência oral deixou de ser uma das marcas do grande historiador”
(THOMPSON, 1992, p. 45).
Percebe-se que há uma ligação intima entre oralidade e a origem da própria história
humana. No que tange o desenvolvimento de pesquisa, muitos não se apropriaram dos
recursos e benefícios que a oralidade proporciona ao meio científico. De certo modo, é
importante destacar que acaba por existir um abandono às fontes orais no que tange a
construção historiográfica. Embora por um tempo, houve certo descaso com a utilização da
oralidade, na atualidade surgem com força novas linhas de pesquisa que se utilizam desta,
como recurso na produção de conhecimento. Thompson (1992) ao elaborar considerações
sobre o aumento da utilização da história oral como método, enfatiza o caso da América do
Norte, que apresentou um crescimento mais significativo.
[...] A história oral”, declarou a Oral History Association (norte-
americana), “foi instituída em 1948 com uma técnica moderna de
documentação histórica quando Allan Nevins, historiador da Universidade
historiográfica identificada como Escola dos Annales. A proposta inicial do periódico era se livrar de uma visão
positivista da escrita da História que havia dominado o final do século XIX e início do XX. Sob esta visão, a
História era relatada como uma crônica de acontecimentos, o novo modelo pretendia em substituir as visões
breves anteriores por análises de processos de longa duração com a finalidade de permitir maior e melhor
compreensão das civilizações das “mentalidades”. 7 A História Cultural esclarece Roger Chartier (2002), é importante para identificar o modo como em diferentes
lugares e momentos uma realidade social é construída, pensada, dada a ler. Da mesma forma, esta história deve
ser entendida como o estudo dos processos com os quais se constrói um sentido.
25
de Colúmbia, começou a gravar as memórias de personalidades importantes
da história norte-americana. (THOMPSON, 1992, p. 89).
O historiador Alessandro Portelli (1997, p.15) aponta a História Oral como uma
ciência e arte do indivíduo. Tendo esta uma relação direta com a sociologia, antropologia,
padrões culturais, estruturas sociais e processos históricos. Ela propõe aprofundar estes
elementos, em essência, por meio de conversas com pessoas sobre a experiência a memória
individual, e ainda por meio do impacto que estas tiveram na vida de cada uma. A indicação
de uma metodologia de análise para fonte oral conjetura a compreensão do conteúdo e suas
singularidades. Isto significa ter ciência de suas razões, os porque da produção e como esta
será utilizada. Destaca-se a necessidade de compreender a fonte oral como conhecimento que
deve ser tratada e reconstruída. A fonte oral é empregada em uma diversidade de áreas do
conhecimento. Segundo Verena Alberti (2005) pode-se constatar as diferentes áreas em que a
metodologia de História oral pode ser aproveitada.
O trabalho com História oral se beneficia de ferramentas teóricas de
diferentes disciplinas das Ciências Humanas, como a Antropologia, a
História, a Literatura, a Sociologia e a Psicologia, por exemplo. Trata-se,
pois, de metodologia interdisciplinar por excelência. Além dos campos
mencionados, ela pode ser aplicada nas mais diversas áreas do
conhecimento: na Educação, na Economia, nas Engenharias, na
Administração, na Medicina, no Serviço Social, no Teatro, na Música... Em
todas essas áreas já foram desenvolvidas pesquisas que adotaram a
metodologia da História oral para ampliar o conhecimento sobre
experiências e práticas desenvolvidas, registrá-las e difundi-las entre os
interessados. (idem, p.52).
A história oral hoje se consolidou como uma solução de pesquisa histórica admirável
para a transmitância das experiências sociais. Em consequência da preocupação de
antropólogos, sociólogos e historiadores com o conhecimento contido na oralidade das
culturas populares. Estes que hoje se destacam na produção de uma nova história social, em
que os segmentos excluídos da sociedade, cujas versões eram ignoradas pela história
tradicional, assumiram espaço ativo na construção da trama histórica (ALBERTI, 2004, p.14).
A autora observa que entrevistas de História Oral podem comunicar tradições
culturais, que vão brotando conforme o entrevistado delas recorda. A autora aponta uma
divisão entre tradição oral e História Oral. A tradição oral conteria narrativas sobre o passado
universalmente manifestas em uma cultura, enquanto o depoimento ou a entrevista de História
Oral se diferenciaria por versões que não são vastamente conhecidas. Contudo, a ainda
explana que a tradição oral e História Oral possuem uma grande proximidade, principalmente
se caracterizamos as entrevistas como ações ou narrações, e não apenas relatos do passado.
26
A tradição oral é definida como um testemunho transmitido
oralmente de uma geração à outra. Suas características particulares são o
verbalismo e sua maneira de transmissão, na qual difere das fontes escritas.
Devido à sua complexidade, não é fácil encontrar uma definição para
tradição oral que dê conta de todos os seus aspectos (ALBERTI, 2004,
p.158).
Portelli (1997) distingue que apesar de a memória ser constituída de processos
essencialmente individuais, ela remete ao mesmo tempo a aspectos sociais e padrões culturais.
Neste sentido a memória compreende em dois níveis respectivamente: um individual e outro
social. O caráter social e cultural da memória é decorrente da interação entre indivíduo e meio
social. No entanto, a coleta das experiências concretas através do ato de rememorar, é
exclusivamente pessoal.
A memória é um processo individual, que ocorre em um meio social
dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e compartilhados.
Em vista disso, as recordações podem ser semelhantes, contraditórias ou
sobrepostas. Porém, em hipótese alguma, as lembranças de duas pessoas são
– assim como as impressões digitais, ou, bem da verdade, como as vozes –
exatamente iguais (idem, p. 16).
A existência de paridades, distinções, ou mesmo incoerências em relatos e
depoimentos acerca de um episódio particular, não se distingue como fato característico para
o estudo da memória, mas aponta para o seu caráter individual, que evita a probabilidade da
existência de reminiscências exatamente iguais. Pelo fato da memória se tratar de um
fenômeno simultaneamente individual e coletivo, ela proporciona processos dinâmicos em
permanente transformação, exercendo ligações entre o sujeito histórico e seu grupo social,
destacando um momento exclusivo no tempo.
A essencialidade do indivíduo é salientada pelo fato da História Oral
dizer respeito a versões do passado, ou seja, à memória. Ainda que esta seja
sempre moldada de diversas formas pelo meio social, em última análise, o
ato e a arte de lembrar jamais deixam de ser profundamente pessoais. A
memória pode existir em elaborações socialmente estruturadas, mas apenas
os seres humanos são capazes de guardar lembranças. Se considerarmos a
memória um processo, e não um depósito de dados, poderemos constatar
que, à semelhança da linguagem, a memória é social, tornando-se concreta
apenas quando mentalizada ou verbalizada pelas pessoas (PORTELLI, 1997,
p. 16).
Sobre a questão da dualidade da memória, Diehl (2002) afirma que a memória é capaz
de conceber probabilidades de aprendizagem e de socialização que influenciam a constituição
de uma identificação cultural.
A Memória possui contextualidade e é possível ser atualizada
historicamente. Ela possui maior consistência do que lembrança, uma vez
que é uma representação produzida pela e através da experiência. Constitui-
se de um saber, formando tradições, caminhos – como canais de
27
comunicação entre dimensões temporais –, ao invés de rastros e restos como
no caso da lembrança. A memória pode constituir-se de elementos
individuais e coletivos, fazendo parte de perspectivas de futuro, de utopias,
de consciências do passado e de sofrimentos. Ela possui a capacidade de
instrumentalizar canais de comunicação para a consciência histórica e
cultural, uma vez que pode abranger a totalidade do passado num
determinado corte temporal (idem, p.116-17).
Queiroz (2009) esclarece que a história oral de vida é uma narrativa de um narrador
sobre sua experiência através do tempo. Os episódios vivenciados são relatos, conhecimentos
e valores comunicados, partindo dos acontecimentos da vida pessoal. Através da narrativa
individual, se descrevem as relações com os componentes de seu grupo, de sua profissão, e
classe social. Existe uma grande dualidade nas narrativas, algumas exprimem uma riqueza de
detalhes, outras se apresentam mais resumidas nos apontamentos, por vezes fragmentadas.
Cabe ao pesquisador identificar estes elementos, e perceber aqueles que lhe são mais
importantes dentro da construção da história. Não confiamos que seja possível a obtenção de
uma narrativa individual em sua completude, pois há uma diversidade de facetas que
envolvem a construção das memórias e os fatos que envolvem uma vida. Devido a esta
multidão de informações sujeita as experiências de uma vida, uma história pessoal nunca
poderia ser completamente revisitada, pois é e um processo seletivo que se impõe envolvendo
o próprio rememorar, em geral controlado pelo próprio narrador. Na perspectiva de Alistair
Thomson (1997, p.56-7) a composição de reminiscências surge com intuito de oferecer
sentido ao nosso passado. De certa maneira, indica que perpetramos composições, ou as
construímos nos utilizando de linguagens e significados que reconhecemos através de nossa
cultura. São feitos atrelamentos de forma a não permitir separação entre os objetos e o
subjetivo.
O autor ainda segue destacando que o termo “composição” se adéqua na descrição do
processo de construção das memórias. Sendo que recentemente muitos historiadores vêm
desenvolvendo compreensões mais abrangentes sobre as narrativas orais, explorando as
tensões entre a memória e a identidade na relação entrevistador e entrevistado. É importante
destacar que para o autor as memórias que recordamos não são imagens exatas do passado,
mas carregam em si, aspectos deste passado que se ajustam as nossas aspirações do presente.
Assim podemos dizer que a identidade acaba por se moldar as memórias no intuito de dar
sentido ao que recordamos no presente. Partimos de uma composição de memórias, as
ajustando ao que é socialmente mais aceitável. Destaca-se também (idem, p.58) o
reconhecimento como o processo de formulação social das identidades. Sendo que este possui
um papel fundamental para a sobrevivência emocional do sujeito.
28
Peter Burke (2000) aponta que a visão habitual das afinidades entre a história e a
memória se movimentava de uma maneira relativamente simples. O historiador possuía a
função de se posicionar como o guardião das memórias dos episódios públicos, quando
registrados para conveniência dos autores, para lhes proporcionar fama, também em utilidade
do futuro, para aprendizado a partir do exemplo. Contudo o apontamento clássico de que a
história é um espelho da memória é abordado de maneira simplista, pois é fácil perceber que
eles tornam-se cada vez mais complexos. Recordar o passado e historiar sobre ele não se
representam mais atividades inocentes, como avaliávamos até pouco tempo atrás. Em uma
analise perceberemos que as histórias e memórias não mais sugerem ser objetivas. Em ambos
os casos os historiadores aprenderam a avaliar acontecimentos com a seleção consciente e
inconsciente, a interpretação e a distorção. Nisso percebemos o processo de seleção,
interpretação e distorção como dependente, ou pelo menos influenciado, por grupos sociais.
Não são produtos de indivíduos isolados.
Muitas produções abordam esta questão na tentativa resgatar a história da memória
que muitas vezes é abordada secundariamente, por esta subjetividade que a distingue. Apesar
disso, esta é de grande relevância para o legado cultural das comunidades. Nisto recebem
destaque os projetos de História Oral, em principal pela ênfase no seu desempenho de
reestruturar a constituição ideológica das identidades8
e grupos. A reflexão sobre o uso da
História Oral na produção do conhecimento histórico, e sua articulação com a memória, é
mais do que importante no que tange a pluralidade das narrativas históricas. Esta consegue
destacar aspectos que transcendem apenas a história como conhecimento bruto, mas destaca
sua função social e militante a favor dos excluídos. A história como instrumento de criação
identitária, reconhece em si sua importância em responder questões que apontem a origem de
muitas comunidades e grupos.
Desde seu aparecimento, a função da História esteve em fornecer à
sociedade uma explicação de suas origens. Do grego, historie, significa
procurar, investigar. Nessa busca, a essência da História como transformação
(e seu processo formativo), bem como sua dimensão de análise, como o
tempo e o espaço, integraram a palavra História em sua polissemia. Nesta
polissemia, a história é uma série de acontecimentos, e a narração desta série
de acontecimentos (VEYNE, 1998, p.285).
As narrativas orais sobre um mesmo evento específico possuem uma relação de
intercomunicação, e quando registradas podem reconstituir a história sobre um aspecto mais
8 A construção de uma identidade passa, inapelavelmente, pelo terreno das imagens, galeria de retratos e marcas
através das quais aparecemos na cena social (FRANÇA, 2002, p. 7). Nesse sentido, a imagem deve ser
considerada na sua sinonímia de representação abstrata, perceptível no plano mental, no seu estatuto de produção
de sentidos o que redunda em liames com o imaginário.
29
conectado com o conhecimento popular. Além de ser um instrumento de militância em favor
dos excluídos, permite o surgimento de grandes possibilidades para a produção histórica sobre
determinado acontecimento de forma plural, prestigiando os relatos produzidos pelos sujeitos,
e contrapondo a história do poder com a história da memória.
O trabalho com a rememoração bem como as próprias interpretações
que dele fazemos podem ser comparados a diferentes pedaços de tecidos que
formam uma colcha composta por esses retalhos que foram reunidos através
de fios que os uniram, que, em função das combinações possíveis no
contexto de sua costura, produziram uma coerência (GUEDES-PINTO et.al,
2008, p. 22).
Sobre os acréscimos atuais aos conceitos de fonte histórica, passam a enfatizar e se
utilizar de maneira mais abrangente das representações na construção do conhecimento. Uma
vez identificada à maneira como o indivíduo si vê, e como percebe o mundo ao qual esta
inserido, encontra-se a distancia da antiga busca por uma realidade histórica independente do
sujeito. Passa-se a perceber que a “verdade” ou o “real” nada mais é do que subproduto de
uma construção cultural. Identificamos que o papel do historiador não propõe apenas contar a
verdade, mas conhecer diferentes versões da verdade e perceber como estas foram
estabelecidas pelo sujeito histórico. Neste sentido todas conclusões passam a assumir um
caráter provisório. “O imaginário9 estabelece o real e pelo real é desenvolvido, num constante
movimento cíclico” (SWAIN, 1994, p.52).
Em sua narrativa a história carrega em si a possibilidade de nos levar a pensar sobre o
passado de outros, de nós mesmos, de nossas vidas, de nosso cotidiano e da realidade que
cercam todos aqueles que conhecemos diretamente ou indiretamente. “O tempo torna-
se tempo humano na medida em que é articulado de um modo narrativo e que a narrativa
atinge o seu pleno significado quando se torna uma condição de existência temporal”
(RICOUER 1994, p.85).
O passado nos cerca e nos preenche; cada cenário, cada declaração,
cada ação conserva um conteúdo residual de tempos pretéritos. Toda
consciência atual se funda em percepções e atitudes do passado;
reconhecemos uma pessoa, uma árvore, um café da manhã, uma tarefa,
porque já os vimos ou já os experimentamos. [...] Somos a qualquer
momento a soma de todos os nossos momentos, o produto de todas as nossas
experiências (LOWENTHAL, 1998, p.64).
Segundo Ricouer (2008, p.87) um documento de arquivo, como toda escrita, está
aberta quem quer que saiba ler. As fontes documentais escritas estão à disposição para leitura,
9 Para Jacques Le Goff (1994, p. 11), por sua vez, o imaginário é dimensão. Ele pertence ao campo da
representação, na medida em que traduz uma realidade exterior percebida, tradução que alimenta o homem e o
faz agir. Dessa maneira, para o autor, o que o homem considera realidade é fruto do próprio imaginário,
concepção próxima de Castoriadis.
30
não possuindo um destinatário designado, diferentemente de um testemunho oral, que é
apontado a um interlocutor. O testemunho ou o documento, ambos servem para atender ao
historiador.
31
2. UM SOLAR QUE VIROU MUSEU: Museu José Joaquim Felizardo
2.1 O Solar da família Gonçalves Bastos: Um centenário de história (1845-1945)
O Solar é um prédio histórico de Porto Alegre, construído entre 1845 e 1855. É uma
chácara com fundos para à Rua da Margem (hoje atual João Alfredo), no bairro Cidade Baixa.
É importante destacar que este Solar foi construído para servir como casa de veraneio. As
casas de chácara eram habitações muito características do período colonial e, por conseguinte
no Brasil Império e República. Normalmente eram localizadas na periferia dos centros
urbanos, e consideradas como uma opção muito apreciada pelas famílias mais abastadas, pois
proporcionavam benefícios estes que não eram propostos nas residências da cidade, em
especial na questão da higiene e plantação.
Figura 1 Vista da cidade Baixa | Fonte: Fototeca Sioma Breitman
Outro importante fator era estar cerca a cursos de água, componente que resolvia um
grande problema das deficiências hidráulicas proporcionando um acesso rápido ao recurso,
Água esta que nas residências urbanas precisava ser constantemente estocada. Outro destaque
importante era a possibilidade de cultivo, permitindo a produção de alimentos e a criação de
pequenos animais, garantindo a subsistência da família em uma época em que eram comuns
as crises de fornecimento de mantimentos nas cidades (SYMANSKI, 1997, p.71)
32
Segundo Giacomelli, (1992) O proprietário do solar se chamava Lopo Gonçalves
Bastos, nascido em Portugal, em 1800, na freguesia de São Miguel de Gêmeos de Bastos,
arcebispado de Braga. Em 23 de junho de 1828 casou-se, em Porto Alegre, com Francisca
Benfica Rodrigues Teixeira, filha do Sargento Mor João Luís Teixeira. Sendo que desta
relação resultaram quatro filhos.
Figura 3 Lopo Gonçalves Bastos | Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman
No período em que chegou a Porto Alegre, envolveu-se com o comércio, acabando
acumular um patrimônio que compreendia em um armazém de secos e molhados na Praça da
Alfândega, uma loja de fazendas na parte de baixo do sobrado onde residia com sua família na
Rua da Praia, e algumas embarcações em sociedade com o sogro. Além de negociante,
Figura 2 Casas localizadas a Beira do Arroio | Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman
33
ocupou muitas funções, dentre estas até cargos públicos onde foi vereador por dois mandatos
(1833-37 e 1845-49), também foi provedor da Santa Casa de Misericórdia (1851), e fundador
do Banco da Província do Rio Grande do Sul (1858) e da Praça do Comércio de Porto Alegre
(atual Associação Comercial). Lopo foi dono de vários escravos, acumulando um dos maiores
patrimônios da sociedade porto-alegrense na época (SYMANSKI, 1997, p.65).
Figura 4 Aquarela de Hermann Rudolph Wendroth (1852) | Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman
Com o passar do tempo, Lopo Gonçalves se envolveu grandemente com o comércio da
cidade, sendo que para dar seguimento a sua demanda de mão de obra comprou muitos
escravos, onde acabou por usar até parte de casa para servir de senzala. Neste período também
desempenhou muitas atividades filantrópicas, além de ter sido político, exercendo o cargo por
dois mandatos e como um como suplente, veio a falecer em 07 de novembro de 1872.
Após o falecimento de Lopo Gonçalves Bastos (1872) e também de sua esposa (1876),
a herdeira do espaço do solar tornou-se a filha Maria Luisa Gonçalves Bastos junto com seu
esposo, Joaquim Gonçalves Bastos Monteiro, este que era sobrinho de Lopo. Neste período o
solar acabou por assumir o caráter de residência da família, sendo que para acomoda-los foi
proposta uma série de mudanças na arquitetura, seguindo com o fechamento do pátio interno,
e o acréscimo de um novo cômodo, construindo-se também o torreão. O Solar continuou
como propriedade da família até o ano 1946.
34
2.2 O Solar enquanto residência da família Volkmer
Em 1946, Maria Amália Bastos de Vasconcellos Hasse, herdeira dos Gonçalves
Bastos, acabou por vender o Solar para Albano José Volkmer (1886-1972), este que era o
empresário e advogado. Com a aquisição do imóvel Volkmer propôs a realização de uma série
de reformas, vindo a dividir o solar em três habitações integradas. No ano de1962, Albano
Volkmer, sua esposa e filha foram residir em um dos anexos residenciais do solar.
Figura 5 Albano Volkmer e sua esposa Elisa Laydner, Bodas de Ouro (1962) | Fonte: Acervo particular José
Carlos Volkmer
Existem indicativos de que Albano José Volkmer aproveitou o grande terreno de sua
propriedade como um ambiente onde realizava a secagem de velas de sua fábrica que situava-
se na Rua Coronel Genuíno. Neste mesmo período o Solar passou a ser conhecido na família
Volkmer como a Casa da Magnólia, referência à árvore centenária que ainda hoje adorna o
jardim. Em 1966, a propriedade foi vendida para o Serviço de Assistência Social e Seguro dos
Economiários (SASSE) (ZUBARAN, et. al., 2011).
2.3 O Solar como propriedade da SASSE
Assim que adquiriu o prédio, as intenções da SASSE eram claras em sua proposta de
demolição do Solar para construção de um conjunto de residências para usufruto de seus
associados. Diante das pressões para dar continuidade ao projeto e a demolição do prédio, a
Prefeitura Municipal não cedeu, sendo que com a desaprovação, o Solar passou a ser utilizado
como um depósito de documentos da associação.
35
A ocupação do Solar por populares, assim como a deterioração física desse imóvel,
estava relacionada ao desinteresse do Serviço de Assistência Social e Seguro dos
Economiários (SASSE), então seus proprietários, após terem seus planos de
demolição do prédio frustrados pela negativa da Prefeitura Municipal de Porto
Alegre. Seguiu-se, então, um período de abandono do Solar que ficou quase em
ruínas (ZUBARAN, 2012, p.96)
Neste mesmo período, sofrendo com a falta de conservação, o Solar passou a abrigar
muitas famílias que careciam de moradia em Porto Alegre, acabando por se tornar e
conhecido como um cortiço.
Figura 6 Fachada do acesso principal | Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman
O SASSE foi extinto em 1977 e o Instituto de Administração Financeira da
Previdência e Assistência Social (IAPAS) assumiu a propriedade do imóvel. Em 1978, o
governo federal fez a permuta da propriedade, com o IAPAS, por um terreno na Av. Loureiro
da Silva (ZUBARAN, et. al., 2011).
2.4 O Solar Lopo Gonçalves como espaço preservado
Entre os anos de 1969 e 1974 a cidade de Porto alegre passou por uma diversidade de
reformas urbanas, estas que acabaram por causar um considerável impacto na paisagem. È
importante destacar que a zona onde se hoje se situa o Solar já havia sido uma das mais
36
afetadas durante as obras de canalização do arroio em 1950, onde ocorreu no período uma
série de desapropriações. Acompanhando os planos diretores da cidade, estes que reforçavam
uma proposta de modernização violenta, requereu-se que a mobilidade da cidade fosse
ampliada, promovendo assim uma série de obras que transformaram ainda mais a paisagem da
região. Dentre estas que comprometeram a geografia da região, estão às obras da I Avenida
Perimetral que afetaram diretamente a estrutura do antigo bairro, o dividindo em duas partes.
Elas também necessitaram de uma nova série de desapropriações, que acabaram por extinguir
algumas de suas antigas ruas.
Figura 7 Construção do Viaduto dos Açorianos (1970) | Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman
Foi neste período, onde estavam ocorrendo uma série de transformações no espaço
urbano, em que um grupo de intelectuais de Porto Alegre começou uma empreitada em prol
da preservação de edificações com significado histórico para a cidade. Mas foi somente no
ano de 1974 que o Solar tornou-se alvo destes debates acabando por ser inventariado, onde
passou a ser considerado como um dos prédios de enorme valor histórico para a cultura Porto
Alegrense (ZUBARAN, et. al., 2011).
Segundo MEIRA (2008), a intervenção realizada no Solar poderia ser considerada
exemplar, em especial pelas dificuldades enfrentadas. Em especial por ter sido a primeira obra
realizada pelas estruturas municipais. A restauração do Solar de Lopo Gonçalves, residência
de veraneio do criador da Associação Comercial de Porto Alegre, possuía uma ligação direta
37
com a história da cidade de Porto Alegre. Os responsáveis pela obra destacaram que o projeto
respeitou os critérios de intervenção onde destaca que limitaram a intervenção ao resgate das
formas e espaços originais do prédio, acatando os elementos já incorporados a história
funcional e estética do mesmo.
Figura 8 Museu em processo de restauro - Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman
A autora segue destacando a importância dos critérios usados para o restauro do
prédio, estes que raramente são especificados em um bem patrimonial, o que é essencial para
nortear as disposições de projeto para abranger a execução. Através da dedicação da equipe
técnica em instruir-se a partir de conhecimentos práticos em paralelo com o arcabouço
teórico. Sendo assim, se lançou uma proposta preliminar, esta que teve a autoria dos
arquitetos Nestor Torelly Martins e Régis Gutierrez Andreatta realizado em 1980, e um
levantamento arquitetônico adimplido em 1981, levando em contra a necessidade de uma
precisão maior nas dimensões do projeto arquitetônico para que ocorresse a sua execução. A
Prefeitura Municipal conseguiu adquirir o imóvel após insistentes tentativas com o
proprietário, onde em 1981, foi firmado convênio com a SPHAN/FNPM para a execução do
restauro. A execução da obra foi realizada por uma empresa administrada pelo arquiteto
Edegar Bittencourt da Luz.
38
3. AS ENTREVISTAS
Foram Selecionamos para compor esta proposta de análise das entrevistas realizadas,
um morador do bairro Cidade Baixa, um preservacionista envolvido diretamente com o
movimento de patrimonialização do Museu, e o arquiteto responsável pela obra e restauro do
prédio. Os critérios escolhidos se deram pela acuidade dos relatos produzidos, em especial por
sua relação com o Solar e a vida cotidiana da cidade, também ao fato de serem testemunhas
das diversas transformações urbanas que ocorreram na região onde se localiza a atual Rua
João Alfredo, antigamente conhecida como Rua da Margem10
.
Este grupo de entrevistados além de representar diferentes etnias que estiveram
diretamente implicadas na constituição do bairro, foram ativamente envolvidos com diversos
momentos específicos, estes que caracterizam não só a biografia e a memória do Bairro
Cidade Baixa, mas especialmente a história da cidade de Porto Alegre. Os entrevistados
escolhidos para esta análise são o Morador Sérgio Traunetti, o Arquiteto Nestor Torelly
Martins, responsável pela restauração do solar, e Leandro Teles que foi fundador do
Movimento de Defesa do Acervo Cultural Gaúcho. Neste capítulo se oferecerá destaque para
as memórias mais recursivas, estas que representam o patrimônio cultural, e que são
articuladas como reminiscências coletivas da comunidade. Elas possibilitam a percepção da
presença do espaço do entorno do Museu José Joaquim Felizardo, em um primeiro momento
como coadjuvante nesta composição, uma testemunha silenciosa, que hoje através do
reconhecimento, e atribuída sua importância, assume o protagonismo como um templo de
articulação das memórias da cidade.
É a constituição de um lugar de evocação das recordações mais pessoais, estas que
invocam os antepassados, pessoas que talvez não estejam arroladas e presas por sua imagem
em paredes e molduras, ou subordinadas apenas às referencias de feitos e importância. Mas a
lembrança de indivíduos e memórias vivas, estas que fizeram parte do cotidiano de cada
sujeito, deste construto coletivo, tornando o Museu como lugar de afeição e apropriação dos
moradores.
10
A implantação das linhas de bonde de tração animal, através do Caminho da Azenha (Av. João Pessoa) e da
Rua da Margem (João Alfredo) contribuiu para a urbanização do local. A partir de 1880 novas ruas foram
inauguradas, como a Lopo Gonçalves e a Luiz Afonso. A atual Rua Joaquim Nabuco também foi oficialmente
aberta nessa época, batizada de Rua dos Venezianos, pois sediava o famoso grupo carnavalesco com o mesmo
nome. O carnaval da Cidade Baixa era reconhecido e prestigiado na época, com destaque para os coros que
movimentavam as ruas.
39
Segundo Eclea Bosi, (1983), é importante destacarmos a dimensão social dessas
memórias, e em que momento é possível avultar a importância do contexto social e suas
normativas, e como estas se estabelecem. Também perceber qual a importância da dimensão
subjetiva da memória, onde se encontra o litígio em que as tensões elaboram uma evocação
ou um descarte destas imagens em uma perspectiva individual. Neste sentido a autora aponta
que a dialética entre o indivíduo e o social, é onde se encontram estas articulações em
destaque nas narrativas memorialistas. Bosi destaca que estas reminiscências individuais são
pautadas por temporalidades atreladas ao contexto do tempo social, este que define o período
onde estas lembranças foram constituídas. Quais as memórias e em que tempo elas foram
perpetradas? Qual a geração que as vivenciou? Que imagens são produzidas a partir desta
rememoração de um evento? Estas são perguntas que vão definir os rumos da composição do
relato. No ato de recorda-las em um episódio, o individuo passa a encontrar-se em um evento
onde que buscará a unidade com as memórias do grupo ao qual se reconhece. (BOSI, 1983, p.
339-347).
3.1 Os Personagens e suas Narrativas
3.1.1 Leandro Telles
O entrevistado Leandro Telles foi diretor da Pinacoteca Porto Alegrense, também
atuou como procurador da Prefeitura de Porto Alegre. Sua importância especial em relação ao
patrimônio da cidade se dá com a fundação movimento de preservação em 1976, este
composto por um grupo de intelectuais que atuava em defesa da memória representada por
espaços que estavam sofrendo com as propostas dos sucessivos planos diretores
modernizadores, que não levavam em conta estes aspectos importantes da história da cidade.
Segundo ALMEIDA (2004, p.85) estas mudanças radicais na estrutura da cidade
vinham desde 1939, resultantes da administração de José Loureiro da Silva. Este propunha
uma série de mudanças estruturais através do plano diretor da cidade. Ele ressaltava que para
a conclusão deste processo de modernização, necessitaria haver uma associação entre a
renovação do traçado da cidade em paralelo com o ajustamento das propriedades privadas que
estavam localizadas às margens destes empreendimentos. Neste sentido apresentou uma
solução para execução que seria um extenso processo de reorganização dos loteamentos, de
40
modo a harmoniza-los às novas perspectivas construtivas. Estas antigas residências e prédios
que eram característicos da cidade colonial, com uma pequena testada e muita profundidade,
necessitariam oferecer espaço para os novos terrenos adaptados aos altos edifícios que eram
previstos para ocupar agora o seu lugar, nas margens das avenidas recém-construídas.
Neste sentido Leandro Telles no inicio de sua entrevista destaca que entre os anos de
1976 e 1979 foi onde ocorreu o surgimento do movimento em prol da preservação do
patrimônio de Porto Alegre. Este grupo fortaleceu-se com a parceria de muitos artistas e
intelectuais que participavam ativamente das iniciativas. Em sua narrativa destaca que a
fundação do Movimento em Defesa do Acervo Cultural Gaúcho foi em 05/10/76, movimento
este que se tornou atuante em diversas áreas, até oferecendo cursos concernentes ao
patrimônio histórico na Biblioteca Pública de Porto Alegre.
Naquela época tinham bons nomes junto, o Francisco de Macedo, que
mora logo aí, adiante, aqui no Edifício do Estúdio Histórico, ele participou
também, participou desta campanha. [...]. Olha, na época eu dirigia a
Pinacoteca da Prefeitura. Mas eu particularmente sou procurador aposentado
da prefeitura, Mas fora da prefeitura fundei este movimento em 76. Isto era
uma iniciativa particular né. [...] A gente doutrinava o pessoal que passava.
[...] E o nosso o objetivo principal era catequizar acerca do valor do
patrimônio histórico e acho que isso a gente conseguiu, que hoje todo mundo
discute se um prédio de valor histórico é ameaçado, todo mundo defende, há
um movimento popular em torno deste respeito, em torno disso etc.
(Entrevista com Leandro Telles).
Segundo MEIRA (2008, p.447) o Movimento em Defesa do Acervo Cultural Gaúcho
teve grande influência na constituição e preservação do patrimônio do estado. Eles atuaram
pela defesa de diferentes bens culturais, influenciando politicamente e atuando nas Câmaras
Municipais e Prefeituras que se manifestavam pelos tombamentos de bens em suas
jurisdições, em outros momentos até intervindo em outros municípios. Neste sentido o
entrevistado segue destacando que no ano de 1976 o movimento passou a se mobilizar
fortemente ensinando para a população os valores acerca do valor do patrimônio histórico.
Então nós fundamos este movimento e começamos a batalhar, através de
artigos de jornais, Correio do Povo na época nos auxiliou muito, a gente
publicava manifestos do movimento no Correio, sobre várias defesas, até
defesas de cemitérios de valor artístico, onde se acham túmulos, que é o caso
do nosso cemitério da Santa Casa, em que grandes escultores nacionais ali
deixaram sua passagem. (Entrevista com Leandro Telles).
41
Ele segue destacando que neste período o patrimônio Porto Alegrense estava passando
por um grave momento de abandono. Era um período em que não se ponderava sobre o
assunto, era muito comum os prédios de valor histórico e arquitetônico ser destruídos pela
especulação imobiliária, esta que não respeitava nenhuma diretriz, tornando-se a pior inimiga
do patrimônio histórico da cidade.
Sobre a preservação de prédios que estavam ameaçados de demolição, Leandro
ressalta que diante das diversas iniciativas foi proposta a reunião artistas plásticos no intuito
de retratar estes prédios. A sugestão deu-se em que os artistas se alocariam em frente ao
prédio e produziriam um retrato. Esta iniciativa foi aplicada em vários prédios de interesse
patrimonial na cidade. Neste sentido o entrevistado ressalta que:
Não foi só o Solar, nós retratamos vários prédios, inclusive a própria
prefeitura nós retratamos uma vez. Nós retratamos a antiga sede da
Germânia, da sociedade Germânica que foi abaixo pra colocarem edifício,
para terem mais espaço, quando poderiam ter feito certo, deixado o prédio e
construído o outro prédio atrás, mas não, aquilo foi a louco. Hoje, pelo nosso
batalhar que a prefeitura resolveu instituir, deixar às vezes a fachada do
prédio, construir atrás, aqueles prédios todos da Independência, os prédios
antigos hoje, se alguém quiser botar abaixo para fazer um edifício, ele é
obrigado a deixar as características do prédio, ou seja, a fachada, ou o
próprio prédio, deixar a casa na frente e construir o prédio atrás, vocês
podem observar isso aí, na Independência. (Entrevista com Leandro Telles).
O Leandro Telles ressalta que estas iniciativas de preservação dos prédios históricos
porto alegrenses foi em especial resultado do movimento preservacionista que conduzia, este
Figura 9 Leandro Telles - Fonte: Arquivo do Museu de Porto Alegre
42
que visava chamar a atenção do poder publico em relação ao patrimônio histórico da cidade.
Ele destaca o apoio de diversos artistas, nomes de grande valor nas artes plásticas do estado.
Estes que ajudaram ativamente abraçando a causa e militando todos os sábados em ações em
prol da memória representada nestes espaços.
Figura 10 Aquarela, de Alberto Scherer, Porto Alegre/RS/Brasil
Outro destaque importante foi o apoio do Hardy Vedana11
, este que foi um grande
pesquisador musical de Porto Alegre e artista popular. Referenciando Vedana ele destaca
que:
Ele juntou sua bandinha e vinha aos sábados. Eles às vezes saiam, tocavam
de noite em locais noturnos e sábado de manhã sem dormir estavam lá nos
auxiliando sem cobrar nada, até de vez em quando passam carteiros ai que às
vezes paravam para ouvir, uns dois ou três me chamaram, tu não é aquele
que fazia aquilo com a bandinha do Vedana, isso mesmo. E os artistas
ficavam lá, a banda era o chamarisco, compreendeu? Além de se difundir a
musica popular brasileira, ao mesmo tempo se chamava a atenção sobre o
trabalho dos artistas, o trabalho dos artistas o povo chegava e via o pintor
executando uma obra de arte em praça pública, coisa que pela primeira vez
se fazia em Porto Alegre. [...] Era uma catequese, uma cura divina em praça
pública, uma cura espiritual, o pessoal passava, ficava ali olhando, então
tomavam conhecimento. Os artistas explicavam o que estavam fazendo e
11
Hardy Vedana foi um maestro, tenor e clarinetista brasileiro. Nascido em Erechim, em 1928, ainda muito cedo
veio para Porto Alegre, evento que lhe direcionou definitivamente para o campo das artes. No final dos anos 40
tornou-se músico de jazz, estilo em que foi clarinetista virtuoso. Ele foi o Idealizador e fundador do Museu da
Imagem e do Som de Porto Alegre em 1997. Publicou também em 2006 a obra “A Eléctrica e Os Discos
Gaúchos”, obre que tratava sobre a história da gravadora de discos existente em Porto Alegre entre 1914 a 1923.
Escreveu também sobre a história do Jazz em Porto Alegre (1985), este que era um de seus gêneros musicais
preferidos.
43
eles tomavam conhecimento, do valor da obra de arte e do valor do
patrimônio histórico. (Entrevista com Leandro Telles).
Leandro destaca que o objetivo destas ações estava na proposta de preservação do
espaço do Solar. Era o ato de chamar a atenção sobre o valor daquele espaço de memória, e
tudo que estava implicado no que significava o Solar Lopo Gonçalves para a cidade. Além de
ter sido moradia do presidente da primeira Associação Comercial e da Câmara de Comércio
Porto Alegrense, era um dos raros prédios que conservavam parte do passado, remetendo a
primeira metade do XIX. Quanto à situação do Solar no período em que se propôs uma
intervenção, o entrevistado destaca que o prédio estava em péssima condição.
Era um pardieiro praticamente, e a gente temia que o solar fosse abaixo. Mas
com grande surpresa nossa o Solar foi salvo, até aí eu acho que o Dr. Jair
Soares12
teve grande desempenho no fato. Porque ele logo acendeu, eu me
lembro de que no salão nobre da prefeitura eu estava presente quando foi
feito esta transferência e gente se sentiu aliviado, quer dizer, missão
cumprida. Sai lá do Salão nobre, pensando: Cumprimos mais uma vez a
missão! Chutamos a gol. (Entrevista com Leandro Telles).
Um importante realce da entrevista deu-se na importância do movimento de
preservação, e os caminhos percorridos para concretização dos desígnios propostos. O
entrevistado destaca que o objetivo principal do movimento que era conscientização da
população porto-alegrense, rio-grandense, acerca do valor do patrimônio histórico, e ressalta
que em seu sentimento considera que foram atingidos. Leandro Telles relatou que acredita ter
conseguido deixar um legado para as futuras gerações, um espaço para que outros se
empenhem neste sentido. Ressalta a importância de terem conseguido mobilizar a atenção do
Poder Público, acerca do valor do patrimônio.
Antes do movimento não existiam leis de tombamento ou de arrolamento de
patrimônio. Depois que nós começamos com esta campanha começaram a
surgir leis de vários municípios do Rio Grande, inclusive Porto Alegre. No
tempo do Vilela, surgiu à lei de tombamento do patrimônio histórico.
Anteriormente Tompson Flores também fez alguma coisa. Quer dizer que
nós despertamos a atenção dos poderes públicos, tanto estadual como
municipal, acerca do valor do patrimônio histórico. (Entrevista com Leandro
Telles).
O Entrevistado segue o seu relato observando que acredita que hoje a consciência rio-
grandense foi despertada em relação à importância destas questões. Ele faz referencia ao “O
espírito do povo”, este que teve a sua atenção desperta sobre o patrimônio histórico. Sobre o
Movimento em Defesa do Acervo Cultural Gaúcho, destaca sua satisfação e senso de dever
12
Jair de Oliveira Soares (Porto Alegre, 26 de novembro de 1933) é um político gaúcho filiado ao PP. Foi
governador do Rio Grande do Sul pelo PDS de 1983 a 1987. Foi ministro da Previdência no governo João
Figueiredo, vereador de Porto Alegre, deputado estadual e federal.
44
cumprido, em principal ao objetivo que era conscientizar a alma do Rio Grande acerca do
Patrimônio.
3.1.2 Nestor Torelly Martins
O Arquiteto Nestor Torelly Martins foi o responsável pela obra do restauro do Solar
Lopo Gonsalves. Além disso, foi um ativo participante de diversos movimentos em prol do
patrimônio Porto alegrense, também professor em diversas universidades no Rio grande do
Sul. Ele da inicio ao seu relato destacando que Solar era um prédio que há muito tempo
chamava atenção da categoria dos arquitetos, sendo que não foram poucas as vezes que a
hipótese de preservação do espaço foi destacada.
Ele ressalta que este desejo de preservação do espaço do Museu, veio a se concretizar
em um período onde participava do Conselho Municipal de Patrimônio Histórico da
Prefeitura de Porto Alegre. Foi neste momento em que assume a representação do instituto de
arquitetos, que adveio a oportunidade de participar do processo de permuta entre a prefeitura e
o ministério da previdência. Com o desenrolar das negociações em relação ao prédio, junto
com a proposta de restauro surge também à necessidade de montar uma equipe que viesse a
estar habilitada para a execução da obra. O entrevistado aponta que foi justamente neste
Figura 11 Nestor Torelly Martins - Fonte: Arquivo do Museu de Porto Alegre
45
período que houve a solicitação da sua ascendência do Estado do Rio Grande do Sul pela
prefeitura, para que eu pudesse se dedicar na realização deste projeto.
De fato não foi somente a execução, pois nós tivemos que refazer inclusive a
proposta arquitetônica. Ela tinha sido realizada por outro colega arquiteto,
com outros critérios, e nós chegamos dentro de um consenso com outros
colegas que seria mais adequado fazer algumas pequenas modificações na
proposta arquitetônica de restauração, fazer realmente uma proposta de
restauração, que pretendesse preservar as formas originais do prédio, tanto
no seu interior como no seu exterior. (Entrevista com Nestor Torelly
Martins).
Torelly afirma na entrevista que no período da proposta em relação ao Solar, havia
uma disponibilidade financeira por parte da prefeitura em relação à obra, sendo que
contrataram uma empresa que já oferecia experiência em restauro, por fim iniciando a obra o
mais rápido o possível. Ele assinala que no decorrer da execução do restauro, previu a que a
verba disponível não seria suficiente para o término da obra, então foi encaminhada uma
proposta de financiamento para o restante do trabalho de restauro que ainda levaria mais um
ano.
Isso era janeiro de 80 eu creio, e a previsão é que se não houvesse faltado
dinheiro a gente em junho de 81 estaria concluído. Mas de fato com a
demora em liberar a verba acabamos concluindo apenas em 82, final de 81
inicio de 82. O interessante foi que na nossa chegada no prédio nos
apercebemos do péssimo estado físico do prédio. Boas partes do prédio já
não tinha mais cobertura, chovia pra dentro, os equipamentos de madeira
estavam todos castigados, presumia-se que conseguiria se aproveitar uns 40
a 50 %, nem isso foi possível, boa parte do madeirame teve que ser
integralmente recuperado, integralmente trocado. (Entrevista com Nestor
Torelly Martins).
O entrevistado destacou que o madeiramento teve de ser integralmente refeito, desde
a sua estrutura até a própria cobertura. Mas mesmo em meio a estes percalços o objetivo foi
alcançado com sucesso, recuperando com isso a forma original do prédio. Neste sentido
Torelly afirma que acredita que o objetivo inicial proposto com a elaboração do projeto
concretizou-se, obtendo-se os resultados indicados através do cronograma proposto, em
especial pela elaboração de um comparativo com a documentação e informações realizadas na
pesquisa realizada sobre o prédio.
46
Figura 12 Madeiramento em condições Precárias - Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman
Figura 13 Restauro do Madeiramento - Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman
47
Abordando as dificuldades contrastando com o objetivo da restauração do prédio em
sua forma original, Torelly fala do problema relativo às diversas mudanças realizadas na casa
através do tempo.
O prédio tem como característica também uma séria de ampliações, ele foi
construído inicialmente numa dimensão menor e depois foi sendo ampliado,
até incluir uma fase bastante atual, que inclusive foi retirada, que não
permaneceu, fase construída com estrutura de concreto, com telha francesa, e
outros materiais que não se coagulavam com a linguagem da arquitetura
colonial que é a característica principal do Solar Lopo Gonçalves.
(Entrevista com Nestor Torelly Martins).
Ponderando sobre os usos do espaço, o entrevistado dialogou sobre como concebia a
proposta elaborada durante a composição do projeto, discorrendo sobre a necessidade da
compreensão de que em todo trabalho de restauro, na maioria das vezes se prevê a
reutilização do prédio mantendo as formas originais, e algumas vezes adaptando-o
provisoriamente para um novo uso, fato este que se constituí em uma proposta para que a vida
do prédio seja prolongada.
No caso específico do Solar Lopo Gonçalves havia uma primeira proposta elaborada
por outro arquiteto, esta que previa para alcançar espaços maiores para exposições, retirando
uma série de divisórias que eram características na definição do Solar como residência. Seria
a retirada dos dormitórios, da sala de visita, e as salas de estar, transformando tudo em um
grande salão. Ele destaca que foi este o aspecto em que não concordou, pois considerou que
sua proposta era realmente fazer uma restauração, e neste sentido o prédio deveria ainda
manter suas características de residência, e foi o que se seguiu.
Nós mantivemos as peças em tamanho ás vezes bastante reduzido, mas que
teriam que ser reutilizadas para que se desse a elas um destino mais
adequado, em função de uma instalação museológica, que era o que se
pretendia. Eu, depois de algum tempo restaurado, já em uso pelo Museu de
Porto Alegre, quando nós visitávamos o prédio, seguido o diretor do museu
nos reclamava que era um absurdo ter se pretendido adaptar um prédio como
esse pra museu, afinal de contas parecia que os arquitetos pensavam que casa
antiga, casa velha era sempre a instalação ideal para museu. (Entrevista com
Nestor Torelly Martins).
Neste sentido Torelly relata que alertou da importância do ponto de vista museológico,
onde o museu careceria da necessidade de atualização, de condicionamento térmico,
iluminação, e uma série de outras exigências. Ele finaliza seu relato destacando que a ideia
inicial da restauração era transformar temporariamente o espaço em uma instalação
museológica, e futuramente quando o Museu de Porto Alegre possuísse uma edificação atual
anexa, transformar este prédio em um museu de ambiência, onde seria mobiliado
48
integralmente seu interior, de maneira a caracterizar uma residência de uma família da metade
do século passado em Porto Alegre.
3.1.3 Sérgio Traunetti
O entrevistado Sérgio Traunetti se identificava como descendente de imigrantes
italianos. Morador muito antigo da Cidade Baixa, bancário aposentado, era proprietário de
muitas das residências mais antigas localizadas nas cercanias do museu, na atual Rua João
Alfredo.
Figura 14 Sérgio Traunetti - Fonte: Arquivo do Museu de Porto Alegre
Segundo relatou, ele era conhecido por seus inquilinos pelo apelido de "Barão da João
Alfredo", devido ao grande numero de residências que possui na rua. Estes locatários utilizam
hoje estas antigas residências como estabelecimentos de lazer noturno na Cidade Baixa. Ele
inicia sua narrativa falando sobre suas origens italianas, sendo que sua família vinha de uma
região cerca de Nápoles, em Trevinho. Ele conta que no momento em que sua mãe veio para o
Brasil a Europa passava por um surto de gripe espanhola, sendo que neste período ela perdeu
seis de seus irmãos. Por medo e devido à falta de recursos, ela decidiu por vir para o Brasil
morar com os tios Gerardo e Maria Tortorelli, moradores da Rua da República esquina com a
Rua José do Patrocínio. Já o seu pai passou por um trajeto diferente, saiu como emigrante da
Itália para a Argentina, onde após um tempo acabou por vir para o Brasil. Primeiramente
49
parando no porto de Rio Grande, e depois seguindo para Porto Alegre. Neste período em que
chegou à capital trabalhou como jardineiro na casa dos Tortorelli.
Quanto a suas memórias referentes ao Solar, Sérgio procura constituir um pequeno
trajeto do prédio referenciando a história de Lopo Gonsalves como o primeiro presidente do
sindicato de indústria e comércio. Ele relata que após o falecimento de Lopo Gonçalves, o
prédio passou por herdeiros, sendo que após muito tempo o Dr. Albano Volkmer adquiriu a
residência para estabelecer os empregados como moradores do Solar. Um importante fato que
assinalou foi à disputa que ocorreu pela compra do prédio que esteve entre Albano Volkmer e
a família de Traunetti, representada por um tio, um padrinho e seu pai, mas por fim Albano
acabou vencendo a alterca e adquiriu o Solar.
Ele ganhou, por que quem iria comprar seria um tio meu, meu pai e o meu
padrinho, né, eles se uniram para comprar isto daqui, mas o Dr. Albano
chegou primeiro, e ficou com o Solar. Porque ele tinha fábrica de velas na
ilha. Porque que tem a ponte de pedra? Porque a ponte de pedra ligava o
continente com a ilha. (Entrevista com Sérgio Traunetti)
Traunetti distingue as diferenças na constituição do bairro no período em que sua
família era residente na região, destacando que o Solar localizava-se de frente para o Riacho.
Ele relata que seu avô comprou um pequeno trecho de terra na beira do arroio para ali
construir diversas residências. O entrevistado ressalta alguns dados do cotidiano do antigo
bairro que permeiam a sua memória. Um dos importantes destaques esta no grande fluxo de
comércio que ocorria no arroio dilúvio13
, ponto onde circulavam em barcos diversos pessoas
com diversos ofícios oferecendo seus trabalhos para os moradores do entorno do arroio.
O barquinho eu andei muitas vezes, passavam, por exemplo, era cômodo
para minha mãe ela chegar aos fundos do quintal, passava o lenheiro, as
casas davam o quintal para o riacho e a frente para rua da Margem. Então
passava o padeiro, o galinheiro, ela escolhia a galinha, tudo pelo riacho, o
alcochoeiro, isso não existe mais, a gente contratava o alcochoeiro, ele vinha
com uma máquina de costura dentro do barco, ai descia, a gente dizia eu
tenho o colchão, geralmente era de lã. Então ele vinha, abria os colchões,
lavava a lã, abria a lã, batia, e depois fazia na máquina o colchão, e botava
dentro, era o alcochoeiro. E tinha o lenhador que vendia uma talha de lenha,
eu ainda tenho, que me deram de presente quando eu era criança, a serra q
ele montava de cima e serrava toda a talha. Em tamanhos pra gente colocar
no fogão a lenha. (Entrevista com Sérgio Traunetti)
13
O arroio nasce na Represa Lomba do Sabão, localizada no Parque Saint-Hilaire em Viamão, e recebe água de
afluentes como os arroios dos Marianos, Mato Grosso, Moinho, São Vicente e Cascatinha, para finalmente
desaguar no Lago Guaíba, entre os parques Marinha do Brasil e o Harmonia. Seu nome era, originalmente,
Arroio Sabão. Até a década de 1950, o Dilúvio apresentava águas muito limpas, e ganhou este nome porque
costumava inundar os bairros vizinhos, como Menino Deus ou Cidade Baixa, em dias de chuva forte. Desaguava
perto da Usina do Gasômetro, passando por baixo da Ponte de Pedra mas, com o crescimento da cidade, foi
recanalizado para o curso atual, entre as pistas da Avenida Ipiranga.
50
Através da constituição do relato do entrevistado, torna-se possível estabelecer uma
imagem de um bairro cheio de vida, onde os relacionamentos eram articulados através do
cotidiano, e representado nos diversos saberes populares. Neste relato encontram-se diversos
personagens que faziam parte do dia-a-dia dos moradores, cenas que por vezes remetem a
violência, a pobreza, e a empatia compartilhada na comunidade. Traunetti destaca um evento
especifico onde desvela os perigos que cercavam a região.
Neste tempo existiam às lavadeiras, tinha uma, a Cantalise, uma preta gorda,
ela teve problema, ela era muito brigona. Eu defendia muito ela, um dia foi
defender um sobrinho que tava gambá, e a policia queria mata-lo, aqui teve
muito coisa né, a João Alfredo foi um lugar de muita morte. Quantas e
quantas vezes, porque do lado da minha casa tinha uma ponte, que ligava o
arraial a João Alfredo, né, então se chamava Avenida, aquele conjunto de
casebres, antigamente se chamava Avenida, e quando entrava em guerra uma
Avenida contra a outra, sobrava um esfaqueado, então eles atravessavam a
ponte, com a faca enterrada e caiam na esquina. E a minha mãe já tinha água
destilada, panos e tal, pra socorrer, e muitos morriam. (Entrevista com
Sérgio Traunetti)
Para Traunetti é possível reconhecer o entorno do Solar como um ambiente
intensamente ligado ás suas percepções, um lugar de evocação de uma diversidade de
memórias e afeições, estas que ainda são rememoradas através da compleição da velha cidade,
elemento recorrente nos relatos do entrevistado.
Figura 15 Arroio Dilúvio. - Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman
51
O entrevistado relata que as mudanças ocorridas através da elaboração do plano diretor
da cidade eram muito radicais, sendo que afetava diretamente a vida dos moradores que
estavam acostumados com a dinâmica do bairro, e neste sentido a proposta era justamente
tornar diferente esta constituição da imagem urbana de apropriação dos moradores,
substituindo-a por uma proposta modernizadora que unificaria os dois lados que eram
divididos pelo arroio. Neste sentido o Solar acabou também por sofrer com a mudança, sendo
por vezes até alvo de furto.
Este lado estava trancado por causa das mudanças do Plano Diretor, eles
queriam unir tudo, praticamente o Solar aqui caia quase todo, não ficava
quase nada. É uma pena que tiraram muitas peças antigas daqui. O Solar por
fora era muito bonito. Não viu na esquina, que eu tenho de ferro, tipo um
toldo, antigo? Pois aqui, na escadaria principal era um deste tipo, e aí parece
que o engenheiro que assumiu aqui, levou isso com ele. Aqui tinha outra
parte atrás que demoliram. (Entrevista com Sérgio Traunetti).
Remetendo as suas memórias de convivência com a família de Albano Volkmer, ele
relata que ficou por um período residindo com a família. Traunetti localiza o recinto usado
como moradia pela família Volkmer como a o atual auditório do Solar. Ele segue oferecendo
detalhes da constituição do prédio ressaltando a presença de uma escada lateral que Albano
construiu para ser a entrada para residência da família. Ele conta que acabou por ficar com a
família Volkmer devido a uma viagem feita por seus pais para Buenos Aires, um tempo onde
adquiriu grande amizade com Teresinha, à filha de Albano.
Meus pais foram para Buenos Aires e eu fiquei aqui uma semana com eles. E
eu fiquei aqui com eles, eu não porque eu fiquei, mas eu fiquei. E como eu e
a Teresinha, nós fazíamos criação de galinha aqui, então a gente cuidava das
galinhas. [...] E tinha os empregados para cuidar, até a parte dos fundos, ali
se plantava muito milho, uma vez eu plantei tomate, eu e a Teresinha, aipim
também né. (Entrevista com Sérgio Traunetti).
Quanto à família Volkmer, ele ressalta que Alice esposa de Albano era uma das
maiores orquidófilas de Porto Alegre na época.
52
Figura 16 Bodas de Ouro de Albano Volkmer (1962). No centro da foto, Albano, sua esposa e filha que
residiram no Solar. Fonte: Acervo particular José Carlos Volkmer
Ele conta que embaixo do auditório havia um apartamento, lugar onde ficavam as
orquídeas, um fato que se destacava pela grande beleza das flores. Ele segue o relato
discorrendo que na parte dos fundos do terreno do Solar quase ninguém possuía acesso. Era o
espaço onde albano deixava as velas para a secagem no Sol. Estas eram postas em bandejas
grandes por toda a parte dos fundos do terreno. Também havia a existência de um grande
tanque, onde depois de confeccionadas, estas eram estas resfriadas nas aguas. Neste sentido
Traunetti relata:
O tanque ficava aqui, perto da casa onde eu morava. Nessa casa que tá
caindo agora, morreu o dono, e tá caindo, caiu todo o teto, é uma pena né.
Aqui na divisa. Aonde tinha a tipografia. Antigamente eram meus padrinhos,
que tinham oficina de galvanoplastia, eles vieram da Itália para restaurar, pra
restaurar não, na época pra fazer aquela douração no Palácio Piratini, toda
aquela parte que era de ouro ali, então, foram meus padrinhos e meu sogro.
Eu casei com a sobrinha do meu padrinho. (Entrevista com Sérgio
Traunetti).
Justificando o porquê de Albano morar no Solar, que a principio era apenas uma
cara reservada para residência de empregados, Traunetti ressalta que devido a uma crise
financeira, a família Volkmer se viu obrigada a vender suas propriedades para poder dar conta
das dividas contraídas por um filho que havia empenhado os bens em corridas de cavalos.
O Dr. Albano tinha uma filha, a Teresinha, era solteira né [...] Eles foram
para Alemanha, passear, o casal e a filha. E eles tinham um palacete na
Independência, aí quando eles retornaram, o filho tinha torrado tudo no
Prado. Tinha uma dívida enorme. Aí ele teve que vender o palacete dele e
53
vim morar com os empregados aqui. O morro da lomba do Pinheiro era todo
dele, era a chacra dele. Ai ele vendeu o terreno lá da ilha e veio pra cá. Ele
morou aqui até vender para uma empresa que queria fazer edifícios, ai a
prefeitura acabou comprando desta empresa. Aí ele se mudou para uma
casinha, aqui na Luis Afonso, e terminaram todos os três, até a guria faleceu
ali. Ele era provedor da Santa Casa. (Entrevista com Sérgio Traunetti).
Traunetti encerra sua entrevista destacando a sua afetividade pelo espaço do Solar,
ressaltando a sua beleza e como aquele lugar resgata as suas reminiscências. O Solar para o
entrevistado é parte constituinte de sua história e memória, um lugar de paixões, uma
referência daqueles que já se foram, um reflexo da velha cidade, uma menção para a
lembrança de seus antepassados. Um dos últimos destaques oferecidos se da para a presença
da magnólia 14
em frente ao prédio, fato que desperta nele grande empatia. [...] é uma
Magnólia. Foi da época dos escravos eu acho. E não tem em Porto Alegre outra árvore de
Magnólia. Quando ela dá flor, lá da esquina a senhora sente o perfume da Magnólia.
(Entrevista com Sérgio Traunetti).
14
As magnólias são árvores apreciadas como ornamentais em jardins, principalmente em locais de clima
temperado ou subtropical. Produzem abundantes flores brancas ou rosadas, grandes e perfumadas.
54
Considerações Finais
Nos capítulos iniciais trouxemos uma análise que buscou fundamentar a produção da
pesquisa, trazendo associado um debate teórico sobre as novas formas de fazer história, em
especial enfatizando a História Oral como centro deste debate. Temas como patrimônio,
cultura e memória, foram tensionados a fim de constituir um pano de fundo para a nossa
análise, indicando a importância de trabalhos que protagonizem narrativas como centro do
debate. Também lançamos importantes questões sobre as diferentes maneiras que
concebermos o que compreendemos como museu, contrapondo a tensão existente em relação
às formas como constituímos o que é ou não patrimônio. Na segunda parte da monografia
encontramos um breve histórico do Solar, para nos localizar temporalmente em relação ao
tema abordado. E por fim chegamos às narrativas que enfatizaram a perspectiva de distintos
atores que narraram suas histórias em diferentes temporalidades e durações.
Na entrevista de Leandro Telles, destacou-se a importância dos movimentos em prol
da preservação do Patrimônio, estes que emergem de um reconhecimento da importância da
preservação da memória como constituidora de patrimônio. Neste sentido a cultura seria
“interruptor metodológico” que acionaria a interpretação da história, que, por conseguinte
viria a produzir os seus símbolos. A cultura seria o uso do passado histórico como elo na
produção de um presente. “A cultura é a organização da situação atual em termos de
passado” (Sahlins, 1987, p.192). É possível perceber que a ação da história intervém e
modifica essa ordem, definindo ordenação ao processo.
A história é ordenada culturalmente de diferentes modos nas diversas
sociedades, de acordo com os esquemas de significação das coisas. O
contrário também é verdadeiro: esquemas culturais são ordenados
historicamente porque, em maior ou menor grau, os significados são
reavaliados quando realizados na prática. (...) as pessoas organizam seus
projetos e dão sentido aos objetos partindo das compreensões preexistentes
da ordem cultural. Nesses termos, a cultura é historicamente reproduzida na
ação (SAHLINS, 1987, p. 07).
O processo de construção da história, tanto no âmago de uma sociedade, como na
inter-relação de sociedades, busca resgatar as estruturas do passado em um processo que vai
orquestrando o presente a partir dos símbolos do passado. Neste sentido poderíamos pensar no
patrimônio como objeto destas disputas simbólicas, onde se dá esta transição temporal em que
os símbolos do passado trazem sentido para o presente, assim como o presente passa a
resinificar estes símbolos, assumindo novos significados dentro da cultura.
55
Portanto se faz necessário que compreendamos o patrimônio material e imaterial como
um pujante instrumento de análise da concepção da vida social e cultural. Nesta constituição o
patrimônio possuiria agregado em si, uma importância como elemento de resistência,
tornando-se um conceito essencial na valorização da diversidade cultural dos grupos sociais.
Ele evocaria a força representativa da “cultura” esta que desafia as violências proporcionadas
pela globalização. Quando utilizamos o conceito patrimônio cultural, é imperativo
oferecermos ciência de que tratamos da dimensão da cultura do patrimônio ao qual estamos
discutindo. Neste sentido, se faz necessária a discussão dos elementos que constituem esta
noção moderna de patrimônio, que envolve questões primordiais como o conceito de cultura,
a noção de pessoa, e a relação com o simbólico no processo de construção identitária de um
indivíduo ou uma sociedade.
A entrevista realizada com Nestor Torelly Martins ressalta o contexto social de intenso
questionamento e transformação que marcaram a décadas de 70 a 80. É um período em que se
destacavam as discussões que estavam no entorno da idealização de preservação do espaço do
solar. Já existiam varias questões que permeavam este período, em especial no que tange o
contraste existente com antigos ideais de preservação.
Na atualidade, a afirmação de que os museus constituem lugares de memória
passou a ser um lugar comum. Se nos anos 80 e 90 as investigações de Pierre
Nora sobre os lugares de memória eram capazes de produzir impactos
criativos, hoje seus impactos tendem a ser absorvidos, neutralizados e
naturalizados. Passou a ser praxe de elogio institucional a afirmação de que o
museu “x” ou “y” é um lugar (ou casa) de memória; como se a memória
tivesse valor em si mesma e fosse a expressão da verdade pura e do supremo
bem; como se o esquecimento fosse o mal ou um vírus criminoso que
devesse ser combatido, deletado, destruído. De qualquer modo,
compreendidos como casas de memória, os museus entraram no século XXI
em franco movimento de expansão e continuam exercendo, em nome de
sujeitos mais ou menos ocultos, o seu poder que tanto serve para libertar,
quanto para tiranizar o passado e a história, a arte e a ciência. (CHAGAS,
2011, p.11-2)
Neste sentido evidenciou-se a necessidade da inserção do museu posicionando-se em
diálogo com movimentos sociais e a composição de suas coleções, onde se demonstrava
imperativa uma verdadeira metamorfose no conceito da instituição como um espaço
compartilhado e não estático. Já na década de 80, a nova museologia já destacava uma
oposição ao que seria o conceito de museu tradicional, criticando a postura elitista, esta que
proporcionava um distanciamento do cotidiano dos sujeitos e grupos. Em oposição ao
tradicionalismo, apontavam que os museus deveriam assumir sua função social e
56
ultrapassando os limites de uma tradição que ressaltava a circulação de bens culturais de uma
elite.
Já Sérgio Traunetti, faz menção às memórias afetuosas, familiares, que também
possuem sua ação no âmbito do coletivo, mas que em especial remetem a sua experiência
pessoal com o espaço do Solar. O entrevistado atribuiu ao Solar a função de “guardião” de
memórias da comunidade, em especial por sua referência que sempre participou do cotidiano
dos moradores por décadas. A configuração que seu Traunetti oferece as suas reminiscências
merece um destaque especial, pois sua constituição se da em um âmbito da experiência
coletiva e individual. Devido à idade avançada e sua boa memória, a forma como ele articula
as lembranças a respeito de si, e dos diversos personagens ao qual cruzaram sua trajetória,
seus relatos acabam por produzir um perfil denso que apresenta uma vasta informação que
transita entre as memórias coletivas e individuais constantemente conectadas.
Percebe-se a referencia proposta na obra de Maurice Halbachs (1990, p.51-2), que
incide na afirmativa de que a memória individual existe sucessivamente partindo de uma
memória coletiva, sendo que estas as reminiscências são fundadas no coração do grupo. A
procedência de vários conceitos, meditações, emoções, indiferenças que atribuímos a nós são
infundidas pelo grupo. Neste sentido a proposta de Halbachs sobre a constituição da memória
individual aponta para a experiência de uma “intuição sensível”. A memória individual,
edificada por meio das referências e lembranças proporcionais ao grupo, destaca uma
perspectiva sobre a memória coletiva. Este olhar sobre o que é produzido e narrado deve
sempre ser considerado percebendo a função exercida pelo indivíduo no interno do grupo, e
suas relações cultivadas com outros meios (HALBACHS, 1990, p.55).
Ecleia Bosi (1983) propõe uma reflexão importante sobre a constituição das memórias
dos mais velhos. A Autora destaca que as memórias produzidas possuem uma função social
exercida no decorrer da vida, e ocupam uma parcela expressiva da memória dos velhos, sendo
que tal fato não seria uma ocasionalidade. A memória produzida na velhice é uma construção
de indivíduos já com idade avançada, mas que em um momento foram pessoas ativas que
exerciam funções e trabalho. Neste sentido a composição da narrativa é uma produção de
homens e mulheres que já não mais se constituem como membros ativos na sociedade, mas
que em outro momento o foram.
Neste sentido isto denotaria que os idosos, a despeito de não serem mais instituidores
da vida na contemporaneidade em meio ao seu grupo social, eles passam a possuir uma nova
função social. Esta função se daria no encargo das reminiscências, no sentido de relembrar
para os mais jovens a história, sua origem, seus feitos e aprendizado. Na velhice as pessoas
57
passam personificar a memória da família, da comunidade e sociedade. É importante ressaltar
que não é só o tempo "socialmente permitido" que os idosos possuem para destinar às suas
memórias.
Porque as coisas que modelamos durante anos resistiram a nós com sua
alteridade e tomaram algo do que fomos. Onde está nossa primeira casa? Só
em sonhos podemos retornar ao chão onde demos nossos primeiros passos.
Os deslocamentos constantes a que nos obriga a vida moderna não nos
permitem o enraizamento num dado espaço, numa comunidade (BOSI, 1983,
p. 362).
A Autora lembra que os anciões possuem uma memória social atualizada,
contextualizada e determinada, se constituindo em expectadores de uma perspectiva concluída
e bem localizada no tempo. Diferente dos mais novos, que estão em uma transição absorvidos
nos conflitos e contrassensos de um tempo presente que os exige constantemente, carecendo
de experiência para organizar as lembranças.
As três entrevistas constituem perspectivas que denotam momentos distintos na
história do Solar Lopo Gonsalves, mas que nunca deixam de se constituir em referência para o
tempo presente. Leandro Telles representa o intuito preservacionista que percebe o patrimônio
como fundador memórias que são recorrentes a constituição da cultura de uma cidade ou
grupo. Já o arquiteto mostra a força da ação do estado como instituidor deste patrimônio,
estabelecendo o espaço como uma referencia para a história da cidade, e determinando
elementos que passam a ser apropriados pela sociedade como parte do seu presente. Já Seu
Traunetti representa a memória popular, aquela que se apropria do espaço como parte de sua
história, referencia de suas lembranças, e importante elemento constituinte de sua identidade.
Outro importante destaque deve-se a importância que ambos entrevistados atribuíram
ao Solar, o reconhecendo como um espaço de pertencimento, mas acima disso ressaltando sua
estima como patrimônio cultural da cidade, por vezes o referenciado como “o guardião das
memórias” da comunidade. Neste sentido um elemento indissociável destas narrativas
produzidas através das entrevistas orais é a memória. Desvelou-se através da análise destes
relatos, uma série de acontecimentos onde as vivências e experiências que até então eram
desconhecidas, foram passiveis de serem evocadas através da memória que o narrador ou
contador de histórias recorreu. Foi à possibilidade de uma transição através da temporalidade,
esta que emerge em uma riqueza de detalhes através do que é contado ou narrado. São
elementos conservados na memória de quem conta, e agora também partilhada nas
reminiscências de quem ouve.
58
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