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Sobre a criação de problemas de extremos em geometria plana usando softwares de geometria dinâmica: da não confiabilidade dos resultados numéricos às provas José Luiz Rosas Pinho Departamento de Matemática - UFSC Introdução Se a poética dos números não nasceu na Grécia antiga com a descoberta (ou invenção) dos incomensuráveis, com certeza essa constatação terá sido um de seus seu momentos mais dramáticos. A perplexidade, o incômodo e a confusão causados por essa descoberta perdurou por muitos séculos, e a questão só foi resolvida, de modo consistente, pelos matemáticos no século XIX, quando os irracionais ocuparam definitivamente o seu lugar entre os números. No entanto, na prática, nosso mundo continua a ser racional(no sentido numérico). Nossa tecnologia é “racional” e nos resignamos a trabalhar com aproximações, como aliás fizeram os matemáticos gregos antigos após sua descoberta, o que, afinal de contas (e das contas), tem sido mais do que suficiente para as aplicações, sofisticadas ou não. No entanto, quando se trata de executar medições com fins teóricos, esbarramos com as dificuldades decorrentes de nossa limitação “racional”. Nesse caso, as contas podem não fechar e os resultados nem sempre são confiáveis. Por exemplo, a idealizada construção de objetos geométricos com régua e compasso estabelecida pelos geômetras da Grécia antiga (idealizada porque axiomática postulados I, II e III de Euclides) tornou-se mais precisa, e mais elegante, com o uso dos softwares de geometria dinâmica (SGD). Construção precisa porém não exata, pois a imagem obtida na tela de um computador não é um continuum, sendo formada por um número relativamente grande mas finito de pontos, o que não dá exatidão às figuras nem aos resultados numéricos (porque “racionais”) que esses softwares produzem. A grande qualidade de um SGD é sua parte dinâmica, o que permite perscrutar e descobrir - propriedades de figuras geométricas em caráter bem geral ao se modificar uma figura e mantendo, relativamente à figura, alguns elementos construídos de início. Essa qualidade do

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Sobre a criação de problemas de extremos em geometria plana

usando softwares de geometria dinâmica: da não confiabilidade

dos resultados numéricos às provas

José Luiz Rosas Pinho

Departamento de Matemática - UFSC

Introdução

Se a poética dos números não nasceu na Grécia antiga com a descoberta (ou invenção)

dos incomensuráveis, com certeza essa constatação terá sido um de seus seu momentos mais

dramáticos. A perplexidade, o incômodo e a confusão causados por essa descoberta perdurou

por muitos séculos, e a questão só foi resolvida, de modo consistente, pelos matemáticos no

século XIX, quando os irracionais ocuparam definitivamente o seu lugar entre os números.

No entanto, na prática, nosso mundo continua a ser “racional” (no sentido numérico). Nossa

tecnologia é “racional” e nos resignamos a trabalhar com aproximações, como aliás fizeram

os matemáticos gregos antigos após sua descoberta, o que, afinal de contas (e das contas), tem

sido mais do que suficiente para as aplicações, sofisticadas ou não. No entanto, quando se

trata de executar medições com fins teóricos, esbarramos com as dificuldades decorrentes de

nossa limitação “racional”. Nesse caso, as contas podem não fechar e os resultados nem

sempre são confiáveis. Por exemplo, a idealizada construção de objetos geométricos com

régua e compasso estabelecida pelos geômetras da Grécia antiga (idealizada porque

axiomática – postulados I, II e III de Euclides) tornou-se mais precisa, e mais elegante, com o

uso dos softwares de geometria dinâmica (SGD). Construção precisa porém não exata, pois a

imagem obtida na tela de um computador não é um continuum, sendo formada por um

número relativamente grande – mas finito – de pontos, o que não dá exatidão às figuras nem

aos resultados numéricos (porque “racionais”) que esses softwares produzem. A grande

qualidade de um SGD é sua parte dinâmica, o que permite perscrutar – e descobrir -

propriedades de figuras geométricas em caráter bem geral ao se modificar uma figura e

mantendo, relativamente à figura, alguns elementos construídos de início. Essa qualidade do

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software permite não só constatar propriedades já conhecidas, mas também descobrir outras

propriedades, criando assim novas conjecturas.

Neste trabalho pretendemos chamar a atenção para a criação/formulação1 de

problemas, ou conjecturas, de extremos em geometria com o uso de um SGD, destacando

suas limitações como explicado acima. Trata-se de uma atividade investigativa não restrita a

pesquisadores na academia, mas que pode, deve e tem sido estimulada em alguns países no

ensino básico e universitário. Não apresentaremos aqui uma metodologia para implementar

essa atividade nesses níveis de ensino. Isso será parte de um trabalho que estamos

desenvolvendo2. De início apresentaremos alguns problemas históricos de extremos em

geometria, com uma breve discussão sobre as resoluções de alguns desses problemas e uma

posterior discussão sobre suas soluções através de um SGD. Em seguida apresentaremos

alguns referenciais sobre criatividade e formulação de problemas em matemática. Ao final,

apresentaremos um problema que formulamos, sua história e sua resolução, e que dificilmente

poderia ter sido formulado sem o uso de um SGD.

Problemas históricos de extremos em geometria plana

Problemas de extremos em geometria de modo geral são aqueles em que se deseja

maximizar ou minimizar um comprimento de um segmento, a medida de um ângulo, um

perímetro ou uma área de uma figura ou uma relação entre essas medidas. Em princípio não

há nada de especial com esse tipo de problema. Em uma abordagem analítica, a resolução do

problema se dá via Geometria Analítica (estabelecimento de variáveis via equações dos

objetos geométricos) e Cálculo Diferencial. Acontece que alguns desses problemas históricos

forma formulados, e resolvidos, em uma era pré-cálculo. Além disso, as resoluções analíticas

podem se tornar trabalhosas, se não impossíveis, em alguns casos. Um outro aspecto negativo

desse tipo de resolução é a sua impossibilidade de discutir esses problemas no ensino básico.

A abordagem “puramente geométrica”, que leva em conta apenas propriedades geométricas

1 O termo que é usado em inglês é Problem posing. 2 No Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica (PPGECT) da UFSC.

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(que podem ser) estudadas no ensino básico, e que é chamada de resolução por geometria

sintética, é mais apropriada, às vezes mais simples e mais “elegante” (devido à simplicidade)

para discussão no ensino básico (PINHO, 2013).

Discutiremos aqui cinco problemas históricos: os problemas de Heron, de Fagnano, de

Regiomontanus, de Fermat e de Dido. Em cada um deles analisaremos, a priori, a existência

de solução para o problema, de um ponto de vista intuitivo e, a posteriori, faremos

considerações a respeito de uma análise de solução via SDG. Não apresentaremos as

resoluções desses problemas, exceto pelo esboço da resolução de um desses problemas (o

problema de Heron). As resoluções podem ser encontradas por exemplo em Pasquali (2004).

Em Niven (1981) encontramos diversos problemas de extremos (não somente de geometria)

sem o uso das ferramentas do Cálculo.

1. Problema de Heron

Heron de Alexandria viveu entre 150 a.C. e 250 d.C. uma de suas obras mais

importantes, A Métrica, escrita em três livros, só foi redescoberta em 1896 em

Constantinopla (Istambul) por R. Schöne. Em outra obra sua, Catóptrica (Reflexão),

do grego Κ𝛼𝜏𝜊𝜋𝜏𝜌𝜊𝜐 (Catoptron – espelho), que tratava da reflexão da luz, Heron

mostrou com argumentos geométricos a igualdade dos ângulos de incidência e de

reflexão de um raio de luz em um espelho. O problema de Heron pode ser enunciado

assim:

Dados dois pontos A e B e dada uma reta r que não passa por esses dois pontos, de

tal forma que os dois pontos estejam em um mesmo semiplano em relação à reta r,

encontrar um ponto P na reta r de modo que a soma PA + PB, de suas distâncias aos

pontos A e B seja mínima (Figura 1).

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Figura 1

Um argumento intuitivo sobre a existência de solução desse problema é o seguinte:

quando o ponto P, sobre a reta r, se afasta dos pontos A e B nos dois sentidos, a soma

de suas distâncias a esses pontos aumenta; logo, deve haver (pelo menos) uma posição

para P na reta r onde a soma é mínima. Esse argumento é na verdade uma transposição

de uma argumentação mais sofisticada que envolve a continuidade (que intuitivamente

percebemos) da função que descreve a soma das distâncias de P aos pontos A e B,

conforme P varia sobre a reta r. Não deveria causar estranheza falar em intuição

matemática. Na primeira metade do século XX dois matemáticos franceses, Poincaré

(1908) e Hadamard (1945), já falavam em intuição e criação em matemática.

A resolução analítica do problema de Heron não é difícil, mas envolve a construção da

função (de uma variável) soma das distâncias, o cálculo de seus pontos críticos e

verificação do ponto de mínimo.

A resolução não analítica envolve apenas o uso da simetria de um dos pontos em

relação à reta r, e o conhecimento da desigualdade triangular no plano. O ponto P é

obtido como a intersecção da reta r com a reta que passa pelo simétrico de um dos

pontos e pelo outro (Figura 2).

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Figura 2

A igualdade entre os ângulos de incidência e de reflexão, de um raio de luz saindo do

ponto A, refletindo no espelho r, e chegando no ponto B, fica evidente através dessa

resolução (o que não ocorre na resolução analítica).

A análise do problema através de um SGD, como o Geogebra, por exemplo, permite

“descobrir”, aproximadamente, a posição do ponto P, na reta r, que minimiza a soma

das distâncias em questão. Usando um arredondamento de duas casas decimais para as

contas no Geogebra percebe-se que uma pequena variação do ponto P, em sua posição

de minimização, não altera o valor da soma. Alterando para um arredondamento

maior, por exemplo, com 10 ou 15 casas decimais, fica difícil posicionar o ponto P na

reta r de modo a minimizar aquela soma. De qualquer forma, a resposta dada pelo

software nunca é definitiva pelos motivos que discutimos acima.

2. Problema de Fagnano

Esse problema foi proposto pela primeira vez por Giovanni Francesco Fagnano dei

Toschi (1715-1797), que usou argumentos do Cálculo e um resultado intermediário

obtido por seu pai, Giulio Carlo Fagnano dei Toschi (1682-1766), que permitiu

mostrar a existência de solução. Há duas resoluções bem conhecidas, uma do

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matemático alemão, Hermann Amandus Schwarz (1843-1921) e outra do matemático

húngaro, Lipót Fejér (1880-1959). O problema de Fagnano é o seguinte:

Dado um triângulo acutângulo, encontrar um triângulo nele inscrito (isto é, cujos

vértices estão sobre cada um dos lados do triângulo dado) de modo que seu perímetro

seja mínimo.

Neste caso, não é possível perceber, a priori, a existência de solução para tal problema.

A resolução analítica também não é simples e envolveria uma função de mais de uma

variável. A resolução de Fejér baseia-se na resolução do problema de Heron e a sua

solução é o triângulo órtico do triângulo dado (Figura 3).

Figura 3

Pode-se perceber que uma análise do problema via Geogebra torna-se muito difícil,

pois temos três graus de liberdade, ou seja, três pontos a considerar.

3. Problema de Regiomontanus

Foi proposto pelo matemático alemão Johann Müller (1436-1476) em 1471 em uma

carta a Christian Roder, professor da Universidade de Erfurt. Müller nasceu na cidade

de Königsberg in Bayern, na Bavária (não confundir com a cidade homônima da

antiga Prússia, hoje chamada de Kaliningrado, na Rússia, e conhecida pelo problema

das sete pontes, de Euler). Müller ficou conhecido como Regiomontanus, uma

latinização do nome de sua cidade natal. O problema de Regiomontanus pode ser

enunciado como:

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Determinar a distância d que um observador de altura h deve ficar da base do

pedestal, de altura p, de uma estátua de altura s, de modo que o ângulo de visão θ, de

toda a estátua vista por esse observador seja máximo (Figura 4).

Figura 4

Nesse problema é possível perceber intuitivamente que, quando o observador está

“muito próximo” ou “muito distante” do pedestal, o ângulo está “próximo” de zero.

Portanto, deve haver uma posição para o observador onde o ângulo seja máximo

(argumento de continuidade). A resolução analítica mais uma vez envolve o cálculo

dos pontos críticos de uma função de uma variável e não é complicada nem muito

trabalhosa. Porém, a resolução não analítica é bem mais simples e usa somente a ideia

de arco capaz de um ângulo em relação a um segmento dado. A solução será obtida

através da circunferência que passa pelos pontos C e D da figura, representando

respectivamente o pé e a cabeça da estátua, e tangente à reta paralela à linha do chão

que passa pelo ponto L, a cabeça do observador.

Mais uma vez, o uso do Geogebra permite facilmente encontrar a posição aproximada

do observador, pois nesse caso só há um grau de liberdade no movimento do

observador.

4. Problema de Fermat

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Foi proposto por Pierre de Fermat (1601-1665) em uma carta a Torricelli (1608-1647),

que resolveu o problema em algum período antes de 1640. Vincenzo Viviani (1622-

1703), aluno de Torricelli, publicou a solução de seu mestre no livro De maximis et

minimis, em 1659. Cavalieri (1598-1647), Simpson (1710-1761) e Jacob Steiner

(1796-1863) também trabalharam nesse problema. Seu enunciado é o seguinte:

Encontrar um ponto do plano cuja soma das distâncias a três pontos dados nesse

plano seja mínima.

Novamente é difícil aqui saber, a priori, se o problema tem solução. A análise usando

o Geogebra torna-se difícil, pois o problema apresenta dois graus de liberdade. A

resolução analítica envolve uma função de duas variáveis. Há várias resoluções não

analíticas e a solução do problema é o chamado ponto de Fermat, de Torricelli ou de

Steiner que, encontra-se no interior do triângulo cujos vértices são os três pontos

dados, no caso em que os ângulos desse triângulo são menores do que 120º. Esse

ponto faz com os vértices do triângulo ângulos de 120º (Figura 5).

Figura 5

5. Problema de Dido

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O nome do problema é sugerido pela lenda da criação da cidade de Cartago, cujas

ruinas encontram-se na atual Tunísia, pela princesa fenícia Dido (ou Elisa, ou Elisha).

A lenda é relatada na obra épica do poeta romano Virgílio (Publius Vergilius Maro –

70 a.C a 19ª.C.), a Eneida, que conta a saga de Eneias, um troiano que foi salvo dos

gregos em Tróia. O problema, também conhecido como problema isoperimétrico

(dentre os vários problemas desse tipo), é assim enunciado:

Determinar, dentre todas as curvas planas fechadas e de perímetro fixado, aquela que

delimita a figura de maior área.

Esse é um problema cuja solução pode até ser intuitivamente adivinhada, mas

impossível de justificar. Nem as ferramentas do Cálculo Diferencial permitem resolver

esse problema porque a variável aqui é uma curva. O Cálculo Variacional é que

permite encontrar, apropriadamente, a solução do problema. A resolução não analítica,

dada por Steiner, tem o defeito de ter que admitir, a priori, a existência dessa solução,

e essa existência não pode ser provada sem o Cálculo Variacional.

O Geogebra aqui é completamente ineficaz para analisar o problema.

A solução do problema é a circunferência, e o círculo englobado por essa

circunferência é a figura de área máxima com o perímetro fixado. Uma variação mais

simples do problema considera apenas os retângulos de perímetro dado, e sua solução

é o quadrado. Nesse caso, o problema é facilmente resolvido via Cálculo e também via

resolução não analítica. Em geral, para polígonos de n lados (n fixado) e de perímetro

fixado, a solução é o polígono regular de n lados.

Criação e formulação de problemas em matemática

Os primeiros trabalhos sobre criatividade e intuição em matemática, do ponto de vista

da pesquisa, são atribuídos a Poincaré (1908) e a Hadamard (1945), dois matemáticos de

grande importância no desenvolvimento da matemática no início e na metade do século XX.

Poincaré conta, em seu artigo, os detalhes de sua descoberta de um certo tipo de funções, que

ele chamou depois de funções fuchsianas. Já Hadamard, inspirado no artigo de Poincaré,

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estabelece em seu livro quatro etapas do processo criativo: 1. a preparação ou trabalho

consciente inicial; 2. a incubação ou o papel do inconsciente; 3. a iluminação; 4. trabalho

consciente posterior.

Já na segunda metade do século XX começam a surgir trabalhos sobre criatividade em

matemática voltados para a educação matemática. Não é nossa intenção aqui fazer um revisão

bibliográfica do assunto, mas destacaremos alguns trabalhos considerados importantes, com

muitas citações, e considerados como referências no processo de desenvolvimento da

criatividade na educação matemática.

Um dos primeiros desses trabalhos é o livro de Pólya (1981), que trata de descoberta

matemática mais voltada à resolução de problemas. Em seguida vêm Kilpatrick (1987), Silver

(1994 e 1997) e Brown & Walter (1983 e 2005), que abordam a criação de problemas no

ambiente educacional. Silver considera a criação/formulação de problemas como a criação de

um novo problema ou a reformulação de um dado problema. Trabalhos bem mais recentes de

autores de diversos países resultaram em livros como Singer et al. (2015) e Felmer et al.

(2016). Nesses trabalhos há um senso comum com relação à criatividade em matemática na

escola. Singer et al. (2011) citado por Pinheiro et al. (2013) afirmam que “os alunos para

serem criativos em matemática devem ser capazes de colocar questões matemáticas que

alarguem e aprofundem o problema original, assim como resolver problemas de diferentes

modos, exibindo desta forma capacidade de formulação de problemas, uma condição da

criatividade matemática”. Por outro lado, Singer et al. (2011b) citado por Pinheiro et al.

(2013) observam que “formular um problema matemático pode aliciar os alunos a realizar

uma autêntica atividade matemática, pois permite-lhes encontrar muitos problemas, métodos e

soluções e simultaneamente promove-lhes a criatividade, incentivam-nos na procura de novos

problemas, métodos alternativos e soluções inovadoras”. Vê-se assim que, em vários países,

tem-se trabalhado intensamente em projetos que estimulam a criatividade nos alunos das

escolas.

Criação de um problema de geometria através do uso de um SGD

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Apresentaremos aqui a história da criação de um problema de extremo em geometria

em que o papel de um SGD foi fundamental. Os detalhes da prova da conjectura criada

podem ser encontrados em Souza & Pinho (2011). O software de geometria dinâmica teve, na

criação/descoberta desse problema, um papel completamente diferente do papel na análise a

priori que poderia ter sido feita (e que fizemos a posteriori) no caso dos problemas históricos

relatados acima. Aqueles problemas traziam perguntas “naturais”, possíveis de serem

formuladas independentemente do auxílio daquele software.

Para exemplificar o que seria uma pergunta “natural’ de se formular em determinada

situação geométrica consideremos o seguinte problema:

Determinar o pentágono, inscrito em uma circunferência dada (fixada) de modo que, dentre

todos os pentágonos inscritos nessa circunferência, o seu perímetro seja máximo.

Se trocarmos a palavra máximo por mínimo, então o problema não terá solução (basta

considerar cinco pontos – os vértices do pentágono – tão próximos quanto se queira na

circunferência dada. No caso do máximo, a pergunta parece ser “razoavelmente consistente”,

independentemente de o problema ter ou não solução (de fato, ele tem – o pentágono regular

inscrito na circunferência). A pergunta aqui surge “naturalmente”. No caso do problema que

apresentaremos não havia nenhuma pergunta prévia “natural”. Na verdade nem havia suspeita

de que algum problema de extremo poderia surgir ali.

Ressaltar aqui que o uso de um SGD para analisar uma situação de extremo em certa

situação geométrica depende das medidas que esse software nos fornecerá. Como já

comentamos anteriormente, essas medidas são, em geral, aproximações dos valores exatos

(por exemplo, no caso dos irracionais). Assim, não é possível confiar nas conjecturas e

resultados que porventura venhamos a descobrir/formular. Tampouco podemos confiar nas

construções realizadas com todo o rigor (satisfazendo propriedades conhecidas). Vejamos a

seguinte situação em que construímos a circunferência inscrita em um triângulo (Figura 6).

Nessa figura, f e g são as bissetrizes dos ângulos ∠𝐴 e ∠𝐵 respectivamente (traçadas usando a

função “bissetriz” do software). Então, a intersecção D dessas duas bissetrizes será o encentro

do triângulo ABC. Por D traçamos a perpendicular ao lado AC do triângulo obtendo o ponto

E nesse lado. Então DE será o raio da circunferência inscrita no triângulo. Traçamos essa

circunferência. Ela deverá tangenciar os lados AB e BC. Quando tentamos encontrar, por

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exemplo, o ponto de tangência da circunferência inscrita no triângulo com o lado AB, usando

a função “intersecção de dois objetos”, obtemos dois pontos F e G (muito “próximos” – ver as

coordenadas desse pontos no destaque da figura)! Ou seja, na verdade a circunferência é

secante ao lado AB. Se traçarmos a perpendicular a AB pelo ponto D obteremos um terceiro

ponto H em AB. Observemos que os ângulos 𝛼 (∠𝐵𝐹𝐷) e 𝛽 (∠𝐵𝐺𝐷) são distintos e estão

muito próximos de 90°. Já o ângulo 𝛾 mede exatamente 90°.

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Assim, nesse caso, o software não produz um desenho confiável, e portanto medidas não

confiáveis. Não que o software seja de má qualidade. Isso é inerente a qualquer software do

mesmo tipo devido às limitações de continuidade na imagem da tela do computador citadas

no início deste trabalho.

Nosso problema surgiu do seguinte problema que oferecemos para a XII Olimpíada

Regional de Matemática de Santa Catarina em 2009:

Considere um triângulo inscrito em um triângulo equilátero de modo que seus lados sejam

respectivamente perpendiculares aos lados do triângulo equilátero. Provar que esse

triângulo inscrito também é equilátero e calcular a razão entre as áreas dos dois triângulos.

A razão que se obtém, entre a área do triângulo maior e a área do menor é exatamente 3. É

sabido que, dado um triângulo acutângulo qualquer, é sempre possível nele inscrever um

outro triângulo de lados respectivamente perpendiculares ao triângulo original (Figura 7). A

construção desse triângulo inscrito se faz por homotetia.

Figura 7

A pergunta que fizemos então foi: como variaria a razão entre as áreas do triângulo

original e do triângulo nele inscrito, conforme variamos a forma do triângulo original?

Utilizando um SGD pudemos perceber que essa razão aparentemente era sempre superior a 3,

sendo exatamente 3 pelo menos no caso do triângulo equilátero. Estabelecemos então essa

conjectura que, dada a impossibilidade de analisar a infinidade de situações, e dada a não

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confiabilidade nos resultados numéricos obtidos através do software, não podíamos saber se

ela era verdadeira ou falsa. É importante ressaltar aqui que essa conjectura nunca teria sido

estabelecida sem as características dinâmicas de um SGD. Estabelecida a conjectura era

importante então provar se ela verdadeira ou falsa.

Deixando o problema “adormecido’, ora voltando a pensar nele, conseguimos

finalmente chegar a uma prova estabelecendo assim a veracidade da conjectura. A prova

utilizou diversas ideias tais como teorema de ponto fixo, pontos de Brocard e um resultado

devido a Erdös e Mordell.

Conclusões

Softwares de geometria dinâmica são uma ferramenta importante para se criar

problemas em geometria através da análise de situações geométricas diversas. As limitações

inerentes a qualquer um desses softwares e decorrentes da própria estrutura dos números reais

implicam na não confiabilidade dos resultados obtidos através do software. Torna-se então

necessário provar logicamente esses resultados. A “prova” computacional não é suficiente,

mas o estabelecimento de uma conjectura, em alguns casos, só pode ser obtido através do

software.

O emprego desses softwares em sala de aula no ensino básico, por sua facilidade, pode

permitir o “exercício” de criação de problemas, por parte dos alunos, mesmo que suas

resoluções/demonstrações estejam ainda além de suas possibilidades. Por outro lado, esse

exercício pode instigar a curiosidade desses alunos e estimular sua imaginação ajudando-os

não somente a compreender melhor os resultados e as propriedades matemáticas, mas também

tornando-os cidadãos mais criativos frente a possíveis desafios no futuro.

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