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Página1 IX Simpósio Nacional de História Cultural Culturas – Artes – Políticas: Utopias e distopias do mundo contemporâneo 1968 – 50 ANOS DEPOIS Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT Cuiabá – MT 26 a 30 de Novembro de 2018 SOB O SOL DA LOUCURA: REPRESENTAÇÕES MÉDICAS NO CORPO FEMININO Lidiane Álvares Mendes 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Ora a mulher é fogo, devastadora das rotinas familiares e da ordem burguesa, devoradora, consumindo as energias viris, mulher das febres e das paixões românticas, que a psicanálise, guardiã da paz e das famílias, colocará na categoria das neuróticas; filha do diabo, mulher louca, histérica herdeira das feiticeiras de outrora. A ruiva heroína dos romances de folhetim, essa mulher cujo calor do sangue ilumina pele e cabelos, e através da qual chega a desgraça, é a encarnação popular da mulher ígnea que deixa apenas cinza e fumaça 2 Os discursos médicos do final do século XIX e início do século XX apontam a higiene, a psiquiatria e a medicina legal como fontes disciplinadoras para o comportamento feminino. A ciência médica como prática surge na consolidação da 1 Lidiane Álvares Mendes, é licenciada em história pelo Centro Universitário de Várzea Grande/MT, pós- graduado latu sensu em Políticas Públicas e Sociais pela mesma instituição, mestra em história social pela Universidade Federal do Amazonas, e membro do Laboratório de Estudo de Gênero/UFAM. E- mail: [email protected] 2 PERROT. Michele. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.p.p. 187-188.

SOB O SOL DA LOUCURA REPRESENTAÇÕES MÉDICAS NO …gthistoriacultural.com.br/IXsimposio/anais/Lidiane... · 2020. 11. 22. · Os excluídos da história: operários, mulheres e

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IX Simpósio Nacional de História Cultural

Culturas – Artes – Políticas: Utopias e distopias do mundo contemporâneo

1968 – 50 ANOS DEPOIS

Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT

Cuiabá – MT

26 a 30 de Novembro de 2018

SOB O SOL DA LOUCURA: REPRESENTAÇÕES MÉDICAS NO

CORPO FEMININO

Lidiane Álvares Mendes1

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Ora a mulher é fogo, devastadora das rotinas familiares e da

ordem burguesa, devoradora, consumindo as energias viris,

mulher das febres e das paixões românticas, que a psicanálise,

guardiã da paz e das famílias, colocará na categoria das

neuróticas; filha do diabo, mulher louca, histérica herdeira das

feiticeiras de outrora. A ruiva heroína dos romances de folhetim,

essa mulher cujo calor do sangue ilumina pele e cabelos, e através

da qual chega a desgraça, é a encarnação popular da mulher

ígnea que deixa apenas cinza e fumaça2

Os discursos médicos do final do século XIX e início do século XX apontam a

higiene, a psiquiatria e a medicina legal como fontes disciplinadoras para o

comportamento feminino. A ciência médica como prática surge na consolidação da

1 Lidiane Álvares Mendes, é licenciada em história pelo Centro Universitário de Várzea Grande/MT, pós-

graduado latu sensu em Políticas Públicas e Sociais pela mesma instituição, mestra em história social

pela Universidade Federal do Amazonas, e membro do Laboratório de Estudo de Gênero/UFAM. E-

mail: [email protected]

2 PERROT. Michele. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1988.p.p. 187-188.

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formação da sociedade capitalista, na qual constituiu-se da intervenção e investigação da

medicalização dos corpos e mentes.

Vieira pontua que,

A crença na missão civilizadora dos médicos levou-os a formular um

projeto de reorganização da sociedade, visando a produzir indivíduos

saudáveis no corpo e no espírito, capazes de efetuar transformações não

apenas em suas vidas particulares, mas no destino do país. Para cumprir

esta missão elaboraram um discurso reformista sobre as principais

instituições que, segundo sua interpretação, eram responsáveis por

graves erros e vícios na formação do povo brasileiro, a começar pela

família, alcançando as escolas, hospitais, quartéis, prisões, mercados,

cemitérios, enfim, milhares de espaços públicos e privados que deviam

seguir as normas da reforma higienista.3

Nesse escopo da reforma higienista, o fascínio médico em desvendar a fisiologia

feminina ganhou força na primeira metade do século XIX, tornando os exames médicos

cada vez mais detalhados esmiuçavam os corpos e os esquadrinhavam em observações,

métodos, estatísticas e fórmulas de tratamentos e cura para todos os males. Dentre essas

doenças estava a loucura.

De forma geral, os médicos brasileiros deram atenção especial ao corpo

feminino, devido às funções da maternidade e da família. Buscou-se representar na

anatomia e na fisiologia da mulher o papel da reprodução, o que implica diretamente nas

bases sociais desse país que se estruturava sob a luz da Primeira República.

Diante do âmbito republicano, os homens da ciência acumulavam vários papéis:

de educador, a guardião da moral, do planejador do espaço urbano e familiar, à

desmistificador do corpo feminino. Os médicos formularam uma definição de ser social

e suas intervenções médicas criaram conceitos relativos à natureza da mulher.

As propostas médicas variavam de acordo com as condições sociais que se

iniciavam na profilaxia coletiva e individual e nas prevenções da saúde higiênica, onde

os discursos baseavam-se em,

Primeiro lugar, situar-se no debate mais amplo sobre a questão da

mulher em curso nos centros europeus e norte-americanos e, em

segundo lugar, formular uma síntese sobre o tema, procurando adequar

as duas principais correntes sobre a questão: aquela que mesmo

3 VIEIRA, Elisabeth Meloni. A medicalização do Corpo Feminino. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2002.

p.p.217-218.

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reconhecendo a inferioridade física e mental das mulheres acreditava

no poder transformador da evolução.4

Intrínseco nesse discurso de educação evolutiva da mulher estava a pirâmide

social que diferenciava, de forma clara, a mulher rica da pobre, pois este período é

determinado pelo sentimento de formação de uma nação unificada e o papel da mulher

como mãe, educadora e provedora dos costumes valorais e saudáveis passaram a ser

fundamentais. Dessa maneira, gerenciar esse corpo através de seus comportamentos

tornou-se a tônica dos discursos médicos, das normatizações e das prevenções contra

fatores de degeneração moral.

As constituições históricas do corpo feminino como objeto da medicina e das

suas contravenções configuram-se na dimensão social, orgânica e de gênero estruturadas

no processo da naturalização desse corpo. Diferenciá-lo do corpo masculino tornou-se

causa de fato naquele momento, e essa divisão se dá na medida em que a mulher se

deixava examinar com mais regularidade.

Tal construção do corpo feminino e de suas condições biológicas ocorreu

impulsionada pela questão sexual. De fato, estabelecer as verdades sobre a sexualidade

nos ides do século XIX/XX não fora tarefa fácil. Métodos comparativos de tamanho,

forma, peso e volume dos órgãos masculinos e femininos eram examinados e

pulverizados nas revistas científicas do final do século.

Jean Pierre Peter afirma que,

A mulher era, para a medicina, como um território a conquistar. Além

de conhecer, descobrir. Universo espantoso, desconcertante, cheio de

armadilhas e surpresas. Frente às questões a respeito da natureza

humana que a medicina devia colocar e esclarecer como o que é o

homem, se acrescenta e se substitui por outra mais polêmica: O que é a

mulher?5

O que era então a mulher dentro dos conceitos médicos alienistas, higienistas e

regulamentadores senão seres consideradas inferiores física e mentalmente? Até então

estas eram as considerações pautadas na cientificidade exercida pelo corpo médico

4 MARTINS, Ana Paula Vosne. Visões do Feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX. Rio

de Janeiro: FIOCRUZ, 2004.p.222.

5 PETER, Jean Paul. Les Médecins et les femmes. In : ARON, J. P (Org.) Misérable et Glorieuse: la

femme du XIX siècle. Paris: Fayard,1981.p.80.

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brasileiro e que cai por terra à medida que a fisiologia feminina concede o direito à análise

profunda que desvenda as entranhas desse corpo.

Para o corpo médico da jovem República, higienizar o país era o lema que

sustentava os projetos de modernizações efetuadas neste período. Se o projeto era

modernizar o país, os processos de higienização e controle da população através de

normas, leis e decretos, do ensino das letras, de condutas de valores morais e sociais, do

controle e purificação dos corpos e mentes geraram pesquisas e análises científicas que

envolveram não somente os corpos masculinos, mas, sobretudo, o corpo feminino, corpo

este que carregou por muito tempo a culpa de todos os males,

Simbolicamente, às mulheres destinavam-se as contravenções do mundo cinza e

da fumaça. Imagens construídas através das perspectivas religiosas e enraizadas nas

famílias que levavam a ferro e fogo os preceitos valorais, cercando as mulheres por meio

da subordinação aos homens, de maneira tal que por muitos anos o corpo humano era tido

como sexo único, limitando a medicina a estudá-la superficialmente.

Ao longo do século XIX, o véu que cobria o corpo feminino e sua estereotização

se desfaz através dos estudos realizados pelos obstetras, ginecologistas e médicos legistas

que usaram os resultados de suas experiências anatomofisiológicas para fundamentar suas

teorias em relação ao corpo feminino. No entanto, os escólios que foram utilizados

continuavam a se contrapor aos sistemas corpóreos e cerebrais que diferenciavam

mulheres e homens.

Segundo Martins,

Os médicos estabeleceram que na mulher este sistema era instável,

marcado pelo desequilíbrio e que, portanto, qualquer excitação

periférica – sempre de origem sexual – poderia perturbar o frágil

equilíbrio do sistema e causar problemas psíquicos que variavam de

uma simples dor de cabeça chegando a estados melancólicos,

manifestações histéricas e delírios que podiam levar as mulheres a

cometerem atos contrários à sua vontade, como o infanticídio e o

suicídio.6

Individualizadas na questão de gênero e na medicina social, as mulheres eram

investigadas, esmiuçadas e normatizadas através de dispositivos que corroboravam para

o processo de medicalização desse corpo. Além disso, todos os comportamentos

6 Martins,idem, p.76).

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desviantes da figura feminina tinham características próprias, a prostituição, o

homossexualismo, o alcoolismo, a histeria, etc. são classificados como comportamentos

desviantes e inscritos no âmbito da loucura. “Concebida como expressão do instinto não

controlado, a loucura é vista como um estado primitivo ou selvagem, caracterizado pela

fragilidade da formação espiritual e intelectual do indivíduo”.7

A mulher tem, em seu estereótipo, todas as dúvidas que os investigadores da

fisiologia feminina queriam extrair. Respostas que, por um longo período não foram

solucionadas. O corpo feminino era para os médicos, o que nos coloca Engel, “no

organismo da mulher, na sua fisiologia estariam inscritas as predisposições à doença

mental”.8

Nesse contexto, o continente quase desconhecido que a loucura ocupava as

pequenas ilhas que se formavam e que giravam em torno das diversas perspectivas que

causavam a doença e, sobretudo, sob o monopólio dos alienistas, na sedimentação e na

repressão do corpo feminino, onde os diagnósticos precoces e especulações que julgavam

e definiam as mulheres que sofriam das faculdades mentais eram caracterizadas pela

puberdade, menstruação, maternidade, órgãos genitais, masturbação, sexo - excessivo ou

não -, histeria, menopausa, rejeição, vapores femininos, neurastenia, sobrecarga de

emoções, útero errante, descaso, bobices, calores e calafrios, casamentos, solteirice,

enfim, todas as portabilidades que influenciavam a entrada da doença no corpo feminino.

Sob o sol da loucura, as mulheres tornam-se alvo fácil dos homens da ciência

que cismam em descobrir as causas que influenciavam os desequilíbrios mentais que as

infligiam. Ou como nos afirma Foucault “[...] que a ameaça da loucura retoma seu lugar

entre as urgências do século.” 9

Essa urgência dos séculos que Foucault propõe está determinada na cronologia

histórica. O espaço urbano em transformação traz impactos em toda a sociedade, daí nasce

à necessidade das internações para observações, que num primeiro momento são

7 ENGEL, Magali Gouveia. Psiquiatria e feminilidade. In: Mary Del Priore (org.). História das Mulheres

no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012.p.81.

8 ENGEL, Magali Gouveia. Os Delírios da Razão: médicos, loucos e hospícios (Rio de Janeiro, 1830-

1930). Rio de Janeiro: Fiocruz, 2001.p.333.

9 FOUCAULT, Michel. História da Loucura: na Idade Clássica. Trad. José Teixeira Coelho Neto. São

Paulo: Perspectiva, 2012.p.360.

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subjetivas perante os mecanismos de tratamento e, com os crescentes estudos da psique,

tornam os loucos objetos de estudos mais profundos.

O medo da loucura se emoldura numa reta temporal, social e histórica. É nesse

período que o corpo feminino aufere espaço na pesquisa científica, desvendar a loucura e

os devaneios das mulheres é tema intrigante para a sociedade alienista.

A loucura em tempos modernos figura no feminino todos os desencadeamentos

possíveis. A mulher, dona do útero fértil e do cérebro frágil, vagou pelos tempos

entrecruzando seu caminho pelos instintos e não pela razão. Delegada à vida particular,

segregada à família, seu comportamento estava diretamente ligado à síndrome da

insanidade mental, ou seja, ao menor sinal de contravenção, desvio de conduta, excessiva

carência ou desmedida afabilidade, questionamentos racionais ou imposições de

igualdade de gêneros, sua sanidade era arguida pela família e assinada pelos homens da

ciência, que buscavam investigar todos os comportamentos tidos como insanos e que

poderiam levar à loucura real.

Neste contexto, interessa-nos nesta reflexão investigar os discursos produzidos

em relação às causas da loucura nas mulheres através do olhar dos médicos alienistas que

exerciam esta ciência no país e, neste caso, específico, em Manaus na Primeira República

Brasileira. Em meio à diversidade de diagnósticos médicos e da segregação, à internação

e os tratamentos, a louca ocupava o mesmo espaço de sociabilização reclamado pela elite.

1.1 REPRESENTAÇÕES FEMININAS

A prática medicinal nunca esteve dissociada do contexto histórico e social, até

porque a medicina é uma ciência intervencionista, e a utilização desta prática de

ingerência abre mão das produções discursivas. As teses médicas relacionadas aos

prognósticos da loucura como doença de fato que foram defendidas no final do século

XIX e nas primeiras décadas do século XX são trabalhos voltados para considerações,

ponderações e menções de estudos até então realizados.

Nos primeiros anos republicanos, internar mulheres que apresentassem

comportamentos ligados à loucura significava intervir no âmbito social. As

reestruturações que eram voltadas para a limpeza física da urbe alcançavam também as

fulanas que perambulavam pelas ruas. Os doentes sociais necessitavam de tratamentos e

a medicina, através da institucionalização dos comportamentos embasados nas causas

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orgânicas das enfermidades da loucura, buscavam esclarecer as causas das doenças

mentais e, no que dedilha esta reflexão, as causas da loucura feminina apontadas pelos

alienistas da época, estes aspectos possuíam características específicas: puberdade,

menstruação, gravidez, parto, menopausa, sexualidade, paixões, abstinência sexual,

histeria e transtornos comportamentais. Nesse contexto, a fisiologia feminina e os

distúrbios mentais são associados à noção de instabilidade constante, visto que,

São anormais todos os exageros sexuais da mulher que, por vezes, os

patenteia da maneira mais exibicionista e até atentatória da dignidade

da situação social que ocupa, indo de encontro aos bons costumes e as

conveniências sociais, deve admitir-se que esses exageros andam

ligados a sua constituição neuropática.10

As concepções dos comportamentos femininos sedimentados em valores

religiosos e familiares não admitiam que as mulheres pudessem ter qualquer tipo de

exageros. Seu comportamento era condicionado a prescrições morais. Ora, a mulher que

a sociedade republicana priorizava era a burguesa, que diante das condições favoráveis

de vida teriam predicados para gerar uma prole saudável e numerosa contribuindo para o

futuro do país na criação de indivíduos de bem, de valores morais e sociais, contribuindo

para uma nação que nascia sob os ares republicanos e buscava o progresso com base em

uma população ordeira. Ana Maria Colling expõe que,

A autoridade bíblica com respeito à subordinação feminina foi

confirmada ou substituída pela autoridade biológica. A mulher, cujo ser

é afetado pela sexualidade no discurso médico, logo passa a ser vista

como um ser doentio, com crises frequentes, afetada pelas paixões e

romances. 11

A imagem representativa do corpo feminino e as definições de suas emoções

vinculadas ao seu comportamento foram a mola propulsora as pesquisas alienistas que

buscavam entender as causas das doenças mentais nas mulheres.

1.2 SOB O SOL DA LOUCURA

Reportando-nos a Manaus republicana e as perspectivas dos médicos que

habitavam essa urbe e que buscavam desvendar a loucura através dos tratamentos e da

10 MONIZ, Egas. A Vida Sexual – Fisiologia e Patologia. Lisboa: Casa Ventura Abrantes, 1916. p.332.

11 COLLING, Ana Maria. Tempos diferentes, discursos iguais: a construção do corpo feminino na

história. Mato Grosso do Sul: Ed. UFGD, 2014.p.90.

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institucionalização dela a favor de uma medicina social que impute nos espaços de

sociabilização a ordem. Temos na institucionalização e medicalização do corpo feminino

a criação da Colônia de Alienados Eduardo Ribeiro,12 em 1894. Além disso, os médicos

manauaras contavam com a crescente onda nacional de estudos desta patologia e essa

troca acadêmica sugeriu várias maneiras de tratar e curar a loucura, dentro do espaço de

clínico.

Porém, as tentativas dos médicos em lidar com a insanidade das mulheres em

Manaus foram deverás ligadas aos tratamentos básicos da histeria e da neurastenia,

entendendo que as doenças mentais no corpo feminino eram causadas pelas ações

determinadas até então pelo organismo oculto das mulheres. Paralelo às perspectivas

médicas temos nos tratamentos destas duas patologias em específico a prospecção de que

podem assim que diagnosticadas serem tratadas e até curadas com remédios eficazes

anunciados nos jornais locais.

NEURASTHENIA, FADIGA, PROSTAÇÃO DE FORÇA – KOLA

PROSPATADA (GRANULADA) – Preparada por Vicente Verneck.

Esta util combinação corresponde a uma necessidade therapeutica,

todos os dias acentuadas pelos mais preclaros clínicos. É o mais seguro

tonico empregado contra as molestias ou excessos, que produzem

esgotamento nervoso.

ANEMIA CEREBRAL, HYSTERIA E PROSPHATURIA. (Grifo

nosso). 13

Estas propagandas também eram feitas pelos médicos que possuíam gabinetes

próprios onde o tratamento era direcionado a várias doenças,

Dr. Cardaval – Gabinete Radio Electro-Therapico.

As molestias da pelle, as molestias do aparello da intervenção,

neurastenia, hysteria, dores de cabeça, nervos do coração, os

aneurysmas, as paralysias de toda especie, as molestias do estomago e

intestinos, as hemorroidas, as molestias do fígado, do baço, a obesidade.

Curadas por meio de aplicações elétricas. As molestias das senhoras,

12 A Colônia de Alienados Eduardo Ribeiro foi oficialmente criada pela lei nº 65 de 03 de outubro de

1894, porém sua efetiva construção e transferência dos pacientes ocorrem no final da década de 1930.

Ao longo do tempo sua nomenclatura sofreu alterações: Colônia de Alienados Eduardo Ribeiro,

Hospício Eduardo Ribeiro e Centro Psiquiátrico Eduardo Ribeiro. Ler: MENDES, Lidiane Álvares. Na

esteira da loucura: Colônia de alienados Eduardo Ribeiro-Práticas e representações na ala feminina,

Manaós/AM (1894-1930).Dissertação de Mestrado/Universidade Federal do Amazonas.

13 Jornal do Commercio, 10 de fevereiro de 1904, edição nº 33, ANNO I.

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curadas pela Kinesitherapia, massagens e gymnastica. Rua 24 de

maio.nº58.174.14 (Grifo nosso)

Remédios que vinham de pesquisas dos Estados Unidos também eram objetos

das propagandas,

MODERNO ANNEL ELEECTRO BI-POLAR AMERICANO

Notável descoberta do Dr. William de Nova York.

Cura todos os males nervosos, hysterismo, neurastenia, dores de

cabeça ou enxaqueca, nervosismo, câimbra, constructura dos musculos,

palpitações nervosas, erysipela, disppeias nervosas, dor sciatica,

impotência, etc. O ANNEL BI-POLAR DO DR. WILLIAM é

indispensável a todos que são victimas das terríveis molestias nervosas,

ele preserva de todos os males já mencionados e a população d’esta

Cidade deverá experimentar ou possuir estes legítimos e sólidos Anneis

electricos americanos. A VENDA UNICAMENTE NA CASA “PAZ

DA PATRIA” – MANAÓS. (Grifo nosso). 15

As propagandas citadas acima nos apontam que os médicos e farmacêuticos

possíveis charlatões, criaram e recriam curas para todos os males. Utilizavam dos

problemas neurastênicos, comuns na população da passagem do século, para divulgarem

seus produtos milagrosos. As informações dos anúncios nos remetem às múltiplas facetas

utilizadas por eles para ganharem dinheiro rápido, elucidando questões econômicas. Tais

remédios caracterizam a cura pelo consumo medicamentoso.

Um fato nos chama atenção a partir de 1909, outra fórmula aparece e esta surge

depois de uma nota publicada no Jornal do Commercio de 08 de janeiro daquele ano com

o título A Neurasthenia e o Vinho.

Vejamos,

A Neurasthenia foi muito discutida no Congresso medico de Genebra.

Disse-se, entre outras coisas, que essa enfermidade nervosa faz muitas

victimas entre os bebedores de agua. É interessante saber até que ponto

pode chegar o fundamento dessa asserção. A Neurastenia é

caracterizada por symptomas de fadiga e esgotamento, que atingem não

somente as forças physicas, mas também as faculdades intelectuais. Ao

mesmo tempo, os doentes experimentam perturbações muito sensíveis

nas suas funções physiológicas. Todas essas causas exercem uma

influencia debilitante sobre o corpo e o espirito. Idagou-se si não seria

conveniente em taes condições, empregar excitantes e determinar uma

utilização mais rápida e mais completa do bolo alimentar.

14 Jornal do Commercio, 12 de abril de 1904, edição nº 87, ANNO I.

15 Jornal do Commercio, 13 de setembro de 1906, edição nº 795, ANNO III.

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E continua,

O Neurasthênico, sofrendo habitualmente de dyspepsia não deveria

tomar alimentos sólidos ou líquidos capazes de irritar o estomago

affectado. Parece preferível impor ao doente um regime excitante,

sendo por isso desfavorável a proibição do uso do vinho às pessoas

atacadas de tal enfermidade. Constatou-se já que os bebedores de agua

são melancólicos e facilmente irascíveis. Ao contrario, neurasthenia

não ataca senão acidentalmente os bebedores de vinho. Tal é a these

nova. Convinha adapta-a com interia confiança? É o que resta decidir,

sendo certo, porém, que o vinho, condenado em primeira instância

espera triunfante um segundo julgamento.16

A necessidade de citar na íntegra essa notícia se fez pelas indagações que a

cercam. O autor deixa claro que o vinho deveras contribuiu tanto no tratamento quanto

na imunidade à doença. Ora sabemos que as bebidas alcoólicas, mesmo em forma de

medicamentos como é este caso, deixam as pessoas inebries, porquanto, se já sofrem de

uma possível doença neurológica, o vinho não seria o tratamento mais adequado.

Mesmo assim, não tardou a aparecer vinhos milagrosos, elixires que curavam e

gotas que salvavam anunciados nos jornais e com nomes sugestivos. Estavam à venda

nas melhores farmácias do ramo. Nesta reflexão trouxemos os nomes dos medicamentos

que mais frequentaram as páginas de anúncio, sendo eles: Sharop Sirop de Follet, Vinho

Kola-Bah de Orlando Rangel, Vinho de Xarope Deschiens, Elixir, Vinho e Kola

Granulada Monavan, Ovo-Lecithin Billon, Vinho Noguueira, e o fabuloso Gottas

Genitaes, que era um produto da flora amazônica, tendo como base o princípio ativo da

Muirapuama.

As causas das doenças do cérebro que habitavam o corpo feminino não se

restringiram à sexualidade, ao útero, à histeria ou à neurastenia. Sabemos que a Primeira

República no Brasil fora divisor de águas. De uma sociedade colono / imperial o país se

abriu para um novo ciclo e com ele, as mulheres ganharam um pouco de visibilidade. No

momento em que se desataram das amarras familiares e religiosas deixaram-se investigar:

alma, corpo e mente.

Nesse contexto, outra doença, que discutidas no âmbito das academias de

medicina – a sobrecarga de emoções –, vinculavam as mulheres à fragilidade, languidez

16 Jornal do Commercio, 08 de janeiro de 1909, edição nº 1723, ANNO VI.

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e melancolia. Rompantes exagerados às rebaixavam cientificamente e estas sobrecargas

de emoções apareciam nos momentos em que nos dias atuais chamamos de stress,

depressão, estafa, tensões pré-menstruais e dores musculares.

Na ponte dos séculos XIX para o século XX essas emoções se transformaram

em um abismo que os médicos alienistas se propuseram a desvendar, bem como as outras

doenças supracitadas e que despertaram interesses científicos e leigos.

As mulheres manauaras foram submetidas às curas milagrosas e a internações

muitas vezes involuntárias na Colônia de Alienados Eduardo Ribeiro, estabeleciam todos

os métodos de tratamento o que configurava monopólio sobre o corpo feminino e os

aspectos contraditórios da loucura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Primeira República no Brasil foi marcada pelas potencialidades e avanços da

tecnologia e da ciência, os homens das letras buscavam através das pesquisas sociais,

medicinais e urbanísticas, consolidar o estado universal de ser brasileiro. De fato, as

transformações ocorridas no início do século XX, as perspectivas destas transformações

andaram conforme os avanços científicos de outros lugares do mundo.

Neste contexto, o corpo feminino está entre as interrogações a serem

desvendadas pelos médicos daquele período. Corpo este que envolto ao véu da pureza

passou pelos séculos causando estranheza e dúvida, e a dinamização destas descobertas

contribuíram de maneira ímpar para a desconstrução deste corpo e de suas patologias.

Diante disso, a medicina do período republicano debruçou esforços em

desmistificar desde o comportamento até os órgãos internos, das aflições e especulações

em torno deste corpo. E o que tange esta reflexão, o estado de loucura interfere no âmbito

social, incomoda os olhares da urbe, interroga o médicos alienistas e questiona as práticas

sociais.

Assim, analisar este corpo clinicamente e seus sintomas dentro das patologias

existentes, e elencando as novas patologias foi na República Velha, tomado pelos médicos

como assunto central da discussão do corpo feminino e do desvendar da loucura. Muito

embora, esta breve reflexão busque pontuar a sexualidade feminina e as diversas maneiras

de enlouquecer, em controvérsia com o real organismo feminino.

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IX Simpósio Nacional de História Cultural

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Sendo assim, apropriar-se cientificamente deste corpo e elaborar práticas de

tratamento e cura, foi para os médicos alienistas da época o subsídio que alimentou as

pesquisas científicas, bem como as especulações dos charlatões, e a queda do véu da

pureza em torno do corpo da mulher.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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feminino na história. Mato Grosso do Sul: Ed. UFGD, 2014

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Periódicos

Jornal do Commercio do Amazonas, Manaós.