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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SULINSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
CURSO DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
SOBRE OS TRILHOS DO BONDE, OS CAMINHOS DE UMA CIDADE
BRASILEIRA
Mara Regina do Nascimento
Dissertao apresentada como requisitoparcial e ltimo para a obteno do graude Mestre em Histria do Brasil, sob aorientao da Profa Dra La FreitasPerez.
Porto Alegre1996
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Curso de Ps-Graduao em Histria
SOBRE OS TRILHOS DO BONDE, OS CAMINHOS DE UMA CIDADEBRASILEIRA
Mara Regina do Nascimento
Porto Alegre1996
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AGRADECIMENTOS
Este trabalho, realizado com o suporte financeiro do CNPq, tornou-se possvel
tambm graas a um conjunto de esforos e afetos para os quais gostaria de expressar o
meu agradecimento.
A La Freitas Perez que, alm de uma orientao criteriosa e de singular
competncia, tributou-me sua inestimvel amizade. Devo a ela o reconhecimento da
importncia de uma nova viso, mais generosa e potica, sobre a Histria do Brasil.
A Marion Kruse Nunes, pela oportunidade que ofereceu-me em 1992 de
trabalhar pela primeira vez na pesquisa histrica sobre a Carris, juntamente com a
equipe sob a sua coordenao no Centro de Pesquisas Histricas da Secretaria
Municipal de Cultura. A ela agradeo tambm pela prontido com que cedeu-me, nos
ltimos meses, todo acervo coletado naquela ocasio para que eu pudesse novamente
consult-los.
Aos colegas de curso Mozart, Dinah, Centurio, Jussara e Manolo pela amizade
e pelo saudvel exerccio de troca de idias, realizado ao longo desses dois anos.
A Sra. Mirian Ribeiro Antonini, pelo emprstimo de seus antigos e valiosos
cartes postais da cidade de Porto Alegre, que serviram para ilustrar parte desse
trabalho.
A Carla Helena Carvalho Pereira e Rosana dos Santos Sanches, pela prontido e
disponibilidade com que sempre me ajudaram a resolver as antipticas, mas
necessrias, questes burocrticas que requer a realizao do curso.
E, em especial, ao Andr que, ao entrar na minha vida, ajudou-me a lembrar o
que eu, como mestranda, estive sujeita a esquecer: o ato de escrever exige muito mais
da alma do que da razo.
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SUMRIO
NO TRNSITO E NO MOVIMENTO DA CIDADE BRASILEIRA............... 8
1. A CIDADE E A MODERNIDADE............................................................. 16
1.1 OCUPAR PARA CIVILIZAR......................................................... 221.2 MODERNIZAR PARA CIVILIZAR.............................................. 28
2. OS TRAJETOS DOS BONDES E A TRAJETRIA HISTRICA DACIDADE............................................................................................................... 43
2.1 DOS CAMINHOS E DOS TRILHOS NUM PORTO ALEGRE........... 502.2 UMA LEBRE DE TRS ANOS CORRE MAIS QUE UM BURRO
DE CEM................................................................................................................. 56
3. A URBANIDADE E A FESTA ......................................................................... 873.1 O LUGARDO CARNAVAL.................................................................. 943.2 NO ANDAR DO BONDE, A VIVNCIA DA CIDADE....................... 105
A SOCIEDADE BRASILEIRA TOMA O BONDE............................................... 126
LINHA DE TEMPO............................................................................................... 131
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................... 136
FONTES PRIMRIAS.......................................................................................... 143
LISTA DE ILUSTRAES ................................................................................. 147
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NO TRNSITO E NO MOVIMENTO DA CIDADE BRASILEIRA
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H, na historiografia brasileira, um certo consenso terico que insiste em
enquadrar o desenvolvimento das nossas cidades em um processo de evoluo
capenga, incompleta ou s avessas. A cidade brasileira dificilmente encarada como
um fenmeno que passou a existir em funo do desencadeamento de outros; ao
contrrio, sempre vista como coisa autnoma e independente, como um corpo
estranho ou artificial, que chega para interromper um curso, cujo fim no se sabe muitobem qual seria. como se a sociedade brasileira, historicamente representada pelos
senhores de engenho e seus escravos, ou pelos bares do caf e os imigrantes ou os
donos das primeiras indstrias e a classe operria emergente do sculo XIX, no
estivesse pronta ainda para a selvagem vida no meio urbano.
Essa idia traz como centro um equvoco terico-metodolgico, que procura,
nos fatos histricos relativos ao urbanismo, a parcialidade e a linearidade, e despreza o
relativismo, a rede de inter-relaes e a simultaneidade que tais fatos comportam.Tomadas como desordenadas, improvisadas e apressadas, nossas cidades no
so at hoje perdoadas, ou melhor, bem assimiladas, naquilo que tiveram de mais rico e
peculiar: a mistura de cdigos, a miscigenao entre o tradicional e o moderno, a
convivncia cotidiana, por exemplo, entre a escravido e o surgimento das mquinas
industriais, dos projetos cientificistas de higienizao com a vivncia concreta da
distribuio de gua populao pelos carros-pipa ou do despejo das fezes humanas no
rio mais prximo, do desejo circunspeto progressista e modernizante na implantao
dos componentes materiais urbanos, que so os meios de transporte, a luz eltrica, a
canalizao de gua com a transgresso, a plasticidade, o riso e a falta de prudncia da
atividade carnavalesca...
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Tomando como ponto de partida uma estrada de via nica que leva somente
histria e ao tempo europeus, historiadores que tm a cidade brasileira como tema
esqueceram-se de relativizar ou olhar com cuidado o tempo e a histria brasileiros
como processos que, partindo de uma forte ligao com o iderio moderno europeu,no fizeram desse iderio um fim em si mesmo, mas misturando-se a ele, tornaram o
cotidiano do espao urbano algo original, gerando uma nova configurao que permitiu
o aparecimento de uma estrada de mltiplas vias.
Edgar Morin diz que, ao tratarmos da relao de interdependncia entre o
passado, o futuro e o presente, deveramos levar em conta que a realidade social
multidimensional. A dialtica no anda nem sobre os ps nem na cabea; ela gira
porque, antes de tudo, jogo de inter-reaes, isto , circuito em perptuo movimento.Tudo o que evolutivo obedece a um princpio policausal.E at mesmo os processos
que chamamos de evolutivos no so nem eles mecnicos ou lineares. As invenes,
inovaes, criaes, tcnicas culturais, ideolgicas modificam a evoluo e at a
revolucionam, e fazem, da em diante, com que os princpios de evoluo evoluam1.
Quanto mais a ao do homem der existncia a desvios ou imprevistos nos processos
histricos, mais rico em complexidades eles tornar-se-o; justamente por isso que a
histria, por um lado feita de rupturas e de crises, tambm, ao mesmo tempo, repletade criaes e de inovaes. Morin diz, por analogia, que: ao procurar a ndia, o
homem foi parar [na]Amrica2.
Ao pensar a cidade brasileira, que foi gerada no momento em que nosso pas
passou a integrar-se na chamada era planetria3, inaugurada com os grandes
descobrimentos martimos, a percebo como um fenmeno rico e complexo que se
frutificou a partir do projeto moderno europeu, e inesperadamente deu novo destino a
ele as cidades do Novo Mundo foram inventadas com a modernidade e, por causa
delas e dentro delas, a modernidade foi reinventada.
1MORIN, Edgar. Para sair do sculo XX. 1986, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 311.2MORIN, Edgar. O paradigma perdido. A natureza humana.1973, Lisboa: Publicaes Europa-Amrica, 5 ed.,p. 23.3MORIN, Edgar e KERN, Anne Brigitte. Terra-Ptria.1995, Porto Alegre: Editora Sulina, p. 19.
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Dentro da cidade, as edificaes, as melhorias tecnolgicas, os equipamentos
materiais, como os meios de transporte coletivos, so o reflexo desta complexidade. As
grandes invenes como os trilhos de ferro, a tcnica da macadamizao (calamento
com brita aglutinada e comprimida, com 30 cm de espessura, que antecedeu as tcnicasatuais de calamento de ruas), o uso de animais primeiro, e depois dos cabos eltricos
para a movimentao dos bondes, a construo de casas assobradadas e frontalmente
ajardinadas, o surgimento dos cortios, o uso de cores sbrias nas roupas dos homens e
das mulheres, os projetos urbansticos de organizao moral e espacial da cidade so
todos exemplos de mudanas ocorridas em concomitncia temporal com a Europa e
tambm com os Estados Unidos.
clara a cumplicidade de factodo Brasil com o restante do mundo ocidental noplano dos ideais urbanos; a diferena esteve na maneira como aqui se propagaram ou
se concretizaram tais ideais, que tiveram de se moldarem ao contexto social,
geogrfico, poltico e econmico brasileiros, e por isso perderam as formas que
possuam originalmente, para aqui adquirir outras e a isso grande parte dos
historiadores apressadamente chamou de tentativa frustada ou atrapalhada de copiar o
que vem de fora.
Perdeu-se muito tempo tentando provar a inferioridade tecnolgica, econmicaou poltica do Brasil em relao ao Primeiro Mundo, desde que este nos conquistou, e
deixamos de enriquecer nossas pesquisas, pois no levamos em conta a rede de
complexidades e reciprocidades, surgidas a partir do momento em que o mundo
tornou-se efetivamente redondo, sobretudo no que diz respeito compreenso das
diversidades culturais que um projeto que, mesmo pretendendo ser uno e evolutivo,
no conseguiu sufocar completamente.
Foi no meio urbano, sob a forma de uma harmonia conflitual4, que se
desenrolaram ao mesmo tempo, o anseio do esquadrinhamento moderno como idia
e a improvisao como coisa no projetada.
4Termo que tomo emprestado de Michel Maffesoli, em O Tempo das Tribos. O Declnio do Individualismo nassociedades de massa, ao ver a vitalidade do interior da cidade ligada a um equilbrio entre elementos
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Perceber a cidade brasileira a partir desse prisma lanar um novo olhar sobre
ela, seguindo o que sugere Peter Burke: Cada vez mais historiadores esto comeando
a perceber que seu trabalho no reproduz o que realmente aconteceu, tanto quanto
o representa de um ponto de vista particular.
5
tambm ressaltar que, como dizHayde White, o historiador poderia ser visto como algum que, a exemplo do artista e
do cientista[procuraria enfatizar a importncia de se perceber] o carter singular das
coisas comuns.6
A partir de reflexes como estas que me proponho a analisar a relao da
cidade brasileira com a modernidade, desde a ltima metade sculo XIX s primeiras
dcadas do XX, sob o prisma dos seus meios de transporte coletivos urbanos, tendo
como caso privilegiado a cidade de Porto Alegre.No primeiro captulo, procuro conceituar duas idias-chave que permeiam e
norteiam a linha terica do trabalho. Essas idias so o conceito de civilizao de
Norbert Elias, cuja definio considero mais adequada, e a de modernidade, que, dentre
as concepes existentes, optei por aquela elaborada por Jean Baudrillard; ambas
contextualizadas no lugar onde se concretizaram: a cidade ocidental. Para tal, utilizo as
tipologias de Max Weber sobre a cidade e sua inerente delimitao territorial ligada s
demarcaes administrativa, afetiva e religiosa, categorias essas que esto sempre emrelao umas com as outras.
Julgando que a cidade o territrio da modernidade, procuro situ-la
historicamente, num primeiro momento, a partir do movimento europeu das
descobertas martimas e a conseqente fundao das cidades no Novo Mundo. Essas
cidades nasceram sob o signo do pensamento moderno e sob os dogmas do capitalismo
comercial, que so a secularizao, a racionalidade e a homogeneizao. A urbanizao
heterogneos. Tambm Gilberto Freyre, em Casa-Grande & Senzala. Formao da Famlia Brasileira sob oRegime da Economia Patriarcal, utiliza-se dessa idia ao falar de equilbrio de antagonismos para caracterizar asociedade brasileira. (Ver captulo I).5BURKE, Peter (org.) A Escrita da Histria, novas perspectivas.1992, So Paulo: Editora UNESP, 2. ed., p.337.6WHITE, Hayde. Apud: KRAMER, Lloyd. Literatura, Crtica e Imaginao Histrica: o desafio literrio deHayden White e Dominick LaCapra. In: HUNT, Lynn. A Nova Histria Cultural. 1995, So Paulo: MartinsFontes Editora Ltda., pp. 131-173, p. 160.
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era o instrumento que possibilitava a realizao do processo civilizador, de carter
messinico e redentor, que precisava sair da Europa e espalhar-se pelo mundo tal
como a modernidade.
No Brasil dos sculos XVI, XVII e XVIII, o moderno traduziu-se pelas atitudesque os colonizadores tomaram para possuir o territrio que lhes pertencia: as medidas
poltico-administrativas da coroa portuguesa, o uso da mo-de-obra escrava, a
monocultura agrcola e pecuarista, a implantao de freguesias e feitorias (os embries
de nossas cidades) e o estabelecimento da estrutura social patriarcal e familiar. O
resultado de tais atitudes criaram, dentro das cidades brasileiras, uma ordem social
complexa e peculiar, ancorada em antagonismos miscveis, de uma riqueza hbrida
incomparvel, conforme interpretou Gilberto Freyre7
.Procuro, ainda, desenvolver a idia de que no sculo XIX o moderno das
cidades brasileiras expressou-se pela via das transformaes modernizantes em
concomitncia com a industrializao inglesa e francesa. A higienizao, a
preocupao com o desenvolvimento tecnolgico, o desejo do devir e o
desencantamento marcaram de maneira singular a cidade desse perodo. Se, por um
lado, a cidade do sculo XIX vivia o momento de uma tendncia a enobrecer as
necessidades tcnicas, fazendo delas objetos artsticos e agentes da implantao donovo, sob o ritmo efmero da moda (como disse Walter Benjamin8) por outro, a
modernidade tomou a forma da modernizao, tout court, ligando-se busca do
progresso como o elemento fundamental para, concretamente, melhorar a infra-
estrutura urbana, incrementar a industrializao e disciplinar as formas de produo e
de trabalho. Para Alain Touraine, no sculo XIX, era preciso trabalhar, organizar-se e
investir para criar uma sociedade tcnica geradora de abundncia e de liberdade. A
modernidade era uma idia, ela se torna por acrscimo uma vontade, [pois no sculo
7A miscigenao como caracterizao do processo da formao urbana brasileira conceito-chave em duas obrasfundamentais de Gilberto Freyre, utilizadas aqui. So elas: Casa-Grande & Senzala. Formao da FamliaBrasileira sob o Regime da Economia Patriarcale Sobrados e Mucambos.Decadncia do Patriarcado Rural eDesenvolvimento do Urbano.8 BENJAMIN, Walter. Paris, capital do sculo XIX. In: KOTHE, Flvio. Walter Benjamin. ColeoSociologia, 1991, So Paulo: Editora tica. pp. 30-43, p. 42
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oitocentista] no se tratava mais simplesmente de dar passagem razo afastando os
obstculos do seu caminho; era preciso querer e amar a modernidade; era preciso
organizar uma sociedade criadora de modernidade, automotriz9.
Foi nessa atmosfera que os meios de transporte coletivos, os bondes, passaram ater importncia fundamental dentro do meio urbano, como uma imagem de progresso
que poderia ser concretizada: mquinas com estruturas de ferro ambulantes, sobre
trilhos tambm de ferro, que concorreriam com as ingnuas carroas. Era o avano da
tcnica em oposio estabilidade do tradicional. As carroas, os tlburis, as caleas
bem mais fceis de pilotar, as cadeirinhas e os palanquins, movidos pela fora do
homem negro, podiam carregar menos pessoas, como uma famlia ou indivduos
isoladamente, e ainda ligavam-se idia de cidade pequena, familiar. Mas os bondes,no. Eles anunciavam, pelos seus itinerrios, que a cidade expandia-se e que as
necessidades da populao em se locomover aumentavam. Eram sinal de mudanas.
Viajar, ou passear, por um quarto de hora ou por meia hora ao lado de um
desconhecido, sem dirigir-lhe a palavra, ou ento trocar conversa formalmente sobre a
poltica ou os costumes, com algum que no se sabe exatamente quem , era o sinal de
novos tempos que o bonde poderia proporcionar. A eletricidade, fora motriz oculta
para os olhos, que no podia ser vtima de chacotas ou apelidos como os burros,reforou ainda mais a venerao do progresso industrial e dos avanos da racionalidade
cientfica, na primeira dcada do sculo XX.
No segundo captulo, fao uma anlise mais especfica sobre a cidade de Porto
Alegre, retomando as concepes acerca da modernidade, tratadas no captulo anterior.
A modernidade como um modo de civilizao, que no se restringiu apenas ao Velho
Mundo, tambm fez parte do iderio do cidado porto-alegrense na relao que ele
mantm com a sua urbe.
Como no Brasil o hibridismo e a plasticidade so princpios fundamentais de
organizao social, nossas cidades propiciaram a atmosfera da festa espao plural,
9TOURAINE, Alain. Crtica da Modernidade. 1994, Petrpolis: Editora Vozes, p. 68.
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onde as diferenas se congregam e a rigidez amolecida; onde a atitude coletiva est
ancorada na sensibilidade.
Para alm de uma concepo histrica unidimensional, que ignora a
complexidade e a multiplicidade da realidade humana com seu cosmos de sonhos e defantasmas, considero a perspectiva carnavalesca da histria uma excelente pista para
auxiliar o historiador a escrever sobre o mundo. Segundo Dominick LaCapra, parceiro
terico de Hayde White, o carnaval testa e contesta todos os aspectos da sociedade e
da cultura atravs do riso festivo: os que so questionveis podem ser preparados
para a mudana; os que so considerados legtimos podem ser consolidados.10
Por essa razo, reservo o terceiro captulo para tratar, com base nas concepes
da Escola de Chicago, a cidade como um estado de esprito, que, no Brasil, se revelaatravs da festa religiosa e do carnaval. Fazendo uso das idias de Roberto DaMatta,
Gilberto Freyre, Mikhail Bakhtin e Jean Duvignaud, discuto a festa brasileira no
somente na sua forma institucional e etnogrfica, mas tambm como um modo cultural
que est entranhado na viso de mundo, na sensibilidade sobre as coisas e na relao
que o brasileiro tem com o meio urbano. Fundada com o aval dos princpios ticos,
religiosos, cientficos e arquitetnicos da modernidade, a festa no Brasil (que est
visceralmente ligada cidade) carnavalizou esses princpios e deu-lhes uma cara nova,sem aniquil-los, mas enriquecendo-os e aumentando-lhes a complexidade.
10LACAPRA, Dominick. Apud: KRAMER. Literatura, Crtica e Imaginao Histrica. In: HUNT. A NovaHistria Cultural.Op. cit., p. 163.
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1. A CIDADE E A MODERNIDADE
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Na cultura ocidental, desde o sculo XV, civilizao e posse do espao no seseparam. E onde a conquista territorial se efetivou, um empreendimento organizador do
espao foi arquitetado. Em nome do ideal civilizador, o mundo ganhou uma nova
configurao a de mundo moderno e tanto para a Europa como para a Amrica, a
sia e a frica, novos elementos foram adicionados sua antiga estrutura social,
poltica e econmica. Depois das descobertas martimas, o mundo nunca mais foi o
mesmo. Assim, simultaneamente existia para os europeus a preocupao com a
ocupao espacial e a percepo de que o mundo havia se alargado. A aldeia globalaumentava seu dimetro num mesmo projeto de civilizao. E a Amrica passou a
fazer parte do jogo de inter-relaes a que o homem europeu e o asitico j haviam
iniciado, timidamente, na Idade Mdia. Edgar Morin diz:
Durante a Idade Mdia ocidental, e embora suas Histrias no se comuniquem,
embora suas civilizaes permaneam hermticas umas s outras, frutas, legumes,
animais domsticos so transportados e aclimatados do Oriente ao Ocidente, da sia
Europa, assim como seda, pedras preciosas, especiarias. A cereja parte do mar
Cspio para o Japo e a Europa. O damasco vai da China at a Prsia, da Prsia ao
Ocidente. A galinha se espalha da ndia para toda a Eursia. A atrelagem de tiro,
depois o uso da plvora, da bssola, do papel, da impressa chegam da China Europa
e fornecem os conhecimentos e instrumentos necessrios para seu progresso e em
particular para o descobrimento da Amrica. As civilizaes rabes introduzem o zero
indiano no Ocidente. Antes dos tempos modernos, os navegadores chineses, fencios,
gregos, rabes, vikings descobrem largos espaos do que eles no sabem ainda ser um
planeta, e cartografam ingenuamente o fragmento que conhecem como sendo a
totalidade do mundo. Em suma, o Ocidente europeu, essa pequena extremidade da
Eursia, durante a sua longa Idade Mdia, recebeu do vasto Extremo Oriente as
tcnicas que lhe permitiro reunir os conhecimentos e os meios de descobrir e de
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chamar razo a Amrica.11Para esse autor, a era moderna, preparada lentamente em
diversos pontos do Globo e inaugurada a partir dos descobrimentos martimos,
inaugurou tambm a era planetria, e a sua concepo de que ideais de civilizao
podem ser exportados.As palavras moderno ou modernidade, quando utilizadas aqui, tm a conotao
dada por Jean Braudrillard e Alain Touraine.
Jean Baudrillard diz: A modernidade no um conceito sociolgico, nem um
conceito poltico, nem propriamente um conceito histrico. A modernidade um modo
de civilizao caracterstico que se ope ao modo da tradio, isto , a todas as outras
culturas anteriores ou tradicionais: face diversidade geogrfica e simblica destas
outras culturas, a modernidade se impe como una, homognea, se irradiandomundialmente a partir do Ocidente. [Ela] uma estrutura histrica e polmica de
mudana e crise. Sob esta forma, a modernidade localizvel somente na Europa a
partir do sculo XVI e no toma seu sentido seno a partir do sculo XIX.
Para Jean Baudrillard, a modernidade , por isso, o jogo de signos, de costumes
e de cultura que resultaram das mudanas tcnicas, cientficas e polticas ocorridas
desde o sculo XVI12. Historicamente, segundo o autor, ela tem se desenrolado desde a
chegada de Colombo Amrica, no sculo XV, passando pela descoberta da tipografiae das descobertas de Galileu, que inauguraram o humanismo do Renascimento; aparece
tambm nas intenes da Reforma Luterana e sua repercusso no mundo catlico; nos
fundamentos filosficos de Descartes e na filosofia do Iluminismo, que originaram o
pensamento individualista e racionalista do mundo ocidental. Ela tambm esteve
presente nas tcnicas administrativas do Estado monrquico centralizado, que
substituiu o sistema feudal; e, culturalmente, a modernidade relaciona-se com a
secularizao total das artes e das cincias. [A modernidade] tomou uma tonalidade
burguesa liberal que no cessar depois de marc-la ideologicamente 13.
11MORIN e KERN. Terra-Ptria. Op. cit., p. 18-19.12BAUDRILLARD, Jean. Modernit. In: Biennale de Paris. La modernit ou lesprit du temps. 1982, Paris:Editions LEquerre, pp. 28-31, p. 28.13BAUDRILLARD. Modernit. Op. cit., p. 28.
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Alain Touraine tambm a define: A modernidade no mais pura mudana,
sucesso de acontecimentos; ela difuso de produtos da atividade racional,
cientfica, tecnolgica, administrativa.
A modernidade exclui todo o finalismo. A secularizao e o desencanto de quenos fala Weber, que definiu a modernidade pela intelectualizao, manifesta a ruptura
necessria com o finalismo religioso que exige sempre um fim da histria, realizao
completa do projeto divino ou desaparecimento de uma humanidade pervertida e infiel
sua misso.
A idia de modernidade substitui Deus no centro da sociedade pela cincia,
deixando crenas religiosas para a vida privada.14
A palavra civilizao designa, aqui, o objetivo que o homem ocidental seprops a perseguir, para a realizao do seu modo de vida e de comportamento e que
terminou por constituir-se em um processo, encarado como evolutivo, que deve ser
prosseguido. Aliado razo, o processo de civilizao tem carter de instrumento til
que serve para aperfeioarem-se os governos, as leis, a educao, as instituies, o
conhecimento cientfico e os costumes ocidentais, no importando as fronteiras
territoriais, j que o homem moderno julga-se capacitado de levar a civilizao a
qualquer lugar que considere ainda no suficientemente civilizado. Encarada comouma propriedade e obra acabada, a civilizao o trunfo do homem ocidental sobre os
outros povos.
Sobre o nascimento do conceito de civilizao at a sua transformao em
processo progressivo, Norbert Elias diz:Ao contrrio do que acontecia no momento da
gnese do conceito, a partir de agora o processo de civilizao considerado pelos
povos como acabado, no interior das suas prprias sociedades: eles sentem-se
essencialmente portadores de uma civilizao existente ou acabada, que tm de
transmitir a outros, como porta-estandartes da civilizao para o exterior. Do
processo que fica para atrs, de todo processo civilizacional, a conscincia guarda
apenas uma vaga lembrana. Aceita-se o resultado desse processo como manifestao
14TOURAINE. Crtica da modernidade. Op. cit., p. 17.
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do fato de ser superiormente dotado. Que esse comportamento civilizado tenha levado
sculos a atingir no interessa, como no interessa saber de que maneira se atingiu. A
partir de agora, pelo menos para as naes que se fizeram conquistadoras e
colonizadoras, e por isso se tornaram uma espcie de camada superior para vastasextenses do mundo extra-europeu, a conscincia da sua superioridade, a conscincia
dessa civilizao, serve para justificar o seu domnio, tal como outrora politesse
e civilit, os antepassados do conceito de civilizao, haviam servido camada
superior aristocrtica da corte para justificar o seu.
Conclui-se, efetivamente, uma fase essencial do processo civilizacional no
momento em que a conscincia da civilizao, isto , a conscincia da superioridade
do comportamento prprio e das suas substancializaes em cincia, tcnica ou arte,comea a alastrar-se por naes inteiras do Ocidente.15
Conceitualmente, modernidade e civilizao entram em comunho quando
expressam, juntas, a idia de que existem padres tcnicos, cientficos e culturais que
devem ser disseminados, por serem tomados como verdade absoluta. Num processo de
dentro para fora, iniciado na Europa, o Ocidente, sente-se capaz e responsvel por
transmitir tais padres aos outros povos.
No que concerne questo urbana, a modernidade, como o modo da civilizaoocidental, ps-se em marcha, num primeiro momento, como expanso territorial pelo
mundo do alm-mar, tendo na fundao das cidades e na busca da globalizao do
formato econmico e social destas, os elementos fundamentais deste processo16, e,
depois, mais tarde, a partir do sculo XIX, sob um aspecto mais particular, que foi o da
15ELIAS, Norbert. O Processo Civilizacional.1989, Lisboa: Publicaes Dom Quixote, 1ovol., (primeira edioem 1939), p. 100.16Para La Perez, este momento da histria ocidental se situa num contexto em que as relaes da economiaurbana e o processo de urbanizao ultrapassam as fronteiras das naes para assumirem um carterinternacional. A autora coloca: A economia europia se abre a novos horizontes, as inovaes tecnolgicastransformam o ciclo da vida. A expanso territorial d organizao do espao uma nova configurao emescala global.Neste sentido,a configurao urbana brasileira contempornea desse processo e, ainda maisparticularmente, ela tributria do desenvolvimento do capitalismo comercial europeu. Ver: PEREZ, LaFreitas. A Constituio da Rede Urbana Brasileira nos Quadros da Formao do Mundo Ocidental Moderno .In: Estudos Ibero-Americanos. 1993,Porto Alegre: PUCRS, v. XIX, n. 2, pp. 117-138, p. 117.
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crena na modernizao do meio urbano como caminho nico que levaria ao
desenvolvimento pleno.
no sculo XIX que a modernidade concentra-se mais nos espaos internos da
cidade, nos seus projetos arquitetnicos e avanos tecnolgicos. A modernizao, viaindustrializao, prepara o triunfo da modernidade. A racionalidade componente
indispensvel da modernidade, se torna alm disso, um mecanismo espontneo e
necessrio de modernizao.17 A modernizao endgena da modernidade e no o
contrrio.
sabido que diferentes, variados e sinuosos caminhos foram percorridos pela
sociedade ocidental entre os sculos XVI, XVII, XVIII e XIX, no entanto, parece ter
havido um consenso das sociedades desses perodos de que o ato de civilizar se realizanum movimento progressivo, linear, messinico e redentor. Foi na cidade que esse
fenmeno se deu, inicialmente, na busca da padronizao ideal de comportamentos e, a
posteriori, pela sua realizao plena, utilizando-se para isso, como se fez no sculo
XIX, a racionalizao intimamente ligada melhoria tecnolgica e crena quase cega
nos modelos cientficos.
17TOURAINE. Crtica da modernidade.Op. cit., p. 19.
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1.1 OCUPAR PARA CIVILIZAR
A concepo da importncia de se ocupar espacialmente uma regio varia
conforme a poca e as necessidades poltico-administrativa, econmica e
psicossociolgica de uma sociedade. Ocupar e civilizar at o sculo XVIII teve, naEuropa, por um lado, devido s descobertas de um mundo novo, praticamente virgem e
possuidor de uma natureza bruta dominante, um carter quase pico, com legado
renascentista, que via homem e natureza como duas extremidades opostas e
conflitantes. Preparados militarmente e imbudos de mentalidade redentora, os
europeus partem para a Amrica convencidos da necessidade de levar a civilizao,
que se traduzia na evangelizao, ao homem primitivo. Nessa concepo, o ato de
Civilizao consistia em provar a superioridade do branco sobre a gente selvagem dostrpicos.
No Brasil, particularmente, o europeu no encontrou, como na ndia, nenhuma
riqueza comercial imediata; aqui o ato civilizatrio, para dominar o homem e a
natureza foi o de, primeiramente, organizar, sob o arrimo religioso, a empresa agrcola
e a sociedade escravocrata, possibilitando o sedentarismo e a ocupao efetiva18.
Com a formao das cidades, a metrpole garantia a sua continuidade na
ocupao colonial, e depois, mais tarde, a partir do sculo XIX, momento em que o
sistema colonial se desfez, as cidades, mais aperfeioadas tecnicamente, passaram a
servir como termmetro da auto-suficincia e do progresso material alcanados.
18FREYRE. Casa-Grande & Senzala.Formao da Famlia Brasileira sob o Rregime da Economia Patriarcal.1992, Rio de Janeiro: Record, 29. ed., (primeira edio em 1933), p. 24.
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Segundo La Perez, o processo de colonizao do Brasil foi um
empreendimento moderno que combinou aes comerciais e militares e cruzada
civilizadora. A terra foi consolidada nas mos portuguesas pela via da fora armada,
uma conquista militar. O prprio empreendimento ultramarino foi feito sob as graaspapais, como uma cruzada moderna, cujas bulas reconheciam e aprovavam os
primeiros passos.19 Aqui, o portugus encontrou o elemento de objetivao da ao
civilizadora e colonizadora: as almas para Jesus Cristo20, como disse Gilberto Freyre.
A permanncia no territrio, e o ato de conquist-lo espacialmente, uma
faanha do esforo civilizatrio do homem moderno; e temos na constituio das
cidades brasileiras, um modelo dessa preocupao, como analisou Gilberto Freyre ao
tratar do perodo colonial brasileiro, mostrando-nos como a posse e a demarcao doterritrio caracterizam uma das faces da modernidade. Ele diz: De qualquer modo o
certo que os portugueses triunfaram onde outros europeus falharam: de formao
portuguesa [o Brasil] a primeira sociedade moderna constituda nos trpicos com
caractersticas nacionais e qualidades de permanncia. Qualidades que no Brasil
madrugaram, em vez de se retardarem como nas possesses tropicais de ingleses,
franceses e holandeses.21
Para novos desafios que se traduziam no desejo de conquistar e dominar oque as novas terras reservavam , foram aproveitadas pragmaticamente velhas
frmulas. Os europeus do sculo XVI eram h muito homens citadinos 22 e desde o
medievo vinham ampliando e aperfeioando-se nas relaes capitalistas de tipo urbano
e comercial; sabiam, por experincia, que a cidade, como instituio, era a geradora da
nova ordem. Por que, ento, no implant-las no Novo Mundo?
19 PEREZ, La Freitas. Para alm do bem e do mal: um novo mundo nos trpicos. In: Estudos Ibero-Americanos.1995, Porto Alegre: PUCRS, v. XXI, n. 1, pp. 49-59, p. 52.20FREYRE. Casa-Grande & Senzala. Op. cit., p. 242.21FREYRE. Casa-Grande & Senzala.Op. cit., p. 12.22 importante lembrar que em Portugal os elementos caracterizadores da urbanidade madrugaram em relao aoresto da Europa; l o esprito poltico e de realismo econmico e jurdico foram elementos decisivos da formaonacional. A burguesia martima portuguesa desde o sculo XIV predominou fortemente sobre a nobreza rural.FREYRE. Casa-Grande & Senzala. Op. cit., p. 54.
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No Brasil, assim foi feito. A implantao de estabelecimentos comerciais ou de
instituies poltico-administrativas no obedeceu mesma ordem cronolgica pela
qual passaram as cidades europias desde o medievo, mas nossas cidades foram criadas
a partir do modelo destas, mesmo que inicialmente mais rudimentares tecnicamente; eao longo da sua formao, sofreram adaptaes exigidas pelo clima, pela gente que
aqui se misturou e pelas situaes histricas particulares.
Iniciando pelas feitorias23, que serviam como mercados regulares, passando pela
construes de fortificaes ou muros, seguido da implantao da instituio religiosa
e do aparato poltico-administrativo local, nossas cidades nasceram sob o feitio
moderno, de feio comercial, tpica dos sculos XVI, XVII e XVIII, num processo
rpido e desimpedido dos entraves feudais. Muitas delas, entre os primeiros 20 ou 30anos de existncia, j tinham o seu traado urbano desenvolvido, eram sede de governo
ou possuam mais de uma praa de comrcio elementos que, para Max Weber,
caracterizam o local como cidade.
Sob o prisma da anlise weberiana, observamos que a categoria tamanho ou
nvel de avano material por si s no torna uma cidade mais moderna que a outra, mas
sim outras classificaes mais complexas e indissociveis.24
Segundo Ruben Oliven, o enquadramento conceitual que Max Weber (e tambmKarl Marx) d para a cidade a classifica como uma Varivel Dependente, ou seja, uma
organizao social que no se auto-explica; que no uma totalidade sozinha, mas uma
objetivao de uma totalidade na qual se insere. Ela uma Varivel Dependente de um
complexo entrelaamento de fatores econmicos, polticos, militares, religiosos.
Para Ruben Oliven, em Max Weber, a cidade o primeiro pressuposto do
capitalismo moderno, mas posteriormente o seu desenvolvimento resultado dele. A
cidade se originou na comunidade relativamente autnoma de burgueses livres que
23Sobre o nascimento das cidades brasileiras e a sua relao com a implantao das feitorias, Aroldo de Azevedoafirma: as feitorias foram, sem dvida, os primeiros povoados surgidos no pas, os mais remotos embries dasnossas cidades.AZEVEDO, Aroldo de. Embries das Cidades Brasileiras. In: Boletim Paulista de Geografia,1957, So Paulo: Departamento de Geografia da Universidade de So Paulo, n. 25, pp. 31-69, p. 37.24WEBER, Max. La dominacin no legtima (Tipologa de las ciudades). In: Economia y Sociedad. Esbozo desociologia comprensiva. 1944, Mxico: Fondo de Cultura Econmica, pp. 938-1024.
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existiu no perodo de transio do feudalismo para o capitalismo, mas estas
comunidades rapidamente perderam sua independncia e tornaram-se o alicerce do
Estado-nao. 25 Por isso uma estrutura social muito alm da rea urbana; ao
mesmo tempo um modo de habitar (civismo, civitas) e uma forma de participar(poltica, plis).
Em Max Weber, a cidade o lugar onde a relao de vizinhana entre os seus
habitantes, que formam uma comunidade regida por interesses comuns, est sob uma
ordem poltico-administrativa que se preocupa com a demarcao do territrio e com o
controle poltico das relaes sociais urbanas. O nvel poltico-administrativo,
essencial, somado atividade produtiva e existncia de um mercado local regular e
variado quesitos obrigatrios para caracterizar economicamente o lugar comocidade formam os trs elementos essenciais da cidade ocidental moderna.
importante chamar a ateno que, na anlise weberiana, a categoria poltico-
administrativa para a caracterizao da cidade mais importante que a econmica. 26
A partir desses critrios que Max Weber situa as cidades medievais, que, sob
ponto de vista poltico-administrativo, nasceram como fortalezas e postos de guarnio,
onde havia a preocupao com a regulamentao da propriedade fundiria e com a
organizao do poder que regia a comunidade. Em volta dessa estrutura se encontravao mercado local de trocas, que reunia sob o mesmo interesse os habitantes do lugar.27
necessrio, ainda, observar que Max Weber considera importante, alm dos
fatores j citados, caracterizar a cidade como sendo uma associao fraternal, que se
realiza em nvel religioso, quando a unio de seus habitantes promovida pela crena
em um deus ou santos comuns, tornados oficiais pela presena de uma igreja ou capela
do lugar. 28
25OLIVEN, Ruben George. Urbanizao e Mudana Social no Brasil.1984, Petrpolis, Editora Vozes, 3. ed.,pp. 14 e ss.26 Apud. PEREZ, La Freitas. Dois olhares sobre o urbano: Max Weber a Escola de Chicago . In: RevistaVritas, 1994, Porto Alegre: PUCRS, v. 39, n. 156, pp. 621-637, p. 623.27PEREZ.Dois olhares sobre o urbano. Op. cit.,p. 622-623.28PEREZ. Dois olhares sobre o urbano.Op. cit.,p. 264.
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Assim, a cidade ocidental moderna, que nasceu da medieval, um espao que,
orquestrado por uma lgica racional de organizao, rene em seu interior elementos
poltico-administrativos, juridicamente concebidos, aliados a uma dinmica economia
de troca, em forma de um mercado local variado e regular, marcado pela especializaopermanente da produo econmica; e tambm o lugar em que as pessoas, ligadas por
laos de fraternidade e de culto, formam uma comunidade.
Sob este aspecto Max Weber e Michel Maffesoli comungam da idia de que a
cidade um somatrio entre o espao geogrfico de dimenso demarcada
concretamente pelo poder do Estado e o espao social delineado, este sim sem limites e
fronteiras, por mltiplos grupos fortemente unidos em um sentimento comum que
estrutura e assegura, na diversidade, a unidade da cidade. Para Michel Maffesoli, adinmica prpria da urbe propicia uma relao afetiva com o territrio.
As fronteiras administrativas e jurdicas da cidade esto, para este autor,
preenchidas e demarcadas tambm por outras entidades do mesmo gnero, como
bairros, grupos tnicos, corporaes, tribos diversas que vo se organizar em torno de
territrios (reais e simblicos) e de mitos comuns. (...) Assim, a experincia do vivido
em comum que fundamenta a grandeza de uma cidade.29
Outrossim, para explicar conceitualmente a cidade sob o prisma da sua potnciasocial como pulsaes vitais, a Escola de Chicago, que inaugurou a Sociologia Urbana
nos Estados Unidos, entre as dcadas de 1920 e 1930, o recorte mais adequado.
Para esta corrente, a cidade capaz de gerar, com sua influncia, os mais
variados efeitos na vida social. o que Ruben Oliven classifica como uma Varivel
Independente30, ou seja, a cidade, sem importar muito como se formou historicamente,
vale mais pelo o que j . Robert Erza Park e Louis Wirth, principais representantes da
Escola de Chicago, encararam a cidade como um organismo social, vivo, e portanto
sujeito a patologias ou estado de esprito.
29MAFFESOLI, Michel. O Tempo das Tribos. O Declnio do Individualismo nas sociedades de massa. 1987, Riode Janeiro:Forense Universitria, p. 171.30OLIVEN. Urbanizao e Mudana Social no Brasil. Op. cit., p. 19.
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Robert Erza Park formulou a idia de que a cidade um corpo de costumes, de
tradies e de sentimentos e atitudes organizados. Para este autor, a cidade algo mais
do que um amontoado de homens individuais e de convenincias sociais, ruas
edifcios, luz eltrica, linhas de bonde, telefone, etc.: algo mais tambm que uma meraconstelao de instituies e dispositivos administrativos tribunais, hospitais,
escolas, polcia e funcionrios civis de vrios tipos. Antes, a cidade um estado de
esprito, um corpo de costumes e tradies e dos sentimentos e atitudes organizados,
inerentes a estes costumes e transmitidos por essa tradio.
A cidade est envolvida nos processos vitais das pessoas que a compem; um
produto da natureza, e particularmente, da natureza humana.31
Para Louis Wirth, discpulo de Robert Park, a densidade demogrfica comocritrio para caracterizar o lugar como cidade s serve se for associada ao contexto
cultural geral. Dever-se-a levar em conta, alm das diferenas e variaes entre as
cidades (existem as comerciais, as de minerao, as pesqueiras, as industriais, as
universitrias, as capitais), a idia de que a cidade uma associao humana, mesmo
que heterognea.32
Estas duas orientaes conceituais a weberiana e a da Escola de Chicago
sobre o que trazem de mais caracterstico, cada uma a seu tempo, servem para analisaras cidades brasileiras, desde a sua fundao, sob a orientao poltico-administrativa e
religiosa portuguesa, no incio da chamada era planetria at a sua cumplicidade
industrializante com a Europa oitocentista.
31PARK, Robert Erza: A cidade: sugestes para a investigao do comportamento humano no meio urbano.1916. In: VELHO, Otvio Guilherme. (org.) O Fenmeno Urbano. 1987, Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 4.ed., pp. 26-67, p. 26.32WIRTH, Louis. O Urbanismo como Modo de Vida. 1938. In: VELHO. O Fenmeno Urbano. Op. cit., pp.90-113, p. 92-95.
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1.2 MODERNIZAR PARA CIVILIZAR
Se nos sculos XVI, XVII e XVIII a modernidade se traduziu no ato evanglicode dominao territorial, que inclua o esforo desbravador de implantao de ruas,
regimentos, normas de conduta e traados urbanos, no sculo XIX, ela realizou-se pela
via da modernizao, que tambm no deixou de ser encarada como um dogma. As
cidades ganharam a atribuio de serem tambm palcos da industrializao e, por isso,
civilizar, no sculo XIX, foi intencionar prover com mais rapidez a urbe, dotando-a de
equipamentos mais requintados e industrializados.
no sculo XIX que a sociedade moderna, segundo Jean Baudrillard, se pensaem si mesma enquanto tal, em termos de modernidade; miticamente. A modernidade se
torna ento um valor transcendente, um modelo cultural, uma moral um mito de
referncia presente em todo o lugar, em parte mascarando as estruturas e as
contradies histricas que lhe deram nascimento. [ neste momento que a
modernidade marcada como] a era da produtividade: intensificao do trabalho
humano e da dominao humana sobre a natureza, um e outro reduzidos ao estatuto
de foras produtivas e aos esquemas de eficcia e de rendimento mximo33.
Dada a ausncia de uma revoluo poltica e industrial nos pases do Terceiro
Mundo, a industrializao dos pases do Primeiro Mundo tornou exportveis os
aspectos mais tcnicos da modernidade: os objetos de produo e de consumo
33BAUDRILLARD. Modernit. Op. cit., p. 28.
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industrial. em sua materialidade tcnica e como espetculo que a modernidade as
investiu em primeiro lugar e no segundo o longo processo de racionalizao
econmica e poltica que se operou no Ocidente.34
A modernizao um mito da modernidade, por isso no foi por acaso quesurgiram, entre as dcadas de 1950 e 1970, as teses da modernizao que postulavam
um modelo a-histrico e linear de mudana social e de evoluo. Essas teorias, como
explicou Ruben Oliven, sustentavam que, dadas certas condies, todas as sociedades
poderiam mover-se do extremo tradicional ao moderno. Todas as sociedades estariam
em algum ponto do continuum (da barbrie civilizao), e poderiam avanar ou
recuar nele. O que faria uma sociedade avanar ou recuar seria o seu nvel de
modernizao.35
Estas teorias do sculo XX, to modernas quanto as que surgiram no sculo XIX
como o marxismo e o positivismo, criaram postulados que faziam crer na
modernizao como via nica para levar uma sociedade para o grau ideal de
civilizao.
Sou tributria da idia de que o que ocorreu neste perodo da industrializao e
da modernizao no foi uma mudana radical no percurso do projeto civilizador, mas
sim, sobretudo na tcnica de produo; foi institudo um novo ritmo, mais veloz, nainsistente tentativa de homogeneizao da vida social.
Uma idia anloga a esta que construo pode ser a de Norbert Elias a respeito do
desenvolvimento da padronizao dos modos e dos costumes sociais civilizadores,
como, por exemplo, o comportamento mesa. O autor diz que a prtica de usar-se o
garfo e a faca nas refeies foi lentamente, atravs de sculos, tornando-se fundamental
nos rituais cotidianos da sociedade ocidental, at o momento de esse costume ser
considerado natural. A partir da, no sculo XIX, verifica-se que se alteram ainda
alguns pormenores; acrescentam-se novas normas e, das antigas, algumas tornam-se
mais permissivas; surge uma quantidade de variaes nacionais e sociais sobre as
34BAUDRILLARD. Modernit. Op. cit., p. 30.35OLIVEN. Urbanizao e Mudana Social no Brasil.Op. cit., p. 30-31.
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maneiras mesa; entre as massas populares, as camadas mdias, o operariado e o
campesinato, diverso o grau de penetrao do uniforme da civilizao e da
regulao dos impulsos exigida pelo manejo desse ritual. Mas os aspectos
fundamentais daquilo que o trato social numa sociedade civilizada requer e daquiloque considerado interdito o padro da tcnica de comer, a maneira de usar a
faca, o garfo, a colher, o prato, o guardanapo e restantes utenslios permaneceram
inalterados no essencial. H apenas a diferenciao e disposio dos utenslios na
mesa, conforme a classe social ou o costume do pas garfos para a entrada, para o
peixe e para a carne; garfos, facas e colheres para doces; alguns talheres mais
pontiagudos, outros mais arredondados ... Tratam-se de variaes sobre o mesmo tema,
diferenciao dentro do mesmo padro36
.Assim tambm vejo a industrializao do sculo XIX: uma nova roupagem para
um modo de civilizao que se calcou em algo maior: a modernidade.
Como observou Max Weber emA tica Protestante e o Esprito do Capitalismo
caracterstica da civilizao ocidental moderna sistematizar e racionalizar todas as
reas do saber e do fazer humano: a geometria, o Direito, a Arte, a Arquitetura, as
Universidades. Esse fenmenos culturais j faziam parte da cultura de outras
civilizaes, mas o aspecto do tratamento racionalizado, sistemtico e de utilidadeprtica essencialmente ocidental37. A produo de bens atravs do trabalho humano
foi, com a industrializao, tornada mais eficaz no sentido de acelerao, de
velocidade; mas no racionalizada por ela.
Ao tratar do nascimento do capitalismo moderno, Max Weber busca exemplos
da dinmica econmica do sculo XVI, nos monoplios e nos privilgios concedidos
ao comrcio ultramarino. E quando o autor trata tambm do momento de iniciao da
industrializao no sculo XIX, antes do fenmeno tomar dimenses mundiais, ele diz:
A forma de organizao era, em todos os aspectos, capitalistas; a atividade do
empreendedor era de carter puramente comercial; o uso do capital, em giro, no
36ELIAS. O Processo Civilizacional. Op. cit., pp. 152-154.37 NASCIMENTO, Mara Regina do. A Moderna Maxambomba. In: Revista Porto e Vrgula. 1994, PortoAlegre: Secretaria Municipal de Cultura, n. 19, ano 3, pp. 10-12, p. 10.
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negcio era indispensvel; e finalmente, o aspecto objetivo do processo econmico, a
contabilidade, era racional. Era, todavia, se se considerar o esprito que animava o
empreendedor, um negcio de cunho tradicionalista: o modo de vida tradicional, a
taxa tradicional do lucro, a quantidade tradicional do trabalho, a maneira tradicionalde regular as relaes com o trabalho, o crculo essencialmente tradicional de
fregueses e a maneira de atrair os novos. (...) Ora, em determinada poca esta vida de
lazer foi subitamente convulsionada, e freqentemente sem nenhuma mudana
essencial na forma da organizao, tais como a transio para uma fbrica unificada,
para a tecelagem, apenas isto: um jovem qualquer, de uma das famlias produtoras sai
para o campo, escolhe cuidadosamente teceles para empregados, aumenta
grandemente o rigor de sua superviso sobre seu trabalho e transforma-os, assim, decamponeses em operrios. Por outro lado, comea a mudar seu mtodo de mercado,
buscando tanto quanto possvel o consumidor final, toma em suas mos os mnimos
detalhes, cuida pessoalmente dos fregueses, visitando-os anualmente, e,
principalmente, ajusta diretamente a qualidade do produto s necessidades e desejos
destes fregueses38.
No foi o investimento econmico da indstria que ocasionou tais mudanas,
mas sim a instalao de um novo esprito, j instaurado anteriormente: aquele a queMax Weber chamou de o esprito do capitalismo moderno. Quando a
industrializao chegou, o esprito moderno no era novo, mas, ao contrrio, j estava
h muito interiorizado pelo homem moderno.
A industrializao e a forma como ela prov a cidade oitocentista no , pois, o
que podemos chamar de nascimento da modernidade, mas sim uma forma de
transformar pensamentos racionais, nascidos em outra poca, em fins sociais e polticos
mais concretos. Por isso a urbanizao ligada industrializao, como disse Alain
Touraine, a obra da prpria razo e, portanto, principalmente da cincia, da
38WEBER, Max. A tica Protestante e o Esprito do Capitalismo. 1985, So Paulo: Livraria Pioneira Editora,4. ed., pp. 43-44.
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tecnologia e da educao39. E que: A modernidade era uma idia, ela se torna por
acrscimo uma vontade, mas sem que seja rompido o vnculo entre a ao dos homens
e as leis da natureza e da histria, o que assegura uma continuao fundamental entre
o sculo das luzes e a era do progresso. (...) A modernidade, portanto, no estseparada da modernizao, o que j era o caso na filosofia do Iluminismo, mas ela
reveste de muito mais importncia num sculo em que o progresso no mais
unicamente o das idias, mas torna-se o das formas de produo e de trabalho, onde a
industrializao, a urbanizao e a extenso da administrao pblica transtornam a
vida da maioria.40
nessa atmosfera que as Exposies Universais, promovidas pelas indstrias
europias do sculo XIX, tornaram-se o centro de peregrinao ao fetiche mercadoria,como disse Walter Benjamin; elas transfiguraram o valor de troca das mercadorias.
Criaram uma moldura em que o valor de uso da mercadoria passa para segundo
plano. Inauguraram uma fantasmagoria a que o homem se entregava para se distrair.
As exposies universais construam o universo das mercadorias.41 Atravs delas o
mundo planejava e imaginava a industrializao para todo o planeta.
Paris e Londres comandaram as exposies em 1851, 1855, 1862 e 1867; em
1873 foi a ustria a promover outra exposio (e desta, o Brasil tambm participou42).A industrializao, alm de proporcionar o espetculo a que me referi, tambm
ps em xeque antigas crenas e vivncias urbanas, fazendo a cidade olhar-se e sentir-se
enferma, com necessidade de cura. Nesse sentido, pode-se dizer que o processo
industrial trouxe para dentro da cidade a crise, que se refletiu no drama de reconhecer
que precisava reorganizar-se e melhorar, como se fosse possvel e preciso fazer a
cidade passar por um processo de refino. Assim, a cidade concentrava, ao mesmo
39TOURAINE. Crtica da Modernidade. Op. cit., pp. 18-19.40TOURAINE. Crtica da Modernidade. Op. cit., pp. 68-71.41BENJAMIN. Paris, capital do sculo XIX. In: KOTHE. Walter Benjamin.Op. cit., p. 35 e ss.42Em Porto Alegre tambm tivemos Exposies Universais significativas: entre elas aBrasileiro-alem, de 1881,ocorrida em local onde hoje encontra-se a av. Lima e Silva e a de 1901 intitulada Grande Exposio, onde havia,alm dos pavilhes especficos dos municpios do Rio Grande do Sul, os pavilhes dos motores a vento Berta,dos tecidos Rheingantz, das fotografias Ferrari e o Pavilho das Machinas. MACEDO, Francisco Riopardense de.Porto Alegre, Histria e Vida da Cidade.1973, Porto Alegre: Editora da UFRGS, p. 105.
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tempo, a idia de doena, representada pela crise, e de cura, materializada pelo
progresso industrial.
Quando utilizo a palavra crise, no quero referir-me morte ou esquizofrenia
de um determinado processo, mas, ao contrrio, tomo o sentido dado por Edgar Morin,que v a crise como elemento que configura e d formato sociedade moderna,
sociedade esta que se submete constantemente a um fluxo complexo de
transformaes. Nela, desenvolvimento e crise so inseparveis, porque o primeiro
dependente da segunda para existir.
Sobre a crise na sociedade ocidental, Edgar Morin diz: Assim, no que diz
respeito s sociedades ocidentais, a crise de civilizao, a crise cultural, a crise dos
valores, a crise da famlia, a crise do Estado, a crise da vida urbana, a crise da vidarural, etc. so outros tantos aspectos do ser das nossas sociedades, que esto
evidentemente ameaadas pela crise mas tambm vivem da crise43.
Para cada projeto, mudana ou idia tem havido uma ruptura, um rumo que no
se esperava e assim a histria do Ocidente tem sido caracterizada e moldada pelas suas
incertezas, crises e desvios. E justamente essa configurao, essa dinmica, que d
vida evoluo e forma do desenvolvimento. Sem perturbaes ou crises a
modernidade, tout court, no se concretizaria, j que a busca do futuro cessaria. Asincertezas do devir que provocam a incessante busca da realizao do que foi
planejado; a evoluo s evoluo apenas quando ela no seguiu um processo
provvel44.
Neste sentido, a modernidade nas suas idias de progresso e de projeo para
o futuro necessita, infinitamente, de atos inaugurais para ser autntica e aquilo que
foi inaugurado precisa de um segundo ato, para que o anterior seja considerado o
primeiro: como o alvo o futuro, necessrio que o primeiro seja seguido pelo
segundo para ser realmente o primeiro.
43MORIN. Para Sair do Sculo XX.Op. cit., p. 318.44MORIN. Para Sair do Sculo XX. Op. cit., p. 313.
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Francisco Coelho dos Santos, ao referir-se s idias de linearidade e de
universalidade da evoluo histrica na modernidade, com sua busca de causas
primeiras e de finalidades, diz: O primeiro no o primeiro se no seguido por um
segundo.Em conseqncia, o segundo no simplesmente uma espcie de retardatrioque vem depois do primeiro, pois ele que permite ao primeiro ser o primeiro. Assim,
o primeiro no consegue ser o primeiro sozinho, por suas prprias foras. Ele precisa
que o segundo, pela fora de seu retardo, o ajude a s-lo.45
Por isso, o pensamento do homem urbano se divide entre fascnio e tristeza, pois
a modernidade deixa irresolvel o vcuo existente entre as intenes e a realidade;
entre a soluo de uma crise e o desejo de que haja um fluxo contnuo do progresso.
Max Weber, secundado por Julien Freund, explica esse fenmeno da seguinteforma: O homem racionalizado sabe que vive no provisrio, no incerto; sofre, porque
a felicidade para amanh, ou para depois de amanh, e porque se encontra situado
em um movimento que no cessa de maravilh-lo e de decepcion-lo com novas
promessas. A racionalizao tem pois um carter utopista: deixa acreditar que a
felicidade para os filhos, para os netos e assim por diante.46Mas, por outro lado, este
sentimento de desencantamento e hesitao, ligado certeza de que o presente lhe
pertence, o que move os habitantes da cidade.Para Max Weber, o emprego dos mtodos cientficos e a intelectualizao, que
geraram os progressos da tcnica, trouxeram como conseqncia a descrena do
homem nos poderes mgicos, nos espritos e nos demnios, ficando perdidos os
sentidos proftico e sagrado das coisas. Ele observa que assim como a racionalizao
ocidental exprime um desencanto do mundo, traduz tambm uma espcie de confiana
por assim dizer desarrazoada do homem em suas obras e criaes. Neste sentido ela
correlata da importncia crescente que assumem a tcnica e o artifcio que somos os
45SANTOS, Francisco Coelho dos. O Acaso das Origens e o Ocaso das Finalidades.1995. Em palestra proferidana disciplina de Teorias da Histria, no Mestrado em Histria, da PUCRS, pp. 1-11, p. 9.46FREUND, Julien.Sociologia de Max Weber.1987, Rio de Janeiro: Forense-Universitria, 4.. ed., p. 22.
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donos, diferentemente dos fenmenos naturais47.A modernidade produz e produto do
desencantamento.
A doena, que no sculo XIX, passa a ter um tratamento de fundamentao
racional e no mais uma correlao com a magia, estendeu-se cidade
48
. Pensou-se, nosculo XIX, que a crise urbana poderia ser sanada atravs da higienizao, por isso,
Pierre Lavedan, especialista em urbanismo, observou que a histria da cidade
oitocentista foi a histria de uma enfermidade49. Por sentir-se doente, essa cidade
depositou na tecnologia industrial as expectativas para curar-se e, assim, razo e
tcnica passaram a ser, paradoxalmente, encaradas, com f, como um caminho para a
salvao.
Seguindo os rastros da medicina social e do direito, que uniram-se para impor omesmo padro de comportamento ideal para a sociedade, arquitetos e urbanistas
trataram de arrumar a cidade para cur-la da desordem, que crescia como uma
doena viral e, por isso, a idia de civilizao eficiente tornou-se tambm sinnimo de
profilaxia. A preocupao com o saneamento ou com a higiene pblica atingiu todo o
meio urbano depois que prises e hospitais foram reconhecidos como focos principais
de doenas contagiosas, como a peste, a malria, a clera ou a tifide.
Foi no sculo XIX que ocorreram os primeiros investimentos em relao aoencanamento de gua e a construes arquitetnicas, que previam ambientes com
47FREUND. Sociologia de Max Weber.Op. cit., p. 109.48 A preocupao com a causa da disseminao das doenas contagiosas, a sua profilaxia e o tratamento maisadequado inquietavam os homens citadinos do sculo XIX. Norbert Elias, em seu estudo sobre os padres decomportamento que a civilizao ocidental adquiriu, ao longo dos sculos, em relao ao controle das funesnaturais como dormir, cuspir, urinar ou comer e o emprego ideal delas no meio urbano, observa que ossentimentos de vergonha e repugnncia, que temos hoje em dia, a cerca de tais necessidades fisiolgicas,deixaram de se concentrar na imagem de deuses ou influncias mgicas, como o era no sculo XVI, para adquirira partir do sculo XIX, atravs do conhecimento cientfico, a imagem de doenas e de seus bacilos. As medidas
de ordem higinica que foram tomadas na cidade oitocentista revelaram, alm de uma valorizao exacerbada nosdiagnsticos da cincia, a crena na importncia em homogeneizarem-se os comportamentos para poder aplicar-lhes leis mais claramente apreensveis. Ver: ELIAS. O Processo Civilizacional.Op. cit. Alm disso, as cidadespassaram a ser vistas como os principais lugares de irradiao e concentrao das doenas que afetavam acivilizao. No difcil deduzir que a associao de idias como controle de comportamento, profilaxia dedoenas e organizao higinica da cidade afetaram todos os setores organizadores da urbe, como as diretrizespolticas, o padro econmico, o planejamento urbano e arquitetnico, as estratgias da medicina, os projetostecnolgicos e a dinmica das relaes sociais.49Apud. MUMFORD, Lewis.A Cidade na Histria.Suas origens, suas transformaes, sua perspectivas.1965,Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada 12. ed., (2 Vols.), p. 677.
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muita ventilao para a entrada do sol, do ar e da luz e a planos urbansticos para
parques e jardins, que consideravam as reas verdes pblicas os pulmes que toda a
cidade necessitava ter.50
Assim, aos poucos, as ruas transformaram-se no palco, onde desenvolver-se-a acena do progresso industrial e do desenvolvimento. Na busca de um aproveitamento
mais alinhado dos prdios e das ruas da cidade desses tempos, evidenciou-se a opo
pela profilaxia civilizatria; ela ligou-se ao fato de existir um desejo de que a cidade
fosse a representao do xito do avano material atingido pela sociedade, mesmo
reconhecendo-se, concomitantemente, que no seria possvel negar-se que ela era
tambm o smbolo de desorganizao da aglomerao humana.
Fig. 01: A cidade como medida de progresso (fonte: Mirian Antonini, acervo pessoal)
50 No sculo XIX, no esqueamos, Pasteur provou que organismos microscpicos causadores de doenasmultiplicavam-se na sujeira e poderiam ser eliminados, em grande parte, atravs do uso da gua e sabo ou seexpostos ao sol. Seus estudos alteraram a concepo de ambiente externo e preveno de doenas, contribuindopara a padronizao de costumes e medidas profilticas. Sobre o assunto ver: MUMFORD.A Cidade na Histria.Op. cit., p. 604.
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interessante notar que, em cidades importantes ou capitais brasileiras, a partir
do sculo XIX, os cadernos intitulados Comisso de Construo e Melhoramentos do
Municpio, que reunia o fruto do trabalho de vereadores e urbanistas, ganham a partir
de 1890, mais um ttulo: Construo, Melhoramentos e Embelezamento doMunicpio.
O emprego da palavra embelezamento nos relatrios de tais comisses, no
por acaso: a funo era a de expressar o sentimento no qual estavam mergulhados os
cidados desse perodo, que viam a cidade tornar-se feia e deformada, apesar de ser
encarada tambm como pronta e construda. Melhorar e embelezar era crer que o
progresso, encarado como avassalador, destruiria o primitivo e implantaria o moderno.
Melhorar e embelezar, que aparentemente revelavam um objetivo libertador,terminaram por aprisionar o homem citadino em perseguir o que jamais se cumpriria
em sua plenitude.
Propiciou-se a fcil correlao do primitivo e do moderno com o velho e o novo;
para a cidade tornar-se bonita e, claro, limpa, era necessrio destruir ou suplantar o
velho as doenas, os esgotos a cu aberto, as ruelas esburacadas e cheias de poas
de chuva, os becos desalinhados, o trfego confuso entre carroas, cadeirinhas ou
tlburis, a trao manual exercida pelos negros, por exemplo. Arrumar tudo isso tornou-se um projeto do devir, mas no concretiz-lo gerou a frustrao. O homem da cidade
moderna desejava o novo, mas tinha que, obrigatoriamente, de conviver com a
tradio, muitas vezes irresolvel para a cincia.
Essa mesma situao processou-se no Brasil. Apenas com uma diferena
fundamental: em nosso pas, j que nascemos sob o signo da miscigenao, o velho e o
novo coexistem e no so incoerentes. Aqui o conflito transformou-se em mistura e
desejar a novidade sem saber se livrar do antigo apenas mais um dos elementos que,
somados ao nosso processo histrico-social, colaboram para fomentar o que temos de
especial: o equilbrio de antagonismos, como bem mostrou Gilberto Freyre, em Casa-
Grande & Senzala, ao analisar a gnese do nosso complexo cdigo de mestiagem que
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se expressa em todos os segmentos da formao nacional, seja na poltica, na
arquitetura, na urbanizao, na economia, na educao, na sociedade ou na religio. 51
Nosso hibridismo, alm de estar na congregao de diferentes etnias est
tambm, para o autor, ligado aos valores da famlia como unidade civilizadora, queestiveram presentes desde o incio da nossa formao social. Para ele, a famlia,
unidade que em sua origem estabilizadora pelos valores que carrega, aqui teve de ser
civilizadora e dinmica para ocupar espaos e transform-los. A famlia ocidental o
ncleo social mais conservador, mas no Brasil ela foi utilizada tambm como elemento
transformador e implantador de uma nova civilizao. Ela precisava ter esprito
aventureiro e audacioso, mas sem perder suas caractersticas fundamentais de
hierarquia rgida.Assim, o brasileiro esteve, desde a sua formao, mergulhado em uma
hibridizao de cdigos, que no o assusta e nem o intimida. uma mistura que, se
transportada para outras esferas dos nossos princpios ou padres, desvela o
comportamento sincrtico que temos diante do novo e do antigo, do tradicional e do
moderno, da nostalgia e da deciso, da festa e do trabalho, do preconceito de cor e da
miscigenao, da casa e da rua, da razo e do entusiasmo, da generosidade e da
perverso. Para o brasileiro, cada um desses lados permite esquecer o outro, comoas duas faces de uma mesma moeda. E no entanto, os dois fazem parte e constituem
expresses ou reflexes de uma mesma totalidade, de uma mesma coisa52.
na mistura de oposies, na hibridizao, que caracteriza nossa sociedade, que
podemos ver o projeto moderno. Sem desprezar a homogeneidade, conseguimos criar
diferenas culturais e religiosas, que se adaptaram ao projeto moderno dando-lhe uma
nova configurao, sem anul-lo.
Roger Bastide, a respeito da nossa uniformidade nas oposies, observou os
contrastes urbanos existentes entre So Paulo e Rio de Janeiro, e concluiu que, para
entender o Brasil, seria necessrio, em lugar de conceitos rgidos, descobrir noes de
51FREYRE. Casa-Grande & Senzala. Op. cit., p. 53.52DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil?. 1994, Rio de Janeiro: Editora Rocco, 7. ed., (primeira edioem 1984), p. 68.
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certo modo lquidas, capazes de descrever fenmenos de fuso, de ebulio, de
interpenetrao, noes que se modelariam conforme um realidade viva, em perptua
transformao.53
Para este autor, os contrastes em que vive o brasileiro podem ser vistos emqualquer lugar; pode ser s ruas, nas construes arquitetnicas, nas paisagens
marcadas e delineadas, ao mesmo tempo, pelo verde das montanhas e o azul das guas.
Dentro de um mesmo pas, o autor v duas cidades que se contrastam pela forma at
como seus habitantes conduzem o seu dia-a-dia. Em So Paulo a cidade que
endeusa o trabalho e que, dizem, nunca dorme o vagabundear (que raramente
acontece) d-se numa rpida escapadela s confeitarias para tomar de um s gole, em
p no balco, uma xcara de cafezinho54
.Num ritmo frentico, a cidade paulista no chega a reter recordaes ou imagens
do passado em seus conjuntos arquitetnicos: o cenrio sempre provisrio para que se
possa acompanhar as mudanas mundiais. Em So Paulo, construir e destruir so
apenas duas faces da mesma moeda; sem sentimentalismo, o importante estar atual.
No Rio de Janeiro, o autor diz que espera-se tudo da sorte, do acaso, do
imprevisto, e a especulao que move a classe mdia na busca da fortuna, o dinheiro
o novo Deus adorado no Brasil, sentencia. L, nos cafs, depois dos escritrios,grupos sentados s mesinhas buscam um bom negcio, um terreno que se compre para
vender pelo dobro no dia seguinte, um automvel velho que se remende para faz-lo
passar por novo...55
Drstica ou lentamente, com qualidade tcnica ou no, buscar a substituio do
antigo tem sido o savoir-vivre das cidades brasileiras. Dentro delas experimenta-se
constantemente o passageiro; se um novo produto ou uma nova inveno aparece, no
tardar muito para que o seu correspondente citerior seja logo considerado ultrapassado
ou antiquado sabemos do fato antes mesmo de que ocorra efetivamente o seu
53BASTIDE, Roger.Brasil, Terra de Contrastes. 1964, So Paulo: Difuso Europia do Livro, 2. ed., (Primeiraedio em 1957), p. 15.54BASTIDE.Brasil, Terra de Contrastes. Op. cit.,p. 136.55BASTIDE.Brasil, Terra de Contrastes.Op. cit., p. 145.
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desaparecimento definitivo da paisagem urbana. No entanto, por paradoxal que seja, de
maneira dinmica, o velho e o novo convivem simultaneamente, numa substituio
interminvel, em que para o antigo sempre haver a novidade at o momento desta
ltima logo tornar-se tambm passado.Entre a concepo de Freyre e a de Bastide a respeito do Brasil o primeiro
mostra o equilbrio de antagonismos e o segundo, a uniformidade nas oposies
no h discordncia; para eles, os fenmenos sociais brasileiros so originais porque,
apesar de vivermos sob o mesmo modo de civilizao em que vive o mundo ocidental,
temos peculiaridades que nos diferenciam e no nos excluem dele. Aqui, desde o
sculo XVI, a hibridizao de cdigos, a miscigenao, operou naquilo em que o
Ocidente possui e mais se orgulha de possuir: a racionalizao, o direito, o Estado-nao, a religio monotesta, o cientificismo, a vida urbana...
Num jogo imbricado, a modernidade brasileira do sculo XIX, que como iderio
queria realizar-se via modernizao das cidades com os equipamentos ingleses e
franceses, teve como contrapartida a vivncia urbana concreta, viabilizada pelos
elementos antigos e tradicionais, com caractersticas luso-brasileiras, que no momento
se faziam indesejveis. Como peas de um quebra-cabeas, a negao do antigo e a
inesperada miscigenao do novo com o antigo, foram se encaixando para dar forma aessa modernidade. Aqui a escravido no impossibilitou o desenvolvimento do
capitalismo industrial.56
Ao analisar o sculo XIX, Gilberto Freyre tambm tratou de um outro processo
de hibridizao e chamou-o de reeuropeizao. Foi o momento em que as atitudes
estiveram sempre voltadas para a recusa do passado e para a apologia do novo: o novo,
o padro ingls de vida, e o passado, a estrutura moral luso-brasileira. Esta passou a ser
56 No concordo com alguns autores que vem a abolio da escravatura, no final do sculo XIX, como oprimeiro passo para o Brasil ingressar no capitalismo e modernizar-se de vez, nos anos subseqentes. Taisautores, da vertente materialista, como Paul Singer, por exemplo, colocam que a eliminao da mo-de-obraescrava facilitou a introduo no pas de tcnicas industriais modernas e que, mesmo assim, a abolio daescravatura e a proclamao da Repblica no tiveram uma repercusso marcante sobre o capitalismo mundial,[j que] a nossa integrao na economia internacional era bastante parcial, durante o sculo passado e mesmodurante os trs primeiros decnios deste. SINGER. Paul. O Brasil no Contexto do Capitalismo Internacional.1889-1930. In: BORIS, Fausto (dir.).Histria Geral da Civilizao Brasileira. O Brasil Republicano.Tomo III,10volume, 4. ed., pp. 347-390, p. 350.
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rejeitada e negada e aquele, super valorizado. Dentro da cidade, alguns elementos
foram se tornando essenciais nossa vida, desde as vestimentas moda inglesa e
francesa como os chapus, os relgios, os vestidos para senhoras com cores sbrias e
discretas at o uso da carruagem e do bonde de trao animal, este ltimorepresentando a velocidade necessria vida urbana, at ser ultrapassado pelo bonde
eltrico.
A modernizao oitocentista reforou a lgica moderna de ignorar-se a mistura e
desejar-se, infinita e incansavelmente, o devir. Sempre em sintonia com os
acontecimentos mundiais, o Brasil viveu os efeitos mticos da modernidade, gerados
pela cincia e pela tcnica. (Jean Baudrillard diz que nem a cincia, nem a tcnica so,
elas mesmas modernas: so os seus efeitosque o so.57
)Depois da chegada de Dom Joo VI, o contato entre brasileiros e ingleses se
acentuou e misturaram-se, novamente, no Brasil o estilo de vida, a arquitetura e a moda
nacional e estrangeira58. Os servios urbanos, como iluminao, calamento e
saneamento, se aperfeioaram. Mau e os ingleses modernizaram a tcnica do
transporte. Os filhos das famlias ricas voltavam doutores formados da Frana, da
Alemanha ou da Inglaterra e peras italianas eram cantadas nos teatros. Os bares do
caf cresciam em importncia social. Era tambm a poca da abertura dos bancos, dacriao das companhias de navegao, das discusses abolicionistas, do engrossamento
das levas de imigrantes, da inaugurao das fbricas de cerveja, chapu, sabo,
57BAUDRILLARD. Modernit. Op. cit., p.31.58A Corte, impregnada pelas novidades inglesas e francesas, serviu de modelo s outras cidades do pas, no sna moda para os cavalheiros e damas, mas nas construes arquitetnicas ou alinhamentos urbanos, conformeafirmou a arquiteta Clia Ferraz de Souza: (...)Desde o incio do sculo 19, estava no Brasil e, em particular no
Rio de Janeiro, a Misso Artstica Francesa, que fundou a primeira Escola de Arquitetura - Grandjean deMontigny - expandindo os conhecimentos das tcnicas e arte francesas - cole des Beaux Arts. Mas somente apartir de meados do sculo 19, foi que essa influncia se generalizou por todo o Brasil, atingindo especialmenteprdios pblicos e de uso pblico como a Beneficncia Portuguesa, o Teatro So Pedro, para citar algunsexemplos de estilo neoclssico em Porto Alegre. De maneira geral, o aparecimento das platibandas em todas asconstrues uma das principais respostas dessa influncia, que passou a ser um elemento regulador daarquitetura.SOUZA, Clia Ferraz de. Morfologias e Tipologias Urbanas. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy(coord). O Espetculo da Rua. 1992, Porto Alegre: Editora da Universidade e Prefeitura Municipal de PortoAlegre, pp. 11-12, p. 11.
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tecidos..., confeccionados em outros tempos no interior das casas ou mandados vir da
Europa.
Juntamente com tantos avanos tcnicos, o movimento, a elasticidade e a
mistura se perpetuaram; numa congregao cuja a correlao conceitual mais adequada a festa.
Fig. 02: O estilo neoclssico da BenefIcncia Portuguesa, acompanhado do bonde a burro que percorria,ao longe, o meio da rua. (fonte: Mirian Antonini, acervo pessoal)
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2. OS TRAJETOS DOS BONDES E A TRAJETRIA HISTRICA DA
CIDADE
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Partindo do que foi tratado no captulo anterior, projetar e planejar os
itinerrios dos bondes tambm uma atitude que pode ser entendida como
profiltica, se se levar em conta que esta era uma forma de ordenar o trfego e
organizar de maneira mais "limpa" o rumo que os habitantes deveriam tomar paracircular dentro do espao urbano. O bonde era associado idia de cidade
maravilhosa, organizada e asseada. Ao v-lo passar, o habitante citadino podia
admirar-se com o desenvolvimento tecnolgico que sua cidade alcanara, e quando
nele andava, era participante e testemunha desse progresso.
Submeter-se s regras de conduta e comportamento exigidas pelos
motorneiros e cobradores no o intimidava, pelo contrrio, andar bem trajado, sbrio
e respeitador dentro do bonde o colocava em harmonia com a inteno maior dacidade. As regras de boa conduta ordenavam: Os conductores de bonds no
consentiro em seus carros, pessoas vestidas ou trajadas sem a necessaria
decencia, ou em estado de embriaguez, e nem proferindo palavras ou gestos
offensivos moral publica.
Alm disso, das grandes janelas ou aberturas do bonde o passageiro podia
observar os antigos, mas resistentes, meios de transporte a carroa, o cavalo, as
carruagens, etc. e sentir-se orgulhoso e superior. No entanto, por outro lado, o
desconhecido a mquina causava-lhe medo e insegurana.
Tais consideraes, aqui generalizadas, se enfocadas um pouco mais para
anlise do Brasil urbano no sculo XIX, mostram que em nosso pas o
desencantamento, o fascnio e o medo, advindos da modernizao, se traduziram em
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dois aspectos: o primeiro foi o de deixar mostra a diferena entre a tecnologia mais
antiga a mo-de-obra escrava e a mais recente o uso da mquina industrial.
O avano da industrializao fez a aristocracia rural e a populao da cidade
fascinarem-se mas tambm resistirem inicialmente s mquinas e a demorarem-se adeixar de utilizar a conhecida e familiar mo-de-obra escrava para o trabalho. Por
isso, mesmo impondo a novidade, a industrializao no impossibilitou, a princpio,
a convivncia simultnea entre o que j poderia ser considerado passado e a
expectativa do que j era futuro: em nossas cidades, a introduo de tcnicas
industriais ocorreu, de maneira hbrida, reforo, com a escravido.
No tocante ao desenvolvimento tecnolgico brasileiro deste perodo, Gilberto
Freyre, ao comentar a impactante substituio do escravo pelas mquinas nascidades brasileiras, conta que durante as primeiras dcadas do sculo passado, na
poca em que na Europa ocidental e nos Estados Unidos j comeava o declnio do
cavalo, do burro e do boi como animais de trao e sua substituio pela trao a
vapor, na antiga capital do Brasil cidade da maior importncia comercial, e no
apenas poltica, entre as do Imprio a trao humana no s no fora ainda
superada pela animal como continuava quase a nica. No se enxergavam cavalos
nem burros. Nem carruagens nem carroas. S palanquins.Mas, por outro lado, embasbacados com os produtos ingleses, sempre em
hibridizao, os brasileiros passaram a valorizar a velocidade, a mquina, a fora
mecnica, o "antinatural". Segundo Gilberto Freyre, no Rio de Janeiro, as prprias
carruagens foram se distanciando, em estrutura e forma de palanquins e liteiras
para se tornarem, cada dia mais "trens", "mquinas", obras de mecnica ou de
engenharia que ao conforto e s vezes ao luxo dos forros de veludo e das lanternas
de prata juntavam capacidade de rodarem com extrema velocidade pelas ruas e
pelas estradas.
O gosto pela velocidade apoderou-se de no raros brasileiros, como um
demnio, fazendo de alguns quase uns endemoniados.
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Ao confiar cegamente na eficcia dos produtos ingleses e franceses, a
populao urbana deste perodo, se viu envolvida concretamente em uma fase de
transio, que evidenciou ainda mais a mistura entre o novo e o antigo.
Fig. 03 : Bondes: elementos modernizadores e modernizados. A legenda diz: "Essa comparao
mostra claramente o tempo economizado pelos moradores da Tijuca graas aos transportes modernos e esse
tempo ganho em todas as linhas modificou sensivelmente o rythimo da vida e da cidade. (anncio da revista
Ligth de 1932, fonte: STIEL. Histria do Transporte Urbano no Brasil.1984, Braslia: Editora Pini Ltda, p. 312)
Neste cenrio surgiu na Corte a maxambomba, primeira diligncia sobre
carris, sob a responsabilidade da Companhia de Ferro da Tijuca.
Como uma promessa de algo novo, este meio de transporte serviria para
superar os outros, que passaram a ser considerados inferiores a ela e, portanto,
inadequados para o desenho modernizador que se pretendia alcanar poca.
Quando a maxambomba foi substituda pelos bondes puxados a burro, ou quando
estes mais tarde foram colocados em escala de comparao aos de trao eltrica, odiscurso sobre o novo repetiu-se. A cada tentativa ou experincia de um meio de
transporte diferente vivia-se a sensao da entrada em uma nova era. O desejo,
sempre implcito, era o de sepultar a tradio e avivar a novidade.
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Com sensibilidade, um escritor, ao tratar da chegada do bonde em sua cidade,
soube expressar bem essa mistura de fascnio e medo que os novos inventos traziam:
Uma febre de curiosidade tomou as famlias, as casas, os grupos. Como seriam os
novos bondes que andavam magicamente, sem impulso exterior? Eu tinha notciapelo pretinho Lzaro, filho da cozinheira de minha tia, vinda do Rio de Janeiro, que
era muito perigoso esse negcio de eletricidade. Quem pusesse os ps nos trilhos
ficava ali grudado e seria fatalmente esmagado pelo bonde. Precisava pular. (...)
Um amigo de casa informava: O bonde pode andar at a velocidade de nove
pontos. Mas, a uma disparada dos diabos. Ningum agenta. capaz de saltar
dos trilhos e matar todo mundo...
No entanto, nas dcadas seguintes, lentamente, um novo ritmo de trabalho ede produo imps-se com a substituio definitiva do negro pelo animal e pela
mquina a vapor, das cadeirinhas, tlburis, carroas e carruagens pelo bonde, do
modelo de vida portugus pelo ingls e francs. Mas por quase um sculo a
admirao e a avidez do brasileiro pelo produto estrangeiro conviveram lado a lado
com o seu conservadorismo escravista. Nas cidades brasileiras, negros, carregadores
dos fedorentos tigres, dividiam a rua com o bonde, de modelo ingls, puxado por
mulas; enquanto elegantes e velozes carruagens eram pilotadas por escravoscastigados e estafados.
A crena exacerbada nos poderes da cincia, do direito, ou dos plantas
urbansticas, como elementos redentores do nus da civilizao, transformou a
cidade do sculo XIX no espao da racionalizao e da tcnica; e tais elementos
passaram a ser entendidos como elementos possibilitadores das melhorias urbanas
em relao infra-estrutura; mas essa mesma razo e essa mesma tcnica
terminaram por trazer tambm, para o habitante da cidade, um amargo e nostlgico
sentimento de ingenuidade perdida, ou da infncia que se vai e no pode mais
retornar. O ritmo frentico da mquina era, ao mesmo tempo admirado e temido e
trazia uma sensao de perda e de desencantamento.
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Existiam, nestas intenes modernizadoras, alguns propsitos que sempre
foram buscados e desejados, mas que nem sempre foram atingidos. No Brasil, em
especial, os ventos da modernizao e da tecnologia, associadas aos modelos ingls
e francs de vida, fizeram soprar uma rejeio drstica ao antigo ou ultrapassado, oudaquilo que estivesse materialmente associado energia animal ou manual, como no
caso dos meios de transporte; e fez, por outro lado, acender um desejo de viver
intensamente a venerao pelo progresso, corporificado no produto novo, vindo do
exterior. Foi o desvio (no sentido dado por Edgar Morin) desse momento as
formas tradicionais de meio de transporte, como a cadeirinha ou as carruagens
que gerou a possibilidade de se buscar o melhor para a cidade o bonde. Assim, se
evidenciou a complexidade das relaes entre a tradio e a modernidade, nas quaisesta ltima fez com que a primeira fosse reconhecida, apercebida, mas negada.
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Fig. 04 e 05: Entrecruzamento: charretes, postes eltricos, trilhos de bonde e prdios de estilo
arquitetnico conforme a tendncia da poca, no mundo ocidental. (fonte: Mirian Antonini, acervo pessoal)
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2.1 DOS CAMINHOS E DOS TRILHOS NUM PORTO ALEGRE
a partir desse contexto que a histria da cidade de Porto Alegre tambm
pode ser estudada. Analisando, em linhas gerais, a formao e o desenvolvimento da
nossa cidade, observamos que ela no fugiu ao tipo de organizao e da lgica em
que se fundaram as outras cidades ocidentais, no contexto histrico dos sculos XVI
e XVII. Ela j nasceu moderna, em seu esquadrinhamento urbano e nos seus ideaisurbansticos: as defesas, assentadas em fortificaes ou trincheiras, mesmo que
feitas de pau-a-pique, reservavam dentro de si a sua base institucional que regulava
as decises polticas, econmicas e sociais da urbe as igrejas, ou as capelas, e as
cmaras municipais, ou as intendncias.
A ponta da pennsula foi cercada, distncia, na beira do Jacu, pelo Forte de
Santo Amaro, a sudeste pelo presdio Jesus-Maria-Jos, criado em 1737, em Rio
Grande e mais ao norte pela fortificao de Rio Pardo. Tais fortalezas serviram paracombater ou evitar o avano espanhol. Alguns anos mais tarde, Jos Marcelino, a
quem coube organizar o povoamento, tambm mandou erguer trincheiras elevadas,
em torno do que acabaria por ser o permetro urbano de Porto Alegre.
Devido preocupao de possuir politicamente, de forma definitiva, o
extremo-sul do Brasil, houve o envio de famlias de aorianos, em 1752, para povoar
o que anteriormente pertencia aos espanhi