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Sobre o conceito de Latin America

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Resenha crítica do livro do Feres Jr.

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Universidade Federal FluminenseInstituto de Estudos EstratgicosPrograma de Ps-Graduao em Estudos Estratgicos

Resenha CrticaFERES JR. Joo. A histria do conceito de Latin America nos Estados Unidos. Bauru, SP, EDUSC, 2005.

Flvia Rodrigues de Castro[footnoteRef:2] [2: Flvia Rodrigues mestranda em Estudos Estratgicos pelo Instituto de Estudos Estratgicos da Universidade Federal Fluminense (INEST/UFF). ]

I

O autor Joo Feres Jr., ao abordar a histria do conceito de Latin America nos Estados Unidos, enfatiza a questo do transbordamento do sentido geogrfico da expresso para o sentido comportamental, com a designao das caractersticas de temperamento e comportamento, popularmente atribudas aos povos europeus ou americanos falantes de lnguas derivadas do latim. Apesar da Latin America ser uma inveno recente, traduzida para a lngua inglesa h pouco mais de um sculo, o esforo de transformar essa expresso em um termo tcnico descritivo, destitudo de aspectos valorativos, s ganhou vigor a partir da metade do sculo 20 (FERES JR, 2005, p.16).Aps discutir o que chama de vida pr-cientfica do conceito de Latin America, o autor se prope a analisar a construo do mesmo atravs do discurso cientfico. Interessa de perto a esta trabalho, ento, o aspecto cientfico deste conceito a partir da consolidao dos Latin American Studies sob o imperativo da chamada teoria da modernizao. A partir da caracterizao da Latin America com a atribuio de uma srie de caractersticas negativas delineadas em oposio aos traos positivos da cultura norte-americana, a teoria da modernizao expe dois aspectos centrais que sero objeto desta crtica: a) a dimenso temporal, que enxerga a Latin America como sendo essencialmente tradicional e, assim, incapaz de experimentar a mudana histrica; b) a dimenso cultural, que percebe a modernizao como um sinnimo de ocidentalizao. A dimenso temporal, ao apontar para a noo de handicap histrico, expe a imagem de permanncia, imobilidade e tradio que marca, segundo os tericos da modernizao, a Latin America. Percebe-se nesta argumentao a noo hegeliana do processo histrico e da suposta repetio de um movimento que no produz histria no Oriente (FERES JR., 2005). Na perspectiva mais atual, no contexto ps-Guerra Fria, viso similar foi desenvolvida pelo autor Francis Fukuyama (1989), tambm com base na noo de Hegel da histria como um processo dialtico que abarca comeo, meio e fim.J em relao dimenso cultural, a perspectiva de que modernizao e ocidentalizao so sinnimas alvo de inmeras crticas recentes, como aquelas expostas pelos autores Fareed Zakaria (2008) e Samuel Huntington (1996). Cabe ressaltar, ento, que a premissa sobre a qual a teoria da modernizao se sustenta pode ser facilmente questionada, uma vez que tornar uma sociedade moderna no tem relao com torn-la ocidentalizada e, ao mesmo tempo, o Ocidente no pode ser visto automaticamente como moderno. II

Nos Estados Unidos, no perodo imediatamente posterior Segunda Guerra Mundial, o campo da cincia poltica foi marcado pela busca por cientificismo, movimento que ficou conhecido como revoluo behavioral. O cientificismo das pesquisas e anlises deveria levar em considerao, ainda, a neutralidade em relao a valores, de forma que estes no influenciassem os trabalhos acadmicos da cincia poltica. Foi precisamente neste contexto que os Latin American Studies, sob o imperativo da chamada teoria da modernizao, surgiram como uma tentativa de produzir um discurso sociocientfico para tratar da agenda de poltica externa da Guerra Fria (FERES JR., 2005, p.94). Teria sido, entretanto, apenas aps a Revoluo Cubana que esse campo de estudos (Latin American Studies) consolidou-se, sendo possvel, de fato, falar de Latin America como conceito cientfico (FERES JR., 2005).H que se considerar o paradoxo apresentado por Feres Jr., no que tange teoria da modernizao e suposta busca por neutralidade valorativa e cientificismo. O autor chama a ateno para as ligaes da teoria da modernizao com interesses polticos governamentais, atravs de um envolvimento crescente dos cientistas sociais norte-americanos com programas e instituies governamentais. Segundo ele, durante as administraes Kennedy e Johnson, houve participao intensa de tericos da modernizao em programas governamentais supostamente voltados para a promoo da modernizao no chamado Terceiro Mundo. Dessa maneira, a simbiose institucional entre tericos da modernizao e governo, transparecida em textos sociocientficos, permite que se questione a suposta ausncia de valores na produo discursiva, a qual pode ser usada como forma de legitimao social de verdades (e de polticas) produzidas a partir da alegao de cientificismo e neutralidade (FERES JR., 2005). A literatura sociocientfica da teoria da modernizao perpassada por uma srie de caractersticas negativas atribudas a Latin America, produzindo uma imagem negativa da mesma que delineada em contraposio imagem positiva dos Estados Unidos. O conceito de Latin America representa, assim, o outro que habita a Amrica e que se constitui como o exato oposto da cultura norte-americana. Nesse sentido, a definio deste outro apresenta-se como simples negao da auto-imagem de um eu coletivo (FERES JR., 2005). A teoria da modernizao, segundo Feres Jr., apresenta o Ocidente (cuja imagem de destaque os Estados Unidos) como o plo positivo dessa oposio assimtrica, sendo caracterizado como racional, capitalista, industrializado, rico e democrtico. De modo inverso, ainda segundo o autor, as sociedades no-ocidentais seriam tudo que a sociedade ocidental no . Na definio do que seja a Latin America h duas oposies fundamentais, alm da racial (a qual considera no somente as pessoas que vivem na Amrica Latina como Latin American, mas tambm aquelas que possuem descendncia latino-americana) (FERES JR., 2005). Estas duas outras oposies fundamentais so a temporal e a cultural. Ainda que as duas estejam intimamente relacionadas, cabe aqui tecer breves consideraes didaticamente separadas. No que tange oposio temporal, chama a ateno o fato de que os tericos da modernizao caracterizam a Latin America como sendo essencialmente tradicional, isto , no-protestante, no-capitalista e no-moderna. Apesar da clara ligao com aspectos culturais, o sentido temporal desta definio se evidencia pela implicao de que as sociedades tradicionais so percebidas como incapazes de evoluo histrica, a no ser pela interveno direta dos poderes ocidentais (FERES JR., 2005). Nesse sentido, segundo a teoria da modernizao, h nessas sociedades tradicionais estagnao, imobilidade e, assim, incapacidade de procederem realizao da histria universal, que s seria alcanada atravs da modernizao.No que tange ao aspecto cultural, a Latin America apresentada com uma srie de valores culturais negativos, sob a perspectiva de patologias. O autor afirma que os tericos da modernizao tendem a considerar a cultura como um conjunto de disposies psicolgicas capazes de gerar estruturas sociais e instituies polticas. No caso da Latin America, valores culturais negativos so responsveis por gerar disposies contrrias modernizao, como: falta de mobilidade social, autoritarismo, falta de atitude empresarial, machismo e irracionalidade (FERES JR., 2005). Cabe ressaltar aqui que alguns autores substituem o termo modernizao por ocidentalizao, pois percebem a modernidade como fenmeno eminentemente ocidental. Ainda que no haja tal substituio explcita em todas as obras, fica claro na teoria da modernizao que a modernidade est associada aos valores culturais do Ocidente. Dessa maneira, segundo Feres Jr., os tericos da modernizao procedem ao diagnstico das supostas patologias culturais da Latin America, prescrevendo como soluo a modernizao ou, em outras palavras, a ocidentalizao. O autor discute, ainda, a chamada literatura da estabilizao poltica na Latin America, percebendo a mesma como um ramo da modernizao no que diz respeito conceituao de Latin America. Esta literatura, segundo Feres Jr., se vale de alguns elementos da teoria da modernizao a fim de sustentar seus prprios argumentos, tendo como nfase tpicos da poltica que teriam sido deixados de lado, como as relaes militares entre Estados Unidos e Latin America. Dessa maneira pode-se afirmar, sucintamente, que a literatura da estabilizao poltica adota o mesmo conceito de Latin America proposto pelos tericos da modernizao, entretanto, toma como questo central a instabilidade provocada pelo processo de modernizao, principalmente em termos da segurana norte-americana. Nesse sentido, a soluo proposta o apoio dos Estados Unidos a militares e elites anticomunistas na Latin America, que estejam alinhados com a perspectiva progressista e democrtica dos norte-americanos, de modo a combater a ameaa eminente contra sua segurana advinda das supostas patologias culturais dos Latin Americans.

IIIA perspectiva da teoria da modernizao que concebe a Latin America como tradicional e, assim, incapaz de produzir mudanas, aponta para a existncia de um movimento que incapaz de produzir histria ou, em outras palavras, para a passagem do tempo que no traz novas ordens polticas (FERES JR., 2005). Em posio oposta, encontram-se os pases modernos que lograram atingir o pice do desenvolvimento histrico (moral e material). Esta concepo faz lembrar o raciocnio hegeliano que percebe o Estado moderno como pice da racionalidade humana e, assim, como fim da histria, ao mesmo tempo em que aponta para a repetio de uma histria no-histrica no Oriente (FERES JR., 2005). Nesse sentido, a argumentao dos tericos da modernizao encontra-se em sintonia com a perspectiva hegeliana do processo histrico, revelando, ainda, similaridades com a perspectiva ps-Guerra Fria desenvolvida pelo autor Francis Fukuyama. Este autor utiliza a concepo hegeliana da histria como um processo dialtico que abarca comeo, meio e fim, bem como a noo de que a distino entre o mundo material e ideal apenas aparente, sendo o comportamento material derivado do mundo das idias, isto , a conscincia apresenta as contradies que dirigem a histria no plano material. Nesta perspectiva, a fim de entender os processos histricos necessrio, primeiro, compreender os desenvolvimentos no campo das idias. O artigo The End of History? de Francis Fukuyama, publicado em 1989, levanta a hiptese do fim da histria seria, segundo o autor, no apenas o fim da Guerra Fria, mas tambm o ponto final da evoluo ideolgica da humanidade e a universalizao do modelo ocidental da democracia liberal como a forma final de governo (FUKUYAMA, 1989). Nesta perspectiva, o triunfo dos valores ocidentais torna-se evidente devido exausto de alternativas viveis ao modelo liberal propagado pelo Ocidente. Torna-se crucial salientar que, na viso de Fukuyama, o fim da histria no significa necessariamente que todas as sociedades sero liberais, mas apenas que no haver pretenses ideolgicas srias de representao de outras formas e modelos de organizao social. O fim da histria no significa, assim, o fim dos conflitos internacionais, at mesmo porque os conflitos permanecero entre Estados no-liberais, aqueles que ainda esto presos histria, e Estados liberais, inseridos na chamada ps-histria.O aspecto temporal da teoria da modernizao revela, assim, similaridades com a teoria do autor supracitado, tendo como base a perspectiva hegeliana. O processo de modernizao corresponderia realizao da histria universal, evoluo esta benfica e inevitvel (FERES JR., 2005). Ao mesmo tempo, o tradicionalismo caracterstico da Latin America funcionaria como um empecilho mudana histria, tornando estas sociedades tradicionais estagnadas, presas histria, incapazes de experimentar a mudana histrica benfica que apenas a modernizao pode oferecer. Fica clara, assim, a concepo de que h pases no-ocidentais, atrasados, presos histria, em contraposio queles que esto situados na ps-histria, representando o pice da racionalidade humana. A teoria da modernizao enxerga no Ocidente a representao de tudo aquilo que moderno, fazendo deste o plo positivo de comparao com a Latin America. Assim, o Ocidente positivamente descrito pelos tericos da modernizao como sendo racional, capitalista, industrializado, rico e democrtico (FERES JR., 2005, p.99). Alguns autores, segundo Feres Jr., acabam substituindo o termo modernizao por ocidentalizao, encarnando de forma mais explcita a concepo que serve de base a esta teoria. Entretanto, a premissa de que modernizao e ocidentalizao significam a mesma coisa combatida pelos autores Fareed Zakaria e Samuel P. Huntington. Segundo estes analistas contemporneos, tais fenmenos so totalmente diferentes.Na perspectiva de Huntington, o Ocidente foi ocidental antes de ser moderno e adquiriu seu carter distintivo no sculo VIII ou IX, tendo se tornado de fato moderno apenas por volta do sculo XIX. Zakaria reafirma esta noo, acrescentando que tornar-se uma sociedade moderna tem a ver com industrializao, urbanizao, altos graus de alfabetizao, instruo e riqueza. Mas as qualidades que fazem com que uma sociedade seja ocidental so especiais: o legado clssico, cristianismo, separao entre Igreja e Estado, estado de direito, sociedade civil (ZAKARIA, 2008, p.85). Segundo o autor Zakaria, a confuso entre os fenmenos se deve ao fato de que uma grande parte do que concebemos como moderno , pelo menos na aparncia, ocidental. A fim de sustentar a hiptese de que ocidentalizao e modernizao so fenmenos diferentes, o autor Zakaria procede anlise de uma srie de exemplos. Dentre eles, encontra-se o caso do Japo. Apesar de ser um pas altamente moderno, estando frente da maioria dos pases ocidentais em termos tecnolgicos, a sociedade japonesa permanece profundamente nica e no-ocidentalizada. Apesar da modernidade ter chegado com a ascenso do Ocidente, assumindo de certa forma uma face ocidental (ZAKARIA, 2008), no h qualquer evidncia de que uma sociedade precisa se ocidentalizar para tornar-se moderna, como sugere o exemplo japons. Ainda que realizada de forma sucinta neste trabalho, a anlise da suposta ligao entre modernizao e ocidentalizao permite que se questione a premissa que sustenta a argumentao dos tericos da modernizao. Dessa maneira, o aspecto cultural desta teoria que afirma o Ocidente como o plo moderno e positivo em comparao com a Latin America, no se baseia em anlises cientficas e valorativamente neutras, mas sim em uma falcia que carece de comprovao histrica, deixando de lado as hipteses nulas (que no comprovam a teoria) e validando exemplos especficos atravs de uma teoria genrica, em uma clara inverso do raciocnio cientfico.

IV

O presente trabalho buscou expor e criticar o aspecto cientfico do conceito de Latin America nos Estados Unidos, a partir da consolidao dos Latin American Studies sob o imperativo da chamada teoria da modernizao. Para tanto, fez-se uso das argumentaes expostas por tal teoria, reunidas no livro do autor Feres Jr. A literatura sociocientfica da teoria da modernizao perpassada por uma srie de caractersticas negativas atribudas a Latin America, produzindo uma imagem negativa da mesma que delineada em contraposio imagem positiva do Ocidente e, mais especificamente, dos Estados Unidos. A Latin America representaria, nesta perspectiva, o outro que habita a Amrica e se constitui como o exato oposto da cultura norte-americana, essencialmente ocidental e moderna. A partir dessa caracterizao da Latin America, realizada pela teoria da modernizao, foi possvel ressaltar ao menos dois aspectos fundamentais passveis de crtica e, assim, de desconstruo: a) a dimenso temporal, que enxerga a Latin America como sendo essencialmente tradicional e, assim, incapaz de experimentar a mudana histrica; b) a dimenso cultural, que percebe a modernizao como um sinnimo de ocidentalizao. O aspecto temporal da teoria da modernizao revela similitudes com a argumentao exposta pelo analista contemporneo, Francis Fukuyama, que, usando como base a perspectiva hegeliana, apontou o descompasso entre os pases que esto presos histria e aqueles ps-histricos, assumindo uma concepo valorativa sobre a evoluo histria que divide os pases ocidentais do resto. J no que tange ao aspecto cultural, a suposio de que modernizao e ocidentalizao so fenmenos similares revela as aporias e fragilidades que marcam a produo supostamente cientfica dos tericos da modernizao. Atravs da anlise destes aspectos centrais sobre os quais a presente crtica se concentrou possvel questionar a afirmao de que a produo terica da modernizao acerca da Latin America baseia-se no cientificismo e na neutralidade de valores. As argumentaes da teoria da modernizao expuseram uma viso profundamente pejorativa e deturpada da Latin America, sob o revestimento da cientificidade, invertendo a lgica cientfica de contrastar a teoria com a realidade e desconsiderando as hipteses nulas. O questionamento das duas oposies centrais que sustentam tal teoria, isto , a temporal e a cultural, permite que se realize uma crtica interna produo terica, o que enfraquece o raciocnio que serve de base a mesma.

Referncias Bibliogrficas

FERES JR. Joo. A histria do conceito de Latin America nos Estados Unidos. Bauru, SP, EDUSC, 2005.

FUKUYAMA, Francis. The end of History? The National Interest, 1989. Disponvel em: http://ps321.community.uaf.edu/files/2012/10/Fukuyama-End-of-history-article.pdf > Acesso em: 20 abr. 2014.

HUNTINGTON, Samuel P. The West: Unique, not universal. Foreign Affairs, vol. 75, n. 6, 1996, p.28-46.

ZAKARIA, Fareed. O Mundo Ps-Americano. 1 ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2008.