Sobre a Natureza

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    Olhar a gua, Medir a Alma: Consideraes em Redor da Escrita

    sobre a Natureza

    Isabel Maria FERNANDES ALVESUTAD

    RESUMO: A partir da tradio de uma escrita sobre a natureza, nature writing, o nosso propsito

    reflectir acerca da gua e do seu valor cultural. Comearemos por fazer referncia tradio literria

    americana, prdiga em textos sobre o valor real e simblico da natureza. Dentro dessa tradio, comentam-

    se essencialmente Walden (1854) e Pilgrim at Tinker Creek (1974), obras que do conta de uma

    aprendizagem pela gua. Por fim, e partindo do exemplo americano, questionamos o caso portugus,

    salientando o contributo da literatura na leitura do patrimnio natural e cultural de uma nao.

    memria de Z Nascimento, que partiu inesperadamente

    sem que tivssemos conversado acerca deste assunto.

    Na tradio anglo-saxnica, a escrita sobre natureza realiza-se a partir de uma

    reflexo que o autor faz sobre o homem e sobre a linguagem, tentando traduzir por

    palavras o mundo natural que o rodeia, conferir- lhe uma ordem e um sentido. Os textos

    produzidos so um espao literrio onde se cruzam apontamentos de histria natural eenunciados de cariz subjectivo e onde se aliam um conhecimento sobre histria natural,

    reflexo pessoal e uma interpretao filosfica da natureza1.

    O que aqui designamos por escrita sobre natureza , no domnio da crtica

    literria, passvel de se encontrar sob outras designaes; assim, a representao das

    relaes entre o homem e o mundo natural constituem o mago de textos cuja

    denominao pode surgir intermitentemente como estudos sobre a paisagem, natureza

    na literatura, pastoralismo, regionalismo, ecologia humana. De acrescentar, que osestudos que aliam ecologia e literatura s na dcada de noventa recebem um estatuto de

    escola crtica. (Glotfelty 1996: xviii) a partir dessa data que se estabelece um territrio

    de crtica literria: a ecocrtica.2 Este tipo de anlise literria privilegia no apenas a

    atitude do autor para com a natureza, mas ilumina o padro de inter-relaes entre o

    1Segundo Thomas Lyon, existem trs subcategorias dentro do gnero de nature writing: ensaios cujo mago asolido e a fuga da cidade; narraes de viagens e aventuras; ensaios sobre agricultura onde, mais do que a solido ou

    a descoberta subjectiva, se enfatiza o trabalho e a perseverana. ((Lyon 2001: 23-4)2Ecocriticism takes as its subject the interconnections between nature and culture, specifically the cultural artefactsof language and literature. (Glotfelty, xix)

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    homem e o mundo no humano, postulando a ideia de que viver melhor passa tambm

    pelo modo como se olha o mundo natural e nele se habita.

    Se na tradio inglesa as primeiras obras se reportam aos sculos XVII e XVIII 3,

    na Amrica a escrita sobre natureza surge associada curiosidade acerca do Novo

    Mundo descoberto. Aos exploradores, cientistas e naturalistas eram pedidos mapas e

    inventrios; dessas aces resultou a ideia de que a Amrica era sobretudo natureza. Na

    base da escrita sobre a natureza encontra-se a vontade de narrar uma realidade

    completamente nova aliada procura de palavras e perspectivas que efectivamente

    traduzam essa nova circunstncia do homem no Novo Mundo. Consequentemente, a

    natureza e a forma paradoxal como tem sido lida e interpretada constitui um

    elemento essencial da matriz cultural americana.

    no sculo dezanove, sob a influncia da esttica romntica, que o

    amadurecimento deste gnero literrio acontece. William Wordsworth, o poeta ingls

    para quem os fenmenos naturais eram dignos de figurar nos seus versos, influenciou

    definitivamente um movimento cultural, filosfico e literrio que enaltece o contacto do

    ser humano com a natureza. Acrescentando que a natureza pode dar forma, beleza e paz

    ao nosso esprito mais ntimo e elevar alto os nossos pensamentos, este poeta acredita

    tambm que os sentimentos dos homens so passveis de serem tornados mais sos e

    puros, aspecto que, na sua perspectiva, brota de um contacto mais directo e intenso com

    a natureza. Claramente, Wordsworth educou o olhar dos homens, orientando-o no

    sentido das maravilhas do mundo natural, ensinando-o a olhar intensa e profundamente

    esse mesmo mundo.

    A fim de olhar atentamente o fenmeno da natureza e assim caminhar no sentido

    de um maior conhecimento do eu, os autores que se dedicam escrita sobre a natureza

    privilegiam o peripatetismo: na base das consideraes que fazem sobre a natureza esto

    as caminhadas em redor de paisagens associativas, lugares de movimento e alquimia.Esses passeios decorrem maioritariamente em locais que o autor conhece bem, o que

    significa que atentar no meio natural tambm celebrar o lugar e reconhecer o seu efeito

    sobre a existncia humana. tambm uma aprendizagem da humildade. Neste sentido,

    podemos afirmar que a escrita sobre natureza intensifica a curiosidade humana sobre o

    particular, dando a conhecer o que de surpreendente nos reserva um olhar atento sobre o

    3Finch e Elder assinalam as obras de John Ray, The Wisdom of God Manifested in the Works of Creation (1691) e de

    Gilbert White A Natural History of Selborne (1789) como sendo aquelas que inauguram uma tradio de teologianatural: a natureza um territrio onde a presena divina se faz sentir. Esta mesma tradio encontrar solo frtiltambm do outro lado do Atlntico.

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    que de antemo consideramos apenas prximo e familiar. Neste gnero literrio, e tal

    como o acto de passear que lhe est na origem, tambm a estrutura narrativa aberta,

    valorizando sobretudo a vitalidade, o movimento e a associao livre. Este aspecto

    prende-se, em nosso entender, com o facto de na escrita sobre a natureza se privilegiar as

    relaes entre os diferentes organismos vivos e se cultivar a ideia da interdependncia de

    todos esses organismos com a vida humana.

    Pilgrim at Tinter Creek, obra que em 1974 deu a Annie Dillard o Pulitzer, gira

    em torno da metfora da viso: percorrendo a natureza circundante, e prestando ateno

    aos fenmenos que a constituem, Dillard quer ver o que de outro modo lhe passaria

    despercebido: Sa; vejo qualquer coisa, um qualquer acontecimento que de outro modo

    se teria escapado, perdido completamente. Ou qualquer coisa me v, um enorme poder

    varre-me com a sua asa perfeita, ressoando como um sino4. (Dillard, 5) A natureza

    apresenta-se como um territrio de descoberta pessoal e ver significa apreender melhor

    um eu interior. Dillard, semelhana de Henry David Thoreau, deseja escrever um dirio

    meteorolgico da mente: interligar as histrias e vises que nascem da observao dos

    vales, cursos de gua e montanhas de Blue Ridge, Virginia, com o territrio

    desconhecido da mente humana. O olhar de Dillard fortalece a perspectiva de que

    escrever sobre a natureza , tal como o indica a gua sempre em movimento do ribeiro

    Tinter creek - tentar apreender o que se mostra inapreensvel; o mundo oferece-se em

    constante mutao. Contrariamente a uma montanha, representante do mistrio antigo e

    passivo, o ribeiro representa o mistrio da criao contnua, o seu curso de gua

    plasmando a incerteza, o terror das formas fixas, a dissoluo do presente, a

    complexidade da beleza, a fora da fecundidade, a iluso das formas livres, a natureza

    nem sempre perfeita da perfeio (Dillard, 3)

    Antes de Dillard, foi Henry David Thoreau quem ensinou a olhar a natureza

    americana. em redor de Concord, Massachusetts, que observa minuciosamente anatureza identifica rvores, flores e gramneas, anota o regresso das aves na primavera,

    mede o nvel das guas dos rios, os anis das rvores e o tamanho das sementes. Vivendo

    embora no sculo dezanove, ele um precursor do moderno discurso ambientalista, pois

    reivindica a necessidade de conservar a natureza como um domnio de vitalidade e de

    diversidade. Balizado por um saber cientfico, Thoreau, no entanto, no descura a

    imaginao e dedica o seu tempo a observar e estudar a paisagem sua volta. Partindo

    4"I walk out; I see something, some event that would otherwise have been utterly missed or lost; or something seesme, some enormous power brushes me with its clean wing, and I resound like a beaten bell". Nossa traduo.

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    do particular, deseja alcanar os r itmos e os padres universais, tendo sempre mo uma

    linguagem potica: confessa ter grande f numa semente; perante uma semente, prepara-

    se para esperar maravilhas. Quando no ano de 1845 decide deixar a sua casa e ir viver

    para uma cabana que ele mesmo construiu junto ao lago Walden, Thoreau sabia o que

    procurava: Fui para os bosques porque pretendia viver deliberadamente, defrontar-me

    apenas com os factos essenciais da vida, e ver se podia aprender o que ela tinha a

    ensinar-me, em vez de descobrir hora da morte que no tinha vivido.5

    Apostado em registar a natureza envolvente, Thoreau viaja ao logo dos rios

    Merrimack e Concord em 1847. Mas com Walden, obra de 1854, e o centro de toda a

    sua produo literria, que Thoreau deixa um imperecvel legado aos amantes da

    natureza. Vivendo quase dois anos junto ao lago Walden, o seu quotidiano constitudo

    pela observao de tudo aquilo que o rodeia: as guas do lago que desaguam no rio

    Concord, as mutaes que se operam de acordo com a estao do ano. Ao lado das

    referncias s framboesas, s amoras, ao mirtilo, ao carvalho e ao sumagre, a presena

    constante da gua: Um lago o trao mais belo e expressivo da paisagem (Thoreau,

    210). Assinalando a presena de baratas de gua ou de insectos patinadores, enaltece a

    transparncia das guas: Um campo de gua deixa transparecer o esprito que paira no

    ar. Est continuamente a receber da altura vida nova e movimento. por sua natureza o

    intermedirio entre o cu e a terra. (Idem 213). o olho da terra e por isso todo o ser

    que nele se contempla mede a profundidade da sua prpria natureza. (Idem, 210) Este

    o mago do livro de Thoreau; o autor parte da natureza para fazer o homem olhar-se a si

    mesmo, ou seja, o seu pensamento responde s associaes que a paisagem lhe suscita.

    Se as guas de Walden so serenas, j as dos rios remetem para a passagem, para a

    fluidez: H no mundo um fluxo incessante de novidades (Idem, 360) e a vida em ns

    como a gua no rio (idem, 361): repleta do que no sabemos.

    O legado de Thoreau incalculvel; a tradio de uma escrita sobre a naturezagoza de um estatuto privilegiado nos curricula das universidades americanas, e os

    autores que vivem sob a sua influncia so inmeros. Todos eles combinam uma

    fascinao pela paisagem interior, da alma humana e exterior.6

    Em Portugal, pas onde os poetas afirmam Poucas coisas houve no mundo to

    /Formosas como um rio (Eugnio de Andrade), e convidam a Imaginar /o som do

    5Seguimos a traduo de Astrid Cabral: Walden ou a Vida nos Bosques , Edies Antgona, 1999.

    6Veja-se, a ttulo de exemplo, a obra de Mary Oliver e de Barbara Kingsolver. Relativamente a Kingsolver, deassinalar a rpida traduo para portugus do seu ltimo livro de ensaios: Pequeno Milagre e Outros Ensaios, Sinaisde Fogo, 2004.

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    orvalho (Carlos de Oliveira), no existe uma tradio literria de escrita sobre a

    natureza. A natureza tem sido o cerne de textos ficcionais significativos, e nesse sentido

    a literatura afirma-se um territrio onde o patrimnio natural e cultural se revela. Em

    muito dos autores j se faz sentir uma conscincia ambientalista, muito antes mesmo das

    questes ambientais estarem na ordem do dia. Mas porque a literatura no deixou nunca

    de responder ao mundo, e porque este onde vivemos se degrada dia a dia, devemos olh-

    la na sua vertente menos antropocentrizada, ou seja, nela procurar os textos que se abrem

    diversidade do mundo.

    Assim, por exemplo, Mia Couto, num texto elaborado para crianas no mbito do

    programa Cincia Viva, diz o seguinte: o nico conselho este: escutar. Tornarmo-

    nos atentos a vozes que fomos encorajados a deixar de ouvir. Tornemos essas vozes

    visveis. E mantenhamos viva essa capacidade que j tivemos na nossa infncia de nos

    deslumbrarmos. Por coisas simples, que se localizam na margem dos grandes feitos.

    (Couto, 49) Para este autor, devemos criar linguagens de partilha com os outros,

    incluindo os seres que acreditamos no terem linguagem. Entendermos e partilharmos a

    lngua das rvores, os silenciosos cdigos das pedras e dos astros. (Idem, 50) E a lngua

    marulhante da gua e dos rios, acrescentamos ns. As guas correntes do rio representam

    uma aprendizagem, pois o mpeto da torrente sinal de vida, purificativo. As redes

    vitais dos veios de gua que confluem no leito do rio so modelos de cooperao e

    interdependncia, e a lama e os sedimentos transformar-se-o tambm eles em voz do

    tempo, num composto que devolver vida vida.

    Na sequncia de um colquio sobre Natureza e Ambiente: Representaes na

    Cultura Portuguesa, vrias foram as reflexes em torno das manifestaes culturais da

    sociedade portuguesa no que respeita a temtica ambiental. A linguagem surge como

    veculo de libertao de sentidos nicos, de saberes estanques, surgindo ao lado da

    biologia na luta a favor da biodiversidade. Atravs da linguagem enaltece-se uma visoda realidade assente no respeito no apenas pelo homem, mas tambm pelo mundo no

    humano, valoriza-se o dinamismo das formas e o caminho da diversidade. Assim,

    verifica-se que na lrica popular portuguesa a natureza surge como contraponto vida

    humana 7 e a literatura repositrio de muitas e diversificadas manifestaes a propsito

    da natureza. Os nomes de Bernardim Ribeiro, Jlio Dinis, Aquilino Ribeiro ou Miguel

    7Por exemplo, a quadra gua do rio vai turva/Chega ao mar acalarece/ muito tolo no mundo/Quem por amores

    endoidece apud Ana Paula Guimares, Desde o Alto at ao Fundo: Um observatrio do Ambiente nos textos daTradio? in Beckert, pp. 21-55.

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    Torga so alguns dos nomes em cujos textos podemos percepcionar preocupaes

    ambientais. Neste momento contudo, e na sequncia do conhecimento que temos da

    tradio anglo-saxnica, interessa-nos um outro tipo de textos: esses que sendo em prosa

    no ficcional comentam a natureza, reflectem acerca do homem e da completa

    interdependncia deste com outros organismos. E, como j afirmmos, os exemplos no

    abundam. Podemos talvez destacar algumas das obras de Irene Lisboa, lugar literrio

    onde a natureza cumpre uma funo teraputica, ou a obra O Aprendiz de Feiticeiro de

    Carlos de Oliveira. Este autor de forma geral extremamente sensvel linguagem da

    gua, pois a paisagem martima ter-lhe- moldado a paisagem interior. Na obra referida,

    um corpo misto de consideraes avulsas vertidas numa linguagem potica, Carlos de

    Oliveira consagra uma ateno particular a elementos da natureza tais como a chuva, a

    floresta, o iceberg. Mas em micropaisagem que a relao simbitica entre autor e

    paisagem melhor se estabelece: Perguntam-me ainda porque falo tanto da infncia.

    Porque havia de ser? A secura, a aridez desta linguagem, fabrico-a e fabrica-se em parte

    de materiais vindos de longe: saibro, cal, rvores, musgo. E gente, numa grande solido

    de areia. (Oliveira, 186)

    Para alm dos nomes firmados na tradio literria portuguesa, poder-se-ia

    invocar ainda os nomes de Oliveira Martins, Orlando Ribeiro e, mais recentemente, de

    Francisco Caldeira Cabral, Gonalo Ribeiro Teles ou Viriato Soromenho Marques, cada

    um deles e de forma diferente, chamando a ateno para as particularidades do solo

    portugus, do seu clima, relevo e sistemas de regadio, para a necessidade de ver a

    paisagem de forma holstica. Na introduo ao volume de actas do Colquio por ns

    referido, Viriato Soromenho Marques afirma: as concepes mais pessimistas,

    decorrentes d[a] tese sobre uma eventual falta de adequao estrutural da sociedade

    portuguesa aos desafios ambientais da actualidade, so em parte amplificadas pela

    forma, tambm ela crnica, como os portugueses tendem a subestimar a riqueza da suavasta herana cultural (Beckert, 9)

    Mas num texto publicado recentemente por Agustina Bessa Lus acerca da gua

    que nos queremos deter. Um texto que assinala a simbologia da gua em geral e de como

    esta Por muito maltratada que seja, conspurcada por escrias, maltratada na sua pureza,

    permanece como alegoria de justia e prosperidade. Continua a correr no corao que

    temos, to preciosa como o sangue, combinada com os artigos da salvao humana que

    so a fundao da terra e do cu. (Agustina, s/p) Na argcia que lhe habitual, Agustinaestranha que um pas to prximo do mar se alimente to pouco de lendas, sublinhando

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    que a gua perdeu o seu dom encantatrio, sendo entendida sobretudo como um

    elemento necessrio, mas com o qual se lida sem respeito. J nem as propriedades

    curativas da gua movem os homens. Num presente que privilegia sobretudo a cotao

    na bolsa de valores e que promove o esprito lucrativo, a alquimia da gua desaparece e

    esta fica reduzida simples composio qumica: Ela tem de obedecer a critrios

    organolpticos, quanto ao seu valor, cheiro, limpidez. H limites estreitos para as

    substncias txicas que ela contenha e 62 parmetros devem ser analisados para que a

    gua se possa considerar potvel. (Bessa Lus, s/p) Este texto de Agustina, um misto de

    linguagem potica e cientfica, ilustra o perigoso caminho da indiferena e da surdez. Por

    isso nos parece fazer sentido olhar o particular, um curso de gua por exemplo, pois

    atravs desse gesto a nossa prpria vida que adquire profundidade e ressonncia. Ver,

    no entanto, no significa apenas o acto vivido num determinado momento, mas tambm

    aquilo que conseguimos preservar na memria e depois reconstruir atravs das histrias

    que vamos contando e escrevendo. Uma forma de preservar a qualidade sonante e

    teraputica da gua relig-la a uma memria colectiva que diga e aponte a degradao

    e a abnegao de que o homem j foi capaz.

    Para concluir, sublinhar uma vez mais que este um trabalho que pretende

    centrar a sua ateno na questo do lugar, no modo como a sua observao pode

    significar conhecimento e ateno para com a natureza e para com o homem. Numa rea

    como a das Humanidades, que surge menorizada quando comparada com outras esferas

    do saber, porque associadas a um maior rigor e preciso no objecto e ferramenta de

    estudo, assiste-lhe ainda o enorme poder de, atravs da palavra, fazer olhar uma e outra

    vez aquilo que nos envolve. Embora no lide maioritariamente com a crueza dos

    nmeros 2400milhes de pessoas no dispem de servios sanitrios essenciais e 1500

    milhes no tm acesso a uma gua potvel - a literatura pauta-se por fazer ver a

    realidade mais intensamente, reconhecendo que a crise que atravessamos no se deveapenas ao modo como (no) funcionam os ecossistemas, mas porque o sistema tico

    deixou de operar sobre os gestos quotidianos. A literatura, mas tambm a histria, a

    antropologia, a filosofia podero ajudar, atravs de compreenso dos fenmenos, a que a

    as reformas se concretizem. por isso razovel que se insista na direco que os

    escritores nos convidam a tomar: a de um olhar atento sobre a prpria realidade dos

    homens. Os rios dizem do modo como um pas se fez, dizem da sua histria e da sua

    cultura, e do modo com tm procurado a sua salvao e a preservao da Terra. Isso ofaz, por exemplo, Jlio Llamazares, em El rio del olvido, um livro onde a paisagem

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    memria, decidindo o autor reconstru-las memria e paisagem - atravs da narrativa

    que nos conta a sua viagem ao longo do Curueo. A referncia a este texto prende-se

    afinal com um motivo estritamente pessoal: tendo passado tantos e tantos veres junto de

    uma ribeira que conflui no rio Pinho e da viaja at ao Douro, e no conhecendo

    nenhuma narrativa que conte a aspereza das suas margens e o sibilar das suas guas,

    falmos de outra coisa, enquanto mentalmente percorramos o caminho estreito e

    esquecido pelo tempo que ladeia o curso das suas guas.

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