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CESALTINA CADETE BASTO DE ABREU
SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA: da realidade à utopia.
Trabalho apresentado ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do grau de Doutora em Sociologia.
Banca Examinadora: Maria Celi Scalon (Presidente) José Maurício Domingues (Orientador) João Feres Jr. Carlos Serrano Marcelo Bittencourt
Rio de Janeiro 2006
Livros Grátis
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Para o Hugo, meu filho Com a esperança de um futuro melhor!
Em memória de Mário Adauta e José Negrão
Persegui, neste trabalho, o vosso ideal de novos modos de produzir conhecimento.
Mukanda* de Agradecimento
Seis anos se passaram desde 13 de Março de 2000, quando iniciei a pós-graduação em Sociologia. Muita coisa aconteceu desde então, e muitas foram as instituições e as pessoas que me estimularam, ajudando-me de diversas maneiras a enfrentar o desafio. Ao IUPERJ, o meu profundo reconhecimento pela oportunidade concedida, o ambiente de estudo, o apoio nas áreas de secretariado, biblioteca, computação. Agradeço aos professores o ambiente de abertura ao debate de ideias e à troca de experiências. Um especial “muito obrigada” (com aspas, professor...) ao meu orientador, José Maurício Domingues, pelo estímulo das suas provocações e pela infinita paciência em ler meus longos arrazoados... À CAPES pela outorga da bolsa de estudos para o curso de Doutoramento... À minha família, pelo amor, carinho e apoio que me permitiram superar os obstáculos e encontrar os caminhos para chegar até aqui... Aos amigos que, apesar das ausências e dos silêncios prolongados, me têm privilegiado com o seu apoio e solidariedade... Aos colegas das atividades acadêmicas e profissionais, pela partilha de conhecimentos e experiências que me permitiu crescer como pessoa. Em especial, aos parceiros do Instituto de Pesquisa Econômica e Social (A-Ip), pela amizade e cumplicidade num projeto que tem tudo para dar certo, apesar dos percalços de percurso... Entendo este trabalho como uma modesta contribuição para a busca dos caminhos do futuro no meu país, Angola. Se as suas fundações remetem à produção acadêmica, em especial do hemisfério sul, a construção da tese foi possível graças às opiniões dos participantes na pesquisa de campo. Tomara que tenha conseguido descodificar as mukandas de todos os que aceitaram fazer parte deste projeto, e a quem apresento os meus sinceros agradecimentos. Cesaltina Abreu. * “mukanda” significa mensagem em “angolês”!
INDICE
INTRODUÇÃO...............................................................................................................1
CAPÍTULO 1 – ANGOLA E A MODERNIDADE
I – INTRODUÇÃO: para além da modernidade e da tradição........................................21 II – A TRAJETÓRIA ANGOLANA 1. Marcos históricos.........................................................................................................28 2. O ambiente institucional e o quadro jurídico angolano...............................................30 III. NOS CAMINHOS DA MODERNIDADE 1. Discutindo a Modernidade...........................................................................................38 2. “Fim da História”, “Choques de Civilizações” ou “Encontros Civilizacionais”?......39 3. Modernidade e civilização...........................................................................................44 4. Buscando subsídios na discussão sobre globalização..................................................47 5. Um quadro teórico desejável.......................................................................................49 CAPÍTULO 2: A SOCIEDADE CIVIL EM DEBATE I – INTRODUÇÃO.........................................................................................................52 II. O DEBATE ATUAL SOBRE SOCIEDADE CIVIL 1. Como a sociedade civil progressivamente se diferenciou do Estado..........................57 2. As tendências nos debates atuais sobre sociedade civil..............................................62 2.1. A corrente liberal......................................................................................................62 2.2. A corrente marxista..................................................................................................64 2.3 A corrente habermasiana...........................................................................................66 2.4. A sociedade civil e o socialismo real.......................................................................72 2.5. Discursos do oriente.................................................................................................74 2.6. África Subsahariana..................................................................................................76 2.7. A sociedade civil global...........................................................................................80 III. A VALIDAÇÃO DO CONCEITO............................................................................82 IV. A CONSTRUÇÃO DO PÚBLICO EM ANGOLA 1. O Debate sobre Sociedade Civil..................................................................................86 2. Os dilemas da Participação em Angola.......................................................................91 3. Subsídios para um quadro teórico da sociedade civil em Angola...............................93 CAPÍTULO 3 – OS DISCURSOS DA SOCIEDADE CIVIL I.INTRODUÇÃO...........................................................................................................96 II – O QUADRO TEÓRICO PARA ANÁLISE DOS DISCURSOS 1. A teoria do discurso....................................................................................................97 2. Aspetos metodológicos da discussão.........................................................................101 III – IDEOLOGIAS E UTOPIAS NOS DISCURSOS CONTEMPORÂNEOS SOBRE SOCIEDADE CIVIL. 1. Ideologias e utopias inscritas nas representações discursivas...................................106 2. Sociedade Civil no discurso neoliberal.....................................................................109 3. Desconstruindo o discurso dominante......................................................................116 4. A oposição à ideologia neoliberal ............................................................................119
IV – O QUADRO PARA A ANÁLISE DOS DISCURSOS SOBRE A SOCIEDADE
CIVIL EM ANGOLA...................................................................................................124
CAPITULO 4 - A SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA: contribuições da pesquisa de campo. I. INTRODUÇÃO........................................................................................................132
II. IMAGENS, CONTORNOS E PAPÉIS DA SOCIEDADE CIVIL.........................136
1. Os entendimentos sobre sociedade civil...................................................................139 2. Critérios de inclusão ou de pertencimento................................................................142 3. Os Papéis atribuídos à sociedade civil......................................................................146 4. Relações dos participantes com a sociedade civil.....................................................148 5. Relações entre os constituintes da sociedade civil....................................................149 6. Dinamismo e visibilidade da sociedade civil............................................................150 7. Satisfação com o desempenho da sociedade civil.....................................................153 8. Influência do contexto angolano na sociedade civil..................................................154
III. ELEMENTOS DA CULTURA CÍVICA EM ANGOLA
1. Interesse e participação na política............................................................................155 2. Confiança nas pessoas e nas instituições...................................................................161 3. Ação coletiva.............................................................................................................165 3.1. Associativismo........................................................................................................165 3.2. Ajuda Mútua e Solidariedade.................................................................................168 3.3. Relações de Vizinhança..........................................................................................169 IV – EM JEITO DE CONCLUSÃO..............................................................................169 CAPÍTULO 5 – A SOCIEDADE CIVIL COMO MOTOR DA MUDANÇA I. INTRODUÇÃO.........................................................................................................173 II. O ESTADO E A SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA, SEGUNDO OS PARTICIPANTES NA PESQUISA.............................................................................176 III. INSATISFAÇÃO E MUDANÇA. Descodificando mensagens endereçadas à sociedade civil. 1 – Dimensionando e qualificando a insatisfação.........................................................180 2 – Pacificar os espíritos, articular plataformas: a consolidação da Paz como prioridade primeira..........................................................................................................................183 3 – Os caminhos da mudança........................................................................................187 4 - Combate à Pobreza...................................................................................................193 5 – Necessidade de democratização ou mera insatisfação?...........................................195 IV – ARTICULAÇÕES E MEDIAÇÕES 1. As Igrejas e entidades religiosas................................................................................197 2. Os Meios de Comunicação........................................................................................199 3. As Autoridades Tradicionais e o poder local.............................................................201 V. ENTRE O PODER DO ESTADO E A VULNERABILIDADE DA SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA....................................................................................................208 CAPÍTULO 6 – 212 PÁGINAS DEPOIS ... QUE CONCLUSÕES?......................213 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................234 BIBLIOGRAFIA ADICIONAL SOBRE MÉTODOS DE PESQUISA.......................250 SOBRE ANGOLA (Bibliografia não citada)................................................................250 ANEXO METODOLÓGICO (37 páginas) e MAPA de ANGOLA.
Apresentação No momento de paz militar que se vive em Angola Após décadas de guerra civil, são frequentes as referências à sociedade civil e ao seu papel na reconciliação nacional e na construção da paz social, por parte de atores estatais e não-estatais. A tese foi concebida como uma contribuição para o conhecimento da sociedade civil em Angola, sua constituição e papéis. A metodologia combinou pesquisa bibliográfica e uma pesquisa de campo realizada em 3 cidades, Luanda, Benguela e Malanje, envolvendo 169 participantes distribuídos por 8 categorias de análise (associações de diversa natureza, ONG’s, meios de comunicação social, entidades religiosas, poder local, setor informal, mulheres e jovens). A tese defende um quadro teórico multidimensional em que a teoria da modernidade articulada mista, com alguns subsídios, se mostra a mais adequada à análise da relação de Angola com o tempo do mundo, e uma combinação das teorias da sociedade civil, enquanto vida associativa independente do Estado, do mercado e da família, e da esfera pública, chamando a atenção para a importância da institucionalização do acesso e uso efectivo dos direitos de liberdade de expressão, de reunião, associação, de proteção da privacidade e da integridade pessoal para o exercício formal da influência sobre os processos de tomada de decisão. Esta perspectiva permite, ainda, perceber o papel de diversos atores sociais que, integrando ou não a sociedade civil, constituem instâncias de intermediação e de diálogo entre os atores da sociedade civil e o Estado e o Mercado.
INTRODUÇÃO
A escolha do tema para a tese de doutoramento, a sociedade civil em Angola, surgiu na
continuidade da reflexão iniciada no mestrado sobre o conceito de participação em
Angola, mais especificamente em áreas de intervenção do Fundo de Apoio Social (FAS)
no sudoeste angolano, que combinou pesquisa bibliográfica e pesquisa de campo. As
conclusões daquele trabalho sugeriam que, apesar de todos os constrangimentos
impostos pelo contexto angolano, particularmente a prolongada guerra civil e a
prevalência de um regime político autoritário desde a independência e que pouco se
democratizou realmente após as reformas dos anos 90, a centralidade da ideia de
participação na construção da filosofia de intervenção do Fundo fez a diferença. O
protagonismo reservado às instituições locais no processo de identificação, priorização,
execução, funcionamento e manutenção dos projetos comunitários financiados, e a
criação de interfaces de diálogo e concertação social com outros atores sociais, entre
outros factores, permitiram superar as limitações intrínsecas à intervenção do próprio
FAS e os impactos negativos da guerra civil, e tiveram como efeito o aumento da auto-
estima nas comunidades pobres, uma maior visibilidade dos problemas que elas
enfrentam e o envolvimento de outros atores sociais na busca de soluções.
A partir destas constatações, impunha-se identificar os caminhos que permitissem
aprofundar o conhecimento das representações sociais de atores angolanos, a
insatisfação pelo estado das coisas no país, o desencanto em relação aos rumos
imprimidos após a independência, a ausência de perspectivas de progresso e bem estar
para todos num ambiente de acomodação e respeito pela diversidade cultural de Angola,
e também o desejo de inserção nas oportunidades de desenvolvimento global,
reivindicando maior inclusão no processo de tomada de decisão e criação de instâncias
de participação. Por outro lado, a experiência profissional de 3 décadas de trabalho em
diversos níveis da administração do Estado, das fazendas e comunidades de base ao
gabinete do Primeiro Ministro, passando por serviços técnicos do aparelho ministerial e
uma instituição pública de financiamento de projetos em comunidades carentes,
orientava a procura desses caminhos numa esfera de relações sociais exterior ao
aparelho do Estado e ao sistema político, na qual a criatividade e a inovação dos
cidadãos e das organizações e grupos por eles criados, permitisse vislumbrar saídas para
a crise que caracterizou, e ainda caracteriza, a realidade angolana.
A aposta na capacidade criativa e na persistência das lutas dos atores sociais angolanos
com vista ao alcance de uma sociedade mais justa e equitativa, conduziu à identificação
da sociedade civil como objetivo de estudo, em busca de um espaço de intervenção e de
participação com capacidade de influenciar as políticas públicas e as decisões em
relação ao futuro. As questões identificadas para organizar a pesquisa desse estudo
foram essencialmente as seguintes: faz sentido falar de sociedade civil em Angola? O
que significa sociedade civil para os angolanos, qual o sentido mais comum atribuído ao
conceito? Será que os diversos atores sociais angolanos atribuem sentidos próximos,
convergentes ou semelhantes à sociedade civil? Qual o papel da sociedade civil na
Angola de hoje? O potencial mobilizador nessa ideia de sociedade civil é mais
ideológico ou mais utópico? Existem distinções nos sentidos inscritos nas opiniões entre
as 8 categorias de análise (entidades religiosas, associações cívicas / culturais /
desportivas, ONG’s/associações profissionais, meios de comunicação social, poder
local, setor informal, mulheres e jovens) e entre as 3 cidades abrangidas pela pesquisa?
Que razões (se as houver, ou melhor se for possível identifica-las) podem ser apontadas
para essas distinções?
1.
A concepção da tese, incluindo a discussão do enquadramento teórico do tema e o
desenho da pesquisa de campo1, partiu do pressuposto que as ideias e as práticas
relacionadas com a sociedade civil em Angola exprimiriam as experiências, as
limitações e os constrangimentos herdados / derivados da história recente do País,
designadamente a independência política em 1975 após séculos de dominação colonial,
a instauração de um regime marxista-leninista durante a I República (1977 a 1991), e a
prevalência de um estado de guerra civil (com alguns períodos de trégua pelo meio)
desde a independência até Abril de 2002, quando foi assinado o Tratado de Paz entre o
governo de Angola e a UNITA (União para a Independência Total de Angola), maior
partido da oposição.
A recente mudança no cenário político em Angola, com uma aparente solução militar
para um conflito que persistia desde antes da independência em Novembro de 1975, deu
lugar a uma nova etapa que se anuncia sob o lema da reconstrução e reconciliação
nacionais. Embora ainda não pareça definido um programa que guie a transição do país
1 A pesquisa de campo é apresentada no Anexo Metodológico a esta tese.
da guerra para a Paz, e muito menos um projeto de construção da nação angolana a
partir das subjetividades coletivas constituídas após a independência num ambiente de
guerra civil, parece que qualquer caminho a seguir pressupõe mudanças institucionais e
de valores mais ou menos profundas, produzidas internamente, e também pressionadas
pelas dinâmicas regionais e internacionais nas quais Angola se encontra inserida.
Cansada de guerra e em busca da superação das inúmeras distorções herdadas do
colonialismo, e não corrigidas após a independência, a sociedade angolana dá sinais de
se constituir no principal motor dessas mudanças.
Trinta anos após a independência política, os angolanos ainda não se sentem cidadãos
no seu país, pelo menos não ainda de forma ampla, inclusiva. Basta lembrar a grande
quantidade de pessoas ainda deslocadas das suas áreas de origem, ainda refugiadas em
países vizinhos, desmobilizados de guerra, mutilados de guerra, orfãos e viúvas ainda
não integrados na sociedade, para não ampliar a lista com as muitas comunidades
“remotas”, o público primordial de Ekhe ou os sujeitos de Mamdani, sofrendo as
consequências de um distanciamento não apenas geográfico, antes de não inclusão
efectiva no processo de construção da nação. A sociedade angolana permanece refém de
um passado recente, no qual o discurso político foi bipolarizado pelos dois protagonistas
da guerra civil, a vida quotidiana militarizada, e a sociedade silenciada. E três anos após
a assinatura do Acordo do Luena, um cessar-fogo assinado pelas mais altas patentes do
exército angolano e das forças militares da UNITA numa demonstração que a chave
para a solução do prolongado conflito angolano era militar, parece oportuno reflectir
sobre o atual momento que o país vive.
A opção por um modelo de desenvolvimento socialista, apresentada como inevitável
dado o contexto da guerra fria no âmbito do qual Angola foi um dos palcos do
confronto entre os ex-blocos capitalista e socialista, não só não corrigiu tais distorções,
como contribuiu para exacerbar conflitos sociais e culturais, muitas vezes com base em
argumentos étnicos ou raciais, resultantes da colonização e formação de um estado
colonial pela anexação dos diversos reinos que existiam no espaço geográfico que hoje
corresponde ao país Angola, com conseqüências políticas, sociais e econômicas
evidenciadas pelo elevado nível de exclusão social e pela igualmente crescente
desigualdade social, privilegiando uma pequena minoria e lançando a grande maioria da
sua população numa situação de pobreza bastante acentuada.
Essas experiências vivenciadas pela sociedade angolana foram então entendidas como
limitações e constrangimentos ao desenvolvimento de um espaço público aberto e plural
capaz de fortalecer a cidadania e dar oportunidade ao surgimento de uma sociedade civil
com condições para interpelar o Estado e o mercado, na luta pela afirmação de direitos
políticos, sociais e civis, de influenciar a agenda pública e as políticas do governo, e de
colocar limites à expansão do sistema capitalista. Devido ao fechamento ao exterior e ao
controle do espaço público por ocupação pelo Estado, colonial e pós-independência,
assumiu-se que as ideias dos atores sociais relacionadas com o conceito de sociedade
civil seriam influenciadas por entendimentos de formas de ação coletiva com base em
solidariedades e responsabilidades sociais circunscritas a círculos restritos de grupos ou
comunidades.
As mudanças promovidas pela abertura do sistema político ao multi-partidarismo e a
passagem de um modelo econômico baseado na centralização da planificação
econômica e da gestão pública, para um modelo de “economia aberta de mercado
regulado”, produziram mudanças que não encontraram terreno propício à consolidação
de um novo quadro institucional plasmado nos ideais democráticos devido,
principalmente, ao reacender da guerra após as eleições de 1992. Mais uma vez, a
sociedade angolana se viu confrontada com um problema maior, o da guerra civil, e
priorizou a busca pela Paz, colocando em plano secundário a discussão sobre o país que
os angolanos desejam criar. E, nesse interim, reapareceram ou surgiram organizações
sociais e religiosas que ao apontarem a via do diálogo como o caminho para a solução
do conflito, procuravam afirmar-se na arena política, reivindicando participação num
processo do interesse de todos, mas que desde sempre foi reservado aos representantes
das partes em guerra. Como as únicas instituições que se mantiveram independentes do
Estado, as Igrejas assumiram o papel de porta-vozes da população, uma vez que as
organizações sociais tinham muitas dificuldades para se manifestarem no espaço
público controlado pelo Estado.
Mas o desfecho da guerra foi militar, e não negociado. A mensagem passada à
sociedade e ao mundo é a de que os atores que optavam pelo diálogo político
“desconseguiram” criar o clima favorável à resolução negociada dos conflitos de
interesses em jogo desde a luta anticolonial. Existe na sociedade a percepção de que a
guerra tem antecedentes em conflitos cuja gênese remete ao período da luta anti-
colonial: os três movimentos de libertação nacional organizaram-se em torno de
distintos interesses de grupos, as elites mestiças de Luanda, a aristocracia do norte, e
uma suposta base dos grupos étnicos do centro-sul do país mobilizada em torno da
divergência da sua liderança (Jonas Savimbi) em relação aos outros dois movimentos
(aos quais havia pertencido e dos quais saiu ou foi expulso), que no decorrer do tempo
se foi radicalizando, tornando cada vez mais remota a possibilidade de uma
aproximação em nome dos mais altos interesses da nação. Em consequência, Angola
talvez seja o único Estado do mundo que teve duas proclamações de independência no
mesmo dia, em dois locais distintos, protagonizadas por lideranças dos movimentos de
libertação: em Luanda pelo MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), e no
Huambo, pela efêmera coalisão entre a UNITA (União para a Independência Total de
Angola) e a FNLA (Frente Nacional para a Libertação de Angola). A saída da FNLA da
cena da guerra civil criou as bases para a bipolarização do discurso político em Angola,
que ainda prevalece.
E o país enfrenta agora o desafio de cicatrizar as feridas de guerra que se sobrepuseram,
em camada, às sequelas do colonialismo. Neste processo, cabe indiscutivelmente ao
Estado um papel fundamental, restando saber qual a intervenção das organizações da
sociedade nesta fase de consolidação da Paz, uma vez que a sua exclusão formal das
diferentes etapas de negociação entre as partes em guerra retirou-lhes protagonismo,
mas não o papel de mecanismos de pressão, que a história reconhecerá. Apesar de
alcançada a Paz militar, a reconciliação nacional e a abertura do espaço público capazes
de promover a Paz social, mantêm-se como objetivos adiados. Embora o discurso
oficial conclame a participação de todos os angolanos na reconstrução nacional, o
processo de tomada de decisão mantêm-se fechado no executivo, em particular na
presidência, e a visibilidade e voz das organizações sociais e religiosas permanece num
plano secundário, lutando por oportunidades e espaços de participação, num cenário que
glorifica os militares e as lideranças dos partidos que protagonizaram a guerra, esbate os
demais integrantes do sistema político, e mostra o discurso político bipolarizado em
torno dos dois partidos, MPLA e UNITA.
Quanto às organizações e aos cidadãos que se mobilizaram para exigir o final do
conflito armado pela via do diálogo amplo2 envolvendo representantes de todas as
camadas e grupos sociais, cabe agora a reavaliação das suas pretensões de participação
nesta nova etapa de construção da Paz social. Isso implica a sua reorganização para
confrontar o regime político com as exigências de inclusão na discussão, aberta e
nacional, dos inúmeros problemas que o país enfrenta e na busca das soluções para os
mesmos, entre os quais a definição dos caminhos que coloquem Angola na trilha do
desenvolvimento, entendido como projeto nacional orientado para a democratização
social, política e econômica, e ampliação da cidadania a todos os angolanos, ancorado
na criatividade e na coragem inovadora de procurar seu próprio caminho. E isto exigirá
a negociação de plataformas de diálogo entre o Estado e a sociedade, no âmbito de uma
ampla coalizão que resultaria, segundo algumas opiniões, da realização de uma
Conferência Nacional com poderes instituintes, como primeiro passo para um processo
de reconciliação nacional que, a partir da discussão crítica das causas do prolongado
conflito armado entre os angolanos, lançasse os alicerces da construção de uma história
comum na qual todos se reconhecessem, com vista a projetar um futuro comum.
2.
A construção da sociedade civil em Angola vem acontecendo por etapas determinadas
pelas relações entre atores estatais e não-estatais, que criaram oportunidades e
constrangimentos ao seu desenvolvimento e afirmação. As mais evidentes aconteceram
durante a dominação colonial na mobilização social que conduziu ao movimento
nacionalista pela independência nacional, nos dois primeiros anos após a independência
nacional, depois da tentativa de golpe de Estado de 27 de Maio, no decurso da vigência
do regime marxista-leninista, na implementação do Acordo de Bicesse entre 1991/2,
após o reacender da guerra depois das primeiras eleições gerais no país, na
implementação do Acordo de Lusaka em 1994, após mais um reacender da guerra em
1998, e depois da assinatura do Acordo do Luena em 2002. Não constituindo objeto
desta tese a análise da história de Angola, é mister recorrer a esses momentos como
2 Os apelos à busca da Paz pela via negocial que nas últimas décadas mobilizaram o discurso político em Angola, protagonizados por Igrejas e organizações e grupos de cidadãos, meios de comunicação social e individualidades,
deixavam transparecer em muitos casos, uma proposta implícita de recriação das formas tradicionais de debate e de tomada de decisão nas sociedades africanas, conhecido em Angola como “Ondjango”. A imagem do Ondjango é a de
um espaço aberto onde “mais velhos” e “notáveis” se reúnem para analisar e decidir relativamente a problemas relacionados com a vida coletiva, de interesse da comunidade. A particularidade é que, para além dos diretamente envolvidos na sessão, os demais membros da comunidade, os passantes, têm a oportunidade de ouvir e participar,
indiretamente, nesse processo de tomada de decisão que é assim tornado público.
quadros de referência das relações de forças entre os atores no poder e a sociedade em
geral, para permitir a compreensão das oportunidades criadas por alguns dos
acontecimentos acima referidos, e dos impactos negativos que alguns deles tiveram na
constituição e fortalecimento da sociedade civil em Angola.
Esta análise não seria completa se não tivesse em conta a participação de atores
externos, tanto ao nível das instituições supranacionais, quanto ao nível de organizações
estrangeiras, particularmente as ONG’s (organizações não-governamentais), que em
diversos momentos da vida do país independente contribuíram para a construção social
das representações sobre a sociedade civil em Angola, criando oportunidades para
fortalecer, dar visibilidade e voz aos seus atores, tanto interna quanto externamente.
Mas também influenciaram as visões de “si” e dos “outros”, a partir da “transposição”
de agendas, prioridades, estratégias e práticas dos seus países de origem, ou das suas
organizações-mães, e respectivos quadros de referência, sem a preocupação de
promover as condições necessárias à manifestação dos valores, entendimentos e
expectativas locais, e a identificação das estratégias e dos programas e projetos mais
adequados ao contexto e ao momento. Os mecanismos de ajuda ao desenvolvimento, e
mais ainda, da assistência humanitária de emergência, constituíram-se em instrumentos
preferenciais para condicionar o acesso aos recursos financeiros, técnicos e materiais
disponíveis, à adopção de discursos e práticas da sociedade civil nos seus distintos
entendimentos, mas predominantemente na visão neoliberal da sociedade civil sem
cidadania, atropelando prioridades locais, ignorando formas de estar e agir, e processos
de tomada de decisão e de participação alicerçados nos sistemas de valores culturais
locais.
A inserção do país no sistema internacional das Nações, também criou oportunidades
para o fortalecimento e visibilidade da sociedade civil em Angola que, após a
independência, foi um dos palcos da guerra fria devido à sua localização estratégica na
geopolítica do Atlântico-Sul, ao enorme potencial em recursos naturais do seu território,
e à ameaça que constituiria para o ocidente (e em particular para alguns países do
continente, nomeadamente África do Sul, a então Rodésia, e o então Zaíre) a
concretização do ideal revolucionário de mudança social do programa do movimento
nacionalista.
Este constrangimento externo, aliado à mudança radical que se operou internamente
após o golpe de 27 de Maio de 1977 com o fechamento do espaço público, marcou um
retrocesso nos avanços conseguidos nos quase dois primeiros anos após a
independência, caracterizados por uma mobilização social construída em torno de um
sentimento de participação na construção de uma nação, e na prática da liberdade de
expressão, de reunião e de associação, que deram origem à eclosão de organizações de
base, como comissões de moradores, associações e cooperativas de produção e de
consumo, associações culturais e profissionais. Contudo, uma reflexão a posteriori
mostra que essa abertura do espaço público era mais aparente do que real, sendo vigiada
por uma superestrutura criada para evitar desvios ideológicos aos objetivos da revolução
popular. A reação do poder à tentativa de golpe em 27 de Maio, e a transformação do
MPLA em Partido do Trabalho alinhado com a doutrina marxista-leninista em finais
desse mesmo ano, fecharam o espaço público aos atores da sociedade, reduzindo-o a um
palco de ressonância para a difusão da posição oficial do estado-partido, situação essa
que se prolongou até meados/finais dos anos oitenta. Neste período, para além das
igrejas, as únicas instituições que preservaram a sua independência em relação ao
Estado e que emitiam as suas opiniões interna e externamente em nome dos angolanos,
não eram ouvidas diretamente as vozes dos atores da sociedade civil em Angola.
O surgimento de um novo ator supranacional, a sociedade civil global, no âmbito da
expansão do processo de globalização, criou oportunidades para uma maior visibilidade
e voz de atores da sociedade civil em Angola, devido à sua participação em Fora,
conferências, e diversos tipos de reuniões e encontros regionais e supranacionais,
promovidos por esses atores globais. Através de argumentos a favor da busca de uma
solução negociada para a paz envolvendo outros atores da sociedade angolana que não
apenas os representantes das partes beligerantes, da denúncia de violações aos direitos
humanos e desmandos protagonizados por militares, de apelos para assistência
humanitária às vítimas da guerra e de ajuda ao combate à pobreza crescente, entre os
temas com maior expressão e visibilidade, individualidades e grupos de angolanos
aproveitaram os espaços disponíveis em instâncias supranacionais para darem a
conhecer ao mundo o estado de calamidade em que sobreviviam milhões de
concidadãos.
A exposição à opinião pública externa fortaleceu argumentos, conferiu credibilidade,
aumentou a confiança em si e na(s) causa(s) que defendiam, e deu mais coragem para
enfrentar os desafios impostos a quem se atreveu a conquistar um espaço na esfera
pública, emitindo opiniões individuais ou de grupo. A bipolarização do discurso e da
prática políticos em Angola, identificava qualquer dissensão como “traição”, como
favorecendo o “inimigo” (de ambos os lados), ainda que se tratasse de um clamor pela
paz e contra a guerra, de uma opinião contrária às opções de políticas públicas (ou
ausência delas), ou quando se argumentava que “apesar da guerra” a situação no país
poderia ser muito diferente, para melhor, se outras tivessem sido as estratégias
adoptadas pelo Estado. As oportunidades de participação nesse espaço global
constituiram-se num contraponto à ausência ou déficit de representação da sociedade
civil em instâncias e processos de tomada de decisão que, a nível regional, continental
ou supranacional, apenas envolvem os representantes estatais, mas engajam o país e o
seu povo nas respectivas decisões, estratégias e programas. A nova oportunidade criada
alimenta a utopia de que “uma outra Angola é possível”, mobilizando vontades e
capacidades para desafiar a ideologia neoliberal dominante na atualidade, e as elites
nacionais que dela se beneficiam para se perpetuarem no poder.
3.
Trabalhar sobre o tema da sociedade civil implica reflectir sobre as relações entre o
Estado e a sociedade, sobre a redefinição dos seus respectivos papéis, pressupondo uma
análise crítica do estado atual dessas relações e das dinâmicas sociais, das políticas do
Estado e das reações da sociedade às mesmas, das formas de solidariedade e
responsabilidade sociais prevalecentes e das possibilidades da sua mobilização em prol
das mudanças necessárias para melhorar as condições de vida de todos os angolanos.
Neste âmbito, tanto nos discursos oficiais quanto nos de outros atores sociais, é
frequente a convocação da sociedade civil como parceira do Estado na concepção e
implementação das estratégias que conduzirão o país no caminho da consolidação da
paz e no alcance do progresso social. Coloca-se, então, a questão de saber a que
corresponde essa ideia de sociedade civil, quem a constitui, que objetivos norteiam as
suas intervenções, quais as suas formas de organização e de que capacidades dispõe
para o alcance desses objetivos.
Para além de uns poucos exemplos de estudos sobre ação coletiva, solidariedade e
responsabilidade social, cultura cívica, participação, cidadania, sociedade civil, que
buscam compreender e retratar a realidade angolana, o recurso, e o uso, destes conceitos
é feito em geral de forma acrítica, na medida em que se identificam e se avaliam
processos de ação coletiva, societal e comunitária, em contextos histórica, social e
culturalmente muito distintos dos quadros de referência ocidentais nos quais esses
conceitos foram concebidos e aplicados, sem que se discutam os significados e os
valores a eles atribuídos, nem as formas organizativas pelas quais os atores sociais
angolanos os incorporam nas suas representações. Esta constatação encontra respaldo
nas indagações sobre a legitimidade das análises produzidas no ocidente acerca das
realidades africanas, e das análises produzidas em África usando os termos de referência
ocidentais. A metodologia desta tese, não sendo excludente porque recorreu às
contribuições do progresso do conhecimento alcançado no ocidente em especial nas
ciências sociais, para uma mais ampla compreensão das dinâmicas sociais em África, e
em Angola em particular, foi orientada pela convicção que é necessário identificar e
deixar manifestar-se a originalidade dos valores, a configuração das formas de
sociabilidade e das relações de poder que dão sentido e significado ao conceito de
sociedade civil em Angola.
A situação periférica da África no sistema internacional reflete-se no pouco
conhecimento sobre o continente. A evolução das instituições não tem merecido a
atenção necessária para esclarecer as causas e as conseqüências das mudanças no
processo de construção dos estados africanos, apesar de alguns dos acontecimentos mais
marcantes da história da humanidade envolvendo o continente, como o tráfico de
escravos, o colonialismo, a escravatura e o apartheid, terem repercutido mundialmente.
Esta situação requer uma reconsideração histórica dos dados, das descrições e das
teorizações dos trabalhos em ciências sociais até agora produzidos, os quais, para além
de concentrados nos temas privilegiados pelas instituições de Bretton Woods (boa
governação, descentralização, prestação de contas, participação, sociedade civil, entre
outros), foram apropriados pelos seus financiadores ou não foram publicados por falta
de editores.
Estudos promovidos e publicados pelo CODESRIA3 (alguns mobilizados nesta tese),
parecem indicar que o que se designa por crise da África assenta numa representação
desvalorizadora do continente. Os sistemas políticos africanos conheceram mutações e
recomposições sob o efeito de programas de ajustamento estrutural e de liberalização do
sistema político, e em decorrência do final da guerra fria, em geral acompanhadas de
mudanças fundamentais na reorganização do sistema econômico e da vida social, no
cenário mais amplo de uma terceira transição em curso no continente, a demográfica. O
não acompanhamento destas mudanças conduziu a interpretações de ruptura ou de
disfuncionamento, ambas apontando para o colapso eminente das estruturas do Estado
em África. Refutando esta avaliação, Mbembe considera que a multiplicação de
conflitos a sul do Sahara não é um sinal de falência, mas antes a manifestação violenta
de um processo histórico de formação do Estado: a guerra, como modo de produção do
político e do econômico, condiciona e reorganiza tanto a mudança política quanto a
mobilização das populações, o aceso aos recursos, as relações entre gerações e sexos, a
circulação de bens de consumo e, até, a inserção das economias africanas no processo
de globalização, embora pouco se saiba sobre a articulação das dinâmicas transnacionais
da globalização com as lógicas nacionais ou comunitárias africanas.
Em menos de meia década a partir dos anos noventa, 32 das 57 nações subsaharianas
realizaram eleições de transição ou de fundação de regimes pluralistas, numa vaga de
democratização ocorrida em ambiente mundial de maior abertura política e de fortes
condicionalidades externas impostas no âmbito da ajuda ao desenvolvimento pelas
instituições financeiras internacionais e pelas agências bi-laterais de cooperação, que
conduziram à emergência de dispositivos institucionais e normativos com significados
sociais por vezes ambíguos, e uma mobilização social interna não negligenciável mas de
amplitude variável em função dos contextos. As saídas da transição também foram
variáveis, da consolidação de regimes democráticos à restauração de regimes
autoritários, passando pelo ressurgimento de golpes de Estado e o recurso à guerra e à
violência. Apesar do esmero na preparação, realização e avaliação dos processos
eleitorais para garantir a transparência e universalidade da sua aplicação e o respeito
pela legalidade, e satisfazer as exigências dos financiadores externos, pouca atenção se
prestou à análise da evolução desses processos, alguns dos quais resultaram em
3 Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais em África, com sede em Dakar, Senegal.
situações de autoritarismo pós-eleições democráticas. Têm sido pouco estudadas as
condições políticas, sociais e econômicas que tornaram essas mudanças possíveis, o
papel estratégico das elites locais e dos atores externos na configuração dos estados e
dos regimes políticos à saída das transições, as novas bases materiais e fiscais, e os
novos dispositivos institucionais e normativos que governam o seu funcionamento
concreto. As hipóteses a partir de evidências não devidamente quantificadas nem
qualificadas quanto aos procedimentos de re-invenção do Estado, apontam tanto para a
implantação do pluralismo institucional, jurídico e normativo, quanto para a tendência
de uma coexistência de processos de institucionalização e mecanismos de
informalização, resultando na proliferação de modelos de regulação e na multiplicidade
de regras e locais de ação, por vezes concorrentes. Em Angola, a coexistência das duas
hipóteses anteriores parece dar melhor conta do que vem acontecendo à escala local e
nacional.
4.
A estruturação desta tese, incluindo uma pesquisa de campo sobre opiniões de atores
não-estatais sobre a ideia, a constituição e o papel da sociedade civil em Angola, para
além da pesquisa bibliográfica (que mobilizou contribuições sobre o tema em diversos
quadrantes do hemisfério sul), procurou contrapor à hegemonização (leia-se
ocidentalização) dos processos de produção do conhecimento sobre o continente uma
linha de atuação que se vem afirmando na produção das ciências sociais em África. Esta
proposta encontra respaldo na argumentação de Negrão ao defender “uma produção de
conhecimento que se deixe influenciar pela estrutura de pensamento das línguas locais
que transportam consigo uma dinâmica analítica que pertence ao mundo da retórica, ao
universo das interações dialéticas, à dimensão a-lógica da construção de premissas antes
da formulação das inferências do domínio do pensamento lógico-dedutivo prevalecente,
na procura criativa do novo”4. Para ele, a diversidade vai ocupando o espaço da
hegemonia e o novo vai tomando o lugar do contra. Esta afirmação sustenta o
argumento de que a academia deve ir além da crítica, não perder de vista a sua função
criativa, principalmente nos países africanos em busca dos modelos para o
desenvolvimento econômico, social e cultural, dos mecanismos de combate à pobreza, e
da distribuição justa e sustentável da riqueza nacional. “O novo terá de ser bem mais do
4 NEGRÃO, José (2004), O Contributo dos Cientistas Sociais Africanos. Apresentação na sessão de encerramento do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, Coimbra, 16-18 de Setembro.
que o contra-hegemônico ou o pós-colonial, terá de trazer elementos que nos permitam
ir além das realidades que foram determinadas pelos outros, terá de ser enriquecido pelo
que fomos mas nunca em detrimento do que somos. Antes pelo contrário, o novo deve
trazer o contributo criativo do que cada africano tem de melhor”5.
Neste sentido, os cientistas sociais africanos podem inovar na área do conhecimento e
na esfera da ação sócio-política, e na construção de um novo paradigma. Na área do
conhecimento, pela reinvenção da emancipação não mais motivada pelo adversário,
produzindo conhecimentos alternativos que recusam a hegemonização ocidental
veiculada pela globalização, mas que não surgem somente por oposição a ela, porque
privilegiam as relações analógicas entre os vários saberes em lugar das inversas.
Provavelmente devido à interiorização dos processos de mudanças drásticas em curtos
espaços de tempo, a proposta de inovação epistemológica funda-se na inclusão da
possibilidade de outros modelos que valorizem mais a compreensão da mudança e sua
inclusão como variável normativa, do que a interpretação da estrutura que procura
encaixar o “mundo real” em matrizes onde as relações são, obrigatoriamente,
dicotômicas ou tricotômicas. Na esfera da ação sócio-política, pela identificação de uma
dinâmica própria que, embora condicionada pelas conjunturas externas, não tem na
contra-hegemonização a sua força impulsionadora ou razão de ser, mas cujos resultados
acabam por se afirmar contra-hegemônicos pela capacidade de mudança que
demonstrem possuir. A opção pela construção de novas ações baseadas na interação das
existentes e não na eliminação de alguma delas, privilegia uma postura integradora de
várias formas de ação que se sobrepõe à afirmação da diferença. Na ótica da construção
de um novo paradigma, a reflexão sobre a produção recente dos cientistas sociais
africanos levou Negrão caracterizar uma transição paradigmática que abala a hegemonia
dos fundamentos da filosofia da ciência moderna ocidental, porque:
Reconhece relações analógicas e não somente as inversas
Possibilita a interação retroactiva e não somente a linear relação causal
Promove o exercício da cidadania e não somente a afirmação da individualidade
Trabalha com inferências múltiplas e não com uma única inferência possível
Recorre ao raciocínio “a-lógico” na formulação das hipóteses e não apenas ao
pensamento lógico-dedutivo.
5 Idem.
5.
Os capítulos que a seguir se apresentam pretendem contribuir para enriquecer a
discussão sobre a sociedade civil e o seu papel na sociedade angolana, procurando
identificar e deixar manifestar-se a originalidade dos valores, a pluralidade das formas
de sociabilidade e das relações de poder que configuram as representações dos atores
sociais. A construção dos quadros de referência para a interpretação dessas
representações recorre ao conhecimento clássico e atual produzido no Ocidente,
buscando encontrar nas hibridações derivadas da heterogeneidade das abordagens sobre
o tema, as possibilidades de transformação no novo com condições de se reproduzir,
uma vez que o híbrido, por definição, não se reproduz, mas o novo pode contribuir para
a construção de um paradigma não exclusivista e manipulador do conhecimento6.
Para além do Anexo Metodológico, que apresenta a pesquisa de campo, a tese organiza-
se em 6 capítulos. Os três primeiros dedicam-se à construção de um quadro teórico que,
em múltiplas dimensões, contribua para o entendimento das representações sobre a
sociedade civil dos atores sociais que participaram na pesquisa, apresentadas e
analisadas nos capítulos 4 e 5. O capítulo 6 resume as conclusões da tese.
O capítulo 1 busca perspectivas que permitam compreender a Angola de hoje na sua
diversidade sócio-cultural e na sua inserção nos processos de modernização e de
globalização em curso. A discussão recorre à história recente de Angola para retirar os
subsídios necessários à compreensão da atual estrutura e textura das relações sociais e
de poder, à identificação dos atores em presença e os entendimentos de si e dos outros, e
das oportunidades e limitações que os mesmos encontram na expressão das
expectativas, interesses e visões, no exercício da influência nos processos de decisão, e
na capacidade organizativa e de comunicação para o alcance desses objetivos. A
diversidade cultural e a desigualdade social que caracterizam a sociedade angolana
requerem um quadro analítico suficientemente flexível e amplo, capaz de perceber,
respeitar e acomodar as diferenças reais nela existentes numa perspectiva de inserção no
sistema das nações e no processo de globalização. A modernidade não uniforme
percebida na vivência do dia-a-dia, encontra respaldo teórico em abordagens que não se
limitam a caracterizar os contextos atuais mais visíveis, mas que vão além da teoria
6 Idem.
procurando incorporar os processos de produção do político nos interfaces do público e
do privado, das relações formais e informais, dos valores modernos e tradicionais.
Privilegiam as interações permanentes entre valores modernos, que tendem a expandir-
se a todos os setores de atividade e a ser incorporados nos imaginários sociais e nos
mundos da vida dos diversos grupos sociais, e as matrizes tradicionais que ainda
conformam ou conferem sentido às leituras de si e dos outros de uma significativa
parcela da população angolana.
O capítulo 2 procura também inserir Angola no tempo do mundo na perspectiva dos
debates atuais sobre a sociedade civil, em especial os que acontecem no hemisfério sul,
onde predominam sociedades que, como Angola, foram colonizadas por potências
ocidentais e viram os seus processos de desenvolvimento drasticamente interrompidos
pela imposição de regras, normas e valores estranhos às suas culturas. Mas antes, o
capítulo apresenta uma breve síntese sobre o percurso do próprio conceito, identificando
as escolas ou as tradições com maior influência na formatação dos entendimentos atuais
sobre a sociedade civil. Os debates no sul e no leste europeu fornecem elementos
analíticos que evidenciam dissonâncias em relação a essas construções clássicas devido
à sua origem, mas também identificam elementos comuns nas construções sociais sobre
o conceito de sociedade civil. Contribuem, sobretudo, para mostrar a necessidade de
acrescentar ao quadro analítico da teoria da sociedade civil, orientado pela ideia de vida
associativa fora das esferas do Estado e do mercado, a perspectiva da esfera pública,
para perceber as dificuldades e as oportunidades que os atores sociais e as suas
organizações encontram para influenciar processos de tomada de decisão e induzir
mudanças nos respectivos contextos sócio-culturais.
O capítulo 3 tem como objetivo a análise dos discursos que recorrem ao conceito de
sociedade civil tanto na perspectiva ideológica de preservar o status quo, quanto na
ótica da mudança, da renovação, da produção do novo. Partindo do entendimento que a
capacidade de comunicação e os debates entre atores sociais se concretizam através de
construções discursivas, a discussão busca identificar as formas pelas quais os discursos
dominantes, tanto ideológicos quanto utópicos, contribuem para a construção das
representações sociais sobre o conceito de sociedade civil em Angola. Devido ao seu
papel na configuração das representações sobre a sociedade civil na atualidade,
merecem especial atenção os discursos das agências multi e bilaterais de cooperação e
de outros atores globais como as ONG’s internacionais. Os mecanismos de ajuda
pública ao desenvolvimento condicionam o acesso aos recursos à implementação de
reformas institucionais e à incorporação de práticas e valores democráticos nas relações
sociais, cuja identificação não teve em conta as necessidades e as aspirações das
sociedades onde são impostos. A grande dependência em recursos humanos, técnicos,
materiais e financeiros que, em geral caracteriza as sociedades do sul, torna-as muito
vulneráveis à influência destes atores globais, o que gera frustrações e contribui para a
produção de propostas alternativas à globalização do modelo neoliberal.
O capítulo 4 aborda e discute os entendimentos dos participantes na pesquisa de campo
sobre a sociedade civil em Angola, no que respeita às formas e tipos de organização
incluídos nesses entendimentos, os papéis e as funções sociais que lhes são atribuídos.
Esta reflexão inclui a análise de indicadores de cultura cívica também recolhidos na
pesquisa, a comparação com os resultados de outras pesquisas realizadas no mesmo ano
e nas mesmas cidades, e o seu cruzamento com respostas às perguntas abertas,
procurando a coerência ou contradições entre uns e outras. Esta comparação sugere a
existência de um diferencial entre os ideais de participação, de ação coletiva, e de
engajamento cívico inscritos nas respostas abertas sobre as imagens e os papéis da
sociedade civil, e as respostas às perguntas semi-abertas para recolha dos próxy de
cultura cívica. Também parece não haver coincidência entre as imagens descritivas da
sociedade civil e as opiniões sobre o seu dinamismo, visibilidade e desempenho atuais.
O capítulo 5 compreende a discussão dos papéis atribuídos à sociedade civil pelos
participantes na pesquisa, de entre os quais a consolidação da Paz e a reconciliação
nacional, o combate à pobreza, a democratização das relações sociais e de poder, e a
extensão da cidadania em Angola. A primeira parte comporta uma análise das
percepções dos participantes sobre a realidade no país, os sentimentos que expressam
para a caracterizar, onde sobressai a insatisfação com o status quo e a necessidade de
mudança. As prioridades na eleição das políticas públicas e das medidas consideradas
necessárias para reverter a situação atual são analisadas na perspectiva de identificar o
potencial de influência e os sentidos em que essa influência se manifestaria, caso para
tal haja espaço de intervenção. Com base nas percepções sobre as relações entre o
Estado, a sociedade civil e outros atores sociais, a parte final deste capítulo dedica-se à
análise das dinâmicas sociais e as relações de poder prevalecentes.
O Capítulo 6 apresenta as conclusões gerais deste estudo, uma reflexão sobre o quadro
teórico capaz de facilitar o máximo de participação e de debate público sobre as
questões fundamentais na atual conjuntura em Angola, permitindo à sociedade civil
assumir o papel de condutor da mudança atribuído pelos participantes na pesquisa, e
que promova, consequentemente, uma democracia participativa. Inclui uma avaliação
sobre os pressupostos em que a tese se baseou e a medida eles se confirmaram ou não, e
a finalizar, uma análise das condições de possibilidade para o protagonismo da
sociedade civil num processo de mudança em Angola.
6.
A construção do quadro teórico para a compreensão das representações dos atores
sociais sobre a sociedade civil tem como pano de fundo a relação de Angola com o
tempo do mundo. A discussão das articulações entre o local e o global como forma de
inclusão das sociedades não-ocidentais na economia mundial, com base nas teorias dos
encontros civilizacionais e da modernidade, procura identificar as distintas visões sobre
elas e as propostas comuns às sociedades não ocidentais, do ponto de vista da sua
inclusão no processo de globalização, reafirmando, contudo, as suas diferenças no que
respeita aos sistemas de valores, formas mais comuns de solidariedade, de
responsabilidade e de organização social. A abordagem desta fase como a terceira etapa
da modernidade, caracterizada pela coexistência de 3 mecanismos de coordenação
designadamente hierarquia, troca e conexão, pela complexidade e fragmentação sociais,
pela criatividade, inovação, imaginação e reflexividade na busca pelas soluções
institucionais mais adequadas, permitindo compreender melhor o processo de mudança
institucional e a convivência entre novas e velhas instituições, e ainda pela enorme
contingência no que respeita aos resultados esperados das interações sociais, entre
outras características, parece a que melhor acomoda a inclusão de Angola no sistema
mundial e no processo de globalização. A discussão identifica como mais adequada a
interpretação da modernidade numa perspectiva de articulação mista, sugerindo contudo
alguns subsídios retidos da reflexões sobre o tema no sul, designadamente na Ásia e na
África. A abertura à diversidade da realidade africana sugerida por Mbembe, à produção
de sínteses culturais de Asike, e às apropriações seletivas de Nicolau, a opção pela
reflexão sobre as diferenças nas racionalidades econômicas e políticas em lugar da
análise de eventuais diferenças civilizacionais proposta por Ong, e a incorporação do
argumento das escolhas conscientes de Appadurai, contribuem para uma compreensão
mais ampla das relações entre as sociedades atuais e a modernidade, enriquecendo as
visões sobre a modernidade. O respeito pelas diferenças e a acomodação dos dissensos,
na perspectiva defendida por Taylor, abre espaço para a manifestação de valores locais,
e cria oportunidade para incluir como válidos, os debates e os discursos que, aos
diversos níveis e envolvendo os mais variados tipos de atores sociais, se manifestam na
esfera pública em oposição aos discursos predominantes. Esta adenda à teoria da
modernidade articulada mista oferece, ainda, a oportunidade para um entendimento da
esfera pública como constituída por vários públicos, que recorrem aos respectivos
sistemas de valores para produzirem representações sobre a realidade, críticas sobre os
problemas, e propostas de solução.
A análise do percurso histórico da construção social do conceito permite identificar as
principais influências teóricas nas abordagens que conformam os entendimentos
dominantes sobre a sociedade civil hoje, designadamente as da teoria neoliberal da
sociedade civil sem cidadania explorando a dimensão organizativa (Tocqueville e
Ferguson), e as que, numa perspectiva marxista, exploram a dimensão material (Hegel,
Marx e Engels) ou a ideológica (Gramsci e Havel). Tornando evidente o consenso que a
forma “civil” da sociedade se gerou da necessidade de evitar os excessos do Estado e
obter segurança e proteção para todos, também mostra a prevalência das ambiguidades,
dos pontos de vista constitutivo e funcional, na sua progressiva diferenciação do Estado.
Percebem-se, ainda, as tentativas de produção de articulações entre as diversas tradições
intelectuais do passado numa noção coerente de sociedade civil (Bayart, Bobbio,
Harbeson, entre outros), conduzindo à ideia de arena onde o conjunto de organizações
civis tentam mobilizar e promover o interesse comum. A dificuldade em respaldar
teoricamente a complexidade da situação sócio-política e institucional angolana e
compreender as opiniões dos atores sociais que participaram na pesquisa, reside na
definição de organizações civis numa perspectiva muito restrita de “organizações
formais”, excluindo desta noção convencional de sociedade civil, as organizações de
base da sociedade. Dada a relação de sociedade civil com democracia, e esta a
oportunidade de participação universal dos cidadãos na distribuição do poder, uma
noção mais útil do conceito funda-se na compreensão da relação entre sociedade civil e
esfera pública (Cohen&Arato e Habermas) porque, para além de permitir pensar de
maneira mais realista as condições de possibilidade para o protagonismo atribuído à
sociedade civil no processo de mudança, oferece a oportunidade de inclusão do público
primordial, a maioria da população angolana marginalizada do processo de tomada de
decisão e sem os meios para influenciar as políticas públicas a seu favor. A intervenção
de atores mediando as relações sociais e de poder nos interfaces dos diversos públicos
que constituem a esfera pública angolana (igrejas, meios de comunicação e autoridades
tradicionais), promove a interação entre as organizações tradicionais e as cívicas
contemporâneas, contribuindo para a consolidação do processo democrático.
A compreensão das dinâmicas presentes no espaço público em Angola remete à análise
dos fatores históricos que influenciaram a sua construção, do período colonial à
atualidade. Esta necessidade surge da constatação que as construções mais abrangentes
do conceito produzidas em contextos não ocidentais, coincidem com as opiniões dos
participantes na pesquisa que, mais do que a uma noção de conjunto, união,
organização, recorrem à ideia de espaço, no qual indivíduos, grupos e organizações,
redes e alianças, discutem ideias e buscam articulações capazes de produzir avanços,
não só com base em consensos gerados, mas também pela acomodação dos dissensos.
Por outro lado, as desigualdades de condições e oportunidades entre os diversos
segmentos da sociedade angolana criam hiatos difíceis de superar sem a intervenção de
atores com papéis específicos de mediação entre a base e o topo da sociedade (meios de
comunicação social, igrejas e entidades religiosas, e autoridades tradicionais), capazes
de operar como descodificadores semânticos entre grupos sociais.
Os debates em que a sociedade civil é conceito recorrente revelam a importância dos
discursos como forma de expressão das ideologias e das utopias prevalecentes nos
imaginários sociais. Para além de influenciarem a sociabilidade do ponto de vista da
manutenção do status quo ou na ótica da mudança, os discursos têm um papel relevante
na formação da opinião pública e nas opções institucionais dos atores. A prevalência de
um traço ideológico no discurso neoliberal, e o papel das agências internacionais na
tentativa de configuração institucional dos países do “terceiro mundo”, através das
condicionalidades impostas no acesso aos programas e projetos de ajuda ao
desenvolvimento, constitui um lado da discussão. As manifestações da utopia
inscrevem-se nos papéis atribuídos à sociedade civil, de promover espaços de luta por
“um mundo melhor”, e mobilizar as forças que procuram alternativas para a ordem
social dominante. Com base na teoria do discurso de Strydom, e nos conceitos de
ideologia e de utopia de Mannheim, identificam-se as influências ideológicas e utópicas
nas representações sobre o conceito na atualidade, ou seja, as maneiras pelas quais os
indivíduos, grupos e organizações as constróem e lhes atribuem significados. Influente
na configuração dos discursos atuais, a sociedade civil global, novo ator produzido pelo
processo de globalização, reproduz as dicotomias das construções históricas, a
neoliberal na CIVICUS e a marxista no Fórum Social Mundial. Apesar das limitações
da ausência de vínculos aos processos locais na capacidade de influência da sociedade
civil global, a sua existência e as atividades que promove representam uma
oportunidade de inclusão de atores locais no debate global, contribuindo para o
enriquecer o mesmo e ampliar as visões e entendimentos sobre sociedade civil enquanto
conceito e enquanto práxis.
CAPÍTULO 1 – ANGOLA E A MODERNIDADE I. INTRODUÇÃO: para além da modernidade e da tradição
As representações sobre sociedade civil dos participantes na pesquisa de campo
mostram a influência de processos transnacionais na sua configuração, chamando a
atenção para uma maior abertura das análises comparativas sobre o tema, para melhor
compreender as redes, os circuitos e os quadros de referência que conformam os modos
pelos quais as pessoas experimentam, hoje, a qualidade e a textura da convivência, e lhe
conferem sentido, em seus contextos específicos. Apontam, ainda, para a necessidade de
diferenciar a ideologia da modernidade e da tradição, que formatou as experiências
recentes da história do continente africano, e de Angola em particular, como a
escravatura e o colonialismo, da modernidade e da tradição tal como elas são sentidas e
vividas nos dias de hoje. Os sentidos inscritos nessas representações, designadamente as
tensões entre regulação e emancipação, entre Estado e sociedade civil, e entre o Estado-
nação e os impactos da globalização, apontam para a necessidade de complementar o
quadro de referências fornecido pelas teorias da sociedade civil com a análise do
processo de constituição do espaço público em Angola, numa perspectiva que se
coloque para além da clássica dicotomia modernidade versus tradição, entendida a
primeira como constante renovação e inovação, movimento em relação ao futuro e
abertura à mudança permanente, e a segunda como passado, retrógrado, fora de moda, e
imutável.
A ideologia (na chave de Mannheim7 enquanto ideia que defende a preservação e
reprodução do status quo) da modernidade e da tradição mostrou-se muito útil para
conferir sentido à tarefa civilizadora da modernidade europeia na África, fornecendo o
quadro de referências para as formas de dominação que se seguiram aos primeiros
encontros entre as civilizações europeia e africanas, e para a construção da identidade
do africano enquanto um ser inferior, incapaz de auto-desenvolvimento e de
governação. Produziu, também, as categorias tribos ou grupos étnicos às quais foram
atribuídas as “tradições autênticas” em relação aos outros, sendo as culturas africanas
identificadas pelos exploradores e colonizadores europeus como “tradicionais” em
relação às europeias, tidas como progressistas. A classificação em etnias e/ou tribos,
fixando características fisionómicas, hábitos e valores, e cristalizando percepções de
7 MANNHEIM, Karl. (1929) [1972], Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro, Zahar Editores.
proximidade e / ou animosidade em relações de solidariedade e cooperação, ou de
conflito, introduziu novas variáveis nas dinâmicas sociais e novas fontes de conflitos
entre as formações sociais africanas8.
A dicotomia entre categorias estáticas opondo ao retrógrado, comunal, e autoritário da
tradição, o aberto à mudança, individual e democrático da modernidade, tem ainda hoje
uma enorme influência nas formas de entendimento das realidades contemporâneas da
África pós-colonial através de construções que, articulando diferenciados graus de
relação entre a tradição fossilizada como caracteristicamente africana e a modernidade
como função da cultura europeia (ou ocidental), buscam uma modernidade africana9.
Na verdade, estas tentativas de interpretação perpetuam a dicotomia, dão espaço à
construção de identidades individuais e coletivas artificiais porque se alicerçam em
percepções estranhas aos próprios grupos que visam categorizar, enraízam pretensas
contradições e rivalidades, distorcendo a realidade e estabelecendo quadros analíticos
incapazes de dar conta das possibilidades de recriação de relações sociais mais amplas e
inclusivas. Acima de tudo, alimentam a dualidade, demonstrando ignorar a faceta
constante de mudança das chamadas “tradições” e a ambiguidade nelas incorporada por
via dessa mudança, por um lado, e a contínua transformação da própria modernidade em
função dos novos contextos criados, por outro.
8 Sobre os impactos do colonialismo nas identidades culturais e nas relações sociais e de poder ver, entre outros, APPIAH, Kwame A. [1992] (1997), Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro, Contraponto Editora Ltda. ASIKE, Joseph I. (1988), “Culture and Development: The African Dilemma”. Asian Journal Philosophy, vol.1, pp. 83-102. BALCOMB, A. O. (1995), “Modernity and the African Experience”. Journal of African Christian Thougt, vol. 2, no.1, pp. 3-9. BARBEITOS, Arlindo. (2005), A Sociedade Civil. Estado, Cidadão, Identidade em Angola. Lisboa, Novo Imbondeiro Editores. BENDER, Gerald J. (2004), Angola sob o Domínio Português. Mito e Realidade. Luanda. Editorial Nzila. CHATERJEE, Partha. (2004), Colonialismo, Modernidade e Política. Salvador, EDUFBA, CEAO, Brasil. DAVIDSON, Basil. (1992), O Fardo do Homem Negro. Os efeitos do estado-nação em África. Luanda, Edições Chá de Caxinde. DIRKS, Nicholas B. (org). (1992), Colonialism and Culture. University of Michigan Press. EISENSTADT, Schmuel N; ABITOL, Michel; Chazan, Naomi. (orgs) (1988), The Early State in African Perspective. Culture, Power and Division of Labour. Leiden, E. J. Brill. FANON, Franz. (1963), Wretched of the Earth. New York, Gove Press. GYEKYE, Kwame. (1997), Tradition and Modernity. New York, Oxford University Press. KAMABAYA, Moisés. (2003), O Renascimento da Personalidade Africana. Luanda, Editorial Nzila. MUDIMBE, V.Y. (1988), The Invention of Africa: gnosis, philosophy, and the order of knowledge. Bloomington, Indiana University Press. NETO, Mª. da Conceição. (1997), “Ideologias, Contradições e Mistificações da Colonização de Angola no Século XX”. Lusotopie – Enjeux contemporains dans les espaces lusophones. Paris, Éditions Khartala, pp.327-359. NEWITT, Malyn. (1997), História de Moçambique. Lisboa, Publicações Europa América. RODNEY, Walter. (1982), How Europe underdeveloped Africa. Washington D.C, Howard University Press. 9 BRODNICKA, Monika. (2003), “When Theory Meets Practice: Undermining the Principles of Tradition and Modernity in Africa”. Journal of African Philosophy, nº. 2. Ver também GYEKYE, Kwame (1997), Tradition and Modernity. New York, Oxford University Press. MUDIMBE, V.Y. (1988), op. cit. MUDIMBE, V.Y. (1985), “African Gnosis Philosophy and the Order of Knowledge: an Introduction”. African Studies Review, vol. 28, nos. 2/3 June/September. RODNEY, Walter. (1982), op. cit. FANON, Franz (1963), op. cit.
Na vida real, a percepção dicotomizada da atualidade africana influencia também as
práticas das elites no poder, privilegiando as questões, os problemas e as necessidades
dos grupos urbanos, com padrões de comportamento, maneiras de estar em sociedade e
quadros de referência construídos com base na modernidade ocidental, às questões,
problemas e necessidades do mundo não-urbano. O mundo rural parece percebido de
uma forma homogênea, monolítica, com formas de organização e de estar em sociedade
que remetem às práticas e valores da “tradição”, tanto nas suas relações com o meio
ambiente, como nas relações sociais e de poder, e nas formas de aplicação da justiça. O
novo periurbano (para além dos musseques10 de Luanda e dos antigos bairros
periféricos das demais cidades), conjunto de assentamentos informais onde impera a
precariedade, parece ausente dos discursos sobre as formas de pensar Angola, apesar da
sua crescente presença na organização da distribuição espacial da população angolana.
Trata-se de áreas sem urbanização (planificação física e ordenamento territorial),
destituídas de infra-estruturas de esgoto e saneamento do meio, compostas
essencialmente de habitações precárias e clandestinas, construídas na sua maioria pelas
populações em êxodo das áreas rurais em busca de segurança física e de sobrevivência
econômica, ou pelas famílias empobrecidas que vendem / alugam as suas residências
nas áreas urbanas e se deslocam para as periferias das cidades. Estas áreas11 constituem
um locus da informalidade12, não apenas no domínio das relações econômicas (que se
concretizam nas cidades), mas também das relações sociais. Uma das consequências
práticas desta visão dicotómica é a exclusão da grande base não-urbana (rural e
periurbana) da população do exercício pleno da cidadania e da participação na tomada
de decisões em relação ao futuro.
10 Expressão angolana que significa “terra vermelha” e que designa os bairros periféricos de Luanda. 11 Com isto não se pretende dizer que a informalidade se restringe às áreas periurbanas, apenas realçar a relação que parece ter-se estabelecido entre as dimensões espacial e econômica da vida de milhões de pessoas economicamente ativas. A título de exemplo, devido à falta de indicadores extensivos a todo o país, “o setor informal de Luanda assegura, de forma exclusiva, a subsistência de 42% das famílias luandenses e representa 56% de cerca de 1 milhão de pessoas economicamente ativas”. SOUSA, Mário Adauta de. (1996), “Contribuição para o conhecimento do sector informal de Luanda”, in GOVERNO de ANGOLA/UNICEF (orgs.), Développement des investigations sur l’ajustement à long term. Luanda, UNICEF. 12 “Setor informal” refere-se a atividades econômicas legais realizadas por agentes econômicos ilegais, seguindo a concepção da ONU em Développement du sector informel en Afrique, ILO, New York (1996), compreendendo “um vasto leque de comportamentos econômicos, socialmente admissíveis, realizados fundamentalmente com finalidades de sobrevivência e que escapam quase totalmente ou, pelo menos, parcialmente, ao controlo dos orgãos do poder público local/regional/nacional em matéria fiscal, laboral, comercial, sanitária ou de registro estatístico. LOPES, CARLOS M. M. G. Fernandes (2000), Luanda, Cidade Informal?: estudo de caso sobre o Bairro Rocha Pinto. VI Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Porto, 5-9 Setembro.
As formas de poder prevalecentes no continente africano, e Angola não é excepção,
fragmentam a maioria da sua população numa série de minorias definidas culturalmente,
acentuam as diferenças que lhes foram imputadas pela classificação colonial em
diversos grupos étnicos, e aumentam o fosso entre o mundo urbano e o mundo não-
urbano, por um lado, e entre os diversos grupos étnicos que coexistem dentro das
fronteiras estabelecidas pela Conferência de Berlim, por outro. E estas formas de poder
têm-se mostrado incapazes de estimular ou promover os princípios de uma
solidariedade democrática, através de maneiras criativas de articular estratégias de auto-
governo participativo com base na autonomia, e estratégias de política representativa
com base em alianças, operando simultaneamente nos níveis central e local de
organização do Estado e da sociedade.
Na identificação de forças sociais capazes de operar a ligação entre os mundos urbano e
não-urbano parece residir a condição de possibilidade para responder às demandas e às
expectativas dos angolanos por uma sociedade mais justa e equitativa, por melhores
condições de vida, pelo desenvolvimento do seu potencial humano, pela consolidação
da Paz social, pelo respeito e reconhecimento das suas identidades culturais, pelo
exercício do seu direito de participar na tomada de decisões em relação ao futuro, enfim
pela sua emancipação13. Demandas dessa natureza foram expressas pelos participantes
na pesquisa acima citada, e continuam aguardando respostas.
A constatação desta necessidade remete à herança colonial que originou diversas
formações sociais, como as indígenas, as imigrantes importadas do país colonizador, e
as emergentes do colonialismo. Os atuais grupos étnicos e a própria etnicidade em si
são, simultaneamente, formações transformadas e emergentes, em parte devido à
política de “dividir para reinar”, e também devido às políticas regionais diferenciadas14
com consequências nas formas de distribuição de poder entre os seus membros: de um
lado, os cidadãos, de outro os sujeitos15. Os primeiros, constituindo um público cívico,
regem-se pela constitucionalidade do sistema de representação e são fundamentalmente
13 Sobre a discussão da construção da identidade em Angola ver SERRANO, Carlos (2000), Angola: O NASCIMENTO DE UMA NAÇÃO. Um Estudo sobre a Construção da Identidade Nacional. Tese de Doutoramento em Antropologia Social. Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 14 OSAGHAE, Eghosa H. (1994), “Ethnicity in Africa or African Ethnicity”, in Ulf Himmelstrand, Kabiru Kinyanjui, Edward Mburugu (orgs.), African Perspectives in Development. James Currey, pp.137-151. 15 MAMDANI, Mahmood. (1996), Citizen and Subject: Contemporary Africa and the Legacy of Late Colonialism. Princeton, Princeton University Press.
urbanos. Os segundos, a maioria, constituindo o público primordial na terminologia de
Ekeh16, regem-se pelo direito costumeiro dos respectivos grupos étnicos e são
fundamentalmente não-urbanos. No cenário atual, existem outras minorias cujo
enquadramento não encontra respaldo nas análises teóricas, como as diásporas
europeias constituídas na sua maioria por nascidos e criados em Angola, cuja cultura
crioula lhes confere a capacidade de articular os imaginários sociais africanos e os
quadros de referência ocidentais17.
A reflexão sobre as condições de possibilidade de criar dinâmicas sociais capazes de
ligar os mundos urbano e não-urbano remete às experiências dos movimentos
nacionalistas, que conduziram os processos de luta pela independência, tanto armada
quanto por negociação política, que se mostraram capazes de promover essa ligação em
torno de um projeto político de emancipação. Contudo, estas coalisões ou alianças não
resistiram à falta de capacidade criativa em ensaiar processos de reforma democrática
aos dois níveis, central e local, no pós-independência, o que originou o alargamento do
fosso entre os diversos mundos e as diversas graduações de interpenetração entre
modernidade e tradição, gerando desconfiança, e estratégias de auto-exclusão por parte
das populações não-urbanas e/ou de grupos étnicos excluídos das novas alianças e
coalisões18. E a análise da situação atual parece indicar que, na procura pela
aproximação entre os diversos mundos, este amplo processo de reforma das estruturas
16 Segundo Ekeh, o conceito de cidadania significa coisas bem diferentes nos dois públicos, enquanto o bom cidadão no público primordial sente o dever de se dar a ele materialmente e o apoiar, ganhando em troca identidade e segurança, um cidadão com sorte no público cívico ganha dele materialmente mas busca escapar a dar algo em troca. A dialética entre os dois públicos reside na ideia de que é legítimo roubar/tirar do público cívico para fortalecer o público primordial. EKEH, Peter (1975), “Colonialism and the Two Publics in Africa: a Theoretical Statement”. Comparative Studies in Society and History, nº. 17, pp. 91-112. OSAGHAE, Eghosa H. (2003), Colonialism and Civil Society in Africa: The Perspective of Ekhe’s Two Publics. Symposium on Canonical Works and Continuing Innovation in African Arts and Humanities, Accra, 17-19 September. 17 A este propósito, Mwangi (Universidade de Pennsylvania) e Zaiman (Instituto de Gorée), defendendo que a África não é negra, chamam a atenção para o fato de os movimentos migratórios para fora da África, e as múltiplas migrações de outras populações para o continente, terem sido objeto de tratamento diferenciado: enquanto as primeiras, forçadas ou deliberadas, têm sido objeto de estudo e análise, as segundas ocupam um espaço marginal na produção de ideias concernentes à África. Contudo, existiram e existem importantes diásporas árabes, asiáticas, europeias e do médio oriente no continente, jogando um papel fundamental na evolução em curso nas sociedades africanas e na formação de identidades africanas. As interações históricas e atuais entre populações africanas – especialmente as das ilhas e dos países litorâneos – e outras regiões do mundo, permitiram a emergência de identidades crioulas e híbridas, que colocam em questão a essência da designada ‘identidade africana’. Apesar da sua diversidade, a imagem de uma África negra continua a dominar as representações do continente, tanto no exterior quanto no interior. MWANGI, Wambui & ZAIMAN, André (2000), “Propos Liminaires. Conversation: Race et Identité”. Bulletin du CODESRIA, número 1, Dakar, pp.61-62. 18 BATES, Robert. (1981), States and Markets in Tropical Africa: The Political Basis of Agricultural Policy. Berkeley, University of California Press, Series on Social Choice and Political Economy. BATES, Robert. (1983), Essays on the Political Economy of Rural Africa. Cambridge, Cambridge University Press.
de poder em África precisa ser pensado a partir “de baixo”, do não-urbano ou
tradicional19.
Se o objetivo da mudança consiste em responder às expectativas por uma
democratização em África, os resultados das experiências pós-coloniais de preservar a
tradição e os costumes ou de a abolir como retrógrada em nome de um projecto de
modernização, aconselham a evitar as dualidades que ainda caracterizam a teoria social,
e tentar balancear centralização e descentralização (agindo tanto na base quanto nas
estruturas centrais de poder), representação com participação (reformando não apenas o
sistema político e eleitoral multipartidário, mas também as formas de participação), aliar
autonomia (a legitimidade e a particularidade do local) com alianças ou coalisões (para
transcender a fragmentação das particularidades).
Entre os aspectos mais visíveis da modernidade destacam-se a criatividade e a inovação
na busca das combinações entre público e privado que configurem o sistema
institucional para adequá-lo à realidade sócio-cultural e econômica do contexto a que
corresponde. Nesta perspectiva, quais as características do processo de desenvolvimento
institucional de Angola?
Qualquer visitante, nem necessitando ser muito atento, percebe em Angola traços da
modernidade nos modos de vida dos grupos sociais próximos do, ou no poder, no
comportamento público e privado das suas elites, em alguns segmentos da economia de
enclave ligada ao setor petrolífero, nos traços arquitectónicos das cidades, nos tipos de
eventos sociais como concursos de beleza, nos restaurantes de comida internacional e
nos hotéis 5 estrelas, nos filmes de Hollywood em exibição nos cinemas, nos clubes de
vídeo e de DVDs, nos cybercafés, nas combinações entre o semba e outros gêneros
musicais, no vestuário, nos comportamentos e expressões dos citadinos, na
extraordinária criatividade dos operadores do setor informal, entre outros. Em todos
esses exemplos, contudo, poderão também encontrar-se traços que remetem ao
tradicional, nos tons, nos sons, nos ritmos, nas atitudes e nos discursos. O
acompanhamento das notícias pela televisão ou pela rádio, ou o folhear de revistas
nacionais, evidenciam os mesmos sinais que permeiam as relações sociais em outros
19 BAYART, Jean-François. (1996), The State in Africa: The Politics of the Belly. London/New York, Longman. CHABAL, Patrick. & DALOZ, J-P. (1999), Africa works: Disorder as political instrument. Oxford, James Currey.
lugares do mundo: a banalização da vida (ainda mais acentuada pela convivência com
os efeitos de uma guerra prolongada), o crescendo da violência doméstica e familiar a
par do individualismo e do descaso com a sorte dos seus semelhantes, a criação dos
mitos em torno de figuras tornadas públicas devido à sua atividade artística, desportiva
ou política. A fabricação de fenômenos sociais pelos mídia, como acontece em outras
sociedades, parece ter como objetivo desviar as atenções dos graves problemas que, em
todos os níveis da vida social, econômica e política, marcam a sociedade angolana.
Não precisando sair da cidade capital, o mesmo visitante é confrontado com a dura
realidade da vida de milhões de angolanos: a convivência diária com a fome, a
indigência, a mendicância; centenas de milhar de crianças e jovens perambulando pelas
ruas em busca da sobrevivência, muitos deles sem família nem qualquer amparo social.
A prostituição de jovens e meninas, uma das saídas para matar a fome das famílias e
realizar sonhos de consumo veiculados pela televisão, pelas revistas, pelas vitrines das
lojas. A multidão de vendedores ambulantes, correndo risco de vida pela forma como se
precipita nas ruas em busca de compradores para os produtos que oferecem, um trânsito
caótico de milhares de veículos, privados e semi-públicos (as vãs, vulgo kandongueiros
em Angola), devido à insuficiência dos transportes públicos, são apenas alguns dos
sinais da desorganização da vida social e econômica angolana. São algumas das
características do outro lado da modernidade em Angola.
À medida que se entra na Angola profunda, das comunidades do interior, o contraste
torna-se mais evidente. Os efeitos do abandono durante a guerra, a destruição das
infraestruturas de transporte dificultando relações pessoais, familiares e econômicas, a
desestruturação da vida comunitária provocada pelo êxodo rural em massa, os poucos
incentivos à produção agrária familiar, a escassez de infraestruturas básicas de
educação, saúde, água, energia e saneamento do meio, entre outros, transmite uma ideia
de isolamento, de precariedade, de pobreza extrema. A capacidade de luta vai até à
garantia de sobrevivência, não restando muito mais (recursos financeiros, força anímica
e perspectivas) para curar, cicatrizar e voltar a crescer de novo. Uma estratégia de
sobrevivência que se aproxima do conformismo parece reinar, absoluta, nesta Angola
profunda! E vai sendo superada, aqui e além, em resposta a iniciativas, pontuais,
descoordenadas e sem sustentabilidade, de revitalização da vida econômica e social,
algumas com resultados muito positivos embora com efeitos de irradiação limitados
pelos constrangimentos que ainda caracterizam a atualidade angolana.
Como falar de modernidade numa realidade assim? Por outro lado, como negar a
evidente modernidade de determinados setores da vida econômica e alguns segmentos
sociais de Angola?
II – A TRAJETÓRIA ANGOLANA 1. Marcos históricos
Angola nasceu dos encontros e desencontros seculares entre África, Portugal e Brasil20.
O esclavagismo e o colonialismo, como elementos determinantes da realidade angolana
atual, são dimensões que não podem ser ignoradas na discussão da modernidade em
Angola. Não cabe, contudo, no âmbito deste trabalho, a retrospectiva do processo
colonial e suas consequências. Recorrer-se-á, apenas, a elementos históricos que se
mostrem importantes para tornar mais compreensível a análise e / ou emprestar
consistência ao argumento. Alguns dos marcos históricos desse percurso, sinalizam
processos de modernização, emergência de novas identidades, novos atores sociais, e
novas agendas. Indicam, ainda, que a guerra foi a opção, tanto para a conquista da
independência, quanto para a resolução das diferenças das agendas pós-coloniais dos
movimentos de libertação nacional. Também mostram que a configuração do espaço
público foi comandada pelo Estado desde a era colonial; os severos limites impostos à
participação de atores não-estatais impediram a construção social de uma cultura de
diálogo e ignoraram a contribuição de mecanismos promotores da coesão social,
particularmente de normas sociais complementares à racionalidade do Estado e do
mercado21.
Depois dos primeiros contactos entre os navegadores portugueses e as populações dos
reinos existentes ao longo da costa ocidental africana, a partir de 1482, seguiu-se uma
ocupação lenta do território, hoje Angola, que apenas se concluiu nos primeiros vinte e
dois anos do século XX após a “guerra de pacificação” do centro e sul do país. A
instalação do estado colonial pela conquista e dominação das sociedades pré-existentes
20 BARBEITOS, Arlindo. (2005), op. cit. 21 ELSTER, John. (1989), The Cement of Society: A Study of Social Order. Cambridge, Cambridge University Press.
aconteceu após a repartição do continente em áreas de influência das nações europeias,
cujo mapeamento22 não teve em consideração razões de ordem étnico-cultural e política
local, nem fronteiras e solidariedades existentes. A inclusão no império colonial
português interrompeu os processos históricos dos reinos conquistados, pela imposição
do capitalismo colonial como forma dominante de organização das relações sociais de
produção23.
Em resposta à estratégia do governo colonial de “dividir para melhor reinar”, as nações
conquistadas procuraram preservar as suas identidades culturais, através de estratégias
de reforço da unidade interna e de resistência, que permitiram manter vivas as suas
memórias coletivas, reproduzidas através de tradições e crenças transmitidas oralmente,
de rituais de passagem e de diversos tipos de celebrações24. Mas as dissidências internas
que provocaram, originaram um outro fenômeno, a crioulidade25, com base no
cosmopolitismo cultural crescente de centros urbanos receptores dos dissidentes dos
grupos étnico-linguísticos, em especial Luanda e Benguela. A importância desta nova
identidade no ambiente multicultural de Angola26, consiste na sua relação com o
desenvolvimento de ideias modernas sobre o conceito de soberania e a situação de
dominação a que Angola estava sujeita, dando corpo a aspirações nacionalistas. O
protonacionalismo de finais do século XIX deu origem ao movimento nacionalista, que
buscou junto das autoridades portuguesas a negociação da independência de Angola,
primeiro através do diálogo e depois, perante a obstinada recusa daquelas a qualquer
22 Conferência de Berlim para a Partilha de África, de Maio 1884 a Setembro de 1886, a qual produziu o “Mapa Cor-de-Rosa”. NEWITT, Malyn. (1997), op. cit. 23 O povo angolano é hoje constituído por descendentes de povos não-bantu (Hotentote e Khoisan), pré-bantu (Vátua), bantu e descendentes de europeus ou mestiços de europeus e africanos. Os bantu angolanos, calculados ente 90 a 100 grupos etnolinguísticos, estão agrupados em 9 grandes grupos: Tucokwe, Ambundu, Bakongo, Vangangela, Ovanyaneka-Nkhumbi, Ovahelelo, Ovambo, Ovandonga, Ovimbundu. FERNANDES, João e NTONDO, Zavoni. (2002), op. cit. 24 A historiografia recente do período colonial reconhece que a atual divisão étnico-linguística africana em geral, e angolana em particular, se baseia em identidades etnoculturais socialmente construídas como resultado das interações entre africanos, europeus e missionários norte-americanos e portugueses. BITTENCOURT, Marcelo. (1999), Dos Jornais às Armas. Trajetórias da Contestação Angolana. Lisboa, Veja Editora. 25 Processo de mestiçagem cultural, envolvendo negros, mestiços e brancos, estabelecendo pontes culturais entre o mundo europeu, moderno, e o mundo africano, tradicional. 26 Do ponto de vista social Angola é um ambiente multicultural, nacional e étnico. Trata-se de um “estado multinacional cuja sociedade foi formada a partir da incorporação, forçada ou voluntária, de minorias nacionais que anteriormente possuíam culturas territorialmente concentradas e desfrutavam de autonomia”, com uma “diversidade cultural fruto da imigração individual ou familiar”. Os movimentos populacionais provocaram processos de assimilação, aculturação e discriminação, com consequências na formação de identidades individuais e coletivas. A realidade multicultural foi moldada na interface de diferentes graus de contacto com civilizações europeias e orientais, como a chinesa em tempos ancestrais. KYMLICKA,Will. (1995), Multicultural Citizenship: a liberal theory of minority rights. New York, Oxford University Press.
tipo de negociação, pela via da luta armada de libertação nacional, que decorreu de 1961
a 197527.
Uma das características sui generis de Angola é que teve duas declarações de
independência: em Luanda, o MPLA proclamou a República Popular de Angola, e no
Huambo, a aliança UNITA+FNLA, proclamou a República Democrática de Angola
(que durou 80 dias, o tempo em que a aliança se manteve). A sequência destes dois atos
foi a guerra civil. A guerra (anticolonial e civil) iniciada em 1961 prolongou-se até 2002
quando, após a morte do seu líder em 22 de Fevereiro, a UNITA assinou em 04 de Abril
um acordo de cessar-fogo com o Governo. Esse período foi marcado pelo conflito
intenso e mais ou menos generalizado, permeado por alguns períodos de paz militar que
se seguiram à assinatura de acordos de paz, cuja implementação nunca foi totalmente
conseguida.
Após a independência, Angola conheceu dois regimes28: o de partido único, que vigorou
até 1991, e o do Estado Democrático de Direito, após as reformas de início dos anos 90.
Houve eleições gerais, presidenciais e legislativas, apenas uma vez, em Setembro de
1992, estando as próximas eleições em fase de preparação, ainda sem data fixada, mas
que devem acontecer, em simultâneo ou separadamente.
2. O ambiente institucional e o quadro jurídico angolano No ato da independência, o Estado angolano adotou o modelo de direito ocidental,
provavelmente em busca de reconhecimento como membro da comunidade
internacional, o que sinalizou a opção pela continuidade da dualidade jurídica colonial,
assegurando o seu poder sobre toda a sociedade, na medida em que o consentimento às
ordens não estatais do direito costumeiro pressupunha a submissão destas à sua
hegemonia29.
27 FREUDENTHAL, Aida. (2001), “A Voz de Angola em Tempo de Ultimato”. Estudos Afro-Asiáticos, Ano 23, no.1, pp.135-169. 28 O conceito de “regime” é usado nesta tese para significar os distintos arranjos institucionais, como por exemplo: democracia representativa, autoritarismo burocrático, regime de partido-único. 29 SANTOS, Daniel dos (2003), “O Lugar do Direito Costumeiro na Formação dos Estados Africanos”. Antropologia & Derecho, CEDEAD (Centro de Estudios en Antropologia y Derecho) da Universidade de Misiones, Ano 1, numero 3, pp.13-16. Também em SANTOS, Daniel dos (2004), “Por uma outra Justiça: Direito Penal, Estado e Sociedade”. Revista de Sociologia e Política, nº. 23, pp.127-139.
A divisão do país em diversos mundos, pelo não estabelecimento de pontes e modos
coerentes de articulação das distintas ordens jurídicas, reduz as possibilidades de
cooperação entre os atores sociais e aumenta a probabilidade de eclosão de conflitos,
criando vazios jurídicos pela ausência de laços resultantes de escolhas sociais entre
espaços político-jurídicos em aparente oposição. Considerando que as pessoas recorrem
mais à justiça do direito costumeiro para a resolução dos problemas do quotidiano
devido à ineficiência do sistema judicial moderno, e que é bastante significativo o
número de pessoas oriundas do meio rural ou em transição deste para o meio urbano, a
ausência dessa articulação cria espaços sociais instáveis e origina problemas
identitários: de um lado, a modernidade truncada por uma ordem jurídica que se
pretende única, legal mas ilegítima, e do outro lado, uma tradição plural bem enraizada
de ordens jurídicas legítimas, mas ilegais. A questão não reside na ordem jurídica estatal
em si, mas na sua pretensão de regular e controlar tudo, não reconhecendo as demais
nem os papéis que podem desempenhar numa nova configuração do espaço jurídico
angolano. O Estado angolano adotou a estratégia do estado colonial: consente, mas não
reconhece30.
A visão reducionista dos aparelhos formais criados pelo Estado pressupõe a inexistência
de nada mais para além dos mecanismos estatais, formais e oficiais, de controle social e
de resolução de conflitos. Mas a sociedade não se reduz ao Estado e não é possível
ignorar as diferenças locais próprias da diversidade histórica das ordens jurídicas extra-
estatais. A pluralidade cultural, a diversidade étnica e o pluralismo das ordens jurídicas
das nações conquistadas sobreviveram aos modelos coloniais de dominação, e à
institucionalização da hegemonia do direito estatal colonial, que subordinava ou
simplesmente ignorava as formas jurídicas e os direitos africanos. Mas as formações
sociais não desistiram de construir ou procurar manter instituições que melhor
correspondessem às suas necessidades, estruturadas em torno de valores de partilha, de
solidariedade e de identidade, até como estratégia de sobrevivência. As políticas de
assimilação cultural do regime colonial não conseguiram integrar as práticas e os
mecanismos locais de resolução de conflitos no sistema jurídico português; pelo
contrário, visavam a reprodução de dois mundos distintos e separados, com a
30 dos Santos, Daniel. (2003), op. cit.
supremacia de valores da potência conquistadora, que eram determinantes e definiam,
em última instância, o quadro e os limites das práticas e ações das instituições africanas.
As nações conquistadas eram corpos sociais concretos, histórica e socialmente
constituídos, fundados sobre ordens jurídicas próprias: os conjuntos de disposições
sociais coerentes, com valor jurídico apesar de não terem sido produzidas por
autoridades políticas, que orientavam as relações sociais, foram constituídos por
instituições locais e resistiram nas distintas etapas históricas, através da tradição e dos
costumes. A dualidade do espaço público jurídico colonial e a supremacia da ordem
jurídica estatal asseguravam o papel atribuído aos direitos costumeiros, pelo reforço da
noção de tribo e o poder atribuído aos chefes tradicionais, sobas, de resolução dos
conflitos indígenas31.
Enquanto não se estabelecerem pontes entre as bases da sociedade e as instituições
estatais, não parece possível estabelecer o diálogo que conduza à articulação das ordens
jurídicas herdadas dos períodos pré-colonial e colonial, fundamental para a
concretização de uma formação social capaz de conduzir Angola pelo caminho do
desenvolvimento, entendido não como crescimento econômico tout court, mas antes
como produção e equidade na repartição da riqueza social. Isso pressupõe “uma
concepção de direito compreendendo não apenas um conjunto de regulamentações,
normas e procedimentos, e estruturas institucionais estatais, mas também um espaço
público aberto, englobando as ordens, os procedimentos, os costumes, as tradições e os
moeurs não estatais, aos quais os grupos recorrem para determinar os seus
comportamentos, as suas relações e satisfazer interesses comuns ou particulares,
atribuindo-lhe um papel mais amplo, ou seja, o de permitir que a sociedade sonhe com a
maior e mais equitativa harmonia da sua ordem social”32.
A incorporação de princípios, normas e sanções dos direitos costumeiros no conjunto
das normas e procedimentos jurídicos que conformam o sistema judicial angolano, seria
um sinal de tolerância por parte do Estado. A articulação das distintas ordens jurídicas
presentes na sociedade angolana, refletindo os matizes culturais dos grupos que a
integram, com base no reconhecimento de fato da diversidade da sociedade e no
31 Após a independência, designados de ‘tradicionais’, não enquanto características distintivas de sistemas culturais e suas formas de organização social, mais para distinguir da designação prevalecente sob a ordem colonial. 32 SANTOS, Daniel dos. (2003), op. cit.
respeito pelas identidades coletivas que a compõem, promoveria a identificação de
todos com as regras que orientam a justiça. O reconhecimento da fragilidade das bases
sociais da ordem jurídica estatal parece contido no espírito da reforma do sistema
judicial em curso, sob o lema “uma justiça para todos”33, criando oportunidades para o
debate e para a participação de grupos e organizações da sociedade civil, das
autoridades tradicionais, de partidos políticos, de universidades e institutos de estudos e
pesquisas, de individualidades nacionais e intelectuais.
As mudanças mais significativas no quadro jurídico-legal de Angola, nos últimos 30
anos, ocorreram com proclamação da República Popular de Angola após a
independência em 1975, e a transição para a República de Angola em 1991. As mais
interessantes para esta discussão assinalam a transição da I para a II República, e a
institucionalização de um ambiente democrático, abertura ao pluralismo partidário e à
economia de mercado.
O novo quadro legal surgiu da promulgação das seguintes principais leis:
Lei 12/91 de 6 de Maio (revisão da Lei Constitucional) e Lei 23/92 de 16 de
Setembro, a nova Lei que “consagrava na Angola pós-colonial, um Estado
unitário descentralizado e desconcentrado”34; decorre a elaboração da nova Lei
Constitucional, cuja aprovação se prevê aconteça antes das próximas eleições.
Lei das Associações (Lei 14/91), para criação e o registro de Associações e
ONG’s e seu funcionamento independente do Estado. Esta lei apenas foi
regulamentada, ainda assim parcialmente, em 31 de Dezembro de 2002, através
do Decreto Nº. 84/02 sobre o “Regulamento das Organizações Não-
Governamentais”, submetendo-as à tutela do Ministério da Assistência e
Reinserção Social e, desta maneira, sinalizando uma delimitação do seu campo
de actividade ao apoio social e à ajuda humanitária. A preparação deste Decreto
envolveu um processo de consulta entre o Governo de Angola, através da
Unidade Técnica de Coordenação das Ajudas, e as ONG’s, através do CONGA
e do FONGA, respectivamente Fórum das ONG’s internacionais e das ONG’s
nacionais. Mas o seu conteúdo é contestado por não terem sido incluídas as
perspectivas defendidas pelas ONG’s, e pela aparente intenção de restringir as
33 Ministério da Justiça, Ordem dos Advogados de Angola e Escritório dos Direitos Humanos da ONU em Angola. (2005), Conferência sobre o Acesso à Justiça em Angola. Luanda, 4-6 de Maio. 34 GUEDES, Armando Marques et alii. (2003), Pluralismo e Legitimação. A Edificação Jurídica Pós-colonial de Angola. COIMBRA, Livraria Almedina. Portugal.
formas organizadas da sociedade civil às ONG’s, e os campos de intervenção ao
apoio social e à ajuda humanitária.
A Lei dos Partidos Políticos Independentes (Lei 15/91)
Lei da Reunião Pacífica (Lei 16/91)
Lei do Direito à Greve (23/91)
Lei da Liberdade de Imprensa (25/91)
Decreto Executivo 46/91 de 16/08/91 sobre a liberdade de culto (revogado pela
Lei 2/04 sobre o Exercício da Liberdade de Consciência, de Culto e de Religião)
Lei das Emissoras de Rádio FM (Lei 16/92).
A simples observação das designações deste pacote legislativo revela a ocupação do
espaço público pelo Estado durante a I República. Por outro lado, a falta de
regulamentação ou a regulamentação tardia dessas leis, observável nas datas das
respectivas aprovações, para além de ter criado impasses legais, também gerou
desentendimentos na sua interpretação. Embora oficialmente se considere que os novos
instrumentos legais foram produzidos em ambiente de consulta entre o estado e a
sociedade, e organizações desta se tenham mobilizado para participar efectivamente
nessas consultas, as experiências com os processos de preparação e aprovação do
Regulamento das Associações, da Lei de Terras, da Lei do Investimento Estrangeiro, e
da própria Lei Constitucional, entre outros, demonstram que as instituições do
legislativo e do executivo angolanos continuam pouco abertas ao debate de ideias e à
incorporação das visões e expectativas dos atores não-estatais.
O processo de adequação do quadro jurídico-legal ao ambiente democrático, que
ganhou novo fôlego com o fim da guerra civil em 2002, é dominado desde essa altura,
pela preparação da nova Lei Constitucional. Um dos pontos de discordância entre o
Estado e alguns setores da sociedade reside no fato de estes não concordarem com a
forma como o processo tem vindo a ser conduzido no que respeita à pouca importância
real da participação dos cidadãos na redação da lei, e também no que concerne à
aprovação desta Lei pelo atual Parlamento, eleito em 1992 nas únicas eleições gerais da
Angola independente. Tais sectores defendem que primeiro devem realizar-se eleições
legislativas, cabendo ao novo Parlamento que surgir dessas eleições a discussão e
aprovação da nova Lei Constitucional; por seu lado, o governo e o atual Parlamento
consideram que a aprovação da nova Lei Constitucional deve anteceder a realização das
próximas eleições.
Esta discussão envolve questões de legitimidade da representação do legislativo
angolano. Ao mesmo tempo que a data das próximas eleições vem sendo
sucessivamente adiada desde 2002, as necessidades em responder aos imperativos do
crescimento econômico e do desenvolvimento do país implicam a aprovação de nova
legislação para acomodação de tais necessidades, como a nova Lei de Terra aprovada
em 2004 (revogando a Lei 21-C/92s, sobre o Uso e Aproveitamento da Terra para fins
Agrícolas), a Lei do Ordenamento do Território, a Lei do Investimento Estrangeiro, a
Lei dos Petróleos (revogando a Lei 13/78 das Atividades Petrolíferas), entre outras.
Esses instrumentos legais, por definirem os moldes de acesso e uso de recursos
fundamentais como a terra, o planeamento estratégico do espaço geográfico, o petróleo
(cujos proventos constituem a principal fonte de receita do orçamento nacional) e a
intervenção do investimento estrangeiro no país, tanto podem contribuir para a
manutenção ou agravamento da situação atual, como para uma mudança progressiva,
através do combate à pobreza, do desenvolvimento do capital humano e melhoria dos
indicadores de desenvolvimento humano, da redução das desigualdades sociais, da
criação de empregos e de oportunidades de geração de rendimentos, da democratização
e modernização da sociedade num ambiente de mais justiça e equidade sociais.
No processo de aprovação da nova Lei de Terra, a Rede Terra realizou debates e a
recolha e análise de opiniões de cidadãos e organizações sociais e econômicas, com
vista à elaboração de um documento reflectindo a posição da sociedade civil sobre a
gestão dos recursos naturais no país. A consulta realizou-se em comunidades de 10
províncias do País, e recolheu informações, opiniões e propostas para enriquecer o
debate e melhor adequar o anteprojecto da Lei de Terras à diversidade sócio-cultural e
económica do contexto angolano. O seu principal objectivo era contribuir para a
elaboração de um instrumento legal eficaz e efectivo no combate à pobreza e na
promoção do desenvolvimento das potencialidades do país, mas poucas das suas
propostas e sugestões foram, realmente, acomodadas na lei aprovada.
Apesar de a Lei Constitucional vigente (Lei 23/92, de 16 de Setembro) ter consagrado
na “Angola pós-colonial, um Estado unitário descentralizado e desconcentrado”35, mais
de uma década depois o poder permanece centralizado ao mais alto nível das
35 GUEDES, Armando Marques et alii (2003), op. cit.
instituições estatais. O governo de Angola vem analisando a questão do poder local com
o apoio do PNUD, com vista a desenhar um programa de descentralização. Estudos
realizados no âmbito desse programa sugeriram a apresentação à sociedade de uma
estratégia de descentralização, a qual foi aprovada em 2001 e prevê a eleição de
governos e assembleias locais. Este estudo teve como sequência uma outra pesquisa36,
que envolveu todos os governos provinciais e um grande número de municípios;
aprovado em Julho de 2003, este estudo produziu informações básicas para as políticas
públicas, identificando funções para os governos locais, necessidades em capacitação e
treinamento, princípios da descentralização fiscal, sugerindo a implementação de
projectos-piloto em alguns municípios. Embora sem grande visibilidade, decorre a fase
experimental dos projetos-piloto em municípios selecionados, alguns em Luanda.
A excessiva centralização e concentração de poderes em instituições da cúpula do
Estado, designadamente na presidência, limita as possibilidades de participação dos
cidadãos nas decisões sobre os problemas nacionais, e mantém um clima institucional
de pouca permeabilidade à manifestação das visões e anseios da diversidade de culturas
que integram Angola. Apesar do programa de descentralização e de desconcentração
política e administrativa se encontrar numa fase incipiente de implementação, a causa
da descentralização e a participação na diferentes etapas da sua implementação,
particularmente nas atividades de mobilização e de consulta, e na criação das condições
para a institucionalização de estruturas representativas de poder local, podem constituir-
se em oportunidades para a intervenção da sociedade civil em Angola.
O sistema político caracteriza-se pela forte polarização em torno dos dois partidos
protagonistas da guerra civil, e pela fragmentação devida à existência de mais de uma
centena de partidos registrados no Tribunal Supremo, a grande maioria sem
protagonismo nem visibilidade social. O sistema de representação política (legislativo) é
constituído por uma única câmara com 220 deputados, e não tem o seu mandato 36 MAT (Ministério da Administração do Território)/PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) (2003), Estudo sobre a Macro-Estrutura da Administração Local: contribuição para a desconcentração e descentralização. Luanda, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
renovado há 13 anos, o que levanta questões do ponto de vista da sua legitimidade. O
seu mandato e organização institucional são fracos, o que se reflete na reduzida
capacidade de iniciativa legislativa, e na ligação esparsa e difusa com as respectivas
bases eleitorais devido não apenas ao sistema de eleição (em partidos e não em
deputados), mas também aos reduzidos contactos com as bases37.
Face às fragilidades e constrangimentos do contexto institucional de Angola,
sumariamente apresentado, constata-se que a produção de um quadro teórico capaz de
acomodar as condições políticas e institucionais para a mudança constituiria uma fonte
de motivação para a transformação progressiva da realidade. A importância da sua
criação reside no fato de permitir compreender os fenómenos sociais da atualidade e o
ambiente no qual se desenvolvem as relações sociais e de poder em Angola, identificar
os atores sociais com influência e visibilidade no espaço público38, as suas matrizes
discursivas e as ideias e interesses que transmitem, ganhar sensibilidade para reconhecer
os seus ritmos e códigos diferenciados, e perceber as possibilidades criativas de
soluções envolvendo racionalidade e emoção, teoria e prática. O estabelecimento de
“pontes de comunicação” entre os imaginários sociais e as práticas dos mundos da vida
presentes nesse espaço, permitiria questionar as particularidades da modernidade e da
tradição, sem recorrer à dicotomia entre elas.
Neste sentido, a introdução sumária de Angola visou caracterizar o ambiente
institucional em que se criam e recriam as formas de ser e estar que coexistem no seu
espaço público, e identificar as possibilidades e/ou oportunidades e os constrangimentos
e/ou dificuldades que esse ambiente oferece ao estabelecimento de articulações entre
elas. A discussão teórica recorre às teorias dos processos civilizacionais, da
modernidade e da globalização, com vista a esboçar um quadro teórico que acomode as
preocupações e propostas mais amplas das sociedades não ocidentais, em particular a
sua inclusão no processo de globalização. Por último, sugere-se uma estrutura de análise
que, por facilitar a compreensão das interações entre os atores sociais angolanos aos
diversos níveis, contribua para compreender as dinâmicas da estruturação do espaço
público em Angola.
37 AMUNDSEN, Inge; ABREU, Cesaltina; HOYGAARD, Laurinda. (2005), “Angola on the Move: The Parliament of Angola”. Bergen/Luanda, Christian Michelsen Institute (CMI)/Instituto de Pesquisa Econômica e Social (A-IP). 38 Os estratos condutores são os grupos sociais ou intelectuais capazes de transportar estas ideias ou visões de mundo para a realidade e exercerem influência social. SOUZA, Jessé (2000), A modernização selectiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília, Universidade de Brasília Editora.
III – NOS CAMINHOS DA MODERNIDADE Associando ideias a partir da caracterização institucional apresentada e da discussão
sobre a modernidade e a tradição, a expectativa é identificar um processo de
modernidade em Angola experimentado de forma diferenciada, não uniforme, em
resultado das diferentes construções do imaginário e das distintas práxis dos diversos
grupos sociais em contacto, formatadas ao longo de gerações na interface da relação
com o outro, gerando traços sócio-culturais distintivos uns, e comuns, outros, fundados
na herança de um passado comumente partilhado.
1. Discutindo a Modernidade
Durante o século XX, profundas transformações políticas, econômicas, tecnológicas e
sociais criaram ambientes institucionais e de sociabilidade que mobilizam as atenções
da academia e de grupos sociais, na busca pelos quadros de referência para compreender
as relações de poder e as formas de socialização nas sociedades atuais. Principalmente
após a segunda guerra mundial, o desenvolvimento tecnológico, em especial nas
comunicações, esteve na origem de acontecimentos que marcaram de forma inexorável
a própria modernidade.
No Ocidente, estas mudanças têm sido interpretadas pelos cientistas sociais segundo
duas correntes: para uns, continuamos na modernidade, entendida como radical em
Giddens, como hipermodernidade em Touraine, ou como articulada mista em
Domingues; para outros, as mudanças definem um quadro inteiramente novo das
relações sociais e das formas de solidariedade que geram, apontando para uma nova fase
da modernidade, que denominam de pós-modernidade. Como pano de fundo desta
discussão, intrinsecamente relacionada com as análises sobre o processo de globalização
e as formas diferenciadas da “globalidade” (a condição correlata) nos diversos
quadrantes do mundo, as abordagens sobre civilizações e processos civilizacionais
dividem-se entre os argumentos que defendem “o fim das ideologias” e as apologias à
utopia de um mundo melhor, com base no reconhecimento e respeito pela diversidade
de maneiras de estar e ser na modernidade39. Inseridos nestas perspectivas, os quadros
de referência orientais e africanos identificam uma modernidade desigual, não uniforme,
reivindicando o direito de participar e de contribuir para o progresso da humanidade
como uma civilização, um todo, embora diferenciado.
2. “Fim da História”, “Choques de Civilizações” ou “Encontros Civilizacionais”?
O Fim da História40 defende que o colapso do comunismo significa que a civilização
ocidental está destinada a espalhar-se, porque em todo o mundo as pessoas procuram os
benefícios da tecnologia, a riqueza e a liberdade individual que ela promete. A tese do
Choques de Civilizações41 argumenta que o fim da União Soviética e da guerra fria não
criam um ambiente de paz, muito menos uma aceitação mundial da democracia liberal.
Nesta perspectiva, a tecnologia que todos procuram será investida para produzir riqueza
que será distribuída de forma crescentemente desigual, a liberdade será selectivamente
negada aos destituídos, e os pequenos conflitos ideológicos serão transformados em
conflitos entre povos com diferentes religiões, valores, etnicidades, e memórias
históricas percebidas como civilizações distintas. A crescente adopção de estratégias de
desenvolvimento com base na produção industrial, na educação técnica, na urbanização
e no comércio capitalista, não significa para Huntington uma adesão à cultura ocidental,
sendo de esperar, pelo contrário, que esse aumento de riqueza material conduza à
tentativa de afirmação da soberania cultural, com base em novos compromissos com
valores, costumes, tradições e religiões das culturas nativas. Segundo ele, a tendência é
de que as nações estabeleçam alianças com base em proximidades civilizacionais e não
ideológicas, e as guerras venham a acontecer nas linhas de demarcação das grandes
civilizações, principalmente entre as avançadas e as atrasadas.
Uma crítica42 à abordagem do Choques de Civilizações defende a redução progressiva
dos gaps tecnológicos e culturais entre sociedades com base na premissa de que as
pressões sociais evolucionárias tendem a encaminhar todas as sociedades para a
39 HOUTART, François. (org.) (2000), “Mondialisation, Acculturation et Résistances”, in François Houtart (org.), Cultures et mondialisation. Résistances et alternatives. Centre Tricontinental. Paris, L’Harmattan. HOUNTONDJI, Paulin. J. (2000), “Cultures Africaines et Mondialisation: un appel à la résistence”, in François Houtart (org.), Cultures et Mondialisation: Résistences et Alternatives. Paris/Dakar, L’Harmattan, pp.47-55. 40 FUKUYAMA, Francis. (1992), The End of History and the Last Man. New York, Free Press. 41 HUNTINGTON, Samuel. (1996), The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order. New York, Simon and Schuster. 42 CHIROT, Daniel. (2001), “A Clash of Civilizations or of Paradigms?: Theorizing Progress and Social Change”. International Sociology, vol.16, nº. 3, pp. 341-360.
modernização, e conclama os cientistas sociais a produzir teorias que melhor expliquem
a mudança social, orientando as políticas nas direções mais adequadas. A recente
migração do conceito de globalização dos mídia para o âmbito da teoria social e da
filosofia política é indicativa da necessidade de mudança nos quadros analíticos teóricos
disponíveis, uma vez que a reflexão teórica é um instrumento fundamental para
estabelecer a estrutura normativa indispensável nesta era de grande transformação
política e social. Contudo, a teoria crítica da globalização precisa aprender com os erros
do passado, mostrando-se mais aberta a aceitar as consequências da pluralidade, e o
desafio de eliminar o seu eurocentrismo.43
No âmbito da discussão sobre o crescimento do poder do império globalizante do
capital, as teses de Fukuyama e Huntington têm sido entendidas como mecanismos de
defesa em reação à mudança demográfica nos Estados Unidos, em si própria um
barómetro das mudanças causadas pela migração do trabalho em todo o mundo,
alterando radicalmente a presumida estabilidade das culturas nacionais e suas supostas
fronteiras civilizacionais. A reafirmação do pensamento civilizacional nos dias de hoje
mostra-se não só conservadora como retrógrada44, uma espécie de outra face da moeda
do imaginário do Oriente enquanto oposto simbólico do Ocidente. O essencialismo
cultural e o carácter binário da teoria de Huntington não consideram a lógica dos
imperativos político-econômicos que condicionaram as diferenças e os compromissos,
buscando nas diferenças civilizacionais os elementos para definir e qualificar em “tipos”
as sociedades neste mundo globalizado, em lugar de privilegiar uma interrogação
histórica e cultural mais original sobre as diferenças nas racionalidades económicas e
políticas, ou seja, como tecnologias específicas, regimes éticos e sistemas
administrativos articulam as transformações contemporâneas45.
Os pensamentos civilizacionais de Fukuyama e Huntington manifestam intolerância em
relação a valores e tradições de outras culturas, e expressam uma colagem entre
“civilização” e “Ocidente”, transmitindo a ideia de que a modernidade é uma
43 KOZLAREK, Oliver. (2001), “Critical Theory and the Challenge of Globalisation”. International Sociology, vol. 16, nº. 4, pp. 607-622. 44 DABASHI; Hamid. (2001), “For the Last Time: Civilizations”. International Sociology, vol. 16, nº. 3, pp. 361-368. 45 ONG, Aihwa. (1999), “Saying No to the West: Liberal Reasoning in Asia”, in Aihwa Ong (org.), Flexible Citizenship. The Cultural Logics of Transnacionality, Duhram/London, Duke University Press, pp. 185-213.
característica exclusiva das sociedades ocidentais46. Lembrando que os Estados Unidos
definem a sua guerra contra o terrorismo global como um esforço defensivo para
proteger o seu estilo de vida dos ataques de inimigos com motivações culturais e
religiosas e que rejeitam a modernidade ocidental, Henry Liu critica as proezas militares
do ocidente afirmando que “uma civilização construída com base na militarização da
paz permanece uma civilização bárbara”. Ao procurar impor “modernidade” como
sinônimo de “civilização ocidental”, o militarismo ocidental privou a humanidade de
um processo evolutivo da diversidade cultural. A civilização humana merece uma visão
mais rica da modernidade do que a oferecida pelo ocidente, sendo de prever que as
civilizações não-ocidentais continuarão a resistir à modernização até que esta se descole
da ocidentalização. Os poderes coloniais usaram o argumento da “incivilização” dos
povos locais para racionalizar o colonialismo, ao ponto de suprimir descobertas
arqueológicas na África do Sul com receio que a existência de provas de uma cultura
urbana sofisticada na África austral, anterior à colonização europeia, pusesse em risco o
seu argumento. Na fase pós-colonial recorrem ao imperialismo cultural, enquanto
promoção da cultura e da linguagem de uma civilização sobre outra, com vista ao
controle social e político, através de uma política formal e ativa de educação e de
oportunidades de emprego, ou de atitudes de superioridade. Mais explicitamente
associado aos Estados Unidos a partir da II Guerra Mundial, o imperialismo cultural
tem gerado reações não apenas fora do Ocidente, mas também nele próprio, como
aconteceu recentemente na França e no Canadá47.
A defesa dos diálogos entre civilizações na busca por uma ética global parece ser a
saída, porque não aconteceu, como antecipada, a transição da tradição para a
modernidade, sendo antes o processo de modernização constantemente reformatado por
uma variedade de formas culturais com raízes em tradições distintas48. Se os valores do
Iluminismo, racionalidade instrumental, liberdade, consciência de direitos, privacidade e
individualismo, são valores modernos universalizáveis, os valores asiáticos no quadro
do Confucionismo, simpatia, justiça distributiva, consciência do dever, ritual, espírito
público, orientação de grupo, também são modernos e universalizáveis, e capazes de
46 LIU, Henry C. K. (2003), The Abduction of Modernity, Part I: The Race toward Barbarism. Asia Times Online Co, Ltd. http://www.adelaideinstitute.org/Chine/liu.htm. 47 Idem. 48 TU WEI-MING. (1991), “Cultural China: The Periphery as the Center”, in The Living Tree: The Changing Meaning of Being Chinese Today, special issue of Daedalus 120, nº. 2, pp.1-32, e TU WEI-MING. (1993), “Confucianism”, in Arvind Sharma (org.), Our Religions. San Francisco: HarperSanFrancisco.
conformar um modelo alternativo ao ocidental. Se o Ocidente moderno moldado pelo
Iluminismo forneceu o primeiro ímpeto para uma transformação social a nível mundial,
o sudeste asiático foi a primeira região não-ocidental a tornar-se moderna, podendo a
modernização asiática vir a tornar-se uma referência crítica, e oportuna, à
ocidentalização contida na proposta do american way of life, porque os valores de que é
portadora são tão universalizáveis quanto os que conformam a modernidade ocidental.
Apesar de não ter sido abolida a dominação estrutural que estabeleceu as fronteiras
clássicas (simbólicas, culturais e estruturais) que produziram uma identidade africana
em oposição à ocidental, o pensamento crítico na África mostra um deslocamento
essencial na estrutura, formas e modalidades da relação do continente com o mundo. A
insuficiência do jogo dogmático dos termos binários não consegue mais dar conta da
definição da África nem da sua posição no mundo, pelo que a reflexão sobre a
problemática da raça, as questões de identidade, a reconstituição das sociedades civis e
dos espaços públicos, entre outras, deve ancorar-se numa perspectiva mais ampla de
produção do conhecimento, que contraponha à visão ocidental, homogeneizadora e
redutora ainda prevalecente sobre o continente, a diversidade da realidade africana49.
Mas para isso torna-se urgente a abertura das fronteiras, não apenas as geográficas mas
sobretudo as simbólicas, a criação de redes transnacionais transversais e diagonais, e a
formação de coalizões intelectuais capazes de introduzir uma perspectiva universalista
nos conhecimentos produzidos na e sobre a África, porque apenas “a polifonia
resultante dessa mistura permitirá que eles saiam do ghetto no qual, tanto o
afrocentrismo quanto o africanismo, permaneceram”50: do reconhecimento simultâneo
da diferença e do pluralismo, nascerá a inovação.
Sendo África uma entre os outros da modernidade, também não deixou a modernidade
intocada, apesar desta, entendida enquanto projeto ocidental, seja em geral percebida
como vitoriosa. Num entendimento de cultura como construções sociais de sentido
refletindo o total repertório das práticas, símbolos e sentidos/significados a partir dos
quais as formas hegemônicas são fundidas (ou sintetizadas) nos termos de Gramsci, a
49 MBEMBE, Achille. (2000), “Le Fin des Monologues”. Éditorial, Bulletin du CODESRIA, Número 1, Dakar. FERJANI, Mohamed-Chérif. (2001), “World Plurality and ‘War of Cultures’”. CODESRIA Bulletin, vols. 3&4, Dakar, pp. 6-9. 50 MBEMBE, Achille. (2000), op. cit.
cultura torna-se num fenômeno dinâmico, em mudança, o espaço no qual os seres
humanos procuram construir e representar a si próprios e aos outros51.
A interação entre culturas modernas e pré-modernas resultou em tais sínteses, visíveis
em toda a África, que refletem a capacidade de integrar diversos elementos culturais
através de hibridações que diluem as contradições levantadas pelo pensamento dualista
dominante no Ocidente. Esta hibridação é provavelmente mais uma questão de
sobrevivência do que de escolha, mas aqueles que são capazes de fazer o melhor de
ambos os mundos, são os melhor equipados para sobreviver num mundo onde o
moderno e o pré-moderno estão em constante interface. Para além de oferecer
excelentes oportunidades para o debate e a pesquisa, esta interface fornece, ainda, uma
chave hermenêutica para a compreensão dos principais fenômenos culturais, políticos e
religiosos da África moderna52.
A perspectiva dos encontros entre civilizações no espaço e no tempo, contribui para a
elaboração de uma teoria interacionista desses processos, através de um modelo de
análise dos padrões civilizacionais com base em três fatores inter-relacionados:
interpretações culturais do mundo (entendidas como problemáticas latentes compatíveis
com a variedade das articulações), constelações institucionais (principalmente nos
domínios político e econômico) e representações ideológicas, incorporadas nas
estratégias e nas imagens que fazem de si as elites sócio-políticas. A dinâmica destes
factores relacionados deve ser analisada tanto ao nível dos complexos civilizacionais
envolvendo famílias e sociedades na dimensão histórica, abrangendo portanto
sucessivas gerações, quanto nas suas configurações regionais e respectivos padrões
históricos distintivos53.
O argumento dos “encontros civilizacionais” de Arnason é construído em torno de uma
noção de civilização com um duplo sentido, unitário e pluralista. A civilização, no
singular, remete ao conceito de processo civilizacional de Norbert Elias, abrangendo
todos os povos e culturas; as civilizações, no plural, cujo estudo só há poucas décadas
ganhou espaço nas ciências sociais com as análises comparativas de Eisenstadt,
51 BALCOMB, A . O . (1995), op. cit. 52 ASIKE, Joseph I. (1992), “Contemporary African Philosophy: The Search for a Method or Rediscovery of its Content?”. Indian Philosophical Quarterly, vol. 19, nº.1, pp.23-39. 53 ARNASON, Johann P. (2001), “Civilizational Patterns and Civilizing Processes”. International Sociology, vol. 16, nº.1, pp. 369-386.
caracteriza e remete a processos particularizados, localizados. Devido a este duplo
sentido, o argumento abre oportunidades para inovações culturais que servem de pontos
de partida para transformações históricas das civilizações, cuja interpretação tem
mobilizado os teóricos da modernidade, dando lugar a distintas abordagens.
3. Modernidade e civilização
A interpretação da modernidade para Eisenstadt54 organiza-se em torno da ideia de
múltiplas modernidades em resultado da tendência geral de diferenciação estrutural das
instituições, na maior parte das sociedades, segundo padrões indiscutivelmente
modernos apesar de influenciados por premissas culturais, tradições e experiências
históricas específicas, dando origem a dinâmicas modernas e modos de interpretação
distintos dos que constituem o eixo da análise que tem como ponto de partida o conceito
de modernidade ocidental. Segundo ele, a ideia de múltiplas modernidades é a melhor
maneira de compreender o mundo contemporâneo como a história de um continuum de
constituições e reconstituições de uma multiplicidade de programas culturais. Estas
construções e reconstruções são realizadas por atores sociais específicos (elites) em
estreita ligação com ativistas sociais, políticos e intelectuais, e por entidades coletivas,
como movimentos sociais55.
Referindo-se à dimensão civilizacional, Eisenstadt56 defende a ideia de que esta
modernidade deve ser entendida como uma civilização distinta, mas não restrita. A
modernidade representa um novo tipo de civilização, cujo aspecto central consiste, para
além da abertura sem precedentes e crescentes níveis de incerteza, na cristalização e
desenvolvimento dos modos de interpretação do mundo ou dos distintos imaginários
sociais ou diversos programas culturais, combinados com o desenvolvimento de um ou
mais conjuntos de novas formações institucionais. Ou seja, esta civilização corresponde
a um programa cultural distinto, com as respectivas implicações institucionais, que
primeiro cristalizou na Europa Ocidental e América do Norte, expandindo-se depois
pelo mundo, dando lugar a uma contínua mudança cultural e de padrões institucionais,
que constituem diferentes respostas aos desafios e possibilidades inerentes ao conjunto
central das características das distintas premissas civilizacionais da modernidade.
54 EISENSTADT, Schmuel N. (2001), Patterns of Modernity. New York,, New York University Press. 55 EISENSTADT, Schmuel N. (2000), “Multiple Modernities”. Daedalus, Winter 2000, pp. 1-29. 56 EISENSTADT, Schmuel N. (2001), “The Civilizational Dimension of Modernity: Modernity as a Distinct Civilization”. International Sociology, vol.16, nº. 3, pp. 320-340.
As abordagens de Eisenstadt e de Arnason fornecem importantes elementos para a
interpretação da modernidade e o entendimento das relações entre culturas na era da
globalização, designadamente a ideia dos encontros civilizacionais ou interfaces, que
constituem um quadro de referências necessário ao entendimento de processos que
marcaram a história da humanidade e, sobretudo, a história da África, como a
escravatura, o colonialismo e o apartheid. Contudo, mostram-se redutoras no que
respeita à agência humana (embora Arnason defenda espaços de interação nas interfaces
dos encontros civilizacionais), e elitistas ou, no mínimo, muito seletivas no que tange
aos atores sociais a que ambos os autores atribuem protagonismo. Propõem, também,
um conteúdo homogeneizador, ao praticamente circunscrever os complexos
civilizacionais às fronteiras territoriais do estado-nação, abrindo a possibilidade de
identificação de sub-civilizações regionais dentro dos estados. Isso significaria quase
duas centenas de modelos de modernidade, quando a realidade, ainda que fragmentada,
não parece reconhecer-se nessa abordagem: os estados e suas populações desenvolvem-
se predominantemente segundo suas dinâmicas internas, mas nesse processo interagem
com outros estados, povos e instâncias supranacionais, e essa relação influencia as suas
próprias dinâmicas57.
Opondo-se ao pós-modernismo e criticando as abordagens de Eisenstadt e Arnason pelo
protagonismo que ambos atribuem às elites, Domingues alarga a base de contribuição
no processo de modernização aos indivíduos e às subjetividades coletivas que eles
constróem para responder aos desafios da vida atual. Para ele as civilizações devem ser
entendidas como sistemas sociais bem amplos, grandes subjetividades coletivas, com
um baixo nível de centramento, onde prevalecem princípios organizadores como
hierarquia, competição e conexão. Considerando que a modernidade não se apresenta
uniforme, e reconhecendo as mudanças significativas que se vêm operando, Domingues
argumenta que elas não provocaram uma ruptura civilizacional porque, se foram
produzidas novas instituições e formas de consciência mais adequadas e eficientes ao
pluralismo societal crescente, elas convivem com as velhas instituições incorporadas
nas relações sociais, nos comportamentos e formas de consciência anteriores,
tradicionais. “Em grande medida estas instituições e formas de consciência modernas
57 DOMINGUES, José M. (2003), Do Ocidente à Modernidade, intelectuais e mudança social. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
são produtos inesperados de desejos e opções diários dos indivíduos, e não o produto de
ações intencionadas de elites políticas e culturais”58.
Caracterizando a atual como a terceira fase da modernidade, com um maior grau de
complexidade da realidade social e, em consequência, uma maior tendência à
fragmentação e uma crescente importância de mecanismos de coordenação mais
flexíveis e inovadores, Domingues defende que se encontra favorecida a recriação de
novas formas de solidariedade num contexto social difícil, marcado pelo
individualismo, o familismo e o privatismo crescentes, como sub-produtos do
desenvolvimento do capitalismo. Tais mecanismos de coordenação ocupam um espaço
no qual nem o Estado, nem o mercado, se mostram capazes de, por si sós, articularem
respostas eficientes às demandas crescentes e diversificadas59. Para além da
reflexividade e da criatividade, esta abordagem destaca o maior grau de incerteza e de
contingência das relações sociais nesta fase da modernidade.
Esta estrutura de análise acomoda a maior fragmentação e complexificação, os novos
mecanismos de coordenação, os novos atores sociais e as novas formas de solidariedade
e responsabilidade social que caracterizam as sociedades contemporâneas, dando espaço
para formas alternativas e criativas de interação social60. Sugere uma interpretação da
modernidade através da identificação das suas características mais específicas e dos
modos como, em contextos de maior ou menor pluralidade e abertura à inovação e à
criatividade, os arranjos diferenciados de categorias como a cidadania, (envolvendo
identidades, direitos e deveres), a liberdade, a igualdade, a solidariedade, a
racionalidade (e o domínio sobre a natureza), e a responsabilidade, podem “definir os
padrões institucionais que estruturam a reprodução das esferas fundamentais da vida
social”61.
A interpretação contextual da modernidade proposta permite identificar os atores sociais
envolvidos e compreender as relações que estabelecem entre si, as distintas estratégias a
que recorrem, os níveis de tolerância com a diferença e a diversidade que são capazes de
58 Idem. 59 DOMINGUES, José M. (2002), Interpretando a Modernidade: Imaginário e Instituições. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas. 60 DOMINGUES, José M. (2004), Ensaios de Sociologia: teoria e pesquisa. Belo Horizonte, UFMG Editora. 61 DOMINGUES, José M. (2002), op. cit.
produzir recorrendo à criatividade, à inovação, à imaginação, e aos valores plurais da
liberdade, igualdade e solidariedade. O seu amplo quadro de referências acomoda a
pluralidade de formas de interação e organização social incluindo a articulação em rede,
o que dá espaço para as estruturas e relações informais tão presentes na sociedade
angolana. Permite, ainda, compreender o processo de mudança institucional e a
convivência entre as novas e as velhas instituições, também uma característica de
sociedades em transição. A abordagem da modernidade articulada mista fornece um
vasto campo de oportunidades, provavelmente por ser fruto de uma “articulação mista”
entre o pensamento ocidental da sua formação acadêmica e a vivência / experiência
latino-americana do autor. Contudo, a abertura a outros quadros de referência,
particularmente aos africanos, é mais sugerida do que integrada.
4. Buscando subsídios na discussão sobre globalização Se o conceito de modernidade tem sido objeto de inúmeras e diversificadas
interpretações e abordagens, que a discussão anterior mostrou apenas em parte, o
conceito de globalização tem gerado bastante controvérsia, não só na academia, mas
também na prática discursiva, porque essa discussão constitui o pano de fundo para o
entendimento do mundo, das relações de poder nele existentes, do self e das identidades
coletivas em que ele se reconhece, o seu próprio papel e o protagonismo de outros
atores locais, regionais, nacionais, internacionais ou globais. É uma discussão que tem
implicações profundas na forma como os indivíduos e as coletividades se percebem
incluídos ou excluídos da marcha da humanidade em direção ao futuro.
A discussão sobre a modernidade é bastante influenciada pelos imaginários sociais dos
seus proponentes, parecendo visível a distinção fundamental entre uma maior
centralidade no self, no eu no Ocidente, enquanto a busca do nós se faz mais presente na
África e também na Ásia. Os pontos de partida, mais ou menos amplos na ótica do
espaço social a que se reportam, mais ou menos específicos segundo as dimensões que
endereçam, e mais ou menos abertos no concernente às ideologias que constróem ou nas
quais se inserem, refletem-se na estrutura das análises sobre arenas do poder,
contestação política e principais atores nelas envolvidos, revelando variações
contextuais, empíricas e normativas da relação entre estados, mercados e sociedade
civil62.
Caracterizando a terceira fase da modernidade como uma civilização global, híbrida em
resultado da sua combinação com outras fontes civilizacionais e fragmentada devido às
inúmeras particularidades, contrações e tensões na qual se integram todas as
subjetividades coletivas63, a abordagem de Domingues fornece um quadro de
referências capaz de contribuir para a compreensão da inserção de Angola no tempo de
mundo. Apesar de não ter constituído preocupação expressa do autor a sua aplicação aos
contextos africanos, as suas características intrínsecas designadamente, a maior
heterogeneidade e complexidade atual, e a coexistência de três princípios de
organização / coordenação das interações sociais, o mercado, a hierarquia do Estado, e
as redes, respondendo respectivamente pela troca voluntária, o comando e a colaboração
voluntária, interpenetrando-se e influenciando-se mutuamente64, criam a base e dão
espaço a contribuições de outros autores, o que permite a criação de um quadro analítico
inclusivo das realidades africanas contemporâneas no tempo do mundo.
A análise de Appadurai parece oferecer mais valias no concernente ao papel da
imaginação em proporcionar os meios pelos quais os indivíduos são capazes de
estabelecer as fronteiras entre a fantasia e os aspetos potencialmente produtivos da
imaginação, mantendo-se nesses limites como agentes em lugar de sonhadores da
fantasia coletiva do capitalismo tardio, porque contribui para compreender as pressões
do global sobre o local, colocando-as no centro das explicações dos processos que
ocorrem em ambos os níveis. A sua noção de “escolha consciente” também abre
caminhos à teorização da criação e da ação em diversas arenas de escolha, de
justificação e de representação, como oportunidades para a expressão da diversidade em
tempo global65.
O argumento da “escolha consciente” fornece a chave para a discussão das possíveis
respostas da agência humana à sensação da falta de alternativas ao projeto da
modernidade. Se por um lado essa sensação indica um esgotamento do projeto em si, 62 HIGGOUT, Richard & REICH, Simon. (1998), “Globalisation and Sites of Conflict: Towards Definition and Taxonomy”. Centre for the Study of Globalisation and Regionalisation, University of Warwick, Working Paper 01. 63 DOMINGUES, José .M. (2004), op. cit. 64 DOMINGUES, José M. (2004), op. cit. 65 APPADURAI, A. (1996), “Modernity at Large. Cultural Dimensions of Globalization”. Public Worlds, vol.1. University of Minnesota Press, Minneapolis.
por outro coloca a hipótese de reinvenção de um novo paradigma, no âmbito do qual
seja possível situar um projeto mais abrangente de oportunidades sociais, econômicas e
políticas, mais justiça social, criando espaços de conciliação dos dilemas da liberdade e
da igualdade, do local e do global, onde o respeito pela diferença se desenvolva, tendo
como quadro de referências os valores universais de afirmação da dignidade humana,
através de uma nova ideia de solidariedade, com base na utopia de não reduzir o
realismo ao que existe, e numa nova concepção de direitos humanos, numa perspectiva
de reinvenção cosmopolita de redes de linguagens de emancipação nativas, que as torna
mutuamente inteligíveis e traduzíveis66.
A persistência da pluralidade cultural alimentada pelo ressurgimento das culturas locais,
o reavivar de identidades étnicas e regionais, e a eclosão das respectivas estruturas
organizativas, contradiz o pressuposto de que o paradigma da modernidade imprimido
no processo de globalização, conduziria ao triunfo inevitável do modelo ocidental,
como padrão cultural único e universalmente aceite. Apesar da expansão dos mercados
à escala planetária que, supostamente, produziria a diluição das diferenças, a realidade
do mundo é marcada por uma imensa pluralidade. A compreensão da realidade africana
em particular, requer a análise em cada situação do modo pelo qual os sistemas
tradicionais evoluem sem serem destruídos, através do recurso sistemático às suas
lógicas para alcançar objetivos econômicos modernos. As sociedades africanas
contemporâneas são exemplos eloquentes da sobrevivência da diversidade cultural,
persistindo em desafiar as lógicas que lhes têm sido impostas, a despeito das enormes
pressões externas e das dinâmicas globais que marcam a nossa época67.
5. Um quadro teórico desejável
De uma forma geral, prevalecem nas abordagens do pensamento ocidental as análises
que remetem a problemas identitários, individuais e coletivos, construídas no âmbito do
paradigma neoliberal que se impôs à falência do estado de bem-estar e às
recomposições sociais que se seguiram ao fim da guerra fria, não oferecendo muitas
possibilidades de inclusão de outras formas de pensar o mundo e as relações sociais,
66 HAMOUDA, Hakim ben. (2000), op. cit. DIOUF, Mamadou. (2000), “Commerce et Cosmopolitisme – le cas des diasporas mourides au Senegal”. Bullettin du CODESRIA, Número 1, pp. 20-29. 67 NICOLAU, Victor Hugo. (1999), “Cultura ‘Tradicional’ e Processo de Democratização em África”. TRAVESSIAS, nº. 1, pp.169-182..
para além das contidas no modelo da modernidade ocidental, com pretensões
hegemônicas.
Na breve incursão apresentada sobre o que o pensamento oriental e africano produz,
propõe e aspira, tornam-se visíveis diferenças substanciais nas formas de olhar e
procurar compreender o mundo de hoje e as relações entre os seres humanos que o
habitam: reivindicando a sua inclusão no processo de globalização em curso, estas
abordagens não se apresentam com pretensões hegemônicas, buscando outrossim,
oportunidades de encontros e de interação com outros modos de pensar o mundo e a
vida.
Com base na constatação de que “as tradições continuam a marcar a sua presença na
modernidade”68, a construção deste quadro teórico privilegia as abordagens capazes de
refletir as distintas formas pelas quais, em todo o mundo, diversas faces da modernidade
se vão construindo em resultado da interação de processos globais e locais, permitindo a
inclusão de outros entendimentos de si e dos outros, de novos atores sociais e de novas
agendas. No caso específico de África, torna-se necessário contrapor à visão
homogeneizadora e redutora dos opostos binários ainda prevalecente sobre o continente,
a diversidade da realidade africana69, capaz de realizar as sínteses defendidas por
Asike70, porque os que são capazes de fazer o melhor de ambos os mundos, são os
melhor equipados para sobreviver num mundo onde o moderno e o pré-moderno estão
em constante interface.
A adopção da perspectiva das interfaces da pré-modernidade e da modernidade
acomoda o argumento de que, ao contrário das diferenças civilizacionais, as diferenças
nas racionalidades económicas e políticas permitem uma análise mais promissora para a
interpretação das relações entre as sociedades e a modernidade no mundo atual71.
Permite, ainda, abrir um leque mais rico de visões da modernidade oferecidas à
civilização humana pelos processos evolutivos da diversidade cultural prevalecente, em
68 Tu Weiming (1991/1993), op.cit. 69 MBEMBE, Achille. (2000), op. cit.; NEGRÃO, José. (2004), op. cit. 70 ASIKE, Joseph I. (1988), op. cit. ASIKE, Joseph I. (1995), “Cultural Identity and Modernity in África: a case for a new philosophy”, in Theophilus Okere (org.), Identity and Change. Nigerian Philosophical Studies I (Cultural heritage and Contemporary Change Series II), volume 3. http://www.crvp.org/book/series02/II-3/chapter-ii.html. 71 ONG, Aihwa. (1999), op. cit.
oposição às imagens deturpadas pelo militarismo ocidental72. As interpretações das
experiências únicas de modernização das culturas não-ocidentais devem ser entendidas
nas interfaces de exposição e interação do universalismo e do particularismo, da teoria e
da prática, e da acomodação e do criticismo73, e as diferenças culturais percebidas como
produzidas por, e relacionadas com, desigualdades sociais e exclusão, e não como
produtos de processos de reprodução, não devendo por isso ser entendidas como opostas
a um individualismo moderno, porque os indivíduos podem ter interesses pessoais,
instrumentais ou subjetivos, para escolher uma certa identidade coletiva74.
Como o particularismo e o universalismo são construções sociais, transformar este
cenário teórico num ambiente sócio-político que propicie a integração de Angola “no
tempo do mundo”, e a construção de um clima de confiança entre indivíduos e grupos
sociais75 com base no respeito pelas suas identidades culturais, na partilha do poder, nas
garantias de representação, e na opção por regimes políticos que promovam a
autonomia regional (como a federação ou a consociação), requer vontade política e o
engajamento da maior diversidade possível de actores sociais, para que o potencial de
mudança que a nova era de paz semeou, encontre terreno fértil à sua concretização,
aproveitando as oportunidades da interação e sinergias na região, no continente e no
planeta.
A perspectiva de constante re-adaptação da estrutura contemporânea que confere
flexibilidade e movimento às culturas no contínuo ciclo de mudança do processo de
modernização, cria oportunidades para a negociação de novos pactos sociais, incluindo
consensos de fins e de meios, e dissensos com base no respeito e reconhecimento dos
mesmos enquanto “desacordos morais”76, na terminologia de Taylor. As formas de
72 LIU, Henry C. K. (2003), op. cit. 73 MYOUNG-KYU, Park & KYUNG-SUP, Chang. (1999), Sociology between Western Theory and Korean Reality: Accomodation, Tension and a Search for Alternatives. International Sociology, vol. 14, nº. 2, pp. 139-156. 74 WIEVIORKA, Michel. (2004), “The Making of Differences”. International Sociology, vol.19, nº. 3, pp. 281-297. 75 Sobre este tema ver, entre outros, MISZTAL, Bárbara (1996), Trust in Modern Societies: The Search for the Bases of Social Order. Cambridge, Polity Press; OFFE, Claus (1999), “How Can We Trust Our Fellow Citizens”, in M.E. Warren (org.), Democracy and Trust. Cambridge, Cambridge University Press; WALZER, Michael (1997), On Toleration. Yale University Press. New Haven/London; GAMBETTA, Diego (1988), “Can We Trust Trust?”, in Diego Gambetta (org.), Trust Making and Breaking Cooperative Relations. Cambridge, Basil Blackwell, pp.213-237; KELLER, Edmond (2001), Culture, Politics and the Transnationalization of Ethnic Conflict in Africa in the Era of Globalization. African Studies Association, 44th Annual Meeting, November 15-18, Houston. 76 A inclusão de uma vasta gama de desacordos morais dignos de respeito, oferecendo a oportunidade de defender posições de dissenso, com seriedade moral, criaria as condições para uma aprendizagem de convivência com a diferença. TAYLOR, Charles (1993), El multiculturalismo y ‘La Política de Reconocimiento’. México: Fondo de Cultura Económica.
articulação e de influência entre as “matrizes tradicionais” do ambiente multicultural de
Angola, e o processo de modernização, produzem distintos arranjos a partir da mútua
apropriação de elementos modernos e tradicionais, conformando quadros diferenciados
de relações sociais e de acesso ao espaço público, ao nível das esferas que o constituem,
ou dos seus respectivos públicos.
CAPÍTULO 2: A SOCIEDADE CIVIL EM DEBATE I. INTRODUÇÃO
A construção do conceito de sociedade civil cria uma entidade com características
próprias dentro da sociedade, sendo o termo “civil” que qualifica este subconjunto. Que
atributos lhe conferem tal distinção? Por que “civil”?
A ideia de sociedade civil remete a uma delimitação no âmbito da sociedade política,
em princípio composta por todos os cidadãos detentores de cidadania política, excluindo
os privados de liberdade, os doentes mentais, os refugiados e os exilados políticos.
Contrapõe a uma visão inclusiva e universalista de cidadania, a ideia de uma cidadania
“civil”, mais selectiva e restrita, reservada ao conjunto de formas de auto-organização
social, intermediárias, distintas do Estado, da família, e do mercado, com capacidade de
deliberação e de ação coletiva em defesa ou promoção dos seus direitos ou interesses,
sem a pretensão de exercer o poder, e que se regem por normas ou regras de civilidade.
O modo “civil” de olhar a árvore sem perder de vista a floresta, mobiliza valores como
igualdade, liberdade, tolerância, espírito público, sentido de justiça, solidariedade,
lealdade, e outros como virtude cívica e cidadania, opondo ao estado natural de todos
contra todos, e às formas hierarquizadas de organização social, estatal, religiosa, militar,
soluções produzidas por atores sociais em situações únicas, porque caracterizadas por
contextos socioculturais distintos77. Apesar das formas diferenciadas que assumem,
estas soluções parecem não só galvanizar os atores sociais envolvidos, mas também
constituir-se em formas efectivas, embora distintas, de resolução de problemas
coletivos. Para além de conter uma ideia de “movimento” devida à sua característica
inspiradora e mobilizadora, o conceito revela-se, ainda, um “acumulador” de camadas
de sentido, evidenciando uma extraordinária capacidade de sobreviver às torrentes da
77 KOSELLECK, Reinhart. (2002), The Practice of Conceptual History. Timing History, Spacing Concepts. Standford, Stanford University Press, California.
história, metamorfoseando-se, descodificando os seus múltiplos sentidos, comunicando-
se com as realidades que a ele recorrem, para se constituir em “bússula”, orientando o
caminho a seguir.
A uma estrutura de pensar a organização do político, do económico e do social,
fornecida pelo conceito teórico, agregou-se a praticidade da ideia política, inspiradora
da ação. A capacidade de agregar sentidos, e a plasticidade em adaptar-se aos distintos
contextos socioculturais nos quais é solicitado e aplicado, constituem algumas das
razões que explicam a centralidade do debate sobre o conceito de sociedade civil.
2. A reposição da ideia de sociedade civil no centro dos debates na academia, na política
e na economia enquanto conceito para compreender uma dada realidade, e como projeto
político para a transformar, provocou uma ampla mobilização em todo o mundo,
reanimando os discursos da missão civilizadora da modernidade, e operando uma
“mágica” no meio acadêmico em resultado da argumentação a ele endereçada, contra e
a favor, e da redescoberta de uma linguagem comum para falar dos ideais utópicos da
democracia e de comunidade moral78.
As referências à, e o debate sobre, sociedade civil, surgem num amplo leque de
discussões, cujos conteúdos vão da filosofia (ideologias e utopias), passando pela
política (nos planos nacional, regional, continental, internacional e global), a sociologia
(relações cidadão/Estado, organização do político, construção da cidadania,
modernidade, globalização, civilizações), a economia (a favor ou contra o modelo), a
antropologia (etnicidade, parentesco, família, religião), chegando à psicologia social
(identidades individuais, subjetividades coletivas, reconhecimento e respeito), para citar
alguns exemplos sem pretender esgotar a multiplicidade de abordagens do debate.
Do ponto de vista das motivações, as abordagens são também muito variadas: recorre-se
a sociedade civil para reforçar o estado democrático, mas também para atacar qualquer
forma de Estado; apela-se à sociedade civil para combater o capitalismo, mas também
para discutir estratégias de convivência com o mercado; sociedade civil é a utopia da
mudança radical, mas argumento para justificar reformas mais ou menos limitadas;
78 COMAROFF, John & COMAROFF, Jean. (1999), Civil Society and the Political Imagination in Africa. Chicago, The University of Chicago Press.
questiona a excessiva concentração de poder nos governos, mas também denuncia os
impactos do neoliberalismo, especialmente dos programas de ajustamento estrutural;
empresta conteúdo às reivindicações por inclusão, mas também serve para delimitar
espaços societais “civis” dos que não o são79; é por uns considerada como a “essência
vital da liberdade”80, e por outros como um espaço opaco, permeado de interesses
particulares81. São bastante diversas as formas explicativas de um conceito que, apesar
da sua longa história, continua carente de uma definição hegemónica82, enquanto
formulação capaz de orientar eticamente e liderar as análises da academia e dos atores
sociais (como acontece com os conceitos correlatos de Estado e de mercado), e
consensual, enquanto articulação pluralista de ideias e valores definindo uma unidade na
diversidade, e não a ausência de dissenso.
Apesar da diversidade dos contextos nos quais aconteceram, ou dos ângulos de
abordagem priorizados, as recuperações do conceito de sociedade civil debatem algum
tipo de crise política, econômica e/ou social, e reflectem um processo estruturado em
quatro vertentes principais: a) complexificação, diferenciação e fragmentação das
sociedades atuais; b) um mundo mais interligado e integrado, mais autónomo em
relação ao político, e com mais demandas de transparência no social; c) a crise da
democracia representativa e os efeitos socioculturais da globalização; e d) a expansão da
cultura democrática em geral, e da cultura participativa, em particular83.
3. Contudo, a teoria da sociedade civil em torno da identificação da vida associativa fora
do Estado84, parece não dar conta da complexidade da situação em Angola, mostrando-
se incapaz de explicar por que razão o crescimento do número de organizações da
sociedade civil não se reflecte numa maior abertura do espaço público angolano à
pluralidade de visões e de maneiras de estar em sociedade. Embora tenha havido um
79 WHITEHEAD, Lawrence. (1999), “Jogando Boliche no Bronx: os interstícios incivis entre a sociedade civil e a sociedade política”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 14, nº. 41, pp. 15-30. 80 DAHRENDORF, Ralf. (1997), Após 1989. Moral, revolução e sociedade civil. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra. 81 ARATO, Andrew. (1995), “Ascensão, Declínio e Reconstrução do Conceito de Sociedade Civil: Orientações para Novas Pesquisas”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº. 27. 82 Sérgio Costa considera que em Civil Society and Political Theory, de Jean Cohen e Andrew Arato (1992), o conceito ganhou uma interpretação hegemônica que busca dialogar com as diferentes vertentes que haviam procurado reinventá-lo nos anos anteriores. COSTA, Sérgio. (2003), “Democracia Cosmopolita: déficits conceituais e equívocos políticos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 18, nº. 53. 83 NOGUEIRA, Marco Aurélio. (2002), “Sociedade Civil, entre o Político-Estatal e o Universo Gerencial”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 18, nº. 52. 84 COMERFORD, Michael. (2003), The Peaceful Face of Angola: Biography of a Peace Process (1991 to 2002). Windhoek, John Meinert Printing.
crescimento significativo das organizações da sociedade civil tanto em quantidade
quanto na diversidade dos temas que endereçam, este crescimento não se refletiu na
inclusão de novos atores sociais e suas agendas no espaço público, nem deu origem a
qualquer processo nesse sentido. Não se conseguiu influenciar a composição da agenda
política pública angolana, e à medida que a sociedade civil se torna mais visível, o
poder parece ainda mais centralizado na presidência, o que não representa o resultado
esperado do desenvolvimento da sociedade civil85.
A compreensão da relação de forças em presença na arena pública angolana, que
determina a participação e a visibilidade dos diversos interesses presentes no espaço
público, não parece possível através dos quadros teóricos da sociedade civil. Os debates
sobre o conceito em sociedades em construção de regimes democráticos mostram que os
próprios atores sociais ao se referirem aos feitos alcançados em nome da sociedade
civil, ou expressando expectativas em relação ao que será possível alcançar sob a
bandeira da sociedade civil, acabam, quase invariavelmente, por introduzir a
necessidade de democratização, expansão e diversificação do espaço público,
recorrendo aos conceitos correlatos de diferença, respeito, reconhecimento, cidadania,
equidade e justiça social, e sinalizando um entendimento geral da sua estruturação em
sub-esferas ou públicos específicos, com um grau de diversidade variável em função do
contexto a que se referem. Ou seja, esses discursos, embora capazes de explicar a
mobilização de atores e a organização de interesses em nome da sociedade civil,
precisam recorrer aos referenciais da discussão sobre o espaço público, para permitir
uma compreensão mais ampla das possibilidades de democratização dessas sociedades.
A abordagem de Habermas86 e as críticas e complementos ao seu quadro teórico da
esfera pública, parecem constituir-se em reforços fundamentais para a compreensão das
relações sociais e de poder nas sociedades em transição, em distintos estágios do
processo de democratização. Acrescentado ao quadro teórico da sociedade civil,
construído sobretudo em torno da identificação da vida associativa independente do
Estado, a premissa do uso público da razão na esfera pública, torna-se possível pensar
de forma mais realista, as possibilidades da sociedade civil angolana operar nos
85 Idem. 86 HABERMAS, Jurgen. [1962] (1989), The Structural Transformation of the Public Sphere. Cambridge, MIT Press; HABERMAS, Jurgen. (1992), “Further Reflections on the Public Sphere”, in Craig Calhoun (org.), Habermas and the Public Sphere. Cambridge, MIT Press.
interfaces das relações entre Estado, mercado e família, e incluir o “público primordial”
de Ekhe87 marginalizado do processo de tomada de decisão, originando um “efeito de
borda” através do aumento da diversidade das formas possíveis formas de relações
sociais, de atores sociais e das suas percepções sobre as oportunidades e os
constrangimentos que condicionam o acesso ao espaço público, e como, com base
nessas percepções, constituem as suas agendas. Também na América Latina,
particularmente no Brasil, tem sido necessário recorrer à teoria do espaço público, à
discussão da institucionalização e do efectivo exercício dos direitos de livre expressão
de opinião, de liberdade de imprensa, de livre associação e reunião, e de livre
circulação, para compreender as dificuldades/limitações que as organizações da
sociedade civil e os seus constituintes têm de enfrentar, e vencer, para exercitar os seus
direitos de cidadania, e através deles, influenciar a agenda política pública, interpondo
às instituições do Estado e do mercado os diversos interesses que representam, e
provocando a expansão do espaço público, tornando-o mais inclusivo e democrático.
4. Este capítulo vai apresentar um mapeamento dos debates atuais sobre o conceito de
sociedade civil, começando por a) uma apresentação sumária das principais
contribuições de escolas ou tradições teóricas para a construção do conceito numa
perspectiva da sua progressiva diferenciação do Estado. Seguem-se b) as abordagens
neoliberal, marxista, e da esfera pública, que conformam os entendimentos sobre
sociedade civil na atualidade, c) os debates sobre o recurso e uso do conceito em
diversos contextos do hemisfério sul e no leste europeu, onde se identifica uma
demanda comum pela expansão e democratização do espaço público, d) a discussão da
validade do conceito no contexto angolano, e e) as contribuições da teoria da esfera
pública de Habermas com vista à construção de um quadro teórico capaz de dialogar
com as diferentes visões da sociedade civil e do espaço público em Angola e conferir
sentido às representações dos participantes na pesquisa de campo.
A tendência de remeter a resolução dos impasses que a história do conceito vem
registrando ao nível de entendimento e utilização supranacional, cabe nesta análise
porque, apesar da sua aparição recente na arena mundial, a ideia de uma sociedade civil
global expandiu-se de forma extraordinária nos últimos anos, devido não só à sua
87 EKEH, Peter P. (1975), op. cit.
estreita relação com o processo de globalização em curso88, mas também à crescente
influência do pensamento global sobre as realidades nacionais, abrindo caminho para
legislações mais flexíveis e abertas à organização cívica, e formas de governação mais
transparentes e inclusivas. Essa expansão também se relaciona com a falência do
estado-providência e a crise social resultante, e com as mudanças nas atribuições
exclusivas dos Estados, o monopólio da governação e da regulação económica e fiscal,
hoje co-exercida com agências multilaterais de regulação89.
II. O DEBATE ATUAL SOBRE SOCIEDADE CIVIL
1. Como a sociedade civil progressivamente se diferenciou do Estado
Ao longo da história, filósofos e humanistas buscaram soluções para os problemas da
vida comunitária, da ordem social, das relações desejáveis entre indivíduos, sociedade e
Estado, do público e do privado. A análise sumária do trajeto semântico do conceito
procura resgatar ideias fundacionais das principais correntes do pensamento sobre
sociedade civil que conformam os discursos atuais.
Numa breve retrospectiva sobre a história do conceito, parece pacífico afirmar que, após
as formulações na Grécia Antiga como koinonia politike em Atenas, a polis de
Aristóteles, e na Roma imperial como societas civilis de Cícero, a ideia de sociedade
civil voltou ao centro do debate no século XVIII. O conceito koinonia politike
(atribuído a Aristóteles) excluía mulheres, pobres e escravos, referindo-se ao conjunto
de homens livres (polités) capazes de governarem a si, aos outros e à polis, a cidade-
estado definida em contraste à barbárie e as outras cidades gregas. A primeira utilização
do termo societas civilis atribui-se a Marcus Tullius Cícero, referindo-se o civilis ao
cidadão livre para se organizar politicamente e exercer o poder sobre outros cidadãos
livres, ou sobre outros povos90. Tanto na koinonia politike dos gregos, quanto na
societas civilis romana, já se encontravam inscritos alguns dos sentidos hoje presentes
no conceito de sociedade civil, como a auto-organização política por parte de cidadãos
livres e responsáveis, capazes de exercerem o poder numa comunidade, numa cidade,
num estado. Contudo, também já se identificavam os primórdios dos atuais conflitos
88 NAIDOO, Kumi & HEINRICH, Volkhart F. (2000), Global Civil Society and the Challenges of the New Millenium: Implications for Civil Society in Africa. Pannel Civil Society in Africa, ISTR Conference, Dublin, Trinity College, July 5-8. 89 SCHOLTE, Jan A. (1999), “Globalisation and Governance: From Statism to Plycentrism, Centre for the Study of Globalisation and Regionalisation”. Coventry, University of Warwick. Working Paper Nº. 130/04. 90 KOSELLECK, Reinhart. (2002), op.cit.
conceituais, como a sua abrangência em termos do acesso à cidadania (quem era
considerado “cidadão”, que indivíduos ou grupos sociais estariam incluídos nesse
direito, e quais os excluídos), e em termos da área geográfica e organização política do
espaço / território ao qual se relacionava: comunidade, cidade, cidade-estado,
principado, império, Estado, etc.
No século XVIII a ideia de economia deslocou-se da “tríade da ética, economia e
política para se assumir como uma esfera independente, de uma sociedade civil
puramente orientada pelo interesse”91, a partir de então designada “moderna”. Apesar
da determinação económica na emergência da sociedade civil nos tempos modernos, o
sentido aristotélico da “comunidade de cidadãos capazes de se governarem” ainda se
mantém presente na ideia de sociedade civil, que passa a ser definida não apenas em
relação ao Estado, mas também em relação à economia. Em resultado da transformação
progressiva do entendimento da economia não mais restrita ao foro doméstico e cada
vez mais percebida como referente a um território e relacionada com a satisfação das
necessidades dos homens para além do Estado, a sociedade civil passou a ser concebida
como uma esfera em contraste com o Estado92. Adam Ferguson é o primeiro a referir-se
especificamente ao conceito de sociedade civil em oposição à sociedade rude, como
uma sociedade polida e caracterizada por avanços nos domínios social, político e
económico, produzidos pelo refinamento das maneiras, o desenvolvimento do comércio,
e a divisão do trabalho93. São “civis” as sociedades em que os indivíduos gozam de
liberdade civil, sob um governo que proteja e respeite os seus direitos e interesses; a
virtude cívica incorpora o princípio da luta pelos direitos, associando ativismo e
capacidade de mobilização, e é o conflito social que promove a inovação constitucional
e orienta o desenvolvimento de novas instituições. Na época, os significados atribuídos
à cidadania na França, na Alemanha e na Escócia, refletiam as distinções inerentes aos
contextos sociopolíticos prevalecentes: o Citoyen da Revolução Francesa, o Citizen dos
filósofos morais escoceses, e o Bürger dos idealistas alemães, embora herdeiros da ideia
de “comunidade de cidadãos livres” presente em Aristóteles e em Cícero, traduzem
91 KOSELLECK, Reinhart. (2002), op.cit. 92 KOSELLECK, Reinhart. (1992), “Uma História dos Conceitos: problemas teóricos e práticos”. Estudos Históricos, vol.5, nº. 10, pp. 134-146. 93 FERGUSON, Adam. [1767] (1966), An Essay on the History of Civil Society. Edinburgh, Edinburgh University Press.
vivências e experiências diversas em contextos concretos da ação, e diferentes formas
de articular as demandas políticas, em resultado dessas peculiaridades nacionais94.
Em Hegel95 a sociedade civil é entendida como esfera diferenciada do Estado,
constituída por indivíduos simultaneamente produtores e consumidores competindo uns
com os outros, com uma grande e crescente variedade de interesses em resultado da
progressiva divisão do trabalho. A corporação é a solução para evitar a supremacia de
uns interesses relativamente a outros, acomodando tanto interesses individuais quanto a
vontade universal, juntando os elementos éticos e práticos numa única forma de
pensamento. Recusando a separação entre pensamento público e moralidade privada,
cria espaço para a vida comunal, através do reconhecimento mútuo das necessidades e
contribuições dos membros das corporações, mediadoras entre os interesses particulares
e os universais. O Estado é o árbitro final da moralidade, sendo sua atribuição orientar
moralmente a sociedade civil. O conceito hegeliano de sociedade civil inclui as
autoridades públicas como garantia da segurança pessoal e da propriedade. Apesar da
constituição da sociedade civil preceder a do Estado, e de ambos serem entendidos
como esferas distintas, existe uma relação de dependência da sociedade civil em relação
ao Estado, devido aos tipos de liberdade prevalecentes em cada esfera, universal e
objetiva dos cidadãos do Estado, individualista e limitada pela liberdade dos outros dos
membros da sociedade civil. Entendida como esfera das particularidades, um espaço de
competição entre indivíduos movidos por interesses privados, a sociedade civil também
é percebida como espaço de mediação entre particularidade e universalidade, agregando
à ideia de competição, a noção de negociação. As corporações são pilares fundamentais
da liberdade moderna, porque permitem canalizar para a estrutura universal os fins
egoístas perseguidos pelos indivíduos movidos pelo auto-interesse.
Em Alexis de Tocqueville96, a sociedade civil é entendida como um amortecedor contra
a ação do Estado, o campo de fortalecimento da democracia, propiciando os canais de
participação popular nos processos políticos. A visão de Tocqueville sobre o papel das
associações na criação de uma esfera diferenciada do Estado e do mercado, tem sido 94 KOSELLECK, Reinhart. (2002), op. cit. 95 HEGEL, G.W.F. (1942), Philosophy of Right, citado em PIETRZYK, Dorota I. (2001), “Civil Society – Conceptual History from Hobbes to Marx”. Aberystwyth, University of Wales. Marie Curie Working Papers, n°.1. 96 TOCQUEVILLE, Alexis de. [1835] (1998/2000), A Democracia na América. Volumes I e II. São Paulo, Editora Martins Fontes.
criticada por atribuir (ou apropriada como atribuindo) ao conjunto das associações uma
ideia de indiferenciação, um carácter potencialmente progressista, um papel de agente
de mudança e de portador de interesses universais não contraditórios. A leitura do
círculo virtuoso de Tocqueville, atribuindo às organizações da sociedade civil o papel
de criar um ambiente de relativo equilíbrio entre Estado, economia e sociedade, foi o
princípio orientador dos trabalhos de Robert Putnam que, por sua vez, forneceram as
bases teóricas para a relação entre sociedade civil e democracia, com bastante influência
na elaboração das políticas de ajuda ao desenvolvimento97.
Karl Marx98 opôs-se à idealização hegeliana do papel do Estado de assegurar o bem
comum agindo como árbitro entre interesses em competição e impondo moral na
sociedade, ao defender que a dimensão privada da sociedade civil ultrapassa o aspecto
público, o que, numa sociedade orientada pelo mercado, resulta numa sobrevalorização
dos direitos dos indivíduos em perseguirem os seus próprios interesses relativamente
aos direitos dos cidadãos em perseguirem interesses comunitários. Para Marx a questão
não se coloca na distinção entre Estado e a sociedade civil, que deixará de existir no
pós-revolução com a dissolução do Estado, condição para a verdadeira liberdade e para
a unidade da existência humana: a revolução segue-se à sociedade de mercado e põe um
fim ao carácter político da sociedade civil, ao deslocar o indivíduo da comunidade.
Segundo Marx, a emancipação política reduz o homem, enquanto indivíduo
independente, a membro da sociedade civil ou a cidadão, uma pessoa moral, e a
verdadeira emancipação só acontece quando o homem reconhece as suas próprias
forças, organiza-as e não mais separa as forças sociais, sob a forma de forças políticas,
de si próprio.
A viabilidade da sociedade civil como conceito e como modelo de representação social
desaparece, absorvida em Hegel pelo estado universal, e em Marx na reunificação das
sociedades política e civil, perdendo importância e significado como paradigma das
teorias políticas liberal e marxista. Em meados do século XX, em reflexões sobre
ideologia, hegemonia e dominação, e teoria do conhecimento, António Gramsci inclui o 97 Também apelidadas “o negócio da caridade em África”, MONGA, Célestin. (1996), The Anthropology of Anger: Civil Society and Democracy in Africa”. London: Lynne Rienner Publishers, e “indústria do desenvolvimento”, GARLAND, Elizabeth (1999), “Developing Bushmen: Building Civil(ized) Society in the Kalahari and Beyond”, in John L. COMAROFF & Jean COMAROFF (orgs.), op. cit. 98 MARX, Karl (1894) [1999], O Capital. Crítica da Economia Política. Volume III, 3ª. Edição. Civilização Brasileira.
conceito e o papel da sociedade civil num entendimento que parece estabelecer uma
ponte entre o anteriormente pensado e discutido, e o debate atual, porquanto se aplica,
ou tem sido aplicado, à compreensão de processos de transição, fornecendo suporte
teórico às análises e ações de resistência aos regimes autoritários e/ou totalitários na
Europa Oriental, na América Latina, na Ásia e na África99.
Gramsci introduz uma profunda alteração no debate marxista sobre sociedade civil,
transferindo o foco das relações materiais para as relações ideológicas e culturais, a
partir da análise dos papéis da família e da economia na sociedade, incluindo a primeira
por ser um veículo de cultura, devido à sua influência na formatação das disposições
políticas gerais dos indivíduos, funcionando como um veículo de hegemonia. Os clubes,
as igrejas, as escolas, as associações e os sindicatos, os movimentos sociais e os partidos
políticos, são incluídos devido ao seu papel na reprodução de ideias necessárias à
manutenção da estabilidade social. Esta proposição retira o protagonismo da economia,
ao considerar que a produção do consenso é obtida através do exercício do poder
hegemônico pelas elites, com vista à socialização das massas no âmbito da ideologia
das classes dominantes100.
Esta formulação constitui um divisor de águas entre as abordagens clássicas e as
contemporâneas, deslocando os debates do centro ocidental para apropriações do
conceito que inspiraram as lutas de intelectuais e de grupos sociais contra o
colonialismo na Ásia e na África, e contra os regimes ditatoriais na América Latina e na
Europa do Leste. A ideia de sociedade civil em Gramsci remete à noção de Estado (a
superestrutura), como o conjunto formado pelas sociedades política e civil (as
estruturas), com um carácter dual de administração da coerção e de produção de
consenso. A ideia de auto-reprodução e expansão desta noção de Estado não se restringe
ao grupo dominante, mas adquire um carácter universal ao considerar a incorporação de
reivindicações e interesses dos demais grupos sociais dominados, através da sua
progressiva integração na ordem vigente. Sendo a sociedade civil entendida como a
estrutura ideológica que confere a orientação intelectual e moral do sistema social, a ela
99 LEWIS, David. (2002), “Civil Society in African Contexts: Reflections on the Usefulness of a Concept”.
Development and Change, vol.33, nº. 4, pp.569-586; LEWIS, David (2004), “On the Difficulty of Studying ‘Civil Society’: NGO’s, State and Democracy in Bangladesh”. Contributions to Indian Sociology, 2003/4.
100 CHAMBERS, Simone (2002), “A Critical Theory of Civil Society”, in Simone Chambers & Will Kymlicka (orgs.) Alternative Conceptions of Civil Society. Princeton, Princeton University Press.
se associa a noção de direção, enquanto à ideia de sociedade política está associada a
noção de domínio. É no seu entendimento de espaço de obtenção de consensos
alternativos à hegemonia do Estado que a contribuição de Gramsci se torna atual para o
debate sobre o conceito de sociedade civil101.
2. As tendências nos debates atuais sobre sociedade civil
Da análise anterior, retêm-se as correntes dominantes no pensamento atual sobre
sociedade civil, a liberal (conservadora e pluralista), a marxista e a habermasiana.
Sumariamente, descrevem-se os quadros de referência e as abordagens de cada uma
delas.
2.1. A corrente liberal
De feição pluralista ou conservadora, estrutura-se em torno das noções de
individualismo e de auto-interesse, liberdade de escolha, propriedade privada e
desconfiança na burocracia, constituindo um quadro ideológico que preconiza a redução
do Estado ao mínimo possível e sua retirada de certas áreas ou campos sociais, políticos
e econômicos, nos quais organizações da sociedade civil em parceria com o setor
privado assumem o protagonismo pela prestação de serviços sociais, envolvendo a
participação dos grupos sociais pobres e marginalizados. São excluídos os meios de
comunicação, que poderiam jogar um importante papel na formação da opinião pública
e influência no processo de desenvolvimento. Desconsideradas, também, as
desigualdades e injustiças estruturais da ordem constituída pela “relação de sinergia
natural entre democracia, capitalismo e mercado livre102”, e desvalorizado o fato de que
tanto o Estado quanto as organizações internacionais produzem impactos positivos e
negativos na génese e manutenção das estruturas das sociedades civis nacionais.
Fukuyama103 é um dos autores que defende a visão da sociedade civil como o setor
privado (incluindo o mundo dos negócios) fora do governo, ou seja, o espaço de
constituição da ordem voluntária ou independente. Neste entendimento, o sistema
capitalista promove a sociedade civil porque a estabiliza e desenvolve, em compasso
com o desenvolvimento da economia privada.
101 BOBBIO, Norberto (1986), Estado, Governo e Sociedade. Para uma Teoria Geral da Política. São Paulo, Paz e Guerra Editora, pp. 33-34. 102 LENZEN, Marcus H. (2002), “The Use and Abuse of ‘Civil Society’ in Development”. Transnational Associations, vol. 54, nº.3, pp.170-187. 103 FUKUYAMA, Francis. (1999), The Great Disruption: Human Nature and the Reconstitution of Social Order, New York, Free Press.
No âmbito da corrente liberal, mas focalizando as organizações intermediárias /
associações voluntárias de Tocqueville, algumas abordagens representam as
organizações da sociedade civil como fora de participação política, através da
interposição de interesses organizados ao estado autoritário. Derivando o atributo civil
do carácter voluntário das associações e da capacidade e oportunidade dos indivíduos
escaparem aos condicionamentos sociais, esta posição negligencia as causas estruturais
dos conflitos entre grupos sociais, bem como os constrangimentos e pressões impostos
pela ordem econômica internacional à sociedade civil e ao Estado, e ignora as formas de
opressão e desigualdade no seio da sociedade civil, no âmbito da qual, os mais
educados, mais ricos e melhor organizados, conseguem representar, e defender, os seus
interesses no sistema pluralista.
As abordagens de sociedade civil enquanto terceiro setor demarcam-na do Estado e do
mercado, sendo integrada por associações, organizações não-governamentais (ONG’s),
e organizações de base. Entre elas, a desenvolvimentista defende que a par da ordem
política existe uma ordem social construída por grupos voluntários e suas normas civis,
preocupados com a expressão e preservação dos valores e crenças centrais para as
comunidades que representam104. A sociedade civil é o campo da vida social voluntária,
organizada, auto-criadora, auto-sustentada, e circunscrita pela ordem legal e um
conjunto de regras partilhadas, distinguindo-se da sociedade em geral como entidade
intermediária agindo na esfera pública, expressando os seus interesses e ideias, trocando
informações e alcançando objetivos mútuos, interpelando o Estado e mantendo os
servidores públicos sob controle105. Abrange organizações formais e informais
preocupadas com fins públicos mais do que privados, sob a forma de matriz de um
sistema de organizações democráticas que mediam as relações entre os poderes políticos
e os poderes económicos, cabendo-lhe parte da representação dos interesses da
sociedade, não mais possível de ser exercida unicamente pelo Estado. A democracia sai
reforçada por esta mediação devido à expansão dos espaços públicos de deliberação106.
104 Alguns autores consideram que a proliferação de organizações da sociedade civil constitui a grande inovação do século XX. SALAMON, Lester & ANHEIR, Helmut. (1996), The Emerging Nonprofit Sector. New York, Manchester University Press, e SALAMON, Lester & ANHEIR, Helmut. (1997), “The Civil Society Sector: a new global force”. Transaction Social Science and Modern Society, vol.34, nº. 2. 105 DIAMOND, Larry. (1994), “Rethinking Civil Society: Toward Democratic Consolidation”. Journal of Democracy, vol. 5, n°. 3, pp. 4-17. 106 Segundo alguns autores, o protagonismo das associações pressupõe uma etapa prévia de politização da sociedade como um todo, o que pode ser alcançado através da promoção de redes de associações com vista à criação de uma
A abordagem liberal remete a Tocqueville e à ênfase nos efeitos benéficos das
associações civis na criação e manutenção da democracia; por isso, na visão liberal é a
sociedade civil quem impõe e reforça as normas sociais na atividade do Estado,
embutidas nas ideias de good governance, transparency e accountability do léxico
desenvolvimentista, regra geral utilizadas em inglês independentemente da língua dos
países onde esses programas de reforço da sociedade civil são implementados. Esta
perspectiva fornece a chave do Estado limitado, e incorporou a base empírica da
pesquisa de Putnam na Itália, que sublinha a necessidade de uma forte cultura
organizacional como pré-requisito para a democracia estável107. No âmbito desta
tradição, o livro Conflito Étnico e Vida Civil de Ashutosh Varshney, sobre a violência
entre hindus e muçulmanos na Índia, estende o argumento do papel das solidariedades
horizontais na prevenção de conflitos civis a um contexto não-ocidental, mostrando a
influência desta abordagem para além do Ocidente108.
2.2. A corrente marxista
No âmbito desta corrente, a visão de sociedade civil como política articula-se em torno
da ideia de que a autoridade deve ser compartilhada entre os membros de uma dada
comunidade, contrapondo-se e desafiando a hegemonia do Estado, que não é mais a
instituição dominante ou crucial para o desenvolvimento da sociedade civil. Esta
perspectiva tornou-se bastante popular após a queda do muro de Berlim e o
desmantelamento do então bloco soviético, expressando desilusão face ao desempenho
do Estado sob o regime comunista, e convicção relativamente à capacidade da
sociedade em organizar-se de forma independente, apesar da ausência de uma cultura de
diálogo, da invisibilidade das instituições de mediação, e da atomização dos indivíduos
sob o regime comunista109.
sociedade de organizações, na qual o Estado seria a instituição principal, e a sociedade a instituição secundária. Com base na noção de estado civil com funções de limitar ou orientar o sistema económico-comercial, esta abordagem funda-se na ideia de associação civil como uma fonte de legitimação da autoridade, e remete ao pensamento político do século XIX, mais especificamente a Hegel, e ao papel do Estado enquanto poder e suprema autoridade moral, sintetizador dos valores em conflito, e árbitro final desse conflito. DRUCKER, Peter (1993), “The Society of Organizations”, in Peter Drucker (org.), Post-Capitalist Society. New York, HarperBusiness. 107 PUTNAM, Robert. (1996), Comunidade e Democracia. A Experiência da Itália Moderna. 4ª. Edição. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas Editora. 108 Citado em TAMANG, Seira. (2003), “Civilising Civil Society: Donors and Democratic Space in Nepal”. Essay, Himal South Asia , vol.16, nº. 7, pp. 14-24. 109 STREECK, Wolfang. (1995), “Inclusion and Secession: Questions on the Boundaries of Associative Democracy”, in Joshua Cohen and Joel Rogers (orgs.), Associations and Democracy. New York, VERSO.
Articulada em torno do pensamento de Gramsci, esta corrente contesta a separação entre
Estado e sociedade civil defendida pela liberal, argumentando que são fortemente
interdependentes; reconhece o carácter bastante variável da sociedade civil, inclusive
que fracções dela podem assumir formas repressivas que prejudicam o desenvolvimento
da democracia. Em lugar do proletariado, as abordagens marxistas mobilizam os
movimentos sociais e as ONG’s como atores privilegiados da sociedade civil,
incorporando nas suas análises as condições estruturais e os efeitos do sistema
internacional110. Entre os acadêmicos, Harbeson defende que o conceito de sociedade
civil é capaz de preencher um vazio da teoria das ciências sociais na análise do
desenvolvimento político e sôcio-econômico da África, porque em termos processuais
os entendimentos relacionados com as regras básicas do jogo político ou da estrutura do
Estado, emergem, em grande medida, de dentro da sociedade e da economia111.
Na corrente marxista a sociedade civil é vista como fortemente interligada com o Estado
e a organização política, com aquele a manter o seu poder através da dominação
indirecta deste (sistema político). Entendida como uma arena de opressão caracterizada
por divisões internas e desigualdades de poder, a sociedade civil é também o lugar da
luta e da resistência contra o autoritarismo. As abordagens atuais não celebram com
tanto vigor o papel democrático das organizações da sociedade civil, nem lhes atribuem
os créditos pela consolidação e/ou estabilização das instituições e processos
democráticos, como o fazem os defensores das abordagens liberais. Pelo contrário,
chamam a atenção para o fato deste espaço não ser benigno nem neutro, porque é a
arena onde são contestados interesses em conflito. Defendem que a sociedade civil tem
de ser percebida no âmbito da luta pelo poder entre o Estado, as instituições sociais e os
demais atores sociais, e contestam o pressuposto neoliberal de que a expansão da
sociedade civil está fortemente relacionada com o avanço da democracia liberal,
argumentando que tal expansão corresponde a formas particulares de acomodação pelo
Estado de forças sociais em competição, ou seja, que resulta do esforço dos regimes
políticos para reconstituir e consolidar o poder do Estado, através do fortalecimento da
sua legitimidade perante a sua base constituinte e a ordem política internacional112.
110 GEREMEK, Bronislaw. (1997), “Civil Society and the Present Age”. Kettering Review, Winter. http://www.nhc.rtp.nc.us:8080/conlect/civilsoc/geremek.html 111 HARBESON, J. W. (1994), “Civil Society and Political Renaissance in Africa”, in J. W. Harbeson, D. Rothchild and N. Chazan (orgs.) Civil Society and the State in Africa. Boulder:CO, Lynne Rienner. pp.1-32. 112 RODAN, Garry. (1996), Political Oppositions in Industrializing Asia. London, Routledge.
2.3. A corrente habermasiana
A esfera pública, em geral identificada com o Estado e instituições sob o seu controle,
ganha nesta perspectiva outra amplitude, incluindo o setor privado, negócios e grupos
voluntários, o que permite o desenvolvimento de uma opinião ou voz comuns, num
espaço partilhado. É a ideia de um espaço cívico onde os indivíduos podem falar aberta
e honestamente, de forma disciplinada, sobre as questões que os afetam enquanto
membros de um grupo, de uma comunidade ou de uma sociedade113.
Habermas define a esfera pública como o espaço institucional onde as pessoas
deliberam acerca dos seus problemas comuns, discutem assuntos cívicos e da vida
comunitária, permitindo que a opinião popular seja canalizada e incorporada nas
políticas governamentais. O público constitui um orgão de auto-articulação da
sociedade civil, uma arena na qual os indivíduos privados se juntam, buscando decisões
comuns para influenciar o Estado. A esfera pública tem a sua origem histórica em
instituições contraditórias, sendo vista como burguesa numa abordagem conservadora,
ou subdividida em esfera pública intelectual e esfera pública política numa visão liberal.
Em ambos os casos, a comunicação tem um papel fundamental: é através da ação
comunicativa que os empreendedores buscam a identificação ou geração de interesses
comuns e os intelectuais e os políticos asseguram direitos como liberdade de expressão,
reunião e de imprensa, e à privacidade. Nesta perspectiva, as novas características que
emergem na esfera pública, incluindo componentes de voluntariado e de comunidade
emocional, devem conduzir a uma nova concepção de humanidade. Na sociedade civil a
esfera pública tem uma certa autonomia e um carácter cultural que coloca limites ao
poder do Estado114. Correspondendo à auto-organização fora dos campos restritos do
poder do Estado e dos interesses do mercado, Habermas percebe a sociedade civil como
constituída por associações, organizações e movimentos criados mais ou menos
espontaneamente, que identificam, condensam e ampliam a ressonância dos problemas
sociais na vida privada, encaminhando-os para o campo político ou esfera pública. O
núcleo da sociedade civil constitui uma espécie de associação que institucionaliza os
113 MATHEWS, David. (1998), “What is exactly ‘the Public’”. Higher Education Exchange, The Kettering Foundation, pp. 13-22. 114 HABERMAS, Jürgen [1962] (1989), op. cit.
discursos capazes de solucionar problemas, transformando-os em questões de interesse
geral no quadro de esferas públicas115.
A esfera pública reforça a pressão exercida pelos problemas, não se limita a percebê-los
e a identificá-los, mas também a tematizá-los, problematizá-los e dramatizá-los de modo
convincente e eficaz, para que sejam assumidos pelo, e elaborados no, complexo
parlamentar. E a capacidade de elaboração dos próprios problemas, que é limitada, tem
que ser utilizada para um controle ulterior do tratamento dos problemas no âmbito do
sistema político. Descrevendo-a como uma rede adequada para a comunicação de
conteúdos, tomadas de posição e opiniões, onde os fluxos comunicacionais são filtrados
e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas sobre temas específicos,
Habermas defende que a esfera pública constitui principalmente uma estrutura do agir
comunicacional orientado pelo entendimento que tem a ver com o espaço social gerado
no agir comunicativo, e não com as funções ou os conteúdos da comunicação
cotidiana116.
A abordagem da esfera pública de Habermas fornece um quadro de referências para
acomodar as discussões relacionadas com a democratização da esfera pública e da
sociedade civil, e a sua dimensão normativa contribui para pensar a relação entre esfera
pública e democracia. Na sua teoria da ação comunicativa a linguagem e a comunicação
são as características centrais do mundo da vida que podem resistir aos imperativos
sistémicos do dinheiro e do poder, que minam as estruturas comunicativas e abrem
espaço para criticar as distorções da comunicação em processos de dominação e
manipulação societal, e cultivar um processo da formação da vontade discursiva
racional. Nas sociedades contemporâneas, a linguagem é usada e racionalizada, os seus
significados e usos são socialmente construídos para servir interesses hegemônicos
incluindo a legitimação e a dominação, e por isso a linguagem nunca é pura, filosófica,
universal e transcendental das condições sociais. A promessa utópica contida na
linguagem e na comunicação, de que as opiniões podem encontrar-se, a compreensão
partilhada ser estabelecida, a verdade ser revelada, e consensos não forçados serem
alcançados, não se concretiza devido à dicotomia da análise habermasiana que relaciona
115 HABERMAS, Jürgen (1977), Direito e Democracia. Entre facticidade e validade, Vol. II. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro. 116 HABERMAS, Jürgen (1977), op.cit.
a linguagem com o poder, como o instrumento a que os interesses particulares recorrem
para a construção dos discursos, das convenções e das práxis117.
Embora os discursos não governem, eles geram um poder comunicativo que não pode
tomar o lugar da administração dos assuntos públicos, mas pode influenciá-la; apesar de
Habermas enfatizar a formação da vontade política através de processos da democracia
deliberativa, que cultivam sujeitos racionais e morais através da reflexão, argumentação,
raciocínio público e o alcance de consensos, limita essa influência ao agenciamento e à
perda da legitimação118. Construindo o seu modelo numa base de comunicação e
discussão face-a-face mais do que na interação e comunicação mediadas pelos meios de
comunicação social e outros tornados disponíveis pelo desenvolvimento tecnológico
atual, e ignorando o papel mediadores ou articuladores entre grupos sociais em
sociedades multiculturais marcadas pela desigualdade, Habermas exclui-os do campo da
democracia e da possibilidade de contribuírem para a transformação democrática119.
Outra limitação da sua teoria consiste em perceber as sociedades contemporâneas
através do quadro dicotômico do mundo da vida, governado pelas normas da interação
comunicativa, e dos sistemas, governados pelos imperativos do poder e do dinheiro,
ignorando as interações e mútuas influências entre as duas esferas. Em reflexões mais
recentes, Habermas reconhece que quando estabeleceu essa distinção absoluta entre
mundo da vida e sistemas, considerava o aparelho de Estado e a economia como
campos de ação sistematicamente integrados e sem possibilidades de se transformarem
democraticamente a partir de dentro, o que determinava a necessidade de preservar a
esfera da humanidade, da comunicação, da moralidade e dos valores nas práticas da
vida diária. Embora tenha refocalizado a sua teoria nas condições discursivas da
discussão racional ancorada nas relações comunicativas da vida diária, ampliando as
perspectivas no que respeita às condições da deliberação democrática e do consenso,
ação moral e desenvolvimento, e ao papel da comunicação em esferas que vão da
moralidade à política e à lei, manteve a separação ontológica entre a esfera da ação
comunicativa ou mundo da vida, e a dos sistemas, numa perspectiva que parece ignorar
que o mundo da vida está crescentemente sujeito aos imperativos do sistema, e que a
revolução tecnológica, a interação e a comunicação jogam um papel cada vez mais
117 HABERMAS, Jürgen (1983 e 1987), Theory of Communicative Action, Volume 1 e 2. Boston, Beacon Press. 118 HABERMAS, Jürgen (1992), op. cit. 119 KELLNER, Douglas (2004), Habermas, The Public Sphere, and Democracy: A Critical Intervention. http://www.gseis.ucla.edu/faculty/kellner/kellner.html.
importante na economia e na política, sendo fundamental reconhecer as implicações da
grande transformação que as sociedade atuais estão experimentando na formulação dos
quadros teóricos que as tornem perceptíveis120.
Descartando a oposição entre liberalismo e democracia como fundamentalmente
antagônicos, Cohen e Arato121 assumem que a defesa e a expansão das liberdades
adquiridas reside na progressiva democratização das instituições das sociedades
modernas, e no alcance de uma maior influência da sociedade civil sobre a política.
Segundo eles, demonstra-se a possibilidade de uma sociedade civil moderna
potencialmente democrática, estabelecendo uma conexão entre teoria da ética do
discurso, legitimidade democrática e direitos fundamentais, substituindo os interesses
generalizados da ética do discurso por identidades coletivas racionais para evitar
implicações autoritárias, e identificando a sua inserção na pluralidade de formas de vida,
pela institucionalização do discurso num horizonte utópico de pluralidade democrática.
Para estes autores, a proposta de Habermas fornece o quadro conceitual mais adequado
à reconstrução de um modelo tri-partido de sociedade civil, considerando um mundo da
vida com dois níveis estruturalmente diferenciados, em resultado da modernização: o
pano de fundo do reservatório das tradições, solidariedades e identidades, incorporado
na linguagem e na cultura, e os componentes institucionais e sociológicos, os recursos
simbólicos. Como os indivíduos crescem no âmbito de uma cultura tradicional e
participam na vida em grupo, internalizam valores, adquirem competências
generalizadas para a ação, e desenvolvem identidades individuais e sociais. A
reprodução destes dois níveis é mediada pela comunicação e envolve os processos de
transmissão cultural, integração social e socialização.
Redefinindo o conceito de sociedade civil como o quadro institucional de um mundo da
vida estabilizado por direitos fundamentais incluindo as esferas pública e privada,
Cohen e Arato acrescentam que o poder e a expansão das esferas coordenadas pelos
mídia tornam muito precárias as estruturas do mundo da vida moderno. Daí a
necessidade da juridificação da vida moderna, onde os direitos jogam um papel
decisivo. As esferas institucionais da sociedade civil comportam três conjuntos de
direitos: os relativos à reprodução cultural (liberdade de pensamento e de expressão, de
120 KELLNER, Douglas (2004), op. cit. 121 COHEN, Jean & ARATO, Andrew. (1992), Civil Society and Political Theory. Cambridge, MIT Press.
imprensa e de comunicação), os relacionados com garantias de integração social
(liberdade de associação e de reunião) e os que asseguram a socialização (proteção da
privacidade e intimidade, e integridade pessoal). Dois outros conjuntos definem as
relações entre sociedade civil e o Estado, direitos políticos dos cidadãos e direitos de
bem-estar dos clientes, e entre sociedade civil e a economia de mercado, direitos de
propriedade e contratos de trabalho. A relação que se estabelece é tão estreita que define
tipos de cultura política, podem identificar-se as formas de institucionalização da
sociedade civil através das relações que se estabelecem internamente entre esses
conjuntos de direitos122.
A definição de sociedade civil como dimensão institucional do mundo da vida, foi
incorporada por Habermas ao seu modelo discursivo de democracia com um carácter
duplo, cultural e político. No plano cultural, a sociedade civil atua defensivamente como
locus de formação de uma opinião pública ancorada no mundo da vida, cabendo-lhe no
plano político a função ofensiva de, com o direito, funcionar como um descodificador
que verte as demandas nascidas no quotidiano para a linguagem sistêmica da política
institucionalizada123.
As formulações de Habermas e de Cohen e Arato tiveram um forte impacto na América
Latina, particularmente no Brasil, nos debates sobre os processos de reforma ou de
mudança institucional em diferentes estágios de transição de regimes militares
ditatoriais. Num contexto caracterizado por distintas etapas de um processo de
democratização em que, para além da construção de instituições democráticas, se busca
a incorporação de valores democráticos nas práticas quotidianas, o conceito de
sociedade civil surge em debates sobre reformas do Estado e alargamento e
democratização do espaço público124. Noutra perspectiva, são visíveis lutas de
afirmação e maior protagonismo nas instituições internacionais criadas no âmbito do
sistema das nações, particularmente visíveis entre Brasil, Argentina e Chile, e o México.
Por um lado, o debate relaciona-se com a influência das sociedades mais desenvolvidas
e das instituições financeiras internacionais ou de cooperação nas configurações e nos
sentidos atribuídos ao conceito de sociedade civil a nível local; nos debates sobre
122 Idem, pp.440. 123 COSTA, Sérgio. (2003), op. cit. 124 AVRITZER, Leonardo & COSTA, Sérgio. (2004), “Teoria crítica, democracia e esfera pública: concepções e usos na América Latina”. Dados, vol.47, nº. 4, pp.703-728.
políticas públicas, é destacado o papel da sociedade civil na melhoria dos índices de
desenvolvimento humano e redução da desigualdade social em ambiente de crescimento
econômico, através da extensão da cidadania política e social aos excluídos das áreas
urbanas, periurbanas e rurais, e de programas de redução das desigualdades econômicas
e regionais.
Num artigo sobre a sociedade civil na América Latina, Avritzer sumariza as razões do
enraizamento do conceito enquanto quadro de referências analítico na região, e do
amplo recurso ao mesmo por parte dos atores sociais latino-americanos. Em sua
opinião, o conceito acomoda a auto-defesa dos atores sociais como mostram os casos do
Brasil, Argentina e Perú; fornece um caminho alternativo para a compreensão do
itinerário do desenvolvimento do estado, e uma alternativa concreta às políticas
econômicas neo-liberais; salienta a importância da constituição recente de uma esfera de
associações independentes no México, no Brasil e no Chile. O conceito fornece, ainda,
o quadro de referências para uma resposta pública, democrática e participativa à crise
que vive o sub-continente, num ambiente de reinterpretação das práticas e do conteúdo
do liberalismo e da democracia125.
A construção de uma teoria da sociedade civil latino-americana e dos seus usos
analíticos processou-se no contexto de uma interpretação sociológica da democratização
e do cenário pós-democratização, em consonância com um debate que ocorre em todo o
mundo126. No contexto da América Latina, a sociedade civil pode ser definida como um
conjunto de movimentos sociais e de associações civis capazes de se organizarem
independentemente do Estado numa esfera para a generalização dos interesses, e
independentemente do mercado com o sentido da satisfação mínima das necessárias
vitais127.
A sociedade civil também é recorrente na análise da influência das nações hegemônicas
noutras nações, através de relações de poder coercitivas que vão da ameaça de retaliação
e embargos em diversas áreas, a incentivos econômicos e financeiros. Essa influência
tem provocado a alteração das “orientações e valores das elites nacionais, difundindo
125 AVRITZER, Leonardo. (1997), “Civil Society: The Meaning and the Employment of the Concept in Latin America”. Constellations, vol. 4, nº. 2, pp.108-113. 126 AVRITZER, Leonardo & COSTA, Sérgio. (2002), op.cit. 127 AVRITZER, Leonardo. (1997), op.cit.
novas ideias e crenças causais, em especial sobre as funções do Estado ou sobre meios e
fins da economia128”. Interpretando o processo de reforma do estado brasileiro, Ivete
Simionatto129 afirma que, nesse contexto “a sociedade civil é compreendida como um
dos mecanismos institucionais de controle das ações governamentais, cuja interlocução
não ocorrerá mais com o Estado, mas diretamente com as instituições, estando aquele
isento de pressões sociais”. Nesta perspectiva “a sociedade civil é deslocada da esfera
estatal e atravessada pela racionalidade do mercado (...) sendo convocada, em nome da
cidadania, a realizar parcerias de toda a ordem”, citando como exemplo os projetos de
refilantropização das formas de assistência, entre os quais o Comunidade Solidária.
Trata-se de uma visão de sociedade civil na ótica do capital, como “uma esfera à parte
que não estabelece uma correlação de forças com o estado”, no âmbito da qual a noção
de participação é percebida mais com uma condição individual do que coletiva, centrada
no cidadão-cliente. Para Simionatto, a reversão desta tendência apenas será possível
através de uma “guerra de posição”- uma ocupação progressiva (ou processual) de
espaços na esfera pública -, com a “intensa participação da sociedade civil, ampliando a
sua unidade para além do terreno da institucionalidade e adentrando nas questões da
racionalidade econômica e da distribuição da riqueza”130.
2.4. A sociedade civil e o socialismo real
Os debates ou entendimentos sobre o conceito de sociedade civil em sociedades do
Leste Europeu, antes e depois da queda do muro de Berlim, são importantes dada a
proximidade do regime político instalado em Angola após a independência com o
antigo bloco socialista. Devido ao carácter relacional do conceito, parece possível
estabelecer-se uma conexão entre o tipo de regime político de uma dada sociedade e a
sociedade civil que ela pode produzir: regimes democráticos, abertos e plurais, criam
oportunidades para a expansão e fortalecimento da sociedade civil, enquanto regimes
autoritários e ditatoriais, militares ou civis, colonizam o espaço público, e asfixiam as
iniciativas de organização autônoma de interesses e solidariedades através da censura,
da repressão à reunião e livre associação, e da privação de liberdade131. Um estudo
sobre o percurso da sociedade civil na antiga República da Checoslováquia, identifica 128 COSTA, Nilson do R. (1997), Organizações Internacionais e Reforma do Estado: o Projeto Reforsus do Banco Mundial. XX ANPOCS. 129 SIMIONATTO, Ivete. (2000), Mercosul e reforma do Estado: Implicações nas políticas públicas. VII Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social, Brasília. 130 Idem. 131 DRYZEK, John S. & HOLMES, Leslie (orgs.) (2002), Post-Communist Democratization. Political Discourses across Thirteen Countries. Cambridge, Cambridge University Press.
três metamorfoses do conceito de sociedade civil devidas à influência das tradições
teóricas no processo de apropriação do conceito como uma esfera de conduta autêntica,
como meio de democratização política, e como construção do Estado132.
A noção de sociedade civil como esfera de conduta autêntica relacionou-se com o
movimento dos dissidentes, conhecido como Carta dos Direitos 77. Numa sociedade
fragmentada por esse processo, o apelo ao espírito da sociedade civil não conseguia
unificar os códigos morais dos dois grandes grupos, os leais e os desafetos ou
dissidentes do regime, num mundo de relativa segurança individual mas sem liberdade
pública133. Optando pela via da atitude moral, individual e isolada, e descartando a
opção pela criação de uma força de mobilização ou de liderança, os dissidentes
afastaram-se tanto do povo quanto os membros do Comité Central do partido: o mundo
da vida de Havel, entendido como a esfera da experiência concreta e da
responsabilidade pessoal, não se expandiu para a vida pública, reduzindo-se o exercício
da moralidade à esfera das relações íntimas, privadas134.
A partir de Novembro de 1989, a sociedade civil passou a ser evocada como um meio
de democratização política. Refletindo a experiência do Solidariedade e inspirando-se
nas reformas na União Soviética, esta mudança visava a incorporação de um espírito
público no Estado conferido por toda a sociedade. O estabelecimento do sistema de
partidos políticos e de instituições da democracia parlamentar participativa, produziu
um novo entendimento da relação entre o Estado e a sociedade civil, assumindo esta o
duplo papel de representação da oposição popular ao regime a nível central, e de espaço
de mobilização e defesa da participação popular como suporte das mudanças
revolucionárias, a nível local.
Em 1994, uma nova metamorfose, a sociedade civil é apresentada como construção do
Estado. Estabelecidas as instituições da democracia parlamentar e da economia de
132 MARADA, Radim. (1997), “Civil Society: Adventures of the Concept before and after 1989”. Czech Sociological Review, vol. 5, nº.1, pp.3-22. 133 Uma característica dos regimes comunista, ou do socialismo real, é a politização da vida diária, tornando desnecessário que as pessoas atribuíssem significações políticas a pequenos gestos, opiniões, atitudes, gostos, círculo de amigos do outro, porque o próprio ambiente político se encarregava disso não sistematicamente nem de uma forma ideologicamente consistente, mas selectiva e instrumentalmente. Por isso, uma das estratégias mais frequentes consistia em evitar situações nas quais houvesse que manifestar publicamente lealdade para com o regime, originando um mundo da vida de relativa segurança individual mas sem liberdade pública. 134 MARADA, Radim. (1997), op.cit., p.9
mercado, a sociedade civil foi chamada a intervir como mediadora entre as duas esferas,
e entre cada uma delas e a sociedade. Neste entendimento, o Estado, representando pelo
legislativo e executivo, devia criar o espaço institucional para construir e fortalecer a
sociedade civil, colocada na arena política mas necessitando de apoio político para o seu
desenvolvimento.
2.5. Discursos do Oriente
Apesar da diversidade de contextos nacionais, o recurso ao conceito de sociedade civil
surge tanto nos processos de mobilização de alianças e coalisões sociais durante as lutas
anti-colonial e contra os regimes ditatoriais, quanto na busca por inclusão no sistema
internacional e na economia mundial135. A ideia de sociedade civil parece crucial para a
compreender as mudanças políticas e econômicas dos últimos anos, como a crescente
participação na economia mundial e o declínio de regimes autoritários. “Sem negar as
origens da noção de sociedade civil na tradição racional da cultura política ocidental, o
conceito ressoa nos valores e formas de associação voluntária para enfrentar
necessidades básicas de sobrevivência e os benefícios mútuos relacionados,
profundamente enraizados nas comunidades asiáticas”136.
Como em outros países do sul, também no Nepal se relaciona uma democracia viável
com a emergência de uma sociedade civil ativa, cuja criação e fortalecimento podem ser
financiados no âmbito de programas de desenvolvimento. A utilização simplificada,
despolitizada e circunscrita, de conceitos como sociedade civil e outros associados na
liturgia dos doadores, como democracia, desenvolvimento, empoderamento e gênero,
“separa-os das respectivas histórias política e económica, transformando-os em
instruções normativas, transparentes e flutuantes, mas sem conteúdo cultural”, assinala
o antropólogo Saubhagya Shah137. Nas Filipinas, a compreensão do conceito mais
adequada à realidade é a que o identifica com um espaço político criado por ONG’s,
organizações comunitárias de base, grupos profissionais, e outras associações
voluntárias, aliadas a amplos movimentos de mulheres, povos indígenas, ecologistas,
etc. Contudo, devido à sua visibilidade, a comunidade das ONG’s é frequentemente 135 As referências selecionadas constituem, apenas, exemplos do uso do conceito nestes contextos, sem pretender esgotar a diversidade dos debates nesta região do mundo. 136 PORIO, Emma (2002), “Civil Society and Democratization in Asia: Prospects and Challenges in the New Millenium”, in Henk Shulte Nordholt and Irwarn Abdullah (orgs.), Indonesia: in search of transition. Yogyakarta, Pustaka Pelajar. 137 Citado em TAMANG, Seira. (2003), op. cit.
entendida como um seu equivalente138. Um estudo recente credita à sociedade civil a
criação de um discurso público mobilizador, a redefinição do conteúdo da política, e o
reforço da institucionalização do processo democrático, estendendo as suas conclusões a
outros países da região, como China, Vietnam e Cambodja, onde a sociedade civil vem
ganhando expressão pela função dual de canal de controle do Estado e de novo
instrumento ou fonte de legitimação deste139.
Percebendo a sociedade civil na Ásia como basicamente constituída por associações
voluntárias agindo aos diversos níveis na sociedade, Serrano argumenta que “a ação
voluntária tem raízes profundas nas comunidades asiáticas, dirige-se a preocupações
comuns que não podem ser adequadamente endereçadas pelas famílias isoladamente,
nem por sistemas de apoio criados por laços de parentesco alargados, como a produção,
a troca, os diversos rituais, a segurança coletiva, etc., todas elas visando a manutenção
da coesão e do consenso no seio das comunidades. A forma mais comum de
organização é o grupo de auto-ajuda ou de troca-mútua (...)140”. Esta descrição remete à
vida associativa descrita por Tocqueville, e constitui uma boa resposta aos argumentos
que consideram o conceito inadequado aos contextos sócio-culturais asiáticos. Para
Serrano, o estudo das dinâmicas das relações entre o Estado e a sociedade implica o
reconhecimento dos contextos sociais, económicos, políticos e culturais nos âmbito dos
quais elas se concretizam, dos atores sociais nelas envolvidos, suas agendas e
estratégias. Os recortes do debate sobre sociedade civil na Ásia citados, mostram que o
recurso ao conceito surge no âmbito de análises sobre a mudança institucional no
âmbito de processos de democratização e modernização das sociedades asiáticas. A
mobilização dos valores e tradições asiáticos para rejeitar instituições e práticas
democráticas, manifesta a resistência cultural aos valores e práticas ocidentais,
veiculados pelos meios de comunicação global e pressionados pelos mecanismos de
ajuda ou assistência ao desenvolvimento e de resolução de conflitos141.
138 SILIMAN, G. Sidney & NOBLE, Lela G. (orgs.) (1998), Organizing Democracy: NGO’s, Civil Society and the Philippine State. Quezon City, Ateneo de Manila University Press. 139 PORIO, Emma. (2002), op.cit. 140 SERRANO, Isagani R. (1994), “Civil Society in Asia-Pacific Region”, in World Assembly Edition (org.), Citizens Strengthening Civil Society. MacNaughton and Gunn, Inc., pp.271-317. 141 ALAGAPPA, Muthiah. (1995), “Democracy’s Future: The Asian Spectrum”. Journal of Democracy, vol. 6, n°.1, pp. 29-43.
2.6. África Subsahariana
Reflectindo algumas das tradições do pensamento ocidental, a sociedade civil é vista
por acadêmicos africanistas142 numa perspectiva normativa, como campo de produção
de normas, soberano em relação ao Estado, mas que dialoga com ele, diferenciando-se
da sociedade em geral pela sua “civilidade”. Para Chazan143 existe uma diferença entre
os grupos da sociedade civil produtores de normas e os que, pela sua própria natureza,
buscam a concretização dos seus interesses ou objectivos. Bratton insiste na natureza
plural da sociedade civil, argumentando que esta não deve ser vista em oposição ao
Estado na medida em que é “uma esfera social necessária para a legitimação do poder
estatal” 144.
O argumento da inadequação, ao acrescentar à ideia de sociedade civil enquanto
emanação única de uma conjuntura específica social e cultural do Ocidente, a posse de
certos valores (privacidade, individualismo e mercado) existentes no Ocidente e
supostamente ausentes em outros contextos, delimita as condições da sua possibilidade
ao ocidente145. Esta associação surge, de forma explícita, na seguinte afirmação: “(...) sociedade civil, como os direitos humanos, é o que regimes autoritários não têm por
definição. É o que os gregos, o Iluminismo e nós temos hoje; é o que governos despóticos, no
passado ou no presente (...) não têm”146.
Esta é uma leitura na qual, “em algum período (ou por algum tempo), o conceito de
sociedade civil parece ter sido usado para denegrir o outro”147, um divisor de águas
entre culturas superiores e culturas inferiores.
Sob a influência deste paradigma ocidental, a ideia de encaixe de sociedade civil em
África tem sido identificada como um paradoxo devido à aparente ausência de
condições susceptíveis de gerar e nutrir valores comumente relacionados com o
conceito, como liberdade, democracia, respeito, reconhecimento, tolerância, cidadania,
solidariedade, informação e opinião (e a coragem para a expressar, principalmente se
142 AZARYA, Victor. (1994), “Civil Society and Disengagement in Africa”, in J.W.Harbeson, D. Rothchild and N. Chazan (orgs), op. cit. 143 CHAZAN, Naomi (1994), “The Interactions Between State and Civil Society in Africa”, in J.W.Harbeson, D. Rothchild and N. Chazan (orgs), op. cit. 144 BRATTON, Michael. (1989), “Beyond the State: civil society and associational life in Africa”. World Politics, vol. 41, nº. 3, pp.407-430. 145 OBADARE, Ebenezer. (2002), op. cit. 146 GOODY, Jack (2001), “Civil Society in an extra-European Perspective”, in KAVIRAJ, Sudipta & KHILNANI, Sunil. (orgs). Civil Societies. History and Possibilities. Cambridge, Cambridge University Press. 147 KAVIRAJ, Sudipta. (2001), “In Search of Civil Society”, in Sudipta KAVIRAJ & Sunil KHILNANI (orgs.), op. cit.
dissidente), etc. Esta leitura é contrariada entre outros, pelos Comaroff, ao afirmarem
que “depois de quase dois séculos como objecto de uma missão civilizadora concertada
pelos europeus, a África é hoje palco de lutas, diversas e cheias de determinação, pela
democracia popular e a comunidade moral”148.
Estudos sobre a validade, utilidade e aplicação do conceito em contextos africanos
revelam posições diversas, do universalismo desejável dos discursos de agências multi e
bilaterais e suas iniciativas visando replicar nos contextos africanos as formas e as
atribuições da sociedade civil dominantes no Ocidente149, à afirmação da inadequação
e/ou inutilidade dessa transposição, por via da especificidade das condições da sua
origem, que remete ao desenvolvimento do capitalismo industrial e ao surgimento do
estado-nação no ambiente político liberal da Europa dos séculos XVII e XVIII150.
Mas entre os autores africanos também se encontram construções discursivas
divergentes. Por exemplo, Peter Ekeh expressa as suas dúvidas sobre a utilidade de
construções ocidentais, como sociedade civil, para explicar os processos sociais e
políticos em curso na África e as realidades africanas, afirmando que uma das
consequências desta utilização acrítica é desvalorização das particularidades históricas e
culturais para ele fundamentais, entre as quais a preponderância dos laços de parentesco
e de etnicidade, e as formas de associação não-voluntária que eles determinam. Segundo
Ekeh “a ideologia das relações de parentesco impõe restrições nos valores morais dos
indivíduos (...) o universalismo da sociedade civil confere uma empatia moral comum,
ao contrário das relações de parentesco que são restritivas no seu sentido de
liberdade”151.
Para Obadare152 existe uma distinção crucial entre sociedade civil como uma ideia e
sociedade civil como uma realidade existente e funcional, que é omitida em muitos
trabalhos sobre o tema no continente, e que deveria constituir-se no centro do debate
148 COMAROFF, John L. & COMAROFF, Jean. (1999), op. cit. 149 HARBESON, J.W. (1994), op. cit. 150 SOGGE, David. (1997), “The Civil Sector”, in David Sogge (org.), Mozambique: Perspectives on Aid and the Civic Sector. GOM, Oestgeest. FERGUSON, James. (1998), Transnational Topographies of Power: Beyond ‘the state’ and ‘civil society’ in the Study of African Politics. Irvine, University of California, Department of Anthropology. 151 EKEH, Peter. (1998), Civil Society and the Construction of Freedom in African History. Keynote address to Wilberforce Conference on Civil Society in Africa. Wilberforce, Central State University, Ohio. 152 OBADARE, Ebenezer. (2002), op. cit.
sobre as possibilidades e as limitações do conceito em África. Os argumentos contra a
sua utilidade para explicar as dinâmicas sociais em curso, comportam duas ideias
centrais ambas de rejeição: a sua presumível incompatibilidade com elementos
constitutivos (etnicidade, parentesco, etc.) das formas organizativas sócio-culturais
africanas, e o fato de ser uma construção estrangeira, estranha aos contextos africanos.
Os argumentos a favor do uso do conceito centram-se numa interpretação de sociedade
civil que a localiza no âmbito dos processos associados à sua mais recente reincarnação,
a luta pela liberalização política e pela democratização do espaço público, buscando
identificar as instituições de proteção dos interesses coletivos presentes nas sociedades
africanas, mesmo no período pré-colonial. Na opinião de Bratton “embora muitas
culturas pré-coloniais em África não tenham instituído estados, certamente todas elas
tiveram sociedades civis...” 153.
Muitas das formas autóctones da sociedade civil em África derivam dos laços de
parentesco e de etnicidade, mas têm criado subjetividades coletivas capazes de se
organizarem para protestar contra o descaso do poder estatal face aos seus interesses,
necessidades e práticas. Os problemas que resultam da transformação da solidariedade
étnica em chauvinismo étnico costumam servir de argumento contra a inclusão deste
tipo de relações na sociedade civil154. Embora a etnicidade seja uma categoria cultural
válida em África, e fator de tensões na sociedade política, na sociedade civil e no Estado
e entre eles, “para a maioria dos estados africanos e seus mais altos representantes, a
diversidade nacional é entendida como uma ameaça à unidade nacional, desprezando as
solidariedades étnicas e familiares. Alguns processos de revisão constitucional em
África têm demonstrado que esta categoria é considerada indesejável pelos estados
africanos, herdeiros das formas coloniais de estado, os quais foram constituídos através
de processos de conquista e pacificação (sangrenta, como a história o testemunha),
desprezando o princípio da constituição do estado, ou seja, a integração de comunidades
autónomas e distintas numa unidade política central”. Por outras palavras, os estados
coloniais foram constituídos contra os africanos; quando da independência, os estados
pós-coloniais limitaram-se a “uma recondução das funções essenciais da administração
153 BRATTON, Michael. (1989), op. cit. 154 MURUNGA, Godwin R. (2000), Civil Society and the Democratic Experience in Kenya: a Review of Constitution-Making from the Middle: Civil Society and Transition Politics in Kenya, 1992-1997, by Willy Mutunga. Nairobi, Sareat & Mwengo.
colonial que herdaram (...) tentou-se, apenas, imprimir uma dimensão nova, a luta pela
construção nacional, paradoxalmente apelidada de reconstrução nacional155”.
Entre a aceitação e a rejeição da utilidade do uso do conceito em África, surgem
algumas alternativas, buscando estabelecer um fio condutor entre “as tradições locais e
a ideia de sociedade civil predominante e importada do ocidente”156. Incluindo
instituições e processos locais, e as reconfigurações das relações entre Estado e
sociedade com elas relacionadas, estas abordagens defendem um “alargamento do
conceito de sociedade civil para incluir filiação involuntária e relações de parentesco,
porque os arranjos socioculturais africanos fornecem a sua própria lógica de prestação
de contas, as suas próprias esferas públicas, as suas próprias formas de organização e
associação”157.
Entre essas alternativas, uma propõe a “redefinição de sociedade civil como um espaço
onde grupos e indivíduos possam interagir e organizar a vida social”, o que implica “a
busca dos elementos distintivos das esferas públicas nos vários contextos culturais (...) e
das formas pelas quais a ideia pode ser usada, entre outras coisas, na causa pela justiça
social”158. Pode argumentar-se que esta solução não propicia as bases para uma
aceitação geral porque está imbuída de relativismo cultural, e que a fragmentação do
sentido do conceito em diversas enunciações contextuais lhe retira relevância. O contra
argumento é que “a relevância do conceito de sociedade civil em África é auto-evidente
dispensando demonstração, porque esteve sempre presente na governação e na
cidadania africanas, desde que serviu como princípio organizacional da administração
colonial”159, ainda que no complexo e nada civil encontro entre europeus e africanos, no
quadro do colonialismo, o conceito tenha servido para “institucionalizar diferenças entre
cidadãos e sujeitos etnicizados, colonialistas civilizados governados pela constituição e
tribos nativas governadas pela lei costumeira [tradicional]”160.
155 LOPES, Carlos. (1997), op. cit. 156 LEWIS, David. (2002), op. cit.
157 KALSTROM, M. (1999), “Civil Society and its Pressuppositions: Lessons from Uganda”, in J.L. Comaroff & Jean Comaroff (orgs.), op. cit, pp.104-123. 158 OBADARE, Ebenezer. (2002), op. cit. 159 LEWIS, David. (2002), op. cit. 160 MAMDANI, Mahmood. (1996), op. cit.
A noção de sociedade civil está contida nos discursos contra a escravidão, nos
movimentos nacionalistas de resistência e pró-independência, nas associações
voluntárias e no ativismo cívico que pressionou o Estado às reformas nos anos 80 e 90,
nos diversos contextos do continente. Para além da utilidade analítica porque “a sua re-
emergência se relaciona com várias mudanças estruturais e transformações do Estado”,
também o é do ponto de vista da ação, por inspirar e animar discussões e ações, e ter “o
efeito de mitigar diferenças de etnicidade, parentesco ou linguagem, potencialmente
indutoras de divisão, unindo os grupos em torno de questões que cortam
horizontalmente tais clivagens. Devido ao seu carácter ambíguo simultaneamente
unitário e divisivo, prescriptivo e aspiracional, chama a atenção para estruturas e
processos de mudança”, que caracterizam a atualidade do continente161.
A qualidade inspiracional da sociedade civil conduziu a luta pela auto-determinação em
sociedades dominadas por regimes totalitários, as europeias do então império soviético,
e as africanas alinhadas com ele, e as asiáticas e latino-americanas sob regimes
ditatoriais e militares. Apesar da concordância sobre a capacidade mobilizadora do
conceito-movimento162, existem divergências entre os que lhe atribuem a condição
normativa do que “deveria ser o relacionamento entre o indivíduo, a sociedade e o
estado no âmbito de uma estrutura de regulação, aceite por todos”163, e os que defendem
uma concepção flexível e dinâmica, capaz de captar as manifestações sócio-culturais
locais164.
2.7. A sociedade civil global
As referências à sociedade civil global remetem aos anos 90 do século XX, quando as
atividades de ONG’s internacionais, redes de advocacia transnacionais, movimentos
sociais globais, campanhas de agências humanitárias, etc., foram identificadas como
uma categoria no âmbito das novas relações globais, de conexões sociais atemporais,
tornadas possíveis pelas condições globais de transporte, informação e comunicação,
para as quais a localização territorial, a distância ou as fronteiras territoriais não
161 LEWIS, David (2002), op.cit. 162 KOSELLECK, Reinhart (2002), op. cit. 163 HOWELL, Jude and PEARCE, Jenny. (2001), Civil Society and Development: A Critical Exploration. London, Lynne Rienner. 164 LEWIS, David. (2002), op.cit. OBADARE, Ebenezer, (2002), op.cit. NKWACHUKWU, Orji (2003), Conventional Notion of Civil Society, International Civil Society Organizations and the Development of Civil Society in Africa. Department of Political Science, Ebonyi State University, Abakaliki-Nigeria. http://www.icsf-2003.mn/abstracts/BS1.1
constituem obstáculos165. A sociedade global existe no sentido em que as conexões
globais constituem uma rede social à qual se referem indivíduos de todas as partes do
mundo. Estabelecendo a distinção entre sociedade e sociedade global, Shaw166
considera esta última necessariamente diferente de todas as formas anteriores de
sociedade, porque a referência a contextos sociais mais amplos deixou de ser uma
demarcação externa para se tornar constitutiva da estrutura da vida social, e também
porque a inclusão ou o recurso aos meios de comunicação globais, como veículos de
mensagens e de debates, produziu uma mudança radical.
As tensões na identificação da sociedade civil global com as novas formas de ação
social principalmente ao fato de a condição de globalidade e o processo de globalização
serem entendidos de maneiras não uniformes e com intensidades diferentes pelas
camadas sociais - as elites estão mais informadas, envolvidas ou expostas, do que outros
grupos sociais, pelos atores sociais - os homens têm mais oportunidades de contacto
com esta nova realidade do que as mulheres, e pelas regiões do planeta - os países mais
desenvolvidos têm maior protagonismo no processo de globalização do que os do Leste
Europeu, da América Latina, da Ásia e da África.
O visível crescimento da sociedade civil global resulta da ação consciente de
indivíduos, grupos e organizações, que decidiram fazer parte da governação dos seus
destinos, tanto no plano nacional buscando formas de interação com os respectivos
Estados, quanto no plano global denunciando injustiças, debatendo problemas e as
soluções mais apropriadas, ou fazendo lobbying junto das instâncias internacionais. Em
resposta, agências como as de Bretton Woods, criaram estruturas internas de diálogo
com representantes da sociedade civil. Alguns poderes nacionais instituídos também
passaram a incluir representantes da sociedade civil nas suas delegações oficiais167.
165 SCHOLTE, Jan A. (1999), op. cit. 166 SHAW, Martin.(1999), “Global Voices: civil society and media in global crises”, in Timothy Dunne and Nicholas Wheeler (orgs.), Human Rights in Global Politics. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 214-232. 167 Opondo-se completamente a esta análise, Neera Chandhoke considera que “os atores da sociedade civil global
atuam em estruturas de poder herdadas, que eles podem tentar modificar ou alterar, mas raramente transformar. Só é
possível entender isso colocando a sociedade civil global no seu contexto constitutivo: um sistema de relações
internacionais centrado nos estados, dominado por uma pequena parte da humanidade no âmbito das estruturas do
capital internacional, que podem permitir discordância, mas que não permitem a transformação das suas próprias
agendas. Segundo Chandokhe, os atores da sociedade civil global fazem a diferença, como os atores das sociedades
civis nacionais o fizeram e fazem, mas como a maior parte dos atores humanos, eles funcionam no campo do
As atividades da sociedade civil global têm efeitos no processo de democratização que
vêm ganhando dimensões globais, não só porque deram visibilidade ao conjunto de
direitos e deveres dos indivíduos enquanto membros de uma comunidade sócio-política,
a cidadania nacional, mas também porque um número crescente de ativistas cívicos se
entendem como cidadãos do mundo, portadores de preocupações não-territorializadas.
Aproximando os indivíduos das agências transnacionais de regulação, criaram-se
oportunidades para a manifestação e afirmação da diversidade sócio-cultural do mundo
de hoje, contra as concepções homogeneizantes que, sob diversos léxicos, reclamam o
fortalecimento da sociedade civil. Entre celebrações, críticas e contestações a sociedade
civil global vem-se afirmando como uma nova categoria na análise das relações sociais
no mundo de hoje, através da mobilização das mais diversas formas de organização, em
praticamente todo o mundo, pelas mais diversas motivações e em diversos contextos168.
III. A VALIDAÇÃO DO CONCEITO
A análise anterior mostrou diversas abordagens do debate contemporâneo sobre o
conceito, herdadas umas das distintas tradições de pensamento, defendendo outras as
suas particularidades contextuais. Refletem, sobretudo, as divergências no recurso e uso
do conceito no ocidente no âmbito do quadro de referências da democracia neoliberal.
Quando, com base neste recorte analítico, as análises se deslocam de espaços sócio-
políticos liberais, “desconseguem” identificar as associações voluntárias de Tocqueville,
as corporações profissionais de Hegel, a classe operária de Marx, as ordens jurídicas
estabelecidas e os sistemas de direitos instituídos de Cohen e Arato, e os espaços
públicos de produção de consensos através da ação comunicativa de Habermas.
A passagem do poder do soberano para o Estado, a separação entre Estado e sociedade
civil, a mudança no entendimento da economia para além de uma ordem política
específica introduzindo uma nova interface na análise sobre a sociedade civil, a noção
de ativismo e de luta por direitos, e do papel do conflito social como indutor e
orientador de mudanças institucionais, para além de ampliarem o quadro teórico da
possível, e não no campo do impossível. CHANDHOKE, Neera. (2002), “The Limits of Global Civil Society”, in H.
Anheier, M. Glasius and M. Kaldor (orgs.), Global Civil Society. The Centre of Global Governance. London School
of Economics. 168 DESAI, Meghnad & SAID, Yahia. (2001), “The New Anti-Capitalist Movement: Money and Global Civil Society”, in H. Anheier, M. Glasius and M. Kaldor (orgs.) Global Civil Society. Oxford, Oxford University Press.
discussão sobre as relações sociais e de poder prevalecente até ao século XVIII,
provocaram uma mudança significativa no entendimento e na práxis da relação entre
cidadania e exercício do poder: a transferência do poder político da sociedade civil para
o Estado criava uma sociedade de iguais do ponto de vista político, sendo as
desigualdades entre eles de natureza econômica e não mais política.
A relação entre sociedade civil e democracia aparece com focos distintos nas
construções teóricas de Hegel, de Marx e de Tocqueville, sendo as associações
voluntárias deste bastante diferentes dos pactos de Hobbes, das corporações de Hegel e
da classe burguesa de Marx. Enquanto nestes últimos, a busca pelo interesse material
distingue a sociedade civil, Tocqueville procura manter esse materialismo nos limites
das associações voluntárias. Estas distinções na concepção de sociedade civil servem de
esteio às recuperações do conceito em finais do século XX, que mantêm as
ambiguidades do ponto de vista da sua constituição e dos seus atributos. As leituras de
Tocqueville e de Gramsci são importantes para a reflexão sobre a sociedade civil em
África, porque fornecem chaves de análise e de compreensão dos processos internos e
externos em curso no continente, nos quais distintos modos de organizar solidariedades
e responsabilidades coletivas procuram induzir mudanças no status quo. O pensamento
de Gramsci forneceu suporte teórico às análises sobre as ações de resistência aos
regimes totalitários, na Europa Oriental, na América Latina e na África169, não na
perspectiva da reabsorção da sociedade política e conseqüente dissolução do poder
político, mas antes no seu entendimento enquanto espaço de obtenção de consensos
alternativos à hegemonia do Estado170.
As comunalidades identificadas, relacionadas com os princípios constituintes do
conceito, nomeadamente a autonomia dual, a ação coletiva, a não usurpação do poder, e
a civilidade, levam a um entendimento de sociedade civil como um conjunto ou sistema
de grupos intermediários, auto-organizados, relativamente independentes do Estado, da
empresas e da família, com capacidade de tomar decisões e mobilizar a ação coletiva na
defesa ou na promoção dos seus interesses, sem pretensões de exercer o poder político,
e que não se regem por regras pré-estabelecidas de natureza legal171.
169 LEWIS, David. (2002), op.cit.
170 BOBBIO, Norberto. (1986), op. cit. 171 WHITEHEAD, Lawrence. (1997), op. cit.
A partir da distinção entre sociedade civil e a sociedade política mais ampla, os diversos
entendimentos do conceito coincidem em sinalizar uma desigual distribuição das
diversas formas de organização associativa, voluntária da sociedade civil nas
sociedades, dos indivíduos e grupos sociais nela integrados, e dos espaços territoriais
correlatos, com uma maior concentração em algumas regiões do globo e nas áreas
urbanas.
O conceito reemergiu na atualidade com maior incidência em distintas condições sócio-
culturais, económicas e políticas, designadamente:
na América Latina, na condenação e denúncia públicas às violações dos direitos
humanos, contra a repressão das organizações sociais e políticas e como
oposição às políticas neoliberais dos regimes autoritários, e mais recentemente
nos processo de reforma do Estado,
na Ásia oriental e do Sul, nos processos de luta contra regimes ditatoriais e de
inclusão na economia mundial,
na África Subsahariana, no início das transições democráticas, para enfrentar o
estatismo e o sub-desenvolvimento,
nos países da Europa do Leste, para o estabelecimento de formas de vida social
independentes do estado autoritário.
Esta síntese chama a atenção para três dimensões importantes de discussão:
1°. Não existe uma definição para o conceito, sendo por isso necessário recorrer,
sempre, a uma análise social e institucional dos contextos aos quais a ideia se refere ou
que, através dela, se pretende compreender. A análise institucional dos contextos, dos
atores envolvidos e suas lutas por poder e influência para a imposição das suas agendas,
das estratégias adoptadas para o alcance dos objetivos definidos, das alianças e
coalisões criadas, etc., fornece elementos essenciais para o entendimento da sociedade
civil em determinado contexto sócio-político, permitindo responder a três questões
fundamentais: quem toma as decisões e em que áreas da escolha social, quem se
beneficia das decisões, quem suporta o custo das decisões. Essa análise deve permitir,
ainda, conhecer as formas de vida associativa incluídas (e as excluídas), os valores,
solidariedades e interesses que elas criam, articulam e representam.
2°. O conceito mobiliza diversos tipos de discursos, sendo os mais comuns os dos
direitos humanos, do desenvolvimento, da mudança ou de reformas e também em
defesa ou manutenção do status quo, de abertura ao diálogo e ao debate dos interesses e
propostas dos diversos, e novos, atores sociais, de transparência e boa-governação,
exigindo o combate à corrupção. O poder ideológico ou utópico desses discursos é o
elemento fundamental para a compreensão das relações sociais e de poder num dado
contexto, logo das condições de possibilidade das mudanças preconizadas. Em todos
estes quadrantes, contudo, um elemento reivindicativo é comum: a democratização das
relações sociais e de poder, numa perspectiva que vai além da construção de instituições
democráticas, como eleições gerais, parlamento, sistemas de direitos, etc., promovendo
também a incorporação e disseminação de valores democráticos nas práticas cotidianas.
A menção à expansão do espaço público é uma necessidade presente nos diversos
contextos do hemisfério sul e da Europa do Leste, demonstrando que a questão da
mediação das subjetividades face ao aumento crescente de complexidade, diferenciação
e fragmentação social, assume uma dimensão emancipatória de respeito e
reconhecimento pela pluralidade que caracteriza as sociedades actuais. Por outro lado,
mais do que à noção de conjunto ou de união, as abordagens apresentadas remetem para
uma ideia de espaço, no qual, as pessoas, as organizações, as instituições, discutem
ideias e buscam as articulações capazes de produzir avanços, não apenas com base em
consensos alcançados, mas envolvendo os dissensos reconhecidos como válidos,
embora restritos a subjetividades ou áreas geográficas172.
A interpretação das abordagens apresentadas sugere que, para além da capacidade
mobilizadora da ação e acumuladora de sentidos que o conceito demonstra nas
apropriações que dele foram feitas nos diversos contextos, a sua eficácia enquanto
motor da mudança das realidades ao qual é aplicado precisa ser complementada pela
noção de espaço de interação e de comunicação, numa perspectiva inclusiva de todas as
categorias de atores sociais existentes, ou dos que surjam no processo de
democratização nesse contexto. A condução de um processo de mudança dessa natureza
pressupõe uma perspectiva democrática e aberta à pluralidade para construção de um
amplo consenso, que exige uma instância mediadora, independente tanto do poder
172 EDER, Klaus. (2005), “Making Sense of the Public Sphere”, in Gerard Delanty (org.), The Handbook of Contemporary European Theory. OXON, Routledge.
estatal quanto do mercado, capaz de conduzir esse processo comunicativo de formação
da opinião e da vontade coletiva173.
3º. Importa incluir na análise os principais atores globais presentes num dado contexto,
a identificação das suas áreas de influência e os seus discursos, devido à grande
dependência da maior parte das sociedades do hemisfério sul de mecanismos de
financiamento externo, e aos impactos do processo de globalização no Estado nacional e
a nas construções locais de sociedade civil, não apenas do ponto de vista das
oportunidades que gera, mas também das tensões que pode provocar174. Contudo, por
carecer da dimensão cultural defensiva, por não conseguir ancorar-se num mundo da
vida específico que lhe confira o carácter democratizante da sociedade civil, a sociedade
civil global acaba por reproduzir as insuficiências das estruturas de representação e de
participação que as sociedades civis nacionais pretendem corrigir175.
IV. A CONSTRUÇÃO DO PÚBLICO EM ANGOLA 1. O Debate sobre Sociedade Civil
1. Após as reformas da passagem da I à II República, o conceito de sociedade civil
ganhou visibilidade em Angola, associado à ideia de autonomia em relação ao Estado,
ao governo e ao sistema político-partidário, e envolvendo grupos e organizações
identificadas com as igrejas, ONG’s, sindicatos, associações culturais, cívicas e
profissionais. A sua aparição no cenário angolano ocorreu em simultâneo com o
processo de institucionalização do sistema multipartidário, da liberdade de imprensa, de
associação e de culto religioso, do direito à greve, entre outras disposições no âmbito do
novo quadro legal (Capítulo 1, pp. 13-16), e promoveu o surgimento de novos actores
sociais. A persistência da guerra civil até 2002 e da crise por ela gerada, estimulou o seu
crescimento em torno de três eixos, a luta pela Paz, pelas liberdades fundamentais, e
pelo desenvolvimento.
O surgimento de associações cívicas, culturais e recreativas, e de ONG’s, ampliou-se
após 2002, num esforço que pode ser entendido como a resposta dinâmica da sociedade
173 AVRITZER, Leonardo & COSTA, Sérgio. (2004), op. cit. 174 EDER, Klaus. (2005), op.cit. 175 COSTA, Sérgio. (2003), op. cit.
civil em busca de uma identidade e de uma legitimidade capaz de dar corpo a uma
cidadania ativa, num ambiente democrático e participativo176. A participação destas
organizações na vida pública é, ainda, fortemente condicionada pela inexistência de
mecanismos sistêmicos de auscultação, concertação, integração e monitorização nas
diferentes etapas desse processo, e pela debilidade das próprias organizações177.
A precariedade dos espaços públicos em Angola, para além de reflectir ambiguidades
políticas de um processo de democratização descontínuo e marcado por inúmeras
violações dos direitos fundamentais, entre os quais a guerra é o exemplo mais acabado,
assinala as dificuldades encontradas em vencer a distância social provocada pela
desigualdade e suas consequências na sociedade: injustiça e desconfiança. A grande
desigualdade social e os elevados níveis de exclusão social funcionam como um divisor
de águas entre a pequena parcela da sociedade mais favorecida – os cidadãos -, e a
grande maioria do público primordial dos sujeitos, uma distância social crescente
porque os primeiros procuram defender os seus interesses e os segundos simplesmente
sobreviver. Nestas circunstâncias torna-se difícil gerar uma solidariedade social ampla,
abrangendo todas as partes em que se encontra fragmentada a sociedade, do ponto de
vista das condições e das oportunidades a que têm acesso178.
A articulação de interesses tão opostos quanto os presentes na sociedade angolana
requer uma estratégia de aproximação que permita aumentar a confiança entre os
actores por via do diálogo, mas que enfrenta duas importantes dificuldades: o silêncio e
a diferença. A primeira resulta da destruição parcial durante o período colonial, e do não
reconhecimento após a independência, das formas de conhecimento próprias do povo,
176 PESTANA, Nelson. (2004), “As Dinâmicas da Sociedade Civil em Angola”. Lisboa, Centro de Estudos Africanos, ISCTE. Occasional Paper.
177 A conjugação dos limites e constrangimentos da cultura política dominante em Angola, com a falta de recursos financeiros, aumenta a sua dependência do financiamento externo. A escassez de recursos financeiros e materiais para
a realização dos objetivos que levaram à sua criação, e as dificuldades em agenciar tais recursos entre os seus membros e/ou na sociedade, na ausência de políticas públicas de apoio à sua constituição e funcionamento sob a
forma de subsídios, incentivos, ou outro tipo de dotações orçamentais, conduzem a uma procura por financiamentos externos junto de agências do sistema das Nações Unidas, das representações das instituições de Bretton Woods, ou das agências bilaterais de cooperação. Em muitos casos, esta dependência financeira acaba se transformando numa
dependência das agendas, ou seja, as organizações abandonam, temporária ou definitivamente, os objetos sociais que levaram à sua criação. Por outro lado, esta situação acaba por gerar desequilíbrios entre as organizações, não só
resultantes das diferenças existentes entre elas do ponto de vista da capacidade de agenciamento de recursos, mas também porque determinados temas ou áreas de intervenção, menos valorizados pelos doadores internacionais, não
conseguem mobilizar os recursos necessários (muitas vezes bem reduzidos e com elevadas taxas de retorno em termos dos seus potenciais efeitos na sociedade).
178 REIS, Elisa. (1995), “Desigualdade e Solidariedade: Uma releitura do ‘Familismo Amoral’ de Banfield”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº. 29, pp.35-48.
criando “silêncios que tornam impronunciáveis as necessidades e aspirações dos povos
e grupos sociais cujas formas de saber foram objecto de destruição”179, funcionando
como bloqueio de uma potencialidade que não se consegue desenvolver. A segunda
resulta da incompreensão entre as diversas culturas sobre necessidades, práticas e
aspirações de cada uma delas, porque a solidariedade cria-se no conhecimento e
aceitação das diferenças: a inexistência de diálogo, por dificuldade ou ausência de
comunicabilidade entre os diversos grupos sociais, gera indiferença de uns em relação
aos outros, e coloca a necessidade de recorrer a formas de tradução das suas
necessidades, práticas e aspirações, para que as mesmas se tornem compreensíveis,
criando as condições para o estabelecimento do diálogo entre eles.
Outro dos desafios à articulação entre interesses dos grupos sociais dominantes e os dos
grupos dominados e destituídos é que os primeiros parecem ter-se desinteressado do
consenso social no âmbito do qual os segundos acreditavam ser governados em nome
do interesse geral, consentindo nessa governação. Após a independência, os termos de
incorporação dos pequenos produtores rurais no estado-nação e na economia nacional,
constituíram um retrocesso para eles e evidenciaram o não-reconhecimento pela sua
contribuição na luta contra o colonialismo. As políticas agrícolas adotadas com
objetivos tidos como públicos, mas que refletiam escolhas feitas em resposta a
interesses organizados, foram usadas para obter apoio político, permitindo aos
governantes desorganizarem a oposição, neutralizando politicamente uma parte
significativa da população. Sendo Angola um país onde a maioria da população ainda
depende da agricultura para sobreviver, a persistência de políticas que resultam em
benefícios para outros grupos sociais que não os camponeses, apenas se explica pela
ausência de competição partidária180. A confiança na sua hegemonia, por falta de
179 SANTOS, Boaventura S. (1999), “Porque é tão difícil construir uma teoria crítica?”. Travessias, nº. 1, pp.21-38. 180 No período pré-independência, esses grupos foram aliados dos camponeses, os interesses que os separavam estavam, então, submetidos ao interesse maior e comum de lutar contra a dominação colonial. Com o triunfo da coalizão nacionalista, o conflito de interesses entre camponeses e os demais grupos sociais não ficou mais submetido a interesses comuns. A formação de uma coalizão do desenvolvimento entre trabalhadores urbanos, industriais, o Estado e os seus aliados no meio rural (os grandes produtores ou os beneficiários dos projetos governamentais), colocou em oposição aos interesses dos pequenos produtores agrícolas, os interesses dos trabalhadores urbanos procurando alimentos mais baratos, dos industriais pretendendo matérias primas e força de trabalho a baixos custos, dos burocratas querendo salários elevados, vantagens sociais, e alimentos a baixos custos, e dos políticos, dirigindo governos que necessitam de impostos e que são, simultaneamente, os maiores empregadores e industriais. Os pequenos produtores, defendiam uma avaliação justa dos custos de produção e o beneficiamento primário dos seus produtos, a criação de infraestruturas de transporte e comunicações, melhores condições de vida e inclusão na sociedade. O afastamento dos ex-aliados e das lideranças dos movimentos de libertação provocou o isolamento, a desmobilização e o abandono do recurso à ação política para fins econômicos: evitando os mercados publicamente monitorados, trabalhando pequenas parcelas familiares, e procurando refúgio na mais privada das instituições, a
alternativas, leva esses grupos a menosprezar a existência de ideias ou projectos que
lhes sejam adversos, considerando-os irrelevantes ou votados ao fracasso, e baseiam
esta crença no silêncio e/ou na resignação dos grupos dominados.
A coincidência da guerra civil com as duas primeiras décadas pós-independência inibiu
o desenvolvimento de organizações autônomas actuando no espaço público, na medida
em que toda a tentativa de autonomização da sociedade civil “é [também] esmagada
pela guerra porque toda a deslegitimação do poder do Estado vem reforçar um outro
poder, armado e de natureza totalitária, toda a rejeição deste outro poder faz funcionar a
máquina do Estado, contribuindo, para bem ou para mal, para o seu reforço: esta
dualidade de poderes opressores estimulando a sua (deles) radicalização e mantendo-os
para lá deles, sendo o seu resultado comum o sufocar das forças e vias independentes e
pacíficas”181.
Benjamin Castello afirma que “nos primeiros quinze anos pós-independência, a rigidez
do sistema político vigente permitiu somente a emergência de organizações sociais
subordinadas ao regime ou fiéis ao seu serviço. O que significou uma obediência
absoluta ao partido no poder. Durante este período a sociedade civil angolana não
exercia nenhum protagonismo digno de realce. Salvo na diáspora”182. Nelson Pestana,
contudo, considera que “as análises sobre a sociedade civil angolana no período do
partido único são geralmente redutoras, negando uma qualquer existência de uma
autonomia latente, ou exclusivamente legitimadoras, fazendo passar as organizações de
massas como pseudo-representações dessa sociedade civil”. Por isso, considera
necessário “traçar a genealogia analítica dessa realidade que ainda não ousava dizer seu
nome e que por vezes era designada como o conjunto de cidadãos sem partido”, porque
“(...) a sociedade civil angolana tem uma história antiga e uma recente”183.
família, os camponeses e pequenos produtores optaram por soluções privadas para enfrentarem o problema da sobrevivência econômica. BATES, Robert. (1981), op. cit. BATES, Robert. (1983), op. cit. 181 MESSIANT, Christine. (1999), “A Propôs des transitions démocratiques. Notes comparatives et préalables à l’analyse du cas angolais”. Africana Studia, 2, CEA, Universidade do Porto, pp. 61-95. 182 CASTELLO, Benjamin A. (2000), A Força e o Papel da Sociedade Civil Angolana em Busca da Paz em Angola. Conferência de Maputo sobre Angola, Junho. 183 PESTANA, Nelson. (2004), op. cit. Segundo Pestana, existe uma história antiga, porque a independência não é o
grau zero da política em Angola, nem mesmo o nacionalismo moderno dos anos 50/60 que conduziu a luta armada de
libertação nacional. É a história do movimento associativo angolano, com origens em meados do século XIX, e das
associações culturais e movimentos cooperativos e mutualistas angolanos que davam corpo à afirmação do direito de
cidadania dos africanos, e se prolongou durante o século XX, mesmo após o início da luta armada de libertação
2. Década e meia após a mudança do quadro jurídico-legal e institucional do país, a
ideia de sociedade civil que trespassa o discurso oficial parece incluir apenas as
organizações formais e, acima de tudo, as que num passado recente se mobilizaram no
âmbito da assistência de emergência às populações atingidas pela guerra, e as
provedoras de serviços sociais no âmbito de projetos de apoio a comunidades carentes,
principalmente nas áreas rurais e periurbanas. Esta posição reflecte a ausência de
incentivos por parte do Estado angolano à constituição e fortalecimento de uma
sociedade civil capaz de influenciar a agenda política e social, e de interpelar as
instituições estatais sobre questões de interesse público, apesar da mudança no quadro
jurídico e da implantação de instituições democráticas, não foi promovida a inserção de
valores democráticos nas práticas do dia-a-dia184. Contrapõe à perspectiva mais ampla
de uma arquitectura social que permita mudar as relações de poder em Angola e criar
uma cultura de diálogo, de respeito e reconhecimento da diferença de opiniões e de
papéis sociais, a visão estreita e despolitizada de organizações sociais, ontem envolvidas
em projectos de assistência humanitária, e hoje em projetos de apoio a comunidades ou
grupos sociais carentes, mas sem envolvimento político.
A disposição em promover as sinergias capazes de lutar por mudanças que promovam a
melhoria das condições de vida dos angolanos é acentuada por Maria da Imaculada
Melo, presidente da Ação Cívica Angolana (ACA), ao considerar que “a sociedade civil
não tem que ser força de oposição, mas procurar as melhores parcerias (incluindo o
partido no poder) desde que tragam mudança, isto é, desenvolvimento, melhorias nas
condições de vida das populações”185. Neste sentido, Fernando Macedo, presidente da
Associação Justiça, Paz e Democracia, acrescenta que “segundo um princípio de
eficácia de esforço, a sociedade civil pode também integrar indivíduos activos
nacional. A história mais recente remete ao “renascer” do movimento associativo, a afirmação da sua autonomia e da
sua legitimidade de intervenção ao espaço público criado no contexto do Estado colonial, que lhe foi negada pelos
movimentos de libertação, ao assumirem-se como partidos-nação. 184 Voltou a evidenciar-se no discurso oficial o não reconhecimento do papel das organizações da sociedade civil, a nível central, provincial e mesmo das administrações municipais. Um decreto recentemente aprovado regulamenta a atividade das ONG’s, incluindo as internacionais; apesar de promulgado após um processo de consulta entre o governo e estruturas de representação de ONG’s nacionais e estrangeiras, não parece ter incorporado as sugestões das organizações cuja ação visa regulamentar. As preocupações do governo são justificadas pelo fato de aquele considerar que nas intervenções de prestação de serviços às comunidades, ou de advocacia social, as ONG’s muitas vezes ignoram as disposições governamentais que regulam a sua atividade. 185 Citada em PESTANA, Nelson. (2004), op. cit.
[notáveis], na medida em que este encontrem respaldo na massa, e os seus interesses e
ideias sejam reconhecidos pela massa, porque só esta é capaz de oferecer mudanças186.
A jurista e ativista dos direitos da Mulher Anacleta Pereira, ao considerar que “a
sociedade civil é um terreno de luta porque a participação na vida pública visa um
objectivo de mudança ou de manutenção do status”, destaca um outro aspecto
fundamental da análise dos debates sobre sociedade civil, o das utopias e ideologias que
os discursos neles usados veiculam. Essa análise constitui o objetivo do próximo
capítulo, no sentido de avaliar as possibilidades da sociedade civil em Angola no que
respeita à capacidade de influenciar as políticas públicas e obter resultados187.
Ao destacar que “embora incipiente, a sociedade civil angolana tem um enorme
potencial e deve ser, simultaneamente, uma escola e uma trincheira de liberdade”188,
Fernando Pacheco, fundador e presidente da ADRA uma ONG angolana, recoloca em
pauta a necessidade da incorporação dos valores democráticos nas práticas do dia-a-dia,
chamando a atenção para a necessidade de inserir a sociedade civil e os indivíduos,
grupos e organizações que a integram, num amplo laboratório de aprendizagem e
prática dos direitos de cidadania.
2. Os dilemas da Participação em Angola
Num ambiente institucional onde parece não existir vontade política para a remoção
gradual dos impedimentos que ainda obstruem a construção de uma cidadania ampla e
plena, cabe à sociedade civil o papel de a promover. Essa foi uma das mensagens dos
participantes na pesquisa, apesar das dificuldades e limitações que identificaram na
sociedade civil em si, e na sua capacidade de interpelar o Estado e as suas instituições.
A expansão dos direitos de cidadania passa pela criação de oportunidades de acesso a
bens colectivos e serviços públicos numa base universal, o que implica, para além das
necessárias intervenções junto do executivo e do legislativo para adequação das
políticas públicas às necessidades da população, mudanças nas intervenções da
186 Idem. 187 Idem. 188 PACHECO, Fernando. (2002), “Caminhos para a Cidadania: poder e desenvolvimento a nível local na perspectiva de uma Angola nova”. Política Internacional, nº. 25, Primavera/Verão, pp.43-50. Igualmente citado por Nelson Pestana. (2004), op. cit.
sociedade civil. A prática de privatizar o público produz uma proliferação de “ilhas”
constituídas pelos interlocutores e/ou destinatários dos projetos ou atividades
promovidas por ONG’s e outras organizações da sociedade civil, acentua a
fragmentação social e historicamente construída do público em Angola.
O duplo objetivo de promover articulações entre os diversos públicos do público em
Angola, e a criação de instâncias de participação aos diversos níveis da sociedade e
sobre os mais variados temas de interesse público, exercita a democracia entre os que
nelas participam estimulando o desafio à lógica dominante, amplia os espaços públicos
através da diversificação dos atores e dos discursos, e produz oportunidades de troca de
informações e troca de experiências, permitindo um conhecimento mais amplo dos
problemas e das possíveis soluções para os mesmos. Para isso, porém, é preciso vencer
as resistências que ainda prevalecem, não só por parte do Estado, mas também por parte
dos próprios cidadãos.
Algumas experiências, como a criação de estruturas de participação e representação em
alguns bairros de Luanda, parecem encaminhar-se nesta direção: na comuna do Hoji Ya
Henda, em Luanda, foi criada a APDCH, aliança das organizações da sociedade civil
para a promoção e desenvolvimento da comuna, que define como sua principal missão
“criar espaços e mecanismos de concertação das organizações da sociedade civil, servir
de voz dos sem voz e engajar-se com as autoridades locais na promoção da democracia
e o respeito pelos direitos e deveres dos cidadãos”189. No município do Kilamba Kiaxi,
também em Luanda, foi criado um Fórum de representação e participação de
organizações da sociedade civil junto da administração municipal, com os mesmos
objetivos.
Iniciativas como as da Rede Mulher, Rede Eleitoral, Rede Terra e Rede Maiombe, são
exemplos de novos desenvolvimentos no ambiente institucional angolano, embora
carentes de apoio para a capacitação dos seus membros, e de meios técnicos e
financeiros para cumprirem os objectivos da sua criação. A troca de experiências com
outras organizações com interesses afins como a coalisão LIJUA, organização angolana
da Jubileu 2000 que luta pelo perdão da dívida externa dos países sub-desenvolvidos,
189 ECOS DO HENDA, Jornal Comunitário da Aliança das Organizações da Sociedade Civil do Hoji-ya-Henda, nº. 01, ano I, Out/Nov. Editorial.
pode constituir-se num interessante campo de experiências com vista ao reforço destas
organizações e à multiplicação destas experiências.
3. Subsídios para um quadro teórico da sociedade civil em Angola
A interpretação das opiniões dos participantes na pesquisa, se destacado o lado das
distinções entre si, conduziria à ideia de distintas esferas públicas nas três cidades
abrangidas pela pesquisa, partindo do conceito de comunidade constituída por pessoas
privadas reunidas como um público, discutindo e debatendo questões de interesse
comum, e criando mecanismos de articulação com o Estado para responder às
necessidades da sociedade190. Por meio da reunião e do diálogo, gerando opiniões e
atitudes para confirmar ou desafiar a gestão dos assuntos de Estado, a esfera pública
constitui-se como a fonte da opinião pública necessária para legitimar a autoridade em
ambiente democrático191. Contudo, é muito forte a presença dos traços comuns nas
respostas, nas matérias dos meios de comunicação, nas conversas do dia-a-dia, nos
discursos oficiais e de atores externos. Este outro lado, parece indicar que o quadro
teórico mais ajustado à interpretação dessas opiniões é o que toma o conceito
habermasiano de esfera pública como quadro de referências, e identifica a existência de
“públicos” ou “perspectivas” diferenciados no âmbito de uma mesma esfera pública192.
Ou seja, a significativa presença de similitudes nas opiniões dos oito conjuntos de atores
sociais (idênticos na sua constituição e na sua inserção na estrutura social) nas 3
cidades, parece recomendar que essas opiniões sejam entendidas como expressões da
“esfera pública angolana” e as distinções entre si como configurações de “públicos
locais” relacionados com as três cidades abrangidas pela pesquisa.
A interpretação das opiniões sobre as relações entre o Estado e os atores não-estatais
confrontou-se com outro problema no quadro teórico da esfera pública de Habermas
relacionado com atores sociais - meios de comunicação, igrejas e organizações
religiosas, e autoridades tradicionais -, não considerados por Habermas na esfera
190 HABERMAS, Jürgen. (1962) [1989], op.cit. 191 AVRITZER, Leonardo & COSTA, Sérgio. (2004), op. cit. 192 FRASER, Nancy. (1992), “Rethinking the Public Sphere: A Contribution to the Critique of Actually Existing Democracy”, in Craig Calhoun (org.), Habermas and the Public Sphere. Massachusetts, Massachusetts Institute of Technology.
pública. Integrando a sociedade civil193, ou não, estas três categorias de atores são
identificadas pelos participantes como desempenhando papel relevante na sociedade e
recurso indispensável na articulação de interesses, na constituição democrática da
opinião e da vontade coletivas, e na influência do Estado e do mercado no que respeita à
agenda pública em Angola.
O entendimento dos meios de comunicação na esfera pública era relevante para
Habermas e construído em torno do papel da imprensa, essencialmente a escrita.
Referindo-se ao papel dos meios de comunicação de massa, a rádio e a televisão,
Habermas mostrou-se bastante pessimista no que se refere à sua capacidade de
promoverem a participação na esfera pública, considerando-os mais conducentes a
estimular uma progressiva passividade e alienação194. Percebendo-os como meros meios
de disseminação de ideias e opiniões, Habermas parece ter deixado escapar o potencial
dos atuais meios de comunicação em formatar novos quadros de pensamento, introduzir
novos temas e novos atores na arena pública, e por esse motivo influenciar a agenda e a
opinião públicas. Mais do que um papel informativo, os meios de comunicação
modernos são importantes veículos na formação da opinião pública e como tal não
podem deixar de ser considerados nesta análise, tanto na perspectiva de veiculadores da
ideologia dominante quanto na criação de espaços para a manifestação da utopia de uma
Angola melhor195.
Igrejas e organizações construídas em torno de solidariedades religiosas, ou numa
perspectiva mais ampla, o papel da religião na construção do espaço público, não foi
considerado por Habermas como relevante, segundo ele devido ao fato de o seu papel
na sociedade ter mudado em resultado da Reforma, e as opções religiosas de cada um
terem passado a ser entendidas, a partir daí, como pertencendo à esfera do privado. No
caso específico de Angola, contudo, não parece possível compreender as relações no
espaço público, principalmente no período pós-colonial e, dentro deste, com especial
ênfase durante a I República [1975-1991], sem considerar o papel fundamental das
igrejas, as únicas instituições que se mantiveram independentes do poder do Estado e se
193 Segundo os resultados da pesquisa, apresentados e discutidos em outro capítulo desta tese, as igrejas consideram-se e são consideradas como integrando a sociedade civil, enquanto os meios comunicação e as autoridades tradicionais, não se consideram nem são percebidos pelos demais atores sociais, como integrando a sociedade civil em Angola. 194 HABERMAS, Jürgen. (1962) [1989], op.cit. 195 COMERFORD, Michael. (2003), op.cit.
mostraram capazes de influenciar a agenda pública em defesa dos interesses dos grupos
sociais mais desfavorecidos, a favor de uma ampla coalisão pela Paz, e na denúncia de
práticas contra os direitos humanos, defendendo uma sociedade mais justa, inclusiva e
equitativa.
Importante, também, é o papel das autoridades tradicionais na configuração do espaço
público angolano, considerando o seu potencial de articuladores das relações entre as
comunidades de base e a sociedade em geral. Em geral relacionadas com a existência de
um “público primordial”, cuja relação com o “público cívico” se materializa
essencialmente através dessas instituições do poder local, elas constituem
reminiscências dos antigos chefes de clãs ou descendentes de famílias reais196, que
apesar de terem perdido grande parte dos seus poderes num longo processo que remete
aos primeiros contactos com a potência colonial, ainda constituem a fonte de autoridade
e de orientação das comunidades rurais em Angola, desempenhando um papel de
articuladores / mediadores das relações sociais e de poder entre a ampla base rural da
sociedade e as demais camadas sociais urbanizadas.
Várias têm sido as críticas, os receios e as expectativas de diversos atores angolanos
sobre a pretendida reposição do papel das autoridades tradicionais. As críticas e os
receios remetem a uma possível intenção de serem repostos valores e regras
considerados injustos e ultrapassados, nomeadamente as restrições à participação das
mulheres e dos jovens nos processos de tomada de decisão. As expectativas relacionam-
se com o desejo de verem adoptadas algumas práticas de participação nos processos de
tomada de decisão, principalmente a abertura/transparência reconhecidas no Ondjango e
a ansiedade em verem incorporadas na ordem jurídica do Estado de direito, normas com
reconhecido valor social enquanto mecanismos de prevenção de conflitos, de
compensação e intermediação, com papel fundamental na preservação da ordem social,
alterando a estrutura de incentivos que se colocam às partes em conflito, de forma a
descartar a decisão do recurso à violência e contribuir para a consolidação da paz social.
196 Para Mahmood Mamdani, os chamados chefes hereditários [na terminologia angolana os “Sobas por linhagem”] foram em geral impostos ao povo pelos poderes coloniais, tendo-se cristalizado um sistema dinâmico e complexo de governo hereditário num único conjunto de hábitos esvaziados do seu conteúdo democrático em nome da estabilidade do governo colonial. MAMDANI, Mahmood (1997), Inaugural Meeting, I African Workshop, International Society for Third Sector Research (ISTR). Johannesburg, South Africa, December 1997.
CAPÍTULO 3 – OS DISCURSOS DA SOCIEDADE CIVIL
I. INTRODUÇÃO A análise dos debates sobre a sociedade civil mostrou a amplitude dos contextos nos
quais o conceito é recorrente, porque nele encontram valor de uso, tanto como ideia
quanto como praxis. Caracterizados pela diversidade, principalmente a sul, os discursos
que os explicitam revelam o potencial do conceito para projetar expectativas de
mudança social e endereçar demandas por equidade e justiça sociais, em todos os
quadrantes do mundo, e nas mais diversas linguagens. Contrastando com a hegemonia
dos discursos ocidentais, a diversidade e a criatividade caracterizam as apropriações do
conceito em outras paragens, em resposta à alegada inadequação do uso do mesmo fora
do mundo ocidental. Mas também constituem formas de resistência aos modelos
impostos e veiculados pelo discurso ocidental, no âmbito do léxico do desenvolvimento
que constitui o paradigma dos programas de ajuda e cooperação.
As perspectivas apresentadas no capítulo anterior, ao constituírem-se em distintas
abordagens dos campos e dos interesses públicos e privados, afirmam-se como formas
diferenciadas de enquadrar o debate sobre sociedade civil na atualidade, traduzindo
entendimentos e usos diferentes do mesmo. O fim do colonialismo e das ditaduras
militares no terceiro mundo, e da guerra fria que opunha o primeiro ao segundo
mundos, produziu profundas alterações nas concepções geográficas, políticas,
económicas e sociais no planeta. O aumento crescente de diferenciação e
complexificação das sociedades atuais, acelerado pelo processo de globalização,
resultou na desconstrução de antigas identidades coletivas e na recriação de novas e
mais diversificadas identidades sociais.
Parece haver, por um lado, uma relação entre o aumento de complexificação e de
diferenciação do mundo, e a plétora de concepções de sociedade civil, incluindo as
diversas visões do mundo não-ocidental. Por outro lado, mais do que nunca antes, as
construções de sociedade civil enquanto conceito teórico e enquanto prática, são
influenciadas e por sua vez influenciam a arquitectura da sociedade civil global,
enquanto movimento supraterritorial que acompanha o desenvolvimento do processo de
globalização.
Por essa razão, este capítulo vai ocupar-se dos discursos contemporâneos que
mobilizam o conceito de sociedade civil, como forma de expressão das ideologias e das
utopias prevalecentes nos imaginários sociais. Para além da sua influência na
sociabilidade, tanto do ponto de vista da manutenção do status quo, quanto do ponto de
vista da mudança, os discursos têm um papel relevante na formação da opinião pública
e na identificação das opções institucionais, existentes ou a criar, a que os atores podem
recorrer, porque o desvendar da realidade torna possível a emancipação.
A identificação dos elementos ideológicos e utópicos adjacentes às construções sociais e
políticas sobre sociedade civil justifica-se devido ao seu papel estruturante na criação
dos campos de elaboração das concepções, imagens e usos do conceito mais comuns
nos nossos dias. Uma vez que estas construções são tornadas perceptíveis através dos
discursos, importa identificar os elementos ideológicos e utópicos neles presentes e as
formas pelas quais ambos contribuem para estruturar os campos de análise e as práticas
da sociedade civil.
O enfrentamento conceitual entre ideologias e utopias origina diversos campos de forças
relacionados com perspectivas sócio-culturais e contextos geográficos mais ou menos
definidos, operando em sentidos contrários, universais e globalizantes umas, contextuais
e culturalmente definidas outras, que influenciam os entendimentos atuais sobre
sociedade civil e, por conseguinte, as maneiras pelas quais os indivíduos, grupos e
sociedades constróem as suas imagens e lhes atribuem significados e usos.
II – O QUADRO TEÓRICO PARA ANÁLISE DOS DISCURSOS
1. A teoria do discurso
O entendimento de discurso neste trabalho é o de “uma condição para a construção
social e cultural da realidade”, devido à sua “posição de mediação entre interação social
ou processos de comunicação, e cultura”197. A teoria do discurso proposta por Strydom
busca referências na sociologia do conhecimento de Mannheim, para quem todo o
conhecimento é socialmente situado e, portanto, socialmente condicionado: “toda a
forma de ... pensamento é essencialmente condicionada pela situação de vida do
pensador e do grupo ao qual pertence ... para além de cada teoria existem forças
coletivas e um ponto de vista coletivo” 198.
A teoria do discurso proposta por Strydom procura relacionar duas lógicas opostas: a da
cultura de Habermas (o discurso como problematização que provoca ou restabelece uma
compreensão e uma aceitação mútua partilhada, através do desenvolvimento de
símbolos e suas consequências na organização publicamente relevante da sociedade199),
e a do poder de Foucault (o discurso controla sentimentos, pensamentos, julgamentos e
ações, daí o foco da sua teoria exclusivamente na ação estratégica200), com base no
argumento de que na atualidade as duas lógicas se complementam, uma vez que o
discurso apenas pode originar universalização simbólica na medida em que o poder
jogue o seu papel, e o exercício discursivo do poder apenas se torna possível na medida
em que a cultura se abra. O discurso permite que o poder seja chamado a regular e
controlar a comunicação, mas impõe a sua própria lógica argumentativa ou simbólica
para pressionar os processos de comunicação. Estas duas faces do discurso qualificam-
no como mediador entre a interação social, ou processos de comunicação, e a cultura.
Emergindo da, e estruturando a, acção comunicativa, o discurso ocorre no contexto da
cultura, ou mais particularmente de algumas semânticas sócio-políticas (linguagens e
vocabulários especializados) formatadas historicamente, jogando um papel central na
reprodução e transformação da cultura, enquanto a sua própria lógica é reconstituída por
essas semânticas. Strydom identifica no seu trabalho 3 tipos de discursos de crise
historicamente produzidos, cada um deles relacionado com uma forma específica de
ação coletiva: dos direitos, da justiça e da responsabilidade. Segundo ele, a construção
da sociologia pode ser entendida no contexto de cada um destes discursos da crise. Ao
permitir que os atores sociais comuniquem uns com os outros para expressar as suas
197 STRYDOM, Piet. (2000), Discourse and Knowledge. The Making of Enlightenment Sociology. Liverpool, Liverpool University Press. 198 MANNHEIM, Karl. (1929) [1972], op. cit. 199 STRYDOM, Piet. (2000), op. cit. 200 Idem.
identidades, para se reconhecerem mutuamente e para manifestarem os seus interesses e
as suas diferenças, os discursos da crise tornam possível a construção da ação coletiva e
de atores coletivos, mas também, e pela mesma razão, a desconstrução dos movimentos
precedentes201.
Na teoria proposta, o discurso enquanto mecanismo coletivo para a identificação dos
problemas, a definição das questões e a coordenação da ação, é um elemento central no
processo dinâmico de construção da sociedade. Numa tentativa de revitalizar o papel
público da sociologia, relacionando a sua origem e a formação da modernidade com o
discurso público, a abordagem teórica de Strydom privilegia o protagonismo de atores
coletivos de diferentes tipos e transforma a interação dos processos que eles causam e os
resultados produzidos no problema teórico. Ou seja, o que se torna central é a interação
ou a separação/distância/oposição na coordenação dos processos de ação coletiva202.
Para além da teoria do discurso e de alguma forma complementar a ela, outro dos eixos
da sua proposta consiste na teoria dos frames (quadros de referência) cognitivos que
estruturam a vida social na modernidade, designadamente o dos direitos, o da justiça e o
da responsabilidade203. No âmbito da perspectiva de sociedade estruturada
construtivamente e de seus universos particulares, os quadros gerais fornecem o pano de
fundo para a construção de narrativas sobre a compreensão do mundo e da história, a
elaboração de identidades e a criação de solidariedades, a definição de projetos e a
articulação de discursos sobre a vida social204.
Analisando o papel do discurso na geração, utilização e desenvolvimento do
conhecimento, Strydom busca identificar “como o discurso torna possível e facilita a
interrelação ou interconexão dos distintos tipos de conhecimento – o informal, de todos
os dias das pessoas comuns, o sistemático dos profissionais, o público, como quadros de
referência de sentidos e modelos culturais – no processo de constituição da realidade
social”205. Nas atuais sociedades da comunicação o discurso é, assim, uma forma
específica de comunicação reflexiva através da qual os problemas são coletivamente
201 EDER, Klaus. EDER, Klaus. (1993), “Contradicitions and Social Evolution: A Theory of the Role of the Class in the Production of Modernity”, in Klaus Eder, The New Politics of Class: Social Movements and Cultural Dynamics in Advanced Societies. London, Sage publications Inc. pp.17-41. 202 STRYDOM, Piet. (2000), op. cit. 203 Idem. 204 DOMINGUES, José M. “Resenha do Livro Discourse and Knowledge. The Making of the Enlightnment Sociology, de Piet Strydom”. TRAVESSIAS, nº. 2/3 – 2000/2001, pp. 244-248. 205 STRYDOM, Piet. (2000), op. cit.
identificados, as questões coletivamente definidas, e as ações coletivamente
coordenadas, uma característica constitutiva da modernidade destas sociedades.
A abordagem sobre a noção de crise e a sua relação com a modernidade, a esfera
pública e a democracia, na constituição dos espaços de participação política e de debate,
proposta pelo autor, refere-se ao contexto da formação da sociologia e da constituição
da modernidade. Contudo, a análise sobre a exclusão de grupos, social e culturalmente
distintos, dos espaços de participação apesar de institucionalizados os arranjos políticos,
constitucionais e legais necessários para assegurar esse acesso, é extremamente atual
para o caso de Angola. A ação de uma esfera pública elitista e de um discurso
hegemônico antes, na era colonial, e hoje trinta anos após a independência, resulta num
ambiente de pouca abertura para a produção e reprodução das diferenças culturais entre
grupos e classes sociais. Uma política de opinião pública administrada pela elite no
poder não dá espaço para a participação no processo de tomada de decisão, muito
menos para a manifestação da contestação e do conflito. O conteúdo dos compromissos
necessários para garantir a ordem social e o alcance dos objetivos dos programas do
governo são produzidos aos mais altos níveis de decisão e transmitidos à sociedade,
numa abordagem de cima para baixo que se apresenta hegemônica, apesar de uma
crescente, embora tímida, capacidade de expressão de dissensos. Então, como agora, a
falta de um nível suficiente de política não apenas constituiu a crise, como também
forneceu o ponto de partida para a patogênese da moderna sociedade angolana, a
ausência de uma política participativa do conflito, da contestação e do compromisso e
uma cultura de contradições, como pano de fundo206.
A perspectiva da interação de diversos tipos de conhecimento, do teórico-científico ao
empírico e informal do dia-a-dia dos cidadãos comuns, para alcançar uma compreensão
mais ampla da realidade social, serve de esteio a esta tese, que recorre aos quadros de
referência teóricos dos temas contidos na discussão que endereça, relacionando-os com
as percepções de atores sociais sobre a sociedade civil em Angola. Estas percepções
sinalizam a diversidade das visões e dos contextos e a complexidade da mobilização da
ação coletiva para a produção dos compromissos com base em consensos e dissensos
para acomodar as diferenças, e realçam as dificuldades de afirmação de uma ideia
206 Idem.
acoplada às noções e práticas de participação, modernização e democratização, num
contexto em que o espaço público tem sido ocupado pelo Estado, tanto na era colonial,
quanto após a independência.
A análise dos discursos é uma ferramenta de aplicação do pensamento crítico às
situações sociais e às motivações veladas dos discursos dominantes e dos demais
discursos, como interpretações de mundo, sistema de crenças, etc. Trata-se de uma
leitura interpretativa e desconstrutiva que, embora não fornecendo respostas definitivas
para os problemas que visa compreender, expande os horizontes e torna-nos conscientes
das nossas próprias debilidades e motivações, e das dos outros. Revela, portanto, o que
vai acontecendo para além de nós e dos outros, que determina as nossas ações.
Focalizando a mensagem contida nas expressões discursivas e localizando-as num
contexto sócio-histórico, a análise dos discursos pode revelar mais eficazmente as
motivações e as políticas envolvidas na argumentação a favor ou contra determinada
escolha ou determinado valor, mais eficazmente do que o debate de ideias, e por essa
razão, contribuir para mudanças fundamentais nas práticas de uma instituição ou da
sociedade como um todo. É uma forma de abordar e pensar um problema e não uma
metodologia de pesquisa, é uma maneira de questionar os pressupostos básicos dos
resultados de pesquisas quantitativas e qualitativas, por exemplo. Embora não forneça
uma resposta clara e definitiva para os problemas, permite explicitar os pressupostos
ontológicos e epistemológicos de um projeto, de uma declaração, de um método de
pesquisa, ou de um sistema de classificação, revelando as mais secretas motivações de
uma dada construção discursiva. O entendimento da essência do problema contribui
para a sua resolução com base nos seus pressupostos, porque tornando-os explícitos
permite construir uma visão compreensiva sobre ele e sobre nós próprios em relação ao
problema, capacitando-nos para encontrar soluções concretas.
2. Aspetos metodológicos da discussão
Os entendimentos do conceito de sociedade civil em algumas tradições do pensamento
ocidental, em vertentes da discussão académica no hemisfério sul (Ásia, América Latina
e África), nos discursos de organizações internacionais e regionais de estados, e de
redes mundiais, regionais e nacionais de organizações e grupos de cidadãos, parecem
apontar para as seguintes conclusões preliminares, importantes para a organização desta
discussão: a) a utilidade do conceito de sociedade civil, associado à noção de esfera
pública, para a interpretação dos processos de reconfiguração das relações entre as
organizações de cidadãos e os estados; b) a existência de diversos movimentos e tensões
na construção das representações da sociedade civil: internos e externos, locais,
nacionais e supranacionais; c) a necessidade de adotar uma metodologia alternativa,
aliando teoria e empiria, incluindo na análise e discussão teóricas, as representações,
expectativas e experiências de atores sociais.
Seguindo esta recomendação, a metodologia seguida neste trabalho recorre a dois
autores: Koselleck e Mannheim. Do primeiro207, relembra-se a constatação de que a
análise comparativa (no caso da Bürgertümer europeia) conduz a inúmeras dificuldades,
a menos que o objetivo seja uma inventariação descritiva de usos. Considerando
fundamental o recurso às fontes linguísticas, Koselleck acrescenta que o testemunho
linguístico deve ser traduzido de maneira a ser semanticamente comparável, e que os
processos sociais, económicos e políticos dele deduzidos devem tornar-se comparáveis,
ou seja, serem reproduzidos de outras linguagens através de conceitos similares
correspondentes208. Esta preocupação reflete o cuidado que deve haver quando se lida
com conceitos que trazem consigo horizontes descolados da experiência atual, embora
plenos de potencial para o futuro, como parece ser o caso do conceito de sociedade
civil. Num ambiente crescentemente complexo como o do mundo de hoje, torna-se
necessário desenvolver capacidades que permitam entender as diferentes linguagens em
uso e isolar as suas particularidades, sejam elas funções do tempo ou do espaço entre as
diferenças de sentido encontradas.
De Mannheim retém-se a contribuição da sua “sociologia do conhecimento”209,
nomeadamente o método da compreensão, o mais adequado em seu entender, na medida
em que “uma situação humana somente pode ser caracterizada quando se leva em
consideração as concepções que dela têm os seus participantes, como eles
experimentam suas tensões nessa situação, e como eles reagem às tensões assim
surgidas – diagnósticos situacionais”, uma vez que cada diagnóstico da ciência social se
acha estreitamente ligado às avaliações e orientações inconscientes do observador.
207 KOSELLECK, Reinhart. (2002), op. cit. 208 KOSELLECK, Reinhart. (1992), op. cit. 209 MANNHEIM, Karl. (1976), op. cit.
Contrariamente às abordagens que sob o argumento da parcialidade e do envolvimento
emocional do observador com o objeto em estudo, subestimam a capacidade de análise
deste e desvalorizam as vantagens de pertencer ao meio em análise, Mannheim
argumenta que “(...) para trabalhar em ciências sociais é preciso participar do processo
social (...) sendo a participação no contexto da natureza social, um pressuposto para a
compreensão da natureza interna deste contexto de vida”, acrescentando que “o tipo de
participação do pensador determinará como este irá formular os seus problemas210”.
Este método permite concretizar a tese principal da sociologia do conhecimento,
segundo a qual “existem modos de pensamento que não podem ser compreendidos
adequadamente enquanto se mantiverem obscuras as suas origens sociais”. Por isso, a
sociologia do conhecimento busca compreender o pensamento no contexto concreto de
uma situação histórico-social, considerando que “só muito gradualmente emerge o
pensamento individualmente diferenciado (...) quem pensa não são os homens em geral,
nem tampouco indivíduos isolados, mas os homens de certos grupos, que tenham
desenvolvido um estilo de pensamento particular em sua interminável série de respostas
a certas situações típicas, características de sua posição comum (...) cada indivíduo é,
dessa forma, predeterminado em duplamente pelo fato de crescer numa sociedade:
encontra, por um lado, uma situação definida e, por outro lado, descobre em tal situação
padrões de pensamento e de conduta previamente formados”. A segunda tese da
sociologia do conhecimento defende a não separação dos modos de pensamento
concretamente existentes do contexto de ação coletiva, por meio do quais descobrimos
inicialmente o mundo211.
Para além de propiciarem algum conforto no que respeita à posição do observador, não
relacionando à priori a qualidade da sua análise ao fato de estar envolvido com o objeto
dessa análise, pelo contrário, chamando a atenção para a vantagem que o observador
pode retirar dessa posição, enriquecendo a análise, as recomendações de Mannheim
abrem caminho para o recurso e a inclusão das contribuições de atores sociais locais
para a discussão dos sentidos atribuídos aos conceitos e a sua aplicação a contextos
sócioculturais e políticos distintos. Para Mannheim, o problema mais imediato para a
210 Idem. 211 Idem.
pesquisa consiste em levar o sistema conceptual e a realidade empírica a um contato
mais próximo212.
Para a análise dos discursos contemporâneos sobre sociedade civil foram retidas as
noções de ideologia e de utopia de Mannheim213. O autor atribui dois significados para
ideologia em função do tipo de concepção que dela se apresenta: a particular e a total. A
primeira refere-se à concepção comum de ideologia como distorção, ou uma tentativa
mais ou menos consciente de manipular os outros para prevenir decepções.
Evidenciando o nosso ceticismo em relação às ideias e representações apresentadas pelo
nosso interlocutor, encaradas como distorções mais ou menos conscientes da natureza
real da situação em referência cujo reconhecimento não estaria de acordo com seus
interesses, estas distorções vão das mentiras conscientes aos disfarces semiconscientes e
dissimulados. A particularidade desta concepção torna-se mais evidente quando
comparada com a concepção de ideologia total, ou seja, o sistema de pensamento
associado a uma época ou a um grupo histórico-social concreto. O interlocutor não é
visto como um indivíduo ou um grupo concreto, mas antes uma perspectiva que reflete
a vida coletiva; por outro lado, a concepção total de ideologia não está preocupada com
as motivações ou os interesses, procurando antes identificar a relação entre forças
sociais e visões de mundo.
O elemento comum às duas consiste no fato de que nenhuma delas depende apenas do
que foi efetivamente dito pelo interlocutor para compreender o seu significado real e
intenção; ambas processam um entendimento do que foi dito pelo método indireto de
analisar as condições sociais do indivíduo ou do grupo social a que pertence. As ideias
expressas são percebidas como funções da sua existência; as opiniões, declarações,
proposições e sistemas de ideias não são tomados por seu valor aparente, mas
interpretados à luz da situação de vida de quem os expressa. Significa, ainda, que o
carácter e a situação de vida específicos do sujeito influenciam suas opiniões,
percepções e interpretações. Em ambas as concepções de ideologia, as ideias são função
de quem as expressa, e da sua posição em seu meio social.
212 Idem. 213 Idem.
Um estado de espírito é utópico quando é incongruente em relação ao estado de
realidade no âmbito do qual ocorre; a incongruência torna-se evidente porquanto este
estado de espírito no pensamento, na experiência, e na prática, se orienta para objectos
que não existem na situação real. Para o autor, contudo, serão “utópicas somente
aquelas orientações que transcendendo a realidade, tendem a abalar parcial ou
totalmente a ordem das coisas, caso se transformem em conduta”214. Esta distinção
permite diferenciar estados de espírito utópicos de estados de espírito ideológicos: um
indivíduo pode orientar-se para objetos que sejam estranhos à realidade e que
transcendam a existência real, e não obstante, permanecer ainda no nível da realização e
da manutenção da ordem de coisas existente. Esta orientação incongruente (com a
realidade) apenas se torna utópica quando, em acréscimo, tende a por fim aos laços da
ordem existente.
Todas as ideias que não caibam na ordem em curso são “situacionalmente
transcendentes” ou irreais: as ideologias são as ideias situacionalmente transcendentes
que jamais conseguem, de facto, a realização de seus conteúdos pretendidos; embora se
tornem com frequência motivos bem intencionados para a conduta subjectiva do
indivíduo, os seus significados são com frequência deformados quando incorporados
efectivamente à prática. As utopias também transcendem a situação social, pois também
orientam a conduta para elementos que a situação não contém, mas não são ideologias,
na medida em que conseguem, através da contra-actividade, transformar a realidade
histórica existente em outra, mais de acordo com suas próprias concepções215.
A distinção entre o que são ideologias e o que são utopias não é fácil, implicando o
conhecimento dos sentimentos e das motivações das partes em oposição pelo
apoderamento da realidade histórica: os representantes de uma dada ordem irão rotular
de utópicas todas as concepções de existência que, do seu ponto de vista, jamais
poderão se realizar, o que leva a pensar que a conotação contemporânea do termo
utópico é, predominantemente, uma ideia em princípio irrealizável. Mannheim chama a
atenção para um princípio vital de vinculação da construção da utopia ao
desenvolvimento da ordem existente, que estabelece uma relação dialética entre ambas:
cada época permite o surgimento em grupos sociais diversamente localizados de ideias e
214 Idem. 215 Idem.
valores em que se acham contidas, de forma condensada, as tendências não realizadas
que representam as necessidades dessa época, que se transformam, assim, em potenciais
desafios dos limites da ordem existente. A ordem existente dá surgimento a utopias que,
por sua vez, rompem com os laços da ordem existente, deixando-a livre para evoluir em
direcção à ordem seguinte. A determinação do que se deve considerar utópico cabe
sempre ao grupo dominante, que esteja em pleno acordo com a ordem existente,
enquanto o grupo ascendente, em conflito com o status quo, determinará o que deve ser
considerado ideológico. Contudo, Mannheim alerta que “as utopias das classes
ascendentes se acham frequentes vezes permeadas por elementos ideológicos”. A visão
utópica, que transcende o presente e se orienta para o futuro, não constitui um mero
caso de negação da perspectiva ideológica que oculta o presente, procurando
compreende-lo em termos de passado. A existência de estratos sociais cujas aspirações
ainda não se realizaram, implica a ininterrupta existência de, pelo menos, uma forma de
utopia216.
A distinção entre discursos ideológicos (ideias que servem para preservar o status quo)
e discursos utópicos (ideias que visam a sua transformação), embora impossível em
termos absolutos, mostra-se necessária, porque um dos denominadores comuns que
ressalta da análise de abordagens de sociedade civil em diversos contextos,
principalmente do sul, é o seu papel (ou a expectativa nela depositada) de pivot na
geração dos consensos que caracterizam e condicionam a produção de sentido nas
sociedades contemporâneas. Operando nos campos comunicacional e cultural, na
articulação de imaginários sociais em oposição ao status quo moldado pela hegemonia
cultural dominante, os sistemas simbólicos emergem para unificar o imaginário social,
arquitetando as finalidades e a funcionalidade das instituições e dos processos sociais217.
III – IDEOLOGIAS E UTOPIAS NOS DISCURSOS CONTEMPORÂNEOS
SOBRE SOCIEDADE CIVIL.
1. Ideologias e utopias inscritas nas representações discursivas
A análise dos debates sobre sociedade civil identifica tanto elementos ideológicos
quanto utópicos e, embora seja extremamente difícil estabelecer um divisor de águas
216 Idem. 217 MORAES, Dênis Villasboas de. (1997), “Notas sobre o Imaginário Social e Hegemonia Cultural”. Revista Contracampo, n°.1, Julho/Dezembro, pp. 91-103.
entre os discursos essencialmente ideológicos e os essencialmente utópicos, parece
possível identificar a predominância de ideologias com pretensões hegemônicas nos
discursos de atores da sociedade civil global, designadamente das agências multi e
bilaterais de cooperação. Nos discursos de atores da sociedade civil a nível local, pelo
contrário, identificam-se mais nitidamente utopias em oposição às ideologias
dominantes, propondo alternativas para as políticas neoliberais, para as formas
predominantemente económicas do processo de globalização (que simultaneamente
integra as regiões mais avançadas do mundo e marginaliza as mais fracas), para uma
nova ordem social com mais justiça e equidade sociais, articulando visões de futuro e
caminhos para transformar e moldar a realidade social atual. O Fórum Social Mundial,
ao instituir-se em instância de representação transnacional dos discursos e práticas de
atores locais assume discursos e práticas que contêm e são coerentes com as utopias
embutidas na ideia axial do movimento, “um outro mundo é possível”.
Embora em alguns discursos a utopia da sociedade civil apareça com o sentido
coloquial, como algo inerentemente bom e relacionado com o ideal da sociedade
perfeita apesar de inalcançável, ou apenas da boa sociedade, são mais comuns os que
veiculam ideias ou orientações que, se concretizadas, transformariam parcial ou
totalmente a ordem das coisas prevalecente num dado período e num certo contexto,
pela sua conotação com a capacidade de operar transformações ou mudanças. Tais
discursos projetam a visão de reconstituição imaginária da sociedade, em que as utopias
revelam um modelo fundacional, desejável, mas também expõem inconsistências,
contradições e pressupostos não explicitados. A atribuição à sociedade civil de um
potencial utópico, o seu entendimento como ideia transformadora, depende, por um
lado, da existência de arenas discursivas nas quais a ideia e a enorme flexibilidade do
conceito conduza a, ou promova, atividades em ethos distintos dos existentes nas
sociedades onde tais discursos são produzidos, e, por outro lado, da existência de
construções coletivas com base no valor positivo atribuído à sociedade civil, mais
amplas e abrangentes do que as concebidas (e transmitidas) pelos discursos oficiais nas
sociedades às quais remetem.
Relativamente à primeira condição, as perspectivas locais mostram-se muito
interessantes, evidenciando noções de universalidade (a mobilização de todos os
participantes relevantes) e capacidade para, apesar das intenções dos respectivos
poderes instituídos, desenvolverem e implementarem políticas locais adequadas,
legitimando-as em termos de promoverem as suas próprias formas de sociedade civil.
Contudo, estas iniciativas locais são afetadas por uma falta crónica de recursos, gerando
frustrações e propiciando dependências, tanto em relação ao poder central, quanto em
relação a atores externos. No que respeita à segunda condição, estudos, pesquisas e
análises de discursos produzidos em diversos locais do planeta, mostram não só a
criatividade das construções coletivas de sociedade civil, mas também o potencial
reconhecido ao conceito, enquanto instrumento analítico e enquanto praxis,
mobilizando a ação coletiva e promovendo a implementação de programas e projetos
para dar voz e visibilidade às suas iniciativas, apesar das limitações em recursos, da
ausência de um ambiente político mais propício, e das pressões internas e externas
visando a cristalização da ideia neoliberal de sociedade civil.
Estas constatações, retiradas da síntese dos debates atuais apresentados anteriormente,
parecem conduzir a dois caminhos, ou duas possibilidades, para a sociedade civil:
A prevalência das ideologias com vista à manutenção do atual estado das coisas,
e das atuais orientações dos discursos oficiais, com fortes limitações em termos
das abordagens sobre participação, inclusão social, desenvolvimento de
capacidades, cidadania, direitos, etc.;
um programa utópico, construído com sentido construtivo e orientador, mais
focalizado na espécie de sociedade que se quer construir, e nos programas e
projetos que contribuam para o alcance desse objetivo, abrindo e ampliando
simultaneamente as bases do debate democrático, em resposta à questão
fundamental: quem somos nós e o que queremos para nós e para os outros,
assente no questionamento de princípios e valores como solidariedade,
diversidade, capacidades, escolha dos percursos, etc., numa abordagem
coordenada, holística e, ao mesmo tempo, institucional (para permitir o
delineamento e a viabilização de estratégias de poder e de hegemonia).
A realização deste debate, alargando a esfera pública como o espaço institucional de
discussão de assuntos cívicos e da vida comunitária, e de deliberação acerca dos
problemas comuns, a novos atores e novos temas, permitindo que a opinião popular seja
canalizada e incorporada nas políticas governamentais218, seria, em si, uma prova do
potencial de ideia transformadora do conceito. A possibilidade de transformação
atribuída à sociedade civil incorpora necessariamente, a noção de espaço público, com
vista à construção coletiva de mútuos entendimentos, os consensos de Habermas, mas
pressupõe, igualmente, a aceitação dos dissensos moralmente aceitáveis de Taylor219, e
até de conflitos220, naturais no ambiente de diversidade de objetivos e de interesses das
sociedades modernas.
2. Sociedade Civil no discurso neoliberal
Na atualidade, a ideologia dominante nos discursos sobre sociedade civil é a neoliberal,
segundo a qual o bem coletivo é considerado resultante da ação baseada no interesse
próprio221 e na crença na mão invisível do mercado, no âmbito de um amplo projeto de
inventar uma realidade cuja única raison d’être reside na reprodução do Consenso de
Washington, com pretensões de expansão a todas as sociedades do mundo
independentemente das realidades sôcio-econômicas, culturais e políticas de cada uma
delas, numa negação agressiva de outras realidades222. E é dominante na medida em que
procura impor as suas visões sobre a organização das relações sociais num ambiente em
que cabe ao mercado a tomada de decisões políticas e sociais vitais, e em que o Estado
se auto-demite de funções anteriormente assumidas, particularmente no que respeita à
proteção social do cidadão, deixando de constituir-se no locus do universal. Aconteceu
o que Polanyi temia há mais de 50 anos, quando declarou que “permitir que o
mecanismo de mercado governe em exclusivo o destino da humanidade e seu
ecossistema natural (...) levaria à devastação da sociedade”223.
Nos desdobramentos temporais da evolução do pensamento liberal e do capitalismo, e
mantendo como princípio orientador a ideia de que uma política de liberdade do
indivíduo é o único caminho para o progresso, o movimento neoliberal organizou-se a
partir do Colóquio Walter Lippman em Paris, em Agosto de 1938, ascendendo à
218 HABERMAS, Jürgen. [1962] (1989), op. cit. 219 TAYLOR, Charles. (1993), op. cit. 220 STRYDOM, Piet. (2000), op. cit. 221 EDER, Klaus. (2003), “Identidades Coletivas e Mobilização de Identidades”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 18, nº. 53, pp.5-18. 222 MACAMO, Elísio. (2005), The Hidden Side of Modernity in Africa – Domesticating Savage Lives. In Sérgio Costa, José Maurício Domingues, Wolgang Knöbl e Josué P. da Silva (orgs.), Modern Trajectories, Social Inequality and Justice. Mering, Hampp (no prelo). 223 POLANYI, Karl. [1944] (2000), A Grande Transformação. As origens da nossa época. Rio de Janeiro, Editora Campus Ltda.
condição de pensamento dominante após mais uma crise dos ideais liberais, desta feita a
do Welfare State na década de 70 do século XX. O perfil ideológico deste movimento é
construído em torno da insurgência contra a considerada “interferência” crescente do
Estado na produção e distribuição e no campo social, do apostolado em defesa da
iniciativa privada, e da primazia da liberdade em relação à igualdade, aos quais se junta
a ideologia do livre mercado. Os expoentes teóricos do neoliberalismo são O caminho
da servidão de Hayek (1944) e Capitalismo e Liberdade de Milton Friedman (1984),
interpretados e veiculados por uma extensa rede internacional de fundações,
instituições, centros de investigação, publicações, técnicos, escritores e relações
públicas, que apresentam o neoliberalismo como o curso normal e natural da
humanidade, a única ordem econômica e social viável224. E as instituições financeiras
internacionais, criadas em Bretton Woods em 1944, com a função fundamental de evitar
futuros conflitos através do apoio financeiro a programas de reconstrução e
desenvolvimento e aos problemas conjunturais de balança de pagamentos, figuram
atualmente entre as veiculadoras mais visíveis do neoliberalismo, com funções
ampliadas que lhes permitem interferir nas decisões econômicas dos governos e nos
assuntos internos dos países225.
Um dos seus paradigmas relaciona sociedade civil com o discurso do desenvolvimento,
embora o conceito também seja recorrente nos discursos dos direitos humanos, da boa
governança, da transparência e do combate à corrupção, das reformas
(redimensionamento) do estado e consequentes mudanças nas relações estado-
sociedade, dos ambientalistas, das mulheres, das minorias, dos excluídos, para citar os
mais frequentes, sendo apresentado como proxy de participação, empoderamento
(empowerment) e democratização bem sucedida226.
O recurso a noções qualitativamente positivas embora com conteúdos muito vagos
(devido aos muitos sentidos que lhes podem ser atribuídos), por um lado confere aos
discursos dominantes (neoliberais) do desenvolvimento uma aura de benevolência e
abertura ou pluralismo, dificultando a percepção do seu carácter intrinsecamente
224 FERRARO, Alceu R. (2004), Neoliberalismo e Políticas Sociais: A Naturalização da Exclusão. VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, Coimbra, 16 a 18 de Setembro. 225 GEORGE, Susan. (1999), Breve História do Neoliberalismo. Duas décadas de economia de elite e oportunidades emergentes para a mudança estrutural. Conferência sobre a Soberania Econômica num Mundo em Processo de Globalização. Bangkok, 24-26 de Março. 226 LENZEN, Marcus H. (2002), op. cit.
desigual e não-democrático, por buscar na naturalização do social a legitimação da
exclusão social, transformando os pobres, de vítimas, em responsáveis pela própria
miséria227. Por outro lado, a plasticidade dessas construções abstratas e a infinidade de
sentidos que lhes podem ser atribuídos, permitem a sua utilização e/ou aplicação por um
vasto leque de instituições, atores e movimentos sociais, que lhes atribuem os seus
próprios sentidos, e os usam para alcançar os seus objetivos, manipulando os seus
outros sentidos, em função das audiências, momentus ou objetivos em pauta.
As noções de boa governação, de descentralização, de desenvolvimento de base e,
sobretudo, de sociedade civil, são impostas como categorias-chave das novas formas de
intervenção multilaterais, no âmbito de discursos sobre a reforma do Estado e a
redefinição do seu papel na economia. Esta abordagem de sociedade civil, fundada
numa concepção simplista e dicotômica do espaço social, tem por objetivo a
despolitização da questão da democratização228.
Os discursos que procuram harmonizar os conceitos e as práticas de sociedade civil e de
desenvolvimento ganharam fôlego a partir dos anos 80, quando se tornou evidente a
falência do paradigma liberal do crescimento econômico, e tornaram-se dominantes nos
anos 90, quando passaram a incorporar os discursos da democratização e da
globalização econômica. Um dos mais veiculados na atualidade é o que, naturalizando o
capitalismo, o apresenta como a ordem natural das coisas à escala global. Contudo, sob
esta umbrella podem encontrar-se agendas políticas e abordagens de sociedade civil
bastante divergentes.
Os discursos de organizações supranacionais (União Europeia), das instituições
financeiras internacionais (Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional), das
agências multilaterais do sistema das Nações Unidas e bilaterais para a cooperação e o
desenvolvimento, são construídos com o objectivo de difundir a abordagem neoliberal
de sociedade civil e as estruturas e processos que lhe são inerentes, condicionando a
ajuda ao desenvolvimento. Os países receptores são “convencidos” a adotar processos
de fundação e/ou fortalecimento de instituições e práticas democráticas, sob a forma de
227 FERRARO, Alceu R. (2004), op. cit. 228 HIBOU, Béatrice. & BANEGAS, Richard. (2000), “Société Civile et Espace Publique en Afrique”. Bulletin du CODESRIA, Número 1, Dakar, pp.40-45.
programas executados por ONG’s dos países doadores, ou credenciadas pelas agências
financiadoras/doadoras, nos quais a sociedade civil é uma categoria central e
incontornável. Em geral, o design destes programas é padronizado e apresentado sob a
forma de um pacote – financiamento, assistência técnica e fornecimento de bens e
equipamentos -, pronto a ser consumido, com poucas ou nenhumas possibilidades de
incorporação das opiniões e necessidades dos grupos sociais a que se destinam.
O conceito de sociedade civil usado pelas agências multi e bilaterais é indissociável das
suas percepções de política, que formatam os discursos de boa governação e sobre a
necessidade de reformar as instituições estatais, mas na verdade essas percepções são
caracterizadas pela vontade de circunscrever a política, o que é conseguido com o
recurso às correntes ideológicas da economia política liberal, nomeadamente: a nova
economia política, a análise neo-institucional, e as teorias da sociedade civil. A
finalidade é a de esvaziar o conteúdo da política: os atores políticos são analisados como
atores econômicos, o individualismo metodológico e o postulado individualista
estendidos as todas as formas de organização, inclusivamente as estatais229.
Os programas de ajustamento estrutural das instituições financeiras internacionais são
construídos com o recurso ao conhecimento-regulação (que, segundo Boaventura
Santos, é típico da modernidade e tornado possível pela necessidade ideológica de
produzir a ordem), mas usam um horizonte discursivo profundamente enraizado no
conhecimento-emancipação (que, ainda segundo Boaventura Santos, retira a sua
legitimidade de uma ética de solidariedade); assim, o projeto epistemológico que
legitima a ajuda ao desenvolvimento, cria as condições para a sua reprodução através do
uso de um discurso social repleto de referências emancipatórias, tais como “dimensão
social”, “capital social”, “participação”, “apropriação”, “criação de capacidades”, etc.,
tornando inócua qualquer crítica à ordem das coisas. Este projeto visa, essencialmente,
produzir uma ordem definida claramente de forma normativa e ontológica230.
No léxico desenvolvimentista, e num movimento que remete do norte desenvolvido
para o sul atrasado, o conceito de sociedade civil é pouco aprofundado, em geral
meramente indicativo, fornecendo poucas ou nenhumas contribuições analíticas
229 HIBOU, Béatrice. & BANEGAS, Richard. (2000), op. cit. 230 MACAMO, Elísio. (2005), op. cit.
significativas sobre as dinâmicas de funcionamento social e sobre o próprio
entendimento do conceito nesses contextos, sendo muitas vezes apresentado como um
fim em si mesmo, como quando se pretende medir o desenvolvimento democrático pelo
número de ONG’s criadas num dado período de tempo, por exemplo. Nas formulações
que definem a sociedade civil como a esfera não-estatal parece não haver distinção entre
sociedade e sociedade civil; nos modelos tripartidos é muito frequente a colagem entre
sociedade civil e as ONG’s, o chamado terceiro ou quarto setor, incluindo organizações
que prestam serviços sociais (no abastecimento de água ou na instalação de fontes
alternativas de energia em comunidades periurbanas pobres, ou que apoiam o aumento
da produção e comercialização de bens alimentares, industriais ou artesanato), ou que
promovem a democracia, o respeito pelos direitos humanos, entre outras.
Estas percepções são associadas a pacotes de financiamento, concebidos em um
qualquer lugar do hemisfério norte, sendo raríssimas as iniciativas visando a criação
matricial de visões locais de sociedade civil, cruzando os conceitos teóricos com as
realidades vividas dos grupos sociais aos quais esses programas são dirigidos. Na maior
parte dos casos, seminários e workshops são concebidos para transmitir ideias, visões,
programas e projetos concebidos de cima, sem se colocar a hipótese de incluir os grupos
sociais relacionados com a sociedade civil local, em busca dos seus entendimentos
sobre os conceitos envolvidos e conhecer as praxis locais com eles relacionadas.
No âmbito da sua estratégia de influência, para além da exercida sobre outros
financiadores231, as instituições financeiras internacionais e o Banco Mundial em
particular, são os maiores provedores de dados relacionados com o desenvolvimento da
África Subsahariana232, e dedicam vastos recursos a atividades de formação “não isentas
de supostos ideológicos para moldar perfis intelectuais e de investigação (...) o que tem
como efeito que, muitos dos ministros com maior influência nos governos africanos, da
economia e finanças, assim como governadores dos bancos centrais, tenham sido
231 A aceitação pelas agências bilaterais de cooperação das condicionalidades impostas pelo Consenso de Washington, reconhece ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional a capacidade de classificar como boas ou más as políticas nacionais, principalmente no que se refere ao continente e mais especificamente à África Sub-Sahariana. 232 Segundo Macamo uma das maiores prioridades dos programas de ajustamento estrutural é a aquisição da capacidade de apreender um país através de números, de o quantificar; a redução do país a números não apenas dá conta da necessidade de prover uma informação mais sistemática para uma melhor intervenção, mas também permite às instituições de Bretton Woods manter a sua indiferença em relação aos impactos sociais das suas políticas. MACAMO, Elísio. (2005), op. cit.
anteriormente staff do BM ou do FMI (...) [os quais] defendem posições ideológicas
muito próximas das instituições de Bretton Woods (...) [o que] para além de reduzir as
opções de política e de estratégias especialmente no âmbito das políticas macro-
econômicas e fiscais, facilitam a comunicação entre os governos e o BM e o FMI
(...)”233. Esta estratégia pode explicar a convergência crescente entre as fórmulas de
políticas de desenvolvimento e os marcos analíticos vigentes em instituições da África
Subsahariana, e as estruturas do Banco Mundial. Na miscelânea de objetivos e
prioridades o fortalecimento da sociedade civil no âmbito nacional e local tem papel de
destaque. Para Oya, o desfazamento entre o discurso dos dirigentes do Banco e a prática
das suas equipas técnicas, caracteriza uma certa esquizofrenia estrutural234.
As consultas à sociedade civil por parte do Banco Mundial resumem-se,
frequentemente, a sessões de apresentação dos programas ou projetos elaborados pelas
equipas do banco, algumas vezes com a contribuição de consultores internacionais ou
nacionais, mas dentro de um quadro de referências dado. São sessões de informação,
em geral limitada por imperativos de tempo, com poucas ou nenhumas oportunidades de
inclusão de pontos de vista dos convidados, muitos das quais representando-se apenas a
si mesmos, uma vez que o convite em cima da hora e a distribuição in loco dos
documentos não permitem que as organizações tomem posições enquanto tal. É o caso
de concordar com Tamang quando afirma que “a sociedade para ser civil, deve obedecer
às restrições impostas pelos patrões da sociedade civil”235. A pobreza conceitual surge
não apenas na qualidade da produção das agências multi e bilaterais, mas também da
reduzida produção acadêmica das, e sobre as, sociedades africanas, a maior parte
financiada por agências doadoras, por isso desenhada e produzida com base em chaves
de referência ocidentais e com pouca circulação nas áreas estudadas, servindo acima de
tudo de fonte de informação para as agências que os financiaram.
O discurso neoliberal sobre sociedade civil visa, simultaneamente, dois objetivos: por
um lado, impor a ideia de um terceiro ou quarto (consoante as abordagens) setor não-
lucrativo, que em substituição do Estado é chamado à prestação de serviços sociais nos
233 OYA, Carlos. (2004), El modelo del Banco Mundial para África: hacia um consenso internacional?. IV Congreso de Estudios Africanos del Mundo Ibérico, Barcelona, 12-15 Enero. 234 Idem 235 TAMANG, Seira. (2003), op. cit.
mais diversos domínios, com todas as consequências em termos da abrangência (no
particularismo dos atendimentos, na criação de sub-universos de receptores desta ou
daquela organização ou conjunto de organizações, pulverizando o público em oposição
à universalidade desejada e devida) e da desigualdade social acrescentada à existente,
em resultado da criação de critérios de acesso, de condições e de oportunidades para
grupos atendidos e grupos excluídos. Por outro lado, argumentando contra o tamanho e
a ineficência do Estado, transmite a ideia de que este não tem capacidade para prover
serviços sociais, pelo menos não tão eficientemente quanto as ONG’s e que, por isso,
deve ser reduzido a um mínimo necessário para o exercício de funções que ainda não
entraram no rol da privatização de serviços públicos, como as de regulação, de defesa da
soberania nacional, da preservação da legalidade, e da manutenção da ordem e da
segurança públicas. Em lugar de se fortalecer o Estado em termos de capacidades e
meios para cumprir o seu papel social, promove a sua redução e substituição, o que tem
um duplo impacto negativo na constituição e fortalecimento das sociedades civis nos
países em desenvolvimento: devido à sua natureza relacional, Estado fraco, sociedade
civil também fraca, e atribuindo às organizações da sociedade civil uma infinidade de
tarefas e transformando-as em provedoras de serviços sociais, criam-se condições para a
progressiva despolitização de uma sociedade civil sem cidadania.
Esta estratégia não se alimenta apenas das abordagens liberais e neo-liberais; recorre,
igualmente, a desconstruções ou reinterpretações das abordagens marxistas,
simplificando as suas concepções sobre o papel da sociedade civil e suas implicações
nas lutas democráticas por mudanças sociais, higienizando ideias como a de hegemonia
e de sociedade civil em Gramsci, destituindo-as dos potenciais dissenso, conflito e
processos de luta por legitimação. Ou seja, em lugar da sociedade civil como o
instrumento através do qual o Estado ganha legitimidade para as suas políticas e
programas e generaliza a sua aceitação na sociedade, oferece-se uma interpretação que
aproxima a ideia marxista de sociedade civil, o espaço de produção da contra-
hegemonia, da ideia liberal do consenso pluralista e dos sistemas dominantes que
mudam de acordo com as necessidades e com a implementação dos ideais da
democracia e dos direitos humanos, resolvidos, assim, de maneira não problemática.
Criticando as abordagens de sociedade civil nas teorias liberal e marxista, Agnes Ku236
argumenta que a análise do locus da sociedade civil e das implicações da distinção
convencional entre sociedade civil e Estado na noção de cidadania - enquanto categoria
de estatuto social e de agência -, torna evidente, em ambas as teorias, o paradoxo da
sociedade civil sem cidadania: a sub-valorização do carácter polivalente da cidadania e
dos direitos, em ambos os casos, reflete uma compreensão bastante empobrecida da
cultura, do discurso e da simbolização. Contudo, o maior problema não reside nas
narrativas empobrecidas da sociedade civil, nem na colagem entre a ideia de sociedade
civil e do terceiro setor não lucrativo, mas no fato de, apesar de inconsistentes e pouco
ou nada elucidativos acerca dos entendimentos e das dinâmicas locais, estes conceitos
impostos assumirem importância oficial e pública e, devido a aludidos imperativos
econômicos e políticos, serem relacionados com, ou são sugeridos como, condições
para o acesso aos financiamentos, sem que os intelectuais e os profissionais do
desenvolvimento locais se interroguem sobre os termos de tal discurso e as implicações
da sua incorporação acrítica.
Em contextos nacionais fortemente dependentes dos mecanismos internacionais de
assistência humanitária e/ou ao desenvolvimento, é grande o risco que as construções de
sociedade civil sejam produzidas “de fora”, considerando as dificuldades na
transferabilidade do conceito ocidental de sociedade civil para contextos nos quais nem
sempre se encontram noções equivalentes. Devido à grande dependência dos países
receptores da ajuda externa, e à desvalorização do recurso a mecanismos metodológicos
por parte dos doadores, para analisarem e operacionalizarem a noção de sociedade civil
com atores sociais locais, e desenharem os programas que pretendem financiar de
acordo com essa análise matricial, várias são as críticas que denunciam a imposição de
uma ideia ocidental de sociedade civil, através de processos considerados
intervencionistas ou neocolonialistas, por parte de agências financiadoras e doadoras e
das ONG’s envolvidas237.
236 KU, Agnes. (2002), “Beyond the Paradoxical Conception of ‘Civil Society without Citizenship’”. International Sociology, vol. 17, nº. 4, pp. 529-548. 237 HOWELL, Jude. (2002), “In their Own Image: Donor Assistance to Civil Society”. Lusotopie 2002/1, pp. 117-130. HOWELL, Jude. (2000), Manufacturing Civil Society from the Outside: Some Dilemmas and Challenges. ISTR 4th. International Conference on The Third Sector: For What and form Whom?, July 5-8, 2000. Dublin. HUDOCK, Ann C. (1999), NGO’s and Civil Society. Democracy by Proxy?. Cambridge, Polity Press. LUONG, Pauline J. & WEINTHAL, Erika. (1999), “The NGO Paradox: Democratic Goals and Non-democratic Outcomes in Kazakhstan”. Europe-Asia Studies, vol. 51, no.7, pp. 1267-1284. MACAMO, Elísio. (2005), op. cit. NYAMNJOH, Francis B. (2000), ““For Many are Called but Few are Chosen”: Globalization and Popular Disenchantement in Africa”. African
3. Desconstruindo o discurso dominante
Estudos produzidos pelo CODESRIA238 (alguns incluídos na bibliografia) vêm
demonstrando que a sociedade civil em África é um campo muito mais contraditório do
que pretende o discurso ocidental dominante, ao privilegiar de forma simplista os
conflitos entre Estado e sociedade, romantizando a sociedade civil como um bastião da
democracia. As formas de relacionamento de indivíduos e grupos da sociedade civil
com o Estado variam da acusação, quando os seus interesses são postos em questão, à
aliança e cooperação, quando para tal têm oportunidade e vantagem. A maioria dos
grupos e organizações da sociedade civil em África é dependente da comunidade
internacional para efeitos de financiamento e, até, de aprovação dos seus programas de
ação, acabando por incorporar acriticamente conceitos e práticas, sem a necessária
reflexão quanto à sua adequação ao contexto no qual vão ser aplicados.
Estas constatações confirmam a influência externa na configuração da ideia de
sociedade civil em África. A perspectiva das agências de financiamento internacionais e
bilaterais imposta através das condicionalidades dos mecanismos de ajuda, constitui um
dos lados da configuração dos espaços públicos e da construção da sociedade civil em
África. Mas para essa configuração também contribuem os processos de reação a essa
imposição, e o enfrentamento do Estado e do mercado por grupos sociais, políticos e
económicos, em defesa dos seus interesses individuais e de grupo, com vista à
reconfiguração das relações sociais e de poder, na atual fase de transição para a
democracia239.
Assim como o colonialismo gerou os movimentos nacionalistas, a visão neoliberal
veiculada pelas organizações transnacionais e pelas agências de desenvolvimento está
gerando movimentos internos de conscientização e de afirmação de interesses, em torno
dos quais novos entendimentos (as formas) de sociedade civil estão sendo criados e
fortalecidos, e novos discursos são formulados. No processo de organização da
Sociological Review, vol.4, nº. 2, pp. 1-45. ONG, Aihwa. (1999), op. cit. OYA, Carlos. (2004), op. cit. SOGGE, David. (1997), “The Civil Sector”, op. cit. TAMANG, Seira. (2003), op. cit. 238 CODESRIA, Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa Científica em África, com sede em Dakar, Senegal. 239 Considerada de “democrática” (numa visão minimalista de realização de eleições, separação de poderes [mais fictícia do que real], constituição de instituições de representação política, e liberalização dos mercados [em especial de matérias primas e de força de trabalho não especializada, ou seja, na abertura aos interesses dos países do norte]), e que caracteriza a maioria das sociedades africanas nos dias de hoje. Esta visão da democratização em África é defendida, entre outros, por Samuel Huntington, citado por WISEMAN, John A. (1996), The New Struggle for Democracy in Africa. Aldershot, Avebury..
resistência ao autoritarismo e à implementação de programas (de ajustamento estrutural,
por exemplo) e de práticas (de boa governação, por exemplo) impostos de fora,
começam a desenhar-se novas oportunidades democráticas, apesar da repressão
estatal240, sendo visível o papel da sociedade civil na iniciação e consolidação de
reformas democráticas241.
A negação ou relativização da adequação do conceito à África limita o âmbito da
discussão teórica, desincentivando a busca por uma mais ampla compreensão das
formas de organização do espaço público africano através de estudos empíricos. A
dicotomia introduzida no discurso em termos de universal versus local, opondo direitos
civis e etnicidade, ignora o legado histórico da construção da sociedade civil colonial e
reproduz a marginalização histórica de culturas políticas africanas. Mais importante do
que isso, a persistência do traço ideológico deste discurso, desde a fase de consolidação
dos estados coloniais - com o recurso ao conceito para excluir grupos sociais do espaço
público e da cidadania com base num pressuposto civilizacional -, à negação da
existência de sociedades civis em África, pelo desligamento dos estudos e trabalhos
teóricos das realidades empíricas que era suposto refletirem, parece intencional de uma
marginalização tácita, reproduzindo uma tendência de manter as realidades africanas
invisíveis, tanto no âmbito da ação cívica quanto da participação política, das
instituições de governação existentes e das instâncias de oposição a elas, e, por isso,
incompreensíveis, porque não traduzíveis segundo a bitola dos ideais universais242.
Um dos possíveis contra-argumentos a estas posições é fornecido pela análise dos
processos de construção e fortalecimento das sociedades civis nos diversos países
ocidentais, onde se constata que esse processo não só não foi uniforme, do ponto de
vista das trajetórias de construção dos estados-nação, como também não teve uma
entidade homogênea como centro ou ponto de partida, mas antes uma diversidade de
entidades coletivas, com formas diferenciadas e distintos estágios de organização social
e política243. Os estudos de Maina (sobre as relações entre o Estado, os doadores e a
política de democratização no Kenya) e de Fatton (sobre os limites da sociedade civil
240 OLUKOSHI, Adebayo. (2001), “West Africa’s Political Economy in the Next Millenium: Retrospect and Prospect”. Monograph Series 2. CODESRIA. Dakar. 241 NKWACHUKWU, Orji. (2003), op. cit. 242 GUEDES, Armando M. (org.) (2003), op. cit. 243 MARTIN, William G. (2000), Africa in World-Historical Perspective: A Post-nationalist Project?. International Conference on Africa at the Turn of the Century, 20-23 September, Lisboa.
em África) apresentam como uma das principais consequências do não reconhecimento
pelas agências de cooperação multi e bilaterais das expressões informais de associação
muito comuns na Ásia e na África, a não identificação de forças capazes de produzir
mudanças políticas244. A não-identificação e/ou não-reconhecimento de formas
equivalentes de vida associativa, cria descontinuidades ou silêncios nos diálogos entre
países ocidentais e o resto do mundo.
Tornam-se necessárias perspectivas mais abrangentes e flexíveis para permitir a
manifestação de valores e formas de organização social e política de outros contextos e
filosofias, e contribuir para novas articulações nas relações entre o ocidente e o resto do
mundo, consentindo ousar um outro discurso capaz de descondicionar as teorias
construídas em outros lugares e momentos e de compreender as condições locais a partir
das suas próprias práticas discursivas. Incentivando a reimaginação das lógicas
fundamentais para mudar as relações atuais entre as sociedades, e colocando os
imaginários sociais ao serviço da reemergência de uma nova orientação para os
discursos sobre a diversidade sócio-cultural prevalecente no mundo de hoje, será
possível estruturar uma nova visão destas realidades locais sobre si próprias e
emprestar-lhe a força teórica necessária para a refundação de um mundo pós-colonial,
pós-ocidental e pós-capitalista. Cabe às ciências humanas e sociais contribuir para o
reconhecimento e a transcendência dos pontos de diferença, produzindo e
disponibilizando instrumentos analíticos, entre os quais os ideológicos, que facilitem o
diálogo entre povos e culturas, e a resolução de conflitos de diversa natureza, criando as
pré-condições para acabar com os monólogos entre poderosos e fracos245.
4. A oposição à ideologia neoliberal
A naturalização da globalização veiculada pelos discursos neoliberais apresentado-a
não só como o único, mas também o melhor caminho para a prosperidade, é defendida
por organizações como o Centre for Civil Society in India e The Meltzer Commission,
alguns jornais como o Wall Street Journal e o The Economist, empresas privadas e
algumas individualidades. Poucas ONG’s e nenhum movimento social integram esta
244 Citados em LENZEN, Marcus H. (2002), op. cit. 245 ALATAS, Syed Farid. (2002), “The Role of Human Sciences in the Dialogue Among Civilizations”. Development and Society, vol. 31, n°.2, pp.265-279. RANDERIA, Shalini. (1999), Beyond Sociology and Social-Cultural Anthropology: The Place of the Non-Western World in a Future Social Theory. Mimeo. MOUFFE, Chantal (org.), The Challenge of Carl Schmitt, Introduction, London, Verso.
posição. As reações que se vêm manifestando contra a hegemonia do discurso
neoliberal mais referidas na literatura consultada, são agrupadas em três posições
ideológicas designadas de isolacionistas, reformistas e alternativas, em função das
estratégias discursivas por eles utilizadas246.
Os isolacionistas consideram-se os únicos verdadeiramente anti-globalização, clamando
pela abolição da ordem económica global vigente, defendendo que o único caminho na
busca das alternativas para a globalização orientada pelas corporações é a auto-
confiança dos atores e a auto-suficiência das suas organizações. Nesta categoria situam-
se organizações como Friends for the Earth, Focus on the Global South, International
Forum on Globalisation, Global Exchange, 50 years is Enough, movimentos sociais
como o MST do Brasil, e individualidades como Noam Chomsky e Walden Bello da
Red de los Movimientos Sociales. Embora apresentados como constituindo um grupo à
parte dos alternativos manifestam-se em sintonia com a utopia “um outro mundo é
possível” do Fórum Social Mundial, apontando-a como o caminho para criar uma nova
ordem mundial.
O grupo dos reformistas inclui a maior parte dos movimentos sociais e organizações da
sociedade civil global, nomeadamente sindicatos, movimentos trabalhistas, ONG’s
transnacionais como a OXFAM e a Worldvision, a Liga Jubileu 2000, funcionários das
instituições financeiras de Bretton Woods, jornais como o Financial Times, e
individualidades como Joseph Stiglitz, George Soros e James Wolfenson. Visam
mudanças parciais para compensar as injustiças e desigualdades atuais, mas não apoiam
as demandas por mudanças radicais e uma nova ordem mundial. O objetivo é manter as
vantagens do modelo capitalista, mitigando os seus excessos através de medidas de
regulação e de redistribuição. Apesar de se encontrarem sob a mesma categoria de
oposição à globalização devido à natureza das posições que defendem, as relações entre
reformistas nem sempre são de suporte institucional: por exemplo, a Liga Jubileu 2000
defende o cancelamento da dívida dos países do terceiro mundo e propõe profundas
reformas no sistema de Bretton Woods, particularmente no Fundo Monetário
Internacional.
246 TUSSIE, Diana & RIGGIROZZI, Maria Pia. (2001), op. cit. DESAI, Meghnad & SAID, Yahia. (2001), op. cit. BELLO, Walden. (2003), op. cit. CHANDHOKE, Neera. (2002), op. cit.
No grupo das alternativas encontra-se uma grande variedade de movimentos sociais
com os mais diversos objetivos, redes transnacionais e regionais, coalisões e campanhas
mais ou menos amplas, defendendo a transformação ou reforma do capitalismo global,
manifestando preocupação nos seus discursos com as consequências políticas e culturais
do capitalismo, e denunciando os custos ambientais e econômicos das atuais políticas
econômicas defendidas pelas instituições financeiras internacionais. Entendem a
usurpação do espaço público pelo mercado como um desafio à democracia, contrapondo
campanhas de denúncia e censura coletiva e pública contra os abusos e em nome dos
direitos humanos, principalmente nas sociedades do sul.
No âmbito das iniciativas em busca de alternativas à atual ordem mundial e ao discurso
dominante sobre a sociedade civil, merece realce o apoio das agências de cooperação
dos países nórdicos ASDI (Suécia), NORAD (Noruega), DANIDA (Dinamarca) e a
FINIDA (Finlândia), que através das relações bilaterais e a nível transnacional,
promovem a realização de debates, conferências, produção e circulação de informação,
e financiam a participação de atores sociais, individuais e coletivos, das sociedades do
sul, em fora transnacionais, como o Fórum Social Mundial. Entre essas iniciativas,
destaca-se a Conferência de Helsínquia realizada em 2002, para promover o diálogo
sobre as mudanças necessárias nas estruturas da governação supranacional e propor
novos caminhos para resolver os problemas globais mais urgentes247. Entre estes
problemas, foi destacada a necessidade de intensificação do diálogo construtivo entre o
Norte e o Sul, no qual a sociedade civil surge como uma categoria central, apesar de se
reconhecer a grande variedade de atores sociais que ela comporta e suas distintas
orientações políticas, e o amplo leque de estratégias possíveis, reformistas, conformistas
ou transformistas.
Aparentemente, este discurso poderia ser confundido com o do Banco Mundial ou do
PNUD. A grande diferença reside no fato que o processo de Helsínquia não restringe o
debate aos representantes dos governos e das instituições internacionais, envolvendo
intelectuais, think-tanks e outros representantes de organizações nacionais de sociedades
civis em todo o mundo. Neste âmbito, os diálogos construtivos entre a sociedade civil
do Norte e do Sul são entendidos como contribuições para: (1) abrir espaços onde
247 HELSINKI CONFERENCE 2002, Searching for Global Partnerships. Conference Report, 2003.
possam florescer e expressar-se múltiplas visões; (2) institucionalizar estruturas ou
redes quase-permanentes para encorajar o diálogo entre grupos, clubes, instituições,
redes, movimentos sociais, para discutir formas positivas de intervenção em reforço da
democracia; (3) produção independente e em rede, de informação, pesquisa e circulação
de dados sobre lutas, práticas, experiências e utopias relacionados com a democracia;
(4) construção de uma frente global para defender, aprofundar e expandir a
democracia248. Ainda no âmbito do desenvolvimento do Processo de Helsínquia, uma
das organizações não-governamnetais com maior destaque tem sido a NGID (Network
Institute for Global Democratization), criada em Helsínquia em 1997. Produzindo e
fazendo circular informação relacionada com os temas da sociedade civil, globalização
e democracia, e promovendo a realização de seminários, treinamentos e debates, esta
organização destaca-se pelo apoio às atividades do Fórum Social Mundial, percebido
como uma plataforma internacional para a troca de informações, criação de redes e de
uma verdadeira sociedade civil global, a partir da qual novas iniciativas para uma
democracia global podem ser promovidas249.
Entre as reações aos discursos e práticas com pretensões hegemônicas, as mais visíveis
atualmente são elaboradas por movimentos sociais como o Fórum Social Mundial,
propondo entendimentos de sociedade civil que acomodem manifestações culturais
locais e suas formas específicas de organização do político e das relações sociais.
Autodesignado de “recurso na luta global contra o neoliberalismo através de uma ação
civil global”, o Fórum constitui-se em ponto de encontro de grupos e movimentos da
sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e à dominação do mundo pelo capital
ou qualquer outra forma de imperialismo, apresenta-se aberto ao pensamento reflexivo,
ao debate democrátrico de ideias, à formulação de propostas e livre troca de
experiências, e declara-se comprometido com a construção de uma sociedade planetária,
orientada para relações frutuosas entre a humanidade, e entre esta e a Terra.
Acomodando o pluralismo e a diversidade de atividades e formas de engajamento de
organizações e movimentos que nele decidam participar, considera especialmente
valiosa “a troca de experiências sobre o que está sendo feito para que a atividade
248 PRATAP, Vijay, PRIYA, Ritu and WALLGREN, Thomas. (2004), Vasudhaiva Kutumbakam. An Alliance for Comprehensive Democracy. Capital Creations, New Delhi. 249 RIKKILÄ, Leena & PATOMÄKI, Katarina Sehm (orgs.) (2002), From a Market Place to Political Spaces. The North-South Dialogue continues. NIGD Working Paper 1.
económica e a ação política enderecem e respondam às necessidades das pessoas e ao
respeito pela natureza, nas presentes e nas futuras gerações” 250. Apesar da afirmação de
espaço de manifestação da diversidade cultural e ecológica, e da centralidade da
categoria sociedade civil nas declarações do Fórum, não parecem questionados os
conteúdos, significados, formas e processos envolvidos nas ideias e representações de
sociedade civil dos grupos e organizações que nele participam, o que não contribui para
a reformulação do quadro teórico do conceito nem para o conhecimento empírico da
diversidade das suas aplicações.
A CIVICUS é “uma aliança internacional para reforçar a ação cidadã e a sociedade civil
em todo o mundo”, criada em Washington em 1993, envolvendo 600 organizações de
uma centena de países. Apesar de adotar uma definição normativa de “sociedade civil
como a esfera das instituições, organizações e indivíduos, localizados entre a família, o
estado e o mercado, na qual as pessoas se associam voluntariamente para alcançar
interesses comuns”, a CIVICUS procura “conectar o normativo com o empírico,
pensando em sociedade civil de maneira mais ampla, como o campo da liberdade e do
engajamento cívico, protegido pelo Estado, embora auto-regulado em grande medida,
onde diversidade, auto-afirmação e voluntarismo não só são tolerados, como
encorajados”251.
Existem diferenças significativas nas duas abordagens acima apresentadas252. O Fórum
Social Mundial reflete uma compreensão de sociedade civil orientada pelo valor,
promovendo a ética e a prática da solidariedade e da emancipação, animando e
inspirando a ação em relação ao Estado e ao mercado, sendo o conflito (não-violento)
visto como um motor necessário para a mudança social. O seu pressuposto político
assenta na ideia de públicos fortes, sendo o desenvolvimento das opiniões e o incentivo
à iniciativa política fortemente encorajados. O seu quadro teórico remete aos
movimentos sociais e a intelectuais europeus e latinoamericanos engajados na luta anti-
colonial pela emancipação, sendo perceptível a influência do pensamento de Gramsci
250 WORLD SOCIAL FORUM ORGANISING COMMITTEE. (2004), op. cit. 251 SMITH, Barry. (2001), The Concept and the Practice of Civil Society: Perspectives from CIVICUS – World Alliance for Citizen Participation. INTRAC 10th. Anniversary International Conference. Oxford, 13.15 December. 252 Análise construída com recurso a SOGGE, David. (2004), “Civil Domains in African Settings: Some Issues”. Civil Society Observer – UN Non-governmental Liaison Service, vol. 1, Issue 3, June-July. http://www.un.org/terms.html
nos seus posicionamentos. Mobilizando os contra-poderes, o Fórum visa a constituição
de alianças entre grupos de pobres e excluídos, recorrendo aos canais políticos, judiciais
e mediáticos. O Fórum é constituído, essencialmente, por movimentos sociais,
sindicatos, organizações comunitárias de base (OCB’s), organizações não-
governamentais (ONG’s) locais dedicadas à produção e difusão de conhecimento, e
meios de comunicação independentes. Pelo seu lado, a CIVICUS contrapõe um
entendimento claramente normativo e insere-se na perspectiva de sociedade civil
enquanto terceiro setor, complementando o Estado e o mercado, através da promoção
das chamadas parcerias público-privadas. O seu enquadramento teórico remete a
Fukuyama e Putnam, visando a negociação de consensos sociais e consentimentos em
relação às regras, com vista a evitar os conflitos. Atuando fundamentalmente através da
advocacia e do lobbying, promove programas de boa governação, transparência e
prestação de contas por parte do governo. Na sua constituição prevalecem as ONG’s,
locais ou internacionais, as organizações filantrópicas, as missões religiosas, e as
associações profissionais e de negócios.
Apesar das ambiguidades e dificuldades antes referidas, o Fórum Social Mundial parece
posicionar-se, nitidamente, numa perspectiva alternativa ao discurso global,
hegemônico, com o qual a CIVICUS parece conviver, dada a proximidade das suas
posições com as defendidas pelas instituições internacionais em geral, não apenas as
financeiras, e as agências de cooperação bilaterais. Como pontos comuns, o fato de
ambas as organizações atribuírem à sociedade civil objetivos positivos, configurando-a
numa perspectiva de civil, excluindo organizações relacionadas com o crime organizado
e a vida associativa não civil, em geral.
IV – O QUADRO PARA A ANÁLISE DOS DISCURSOS SOBRE A SOCIEDADE CIVIL EM
ANGOLA A participação consciente na vida social pressupõe a compreensão da natureza do
pensamento sobre a sociedade; a concepção de natureza humana baseada na razão,
mediação e auto-reflexão, credita ao ser humano o potencial de auto-avaliação e
consciência do contexto, que o habilita a entender o seu objeto de estudo. Mannheim
identifica nas sociedades divididas em classes um estrato social cujo único capital reside
na sua educação, e que por ser constituído por indivíduos de classes diferentes, contém
em si a semente das contradições, e que alimenta uma energia potencial para
desenvolver uma sensibilidade social para compreender as dinâmicas e as forças em
conflito na sociedade253.
Forjado na luta política e usado como arma discursiva para ganhar terreno nas lutas
reais do mundo da vida e nas batalhas ideológicas do mundo das ideias, o conceito de
sociedade civil tem sido apropriado pelos discursos políticos mais diversos, sempre com
um sentido positivo. Nos países o Leste Europeu mobilizou a constituição da oposição
aos regimes do socialismo real; nos países latino-americanos, simbolizando o que não
era militar, difundiu-se nas manifestações de resistência às ditaduras militares que
dominavam o sub-continente; na Ásia e na África emprestou argumentos às coalisões
que conduziram os processos de luta contra o colonialismo. Em todos estes contextos,
apesar das suas particularidades, o denominador comum do recurso ao conceito é o
conflito social, e o objetivo a conquista de espaço público ao Estado.
Fortalecido nas estratégias discursivas das lutas sociais contra regimes de partido único,
ditaduras militares e colonialismo, e colocado no centro das preocupações e
reivindicações dos movimentos sociais e políticos que recorreram à sua bandeira
inspiradora e mobilizadora, os discursos da sociedade civil germinaram em contextos
sociais muito variados e enfrentaram resistências muito diversas. Apesar dessa
polissemia, ou devido a ela, o recurso à utopia da sociedade civil jogou um papel
decisivo nos processos de restabelecimento ou de instalação progressiva das regras do
jogo democrático em todos esses contextos.
As contribuições teóricas da análise dos processos nos quais a utopia da sociedade civil
foi recurso discursivo tornaram possível a representação tripartida do social, com base
na vontade expressa de auto-limitação operada em sentido duplo, por um lado
diferenciando-se e autonomizando-se da sociedade política que não pretende substituir,
por outro, distanciando-se da noção reducionista que a identificava com o mercado.
Estas contribuições conduziram à percepção de uma arena cultural separada das arenas
política e econômica, capaz de superar a dicotomia entre sociedade civil e Estado254. A
sociedade civil, percebida como espaço diversificado e contraditório de configuração
253 MANNHEIM, Karl. (1976), op. cit. 254 COHEN, Jean & ARATO, Andrew. (1992), op. cit.
das orientações discursivas e das atitudes dos cidadãos em relação à economia e ao
Estado, oferece um vasto campo de oportunidades para a transmissão cultural (herança
de valores, crenças e normas), para a integração social (coesão que serve de base para o
desenvolvimento de ações conjuntas ou coletivas) e para a socialização (incorporação
progressiva nos indivíduos dos diversos conteúdos culturais que permitem o surgimento
de sentimentos de pertença e de adesão a um “nós” parcial em constante processo de
redefinição).
Contudo, prevalecem nos discursos sobre a sociedade civil a ambiguidade dos conflitos
de interesses, a polaridade entre egoísmo e altruísmo, a tensão entre as estratégias
individuais e a reflexão racional presentes nas corporações de Hegel e no interesse bem
compreendido das associações de Tocqueville, e a solidariedade mais ampla que
alimenta o mutualismo e as normas de reciprocidade. O apelo discursivo à civilidade
surge, então, relacionado com o esforço de compatibilizar de uma forma equitativa e
durável os conflitos de interesses presentes na sociedade civil. Mas estas tensões
parecem igualmente alimentadas pelos impactos desiguais das resistências aos avanços
da sociedade civil nas distintas formas de organização que a integram, nos diversos
contextos em que o discurso da sociedade civil foi usado como força mobilizadora e
inspiradora. Nem todas as formas de associação independente do Estado nos diversos
regimes, socialismo real, ditadura militar ou dominação colonial, foram atingidas na
mesma proporção ou segundo os mesmos critérios: enquanto organizações de base,
sindicatos de trabalhadores, associações de camponeses, organizações de povos
indígenas, etc., foram silenciadas ou mesmo destruídas, algumas formas corporativas de
representação de interesses, alguns meios de comunicação, e alguns partidos políticos e
políticos profissionais, mantiveram-se em interação com as instituições do poder e do
mercado.
Em resultado de processos que simultaneamente destruíam e desarticulavam relações
sociais do mundo popular, e liberavam ou impulsionavam novas formas de organização
no mundo dos negócios e de apropriação da representação dos interesses “do povo”
pelos políticos profissionais da oposição, resultaram dois tipos de discursos: os da
sociedade civil “burguesa”, que se manteve ou se constituiu durante as lutas contra as
ditaduras e o colonialismo, e os da sociedade civil “popular”, construída na contramão
de processos que visavam a sua destruição ou desarticulação, com o apoio de forças
autônomas como igrejas e organizações não-governamentais, e que originaram novos
tipos de organização com base em laços de associação solidária em espaços não muito
politizados, visando superar a atomização social resultante da repressão pelos aparatos
estatais de partido único, militares ou coloniais.
Nos processos de instauração de democracias restritas e elitistas, que sob os mais
variados matizes sucederam aos períodos pós-conflitos atrás referidos, a ideia de
sociedade civil parece ter-se emancipado das suas origens no mundo das lutas sociais,
para se converter no centro de exercícios intelectuais sobre processos políticos
supostamente separados da base produtiva e distributiva, passando a ser usado de uma
forma discursiva que reforça a ideologia dominante. E isso acontece porque a) a
dicotomia simplista Estado-sociedade civil é usada para significar que qualquer
fortalecimento institucional que não dependa do Estado representa um passo em direção
à emancipação social (recorrente nos discursos da ideologia neoliberal como argumento
para relacionar a privatização com uma sociedade civil mais forte); b) a ideologia
contida na designação generalizada de “atores sociais”, transmitindo uma mensagem de
igualdade de direitos e de oportunidades, mascara as profundas desigualdades existentes
nas sociedades atuais; c) a colagem entre a ideia de sociedade civil e as ONG’s serve os
objetivos da ideologia neoliberal, excluindo outras formas de organização da sociedade
civil, designadamente associações diversas, movimentos sociais e grupos de cidadãos. O
argumento recorre à origem das ONG’s numa esfera fora da alçada do Estado, para as
apresentar como naturalmente livres da sua influência e do seu poder, transformando-as
nos atores legítimos da sociedade civil, ignorando as profundas diferenças entre elas,
particularmente ao nível dos seus vínculos com organizações populares, ou de suporte a
interesses do grande capital ou fonte de emprego de intelectuais255.
Se não parecem existir dúvidas de que sociedade civil é um conceito recorrente nos
discursos contemporâneos independentemente da latitude em que os mesmos sejam
pronunciados, a análise em contextos distintos aponta para distinções significativas no
sentido, forma, e funções a ele atribuídos. Contudo, os usos discursivos do conceito nos
dias de hoje parecem ultrapassar a relação binomial entre grupos sócio-culturais e os
255 MESCHKAT, Klaus. (1999), “Una critica a la ideología de la ‘sociedad civil’”, in P. Hengstenberg, K. Kohut, G. Maihold (org.), Sociedad Civil en America Latina: representación de intereses y governabilidad, Caracas, Nueva Sociedad.
respectivos Estados para a organização das relações sociais e de poder, parecendo
visível a intenção de estabelecer uma forma de entendimento normativa sobre a ideia de
sociedade civil, desenvolvida no âmbito do paradigma neoliberal.
Os discursos atuais sobre o conceito parecem configurados nos interfaces entre
correntes opostas. De um lado, um movimento de ideias hegemônicas construídas em
torno da retórica neoliberal, incorporadas nas exigências e condicionamentos dos
programas de assistência ao desenvolvimento veiculados pelas agências internacionais,
as organizações supranacionais do sistema mundial, e as organizações não
governamentais. No léxico do discurso desenvolvimentista, a sociedade civil joga um
papel fundamental na reconfiguração das relações entre Estado e sociedade, através de
processos de destituição do Estado dos poderes e atribuições com relação aos cidadãos,
nomeadamente nas garantias de proteção social e de desenvolvimento do capital
humano e social.
Na África em geral, e em Angola em particular, o conceito de sociedade civil ganhou
visibilidade pública nos anos 90 do século XX, coincidindo com a expansão global da
ideologia neoliberal sob o slogan do fortalecimento da sociedade civil no âmbito da
liberalização política e económica, liderada pelas instituições financeiras de Bretton
Woods, as agências multilaterais das Nações Unidas (em particular o PNUD), e
bilaterais ocidentais. Também remonta a esta época a colagem entre a ideia de
sociedade civil e ONG’s com funções cívicas mas também sociais e económicas. Neste
novo entendimento de sociedade civil - praticamente oposto ao que prevaleceu nos anos
70 e 80, quando o conceito era usado para mobilizar a crítica e a resistência contra
regimes autoritários na América Latina e na Europa do Leste, e a resistência e a luta
contra os regimes coloniais na Ásia e na África -, os protagonistas mais visíveis não são
os diversos atores sociais nacionais, mas sim as ONG’s transnacionais (porque as
nacionais não haviam sido criadas ou porque, mesmo existindo, não tinham a
capacidade nem os meios para agir), transformadas em promotoras do desenvolvimento
democrático do mundo.
Sendo o Estado compelido a renunciar a uma participação direta na produção e na
distribuição da riqueza nacional, e a reduzir as suas funções à manutenção da ordem
pública e à regulação multidimensional da actividade política, econômica e social, as
ONG’s são apresentadas como os mecanismos ideais para a provisão de serviços
sociais. Apesar do seu discurso profundamente político e hegemônico, assumem-se
como apolíticas e não-lucrativas, negando qualquer afinidade com a política e
afirmando apenas um espírito de filantropia. Nos últimos anos, a juntar-se ao pacote de
serviços sociais públicos, as ONG’s receberam o mandato adicional de democratizar o
mundo através da difusão e promoção da democracia e da sociedade civil, como parte
da sua missão pró-desenvolvimento, numa estratégia bem liberal de reduzir questões
essencialmente políticas, como a pobreza, a desigualdade e a exclusão sociais, a
injustiça social, entre outras, a questões econômicas ou éticas, despolitizando os vários
domínios do mundo da vida, de maneira a lidar com os conflitos políticos através de
mecanismos de mercado. Este mandato transformou as ONG’s em sociedade civil por
excelência256. Neste seu papel, surgem como fundadoras da cultura cívica, o bastião
para combater as forças não-democráticas que ameaçam a sociedade. Mas as
organizações da sociedade civil não se limitam às ONG’s, e este discurso traduz uma
versão ideológica da sociedade civil, que não é, em si, um bastião da democracia
conforme se pretende, sendo comuns as tentativas de dominação e / ou de luta por
posições hegemónicas (poder de imposição de normas, práticas e concepções de
destaque, de comando ou liderança e de prestígio) entre e dentro das organizações que a
integram.
Ainda no que respeita ao papel das ONG’s, enquanto instâncias preferenciais de
implementação dos programas de ajuda, importa considerar uma outra vertente da
discussão: a dicotomia urbano-rural. Enquanto as ONG’s políticas, envolvidas em
programas de promoção de direitos humanos, de cidadania, etc., se localizam e atuam
principalmente nas áreas urbanas, as ONG’s de desenvolvimento, envolvidas em
programas de aumento e diversificação da produção agro-pecuária, transformação
primária, fontes alternativas de rendimento, etc., atuam nas áreas rurais. As agendas, de
umas e de outras, apresentam diferentes tipos de metodologias e de discursos orientados
para públicos-alvo distintos, com impactos na acentuação das distinções entre as
256 Sobre a relação das ONG’s com a sociedade civil: FOWLER, Alan. (2000), “Civil Society, NGDOs and Social Development: Changing the Rules of the Game”. Geneva, UNRISD (United Nations Research Institute for Social Development. Occasional Papers. HUDOCK, Ann C. (1999), op. cit. LUONG, Pauline J. & WEINTHAL, Erika. (1999), op. cit. SILIMAN, G. Sidney & NOBLE, Lela G. (orgs.) (1998), op. cit. TVEDTEN, Inge. (2001), “Angola 2000/2001. Key Development Issues and the Role of NGO’s”. Report 1. Bergen, Chr. Michelsen Institute (CMI). TVEDTEN, Inge. (2002), “La Scène angolaise: limites et potenciel des ONG’s”. Lusotopie, nº. 9, pp. 171-188.
representações discursivas sobre sociedade civil entre zona urbana e meio rural,
dificultando os diálogos e mútuos entendimentos.
O segundo movimento que condiciona a configuração dos entendimentos e a elaboração
dos discursos sobre sociedade civil, comporta uma plétora de novas propostas para a
organização das relações sociais e de poder na sequência dos processos de
desconstrução do Estado e de construção de novos espaços sócio-políticos mais
adequados às novas identidades coletivas que os produzem, no âmbito das quais é
atribuída à sociedade civil a tarefa de condução da sociedade rumo a um futuro melhor.
As aspirações de grupos mais ou menos localizados e identificados com etnias, laços de
parentesco, afinidades religiosas, entre outras manifestações culturais mais
particularizadas relacionadas com subjetividades coletivas em busca de reconhecimento,
parecem expressar utopias de auto-afirmação de formas distintivas de organização da
participação e da representação257.
O recurso ao conceito para expressar expectativas e desejo de mudança para sociedades
mais inclusivas e menos desiguais, o respeito e o reconhecimento de grupos sociais
marginalizados e de minorias étnicas, a construção de solidariedades e
responsabilidades sociais mais abrangentes, etc., contrapondo à pretensão hegemónica
do discurso neoliberal da sociedade civil as visões locais e respectivas formas de
organização social e política, torna-se mais presente nos discursos à medida que estes se
relacionam com realidades sócio-culturais mais localizadas, expressando opiniões de
cidadãos e grupos de cidadãos no âmbito de quadros de referência nacionais. Importa
ainda reter as contribuições da sociedade civil global em termos da sua capacidade de
expandir e tornar mais inclusiva e diversificada a esfera pública, de influenciar
mudanças institucionais, de denunciar situações de injustiça e exclusão social, e de dar
visibilidade e voz às expectativas de grupos sociais hoje excluídos dos processos de
participação e de representação.
Os discursos que traduzem os entendimentos de sociedade civil como processos
dinâmicos e fundamentalmente políticos de interação entre várias organizações da
257 Para Boaventura Souza e Santos, o Fórum Social Mundial simboliza a “re-emergência da utopia crítica, ou seja, a crítica radical da realidade presente e a aspiração por uma sociedade melhor”. “The World Social Forum: Toward a Counter-Hegemonic Globalization”, in Jai Sen; Anita Anand; Arturo Escobar; Peter Waterman (orgs.), op. cit., pp. 336-343.
sociedade e entre estas e o Estado, através do qual são forjadas, fortalecidas ou
enfraquecidas as relações de poder, pela criação de oportunidades para diferentes grupos
(particularmente aqueles em situações política ou socialmente desvantajosas)
adquirirem a capacidade de influenciar os resultados políticos, e contribuirem para a
emergência de modelos alternativos de desenvolvimento, constituem-se em propostas
alternativas à estratégia discursiva das instituições financeiras internacionais e das
ONG’s supranacionais, ideologicamente elaborada com base na noção neoliberal do
homo economicus258.
Relativamente às iniciativas externas de apoio e fortalecimento da sociedade civil
nacional, a análise dessa estratégia discursiva sugere que sejam tidas em atenção as suas
implicações nos processos de mudança social e política, principalmente porque a
insistência na relação entre desenvolvimento dos mercados e democratização, e a busca
desenfreada pelo desenvolvimento econômico podem “minar o processo de
democratização, por ignorar ou não prestar a devida atenção aos meios nada liberais
para alcançar a abertura dos mercados”259. Em países em processos de democratização,
as pressões econômicas podem favorecer relações patrimoniais, antigas ou recentes,
porque o acentuar das desigualdades sociais dificulta a mobilização de camadas sociais,
especialmente as mais carentes, em torno de questões sociais, acabando por privilegiar
as elites existentes, com mais oportunidades para tirarem vantagem das reformas
econômicas devido à sua posição, e a nova classe comercial emergente260.
258 MACAMO, Elísio. (2005), op.cit. 259 LUONG, J. & WEINTHAL. (1999), op. cit. 260 DILLA, H., & OXHORN, P. (2002), “The Virtues and Misfortunes of Civil Society in Cuba”. Latin American Perspectives, vol.29, no. 4, pp.11-30.
CAPITULO 4 - A SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA: contribuições da pesquisa
de campo.
I. INTRODUÇÃO
As opiniões dos atores sociais angolanos incluídos na pesquisa261 expressam-se em
consonância com os discursos mais comuns na atualidade, constantes na literatura ou
veiculados pelos meios de comunicação, expressando as tensões, expectativas e as
visões presentes nos debates nas diferentes regiões do globo. Como conceito recorrente
é mobilizado para explicar as mudanças experimentadas pelas sociedades atuais, como
se procurou mostrar nos capítulos dedicados à construção do quadro teórico, para
apresentação e discussão dos resultados obtidos na pesquisa de campo. Em Angola,
como em outras partes do mundo, a invocação da sociedade civil como a solução para
os diversos problemas políticos, econômicos e sociais que as sociedades enfrentam, está
fortemente presente nas respostas às perguntas abertas, nas quais os participantes
expressaram as suas opiniões através das suas próprias palavras. Como acontece em
outras sociedade africanas em processo de iniciação ou de consolidação de reformas
democráticas, também os atores sociais angolanos atribuem à sociedade civil o papel de
motor na condução dos processos de consolidação da paz, da reconciliação nacional, de
justiça social, e de democratização e modernização262.
Confrontando as respostas às perguntas abertas com as respostas às perguntas semi-
abertas (construídas a partir de depoimentos, opiniões, títulos de notícias dos periódicos
locais, programas de Tv e opiniões expressas em debates públicos) parecem encontrar-
se situações de complementaridade e de fundamentação, como, por exemplo, nos traços
de solidariedade e ajuda mútua, e de confiança nas pessoas e nas instituições, ou ainda
quando se comparam as respostas sobre a constituição da sociedade civil, num e noutro
questionário; mas também se observam alguns desencontros, como quando se
261 A pesquisa de campo que forneceu o suporte empírico a esta tese é apresentada no Anexo Metodológico, que inclui os questionários usados. 262 BRATTON, Michael. (1994), “Civil Society and Political Transition in Africa”. Institute for Development Research, IDR Reports, Volume 11, nº. 6. BRATTON, Michael. & van de VALLE, Nicholas (1997), Democratic Experiments in Africa: Regime Transitions in a Comparative Perspective. Cambridge, Cambridge University Press. NKWACHUKWU, Orji (2003), op. cit. SJORGEN, Anders. (2001), “State, Civil Society and Democratisation: Theoretical Debates Past and Present”, in Bjorg Beckman; Eva Hansson and Anders Sjorgen (orgs.) Civil Society and Authoritarianism in the Third World. A Conference Book. PODSU, Stockholm University, pp.21-48. WALRAVEN, Klaas van. (2002), “Social Stratification, History and Democratization: Some Comparative Reflections on Europe and Africa”, in Klaas van Walraven & Céline Thiriot (orgs.), Democratization in sub-Saharan Africa: Transitions and Turning Points. An overview of the literature (1995-1996). Leiden, African Studies Centre, nº. 65.
confrontam os ideais de participação, ação coletiva e engajamento social inscritos nas
respostas sobre as imagens e papéis da sociedade civil no questionário aberto, e os
resultados às perguntas sobre interesse e participação na política do questionário semi-
aberto. É ainda possível observar a não coincidência das imagens descritivas da
sociedade civil com as opiniões sobre o seu dinamismo, visibilidade e desempenho
atuais.
Parece possível retirar das respostas não só uma forte corrente normativa e ideológica,
conformando-as ao desejável das relações sociais e de poder intermediadas por
organizações da sociedade civil agindo entre o Estado, o mercado e a sociedade, mas
também um potencial utópico associado à ideia da sociedade civil como a condutora da
mudança para uma Angola melhor, sem que aparentemente se tenham em conta as
enormes dificuldades com que se defrontaria esse protagonismo nos planos político e
econômico, e até mesmo social, devido às dificuldades da ação coletiva no contexto
angolano, como se procurou caracterizar no capítulo sobre modernidade e tradição.
O pressuposto mais amplo da pesquisa assumia a contextualização das imagens sobre a
sociedade civil em Angola. As opiniões dos atores sociais que participaram na pesquisa
de campo expressam-se recorrendo a discursos e representações comuns na literatura
sobre o tema. Ainda que limitadas, as aberturas do espaço público angolano após as
reformas dos anos 90 e após o Acordo de Paz que, em 2002, pôs fim a décadas de
guerra civil, criaram oportunidades para a apropriação do conceito pelos atores
angolanos e a sua inclusão nas representações a que os mesmos recorrem nos seus
pronunciamentos sobre as soluções para Angola no pós-guerra.
Se nesta apropriação pode perceber-se a inspiração em processos de democratização no
continente, em particular o que legalizou a oposição ao regime do apartheid na África
do Sul, e a influência dos discursos e representações das agências multi e bilaterais, das
ONG’s e de outras organizações da sociedade civil global, facilitada pela evolução
tecnológica dos sistemas de comunicação, ela mostra-se sui generis em termos dos
critérios de pertenciamento a que os atores recorreram, ao incorporar na sociedade civil
os grupos informais, as organizações de base, e as igrejas e organizações constituídas
com base na fé e na solidariedade religiosas, e também no que respeita aos processos de
gênese da organização da sociedade civil, ao argumentarem a favor da realização de
conferências nacionais e de assembleias instituintes, que remetem a formas criativas de
recuperação e renovação de instituições ou instâncias de deliberação e de intervenção
nos espaços públicos, buscando na tradição soluções alternativas às instituições
modernas do modelo neoliberal dominante.
Assim, se por um lado, existem comunalidades nos discursos e representações dos
atores sociais que participaram na pesquisa quando comparados com os dos atores
supranacionais (agências financeiras internacionais, agências bilaterais e ONG’s),
importa reter as singularidades porque elas representam a oportunidade para a
construção de uma sociedade civil, enquanto conceito e enquanto prática, mais
adequada ao momento que Angola vive e, por isso, com mais condições de contribuir
para a busca de saídas para a sociedade angolana, com base no potencial de mobilização
e de movimento reconhecidos ao conceito e já anteriormente referidos263.
Os pressupostos assumidos pela pesquisa parecem ter sido confirmados pelas respostas
obtidas, mormente no que se refere a uma noção ampla de sociedade civil envolvendo
todos os agentes que operam no espaço intersticial entre o Estado, a sociedade e o
mercado, capazes de mobilizar e organizar as demandas coletivas e individuais por
direitos civis, sociais, culturais, políticos e econômicos, de produzir novas formas de
solidariedade e responsabilidade social, e de contribuir para a criação de plataformas de
concertação social e de luta por justiça e equidade sociais. Esta dimensão analítica ou
estrutural das respostas evidenciou a importância atribuída pelos participantes às
diversas formas de organização social e às redes por elas constituídas, identificando
numa perspectiva mais ampla a noção de arena ou espaço de negociação no qual os
cidadãos se juntam e procuram promover os interesses comuns.
No concernente às motivações e aos papéis atribuídos à sociedade civil em Angola, o
pressuposto de que eles seriam relacionados com a organização de espaços de
negociação de processos de mudança, onde prevaleciam as ideias de construção de
nação e de cidadania, de modernização e democratização da sociedade, e de combate à
pobreza e à desigualdade social, confirmou-se apenas em parte devido à pouca
prioridade atribuída pelos participantes à democratização e modernização da sociedade,
263 KOSELLECK, Reinhart (2002), op. cit.
enquanto objectivos. Estes pressupostos continham implícita uma prioridade explicitada
pelas respostas dos atores sociais que participaram na pesquisa, nomeadamente a da
consolidação da Paz e da reconciliação nacional. Esta definição cognitiva destacou a
importância atribuída pelos participantes às normas, aos valores sociais e atributos (tais
como confiança, tolerância e cooperação), fundamentais para a construção da noção de
uma sociedade “civil” que reflecte uma forma de ser e de estar no mundo, que é
diferente da racionalidade, tanto do Estado quanto do mercado264.
Importa destacar que, apesar das dificuldades e constrangimentos que se colocam à
construção das relações sociais fora das esferas de influência do Estado e do mercado
em Angola, as respostas à pesquisa mostram que os participantes recorrem a
combinações entre formas e normas para expressar as suas representações sobre a
sociedade civil, o que significa que superam as definições que destacam apenas os
aspectos organizativos ou apenas os cognitivos, estabelecendo uma conexão natural
entre ambas ao assumirem que as organizações da sociedade civil promovem valores
cívicos.
Ao atribuírem à sociedade civil em Angola papéis econômicos, sociais e políticos,
respectivamente com vista a proteger modos de vida e promover o capital social
necessário às formas de sustentação econômica no setor informal da economia, prover
serviços em áreas ou segmentos da sociedade onde o Estado e o mercado se mostram
ausentes ou ineficazes, constituir-se em reservatório de valores de cooperação, cuidado,
vida cultural e inovação intelectual, ou ainda de funcionar como motor da mudança nas
relações de poder e de regime político, os participantes evidenciaram um entendimento
inclusivo de sociedade civil que pratica a não-discriminação, promove uma base
material robusta e independente, combina formas coletivas capazes de estabelecer
relações dentro e entre os grupos e associações que influenciem o Estado no que
respeita à garantia dos direitos universais.
264 ELSTER, John. (1989), The Cement of Society: A Study of Social Order. Cambridge, Cambridge University Press.
II. IMAGENS, CONTORNOS E PAPÉIS DA SOCIEDADE CIVIL
O pressuposto mais amplo deste trabalho considerava a possibilidade de encontrar
representações de sociedade civil marcadas pelo contexto de Angola, devido ao seu
percurso histórico (sumariamente descrito no capítulo 1), de dominação colonial
seguida de um regime autoritário e ditatorial nos primeiros 16 anos pós-independência,
um ambiente de guerra civil nos últimos 30 anos, uma abertura política em 1991 após a
assinatura dos Acordos de Bicesse, e outra mais recente, após a assinatura dos Acordos
de Paz em 4 de Abril de 2002.
Este pressuposto foi construído levando em consideração que a maior parte dos
angolanos nasceu depois da independência (50% dos angolanos têm menos de 15 anos,
60% menos de 16 anos e cerca de 85% menos de 45 anos)265, não parecendo carecer de
demonstração a afirmação de que, de uma maneira geral, os seus quadros de referência,
as suas aspirações e as suas experiências de vida foram marcados pela omnipresença da
guerra, se não diretamente, ao menos indiretamente: se não foram vítimas diretas,
sofreram os efeitos do desinvestimento na economia e nas áreas sociais pela canalização
dos recursos do país para a guerra, potenciados pela destruição das infraestruturas de
educação e de saúde, de comunicação e outras.
Essa guerra coexistiu com o período em que vigorou em Angola um regime autoritário,
durante o qual o espaço público foi ocupado pelo partido/estado, sem oportunidades
para a livre expressão de opiniões, nem da criação de uma cultura de debate e de
participação no processo de tomada de decisões. Para além do clima de intimidação
principalmente notável a partir de 27 de Maio de 1977, quando ocorreu uma tentativa de
golpe de estado, a situação de guerra realçou os instintos de sobrevivência, canalizou a
atenção das pessoas para estratégias de satisfação das necessidades básicas, introduziu
critérios de prioridade que delimitaram a expressão de opinião ao mínimo necessário e
raramente em público, e o recurso frequente ao discurso politicamente correto ou a
expressões mais comuns dos discursos oficiais veiculados pelos meios de comunicação
estatais. As dificuldades de circulação de pessoas, bens e ideias em resultado da guerra
civil, obrigaram a uma fixação forçada da população urbana nas áreas de residência,
265 INE- Instituto Nacional de Estatística/UNICEF (2003). “MICS, Multiple Indicator Cluster Survey. Assessing the Situation of Angolan Children and Women at the Beginning of the Millenium”. Analytical Report. Luanda.
sendo que em muitos casos e durante longos períodos de tempo, muitas cidades eram
apenas alcançáveis por via aérea, e as deslocações limitavam-se a missões de serviço,
ou a situações familiares pontuais de urgência, por motivos de falecimento, de
casamento ou de conflitos.
Por outro lado, a população angolana com mais de 45 anos acrescenta à experiência da
guerra civil após a independência a vivência sob a dominação de uma potência colonial
com um regime fascista. Parece também pacífico afirmar que as suas experiências de
vida foram essencialmente marcadas pelo autoritarismo e pelas restrições impostas ao
exercício da cidadania, já de si limitada pelos padrões vigentes na sociedade portuguesa
por imperativos do regime, e em Angola ainda mais restrita, pela necessidade de cercear
as aspirações de autodeterminação, primeiro, e de independência depois, que ganharam
forma a partir de meados do século XX. Apesar de conferir direitos mais amplos, a
“cidadania de segunda” separava os nascidos em Angola dos colonos chegados de
Portugal (no âmbito da estratégia de povoamento da última fase da colonização),
qualquer que fosse o estatuto social e nível de educação destes últimos.
Esta “cidadania de segunda” era reconhecida a um pequeno número de africanos, não
abrangia a maior parte da população angolana, à qual se aplicou até 1961 o estatuto dos
indígenas266. A reforma administrativa que marcou a abolição deste Estatuto (devido à
eclosão da luta armada e às suas repercussões internacionais às quais Portugal procurava
dar resposta “negando haver algo para descolonizar, uma vez que não havia
colónias”...), fixava as relações dos “cidadãos de segunda” com as Câmaras Municipais
e/ou Juntas de Freguesia (seguindo a organização corporativista do Estado Português, e
a tradição municipalista da sua administração), e dos indígenas com as regedorias,
grupos de povoações, ou povoações267, mantendo assim uma separação entre os
angolanos que se regiam pela constitucionalidade (possível) da província ultramarina, e
os que se regiam pelas leis costumeiras ou tradicionais, que nem acesso tinham aos
tribunais268.
266 NETO, Mª. da Conceição (1997), op. cit. 267 BOLETIM OFICIAL de ANGOLA. (1961), I Série, n°. 37, Suplemento, de 13 de Setembro, p. 1110. 268 NETO, Mª. da Conceição (1997), op. cit.
Para além de evidenciar a intencionalidade de exacerbar e fixar as diferenças naturais
entre os angolanos (com base em estudos antropológicos, dos quais se destacam os de
José Redinha, e P.e. Carlos Estermann) pela prática do “dividir para melhor reinar” que
sempre pautou a administração colonial em Angola - e a crescente dificuldade daí
derivada em agregar solidariedades e capacidades em torno dos objetivos da libertação
nacional do jugo colonial -, esta ideologia colonial destruiu elementos das identidades
coletivas dos grupos sociais que habitavam o espaço geográfico hoje conhecido como
Angola. Este processo de aculturação e assimilação recorreu à proibição do uso das suas
línguas maternas no espaço público e pela obrigatoriedade do português no sistema de
ensino, aos programas curriculares do sistema de educação focalizados no ensino da
língua, da história, e da geografia portuguesas, ignorando ou minimizando o
conhecimento das realidades angolanas, à imposição de regras sobre nomes, maneiras
de vestir, profissões, ocupações laborais, e crenças religiosas, etc., compatíveis com o
estatuto de assimilados. Se ser negro ou mestiço assimilado ou branco nascido em
Angola equivalia a uma cidadania de segunda, ser indígena ou gentio equivalia a não ter
nenhum direito de cidadania. Esta situação foi comum às demais sociedades colonizadas
em África, como extensivamente o demonstram estudos sobre a desigualdade de
cidadania entre os cidadãos e os sujeitos nos estados coloniais269.
Sem pretender aprofundar a análise da situação colonial em Angola, nem estudar as
causas e os efeitos da guerra, importa assinalar a essência que destas situações se retirou
para a construção do pressuposto da contextualização das ideias sobre sociedade civil:
os efeitos conjugados da curta experiência de um processo democrático (ainda que
entendido de maneira minimalista, ou seja, reduzido à realização de eleições gerais, em
1992, apenas, e à constituição de instituições da democracia representativa, como a
Assembleia Nacional), após uma longa vivência marcada pelo não exercício da
cidadania pela maioria da população, a ausência de uma cultura de participação e de
debate, a não valorização da própria opinião e da dos outros, a violência e a falta de
perspectivas decorrentes do ambiente de guerra, as dificuldades na circulação de
pessoas, bens e ideias, entre outros, teriam contribuído para a configuração de uma ideia
de sociedade civil limitada pelas experiências locais, pela ausência de diálogo interno e
com o exterior, pela falta de protagonismo em práticas democráticas no espaço público
269 MAMDANI, Mahmood. (1996), op. cit. EKEH, Peter (1975), op. cit.
potenciada pelo medo de retaliações, pela insegurança e pela falta de confiança nas
pessoas e nas instituições.
Para além das 10 perguntas abertas relacionadas com as imagens, contornos e papéis
atribuídos à sociedade civil em Angola, a pesquisa incluía, ainda, um questionário
visando obter informações sobre participação, solidariedade, associativismo,
voluntariado, relações de vizinhança, e sentimentos de confiança nas pessoas e nas
instituições, entendidos como próxys de cultura cívica. O objetivo era o de encontrar nas
respostas às 20 questões deste questionário, eventuais razões, ou explicações para as
esperadas contextualizações das representações sociais do conceito em Angola.
A escolha de um amplo leque de atores sociais buscou ampliar o campo de recolha de
opiniões sobre o tema. Os grupos “mulheres” e “jovens” foram incorporados com o
objetivo de conferir representatividade à amostra face à constituição da população
angolana, majoritariamente feminina (52%) e jovem (85% com menos de 45 anos de
idade).
Alguns questionários dirigidos a categorias de análise incluídas na amostra, como
entidades religiosas, meios de comunicação social, poder local e setor informal, visavam
a recolha de opiniões e informações complementares aos dois questionários-base,
alimentando a discussão sobre os entendimentos em relação à sociedade civil, os
critérios de pertencimento, as motivações para a ação coletiva, a construção de
solidariedades e responsabilidades sociais, e as relações entre o Estado e a sociedade em
Angola.
1. Os entendimentos sobre sociedade civil
Em geral, as imagens dos atores sociais angolanos sobre sociedade civil recorrem a
expressões que remetem a formas de organização da ação coletiva como as de conjunto,
grupos de interesse, grupos de pressão ou grupos intermediários, organizações e
instituições sociais, funcionando num terreno, ou espaço/esfera situado entre o Estado e
a sociedade, com o qual a maioria se identifica, e no qual se produz a negociação do
consentimento sobre ideias e iniciativas de ação coletiva, no interesse de grupos ou no
interesse comum mais amplo, ou bem comum.
Estas estruturas organizativas são integradas por cidadãos, pessoas singulares,
individualidades, intelectuais, formadores de opinião, e também por redes de
informação, fora, coalisões, alianças e outras instituições sociais. Estas opiniões
traduzem um entendimento da constituição da sociedade civil que engloba estruturas
formais (as organizações e as instituições sociais), estruturas informais (os grupos), e
pessoas singulares às quais se reconhece a capacidade de influenciar a opinião pública,
de promover a aglutinação de interesses e anseios, e de contribuir para o alcance do bem
comum.
A grande maioria270 dos participantes recorreu a noções de agrupamento, de
organização e de conjunto, ou ainda “de vasto leque de indivíduos, organizações, mídia,
associações, igrejas e outras”, para expressar as suas imagens sobre sociedade civil.
Essas imagens são complementadas com as ideias de “pessoas/indivíduos”, e
“cidadãos”, incluindo ainda personalidades ou individualidades com capacidade de
influenciar a opinião pública. Parece presente na grande maioria das respostas o sentido
do coletivo, tanto do ponto de vista da constituição, quanto do ponto de vista dos
objetivos perseguidos. O sentido de movimento embutido no conceito de sociedade
civil271 está contido nas respostas através da atribuição do potencial de mobilização de
forças sociais com vista à indução de processos de mudança, nas respostas abertas, e da
seleção dos movimentos sociais na lista de organizações e instituições apresentada aos
participantes para que indicassem quais, em sua opinião, integram a sociedade civil.
Como exemplos, algumas das imagens identificam a sociedade civil com “uma força de
mudança”, “uma oportunidade para a participação dos cidadãos na gestão pública e na
tomada de decisões”, “iniciativas de pessoas sem vínculos com os poderes públicos,
mas colaborando com eles”, “os que atuam entre os ‘sem voz’ e o Estado em sentido
restrito”, “cidadãos e suas organizações atuando no domínio público”, “grande força
que poderá ajudar o país a sair da pobreza”, “a voz da sociedade, que será ouvida e tida
em conta”, “força capaz de provocar mudanças sócio-econômicas no país, penso na
solução para o país”, para citar algumas.
270 Na avaliação dos resultados recorreu-se ao critério de 50%+1 das indicações para considerar “maioria”, > 75% para “grande maioria”, e < 25% para “poucas”. As avaliações qualitativas relativas às atribuições, funções e papéis da sociedade civil são apresentadas na ordem decrescente do número de indicações registradas nas respostas. 271 KOSELLECK, Reinhart. (2002), op. cit.
As qualificações atribuídas pela grande maioria das respostas às estruturas da sociedade
civil são as de organização, de promoção da cidadania, da tomada de consciência e
exercício de direitos e deveres, de união, de participação, de formação de opinião, de
discussão e debate, e de mobilização da ação coletiva. As funções de representação, de
iniciativa, de influência e de dignidade constavam da maioria das respostas, enquanto as
funções de responsabilidade, de reconhecimento de voluntariado e de filantropia
manifestavam-se em cerca de ¼ das respostas.
Do ponto de vista das motivações vinculadas às imagens da sociedade civil em Angola,
o bem comum ou o bem social, uma sociedade mais justa, mais equilibrada, e no
interesse coletivo ou comum, são as mais presentes na grande maioria das opiniões,
enquanto justiça, democracia e liberdade (associadas), participação na tomada de
decisões e na resolução dos problemas sociais, e envolvimento direto nas decisões do
país, foram agregadas às imagens em pouco menos da maioria das respostas. Os fins
cívicos e a ampliação da cidadania, a visibilidade dos sem voz, a preservação de valores
morais, a indução de transformações e/ou mudanças sócio-econômicas duráveis, com
base numa participação entendida como voluntária, mereceram, igualmente, indicações
pela maioria dos participantes.
As atribuições mais frequentemente relacionadas com essas imagens são as de
organização, intervenção e coordenação da ação no espaço entre o cidadão e o Estado,
de representação e de influência no processo de tomada de decisões, de oportunidade de
participação na gestão da “coisa pública”, de constituição de parcerias e de apoio ou
ajuda ao Estado. Interação, questionamento, crítica, influência, complementaridade,
resolução dos problemas sociais, dar voz à sociedade, e fazer valer as suas ideias e
convicções no combate à pobreza, na gestão local e no desenvolvimento e progresso
social, constituem a maioria das atribuições embutidas nas opiniões dos participantes.
Apesar de menos representativa, a função ou atribuição de se constituir como alternativa
ao poder instituído também foi sugerida pelos poucos participantes que consideram os
partidos políticos como integrando a sociedade civil.
Para posterior reflexão ao longo da discussão, importa reter desta primeira leitura dos
resultados que as imagens, e acima de tudo as funções éticas e normativas atribuídas à
sociedade civil pela maioria dos participantes na pesquisa, são mais comuns em
abordagens teóricas do que nas empíricas, nas quais se encontram mais contribuições no
tocante a explicações e compreensões realistas do papel, natureza, carácter e finalidade
das formas de engajamento entre o Estado e a sociedade. A particularidade, aqui, tem a
ver com o fato de todas essas imagens serem construídas em torno do alcance do
objetivo maior dos participantes (facilmente extrapolado para a sociedade angolana em
geral), que é o alcance da paz social durável, pelo que a reconciliação entre os
angolanos surge quase sempre de imediato. A sociedade civil parece ser entendida,
assim, como um baluarte na luta pela consolidação da paz e preparação do terreno para
a convivência pacífica entre todos os angolanos, apesar das suas diferenças,
correspondendo ao espaço do diálogo e da inclusão, do respeito pela diferença, e da
tolerância, que permitiria evitar um retorno à guerra.
Considerando a natureza relacional do conceito, importa interpretar os vazios entre as
abordagens teóricas e as práxis da sociedade civil, prestando especial atenção aos
contextos e às conjunturas no âmbito dos quais a análise é feita, às relações entre o
Estado e os cidadãos, particularmente as organizações criadas pelos atores para interpor
formas alternativas de participação no processo de tomada de decisão e pressionar o
Estado a uma abertura mais abrangente e tendencialmente crescente do espaço público.
Nesse sentido, é necessário perceber a que critérios de pertencimento os participantes
recorrem para delimitar a inclusão na sociedade civil, e o porquê dessas escolhas.
2. Critérios de inclusão ou de pertencimento
Com base no pressuposto mais amplo da contextualização das imagens, contornos e
papéis atribuídos à sociedade civil em Angola, assumiu-se que as interfaces
público/privado, moderno/tradicional e formal/informal, seriam igualmente importantes
para a elaboração, pelos participantes, dos critérios de inclusão ou de pertencimento.
Devido ao contexto de Angola, assumia-se que os critérios de pertencimento a que os
participantes recorreriam para delimitar os contornos da sociedade civil conteriam
elementos destas três interfaces, partindo da ideia de que nelas se materializa a divisão
do país em diversos mundos, pela inexistência de pontes e modos coerentes de
articulação das ordens jurídicas prevalecentes - a constituição e o conjuntos de normas
do direito consuetudinário -, reduzindo as possibilidades de colaboração entre os atores
sociais e aumentando a probabilidade de eclosão de conflitos entre esses vários mundos,
pelos vazios devidos à ausência de laços resultantes de escolhas sociais entre espaços
político-jurídicos em aparente oposição. A ausência de articulação cria espaços sociais
instáveis, porque envolvem contingentes populacionais consideráveis – incluindo, entre
outras, as pessoas deslocadas das suas áreas de origem devido à guerra ou em busca de
melhores condições de vida, e que se fixaram na periferia dos principais centros urbanos
-, cujos problemas identitários se avolumam sem uma visível reação por parte dos
poderes públicos: de um lado, a modernidade truncada por uma ordem jurídica que se
pretende única, legal mas ilegítima, do outro lado, uma tradição plural bem enraizada de
ordens jurídicas legítimas, mas ilegais272.
Contudo, os resultados mostram que os critérios de pertencimento ou de inclusão mais
valorizados pelos participantes na pesquisa situam-se na interface público/privado,
Estado/não Estado, ou, dito de outra forma, definem-se na autonomia em relação a este,
na capacidade de influenciar o processo de tomada de decisões e as políticas públicas,
na promoção e exercício da cidadania, e na democratização da sociedade. A interface
moderno/tradicional merece alguns comentários, na medida em que a ele se recorre para
excluir instituições sociais – as autoridades tradicionais – da sociedade civil, o que
indica que, à primeira vista, a sociedade civil é entendida como uma estrutura moderna
do ponto de vista das soluções institucionais para organização da vida pública. A
interface formal/informal parece não ter sido considerada muito importante, talvez
devido ao elevado grau de informalidade na vida pública angolana.
A questão da formalização, ou seja, da legalização das organizações da sociedade civil
não parece constituir problema nem critério de inclusão em si. Por experiência própria,
os angolanos sabem reconhecer o papel que grupos e associações tiveram no passado,
nas lutas contra o regime colonial e o regime de partido único instalado após a
independência, e têm no presente, agregando interesses e opiniões sobre questões
fundamentais para a sua vida, buscando a integração da opinião da sociedade no
processo de tomada de decisão, como aconteceu com a Lei de Terras, a Lei Eleitoral, a
Estratégia de Combate à Pobreza, etc., na defesa dos direitos dos cidadãos, e no
aproveitamento de algumas oportunidades que se têm apresentado, principalmente após
2002, para conduzir o país da paz militar para a paz social.
272 SANTOS, Daniel dos (2003), op. cit. SANTOS, Daniel dos (2004), op. cit.
Para os participantes, os limites ou critérios de pertencimento que identificam as
organizações que constituem a sociedade civil em Angola, demarcam-nas acima de tudo
pela pertença ao domínio do privado, do civil, fora do âmbito do aparelho de Estado e
do governo. A exclusão de organizações militares, referida pela maioria, parece uma
preocupação relacionada com a história de guerra tão presente na vida dos angolanos,
indicando a necessidade de sublinhar o carácter “civil” dos seus constituintes. Outra
característica que parece remeter ao contexto angolano, principalmente à I República, é
a indicação do carácter apartidário ou de não filiação a partidos políticos, estes também
excluídos da sociedade civil pela maioria dos participantes. Apesar de destacarem que
as estruturas que a constituem se caracterizam pela capacidade organizativa, de
representação e de intervenção política, foi claramente indicado que as mesmas são
entendidas como não visando ou perseguindo o poder político.
Nas respostas às perguntas abertas sobre a constituição da, e os critérios de
pertencimento à sociedade civil, não foi feita nenhuma delimitação específica desta em
relação ao sistema econômico e ao mercado, o que parece indicar que os entendimentos
são formulados e se desenham seguindo modelos bipartidos entre sociedade e Estado.
Contudo, perante a lista de organizações e instituições apresentada, e em resposta à
solicitação de selecionarem os integrantes da sociedade civil, as empresas foram
excluídas pela maioria dos participantes, e, em alguns casos, também as associações
empresariais ou de patrões.
Na perspectiva da maioria dos participantes, integram a sociedade civil em Angola as
associações cívicas, as associações culturais, recreativas e desportivas, as associações de
moradores, as organizações comunitárias de base, os sindicatos, os movimentos sociais,
as organizações não-governamentais, as entidades religiosas, as associações de
produção e cooperativas, os grupos de interesse, e as comissões de bairro.
Merecem destaque algumas diferenças significativas entre os conjuntos de participantes
nas três cidades: em Malanje, não foram consideradas as associações profissionais,
indicadas por 87% das respostas em Luanda e 95% das respostas em Benguela. Por
outro lado, em Luanda, não foram incluídas as agências de desenvolvimento local,
indicadas por 63% das respostas em Benguela e 53% das respostas em Malanje. Numa
primeira reflexão, estas diferenças parecem indicar leituras diferenciadas sobre a
constituição ou abrangência da sociedade civil, influenciadas pelas culturas urbanas de
Luanda, a cidade capital cosmopolita na constituição da sua população majoritariamente
urbanizada, mais próxima do centro de decisão e do poder, e das outras duas cidades,
com visões que demonstram ter em comum uma maior proximidade com, e talvez até
uma maior valorização, das organizações de base da sociedade.
TABELA RESUMINDO AS RESPOSTAS SOBRE CONSTITUIÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL EM
ANGOLA (por número de indicações recebidas). INSTITUIÇÕES/
CIDADES LUANDA #& BENGUELA§ MALANJE#&
AS.CÍVICAS 58/60* 19/19* 27/32* AS.CULTURAIS 49 19 27 AS.MORADORES 49 19 27 AS.PROFISSIONAIS 52 18 16 OCB’S 47 18 23 SINDICATOS 44 16 18 MOV.SOCIAIS 50 16 23 ONG’S 54 15 26 ENT.RELIGIOSAS 40 14 25 AUT.TRADICIONAIS 12 14 14 AS.PROD/COOP 37 14 23 AG.DESENV.LOCAL 30 13 17 GRUPOSINTERESSE 42 12 19 COM.BAIRRO 41 11 25 PART.POLITICOS 8 7 3 EMPRESAS 18 6 10 G.AÇÃO.PARTID. 10 5 2 MEIOS COMUNIC. 27 3 10 AG.BI/MULTILAT. 5 1 4 TRIBUNAIS 2 - - FAA 2 - 1 PARLAMENTO 2 - 2
* participantes que responderam ao questionário 2, embora nem todos tenham respondido a todas as perguntas do questionário;
Luanda: (#) os integrantes das categorias de análise “poder local” e “setor informal” não responderam a este questionário;
(&) na categoria de análise “comunicação social” responderam ao questionário 2 apenas 5 dos 10 integrantes; Benguela:
(§) os integrantes das categorias de análise “poder local”, “comunicação social”, “entidades religiosas” e “setor informal” não responderam ao questionário 2;
Malanje: (#) os integrantes das categorias de análise “poder local” e “entidades religiosas” não responderam a este
questionário; (&) na categoria de análise “comunicação social” respondeu ao questionário 2 apenas 1, e na categoria “setor
informal” responderam 6 dos 8 integrantes.
De acordo com as opiniões dos participantes, e seguindo os critérios acima referidos,
não fazem parte da sociedade civil em Angola, os partidos políticos, as empresas
(embora poucos participantes tenham indicado que as empresas privadas fazem parte),
os grupos de ação partidários, os meios de comunicação social (poucos participantes
consideraram que os meios de comunicação privados fazem parte da sociedade civil,
estabelecendo uma ligação entre estes e a veiculação das posições da oposição), as
autoridades tradicionais, as agências bi e multi-laterais, os tribunais, as forças armadas,
e o parlamento.
Cruzando as opiniões emitidas sobre a lista apresentada aos participantes com as
respostas à pergunta aberta sobre a constituição da sociedade civil em Angola do
questionário 2, identificam-se outros integrantes, para além dos listados. Em Luanda, as
universidades, as fundações, as redes de informação, os formadores de opinião
(intelectuais, individualidades) “na condição de não serem manipulados/influenciados
por disciplinas ou lealdades partidárias, de caserna ou de sacristia”. Em Benguela, os
clubes (muito comuns naquela cidade), e as associações de naturais e amigos (de
cidades, de regiões, ou temáticas)273. Em Malanje, a família, os clubes, e as sociedades
não-governamentais. A inclusão da família no conjunto das instituições e organizações
sociais identificadas com a sociedade civil pode atribuir-se ao fato de a família ter
constituído o refúgio seguro, a protetora e a provedora de serviços básicos na ausência
de instituições públicas que garantissem tais funções, num ambiente de bastante
insegurança, politicamente turbulento e repressivo, que dominou a vida política em
Malanje até 2002, altura em que a população exigiu do presidente da República em
visita à cidade, a demissão imediata do então governador provincial274.
3. Os Papéis atribuídos à sociedade civil
Os participantes em Luanda destacaram como atribuições da sociedade civil as
seguintes: defesa de interesses de grupos ou de todos os cidadãos; defesa dos direitos de
grupos ou mais amplos, como os direitos humanos; identificação de interesses comuns
aos membros de grupos e entre os grupos; educação para a cidadania, para o exercício
de direitos e o cumprimento dos deveres; emancipação cidadã (“cidadãos pensarem
pelas suas próprias cabeças”) e participação no processo de tomada de decisão;
273 Segundo um participante, os partidos políticos “civis” também pertencem à sociedade civil: o sentido contido
nesta opinião parece relacionar-se especificamente com o contexto angolano, fazendo alusão à existência de forças militares e de guerrilha na UNITA, até há pouco tempo atrás, e relacionando as Forças Armadas Angolanas (o exército nacional) com o partido no poder, devido à separação pouco clara entre o Estado e o partido no poder herdada da I República, período durante o qual Angola foi governada por um regime político no qual não havia
separação entre Estado e partido, ou melhor, em que o partido tinha uma ascendência evidente e assumida sobre o Estado.
274 Este caso chama a atenção pelo fato de não ser comum, em Angola, o atendimento das reivindicações populares pelo poder público. Algumas opiniões vão no sentido de considerar que houve uma utilização da vontade popular por
interesses do partido no poder em Malanje.
reconhecimento e respeito por pessoas e grupos; inclusão de grupos excluídos; criação
de parcerias entre o Estado e a sociedade e entre as organizações da sociedade entre si;
promoção da cooperação entre indivíduos, organizações e instituições; influência,
lobbying e pressão; representação de interesses de grupos e reivindicação de direitos;
debate de assuntos de interesse público, denúncia, divulgação / disseminação de
informações de interesse público; promoção da mudança social, económica e política; e
troca de experiências.
Em Benguela, os participantes consideram como atribuições da sociedade civil as
seguintes: sensibilização e motivação da população; defesa de direitos da população e
de interesses de grupos; desenvolvimento do capital humano e integração social; criação
de parcerias; informação e educação para a cidadania; eliminação da desigualdade e da
injustiça sociais; fiscalização das ações governamentais; criação de espaços de
discussão e debate de ideias e troca de experiências; defesa de direitos e de interesses.
Em Malanje os participantes destacaram as seguintes atribuições para a sociedade civil:
organização das pessoas e grupos com vista à defesa dos seus direitos e interesses;
integração e inclusão de todos (associações e grupos) no processo de desenvolvimento;
criação de espaços de expressão de pensamentos e ideias, de debate e de concertação;
organização da discussão política e da participação no processo de tomada de decisões;
luta pela justiça social, defesa e promoção dos direitos humanos, e por mudanças
sociais; influência e pressão na produção de legislação e nas políticas públicas; luta pela
Paz; combate à pobreza e resolução dos problemas da população; contribuição para a
mudança de comportamentos; cooperação com o governo e outras instituições estatais.
Quanto às funções relacionadas com essas atribuições, as respostas foram as seguintes:
em Luanda, sensibilização, mobilização, organização, união, integração cívica e social,
representação, liderança, educação / formação / capacitação dos cidadãos e suas
organizações, esclarecimento e divulgação de informações, formação de opinião,
influência da opinião pública, intervenção, manifestação, reivindicação, crítica e
denúncia. Em Benguela, informar, formar, sensibilizar / motivar / mobilizar, ajudar /
apoiar, questionar, criticar, sugerir e influenciar, intervir e representar, criar espaços de
discussão e de debate de ideias, de troca de experiências e de construção de parcerias,
defender direitos e interesses. Em Malanje, agrupar / organizar pessoas e grupos /
incluir, informar, formar, ajudar / apoiar / promover a solidariedade e ajuda mútua,
intervir / participar / representar / “dar voz”, debater / questionar, cooperar / criar
parcerias / contribuir, influenciar / pressionar.
As respostas indicam diversas atribuições e funções de organização e coordenação da
ação coletiva na esfera entre o cidadão e o Estado. As mesmas desenvolvem as ideias
incorporadas nas respostas à primeira pergunta, e não apresentam diferenças
substanciais entre si, nem relativamente aos papéis comumente atribuídos à sociedade
civil em abordagens referidas a outros contextos, a não ser no que respeita à prioridade
atribuída à “reconciliação entre os angolanos e consolidação da Paz”. Importa ainda
salientar a diversidade de funções, coincidentes com as que surgem na literatura sobre o
tema, mas que apresentam, em geral, uma conotação normativa, parecendo corresponder
mais às enormes expectativas que os participantes depositam na sociedade civil em
Angola, do que à representação de experiências realmente vividas.
Parece possível, contudo, perceber como que uma estratificação, ou seja, níveis
diferenciados de capacidades, de obrigações, e de resultados esperados, na identificação
das atribuições e funções das organizações da sociedade civil pelos participantes,
parecendo existir um mais elevado grau de expectativas nos participantes de Luanda, e
níveis mais incipientes / modestos em Malanje.
4. Relações dos participantes com a sociedade civil
A maioria dos participantes sente-se “parte” da sociedade civil, integrando uma ou mais
das organizações identificadas como suas constituintes. Contudo, parece relevante
destacar que, em Luanda, nenhum dos 7 jovens se sente parte da sociedade civil nem
pertence a qualquer tipo de associação, o que pode ser interpretado como indicador de
um certo individualismo, de ausência de referências sobre vida associativa e falta de
cultura de participação na vida pública, de desinteresse na política em geral e um certo
desencanto em relação à situação prevalecente no país. Em outras respostas dos
questionários, este grupo etário mostrou-se muito céptico e crítico, relativamente ao
momento que Angola vive.
Poucos participantes limitaram-se a qualificar essa relação como “boa”, “ótima” ou de
“parceria”, sem darem mais detalhes sobre a mesma. Para além dos problemas inerentes
à mobilização da ação coletiva, esta posição parece enquadrar-se no âmbito das
respostas politicamente corretas, tão comuns em pesquisas realizadas em Angola275, e
em geral atribuídas à pouca presença de discursos não oficiais no espaço público, à falta
de cultura de debate, e à não valorização da opinião própria e dos outros.
As respostas mostram-se coerentes com as dadas a outra pergunta do primeiro
questionário, segundo as quais mais de 80%, em média, dos participantes nas três
cidades pertence a algum tipo de associação: em Luanda, 78% pertence a algum tipo de associação em Benguela, 87,5% pertence a algum tipo de associação em Malanje, 75% pertence a algum tipo de associação.
5. Relações entre os constituintes da sociedade civil
Em Luanda foram identificadas as seguintes relações: inter-ajuda, interação,
solidariedade e cooperação; coordenação de estratégias quando existem interesses e
objetivos comuns; debate, intercâmbio de ideias, troca de informações e de
experiências, e elaboração de estratégias comuns; criação de fora, redes, plataformas de
concertação, debates, encontros e seminários; criação de espaços de debate, reflexão e
de solidariedade; espaços de debate e de informação; diálogo e negociação. Mas
também foram indicadas relações de competição, indiferença ou mesmo de
antagonismo, de desconfiança, e problemas de protagonismo, separatismo e
sobreposição, bem como dificuldades de mobilização e de colaboração, competição por
reconhecimento e recursos.
Em Benguela, mereceram destaque as seguintes relações: aproximação, troca de ideias e
experiências; cooperação, parceria, em actividades com os mesmos objetivos; respeito
mútuo; criação de fora, redes e parcerias. Mas também foram identificadas a
inexistência de entrosamento e de união prevalecendo o “desafio” como forma de
relacionamento, relações “não uniformes, instáveis” que vão da cooperação à acusação
mútua, e relações informais, dinâmicas e voluntárias.
Em Malanje, os participantes expressaram as seguintes ideias sobre as relações
existentes entre os constituintes da sociedade civil: aproximação, através de encontros, 275 CARVALHO, Paulo de. (2002), CARVALHO, Paulo de. (2002), Angola: Quanto Tempo Falta para Amanhã. Reflexões sobre as Crises Política, Econômica e Social. Oeiras, Editora Celta.
debates, assinatura de protocolos e estabelecimento de parcerias; conhecimento, troca de
ideias e experiências, identificação de interesses e causas comuns; união/comunhão,
através da criação de consciência de grupo, e de contatos permanentes; inter-ajuda,
cooperação, complementaridade e concertação; criação de espaços/sistemas de
concertação – alianças, fora como o FOSCIM (Fórum das Organizações da Sociedade
Civil em Malanje), redes, clubes. Mas foram ainda identificadas “discordâncias que
levam ao afastamento de um ou mais membros”, ou seja, conflitos e discussões internas
que, por vezes, culminam em desacordos que podem dar origem a dissidências.
De uma forma geral, e apesar das debilidades identificadas, foram majoritariamente
indicadas formas de aproximação, organização, debate e busca de soluções para os
problemas comuns, de âmbito mais ou menos limitado, tanto do ponto de vista temático,
quanto geográfico. Em Malanje a avaliação mostra-se positiva, reconhecendo-se
contudo como “frágil a articulação entre as organizações / instituições que constituem a
sociedade civil”, o que pode relacionar-se com o estágio mais embrionário de
desenvolvimento de organizações da sociedade civil naquela cidade. Contrariamente ao
que aconteceu em Luanda e em Benguela, não houve qualquer referência a relações de
concorrência / competição / desentendimento, sendo enfatizadas as formas de
aproximação, de conhecimento mútuo, de troca de ideias e experiências, de discussão de
interesses específicos com vista ao alcance do entendimento, à construção de consensos,
“à ação conjunta via parcerias, evitando atropelos”.
Em Benguela, foi lembrado que os elementos constitutivos da ideia de sociedade civil
se encontram também, para além dos locais de reunião e encontro habitualmente
citados, “em reuniões programadas por líderes tradicionais, políticos ou governantes” –
sugerindo que estes seriam elementos dinamizadores / catalizadores da aproximação
entre as organizações da sociedade civil -, e que as cerimónias e os óbitos funcionam
como espaços de aproximação entre os elementos constitutivos da sociedade civil.
6. Dinamismo e visibilidade da sociedade civil
Em Luanda as opiniões vão no sentido de considerar a sociedade civil como pouco
dinâmica e pouco visível (15), emergente (18), em vias de crescimento (8), visível mas
pouco dinâmica (4) e pouco visível mas dinâmica (3). Entretanto, essa visão pode ser
entendida de duas maneiras: aqueles que, embora reconhecendo debilidades,
fragilidades, ausências, omissões, falta de protagonismo, receio/medo, etc., reconhecem
que a sociedade civil está em expansão, se fortalecendo e reforçando as suas
capacidades de mobilização, intervenção e influência, conquistando progressivamente
mais espaço público, anteriormente praticamente colonizado pelo Estado. Por outro
lado, aqueles que apontando essas mesmas debilidades, fragilidades, ausências,
omissões e falta de protagonismo, o fazem de forma céptica, quase estática, como
revelam as respostas “semi-apática, influenciada pelo medo”, e “pouco atuante, porque
‘encalhada’ no contexto atual do país”. Poucos (4) foram mais otimistas, afirmando que
a sociedade civil está fazendo o seu papel, não só de forma responsável, participativa,
criativa, como até bem-humorada (segundo um deles). Dos que não responderam, 3
pertencem à categoria “jovens”.
Em Benguela, apenas 3 participantes consideram a sociedade civil dinâmica e visível,
“muito eficaz”, “com visão sobre os grandes problemas do país” (embora sem recursos
para agir em conformidade) ou “com grandes poderes” (mas ainda com muito por
fazer). Sete (7) participantes consideram-na pouco dinâmica e quase nada visível ou
mesmo inexistente. Acrescentaram que precisa de: estabilizar e sentir-se como tal; mais
informação e formação; mais intervenção no processo de tomada de decisões; conhecer
melhor seus direitos e deveres; ser mais eficiente e eficaz. Os demais participantes,
dividiram as suas opiniões em distintos níveis de dinamismo e visibilidade: há
dinamismo e visibilidade, mas há poucas aberturas e muitas barreiras à sua ação; algum
dinamismo, mas ainda sem a correspondente visibilidade; grande visibilidade mas
pouco dinamismo principalmente em situações de confrontação com o governo; a
intervenção ao serviço dos interesses fundamentais das comunidades amplia a
repercussão da sua participação; apesar do seu dinamismo e visibilidade, “rema contra a
maré” sendo muitas vezes conotada com “partidos políticos”. Um afirmou que “ainda é
cedo para diagnosticar”.
Em Malanje, oito (8) dos 30 respondentes fazem uma avaliação positiva da sociedade
civil, argumentando que já se vêm resultados do seu trabalho; é dinâmica e com visão
ampla (só que necessita de apoio para cumprir seus objetivos); bastante dinâmica,
influencia positivamente com propostas de políticas para o país (o problema é que não
sabe para onde vai...); tem mais dinamismo no meio rural. Outros, estabelecem uma
comparação com o passado recente: já deu passos importantes participando na definição
de políticas para o desenvolvimento, melhorou bastante (comparando com 2 anos atrás),
existem muito mais associações em que identificamos as atividades com os seus
compromissos. Entretanto, quinze (16) participantes têm uma opinião mais negativa /
pessimista / crítica relativamente ao dinamismo e visibilidade da sociedade civil,
considerando que é passiva, não dando continuidade às atividades; fechada em torno
dos seus interesses; nem dinâmica nem visível; muito fraca, não aproveita as
oportunidades, tem pouca experiência na criação de estratégias; sofredora, desenrascada
e com pouco dinamismo; lançada à sua sorte, tem de desenrascar; desconhecimento, por
parte dos seus membros, do seu papel; rápida (do ponto de vista do dinamismo), mas
lenta (do ponto de vista da visibilidade); atemorizada, sem convicção, necessita de
muito exercício de cidadania e educação cívica; ainda não é muito sólida, poderá dar-se
um salto qualitativo com a instituição do poder local; muitas das suas organizações
ainda andam á procura do norte...; é fraca, de ambos os pontos de vista, porque não há
participação dos jovens nessa causa. Três (3) participantes optam por não qualificar a
sua resposta, limitando-se a considerar que é razoável; cada um tem seu dinamismo;
está no bom caminho. Não responderam a esta pergunta três (3) jovens.
Resumindo, a maioria dos participantes considera que a sociedade civil em Angola é
pouco dinâmica e quase nada visível, sendo muito poucos os que consideram que é
dinâmica e visível; entre estas duas posições, as opiniões dividem-se por distintos níveis
de dinamismo e visibilidade, principalmente levando em linha de conta as dificuldades,
barreiras e constrangimentos existentes no cenário angolano, e que dificultam a
expansão e fortalecimento da sociedade civil. Duas opiniões foram no sentido de
considerar que “ainda é cedo” para fazer este tipo de avaliação.
Confrontando os papéis / atribuições e funções identificados para a sociedade civil, com
as percepções sobre o seu dinamismo e a sua visibilidade, começam a desenhar-se
diferenças significativas entre as expectativas expressas quando se trata de expor as
ideias sobre o tema em respostas abertas, e as avaliações feitas sobre a mesma sociedade
civil quando as perguntas são dirigidas a um ou outro dos seus atributos,
especificamente. Várias são as interpretações para esta contradição, desde o recurso a
respostas politicamente corretas como refúgio para encobrir a verdadeira opinião sobre
as questões perguntadas, passando pela ausência de experiências de vida democrática, o
recurso a figuras ou ideias emprestadas da retórica dos discursos oficiais ou outros, até à
expressão de utopias que identificam a sociedade civil como o motor da mudança, ou,
ainda, a influência do contexto sócio-político e cultural de Angola, particularmente os
constrangimentos à abertura plena e universal do espaço público, tão longamente
ocupado pelas instituições do Estado.
7. Satisfação com o desempenho da sociedade civil
A maioria dos participantes na pesquisa, nas 3 cidades, mostra-se insatisfeita com o
desempenho da sociedade civil em Angola, argumentando que: está muito dispersa;
precisa crescer, organizar-se e interiorizar o seu papel na sociedade; precisa impor-se
como interlocutora, agir com protagonismo e liderança no papel de contra-poder ao
Estado e no confronto do governo; deve mudar de atitude e de comportamento e
consciência: ter visão de futuro e aprender com experiências de outros países; ainda atua
com receio e com ressentimento; precisa conhecer melhor a legislação vigente e
exercitar a democracia no seu seio; ainda é muito tímida e conformada.
Poucos, 38 participantes (15 em Luanda, 1 em Benguela e 13 em Malanje), mostram-se
satisfeitos, alegando as seguintes razões: apesar dos constrangimentos e das dificuldades
de todo o tipo, até da guerra, procurou organizar-se; tem contribuído muito para a
reconciliação/aproximação entre os angolanos; tem estado presente e feito sentir sua
opinião em defesa dos mais desfavorecidos; mostra confiança no futuro e vontade de
construir uma sociedade mais justa e equitativa; as poucas organizações existentes são
sérias; tem contribuído para mudanças significativas nas políticas do Estado; as
organizações existentes são como “molas impulsionadoras” para o desenvolvimento;
está conquistando seu espaço; é a possível. Em Luanda 8 participantes não responderam
a esta pergunta.
Em resumo, foram manifestadas três posições em resposta a esta pergunta: os que
demonstram satisfação, os que demonstram insatisfação, e um pequeno número que não
respondeu. Cerca da quinta parte das respostas mostraram satisfação com o desempenho
da sociedade civil, alegando que apesar dos constrangimentos e das dificuldades de todo
o tipo, principalmente da guerra, está conquistando seu espaço. Segundo estas opiniões,
as poucas organizações existentes são sérias, têm contribuído para mudanças
significativas nas políticas do Estado, agindo como “molas impulsionadoras” para o
desenvolvimento do país. Houve quem se considerasse satisfeito “porque esta é a
sociedade civil possível no atual contexto angolano”.
Mais uma vez, a confrontação das respostas a esta pergunta com as obtidas às perguntas
abertas, mostra diferenças significativas entre as expectativas ou aspirações acopladas
às imagens descritas sobre a sociedade civil num sentido normativo, e as opiniões dadas
às perguntas dirigidas/concretas, como as que pediam uma avaliação sobre o dinamismo
e a visibilidade da sociedade civil e o seu desempenho.
8. Influência do contexto angolano na sociedade civil
As respostas à pergunta sobre a influência do contexto angolano na constituição e no
funcionamento da sociedade civil, divididas em três categorias, os que consideram que o
contexto afeta, os que acham que não afeta, e os que preferiram omitir sua opinião,
fornecem elementos para um melhor entendimento sobre as relações entre a sociedade e
o Estado em Angola. Em síntese, os resultados indicam que:
a) a maioria (79) que respondeu à pergunta (44 em Luanda, 13 em Benguela e 22
em Malanje) considera que o contexto angolano afeta o desenvolvimento da
sociedade civil;
b) 18 defendem opinião contrária, que o contexto angolano não afeta o
desenvolvimento da sociedade civil (7 em Luanda, 4 em Benguela e 7 em
Malanje);
c) 12 não responderam à pergunta (10 em Luanda, a maioria da categoria “jovens”,
1 em Benguela e 1 em Malanje).
Os principais constrangimentos, obstáculos e dificuldades identificados pelos que
defendem que o contexto afeta a constituição e o funcionamento da sociedade civil são a
falta de transparência na condução do processo de democratização, a pouca abertura
política e a tentativa de “silenciar”, “controlar” ou “paralisar” a sociedade civil, a
inexistência de uma cultura de participação, interação e articulação dos vários grupos e
estratos sociais, a arbitrariedade no exercício do poder pelas instituições do Estado, os
limites impostos pelo quadro jurídico-legal vigente e as dificuldades financeiras e
burocráticas à criação de organizações autónomas de cidadãos, o individualismo
crescente (em geral atribuído aos efeitos do longo período de guerra civil), a pobreza
que atinge uma grande percentagem de angolanos, a discriminação de diversos grupos
sociais e a desigualdade social.
Os principais argumentos dos que consideram que o contexto angolano não afeta a
sociedade civil parecem enquadrar-se numa visão minimalista de democracia, ao
considerar que “Angola é um Estado de Direito Democrático” e que existem
instrumentos legais e orgãos do Estado para a legalização de qualquer associação, bem
como abertura política, ou ao afirmar que “a Constituição defende a ‘sociedade civil’”,
ou ainda que “o Governo de Angola reconhece a sociedade civil como parceira”, ou que
“a Assembleia Nacional tem uma Comissão de Petições para ouvir queixas e
reclamações dos cidadãos”. Outro tipo de argumento estabelece comparações no tempo,
“o contexto era adverso no passado, na era colonial e até à morte do Savimbi e ao
cessar-fogo em 2002”.
III. ELEMENTOS DA CULTURA CÍVICA EM ANGOLA
Com vista a complementar, fundamentar e discutir, as imagens apresentadas sobre a
sociedade civil em Angola, a pesquisa incluíu um questionário semi-estruturado
destinado à recolha de elementos para avaliar as predisposições dos participantes para a
solidariedade, o associativismo e a ajuda mútua, a confiança nas pessoas e nas
instituições, o interesse e a participação na política, e as relações de vizinhança,
entendidos como indicadores de ideais, sentimentos e práticas de cultura cívica.
1. Interesse e participação na política
As respostas a um conjunto de perguntas para compreender as relações dos participantes
com o processo político permitem afirmar que a maioria mostra muito ou algum
interesse em política, apesar de existirem diferenças entre os conjuntos de respostas,
sendo esse interesse mais evidente em Luanda do que nas outras duas cidades. Os
círculos de amizade são preferidos em relação aos círculos de colegas de trabalho, pela
maioria dos participantes, para a ocorrência de conversas sobre temas políticos.
Também neste caso, existem diferenças na frequência desse tipo de conversas entre as 3
cidades: em Luanda registrou-se a maior percentagem (55%) de participantes
demonstrando “muito interesse” em política; em Benguela, a opção mais escolhida
(45%) foi a de “algum interesse”, e em Malanje prevaleceu a opção “não muito
interesse” em 49% das respostas. Juntando as opções “muito interesse” e “algum
interesse”, a posição das 3 cidades foi: Luanda – 86%, Benguela – 76% e Malanje –
45%.
A discussão e/ou conversa sobre a situação económica e social do País mobiliza mais
atenções e disponibilidades dos participantes do que a conversa e/ou discussão sobre
política, sendo também o círculo de amigos o mais mobilizador para este tipo de
conversa ou discussão, quando comparado com o círculo de colegas de trabalho.
Relativamente à frequência da discussão e conversa sobre política, as respostas mostram
diferenças significativas entre as três cidades: ocorrem frequentemente em Luanda,
entre amigos 61% e entre colegas 52%. Nas outras duas cidades, essa conversa ocorre
apenas ocasionalmente em Benguela, 74% entre amigos e 76% entre colegas, e em
Malanje, 72% entre amigos e 74% entre colegas.
Os participantes sentem-se mais à vontade conversando ou discutindo sobre a situação
económica e social do país do que sobre política, como se pode verificar pelas respostas
obtidas nas três cidades. E mais, não existem diferenças significativas entre as três
cidades, pois como mostram os resultados a conversa sobre a situação econômica e
social do País ocorre frequentemente. Os dados obtidos foram: dos Luandenses, 84%
fazem-no entre amigos e 76% entre colegas, dos Benguelenses, 81% fazem-nos entre
amigos e 72% entre colegas, e dos Malanjinos, 50% fazem-no entre amigos e 60% entre
colegas.
Ocasionalmente os participantes procuram convencer familiares, amigos e colegas de
trabalho a envolverem-se em assuntos relacionados com a situação política económica e
social do País, embora o façam frequentemente quando se trata de questões relacionadas
com a situação econômica e social do país, o que se mostra coerente com as respostas
anteriores, e sugere que ainda se mantém um certo retraimento das pessoas no tocante a
tornar públicas as suas opiniões sobre política. Os dados sobre o hábito de convencer
familiares, amigos e colegas de trabalho a envolverem-se mais com os assuntos
relacionados com a situação política, económica e social do País, indicam que os
Luandenses são mais mobilizadores, fazendo-o frequentemente 44% e ocasionalmente
em 41% das respostas, perfazendo 85%; os Benguelenses mostram menos preocupação
com tal mobilização, uma vez que 39% o fazem ocasionalmente e 32% frequentemente,
perfazendo 71%; os Malanjinos apresentam a mesma proporção total que Luanda, 85%,
mas distribuída de forma distinta, com 47% envolvendo-se ocasionalmente e 38%
frequentemente. De notar que a maior percentagem das respostas à opção “nunca” foi
registrada em Benguela, com 13% das respostas.
Não parece haver, contudo, um manifesto interesse em aumentar os níveis de
participação dos cidadãos nos processo de tomada de decisão e de gestão da coisa
pública. Para além do receio de retaliações por expressar opiniões sobre questões
políticas, cristalizada que parece a ideia de que a política é assunto reservado aos
membros do sistema político, alimentada pela pouca abertura do espaço público que
inibe o desenvolvimento de uma cultura de debate e a valorização da própria opinião e a
dos outros, os custos da ação coletiva parecem pesar na opção pela não participação
direta: numa sociedade que vive no curto prazo, no imediatismo por encontrar soluções
para os problemas de sobrevivência no dia-a-dia, a disponibilidade de tempo para
participar é um luxo de que a maioria não dispõe. Por outro lado, sentimentos de
inevitabilidade e de resignação, parecem também influenciar esta escolha, percebida
como a mais segura.
Atendendo à importância da informação na participação dos cidadãos no espaço público
e na formação da opinião pública sobre as questões que mais preocupam os angolanos,
importa considerar nesta discussão os dados do Índice de Acesso à Informação276,
construído a partir dos dados de uma pesquisa quantitativa realizada em 2003 relativos
às 3 cidades abrangidas pela pesquisa de campo.
Os resultados, por cidade, são os seguintes:
a) Luanda:
- Com acesso à informação - 11%, de uma amostra composta de 1 506
respondentes, ouve notícias na rádio, lê os jornais e assiste televisão,
numa base de 5 a 7 dias por semana;
- Com acesso limitado à informação - 44%, ouve notícias na rádio, lê os
jornais e assiste televisão, de 2 a 5 dias por semana;
276 O rationale da construção deste Índice consta do Anexo Metodológico, pp.24-27.
- Sem acesso à informação – 45%, ouve notícias na rádio, ê os jornais e
assiste televisão de 0 a 2 dias por semana.
b) Benguela:
- Com acesso à informação - 3%, de uma amostra composta de 1 506
respondentes, ouve notícias na rádio, lê os jornais e assiste televisão, de 5
a 7 dias por semana;
- Com acesso limitado à informação - 23%, ouve notícias na rádio, lê os
jornais e assiste televisão, de 2 a 5 dias por semana;
- Sem acesso à informação – 74%, ouve notícias na rádio, lê os jornais e
assiste televisão de 0 a 2 dias por semana.
c) Malanje:
- Com acesso à informação - 4%, de uma amostra composta de 1 506
respondentes, ouve notícias na rádio, lê os jornais e assiste televisão, de 5
a 7 dias por semana;
- Com acesso limitado à informação - 27%, ouve notícias na rádio, lê os
jornais e assiste televisão, de 2 a 5 dias por semana;
- Sem acesso à informação – 69%, ouve notícias na rádio, lê os jornais e
assiste televisão de 0 a 2 dias por semana.
A mesma pesquisa quantitativa277 qualifica o acesso dos angolanos à informação pelos
meios de comunicação social:
- cerca de 30% dos cidadãos não têm acesso à informação via rádio, jornal ou
televisão numa base semanal, e apenas 3% têm acesso numa base diária (...),
- existe uma correlação positiva entre os níveis de acesso à informação e de
incerteza na neutralidade dos meios de comunicação, durante as eleições (p. 11)
- o nível de confiança nos jornalistas é baixo: 60% dos que têm acesso à
informação em Luanda, e 50% nas restantes províncias, revelaram que não iriam
confiar no que os jornalistas mostram, dizem ou escrevem (p.12).
Contudo, as limitações traduzidas por estes indicadores não implicam que as pessoas se
tenham acomodado ao status quo, como o demonstram as respostas a outras perguntas
277 IRI (International Republican Institute). (2003), “Expectativas dos Angolanos em Relação às Próximas Eleições”. Relatório da pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Social (A-IP). Luanda.
da pesquisa. Por exemplo, solicitados a escolher as três afirmações que melhor
descrevem a situação do País (de 8 possíveis, escolhidas no período de Abril de 2002 e
Outubro do mesmo ano, data da preparação dos questionários, entre as mais citadas nos
orgãos de comunicação social do país), as respostas dos participantes indicam não
apenas insatisfação, mas também a necessidade de mudanças:
LUANDA BENGUELA MALANJE O sistema econômico precisa mudar radicalmente
12%
14%
7,5%
O governo deveria ser mais aberto às mudanças públicas
13%
9%
14%
É necessário criar mais oportunidades de negócios e empregos
13%
27%
20%
Precisamos de uma justiça mais justa e ao alcance de todos
21%
16%
22%
O sistema político precisa de reformas profundas
14%
9%
8%
Estado e sociedade deveriam trabalhar em parceria
12%
11%
18%
A sociedade está muito dividida e não consegue apresentar-se como parceira credível
10%
7%
7,5%
Os mecanismos sociais de auscultação criados são ineficazes
5%
7%
3%
No conjunto das respostas nas 3 cidades, os resultados são:
1º. É necessário criar mais oportunidades de negócios e de empregos (60%)
2º. Precisamos de uma justiça mais justa e ao alcance de todos (59%)
3º. Estado e sociedade deveriam trabalhar mais em parceria (41%).
Existem diferenças visíveis entre as opções nas três cidades, que mais à frente serão
analisadas; entretanto, para além de expressarem insatisfação com a situação atual e a
necessidade de mudança em sentido amplo, estas escolhas parecem indicar os caminhos
através dos quais essas opções deveriam ser concretizadas. Sendo a “mudança” o eixo
temático mais amplo das frases escolhidas, a ideia contida na seleção destas frases
visava aferir da necessidade dessa mudança pressuposta e perceber de que forma, com
que objetivos e seguindo que percurso, os participantes projetavam essa mudança.
Considerando as oito frases selecionadas, as opções poderiam ter simplesmente
indicado a necessidade de mudanças, tanto na perspectiva política quanto na perspectiva
econômica, incluindo ou não a necessidade de mudança no sistema judicial. As
respostas obtidas, contudo, parecem mostrar que foram escolhidas frases que indicam
não apenas a necessidade de mudança, mas qualificam essa mudança, ou seja, ao
escolher “é necessário criar mais oportunidades de negócios e empregos” e não apenas
“o sistema económico precisa mudar radicalmente”, e também na escolha de “Estado e
sociedade deveriam trabalhar em parceria” em lugar de apenas indicar que “o sistema
político precisa de reformas profundas”. Por outro lado, a escolha da frase “precisamos
de uma justiça ‘mais justa’ e ao alcance de todos”, acrescenta a essa necessidade de
mudança a perspectiva de equidade social, ao defender a igualdade de condições de
acesso à justiça para todos os angolanos. A percepção da intencionalidade de expressar
a necessidade de mudança nas relações entre o Estado e a sociedade parece coerente
com a fraca incidência de escolha da frase “a sociedade está muito dividida e não
consegue apresentar-se como parceira credível”, muito presente nos discursos oficiais,
quando pretendem justificar a ausência ou a fraca inclusão da sociedade ou de grupos
dentro desta, no processo de tomada de decisão.
Por outro lado, a indicação de que essas relações se devem pautar por uma nova
distribuição dos papéis sociais pode ser a razão pela qual a frase “os mecanismos sociais
de auscultação criados são ineficazes” praticamente não foi escolhida. A reduzida
importância atribuída a esta afirmação pode ser interpretada como pouco interesse em
participar diretamente nesse processo de mudança, o que se mostra coerente com outros
resultados desta e das outras duas pesquisas realizadas na mesma altura278, cujas
conclusões parecem validar a última interpretação apresentada.
Os resultados do Índice de Participação Política279 construído a partir da base de dados
da pesquisa sobre a Expectativa dos Angolanos em relação às próximas Eleições,
indicam os seguintes níveis médios de participação:
Participação política ativa – 13%
Média participação – 27%
278 IRI (International Republican Institute). (2003), op. cit. 278 NDI (National Democratic Institute for International Affaires). (2003), op. cit. 279 O rationale da construção deste Índice de Participação Política consta do Anexo Metodológico, pp. 19-22.
Baixa participação – 32%
Muito baixa a nula participação – 28% .
Estes resultados indicam que a maioria das respostas àquela pesquisa (60% de uma
amostra de 2 514 cidadãos de Luanda, Benguela e Malanje) se enquadra nas categorias
de Baixa a Muito Baixa, ou Nula participação política. As causas ou justificações para a
aparente contradição entre o reconhecimento (ou mesmo a exigência) da necessidade de
amplas mudanças nos sistemas político, econômico e judicial, e a falta de interesse num
envolvimento participativo direto, parecem variadas e serão discutidas no próximo
capítulo.
2. Confiança nas pessoas e nas instituições
Os níveis de confiança na sociedade angolana parecem muito baixos e os seus efeitos
são sentidos no quotidiano através dos elevados custos de transação devidos à
expectativa do não cumprimento dos acordos ou contratos firmados ou apalavrados, e à
ineficiência das instituições em geral, e particularmente as instituídas do poder de julgar
e impor sanções à falta de cumprimento dos compromissos assumidos280. Tanto em
relação à confiança nas pessoas, quanto nas instituições, as opções escolhidas pelos
participantes na pesquisa confirmam esta avaliação.
A grande maioria das respostas nas três cidades privilegiou opções que evidenciam um
baixo nível de confiança nas pessoas: (38%) demonstram ser, no mínimo, cautelosos e
precavidos nas suas relações com outras pessoas, enquanto (33%) depositam confiança
apenas nos conhecidos. Só ¼ dos participantes considera que “a maior parte das pessoas
é confiável”, e muito poucos afirmaram “não ser preciso ser muito cauteloso”. LUANDA BENGUELA MALANJE A maior parte é confiável 25% 10% 9% Não é preciso ser muito cauteloso 14% 2,5% 12% Só confio em quem conheço 29% 32,5% 38% “O seguro morreu de velho” 27% 50% 38% Não sei 5% 5% 3%
Relativamente à confiança nas instituições, as respostas indicam que as instituições
mais confiáveis são a Igreja, as associações cívicas, as autoridades tradicionais, as
forças armadas e as ONG’s. Parece importante detalhar um pouco mais as respostas 280 NORTH, Douglas. (1990), Institutions, Institutional Change and Economic Performance. Cambridge, Cambridge
University Press
obtidas para perceber a importância diferenciada atribuída pelos participantes às
instituições nas quais depositam confiança, e procurar entender as razões dessa
distribuição.
LUANDA BENGUELA MALANJE
M B NM N M B NM N M B NM N Igreja 32 19 14 1 21 6 3 1 17 9 2 -
Governo 2 5 43 16 7 6 12 3 3 5 15 1 FAA 11 23 26 3 16 8 4 1 8 6 7 1 Justiça 4 4 56 13 6 3 16 4 5 5 15 1 Imprensa 8 13 37 6 7 7 14 1 2 7 13 - Sindicatos 5 8 38 13 4 5 12 4 8 4 6 2 Assoc.Cív. 11 31 21 1 9 9 9 2 8 7 4 - Parlamento 4 6 41 14 6 9 11 2 7 2 8 2 ONG’s 8 21 36 - 11 6 10 2 12 11 3 - Serv.Público 1 3 39 21 8 3 14 2 4 4 10 1 Empresas 5 10 39 8 6 5 16 - 2 4 10 1 Part.Políticos 4 1 36 22 1 1 22 3 5 1 11 4 Aut.Tradicio. 10 27 23 3 13 6 8 - 11 6 7 1 Polícia 5 5 36 18 5 4 16 4 3 5 14 3
Legenda: M= Muita, B= Bastante, NM= Não muita, N= Nenhuma.
A Igreja é a instituição em que os participantes mais confiam, seguindo-se as
Associações Cívicas, as Autoridades Tradicionais281, as Forças Armadas282 e as ONG’s.
À excepção das Forças Armadas, todas as demais instituições do Estado receberam
manifestações de desconfiança, sendo em geral consideradas pouco confiáveis, como
mostram os resultados obtidos pelos Partidos Políticos, a Justiça, o Serviço Público, a
Polícia, o Governo e o Parlamento. Entre as instituições pouco confiáveis, encontram-se
ainda as Empresas, os Sindicatos283, e os Meios de Comunicação.
A interpretação destas respostas como um sinal de pouca confiança nas instituições,
parece confirmar-se com as percepções de confiança institucional reveladas pela
pesquisa quantitativa284 e que mostra o seguinte cenário atual:
- “um nível geral de déficit de confiança institucional, em particular nas
instituições públicas do Estado, que ocuparam as 5 primeiras posições entre as 6
menos confiáveis para a resolução dos problemas da população”;
281 Atendendo à avaliação negativa da Justiça e ao papel de articuladores e mediadores das relações sociais que em geral lhes são atribuídos, talvez fosse de esperar uma melhor posição das Autoridades Tradicionais neste ranking de instituições merecedoras de confiança. 282 Estes resultados parecem espelhar reconhecimento, mas também algum ressentimento, em relação às FAA durante
e depois da guerra, sendo identificadas como os principais protagonistas do fim da guerra. 283 Malanje é a cidade onde os Sindicatos ficaram melhor colocados no ranking de confiança nas instituições, o que parece entrar em contradição com as respostas das autoridades tradicionais, que mostraram não estar informadas sobre os papéis e actividades dos sindicatos. 284 IRI (International Republican Institute) (2003), op. cit.
- “um descrédito nas instituições políticas pela sua incapacidade em influenciar
positivamente a solução dos problemas da população”;
- “os partidos políticos encontram-se no penúltimo lugar de um total de 23
instituições seleccionadas entre as três mais confiáveis para a resolução dos
problemas da população (...) e quando a questão é formulada no sentido de saber
dos entrevistados em que instituição menos confia para a resolução dos
problemas da população, os partidos políticos aparecem na terceira posição”.
A pesquisa demonstrou a valorização desproporcionada de instituições como a família e
as igrejas na solução dos problemas da população, e identificou níveis diferenciados de
confiança institucional entre o centro (Luanda) e a periferia (outras províncias). Os
resultados da pesquisa quantitativa mostraram que numa amostra de 411 respondentes
das zonas urbanas das três cidades (291 em Luanda, 51 em Benguela e 69 em Malanje),
as instituições identificadas como as mais confiáveis para a resolução dos problemas
das pessoas são:
a Família (135 indicações), as Igrejas (60 indicações), e o Presidente da
República (44 indicações).
As menos confiáveis para um conjunto de 404 respondentes urbanos (291, 47 e 66,
respectivamente), são:
a Polícia (97 indicações), os Governadores provinciais (35 indicaçõe), e os
Partidos Políticos (33 indicações).
Surpreendentemente, os Amigos foram igualmente identificados como não confiáveis,
com 32 indicações285.
Na construção do Índice de Confiança286 foi considerada a necessidade de ter em conta
duas dimensões da influência das relações de confiança nas escolhas políticas dos
cidadãos:
a) a confiança embutida nas relações e percepções dos cidadãos face aos políticos e
partidos políticos, que influencia as opções entre “conhecimento dos candidatos”,
“conhecimento dos partidos”, “proximidade regional” (ser da mesma região), “as
285 A listagem da pesquisa quantitativa abrange 23 instituições, nem todas presentes na minha lista; apesar disso, pode comprovar-se que, para os respondentes urbanos das 3 cidades abrangidas pelas duas pesquisas, para os angolanos as Igrejas são das instituições mais confiáveis (apenas perdendo para as famílias), e a Polícia e os Partidos Políticos encontram-se entre as menos confiáveis. 286 O rationale da construção deste Índice consta, igualmente, do Anexo Metodológico, pp. 22-24.
posses do candidato”, “a antiguidade/carisma de um partido político” e “melhores
ideias/propostas nas campanhas de outros candidatos e partidos políticos”, e se
expressa num voto que se pode considerar de “conservador”, “no seguro”,
ancorado num tipo de confiança que prende as pessoas ao passado, ao conhecido,
inibindo a opção pelo novo, pela inovação. É um tipo de confiança que penaliza a
inovação, o risco, a mudança, numa situação de conflito de interesses. Esta é a
componente 1 do Índice de Confiança (CONFIND1).
b) a confiança prospectiva na mudança, partindo das actuais percepções avaliatórias
das pessoas sobre comportamentos e práticas de políticos e partidos políticos,
influenciando as suas opções futuras em termos de escolhas políticas entre o
conhecido, o que está e é relacionado com “incompetência”, “favorecimento”,
“interesse”, “ausência” (de relação político/cidadão), “corrupção”, e a mudança, a
aceitação de algo novo, diferente. É um tipo de confiança que penaliza as más
práticas e favorece a inovação, a mudança. Esta é a componente 2 do Índice de
Confiança (CONFIND2).
Interpretando os resultados do Índice de Confiança, por cidade:
a) Luanda: 12% enquadram-se no grupo dos “desconfiados”, 59% no grupo dos
confiantes, abertos à inovação, pouco influenciáveis; o grupo intermédio – 29%
- pode tender para um ou outro lado, dependendo das situações;
b) Benguela: 13% enquadram-se no grupo dos “desconfiados”, 59% no grupo dos
confiantes, abertos à inovação e pouco influenciáveis por terceiros; o grupo
intermédio – 28% - pode ser “conquistado” por um ou outro lado, em função de
situações pontuais;
c) Malanje: 32% constituem o grupo dos “desconfiados”, “conservadores”,
ancorados em relações de conhecimento pessoal ou de identidade religiosa,
étnica, regional, etc.; o grupo 3, dos confiantes, abertos à inovação, pouco
influenciáveis por terceiros, é constituído por outros 32% da amostra; o grupo
intermédio – 36% - pode fazer a diferença, aliando-se a um lado ou a outro.
O cruzamento das respostas da pesquisa qualitativa com os dados do Índice de
Confiança construído a partir da base de dados da pesquisa quantitativa já anteriormente
referida, aponta para as seguintes conclusões preliminares:
a) parece haver consistência nas constatações que metade dos respondentes 50%,
mostra desconfiança (19% em média) ou cautela e precaução (31%, em média)
no seu relacionamento com terceiros; os Luandenses mostram-se mais
confiantes do que os participantes das outras duas cidades;
b) na análise qualitativa, os bengueleneses mostram-se mais “desconfiados” do que
os Malanjinos, contrariamente ao que mostram os resultados do índice;
c) a presença de uma percentagem considerável (50% em média) de pessoas
“confiantes” – 59%, 59%, 32% - parece emprestar consistência à constatação da
análise qualitativa segundo a qual existe um potencial de mudança nos
participantes da pesquisa nas 3 cidades.
3. Ação coletiva
As respostas às perguntas relacionadas com a ação coletiva são desdobradas nas
perspectivas do associativismo, da ajuda mútua e solidariedade, e do voluntariado.
3.1. Associativismo
A maioria dos participantes na pesquisa nas três cidades (80%) pertence a algum tipo de
associação, e as associações de carácter cívico e profissional são as que mobilizam
maior número de filiações pelos participantes da pesquisa.
LUANDA BENGUELA MALANJE Profissional 28% 26% 13% Cívica 27% 19% 30% Cultural ou recreativa
16% 17% 7%
De produção 2% 5% 17% De consumo - - - Grupo de mulheres 10% 14% 10% Grupo de jovens 9% 2% 7% Caixas de apoio mútuo
- 10% -
Outras 8%: religiosa (3%), internacional(1%),desportiva (2%), de desenvolvimento (1%), ambiental (1%)
7%: promoção de espectáculos (5%), comunitária (2%)
16%: religiosa (7%), desportiva (7%), ONG (2%)
A tabela a seguir apresenta as respostas sobre as principais motivações para trabalho
cívico e voluntário:
LUANDA BENGUELA MALANJE
1 2 3 4 5 1 2 3 4 5 1 2 3 4 5 Solidariedade 1 3 3 3 56 - - - - 29 - - - 1 34 Compaixão 19 5 5 2 15 3 1 - - 14 6 - 1 - 10 Reciprocidade 30 7 3 - 2 7 2 2 - 3 5 2 - 1 1 Dever 8 2 6 10 37 - - - 5 17 1 - 1 1 21 Identificação c/ quem sofre
7 3 6 6 30 - 1 2 - 24 1 1 - - 29
Bem comum 3 2 9 6 46 2 1 1 - 27 3 - - - 21 Tempo livre 34 7 4 1 5 8 - 1 - 8 5 2 - - 6 Crença relig. 24 6 3 2 17 5 1 - - 18 2 1 1 - 8 Satisf. Pessoal 25 9 4 1 14 5 1 - - 18 3 - 1 1 5 Neces.mudança 1 3 6 4 43 - - - 2 17 - - - 2 15 Dar esperança e dignidade
1 4 6 6 32 - - 2 2 20 - 1 1 2 23
Encontrar pessoas
19 4 8 2 13 5 1 2 - 6 3 1 2 2 5
Experiência para a vida
19 5 8 2 20 1 - 2 - 19 2 - 2 1 15
Prestígio social 18 3 5 2 16 7 - 1 1 7 4 1 1 1 6 Vergonha de recusar
34 4 1 - 2 8 - - - 1 7 - - - -
Em resumo, as principais motivações para trabalho cívico e voluntário são:
a) a solidariedade com o maior número de indicações de “muito importante” (119),
seguindo-se bem comum (94), a identificação com quem sofre (83), dar
esperança e dignidade, sentido de dever e necessidade de mudança (75
indicações cada), foram as razões apontadas como mais importantes;
b) sentimentos mais individuais também foram assinalados como muito
importantes, nomeadamente a satisfação pessoal (37), experiência para a vida
(54), prestígio social (29), e encontrar outras pessoas (24);
c) as razões que receberam maior número de indicações de pouca importância
foram vergonha em recusar (49), reciprocidade (42), tempo livre (39), satisfação
pessoal (33), crença religiosa (31) e compaixão (28). Em todas as cidades,
parece haver uma conotação negativa do conceito de “reciprocidade”, como algo
que se relaciona com egoísmo e/ou interesse de quem faz alguma coisa
esperando obter uma outra coisa em troca;
d) a motivação compaixão recebeu 39 indicações de muito importante e 28 de
pouco importante, o que parece mostrar que “ter pena” ou condoer-se com a
situação das pessoas carentes ou dos grupos-alvo a quem se dirige o trabalho
cívico ou voluntário, não é considerada uma razão “nobre” para a vinculação aos
trabalhos cívicos e voluntários, ou ter sido relacionada com a prática da
“esmola” (compaixão pelos pedintes).
Perante a suposição de criação de uma associação, grupo, comissão, cooperativa ou
clube, as reações manifestadas, divididas entre sentimentos expressos e atitudes (por
ordem decrescente de indicações), foram as seguintes :
sentimentos expressos: aceitação/receptividade, entusiasmo / empenho / alegria,
cautela e avaliação cuidadosa dos proponentes, dos objetivos, dos grupos-alvo e
dos riscos envolvidos
atitudes de adesão, envolvimento, contribuição para o desenvolvimento da ideia,
apoio e participação, encorajamento e participação, incentivo com ideias e
experiências.
Contudo, nas 3 cidades, a maioria dos respondentes condicionou a manifestação dos
sentimentos e a concretização das atitudes, acima referidos, à idoneidade dos membros
proponentes ou fundadores, e à existência de confiança nos mesmos, a uma avaliação
criteriosa das vantagens e dos riscos envolvidos, a ver reflectidos nos objetivos da
iniciativa os seus próprios interesses, à clareza dos propósitos que devem ter carácter
social (apoiar os necessitados ou melhorar as condições de vida dos seus integrantes)
e/ou visar o interesse de todos, a não haver “fundos obscuros” nem interesses pessoais
ou de grupo.
Alguns participantes não condicionaram a sua participação neste tipo de iniciativa, mas
em Luanda e em Benguela, em todas as categorias de análise, foram poucos os que se
manifestaram prontos a aderir, incentivar e dar a sua colaboração sem condições. Em
Malanje também foram poucos os que não condicionaram a sua participação, embora
tenham argumentado que “só através das associações se torna efetiva a participação do
cidadão”, e que “associações são formas de participação na vida local”, ou ainda que a
associação “é a melhor maneira de contribuir intelectual e culturalmente, transmitindo e
recebendo conhecimentos”, sendo uma “forma de juntar sinergias em prol do
desenvolvimento” e também “um motivo de intercâmbio e de partilha”. Um traço de
desconfiança que permeia as relações sociais em Angola, anteriormente identificado,
parece constituir a razão de ser destas precauções e condicionalidades.
3.2. Ajuda Mútua e Solidariedade
Sobre a reação perante uma notícia relacionada com o estado de saúde de alguém
próximo, as opiniões manifestadas foram divididas entre sentimentos expressos e
atitudes (por ordem decrescente de indicações), como se segue:
a) sentimentos expressos: preocupação, inquietação, compaixão, dever de ajudar,
aconselhamento, solidariedade, ansiedade, desagrado.
b) Atitude: solidariedade, apoio moral e financeiro, colocar-se à disposição,
acompanhar, informar-se/identificar o problema, encaminhamento ao médico
c) 1 participante (Luanda) condicionou esta ajuda e apoio ao conhecimento de
“quem necessita”, vizinho ou amigo.
A reação perante a confidência, por parte de alguém próximo, de estar passando por
graves problemas financeiros, mostrou os seguintes resultados: a procura por formas de
ajudar em 57% das respostas, e na impossibilidade de ajudar diretamente, encaminhar a
quem possa faze-lo, em 40% das respostas. Os resultados obtidos constam da tabela
seguinte:
LUANDA BENGUELA MALANJE “Fico na minha”, afinal só se queixou, nada pediu...
- - 2%
Procuro forma de ajudá-lo
58% 54% 60%
Todos estamos com dificuldades
1% 2% -
Não podendo, procuro encaminhá-lo a quem o possa ajudar, recomendando-o
40% 44% 38%
Nenhuma destas 1% - -
Estas respostas mostram-se consistentes com as anteriores, permitindo identificar um
traço de solidariedade e de vontade de ajudar quem necessita, tanto numa situação de
doença quanto num caso de necessidades financeiras, apesar das dificuldades que a
maior parte das pessoas enfrenta no dia-a-dia. Mas parecem expressar também a busca
por soluções individuais e de grupo em detrimento de soluções institucionais, o que
sugere que a maior parte das pessoas não espera ou não acredita em soluções universais
através de políticas públicas abrangentes. Parece necessário estabelecer uma relação
entre estas respostas e a situação de crise social prevalecente na sociedade angolana há
séculos: escravidão, colonização, regime autoritário e guerra. O refúgio na família e nas
igrejas como fontes de solidariedade e de ajuda, parece natural numa situação em que as
pessoas pouco confiam na possibilidade de obterem ajuda por parte das instituições do
Estado.
3.3. Relações de Vizinhança
As escolhas mostram sentimentos de animosidade dentro dos padrões de resposta
possíveis de obter em qualquer cidade do mundo, pois dirigiram-se a “tipos” sociais em
geral mal quistos. LUANDA BENGUELA MALANJE Passado criminal 12% 8% 7% Outra raça - - - Extremista político 24,5% 16% 13% Bêbado 17% 23% 21% Família numerosa 1% 1% 1% C/ perturbações mentais
12% 9,5% 7%
Deficiente físico 1% 1% 2% Imigrante/estrangeiro 3% 2% 3% Drogado 19% 25% 28% Homossexual 6,5% 9,5% 14% Outros: 4%: racista, fanático,
tribalista, abusador, conflituoso, novo rico arrogante
5%: insensível, autoritário/orgulhoso Com qualquer tipo de pessoa (2%)
4%: gatuno (2%) e não especificados (2%)
Assim, os participantes indicaram que os drogados (24%), os bêbados (20%) e os
extremistas políticos (18%) são os vizinhos indesejados, ganhando dos que têm passado
criminal, das famílias numerosas, dos doentes mentais, dos deficientes físicos, dos
homossexuais. Importa registrar que não se registraram manifestações de “racismo”
(nenhuma indicação) nem de “xenofobia” (3%).
IV – EM JEITO DE CONCLUSÃO
A interpretação das respostas à pesquisa, e do cruzamento ou confrontação dessas
respostas com os resultados das outras duas pesquisas já referidas, mostrou que os
entendimentos dos atores sociais sobre o conceito de sociedade civil em Angola são
bastante compreensivos e amplos, evidenciando as percepções mais comuns sobre a
natureza da sua composição, as funções e os papéis sociais que lhe são atribuídos. As
respostas enquadram-se numa perspectiva de sociedade civil como um amplo espaço de
relações sociais auto-reguladas buscando a emancipação do poder político, tendo como
objectivo a criação de instâncias de transformação das relações de dominação sem
pretender constituir-se como contra-poder ou antítese do Estado, reconhecendo, pelo
contrário, a distinção e complementaridade de ambas as esferas – e a legitimidade de
uma e de outra -, e o papel do Estado em promover a emergência e o fortalecimento da
sociedade civil, numa sociedade com pouca experiência de vida política independente.
À primeira vista, essas respostas parecem moldadas por uma certa normatividade,
traduzindo uma prescrição de tarefas a constituir a agenda da sociedade civil em Angola
para os próximos anos, que correspondem às encontradas na literatura sobre o tema. Por
um lado, as respostas às perguntas abertas do questionário 2287 atribuem à sociedade
civil o papel essencial de motor de uma ampla mudança institucional e de valores, num
processo que visa a consolidação da Paz e a melhoria das condições de vida dos
angolanos. Reconstituindo as respostas dos participantes a partir dos entendimentos
sobre o que é e como se constitui a sociedade civil, parece pacífico assumir que o
protagonismo desse processo é conferido aos cidadãos, e aos grupos e organizações por
eles constituídos e que integram a sociedade civil, com capacidades reconhecidas de
mobilização, articulação, organização, representação e participação, entre outras.
Por um lado, e como já se referiu, esta abordagem levanta algumas interrogações, na
medida em que as opções que implicariam a criação, promoção ou reforço de instâncias
de participação dos cidadãos, não mereceram prioridade nas escolhas dos participantes.
Algumas interpretações para estes desencontros podem ser sugeridas, entre as quais que:
• optaram por emitir opiniões “politicamente corretas” e normativas sobre os
papéis comumente atribuídos à sociedade civil na literatura e nos discursos dos
políticos e intelectuais, bem como das agências multi e bilaterais de cooperação,
reproduzindo a ideologia da sociedade civil dominante;
• auto-limitaram o protagonismo da sociedade civil implícito nas respostas
abertas, em resultado das experiências de vida sob um regime autoritário, no
âmbito do qual o significado mais comum atribuído ao conceito de participação
é o de ouvir as prioridades do governo e fazer o que ele espera seja feito para
concretizar essas prioridades,
• consideram que a consolidação da Paz e a melhoria das condições de vida da
população são objectivos alcançáveis através do crescimento econômico, do
287 Os questionários da pesquisa constam do Anexo Metodológico.
combate à corrupção e de uma gestão mais transparente (na perspectiva da boa
governação e da prestação de contas) dos recursos e interesses públicos.
Numa outra perspectiva, os discursos destes atores sobre a sociedade civil podem ser
percebidos como utopias, veiculando ideias e orientações relacionadas com a
transformação da realidade angolana, tão duramente por eles criticada. Embora se possa
reconhecer algum sentido coloquial na utopia da “boa sociedade”, capaz de induzir e
conduzir o processo de mudanças tão desejadas pelos angolanos, as ideias inscritas nas
respostas à pesquisa (de forma mais evidente nas respostas abertas, nas quais os
participantes recorrem às suas próprias palavras para exprimir sentimentos, aspirações,
receios e frustrações), parecem impregnadas de visões de reconstituição da sociedade
angolana, como imagens fundacionais de uma sociedade desejável.
Parecem colocar-se duas opções para a interpretação dos resultados até agora
apresentados: por um lado, a reprodução da hegemonia cultural predominante,
caracterizando um cenário em que prevalecem as ideias de preservação do status quo,
pautando-se pela omissão dos cidadãos na participação activa nos processos de tomada
de decisão, e limitando o exercício democrático de cidadania à escolha periódica dos
seus representantes pelo voto, à recepção das informações relacionadas com a gestão
dos recursos e interesses públicos sob a forma de prestação de contas por parte das
instituições do Estado, num processo unilateral de mão-única, configurando em lugar do
papel social do cidadão, o de “cliente” (ou beneficiário, o que o torna ainda mais
passivo) do Estado e do mercado. Por outro lado, a capacidade crescente de afirmação
no espaço público de uma ideia transformadora de sociedade civil, caracterizando um
cenário de mudanças mais amplas e abrangentes tornadas possíveis pelas construções
coletivas com base no valor positivo de transformação atribuído ao conceito, ampliando
os espaços públicos de participação cidadã aos diversos níveis e sobre os mais variados
temas (inclusive a discussão política fora do sistema político-partidário), e estendendo o
exercício da cidadania a uma porção progressivamente maior de grupos sociais, hoje
excluídos (pobres, ex-militares, setor informal, mundo rural, etc..).
As interrogações colocadas no primeiro período desta conclusão remetem a indagações
sobre a apreciação valorativa dos participantes no que respeita à importância dos
processos de democratização e de modernização da sociedade angolana como esteios
para o alcance de objectivos como a consolidação da Paz, a erradicação da pobreza e a
eliminação da desigualdade social, e a ampliação da cidadania, como pressupunha a
pesquisa.
Se a análise subsequente apontar para a prevalência dos discursos ideológicos de
manutenção do status quo, os papéis atribuídos à sociedade civil ganharão contornos
cada vez mais evidentes de provedora de serviços sociais em parcerias com o Estado, na
execução de políticas de desenvolvimento do capital humano – erradicação do
analfabetismo, combate à pobreza, redução da mortalidade infantil, entre as priorizadas
-, e políticas tendentes a eliminar a corrupção e conferir mais transparência à gestão dos
interesses públicos. Este caminho será sinalizado pela não priorização de opções que
impliquem a promoção da participação ativa no processo de tomada de decisão sobre as
questões de interesse público.
A afirmação das ideias utópicas de transformação social inscritas nas respostas abertas,
sustentar-se-ia em opções privilegiando a mudança nas relações sociais e de poder, para
conduzir o país na trilha do progresso e desenvolvimento social, englobando estratégias
para o estabelecimento de uma cultura de Paz, o combate à pobreza e à desigualdade
social, através da promoção de políticas de desenvolvimento do capital humano num
quadro de mudanças e/ou reformas institucionais mais ou menos profundas, envolvendo
os sistemas político e econômico, visando a mudança de comportamentos e de
mentalidades, e a gestão mais transparente e participativa dos interesses públicos.
Neste cenário, que implica a aquisição gradual do poder formal de decidir sobre si e os
seus caminhos, opções e estratégias de forma cada vez mais autônoma, a sociedade civil
estaria cada vez mais capaz de co-protagonizar com o Estado a condução dos processos
de mudança e de desenvolvimento do País tão desejados. Mas para isso, contudo, é
fundamental a abertura progressiva do espaço público por desocupação pelo Estado, e o
debate público das bases fundamentais da sociedade a construir em Angola, o que passa
pela discussão das relações de poder, da sua posse e do seu exercício, num ambiente de
abertura para a discussão das, e escolha entre, distintas modalidades de reinvenção do
“estar-em-conjunto”.
CAPÍTULO 5 – A SOCIEDADE CIVIL COMO MOTOR DA MUDANÇA
I. INTRODUÇÃO
Retendo do capítulo anterior, dedicado à análise das representações de sociedade civil
de diversos grupos de atores sociais em 3 cidades de Angola, os papéis que lhe foram
atribuídos, importa destacar a profusão de atribuições e funções com elas relacionadas
conferidas pelos participantes na pesquisa à sociedade civil. Em jeito de síntese, parece
pacífico afirmar que o essencial desse papel social é o de motor de um processo de
transformação societal pluridimensional, onde se destacam as funções de articulação e
mediação de interesses dos diversos grupos sociais que constituem a sociedade
angolana, o fortalecimento das suas formas de organização, e a sua proteção contra a
dominação das elites no poder.
A sociedade civil parece percebida como o espaço de formação democrática da opinião
pública, enquanto expressão do consenso ou dissenso (os desacordos morais de
Taylor288) com respeito às instituições, veiculada pelos órgãos de comunicação social.
Esta função surge particularmente valorizada, dada a situação de transição que o país
vive, de um regime289 autoritário (no qual a sociedade civil foi absorvida pelo
Estado/partido e onde prevalecia uma opinião oficial), para um regime que se anuncia
pluralista no discurso, mas que, apesar de mais aberto que anteriormente, continua a
mostrar extrema dificuldade em lidar com a diferença de opinião e das formas de estar
em sociedade.
As percepções dos actores sociais colhidas pela pesquisa vão no sentido de considerar o
regime político angolano como pouco propenso a implementar mudanças institucionais
com vista à efectiva separação de poderes, ao fim da convivência promíscua entre
aparelho de Estado e o partido no poder290, e à promoção de um ambiente democrático
em todos os níveis da vida do país, nomeadamente através da implementação dos
programas de descentralização e desconcentração do poder político e administrativo.
Perante a mudança nas relações de força no plano internacional, e as pressões internas
crescentes nos anos 80, o Estado angolano, que se caracterizava pelo seu fechamento e 288 TAYLOR, Charles (1993), op. cit. 289 O conceito de “regime” é usado nesta tese para significar os distintos arranjos institucionais, como por exemplo: democracia representativa, autoritarismo burocrático, regime de partido-único. 290 Manifestada abertamente na ambiguidade dos discursos do Presidente da República que é, simultaneamente presidente do partido no poder, candidato à presidência nas próximas eleições, chefe do executivo, e, ainda, comandante-em-chefe das forças armadas angolanas.
pouca permeabilidade em relação à sociedade, uma estrutura de governação
neopatrimonialista, um regime monopartidário e uma forte oligarquia militar
relacionada com a longa duração da guerra civil, promoveu a mudança para uma
democracia representativa. Contudo, procurou assegurar o controle sobre os recursos
materiais, necessário para manter o sistema de governação garantindo os fluxos de
recursos para as redes clientelistas. A prevalência desta forma de governação vem
esvaziando o conteúdo da frágil democracia representativa, formalmente instituída, e
reforça as condições da sua reprodução.
Esta resistência à mudança é percebida pelos participantes como uma ameaça, um sério
risco para a consolidação do processo democrático em Angola, formalmente iniciado
com a liberalização política - eleições, instituições da democracia representativa, e
direitos civis básicos -, no início dos anos 90. Parece existir entre os participantes a
consciência de que nem os arranjos constitucionais e institucionais, por si sós, nem a
ressurreição do sistema econômico baseado no livre funcionamento do mercado, serão
capazes de promover a instauração de um regime democrático durável em Angola. A
insistência na necessidade de mudanças nos sistemas político e econômico presentes em
inúmeras respostas a questões analisadas no capítulo anterior, assim o demonstram,
denotando a preocupação dos atores sociais com relação à capacidade de reprodução,
pelo Estado, das atuais relações de poder e sociais.
A associação entre a ideia de necessidade de mudanças e/ou reformas e a sua aplicação
tanto ao sistema político quanto ao econômico parece elucidativa da consciência da
profunda inter-relação entre a política e a economia na configuração das atuais relações
sociais e de poder; ou seja, apesar de não designado como tal, os participantes
identificaram no Estado angolano as características de estado neopatrimonialista291 ao
apontarem, ainda que nem sempre de forma direta, as suas características constituintes:
governo personalizado e organizado através de redes de clientelismo envolvendo a
distribuição massiva dos recursos do Estado e a demanda por lealdade personalizada, e
fazendo recurso à coerção, num ambiente caracterizado por um elevado grau de
informalidade, não apenas na economia de subsistência. O reconhecimento da ausência
de transparência no uso dos rendimentos que o Estado obtém com a exploração
291 BRATTON, Michael & van de VALLE, Nicholas (1997), op. cit.
monopolista de recursos naturais como o petróleo e os diamantes – que constituem a
principal fonte de receitas -, adicionou à configuração do estado neopatrimonial novos
atores, externos, designadamente as grandes multinacionais com concessões para a
exploração de petróleo e de diamantes, e outras operando em diversos setores, como
construção civil, comunicações, entre outros.
Com base nas opiniões dos participantes na pesquisa sobre as relações entre o Estado e
a sociedade civil em Angola, este capítulo vai discutir as dinâmicas sociais que
condicionam essas relações sociais e de poder, e que configuram as imagens e as
representações que os atores sociais angolanos expressam sobre a sociedade civil em
Angola. Estas imagens parecem indicar que as funções habitualmente atribuídas às
organizações da sociedade civil em ambiente democrático precisam ser equacionadas
numa perspectiva mais ampla, recorrendo a atores sociais capazes de promover a
mediação e articulação dos interesses político-sociais nelas presentes e de influenciar a
agenda política pública, nomeadamente as igrejas as formas de poder local tradicional e
os meios de comunicação, operando como descodificadores semânticos das relações
entre atores e camadas sociais distanciados por uma profunda desigualdade social de
condições, de oportunidades e de participação, num ambiente caracterizado pela
ausência de uma cultura de debate e de troca de experiências, e de valorização da
opinião própria e de terceiros, herança de tempos ancestrais acentuada durante o regime
pós- independência. O medo de retaliações, a não valorização da opinião e da
participação individual ou em grupo, a falta de experiência de participação e expressão
de opiniões em espaços públicos, herdados do passado colonial e exacerbados após a
independência, particularmente durante a I República, criam um ambiente desfavorável
ao exercício pleno da cidadania pelos diversos atores sociais angolanos, limitam o
espaço público da sociedade civil, e facilitam a manutenção da dominação política por
parte das elites no poder.
II. O ESTADO E A SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA, SEGUNDO OS
PARTICIPANTES NA PESQUISA.
As opiniões sobre as relações entre o Estado e a sociedade civil em Angola, por cidade,
são as seguintes:
Luanda: é muito crítica e negativa a avaliação das relações entre o Estado angolano e a
sociedade civil, uma vez que apenas 1 participante da categoria de análise “mulheres”
considerou as relações actuais como “normais”, e 2 da categoria de análise “associações
e ONG’s” classificou-as de “satisfatórias”. Poucos participantes (7), consideram que se
vive um momento de aprendizagem para ambos. A responsabilidade pela avaliação
negativa é atribuída, pela maioria dos participantes, à falta de cultura democrática
dominante na cena política angolana, à falta de vontade política dos representantes do
Estado (e do governo, particularmente) em criar verdadeiras instâncias de consulta e
auscultação da opinião dos cidadãos e à relutância em desocupar o espaço público. Uma
parte da responsabilidade é atribuída à falta de uma verdadeira oposição por parte dos
partidos políticos (a configuração Estado=partido no poder, a bipolarização política
ainda prevalecente, a extrema fragmentação do sistema político angolano com mais de
130 partidos políticos e a “instrumentalização” dos mesmos por parte do partido no
poder são frequentemente apontadas, nos mídias e em debates, como razões para a
ausência de uma verdadeira oposição política em Angola); outra parte (menor) da
responsabilidade, é atribuída à própria sociedade civil, por ainda não ter encontrado os
meios de se organizar e fortalecer, e, ainda, por se omitir em situações em que deveria
assumir o protagonismo do contra-poder. Poucos participantes (5) acusam o Estado de
arrogância e intolerância para com as organizações da sociedade civil que não consegue
manipular e controlar; muitas respostas foram no sentido de chamar a atenção para as
barreiras [a uma mais estreita relação] derivadas da deficiente governação e gestão do
país. Uma resposta muito crítica considerou que “os representantes do Estado, quando
criticados, por falta de um espírito democrático, vêm na sociedade civil um “inimigo”
(...), e a sociedade civil ainda desorganizada, alheia-se dos reais problemas do País”, e
outra acrescentou que “o governo de Angola, o Chefe do Estado e os ministros estão
desacreditados, de maneira geral a ação dos partidos políticos da oposição não tem
muita relevância devido ao controlo do ‘partido-Estado’”. Outra, considera que “essa
relação é mais retórica do que prática”.
Sumariamente, essas relações são caracterizadas pela grande maioria como sendo de
desencontro, de desentendimento, de oposição, de desconfiança, de intolerância, de
turbulência, de intolerância, principalmente por parte do Estado, mas em alguns casos, a
inversa também é verdadeira, de não reconhecimento mútuo (principalmente por parte
do Estado), de desiguais e desniveladas, de distantes, de inimizade e conflitualidade, de
chantagem, de subserviência/servidão/receio, de pouca transparência. Apenas em 2
respostas essas relações foram descritas como sendo de cooperação e colaboração, e de
parceria em construção.
Na avaliação dos participantes de Benguela, as relações entre a sociedade civil e o
Estado não são as melhores (numa perspectiva mais normativa, do que desejariam que
fossem), sendo caracterizadas de difíceis, não muito salutares/não muito amistosas, não
muito boas, muito débeis. As 7 avaliações menos negativas, consideram-nas
“razoáveis”, “as possíveis” ou “incipientes”, numa perspectiva em que falta de
organização, de experiência e de confiança entre as organizações, são as principais
críticas apontadas à sociedade civil, e por outro lado, a falta de sensibilidade, a falta de
atenção, consideração e apoio, as muitas barreiras existentes ao seu desenvolvimento,
são as principais razões identificadas pelos participantes como da responsabilidade do
Estado angolano, que ainda não “descobriu o verdadeiro papel da sociedade civil”. A
associação da dificuldade e/ou debilidade das relações entre a sociedade civil e o
Estado, com a “guerra e suas sequelas” no tecido social, político e económico nacional,
aparece em algumas respostas, à semelhança do que já tinha acontecido nas respostas a
perguntas do questionário 1, o que parece validar o argumento “guerra” como uma das
principais justificações para a atual situação do país. Um dos respondentes identificou
“a falta de espaço de atuação para a criação de confiança entre ambos” como a causa do
atual estado de relações, caracterizadas sumariamente como sendo de animosidade, de
desconfiança, de não reconhecimento (por parte do Estado), de falta de organização e
experiência (por parte da sociedade civil).
Segundo a maioria dos participantes em Malanje (16 em 30), as relações entre a
sociedade civil e o Estado “não são boas” ou “ainda não o são”, tendo sido
caracterizadas como sendo de dependência, não corresponderem aos anseios da
sociedade civil, serem muito fracas ou muito frágeis, débeis ou quase nulas
(inexistentes), pouco participativas/representativas, caracterizadas pela falta de abertura,
de diálogo, de oportunidades de cooperação e de interação, pelo não reconhecimento do
papel da sociedade civil, e pela desconfiança, podendo chegar à adversidade e ao
conflito aberto, em casos pontuais.
O Estado angolano foi responsabilizado em grande medida por esta situação, porque
não tem, ainda, uma cultura de relações horizontais com os seus parceiros, porque não
respeita a opinião da sociedade civil, porque até há bem pouco tempo, as ações da
sociedade civil eram vistas como “atentados aos interesses do Estado”, porque não há
abertura, não há apoios nem emancipação (esta última parte, parece dirigir-se à
sociedade civil), porque recorre ao “suborno” para desvirtuar uma causa justa, porque
confunde/conota a sociedade civil com “interesses políticos”.
As avaliações menos negativas (4 em 30), consideram que as relações “ainda” não são
as melhores; ou que são “as possíveis”. Nesta perspectiva, a argumentação é que elas
tendem a mudar para melhor no atual contexto de Malanje (antes eram péssimas...);
dependem de quem dirige as organizações da sociedade civil; em alguns casos existem
relações de cooperação com igrejas e algumas ONG’s, noutros casos existe uma forte
ligação com o poder (FESA, UNTA, OMA, AJAPAZ,292 etc.) e relações de
privilégio/preferência, e, noutros ainda (SINPROF293), são relações de conflito
permanente; o Estado escuta pouco as preocupações levantadas pela sociedade civil.
Mais positivas foram 7 opiniões que qualificaram as relações entre o Estado angolano e
a sociedade civil como sendo “boas”, “salutares”, “como devem ser: de reclamação e
defesa dos direitos dos cidadãos, agindo no espaço entre a esfera privada e as
instituições políticas e do Estado” ou de “participação/parceria”, argumentando que se
realizam ações conjuntas em benefício do País, conseguem trabalhar juntos em prol dos
angolanos, cumprem os seus respectivos papéis, se buscam em conjunto soluções para
os problemas dos angolanos, e ainda porque existe um razoável nível de cooperação
entre o Estado e algumas organizações da sociedade civil, sendo já notável a
participação de algumas delas na discussão e definição de algumas políticas (p. ex. os
sindicatos.
292 FESA é a Fundação Eduardo dos Santos, Presidente de Angola; UNTA é a União Nacional dos Trabalhadores Angolanos e, tal como a OMA (Organização da Mulher Angolana), é uma organização de massas criada pelo MPLA, partido no poder; AJAPAZ é uma organização não-governamental identificada como tendo sido criada por membros do MPLA. 293 O SINPROF é o Sindicato Independente de Professores, conhecido pelas posições frontais que vem assumindo em defesa dos interesses da classe em Angola.
Resumindo, a avaliação das relações entre o Estado e a sociedade civil é muito crítica e
negativa nas três cidades e nas diversas categorias de análise. As avaliações positivas
(ou menos negativas) parecem tomar uma forma muito mais normativa (o que os
participantes gostariam que fossem), do que analítica. Essa avaliação negativa é, em
geral, atribuída à falta de cultura democrática predominante no cenário político-social
angolano, à falta de vontade política dos representantes do Estado (e do governo,
particularmente) em criar instâncias de consulta, auscultação e participação dos
cidadãos, e à relutância em “desocupar” o espaço público colonizado pelo Estado
colonial, no qual o Estado angolano se instalou de uma forma absoluta durante a I
República, mantendo essa postura de dominação na II República, ainda que de forma
menos ostensiva e salvaguardada num discurso de abertura democrática. Um dos
participantes referiu que “tanto há parcerias entre Estado e Sociedade quanto posições
contrapostas, essencialmente com elementos organizacionais autónomos”. A sociedade
civil também é responsabilizada, embora em menor escala, por ainda não ter encontrado
os meios de se organizar e fortalecer, e, também, por se omitir em situações em que
deveria assumir o protagonismo do contra-poder, confrontando as instituições do Estado
em defesa de interesses dos cidadãos em geral, ou de grupos sociais, em particular; um
dos participantes refere a propósito que, “porque a sociedade civil é estruturalmente
heterogénea, existem [nela] elementos tendencialmente autónomos do Estado, de quem
reclamam independência, a par de outros que se assumem [na sua prática], como
espaços de apropriação da sociedade civil pelo Estado”. Segundo outro participante “o
conceito de sociedade civil esteve demasiado tempo associado ao conceito de
participação política no sentido partidário da expressão “política” e a prevalência, [em
Angola] de forte aproximação entre os conceitos de Estado e de Partido (o único)
reforça esta atuação”.
A associação da dificuldade e/ou debilidade das relações entre a sociedade civil e o
Estado com a “guerra e suas sequelas” no tecido social, político e económico nacional,
aparece em algumas respostas, à semelhança do que já tinha acontecido nas respostas a
perguntas do questionário 1, o que parece validar o argumento “guerra” como uma das
principais justificações para a atual situação do país. A resposta mais crítica foi a que
considerou que “os representantes do Estado quando criticados, por falta de um espírito
democrático, vêm na sociedade civil um “inimigo” (...), a sociedade civil ainda
desorganizada, alheia-se dos reais problemas do País”. Esta associação de ideias foi
expressa com mais frequência em Luanda, o que parece caracterizar uma diferença
substancial na exteriorização das percepções entre os três conjuntos de participantes,
sendo bastante mais crítica em Luanda. Um deles identificou “a falta de espaço de
atuação para a criação de confiança entre ambos” como a causa do atual estado de
relações.
A caracterização qualitativa das relações entre o Estado e a sociedade com base nas
opiniões dos participantes na pesquisa, os mesmos que atribuíram à sociedade civil um
papel de motor de uma ampla mudança em Angola, acima apresentada, permite
antecipar o tamanho da tarefa atribuída à sociedade civil e o grau de dificuldade que a
mesma terá para conseguir cumprir esse papel. Por isso, importa aprofundar as
mensagens endereçadas à sociedade civil pelos participantes, com vista a perceber se, e
como, elas apontam os caminhos a seguir para que esse protagonismo seja conseguido.
III. INSATISFAÇÃO E MUDANÇA. Descodificando mensagens
endereçadas à sociedade civil.
1 – Dimensionando e qualificando a insatisfação
Uma das mensagens mais fortes que transparecem das respostas à pesquisa sobre a
caracterização (apresentada no capítulo anterior) da sociedade civil em Angola, tal
como ela é percebida por atores sociais angolanos, é a de um traço de insatisfação
relacionado com a identificação da necessidade de amplas mudanças nos cenários
político e econômico do País. E como oportunamente se procurou mostrar, os
participantes associaram à identificação dessa necessidade os caminhos da mudança e
os objetivos que ela deveria permitir alcançar.
Revisitando as respostas à pergunta que procurava conhecer as percepções dos
participantes sobre a situação atual do país, as mesmas mostraram outros elementos
comuns aos três conjuntos de respostas (correspondentes às três cidades) para além da
insatisfação e da necessidade de mudanças, nomeadamente o fato de não aparecer
evidente a prioridade de alargar os espaços de participação dos cidadãos. Mas também
foram encontradas diferenças sensíveis entre os três conjuntos de respostas294.
Assim, as opções dos luandenses surgem mais centradas em torno do “político”,
demonstrando insatisfação relativamente à situação actual do país, necessidade de
justiça social e de mudança no sistema político, no sistema económico e nas relações
sociais, para que se instale em Angola uma sociedade mais inclusiva. O fato de a frase
“a sociedade está muito dividida e não consegue apresentar-se como parceiro credível”,
ter recebido apenas um décimo das indicações em Luanda, pode significar que a maioria
considera que a sociedade é capaz de criar mecanismos de participação e parceria com o
Estado e com outros actores sociais. Entretanto, chama a atenção o fato de a frase “os
mecanismos sociais de auscultação criados são ineficazes”, ter igualmente sido indicada
apenas por poucos participantes. Este resultado, tanto pode significar que os
participantes não identificaram esta frase como um próxy de participação política, ou
não estão dispostos a participar mais ativamente da vida política do país, apesar de
quererem mudanças.
Em Benguela, as respostas parecem indicar preocupações mais centradas na economia
do que na política e na participação dos cidadãos, mobilizando quase metade (41%) das
escolhas: em todos os grupos, o maior número de indicações foi para a frase “É
necessário criar mais oportunidades de negócios e empregos” (27%), e todos os grupos
indicaram que “O sistema económico precisa mudar radicalmente”, (14%). Entretanto, e
à semelhança do que aconteceu em Luanda, os benguelenses também mostram
preocupação e insatisfação no que respeita à justiça (ou ausência dela como instituição
ao alcance de todos). No tocante à necessidade de mudança nas relações de poder,
nomeadamente uma maior participação da sociedade, as escolhas feitas pelos
participantes nesta cidade parecem assinalar que esta não é uma preocupação muito
grande, desde que se concretizem as desejadas mudanças no sistema económico. Esta
interpretação parece ganhar fundamento quando se observa que as frases relacionadas
com uma maior participação dos cidadãos na vida política e no processo de tomada de
decisões tiveram um pequeno número de indicações, somando 14% das indicações.
294 A tabela com os resultados obtidos nas três cidades e a análise dos mesmos constam das páginas 159-160, Capítulo 4.
Em Malanje, as opções escolhidas podem ser interpretadas como indicadores de uma
necessidade de mudança que abrange melhorias significativas no sistema judicial, e a
criação de oportunidades de negócios que signifiquem mais empregos. O fato de a
opção “a sociedade está muito dividida e não consegue apresentar-se como parceira
credível”, ter sido escolhida por apenas 8 dos participantes, pode ser um sinal de que,
para os malanjinos que participaram da pesquisa, a falta de parcerias mais frequentes e
diversificadas entre Estado e sociedade não decorre da capacidade ou da credibilidade
desta, tendo em conta que a terceira frase selecionada aponta para a necessidade de
Estado e sociedade trabalharem mais em parceria. Contudo, e tal como aconteceu nas
outras duas cidades, a frase “os mecanismos sociais de auscultação criados são
ineficazes”, teve apenas 3% das indicações, conferindo consistência às interpretações
acima apresentadas: ou a mesma não foi identificada como um próxy de participação
política, ou os participantes não estão dispostos a participar mais ativamente na vida
política do país.
Retendo esta ideia de insatisfação generalizada entre os participantes na pesquisa
perante a atual situação política, económica e social do País, e a necessidade de
mudança nas relações sociais e de poder no País, e assumindo que existe uma relação
entre “insatisfação” e expectativa ou desejo de “mudança”, vale a pena conhecer que
sentimentos acompanham os participantes em situações de mudança, na vida pessoal ou
profissional.
De entre vários sentimentos como: ansiedade, tranquilidade, expectativa, satisfação,
desagrado, e outros, as respostas dos participantes nesta pesquisa indicam que os dois
sentimentos que acompanham a maioria deles, nas três cidades, são “expectativa” e
“satisfação”, sendo de realçar que nenhum deles escolheu a opção “desagrado”. LUANDA BENGUELA MALANJE
ANSIEDADE 21% 12% 11% TRANQUILIDADE 5% 18% 11% EXPECTATIVA 39% 35% 45% SATISFAÇÃO 29% 33% 30% DESAGRADO - - - OUTROS Otimismo – 2
Determinação – 1 Bom experimentar desafios -1 Empenho -1 Medo -1
Solidariedade – 2% 3% (não especificados)
Os resultados a esta pergunta indicam que:
a) nas 3 cidades, em média, 40% das indicações identificam a “expectativa” e 31%
identificam a “satisfação” como os sentimentos dominantes em situações de
mudança;
b) a “ansiedade” com 15% e a “tranquilidade” com 11%, foram também
sentimentos identificados;
c) nenhum participante optou pelo “desagrado” como sentimento em época de
mudança;
d) apenas 1 indicou o “medo” (na opção “outros”) como sentimento que o
acompanha em situação de mudança.
Estas respostas parecem contribuir para reforçar a ideia retirada da análise do
cruzamento das respostas sobre “confiança nas pessoas e nas instituições”, com as
respostas às perguntas abertas e semi-abertas dos questionários sobre o mesmo tema
(páginas 30-34 do capítulo 4), indicando a existência de um apreciável contingente
manifestando uma confiança prospectiva, que favorece a inovação e a mudança.
Para além dos sentimentos de insatisfação mais ou menos generalizada em relação à
situação prevalecente no País, e da identificação de um potencial de mudança nos três
conjuntos de participantes na pesquisa, sustentados pelo cruzamento com os resultados
quantitativos obtidos em pesquisas mais amplas nas mesmas cidades, importa perceber
que direcção e qual caminho os participantes procuram imprimir a esse processo de
mudança. Outras respostas ao questionário 1 parecem fornecer mais elementos para
caracterizar as opiniões dos participantes e perceber quais os papéis por eles atribuídos à
sociedade civil em Angola.
2 – Pacificar os espíritos, articular plataformas: a consolidação da Paz como
prioridade primeira
O sentimento de insatisfação e a necessidade de mudança aparecem constantemente nas
respostas a esta pesquisa, e encontram respaldo numa outra caracterização da situação
atual do país feita pelos participantes, a partir das seguintes opções apresentadas: “é a
possível devido aos problemas da história recente de Angola”, “apesar da guerra,
poderíamos estar muito melhor”, “agora que a guerra acabou, precisamos mudar”,
“nenhuma delas”. As escolhas feitas, e acima de tudo, as explicações que acompanham
essas escolhas, parecem reforçar a interpretação acima apresentada, embora com pontos
de partida distintos. Enquanto a maioria dos participantes em Luanda consideram que
“apesar da guerra, poderíamos estar muito melhor”, em Benguela e de Malanje a
maioria dos participantes preferiu a opção “agora que a guerra acabou, precisamos
mudar”. LUANDA BENGUELA MALANJE É a possível devido aos problemas da história de Angola
6%
5%
5%
Apesar da guerra, poderíamos estar muito melhor
54%
34%
21%
Agora que a guerra acabou precisamos mudar
40%
59%
74%
Nenhuma delas - 2% -
Em Luanda, a maioria rejeita o argumento da guerra como justificativa para o que não
foi feito, principalmente pelo fato de o país possuir inúmeros recursos naturais, que
poderiam ter sido utilizados para evitar que a situação do País se deteriorasse tanto, e
não o foram devido à incompetência, descaso e falta de lucidez e ganância da elite
próxima ao/ou no poder; atribuiu à longa duração da guerra a instalação de um certo
conformismo e resignação, que precisa ser combatida, porque é necessário “reivindicar,
exigir, pedir contas”.
Relacionando o fim da guerra com a possibilidade de mudança, a maioria das respostas
em Benguela considera implicitamente que o processo de mudança não só com efeitos
no sistema econômico, produtivo e educacional, na livre circulação de pessoas e bens, e
na criação de empregos, mas também nas atitudes e comportamentos dos governantes,
só seria possível após o término da guerra. Para além de moralizar os cidadãos e dar
credibilidade ao País, esse processo de mudança é percebido como necessário para
promover o desenvolvimento do capital humano, reduzir as desigualdades sociais e
melhorar as condições de vida da população.
Para a grande maioria em Malanje, o processo de mudança que o final da guerra torna
possível, visa melhorar as condições de vida da população, consolidar a Paz, melhorar o
entendimento e o diálogo entre os angolanos, construir alianças ou redes que permitam a
participação de todos, sem discriminação, na reconstrução de Angola, e criar
oportunidades para os mais jovens, cujos efeitos seriam visíveis na mudança de
mentalidades, entre outras.
Para além de as frases mais indicadas serem demonstrativas de insatisfação e vontade de
mudar, o reduzido número de indicações da terceira frase, que expressava a ideia de que
“a situação é a possível devido aos problemas da história de Angola”, parece um
indicador de que a maioria dos participantes não se conforma (ou resigna) com a atual
situação, sendo que muitos entre os participantes, especialmente em Luanda, não
aceitam a guerra como justificação de todos os problemas que o país hoje enfrenta.
Interpretando o conjunto das respostas, o apelo de mudança aparece relacionado com
aspirações que privilegiam a consolidação da Paz, a equidade e a justiça social,
desenvolvidas nos comentários ou explicações adicionais dos participantes.
Ao longo de quase 4 décadas de guerra civil, apenas em alguns (poucos e curtos)
períodos os angolanos tiveram oportunidade de viver em ambiente de ausência de
guerra, mas não de Paz, dada a presença difusa mas constante da ameaça do retorno às
armas como saída para os conflitos presentes na cena política angolana. Várias gerações
de angolanos nasceram e cresceram, fizeram-se adultos, escutando notícias, ouvindo
comentários e, principalmente, sentindo os efeitos da guerra na vida quotidiana devido
aos deslocamentos forçados em busca de segurança pessoal e familiar, ao êxodo das
áreas de origem em busca de melhores condições de vida nas principais cidades e suas
periferias, à morte de familiares e amigos em ataques, emboscadas, ou minas, às
carências em alimentos e produtos básicos de higiene, vestuário e agasalho, à deficiente
prestação de serviços básicos de saúde, educação, assistência social, às dificuldades em
encontrar um emprego, entre outras.
Muitas destas gerações formaram-se ao abrigo de estratégias de sobrevivência
individual, familiar ou de grupo. Uma das mais presentes, e cujos efeitos ainda hoje
estão presentes na vida pública angolana, consistia em evitar posicionamentos ou
opiniões sobre a situação do País em lugares públicos, e mesmo em ambientes onde
houvesse desconhecidos ou elementos relacionados com o regime no poder. Isto
aconteceu devido à polarização do discurso político em Angola, entre outras razões,
como já se referiu no capítulo anterior. O que importa reter é que, para uma sociedade
carente de protagonismo político, com um déficit histórico de participação em assuntos
de interesse público herdado do colonialismo, as experiências de vida sob o regime da I
República acentuaram os efeitos da ausência do exercício de uma cidadania plena para a
grande maioria dos angolanos.
Durante os anos 90, houve uma mudança sensível com a instituição do Estado de direito
democrático (artigo 2º. da Constituição), a realização de eleições gerais, a criação de
instituições democráticas, e a abertura do sistema econômico. O reinício da guerra, mais
uma vez, interrompeu o processo de democratização em curso. E em resultado desta
retomada do argumento das armas, o espaço público voltou a ser ocupado pelas notícias
sobre a situação militar do país, e os mujimbos (os rumores angolanos) sobre todos os
demais temas da vida de uma sociedade. Na verdade, o espaço noticioso dos meios de
comunicação falada, escrita e televisionada, foram tomados de assalto pelas façanhas e
derrotas dos personagens fardados e armados da guerra civil em Angola, merecendo
pouco cuidado o elevado número de mortes em combate ou pela ativação de minas, e os
efeitos nas famílias e comunidades.
A Declaração de Paz do governo prometia não só encerrar o ciclo de guerra civil em
Angola, mas também abrir o espaço público, declarando a sua intenção de “trabalhar
com toda a sociedade, nomeadamente as igrejas, os partidos políticos, as associações
cívicas e as associações sócio-profissionais”, afirmando contar com “a participação
efectiva das igrejas, organizações não-governamentais e demais vontades da sociedade
civil” no âmbito da ajuda humanitária. Na Declaração, o governo ressaltava a
necessidade de que a sociedade civil mantivesse “um elevado sentido de
responsabilidade nos seus actos e palavras”295.
Apesar do Acordo assinado em 4 de Abril de 2002, marcando o final da guerra, ter sido
considerado como um marco histórico fundamental, as atitudes públicas são ainda de
desconfiança e de precaução. Em lugar de um esperado optimismo, existe um grande
desapontamento e alguma desilusão relativamente ao governo, na medida em que se
considera que não tem respeitado os seus compromissos na resolução dos principais
problemas que afligem a sociedade angolana.
295 Agenda para a Paz do Governo de Angola, publicada no Jornal de Angola de 14 de Março de 2002. PESTANA, Nelson. (2004), op. cit.
Na busca dos entendimentos dos participantes na pesquisa sobre a caracterização da
situação prevalecente no País um ano após a assinatura do cessar fogo, o questionário 1
continha uma pergunta aberta sobre “o que [os participantes] gostariam de ver acontecer
em Angola, na fase de transição da guerra para a Paz”. As respostas mostram
inequivocamente, e sem surpresa, que os sentimentos / valores presentes na grande
maioria das respostas nas três cidades são predominantemente relacionados com
reconciliação, perdão, pacificação dos espíritos, justiça social, inclusão e bem estar
comum, respeito pela diferença e pelos direitos humanos, recuperação de valores morais
e de solidariedade, restauração da ordem e da disciplina (principalmente por parte dos
dirigentes), criatividade e iniciativa na criação de parcerias entre o Estado e a sociedade.
Estes sentimentos conformam atitudes visando o investimento em capital humano e
mudanças nas mentalidades e nos comportamentos, mudanças políticas e económicas, e
na administração e na economia, educação cívica e realização de eleições, erradicação
da pobreza, políticas de redistribuição e redução do custo de vida, criação de
oportunidades de emprego e políticas de crédito principalmente na agricultura e para os
jovens, transformações económicas e sociais em geral, e combate à corrupção.
Estas escolhas mostram que os valores holísticos relacionados com a Paz e a justiça
social predominam sobre as principais necessidades materiais e os desejos individuais
dos participantes, e que esses valores indicam mudanças não apenas no quadro
institucional e nos sistemas político, administrativo, económico e social, mas também
no quadro dos valores relacionados com mentalidades e comportamentos sociais. De
notar que, mais uma vez, as respostas às perguntas abertas, nas quais os participantes
têm a oportunidade de escolher as palavras e as expressões para traduzir o seu
pensamento, são mais abrangentes, mais universais.
3 – Os caminhos da mudança
Os angolanos em geral, e os participantes nesta pesquisa, em particular, nunca tiveram a
oportunidade de manifestar, de forma sistemática e universal, as suas opiniões sobre os
rumos do país, em qualquer dos possíveis ângulos de análise, o caminho da guerra ou a
busca pela Paz, as opções nos domínios político, econômico e social, os contrastes ou a
aproximação entre os mundos rural e urbano, as políticas internas e as relações
internacionais e regionais. Mas os caminhos da mudança são dados pela intenção
evidenciada pelas opções de políticas públicas, e não pelos montantes do investimento
público do orçamento anual. Até agora, a condução da economia não destoa das
restantes vertentes da direção do País: uma visão vertical, de cima para baixo, tendo
como foco central a exploração dos vastos recursos naturais de origem mineral, como o
petróleo e os diamantes, e o investimento público em infraestruturas, ambas opções que
favorecem a manutenção do sistema patrimonialista alimentado pelos rendimentos dos
grandes negócios envolvendo tanto a exploração dos recursos naturais quanto a
realização das grandes obras do PIP (Plano de Investimentos Públicos) 296.
O sentido das opções de desenvolvimento do governo para o País foi publicamente
apresentado pelo Presidente da República297, a reconstrução nacional “através da
recuperação das infra-estruturas destruídas pela guerra, a construção de novas
estruturas, projectos e as mais modernas instituições”, numa perspectiva de projeção do
País no continente e no mundo. Contudo, o desenvolvimento do capital humano e a
situação de pobreza que afeta 57% da população urbana e 94% da população rural, não
mereceram quaisquer referências do mais alto mandatário da nação.
Resumida a macrovisão governamental do desenvolvimento para Angola nos próximos
anos, importa perceber o que os participantes fariam, em termos das opções que
escolheriam para imprimir o sentido que conferem ao processo de mudança, que tem
vindo a ser identificado a partir das suas opiniões. Assim, os participantes foram
convidados a indicar “que políticas públicas teriam prioridade caso tivessem
oportunidade de escolha”, de uma lista de 12 medidas de política pública:
- reconciliação entre os angolanos
- eliminação da pobreza
- eliminação das desigualdades
- democratização da sociedade
- modernização da sociedade
- erradicação do analfabetismo
296 Em Angola, por exemplo, o investimento público anual é bastante superior (59% do PIB - produto interno bruto - entre 1992 e 2002) ao de países vizinhos (24,5% na região da África Austral, em média, para o mesmo período); contudo, Angola detém um dos mais baixos Índices de Desenvolvimento Humano da região). VINES, Alex; SHAXSON, Nicholas; RIMLI, Lisa; HEYMANS, Chris. (2005), ANGOLA, Drivers of Change: an overview. London, Chatam House/DFID. 297 Discurso proferido na abertura de uma reunião do Comité Central do MPLA, em Luanda, em 18 de Fevereiro de 2005.
- aumento da esperança de vida
- redução da mortalidade infantil
- combate à corrupção
- gestão pública mais transparente e participativa
- expansão das oportunidades de participação
- redistribuição dos rendimentos nacionais.
Colocação pela pontuação obtida por cidade Políticas
LUANDA BENGUELA MALANJE Reconciliação entre os angolanos 1°. 3°. 1°. Eliminação da pobreza 7°. 2°. 6°. Eliminação das desigualdades 11°. 10°. 11°. Democratização da sociedade 5°. 8°. 7°. Modernização da sociedade 10°. 11°. 12°. Erradicação do analfabetismo 1°. 7°. 3°. Aumento da esperança de vida 8°. 9°. 9°. Redução da mortalidade, principal/ infantil
6°.
5°.
4°.
Combate sem tréguas à corrupção
4°. 4°. 2°.
Gestão pública mais transparente e mais participativa
2°. 1°. 5°.
Expansão das oportunidades de participação
9°.
12°.
8°.
Melhor redistribuição dos rendimentos
3°. 6°. 10°.
As três políticas mais escolhidas, por cidade, foram:
a) Luanda: “reconciliação entre os angolanos” e “erradicação do analfabetismo”;
“gestão pública mais transparente e participativa”; melhor redistribuição dos
rendimentos.
b) Benguela: “gestão pública mais transparente e participativa”; “eliminação da
pobreza”; reconciliação entre os angolanos”.
c) Malanje: “reconciliação entre os angolanos”, “combate sem tréguas à
corrupção”; “erradicação do analfabetismo”.
De uma forma geral, não houve grandes diferenças entre as cidades nas prioridades
atribuídas às políticas; contudo, algumas comparações parecem inevitáveis:
a) “a erradicação do analfabetismo” ocupou a 1ª. e a 3ª. posições, em Luanda e
Malanje, e ficou em 7ª. posição em Benguela
b) “a redistribuição de rendimentos” também teve prioridades diferenciadas nas 3
cidades: Luanda 3ª. posição, Benguela 6ª. posição e Malanje 10ª. posição;
c) “a eliminação da pobreza” parece constituir prioridade maior em Benguela (2ª.
posição), do que em Luanda (7ª. posição) ou em Malanje (6ª. posição), e estas
escolhas parecem demonstrar a consciência de que esses objectivos apenas serão
alcançados se outras medidas criarem as condições prévias, como uma mais
justa “redistribuição dos rendimentos nacionais” (numa perspectiva de alocações
orçamentais para os sectores relacionados com o desenvolvimento do capital
humano) e a “redução do analfabetismo” (particularmente entre as mulheres).
As prioridades eleitas pelos participantes suscitam alguns comentários:
a) Na procura dos caminhos que conduzam a sociedade angolana na consolidação
da paz, foi sido muito valorizada a necessidade da “reconciliação entre os
angolanos” como condição para uma paz durável, fundamental para edificar as
bases de um futuro melhor para todos os angolanos. Os participantes na pesquisa
mostram-se sintonizados com essa aspiração tão presente na sociedade angolana
após a assinatura do cessar-fogo;
b) Uma vez salientada a necessidade da Paz e demonstrada toda a sua prioridade, as
expectativas de um futuro melhor e para todos expressam-se, em geral, pela
ideia de que a educação é um veículo privilegiado para construir o caminho em
direção a esse futuro melhor, pelo seu papel no desenvolvimento do capital
humano, no combate à pobreza, na eliminação da desigualdade social, e na
melhoria das condições de vida;
c) A insatisfação perante a forma como os “interesses públicos” têm sido geridos
continua visível, através da alta prioridade (2ª., 1ª., e 5ª., posição,
respectivamente em Luanda, Benguela e Malanje) atribuída à “gestão mais
transparente e participativa”; mas como a “expansão das oportunidades de
participação” não conseguiu mais do que um 8°. lugar em Malange, 9º. em
Luanda, e último lugar (12º.) em Benguela, parece indicar que os participantes
gostariam de ver “mais transparência” na condução dos destinos da nação e na
gestão dos interesses públicos, embora não associem a sua “participação” a essa
prioridade. Esta interpretação reforça a análise apresentada no capítulo anterior,
segundo a qual, apesar do criticismo, da insatisfação, e da necessidade de
mudanças, etc., implícitos nas respostas dos participantes e da suprema
expectativa de ver consolidadas as bases de uma Paz duradoura enquanto
alicerces de um futuro melhor para todos, a busca por uma estratégia nacional
construída com base na participação de todos não parece ser uma prioridade para
a maioria dos participantes na pesquisa;
d) O combate à corrupção (4º., 4º., e 2º.) parece associado ao desejo de “gestão
mais transparente” (2º., 1º., e 5º.), reduzindo as evasões e as despesas públicas e,
por essa via, aumentando a porção dos rendimentos nacionais susceptíveis de
serem redistribuídos, parecendo percebido como condição sine qua non para o
combate à pobreza e à desigualdade social em Angola;
e) A democratização (5°, 8°, 7°) parece mais importante para os participantes de
todas as cidades, do que a modernização da sociedade (10°, 11°, 12°), embora
nenhuma das duas se mostre como prioridade para os participantes, não tendo
sido por eles identificadas como processos através dos quais os objetivos eleitos
da reconciliação entre os angolanos, da gestão mais transparente, e do combate à
pobreza, possam ser atingidos.
f) A pouca prioridade atribuída à “expansão das oportunidades de participação”
(9ª., 12ª., e 8ª. posições, respectivamente) não se mostra coerente com a
preocupação relativamente à “democratização da sociedade”. No seu conjunto,
estes resultados parecem sugerir que a vontade de mudança, identificada como
reflexo de algumas respostas anteriormente apresentadas, pode não ser
abrangente em termos de regime político nem pressupor uma alteração radical
no status quo actual, o que entra em contradição com respostas anteriores;
g) O “combate à pobreza” (7°, 2° e 6°.) surge com mais prioridade do que o
“combate às desigualdades sociais” (11°, 10° e 11°), ou seja, parece mais
importante reduzir o número de pessoas que vivem na pobreza, ainda que se
mantenha a estrutura de desigualdade social. Em outras respostas, contudo, a
erradicação da pobreza e a eliminação das desigualdades sociais haviam
merecido maior prioridade (indicar quais e número de página);
h) As políticas de investimento em capital humano, nomeadamente a “redução da
mortalidade, principalmente a infantil” e “o aumento da esperança de vida”, não
parecem ter sido associadas pelos participantes como causa e efeito, uma vez
que a primeira recebeu maior prioridade (6°, 5°, 4°) do que a segunda (8°, 9°,
9°).
No seu conjunto, os resultados acima apresentados reforçam as ideias de
descontentamento e insatisfação, já antes identificadas, indicando ainda que a
necessidade de mudanças ou reformas é uma preocupação para os participantes. A falta
de uma cultura de participação no processo de tomada de decisões sobre questões de
interesse público, inscrita numa bem mais ampla ausência de mecanismos institucionais
de auscultação e envolvimento da sociedade angolana, por um lado, e a situação de
precariedade generalizada na sociedade angolana, por outro, podem responder, em
parte, pelas aparentes contradições expressas pelas respostas.
Por um lado, à sociedade civil é atribuído o papel de motor de uma ampla mudança
institucional e de valores, num processo que visa a consolidação da Paz e a melhoria das
condições de vida dos angolanos, que não prioriza, segundo essas respostas, os
processos de democratização e de modernização da sociedade angolana, como
pressupunha a pesquisa. Os contornos dessa mudança são definidos por políticas de
desenvolvimento do capital humano – erradicação do analfabetismo, combate à pobreza,
redução da mortalidade infantil, entre as priorizadas -, e políticas tendentes a eliminar a
corrupção e em conferir mais transparência à gestão dos interesses públicos. Por outro
lado, e em diversas respostas, não foram priorizadas as opções que implicavam políticas
de democratização do espaço público e de promoção da participação ativa dos cidadãos
no processo de tomada de decisão sobre questões de interesse público, que conduziriam
a uma situação na qual o exercício de cidadania poderia ser ampliado, não apenas do
ponto de vista do seu conteúdo político, social e civil, mas também do ponto de vista da
extensão desse exercício a grupos sociais hoje excluídos.
Parece haver, em geral, uma correspondência quando se confrontam as prioridades
atribuídas às políticas públicas pelos participantes na pesquisa, e as respostas dos
jornalistas nas três cidades sobre os principais temas abordados nos programas de
opinião dos meios de comunicação falada, escrita e televisionada aos quais pertencem,
nomeadamente política, paz e democratização, combate à pobreza, direitos humanos,
liberdade de expressão, associação e reunião, economia, desenvolvimento, e combate à
desigualdade social. Contudo, chama a atenção a relação estabelecida entre os temas paz
e democratização, e a importância da discussão sobre direitos humanos (políticos, civis
e sociais) nos meios de comunicação, que não surgiram de forma tão explícita nas
respostas dos participantes, tanto às perguntas abertas quanto às semi-abertas.
O desdobramento por área geográfica, mostra que em Luanda, os temas mais abordados
relacionam-se com o desenvolvimento e o combate às desigualdades, a paz, direitos
humanos e liberdade de expressão, associação e reunião, combate à pobreza, economia
e política. Em Benguela, os relacionados com a paz, a democratização, o combate à
pobreza, a política, e os direitos humanos e liberdade de expressão, associação e
reunião, e desenvolvimento, economia e combate às desigualdades sociais. Em Malanje,
os relacionados com o combate à pobreza, a paz, a economia, a política e os direitos
humanos e liberdade de expressão, associação e reunião; os temas democratização,
desenvolvimento e combate às desigualdades não receberam qualquer indicação.
4 - Combate à Pobreza
A insatisfação, não resignação, e aspiração a uma sociedade mais justa, parecem poder
identificar-se, igualmente, nos resultados a outra pergunta, que buscava opiniões sobre a
situação de pobreza que prevalece no país. Foram apresentadas 5 opções, sendo a
última “não sei”, a qual apenas foi escolhida em Malanje (40% das indicações). Para
além desta, as opções disponíveis eram as seguintes: “porque não têm sorte”, “porque
são preguiçosos e não têm força de vontade”, “porque a nossa sociedade é injusta”, e
“por causa da guerra”.
LUANDA BENGUELA MALANJE Porque não têm sorte - - Porque são preguiçosos e não têm força de vontade
-
2%
-
Porque a nossa sociedade é injusta
65% 49% 7,5%
Por causa da guerra 35% 49% 52,5% Não sei - - 40%
Por cidades, as respostas foram:
a) Luanda: a grande maioria (65%) considera que a pobreza em Angola é devida ao
fato de que “a nossa sociedade é injusta”, enquanto 35% considera que é devida
à “guerra”. Não parece haver uma naturalização da ideia de pobreza no conjunto
de participantes de Luanda, uma vez que as opções: “porque não têm sorte” e
“porque são preguiçosos e não têm força de vontade” não receberam qualquer
indicação;
b) Benguela: as opiniões dividiram-se em partes iguais para as duas opções:
“porque a nossa sociedade é injusta” e “por causa da guerra” (49%) indicando,
uma vez mais, a forte presença do argumento da guerra como justificação da
situação em Angola, para os participantes desta cidade. Apenas 1 considerou que
a causa era porque os pobres são “...preguiçosos e não têm força de vontade”. A
opção “porque não têm sorte” não recebeu qualquer indicação, e isso pode
significar que, tal como em Luanda, também em Benguela não existe uma
naturalização da ideia de pobreza;
c) Malanje: A maioria dos participantes também escolheu a opção “porque a nossa
sociedade é injusta” (52,5%), tendo a opção “por causa da guerra” recebido 40%
das indicações. A forte presença dos efeitos da guerra prolongada que o país
viveu durante 3 décadas298, pode ser a razão que levou 40% dos malanjinos que
participaram na pesquisa a escolherem a opção “por causa da guerra”. Um
pequeno número de participantes optou pela causa “porque são preguiçosos e
não têm força de vontade”
A eleição pela maioria dos participantes, no conjunto das 3 cidades, da opção que
relaciona pobreza com injustiça social, mostra-se coerente com a análise anterior: por
um lado, as pessoas manifestam-se insatisfeitas com a situação sócio-económica e
política do país, e, por outro lado, sugerem mudanças para corrigir os problemas atuais.
Importante referir que, nas 3 cidades, não se manifesta a naturalização da ideia de
pobreza, porque as opções “porque não têm sorte” e “porque são preguiçosos e não têm
força de vontade” receberam um número insignificante de indicações.
Por seu lado, o governo299 identifica como as causas para a pobreza em Angola, o
conflito armado, a pressão demográfica, a destruição e a degradação das infra-estruturas
económicas e sociais, o funcionamento débil dos serviços de educação, saúde e
protecção social, a quebra muito acentuada da oferta interna de produtos fundamentais,
em particular de bens essenciais, debilidade do quadro institucional, a desqualificação e
desvalorização do capital humano, e a ineficácia das políticas macroeconómicas. Ainda
segundo aquele documento, “a pobreza urbana atinge 57% dos agregados familiares,
enquanto que a rural foi estimada em 94%. A gravidade da pobreza rural, espelhada
pelos três indicadores é consequência directa da guerra que limitou o acesso dos
298 Que tiveram uma forte incidência em Malanje, particularmente no período entre 1998 e 2001, durante o qual a cidade esteve sitiada pela forças da UNITA. 299 GOVERNO de ANGOLA, Ministério do Planeamento (2004), op. cit.
agregados familiares às áreas de cultivo e aos mercados, devido a insegurança. O
recrutamento militar reduziu a mão-de-obra disponível para a agricultura”.
Existe uma clara diferença entre as visões dos atores sociais que participaram na
pesquisa, e a posição oficial do governo inscrita na ECP, no que respeita à principal
causa da pobreza em Angola. Contudo, esta posição pode criar uma oportunidade de
intervenção para a “sociedade civil”, terminada que está a principal causa alegada pelo
governo, exigindo que sejam tomadas as medidas necessárias para a erradicação da
pobreza em Angola, ou pelo menos a sua redução significativa no mais curto espaço de
tempo, e não a sua redução para metade até ao ano 2008, como assinala o documento300.
5 – Necessidade de democratização ou mera insatisfação?
A questão da democratização merece uma reflexão porque, apesar de não ter merecido
uma alta prioridade na seleção das políticas públicas, identifica-se uma constância do
traço de insatisfação na maioria das respostas apresentadas até agora, reforçado pelas
respostas a uma pergunta que procurava saber as opiniões dos participantes
relativamente ao regime político que governa Angola. Entre as opções apresentadas:
“Angola é governada por poucos, grandes interesses”, “no interesse de todos”, “pelas
elites”, “com a participação de todos”, “não sei”, a maioria dos participantes na pesquisa
escolheu a resposta “Angola é governada pelas elites” (53%, 37% e 54%), logo seguida
da resposta “por poucos, grandes interesses” (42%, 37% e 14%).
LUANDA BENGUELA MALANJE Por poucos, grandes interesses 42% 37% 14% No interesse de todos 4% 5% 8% Pelas elites 52% 37% 54% Com a participação de todos 1% 16% 8% Não sei 1% 5% 16%
A pequena percentagem de escolha que mereceram as opções “no interesse de todos”
(4%, 5%, 8%) e “com a participação de todos” (1%, 16%, e 8%), tão comuns nos
discursos políticos desde a independência, são manifestações evidentes de insatisfação e
da consciência de exclusão da maioria da população do processo de tomada de decisões
em Angola. Estas respostas mostram-se coerentes com as anteriores, em termos do
300 Idem.
criticismo presente na avaliação do regime político vigente em Angola, e demonstram
insatisfação com o status quo.
Estas respostas parecem sinalizar que a maior parte dos participantes percebem o
sistema vigente em Angola como neopatrimonialista, ancorado na centralização da
condução da economia na presidência, que exerce o seu poder por redes de interesses,
através da distribuição de postos políticos e outros, de dinheiro e de favores, em troca de
apoio político. A exploração dos recursos naturais, nomeadamente petróleo e diamantes,
e os grandes projetos de infraestrutura, estende essa rede de patronagem e clientelismo a
operadores econômicos externos envolvidos nessas atividades.
Entretanto, apesar de todo o criticismo das respostas anteriormente apresentadas, existe
um forte sentimento de “orgulho em ser angolano”. LUANDA BENGUELA MALANJE Muito 71% 70% 79% Bastante 20% 16% 18% Não muito 9% 14% 3% Nenhum - - -
Os resultados mostram que:
a) a grande maioria – 71%, 70% e 79% - declaram ter “muito” orgulho em ser
angolano;
b) um grupo significativo – 20%, 16% e 18% - diz ter “bastante” orgulho em ser
angolano;
c) um pequeno grupo – 9%, 14%, 3% - optou pela afirmação de ter “não muito”
orgulho em ser angolano.
A consciência do tamanho do desafio e do tipo de dificuldades que a sociedade civil e
os angolanos em geral terão de enfrentar e vencer, se pretendem realmente uma
sociedade política, econômica e socialmente mais justa, como parece ser a mensagem
dos participantes, pode constituir um “ponto forte” a favor das opiniões que atribuem à
sociedade civil o papel de motor da mudança em Angola. Mas para se poderem avaliar
as possibilidades e as oportunidades existentes no contexto em que se desenrolam as
relações entre o Estado e a sociedade civil em Angola, é importante considerar a
intervenção dos atores sociais e dos meios capazes de estabelecer ligações entre os
diversos grupos e segmentos sociais que compõem a sociedade angolana.
IV – ARTICULAÇÕES E MEDIAÇÕES
A discussão sobre o processo de modernização das sociedades contemporâneas, em
particular das africanas e das respectivas dinâmicas sociais, e a caracterização da
situação político-econômica e social de Angola, indicam que as análises sobre as
relações sociais e de poder nestes contextos precisam prestar atenção à configuração do
espaço público, no qual amplas camadas sociais que constituem o chamado “público
primordial”, ao qual não se aplicam os direitos democráticos das sociedades urbanas
modernas mas antes o chamado direito costumeiro, apenas têm alguma visibilidade e
voz por intermédio de outros atores sociais, entre os quais as autoridades tradicionais, as
igrejas e os meios de comunicação.
Dada a grande influência da cultura urbana e da ideologia neoliberal nas representações
dominantes sobre o conceito de sociedade civil, e a limitada utilização no continente do
modelo do espaço público301 para o entendimento do contexto em que se desenrolam as
relações entre o Estado e a sociedade no quadro da democratização em curso nas
sociedades africanas, é importante incorporar na análise as experiências que contribuam
para a transformação (democratização) do espaço público africano, designadamente da
arena discursiva tradicional, conhecida em Angola como “Ondjango”, das instâncias de
mediação dinamizadas pelas igrejas e do papel dos meios de comunicação.
O objetivo é o de explicitar os papéis destes e de outros atores, considerados como
integrando a sociedade civil e a esfera pública, como diversos tipos de associações,
organizações não governamentais, clubes e grêmios recreativos e culturais, igrejas e
entidades religiosas, e instituições independentes de pesquisa e de ensino, na reforma do
Estado para que o poder seja democraticamente organizado com vista a promover o
exercício dos direitos e o desenvolvimento sócio-econômico, as principais demandas
atribuídas pelos participantes à sociedade civil em Angola.
1. As Igrejas e entidades religiosas
A inclusão de entidades religiosas ou de solidariedades construídas em torno da fé,
merece alguns comentários. Os antecedentes considerados pela pesquisa tiveram em
conta os diversos ângulos através dos quais se pode compreender a relação entre as
301 COMERFORD, Michael (2003), op. cit.
Igrejas e organizações religiosas e a sociedade angolana: por um lado, existem na
história de Angola relatos e depoimentos diversos sobre o papel que a Igreja
(principalmente a Católica) desempenhou no processo de submissão dos povos
africanos (das sociedades pré-coloniais) que existiam no território que hoje é Angola,
em apoio à legitimação do colonialismo sob a bandeira da civilização e da
evangelização, e também o silêncio, a ocultação ou mesmo a cumplicidade no que
respeita a atrocidades cometidas em nome desses processos.
Por outro lado, reconhece-se o papel ativo que as igrejas e entidades religiosas
desempenharam em todo o processo de colonização em apoio à organização da luta
nacionalista contra o poder colonial, desde a formação de muitas das lideranças que
conduziram esse processo até ao encobrimento de atividades clandestinas, por vezes
com recurso aos próprios espaços de culto, passando pelo envolvimento direto de alguns
dos seus padres e pastores na luta contra o regime colonial. Alguns dos seus membros
também desempenharam papel relevante na denúncia da situação prevalecente no país,
principalmente após a independência.
Para além disso, foi e é bastante valorizada a autonomia que a Igreja manteve em
relação ao Estado angolano após a independência, o que lhe permitiu dar visibilidade e
voz às aspirações dos angolanos durante o período de vigência do regime marxista-
leninista da I República, quando o espaço público foi completamente ocupado pelo
partido/estado, bem como nas diversas fases da assistência humanitária às populações
mais atingidas pela guerra, e nas campanhas em defesa dos direitos humanos e civis dos
cidadãos na Angola independente. Por todas estas razões, é muito próxima a relação
entre a igreja e os angolanos em geral, e a sociedade civil em Angola em particular.
Algumas abordagens teóricas parecem não incluir as igrejas e as organizações
constituídas em torno de interesses religiosos no universo da sociedade civil, com base
no argumento de que se trata de organizações hierarquicamente dirigidas e controladas,
com uma rígida disciplina exercida do topo à base, e sem espaço para exercícios
democráticos no seu funcionamento.
O pressuposto assumido neste trabalho de que as Igrejas e as entidades religiosas são
consideradas, e consideram-se, parte da sociedade civil em Angola, foi comprovado
pela opinião da maioria dos participantes nas 3 cidades e em todas as categorias de
análise incluídas. A razão desta inclusão tão unânime pode residir no fato, já antes
assinalado, de terem sido mais valorizados como critérios de pertencimento ou de
inclusão na sociedade civil, a autonomia em relação ao estado angolano, e a capacidade
de influenciar o poder político e as políticas públicas. Para além de terem conseguido
manter a sua autonomia perante o Estado, as Igrejas também se destacaram pelo uso da
sua influência em diversos momentos da vida nacional, o que se pode perceber pelas
reações imediatas do Estado angolano às Pastorais da Igreja Católica, e aos
posicionamentos públicos das Igrejas a favor da Paz, da melhoria das condições de vida
dos angolanos e da justiça social. Uma maior visibilidade social teria sido certamente
alcançada se as Igrejas tivessem conseguido superar as suas próprias diferenças e se
tivessem apresentado unidas em torno do objetivo do alcance da Paz via diálogo, como
aconteceu por exemplo em finais dos anos noventa com a criação do CIOEPA, Comité
Inter-Eclesial para a Paz em Angola.
A maioria das opiniões das entidades religiosas que participaram na pesquisa e que
responderam ao questionário 4, argumentam pela sua inclusão na sociedade civil302 com
base no argumento central de que a igreja/entidade religiosa é composta de cidadãos e,
como tal, insere-se na sociedade civil. Outros argumentam que a igreja “faz parte”
porque é na sociedade civil que as entidades religiosas atuam, é nela que se encontram
as bases para o trabalho social das igrejas, ou ainda, defendendo a inclusão, porque as
entidades religiosas, na sua iniciativa social, trabalham com as pessoas, com vista a
reforçar a sua autonomia, fortalecer o seu exercício de cidadania e incrementar a sua
capacidade de decidir de sua vida, tanto numa perspectiva pessoal quanto coletiva.
2. Os Meios de Comunicação
Para melhor compreender a relação entre os meios de comunicação social, e os orgãos
que a constituem, e a sociedade civil em Angola, foi incluída uma categoria de análise
composta por jornalistas e trabalhadores da comunicação social, visando criar uma
oportunidade para dar maior abrangência à expressão de opiniões e confrontar as suas
302 Importa frisar que esta ideia de pertencimento não inclui a instituição “Igreja”, mas formas de organização da ação coletiva com motivação religiosa, ou seja, segundo os participantes “não se trata da igreja enquanto hierarquia, mas
sim das organizações dos seus crentes”.
próprias visões e opiniões sobre os temas em discussão e sobre a sua inclusão (ou não),
enquanto categoria profissional e grupo com interesses muito específicos.
Considerando o seu papel na formação da opinião pública, as iniciativas que os
profissionais da comunicação social vêm assumindo no espaço público angolano
relacionadas com a formação da opinião pública, a democratização e a modernização da
sociedade angolana, a defesa dos direitos humanos e civis, e outros temas relacionados
com a discussão sobre sociedade civil em geral, não apenas em Angola, assumiu-se
como pressuposto neste trabalho que os meios de comunicação consideram-se parte da
sociedade civil, devido ao seu papel de formadores de opinião, mas não seriam
incluídos pelos outros atores sociais por diversas razões, entre as quais a desconfiança
na sua imparcialidade, e a sua ligação com o poder (principalmente no que toca aos
meios de comunicação estatais).
Os critérios de pertencimento na interface público/privado, com base na autonomia em
relação ao estado, parecem ter sido os mais aplicados pelos participantes da pesquisa,
que excluíram os meios de comunicação estatais, enquanto os privados foram
entendidos como atores sociais com suficiente autonomia do Estado para denunciar,
influenciar e contribuir decisivamente para a formação da opinião pública. O receio
prevalecente quanto à imparcialidade meios de comunicação estatais, fundamenta-se e é
confirmado pelo antigo Secretário Geral do Sindicato dos Jornalistas Angolanos (SJA):
“a instrumentalização político-militar dos orgãos [de comunicação social] foi a lógica
dominante nos 16 anos que se seguiram à independência”, razão pela qual “os orgãos de
comunicação social em Angola enfrentam hoje o enorme desafio de se transformarem
numa força que trabalha em benefício da democracia e da reconciliação, depois de
décadas de serem vistos basicamente como instrumentos de luta politico-ideológica e de
combate aos inimigos militares”303.
Os jornalistas, tanto dos meios de comunicação estatais quanto privados, mostraram-se
muito evasivos nas suas respostas, não sendo possível identificar a priori diferenças
significativas nem entre eles, nem entre as três cidades, no que respeita à pergunta sobre
a pertença ou inclusão dos meios de comunicação na sociedade civil em Angola. As
303 MATEUS, Ismael (2004), “O papel dos mídia no conflito e na construção da democracia”. Número especial, Da paz militar à justiça social? O processo de paz angolano. Conciliation Resources, nº. 15, pp.62-63.
opiniões dividiram-se entre uma parte que considera que fazem parte, porque promovem
a sociedade civil entre outras razões, e os que consideram que não fazem parte, porque
não se envolvem, regendo-se por um movimento e uma dinâmica próprios; uns ficaram-
se na reflexão sobre os papéis da comunicação social em sociedades democráticas, não
respondendo à pergunta; outros, ainda, acham que os meios de comunicação estatais não
são parte da sociedade civil, mas os privados sim.
A maioria dos participantes na pesquisa, nas três cidades e em todas as categorias de
análise, incluindo os jornalistas, não consideram os meios de comunicação social como
integrando a sociedade civil, apesar de reconhecido o seu papel como formadores de
opinião, o argumento usado pelos poucos profissionais da comunicação social
envolvidos na pesquisa para justificar a sua opinião de que a comunicação faz parte da
sociedade civil. As indecisões manifestadas por alguns profissionais da comunicação
social, a esta e a outras perguntas dos questionários, parece indicar não haver no seio da
classe uma reflexão sobre a relação dos meios de comunicação com a sociedade civil,
apesar da presença diária deste conceito na imprensa angolana, e não obstante a
existência de espaços de organização dos interesses dos profissionais da classe, como
sindicatos e associações, que se assumem, coletivamente, como parte integrante da
sociedade civil. Como refere Mateus, “... apesar de existirem estruturas profissionais
como o Sindicato dos Jornalistas Angolanos (SJA) e o Centro de Imprensa em Luanda,
estas necessitam ser reforçadas. Juntamente com a fraca formação profissional, esta
situação restringe a capacidade da comunicação social para dar resposta imediata a este
desafio [o apoio à democracia em Angola (...) [sendo] a sua maior participação (...) a
inversão do entendimento conceptual da ideia de serviço público”304.
3. As Autoridades Tradicionais e o poder local
Na busca por elementos para esclarecer a relação entre a sociedade no sentido mais amplo e as comunidades de base, entendidas de forma generalizada como correspondendo ao público moderno ou
cívico e ao público primordial, respectivamente, a pesquisa incluiu uma categoria de análise designada de Poder Local. Nesta categoria foram mobilizados membros do poder local, tanto
tradicional305 quanto da administração do Estado, com o objetivo de enquadrar o poder tradicional na discussão, devido às ambiguidades ainda prevalecentes sobre os seus papéis sociais. Após a
independência, foi comum a acusação de colaboracionismo com o regime colonial, sendo as autoridades tradicionais apresentadas à sociedade como representantes da sociedade colonial cujos vestígios era preciso apagar, ao mesmo tempo que eram identificados como representantes de uma sociedade feudal e obscurantista, que era fundamental combater306. A reação individual mais ou
304 Idem.
menos generalizada, foi a de não participação no projeto de construção da nova sociedade, e/ou o exílio em áreas urbanas ou suas periferias em busca do anonimato.
No âmbito das reformas dos anos 90, houve o reconhecimento jurídico e a definição
legal das autoridades tradicionais, bem como a atribuição das respectivas funções e
prerrogativas (incluindo um salário mensal) e símbolos (fardamentos e insígnias). A lei
reconhece os dois tipos de autoridade tradicional: a chefia fundada na linhagem, mais
comum nas zonas rurais, e a chefia fundada na eleição pela população local (mais
comum nas áreas urbanas e peri-urbanas).
A inclusão desta categoria na pesquisa visava obter informações sobre as formas de
integração destas entidades na vida pública nacional, principalmente face a algumas
interrogações sobre uma eventual manipulação política com vista à mobilização de
bases eleitorais, entre outras possíveis razões, dada a proximidade da realização das
próximas eleições. Outra preocupação relaciona-se com uma possível intenção de
despolitização e desconexão destas entidades da vida pública nacional, através de
alguma forma de destituição das suas prerrogativas em favor da administração local do
Estado ou de conselhos regionais de chefias tradicionais. Estas preocupações surgem no
âmbito das discussões sobre as ambiguidades sobre o papel desses personagens
enquanto representantes dos maiores grupos de interesse nacionais, os camponeses, até
agora claramente sub-representados em todas as instâncias de poder, ou como
representantes de identidades étnico-regionais, sua fonte de legitimidade, ou, ainda,
como representantes da administração local do Estado307.
Embora o questionário destinado a esta categoria não tivesse uma pergunta direta sobre
o pertencimento das autoridades tradicionais à sociedade civil em Angola, procurava
305 Importa referir que o uso do termo tradição e seus derivados se faz neste trabalho com reservas, uma vez que não subscreve o carácter de cristalização e imutabilidade que habitualmente lhe são consignados; pretende-se com esse
termo fazer referência ao “acervo cultural que (...) pode ser razoavelmente dinâmico, enriquecendo-se e transformando-se pelas conjunturas”. Reservas idênticas à ideia de sociedade tradicional como termo adequado para
descrever as sociedades rurais africanas dos nossos dias, dado que “ignora as alterações que essas sociedades sofreram por força da ocupação colonial e da sua consequente exposição à economia capitalista”. NICOLAU, Victor
Hugo. (1999), op. cit. 306 Enquanto alguns autores africanos, como Mamdani, vêm a tradição como fornecendo a base para um despotismo descentralizado, outros visualizam-na como constituindo um espaço de socialização e de vida, alternativo ao individualismo e à cultura globalizante do ocidente (Nyamnjoh), ou como contendo o possível modelo de uma alternativa denmocrática (Wamba-dia-Wamba). Outros (Michael Neocosmos), opõem à celebração acrítica da tradição como cultura autêntica, e ao discurso neoliberal dos direitos humanos, uma visão alternativa da tradição em África, sugerindo que ela seja entendida na perspectiva de um caminho completamente novo de pensar a política. 307 NETO, Mª da Conceição. (2002), Respeitar o passado – e não regressar ao passado. Contribuição para o debate sobre a Autoridade Tradicional em Angola. I Encontro Nacional sobre a Autoridade Tradicional. Luanda, 20-22 de Março.
conhecer as relações entre estas e as diversas instituições habitualmente identificadas
como pertencendo à sociedade civil, o que parecia endereçar a questão assumida no
pressuposto. As respostas obtidas permitem identificar relações de proximidade e de
colaboração/cooperação entre as autoridades tradicionais e os grupos e organizações
identificados como pertencendo à sociedade civil em Angola, nomeadamente as Igrejas
e as organizações locais (associações de moradores, comissões de Bairro), com as quais
as autoridades tradicionais mantêm relações, por eles consideradas de muito boas ou
boas, e as associações cívicas e outras associações e grupos de interesse são também
organizações com as quais as autoridades tradicionais mantêm relações próximas.
De notar que as organizações comunitárias de base não mereceram a mesma
unanimidade das outras organizações locais, tendo sido ocasionalmente identificadas
pelas autoridades tradicionais em Luanda e em Benguela, e ignoradas em Malanje. Uma
eventual explicação para a diferença de tratamento, tanto relativamente às outras
organizações locais, quanto entre as três cidades, pode residir no fato de estas
organizações serem entendidas como competindo com as autoridades tradicionais em
alguns dos pelouros que estas gostariam de ter ou manter sob sua responsabilidade.
As relações com outras organizações identificadas como pertencendo à sociedade civil,
nomeadamente as ONG’s e as cooperativas ou associações de produção e de consumo,
parecem ser diferentemente percebidas em função das experiências locais, da maior ou
menor presença dessas organizações nas três cidades. As ONG’s parecem ter uma
relação próxima com as autoridades tradicionais em Benguela e em Malanje, mas não
receberam essa indicação de todos os participantes nesta categoria em Luanda,
provavelmente devido ao papel que algumas delas desempenharam como agentes na
ajuda alimentar ou de emergência durante a guerra civil, que foi mais visível naquelas
duas cidades do que em Luanda. Não existem cooperativas ou associações de produção
e de consumo nos bairros das autoridades tradicionais que participaram em Luanda
(urbanos e periurbanos), que foram indicadas por poucos participantes desta categoria
em Benguela e em Malanje.
As relações com os partidos políticos foram qualificadas de boas ou normais por quase
todos os participantes desta categoria nas três cidades; contudo, em outras respostas,
nomeadamente sobre as relações entre as autoridades tradicionais e os deputados eleitos
em 1992, as mesmas foram consideradas “esporádicas e remetendo a situações de
interesse para os partidos que representam”, ou seja, essa relação acontece quando os
partidos (mais especificamente o partido no poder, com maior presença em Luanda)
precisam de alguma forma de legitimação/adesão por parte da população, relativamente
a alguma decisão considerada importante para o partido. Outras opiniões consideraram-
na como “praticamente inexistente, e quando acontece visa responder a uma
necessidade identificada pelo partido e não tem em vista auscultar as preocupações da
população: os deputados eleitos terem dado costas às autoridades tradicionais”, criticou
um dos participantes. Parece o caso de considerar algumas dessas respostas como
politicamente corretas, sendo de notar que 2 dos integrantes desta categoria em Luanda,
pediram anonimato para participarem na pesquisa.
Os sindicatos não figuram entre as instituições próximas ao poder local, em nenhuma
das três cidades, sendo visível a falta de informação sobre os papéis e as atividades dos
mesmos pelos participantes do poder local. O fraco desenvolvimento do sindicalismo
em Angola, e a sua concentração em algumas áreas urbanas, pode constituir parte da
razão deste desconhecimento.
De uma forma geral, os representantes do poder local que participaram na pesquisa
chamaram a atenção para o fato de as associações de moradores e alguns outros tipos de
associações cívicas serem confundidas com partidos políticos. Esta percepção é bastante
comum no atual panorama político angolano, muitas vezes veiculada por figuras
públicas ligadas ao poder, quando associam/denunciam a actividade política de
organizações cívicas, sindicatos, ONG’s, e outras organizações da sociedade civil, como
sendo político-partidária. A argumentação a que se decorre parece evidenciar a intenção
de confundir a acção política, entendida na perspectiva dos direitos reconhecidos
constitucionalmente a todos os cidadãos, de livre expressão, associação e reunião, com a
ação político-partidária dos partidos. Talvez esta percepção se fundamente numa
identificação das autoridades tradicionais com o discurso do poder, que foi denunciada
pela relação de pertencimento obrigatório das autoridades tradicionais ao partido no
poder, particularmente em Luanda, onde os Sobas eleitos atualmente seriam antigos
combatentes do MPLA, o que foi confirmado pelos próprios Sobas, afirmando que
saíram de organizações de base do “Partido” (entenda-se MPLA). Embora não seja
possível afirmar que esta seja uma situação comum a todos os Sobas da área de Luanda,
o fato de ter sido estabelecida esta relação, parece indicar a intenção de usar
politicamente o chamado poder tradicional, e que é necessário aprofundar esta análise
através de futuras pesquisas.
Entretanto, uma constatação sugerida por estas respostas parece ser que as autoridades
tradicionais se movimentam com alguma facilidade no meio das organizações
consideradas como pertencendo à sociedade civil em Angola, pelo menos aquelas que
receberam unanimidade nessa inclusão. Embora na ótica das demais categorias de
participantes as autoridades tradicionais não façam parte da sociedade civil, os
resultados acima expostos parecem indicar a existência de uma proximidade que
facilitaria a sua atuação como mediadores e/ou articuladores das relações entre as
comunidades de base e as demais organizações e instituições, da sociedade e do Estado.
Diversas experiências têm revelado essa capacidade de mediação e articulação das
autoridades tradicionais, nomeadamente programas e projetos de combate à pobreza, de
vacinação, de desenvolvimento comunitário, etc., facilitando o diálogo entre atores
sociais locais e de outras camadas sociais, nomeadamente as relações entre ONG’s,
políticos, técnicos de diversas áreas, empresários, etc. e as populações das comunidades
de base. Nas avaliações desses encontros ou desses programas, encontram-se referências
ao papel de charneira, de mediação entre comunidades de base e outras camadas sociais,
potencialmente útil para a expansão dos espaços públicos e da inclusão social. Contudo,
também existem referências (por exemplo na coleta de opiniões de comunidades de base
sobre o então Ante-Projeto da Lei de Terras, em 2003), do seu papel na manutenção de
práticas discriminatórias, nomeadamente em relação às mulheres e aos jovens, não só no
tocante ao acesso e uso da terra e seus proventos, mas também em relação à participação
destes grupos nos processos de tomada de decisões, a nível das comunidades, numa
tentativa de retorno aos valores tradicionais que representam perdas para mulheres e
jovens.
Por isso, e como em outras situações em que se buscam formas de aproximação e de
interação entre mundos sociais muito distantes, entre realidades socio-econômicas e
culturais tão distintas, especialmente quando se pretende estabelecer pontes entre elas,
importa considerar todas as possibilidades de articulação, existentes ou potenciais, e
ponderar as consequências de uma simples restauração dos poderes das autoridades
tradicionais, em resposta às demandas por estas colocadas308 (ou algumas de entre elas)
no âmbito do processo de descentralização administrativa em curso e da projetada
criação de autarquias locais309.
Para além da reflexão sobre as mudanças nas relações de poder e sociais produzidas
pelos processos de conquista e de colonização, da luta anti-colonial, e dos movimentos
migratórios pós-independência, e das suas consequências na desarticulação das formas
ancestrais de relação das instituições tradicionais com as respectivas comunidades de
base, importa considerar, também, os efeitos acumulados da modernização da sociedade
na configuração das relações sociais310. As unidades territoriais e as bases populacionais
às quais essas autoridades estavam relacionadas, os antigos reinos existentes em Angola
não mais existem, prevalecendo na memória social das comunidades ou grupos de
comunidades as relações com os descendentes das chefias de linhagem, embora sejam
cada vez mais comuns as chefias eleitas para os diversos cargos incluídos nesta
designação. A maior parte dos Sobas que participaram na pesquisa foram eleitos, muito
poucos tinham essas funções por linhagem.
A prática de eleição dos Sobas tem vindo a expandir-se em todas regiões do país, e tem
sido vista como resultado de alguma pressão, por parte do Estado, no sentido de criar
pontes entre a população e as estruturas de poder aos diversos níveis, ancorando no
exercício das normas tradicionais que regem a vida comunitária, uma extensão da
administração do Estado nas comunidades. Assim, a prática de eleição das autoridades
tradicionais é considerada por alguns como uma forma mais democrática de escolher os
representantes da população, enquanto para outros permite uma maior intervenção do
poder público, ou de interesses alheios à comunidade, na escolha dos seus
representantes.
Talvez tão importante, ou mais, do que saber se os “Sobas” foram eleitos ou
empossados por descenderem de linhagens reais ou nobres, importa saber se, em função
dessas novas práticas de escolha das lideranças locais, houve mudanças também nas
práxis relacionadas com o processo de tomada de decisão, nomeadamente o seu carácter
308 NETO, Mª. da Conceição (2002), op. cit. 309 MAT (Ministério da Administração do Território)/ PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) (2003), op. cit. 310 PACHECO, Fernando. (2002), op. cit.
aberto, público. Ou seja, até que ponto os novos “Sobas” mantêm a prática do Ondjango
(espaço circular, aberto, que permite aos não diretamente envolvidos nas discussões,
verem, ouvirem e participarem), e que com frequência surge relacionada com a
recriação e/ou renovação dos espaços públicos em Angola.
As respostas obtidas não foram muito específicas em relação à questão supracitada.
Mais do que referir “como” esse processo de debate e tomada de decisão ocorre, numa
perspectiva de relacionar poder local tradicional com a respectiva comunidade, a
maioria das respostas enveredou pelo caminho da relação entre os dois poderes locais, o
tradicional e o estatal, definindo-a em geral, como de “subordinação” daquele em
relação a este. Apesar de ter sido realçada a necessidade de articulação entre as
responsabilidades assumidas perante a administração do Estado, e o trabalho de
sensibilização, mobilização e organização do trabalho nas comunidades, e de terem sido
indicadas dificuldades não especificadas para o exercício das suas funções, nenhum dos
10 membros do poder tradicional que participaram na pesquisa se referiu explicitamente
ao Ondjango. Um deles, contudo, desabafou: “Aqui em Luanda, nesta situação [de
deslocado], pouco ou nada faço, não encontro espaço para exercer as minhas funções,
que são de organizar a minha sanzala e o meu povo”.
A ausência de referência ao Ondjango pelos membros do poder local, tanto tradicional
quanto estatal, pode ter sido devida à falta de clareza das perguntas. Outra possibilidade
é que esta instituição de tomada de decisão esteja perdendo espaço fora das
comunidades rurais, “nas áreas peri-urbanas, os sobas têm mais dificuldade em
encontrarem espaço e conseguirem os meios para a construção destes espaços de
decisão, transferindo o Ondjango para suas casas, em geral pequenas e pouco abertas,
limitando a participação aos diretamente envolvidos no assunto em discussão”311. Uma
outra possibilidade, ainda, é a de que a imagem do Ondjango esteja sendo transformada
em utopia da recriação de espaços de participação por intelectuais, organizações e
grupos da sociedade civil urbana, embora o seu uso possa estar em declínio nos espaços
peri-urbanos pelas razões acima apontadas.
311 ROBSON, Paul & ROQUE, Sandra. (2001), op. cit. ROBSON, Paul. (2001), op. cit.
Talvez em resultado dos efeitos dos processos anteriormente referidos, existe uma
ambiguidade por parte das próprias autoridades tradicionais relativamente à sua
legitimidade, representatividade e reconhecimento, apresentando-se em algumas
ocasiões como representantes das comunidades de base, e noutras como representantes
do mais baixo escalão da administração do Estado. Quem representam, um grupo de
pessoas ou uma comunidade junto do Estado, ou o Estado nessa comunidade ou junto
desse grupo de pessoas?312. Por outro lado, a heterogeneidade sócio-cultural das cidades
(principalmente nas áreas peri-urbanas), em resultado dos movimentos migratórios
provocados pela guerra, a sobrevivência e a busca de melhores condições de vida,
“dificulta o uso de mecanismos tradicionais de ligação com os moradores”313, e torna
quase impossível a função de organização da ação coletiva e o exercício da mediação na
resolução de conflitos entre os moradores.
V. ENTRE O PODER DO ESTADO E A VULNERABILIDADE DA
SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA
A saída para a Paz, conseguida no plano militar, não deixou muitas possibilidades para
o protagonismo da sociedade civil na construção da Paz social. As respostas evidenciam
percepções críticas da debilidade da sociedade civil, e também mostram que os
participantes relacionam a forte ligação entre interesses políticos e econômicos com o
elevado grau de dificuldade de influenciar ambos os sistemas, condição sine qua non
para alcançar o objetivo de mudança societal ampla.
A atribuição à sociedade civil do protagonismo num processo de mudança social parece
indicar que os participantes a identificam como um espaço de contestação democrática e
mobilização social fora do Estado, do mercado e da família, capaz de interpor ao Estado
e ao mercado alternativas para a saída da crise que o país continua vivendo. Se por um
lado a sociedade angolana já não se caracteriza por um regime totalitário no qual o
Estado tinha o controle sobre todos os aspectos da vida social e onde, para além da
família, não existia qualquer outra esfera privada organizada e independente a não ser a
das igrejas, ainda não se alcançou um estado de democracia em que todos os cidadãos
tenham acesso aos meios de comunicação, e que todos os grupos sociais tenham a
312 ROBSON, Paul & ROQUE, Sandra. (2002), op. cit. 313 ROBSON, Paul & ROQUE, Sandra (2001), op. cit.
oportunidade de interpelar o Estado com vista à formulação de políticas públicas
tendentes a resolver os seus problemas. Pelo contrário, Angola é formalmente um
estado democrático de direito, mas o ambiente caracteriza-se pela pobreza, a
desigualdade social, o acesso desigual aos meios de comunicação, às instituições do
Estado, e aos direitos, e onde a esfera pública é frequentemente percebida como um
espaço de legitimação das decisões dos detentores do poder.
O processo de democratização iniciou formalmente há cerca de 15 anos, mas a
prevalência da guerra civil durante a maior parte desse período não favoreceu a
constituição legalização, fortalecimento e diversificação das organizações da sociedade
civil em Angola. As formas organizativas da sociedade civil são recentes, com grandes
limitações na mobilização de recursos financeiros, materiais e humanos para o
desenvolvimento das suas atividades, o que as tornam extremamente dependentes de
agências multi e bilaterais, enfrentando enormes problemas de ordem burocrática para a
sua legalização. A sua distribuição pelo país também é bastante desigual, concentrada
nas principais cidades, ou seja, mais do que um fenômeno urbano comum em África, a
sociedade civil tem pouca presença em cidades mais pequenas do interior, ou que
tenham sido mais atingidas pela guerra. Ainda assim, a sua visibilidade está crescendo e
a sua relação com o Estado tende a encaminhar-se para uma situação de tensão criativa,
combinando cooperação e oposição, esta última entendida como confrontação /
interpelação com vista à defesa de interesses dos grupos e organizações que representa
ou que busca publicitar.
A par das organizações habitualmente identificadas com a sociedade civil, as igrejas
continuam sendo as principais porta-vozes dos grupos sociais mais desfavorecidos nas
áreas urbanas e periurbanas, embora algumas igrejas consigam manter, e até expandir, a
sua presença em áreas rurais, mais remotas. Contudo, de uma forma geral, os interesses
das populações residentes nestas áreas, que constituem a maioria mais necessitada entre
os angolanos, não chegam às instituições do Estado, com as quais estas comunidades
praticamente não têm contacto. É através das autoridades tradicionais que estas
comunidades se relacionam com a sociedade em geral, e que são conhecidos os seus
problemas e necessidades, bem como as soluções que identificam para a superação dos
mesmos, nas quais colocam habitualmente uma razoável dose de auto-envolvimento.
A perspectiva de uma Angola verdadeiramente unificada através de um processo de
consolidação da Paz social, contida na maioria das respostas, parece considerar a
inclusão dos grupos sociais hoje marginalizados e das comunidades rurais, que
constituem a maioria da população, e que ainda se regem por regras e normas do direito
costumeiro, não se reconhecendo e nem tendo acesso aos mecanismos do direito
moderno. E, também neste aspeto da luta pela democratização, a sociedade civil é
chamada a desempenhar o papel de promotor da inovação e da criatividade sociais, no
sentido de encontrar as estratégias mais eficazes para induzir a mesclagem de valores e
costumes tradicionais nos valores e práticas do quadro de referências dominantes nas
sociedades atuais, de valores políticos democráticos e de práticas econômicas liberais,
enquanto se identificam os melhores caminhos para incluir as comunidades rurais no
processo de modernização em curso, designadamente através do fortalecimento das
relações entre os meios rural e urbano e da transferência / introdução de novas
tecnologias de produção, de construção civil, de comunicações e de transportes.
Atendendo aos valores de inclusão, justiça e equidade social reivindicados pela grande
maioria dos participantes na pesquisa, a desejada transformação societal passa pela
modernização, ainda que lenta, das regras e normas tradicionais, por exemplo no que
respeita às práticas discriminatórias em relação às mulheres e aos jovens, e pela
incorporação de regras e normas tradicionais nos dispositivos legais do sistema jurídico
moderno.
Enquanto a luta da sociedade civil se pauta pela democratização das formas de governo,
nomeadamente através de ações que visem levar o Estado a sentir-se obrigado a engajá-
la na formulação, implementação e avaliação das políticas públicas, e na expansão dos
direitos de cidadania através da transformação dos atuais clientes dos serviços públicos
em cidadãos co-gestores dos interesses públicos, os meios de comunicação têm
procurado cumprir o seu papel de denúncia de desrespeito aos direitos humanos, e de
implantação de uma cultura de prestação de contas e de transparência na gestão dos
interesses públicos, com particular destaque nos meios de comunicação privados. Mas
os dados apresentados também mostram que a sua área de influência é muito restrita,
quase urbana, pouco diversificada, bastando citar que existe apenas um jornal diário, e
que até agora a lei não permitia canais de televisão privados, e praticamente sem espaço
para a expressão de dissensos em relação à condução do país nos planos político,
econômico e social. A contribuição dos meios de comunicação social para a
democratização das formas de governo em Angola, a par dos esforços da sociedade civil
para expansão do espaço público, parece assim comprometer o alcance dos objetivos
preconizados pelos participantes na pesquisa.
A releitura dos dados sobre a situação de pobreza e dos indicadores de desenvolvimento
humano e social, mostram inequivocamente que esses progressos não têm sido os
necessários para provocar as mudanças que transformem a realidade atual. Para isso
será necessário que a sociedade civil e os atores sociais com funções de articuladores e
mediadores consigam mobilizar uma mais ampla participação da sociedade, e formas
mais adequadas de representação de direitos e interesses, de maneira a despoletar um
processo de mudança na própria atitude das lideranças do país e dos responsáveis pelas
instituições do Estado e do sistema político angolano, mudanças estas também
identificadas pelos participantes como necessárias para que a transformação societal
mais ampla possa acontecer.
Este capítulo dedicou-se à análise dos papéis atribuídos à sociedade civil pelos
participantes com vista a testar os pressupostos assumidos, de que esses papéis seriam
relacionados com a organização de espaços de negociação de processos de mudança,
onde prevaleciam as ideias de construção de nação e de cidadania, de modernização e
democratização da sociedade, e de combate à pobreza e à desigualdade social, também
se confirmou. Estes pressuposto continha implícita uma prioridade que foi explicitada
pelas respostas dos atores sociais que participaram na pesquisa, nomeadamente a da
consolidação da Paz e da reconciliação nacional.
A organização da discussão do capítulo permitiu dar a conhecer as opiniões dos
participantes sobre os papéis que atribuem à sociedade civil. A partir de um traço de
insatisfação revelado pela maioria dos participantes em todas as respostas em que
pudessem expressá-la, identificaram-se as prioridades e os caminhos de um amplo
processo de mudança social orientado para o desenvolvimento do capital humano, no
âmbito de reformas nos sistemas político e econômico com vista a tornar mais
transparente a gestão dos interesses públicos, a proporcionar uma mais justa
redistribuição dos rendimentos nacionais, relacionada com o combate à corrupção, a
consolidação da Paz e a reconciliação entre os angolanos.
A democratização da sociedade parece entendida como um resultado do processo de
mudança e não um objetivo em si. O alargamento dos espaços públicos, através da
institucionalização de instâncias de participação a todos os níveis, não parece constar
das preocupações imediatas dos participantes, o que ficou evidente no cruzamento de
opiniões sobre prioridades atribuídas a políticas públicas visando tornar a gestão mais
transparente e participante, com as que previam a expansão das oportunidades de
participação dos cidadãos, entre outros exemplos.
A modernização da sociedade não mereceu o mínimo destaque nas três cidades e em
todas as categorias de análise. Uma possível interpretação é que, tal como aconteceu
com a democratização da sociedade, a modernização seja entendida mais como
resultado do que como objetivo de política. Considerando as respostas no seu todo, e
dada a dimensão da insatisfação manifestada, parece implícita uma amplitude mais
significativa no processo de mudança do que aquela que foi identificada. A confirmação
desta suposição implica a realização de estudos mais abrangentes e desenhados com
esse objetivo.
À primeira vista, a atribuição pelos participantes à sociedade civil da responsabilidade
de motor da mudança em Angola, parece ultrapassar as reais possibilidades que ela
demonstra possuir, devido às relações históricas entre o Estado e a sociedade em Angola
que determinam a falta de incentivos e apoios institucionais ao seu desenvolvimento e
expansão, e consequentemente, uma grande dependência de apoios e recursos externos,
o que pode condicionar a sua agenda e o seu papel social.
CAPÍTULO 6 – 212 PÁGINAS DEPOIS ... QUE CONCLUSÕES?
I
Sobre a importância do tema da tese para a atualidade em Angola destacam-se, entre
outras, as seguintes conclusões: 1º. o tema mostrou-se relevante não apenas como
conceito recorrente nos discursos dos atores sociais, estatais e não-estatais, tanto nas
matérias veiculadas ou transmitidas pelos meios de comunicação como em opiniões
expressas em encontros, seminários, documentos oficiais, entre outros, mas também
como prática da ação coletiva num espaço de intervenção social fora da esfera estatal e
do sistema político-partidário, no qual atores não-estatais procuram as estratégias mais
eficazes para fazerem ouvir a sua voz em defesa dos seus interesses, numa fase pós-
guerra civil em que é evidente a expectativa de amplas mudanças nos cenários político,
econômico e social. 2º. A realização da tese revelou a complexidade da análise do tema
no contexto angolano e a vantagem de recorrer a diversos métodos de pesquisa para
além da bibliográfica. A observação direta, a pesquisa de campo, os debates sobre o
tema, a participação em seminários e grupos de trabalho no âmbito de reformas
institucionais em curso em Angola, a troca de experiência com outros estudiosos da
realidade angolana, entre outras oportunidades, contribuíram para uma análise mais
compreensiva, ainda que limitada e insuficiente em termos de abrangência dos atores
sociais abrangidos e dos espaços que eles ocupam; aliando teoria e empiria tornou-se
possível caracterizar as percepções coletadas na pesquisa de campo, perceber a riqueza
das expressões plurais sobre o tema e confronta-las com os quadros teóricos disponíveis
na literatura consultada. 3º. A tese, para além de trazer para a discussão diversas fontes
de referência sobre a sociedade civil incluindo os debates atuais no sul e no mundo não
ocidental, em particular reflexões de acadêmicos, políticos e outros atores sociais
africanos, e de dar a sua contribuição para a compreensão das dinâmicas sociais
prevalecentes na Angola de hoje, permitiu identificar futuras linhas de pesquisa, com
vista a ampliar o conhecimento sobre os atores sociais, suas representações,
expectativas e limitações, identificar as oportunidades e constrangimentos para a
participação e a influência que a atual configuração do espaço público oferece, através
do alargamento da base de recolha de opiniões tanto do ponto de vista da inclusão de
outros grupos sociais, quanto da cobertura geográfica.
Sobre a inclusão da análise do percurso histórico como ponto de partida para a
compreensão do momento atual em Angola, conclui-se que a mesma a) permitiu uma
melhor compreensão das representações sociais sobre a sociedade civil, revelando a
enorme expectativa nela depositada pela maioria dos participantes na pesquisa de
campo, bem como nos trabalhos de autores angolanos incluídos na pesquisa
bibliográficas, principalmente no que respeita ao papel da sociedade civil em Angola
como motor da mudança; b) mostrou a adequação da aplicação do argumento de Ekhe
ao contexto sócio-político atual em Angola, para avaliar as consequências dos processos
de colonização na desigualdade do acesso e exercício da cidadania, tornando visível as
distintas condições e oportunidades de acesso ao espaço público de um reduzido público
cívico e da maioria de um público primordial; c) forneceu as bases para identificar a
necessidade de incorporar a qualquer análise sobre a sociedade civil em Angola, a teoria
do espaço público; esta necessidade resulta da insuficiência das teorias da sociedade
civil fundadas na noção da vida associativa, para a construção de um quadro teórico
capaz de conferir sentido às representações dos atores sociais, estatais e não-estatais, e
mostrar as possibilidades de concretização das aspirações de inclusão e de participação
de amplos segmentos da sociedade angolana.
A análise do quadro institucional angolano constituiu a chave para a compreensão das
relações sociais e de poder em Angola, porque a) permitiu identificar a concentração do
poder nas instituições estatais, em geral, e na presidência em particular, e as suas
consequências na ocupação do espaço público, na construção da opinião pública e na
formatação das representações e papéis atribuídos à sociedade civil; b) revelou a forte
interligação de interesses entre a esfera estatal e a esfera econômica, o que constitui um
elemento importante na identificação das condições de possibilidade de um maior
protagonismo da sociedade civil em Angola no processo de mudança preconizado pela
grande maioria dos participantes na pesquisa de campo, considerado condição sine qua
non para que tal mudança possa acontecer; c) evidenciou a grande fragmentação do
sistema político, e a dificuldade de construção de uma oposição política capaz de
organizar os interesses dos grupos sociais mais desfavorecidos ou dos excluídos do
espaço público angolano, em programas alternativos ao do partido no poder, que luta
pela sua manutenção no poder; d) tornou visível a necessidade da intervenção de atores
sociais, individuais ou coletivos, como igrejas, meios de comunicação e autoridades
tradicionais, na articulação ou mediação das relações sociais e de poder, capazes de
operar nas interfaces moderno/tradicional, público/privado, formal/informal, e de
estabelecer as pontes de comunicação entre as diversas partes que constituem a
sociedade angolana, agindo como descodificadores semânticos entre elas, e assim
contribuir para a construção de um futuro melhor para os angolanos; e) criou uma
oportunidade para compreender o papel das agências bi e multilaterais na configuração
da sociedade civil em Angola, possível devido à enorme dependência financeira das
organizações nacionais, por um lado, e às condicionalidades impostas através dos seus
programas de combate à pobreza, de ajustamento estrututal, ou de financiamento de
comunidades carentes, impondo as suas noções de democracia, boa governação,
transparência e prestação de contas, que tendem a formatar uma sociedade civil sem
cidadania, esvaziada do seu conteúdo político, ao mesmo tempo que visam outro
objetivo que também atinge a sociedade civil, e que é o da redução do papel do Estado,
em particular no que respeita à garantia de segurança social, de investimento em capital
humano, redistribuição da riqueza nacional através de políticas públicas de combate à
desigualdade social, entre outras.
Sobre a utilidade do recurso ao conceito de sociedade civil para explicar as dinâmicas
sociais em África em geral, e em Angola em particular, as incursões sobre os
entendimentos do conceito em algumas tradições de pensamento ocidentais, nos
discursos de organizações internacionais e regionais de estados, e de redes mundiais,
regionais e nacionais de organizações e grupos de cidadãos, e em algumas vertentes da
discussão académica em África, parecem apontar para as seguintes conclusões
importantes para a organização da discussão: 1º. que o conceito de sociedade civil é
necessário, porque recorrente para a interpretação dos processos de reconfiguração das
relações entre as organizações de cidadãos e o Estado; 2º. a existência de diversos
movimentos e tensões na construção das representações da sociedade civil: internos e
externos, locais, nacionais e supranacionais, e a insuficiência dos complexos binários do
local versus global, do tradicional versus moderno, ou do conhecimento legitimado
versus conhecimento rival, apontando outrossim para a caracterização de uma dinâmica
própria, condicionada pelas conjunturas externas, mas que não busca na contra-
hegemonização a sua motivação ou raison d’être; 3º. a necessidade de adotar uma
metodologia alternativa, aliando teoria e empiria, para refletir na discussão a riqueza da
diversidade de representações, vivências / experiências e expectativas dos diversos
atores civis. No caso particular de Angola, a incorporação de uma parcela significativa
do seu tecido social e suas representações, correspondente ao “público primordial” de
Ekhe e aos “sujeitos” de Mamdani, implica o reconhecimento da oralidade como forma
de expressão de conhecimentos válidos e essenciais para a compreensão das realidades
sociais em estudo, e a busca por uma conciliação difícil, mas não impossível, entre a
objetividade do pensamento ocidental e a riqueza da retórica africana na busca de um
novo caminho para pensar a política; 4º. A diversidade das formas de organização
identificadas, dos grupos informais às organizações legalmente instituídas, dos papéis
atribuídos, da auto-ajuda à luta pela defesa de direitos universais, das motivações e
agendas, e dos espaços de intervenção aos diversos níveis do processo de tomada de
decisões, aponta para a perspectiva ampla de um entendimento de sociedade civil como
processo dinâmico e fundamentalmente político de interação entre várias organizações
da sociedade e entre estas, o Estado e o mercado, através do qual são forjadas,
fortalecidas ou enfraquecidas as relações de poder, pela criação de oportunidades para
diferentes grupos (particularmente aqueles em situações política ou socialmente
desvantajosas) adquirirem a capacidade de influenciar os resultados políticos, e
contribuírem para a emergência de modelos alternativos de desenvolvimento,
contribuindo assim para a construção de um novo paradigma e suas metodologias314.
II
O desejo de compreender as semelhanças e as distinções entre os significados ou
sentidos expressos pelos participantes na pesquisa, e os retidos na pesquisa bibliográfica
sobre o tema em diversos quadrantes, do Ocidente à África e a outras regiões do
hemisfério sul, apontou para a necessidade de iniciar este estudo pela discussão da
modernidade e das formas de inserção das sociedades não-ocidentais no processo de
globalização percebido como profundamente orientado por sistemas de valores e
crenças ocidentais.
A realização do estudo numa época em que não é possível ignorar os impactos do
processo de globalização nas realidades locais, mas em que se reconhecem igualmente
os efeitos dessas realidades locais na formatação desses impactos, explicitados nos
processos de influência em mão dupla, determinou a necessidade de dar um espaço à
relação dos atores sociais angolanos com instâncias de participação e de influência a
nível supranacional, através das oportunidades criadas pelas organizações da sociedade
civil global. Esta opção permitiu perceber a influência dos debates e dos discursos da
sociedade civil global na configuração das representações dos atores sociais angolanos,
que por sua vez aproveitam essas oportunidades para dar a conhecer a realidade
angolana, denunciar situações de injustiça social e de violação de direitos, engajar-se em
lutas pelo reforço das capacidades cidadãs numa arena cívica mais inclusiva, mobilizar
solidariedades e identificar formas de cooperação e ajuda aos diversos níveis de
314 NEGRÃO, José. (2004), op. cit.
intervenção a que têm acesso, rompendo com o isolacionismo que o regime político tem
imposto, e contribuindo assim para incluir Angola no debate global, enriquecendo-o
com as suas experiências, sucessos e fracassos, e emprestando-lhe as suas próprias
nuances ideológicas e utópicas.
A inclusão das ideias sobre sociedade civil no mundo não-ocidental visou uma tipologia
não apenas político-geográfica mas também teórico-ideológica, a partir dos elementos
aparentemente comuns veiculados por essas ideias. Com o objetivo de contribuir para a
poliformia e polissemia desse debate, monopolizado pelas abordagens do pensamento
ocidental frequentemente redutor na interpretação das muitas estórias, das muitas
geografias e das muitas culturas que se compõem e decompõem em múltiplas trajetórias
que convergem e divergem em movimentos de atores com fontes e recursos variados,
incorporaram-se representações coletivas e interpretações eruditas e populares de outros
contextos onde o conceito é recorrente nas lutas pelo acesso aos recursos reais e
simbólicos, políticos e econômicos, pela melhoria da qualidade de vida dos indivíduos e
dos grupos315. O alargamento ao mundo não ocidental da base de recolha das
configurações dos debates atuais sobre o conceito contribuiu para confirmar a
legitimidade da adequação do conceito a esses contextos, tão frequentemente discutida
no debate ocidental, mostrando a diversidade de processos nos quais o conceito é
recurso, devido ao potencial de movimento e de mobilização que vem demonstrando ao
longo da sua história. Permitiu, ainda, perceber o seu papel na organização da
resistência das sociedades colonizadas em geral, e africanas em particular, contra a
assimilação e a aculturação nos processos através dos quais os impérios coloniais
influenciaram as texturas sociais, culturais, econômicas e políticas africanas. Esse papel
de organizador da resistência, através das amplas coalisões que deram consistência e
conferiram legitimidade aos movimentos nacionalistas pela independência a partir de
meados do século XX, e foi apropriado mais tarde na constituição das amplas frentes
que lutaram por reformas democráticas entre finais dos anos 80 e início dos anos 90,
continua hoje a alimentar a utopia de uma sociedade melhor e de um futuro mais digno
para as sociedades africanas, servindo de inspiração a diversos tipos de luta contra o
status quo e as ideologias que lhe servem de suporte, particularmente a neoliberal.
315 DIOUF, Mamadou. (1999), “Des histoires et des histoires, pourquoi faire? L’ historiographie africaine entre L’État et les Communautés”. Revue Africaine de Sociologie, nº. 3, vol. 2, pp. 99-128.
A ideia de sociedade civil confere sentido à organização da ação coletiva num contexto
de reconhecimento, por parte dos atores sociais, de que o Estado e o mercado são,
apenas, dois componentes de uma trilogia essencial: a sociedade importa, as instituições
sociais contam, e os cidadãos fazem a diferença no que respeita à riqueza da política e
ao sucesso econômico. O contraste entre o progresso político e econômico de uma
pequena porção da sociedade angolana, e a pobreza e a exclusão social da grande
maioria da população que pagou a maior parcela dos custos sociais e econômicos da
guerra civil, incita os atores angolanos a constituírem (ou reforçarem as já existentes),
organizações cívicas, comunitárias, de residência, profissionais, ou outras, com vista à
formulação de estratégias de influência junto dos poderes públicos. Esta ampla
construção social, aliando organizações de base, muitas vezes informais, a organizações
especializadas na defesa dos mais diversos tipos de direitos, demonstra a percepção da
necessidade de superar diferenças e unir forças com vista ao alcance de objetivos
comuns, e constitui em si uma promessa da capacidade da sociedade civil em Angola
em assumir o protagonismo no processo de mudança, atribuído pelos participantes na
pesquisa. Num contexto fortemente marcado pelas sequelas de uma guerra civil que se
prolongou desde o período imediatamente anterior à independência até 2002, o combate
à pobreza e à exclusão social parece percebido como um caminho para a reconciliação
nacional e a consolidação da paz social.
A análise dos debates apresentada no capítulo 2 mostrou que não é possível desenvolver
uma definição padrão para a sociedade civil aplicável de igual modo a diferentes
contextos, sendo necessário uma maior compreensão, melhor informação e uma maior
diversidade de caminhos ou meios de situar a noção de sociedade civil em suas diversas
dimensões nos contextos da economia, da política e da sociedade em geral. As
diferentes perspectivas segundo as quais o conceito é apresentado não são, contudo,
necessariamente contraditórias, nem as várias abordagens para a compreender opostas
ou mutuamente excludentes; pelo contrário, são frequentemente complementares,
diferindo mais na ênfase, no foco da explicação, e nas implicações políticas dessas
análises do que nos princípios que orientam a sua construção. Outra evidência dessa
análise é a que sugere como estratégia mais proveitosa uma abordagem que situe
qualquer definição do conceito como o resultado dos esforços empíricos correntes para
melhor compreender a sociedade civil, uma vez que qualquer definição do conceito
certamente evoluirá com o tempo, não devendo por isso ser entendida como dada, nem
como algo que possa ser imposto316. Parece mais importante compreender a mudança e
inclui-la como variável normativa, do que interpretar a estrutura e procurar encaixar o
“mundo real” em matrizes dadas, onde as relações tenham de ser, compulsivamente,
dicotômicas ou tricotômicas317.
Contudo, apesar do recurso ao conceito para expressar insatisfação em relação ao status
quo, articular objetivos emancipatórios e perseguir a utopia de uma Angola melhor num
mundo melhor, e do aumento significativo de organizações formais, como associações
cívicas e culturais, entidades religiosas, associações profissionais, sindicatos, e
informais, como redes, mutualidades, grupos de auto-ajuda, etc., o quadro de referências
para a compreensão das dinâmicas presentes na sociedade angolana não parecia
completo, porque incapaz de fornecer a chave explicativa da razão pela qual a esse
crescimento da vida associativa em Angola não correspondia uma maior visibilidade e
influência dos actores da sociedade civil em direção às mudanças identificadas como
necessárias. Foi necessário que à teoria da sociedade civil, construída em torno da ideia
de arena da vida associativa situada entre o Estado, o mercado e a família, auto-regulada
e independente dos interesses do Estado e privados, se acrescentasse a teoria da esfera
pública, como meio de incluir as questões relacionadas com o acesso e uso dos direitos
de associação, livre expressão e de constituição da opinião pública na esfera pública
angolana.
No sentido amplo do entendimento sobre o conceito, a sociedade civil corresponde à
auto-organização da sociedade fora dos campos estritos do poder do Estado e dos
interesses do mercado. Relacionando sociedade civil e esfera pública, amplia-se o
entendimento da dimensão organizativa com a capacidade de perceber e debater os
problemas sociais da vida privada, e influenciar e pressionar o campo político com vista
à sua resolução, enfatizando o papel dos meios de comunicação, e os meios pelos quais
os indivíduos constituem um espaço público comum através da participação e do
engajamento cívico. Permite perceber a importância da instituição e operacionalização
do acesso e uso efectivo e universal dos diversos tipos de direitos, liberdade de
pensamento e de expressão, de imprensa e de comunicação, liberdade de associação e
316 ANHEIER, Helmut K. & CARLSON, Lisa (2002), “Civil Society: What it is, and how to measure it”. Centre for Civil Society, Department of Social Policy, London School of Economics and Political Science, Briefing Nº. 3. 317 NEGRÃO, José. (2004), op. cit.
de reunião, proteção da intimidade e da privacidade, e da integridade pessoal, para
possibilitar o exercício formal da influência sobre os processos de tomada de decisão e
as políticas públicas, e enquadrar nesta perspectiva a participação de diversos atores
sociais que, integrando ou não a sociedade civil, funcionam como articuladores ou
mediadores da ação coletiva, agindo ou constituindo instâncias de intermediação e de
diálogo entre os atores da sociedade civil e os atores estatais e do mercado.
Para criar uma democracia participativa genuína, os cidadãos precisam estar
informados, capazes de argumentar e de participar, e ser activos e organizados para se
tornarem numa força com potencial de transformação política. A limitação da
democracia à esfera da discussão do mundo da vida e da sociedade civil, desconsidera
os pressupostos necessários para a deliberação democrática e a argumentação de uma
cidadania informada e intelectualmente competente, capaz de transformar informação
em conhecimento, e assim produzir cidadãos capazes de participar na discussão e na
deliberação democrática. A complexidade e a desigualdade sociais prevalecentes em
Angola requerem uma percepção de espaço público onde coexistem, conflituam ou se
sobrepõem diversas esferas publicas, incluindo os grupos hoje excluídos, os novos
movimentos sociais, as oportunidades criadas pelas novas tecnologias, e os atores
sociais capazes de desempenhar o papel de articuladores e mediadores do diálogo e do
debate entre esses grupos e os demais segmentos da sociedade, gerando novos
“públicos”.
III
A análise dos dados da pesquisa de campo, e a sua comparação com os resultados de
uma pesquisa quantitativa e a outra de grupos focais realizadas na mesma altura (2003),
não evidenciou particularidades nos discursos dos atores sociais envolvidos, que
pudessem caracterizar uma linguagem específica, uma formulação simbólica
socialmente construída que apenas fizesse sentido no ambiente institucional de Angola.
Não parecem existir especificidades na expressão dos entendimentos sobre o conceito e
os papéis atribuídos à sociedade civil por aqueles atores sociais, quando comparados às
construções sociais em outros países, em particular no hemisfério sul onde se encontram
a maior parte das nações mais jovens, que em geral também foram colonizadas como
Angola, e também na Europa do Leste, onde o fim da guerra fria provocou profundas
mudanças geopolíticas devido às desconstruções e reconstruções de identidades
coletivas nas sociedades que compunham o bloco socialista e que viveram a experiência
do regime político marxista-leninista (também conhecido como “o segundo mundo” em
oposição ao primeiro mundo composto pelos países da Europa ocidental e da América
do Norte). As diferenças encontradas nas percepções sobre o conceito, formas e
atribuições da sociedade civil em Angola, encontram respaldo em qualquer pesquisa
bibliográfica que se faça sobre o tema, incluindo nas mais avançadas democracias
ocidentais, não conformando uma “tipificação” exclusiva/particular.
Sobre a constituição da sociedade civil em Angola, o pressuposto era que ela envolveria
todos os agentes que operam no espaço intersticial entre estado e sociedade, capazes de
mobilizar e organizar as demandas coletivas e individuais por direitos civis, sociais,
culturais, políticos e econômicos, de produzir novas formas de solidariedade e
responsabilidade social, de contribuir para a criação de plataformas de concertação
social e de luta por justiça e equidade sociais.
Os critérios de pertencimento a que recorreram os participantes na pesquisa levaram à
inclusão de atores sociais individuais, como os intelectuais ou individualidades (no
sentido de pessoas reconhecidas na sociedade em geral), e coletivos, como as igrejas e
entidades religiosas, os grupos informais, as organizações de base ou comunitárias; os
clubes, as fundações, as universidades também foram indicados por alguns participantes
como pertencendo à sociedade civil. Igualmente interessante e sui generis, a ideia que
relaciona processos de gênese da sociedade civil com conferências nacionais e
assembleias instituintes, no que parece uma recuperação de instâncias de deliberação e
de intervenção no espaço público, típicas de África e conhecidas em Angola sob a
designação geral de Ondjango, buscando na tradição soluções alternativas para arranjos
institucionais alternativos.
Contudo, também foram identificadas algumas contradições ou incoerências entre as
visões expressas pelos participantes nas perguntas abertas, e alguns indicadores
quantitativos e qualitativos relacionados com cultura cívica, associativismo, ajuda
mútua, relações de vizinhança e confiança, nas pessoas e nas instituições, recolhidos
através do questionário semi-aberto. Enquanto os discursos parecem expressar
entendimentos / expectativas normativos sobre uma sociedade civil desejada na qual se
depositam as esperanças de mudança em nome da justiça social da equidade, da
inclusão e do respeito pela diferença e pelo reforço da democracia, as respostas às
perguntas visando perceber o ambiente social e a predisposição para participação cívica
desses atores permitem traçar um cenário mais realista das muitas limitações que é
necessário ultrapassar para que esse desiderato se converta em realidade.
A análise das respostas ao questionário 1, com 20 perguntas direcionadas a captar o
entendimento dos participantes em relação aos ambientes que envolvem os atores
sociais nas três cidades abrangidas pela pesquisa, e as suas práticas e opiniões sobre as
seis categorias de itens relacionados com os indicadores acima referidos, e das respostas
a questionários dirigidos a outras categorias de atores sociais incluídos na pesquisa,
como entidades religiosas, meios de comunicação social, setor informal e poder local,
dão consistência à interpretação das opiniões expressas no questionário 2, constituído
por perguntas abertas relacionadas com as imagens, contornos e papéis atribuídos à
sociedade civil em Angola. O cruzamento dessas respostas contribui para esclarecer a
realidade atual de Angola, onde a uma sociedade civil desejada se contrapõem as
limitações e os constrangimentos de um espaço público muito limitado pela forte
presença do discurso oficial, e no qual as organizações da sociedade civil e outras vozes
independentes da esfera estatal, ainda experimentam muita dificuldade para se
manifestarem, dar visibilidade às suas ações, fazer ouvir a sua voz e influenciar a
agenda pública.
Os resultados parecem apontar para a existência de um diferencial entre as aspirações
expressas nas representações sobre a sociedade civil em Angola, e as predisposições,
capacidades e possibilidades reais de intervenção dos atores sociais angolanos no
espaço público, com vista à influência da agenda política nas distintas vertentes que
mais preocupam esse atores, nomeadamente, a reconciliação nacional e a consolidação
da paz, a erradicação da pobreza, o respeito pelos direitos humanos, a mudança
institucional que torne possível uma sociedade mais justa, equitativa, inclusiva e
democrática. Importa realçar que as predisposições para participação política que
resultam da análise, apesar de indicarem um elevado interesse por parte da maioria dos
actores sociais envolvidos na pesquisa, mostram um potencial que não se realiza na vida
quotidiana dos angolanos. As razões desta décalage entre potencial e real parecem
relacionadas com uma auto-limitação que os atores se colocam em resultado do receio
de retaliações ainda prevalecente, da falta de cultura de debate público, da não
valorização da própria opinião e da do outro, entre outras explicações possíveis mas não
implícitas nos resultados e que demandam estudos orientados nesse sentido, a realizar
posteriormente. Estas possíveis razões, por sua vez, são consequências da construção
histórica do espaço público em Angola, mas também se devem à prevalência de práticas
coercitivas que não contribuem para a expansão e democratização do espaço público
angolano.
Relativamente aos modos de pensar o laço social e o contrato político e as
possibilidades de obtenção de consensos, ainda que parciais, numa sociedade cujos
processos de mudança têm vindo a ser conduzidos por procedimentos “de cima”, o
pressuposto era que estes consensos se relacionam com as ideias de construção de nação
e de cidadania, de modernização e democratização da sociedade e de combate à pobreza
e à desigualdade social.
A análise das respostas identificou alguns dos fatores que, na opinião dos participantes,
limitam o exercício de uma cidadania ampla e ativa em Angola e que influenciam e são
influenciados pela fragilidade e fragmentação da sociedade civil angolana. Entre esses
fatores, os mais importantes resultam de uma democracia frágil e limitada por uma
visão formalista e redutora, que não garante igualdade de condições e de oportunidades
para o exercício da cidadania; a ausência de uma cultura política por parte dos actores
sociais, capaz de interpelar o Estado e romper com relações clientelistas e corporativas,
e o autoritarismo patrimonialista, que limitam a expansão do processo democrático; o
acesso desigual aos serviços públicos, como educação, saúde, saneamento, justiça, entre
outros, discriminando largas porções da sociedade; um distanciamento das instituições
do Estado em relação aos cidadãos, ignorando a existência de amplos segmentos sem
voz nem visibilidade, agravada pela incapacidade crónica de garantir os direitos básicos;
a presença de sentimentos de impotência política, desamparo social, resignação e/ou
conformismo, reduzindo ainda mais as probabilidades de diálogo social.
Para os participantes, a reversão da atual situação exige a intervenção da sociedade civil
para a criação de condições que pressionem o Estado a criar o ambiente propício à
mudança política, económica e social. Mas para alcançar esse objetivo, os indivíduos,
grupos e organizações da sociedade civil precisam recriar os meios para influenciar e
ocupar o espaço publico angolano, o que requer a adopção de estratégias de luta
emancipatória visando o acesso e uso efetivo dos direitos de associação, de reunião e de
expressão a todos os cidadãos. Sem essa conquista, e apesar do crescimento do número
de grupos e de organizações que a constituem, os impactos da sociedade civil em
Angola continuarão a ser limitados pelas dificuldades de acesso aos meios de
comunicação social, as restrições à liberdade de promover encontros, reuniões e debates
em qualquer espaço do público, à dificuldade em fazer ouvir a sua voz nos processos
deliberativos dos poderes executivo e legislativo.
A identificação e discussão de elementos distintivos na estrutura e nos processos de
organização da ação coletiva civil, percebidos na análise das respostas, e em tese
resultantes da diversidade sócio-cultural angolana e das distinções nas relações entre o
Estado colonial e a sociedade nas 3 cidades abrangidas pela pesquisa, no espaço e no
tempo, parece indicar que as formas de organização das solidariedades coletivas e das
responsabilidades sociais se pautam por primazias distintas do político, do social e do
económico. Ou seja, enquanto parece claro que os participantes identificam a sociedade
civil como o condutor da mudança, os caminhos escolhidos como esteios desse processo
parecem orientados por prioridades distintas, o que tem como consequência formas
diferenciadas de mobilização da ação coletiva.
Em Luanda as opções parecem apontar para a primazia da ação política, organizada em
torno de programas político-partidários e de uma cidadania plenamente exercida,
estando a preocupação centrada na democratização das formas de governo, na
instituição do estado de direito “de fato”, na promoção da justiça social, na necessidade
de mudança, e na ampla discussão dos papéis do Estado e da sociedade, numa
formulação em que questões com um carácter essencialmente “político” parecem
constituir-se no eixo aglutinador da mobilização para a ação social com vista à
resolução dos inúmeros problemas da sociedade angolana. Em Benguela a opção pelo
desenvolvimento da economia e da expansão das oportunidades de emprego e de
geração de rendimentos mostra-se como a preferida pela maioria dos participantes
daquela cidade; a via do mercado, através da mobilização de recursos e potencialidades
do país, a criação de empregos, estímulos ao relançamento e aumento da produção e
alargamento dos mercados, numa formulação construída em torno de questões com um
carácter essencialmente econômico, em que a economia/o mercado parece surgir das
respostas como a “locomotiva” do processo de democratização e de modernização da
sociedade angolana, através dos quais seja alcançada uma vida melhor para os
angolanos. Já em Malanje, as preocupações com o desenvolvimento sócio-econômico
percebidas nas combinações propostas de políticas sociais e de oportunidades e
estímulos à produção agro-pecuária, num ambiente de reforma estrutural, parece indicar
uma formulação mais centrada em questões de carácter social: o “social” parece ser o
eixo priorizado pelos participantes na pesquisa, elegendo opções vinculadas a uma
melhoria dos indicadores de desenvolvimento humano, a livre circulação de pessoas e
bens refletindo, provavelmente, uma necessidade relacionada com a situação de “cidade
sitiada” no período de 1998 a 2000, as transformações / reformas no sistema político
com vista à sua “humanização”, e a promoção dos recursos locais, agro-pecuária,
essencialmente, como fonte de geração de renda e de criação de empregos.
Contudo, estas formulações permitem também identificar preocupações comuns,
presentes em praticamente todas as respostas, nomeadamente a reconciliação entre os
angolanos e a consolidação da Paz, o investimento em capital humano e o combate à
pobreza, o combate à corrupção e mais transparência na gestão da “coisa” pública,
percebidos como elementos aglutinadores de solidariedades e responsabilidades sociais,
e como questões-chave no papel da sociedade civil em Angola, que constituiriam o
núcleo duro das políticas públicas num futuro imediato. A ênfase generalizada nas
prioridades comuns em todas as categorias de análise, e as comunalidades nas imagens,
contornos e papéis atribuídos à sociedade civil, apresentadas nos capítulos anteriores,
parecem sugerir que as distinções resultam de nuances nas motivações para a ação
social, na eleição de prioridades e na construção de expectativas com relação ao futuro,
onde a história e as vivências recentes dos atores sociais parecem influenciar as escolhas
por caminhos distintos para a articulação da ação social e das relações de poder318.
Trata-se, contudo, de constatações preliminares, sem possibilidade de serem muito
mais aprofundadas devido não só à ausência de outros elementos de análise necessários
para verificar a consistência das mesmas, mas sobretudo devido à representatividade da
base de recolha de opiniões, não só do ponto de vista do seu tamanho, mas também do
ponto de vista da sua abrangência geográfica e sócio-cultural. Por essa razão, essas
constatações precisam ser confirmadas, ou não, através de estudos orientados nesse
318 Importa realçar que a interpretação acima exposta não ignorou a presença de um misto de motivações para a ação coletiva, apenas quis salientar que parece nítido o predomínio, em cada conjunto de respostas, de um tipo de motivação política, econômica ou social, em relação aos outros dois. Os trabalhos de campo subsequentes, nomeadamente encontros com os participantes, em cada uma das cidades, legitimaram esta interpretação.
sentido, mais amplos do ponto de vista da representatividade da diversidade sócio-
cultural, e também da inclusão do mundo rural e das suas representações. Esta parece
ser, portanto, mais uma das linhas de pesquisa futura a extrair da análise dos resultados.
Enfim, sobre a interpretação das sintonias e dissonâncias das sociedades africanas com
os tempos e os ritmos do mundo fornece o quadro de referências essencial que confere
sentido à discussão sobre sociedade civil. Para este efeito, considerou-se a necessidade
de discutir diversos argumentos sobre civilizações e modernidade, buscando encontrar o
quadro analítico que melhor acomode uma realidade social que parece caracterizar-se
pela existência de um processo de modernização não uniforme nas diversas esferas da
sociedade angolana.
Na realidade angolana, as formas de organização do político são significativamente
distintas nas áreas urbana e rural, com predomínio do civil nas áreas urbanas e do
costumeiro ou tradicional no meio rural. Como resultado, a acentuação da dicotomia
entre cidadãos e sujeitos, os primeiros com uma cultura de direitos e os segundos com
uma cultura de costumes. Esta discussão remete à distinção entre público cívico e
público primordial, sendo o primeiro relacionado com a ideia de meio urbano e o
segundo com comunidade de base. Esta dicotomia tem originado muita discussão nos
meios acadêmicos africanos, que em geral rejeitam a utilidade da mesma,
argumentando-se que a sua maior utilidade é a de fornecer uma explicação para a
ineficácia da sociedade civil baseada nesta bifurcação dialética, lembrando que apesar
da existência de desigualdades reais no acesso e exercício da cidadania plena por parte
de amplos segmentos da sociedade, principalmente no meio rural, a face da sociedade
civil, hoje, é bem mais complexa e plural do que se consegue perceber seguindo o
paradigma da teoria dos dois públicos. E uma das razões reside na constatação, que a
pesquisa também demonstrou, da existência de outros tipos de organizações não-estatais
para além das “tradicionais”, como as associações ou grupos de jovens, de mulheres, de
vizinhos, ou profissionais. Um vasto leque de organizações, de ONG’s a associações
com diversas motivações, ambientais, direitos humanos, pesquisa, prestação de
serviços, etc., veio matizar o ambiente do campo de mobilização da ação coletiva fora
da influência da esfera do Estado e do mercado, e situa-se também fora do campo do
público primordial, estabelecendo contudo articulações de natureza diversa, facilitada
entre outras, pelo fato de alguns dos membros destas organizações também pertencerem
a diversos públicos primordiais.
Como a discussão do capítulo 1 demonstrou, a abordagem da modernidade articulada
mista, proposta por Domingues, parece fornecer o quadro de referências mais adequado
à compreensão da realidade angolana de hoje, até porque se mostra a mais aberta aos
subsídios de outras visões e entendimentos sobre as complexas relações das sociedades
atuais com o processo de globalização. As discussões sobre modernidade, globalização
e cosmopolitismo têm privilegiado de forma unilateral a perspectiva do projeto colonial
enquanto missão civilizadora de uma modernização cuja qualificação é forçosamente
ocidental, à qual se juntou, há anos atrás, a modernidade islâmica através de
movimentos fundamentalistas. Apesar disso, continuam em desenvolvimento os
projetos de construção de identidades pós-coloniais, autônomas ou subordinadas, numa
reconciliação difícil, mas não impossível, entre as temporalidades e espiritualidades
locais e o tempo do mundo319.
Na era da globalização, as opções dos países africanos para o reajustamento
institucional às suas dinâmicas sociais, não podem prescindir da combinação de
elementos tradicionais e modernos, acrescentando ao carácter endógeno da sua lógica e
formulação, os elos de ligação do continente ao mundo, dando espaço a que novos
atores sociais compitam livremente na defesa de seus ideais e propostas de agenda
política320. Se o objetivo é reduzir a desigualdade crescente nas trocas e as disparidades
entre os diversos países, regiões e grupos sociais, é importante que, na luta contra a
tendência homogeneizadora da globalização, se evite o encantamento do
multiculturalismo, negligenciando os quadros sociais e as relações de força subjacentes
aos contactos entre as distintas culturas, uma vez que o contexto mundial atual não
oferece chances idênticas a todas as culturas, para beneficiarem das vantagens das
trocas e dos contactos, e prosperarem fora das suas fronteiras históricas321. Por isso
importa que o processo de globalização comporte vários centros de decisão, que
319 DIOUF, Mamadou. (2000), op. cit. 320 NICOLAU, V.H. (1999), op. cit. HOUTARD, François. (org.) (2000), op. cit. 321 HOUTART, François. (2000), op. cit.
dialoguem em pé de igualdade, contribuindo para a construção de um mundo mais
humano322.
IV.
Num ambiente institucional em que parece não existir vontade política por parte dos
poderes instituídos para a remoção gradual dos impedimentos que ainda obstruem a
construção de uma cidadania ampla e plena, cabe aos cidadãos e à sociedade civil o
papel de a promover. Essa foi uma das mensagens dos participantes na pesquisa, apesar
de todas as dificuldades e limitações que reconheceram na sociedade civil em si, e na
sua capacidade de interpelar o Estado e as suas instituições, devido ao ambiente
institucional pouco permeável ao diálogo e ao estabelecimento de parcerias. Os papéis
normalmente atribuídos à sociedade civil e também encontrados na pesquisa que deu
suporte empírico à tese, e noutros trabalhos sobre o tema em Angola, confrontam-se
com enormes e inúmeras dificuldades para se concretizarem, mas os desenvolvimentos
recentes da sociedade civil no país indicam que, paulatinamente, os indivíduos, grupos e
as organizações que a constituem serão capazes de se afirmarem no espaço público
angolano.
A promoção da cidadania passa pela criação de oportunidades de acesso a bens
colectivos e serviços públicos numa base universal, o que implica, para além do
desenvolvimento das capacidades necessárias para intervir junto do executivo e do
legislativo com vista à adequação das políticas públicas às necessidades da população,
mudanças nas intervenções de alguns integrantes da sociedade civil, particularmente as
ONG’s, com vista a eliminar a atual prática de criação de públicos “privatizados” (os
beneficiários/destinatários dos seus programas/intervenções) e buscando formas de
articulação entre si para reduzir a pulverização de públicos adstritos aos projetos ou
atividades que promovem.
A criação da instâncias de participação, aos diversos níveis da sociedade e sobre os mais
diversos temas de interesse público, exercita a democracia entre os que nelas
participam, estimula o desafio à lógica dominante, amplia os espaços públicos através
da diversificação dos atores e dos discursos, e produz oportunidades de troca de 322 HOUNTONDJI, Paulin. J. (2000), “Cultures Africaines et Mondialisation: un appel à la résistence”, in François Houtart (org.), Cultures et Mondialisation: Résistences et Alternatives. Paris/Dakar, L’Harmattan, pp.47-55.
informações e troca de experiências, permitindo um conhecimento mais amplo dos
problemas e das possíveis soluções para os mesmos. Mas para isso, é preciso vencer as
resistências à participação que ainda prevalecem, não só por parte do Estado mas
também por parte dos próprios cidadãos, como a pesquisa demonstrou.
As intervenções visando dar voz e visibilidade ao papel das lideranças locais, mais
propriamente das autoridades tradicionais, potencialmente articuladoras das relações
entre as comunidades e o seu entorno, e outros atores sociais, se por um lado ampliam
as condições de diálogo e de aproximação entre os diversos grupos e camadas sociais de
Angola, por outro lado precisam ter em atenção as ambiguidades em relação ao papel
que reivindicam como representantes das comunidades, sem contudo deixarem de
ambicionar o seu reconhecimento enquanto representantes do Estado junto das
comunidades.
A década de 90 conheceu um amplo desenvolvimento de associações cívicas, culturais e
recreativas e de ONG’s, que se ampliou ainda mais após a assinatura do acordo de
cessar-fogo em 2002, e que pode ser entendido como a resposta dinâmica da população
aos diversos problemas que afligem a sociedade angolana, em diversas frentes de luta,
como direitos civis, sociais, políticos e culturais. A grande maioria foi criada a partir de
meados da década passada, e embora sejam organizações muito recentes, têm
conseguido, pontualmente, alguns êxitos no alcance dos seus objectivos, confrontando-
se com a ausência de uma cultura de diálogo, principalmente entre os sistemas político e
económico, e a sociedade, e a falta crônica de recursos humanos, financeiros e
materiais.
A participação destas organizações na vida pública, na formulação de políticas públicas,
na alocação de recursos, no desenho institucional e na implementação de programas e
projectos, é ainda fortemente condicionada pela inexistência de mecanismos
permanentes ou sistemáticos de auscultação, concertação, integração e
acompanhamento nas diferentes etapas desse processo, o que significa que existe um
enorme desperdício de sinergias, devido à tendência do governo (e do sistema político
em geral), em manter essa dicotomia na vida pública angolana.
A conjugação das dificuldades resultantes dos constrangimentos e dificuldades
resultantes da cultura política dominante em Angola, com a falta de recursos
financeiros, está na base de uma das maiores debilidades das organizações da sociedade
civil emergente em Angola: a sua enorme dependência dos doadores, agências bi e
multilaterais. A escassez de recursos financeiros e materiais para a realização dos
objetivos que levaram à sua criação, e as dificuldades em conseguir agenciar tais
recursos nos seus membros e na sociedade, aliada à ausência de políticas públicas de
apoio à sua constituição e funcionamento, sob a forma de subsídios, incentivos, ou outro
tipo de dotações orçamentais, conduzem a uma procura por financiamentos externos
junto de agências do sistema das Nações Unidas, das representações das instituições de
Bretton Woods, ou das agências bilaterais de cooperação.
Em muitos casos, esta dependência financeira acaba se transformando numa
dependência das agendas, ou seja, as organizações abandonam, temporária ou
definitivamente, os objetivos sociais que levaram à sua criação. Por outro lado, esta
situação acaba por gerar desequilíbrios entre as organizações, não só resultantes das
diferenças existentes entre elas do ponto de vista da capacidade de agenciamento de
recursos, mas também porque determinados temas ou áreas de intervenção, menos
valorizados pelos doadores internacionais, não conseguem mobilizar os recursos
necessários (muitas vezes bem reduzidos e com elevadas taxas de retorno em termos
dos seus potenciais efeitos na sociedade).
Parece possível extrair-se das opiniões coletadas que os participantes gostariam de ver
os rendimentos obtidos com a exploração dos recursos naturais investidos na gestão das
relações societais, promovendo investimentos na educação e na saúde, mas também na
organização social, e na satisfação de outras necessidades da sociedade angolana,
imensas e diversificadas. O combate à pobreza e o investimento no capital humano
foram identificadas pelos participantes como prioridades fundamentais das políticas
públicas. Entretanto, as opiniões sobre as relações entre o Estado angolano e a
sociedade denunciam tensões e problemas diversos no reconhecimento do papel que os
próprios participantes, e a literatura em geral, atribuem à sociedade civil, e são
elucidativas em relação ao grau de dificuldade em estabelecer as bases de diálogo
necessárias para levar a bom termo as negociações para alcançar um entendimento
mútuo sobre as bases do percurso de Angola rumo ao futuro, e os recursos a mobilizar
para encetar sustentadamente esse caminho contando, acima de tudo, com as próprias
forças, o que significa dizer, investindo os rendimentos da exploração dos recursos
naturais que são pertença de todos na criação de melhores condições de vida para os
angolanos.
Contudo, esses rendimentos parecem inexistentes ou invisíveis: apesar do fim da guerra
e as consequentes liberação de recursos humanos e redução da pressão sobre o
orçamento nacional, não se vem tornando visível o impacto do chamado “dividendo da
Paz” – o laço entre a redução da insegurança individual e coletiva e o desenvolvimento
a longo prazo -, num esforço coletivo alimentado pela realocação dos recursos outrora
destinados ao esforço de guerra, com vista a transmitir confiança, compromisso e
credibilidade, visando a melhoria dos padrões de vida, quantitativos e qualitativos,
sustentados no desenvolvimento do capital humano e social de Angola323. Por outro
lado, apesar do crescimento da produção do petróleo e do aumento do seu preço no
mercado internacional, e da expansão do controle do Estado sobre as áreas de
exploração diamantífera324 (uma das fontes geradoras de recursos para a UNITA), os
problemas e as necessidades mais básicas de amplos sectores da sociedade angolana
permanecem, em grande medida, sem resolução.
Ao nível macro-económico as principais tendências manifestam-se na progressiva
mudança de uma abordagem de apoio às situações de emergência, para uma perspectiva
de desenvolvimento pós-conflito. Estas tendências são manifestas nos recentes
discursos presidenciais anunciando o fim do centralismo democrático, o aumento das
alocações para os sectores sociais no orçamento geral do Estado (OGE), e também nas
cada vez mais presentes pressões da sociedade civil e dos doadores no sentido de um
aumento da transparência na gestão dos recursos públicos e na canalização dos
rendimentos dos recursos naturais – petróleo e diamantes – para investimentos públicos
e para o combate à pobreza, modernização da sociedade e construção de cidadania, e na
preparação do próximo pleito eleitoral, sem data ainda marcada, transparecendo de
323 FERREIRA, Manuel Ennes (2005), “Development and the Peace Dividend Insecurity Paradox in Angola”. European Journal of Development Research, vol. 17, nº. 3, pp. 509-524. 324 Angola é o quarto produtor mundial de diamantes brutos segundo o relatório Angola, Selected Issues and Statistical Appendix, International Monetary Fund, February 2005. Entretanto, outro estudo considera que, juntando aos dados oficiais, a extração e a comercialização nos circuitos ilegais, Angola é o 3º. produtor de diamantes do Mundo. MIRANDA, Armindo (2004), Angola 2003/2004. Waiting for Elections. Bergen, Chr. Michelsen Institute (CMI).
algumas declarações de membros do governo de Angola a impossibilidade de virem a
acontecer em 2006 as eleições legislativas e presidenciais.
V
Num balanço entre os avanços da sociedade civil e a pouca visibilidade que ela ainda
tem em Angola, apenas o recurso à discussão sobre a atual configuração do espaço
público angolano permite perceber as possibilidades de êxito de iniciativas tendentes à
mudança das relações de poder e sociais em Angola.
A sociedade civil em Angola deu passos importantes para se afirmar, considerando os
constrangimentos anteriormente apresentados ao seu fortalecimento e expansão, tanto
em termos quantitativos – geográficos e temáticos – quanto em termos da criação da
capacidade de influenciar a agenda pública. Não só na literatura sobre o tema, mas
acima de tudo nas respostas obtidas, constatou-se a utilidade social e o potencial da
ideia a ela associados como tecnologia do progresso coletivo, apesar da sua
heterogeneidade, o que aponta para a necessidade de mais pesquisas sobre este
potencial, com vista a adicionar valor teórico às representações que dela fazem os atores
sociais, favorecendo deste modo a apropriação do conceito por esse atores.
Na situação de crise atual, parece central o papel do Estado com vista a superar a
pobreza e a promover a integração social, mas para isso, é preciso humanizá-lo,
sensibilizá-lo para a causa da justiça sócio-econômica e do desenvolvimento do
potencial humano. Os desafios consistem em formular novas visões sobre a sociedade e
promover a constituição uma força social capaz de induzir as mudanças necessárias para
a mudança societal, o que passa pela transformação do domínio privado em domínio
público e a reformulação da agenda pública, tornando-a mais inclusiva da diversidade
sócio-cultural existente. O caminho parece residir na construção de uma ampla
plataforma de debate e discussão em todo o país, incluindo o seu amplo público
primordial, em busca de entendimentos alternativos sobre as relações entre o Estado e a
sociedade civil, que forneçam as bases para a construção social de um projeto
emancipatório em torno da reapropriação da ideia de bem-comum.
De acordo com a análise das relações entre o Estado angolano e os atores não estatais, a
construção de uma esfera pública verdadeiramente independente para a deliberação
crítica por parte de cidadãos iguais em direitos, constitui uma prioridade desse projeto
emancipatório, e mais do que buscar confrontações com o Estado, os atores da
sociedade civil precisam procurar formas de articulação com ele, com vista à expansão
do espaço público e à consolidação de um ethos democrático em Angola, tendo presente
que o Estado autoritário com que as organizações cívicas se confrontam é o mesmo a
quem compete criar o quadro legal e político para a sua existência.
Por isso, as organizações da sociedade civil precisam de ser mais pró-ativas do que
reativas, conhecerem melhor as relações de poder e as dinâmicas sociais e os seus
efeitos na criação de oportunidades mas também de constrangimentos para a
intervenção da sociedade civil, e perceberem melhor o papel dos atores externos na
configuração do panorama cívico do país. Sobretudo, precisam dedicar mais tempo e
atenção ao conhecimento da sua própria realidade sócio-cultural e respeitar a sua
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Pacheco.
ANEXO METODOLÓGICO
A Pesquisa Qualitativa: “Imagens, Contornos e Papéis da sociedade civil em Angola”.
I – Apresentação da Pesquisa
A pesquisa qualitativa teve como ponto de partida uma entendimento de sociedade civil
como um conceito relacional, resultado da pesquisa bibliográfica inicial sobre o tema,
apontando para a necessidade da incorporação das ideias e práticas dos atores sociais
angolanos sobre o assumido locus clássico dos laços sociais independentes do Estado e
do mercado, para o caracterizar no contexto angolano.
Assim, a questão da tese é identificar e definir conceitualmente a sociedade civil em
Angola. Foram os seguintes os pressupostos assumidos a partir da pesquisa teórica
inicial:
primeiro, que ela envolve todos os agentes que operam no espaço intersticial
entre Estado e sociedade, capazes de mobilizar e organizar as demandas
coletivas e individuais por direitos civis, sociais, culturais, políticos e
econômicos, de produzir novas formas de solidariedade e responsabilidade
social, de contribuir para a criação de plataformas de concertação social e de luta
por justiça e equidade sociais. Através dos discursos e meios de auto-
identificação desta diversidade de instituições e organizações, da identificação
de espaços de troca, de solidariedade e de mecanismos de redução da demanda
ao Estado, e da auto-avaliação das condições e possibilidades para o seu
desenvolvimento, parece possível compreender os modos de pensar o laço social
e o contrato político, a polarização do espaço social devida à distância crescente
entre a minoria privilegiada e a maioria destituída, as noções de parceria e de
participação, e as possibilidades de obtenção de consensos, ainda que parciais,
através da organização de espaços de negociação, numa sociedade cujos
processos de mudança têm vindo a ser conduzidos por procedimentos ‘de cima’.
segundo é de que estes consensos se relacionam com as ideias de construção de
nação e de cidadania, de modernização e democratização da sociedade, e de
combate à pobreza e à desigualdade social. O pano de fundo por detrás desta
discussão remete às indagações sobre a inserção da África em geral, e de Angola
em particular, na modernidade. A interpretação das sintonias e dissonâncias das
sociedades africanas com os tempos e os ritmos do mundo fornece o quadro de
referências que confere sentido à discussão sobre sociedade civil. Para este
efeito, serão discutidos diversos argumentos: múltiplas modernidades,
modernidades selectivas e modernidade múltipla, buscando encontrar o quadro
analítico que melhor acomode uma realidade social que parece caracterizar-se
pela
existência de um processo de modernização não uniforme nas diversas esferas
da sociedade angolana, como terceiro pressuposto.
Os pressupostos acima apresentados – mais do que hipóteses previamente formuladas -
são caminhos ou roteiros para as 4 interrogações que a tese busca responder sobre a
sociedade civil em Angola:
1ª - a que corresponde
2ª - quais as suas representações
3ª - como se constitui ou que organizações/instituições/entidades a compõem
4ª - que papéis lhe são atribuídos na sociedade angolana.
A posição epistemológica adotada foi a interpretativa partindo do pressuposto que “as
pessoas criam e associam os seus próprios significados subjetivos e intersubjetivos
quando interagem com o mundo que os cerca”325, procurando explicar os fenômenos em
estudo segundo o ponto de vista dos sujeitos observados, não impondo pontos de vista
externos nem formulados a priori. A preocupação era, portanto, a de procurar
identificar e deixar manifestar-se a originalidade dos valores, a configuração das formas
de sociabilidade e das relações de poder em Angola326.
Objetivos da Pesquisa
A pesquisa de campo teve como objetivo geral a recolha de opiniões de atores sociais
angolanos, agrupados em 8 categorias de análise: entidades religiosas, jornalistas/meios
de comunicação, associações profissionais, associações cívicas culturais, recreativas e
outras, ONG’s, poder local, setor informal, mulheres e jovens, em 3 cidades de Angola
– Luanda, Benguela, Malanje -, sobre o tema da tese.
325 ORLIKOWSKI, Wanda. & BAROUDI, Jack. (1991), “Studying Information Technology in Organizations: Research Approaches and Assumptions”. Information Systems Research, vol. 2, nº. I. 326 NEGRÃO, José. (2004), O Contributo dos Cientistas Sociais Africanos. VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, Coimbra 16-18 de Setembro.
O pressuposto mais amplo deste trabalho considerava a possibilidade de encontrar
representações de sociedade civil marcadas pelo contexto de Angola, uma sociedade
que conheceu a colonização, um regime ditatorial nos primeiros anos pós-
independência, e que viveu num ambiente de guerra civil nos últimos 40 anos. Seria de
esperar a contextualização do conceito de sociedade civil, atendendo até ao curto
período de tempo, a partir de 1991, de construção de espaço público, num ambiente de
democratização das relações sociais e de poder no país.
Por esta razão, a pesquisa incluía um questionário com vinte (20) questões, visando
obter informações sobre próxys de cultura cívica, participação, solidariedade,
voluntariado, relações de vizinhança, e sentimentos de confiança nas pessoas e nas
instituições. O objetivo era o de encontrar eventuais explicações/razões para a esperada
contextualização do conceito de sociedade civil327.
A escolha de um amplo leque de atores sociais, a maioria dos quais vinculados a
organizações identificadas em estudos e pesquisas consultados, e na literatura em geral,
como integrando a sociedade civil, buscou ampliar o campo de recolha de opiniões
sobre o tema. Foram incorporados dois grupos, “mulheres” e “jovens”, para conferir à
amostra a representatividade da população angolana: mais mulheres (52%) que homens,
e a maioria (85%) com menos de 45 anos de idade.
Alguns questionários complementares, dirigidos a categorias de análise incluídas na
amostra, visavam a recolha de opiniões e informações a usar na análise das relações
entre o Estado e a Sociedade em Angola.
Metodologia e concepção da pesquisa
A pesquisa envolveu dois tipos de análise:
A) Bibliográfica, para elaboração teórica dos pressupostos da pesquisa,
principalmente sobre o conceito de sociedade civil e os temas relacionados com
cultura cívica, e sobre as cidades abrangidas pelo estudo;
327 REIS, Fábio W. & CASTRO, Mônica M. M. de (2001), “Democracia, Civismo e Cinismo. Um estudo empírico sobre normas e racionalidade”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.16, no.45, pp.25-46.
B) Trabalhos de campo compreendendo mobilização dos atores sociais, distribuição
e recolha dos questionários, encontros de retorno aos participantes e de debate,
nas três cidades.
1 – Tipo de abordagem
Em função da natureza do problema a ser pesquisado, foi adotado como método de
trabalho principal, mas não o único, a pesquisa qualitativa, porque ela permite entender
a natureza de determinado fenômeno social, e compreender e classificar os processos
dinâmicos vividos por grupos sociais, possibilitando a compreensão mais profunda do
comportamento, percepções e expectativas dos participantes, de vido às suas principais
características, a saber:
1. ter como fonte direta dos dados o ambiente natural, e o pesquisador como
instrumento-chave;
2. serem os dados coletados, na sua maioria, descritivos;
3. ser o processo em si mais valorizado, pelo pesquisador, do que os resultados e o
produto;
4. serem os dados analisados de forma predominantemente indutiva;
5. serem mais valorizados os “significados” atribuídos pelos indivíduos à vida e às
coisas da vida, do que a frequência desses fenômenos.
A abordagem qualitativa usa diversas técnicas interpretativas e admite diversas formas
de coleta e registro de dados, acomodando muito facilmente contribuições de outros
métodos de análise, como o quantitativo, o documental, e a observação direta, a que a
pesquisa também recorreu328.
2 – Campos de observação (assinalados no Mapa de Angola)
Na impossibilidade de estender esta análise a todo o país, foram escolhidas 3 cidades
por elas oferecerem um quadro bastante diversificado no que respeita às relações sociais
em Angola:
Luanda, receptáculo de pessoas oriundas de praticamente todas as províncias, o
que lhe confere um traço cosmopolita,
Benguela, com uma organização social à primeira vista mais densa e fechada,
horizontal do tipo familismo,
328 BABBIE, Earl. (1997) [1999], Métodos de pesquisas de surveys. Belo Horizonte, Editora da Universidade Federal de Minas Gerais.
Malanje, uma cidade sitiada durante cerca de 3 anos (a partir de finais dos anos
90) pelas tropas da UNITA, submetida a intensos bombardeamentos durante
esse tempo, e onde um episódio da época (2002) chamou a atenção, pelo fato de
a população ter interpelado o Presidente da República, exigindo a demissão
imediata do governador da província, o que aconteceu nos dias subsequentes à
manifestação. Por outro lado, a cidade situa-se numa zona de fronteira e base
logística de dois mundos, a região diamantífera da Lunda e os grandes
latifúndios da monocultura do algodão, com um aparente traço de mercantilismo
permeando as relações sociais, presente nos ditos populares sobre os malanjinos.
A realização do estudo nestas cidades pressupunha a recolha elementos narrativos das
culturas urbanas de Angola, que ajudassem a reconstituir o contexto, multifacetado por
hipótese, do processo de construção da sociedade civil em Angola.
3 – Pesquisa de campo
A) Plano de amostragem
• Universo – cidadãos com 18 anos ou mais anos, relacionados com organizações,
instituições ou entidades sociais, econômicas, políticas, culturais, recreativas,
etc., que funcionam no espaço público angolano.
• Tamanho – Foi inicialmente previsto que cada amostra comportaria 50
indivíduos, não se tendo em conta a desproporção da distribuição da população
entre as cidades abrangidas pela pesquisa. Contudo, as amostras acabaram por
ficar com diferentes tamanhos, Luanda com 81, Benguela com 40 e Malanje
com 46 participantes, devido à aderência diferenciada à pesquisa.
B) Desenho das ‘amostras’
As amostras foram constituídas a partir de listagens de organizações, instituições e
entidades em geral consideradas como integrando a sociedade civil: associações cívicas,
profissionais, sociais, culturais, recreativas, esportivas e outras, organizações
comunitárias de base (OCB’s), ONG’s, entidades religiosas, grupos de interesse
(mulheres, jovens), autoridades locais (tradicionais e da administração do Estado) e
sector informal, seguindo critérios de seleção de abrangência, representatividade,
pertencimento, equivalência e equidade, a saber:
• Levantamento das organizações existentes ou referidas como existentes no
espaço público das 3 cidades
• A categoria “associações” foi sub-dividida em duas: as cívicas, culturais,
recreativas, esportivas, etc., e as profissionais
• As categorias sociais selecionadas funcionavam efetivamente nos interfaces
público/privado, moderno/tradicional e formal/informal da sociedade
• Deu-se preferência a organizações, entidades e grupos existentes ou
representados nas 3 cidades, o que permitiria a análise comparativa dos
resultados, isolando os fatores contextuais como causais de eventuais
semelhanças ou diferenças
• Houve o cuidado de evitar privilegiar as organizações, instituições, entidades e
grupos com maior presença, visibilidade e mais intervenção nos espaços
públicos das 3 cidades, pelo que em todos os casos foram incluídas organizações
locais, menos visíveis, menos poderosas, mais frágeis em termos de recursos
humanos, materiais e financeiros.
C) Seleção dos participantes
Os indivíduos convidados a participar na pesquisa foram selecionados numa perspectiva
de respeitar as cotas de idade e gênero da sociedade angolana, com base nos seguintes
critérios:
• idade igual ou superior a 18 anos e de nacionalidade angolana (este recorte de
nacionalidade corresponde à intenção de avaliar a apropriação da ideia de
sociedade civil em ambiente multicultural);
• concentração nas faixas etárias dos 18 aos 50 anos, considerando que cerca de
86% da população angolana tem menos de 45 anos de idade;
• representação pelo menos igualitária entre homens e mulheres, considerando que
estas representam 52% da população angolana;
• incluir nas categorias de análise “grupos de mulheres e de jovens” para
compensar os esperados déficits na sua representação nas demais categorias de
análise;
• escolha aleatória dos participantes dentro das organizações e dependente da
vontade ou manifestação de interesse em participar.
D) Coleta de dados
Operacionalização
preparação dos questionários – foram preparados 7 questionários semi-
estruturados e abertos e impressos, permitindo o anonimato, e dando a
oportunidade de resposta num período de tempo mais amplo que o ocupado por
uma entrevista. A preparação dos questionários foi precedida da preparação do
Plano de Análise, um exercício em que foram identificados os antecedentes, os
pressupostos e os objetivos em vista;
elaboração e distribuição da Carta de Apresentação da pesquisa – a carta foi
anexada aos questionários, para que os participantes a pudessem ler com mais
tranquilidade, após os contactos para sensibilização e mobilização, e entrega dos
questionários;
realização do teste de qualidade – durante a fase de sensibilização e mobilização,
e antes da distribuição dos questionários, foram realizados testes nas 3 cidades,
envolvendo indivíduos escolhidos aleatoriamente, aos quais foi pedido que
dessem a sua opinião sobre a precisão, clareza e objetividade das perguntas. Em
função das opiniões colhidas, foram feitas algumas alterações nos questionários
originais.
Sensibilização e mobilização dos participantes e distribuição dos questionários –
para além da Carta de Apresentação e de contactos pessoais com potenciais
participantes da pesquisa, foram realizados diversos encontros com membros das 8
categorias de análise nas 3 cidades, entrevistas nas Rádios locais para explicação e
sensibilização à participação, e utilização de pessoas-recurso para mobilização de
participantes nas respectivas áreas de atuação.
Faseamento e calendário de execução
Apesar de ter sido respeitado o marco inicial para o arranque dos trabalhos de campo,
Março de 2003 com as primeiras deslocações a Benguela e a Malanje, as primeiras
reuniões e encontros de sensibilização, e os testes de qualidade, não foi possível cumprir
o calendário previamente estabelecido. A recolha dos dados em Luanda apenas
terminou em Fevereiro de 2004.
4 – Validade e limitações da pesquisa
Validade
Considerando “validade” como verdade ou fiabilidade da pesquisa, no sentido de avaliar
em que medida o argumento representa o fenômeno social ao qual se remete, as
variáveis para atingir um grau elevado de validade da pesquisa são, entre outras:
- escolha das perguntas da pesquisa;
- constituição da amostra;
- qualidade da informação obtida;
- qualidade da análise dessa informação329.
Para garantir o mais elevado grau de validade da pesquisa e acautelar esse objetivo, a
metodologia adotada teve em conta:
a) Garantir a adequação e abrangência das perguntas, através de uma consulta
prévia (pré-teste) a diversas entidades relacionadas com o tema;
b) Constituir uma amostra qualitativamente representativa, que permita a coleta de
elementos significativos para interpretação;
c) Preparar cuidadosamente a condução das entrevistas (e da apresentação sob a
forma de questionários abertos ou semi-estruturados), dos encontros e dos
debates com os participantes;
d) Produzir relatórios provisórios por amostra, após cada etapa da pesquisa,
analisando e incorporando progressivamente as contribuições dos participantes.
Limites
Embora se tenha procurado incorporar os campos e interfaces de análise sugeridos pela
pesquisa bibliográfica, as condições concretas de realização da pesquisa (a sua inclusão
no âmbito de um trabalho individual de doutoramento) impuseram limites no tocante ao
número, tamanho e constituição dos conjuntos amostrais. Por essa razão, os relatórios
descritivos e a análise comparativa poderão apontar para “conclusões preliminares” que
devem ser entendidas como pontos de partida para elaboração de futuras pesquisas, com
vista a confirmar ou ampliar tais conclusões preliminares.
A extraordinária diversidade sócio-cultural e econômica de Angola, e o momento de
transição de um longo período de guerra civil para uma era de Paz, são fatores que
aconselham a encarar esta pesquisa como um mapeamento preliminar dos principais
elementos relacionados com as construções sociais sobre a sociedade civil em Angola.
5 - Constrangimentos
As principais limitações esperadas em relação ao alcance dos objetivos propostos pela
pesquisa eram de natureza diversa:
329 BABBIE, Earl. (1997) [1999], op. cit.
- financeira, em resultado dos elevados custos das viagens e acomodação,
aquisição de materiais e outros inputs necessários à realização do trabalho;
- temporal, porque a pesquisa inserida no âmbito de um curso de doutoramento
deveria ser concluída no horizonte temporal de um ano;
- de fiabilidade dos dados obtidos, em resultado da alteração, omissão ou
manipulação das informações e dos dados, por razões que vão da ausência de
cultura de debate e de diálogo, da falta de experiência ou de hábito em lidar com
pesquisas de opinião, do medo em expressar opiniões pessoais sobre a situação
do país, ou da não valorização da própria opinião e da dos outros, da tendência
para dar respostas politicamente corretas, da estratégia de responder o
“esperado”, ou seja, o que se julga que o entrevistador gostaria de ouvir, até às
respostas forjadas para destacar interesses específicos.
Relativamente aos dois primeiros tipos de limitações, procurou-se agenciar apoios
institucionais e financeiros, para financiar os custos, e facilitar os contactos e a
mobilização dos atores sociais a envolver. O apoio institucional visava, ainda, beneficiar
da credibilidade das organizações e instituições envolvidas para encurtar o tempo de
mobilização e reduzir os custos de informação e sensibilização, e de organização das
diversas atividades previstas no âmbito da pesquisa.
Optou-se, ainda, pela apresentação escrita dos objetivos da pesquisa aos participantes
individuais e pela impressão das perguntas sob a forma de questionários a serem
preenchidos sem a presença da pesquisadora. Relativamente aos grupos focais, tinha-se
em vista a criação de um clima favorável que não influenciasse as respostas nem criasse
constrangimentos nos participantes, nomeadamente: apresentação escrita dos objetivos a
alcançar, escolha de espaços “neutros” para realização dos encontros, impressão das
questões a responder, criação de uma dinâmica de grupo, seleção de um coordenador da
discussão entre e pelos participantes, e a intervenção limitada ao indispensável por parte
da pesquisadora.
6 - Dificuldades encontradas
Parece ser possível atribuir à fase de transição que Angola vive e à sua história recente,
as principais dificuldades encontradas para a realização da pesquisa de campo, tanto do
ponto de vista dos elevados custos envolvidos em viagens, alojamentos, reprodução de
material, etc., mas principalmente de mobilização dos participantes. O país encontra-se
numa fase algo difícil de qualificar, por várias razões:
por um lado, são visíveis os sinais de relançamento da economia e de criação das
bases de crescimento económico, nomeadamente nas infraestruturas (estradas,
pontes, recuperação dos sistemas de abastecimento de energia e água), no
surgimento de empresas e negócios, na multiplicação de atividades de formação
profissional, e nos indicadores de crescimento econômico;
por outro lado, Angola é uma sociedade marcada pela sobreposição de feridas no
seu tecido social, resultantes da escravidão, da colonização, das invasões por
exércitos estrangeiros antes e após a independência, das décadas de guerra civil
e de mau governo, entre outras causas, com consequências nas relações sociais e
de poder, na ausência de uma cultura de participação, de debate, de valorização
pela própria opinião e do outro, de respeito pela diversidade étnica, cultural e
social. A cultura do medo e a lei do silêncio, que serviram de lastro durante
séculos às estratégias de sobrevivência e de resistência passiva, ainda hoje se
manifestam nos silêncios ou nas fugas à manifestação pública de opiniões sobre
questões políticas. A estratégia de evitar demonstrar lealdade publicamente,
refugiando-se no privado, tem sido um recurso bastante comum, e ainda se
manifesta nos dias de hoje.
Luanda em particular, e Angola em geral, está passando um momento em que a história
parece estar se vivendo em múltiplas camadas, algumas a uma velocidade vertiginosa,
enquanto outras parecem cristalizadas em formas passadas, quasi-arcaicas. Por um lado,
um processo de modernização acelerada, muito enviezado em termos de abrangência
(dos setores em que se manifesta e dos atores sociais envolvidos), procura a todo o
custo e por quaisquer meios, sintonizar Angola com o tempo do mundo, ao mesmo
tempo que uma grande letargia parece reinar absoluta sobre a grande extensão do
território e na maioria das pessoas.
A estrutura do poder em Angola, tal como em muitos outros países africanos, é bastante
personalizada e encontra-se concentrada na entourage da presidência; por outro lado, se
o final da guerra em 2002 criou a expectativa do fim da bipolarização política que
dominou o panorama político de Angola desde a independência, a extrema
fragmentação do sistema político com os seus cerca de cento e trinta partidos políticos,
a falta de legitimidade de um parlamento e de um presidente eleitos há 13 anos,
permitem que as questões mais importantes da vida política do país continuem
remetidas a um círculo muito restrito de interesses.
Nesse desencontro, grupos deserdados do processo de modernização mas não
completamente destituídos dos meios de influência, buscam estratégias indutoras de
mudança, através dos meios que se evidenciam capazes de gerarem solidariedades e
formas de responsabilidade social, que parecem reduzidos às lealdades religiosas e aos
laços familiares, focos de concentração de confiança. Contudo, formas de organização
associativa e em rede, começam a manifestar-se, operando no reduzido espaço público
não controlado pelos orgãos do estado, e ganhando alguma visibilidade.
Em finais de Setembro de 2003 colocou-se, de forma premente, a necessidade de
repensar a realização prática da pesquisa, terminada que estava a fase de recolha das
participações individuais, através dos questionários, em Benguela e em Malanje. Depois
de duas deslocações a estas duas cidades durante o terceiro trimestre, subsistiram as
dificuldades em realizar os grupos focais, apesar dos esforços de mobilização por parte
das organizações que apoiaram institucionalmente a realização da pesquisa, e dos
contactos pessoais. Em conversas com diversas pessoas, entre as quais algumas também
em fase de desenvolvimento das respectivas pesquisas, diagnosticou-se que muitas
dessas dificuldades eram devidas ao momento que o País vivia, que não favorecia a
realização desse tipo de trabalho:
por um lado, porque sendo já normalmente difícil conseguir articular as
disponibilidades de várias pessoas para um mesmo horário, envolvidas que estão
na luta pela sobrevivência, a ausência de um retorno imediato e
individual/organizacional, ou seja, nada para oferecer em troca ou em resultado
dessa participação numa perspectiva de vantagens comparativas, não motivava
as pessoas, que preferiam comparecer a encontros que, pelo menos em hipótese,
lhes proporcionassem mais oportunidades;
por outro lado, um outro aspecto parecia relacionar-se com o tema da pesquisa,
em si: particularmente nas cidades de Benguela e Malanje, e em alguns grupos,
como os jornalistas, os membros de ONG’s e de igrejas, pareceu haver uma
“fuga” à exposição quase pública (em grupo, perante seus pares) de ideias e
opiniões sobre um tema que não é exatamente do domínio comum, embora
quase todos os dias haja alusões a ele nas páginas dos jornais ou nos programas
de rádio. Isto, aliado à ausência de uma cultura de diálogo e debate, e ao fato de
se tratar da recolha de material para uma tese de doutoramento, pareceu retrair e
limitar a participação das pessoas.
A análise do contexto parecia indicar que as oportunidades que constituíam na época
vantagens comparativas relacionavam-se com a melhoria das condições sócio-
econômicas da vida das pessoas, e com visibilidade política, designadamente:
- participação nos processos de preparação dos planos das respectivas
organizações para o ano seguinte, buscando a inclusão em projetos e/ou
programas que lhes garantissem salários, visibilidade e, por via disso, outras
oportunidades de melhorarem as suas condições de vida;
- participação no processo de preparação de programas a serem apresentados pelo
governo a agências das Nações Unidas, na perspectiva de ajuda humanitária, ou
na busca de financiamentos para programas locais de recuperação econômica e
social (mesa redonda de doadores);
- participação no processo de escolha de representantes dos escalões municipais e
provinciais ao congresso do MPLA, que teria lugar em Dezembro desse ano.
Em cidades como Benguela e Malanje, a coincidência destes eventos liquidou as
chances de conseguir mobilizar as pessoas para os encontros de “grupos focais”. Assim,
decidiu-se canalizar todas as atenções para a distribuição e recolha dos questionários em
Luanda, e deixar para uma outra oportunidade a realização de um seminário em cada
uma das cidades abrangidas pela pesquisa.
7 - Soluções encontradas A persistência dos fatores acima referidos apontou para a necessidade de identificar uma
metodologia alternativa, nomeadamente:
a) adiar para outra oportunidade, durante 2004 (em princípio durante o mês de
Julho) as deslocações a Benguela e a Malanje, com vista à realização de
encontros com grupos de participantes para retorno e validação da interpretação
dos dados coletados;
b) organizar encontros com as pessoas disponíveis, os quais só foram realizados
durante o mês de Agosto de 2004 (3 encontros de retorno aos participantes na
pesquisa, nas 3 cidades que constituem campo de pesquisa);
c) recolha de dados e informações relacionados com a cultura cívica das 3 cidades
abrangidas pela pesquisa, através do recurso à base de dados da pesquisa
quantitativa330 realizada nesse mesmo ano nas mesmas cidades, visando a
criação de dois instrumentos de análise:
i) criação de 3 bases de dados em SPSS, uma para cada cidade, com uma
série de informações complementares sobre cultura cívica e a relação
cidadão/Estado em cada uma das cidades;
ii) criação de 3 índices compostos, de participação política, de confiança nas
instituições e de acesso à informação, para cada uma das cidades;
d) Cruzamento dos resultados e análises desta pesquisa com uma outra, também
qualitativa, realizada com grupos focais em diversas províncias, entre Março e
Dezembro de 2003331.
8 - Constituição final das amostras332
Concluída a 1ª fase com a recolha dos questionários, a amostragem da pesquisa acabou
por refletir a desproporcional distribuição da população nas 3 cidades:
Luanda, com 83 respondentes de 98 pessoas mobilizadas e que aceitaram
responder aos questionários
Benguela, com 40 respondentes de 66 pessoas mobilizadas e que aceitaram
responder aos questionários
Malanje, com 46 respondentes de 95 pessoas mobilizadas e que aceitaram
responder aos questionários.
Foram constituídos os perfis dos 3 conjuntos de respondentes e pode constatar-se que:
i) o alcance da cota de idade situou-se em: 70% (Luanda), 77,5%
(Benguela) e 80% (Malanje)
330 IRI (International Republican Institute). (2003), “Expectativas dos Angolanos em Relação às Próximas Eleições”. Relatório da pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Social (A-IP). Luanda. 331 NDI (National Democratic Institute for International Affaires). (2003), O Futuro Depende de Nós. Relatório da Pesquisa de Grupos Focais de Mulheres e Homens Angolanos, Abril-Maio. 332 A lista nominal e o perfil dos três conjuntos de participantes não foi incluída devido à sua extensão, mas constitui anexo do relatório da pesquisa.
ii) o alcance da cota de gênero ficou bastante aquém do objetivo: Luanda
(37%), Benguela (22,5%) e Malanje (33%).
9 – Plano de Análise
Foram criados instrumentos de colecta de dados destinados aos diversos actores sociais
e relacionados com as distintas etapas de realização da pesquisa. Os questionários foram
construídos a partir dos pressupostos da pesquisa, anteriormente apresentados. Os
pressupostos da pesquisa, por sua vez, foram elaborados com base nos resultados
preliminares da pesquisa bibliográfica para a preparação da proposta de tese, e
incorporaram discursos de atores sociais angolanos veiculados em peças da
comunicação social angolana, relacionadas com o tema da tese.
Os questionários 1 e 2 visavam analisar as predisposições para a solidariedade,
confiança e mudança, interesse na política e participação, associativismo e ajuda mútua,
entre outros, como indicadores de potencial de geração e fortalecimento de ideais,
sentimentos e práticas de cultura cívica. Como antecedentes, levou-se em consideração
que em Angola em geral, e nas áreas urbanas e periurbanas abrangidas pela pesquisa em
particular, os efeitos de longas décadas de guerra e de má gestão dos interesses públicos,
indubitavelmente traduzidos pelos indicadores de desenvolvimento humano da sua
população, agravaram as distorções herdadas do colonialismo e criaram um ambiente
social, político e económico, que privilegiou o individualismo e favoreceu o
clientelismo e o jogo de influências; ao cidadão comum, não parecem restar mais do que
estratégias de sobrevivência individuais ou de grupo.
As questões em análise:
1a. No meio urbano e peri-urbano, mais do que normas de reciprocidade difusa ou
generalizada que facilitam as trocas solidárias, predominam as estratégias de
reciprocidade entre grupos de pessoas, em geral pequenos e próximos, do ponto de vista
familiar ou de relações profissionais ou de amizade. Estas estratégias envolvem uma
ideia de troca de favores, objectos ou bens, de valores idênticos ou assim avaliados;
2a. As relações de confiança e solidariedade são afectadas pela elevada heterogeneidade
das áreas urbanas e periurbanas, em resultado da diversidade de origens, tempo de
permanência no bairro e mistura de classes e estratos sociais, tendo como consequência:
a) a redução do número e importância dos laços sociais entre vizinhos
b) a cordialidade entre vizinhos não parece implicar interacção entre eles nem
existência e partilha de lugares/espaços de interacção; evita-se o contacto para
não arranjar problemas;
3a. No âmbito da relação público/privado, se os espaços partilhados por várias famílias
ou grupos, como quintais, largos, pátios, ruelas, etc., são espaços semi-públicos e semi-
privados, o que se vem assistindo é uma redução progressiva dos espaços semi-públicos
em favor dos espaços semi-privados, o que terá como efeito, a prazo, uma redução da
coesão social e uma sociedade civil potencialmente mais débil e mais dispersa;
4a. As redes sociais de solidariedade mais frequentes são as redes de parentesco, as
redes entre elementos do mesmo grupo étnico-linguístico ou entre membros de uma
mesma igreja; ou seja, os elementos aglutinadores de confiança e de solidariedade são a
família, a identidade étnica e a fé religiosa, seguindo-se os amigos e colegas de
profissão.
O questionário aberto 4 dirigido às “entidades religiosas”, assumiu como antecedentes
o papel activo que as igrejas e entidades religiosas desempenharam em todo o processo
de colonização, da organização da luta nacionalista contra o poder colonial e as diversas
etapas de assistência humanitária de campanhas pela defesa dos direitos humanos e civis
dos cidadãos no pós-independência. Estes antecedentes apontam para uma relação
muito próxima entre as igrejas e entidades religiosas e os indivíduos e grupos
abrangidos pela pesquisa, sendo habitualmente vistas como integrando a sociedade civil
em Angola. Contudo, algumas abordagens teóricas parecem não incluir as igrejas e as
organizações constituídas em torno de interesses religiosos no universo da sociedade
civil com base no argumento de que se trata de organizações hierarquicamente dirigidas
e controladas, com uma rígida disciplina exercida de topo à base e sem espaço para
exercícios democráticos no seu funcionamento.
A colecta de opiniões de participantes vinculados a igrejas e organizações/entidades
religiosas visava confrontar as suas visões e opiniões com as dos demais participantes,
não só sobre as questões em discussão, mas também sobre a sua inclusão (ou não) na
sociedade civil em Angola.
O questionário semi-estruturado 5 destinou-se a jornalistas ou trabalhadores de meios
de comunicação social, considerando-se como antecedentes que, devido ao seu papel na
formação da opinião pública, os profissionais da comunicação social vêm assumindo
algumas iniciativas no espaço público angolano, relacionadas com a democratização e a
modernização da sociedade, a defesa dos direitos humanos e civis e temas relacionados
com a discussão sobre sociedade civil, proposta nesta pesquisa.
O objectivo com a inclusão, individual e em grupo, dos profissionais da comunicação
social era o de criar uma oportunidade para dar maior abrangência à expressão de
opiniões, e confrontar as suas próprias visões e opiniões sobre os temas em discussão e
sobre a sua inclusão (ou não) na sociedade civil em Angola, enquanto categoria
profissional e grupo com interesses específicos.
O questionário aberto 6 destinou-se ao enquadramento do poder tradicional nesta
discussão, com base nos seguintes antecedentes: no período pós-independência, foi
comum a acusação de colaboracionismo com o regime colonial, identificando as
autoridades tradicionais como representantes da sociedade colonial cujos vestígios era
preciso apagar, ao mesmo tempo que eram identificados como representantes de uma
sociedade feudal e obscurantista, que era fundamental combater. A reacção individual,
mais ou menos generalizada, foi a de não participação no projecto de construção da
nova sociedade e/ou do exílio em áreas urbanas ou suas periferias e busca do
anonimato.
No âmbito das reformas dos anos 90, houve o reconhecimento jurídico e a definição
legal das autoridades tradicionais, bem como a atribuição das respectivas funções e
prerrogativas, entre as quais a atribuição de um salário mensal e o uso de símbolos,
como fardas e insígnias. A lei reconhece os dois tipos de autoridade tradicional, tanto a
chefia fundada na linhagem como a chefia fundada na eleição pela população local
(mais comum nas áreas urbanas e peri-urbanas).
Esta discussão visa os seguintes objectivos:
a) Saber se existe, implícita ou explicitamente, a tentativa de despolitização e
desconexão destas entidades da vida pública nacional, nomeadamente através da
interdição legal de acumular cargos públicos e cargos tradicionais (conferir na
legislação);
b) Averiguar se existe alguma forma de destituição das prerrogativas das
autoridades tradicionais em favor da administração local ou de ‘conselhos
regionais de chefias tradicionais’ (complementar a análise com a consulta da
legislação vigente);
c) Aferir até que ponto as relações entre estas entidades e os partidos políticos,
nomeadamente os representados no parlamento, subvertem a tentativa do
governo de despolitizar as autoridades tradicionais, por exemplo, pela criação de
uma organização informal paralela à organização administrativa estatal;
d) Procurar entender o papel desses personagens enquanto representantes dos mais
vastos grupos de interesse nacionais, os camponeses, até agora claramente sub-
representados em todas as instâncias de poder, e enquanto representantes de
identidades étnico-regionais, sua fonte de legitimidade;
e) Analisar as dificuldades que se colocam à construção de solidariedades
horizontais e relações de confiança nas áreas urbanas e peri-urbanas, devido à
heterogeneidade étnico-cultural e à aquisição de novos hábitos.
Sobre o enquadramento e gestão do poder tradicional em Angola, uma das possíveis
hipóteses é que no conflito entre duas visões que conformam dois modelos de
organização social, um moderno e um tradicional, com bases de legitimidade diferentes
(plebiscito versus identidades culturais locais), as autoridades tradicionais jogam um
papel de charneira, de articuladores e de mediadores entre esses dois mundos. No
processo de formação do estado angolano que acontece em simultâneo com o processo
de reconciliação nacional, de modernização e democratização da sociedade, e de
combate à pobreza e às desigualdades sociais, estes actores desempenham o papel de
descodificadores semânticos entre a base e o topo da sociedade.
O questionário 7 destinava-se a enquadrar a discussão sobre a influência do sector
informal no meio (e na cultura) urbano, partindo dos seguintes antecedentes: o sector
informal angolano formou-se como resultado dos desequilíbrios entre oferta e demanda
nos diferentes mercados, principalmente no mercado de trabalho. Estima-se que ocupe
cerca de 50% da força de trabalho urbana, nas cidades abrangidas pela pesquisa: Luanda
cerca de 41% e Benguela 29% (não disponho de dados para Malange). Cobre
praticamente todas as áreas de actividade, mas é mais visível no comércio (Luanda e
Benguela 22%). Em Luanda, 78% das famílias têm pelo menos um membro empregado
no sector informal e em Benguela é de 63%. O segmento mais visível desse sector
apresenta uma face feminina, com cerca de 87% e Benguela 80% de mulheres, muitas
delas chefes de família; os segmentos predominantemente masculinos, transportes,
indústria de manufactura e construção, requerem mais capital financeiro (as mulheres
não têm, a este nível, acesso ao crédito) e maior nível educacional.
Recentemente, e talvez em resposta a uma acção que visou baixar os preços ao
consumidor realizando um grande stock de produtos que depois foram colocados no
mercado, provocando quedas significativas nos preços dos produtos de maior procura
por parte da população, foi criado um Sindicato do Comércio Informal que apresentou
ao governo, entre outras, duas solicitações relacionadas com a criação de mais e
melhores espaços de vendas, nomeadamente através da criação de feiras. Apresentou,
igualmente, a proposta de criação de uma comissão mista governo-sindicato, para o
apurar infracções nas diversas etapas do circuito de comercialização, e também as
relacionadas com as queixas de assédio pelos agentes da polícia, que extorquem
montantes em dinheiro aos vendedores com a promessa de não os incomodarem.
Os principais objectivos a alcançar eram os de:
- Estabelecer contactos com o Sindicato no sentido de procurar compreender o seu
papel, seus objectivos, sua organização e expansão nas cidades abrangidas pela
pesquisa, no sentido de avaliar a possibilidade de ele poder ser um dos principais
interlocutores nesta vertente da pesquisa;
- Procurar conhecer as dinâmicas de grupo no desenvolvimento de redes de
comercialização e de alianças com base em laços de parentesco e/ou em laços de
solidariedade entre os grupos que compõem a rede, dentro e fora de Angola;
- Recolher elementos que ajudem a compreender se, e em que medida, iniciativas
criativas e inovadoras como os grupos rotativos de poupança ou caixas de
solidariedade – Kixikilas – e as instituições de solidariedade tradicional de
reciprocidade de trabalho ou empréstimos – Ondjuluka -, ambas fundadas no
espírito de entre-ajuda e de cooperação no interior do grupo, repercutem na
sociedade.
Adjacente a esta discussão, uma das possíveis hipóteses é a de que, sendo o sector
informal facilmente confundido com o mercado negro ou paralelo tanto no discurso do
governo quanto na expressão de outros actores sociais, a ausência de medidas de
integração macroeconómica e de acesso às estruturas e instituições do sector formal, e a
falta de apoio institucional tanto por parte do governo quanto por parte do sector
privado, mostram que ele é ignorado ou tornado invisível, apesar da sua visibilidade nas
ruas das cidades e na sobrevivência de uma elevada percentagem das famílias urbanas.
O ciclo vicioso que se cria com as perseguições da polícia/subornos/redução dos lucros,
que incide sobre os retalhistas e não sobre os fornecedores, gera instabilidade e reduz as
oportunidades de multiplicação dessas iniciativas. A invisibilidade ou ilegalidade
inibem o seu desenvolvimento.
II - INDICES PARA A PESQUISA SOBRE SOCIEDADE CIVIL EM
ANGOLA: Participação Política, Confiança e Acesso à Informação
(descrição metodológica)
Rationale
A construção destes Índices visa sintetizar, num único valor relacionado com
participação política, com confiança nas pessoas e nas instituições, e com acesso à
informação, diversas dimensões da participação cívica dos cidadãos, com vista a
complementar a análise qualitativa levada a cabo através de questionários semi-
estruturados e abertos, dirigidos a 8 categorias de respondentes, agrupados por idade,
género, e interesses específicos e laços de solidariedade específicos, designadamente:
Jovens, Mulheres, Associações diversas, ONG’s, Entidades religiosas, Meios de
Comunicação, Poder local e Sector Informal.
A base de dados utilizada para a construção dos Índices foi a criada para a “Pesquisa
sobre as Expectativas dos Angolanos em relação às Próximas Eleições”, pelo Instituto
de Pesquisa Económica e Social (A-IP), para o Instituto Republicano Internacional
(IRI). A pesquisa de campo foi realizada no período de Abril de 2003 a Junho de 2003,
abrangendo 7 das 18 Províncias de Angola, entre as quais Luanda, Benguela e Malanje.
O cruzamento deste índice com as varáveis que identificam o perfil dos cidadãos
maiores de 18 anos nas 3 cidades envolvidas na amostra, permitirá validar (ou não) os
dados resultantes da análise qualitativa sobre as informações e opiniões colectadas no
decurso da pesquisa de campo nas cidades de Luanda, Benguela e Malanje.
1º. Índice de Participação política
A construção do Índice de Participação Política começou com a selecção das variáveis
da base de dados do módulo 1 relacionadas, designadamente:
a) Votou nas eleições de 1992
b) Vai votar nas próximas eleições
c) Aceitaria ocupar um cargo político se fosse para tal convidado
d) Filiação político-partidária
A resposta positiva a todos os itens, com indicação de militância num partido político
em d), qualificaria participação ativa. A resposta positiva aos itens a) e b), e negativa
aos itens c) e d), qualificaria participação passiva.
2º. Definição das componentes:
Componente 1 = “votou” Componente 2 = “vai votar” Componente 3 = “cargo político” Componente 4 = “filiação política”
3º. Cálculo do Índice
(comp. 1 + comp. 2 + comp. 3 + comp. 4) /4 Valor máximo = 01 Valor mínimo = 00
3-A) Participação Activa
(01 + 01 + 01 + 01) / 4 = 1
3 – B) Participação Passiva
(01 + 01 + 00 + 00) / 4 = 0,5
4º. Categorização do Índice
Os respondentes foram repartidos em 4 classes de participação política,
1 – 0,75 = alta participação 0,75 – 0,5 = média participação 0,5 – 0,25 = baixa participação 0,25 – 00 = muito baixa a nula participação
Seleccionando os grupos extremos e comparando comportamentos, poder-se-á,
eventualmente, encontrar variáveis explicativas para a variação dos níveis de
participação política dos cidadãos.
A tabela a seguir apresenta os resultados para Luanda:
Indice de participacao politica categorizado Frequency Percent Valid Percent Cumulative Percent
0,75 - 1,0 164 10,9 10,9 31,4 0,50 - 0,75 353 23,5 23,4 65,5 0,25 - 0,50 510 33,9 34,1 89,1 0 – 0,25 471 31,3 31,4 100
Valid
Total 1498 99,6 100 Missing System 8 0,4 Total 1506 100
Os dados relativos a uma amostra de 1 506 pessoas, indicam que 11% dos participantes
se mostram interessados numa participação política ativa. A maioria – 65,5% -
enquadra-se nas categorias de “baixa” a “muito baixa ou nenhuma” participação
política.
Em Benguela os resultados do índice são os seguintes;
Indice de participacao politica categorizado Frequency Percent Valid Percent Cumulative Percent
0,75 - 1,0 33 6,6 7,1 7,1 0,50 - 0,75 110 22 23,6 30,7 0,25 - 0,50 149 29,7 32 62,7 0 - 0,25 174 34,7 37,3 100
Valid
Total 466 93 100 Missing System 35 7 Total 501 100
Segundo estes dados, 7% dos participantes de uma amostra de 501 pessoas, mostram-se
interessados numa participação política ativa. A maioria (quase 70%) enquadra-se nas
categorias “baixa” a “muito baixa ou nenhuma” participação política.
Em Malanje, o índice apresenta os seguintes resultados:
Indice de participacao politica categorizado Frequency Percent Valid Percent Cumulative Percent
0,75 - 1,0 106 20,9 21,4 21,4 0,50 - 0,75 166 32,7 33,5 54,9 0,25 - 0,50 152 30 30,7 85,7 0 - 0,25 71 14 14,3 100
Valid
Total 495 97,6 100 Missing System 12 2,4 Total 507 100
Estes dados são relativos a uma amostra de 507 pessoas, e mostram que 21% dos
malanjinos têm uma participação política ativa e que 34% se enquadra na categoria de
“média participação”. Os restantes 45% dos respondentes demonstram pouco interesse
e “baixo nível de participação” (31%) ou “muito baixo a nenhum” nível de participação
política (14%).
2º. Índice de Confiança A sua construção visou sintetizar num único valor relacionado com confiança nas
pessoas e nas instituições, dimensões da participação cívica dos cidadãos, tendo em
consideração a necessidade de incorporar as duas dimensões da influência da confiança
nas escolhas políticas dos cidadãos:
c) a confiança embutida nas relações e percepções dos cidadãos face aos políticos e
partidos políticos, que influencia as opções entre “conhecimento dos candidatos”,
“conhecimento dos partidos”, “proximidade regional” (ser da mesma região), “as
posses do candidato”, “a antiguidade/carisma de um partido político” e “melhores
ideias propostas nas campanhas de outros candidatos e partidos políticos”, e se
expressa num voto que podemos considerar de “conservador”, “no seguro”,
ancorado num tipo de confiança que prende as pessoas ao passado, ao conhecido,
inibindo a opção pelo novo e pela inovação. É um tipo de confiança que penaliza a
inovação, o risco, a mudança, numa situação de conflito de interesses. Esta será a
componente 1 do Índice de Confiança.
d) a confiança prospectiva na mudança, partindo das actuais percepções avaliatórias
das pessoas sobre comportamentos e práticas de políticos e partidos políticos,
influenciando as suas opções futuras em termos de escolhas políticas entre o
conhecido, o que está, e que é relacionado com “incompetência”, “favorecimento”,
“interesse”, “ausência” (de relação político/cidadão), “corrupção”, e a mudança, a
aceitação de algo novo, diferente. É um tipo de confiança que penaliza as más
práticas e favorece a inovação, a mudança. Esta será a componente 2 do Índice de
Confiança.
Índice de Confiança = (Componente 1 + Componente 2) / 2
Na categorização do índice, foram considerados como extremos:
Valor 1,0 = abertura a confiar/inovar/mudar, sofrendo pouca influência das
variáveis seleccionadas
Valor 00 = fechado à inovação, desconfiado em relação ao novo e desconhecido
0,0 - 20,00 – grupo 1 = desconfiados, conservadores, influenciáveis 20,00 - 40,00 - 40,00 – 60,00 – grupo 2, intermediário 60,00 – 80,00 – 80,00 – 100,00 – Grupo 3 = Confiantes, abertos à inovação e pouco influenciáveis. Resultados obtidos:
a) Luanda
b) Benguela
c) Malanje
Interpretação dos resultados:
d) Luanda
- 12% enquadram-se no grupo dos “desconfiados”, 59% no grupo dos
confiantes, abertos à inovação, pouco influenciáveis; o grupo intermédio
– 29% - pode tender para um outro lado, dependendo das situações;
e) Benguela
indicedeconfiançanategorizado
180 12,0 12,0 12,0431 28,6 28,6 40,6895 59,4 59,4 100,0
1506 100,0 100,0
1,002,003,00Total
ValidFrequency Percent
ValidPercent
Cumulative Percent
indicedeconfiançacategorizado
68 13,6 13,6 13,6139 27,7 27,7 41,3294 58,7 58,7 100,0501 100,0 100,0
1,002,003,00Total
ValidFrequency Percent
ValidPercent
Cumulative Percent
indicedeconfiançacategorizado
162 32,0 32,0 32,0184 36,3 36,3 68,2161 31,8 31,8 100,0507 100,0 100,0
1,002,003,00Total
ValidFrequency Percent
ValidPercent
Cumulative Percent
- 13% enquadram-se no grupo dos “desconfiados”, 59% no grupo dos
confiantes, abertos à inovação e pouco influenciáveis por terceiros; o
grupo intermédio – 28% - pode ser “conquistado” por um ou lado, em
função de situações pontuais;
f) Malanje
- 32% constituem o grupo dos “desconfiados” “conservadores”, ancorados
em relações de conhecimento pessoal ou de identidade religiosa, étnica,
regional, etc.; o grupo 3, dos confiantes, abertos à inovação, pouco
influenciáveis por terceiros, é constituído por outros 32% da amostra; o
grupo intermédio – 36% - pode fazer a diferença, aliando-se a um lado
ou outro.
Comparando estes dados com os resultados da pesquisa qualitativa, parece possível
retirar as seguintes conclusões preliminares:
d) parece haver consistência nas constatações de que uma parte considerável dos
respondentes (50% em média) mostra desconfiança (19% em média) ou cautela
e precaução (31%, em média) no seu relacionamento com terceiros; os
Luandenses mostram-se mais confiantes do que os respondentes das outras duas
cidades;
e) na análise qualitativa, os bengueleneses mostram-se mais “desconfiados” do que
os Malanjinos, contrariamente ao que mostram os resultados do índice;
f) a presença de uma percentagem considerável (50%) de pessoas “confiantes” –
59%, 59%, 32% -, parece emprestar consistência à constatação da análise
qualitativa, segundo a qual, existe um potencial de mudança nos participantes da
pesquisa, nas 3 cidades.
3º. Índice de Acesso à Informação
Considerando o papel dos meios de comunicação social como canais de informação,
formadores de opinião, mediadores do espaço público, e da influência que poderão
exercer nos comportamentos, práticas e atitudes dos cidadãos, assim como nas suas
escolhas políticas, a construção deste Índice visa facilitar a percepção dos níveis de
acesso dos cidadãos à informação, falada, escrita e televisionada, e à frequência desse
acesso.
Esta informação serve para validar (ou não) os resultados da análise qualitativa das
respostas aos questionários, semi-estruturados e abertos, endereçando perguntas que
visam um maior entendimento da relação dos cidadãos com os meios de comunicação e
as percepções que os próprios profissionais – jornalistas de diversos meios de
comunicação social em funcionamento nas 3 cidades abrangidas pela pesquisa – têm
sobre si enquanto cidadãos e profissionais dos mídia, os orgãos em que trabalham e o
seu papel na sociedade, e os demais actores sociais, seus papéis, funções e relações
entre si.
O Índice de Acesso à Informação foi criado com base nas perguntas relacionadas com
os 3 meios de comunicação com maior abrangência em termos da sua capacidade de
cobertura populacional e geográfica – rádio, jornal e televisão - e da frequência desse
acesso, medida em número de dias de audição de notícias na rádio, leitura de jornais e
assistência de Tv.
Foram selecionadas as seguintes variáveis:
13. Quantas vezes lê jornal por semana
14. Quantas vezes acompanha notícias/debates pela rádio
15. Quantas vezes acompanha notícias/debates pela TV
Estabeleceram-se os seguintes valores extremos: Valor Máximo 7 (dias), significando
que o respondente tem acesso aos 3 meios de comunicação social todos os dias da
semana, e Valor mínimo 1 (0 dias), significando que o respondente não tem acesso,
numa base semanal, à rádio, ao jornal e à Tv.
Foram criadas 3 categorias de acesso:
S/acesso 0 – 2
Acesso limitado 2 – 5
Acesso à informação 5 – 7.
As tabelas seguintes mostram os resultados obtidos para as 3 cidades: a) Luanda
b) Benguela
c) Malanje
Interpretação dos resultados:
d) Luanda:
- Com acesso à informação - 11%, de uma amostra composta de 1 506
participantes, ouve notícias na rádio, lê os jornais e assiste televisão, de 5
a 7 dias por semana;
- Com acesso limitado à informação - 44%, ouve notícias na rádio, lê os
jornais e assiste televisão, de 2 a 5 dias por semana;
- Sem acesso à informação – 45%, ouve notícias na rádio, ê os jornais e
assiste televisão de 0 a 2 dias por semana.
e) Benguela:
- Com acesso à informação - 3%, de uma amostra composta de 1 506
participantes, ouve notícias na rádio, lê os jornais e assiste televisão, de 5
a 7 dias por semana;
- Com acesso limitado à informação - 23%, ouve notícias na rádio, lê os
jornais e assiste televisão, de 2 a 5 dias por semana;
- Sem acesso à informação – 74%, ouve notícias na rádio, lê os jornais e
assiste televisão de 0 a 2 dias por semana.
Frequency Percent Valid Percent Cumulative Percent5-7 dias/semana 166 11 11,1 11,12-5 dias/semana 660 43,8 44 55,10 - 2 dias/semana 674 44,8 44,9 100Total 1500 99,6 100
Missing System 6 0,41506 100Total
Indice de acesso a informacao categorizado
Valid
Frequency Percent Valid Percent Cumulative Percent5-7 dias/semana 15 3 3,1 3,12-5 dias/semana 109 21,8 22,7 25,80 - 2 dias/semana 357 71,3 74,2 100Total 481 96 100
Missing System 20 4501 100Total
Indice de acesso a informacao categorizado
Valid
Frequency Percent Valid Percent Cumulative Percent5-7 dias/semana 21 4,1 4,2 4,22-5 dias/semana 134 26,4 27,1 31,30 - 2 dias/semana 340 67,1 68,7 100Total 495 97,6 100
Missing System 12 2,4507 100
Valid
Total
Indice de acesso a informacao categorizado
f) Malanje:
- Com acesso à informação - 4%, de uma amostra composta de 1 506
participantes, ouve notícias na rádio, lê os jornais e assiste televisão, de 5
a 7 dias por semana;
- Com acesso limitado à informação - 27%, ouve notícias na rádio, lê os
jornais e assiste televisão, de 2 a 5 dias por semana;
- Sem acesso à informação – 69%, ouve notícias na rádio, lê os jornais e
assiste televisão de 0 a 2 dias por semana.
A pesquisa quantitativa a partir da qual se criou a base de dados que permitiu a criação
deste índice, refere ainda que:
- cerca de 30% dos cidadãos não têm, numa base semanal, acesso à informação,
seja via rádio, jornal ou televisão,
- apenas 3% dos cidadãos têm acesso à informação, a partir destes meios, numa
base diária,
- foi constatado um elevado nível de incerteza sobre a neutralidade da
comunicação social durante as eleições e verificou-se uma correlação positiva
entre os níveis de acesso à informação e os níveis de incerteza na neutralidade
dos meios de comunicação, durante as eleições (p. 11)
- o nível de confiança dos cidadãos entrevistados nos jornalistas é
substancialmente baixo: “60% dos respondentes com acesso à informação em
Luanda, e 50% nas restantes províncias, revelaram que não iriam confiar ou
iriam confiar pouco naquilo que os jornalistas mostram, dizem ou escrevem,
devido à “percepção de falta de neutralidade da comunicação” (p.12).
III - QUESTIONÁRIOS DA PESQUISA DE CAMPO
QUESTIONÁRIO no. 1 1. Dados sócio-demográficos Nome:..................................................................................................................................Faixa etária: (<20 anos) (20-30) (30-40) (40-50) (>50 anos) Profissão..............................................................................................................................Ocupação/função................................................................................................................. Cidade..................................................................................................................................
Dados facultativos: Raça................Nível educacional..............................................Estado civil....................... Sexo.................Rendimento mensal.......................................No. de filhos.........................
1. Interessa-se por política? ( ) – Muito interesse ( ) - Algum interesse ( ) – Não muito ( ) – Nenhum interesse. 2. Costuma discutir/conversar sobre política? Entre amigos Entre colegas de trabalho ( ) – Frequentemente – ( ) ( ) – Ocasionalmente - ( ) ( ) – Nunca - ( ) 3. E sobre a situação económica e social do país? Entre amigos Entre colegas de trabalho ( ) – Frequentemente – ( ) ( ) – Ocasionalmente – ( ) ( ) – Nunca - ( ) 4. Tem por hábito tentar convencer seus familiares, amigos e colegas de trabalho a envolverem-se mais com os assuntos (as ‘makas’) relacionadas com a situação política, económica e social do país? ( ) – Frequentemente ( ) – De vez em quando ( ) – Raramente ( ) – Nunca 5. Indique 3 frases que, em sua opinião, melhor descrevem a situação de Angola: ( ) – O sistema económico precisa mudar radicalmente ( ) - O governo deveria ser mais aberto às mudanças públicas ( ) – É necessário criar mais oportunidades de negócios e empregos ( ) – Precisamos de uma justiça ‘mais justa’ e ao alcance de todos ( ) – O sistema político precisa de reformas profundas ( ) – Estado e sociedade deveriam trabalhar em parceria ( ) – A sociedade está muito dividida e não consegue apresentar-se como parceira credível ( ) – Os mecanismos sociais de auscultação criados são ineficazes 6. Pensando no momento actual do país, qual das seguintes frases descreve melhor a situação? ( ) – É a possível devido aos problemas da história de Angola ( ) – Apesar da guerra, poderíamos estar muito melhor ( ) – Agora que a guerra acabou precisamos mudar ( ) – Nenhuma delas Qual a sua posição?............................................................................................................. .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 7. Porque razão há tanta gente pobre, sobrevivendo com tanta dificuldade? ( ) – Porque não têm sorte ( ) - Porque são preguiçosos e não têm força de vontade ( ) – Porque a nossa sociedade é injusta ( ) – Por causa da guerra ( ) – Não sei.
8. No actual momento de transição da guerra para a paz, o que gostaria de ver acontecer em Angola?.......................................................................................................................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 9. Numa situação de mudança em sua vida pessoal ou profissional, qual o sentimento que o acompanha? ( ) – ansiedade ( ) – tranquilidade ( ) - expectativa ( ) – satisfação, porque é bom mudar ( ) – desagrado, porque não vale a pena arriscar ( ) – outro Qual?.................................................................................................................................... 10. Se pudesse votar em políticas, qual a importância que atribuiria aos seguintes objectivos de política, para Angola? Escala de 1 (insignificante) a 10 (fundamental) ( ) – Reconciliação entre os angolanos ( ) - Eliminação da pobreza ( ) - Eliminação das desigualdades ( ) - Democratização da sociedade ( ) - Modernização da sociedade ( ) – Erradicação do analfabetismo ( ) – Aumento da esperança de vida ( ) – Redução da mortalidade, principalmente a infantil ( ) – Combate sem tréguas à corrupção ( ) - Gestão pública mais transparente e mais participativa ( ) – Expansão das oportunidade de participação ( ) – Melhoria significativa na redistribuição dos rendimentos nacionais 11. Em sua opinião, Angola é governada ( ) – Por poucos grandes interesses ( ) – No interesse de todos ( ) – Pelas elites ( ) – Com a participação de todos ( ) – Não sei 12. Tem orgulho em ser angolano? ( ) – Muito ( ) – Bastante ( ) – Não muito ( ) - Nenhum 13. As pessoas são confiáveis, em geral, ou é preciso ser cauteloso ao lidar com elas? ( ) – A maior parte é confiável ( ) - Não é preciso ser muito cauteloso ( ) – Só confio em quem conheço ( ) – “O seguro morreu de velho” ( ) – Não sei 14. Que confiança merecem as seguintes instituições? (Muita) (Bastante) (Não muita) (Nenhuma) Igreja Governo Forças armadas
Justiça Imprensa Sindicatos Associações cívicas Parlamento Organizações não governamentais Serviço público Empresas Partidos políticos Autoridades tradicionais Polícia 15. Pertence a alguma associação? (sim) (não) Se sim, de que tipo? ( ) – profissional ( ) – cívica ( ) – cultural ou recreativa ( ) – de produção ( ) – de consumo ( ) – grupos de mulheres ( ) – grupo de jovens ( ) – caixas de apoio mútuo ( ) – outra Qual?.................................................................................................................................... 16. Em sua opinião, quais as razões para fazer trabalho cívico ou voluntário? Escala de 1 (pouco importante) a 5 (muito importante) ( ) - Solidariedade ( ) - Compaixão ( ) - Oportunidade para pagar algo, dar algo em troca ( ) - Sentido de dever ( ) - Identificação com os que sofrem ( ) - Melhorar o nosso bem-estar comum ( ) - Ocupação de tempo livre ( ) - Crença religiosa ( ) - Satisfação pessoal ( ) - Necessidade de mudança social e política ( ) - Ajudar a dar esperança e dignidade aos pobres e necessitados ( ) - Encontrar outras pessoas ( ) - Ganhar experiência e ‘novas ferramentas’ para a vida ( ) - Mobilizar prestígio social ( ) - Vergonha de recusar 17. Que tipo de pessoa não gostaria de ter como vizinho? ( ) – passado criminal ( ) – outra raça ( ) – extremista político ( ) – bêbado ( ) – família numerosa ( ) – com perturbações mentais ( ) – deficiente físico ( ) - imigrante/estrangeiro ( ) – drogado
( ) – homossexual ( ) – outros Quais?............................................................................................................................................................................................................................................................................... 18. Qual a sua reacção quando sabe que alguém próximo de si, familiar, amigo, vizinho, está passando mal de saúde?................................................................................................ ..........................................................................................................................................................................................................................................................................................
19. Um amigo confidencia-lhe que está com graves problemas financeiros. Qual a sua reacção?
( ) – fico na minha, afinal só se queixou, nada pediu ( ) – procuro forma de ajuda-lo ( ) – todos estamos com dificuldades ( ) – não podendo, procuro encaminha-lo a quem o possa ajudar, recomendando-o ( ) – nenhuma destas O que faria, então?............................................................................................................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 20. Perante a ideia de criação de uma associação/cooperativa/comissão/grupo/clube, no seu bairro, entre colegas da mesma profissão, entre amigos e conhecidos com as mesmas afinidades culturais, entre amigos da ‘farra’, qual seria a sua reacção?................ ..........................................................................................................................................................................................................................................................................................
QUESTIONÁRIO No. 2
Nome................................................................................................................................... Faixa etária (<20 anos) (20-30) (30-40) (40-50) (> 50 anos) Profissão.............................................................................................................................. Função/ocupação................................................................................................................. Cidade.............................................. 1. Quando ouve falar em sociedade civil em que é que pensa? .......................................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 2. Por favor, dê exemplos dos elementos, organizações, grupos compõem essa ideia ...... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 3. Como é que esses elementos se relacionam uns com os outros...................................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 4. Quais as funções ou papéis que relaciona com essa ideia?............................................. .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 5. Como são as relações dessa sociedade civil com o Estado angolano?............................ .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 6. Qual a sua relação com essa sociedade civil? ................................................................. ..........................................................................................................................................................................................................................................................................................
7. Como qualificaria essa sociedade civil do ponto de vista do dinamismo e da visibilidade? ........................................................................................................................ .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 8. Em sua opinião, o contexto angolano afecta a constituição e o funcionamento dessa sociedade civil?.................................................................................................................... Como?............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................ 9. Está satisfeito com o desempenho da sociedade civil em Angola?................................. Porquê?.......................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... 10. Das organizações abaixo listadas, assinale as que identifica com sociedade civil: ( ) – tribunais ( ) – parlamento ( ) – sindicatos ( ) – associações cívicas ( ) – movimentos sociais ( ) – partidos políticos ( ) – meios de comunicação social ( ) – forças armadas ( ) – igrejas e organizações religiosas ( ) – associações profissionais ( ) – associações culturais, desportivas e recreativas ( ) – grupos de interesse ( ) – ONG’s (organizações não governamentais) ( ) – agências multi e bilaterais ( ) – OCB’s (organizações comunitárias de base) ( ) – autoridades tradicionais (sobas, sékulos) ( ) – comissões de bairro ( ) – associações de moradores ( ) – grupos de acção partidária ( ) – empresas ( ) – associações de produção/cooperativas ( ) - agências locais de desenvolvimento ( ) – outras Quais? .............................................................................................................................
QUESTIONÁRIO No. 4 – Entidades religiosas Identificação Nome................................................................................................................................... Igreja ou organização religiosa............................................................................................ Função................................................................................................................................. Cidade....................................... 1. Qual tem sido o envolvimento da Igreja/organização religiosa no fornecimento de serviços à população? (grande) (pequeno) (esporádico) (constante) (nenhum) Pode citar exemplos? ..........................................................................................................
.............................................................................................................................................
............................................................................................................................................. Esse envolvimento afecta o alcance dos propósitos originais da Igreja/organização religiosa? (sim) (não) Porquê? ............................................................................................................................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 2. Como a Igreja/organização religiosa entende a questão da ‘participação’ e que acções desenvolve no sentido de aumentar a capacidade das pessoas?.......................................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 3. A Igreja/organização religiosa promove ou participa em acções de treinamento dos seus fiéis nos processos democráticos de tomada de decisão? (sim) (não) Se sim, dê exemplos, por favor ........................................................................................... ............................................................................................................................................. Se não, porquê? ................................................................................................................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 4. Qual a relação entre as autoridades públicas e as Igrejas e organizações religiosas?...................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... 5. Qual o entendimento da Igreja/organização religiosa sobre sociedade civil em Angola? ............................................................................................................................................. ............................................................................................................................................. 6. A Igreja/organização religiosa inclui-se na sociedade civil em Angola? (sim) (não) Porquê? ............................................................................................................................... ..........................................................................................................................................................................................................................................................................................
QUESTIONÁRIO No. 5 – Meios de Comunicação Social Identificação Nome................................................................................................................................... Profissão.............................................................................................................................. Função/ocupação................................................................................................................. Órgão de comunicação.............................................Cidade................................................ 1. Em seu entender, os meios de comunicação social são, predominantemente: ( ) - canais de informação ( ) – canais de transmissão da opinião pública ( ) - formadores de opinião ( ) - .................................................................................................................................... ............................................................................................................................................. 2. Como é preenchida a programação (espaço de antena) dos órgãos de comunicação social? ( ) – informação oficial dos órgãos estatais e governamentais? ( ) – programas de opinião dos jornalistas ( ) – programas de opinião com participação de ouvintes/telespectadores
( ) – programas de lazer, música, novelas e entretenimento em geral ( ) – outros.......................................................................................................................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 3. Em sua opinião, existe espaço de antena para grupos sociais desfavorecidos ou excluídos, como deslocados, pobres, portadores de deficiências, dissidentes políticos, mulheres, nos meios de comunicação angolanos?............................................................... ......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 4. Em sua opinião, qual o grau de importância dos temas abaixo listados na programação dos principais órgãos de comunicação social em Angola? ( ) - notícias locais, nacionais ( ) e internacionais ( ) ( ) – entretenimento e lazer ( ) – programas de opinião com participação da audiência ( ) – programas de opinião dos jornalistas ( ) – programas dirigidos a grupos, como crianças, mulheres, idosos 5. Quais os temas mais abordados nos programas de opinião? ( ) – relacionadas com a Paz ( ) – democratização ( ) – desenvolvimento ( ) – combate à pobreza ( ) – economia ( ) – política ( ) – combate às desigualdades sociais ( ) – direitos humanos e liberdade de expressão, associação e reunião ( ) – outros Quais?.................................................................................................................................. 6. Do ponto de vista geográfico, a maior abrangência das notícias e dos programas de opinião é: ( ) questões locais, nacionais ( ), relativas ao continente ( ) relativas à região ( ) internacionais ( ) 7. Qual o papel dos meios de comunicação social no processo de reconciliação nacional ............................................................................................................................................. ............................................................................................................................................, na democratização da sociedade.......................................................................................... ............................................................................................................................................, no combate à pobreza.......................................................................................................... ............................................................................................................................................, e na construção de cidadania?............................................................................................. .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 8. Quais as fontes de financiamento do órgão de comunicação a que pertence?................ .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 9. Qual a sua opinião sobre a lei de Imprensa em vigor no país?........................................ ..........................................................................................................................................................................................................................................................................................
10. Na realização do seu trabalho diário, sente-se à vontade para expressar a sua opinião?...............................................................................................................................
.............................................................................................................................................
............................................................................................................................................. 11. Como qualifica as relações entre as autoridades públicas e os meios de comunicação social? .... ............................................................................................................................ .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 12. No seio da comunicação social, qual o entendimento sobre sociedade civil em Angola?................................................................................................................................ .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 13. Os meios de comunicação social fazem parte da sociedade civil? (sim) (não) Porquê? ............................................................................................................................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 14. Qual a relação entre sociedade civil, meios de comunicação social e opinião pública?................................................................................................................................ .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... QUESTIONÁRIO No. 6 - Autoridades Tradicionais e Administração Local do Estado Nome................................................................................................................................... Faixa etária: (<20 anos) (20-30) (30-40) (40-50) (>50 anos) Profissão.............................................................................................................................. Função/ocupação................................................................................................................. Cidade................................................
Dados facultativos: Raça................Nível educacional..............................................Estado civil....................... Sexo.................Rendimento mensal.......................................No. de filhos.........................
1.Quais são as funções das autoridades tradicionais?.......................................................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 2. Qual a relação entre as autoridades tradicionais e a administração local do Estado?..... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 3. Como se articulam estes dois poderes na concretização de projectos, programas e campanhas nas áreas da Saúde, Educação, Terras, Agricultura, Justiça, etc...................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 4. Quais as relações das autoridades tradicionais com os deputados eleitos pelas províncias?........................................................................................................................... ............................................................................................................................................. 5. Quais as relações das autoridades tradicionais com:
( ) Igrejas ..................................................................................................................... ....................................................................................................................................... ( ) ONG’s .................................................................................................................... ....................................................................................................................................... ( ) Associações cívicas ................................................................................................
....................................................................................................................................... ( ) Sindicatos ............................................................................................................... ....................................................................................................................................... ( ) Associações de moradores ..................................................................................... ....................................................................................................................................... ( ) Comissões de Bairro............................................................................................... .......................................................................................................................................( ) outras OCB’s .......................................................................................................... ....................................................................................................................................... ( ) outras Associações ou grupos ................................................................................ .......................................................................................................................................( ) Partidos políticos ................................................................................................... ....................................................................................................................................... ( ) cooperativas e associações de produção................................................................. ....................................................................................................................................... ( ) Outros ..................................................................................................................... .......................................................................................................................................
6. Qual a origem do Soba ou Sékulo ( ) – Deslocado das áreas rurais por causa da guerra Desde quando? .............................................................................................................. Já era Soba ou Sékulo? ................................................................................................. ( ) – É da região/cidade Quando assumiu as funções? ........................................................................................ Foi eleito? ( ) Por linhagem ( )
7. Como exerce as suas funções?......................................................................................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 8. Quais as suas expectativas em relação ao futuro da sua região e de Angola, agora que a guerra acabou?.................................................................................................................. ..........................................................................................................................................................................................................................................................................................9. Qual o seu papel, enquanto autoridade tradicional, nesse processo?.............................. ..........................................................................................................................................................................................................................................................................................
Nota: Estas mesmas questões serão colocadas aos representantes da administração local do Estado, no sentido de procurar compreender como eles vêm as autoridades tradicionais e o seu papel na sociedade.
QUESTIONÁRIO No. 7 - O sector informal e o meio urbano
1. Dados sócio-demográficos Nome:..................................................................................................................................Faixa etária: (<20 anos) (20-30) (30-40) (40-50) (>50 anos) Profissão..............................................................................................................................Ocupação/função................................................................................................................. Cidade..................................................................................................................................
Dados facultativos: Raça................Nível educacional..............................................Estado civil....................... Sexo.................Rendimento mensal.......................................No. de filhos.........................
1. Trabalha há muito tempo no mercado informal?............................................................. 2. Desde quando?................................................................................................................. 3. Qual a razão de estar no mercado informal?................................................................... ............................................................................................................................................. 4. Já foi empregado no sector formal?................................................................................. 5. Preferiria trabalhar no sector formal?.............................................................................. 6. O que ganha aqui é suficiente para o seu sustento e de sua família? ............................. ............................................................................................................................................. 7. Quantas pessoas tem a sua família?............ Os outros membros da família trabalham no sector informal ou no sector formal?.............................................................................. ............................................................................................................................................. 8. Quais são os seus projectos para o futuro?...................................................................... ............................................................................................................................................. 9. Como é que vê o futuro de Angola, agora que a guerra acabou?.................................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 10. Na sua opinião, o que poderia ser feito para melhorar as condições de vida das pessoas?......................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... 11. E quem deveria fazer isso?............................................................................................ 12. O que gostaria que fosse feito para melhorar as condições de trabalho no sector informal? ............................................................................................................................. .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 13. Trabalha sozinho ou em grupo?.................................................................................... 14. Como e onde compram os produtos que vendem aqui? ............................................... ..........................................................................................................................................................................................................................................................................................
15. Quais as experiências que aprendeu aqui e que lhe são úteis na vida, em casa, na família ou na sociedade?...................................................................................................... ..........................................................................................................................................................................................................................................................................................
16. Em sua opinião, existe espírito de entre-ajuda entre pessoas e grupos no sector informal?............ Porquê, pode dar exemplos? .................................................................. ..........................................................................................................................................................................................................................................................................................
Cabinda
Benguela
Huíla
CuneneNamibe
Luanda
Kwanza Sul
Bengo
HuamboBié
Zaire
Uíge
Lunda NorteMalange
Lunda
Moxico
Kuando Kubango
Kwanza
Ondjiva
Menongue
Luena
Kuito
Huambo
LubangoNamibe
Benguela
Sumbe
Malange Saurimo
Lucapa
Uíge
M´banza Congo
Caxito
Cabinda
0 1 3
Kilometers
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