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CESALTINA CADETE BASTO DE ABREU SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA: da realidade à utopia. Trabalho apresentado ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do grau de Doutora em Sociologia. Banca Examinadora: Maria Celi Scalon (Presidente) José Maurício Domingues (Orientador) João Feres Jr. Carlos Serrano Marcelo Bittencourt Rio de Janeiro 2006

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CESALTINA CADETE BASTO DE ABREU

SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA: da realidade à utopia.

Trabalho apresentado ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do grau de Doutora em Sociologia.

Banca Examinadora: Maria Celi Scalon (Presidente) José Maurício Domingues (Orientador) João Feres Jr. Carlos Serrano Marcelo Bittencourt

Rio de Janeiro 2006

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Para o Hugo, meu filho Com a esperança de um futuro melhor!

Em memória de Mário Adauta e José Negrão

Persegui, neste trabalho, o vosso ideal de novos modos de produzir conhecimento.

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Mukanda* de Agradecimento

Seis anos se passaram desde 13 de Março de 2000, quando iniciei a pós-graduação em Sociologia. Muita coisa aconteceu desde então, e muitas foram as instituições e as pessoas que me estimularam, ajudando-me de diversas maneiras a enfrentar o desafio. Ao IUPERJ, o meu profundo reconhecimento pela oportunidade concedida, o ambiente de estudo, o apoio nas áreas de secretariado, biblioteca, computação. Agradeço aos professores o ambiente de abertura ao debate de ideias e à troca de experiências. Um especial “muito obrigada” (com aspas, professor...) ao meu orientador, José Maurício Domingues, pelo estímulo das suas provocações e pela infinita paciência em ler meus longos arrazoados... À CAPES pela outorga da bolsa de estudos para o curso de Doutoramento... À minha família, pelo amor, carinho e apoio que me permitiram superar os obstáculos e encontrar os caminhos para chegar até aqui... Aos amigos que, apesar das ausências e dos silêncios prolongados, me têm privilegiado com o seu apoio e solidariedade... Aos colegas das atividades acadêmicas e profissionais, pela partilha de conhecimentos e experiências que me permitiu crescer como pessoa. Em especial, aos parceiros do Instituto de Pesquisa Econômica e Social (A-Ip), pela amizade e cumplicidade num projeto que tem tudo para dar certo, apesar dos percalços de percurso... Entendo este trabalho como uma modesta contribuição para a busca dos caminhos do futuro no meu país, Angola. Se as suas fundações remetem à produção acadêmica, em especial do hemisfério sul, a construção da tese foi possível graças às opiniões dos participantes na pesquisa de campo. Tomara que tenha conseguido descodificar as mukandas de todos os que aceitaram fazer parte deste projeto, e a quem apresento os meus sinceros agradecimentos. Cesaltina Abreu. * “mukanda” significa mensagem em “angolês”!

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INDICE

INTRODUÇÃO...............................................................................................................1

CAPÍTULO 1 – ANGOLA E A MODERNIDADE

I – INTRODUÇÃO: para além da modernidade e da tradição........................................21 II – A TRAJETÓRIA ANGOLANA 1. Marcos históricos.........................................................................................................28 2. O ambiente institucional e o quadro jurídico angolano...............................................30 III. NOS CAMINHOS DA MODERNIDADE 1. Discutindo a Modernidade...........................................................................................38 2. “Fim da História”, “Choques de Civilizações” ou “Encontros Civilizacionais”?......39 3. Modernidade e civilização...........................................................................................44 4. Buscando subsídios na discussão sobre globalização..................................................47 5. Um quadro teórico desejável.......................................................................................49 CAPÍTULO 2: A SOCIEDADE CIVIL EM DEBATE I – INTRODUÇÃO.........................................................................................................52 II. O DEBATE ATUAL SOBRE SOCIEDADE CIVIL 1. Como a sociedade civil progressivamente se diferenciou do Estado..........................57 2. As tendências nos debates atuais sobre sociedade civil..............................................62 2.1. A corrente liberal......................................................................................................62 2.2. A corrente marxista..................................................................................................64 2.3 A corrente habermasiana...........................................................................................66 2.4. A sociedade civil e o socialismo real.......................................................................72 2.5. Discursos do oriente.................................................................................................74 2.6. África Subsahariana..................................................................................................76 2.7. A sociedade civil global...........................................................................................80 III. A VALIDAÇÃO DO CONCEITO............................................................................82 IV. A CONSTRUÇÃO DO PÚBLICO EM ANGOLA 1. O Debate sobre Sociedade Civil..................................................................................86 2. Os dilemas da Participação em Angola.......................................................................91 3. Subsídios para um quadro teórico da sociedade civil em Angola...............................93 CAPÍTULO 3 – OS DISCURSOS DA SOCIEDADE CIVIL I.INTRODUÇÃO...........................................................................................................96 II – O QUADRO TEÓRICO PARA ANÁLISE DOS DISCURSOS 1. A teoria do discurso....................................................................................................97 2. Aspetos metodológicos da discussão.........................................................................101 III – IDEOLOGIAS E UTOPIAS NOS DISCURSOS CONTEMPORÂNEOS SOBRE SOCIEDADE CIVIL. 1. Ideologias e utopias inscritas nas representações discursivas...................................106 2. Sociedade Civil no discurso neoliberal.....................................................................109 3. Desconstruindo o discurso dominante......................................................................116 4. A oposição à ideologia neoliberal ............................................................................119

IV – O QUADRO PARA A ANÁLISE DOS DISCURSOS SOBRE A SOCIEDADE

CIVIL EM ANGOLA...................................................................................................124

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CAPITULO 4 - A SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA: contribuições da pesquisa de campo. I. INTRODUÇÃO........................................................................................................132

II. IMAGENS, CONTORNOS E PAPÉIS DA SOCIEDADE CIVIL.........................136

1. Os entendimentos sobre sociedade civil...................................................................139 2. Critérios de inclusão ou de pertencimento................................................................142 3. Os Papéis atribuídos à sociedade civil......................................................................146 4. Relações dos participantes com a sociedade civil.....................................................148 5. Relações entre os constituintes da sociedade civil....................................................149 6. Dinamismo e visibilidade da sociedade civil............................................................150 7. Satisfação com o desempenho da sociedade civil.....................................................153 8. Influência do contexto angolano na sociedade civil..................................................154

III. ELEMENTOS DA CULTURA CÍVICA EM ANGOLA

1. Interesse e participação na política............................................................................155 2. Confiança nas pessoas e nas instituições...................................................................161 3. Ação coletiva.............................................................................................................165 3.1. Associativismo........................................................................................................165 3.2. Ajuda Mútua e Solidariedade.................................................................................168 3.3. Relações de Vizinhança..........................................................................................169 IV – EM JEITO DE CONCLUSÃO..............................................................................169 CAPÍTULO 5 – A SOCIEDADE CIVIL COMO MOTOR DA MUDANÇA I. INTRODUÇÃO.........................................................................................................173 II. O ESTADO E A SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA, SEGUNDO OS PARTICIPANTES NA PESQUISA.............................................................................176 III. INSATISFAÇÃO E MUDANÇA. Descodificando mensagens endereçadas à sociedade civil. 1 – Dimensionando e qualificando a insatisfação.........................................................180 2 – Pacificar os espíritos, articular plataformas: a consolidação da Paz como prioridade primeira..........................................................................................................................183 3 – Os caminhos da mudança........................................................................................187 4 - Combate à Pobreza...................................................................................................193 5 – Necessidade de democratização ou mera insatisfação?...........................................195 IV – ARTICULAÇÕES E MEDIAÇÕES 1. As Igrejas e entidades religiosas................................................................................197 2. Os Meios de Comunicação........................................................................................199 3. As Autoridades Tradicionais e o poder local.............................................................201 V. ENTRE O PODER DO ESTADO E A VULNERABILIDADE DA SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA....................................................................................................208 CAPÍTULO 6 – 212 PÁGINAS DEPOIS ... QUE CONCLUSÕES?......................213 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................234 BIBLIOGRAFIA ADICIONAL SOBRE MÉTODOS DE PESQUISA.......................250 SOBRE ANGOLA (Bibliografia não citada)................................................................250 ANEXO METODOLÓGICO (37 páginas) e MAPA de ANGOLA.

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Apresentação No momento de paz militar que se vive em Angola Após décadas de guerra civil, são frequentes as referências à sociedade civil e ao seu papel na reconciliação nacional e na construção da paz social, por parte de atores estatais e não-estatais. A tese foi concebida como uma contribuição para o conhecimento da sociedade civil em Angola, sua constituição e papéis. A metodologia combinou pesquisa bibliográfica e uma pesquisa de campo realizada em 3 cidades, Luanda, Benguela e Malanje, envolvendo 169 participantes distribuídos por 8 categorias de análise (associações de diversa natureza, ONG’s, meios de comunicação social, entidades religiosas, poder local, setor informal, mulheres e jovens). A tese defende um quadro teórico multidimensional em que a teoria da modernidade articulada mista, com alguns subsídios, se mostra a mais adequada à análise da relação de Angola com o tempo do mundo, e uma combinação das teorias da sociedade civil, enquanto vida associativa independente do Estado, do mercado e da família, e da esfera pública, chamando a atenção para a importância da institucionalização do acesso e uso efectivo dos direitos de liberdade de expressão, de reunião, associação, de proteção da privacidade e da integridade pessoal para o exercício formal da influência sobre os processos de tomada de decisão. Esta perspectiva permite, ainda, perceber o papel de diversos atores sociais que, integrando ou não a sociedade civil, constituem instâncias de intermediação e de diálogo entre os atores da sociedade civil e o Estado e o Mercado.

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INTRODUÇÃO

A escolha do tema para a tese de doutoramento, a sociedade civil em Angola, surgiu na

continuidade da reflexão iniciada no mestrado sobre o conceito de participação em

Angola, mais especificamente em áreas de intervenção do Fundo de Apoio Social (FAS)

no sudoeste angolano, que combinou pesquisa bibliográfica e pesquisa de campo. As

conclusões daquele trabalho sugeriam que, apesar de todos os constrangimentos

impostos pelo contexto angolano, particularmente a prolongada guerra civil e a

prevalência de um regime político autoritário desde a independência e que pouco se

democratizou realmente após as reformas dos anos 90, a centralidade da ideia de

participação na construção da filosofia de intervenção do Fundo fez a diferença. O

protagonismo reservado às instituições locais no processo de identificação, priorização,

execução, funcionamento e manutenção dos projetos comunitários financiados, e a

criação de interfaces de diálogo e concertação social com outros atores sociais, entre

outros factores, permitiram superar as limitações intrínsecas à intervenção do próprio

FAS e os impactos negativos da guerra civil, e tiveram como efeito o aumento da auto-

estima nas comunidades pobres, uma maior visibilidade dos problemas que elas

enfrentam e o envolvimento de outros atores sociais na busca de soluções.

A partir destas constatações, impunha-se identificar os caminhos que permitissem

aprofundar o conhecimento das representações sociais de atores angolanos, a

insatisfação pelo estado das coisas no país, o desencanto em relação aos rumos

imprimidos após a independência, a ausência de perspectivas de progresso e bem estar

para todos num ambiente de acomodação e respeito pela diversidade cultural de Angola,

e também o desejo de inserção nas oportunidades de desenvolvimento global,

reivindicando maior inclusão no processo de tomada de decisão e criação de instâncias

de participação. Por outro lado, a experiência profissional de 3 décadas de trabalho em

diversos níveis da administração do Estado, das fazendas e comunidades de base ao

gabinete do Primeiro Ministro, passando por serviços técnicos do aparelho ministerial e

uma instituição pública de financiamento de projetos em comunidades carentes,

orientava a procura desses caminhos numa esfera de relações sociais exterior ao

aparelho do Estado e ao sistema político, na qual a criatividade e a inovação dos

cidadãos e das organizações e grupos por eles criados, permitisse vislumbrar saídas para

a crise que caracterizou, e ainda caracteriza, a realidade angolana.

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A aposta na capacidade criativa e na persistência das lutas dos atores sociais angolanos

com vista ao alcance de uma sociedade mais justa e equitativa, conduziu à identificação

da sociedade civil como objetivo de estudo, em busca de um espaço de intervenção e de

participação com capacidade de influenciar as políticas públicas e as decisões em

relação ao futuro. As questões identificadas para organizar a pesquisa desse estudo

foram essencialmente as seguintes: faz sentido falar de sociedade civil em Angola? O

que significa sociedade civil para os angolanos, qual o sentido mais comum atribuído ao

conceito? Será que os diversos atores sociais angolanos atribuem sentidos próximos,

convergentes ou semelhantes à sociedade civil? Qual o papel da sociedade civil na

Angola de hoje? O potencial mobilizador nessa ideia de sociedade civil é mais

ideológico ou mais utópico? Existem distinções nos sentidos inscritos nas opiniões entre

as 8 categorias de análise (entidades religiosas, associações cívicas / culturais /

desportivas, ONG’s/associações profissionais, meios de comunicação social, poder

local, setor informal, mulheres e jovens) e entre as 3 cidades abrangidas pela pesquisa?

Que razões (se as houver, ou melhor se for possível identifica-las) podem ser apontadas

para essas distinções?

1.

A concepção da tese, incluindo a discussão do enquadramento teórico do tema e o

desenho da pesquisa de campo1, partiu do pressuposto que as ideias e as práticas

relacionadas com a sociedade civil em Angola exprimiriam as experiências, as

limitações e os constrangimentos herdados / derivados da história recente do País,

designadamente a independência política em 1975 após séculos de dominação colonial,

a instauração de um regime marxista-leninista durante a I República (1977 a 1991), e a

prevalência de um estado de guerra civil (com alguns períodos de trégua pelo meio)

desde a independência até Abril de 2002, quando foi assinado o Tratado de Paz entre o

governo de Angola e a UNITA (União para a Independência Total de Angola), maior

partido da oposição.

A recente mudança no cenário político em Angola, com uma aparente solução militar

para um conflito que persistia desde antes da independência em Novembro de 1975, deu

lugar a uma nova etapa que se anuncia sob o lema da reconstrução e reconciliação

nacionais. Embora ainda não pareça definido um programa que guie a transição do país

1 A pesquisa de campo é apresentada no Anexo Metodológico a esta tese.

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da guerra para a Paz, e muito menos um projeto de construção da nação angolana a

partir das subjetividades coletivas constituídas após a independência num ambiente de

guerra civil, parece que qualquer caminho a seguir pressupõe mudanças institucionais e

de valores mais ou menos profundas, produzidas internamente, e também pressionadas

pelas dinâmicas regionais e internacionais nas quais Angola se encontra inserida.

Cansada de guerra e em busca da superação das inúmeras distorções herdadas do

colonialismo, e não corrigidas após a independência, a sociedade angolana dá sinais de

se constituir no principal motor dessas mudanças.

Trinta anos após a independência política, os angolanos ainda não se sentem cidadãos

no seu país, pelo menos não ainda de forma ampla, inclusiva. Basta lembrar a grande

quantidade de pessoas ainda deslocadas das suas áreas de origem, ainda refugiadas em

países vizinhos, desmobilizados de guerra, mutilados de guerra, orfãos e viúvas ainda

não integrados na sociedade, para não ampliar a lista com as muitas comunidades

“remotas”, o público primordial de Ekhe ou os sujeitos de Mamdani, sofrendo as

consequências de um distanciamento não apenas geográfico, antes de não inclusão

efectiva no processo de construção da nação. A sociedade angolana permanece refém de

um passado recente, no qual o discurso político foi bipolarizado pelos dois protagonistas

da guerra civil, a vida quotidiana militarizada, e a sociedade silenciada. E três anos após

a assinatura do Acordo do Luena, um cessar-fogo assinado pelas mais altas patentes do

exército angolano e das forças militares da UNITA numa demonstração que a chave

para a solução do prolongado conflito angolano era militar, parece oportuno reflectir

sobre o atual momento que o país vive.

A opção por um modelo de desenvolvimento socialista, apresentada como inevitável

dado o contexto da guerra fria no âmbito do qual Angola foi um dos palcos do

confronto entre os ex-blocos capitalista e socialista, não só não corrigiu tais distorções,

como contribuiu para exacerbar conflitos sociais e culturais, muitas vezes com base em

argumentos étnicos ou raciais, resultantes da colonização e formação de um estado

colonial pela anexação dos diversos reinos que existiam no espaço geográfico que hoje

corresponde ao país Angola, com conseqüências políticas, sociais e econômicas

evidenciadas pelo elevado nível de exclusão social e pela igualmente crescente

desigualdade social, privilegiando uma pequena minoria e lançando a grande maioria da

sua população numa situação de pobreza bastante acentuada.

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Essas experiências vivenciadas pela sociedade angolana foram então entendidas como

limitações e constrangimentos ao desenvolvimento de um espaço público aberto e plural

capaz de fortalecer a cidadania e dar oportunidade ao surgimento de uma sociedade civil

com condições para interpelar o Estado e o mercado, na luta pela afirmação de direitos

políticos, sociais e civis, de influenciar a agenda pública e as políticas do governo, e de

colocar limites à expansão do sistema capitalista. Devido ao fechamento ao exterior e ao

controle do espaço público por ocupação pelo Estado, colonial e pós-independência,

assumiu-se que as ideias dos atores sociais relacionadas com o conceito de sociedade

civil seriam influenciadas por entendimentos de formas de ação coletiva com base em

solidariedades e responsabilidades sociais circunscritas a círculos restritos de grupos ou

comunidades.

As mudanças promovidas pela abertura do sistema político ao multi-partidarismo e a

passagem de um modelo econômico baseado na centralização da planificação

econômica e da gestão pública, para um modelo de “economia aberta de mercado

regulado”, produziram mudanças que não encontraram terreno propício à consolidação

de um novo quadro institucional plasmado nos ideais democráticos devido,

principalmente, ao reacender da guerra após as eleições de 1992. Mais uma vez, a

sociedade angolana se viu confrontada com um problema maior, o da guerra civil, e

priorizou a busca pela Paz, colocando em plano secundário a discussão sobre o país que

os angolanos desejam criar. E, nesse interim, reapareceram ou surgiram organizações

sociais e religiosas que ao apontarem a via do diálogo como o caminho para a solução

do conflito, procuravam afirmar-se na arena política, reivindicando participação num

processo do interesse de todos, mas que desde sempre foi reservado aos representantes

das partes em guerra. Como as únicas instituições que se mantiveram independentes do

Estado, as Igrejas assumiram o papel de porta-vozes da população, uma vez que as

organizações sociais tinham muitas dificuldades para se manifestarem no espaço

público controlado pelo Estado.

Mas o desfecho da guerra foi militar, e não negociado. A mensagem passada à

sociedade e ao mundo é a de que os atores que optavam pelo diálogo político

“desconseguiram” criar o clima favorável à resolução negociada dos conflitos de

interesses em jogo desde a luta anticolonial. Existe na sociedade a percepção de que a

guerra tem antecedentes em conflitos cuja gênese remete ao período da luta anti-

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colonial: os três movimentos de libertação nacional organizaram-se em torno de

distintos interesses de grupos, as elites mestiças de Luanda, a aristocracia do norte, e

uma suposta base dos grupos étnicos do centro-sul do país mobilizada em torno da

divergência da sua liderança (Jonas Savimbi) em relação aos outros dois movimentos

(aos quais havia pertencido e dos quais saiu ou foi expulso), que no decorrer do tempo

se foi radicalizando, tornando cada vez mais remota a possibilidade de uma

aproximação em nome dos mais altos interesses da nação. Em consequência, Angola

talvez seja o único Estado do mundo que teve duas proclamações de independência no

mesmo dia, em dois locais distintos, protagonizadas por lideranças dos movimentos de

libertação: em Luanda pelo MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), e no

Huambo, pela efêmera coalisão entre a UNITA (União para a Independência Total de

Angola) e a FNLA (Frente Nacional para a Libertação de Angola). A saída da FNLA da

cena da guerra civil criou as bases para a bipolarização do discurso político em Angola,

que ainda prevalece.

E o país enfrenta agora o desafio de cicatrizar as feridas de guerra que se sobrepuseram,

em camada, às sequelas do colonialismo. Neste processo, cabe indiscutivelmente ao

Estado um papel fundamental, restando saber qual a intervenção das organizações da

sociedade nesta fase de consolidação da Paz, uma vez que a sua exclusão formal das

diferentes etapas de negociação entre as partes em guerra retirou-lhes protagonismo,

mas não o papel de mecanismos de pressão, que a história reconhecerá. Apesar de

alcançada a Paz militar, a reconciliação nacional e a abertura do espaço público capazes

de promover a Paz social, mantêm-se como objetivos adiados. Embora o discurso

oficial conclame a participação de todos os angolanos na reconstrução nacional, o

processo de tomada de decisão mantêm-se fechado no executivo, em particular na

presidência, e a visibilidade e voz das organizações sociais e religiosas permanece num

plano secundário, lutando por oportunidades e espaços de participação, num cenário que

glorifica os militares e as lideranças dos partidos que protagonizaram a guerra, esbate os

demais integrantes do sistema político, e mostra o discurso político bipolarizado em

torno dos dois partidos, MPLA e UNITA.

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Quanto às organizações e aos cidadãos que se mobilizaram para exigir o final do

conflito armado pela via do diálogo amplo2 envolvendo representantes de todas as

camadas e grupos sociais, cabe agora a reavaliação das suas pretensões de participação

nesta nova etapa de construção da Paz social. Isso implica a sua reorganização para

confrontar o regime político com as exigências de inclusão na discussão, aberta e

nacional, dos inúmeros problemas que o país enfrenta e na busca das soluções para os

mesmos, entre os quais a definição dos caminhos que coloquem Angola na trilha do

desenvolvimento, entendido como projeto nacional orientado para a democratização

social, política e econômica, e ampliação da cidadania a todos os angolanos, ancorado

na criatividade e na coragem inovadora de procurar seu próprio caminho. E isto exigirá

a negociação de plataformas de diálogo entre o Estado e a sociedade, no âmbito de uma

ampla coalizão que resultaria, segundo algumas opiniões, da realização de uma

Conferência Nacional com poderes instituintes, como primeiro passo para um processo

de reconciliação nacional que, a partir da discussão crítica das causas do prolongado

conflito armado entre os angolanos, lançasse os alicerces da construção de uma história

comum na qual todos se reconhecessem, com vista a projetar um futuro comum.

2.

A construção da sociedade civil em Angola vem acontecendo por etapas determinadas

pelas relações entre atores estatais e não-estatais, que criaram oportunidades e

constrangimentos ao seu desenvolvimento e afirmação. As mais evidentes aconteceram

durante a dominação colonial na mobilização social que conduziu ao movimento

nacionalista pela independência nacional, nos dois primeiros anos após a independência

nacional, depois da tentativa de golpe de Estado de 27 de Maio, no decurso da vigência

do regime marxista-leninista, na implementação do Acordo de Bicesse entre 1991/2,

após o reacender da guerra depois das primeiras eleições gerais no país, na

implementação do Acordo de Lusaka em 1994, após mais um reacender da guerra em

1998, e depois da assinatura do Acordo do Luena em 2002. Não constituindo objeto

desta tese a análise da história de Angola, é mister recorrer a esses momentos como

2 Os apelos à busca da Paz pela via negocial que nas últimas décadas mobilizaram o discurso político em Angola, protagonizados por Igrejas e organizações e grupos de cidadãos, meios de comunicação social e individualidades,

deixavam transparecer em muitos casos, uma proposta implícita de recriação das formas tradicionais de debate e de tomada de decisão nas sociedades africanas, conhecido em Angola como “Ondjango”. A imagem do Ondjango é a de

um espaço aberto onde “mais velhos” e “notáveis” se reúnem para analisar e decidir relativamente a problemas relacionados com a vida coletiva, de interesse da comunidade. A particularidade é que, para além dos diretamente envolvidos na sessão, os demais membros da comunidade, os passantes, têm a oportunidade de ouvir e participar,

indiretamente, nesse processo de tomada de decisão que é assim tornado público.

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quadros de referência das relações de forças entre os atores no poder e a sociedade em

geral, para permitir a compreensão das oportunidades criadas por alguns dos

acontecimentos acima referidos, e dos impactos negativos que alguns deles tiveram na

constituição e fortalecimento da sociedade civil em Angola.

Esta análise não seria completa se não tivesse em conta a participação de atores

externos, tanto ao nível das instituições supranacionais, quanto ao nível de organizações

estrangeiras, particularmente as ONG’s (organizações não-governamentais), que em

diversos momentos da vida do país independente contribuíram para a construção social

das representações sobre a sociedade civil em Angola, criando oportunidades para

fortalecer, dar visibilidade e voz aos seus atores, tanto interna quanto externamente.

Mas também influenciaram as visões de “si” e dos “outros”, a partir da “transposição”

de agendas, prioridades, estratégias e práticas dos seus países de origem, ou das suas

organizações-mães, e respectivos quadros de referência, sem a preocupação de

promover as condições necessárias à manifestação dos valores, entendimentos e

expectativas locais, e a identificação das estratégias e dos programas e projetos mais

adequados ao contexto e ao momento. Os mecanismos de ajuda ao desenvolvimento, e

mais ainda, da assistência humanitária de emergência, constituíram-se em instrumentos

preferenciais para condicionar o acesso aos recursos financeiros, técnicos e materiais

disponíveis, à adopção de discursos e práticas da sociedade civil nos seus distintos

entendimentos, mas predominantemente na visão neoliberal da sociedade civil sem

cidadania, atropelando prioridades locais, ignorando formas de estar e agir, e processos

de tomada de decisão e de participação alicerçados nos sistemas de valores culturais

locais.

A inserção do país no sistema internacional das Nações, também criou oportunidades

para o fortalecimento e visibilidade da sociedade civil em Angola que, após a

independência, foi um dos palcos da guerra fria devido à sua localização estratégica na

geopolítica do Atlântico-Sul, ao enorme potencial em recursos naturais do seu território,

e à ameaça que constituiria para o ocidente (e em particular para alguns países do

continente, nomeadamente África do Sul, a então Rodésia, e o então Zaíre) a

concretização do ideal revolucionário de mudança social do programa do movimento

nacionalista.

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Este constrangimento externo, aliado à mudança radical que se operou internamente

após o golpe de 27 de Maio de 1977 com o fechamento do espaço público, marcou um

retrocesso nos avanços conseguidos nos quase dois primeiros anos após a

independência, caracterizados por uma mobilização social construída em torno de um

sentimento de participação na construção de uma nação, e na prática da liberdade de

expressão, de reunião e de associação, que deram origem à eclosão de organizações de

base, como comissões de moradores, associações e cooperativas de produção e de

consumo, associações culturais e profissionais. Contudo, uma reflexão a posteriori

mostra que essa abertura do espaço público era mais aparente do que real, sendo vigiada

por uma superestrutura criada para evitar desvios ideológicos aos objetivos da revolução

popular. A reação do poder à tentativa de golpe em 27 de Maio, e a transformação do

MPLA em Partido do Trabalho alinhado com a doutrina marxista-leninista em finais

desse mesmo ano, fecharam o espaço público aos atores da sociedade, reduzindo-o a um

palco de ressonância para a difusão da posição oficial do estado-partido, situação essa

que se prolongou até meados/finais dos anos oitenta. Neste período, para além das

igrejas, as únicas instituições que preservaram a sua independência em relação ao

Estado e que emitiam as suas opiniões interna e externamente em nome dos angolanos,

não eram ouvidas diretamente as vozes dos atores da sociedade civil em Angola.

O surgimento de um novo ator supranacional, a sociedade civil global, no âmbito da

expansão do processo de globalização, criou oportunidades para uma maior visibilidade

e voz de atores da sociedade civil em Angola, devido à sua participação em Fora,

conferências, e diversos tipos de reuniões e encontros regionais e supranacionais,

promovidos por esses atores globais. Através de argumentos a favor da busca de uma

solução negociada para a paz envolvendo outros atores da sociedade angolana que não

apenas os representantes das partes beligerantes, da denúncia de violações aos direitos

humanos e desmandos protagonizados por militares, de apelos para assistência

humanitária às vítimas da guerra e de ajuda ao combate à pobreza crescente, entre os

temas com maior expressão e visibilidade, individualidades e grupos de angolanos

aproveitaram os espaços disponíveis em instâncias supranacionais para darem a

conhecer ao mundo o estado de calamidade em que sobreviviam milhões de

concidadãos.

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A exposição à opinião pública externa fortaleceu argumentos, conferiu credibilidade,

aumentou a confiança em si e na(s) causa(s) que defendiam, e deu mais coragem para

enfrentar os desafios impostos a quem se atreveu a conquistar um espaço na esfera

pública, emitindo opiniões individuais ou de grupo. A bipolarização do discurso e da

prática políticos em Angola, identificava qualquer dissensão como “traição”, como

favorecendo o “inimigo” (de ambos os lados), ainda que se tratasse de um clamor pela

paz e contra a guerra, de uma opinião contrária às opções de políticas públicas (ou

ausência delas), ou quando se argumentava que “apesar da guerra” a situação no país

poderia ser muito diferente, para melhor, se outras tivessem sido as estratégias

adoptadas pelo Estado. As oportunidades de participação nesse espaço global

constituiram-se num contraponto à ausência ou déficit de representação da sociedade

civil em instâncias e processos de tomada de decisão que, a nível regional, continental

ou supranacional, apenas envolvem os representantes estatais, mas engajam o país e o

seu povo nas respectivas decisões, estratégias e programas. A nova oportunidade criada

alimenta a utopia de que “uma outra Angola é possível”, mobilizando vontades e

capacidades para desafiar a ideologia neoliberal dominante na atualidade, e as elites

nacionais que dela se beneficiam para se perpetuarem no poder.

3.

Trabalhar sobre o tema da sociedade civil implica reflectir sobre as relações entre o

Estado e a sociedade, sobre a redefinição dos seus respectivos papéis, pressupondo uma

análise crítica do estado atual dessas relações e das dinâmicas sociais, das políticas do

Estado e das reações da sociedade às mesmas, das formas de solidariedade e

responsabilidade sociais prevalecentes e das possibilidades da sua mobilização em prol

das mudanças necessárias para melhorar as condições de vida de todos os angolanos.

Neste âmbito, tanto nos discursos oficiais quanto nos de outros atores sociais, é

frequente a convocação da sociedade civil como parceira do Estado na concepção e

implementação das estratégias que conduzirão o país no caminho da consolidação da

paz e no alcance do progresso social. Coloca-se, então, a questão de saber a que

corresponde essa ideia de sociedade civil, quem a constitui, que objetivos norteiam as

suas intervenções, quais as suas formas de organização e de que capacidades dispõe

para o alcance desses objetivos.

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Para além de uns poucos exemplos de estudos sobre ação coletiva, solidariedade e

responsabilidade social, cultura cívica, participação, cidadania, sociedade civil, que

buscam compreender e retratar a realidade angolana, o recurso, e o uso, destes conceitos

é feito em geral de forma acrítica, na medida em que se identificam e se avaliam

processos de ação coletiva, societal e comunitária, em contextos histórica, social e

culturalmente muito distintos dos quadros de referência ocidentais nos quais esses

conceitos foram concebidos e aplicados, sem que se discutam os significados e os

valores a eles atribuídos, nem as formas organizativas pelas quais os atores sociais

angolanos os incorporam nas suas representações. Esta constatação encontra respaldo

nas indagações sobre a legitimidade das análises produzidas no ocidente acerca das

realidades africanas, e das análises produzidas em África usando os termos de referência

ocidentais. A metodologia desta tese, não sendo excludente porque recorreu às

contribuições do progresso do conhecimento alcançado no ocidente em especial nas

ciências sociais, para uma mais ampla compreensão das dinâmicas sociais em África, e

em Angola em particular, foi orientada pela convicção que é necessário identificar e

deixar manifestar-se a originalidade dos valores, a configuração das formas de

sociabilidade e das relações de poder que dão sentido e significado ao conceito de

sociedade civil em Angola.

A situação periférica da África no sistema internacional reflete-se no pouco

conhecimento sobre o continente. A evolução das instituições não tem merecido a

atenção necessária para esclarecer as causas e as conseqüências das mudanças no

processo de construção dos estados africanos, apesar de alguns dos acontecimentos mais

marcantes da história da humanidade envolvendo o continente, como o tráfico de

escravos, o colonialismo, a escravatura e o apartheid, terem repercutido mundialmente.

Esta situação requer uma reconsideração histórica dos dados, das descrições e das

teorizações dos trabalhos em ciências sociais até agora produzidos, os quais, para além

de concentrados nos temas privilegiados pelas instituições de Bretton Woods (boa

governação, descentralização, prestação de contas, participação, sociedade civil, entre

outros), foram apropriados pelos seus financiadores ou não foram publicados por falta

de editores.

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Estudos promovidos e publicados pelo CODESRIA3 (alguns mobilizados nesta tese),

parecem indicar que o que se designa por crise da África assenta numa representação

desvalorizadora do continente. Os sistemas políticos africanos conheceram mutações e

recomposições sob o efeito de programas de ajustamento estrutural e de liberalização do

sistema político, e em decorrência do final da guerra fria, em geral acompanhadas de

mudanças fundamentais na reorganização do sistema econômico e da vida social, no

cenário mais amplo de uma terceira transição em curso no continente, a demográfica. O

não acompanhamento destas mudanças conduziu a interpretações de ruptura ou de

disfuncionamento, ambas apontando para o colapso eminente das estruturas do Estado

em África. Refutando esta avaliação, Mbembe considera que a multiplicação de

conflitos a sul do Sahara não é um sinal de falência, mas antes a manifestação violenta

de um processo histórico de formação do Estado: a guerra, como modo de produção do

político e do econômico, condiciona e reorganiza tanto a mudança política quanto a

mobilização das populações, o aceso aos recursos, as relações entre gerações e sexos, a

circulação de bens de consumo e, até, a inserção das economias africanas no processo

de globalização, embora pouco se saiba sobre a articulação das dinâmicas transnacionais

da globalização com as lógicas nacionais ou comunitárias africanas.

Em menos de meia década a partir dos anos noventa, 32 das 57 nações subsaharianas

realizaram eleições de transição ou de fundação de regimes pluralistas, numa vaga de

democratização ocorrida em ambiente mundial de maior abertura política e de fortes

condicionalidades externas impostas no âmbito da ajuda ao desenvolvimento pelas

instituições financeiras internacionais e pelas agências bi-laterais de cooperação, que

conduziram à emergência de dispositivos institucionais e normativos com significados

sociais por vezes ambíguos, e uma mobilização social interna não negligenciável mas de

amplitude variável em função dos contextos. As saídas da transição também foram

variáveis, da consolidação de regimes democráticos à restauração de regimes

autoritários, passando pelo ressurgimento de golpes de Estado e o recurso à guerra e à

violência. Apesar do esmero na preparação, realização e avaliação dos processos

eleitorais para garantir a transparência e universalidade da sua aplicação e o respeito

pela legalidade, e satisfazer as exigências dos financiadores externos, pouca atenção se

prestou à análise da evolução desses processos, alguns dos quais resultaram em

3 Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais em África, com sede em Dakar, Senegal.

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situações de autoritarismo pós-eleições democráticas. Têm sido pouco estudadas as

condições políticas, sociais e econômicas que tornaram essas mudanças possíveis, o

papel estratégico das elites locais e dos atores externos na configuração dos estados e

dos regimes políticos à saída das transições, as novas bases materiais e fiscais, e os

novos dispositivos institucionais e normativos que governam o seu funcionamento

concreto. As hipóteses a partir de evidências não devidamente quantificadas nem

qualificadas quanto aos procedimentos de re-invenção do Estado, apontam tanto para a

implantação do pluralismo institucional, jurídico e normativo, quanto para a tendência

de uma coexistência de processos de institucionalização e mecanismos de

informalização, resultando na proliferação de modelos de regulação e na multiplicidade

de regras e locais de ação, por vezes concorrentes. Em Angola, a coexistência das duas

hipóteses anteriores parece dar melhor conta do que vem acontecendo à escala local e

nacional.

4.

A estruturação desta tese, incluindo uma pesquisa de campo sobre opiniões de atores

não-estatais sobre a ideia, a constituição e o papel da sociedade civil em Angola, para

além da pesquisa bibliográfica (que mobilizou contribuições sobre o tema em diversos

quadrantes do hemisfério sul), procurou contrapor à hegemonização (leia-se

ocidentalização) dos processos de produção do conhecimento sobre o continente uma

linha de atuação que se vem afirmando na produção das ciências sociais em África. Esta

proposta encontra respaldo na argumentação de Negrão ao defender “uma produção de

conhecimento que se deixe influenciar pela estrutura de pensamento das línguas locais

que transportam consigo uma dinâmica analítica que pertence ao mundo da retórica, ao

universo das interações dialéticas, à dimensão a-lógica da construção de premissas antes

da formulação das inferências do domínio do pensamento lógico-dedutivo prevalecente,

na procura criativa do novo”4. Para ele, a diversidade vai ocupando o espaço da

hegemonia e o novo vai tomando o lugar do contra. Esta afirmação sustenta o

argumento de que a academia deve ir além da crítica, não perder de vista a sua função

criativa, principalmente nos países africanos em busca dos modelos para o

desenvolvimento econômico, social e cultural, dos mecanismos de combate à pobreza, e

da distribuição justa e sustentável da riqueza nacional. “O novo terá de ser bem mais do

4 NEGRÃO, José (2004), O Contributo dos Cientistas Sociais Africanos. Apresentação na sessão de encerramento do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, Coimbra, 16-18 de Setembro.

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que o contra-hegemônico ou o pós-colonial, terá de trazer elementos que nos permitam

ir além das realidades que foram determinadas pelos outros, terá de ser enriquecido pelo

que fomos mas nunca em detrimento do que somos. Antes pelo contrário, o novo deve

trazer o contributo criativo do que cada africano tem de melhor”5.

Neste sentido, os cientistas sociais africanos podem inovar na área do conhecimento e

na esfera da ação sócio-política, e na construção de um novo paradigma. Na área do

conhecimento, pela reinvenção da emancipação não mais motivada pelo adversário,

produzindo conhecimentos alternativos que recusam a hegemonização ocidental

veiculada pela globalização, mas que não surgem somente por oposição a ela, porque

privilegiam as relações analógicas entre os vários saberes em lugar das inversas.

Provavelmente devido à interiorização dos processos de mudanças drásticas em curtos

espaços de tempo, a proposta de inovação epistemológica funda-se na inclusão da

possibilidade de outros modelos que valorizem mais a compreensão da mudança e sua

inclusão como variável normativa, do que a interpretação da estrutura que procura

encaixar o “mundo real” em matrizes onde as relações são, obrigatoriamente,

dicotômicas ou tricotômicas. Na esfera da ação sócio-política, pela identificação de uma

dinâmica própria que, embora condicionada pelas conjunturas externas, não tem na

contra-hegemonização a sua força impulsionadora ou razão de ser, mas cujos resultados

acabam por se afirmar contra-hegemônicos pela capacidade de mudança que

demonstrem possuir. A opção pela construção de novas ações baseadas na interação das

existentes e não na eliminação de alguma delas, privilegia uma postura integradora de

várias formas de ação que se sobrepõe à afirmação da diferença. Na ótica da construção

de um novo paradigma, a reflexão sobre a produção recente dos cientistas sociais

africanos levou Negrão caracterizar uma transição paradigmática que abala a hegemonia

dos fundamentos da filosofia da ciência moderna ocidental, porque:

Reconhece relações analógicas e não somente as inversas

Possibilita a interação retroactiva e não somente a linear relação causal

Promove o exercício da cidadania e não somente a afirmação da individualidade

Trabalha com inferências múltiplas e não com uma única inferência possível

Recorre ao raciocínio “a-lógico” na formulação das hipóteses e não apenas ao

pensamento lógico-dedutivo.

5 Idem.

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5.

Os capítulos que a seguir se apresentam pretendem contribuir para enriquecer a

discussão sobre a sociedade civil e o seu papel na sociedade angolana, procurando

identificar e deixar manifestar-se a originalidade dos valores, a pluralidade das formas

de sociabilidade e das relações de poder que configuram as representações dos atores

sociais. A construção dos quadros de referência para a interpretação dessas

representações recorre ao conhecimento clássico e atual produzido no Ocidente,

buscando encontrar nas hibridações derivadas da heterogeneidade das abordagens sobre

o tema, as possibilidades de transformação no novo com condições de se reproduzir,

uma vez que o híbrido, por definição, não se reproduz, mas o novo pode contribuir para

a construção de um paradigma não exclusivista e manipulador do conhecimento6.

Para além do Anexo Metodológico, que apresenta a pesquisa de campo, a tese organiza-

se em 6 capítulos. Os três primeiros dedicam-se à construção de um quadro teórico que,

em múltiplas dimensões, contribua para o entendimento das representações sobre a

sociedade civil dos atores sociais que participaram na pesquisa, apresentadas e

analisadas nos capítulos 4 e 5. O capítulo 6 resume as conclusões da tese.

O capítulo 1 busca perspectivas que permitam compreender a Angola de hoje na sua

diversidade sócio-cultural e na sua inserção nos processos de modernização e de

globalização em curso. A discussão recorre à história recente de Angola para retirar os

subsídios necessários à compreensão da atual estrutura e textura das relações sociais e

de poder, à identificação dos atores em presença e os entendimentos de si e dos outros, e

das oportunidades e limitações que os mesmos encontram na expressão das

expectativas, interesses e visões, no exercício da influência nos processos de decisão, e

na capacidade organizativa e de comunicação para o alcance desses objetivos. A

diversidade cultural e a desigualdade social que caracterizam a sociedade angolana

requerem um quadro analítico suficientemente flexível e amplo, capaz de perceber,

respeitar e acomodar as diferenças reais nela existentes numa perspectiva de inserção no

sistema das nações e no processo de globalização. A modernidade não uniforme

percebida na vivência do dia-a-dia, encontra respaldo teórico em abordagens que não se

limitam a caracterizar os contextos atuais mais visíveis, mas que vão além da teoria

6 Idem.

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procurando incorporar os processos de produção do político nos interfaces do público e

do privado, das relações formais e informais, dos valores modernos e tradicionais.

Privilegiam as interações permanentes entre valores modernos, que tendem a expandir-

se a todos os setores de atividade e a ser incorporados nos imaginários sociais e nos

mundos da vida dos diversos grupos sociais, e as matrizes tradicionais que ainda

conformam ou conferem sentido às leituras de si e dos outros de uma significativa

parcela da população angolana.

O capítulo 2 procura também inserir Angola no tempo do mundo na perspectiva dos

debates atuais sobre a sociedade civil, em especial os que acontecem no hemisfério sul,

onde predominam sociedades que, como Angola, foram colonizadas por potências

ocidentais e viram os seus processos de desenvolvimento drasticamente interrompidos

pela imposição de regras, normas e valores estranhos às suas culturas. Mas antes, o

capítulo apresenta uma breve síntese sobre o percurso do próprio conceito, identificando

as escolas ou as tradições com maior influência na formatação dos entendimentos atuais

sobre a sociedade civil. Os debates no sul e no leste europeu fornecem elementos

analíticos que evidenciam dissonâncias em relação a essas construções clássicas devido

à sua origem, mas também identificam elementos comuns nas construções sociais sobre

o conceito de sociedade civil. Contribuem, sobretudo, para mostrar a necessidade de

acrescentar ao quadro analítico da teoria da sociedade civil, orientado pela ideia de vida

associativa fora das esferas do Estado e do mercado, a perspectiva da esfera pública,

para perceber as dificuldades e as oportunidades que os atores sociais e as suas

organizações encontram para influenciar processos de tomada de decisão e induzir

mudanças nos respectivos contextos sócio-culturais.

O capítulo 3 tem como objetivo a análise dos discursos que recorrem ao conceito de

sociedade civil tanto na perspectiva ideológica de preservar o status quo, quanto na

ótica da mudança, da renovação, da produção do novo. Partindo do entendimento que a

capacidade de comunicação e os debates entre atores sociais se concretizam através de

construções discursivas, a discussão busca identificar as formas pelas quais os discursos

dominantes, tanto ideológicos quanto utópicos, contribuem para a construção das

representações sociais sobre o conceito de sociedade civil em Angola. Devido ao seu

papel na configuração das representações sobre a sociedade civil na atualidade,

merecem especial atenção os discursos das agências multi e bilaterais de cooperação e

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de outros atores globais como as ONG’s internacionais. Os mecanismos de ajuda

pública ao desenvolvimento condicionam o acesso aos recursos à implementação de

reformas institucionais e à incorporação de práticas e valores democráticos nas relações

sociais, cuja identificação não teve em conta as necessidades e as aspirações das

sociedades onde são impostos. A grande dependência em recursos humanos, técnicos,

materiais e financeiros que, em geral caracteriza as sociedades do sul, torna-as muito

vulneráveis à influência destes atores globais, o que gera frustrações e contribui para a

produção de propostas alternativas à globalização do modelo neoliberal.

O capítulo 4 aborda e discute os entendimentos dos participantes na pesquisa de campo

sobre a sociedade civil em Angola, no que respeita às formas e tipos de organização

incluídos nesses entendimentos, os papéis e as funções sociais que lhes são atribuídos.

Esta reflexão inclui a análise de indicadores de cultura cívica também recolhidos na

pesquisa, a comparação com os resultados de outras pesquisas realizadas no mesmo ano

e nas mesmas cidades, e o seu cruzamento com respostas às perguntas abertas,

procurando a coerência ou contradições entre uns e outras. Esta comparação sugere a

existência de um diferencial entre os ideais de participação, de ação coletiva, e de

engajamento cívico inscritos nas respostas abertas sobre as imagens e os papéis da

sociedade civil, e as respostas às perguntas semi-abertas para recolha dos próxy de

cultura cívica. Também parece não haver coincidência entre as imagens descritivas da

sociedade civil e as opiniões sobre o seu dinamismo, visibilidade e desempenho atuais.

O capítulo 5 compreende a discussão dos papéis atribuídos à sociedade civil pelos

participantes na pesquisa, de entre os quais a consolidação da Paz e a reconciliação

nacional, o combate à pobreza, a democratização das relações sociais e de poder, e a

extensão da cidadania em Angola. A primeira parte comporta uma análise das

percepções dos participantes sobre a realidade no país, os sentimentos que expressam

para a caracterizar, onde sobressai a insatisfação com o status quo e a necessidade de

mudança. As prioridades na eleição das políticas públicas e das medidas consideradas

necessárias para reverter a situação atual são analisadas na perspectiva de identificar o

potencial de influência e os sentidos em que essa influência se manifestaria, caso para

tal haja espaço de intervenção. Com base nas percepções sobre as relações entre o

Estado, a sociedade civil e outros atores sociais, a parte final deste capítulo dedica-se à

análise das dinâmicas sociais e as relações de poder prevalecentes.

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O Capítulo 6 apresenta as conclusões gerais deste estudo, uma reflexão sobre o quadro

teórico capaz de facilitar o máximo de participação e de debate público sobre as

questões fundamentais na atual conjuntura em Angola, permitindo à sociedade civil

assumir o papel de condutor da mudança atribuído pelos participantes na pesquisa, e

que promova, consequentemente, uma democracia participativa. Inclui uma avaliação

sobre os pressupostos em que a tese se baseou e a medida eles se confirmaram ou não, e

a finalizar, uma análise das condições de possibilidade para o protagonismo da

sociedade civil num processo de mudança em Angola.

6.

A construção do quadro teórico para a compreensão das representações dos atores

sociais sobre a sociedade civil tem como pano de fundo a relação de Angola com o

tempo do mundo. A discussão das articulações entre o local e o global como forma de

inclusão das sociedades não-ocidentais na economia mundial, com base nas teorias dos

encontros civilizacionais e da modernidade, procura identificar as distintas visões sobre

elas e as propostas comuns às sociedades não ocidentais, do ponto de vista da sua

inclusão no processo de globalização, reafirmando, contudo, as suas diferenças no que

respeita aos sistemas de valores, formas mais comuns de solidariedade, de

responsabilidade e de organização social. A abordagem desta fase como a terceira etapa

da modernidade, caracterizada pela coexistência de 3 mecanismos de coordenação

designadamente hierarquia, troca e conexão, pela complexidade e fragmentação sociais,

pela criatividade, inovação, imaginação e reflexividade na busca pelas soluções

institucionais mais adequadas, permitindo compreender melhor o processo de mudança

institucional e a convivência entre novas e velhas instituições, e ainda pela enorme

contingência no que respeita aos resultados esperados das interações sociais, entre

outras características, parece a que melhor acomoda a inclusão de Angola no sistema

mundial e no processo de globalização. A discussão identifica como mais adequada a

interpretação da modernidade numa perspectiva de articulação mista, sugerindo contudo

alguns subsídios retidos da reflexões sobre o tema no sul, designadamente na Ásia e na

África. A abertura à diversidade da realidade africana sugerida por Mbembe, à produção

de sínteses culturais de Asike, e às apropriações seletivas de Nicolau, a opção pela

reflexão sobre as diferenças nas racionalidades econômicas e políticas em lugar da

análise de eventuais diferenças civilizacionais proposta por Ong, e a incorporação do

argumento das escolhas conscientes de Appadurai, contribuem para uma compreensão

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mais ampla das relações entre as sociedades atuais e a modernidade, enriquecendo as

visões sobre a modernidade. O respeito pelas diferenças e a acomodação dos dissensos,

na perspectiva defendida por Taylor, abre espaço para a manifestação de valores locais,

e cria oportunidade para incluir como válidos, os debates e os discursos que, aos

diversos níveis e envolvendo os mais variados tipos de atores sociais, se manifestam na

esfera pública em oposição aos discursos predominantes. Esta adenda à teoria da

modernidade articulada mista oferece, ainda, a oportunidade para um entendimento da

esfera pública como constituída por vários públicos, que recorrem aos respectivos

sistemas de valores para produzirem representações sobre a realidade, críticas sobre os

problemas, e propostas de solução.

A análise do percurso histórico da construção social do conceito permite identificar as

principais influências teóricas nas abordagens que conformam os entendimentos

dominantes sobre a sociedade civil hoje, designadamente as da teoria neoliberal da

sociedade civil sem cidadania explorando a dimensão organizativa (Tocqueville e

Ferguson), e as que, numa perspectiva marxista, exploram a dimensão material (Hegel,

Marx e Engels) ou a ideológica (Gramsci e Havel). Tornando evidente o consenso que a

forma “civil” da sociedade se gerou da necessidade de evitar os excessos do Estado e

obter segurança e proteção para todos, também mostra a prevalência das ambiguidades,

dos pontos de vista constitutivo e funcional, na sua progressiva diferenciação do Estado.

Percebem-se, ainda, as tentativas de produção de articulações entre as diversas tradições

intelectuais do passado numa noção coerente de sociedade civil (Bayart, Bobbio,

Harbeson, entre outros), conduzindo à ideia de arena onde o conjunto de organizações

civis tentam mobilizar e promover o interesse comum. A dificuldade em respaldar

teoricamente a complexidade da situação sócio-política e institucional angolana e

compreender as opiniões dos atores sociais que participaram na pesquisa, reside na

definição de organizações civis numa perspectiva muito restrita de “organizações

formais”, excluindo desta noção convencional de sociedade civil, as organizações de

base da sociedade. Dada a relação de sociedade civil com democracia, e esta a

oportunidade de participação universal dos cidadãos na distribuição do poder, uma

noção mais útil do conceito funda-se na compreensão da relação entre sociedade civil e

esfera pública (Cohen&Arato e Habermas) porque, para além de permitir pensar de

maneira mais realista as condições de possibilidade para o protagonismo atribuído à

sociedade civil no processo de mudança, oferece a oportunidade de inclusão do público

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primordial, a maioria da população angolana marginalizada do processo de tomada de

decisão e sem os meios para influenciar as políticas públicas a seu favor. A intervenção

de atores mediando as relações sociais e de poder nos interfaces dos diversos públicos

que constituem a esfera pública angolana (igrejas, meios de comunicação e autoridades

tradicionais), promove a interação entre as organizações tradicionais e as cívicas

contemporâneas, contribuindo para a consolidação do processo democrático.

A compreensão das dinâmicas presentes no espaço público em Angola remete à análise

dos fatores históricos que influenciaram a sua construção, do período colonial à

atualidade. Esta necessidade surge da constatação que as construções mais abrangentes

do conceito produzidas em contextos não ocidentais, coincidem com as opiniões dos

participantes na pesquisa que, mais do que a uma noção de conjunto, união,

organização, recorrem à ideia de espaço, no qual indivíduos, grupos e organizações,

redes e alianças, discutem ideias e buscam articulações capazes de produzir avanços,

não só com base em consensos gerados, mas também pela acomodação dos dissensos.

Por outro lado, as desigualdades de condições e oportunidades entre os diversos

segmentos da sociedade angolana criam hiatos difíceis de superar sem a intervenção de

atores com papéis específicos de mediação entre a base e o topo da sociedade (meios de

comunicação social, igrejas e entidades religiosas, e autoridades tradicionais), capazes

de operar como descodificadores semânticos entre grupos sociais.

Os debates em que a sociedade civil é conceito recorrente revelam a importância dos

discursos como forma de expressão das ideologias e das utopias prevalecentes nos

imaginários sociais. Para além de influenciarem a sociabilidade do ponto de vista da

manutenção do status quo ou na ótica da mudança, os discursos têm um papel relevante

na formação da opinião pública e nas opções institucionais dos atores. A prevalência de

um traço ideológico no discurso neoliberal, e o papel das agências internacionais na

tentativa de configuração institucional dos países do “terceiro mundo”, através das

condicionalidades impostas no acesso aos programas e projetos de ajuda ao

desenvolvimento, constitui um lado da discussão. As manifestações da utopia

inscrevem-se nos papéis atribuídos à sociedade civil, de promover espaços de luta por

“um mundo melhor”, e mobilizar as forças que procuram alternativas para a ordem

social dominante. Com base na teoria do discurso de Strydom, e nos conceitos de

ideologia e de utopia de Mannheim, identificam-se as influências ideológicas e utópicas

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nas representações sobre o conceito na atualidade, ou seja, as maneiras pelas quais os

indivíduos, grupos e organizações as constróem e lhes atribuem significados. Influente

na configuração dos discursos atuais, a sociedade civil global, novo ator produzido pelo

processo de globalização, reproduz as dicotomias das construções históricas, a

neoliberal na CIVICUS e a marxista no Fórum Social Mundial. Apesar das limitações

da ausência de vínculos aos processos locais na capacidade de influência da sociedade

civil global, a sua existência e as atividades que promove representam uma

oportunidade de inclusão de atores locais no debate global, contribuindo para o

enriquecer o mesmo e ampliar as visões e entendimentos sobre sociedade civil enquanto

conceito e enquanto práxis.

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CAPÍTULO 1 – ANGOLA E A MODERNIDADE I. INTRODUÇÃO: para além da modernidade e da tradição

As representações sobre sociedade civil dos participantes na pesquisa de campo

mostram a influência de processos transnacionais na sua configuração, chamando a

atenção para uma maior abertura das análises comparativas sobre o tema, para melhor

compreender as redes, os circuitos e os quadros de referência que conformam os modos

pelos quais as pessoas experimentam, hoje, a qualidade e a textura da convivência, e lhe

conferem sentido, em seus contextos específicos. Apontam, ainda, para a necessidade de

diferenciar a ideologia da modernidade e da tradição, que formatou as experiências

recentes da história do continente africano, e de Angola em particular, como a

escravatura e o colonialismo, da modernidade e da tradição tal como elas são sentidas e

vividas nos dias de hoje. Os sentidos inscritos nessas representações, designadamente as

tensões entre regulação e emancipação, entre Estado e sociedade civil, e entre o Estado-

nação e os impactos da globalização, apontam para a necessidade de complementar o

quadro de referências fornecido pelas teorias da sociedade civil com a análise do

processo de constituição do espaço público em Angola, numa perspectiva que se

coloque para além da clássica dicotomia modernidade versus tradição, entendida a

primeira como constante renovação e inovação, movimento em relação ao futuro e

abertura à mudança permanente, e a segunda como passado, retrógrado, fora de moda, e

imutável.

A ideologia (na chave de Mannheim7 enquanto ideia que defende a preservação e

reprodução do status quo) da modernidade e da tradição mostrou-se muito útil para

conferir sentido à tarefa civilizadora da modernidade europeia na África, fornecendo o

quadro de referências para as formas de dominação que se seguiram aos primeiros

encontros entre as civilizações europeia e africanas, e para a construção da identidade

do africano enquanto um ser inferior, incapaz de auto-desenvolvimento e de

governação. Produziu, também, as categorias tribos ou grupos étnicos às quais foram

atribuídas as “tradições autênticas” em relação aos outros, sendo as culturas africanas

identificadas pelos exploradores e colonizadores europeus como “tradicionais” em

relação às europeias, tidas como progressistas. A classificação em etnias e/ou tribos,

fixando características fisionómicas, hábitos e valores, e cristalizando percepções de

7 MANNHEIM, Karl. (1929) [1972], Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro, Zahar Editores.

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proximidade e / ou animosidade em relações de solidariedade e cooperação, ou de

conflito, introduziu novas variáveis nas dinâmicas sociais e novas fontes de conflitos

entre as formações sociais africanas8.

A dicotomia entre categorias estáticas opondo ao retrógrado, comunal, e autoritário da

tradição, o aberto à mudança, individual e democrático da modernidade, tem ainda hoje

uma enorme influência nas formas de entendimento das realidades contemporâneas da

África pós-colonial através de construções que, articulando diferenciados graus de

relação entre a tradição fossilizada como caracteristicamente africana e a modernidade

como função da cultura europeia (ou ocidental), buscam uma modernidade africana9.

Na verdade, estas tentativas de interpretação perpetuam a dicotomia, dão espaço à

construção de identidades individuais e coletivas artificiais porque se alicerçam em

percepções estranhas aos próprios grupos que visam categorizar, enraízam pretensas

contradições e rivalidades, distorcendo a realidade e estabelecendo quadros analíticos

incapazes de dar conta das possibilidades de recriação de relações sociais mais amplas e

inclusivas. Acima de tudo, alimentam a dualidade, demonstrando ignorar a faceta

constante de mudança das chamadas “tradições” e a ambiguidade nelas incorporada por

via dessa mudança, por um lado, e a contínua transformação da própria modernidade em

função dos novos contextos criados, por outro.

8 Sobre os impactos do colonialismo nas identidades culturais e nas relações sociais e de poder ver, entre outros, APPIAH, Kwame A. [1992] (1997), Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro, Contraponto Editora Ltda. ASIKE, Joseph I. (1988), “Culture and Development: The African Dilemma”. Asian Journal Philosophy, vol.1, pp. 83-102. BALCOMB, A. O. (1995), “Modernity and the African Experience”. Journal of African Christian Thougt, vol. 2, no.1, pp. 3-9. BARBEITOS, Arlindo. (2005), A Sociedade Civil. Estado, Cidadão, Identidade em Angola. Lisboa, Novo Imbondeiro Editores. BENDER, Gerald J. (2004), Angola sob o Domínio Português. Mito e Realidade. Luanda. Editorial Nzila. CHATERJEE, Partha. (2004), Colonialismo, Modernidade e Política. Salvador, EDUFBA, CEAO, Brasil. DAVIDSON, Basil. (1992), O Fardo do Homem Negro. Os efeitos do estado-nação em África. Luanda, Edições Chá de Caxinde. DIRKS, Nicholas B. (org). (1992), Colonialism and Culture. University of Michigan Press. EISENSTADT, Schmuel N; ABITOL, Michel; Chazan, Naomi. (orgs) (1988), The Early State in African Perspective. Culture, Power and Division of Labour. Leiden, E. J. Brill. FANON, Franz. (1963), Wretched of the Earth. New York, Gove Press. GYEKYE, Kwame. (1997), Tradition and Modernity. New York, Oxford University Press. KAMABAYA, Moisés. (2003), O Renascimento da Personalidade Africana. Luanda, Editorial Nzila. MUDIMBE, V.Y. (1988), The Invention of Africa: gnosis, philosophy, and the order of knowledge. Bloomington, Indiana University Press. NETO, Mª. da Conceição. (1997), “Ideologias, Contradições e Mistificações da Colonização de Angola no Século XX”. Lusotopie – Enjeux contemporains dans les espaces lusophones. Paris, Éditions Khartala, pp.327-359. NEWITT, Malyn. (1997), História de Moçambique. Lisboa, Publicações Europa América. RODNEY, Walter. (1982), How Europe underdeveloped Africa. Washington D.C, Howard University Press. 9 BRODNICKA, Monika. (2003), “When Theory Meets Practice: Undermining the Principles of Tradition and Modernity in Africa”. Journal of African Philosophy, nº. 2. Ver também GYEKYE, Kwame (1997), Tradition and Modernity. New York, Oxford University Press. MUDIMBE, V.Y. (1988), op. cit. MUDIMBE, V.Y. (1985), “African Gnosis Philosophy and the Order of Knowledge: an Introduction”. African Studies Review, vol. 28, nos. 2/3 June/September. RODNEY, Walter. (1982), op. cit. FANON, Franz (1963), op. cit.

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Na vida real, a percepção dicotomizada da atualidade africana influencia também as

práticas das elites no poder, privilegiando as questões, os problemas e as necessidades

dos grupos urbanos, com padrões de comportamento, maneiras de estar em sociedade e

quadros de referência construídos com base na modernidade ocidental, às questões,

problemas e necessidades do mundo não-urbano. O mundo rural parece percebido de

uma forma homogênea, monolítica, com formas de organização e de estar em sociedade

que remetem às práticas e valores da “tradição”, tanto nas suas relações com o meio

ambiente, como nas relações sociais e de poder, e nas formas de aplicação da justiça. O

novo periurbano (para além dos musseques10 de Luanda e dos antigos bairros

periféricos das demais cidades), conjunto de assentamentos informais onde impera a

precariedade, parece ausente dos discursos sobre as formas de pensar Angola, apesar da

sua crescente presença na organização da distribuição espacial da população angolana.

Trata-se de áreas sem urbanização (planificação física e ordenamento territorial),

destituídas de infra-estruturas de esgoto e saneamento do meio, compostas

essencialmente de habitações precárias e clandestinas, construídas na sua maioria pelas

populações em êxodo das áreas rurais em busca de segurança física e de sobrevivência

econômica, ou pelas famílias empobrecidas que vendem / alugam as suas residências

nas áreas urbanas e se deslocam para as periferias das cidades. Estas áreas11 constituem

um locus da informalidade12, não apenas no domínio das relações econômicas (que se

concretizam nas cidades), mas também das relações sociais. Uma das consequências

práticas desta visão dicotómica é a exclusão da grande base não-urbana (rural e

periurbana) da população do exercício pleno da cidadania e da participação na tomada

de decisões em relação ao futuro.

10 Expressão angolana que significa “terra vermelha” e que designa os bairros periféricos de Luanda. 11 Com isto não se pretende dizer que a informalidade se restringe às áreas periurbanas, apenas realçar a relação que parece ter-se estabelecido entre as dimensões espacial e econômica da vida de milhões de pessoas economicamente ativas. A título de exemplo, devido à falta de indicadores extensivos a todo o país, “o setor informal de Luanda assegura, de forma exclusiva, a subsistência de 42% das famílias luandenses e representa 56% de cerca de 1 milhão de pessoas economicamente ativas”. SOUSA, Mário Adauta de. (1996), “Contribuição para o conhecimento do sector informal de Luanda”, in GOVERNO de ANGOLA/UNICEF (orgs.), Développement des investigations sur l’ajustement à long term. Luanda, UNICEF. 12 “Setor informal” refere-se a atividades econômicas legais realizadas por agentes econômicos ilegais, seguindo a concepção da ONU em Développement du sector informel en Afrique, ILO, New York (1996), compreendendo “um vasto leque de comportamentos econômicos, socialmente admissíveis, realizados fundamentalmente com finalidades de sobrevivência e que escapam quase totalmente ou, pelo menos, parcialmente, ao controlo dos orgãos do poder público local/regional/nacional em matéria fiscal, laboral, comercial, sanitária ou de registro estatístico. LOPES, CARLOS M. M. G. Fernandes (2000), Luanda, Cidade Informal?: estudo de caso sobre o Bairro Rocha Pinto. VI Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Porto, 5-9 Setembro.

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As formas de poder prevalecentes no continente africano, e Angola não é excepção,

fragmentam a maioria da sua população numa série de minorias definidas culturalmente,

acentuam as diferenças que lhes foram imputadas pela classificação colonial em

diversos grupos étnicos, e aumentam o fosso entre o mundo urbano e o mundo não-

urbano, por um lado, e entre os diversos grupos étnicos que coexistem dentro das

fronteiras estabelecidas pela Conferência de Berlim, por outro. E estas formas de poder

têm-se mostrado incapazes de estimular ou promover os princípios de uma

solidariedade democrática, através de maneiras criativas de articular estratégias de auto-

governo participativo com base na autonomia, e estratégias de política representativa

com base em alianças, operando simultaneamente nos níveis central e local de

organização do Estado e da sociedade.

Na identificação de forças sociais capazes de operar a ligação entre os mundos urbano e

não-urbano parece residir a condição de possibilidade para responder às demandas e às

expectativas dos angolanos por uma sociedade mais justa e equitativa, por melhores

condições de vida, pelo desenvolvimento do seu potencial humano, pela consolidação

da Paz social, pelo respeito e reconhecimento das suas identidades culturais, pelo

exercício do seu direito de participar na tomada de decisões em relação ao futuro, enfim

pela sua emancipação13. Demandas dessa natureza foram expressas pelos participantes

na pesquisa acima citada, e continuam aguardando respostas.

A constatação desta necessidade remete à herança colonial que originou diversas

formações sociais, como as indígenas, as imigrantes importadas do país colonizador, e

as emergentes do colonialismo. Os atuais grupos étnicos e a própria etnicidade em si

são, simultaneamente, formações transformadas e emergentes, em parte devido à

política de “dividir para reinar”, e também devido às políticas regionais diferenciadas14

com consequências nas formas de distribuição de poder entre os seus membros: de um

lado, os cidadãos, de outro os sujeitos15. Os primeiros, constituindo um público cívico,

regem-se pela constitucionalidade do sistema de representação e são fundamentalmente

13 Sobre a discussão da construção da identidade em Angola ver SERRANO, Carlos (2000), Angola: O NASCIMENTO DE UMA NAÇÃO. Um Estudo sobre a Construção da Identidade Nacional. Tese de Doutoramento em Antropologia Social. Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 14 OSAGHAE, Eghosa H. (1994), “Ethnicity in Africa or African Ethnicity”, in Ulf Himmelstrand, Kabiru Kinyanjui, Edward Mburugu (orgs.), African Perspectives in Development. James Currey, pp.137-151. 15 MAMDANI, Mahmood. (1996), Citizen and Subject: Contemporary Africa and the Legacy of Late Colonialism. Princeton, Princeton University Press.

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urbanos. Os segundos, a maioria, constituindo o público primordial na terminologia de

Ekeh16, regem-se pelo direito costumeiro dos respectivos grupos étnicos e são

fundamentalmente não-urbanos. No cenário atual, existem outras minorias cujo

enquadramento não encontra respaldo nas análises teóricas, como as diásporas

europeias constituídas na sua maioria por nascidos e criados em Angola, cuja cultura

crioula lhes confere a capacidade de articular os imaginários sociais africanos e os

quadros de referência ocidentais17.

A reflexão sobre as condições de possibilidade de criar dinâmicas sociais capazes de

ligar os mundos urbano e não-urbano remete às experiências dos movimentos

nacionalistas, que conduziram os processos de luta pela independência, tanto armada

quanto por negociação política, que se mostraram capazes de promover essa ligação em

torno de um projeto político de emancipação. Contudo, estas coalisões ou alianças não

resistiram à falta de capacidade criativa em ensaiar processos de reforma democrática

aos dois níveis, central e local, no pós-independência, o que originou o alargamento do

fosso entre os diversos mundos e as diversas graduações de interpenetração entre

modernidade e tradição, gerando desconfiança, e estratégias de auto-exclusão por parte

das populações não-urbanas e/ou de grupos étnicos excluídos das novas alianças e

coalisões18. E a análise da situação atual parece indicar que, na procura pela

aproximação entre os diversos mundos, este amplo processo de reforma das estruturas

16 Segundo Ekeh, o conceito de cidadania significa coisas bem diferentes nos dois públicos, enquanto o bom cidadão no público primordial sente o dever de se dar a ele materialmente e o apoiar, ganhando em troca identidade e segurança, um cidadão com sorte no público cívico ganha dele materialmente mas busca escapar a dar algo em troca. A dialética entre os dois públicos reside na ideia de que é legítimo roubar/tirar do público cívico para fortalecer o público primordial. EKEH, Peter (1975), “Colonialism and the Two Publics in Africa: a Theoretical Statement”. Comparative Studies in Society and History, nº. 17, pp. 91-112. OSAGHAE, Eghosa H. (2003), Colonialism and Civil Society in Africa: The Perspective of Ekhe’s Two Publics. Symposium on Canonical Works and Continuing Innovation in African Arts and Humanities, Accra, 17-19 September. 17 A este propósito, Mwangi (Universidade de Pennsylvania) e Zaiman (Instituto de Gorée), defendendo que a África não é negra, chamam a atenção para o fato de os movimentos migratórios para fora da África, e as múltiplas migrações de outras populações para o continente, terem sido objeto de tratamento diferenciado: enquanto as primeiras, forçadas ou deliberadas, têm sido objeto de estudo e análise, as segundas ocupam um espaço marginal na produção de ideias concernentes à África. Contudo, existiram e existem importantes diásporas árabes, asiáticas, europeias e do médio oriente no continente, jogando um papel fundamental na evolução em curso nas sociedades africanas e na formação de identidades africanas. As interações históricas e atuais entre populações africanas – especialmente as das ilhas e dos países litorâneos – e outras regiões do mundo, permitiram a emergência de identidades crioulas e híbridas, que colocam em questão a essência da designada ‘identidade africana’. Apesar da sua diversidade, a imagem de uma África negra continua a dominar as representações do continente, tanto no exterior quanto no interior. MWANGI, Wambui & ZAIMAN, André (2000), “Propos Liminaires. Conversation: Race et Identité”. Bulletin du CODESRIA, número 1, Dakar, pp.61-62. 18 BATES, Robert. (1981), States and Markets in Tropical Africa: The Political Basis of Agricultural Policy. Berkeley, University of California Press, Series on Social Choice and Political Economy. BATES, Robert. (1983), Essays on the Political Economy of Rural Africa. Cambridge, Cambridge University Press.

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de poder em África precisa ser pensado a partir “de baixo”, do não-urbano ou

tradicional19.

Se o objetivo da mudança consiste em responder às expectativas por uma

democratização em África, os resultados das experiências pós-coloniais de preservar a

tradição e os costumes ou de a abolir como retrógrada em nome de um projecto de

modernização, aconselham a evitar as dualidades que ainda caracterizam a teoria social,

e tentar balancear centralização e descentralização (agindo tanto na base quanto nas

estruturas centrais de poder), representação com participação (reformando não apenas o

sistema político e eleitoral multipartidário, mas também as formas de participação), aliar

autonomia (a legitimidade e a particularidade do local) com alianças ou coalisões (para

transcender a fragmentação das particularidades).

Entre os aspectos mais visíveis da modernidade destacam-se a criatividade e a inovação

na busca das combinações entre público e privado que configurem o sistema

institucional para adequá-lo à realidade sócio-cultural e econômica do contexto a que

corresponde. Nesta perspectiva, quais as características do processo de desenvolvimento

institucional de Angola?

Qualquer visitante, nem necessitando ser muito atento, percebe em Angola traços da

modernidade nos modos de vida dos grupos sociais próximos do, ou no poder, no

comportamento público e privado das suas elites, em alguns segmentos da economia de

enclave ligada ao setor petrolífero, nos traços arquitectónicos das cidades, nos tipos de

eventos sociais como concursos de beleza, nos restaurantes de comida internacional e

nos hotéis 5 estrelas, nos filmes de Hollywood em exibição nos cinemas, nos clubes de

vídeo e de DVDs, nos cybercafés, nas combinações entre o semba e outros gêneros

musicais, no vestuário, nos comportamentos e expressões dos citadinos, na

extraordinária criatividade dos operadores do setor informal, entre outros. Em todos

esses exemplos, contudo, poderão também encontrar-se traços que remetem ao

tradicional, nos tons, nos sons, nos ritmos, nas atitudes e nos discursos. O

acompanhamento das notícias pela televisão ou pela rádio, ou o folhear de revistas

nacionais, evidenciam os mesmos sinais que permeiam as relações sociais em outros

19 BAYART, Jean-François. (1996), The State in Africa: The Politics of the Belly. London/New York, Longman. CHABAL, Patrick. & DALOZ, J-P. (1999), Africa works: Disorder as political instrument. Oxford, James Currey.

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lugares do mundo: a banalização da vida (ainda mais acentuada pela convivência com

os efeitos de uma guerra prolongada), o crescendo da violência doméstica e familiar a

par do individualismo e do descaso com a sorte dos seus semelhantes, a criação dos

mitos em torno de figuras tornadas públicas devido à sua atividade artística, desportiva

ou política. A fabricação de fenômenos sociais pelos mídia, como acontece em outras

sociedades, parece ter como objetivo desviar as atenções dos graves problemas que, em

todos os níveis da vida social, econômica e política, marcam a sociedade angolana.

Não precisando sair da cidade capital, o mesmo visitante é confrontado com a dura

realidade da vida de milhões de angolanos: a convivência diária com a fome, a

indigência, a mendicância; centenas de milhar de crianças e jovens perambulando pelas

ruas em busca da sobrevivência, muitos deles sem família nem qualquer amparo social.

A prostituição de jovens e meninas, uma das saídas para matar a fome das famílias e

realizar sonhos de consumo veiculados pela televisão, pelas revistas, pelas vitrines das

lojas. A multidão de vendedores ambulantes, correndo risco de vida pela forma como se

precipita nas ruas em busca de compradores para os produtos que oferecem, um trânsito

caótico de milhares de veículos, privados e semi-públicos (as vãs, vulgo kandongueiros

em Angola), devido à insuficiência dos transportes públicos, são apenas alguns dos

sinais da desorganização da vida social e econômica angolana. São algumas das

características do outro lado da modernidade em Angola.

À medida que se entra na Angola profunda, das comunidades do interior, o contraste

torna-se mais evidente. Os efeitos do abandono durante a guerra, a destruição das

infraestruturas de transporte dificultando relações pessoais, familiares e econômicas, a

desestruturação da vida comunitária provocada pelo êxodo rural em massa, os poucos

incentivos à produção agrária familiar, a escassez de infraestruturas básicas de

educação, saúde, água, energia e saneamento do meio, entre outros, transmite uma ideia

de isolamento, de precariedade, de pobreza extrema. A capacidade de luta vai até à

garantia de sobrevivência, não restando muito mais (recursos financeiros, força anímica

e perspectivas) para curar, cicatrizar e voltar a crescer de novo. Uma estratégia de

sobrevivência que se aproxima do conformismo parece reinar, absoluta, nesta Angola

profunda! E vai sendo superada, aqui e além, em resposta a iniciativas, pontuais,

descoordenadas e sem sustentabilidade, de revitalização da vida econômica e social,

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algumas com resultados muito positivos embora com efeitos de irradiação limitados

pelos constrangimentos que ainda caracterizam a atualidade angolana.

Como falar de modernidade numa realidade assim? Por outro lado, como negar a

evidente modernidade de determinados setores da vida econômica e alguns segmentos

sociais de Angola?

II – A TRAJETÓRIA ANGOLANA 1. Marcos históricos

Angola nasceu dos encontros e desencontros seculares entre África, Portugal e Brasil20.

O esclavagismo e o colonialismo, como elementos determinantes da realidade angolana

atual, são dimensões que não podem ser ignoradas na discussão da modernidade em

Angola. Não cabe, contudo, no âmbito deste trabalho, a retrospectiva do processo

colonial e suas consequências. Recorrer-se-á, apenas, a elementos históricos que se

mostrem importantes para tornar mais compreensível a análise e / ou emprestar

consistência ao argumento. Alguns dos marcos históricos desse percurso, sinalizam

processos de modernização, emergência de novas identidades, novos atores sociais, e

novas agendas. Indicam, ainda, que a guerra foi a opção, tanto para a conquista da

independência, quanto para a resolução das diferenças das agendas pós-coloniais dos

movimentos de libertação nacional. Também mostram que a configuração do espaço

público foi comandada pelo Estado desde a era colonial; os severos limites impostos à

participação de atores não-estatais impediram a construção social de uma cultura de

diálogo e ignoraram a contribuição de mecanismos promotores da coesão social,

particularmente de normas sociais complementares à racionalidade do Estado e do

mercado21.

Depois dos primeiros contactos entre os navegadores portugueses e as populações dos

reinos existentes ao longo da costa ocidental africana, a partir de 1482, seguiu-se uma

ocupação lenta do território, hoje Angola, que apenas se concluiu nos primeiros vinte e

dois anos do século XX após a “guerra de pacificação” do centro e sul do país. A

instalação do estado colonial pela conquista e dominação das sociedades pré-existentes

20 BARBEITOS, Arlindo. (2005), op. cit. 21 ELSTER, John. (1989), The Cement of Society: A Study of Social Order. Cambridge, Cambridge University Press.

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aconteceu após a repartição do continente em áreas de influência das nações europeias,

cujo mapeamento22 não teve em consideração razões de ordem étnico-cultural e política

local, nem fronteiras e solidariedades existentes. A inclusão no império colonial

português interrompeu os processos históricos dos reinos conquistados, pela imposição

do capitalismo colonial como forma dominante de organização das relações sociais de

produção23.

Em resposta à estratégia do governo colonial de “dividir para melhor reinar”, as nações

conquistadas procuraram preservar as suas identidades culturais, através de estratégias

de reforço da unidade interna e de resistência, que permitiram manter vivas as suas

memórias coletivas, reproduzidas através de tradições e crenças transmitidas oralmente,

de rituais de passagem e de diversos tipos de celebrações24. Mas as dissidências internas

que provocaram, originaram um outro fenômeno, a crioulidade25, com base no

cosmopolitismo cultural crescente de centros urbanos receptores dos dissidentes dos

grupos étnico-linguísticos, em especial Luanda e Benguela. A importância desta nova

identidade no ambiente multicultural de Angola26, consiste na sua relação com o

desenvolvimento de ideias modernas sobre o conceito de soberania e a situação de

dominação a que Angola estava sujeita, dando corpo a aspirações nacionalistas. O

protonacionalismo de finais do século XIX deu origem ao movimento nacionalista, que

buscou junto das autoridades portuguesas a negociação da independência de Angola,

primeiro através do diálogo e depois, perante a obstinada recusa daquelas a qualquer

22 Conferência de Berlim para a Partilha de África, de Maio 1884 a Setembro de 1886, a qual produziu o “Mapa Cor-de-Rosa”. NEWITT, Malyn. (1997), op. cit. 23 O povo angolano é hoje constituído por descendentes de povos não-bantu (Hotentote e Khoisan), pré-bantu (Vátua), bantu e descendentes de europeus ou mestiços de europeus e africanos. Os bantu angolanos, calculados ente 90 a 100 grupos etnolinguísticos, estão agrupados em 9 grandes grupos: Tucokwe, Ambundu, Bakongo, Vangangela, Ovanyaneka-Nkhumbi, Ovahelelo, Ovambo, Ovandonga, Ovimbundu. FERNANDES, João e NTONDO, Zavoni. (2002), op. cit. 24 A historiografia recente do período colonial reconhece que a atual divisão étnico-linguística africana em geral, e angolana em particular, se baseia em identidades etnoculturais socialmente construídas como resultado das interações entre africanos, europeus e missionários norte-americanos e portugueses. BITTENCOURT, Marcelo. (1999), Dos Jornais às Armas. Trajetórias da Contestação Angolana. Lisboa, Veja Editora. 25 Processo de mestiçagem cultural, envolvendo negros, mestiços e brancos, estabelecendo pontes culturais entre o mundo europeu, moderno, e o mundo africano, tradicional. 26 Do ponto de vista social Angola é um ambiente multicultural, nacional e étnico. Trata-se de um “estado multinacional cuja sociedade foi formada a partir da incorporação, forçada ou voluntária, de minorias nacionais que anteriormente possuíam culturas territorialmente concentradas e desfrutavam de autonomia”, com uma “diversidade cultural fruto da imigração individual ou familiar”. Os movimentos populacionais provocaram processos de assimilação, aculturação e discriminação, com consequências na formação de identidades individuais e coletivas. A realidade multicultural foi moldada na interface de diferentes graus de contacto com civilizações europeias e orientais, como a chinesa em tempos ancestrais. KYMLICKA,Will. (1995), Multicultural Citizenship: a liberal theory of minority rights. New York, Oxford University Press.

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tipo de negociação, pela via da luta armada de libertação nacional, que decorreu de 1961

a 197527.

Uma das características sui generis de Angola é que teve duas declarações de

independência: em Luanda, o MPLA proclamou a República Popular de Angola, e no

Huambo, a aliança UNITA+FNLA, proclamou a República Democrática de Angola

(que durou 80 dias, o tempo em que a aliança se manteve). A sequência destes dois atos

foi a guerra civil. A guerra (anticolonial e civil) iniciada em 1961 prolongou-se até 2002

quando, após a morte do seu líder em 22 de Fevereiro, a UNITA assinou em 04 de Abril

um acordo de cessar-fogo com o Governo. Esse período foi marcado pelo conflito

intenso e mais ou menos generalizado, permeado por alguns períodos de paz militar que

se seguiram à assinatura de acordos de paz, cuja implementação nunca foi totalmente

conseguida.

Após a independência, Angola conheceu dois regimes28: o de partido único, que vigorou

até 1991, e o do Estado Democrático de Direito, após as reformas de início dos anos 90.

Houve eleições gerais, presidenciais e legislativas, apenas uma vez, em Setembro de

1992, estando as próximas eleições em fase de preparação, ainda sem data fixada, mas

que devem acontecer, em simultâneo ou separadamente.

2. O ambiente institucional e o quadro jurídico angolano No ato da independência, o Estado angolano adotou o modelo de direito ocidental,

provavelmente em busca de reconhecimento como membro da comunidade

internacional, o que sinalizou a opção pela continuidade da dualidade jurídica colonial,

assegurando o seu poder sobre toda a sociedade, na medida em que o consentimento às

ordens não estatais do direito costumeiro pressupunha a submissão destas à sua

hegemonia29.

27 FREUDENTHAL, Aida. (2001), “A Voz de Angola em Tempo de Ultimato”. Estudos Afro-Asiáticos, Ano 23, no.1, pp.135-169. 28 O conceito de “regime” é usado nesta tese para significar os distintos arranjos institucionais, como por exemplo: democracia representativa, autoritarismo burocrático, regime de partido-único. 29 SANTOS, Daniel dos (2003), “O Lugar do Direito Costumeiro na Formação dos Estados Africanos”. Antropologia & Derecho, CEDEAD (Centro de Estudios en Antropologia y Derecho) da Universidade de Misiones, Ano 1, numero 3, pp.13-16. Também em SANTOS, Daniel dos (2004), “Por uma outra Justiça: Direito Penal, Estado e Sociedade”. Revista de Sociologia e Política, nº. 23, pp.127-139.

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A divisão do país em diversos mundos, pelo não estabelecimento de pontes e modos

coerentes de articulação das distintas ordens jurídicas, reduz as possibilidades de

cooperação entre os atores sociais e aumenta a probabilidade de eclosão de conflitos,

criando vazios jurídicos pela ausência de laços resultantes de escolhas sociais entre

espaços político-jurídicos em aparente oposição. Considerando que as pessoas recorrem

mais à justiça do direito costumeiro para a resolução dos problemas do quotidiano

devido à ineficiência do sistema judicial moderno, e que é bastante significativo o

número de pessoas oriundas do meio rural ou em transição deste para o meio urbano, a

ausência dessa articulação cria espaços sociais instáveis e origina problemas

identitários: de um lado, a modernidade truncada por uma ordem jurídica que se

pretende única, legal mas ilegítima, e do outro lado, uma tradição plural bem enraizada

de ordens jurídicas legítimas, mas ilegais. A questão não reside na ordem jurídica estatal

em si, mas na sua pretensão de regular e controlar tudo, não reconhecendo as demais

nem os papéis que podem desempenhar numa nova configuração do espaço jurídico

angolano. O Estado angolano adotou a estratégia do estado colonial: consente, mas não

reconhece30.

A visão reducionista dos aparelhos formais criados pelo Estado pressupõe a inexistência

de nada mais para além dos mecanismos estatais, formais e oficiais, de controle social e

de resolução de conflitos. Mas a sociedade não se reduz ao Estado e não é possível

ignorar as diferenças locais próprias da diversidade histórica das ordens jurídicas extra-

estatais. A pluralidade cultural, a diversidade étnica e o pluralismo das ordens jurídicas

das nações conquistadas sobreviveram aos modelos coloniais de dominação, e à

institucionalização da hegemonia do direito estatal colonial, que subordinava ou

simplesmente ignorava as formas jurídicas e os direitos africanos. Mas as formações

sociais não desistiram de construir ou procurar manter instituições que melhor

correspondessem às suas necessidades, estruturadas em torno de valores de partilha, de

solidariedade e de identidade, até como estratégia de sobrevivência. As políticas de

assimilação cultural do regime colonial não conseguiram integrar as práticas e os

mecanismos locais de resolução de conflitos no sistema jurídico português; pelo

contrário, visavam a reprodução de dois mundos distintos e separados, com a

30 dos Santos, Daniel. (2003), op. cit.

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supremacia de valores da potência conquistadora, que eram determinantes e definiam,

em última instância, o quadro e os limites das práticas e ações das instituições africanas.

As nações conquistadas eram corpos sociais concretos, histórica e socialmente

constituídos, fundados sobre ordens jurídicas próprias: os conjuntos de disposições

sociais coerentes, com valor jurídico apesar de não terem sido produzidas por

autoridades políticas, que orientavam as relações sociais, foram constituídos por

instituições locais e resistiram nas distintas etapas históricas, através da tradição e dos

costumes. A dualidade do espaço público jurídico colonial e a supremacia da ordem

jurídica estatal asseguravam o papel atribuído aos direitos costumeiros, pelo reforço da

noção de tribo e o poder atribuído aos chefes tradicionais, sobas, de resolução dos

conflitos indígenas31.

Enquanto não se estabelecerem pontes entre as bases da sociedade e as instituições

estatais, não parece possível estabelecer o diálogo que conduza à articulação das ordens

jurídicas herdadas dos períodos pré-colonial e colonial, fundamental para a

concretização de uma formação social capaz de conduzir Angola pelo caminho do

desenvolvimento, entendido não como crescimento econômico tout court, mas antes

como produção e equidade na repartição da riqueza social. Isso pressupõe “uma

concepção de direito compreendendo não apenas um conjunto de regulamentações,

normas e procedimentos, e estruturas institucionais estatais, mas também um espaço

público aberto, englobando as ordens, os procedimentos, os costumes, as tradições e os

moeurs não estatais, aos quais os grupos recorrem para determinar os seus

comportamentos, as suas relações e satisfazer interesses comuns ou particulares,

atribuindo-lhe um papel mais amplo, ou seja, o de permitir que a sociedade sonhe com a

maior e mais equitativa harmonia da sua ordem social”32.

A incorporação de princípios, normas e sanções dos direitos costumeiros no conjunto

das normas e procedimentos jurídicos que conformam o sistema judicial angolano, seria

um sinal de tolerância por parte do Estado. A articulação das distintas ordens jurídicas

presentes na sociedade angolana, refletindo os matizes culturais dos grupos que a

integram, com base no reconhecimento de fato da diversidade da sociedade e no

31 Após a independência, designados de ‘tradicionais’, não enquanto características distintivas de sistemas culturais e suas formas de organização social, mais para distinguir da designação prevalecente sob a ordem colonial. 32 SANTOS, Daniel dos. (2003), op. cit.

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respeito pelas identidades coletivas que a compõem, promoveria a identificação de

todos com as regras que orientam a justiça. O reconhecimento da fragilidade das bases

sociais da ordem jurídica estatal parece contido no espírito da reforma do sistema

judicial em curso, sob o lema “uma justiça para todos”33, criando oportunidades para o

debate e para a participação de grupos e organizações da sociedade civil, das

autoridades tradicionais, de partidos políticos, de universidades e institutos de estudos e

pesquisas, de individualidades nacionais e intelectuais.

As mudanças mais significativas no quadro jurídico-legal de Angola, nos últimos 30

anos, ocorreram com proclamação da República Popular de Angola após a

independência em 1975, e a transição para a República de Angola em 1991. As mais

interessantes para esta discussão assinalam a transição da I para a II República, e a

institucionalização de um ambiente democrático, abertura ao pluralismo partidário e à

economia de mercado.

O novo quadro legal surgiu da promulgação das seguintes principais leis:

Lei 12/91 de 6 de Maio (revisão da Lei Constitucional) e Lei 23/92 de 16 de

Setembro, a nova Lei que “consagrava na Angola pós-colonial, um Estado

unitário descentralizado e desconcentrado”34; decorre a elaboração da nova Lei

Constitucional, cuja aprovação se prevê aconteça antes das próximas eleições.

Lei das Associações (Lei 14/91), para criação e o registro de Associações e

ONG’s e seu funcionamento independente do Estado. Esta lei apenas foi

regulamentada, ainda assim parcialmente, em 31 de Dezembro de 2002, através

do Decreto Nº. 84/02 sobre o “Regulamento das Organizações Não-

Governamentais”, submetendo-as à tutela do Ministério da Assistência e

Reinserção Social e, desta maneira, sinalizando uma delimitação do seu campo

de actividade ao apoio social e à ajuda humanitária. A preparação deste Decreto

envolveu um processo de consulta entre o Governo de Angola, através da

Unidade Técnica de Coordenação das Ajudas, e as ONG’s, através do CONGA

e do FONGA, respectivamente Fórum das ONG’s internacionais e das ONG’s

nacionais. Mas o seu conteúdo é contestado por não terem sido incluídas as

perspectivas defendidas pelas ONG’s, e pela aparente intenção de restringir as

33 Ministério da Justiça, Ordem dos Advogados de Angola e Escritório dos Direitos Humanos da ONU em Angola. (2005), Conferência sobre o Acesso à Justiça em Angola. Luanda, 4-6 de Maio. 34 GUEDES, Armando Marques et alii. (2003), Pluralismo e Legitimação. A Edificação Jurídica Pós-colonial de Angola. COIMBRA, Livraria Almedina. Portugal.

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formas organizadas da sociedade civil às ONG’s, e os campos de intervenção ao

apoio social e à ajuda humanitária.

A Lei dos Partidos Políticos Independentes (Lei 15/91)

Lei da Reunião Pacífica (Lei 16/91)

Lei do Direito à Greve (23/91)

Lei da Liberdade de Imprensa (25/91)

Decreto Executivo 46/91 de 16/08/91 sobre a liberdade de culto (revogado pela

Lei 2/04 sobre o Exercício da Liberdade de Consciência, de Culto e de Religião)

Lei das Emissoras de Rádio FM (Lei 16/92).

A simples observação das designações deste pacote legislativo revela a ocupação do

espaço público pelo Estado durante a I República. Por outro lado, a falta de

regulamentação ou a regulamentação tardia dessas leis, observável nas datas das

respectivas aprovações, para além de ter criado impasses legais, também gerou

desentendimentos na sua interpretação. Embora oficialmente se considere que os novos

instrumentos legais foram produzidos em ambiente de consulta entre o estado e a

sociedade, e organizações desta se tenham mobilizado para participar efectivamente

nessas consultas, as experiências com os processos de preparação e aprovação do

Regulamento das Associações, da Lei de Terras, da Lei do Investimento Estrangeiro, e

da própria Lei Constitucional, entre outros, demonstram que as instituições do

legislativo e do executivo angolanos continuam pouco abertas ao debate de ideias e à

incorporação das visões e expectativas dos atores não-estatais.

O processo de adequação do quadro jurídico-legal ao ambiente democrático, que

ganhou novo fôlego com o fim da guerra civil em 2002, é dominado desde essa altura,

pela preparação da nova Lei Constitucional. Um dos pontos de discordância entre o

Estado e alguns setores da sociedade reside no fato de estes não concordarem com a

forma como o processo tem vindo a ser conduzido no que respeita à pouca importância

real da participação dos cidadãos na redação da lei, e também no que concerne à

aprovação desta Lei pelo atual Parlamento, eleito em 1992 nas únicas eleições gerais da

Angola independente. Tais sectores defendem que primeiro devem realizar-se eleições

legislativas, cabendo ao novo Parlamento que surgir dessas eleições a discussão e

aprovação da nova Lei Constitucional; por seu lado, o governo e o atual Parlamento

consideram que a aprovação da nova Lei Constitucional deve anteceder a realização das

próximas eleições.

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Esta discussão envolve questões de legitimidade da representação do legislativo

angolano. Ao mesmo tempo que a data das próximas eleições vem sendo

sucessivamente adiada desde 2002, as necessidades em responder aos imperativos do

crescimento econômico e do desenvolvimento do país implicam a aprovação de nova

legislação para acomodação de tais necessidades, como a nova Lei de Terra aprovada

em 2004 (revogando a Lei 21-C/92s, sobre o Uso e Aproveitamento da Terra para fins

Agrícolas), a Lei do Ordenamento do Território, a Lei do Investimento Estrangeiro, a

Lei dos Petróleos (revogando a Lei 13/78 das Atividades Petrolíferas), entre outras.

Esses instrumentos legais, por definirem os moldes de acesso e uso de recursos

fundamentais como a terra, o planeamento estratégico do espaço geográfico, o petróleo

(cujos proventos constituem a principal fonte de receita do orçamento nacional) e a

intervenção do investimento estrangeiro no país, tanto podem contribuir para a

manutenção ou agravamento da situação atual, como para uma mudança progressiva,

através do combate à pobreza, do desenvolvimento do capital humano e melhoria dos

indicadores de desenvolvimento humano, da redução das desigualdades sociais, da

criação de empregos e de oportunidades de geração de rendimentos, da democratização

e modernização da sociedade num ambiente de mais justiça e equidade sociais.

No processo de aprovação da nova Lei de Terra, a Rede Terra realizou debates e a

recolha e análise de opiniões de cidadãos e organizações sociais e econômicas, com

vista à elaboração de um documento reflectindo a posição da sociedade civil sobre a

gestão dos recursos naturais no país. A consulta realizou-se em comunidades de 10

províncias do País, e recolheu informações, opiniões e propostas para enriquecer o

debate e melhor adequar o anteprojecto da Lei de Terras à diversidade sócio-cultural e

económica do contexto angolano. O seu principal objectivo era contribuir para a

elaboração de um instrumento legal eficaz e efectivo no combate à pobreza e na

promoção do desenvolvimento das potencialidades do país, mas poucas das suas

propostas e sugestões foram, realmente, acomodadas na lei aprovada.

Apesar de a Lei Constitucional vigente (Lei 23/92, de 16 de Setembro) ter consagrado

na “Angola pós-colonial, um Estado unitário descentralizado e desconcentrado”35, mais

de uma década depois o poder permanece centralizado ao mais alto nível das

35 GUEDES, Armando Marques et alii (2003), op. cit.

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instituições estatais. O governo de Angola vem analisando a questão do poder local com

o apoio do PNUD, com vista a desenhar um programa de descentralização. Estudos

realizados no âmbito desse programa sugeriram a apresentação à sociedade de uma

estratégia de descentralização, a qual foi aprovada em 2001 e prevê a eleição de

governos e assembleias locais. Este estudo teve como sequência uma outra pesquisa36,

que envolveu todos os governos provinciais e um grande número de municípios;

aprovado em Julho de 2003, este estudo produziu informações básicas para as políticas

públicas, identificando funções para os governos locais, necessidades em capacitação e

treinamento, princípios da descentralização fiscal, sugerindo a implementação de

projectos-piloto em alguns municípios. Embora sem grande visibilidade, decorre a fase

experimental dos projetos-piloto em municípios selecionados, alguns em Luanda.

A excessiva centralização e concentração de poderes em instituições da cúpula do

Estado, designadamente na presidência, limita as possibilidades de participação dos

cidadãos nas decisões sobre os problemas nacionais, e mantém um clima institucional

de pouca permeabilidade à manifestação das visões e anseios da diversidade de culturas

que integram Angola. Apesar do programa de descentralização e de desconcentração

política e administrativa se encontrar numa fase incipiente de implementação, a causa

da descentralização e a participação na diferentes etapas da sua implementação,

particularmente nas atividades de mobilização e de consulta, e na criação das condições

para a institucionalização de estruturas representativas de poder local, podem constituir-

se em oportunidades para a intervenção da sociedade civil em Angola.

O sistema político caracteriza-se pela forte polarização em torno dos dois partidos

protagonistas da guerra civil, e pela fragmentação devida à existência de mais de uma

centena de partidos registrados no Tribunal Supremo, a grande maioria sem

protagonismo nem visibilidade social. O sistema de representação política (legislativo) é

constituído por uma única câmara com 220 deputados, e não tem o seu mandato 36 MAT (Ministério da Administração do Território)/PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) (2003), Estudo sobre a Macro-Estrutura da Administração Local: contribuição para a desconcentração e descentralização. Luanda, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.

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renovado há 13 anos, o que levanta questões do ponto de vista da sua legitimidade. O

seu mandato e organização institucional são fracos, o que se reflete na reduzida

capacidade de iniciativa legislativa, e na ligação esparsa e difusa com as respectivas

bases eleitorais devido não apenas ao sistema de eleição (em partidos e não em

deputados), mas também aos reduzidos contactos com as bases37.

Face às fragilidades e constrangimentos do contexto institucional de Angola,

sumariamente apresentado, constata-se que a produção de um quadro teórico capaz de

acomodar as condições políticas e institucionais para a mudança constituiria uma fonte

de motivação para a transformação progressiva da realidade. A importância da sua

criação reside no fato de permitir compreender os fenómenos sociais da atualidade e o

ambiente no qual se desenvolvem as relações sociais e de poder em Angola, identificar

os atores sociais com influência e visibilidade no espaço público38, as suas matrizes

discursivas e as ideias e interesses que transmitem, ganhar sensibilidade para reconhecer

os seus ritmos e códigos diferenciados, e perceber as possibilidades criativas de

soluções envolvendo racionalidade e emoção, teoria e prática. O estabelecimento de

“pontes de comunicação” entre os imaginários sociais e as práticas dos mundos da vida

presentes nesse espaço, permitiria questionar as particularidades da modernidade e da

tradição, sem recorrer à dicotomia entre elas.

Neste sentido, a introdução sumária de Angola visou caracterizar o ambiente

institucional em que se criam e recriam as formas de ser e estar que coexistem no seu

espaço público, e identificar as possibilidades e/ou oportunidades e os constrangimentos

e/ou dificuldades que esse ambiente oferece ao estabelecimento de articulações entre

elas. A discussão teórica recorre às teorias dos processos civilizacionais, da

modernidade e da globalização, com vista a esboçar um quadro teórico que acomode as

preocupações e propostas mais amplas das sociedades não ocidentais, em particular a

sua inclusão no processo de globalização. Por último, sugere-se uma estrutura de análise

que, por facilitar a compreensão das interações entre os atores sociais angolanos aos

diversos níveis, contribua para compreender as dinâmicas da estruturação do espaço

público em Angola.

37 AMUNDSEN, Inge; ABREU, Cesaltina; HOYGAARD, Laurinda. (2005), “Angola on the Move: The Parliament of Angola”. Bergen/Luanda, Christian Michelsen Institute (CMI)/Instituto de Pesquisa Econômica e Social (A-IP). 38 Os estratos condutores são os grupos sociais ou intelectuais capazes de transportar estas ideias ou visões de mundo para a realidade e exercerem influência social. SOUZA, Jessé (2000), A modernização selectiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília, Universidade de Brasília Editora.

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III – NOS CAMINHOS DA MODERNIDADE Associando ideias a partir da caracterização institucional apresentada e da discussão

sobre a modernidade e a tradição, a expectativa é identificar um processo de

modernidade em Angola experimentado de forma diferenciada, não uniforme, em

resultado das diferentes construções do imaginário e das distintas práxis dos diversos

grupos sociais em contacto, formatadas ao longo de gerações na interface da relação

com o outro, gerando traços sócio-culturais distintivos uns, e comuns, outros, fundados

na herança de um passado comumente partilhado.

1. Discutindo a Modernidade

Durante o século XX, profundas transformações políticas, econômicas, tecnológicas e

sociais criaram ambientes institucionais e de sociabilidade que mobilizam as atenções

da academia e de grupos sociais, na busca pelos quadros de referência para compreender

as relações de poder e as formas de socialização nas sociedades atuais. Principalmente

após a segunda guerra mundial, o desenvolvimento tecnológico, em especial nas

comunicações, esteve na origem de acontecimentos que marcaram de forma inexorável

a própria modernidade.

No Ocidente, estas mudanças têm sido interpretadas pelos cientistas sociais segundo

duas correntes: para uns, continuamos na modernidade, entendida como radical em

Giddens, como hipermodernidade em Touraine, ou como articulada mista em

Domingues; para outros, as mudanças definem um quadro inteiramente novo das

relações sociais e das formas de solidariedade que geram, apontando para uma nova fase

da modernidade, que denominam de pós-modernidade. Como pano de fundo desta

discussão, intrinsecamente relacionada com as análises sobre o processo de globalização

e as formas diferenciadas da “globalidade” (a condição correlata) nos diversos

quadrantes do mundo, as abordagens sobre civilizações e processos civilizacionais

dividem-se entre os argumentos que defendem “o fim das ideologias” e as apologias à

utopia de um mundo melhor, com base no reconhecimento e respeito pela diversidade

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de maneiras de estar e ser na modernidade39. Inseridos nestas perspectivas, os quadros

de referência orientais e africanos identificam uma modernidade desigual, não uniforme,

reivindicando o direito de participar e de contribuir para o progresso da humanidade

como uma civilização, um todo, embora diferenciado.

2. “Fim da História”, “Choques de Civilizações” ou “Encontros Civilizacionais”?

O Fim da História40 defende que o colapso do comunismo significa que a civilização

ocidental está destinada a espalhar-se, porque em todo o mundo as pessoas procuram os

benefícios da tecnologia, a riqueza e a liberdade individual que ela promete. A tese do

Choques de Civilizações41 argumenta que o fim da União Soviética e da guerra fria não

criam um ambiente de paz, muito menos uma aceitação mundial da democracia liberal.

Nesta perspectiva, a tecnologia que todos procuram será investida para produzir riqueza

que será distribuída de forma crescentemente desigual, a liberdade será selectivamente

negada aos destituídos, e os pequenos conflitos ideológicos serão transformados em

conflitos entre povos com diferentes religiões, valores, etnicidades, e memórias

históricas percebidas como civilizações distintas. A crescente adopção de estratégias de

desenvolvimento com base na produção industrial, na educação técnica, na urbanização

e no comércio capitalista, não significa para Huntington uma adesão à cultura ocidental,

sendo de esperar, pelo contrário, que esse aumento de riqueza material conduza à

tentativa de afirmação da soberania cultural, com base em novos compromissos com

valores, costumes, tradições e religiões das culturas nativas. Segundo ele, a tendência é

de que as nações estabeleçam alianças com base em proximidades civilizacionais e não

ideológicas, e as guerras venham a acontecer nas linhas de demarcação das grandes

civilizações, principalmente entre as avançadas e as atrasadas.

Uma crítica42 à abordagem do Choques de Civilizações defende a redução progressiva

dos gaps tecnológicos e culturais entre sociedades com base na premissa de que as

pressões sociais evolucionárias tendem a encaminhar todas as sociedades para a

39 HOUTART, François. (org.) (2000), “Mondialisation, Acculturation et Résistances”, in François Houtart (org.), Cultures et mondialisation. Résistances et alternatives. Centre Tricontinental. Paris, L’Harmattan. HOUNTONDJI, Paulin. J. (2000), “Cultures Africaines et Mondialisation: un appel à la résistence”, in François Houtart (org.), Cultures et Mondialisation: Résistences et Alternatives. Paris/Dakar, L’Harmattan, pp.47-55. 40 FUKUYAMA, Francis. (1992), The End of History and the Last Man. New York, Free Press. 41 HUNTINGTON, Samuel. (1996), The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order. New York, Simon and Schuster. 42 CHIROT, Daniel. (2001), “A Clash of Civilizations or of Paradigms?: Theorizing Progress and Social Change”. International Sociology, vol.16, nº. 3, pp. 341-360.

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modernização, e conclama os cientistas sociais a produzir teorias que melhor expliquem

a mudança social, orientando as políticas nas direções mais adequadas. A recente

migração do conceito de globalização dos mídia para o âmbito da teoria social e da

filosofia política é indicativa da necessidade de mudança nos quadros analíticos teóricos

disponíveis, uma vez que a reflexão teórica é um instrumento fundamental para

estabelecer a estrutura normativa indispensável nesta era de grande transformação

política e social. Contudo, a teoria crítica da globalização precisa aprender com os erros

do passado, mostrando-se mais aberta a aceitar as consequências da pluralidade, e o

desafio de eliminar o seu eurocentrismo.43

No âmbito da discussão sobre o crescimento do poder do império globalizante do

capital, as teses de Fukuyama e Huntington têm sido entendidas como mecanismos de

defesa em reação à mudança demográfica nos Estados Unidos, em si própria um

barómetro das mudanças causadas pela migração do trabalho em todo o mundo,

alterando radicalmente a presumida estabilidade das culturas nacionais e suas supostas

fronteiras civilizacionais. A reafirmação do pensamento civilizacional nos dias de hoje

mostra-se não só conservadora como retrógrada44, uma espécie de outra face da moeda

do imaginário do Oriente enquanto oposto simbólico do Ocidente. O essencialismo

cultural e o carácter binário da teoria de Huntington não consideram a lógica dos

imperativos político-econômicos que condicionaram as diferenças e os compromissos,

buscando nas diferenças civilizacionais os elementos para definir e qualificar em “tipos”

as sociedades neste mundo globalizado, em lugar de privilegiar uma interrogação

histórica e cultural mais original sobre as diferenças nas racionalidades económicas e

políticas, ou seja, como tecnologias específicas, regimes éticos e sistemas

administrativos articulam as transformações contemporâneas45.

Os pensamentos civilizacionais de Fukuyama e Huntington manifestam intolerância em

relação a valores e tradições de outras culturas, e expressam uma colagem entre

“civilização” e “Ocidente”, transmitindo a ideia de que a modernidade é uma

43 KOZLAREK, Oliver. (2001), “Critical Theory and the Challenge of Globalisation”. International Sociology, vol. 16, nº. 4, pp. 607-622. 44 DABASHI; Hamid. (2001), “For the Last Time: Civilizations”. International Sociology, vol. 16, nº. 3, pp. 361-368. 45 ONG, Aihwa. (1999), “Saying No to the West: Liberal Reasoning in Asia”, in Aihwa Ong (org.), Flexible Citizenship. The Cultural Logics of Transnacionality, Duhram/London, Duke University Press, pp. 185-213.

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característica exclusiva das sociedades ocidentais46. Lembrando que os Estados Unidos

definem a sua guerra contra o terrorismo global como um esforço defensivo para

proteger o seu estilo de vida dos ataques de inimigos com motivações culturais e

religiosas e que rejeitam a modernidade ocidental, Henry Liu critica as proezas militares

do ocidente afirmando que “uma civilização construída com base na militarização da

paz permanece uma civilização bárbara”. Ao procurar impor “modernidade” como

sinônimo de “civilização ocidental”, o militarismo ocidental privou a humanidade de

um processo evolutivo da diversidade cultural. A civilização humana merece uma visão

mais rica da modernidade do que a oferecida pelo ocidente, sendo de prever que as

civilizações não-ocidentais continuarão a resistir à modernização até que esta se descole

da ocidentalização. Os poderes coloniais usaram o argumento da “incivilização” dos

povos locais para racionalizar o colonialismo, ao ponto de suprimir descobertas

arqueológicas na África do Sul com receio que a existência de provas de uma cultura

urbana sofisticada na África austral, anterior à colonização europeia, pusesse em risco o

seu argumento. Na fase pós-colonial recorrem ao imperialismo cultural, enquanto

promoção da cultura e da linguagem de uma civilização sobre outra, com vista ao

controle social e político, através de uma política formal e ativa de educação e de

oportunidades de emprego, ou de atitudes de superioridade. Mais explicitamente

associado aos Estados Unidos a partir da II Guerra Mundial, o imperialismo cultural

tem gerado reações não apenas fora do Ocidente, mas também nele próprio, como

aconteceu recentemente na França e no Canadá47.

A defesa dos diálogos entre civilizações na busca por uma ética global parece ser a

saída, porque não aconteceu, como antecipada, a transição da tradição para a

modernidade, sendo antes o processo de modernização constantemente reformatado por

uma variedade de formas culturais com raízes em tradições distintas48. Se os valores do

Iluminismo, racionalidade instrumental, liberdade, consciência de direitos, privacidade e

individualismo, são valores modernos universalizáveis, os valores asiáticos no quadro

do Confucionismo, simpatia, justiça distributiva, consciência do dever, ritual, espírito

público, orientação de grupo, também são modernos e universalizáveis, e capazes de

46 LIU, Henry C. K. (2003), The Abduction of Modernity, Part I: The Race toward Barbarism. Asia Times Online Co, Ltd. http://www.adelaideinstitute.org/Chine/liu.htm. 47 Idem. 48 TU WEI-MING. (1991), “Cultural China: The Periphery as the Center”, in The Living Tree: The Changing Meaning of Being Chinese Today, special issue of Daedalus 120, nº. 2, pp.1-32, e TU WEI-MING. (1993), “Confucianism”, in Arvind Sharma (org.), Our Religions. San Francisco: HarperSanFrancisco.

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conformar um modelo alternativo ao ocidental. Se o Ocidente moderno moldado pelo

Iluminismo forneceu o primeiro ímpeto para uma transformação social a nível mundial,

o sudeste asiático foi a primeira região não-ocidental a tornar-se moderna, podendo a

modernização asiática vir a tornar-se uma referência crítica, e oportuna, à

ocidentalização contida na proposta do american way of life, porque os valores de que é

portadora são tão universalizáveis quanto os que conformam a modernidade ocidental.

Apesar de não ter sido abolida a dominação estrutural que estabeleceu as fronteiras

clássicas (simbólicas, culturais e estruturais) que produziram uma identidade africana

em oposição à ocidental, o pensamento crítico na África mostra um deslocamento

essencial na estrutura, formas e modalidades da relação do continente com o mundo. A

insuficiência do jogo dogmático dos termos binários não consegue mais dar conta da

definição da África nem da sua posição no mundo, pelo que a reflexão sobre a

problemática da raça, as questões de identidade, a reconstituição das sociedades civis e

dos espaços públicos, entre outras, deve ancorar-se numa perspectiva mais ampla de

produção do conhecimento, que contraponha à visão ocidental, homogeneizadora e

redutora ainda prevalecente sobre o continente, a diversidade da realidade africana49.

Mas para isso torna-se urgente a abertura das fronteiras, não apenas as geográficas mas

sobretudo as simbólicas, a criação de redes transnacionais transversais e diagonais, e a

formação de coalizões intelectuais capazes de introduzir uma perspectiva universalista

nos conhecimentos produzidos na e sobre a África, porque apenas “a polifonia

resultante dessa mistura permitirá que eles saiam do ghetto no qual, tanto o

afrocentrismo quanto o africanismo, permaneceram”50: do reconhecimento simultâneo

da diferença e do pluralismo, nascerá a inovação.

Sendo África uma entre os outros da modernidade, também não deixou a modernidade

intocada, apesar desta, entendida enquanto projeto ocidental, seja em geral percebida

como vitoriosa. Num entendimento de cultura como construções sociais de sentido

refletindo o total repertório das práticas, símbolos e sentidos/significados a partir dos

quais as formas hegemônicas são fundidas (ou sintetizadas) nos termos de Gramsci, a

49 MBEMBE, Achille. (2000), “Le Fin des Monologues”. Éditorial, Bulletin du CODESRIA, Número 1, Dakar. FERJANI, Mohamed-Chérif. (2001), “World Plurality and ‘War of Cultures’”. CODESRIA Bulletin, vols. 3&4, Dakar, pp. 6-9. 50 MBEMBE, Achille. (2000), op. cit.

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cultura torna-se num fenômeno dinâmico, em mudança, o espaço no qual os seres

humanos procuram construir e representar a si próprios e aos outros51.

A interação entre culturas modernas e pré-modernas resultou em tais sínteses, visíveis

em toda a África, que refletem a capacidade de integrar diversos elementos culturais

através de hibridações que diluem as contradições levantadas pelo pensamento dualista

dominante no Ocidente. Esta hibridação é provavelmente mais uma questão de

sobrevivência do que de escolha, mas aqueles que são capazes de fazer o melhor de

ambos os mundos, são os melhor equipados para sobreviver num mundo onde o

moderno e o pré-moderno estão em constante interface. Para além de oferecer

excelentes oportunidades para o debate e a pesquisa, esta interface fornece, ainda, uma

chave hermenêutica para a compreensão dos principais fenômenos culturais, políticos e

religiosos da África moderna52.

A perspectiva dos encontros entre civilizações no espaço e no tempo, contribui para a

elaboração de uma teoria interacionista desses processos, através de um modelo de

análise dos padrões civilizacionais com base em três fatores inter-relacionados:

interpretações culturais do mundo (entendidas como problemáticas latentes compatíveis

com a variedade das articulações), constelações institucionais (principalmente nos

domínios político e econômico) e representações ideológicas, incorporadas nas

estratégias e nas imagens que fazem de si as elites sócio-políticas. A dinâmica destes

factores relacionados deve ser analisada tanto ao nível dos complexos civilizacionais

envolvendo famílias e sociedades na dimensão histórica, abrangendo portanto

sucessivas gerações, quanto nas suas configurações regionais e respectivos padrões

históricos distintivos53.

O argumento dos “encontros civilizacionais” de Arnason é construído em torno de uma

noção de civilização com um duplo sentido, unitário e pluralista. A civilização, no

singular, remete ao conceito de processo civilizacional de Norbert Elias, abrangendo

todos os povos e culturas; as civilizações, no plural, cujo estudo só há poucas décadas

ganhou espaço nas ciências sociais com as análises comparativas de Eisenstadt,

51 BALCOMB, A . O . (1995), op. cit. 52 ASIKE, Joseph I. (1992), “Contemporary African Philosophy: The Search for a Method or Rediscovery of its Content?”. Indian Philosophical Quarterly, vol. 19, nº.1, pp.23-39. 53 ARNASON, Johann P. (2001), “Civilizational Patterns and Civilizing Processes”. International Sociology, vol. 16, nº.1, pp. 369-386.

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caracteriza e remete a processos particularizados, localizados. Devido a este duplo

sentido, o argumento abre oportunidades para inovações culturais que servem de pontos

de partida para transformações históricas das civilizações, cuja interpretação tem

mobilizado os teóricos da modernidade, dando lugar a distintas abordagens.

3. Modernidade e civilização

A interpretação da modernidade para Eisenstadt54 organiza-se em torno da ideia de

múltiplas modernidades em resultado da tendência geral de diferenciação estrutural das

instituições, na maior parte das sociedades, segundo padrões indiscutivelmente

modernos apesar de influenciados por premissas culturais, tradições e experiências

históricas específicas, dando origem a dinâmicas modernas e modos de interpretação

distintos dos que constituem o eixo da análise que tem como ponto de partida o conceito

de modernidade ocidental. Segundo ele, a ideia de múltiplas modernidades é a melhor

maneira de compreender o mundo contemporâneo como a história de um continuum de

constituições e reconstituições de uma multiplicidade de programas culturais. Estas

construções e reconstruções são realizadas por atores sociais específicos (elites) em

estreita ligação com ativistas sociais, políticos e intelectuais, e por entidades coletivas,

como movimentos sociais55.

Referindo-se à dimensão civilizacional, Eisenstadt56 defende a ideia de que esta

modernidade deve ser entendida como uma civilização distinta, mas não restrita. A

modernidade representa um novo tipo de civilização, cujo aspecto central consiste, para

além da abertura sem precedentes e crescentes níveis de incerteza, na cristalização e

desenvolvimento dos modos de interpretação do mundo ou dos distintos imaginários

sociais ou diversos programas culturais, combinados com o desenvolvimento de um ou

mais conjuntos de novas formações institucionais. Ou seja, esta civilização corresponde

a um programa cultural distinto, com as respectivas implicações institucionais, que

primeiro cristalizou na Europa Ocidental e América do Norte, expandindo-se depois

pelo mundo, dando lugar a uma contínua mudança cultural e de padrões institucionais,

que constituem diferentes respostas aos desafios e possibilidades inerentes ao conjunto

central das características das distintas premissas civilizacionais da modernidade.

54 EISENSTADT, Schmuel N. (2001), Patterns of Modernity. New York,, New York University Press. 55 EISENSTADT, Schmuel N. (2000), “Multiple Modernities”. Daedalus, Winter 2000, pp. 1-29. 56 EISENSTADT, Schmuel N. (2001), “The Civilizational Dimension of Modernity: Modernity as a Distinct Civilization”. International Sociology, vol.16, nº. 3, pp. 320-340.

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As abordagens de Eisenstadt e de Arnason fornecem importantes elementos para a

interpretação da modernidade e o entendimento das relações entre culturas na era da

globalização, designadamente a ideia dos encontros civilizacionais ou interfaces, que

constituem um quadro de referências necessário ao entendimento de processos que

marcaram a história da humanidade e, sobretudo, a história da África, como a

escravatura, o colonialismo e o apartheid. Contudo, mostram-se redutoras no que

respeita à agência humana (embora Arnason defenda espaços de interação nas interfaces

dos encontros civilizacionais), e elitistas ou, no mínimo, muito seletivas no que tange

aos atores sociais a que ambos os autores atribuem protagonismo. Propõem, também,

um conteúdo homogeneizador, ao praticamente circunscrever os complexos

civilizacionais às fronteiras territoriais do estado-nação, abrindo a possibilidade de

identificação de sub-civilizações regionais dentro dos estados. Isso significaria quase

duas centenas de modelos de modernidade, quando a realidade, ainda que fragmentada,

não parece reconhecer-se nessa abordagem: os estados e suas populações desenvolvem-

se predominantemente segundo suas dinâmicas internas, mas nesse processo interagem

com outros estados, povos e instâncias supranacionais, e essa relação influencia as suas

próprias dinâmicas57.

Opondo-se ao pós-modernismo e criticando as abordagens de Eisenstadt e Arnason pelo

protagonismo que ambos atribuem às elites, Domingues alarga a base de contribuição

no processo de modernização aos indivíduos e às subjetividades coletivas que eles

constróem para responder aos desafios da vida atual. Para ele as civilizações devem ser

entendidas como sistemas sociais bem amplos, grandes subjetividades coletivas, com

um baixo nível de centramento, onde prevalecem princípios organizadores como

hierarquia, competição e conexão. Considerando que a modernidade não se apresenta

uniforme, e reconhecendo as mudanças significativas que se vêm operando, Domingues

argumenta que elas não provocaram uma ruptura civilizacional porque, se foram

produzidas novas instituições e formas de consciência mais adequadas e eficientes ao

pluralismo societal crescente, elas convivem com as velhas instituições incorporadas

nas relações sociais, nos comportamentos e formas de consciência anteriores,

tradicionais. “Em grande medida estas instituições e formas de consciência modernas

57 DOMINGUES, José M. (2003), Do Ocidente à Modernidade, intelectuais e mudança social. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

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são produtos inesperados de desejos e opções diários dos indivíduos, e não o produto de

ações intencionadas de elites políticas e culturais”58.

Caracterizando a atual como a terceira fase da modernidade, com um maior grau de

complexidade da realidade social e, em consequência, uma maior tendência à

fragmentação e uma crescente importância de mecanismos de coordenação mais

flexíveis e inovadores, Domingues defende que se encontra favorecida a recriação de

novas formas de solidariedade num contexto social difícil, marcado pelo

individualismo, o familismo e o privatismo crescentes, como sub-produtos do

desenvolvimento do capitalismo. Tais mecanismos de coordenação ocupam um espaço

no qual nem o Estado, nem o mercado, se mostram capazes de, por si sós, articularem

respostas eficientes às demandas crescentes e diversificadas59. Para além da

reflexividade e da criatividade, esta abordagem destaca o maior grau de incerteza e de

contingência das relações sociais nesta fase da modernidade.

Esta estrutura de análise acomoda a maior fragmentação e complexificação, os novos

mecanismos de coordenação, os novos atores sociais e as novas formas de solidariedade

e responsabilidade social que caracterizam as sociedades contemporâneas, dando espaço

para formas alternativas e criativas de interação social60. Sugere uma interpretação da

modernidade através da identificação das suas características mais específicas e dos

modos como, em contextos de maior ou menor pluralidade e abertura à inovação e à

criatividade, os arranjos diferenciados de categorias como a cidadania, (envolvendo

identidades, direitos e deveres), a liberdade, a igualdade, a solidariedade, a

racionalidade (e o domínio sobre a natureza), e a responsabilidade, podem “definir os

padrões institucionais que estruturam a reprodução das esferas fundamentais da vida

social”61.

A interpretação contextual da modernidade proposta permite identificar os atores sociais

envolvidos e compreender as relações que estabelecem entre si, as distintas estratégias a

que recorrem, os níveis de tolerância com a diferença e a diversidade que são capazes de

58 Idem. 59 DOMINGUES, José M. (2002), Interpretando a Modernidade: Imaginário e Instituições. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas. 60 DOMINGUES, José M. (2004), Ensaios de Sociologia: teoria e pesquisa. Belo Horizonte, UFMG Editora. 61 DOMINGUES, José M. (2002), op. cit.

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produzir recorrendo à criatividade, à inovação, à imaginação, e aos valores plurais da

liberdade, igualdade e solidariedade. O seu amplo quadro de referências acomoda a

pluralidade de formas de interação e organização social incluindo a articulação em rede,

o que dá espaço para as estruturas e relações informais tão presentes na sociedade

angolana. Permite, ainda, compreender o processo de mudança institucional e a

convivência entre as novas e as velhas instituições, também uma característica de

sociedades em transição. A abordagem da modernidade articulada mista fornece um

vasto campo de oportunidades, provavelmente por ser fruto de uma “articulação mista”

entre o pensamento ocidental da sua formação acadêmica e a vivência / experiência

latino-americana do autor. Contudo, a abertura a outros quadros de referência,

particularmente aos africanos, é mais sugerida do que integrada.

4. Buscando subsídios na discussão sobre globalização Se o conceito de modernidade tem sido objeto de inúmeras e diversificadas

interpretações e abordagens, que a discussão anterior mostrou apenas em parte, o

conceito de globalização tem gerado bastante controvérsia, não só na academia, mas

também na prática discursiva, porque essa discussão constitui o pano de fundo para o

entendimento do mundo, das relações de poder nele existentes, do self e das identidades

coletivas em que ele se reconhece, o seu próprio papel e o protagonismo de outros

atores locais, regionais, nacionais, internacionais ou globais. É uma discussão que tem

implicações profundas na forma como os indivíduos e as coletividades se percebem

incluídos ou excluídos da marcha da humanidade em direção ao futuro.

A discussão sobre a modernidade é bastante influenciada pelos imaginários sociais dos

seus proponentes, parecendo visível a distinção fundamental entre uma maior

centralidade no self, no eu no Ocidente, enquanto a busca do nós se faz mais presente na

África e também na Ásia. Os pontos de partida, mais ou menos amplos na ótica do

espaço social a que se reportam, mais ou menos específicos segundo as dimensões que

endereçam, e mais ou menos abertos no concernente às ideologias que constróem ou nas

quais se inserem, refletem-se na estrutura das análises sobre arenas do poder,

contestação política e principais atores nelas envolvidos, revelando variações

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contextuais, empíricas e normativas da relação entre estados, mercados e sociedade

civil62.

Caracterizando a terceira fase da modernidade como uma civilização global, híbrida em

resultado da sua combinação com outras fontes civilizacionais e fragmentada devido às

inúmeras particularidades, contrações e tensões na qual se integram todas as

subjetividades coletivas63, a abordagem de Domingues fornece um quadro de

referências capaz de contribuir para a compreensão da inserção de Angola no tempo de

mundo. Apesar de não ter constituído preocupação expressa do autor a sua aplicação aos

contextos africanos, as suas características intrínsecas designadamente, a maior

heterogeneidade e complexidade atual, e a coexistência de três princípios de

organização / coordenação das interações sociais, o mercado, a hierarquia do Estado, e

as redes, respondendo respectivamente pela troca voluntária, o comando e a colaboração

voluntária, interpenetrando-se e influenciando-se mutuamente64, criam a base e dão

espaço a contribuições de outros autores, o que permite a criação de um quadro analítico

inclusivo das realidades africanas contemporâneas no tempo do mundo.

A análise de Appadurai parece oferecer mais valias no concernente ao papel da

imaginação em proporcionar os meios pelos quais os indivíduos são capazes de

estabelecer as fronteiras entre a fantasia e os aspetos potencialmente produtivos da

imaginação, mantendo-se nesses limites como agentes em lugar de sonhadores da

fantasia coletiva do capitalismo tardio, porque contribui para compreender as pressões

do global sobre o local, colocando-as no centro das explicações dos processos que

ocorrem em ambos os níveis. A sua noção de “escolha consciente” também abre

caminhos à teorização da criação e da ação em diversas arenas de escolha, de

justificação e de representação, como oportunidades para a expressão da diversidade em

tempo global65.

O argumento da “escolha consciente” fornece a chave para a discussão das possíveis

respostas da agência humana à sensação da falta de alternativas ao projeto da

modernidade. Se por um lado essa sensação indica um esgotamento do projeto em si, 62 HIGGOUT, Richard & REICH, Simon. (1998), “Globalisation and Sites of Conflict: Towards Definition and Taxonomy”. Centre for the Study of Globalisation and Regionalisation, University of Warwick, Working Paper 01. 63 DOMINGUES, José .M. (2004), op. cit. 64 DOMINGUES, José M. (2004), op. cit. 65 APPADURAI, A. (1996), “Modernity at Large. Cultural Dimensions of Globalization”. Public Worlds, vol.1. University of Minnesota Press, Minneapolis.

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por outro coloca a hipótese de reinvenção de um novo paradigma, no âmbito do qual

seja possível situar um projeto mais abrangente de oportunidades sociais, econômicas e

políticas, mais justiça social, criando espaços de conciliação dos dilemas da liberdade e

da igualdade, do local e do global, onde o respeito pela diferença se desenvolva, tendo

como quadro de referências os valores universais de afirmação da dignidade humana,

através de uma nova ideia de solidariedade, com base na utopia de não reduzir o

realismo ao que existe, e numa nova concepção de direitos humanos, numa perspectiva

de reinvenção cosmopolita de redes de linguagens de emancipação nativas, que as torna

mutuamente inteligíveis e traduzíveis66.

A persistência da pluralidade cultural alimentada pelo ressurgimento das culturas locais,

o reavivar de identidades étnicas e regionais, e a eclosão das respectivas estruturas

organizativas, contradiz o pressuposto de que o paradigma da modernidade imprimido

no processo de globalização, conduziria ao triunfo inevitável do modelo ocidental,

como padrão cultural único e universalmente aceite. Apesar da expansão dos mercados

à escala planetária que, supostamente, produziria a diluição das diferenças, a realidade

do mundo é marcada por uma imensa pluralidade. A compreensão da realidade africana

em particular, requer a análise em cada situação do modo pelo qual os sistemas

tradicionais evoluem sem serem destruídos, através do recurso sistemático às suas

lógicas para alcançar objetivos econômicos modernos. As sociedades africanas

contemporâneas são exemplos eloquentes da sobrevivência da diversidade cultural,

persistindo em desafiar as lógicas que lhes têm sido impostas, a despeito das enormes

pressões externas e das dinâmicas globais que marcam a nossa época67.

5. Um quadro teórico desejável

De uma forma geral, prevalecem nas abordagens do pensamento ocidental as análises

que remetem a problemas identitários, individuais e coletivos, construídas no âmbito do

paradigma neoliberal que se impôs à falência do estado de bem-estar e às

recomposições sociais que se seguiram ao fim da guerra fria, não oferecendo muitas

possibilidades de inclusão de outras formas de pensar o mundo e as relações sociais,

66 HAMOUDA, Hakim ben. (2000), op. cit. DIOUF, Mamadou. (2000), “Commerce et Cosmopolitisme – le cas des diasporas mourides au Senegal”. Bullettin du CODESRIA, Número 1, pp. 20-29. 67 NICOLAU, Victor Hugo. (1999), “Cultura ‘Tradicional’ e Processo de Democratização em África”. TRAVESSIAS, nº. 1, pp.169-182..

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para além das contidas no modelo da modernidade ocidental, com pretensões

hegemônicas.

Na breve incursão apresentada sobre o que o pensamento oriental e africano produz,

propõe e aspira, tornam-se visíveis diferenças substanciais nas formas de olhar e

procurar compreender o mundo de hoje e as relações entre os seres humanos que o

habitam: reivindicando a sua inclusão no processo de globalização em curso, estas

abordagens não se apresentam com pretensões hegemônicas, buscando outrossim,

oportunidades de encontros e de interação com outros modos de pensar o mundo e a

vida.

Com base na constatação de que “as tradições continuam a marcar a sua presença na

modernidade”68, a construção deste quadro teórico privilegia as abordagens capazes de

refletir as distintas formas pelas quais, em todo o mundo, diversas faces da modernidade

se vão construindo em resultado da interação de processos globais e locais, permitindo a

inclusão de outros entendimentos de si e dos outros, de novos atores sociais e de novas

agendas. No caso específico de África, torna-se necessário contrapor à visão

homogeneizadora e redutora dos opostos binários ainda prevalecente sobre o continente,

a diversidade da realidade africana69, capaz de realizar as sínteses defendidas por

Asike70, porque os que são capazes de fazer o melhor de ambos os mundos, são os

melhor equipados para sobreviver num mundo onde o moderno e o pré-moderno estão

em constante interface.

A adopção da perspectiva das interfaces da pré-modernidade e da modernidade

acomoda o argumento de que, ao contrário das diferenças civilizacionais, as diferenças

nas racionalidades económicas e políticas permitem uma análise mais promissora para a

interpretação das relações entre as sociedades e a modernidade no mundo atual71.

Permite, ainda, abrir um leque mais rico de visões da modernidade oferecidas à

civilização humana pelos processos evolutivos da diversidade cultural prevalecente, em

68 Tu Weiming (1991/1993), op.cit. 69 MBEMBE, Achille. (2000), op. cit.; NEGRÃO, José. (2004), op. cit. 70 ASIKE, Joseph I. (1988), op. cit. ASIKE, Joseph I. (1995), “Cultural Identity and Modernity in África: a case for a new philosophy”, in Theophilus Okere (org.), Identity and Change. Nigerian Philosophical Studies I (Cultural heritage and Contemporary Change Series II), volume 3. http://www.crvp.org/book/series02/II-3/chapter-ii.html. 71 ONG, Aihwa. (1999), op. cit.

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oposição às imagens deturpadas pelo militarismo ocidental72. As interpretações das

experiências únicas de modernização das culturas não-ocidentais devem ser entendidas

nas interfaces de exposição e interação do universalismo e do particularismo, da teoria e

da prática, e da acomodação e do criticismo73, e as diferenças culturais percebidas como

produzidas por, e relacionadas com, desigualdades sociais e exclusão, e não como

produtos de processos de reprodução, não devendo por isso ser entendidas como opostas

a um individualismo moderno, porque os indivíduos podem ter interesses pessoais,

instrumentais ou subjetivos, para escolher uma certa identidade coletiva74.

Como o particularismo e o universalismo são construções sociais, transformar este

cenário teórico num ambiente sócio-político que propicie a integração de Angola “no

tempo do mundo”, e a construção de um clima de confiança entre indivíduos e grupos

sociais75 com base no respeito pelas suas identidades culturais, na partilha do poder, nas

garantias de representação, e na opção por regimes políticos que promovam a

autonomia regional (como a federação ou a consociação), requer vontade política e o

engajamento da maior diversidade possível de actores sociais, para que o potencial de

mudança que a nova era de paz semeou, encontre terreno fértil à sua concretização,

aproveitando as oportunidades da interação e sinergias na região, no continente e no

planeta.

A perspectiva de constante re-adaptação da estrutura contemporânea que confere

flexibilidade e movimento às culturas no contínuo ciclo de mudança do processo de

modernização, cria oportunidades para a negociação de novos pactos sociais, incluindo

consensos de fins e de meios, e dissensos com base no respeito e reconhecimento dos

mesmos enquanto “desacordos morais”76, na terminologia de Taylor. As formas de

72 LIU, Henry C. K. (2003), op. cit. 73 MYOUNG-KYU, Park & KYUNG-SUP, Chang. (1999), Sociology between Western Theory and Korean Reality: Accomodation, Tension and a Search for Alternatives. International Sociology, vol. 14, nº. 2, pp. 139-156. 74 WIEVIORKA, Michel. (2004), “The Making of Differences”. International Sociology, vol.19, nº. 3, pp. 281-297. 75 Sobre este tema ver, entre outros, MISZTAL, Bárbara (1996), Trust in Modern Societies: The Search for the Bases of Social Order. Cambridge, Polity Press; OFFE, Claus (1999), “How Can We Trust Our Fellow Citizens”, in M.E. Warren (org.), Democracy and Trust. Cambridge, Cambridge University Press; WALZER, Michael (1997), On Toleration. Yale University Press. New Haven/London; GAMBETTA, Diego (1988), “Can We Trust Trust?”, in Diego Gambetta (org.), Trust Making and Breaking Cooperative Relations. Cambridge, Basil Blackwell, pp.213-237; KELLER, Edmond (2001), Culture, Politics and the Transnationalization of Ethnic Conflict in Africa in the Era of Globalization. African Studies Association, 44th Annual Meeting, November 15-18, Houston. 76 A inclusão de uma vasta gama de desacordos morais dignos de respeito, oferecendo a oportunidade de defender posições de dissenso, com seriedade moral, criaria as condições para uma aprendizagem de convivência com a diferença. TAYLOR, Charles (1993), El multiculturalismo y ‘La Política de Reconocimiento’. México: Fondo de Cultura Económica.

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articulação e de influência entre as “matrizes tradicionais” do ambiente multicultural de

Angola, e o processo de modernização, produzem distintos arranjos a partir da mútua

apropriação de elementos modernos e tradicionais, conformando quadros diferenciados

de relações sociais e de acesso ao espaço público, ao nível das esferas que o constituem,

ou dos seus respectivos públicos.

CAPÍTULO 2: A SOCIEDADE CIVIL EM DEBATE I. INTRODUÇÃO

A construção do conceito de sociedade civil cria uma entidade com características

próprias dentro da sociedade, sendo o termo “civil” que qualifica este subconjunto. Que

atributos lhe conferem tal distinção? Por que “civil”?

A ideia de sociedade civil remete a uma delimitação no âmbito da sociedade política,

em princípio composta por todos os cidadãos detentores de cidadania política, excluindo

os privados de liberdade, os doentes mentais, os refugiados e os exilados políticos.

Contrapõe a uma visão inclusiva e universalista de cidadania, a ideia de uma cidadania

“civil”, mais selectiva e restrita, reservada ao conjunto de formas de auto-organização

social, intermediárias, distintas do Estado, da família, e do mercado, com capacidade de

deliberação e de ação coletiva em defesa ou promoção dos seus direitos ou interesses,

sem a pretensão de exercer o poder, e que se regem por normas ou regras de civilidade.

O modo “civil” de olhar a árvore sem perder de vista a floresta, mobiliza valores como

igualdade, liberdade, tolerância, espírito público, sentido de justiça, solidariedade,

lealdade, e outros como virtude cívica e cidadania, opondo ao estado natural de todos

contra todos, e às formas hierarquizadas de organização social, estatal, religiosa, militar,

soluções produzidas por atores sociais em situações únicas, porque caracterizadas por

contextos socioculturais distintos77. Apesar das formas diferenciadas que assumem,

estas soluções parecem não só galvanizar os atores sociais envolvidos, mas também

constituir-se em formas efectivas, embora distintas, de resolução de problemas

coletivos. Para além de conter uma ideia de “movimento” devida à sua característica

inspiradora e mobilizadora, o conceito revela-se, ainda, um “acumulador” de camadas

de sentido, evidenciando uma extraordinária capacidade de sobreviver às torrentes da

77 KOSELLECK, Reinhart. (2002), The Practice of Conceptual History. Timing History, Spacing Concepts. Standford, Stanford University Press, California.

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história, metamorfoseando-se, descodificando os seus múltiplos sentidos, comunicando-

se com as realidades que a ele recorrem, para se constituir em “bússula”, orientando o

caminho a seguir.

A uma estrutura de pensar a organização do político, do económico e do social,

fornecida pelo conceito teórico, agregou-se a praticidade da ideia política, inspiradora

da ação. A capacidade de agregar sentidos, e a plasticidade em adaptar-se aos distintos

contextos socioculturais nos quais é solicitado e aplicado, constituem algumas das

razões que explicam a centralidade do debate sobre o conceito de sociedade civil.

2. A reposição da ideia de sociedade civil no centro dos debates na academia, na política

e na economia enquanto conceito para compreender uma dada realidade, e como projeto

político para a transformar, provocou uma ampla mobilização em todo o mundo,

reanimando os discursos da missão civilizadora da modernidade, e operando uma

“mágica” no meio acadêmico em resultado da argumentação a ele endereçada, contra e

a favor, e da redescoberta de uma linguagem comum para falar dos ideais utópicos da

democracia e de comunidade moral78.

As referências à, e o debate sobre, sociedade civil, surgem num amplo leque de

discussões, cujos conteúdos vão da filosofia (ideologias e utopias), passando pela

política (nos planos nacional, regional, continental, internacional e global), a sociologia

(relações cidadão/Estado, organização do político, construção da cidadania,

modernidade, globalização, civilizações), a economia (a favor ou contra o modelo), a

antropologia (etnicidade, parentesco, família, religião), chegando à psicologia social

(identidades individuais, subjetividades coletivas, reconhecimento e respeito), para citar

alguns exemplos sem pretender esgotar a multiplicidade de abordagens do debate.

Do ponto de vista das motivações, as abordagens são também muito variadas: recorre-se

a sociedade civil para reforçar o estado democrático, mas também para atacar qualquer

forma de Estado; apela-se à sociedade civil para combater o capitalismo, mas também

para discutir estratégias de convivência com o mercado; sociedade civil é a utopia da

mudança radical, mas argumento para justificar reformas mais ou menos limitadas;

78 COMAROFF, John & COMAROFF, Jean. (1999), Civil Society and the Political Imagination in Africa. Chicago, The University of Chicago Press.

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questiona a excessiva concentração de poder nos governos, mas também denuncia os

impactos do neoliberalismo, especialmente dos programas de ajustamento estrutural;

empresta conteúdo às reivindicações por inclusão, mas também serve para delimitar

espaços societais “civis” dos que não o são79; é por uns considerada como a “essência

vital da liberdade”80, e por outros como um espaço opaco, permeado de interesses

particulares81. São bastante diversas as formas explicativas de um conceito que, apesar

da sua longa história, continua carente de uma definição hegemónica82, enquanto

formulação capaz de orientar eticamente e liderar as análises da academia e dos atores

sociais (como acontece com os conceitos correlatos de Estado e de mercado), e

consensual, enquanto articulação pluralista de ideias e valores definindo uma unidade na

diversidade, e não a ausência de dissenso.

Apesar da diversidade dos contextos nos quais aconteceram, ou dos ângulos de

abordagem priorizados, as recuperações do conceito de sociedade civil debatem algum

tipo de crise política, econômica e/ou social, e reflectem um processo estruturado em

quatro vertentes principais: a) complexificação, diferenciação e fragmentação das

sociedades atuais; b) um mundo mais interligado e integrado, mais autónomo em

relação ao político, e com mais demandas de transparência no social; c) a crise da

democracia representativa e os efeitos socioculturais da globalização; e d) a expansão da

cultura democrática em geral, e da cultura participativa, em particular83.

3. Contudo, a teoria da sociedade civil em torno da identificação da vida associativa fora

do Estado84, parece não dar conta da complexidade da situação em Angola, mostrando-

se incapaz de explicar por que razão o crescimento do número de organizações da

sociedade civil não se reflecte numa maior abertura do espaço público angolano à

pluralidade de visões e de maneiras de estar em sociedade. Embora tenha havido um

79 WHITEHEAD, Lawrence. (1999), “Jogando Boliche no Bronx: os interstícios incivis entre a sociedade civil e a sociedade política”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 14, nº. 41, pp. 15-30. 80 DAHRENDORF, Ralf. (1997), Após 1989. Moral, revolução e sociedade civil. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra. 81 ARATO, Andrew. (1995), “Ascensão, Declínio e Reconstrução do Conceito de Sociedade Civil: Orientações para Novas Pesquisas”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº. 27. 82 Sérgio Costa considera que em Civil Society and Political Theory, de Jean Cohen e Andrew Arato (1992), o conceito ganhou uma interpretação hegemônica que busca dialogar com as diferentes vertentes que haviam procurado reinventá-lo nos anos anteriores. COSTA, Sérgio. (2003), “Democracia Cosmopolita: déficits conceituais e equívocos políticos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 18, nº. 53. 83 NOGUEIRA, Marco Aurélio. (2002), “Sociedade Civil, entre o Político-Estatal e o Universo Gerencial”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 18, nº. 52. 84 COMERFORD, Michael. (2003), The Peaceful Face of Angola: Biography of a Peace Process (1991 to 2002). Windhoek, John Meinert Printing.

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crescimento significativo das organizações da sociedade civil tanto em quantidade

quanto na diversidade dos temas que endereçam, este crescimento não se refletiu na

inclusão de novos atores sociais e suas agendas no espaço público, nem deu origem a

qualquer processo nesse sentido. Não se conseguiu influenciar a composição da agenda

política pública angolana, e à medida que a sociedade civil se torna mais visível, o

poder parece ainda mais centralizado na presidência, o que não representa o resultado

esperado do desenvolvimento da sociedade civil85.

A compreensão da relação de forças em presença na arena pública angolana, que

determina a participação e a visibilidade dos diversos interesses presentes no espaço

público, não parece possível através dos quadros teóricos da sociedade civil. Os debates

sobre o conceito em sociedades em construção de regimes democráticos mostram que os

próprios atores sociais ao se referirem aos feitos alcançados em nome da sociedade

civil, ou expressando expectativas em relação ao que será possível alcançar sob a

bandeira da sociedade civil, acabam, quase invariavelmente, por introduzir a

necessidade de democratização, expansão e diversificação do espaço público,

recorrendo aos conceitos correlatos de diferença, respeito, reconhecimento, cidadania,

equidade e justiça social, e sinalizando um entendimento geral da sua estruturação em

sub-esferas ou públicos específicos, com um grau de diversidade variável em função do

contexto a que se referem. Ou seja, esses discursos, embora capazes de explicar a

mobilização de atores e a organização de interesses em nome da sociedade civil,

precisam recorrer aos referenciais da discussão sobre o espaço público, para permitir

uma compreensão mais ampla das possibilidades de democratização dessas sociedades.

A abordagem de Habermas86 e as críticas e complementos ao seu quadro teórico da

esfera pública, parecem constituir-se em reforços fundamentais para a compreensão das

relações sociais e de poder nas sociedades em transição, em distintos estágios do

processo de democratização. Acrescentado ao quadro teórico da sociedade civil,

construído sobretudo em torno da identificação da vida associativa independente do

Estado, a premissa do uso público da razão na esfera pública, torna-se possível pensar

de forma mais realista, as possibilidades da sociedade civil angolana operar nos

85 Idem. 86 HABERMAS, Jurgen. [1962] (1989), The Structural Transformation of the Public Sphere. Cambridge, MIT Press; HABERMAS, Jurgen. (1992), “Further Reflections on the Public Sphere”, in Craig Calhoun (org.), Habermas and the Public Sphere. Cambridge, MIT Press.

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interfaces das relações entre Estado, mercado e família, e incluir o “público primordial”

de Ekhe87 marginalizado do processo de tomada de decisão, originando um “efeito de

borda” através do aumento da diversidade das formas possíveis formas de relações

sociais, de atores sociais e das suas percepções sobre as oportunidades e os

constrangimentos que condicionam o acesso ao espaço público, e como, com base

nessas percepções, constituem as suas agendas. Também na América Latina,

particularmente no Brasil, tem sido necessário recorrer à teoria do espaço público, à

discussão da institucionalização e do efectivo exercício dos direitos de livre expressão

de opinião, de liberdade de imprensa, de livre associação e reunião, e de livre

circulação, para compreender as dificuldades/limitações que as organizações da

sociedade civil e os seus constituintes têm de enfrentar, e vencer, para exercitar os seus

direitos de cidadania, e através deles, influenciar a agenda política pública, interpondo

às instituições do Estado e do mercado os diversos interesses que representam, e

provocando a expansão do espaço público, tornando-o mais inclusivo e democrático.

4. Este capítulo vai apresentar um mapeamento dos debates atuais sobre o conceito de

sociedade civil, começando por a) uma apresentação sumária das principais

contribuições de escolas ou tradições teóricas para a construção do conceito numa

perspectiva da sua progressiva diferenciação do Estado. Seguem-se b) as abordagens

neoliberal, marxista, e da esfera pública, que conformam os entendimentos sobre

sociedade civil na atualidade, c) os debates sobre o recurso e uso do conceito em

diversos contextos do hemisfério sul e no leste europeu, onde se identifica uma

demanda comum pela expansão e democratização do espaço público, d) a discussão da

validade do conceito no contexto angolano, e e) as contribuições da teoria da esfera

pública de Habermas com vista à construção de um quadro teórico capaz de dialogar

com as diferentes visões da sociedade civil e do espaço público em Angola e conferir

sentido às representações dos participantes na pesquisa de campo.

A tendência de remeter a resolução dos impasses que a história do conceito vem

registrando ao nível de entendimento e utilização supranacional, cabe nesta análise

porque, apesar da sua aparição recente na arena mundial, a ideia de uma sociedade civil

global expandiu-se de forma extraordinária nos últimos anos, devido não só à sua

87 EKEH, Peter P. (1975), op. cit.

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estreita relação com o processo de globalização em curso88, mas também à crescente

influência do pensamento global sobre as realidades nacionais, abrindo caminho para

legislações mais flexíveis e abertas à organização cívica, e formas de governação mais

transparentes e inclusivas. Essa expansão também se relaciona com a falência do

estado-providência e a crise social resultante, e com as mudanças nas atribuições

exclusivas dos Estados, o monopólio da governação e da regulação económica e fiscal,

hoje co-exercida com agências multilaterais de regulação89.

II. O DEBATE ATUAL SOBRE SOCIEDADE CIVIL

1. Como a sociedade civil progressivamente se diferenciou do Estado

Ao longo da história, filósofos e humanistas buscaram soluções para os problemas da

vida comunitária, da ordem social, das relações desejáveis entre indivíduos, sociedade e

Estado, do público e do privado. A análise sumária do trajeto semântico do conceito

procura resgatar ideias fundacionais das principais correntes do pensamento sobre

sociedade civil que conformam os discursos atuais.

Numa breve retrospectiva sobre a história do conceito, parece pacífico afirmar que, após

as formulações na Grécia Antiga como koinonia politike em Atenas, a polis de

Aristóteles, e na Roma imperial como societas civilis de Cícero, a ideia de sociedade

civil voltou ao centro do debate no século XVIII. O conceito koinonia politike

(atribuído a Aristóteles) excluía mulheres, pobres e escravos, referindo-se ao conjunto

de homens livres (polités) capazes de governarem a si, aos outros e à polis, a cidade-

estado definida em contraste à barbárie e as outras cidades gregas. A primeira utilização

do termo societas civilis atribui-se a Marcus Tullius Cícero, referindo-se o civilis ao

cidadão livre para se organizar politicamente e exercer o poder sobre outros cidadãos

livres, ou sobre outros povos90. Tanto na koinonia politike dos gregos, quanto na

societas civilis romana, já se encontravam inscritos alguns dos sentidos hoje presentes

no conceito de sociedade civil, como a auto-organização política por parte de cidadãos

livres e responsáveis, capazes de exercerem o poder numa comunidade, numa cidade,

num estado. Contudo, também já se identificavam os primórdios dos atuais conflitos

88 NAIDOO, Kumi & HEINRICH, Volkhart F. (2000), Global Civil Society and the Challenges of the New Millenium: Implications for Civil Society in Africa. Pannel Civil Society in Africa, ISTR Conference, Dublin, Trinity College, July 5-8. 89 SCHOLTE, Jan A. (1999), “Globalisation and Governance: From Statism to Plycentrism, Centre for the Study of Globalisation and Regionalisation”. Coventry, University of Warwick. Working Paper Nº. 130/04. 90 KOSELLECK, Reinhart. (2002), op.cit.

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conceituais, como a sua abrangência em termos do acesso à cidadania (quem era

considerado “cidadão”, que indivíduos ou grupos sociais estariam incluídos nesse

direito, e quais os excluídos), e em termos da área geográfica e organização política do

espaço / território ao qual se relacionava: comunidade, cidade, cidade-estado,

principado, império, Estado, etc.

No século XVIII a ideia de economia deslocou-se da “tríade da ética, economia e

política para se assumir como uma esfera independente, de uma sociedade civil

puramente orientada pelo interesse”91, a partir de então designada “moderna”. Apesar

da determinação económica na emergência da sociedade civil nos tempos modernos, o

sentido aristotélico da “comunidade de cidadãos capazes de se governarem” ainda se

mantém presente na ideia de sociedade civil, que passa a ser definida não apenas em

relação ao Estado, mas também em relação à economia. Em resultado da transformação

progressiva do entendimento da economia não mais restrita ao foro doméstico e cada

vez mais percebida como referente a um território e relacionada com a satisfação das

necessidades dos homens para além do Estado, a sociedade civil passou a ser concebida

como uma esfera em contraste com o Estado92. Adam Ferguson é o primeiro a referir-se

especificamente ao conceito de sociedade civil em oposição à sociedade rude, como

uma sociedade polida e caracterizada por avanços nos domínios social, político e

económico, produzidos pelo refinamento das maneiras, o desenvolvimento do comércio,

e a divisão do trabalho93. São “civis” as sociedades em que os indivíduos gozam de

liberdade civil, sob um governo que proteja e respeite os seus direitos e interesses; a

virtude cívica incorpora o princípio da luta pelos direitos, associando ativismo e

capacidade de mobilização, e é o conflito social que promove a inovação constitucional

e orienta o desenvolvimento de novas instituições. Na época, os significados atribuídos

à cidadania na França, na Alemanha e na Escócia, refletiam as distinções inerentes aos

contextos sociopolíticos prevalecentes: o Citoyen da Revolução Francesa, o Citizen dos

filósofos morais escoceses, e o Bürger dos idealistas alemães, embora herdeiros da ideia

de “comunidade de cidadãos livres” presente em Aristóteles e em Cícero, traduzem

91 KOSELLECK, Reinhart. (2002), op.cit. 92 KOSELLECK, Reinhart. (1992), “Uma História dos Conceitos: problemas teóricos e práticos”. Estudos Históricos, vol.5, nº. 10, pp. 134-146. 93 FERGUSON, Adam. [1767] (1966), An Essay on the History of Civil Society. Edinburgh, Edinburgh University Press.

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vivências e experiências diversas em contextos concretos da ação, e diferentes formas

de articular as demandas políticas, em resultado dessas peculiaridades nacionais94.

Em Hegel95 a sociedade civil é entendida como esfera diferenciada do Estado,

constituída por indivíduos simultaneamente produtores e consumidores competindo uns

com os outros, com uma grande e crescente variedade de interesses em resultado da

progressiva divisão do trabalho. A corporação é a solução para evitar a supremacia de

uns interesses relativamente a outros, acomodando tanto interesses individuais quanto a

vontade universal, juntando os elementos éticos e práticos numa única forma de

pensamento. Recusando a separação entre pensamento público e moralidade privada,

cria espaço para a vida comunal, através do reconhecimento mútuo das necessidades e

contribuições dos membros das corporações, mediadoras entre os interesses particulares

e os universais. O Estado é o árbitro final da moralidade, sendo sua atribuição orientar

moralmente a sociedade civil. O conceito hegeliano de sociedade civil inclui as

autoridades públicas como garantia da segurança pessoal e da propriedade. Apesar da

constituição da sociedade civil preceder a do Estado, e de ambos serem entendidos

como esferas distintas, existe uma relação de dependência da sociedade civil em relação

ao Estado, devido aos tipos de liberdade prevalecentes em cada esfera, universal e

objetiva dos cidadãos do Estado, individualista e limitada pela liberdade dos outros dos

membros da sociedade civil. Entendida como esfera das particularidades, um espaço de

competição entre indivíduos movidos por interesses privados, a sociedade civil também

é percebida como espaço de mediação entre particularidade e universalidade, agregando

à ideia de competição, a noção de negociação. As corporações são pilares fundamentais

da liberdade moderna, porque permitem canalizar para a estrutura universal os fins

egoístas perseguidos pelos indivíduos movidos pelo auto-interesse.

Em Alexis de Tocqueville96, a sociedade civil é entendida como um amortecedor contra

a ação do Estado, o campo de fortalecimento da democracia, propiciando os canais de

participação popular nos processos políticos. A visão de Tocqueville sobre o papel das

associações na criação de uma esfera diferenciada do Estado e do mercado, tem sido 94 KOSELLECK, Reinhart. (2002), op. cit. 95 HEGEL, G.W.F. (1942), Philosophy of Right, citado em PIETRZYK, Dorota I. (2001), “Civil Society – Conceptual History from Hobbes to Marx”. Aberystwyth, University of Wales. Marie Curie Working Papers, n°.1. 96 TOCQUEVILLE, Alexis de. [1835] (1998/2000), A Democracia na América. Volumes I e II. São Paulo, Editora Martins Fontes.

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criticada por atribuir (ou apropriada como atribuindo) ao conjunto das associações uma

ideia de indiferenciação, um carácter potencialmente progressista, um papel de agente

de mudança e de portador de interesses universais não contraditórios. A leitura do

círculo virtuoso de Tocqueville, atribuindo às organizações da sociedade civil o papel

de criar um ambiente de relativo equilíbrio entre Estado, economia e sociedade, foi o

princípio orientador dos trabalhos de Robert Putnam que, por sua vez, forneceram as

bases teóricas para a relação entre sociedade civil e democracia, com bastante influência

na elaboração das políticas de ajuda ao desenvolvimento97.

Karl Marx98 opôs-se à idealização hegeliana do papel do Estado de assegurar o bem

comum agindo como árbitro entre interesses em competição e impondo moral na

sociedade, ao defender que a dimensão privada da sociedade civil ultrapassa o aspecto

público, o que, numa sociedade orientada pelo mercado, resulta numa sobrevalorização

dos direitos dos indivíduos em perseguirem os seus próprios interesses relativamente

aos direitos dos cidadãos em perseguirem interesses comunitários. Para Marx a questão

não se coloca na distinção entre Estado e a sociedade civil, que deixará de existir no

pós-revolução com a dissolução do Estado, condição para a verdadeira liberdade e para

a unidade da existência humana: a revolução segue-se à sociedade de mercado e põe um

fim ao carácter político da sociedade civil, ao deslocar o indivíduo da comunidade.

Segundo Marx, a emancipação política reduz o homem, enquanto indivíduo

independente, a membro da sociedade civil ou a cidadão, uma pessoa moral, e a

verdadeira emancipação só acontece quando o homem reconhece as suas próprias

forças, organiza-as e não mais separa as forças sociais, sob a forma de forças políticas,

de si próprio.

A viabilidade da sociedade civil como conceito e como modelo de representação social

desaparece, absorvida em Hegel pelo estado universal, e em Marx na reunificação das

sociedades política e civil, perdendo importância e significado como paradigma das

teorias políticas liberal e marxista. Em meados do século XX, em reflexões sobre

ideologia, hegemonia e dominação, e teoria do conhecimento, António Gramsci inclui o 97 Também apelidadas “o negócio da caridade em África”, MONGA, Célestin. (1996), The Anthropology of Anger: Civil Society and Democracy in Africa”. London: Lynne Rienner Publishers, e “indústria do desenvolvimento”, GARLAND, Elizabeth (1999), “Developing Bushmen: Building Civil(ized) Society in the Kalahari and Beyond”, in John L. COMAROFF & Jean COMAROFF (orgs.), op. cit. 98 MARX, Karl (1894) [1999], O Capital. Crítica da Economia Política. Volume III, 3ª. Edição. Civilização Brasileira.

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conceito e o papel da sociedade civil num entendimento que parece estabelecer uma

ponte entre o anteriormente pensado e discutido, e o debate atual, porquanto se aplica,

ou tem sido aplicado, à compreensão de processos de transição, fornecendo suporte

teórico às análises e ações de resistência aos regimes autoritários e/ou totalitários na

Europa Oriental, na América Latina, na Ásia e na África99.

Gramsci introduz uma profunda alteração no debate marxista sobre sociedade civil,

transferindo o foco das relações materiais para as relações ideológicas e culturais, a

partir da análise dos papéis da família e da economia na sociedade, incluindo a primeira

por ser um veículo de cultura, devido à sua influência na formatação das disposições

políticas gerais dos indivíduos, funcionando como um veículo de hegemonia. Os clubes,

as igrejas, as escolas, as associações e os sindicatos, os movimentos sociais e os partidos

políticos, são incluídos devido ao seu papel na reprodução de ideias necessárias à

manutenção da estabilidade social. Esta proposição retira o protagonismo da economia,

ao considerar que a produção do consenso é obtida através do exercício do poder

hegemônico pelas elites, com vista à socialização das massas no âmbito da ideologia

das classes dominantes100.

Esta formulação constitui um divisor de águas entre as abordagens clássicas e as

contemporâneas, deslocando os debates do centro ocidental para apropriações do

conceito que inspiraram as lutas de intelectuais e de grupos sociais contra o

colonialismo na Ásia e na África, e contra os regimes ditatoriais na América Latina e na

Europa do Leste. A ideia de sociedade civil em Gramsci remete à noção de Estado (a

superestrutura), como o conjunto formado pelas sociedades política e civil (as

estruturas), com um carácter dual de administração da coerção e de produção de

consenso. A ideia de auto-reprodução e expansão desta noção de Estado não se restringe

ao grupo dominante, mas adquire um carácter universal ao considerar a incorporação de

reivindicações e interesses dos demais grupos sociais dominados, através da sua

progressiva integração na ordem vigente. Sendo a sociedade civil entendida como a

estrutura ideológica que confere a orientação intelectual e moral do sistema social, a ela

99 LEWIS, David. (2002), “Civil Society in African Contexts: Reflections on the Usefulness of a Concept”.

Development and Change, vol.33, nº. 4, pp.569-586; LEWIS, David (2004), “On the Difficulty of Studying ‘Civil Society’: NGO’s, State and Democracy in Bangladesh”. Contributions to Indian Sociology, 2003/4.

100 CHAMBERS, Simone (2002), “A Critical Theory of Civil Society”, in Simone Chambers & Will Kymlicka (orgs.) Alternative Conceptions of Civil Society. Princeton, Princeton University Press.

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se associa a noção de direção, enquanto à ideia de sociedade política está associada a

noção de domínio. É no seu entendimento de espaço de obtenção de consensos

alternativos à hegemonia do Estado que a contribuição de Gramsci se torna atual para o

debate sobre o conceito de sociedade civil101.

2. As tendências nos debates atuais sobre sociedade civil

Da análise anterior, retêm-se as correntes dominantes no pensamento atual sobre

sociedade civil, a liberal (conservadora e pluralista), a marxista e a habermasiana.

Sumariamente, descrevem-se os quadros de referência e as abordagens de cada uma

delas.

2.1. A corrente liberal

De feição pluralista ou conservadora, estrutura-se em torno das noções de

individualismo e de auto-interesse, liberdade de escolha, propriedade privada e

desconfiança na burocracia, constituindo um quadro ideológico que preconiza a redução

do Estado ao mínimo possível e sua retirada de certas áreas ou campos sociais, políticos

e econômicos, nos quais organizações da sociedade civil em parceria com o setor

privado assumem o protagonismo pela prestação de serviços sociais, envolvendo a

participação dos grupos sociais pobres e marginalizados. São excluídos os meios de

comunicação, que poderiam jogar um importante papel na formação da opinião pública

e influência no processo de desenvolvimento. Desconsideradas, também, as

desigualdades e injustiças estruturais da ordem constituída pela “relação de sinergia

natural entre democracia, capitalismo e mercado livre102”, e desvalorizado o fato de que

tanto o Estado quanto as organizações internacionais produzem impactos positivos e

negativos na génese e manutenção das estruturas das sociedades civis nacionais.

Fukuyama103 é um dos autores que defende a visão da sociedade civil como o setor

privado (incluindo o mundo dos negócios) fora do governo, ou seja, o espaço de

constituição da ordem voluntária ou independente. Neste entendimento, o sistema

capitalista promove a sociedade civil porque a estabiliza e desenvolve, em compasso

com o desenvolvimento da economia privada.

101 BOBBIO, Norberto (1986), Estado, Governo e Sociedade. Para uma Teoria Geral da Política. São Paulo, Paz e Guerra Editora, pp. 33-34. 102 LENZEN, Marcus H. (2002), “The Use and Abuse of ‘Civil Society’ in Development”. Transnational Associations, vol. 54, nº.3, pp.170-187. 103 FUKUYAMA, Francis. (1999), The Great Disruption: Human Nature and the Reconstitution of Social Order, New York, Free Press.

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No âmbito da corrente liberal, mas focalizando as organizações intermediárias /

associações voluntárias de Tocqueville, algumas abordagens representam as

organizações da sociedade civil como fora de participação política, através da

interposição de interesses organizados ao estado autoritário. Derivando o atributo civil

do carácter voluntário das associações e da capacidade e oportunidade dos indivíduos

escaparem aos condicionamentos sociais, esta posição negligencia as causas estruturais

dos conflitos entre grupos sociais, bem como os constrangimentos e pressões impostos

pela ordem econômica internacional à sociedade civil e ao Estado, e ignora as formas de

opressão e desigualdade no seio da sociedade civil, no âmbito da qual, os mais

educados, mais ricos e melhor organizados, conseguem representar, e defender, os seus

interesses no sistema pluralista.

As abordagens de sociedade civil enquanto terceiro setor demarcam-na do Estado e do

mercado, sendo integrada por associações, organizações não-governamentais (ONG’s),

e organizações de base. Entre elas, a desenvolvimentista defende que a par da ordem

política existe uma ordem social construída por grupos voluntários e suas normas civis,

preocupados com a expressão e preservação dos valores e crenças centrais para as

comunidades que representam104. A sociedade civil é o campo da vida social voluntária,

organizada, auto-criadora, auto-sustentada, e circunscrita pela ordem legal e um

conjunto de regras partilhadas, distinguindo-se da sociedade em geral como entidade

intermediária agindo na esfera pública, expressando os seus interesses e ideias, trocando

informações e alcançando objetivos mútuos, interpelando o Estado e mantendo os

servidores públicos sob controle105. Abrange organizações formais e informais

preocupadas com fins públicos mais do que privados, sob a forma de matriz de um

sistema de organizações democráticas que mediam as relações entre os poderes políticos

e os poderes económicos, cabendo-lhe parte da representação dos interesses da

sociedade, não mais possível de ser exercida unicamente pelo Estado. A democracia sai

reforçada por esta mediação devido à expansão dos espaços públicos de deliberação106.

104 Alguns autores consideram que a proliferação de organizações da sociedade civil constitui a grande inovação do século XX. SALAMON, Lester & ANHEIR, Helmut. (1996), The Emerging Nonprofit Sector. New York, Manchester University Press, e SALAMON, Lester & ANHEIR, Helmut. (1997), “The Civil Society Sector: a new global force”. Transaction Social Science and Modern Society, vol.34, nº. 2. 105 DIAMOND, Larry. (1994), “Rethinking Civil Society: Toward Democratic Consolidation”. Journal of Democracy, vol. 5, n°. 3, pp. 4-17. 106 Segundo alguns autores, o protagonismo das associações pressupõe uma etapa prévia de politização da sociedade como um todo, o que pode ser alcançado através da promoção de redes de associações com vista à criação de uma

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A abordagem liberal remete a Tocqueville e à ênfase nos efeitos benéficos das

associações civis na criação e manutenção da democracia; por isso, na visão liberal é a

sociedade civil quem impõe e reforça as normas sociais na atividade do Estado,

embutidas nas ideias de good governance, transparency e accountability do léxico

desenvolvimentista, regra geral utilizadas em inglês independentemente da língua dos

países onde esses programas de reforço da sociedade civil são implementados. Esta

perspectiva fornece a chave do Estado limitado, e incorporou a base empírica da

pesquisa de Putnam na Itália, que sublinha a necessidade de uma forte cultura

organizacional como pré-requisito para a democracia estável107. No âmbito desta

tradição, o livro Conflito Étnico e Vida Civil de Ashutosh Varshney, sobre a violência

entre hindus e muçulmanos na Índia, estende o argumento do papel das solidariedades

horizontais na prevenção de conflitos civis a um contexto não-ocidental, mostrando a

influência desta abordagem para além do Ocidente108.

2.2. A corrente marxista

No âmbito desta corrente, a visão de sociedade civil como política articula-se em torno

da ideia de que a autoridade deve ser compartilhada entre os membros de uma dada

comunidade, contrapondo-se e desafiando a hegemonia do Estado, que não é mais a

instituição dominante ou crucial para o desenvolvimento da sociedade civil. Esta

perspectiva tornou-se bastante popular após a queda do muro de Berlim e o

desmantelamento do então bloco soviético, expressando desilusão face ao desempenho

do Estado sob o regime comunista, e convicção relativamente à capacidade da

sociedade em organizar-se de forma independente, apesar da ausência de uma cultura de

diálogo, da invisibilidade das instituições de mediação, e da atomização dos indivíduos

sob o regime comunista109.

sociedade de organizações, na qual o Estado seria a instituição principal, e a sociedade a instituição secundária. Com base na noção de estado civil com funções de limitar ou orientar o sistema económico-comercial, esta abordagem funda-se na ideia de associação civil como uma fonte de legitimação da autoridade, e remete ao pensamento político do século XIX, mais especificamente a Hegel, e ao papel do Estado enquanto poder e suprema autoridade moral, sintetizador dos valores em conflito, e árbitro final desse conflito. DRUCKER, Peter (1993), “The Society of Organizations”, in Peter Drucker (org.), Post-Capitalist Society. New York, HarperBusiness. 107 PUTNAM, Robert. (1996), Comunidade e Democracia. A Experiência da Itália Moderna. 4ª. Edição. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas Editora. 108 Citado em TAMANG, Seira. (2003), “Civilising Civil Society: Donors and Democratic Space in Nepal”. Essay, Himal South Asia , vol.16, nº. 7, pp. 14-24. 109 STREECK, Wolfang. (1995), “Inclusion and Secession: Questions on the Boundaries of Associative Democracy”, in Joshua Cohen and Joel Rogers (orgs.), Associations and Democracy. New York, VERSO.

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Articulada em torno do pensamento de Gramsci, esta corrente contesta a separação entre

Estado e sociedade civil defendida pela liberal, argumentando que são fortemente

interdependentes; reconhece o carácter bastante variável da sociedade civil, inclusive

que fracções dela podem assumir formas repressivas que prejudicam o desenvolvimento

da democracia. Em lugar do proletariado, as abordagens marxistas mobilizam os

movimentos sociais e as ONG’s como atores privilegiados da sociedade civil,

incorporando nas suas análises as condições estruturais e os efeitos do sistema

internacional110. Entre os acadêmicos, Harbeson defende que o conceito de sociedade

civil é capaz de preencher um vazio da teoria das ciências sociais na análise do

desenvolvimento político e sôcio-econômico da África, porque em termos processuais

os entendimentos relacionados com as regras básicas do jogo político ou da estrutura do

Estado, emergem, em grande medida, de dentro da sociedade e da economia111.

Na corrente marxista a sociedade civil é vista como fortemente interligada com o Estado

e a organização política, com aquele a manter o seu poder através da dominação

indirecta deste (sistema político). Entendida como uma arena de opressão caracterizada

por divisões internas e desigualdades de poder, a sociedade civil é também o lugar da

luta e da resistência contra o autoritarismo. As abordagens atuais não celebram com

tanto vigor o papel democrático das organizações da sociedade civil, nem lhes atribuem

os créditos pela consolidação e/ou estabilização das instituições e processos

democráticos, como o fazem os defensores das abordagens liberais. Pelo contrário,

chamam a atenção para o fato deste espaço não ser benigno nem neutro, porque é a

arena onde são contestados interesses em conflito. Defendem que a sociedade civil tem

de ser percebida no âmbito da luta pelo poder entre o Estado, as instituições sociais e os

demais atores sociais, e contestam o pressuposto neoliberal de que a expansão da

sociedade civil está fortemente relacionada com o avanço da democracia liberal,

argumentando que tal expansão corresponde a formas particulares de acomodação pelo

Estado de forças sociais em competição, ou seja, que resulta do esforço dos regimes

políticos para reconstituir e consolidar o poder do Estado, através do fortalecimento da

sua legitimidade perante a sua base constituinte e a ordem política internacional112.

110 GEREMEK, Bronislaw. (1997), “Civil Society and the Present Age”. Kettering Review, Winter. http://www.nhc.rtp.nc.us:8080/conlect/civilsoc/geremek.html 111 HARBESON, J. W. (1994), “Civil Society and Political Renaissance in Africa”, in J. W. Harbeson, D. Rothchild and N. Chazan (orgs.) Civil Society and the State in Africa. Boulder:CO, Lynne Rienner. pp.1-32. 112 RODAN, Garry. (1996), Political Oppositions in Industrializing Asia. London, Routledge.

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2.3. A corrente habermasiana

A esfera pública, em geral identificada com o Estado e instituições sob o seu controle,

ganha nesta perspectiva outra amplitude, incluindo o setor privado, negócios e grupos

voluntários, o que permite o desenvolvimento de uma opinião ou voz comuns, num

espaço partilhado. É a ideia de um espaço cívico onde os indivíduos podem falar aberta

e honestamente, de forma disciplinada, sobre as questões que os afetam enquanto

membros de um grupo, de uma comunidade ou de uma sociedade113.

Habermas define a esfera pública como o espaço institucional onde as pessoas

deliberam acerca dos seus problemas comuns, discutem assuntos cívicos e da vida

comunitária, permitindo que a opinião popular seja canalizada e incorporada nas

políticas governamentais. O público constitui um orgão de auto-articulação da

sociedade civil, uma arena na qual os indivíduos privados se juntam, buscando decisões

comuns para influenciar o Estado. A esfera pública tem a sua origem histórica em

instituições contraditórias, sendo vista como burguesa numa abordagem conservadora,

ou subdividida em esfera pública intelectual e esfera pública política numa visão liberal.

Em ambos os casos, a comunicação tem um papel fundamental: é através da ação

comunicativa que os empreendedores buscam a identificação ou geração de interesses

comuns e os intelectuais e os políticos asseguram direitos como liberdade de expressão,

reunião e de imprensa, e à privacidade. Nesta perspectiva, as novas características que

emergem na esfera pública, incluindo componentes de voluntariado e de comunidade

emocional, devem conduzir a uma nova concepção de humanidade. Na sociedade civil a

esfera pública tem uma certa autonomia e um carácter cultural que coloca limites ao

poder do Estado114. Correspondendo à auto-organização fora dos campos restritos do

poder do Estado e dos interesses do mercado, Habermas percebe a sociedade civil como

constituída por associações, organizações e movimentos criados mais ou menos

espontaneamente, que identificam, condensam e ampliam a ressonância dos problemas

sociais na vida privada, encaminhando-os para o campo político ou esfera pública. O

núcleo da sociedade civil constitui uma espécie de associação que institucionaliza os

113 MATHEWS, David. (1998), “What is exactly ‘the Public’”. Higher Education Exchange, The Kettering Foundation, pp. 13-22. 114 HABERMAS, Jürgen [1962] (1989), op. cit.

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discursos capazes de solucionar problemas, transformando-os em questões de interesse

geral no quadro de esferas públicas115.

A esfera pública reforça a pressão exercida pelos problemas, não se limita a percebê-los

e a identificá-los, mas também a tematizá-los, problematizá-los e dramatizá-los de modo

convincente e eficaz, para que sejam assumidos pelo, e elaborados no, complexo

parlamentar. E a capacidade de elaboração dos próprios problemas, que é limitada, tem

que ser utilizada para um controle ulterior do tratamento dos problemas no âmbito do

sistema político. Descrevendo-a como uma rede adequada para a comunicação de

conteúdos, tomadas de posição e opiniões, onde os fluxos comunicacionais são filtrados

e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas sobre temas específicos,

Habermas defende que a esfera pública constitui principalmente uma estrutura do agir

comunicacional orientado pelo entendimento que tem a ver com o espaço social gerado

no agir comunicativo, e não com as funções ou os conteúdos da comunicação

cotidiana116.

A abordagem da esfera pública de Habermas fornece um quadro de referências para

acomodar as discussões relacionadas com a democratização da esfera pública e da

sociedade civil, e a sua dimensão normativa contribui para pensar a relação entre esfera

pública e democracia. Na sua teoria da ação comunicativa a linguagem e a comunicação

são as características centrais do mundo da vida que podem resistir aos imperativos

sistémicos do dinheiro e do poder, que minam as estruturas comunicativas e abrem

espaço para criticar as distorções da comunicação em processos de dominação e

manipulação societal, e cultivar um processo da formação da vontade discursiva

racional. Nas sociedades contemporâneas, a linguagem é usada e racionalizada, os seus

significados e usos são socialmente construídos para servir interesses hegemônicos

incluindo a legitimação e a dominação, e por isso a linguagem nunca é pura, filosófica,

universal e transcendental das condições sociais. A promessa utópica contida na

linguagem e na comunicação, de que as opiniões podem encontrar-se, a compreensão

partilhada ser estabelecida, a verdade ser revelada, e consensos não forçados serem

alcançados, não se concretiza devido à dicotomia da análise habermasiana que relaciona

115 HABERMAS, Jürgen (1977), Direito e Democracia. Entre facticidade e validade, Vol. II. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro. 116 HABERMAS, Jürgen (1977), op.cit.

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a linguagem com o poder, como o instrumento a que os interesses particulares recorrem

para a construção dos discursos, das convenções e das práxis117.

Embora os discursos não governem, eles geram um poder comunicativo que não pode

tomar o lugar da administração dos assuntos públicos, mas pode influenciá-la; apesar de

Habermas enfatizar a formação da vontade política através de processos da democracia

deliberativa, que cultivam sujeitos racionais e morais através da reflexão, argumentação,

raciocínio público e o alcance de consensos, limita essa influência ao agenciamento e à

perda da legitimação118. Construindo o seu modelo numa base de comunicação e

discussão face-a-face mais do que na interação e comunicação mediadas pelos meios de

comunicação social e outros tornados disponíveis pelo desenvolvimento tecnológico

atual, e ignorando o papel mediadores ou articuladores entre grupos sociais em

sociedades multiculturais marcadas pela desigualdade, Habermas exclui-os do campo da

democracia e da possibilidade de contribuírem para a transformação democrática119.

Outra limitação da sua teoria consiste em perceber as sociedades contemporâneas

através do quadro dicotômico do mundo da vida, governado pelas normas da interação

comunicativa, e dos sistemas, governados pelos imperativos do poder e do dinheiro,

ignorando as interações e mútuas influências entre as duas esferas. Em reflexões mais

recentes, Habermas reconhece que quando estabeleceu essa distinção absoluta entre

mundo da vida e sistemas, considerava o aparelho de Estado e a economia como

campos de ação sistematicamente integrados e sem possibilidades de se transformarem

democraticamente a partir de dentro, o que determinava a necessidade de preservar a

esfera da humanidade, da comunicação, da moralidade e dos valores nas práticas da

vida diária. Embora tenha refocalizado a sua teoria nas condições discursivas da

discussão racional ancorada nas relações comunicativas da vida diária, ampliando as

perspectivas no que respeita às condições da deliberação democrática e do consenso,

ação moral e desenvolvimento, e ao papel da comunicação em esferas que vão da

moralidade à política e à lei, manteve a separação ontológica entre a esfera da ação

comunicativa ou mundo da vida, e a dos sistemas, numa perspectiva que parece ignorar

que o mundo da vida está crescentemente sujeito aos imperativos do sistema, e que a

revolução tecnológica, a interação e a comunicação jogam um papel cada vez mais

117 HABERMAS, Jürgen (1983 e 1987), Theory of Communicative Action, Volume 1 e 2. Boston, Beacon Press. 118 HABERMAS, Jürgen (1992), op. cit. 119 KELLNER, Douglas (2004), Habermas, The Public Sphere, and Democracy: A Critical Intervention. http://www.gseis.ucla.edu/faculty/kellner/kellner.html.

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importante na economia e na política, sendo fundamental reconhecer as implicações da

grande transformação que as sociedade atuais estão experimentando na formulação dos

quadros teóricos que as tornem perceptíveis120.

Descartando a oposição entre liberalismo e democracia como fundamentalmente

antagônicos, Cohen e Arato121 assumem que a defesa e a expansão das liberdades

adquiridas reside na progressiva democratização das instituições das sociedades

modernas, e no alcance de uma maior influência da sociedade civil sobre a política.

Segundo eles, demonstra-se a possibilidade de uma sociedade civil moderna

potencialmente democrática, estabelecendo uma conexão entre teoria da ética do

discurso, legitimidade democrática e direitos fundamentais, substituindo os interesses

generalizados da ética do discurso por identidades coletivas racionais para evitar

implicações autoritárias, e identificando a sua inserção na pluralidade de formas de vida,

pela institucionalização do discurso num horizonte utópico de pluralidade democrática.

Para estes autores, a proposta de Habermas fornece o quadro conceitual mais adequado

à reconstrução de um modelo tri-partido de sociedade civil, considerando um mundo da

vida com dois níveis estruturalmente diferenciados, em resultado da modernização: o

pano de fundo do reservatório das tradições, solidariedades e identidades, incorporado

na linguagem e na cultura, e os componentes institucionais e sociológicos, os recursos

simbólicos. Como os indivíduos crescem no âmbito de uma cultura tradicional e

participam na vida em grupo, internalizam valores, adquirem competências

generalizadas para a ação, e desenvolvem identidades individuais e sociais. A

reprodução destes dois níveis é mediada pela comunicação e envolve os processos de

transmissão cultural, integração social e socialização.

Redefinindo o conceito de sociedade civil como o quadro institucional de um mundo da

vida estabilizado por direitos fundamentais incluindo as esferas pública e privada,

Cohen e Arato acrescentam que o poder e a expansão das esferas coordenadas pelos

mídia tornam muito precárias as estruturas do mundo da vida moderno. Daí a

necessidade da juridificação da vida moderna, onde os direitos jogam um papel

decisivo. As esferas institucionais da sociedade civil comportam três conjuntos de

direitos: os relativos à reprodução cultural (liberdade de pensamento e de expressão, de

120 KELLNER, Douglas (2004), op. cit. 121 COHEN, Jean & ARATO, Andrew. (1992), Civil Society and Political Theory. Cambridge, MIT Press.

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imprensa e de comunicação), os relacionados com garantias de integração social

(liberdade de associação e de reunião) e os que asseguram a socialização (proteção da

privacidade e intimidade, e integridade pessoal). Dois outros conjuntos definem as

relações entre sociedade civil e o Estado, direitos políticos dos cidadãos e direitos de

bem-estar dos clientes, e entre sociedade civil e a economia de mercado, direitos de

propriedade e contratos de trabalho. A relação que se estabelece é tão estreita que define

tipos de cultura política, podem identificar-se as formas de institucionalização da

sociedade civil através das relações que se estabelecem internamente entre esses

conjuntos de direitos122.

A definição de sociedade civil como dimensão institucional do mundo da vida, foi

incorporada por Habermas ao seu modelo discursivo de democracia com um carácter

duplo, cultural e político. No plano cultural, a sociedade civil atua defensivamente como

locus de formação de uma opinião pública ancorada no mundo da vida, cabendo-lhe no

plano político a função ofensiva de, com o direito, funcionar como um descodificador

que verte as demandas nascidas no quotidiano para a linguagem sistêmica da política

institucionalizada123.

As formulações de Habermas e de Cohen e Arato tiveram um forte impacto na América

Latina, particularmente no Brasil, nos debates sobre os processos de reforma ou de

mudança institucional em diferentes estágios de transição de regimes militares

ditatoriais. Num contexto caracterizado por distintas etapas de um processo de

democratização em que, para além da construção de instituições democráticas, se busca

a incorporação de valores democráticos nas práticas quotidianas, o conceito de

sociedade civil surge em debates sobre reformas do Estado e alargamento e

democratização do espaço público124. Noutra perspectiva, são visíveis lutas de

afirmação e maior protagonismo nas instituições internacionais criadas no âmbito do

sistema das nações, particularmente visíveis entre Brasil, Argentina e Chile, e o México.

Por um lado, o debate relaciona-se com a influência das sociedades mais desenvolvidas

e das instituições financeiras internacionais ou de cooperação nas configurações e nos

sentidos atribuídos ao conceito de sociedade civil a nível local; nos debates sobre

122 Idem, pp.440. 123 COSTA, Sérgio. (2003), op. cit. 124 AVRITZER, Leonardo & COSTA, Sérgio. (2004), “Teoria crítica, democracia e esfera pública: concepções e usos na América Latina”. Dados, vol.47, nº. 4, pp.703-728.

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políticas públicas, é destacado o papel da sociedade civil na melhoria dos índices de

desenvolvimento humano e redução da desigualdade social em ambiente de crescimento

econômico, através da extensão da cidadania política e social aos excluídos das áreas

urbanas, periurbanas e rurais, e de programas de redução das desigualdades econômicas

e regionais.

Num artigo sobre a sociedade civil na América Latina, Avritzer sumariza as razões do

enraizamento do conceito enquanto quadro de referências analítico na região, e do

amplo recurso ao mesmo por parte dos atores sociais latino-americanos. Em sua

opinião, o conceito acomoda a auto-defesa dos atores sociais como mostram os casos do

Brasil, Argentina e Perú; fornece um caminho alternativo para a compreensão do

itinerário do desenvolvimento do estado, e uma alternativa concreta às políticas

econômicas neo-liberais; salienta a importância da constituição recente de uma esfera de

associações independentes no México, no Brasil e no Chile. O conceito fornece, ainda,

o quadro de referências para uma resposta pública, democrática e participativa à crise

que vive o sub-continente, num ambiente de reinterpretação das práticas e do conteúdo

do liberalismo e da democracia125.

A construção de uma teoria da sociedade civil latino-americana e dos seus usos

analíticos processou-se no contexto de uma interpretação sociológica da democratização

e do cenário pós-democratização, em consonância com um debate que ocorre em todo o

mundo126. No contexto da América Latina, a sociedade civil pode ser definida como um

conjunto de movimentos sociais e de associações civis capazes de se organizarem

independentemente do Estado numa esfera para a generalização dos interesses, e

independentemente do mercado com o sentido da satisfação mínima das necessárias

vitais127.

A sociedade civil também é recorrente na análise da influência das nações hegemônicas

noutras nações, através de relações de poder coercitivas que vão da ameaça de retaliação

e embargos em diversas áreas, a incentivos econômicos e financeiros. Essa influência

tem provocado a alteração das “orientações e valores das elites nacionais, difundindo

125 AVRITZER, Leonardo. (1997), “Civil Society: The Meaning and the Employment of the Concept in Latin America”. Constellations, vol. 4, nº. 2, pp.108-113. 126 AVRITZER, Leonardo & COSTA, Sérgio. (2002), op.cit. 127 AVRITZER, Leonardo. (1997), op.cit.

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novas ideias e crenças causais, em especial sobre as funções do Estado ou sobre meios e

fins da economia128”. Interpretando o processo de reforma do estado brasileiro, Ivete

Simionatto129 afirma que, nesse contexto “a sociedade civil é compreendida como um

dos mecanismos institucionais de controle das ações governamentais, cuja interlocução

não ocorrerá mais com o Estado, mas diretamente com as instituições, estando aquele

isento de pressões sociais”. Nesta perspectiva “a sociedade civil é deslocada da esfera

estatal e atravessada pela racionalidade do mercado (...) sendo convocada, em nome da

cidadania, a realizar parcerias de toda a ordem”, citando como exemplo os projetos de

refilantropização das formas de assistência, entre os quais o Comunidade Solidária.

Trata-se de uma visão de sociedade civil na ótica do capital, como “uma esfera à parte

que não estabelece uma correlação de forças com o estado”, no âmbito da qual a noção

de participação é percebida mais com uma condição individual do que coletiva, centrada

no cidadão-cliente. Para Simionatto, a reversão desta tendência apenas será possível

através de uma “guerra de posição”- uma ocupação progressiva (ou processual) de

espaços na esfera pública -, com a “intensa participação da sociedade civil, ampliando a

sua unidade para além do terreno da institucionalidade e adentrando nas questões da

racionalidade econômica e da distribuição da riqueza”130.

2.4. A sociedade civil e o socialismo real

Os debates ou entendimentos sobre o conceito de sociedade civil em sociedades do

Leste Europeu, antes e depois da queda do muro de Berlim, são importantes dada a

proximidade do regime político instalado em Angola após a independência com o

antigo bloco socialista. Devido ao carácter relacional do conceito, parece possível

estabelecer-se uma conexão entre o tipo de regime político de uma dada sociedade e a

sociedade civil que ela pode produzir: regimes democráticos, abertos e plurais, criam

oportunidades para a expansão e fortalecimento da sociedade civil, enquanto regimes

autoritários e ditatoriais, militares ou civis, colonizam o espaço público, e asfixiam as

iniciativas de organização autônoma de interesses e solidariedades através da censura,

da repressão à reunião e livre associação, e da privação de liberdade131. Um estudo

sobre o percurso da sociedade civil na antiga República da Checoslováquia, identifica 128 COSTA, Nilson do R. (1997), Organizações Internacionais e Reforma do Estado: o Projeto Reforsus do Banco Mundial. XX ANPOCS. 129 SIMIONATTO, Ivete. (2000), Mercosul e reforma do Estado: Implicações nas políticas públicas. VII Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social, Brasília. 130 Idem. 131 DRYZEK, John S. & HOLMES, Leslie (orgs.) (2002), Post-Communist Democratization. Political Discourses across Thirteen Countries. Cambridge, Cambridge University Press.

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três metamorfoses do conceito de sociedade civil devidas à influência das tradições

teóricas no processo de apropriação do conceito como uma esfera de conduta autêntica,

como meio de democratização política, e como construção do Estado132.

A noção de sociedade civil como esfera de conduta autêntica relacionou-se com o

movimento dos dissidentes, conhecido como Carta dos Direitos 77. Numa sociedade

fragmentada por esse processo, o apelo ao espírito da sociedade civil não conseguia

unificar os códigos morais dos dois grandes grupos, os leais e os desafetos ou

dissidentes do regime, num mundo de relativa segurança individual mas sem liberdade

pública133. Optando pela via da atitude moral, individual e isolada, e descartando a

opção pela criação de uma força de mobilização ou de liderança, os dissidentes

afastaram-se tanto do povo quanto os membros do Comité Central do partido: o mundo

da vida de Havel, entendido como a esfera da experiência concreta e da

responsabilidade pessoal, não se expandiu para a vida pública, reduzindo-se o exercício

da moralidade à esfera das relações íntimas, privadas134.

A partir de Novembro de 1989, a sociedade civil passou a ser evocada como um meio

de democratização política. Refletindo a experiência do Solidariedade e inspirando-se

nas reformas na União Soviética, esta mudança visava a incorporação de um espírito

público no Estado conferido por toda a sociedade. O estabelecimento do sistema de

partidos políticos e de instituições da democracia parlamentar participativa, produziu

um novo entendimento da relação entre o Estado e a sociedade civil, assumindo esta o

duplo papel de representação da oposição popular ao regime a nível central, e de espaço

de mobilização e defesa da participação popular como suporte das mudanças

revolucionárias, a nível local.

Em 1994, uma nova metamorfose, a sociedade civil é apresentada como construção do

Estado. Estabelecidas as instituições da democracia parlamentar e da economia de

132 MARADA, Radim. (1997), “Civil Society: Adventures of the Concept before and after 1989”. Czech Sociological Review, vol. 5, nº.1, pp.3-22. 133 Uma característica dos regimes comunista, ou do socialismo real, é a politização da vida diária, tornando desnecessário que as pessoas atribuíssem significações políticas a pequenos gestos, opiniões, atitudes, gostos, círculo de amigos do outro, porque o próprio ambiente político se encarregava disso não sistematicamente nem de uma forma ideologicamente consistente, mas selectiva e instrumentalmente. Por isso, uma das estratégias mais frequentes consistia em evitar situações nas quais houvesse que manifestar publicamente lealdade para com o regime, originando um mundo da vida de relativa segurança individual mas sem liberdade pública. 134 MARADA, Radim. (1997), op.cit., p.9

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mercado, a sociedade civil foi chamada a intervir como mediadora entre as duas esferas,

e entre cada uma delas e a sociedade. Neste entendimento, o Estado, representando pelo

legislativo e executivo, devia criar o espaço institucional para construir e fortalecer a

sociedade civil, colocada na arena política mas necessitando de apoio político para o seu

desenvolvimento.

2.5. Discursos do Oriente

Apesar da diversidade de contextos nacionais, o recurso ao conceito de sociedade civil

surge tanto nos processos de mobilização de alianças e coalisões sociais durante as lutas

anti-colonial e contra os regimes ditatoriais, quanto na busca por inclusão no sistema

internacional e na economia mundial135. A ideia de sociedade civil parece crucial para a

compreender as mudanças políticas e econômicas dos últimos anos, como a crescente

participação na economia mundial e o declínio de regimes autoritários. “Sem negar as

origens da noção de sociedade civil na tradição racional da cultura política ocidental, o

conceito ressoa nos valores e formas de associação voluntária para enfrentar

necessidades básicas de sobrevivência e os benefícios mútuos relacionados,

profundamente enraizados nas comunidades asiáticas”136.

Como em outros países do sul, também no Nepal se relaciona uma democracia viável

com a emergência de uma sociedade civil ativa, cuja criação e fortalecimento podem ser

financiados no âmbito de programas de desenvolvimento. A utilização simplificada,

despolitizada e circunscrita, de conceitos como sociedade civil e outros associados na

liturgia dos doadores, como democracia, desenvolvimento, empoderamento e gênero,

“separa-os das respectivas histórias política e económica, transformando-os em

instruções normativas, transparentes e flutuantes, mas sem conteúdo cultural”, assinala

o antropólogo Saubhagya Shah137. Nas Filipinas, a compreensão do conceito mais

adequada à realidade é a que o identifica com um espaço político criado por ONG’s,

organizações comunitárias de base, grupos profissionais, e outras associações

voluntárias, aliadas a amplos movimentos de mulheres, povos indígenas, ecologistas,

etc. Contudo, devido à sua visibilidade, a comunidade das ONG’s é frequentemente 135 As referências selecionadas constituem, apenas, exemplos do uso do conceito nestes contextos, sem pretender esgotar a diversidade dos debates nesta região do mundo. 136 PORIO, Emma (2002), “Civil Society and Democratization in Asia: Prospects and Challenges in the New Millenium”, in Henk Shulte Nordholt and Irwarn Abdullah (orgs.), Indonesia: in search of transition. Yogyakarta, Pustaka Pelajar. 137 Citado em TAMANG, Seira. (2003), op. cit.

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entendida como um seu equivalente138. Um estudo recente credita à sociedade civil a

criação de um discurso público mobilizador, a redefinição do conteúdo da política, e o

reforço da institucionalização do processo democrático, estendendo as suas conclusões a

outros países da região, como China, Vietnam e Cambodja, onde a sociedade civil vem

ganhando expressão pela função dual de canal de controle do Estado e de novo

instrumento ou fonte de legitimação deste139.

Percebendo a sociedade civil na Ásia como basicamente constituída por associações

voluntárias agindo aos diversos níveis na sociedade, Serrano argumenta que “a ação

voluntária tem raízes profundas nas comunidades asiáticas, dirige-se a preocupações

comuns que não podem ser adequadamente endereçadas pelas famílias isoladamente,

nem por sistemas de apoio criados por laços de parentesco alargados, como a produção,

a troca, os diversos rituais, a segurança coletiva, etc., todas elas visando a manutenção

da coesão e do consenso no seio das comunidades. A forma mais comum de

organização é o grupo de auto-ajuda ou de troca-mútua (...)140”. Esta descrição remete à

vida associativa descrita por Tocqueville, e constitui uma boa resposta aos argumentos

que consideram o conceito inadequado aos contextos sócio-culturais asiáticos. Para

Serrano, o estudo das dinâmicas das relações entre o Estado e a sociedade implica o

reconhecimento dos contextos sociais, económicos, políticos e culturais nos âmbito dos

quais elas se concretizam, dos atores sociais nelas envolvidos, suas agendas e

estratégias. Os recortes do debate sobre sociedade civil na Ásia citados, mostram que o

recurso ao conceito surge no âmbito de análises sobre a mudança institucional no

âmbito de processos de democratização e modernização das sociedades asiáticas. A

mobilização dos valores e tradições asiáticos para rejeitar instituições e práticas

democráticas, manifesta a resistência cultural aos valores e práticas ocidentais,

veiculados pelos meios de comunicação global e pressionados pelos mecanismos de

ajuda ou assistência ao desenvolvimento e de resolução de conflitos141.

138 SILIMAN, G. Sidney & NOBLE, Lela G. (orgs.) (1998), Organizing Democracy: NGO’s, Civil Society and the Philippine State. Quezon City, Ateneo de Manila University Press. 139 PORIO, Emma. (2002), op.cit. 140 SERRANO, Isagani R. (1994), “Civil Society in Asia-Pacific Region”, in World Assembly Edition (org.), Citizens Strengthening Civil Society. MacNaughton and Gunn, Inc., pp.271-317. 141 ALAGAPPA, Muthiah. (1995), “Democracy’s Future: The Asian Spectrum”. Journal of Democracy, vol. 6, n°.1, pp. 29-43.

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2.6. África Subsahariana

Reflectindo algumas das tradições do pensamento ocidental, a sociedade civil é vista

por acadêmicos africanistas142 numa perspectiva normativa, como campo de produção

de normas, soberano em relação ao Estado, mas que dialoga com ele, diferenciando-se

da sociedade em geral pela sua “civilidade”. Para Chazan143 existe uma diferença entre

os grupos da sociedade civil produtores de normas e os que, pela sua própria natureza,

buscam a concretização dos seus interesses ou objectivos. Bratton insiste na natureza

plural da sociedade civil, argumentando que esta não deve ser vista em oposição ao

Estado na medida em que é “uma esfera social necessária para a legitimação do poder

estatal” 144.

O argumento da inadequação, ao acrescentar à ideia de sociedade civil enquanto

emanação única de uma conjuntura específica social e cultural do Ocidente, a posse de

certos valores (privacidade, individualismo e mercado) existentes no Ocidente e

supostamente ausentes em outros contextos, delimita as condições da sua possibilidade

ao ocidente145. Esta associação surge, de forma explícita, na seguinte afirmação: “(...) sociedade civil, como os direitos humanos, é o que regimes autoritários não têm por

definição. É o que os gregos, o Iluminismo e nós temos hoje; é o que governos despóticos, no

passado ou no presente (...) não têm”146.

Esta é uma leitura na qual, “em algum período (ou por algum tempo), o conceito de

sociedade civil parece ter sido usado para denegrir o outro”147, um divisor de águas

entre culturas superiores e culturas inferiores.

Sob a influência deste paradigma ocidental, a ideia de encaixe de sociedade civil em

África tem sido identificada como um paradoxo devido à aparente ausência de

condições susceptíveis de gerar e nutrir valores comumente relacionados com o

conceito, como liberdade, democracia, respeito, reconhecimento, tolerância, cidadania,

solidariedade, informação e opinião (e a coragem para a expressar, principalmente se

142 AZARYA, Victor. (1994), “Civil Society and Disengagement in Africa”, in J.W.Harbeson, D. Rothchild and N. Chazan (orgs), op. cit. 143 CHAZAN, Naomi (1994), “The Interactions Between State and Civil Society in Africa”, in J.W.Harbeson, D. Rothchild and N. Chazan (orgs), op. cit. 144 BRATTON, Michael. (1989), “Beyond the State: civil society and associational life in Africa”. World Politics, vol. 41, nº. 3, pp.407-430. 145 OBADARE, Ebenezer. (2002), op. cit. 146 GOODY, Jack (2001), “Civil Society in an extra-European Perspective”, in KAVIRAJ, Sudipta & KHILNANI, Sunil. (orgs). Civil Societies. History and Possibilities. Cambridge, Cambridge University Press. 147 KAVIRAJ, Sudipta. (2001), “In Search of Civil Society”, in Sudipta KAVIRAJ & Sunil KHILNANI (orgs.), op. cit.

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dissidente), etc. Esta leitura é contrariada entre outros, pelos Comaroff, ao afirmarem

que “depois de quase dois séculos como objecto de uma missão civilizadora concertada

pelos europeus, a África é hoje palco de lutas, diversas e cheias de determinação, pela

democracia popular e a comunidade moral”148.

Estudos sobre a validade, utilidade e aplicação do conceito em contextos africanos

revelam posições diversas, do universalismo desejável dos discursos de agências multi e

bilaterais e suas iniciativas visando replicar nos contextos africanos as formas e as

atribuições da sociedade civil dominantes no Ocidente149, à afirmação da inadequação

e/ou inutilidade dessa transposição, por via da especificidade das condições da sua

origem, que remete ao desenvolvimento do capitalismo industrial e ao surgimento do

estado-nação no ambiente político liberal da Europa dos séculos XVII e XVIII150.

Mas entre os autores africanos também se encontram construções discursivas

divergentes. Por exemplo, Peter Ekeh expressa as suas dúvidas sobre a utilidade de

construções ocidentais, como sociedade civil, para explicar os processos sociais e

políticos em curso na África e as realidades africanas, afirmando que uma das

consequências desta utilização acrítica é desvalorização das particularidades históricas e

culturais para ele fundamentais, entre as quais a preponderância dos laços de parentesco

e de etnicidade, e as formas de associação não-voluntária que eles determinam. Segundo

Ekeh “a ideologia das relações de parentesco impõe restrições nos valores morais dos

indivíduos (...) o universalismo da sociedade civil confere uma empatia moral comum,

ao contrário das relações de parentesco que são restritivas no seu sentido de

liberdade”151.

Para Obadare152 existe uma distinção crucial entre sociedade civil como uma ideia e

sociedade civil como uma realidade existente e funcional, que é omitida em muitos

trabalhos sobre o tema no continente, e que deveria constituir-se no centro do debate

148 COMAROFF, John L. & COMAROFF, Jean. (1999), op. cit. 149 HARBESON, J.W. (1994), op. cit. 150 SOGGE, David. (1997), “The Civil Sector”, in David Sogge (org.), Mozambique: Perspectives on Aid and the Civic Sector. GOM, Oestgeest. FERGUSON, James. (1998), Transnational Topographies of Power: Beyond ‘the state’ and ‘civil society’ in the Study of African Politics. Irvine, University of California, Department of Anthropology. 151 EKEH, Peter. (1998), Civil Society and the Construction of Freedom in African History. Keynote address to Wilberforce Conference on Civil Society in Africa. Wilberforce, Central State University, Ohio. 152 OBADARE, Ebenezer. (2002), op. cit.

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sobre as possibilidades e as limitações do conceito em África. Os argumentos contra a

sua utilidade para explicar as dinâmicas sociais em curso, comportam duas ideias

centrais ambas de rejeição: a sua presumível incompatibilidade com elementos

constitutivos (etnicidade, parentesco, etc.) das formas organizativas sócio-culturais

africanas, e o fato de ser uma construção estrangeira, estranha aos contextos africanos.

Os argumentos a favor do uso do conceito centram-se numa interpretação de sociedade

civil que a localiza no âmbito dos processos associados à sua mais recente reincarnação,

a luta pela liberalização política e pela democratização do espaço público, buscando

identificar as instituições de proteção dos interesses coletivos presentes nas sociedades

africanas, mesmo no período pré-colonial. Na opinião de Bratton “embora muitas

culturas pré-coloniais em África não tenham instituído estados, certamente todas elas

tiveram sociedades civis...” 153.

Muitas das formas autóctones da sociedade civil em África derivam dos laços de

parentesco e de etnicidade, mas têm criado subjetividades coletivas capazes de se

organizarem para protestar contra o descaso do poder estatal face aos seus interesses,

necessidades e práticas. Os problemas que resultam da transformação da solidariedade

étnica em chauvinismo étnico costumam servir de argumento contra a inclusão deste

tipo de relações na sociedade civil154. Embora a etnicidade seja uma categoria cultural

válida em África, e fator de tensões na sociedade política, na sociedade civil e no Estado

e entre eles, “para a maioria dos estados africanos e seus mais altos representantes, a

diversidade nacional é entendida como uma ameaça à unidade nacional, desprezando as

solidariedades étnicas e familiares. Alguns processos de revisão constitucional em

África têm demonstrado que esta categoria é considerada indesejável pelos estados

africanos, herdeiros das formas coloniais de estado, os quais foram constituídos através

de processos de conquista e pacificação (sangrenta, como a história o testemunha),

desprezando o princípio da constituição do estado, ou seja, a integração de comunidades

autónomas e distintas numa unidade política central”. Por outras palavras, os estados

coloniais foram constituídos contra os africanos; quando da independência, os estados

pós-coloniais limitaram-se a “uma recondução das funções essenciais da administração

153 BRATTON, Michael. (1989), op. cit. 154 MURUNGA, Godwin R. (2000), Civil Society and the Democratic Experience in Kenya: a Review of Constitution-Making from the Middle: Civil Society and Transition Politics in Kenya, 1992-1997, by Willy Mutunga. Nairobi, Sareat & Mwengo.

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colonial que herdaram (...) tentou-se, apenas, imprimir uma dimensão nova, a luta pela

construção nacional, paradoxalmente apelidada de reconstrução nacional155”.

Entre a aceitação e a rejeição da utilidade do uso do conceito em África, surgem

algumas alternativas, buscando estabelecer um fio condutor entre “as tradições locais e

a ideia de sociedade civil predominante e importada do ocidente”156. Incluindo

instituições e processos locais, e as reconfigurações das relações entre Estado e

sociedade com elas relacionadas, estas abordagens defendem um “alargamento do

conceito de sociedade civil para incluir filiação involuntária e relações de parentesco,

porque os arranjos socioculturais africanos fornecem a sua própria lógica de prestação

de contas, as suas próprias esferas públicas, as suas próprias formas de organização e

associação”157.

Entre essas alternativas, uma propõe a “redefinição de sociedade civil como um espaço

onde grupos e indivíduos possam interagir e organizar a vida social”, o que implica “a

busca dos elementos distintivos das esferas públicas nos vários contextos culturais (...) e

das formas pelas quais a ideia pode ser usada, entre outras coisas, na causa pela justiça

social”158. Pode argumentar-se que esta solução não propicia as bases para uma

aceitação geral porque está imbuída de relativismo cultural, e que a fragmentação do

sentido do conceito em diversas enunciações contextuais lhe retira relevância. O contra

argumento é que “a relevância do conceito de sociedade civil em África é auto-evidente

dispensando demonstração, porque esteve sempre presente na governação e na

cidadania africanas, desde que serviu como princípio organizacional da administração

colonial”159, ainda que no complexo e nada civil encontro entre europeus e africanos, no

quadro do colonialismo, o conceito tenha servido para “institucionalizar diferenças entre

cidadãos e sujeitos etnicizados, colonialistas civilizados governados pela constituição e

tribos nativas governadas pela lei costumeira [tradicional]”160.

155 LOPES, Carlos. (1997), op. cit. 156 LEWIS, David. (2002), op. cit.

157 KALSTROM, M. (1999), “Civil Society and its Pressuppositions: Lessons from Uganda”, in J.L. Comaroff & Jean Comaroff (orgs.), op. cit, pp.104-123. 158 OBADARE, Ebenezer. (2002), op. cit. 159 LEWIS, David. (2002), op. cit. 160 MAMDANI, Mahmood. (1996), op. cit.

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A noção de sociedade civil está contida nos discursos contra a escravidão, nos

movimentos nacionalistas de resistência e pró-independência, nas associações

voluntárias e no ativismo cívico que pressionou o Estado às reformas nos anos 80 e 90,

nos diversos contextos do continente. Para além da utilidade analítica porque “a sua re-

emergência se relaciona com várias mudanças estruturais e transformações do Estado”,

também o é do ponto de vista da ação, por inspirar e animar discussões e ações, e ter “o

efeito de mitigar diferenças de etnicidade, parentesco ou linguagem, potencialmente

indutoras de divisão, unindo os grupos em torno de questões que cortam

horizontalmente tais clivagens. Devido ao seu carácter ambíguo simultaneamente

unitário e divisivo, prescriptivo e aspiracional, chama a atenção para estruturas e

processos de mudança”, que caracterizam a atualidade do continente161.

A qualidade inspiracional da sociedade civil conduziu a luta pela auto-determinação em

sociedades dominadas por regimes totalitários, as europeias do então império soviético,

e as africanas alinhadas com ele, e as asiáticas e latino-americanas sob regimes

ditatoriais e militares. Apesar da concordância sobre a capacidade mobilizadora do

conceito-movimento162, existem divergências entre os que lhe atribuem a condição

normativa do que “deveria ser o relacionamento entre o indivíduo, a sociedade e o

estado no âmbito de uma estrutura de regulação, aceite por todos”163, e os que defendem

uma concepção flexível e dinâmica, capaz de captar as manifestações sócio-culturais

locais164.

2.7. A sociedade civil global

As referências à sociedade civil global remetem aos anos 90 do século XX, quando as

atividades de ONG’s internacionais, redes de advocacia transnacionais, movimentos

sociais globais, campanhas de agências humanitárias, etc., foram identificadas como

uma categoria no âmbito das novas relações globais, de conexões sociais atemporais,

tornadas possíveis pelas condições globais de transporte, informação e comunicação,

para as quais a localização territorial, a distância ou as fronteiras territoriais não

161 LEWIS, David (2002), op.cit. 162 KOSELLECK, Reinhart (2002), op. cit. 163 HOWELL, Jude and PEARCE, Jenny. (2001), Civil Society and Development: A Critical Exploration. London, Lynne Rienner. 164 LEWIS, David. (2002), op.cit. OBADARE, Ebenezer, (2002), op.cit. NKWACHUKWU, Orji (2003), Conventional Notion of Civil Society, International Civil Society Organizations and the Development of Civil Society in Africa. Department of Political Science, Ebonyi State University, Abakaliki-Nigeria. http://www.icsf-2003.mn/abstracts/BS1.1

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constituem obstáculos165. A sociedade global existe no sentido em que as conexões

globais constituem uma rede social à qual se referem indivíduos de todas as partes do

mundo. Estabelecendo a distinção entre sociedade e sociedade global, Shaw166

considera esta última necessariamente diferente de todas as formas anteriores de

sociedade, porque a referência a contextos sociais mais amplos deixou de ser uma

demarcação externa para se tornar constitutiva da estrutura da vida social, e também

porque a inclusão ou o recurso aos meios de comunicação globais, como veículos de

mensagens e de debates, produziu uma mudança radical.

As tensões na identificação da sociedade civil global com as novas formas de ação

social principalmente ao fato de a condição de globalidade e o processo de globalização

serem entendidos de maneiras não uniformes e com intensidades diferentes pelas

camadas sociais - as elites estão mais informadas, envolvidas ou expostas, do que outros

grupos sociais, pelos atores sociais - os homens têm mais oportunidades de contacto

com esta nova realidade do que as mulheres, e pelas regiões do planeta - os países mais

desenvolvidos têm maior protagonismo no processo de globalização do que os do Leste

Europeu, da América Latina, da Ásia e da África.

O visível crescimento da sociedade civil global resulta da ação consciente de

indivíduos, grupos e organizações, que decidiram fazer parte da governação dos seus

destinos, tanto no plano nacional buscando formas de interação com os respectivos

Estados, quanto no plano global denunciando injustiças, debatendo problemas e as

soluções mais apropriadas, ou fazendo lobbying junto das instâncias internacionais. Em

resposta, agências como as de Bretton Woods, criaram estruturas internas de diálogo

com representantes da sociedade civil. Alguns poderes nacionais instituídos também

passaram a incluir representantes da sociedade civil nas suas delegações oficiais167.

165 SCHOLTE, Jan A. (1999), op. cit. 166 SHAW, Martin.(1999), “Global Voices: civil society and media in global crises”, in Timothy Dunne and Nicholas Wheeler (orgs.), Human Rights in Global Politics. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 214-232. 167 Opondo-se completamente a esta análise, Neera Chandhoke considera que “os atores da sociedade civil global

atuam em estruturas de poder herdadas, que eles podem tentar modificar ou alterar, mas raramente transformar. Só é

possível entender isso colocando a sociedade civil global no seu contexto constitutivo: um sistema de relações

internacionais centrado nos estados, dominado por uma pequena parte da humanidade no âmbito das estruturas do

capital internacional, que podem permitir discordância, mas que não permitem a transformação das suas próprias

agendas. Segundo Chandokhe, os atores da sociedade civil global fazem a diferença, como os atores das sociedades

civis nacionais o fizeram e fazem, mas como a maior parte dos atores humanos, eles funcionam no campo do

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As atividades da sociedade civil global têm efeitos no processo de democratização que

vêm ganhando dimensões globais, não só porque deram visibilidade ao conjunto de

direitos e deveres dos indivíduos enquanto membros de uma comunidade sócio-política,

a cidadania nacional, mas também porque um número crescente de ativistas cívicos se

entendem como cidadãos do mundo, portadores de preocupações não-territorializadas.

Aproximando os indivíduos das agências transnacionais de regulação, criaram-se

oportunidades para a manifestação e afirmação da diversidade sócio-cultural do mundo

de hoje, contra as concepções homogeneizantes que, sob diversos léxicos, reclamam o

fortalecimento da sociedade civil. Entre celebrações, críticas e contestações a sociedade

civil global vem-se afirmando como uma nova categoria na análise das relações sociais

no mundo de hoje, através da mobilização das mais diversas formas de organização, em

praticamente todo o mundo, pelas mais diversas motivações e em diversos contextos168.

III. A VALIDAÇÃO DO CONCEITO

A análise anterior mostrou diversas abordagens do debate contemporâneo sobre o

conceito, herdadas umas das distintas tradições de pensamento, defendendo outras as

suas particularidades contextuais. Refletem, sobretudo, as divergências no recurso e uso

do conceito no ocidente no âmbito do quadro de referências da democracia neoliberal.

Quando, com base neste recorte analítico, as análises se deslocam de espaços sócio-

políticos liberais, “desconseguem” identificar as associações voluntárias de Tocqueville,

as corporações profissionais de Hegel, a classe operária de Marx, as ordens jurídicas

estabelecidas e os sistemas de direitos instituídos de Cohen e Arato, e os espaços

públicos de produção de consensos através da ação comunicativa de Habermas.

A passagem do poder do soberano para o Estado, a separação entre Estado e sociedade

civil, a mudança no entendimento da economia para além de uma ordem política

específica introduzindo uma nova interface na análise sobre a sociedade civil, a noção

de ativismo e de luta por direitos, e do papel do conflito social como indutor e

orientador de mudanças institucionais, para além de ampliarem o quadro teórico da

possível, e não no campo do impossível. CHANDHOKE, Neera. (2002), “The Limits of Global Civil Society”, in H.

Anheier, M. Glasius and M. Kaldor (orgs.), Global Civil Society. The Centre of Global Governance. London School

of Economics. 168 DESAI, Meghnad & SAID, Yahia. (2001), “The New Anti-Capitalist Movement: Money and Global Civil Society”, in H. Anheier, M. Glasius and M. Kaldor (orgs.) Global Civil Society. Oxford, Oxford University Press.

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discussão sobre as relações sociais e de poder prevalecente até ao século XVIII,

provocaram uma mudança significativa no entendimento e na práxis da relação entre

cidadania e exercício do poder: a transferência do poder político da sociedade civil para

o Estado criava uma sociedade de iguais do ponto de vista político, sendo as

desigualdades entre eles de natureza econômica e não mais política.

A relação entre sociedade civil e democracia aparece com focos distintos nas

construções teóricas de Hegel, de Marx e de Tocqueville, sendo as associações

voluntárias deste bastante diferentes dos pactos de Hobbes, das corporações de Hegel e

da classe burguesa de Marx. Enquanto nestes últimos, a busca pelo interesse material

distingue a sociedade civil, Tocqueville procura manter esse materialismo nos limites

das associações voluntárias. Estas distinções na concepção de sociedade civil servem de

esteio às recuperações do conceito em finais do século XX, que mantêm as

ambiguidades do ponto de vista da sua constituição e dos seus atributos. As leituras de

Tocqueville e de Gramsci são importantes para a reflexão sobre a sociedade civil em

África, porque fornecem chaves de análise e de compreensão dos processos internos e

externos em curso no continente, nos quais distintos modos de organizar solidariedades

e responsabilidades coletivas procuram induzir mudanças no status quo. O pensamento

de Gramsci forneceu suporte teórico às análises sobre as ações de resistência aos

regimes totalitários, na Europa Oriental, na América Latina e na África169, não na

perspectiva da reabsorção da sociedade política e conseqüente dissolução do poder

político, mas antes no seu entendimento enquanto espaço de obtenção de consensos

alternativos à hegemonia do Estado170.

As comunalidades identificadas, relacionadas com os princípios constituintes do

conceito, nomeadamente a autonomia dual, a ação coletiva, a não usurpação do poder, e

a civilidade, levam a um entendimento de sociedade civil como um conjunto ou sistema

de grupos intermediários, auto-organizados, relativamente independentes do Estado, da

empresas e da família, com capacidade de tomar decisões e mobilizar a ação coletiva na

defesa ou na promoção dos seus interesses, sem pretensões de exercer o poder político,

e que não se regem por regras pré-estabelecidas de natureza legal171.

169 LEWIS, David. (2002), op.cit.

170 BOBBIO, Norberto. (1986), op. cit. 171 WHITEHEAD, Lawrence. (1997), op. cit.

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A partir da distinção entre sociedade civil e a sociedade política mais ampla, os diversos

entendimentos do conceito coincidem em sinalizar uma desigual distribuição das

diversas formas de organização associativa, voluntária da sociedade civil nas

sociedades, dos indivíduos e grupos sociais nela integrados, e dos espaços territoriais

correlatos, com uma maior concentração em algumas regiões do globo e nas áreas

urbanas.

O conceito reemergiu na atualidade com maior incidência em distintas condições sócio-

culturais, económicas e políticas, designadamente:

na América Latina, na condenação e denúncia públicas às violações dos direitos

humanos, contra a repressão das organizações sociais e políticas e como

oposição às políticas neoliberais dos regimes autoritários, e mais recentemente

nos processo de reforma do Estado,

na Ásia oriental e do Sul, nos processos de luta contra regimes ditatoriais e de

inclusão na economia mundial,

na África Subsahariana, no início das transições democráticas, para enfrentar o

estatismo e o sub-desenvolvimento,

nos países da Europa do Leste, para o estabelecimento de formas de vida social

independentes do estado autoritário.

Esta síntese chama a atenção para três dimensões importantes de discussão:

1°. Não existe uma definição para o conceito, sendo por isso necessário recorrer,

sempre, a uma análise social e institucional dos contextos aos quais a ideia se refere ou

que, através dela, se pretende compreender. A análise institucional dos contextos, dos

atores envolvidos e suas lutas por poder e influência para a imposição das suas agendas,

das estratégias adoptadas para o alcance dos objetivos definidos, das alianças e

coalisões criadas, etc., fornece elementos essenciais para o entendimento da sociedade

civil em determinado contexto sócio-político, permitindo responder a três questões

fundamentais: quem toma as decisões e em que áreas da escolha social, quem se

beneficia das decisões, quem suporta o custo das decisões. Essa análise deve permitir,

ainda, conhecer as formas de vida associativa incluídas (e as excluídas), os valores,

solidariedades e interesses que elas criam, articulam e representam.

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2°. O conceito mobiliza diversos tipos de discursos, sendo os mais comuns os dos

direitos humanos, do desenvolvimento, da mudança ou de reformas e também em

defesa ou manutenção do status quo, de abertura ao diálogo e ao debate dos interesses e

propostas dos diversos, e novos, atores sociais, de transparência e boa-governação,

exigindo o combate à corrupção. O poder ideológico ou utópico desses discursos é o

elemento fundamental para a compreensão das relações sociais e de poder num dado

contexto, logo das condições de possibilidade das mudanças preconizadas. Em todos

estes quadrantes, contudo, um elemento reivindicativo é comum: a democratização das

relações sociais e de poder, numa perspectiva que vai além da construção de instituições

democráticas, como eleições gerais, parlamento, sistemas de direitos, etc., promovendo

também a incorporação e disseminação de valores democráticos nas práticas cotidianas.

A menção à expansão do espaço público é uma necessidade presente nos diversos

contextos do hemisfério sul e da Europa do Leste, demonstrando que a questão da

mediação das subjetividades face ao aumento crescente de complexidade, diferenciação

e fragmentação social, assume uma dimensão emancipatória de respeito e

reconhecimento pela pluralidade que caracteriza as sociedades actuais. Por outro lado,

mais do que à noção de conjunto ou de união, as abordagens apresentadas remetem para

uma ideia de espaço, no qual, as pessoas, as organizações, as instituições, discutem

ideias e buscam as articulações capazes de produzir avanços, não apenas com base em

consensos alcançados, mas envolvendo os dissensos reconhecidos como válidos,

embora restritos a subjetividades ou áreas geográficas172.

A interpretação das abordagens apresentadas sugere que, para além da capacidade

mobilizadora da ação e acumuladora de sentidos que o conceito demonstra nas

apropriações que dele foram feitas nos diversos contextos, a sua eficácia enquanto

motor da mudança das realidades ao qual é aplicado precisa ser complementada pela

noção de espaço de interação e de comunicação, numa perspectiva inclusiva de todas as

categorias de atores sociais existentes, ou dos que surjam no processo de

democratização nesse contexto. A condução de um processo de mudança dessa natureza

pressupõe uma perspectiva democrática e aberta à pluralidade para construção de um

amplo consenso, que exige uma instância mediadora, independente tanto do poder

172 EDER, Klaus. (2005), “Making Sense of the Public Sphere”, in Gerard Delanty (org.), The Handbook of Contemporary European Theory. OXON, Routledge.

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estatal quanto do mercado, capaz de conduzir esse processo comunicativo de formação

da opinião e da vontade coletiva173.

3º. Importa incluir na análise os principais atores globais presentes num dado contexto,

a identificação das suas áreas de influência e os seus discursos, devido à grande

dependência da maior parte das sociedades do hemisfério sul de mecanismos de

financiamento externo, e aos impactos do processo de globalização no Estado nacional e

a nas construções locais de sociedade civil, não apenas do ponto de vista das

oportunidades que gera, mas também das tensões que pode provocar174. Contudo, por

carecer da dimensão cultural defensiva, por não conseguir ancorar-se num mundo da

vida específico que lhe confira o carácter democratizante da sociedade civil, a sociedade

civil global acaba por reproduzir as insuficiências das estruturas de representação e de

participação que as sociedades civis nacionais pretendem corrigir175.

IV. A CONSTRUÇÃO DO PÚBLICO EM ANGOLA 1. O Debate sobre Sociedade Civil

1. Após as reformas da passagem da I à II República, o conceito de sociedade civil

ganhou visibilidade em Angola, associado à ideia de autonomia em relação ao Estado,

ao governo e ao sistema político-partidário, e envolvendo grupos e organizações

identificadas com as igrejas, ONG’s, sindicatos, associações culturais, cívicas e

profissionais. A sua aparição no cenário angolano ocorreu em simultâneo com o

processo de institucionalização do sistema multipartidário, da liberdade de imprensa, de

associação e de culto religioso, do direito à greve, entre outras disposições no âmbito do

novo quadro legal (Capítulo 1, pp. 13-16), e promoveu o surgimento de novos actores

sociais. A persistência da guerra civil até 2002 e da crise por ela gerada, estimulou o seu

crescimento em torno de três eixos, a luta pela Paz, pelas liberdades fundamentais, e

pelo desenvolvimento.

O surgimento de associações cívicas, culturais e recreativas, e de ONG’s, ampliou-se

após 2002, num esforço que pode ser entendido como a resposta dinâmica da sociedade

173 AVRITZER, Leonardo & COSTA, Sérgio. (2004), op. cit. 174 EDER, Klaus. (2005), op.cit. 175 COSTA, Sérgio. (2003), op. cit.

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civil em busca de uma identidade e de uma legitimidade capaz de dar corpo a uma

cidadania ativa, num ambiente democrático e participativo176. A participação destas

organizações na vida pública é, ainda, fortemente condicionada pela inexistência de

mecanismos sistêmicos de auscultação, concertação, integração e monitorização nas

diferentes etapas desse processo, e pela debilidade das próprias organizações177.

A precariedade dos espaços públicos em Angola, para além de reflectir ambiguidades

políticas de um processo de democratização descontínuo e marcado por inúmeras

violações dos direitos fundamentais, entre os quais a guerra é o exemplo mais acabado,

assinala as dificuldades encontradas em vencer a distância social provocada pela

desigualdade e suas consequências na sociedade: injustiça e desconfiança. A grande

desigualdade social e os elevados níveis de exclusão social funcionam como um divisor

de águas entre a pequena parcela da sociedade mais favorecida – os cidadãos -, e a

grande maioria do público primordial dos sujeitos, uma distância social crescente

porque os primeiros procuram defender os seus interesses e os segundos simplesmente

sobreviver. Nestas circunstâncias torna-se difícil gerar uma solidariedade social ampla,

abrangendo todas as partes em que se encontra fragmentada a sociedade, do ponto de

vista das condições e das oportunidades a que têm acesso178.

A articulação de interesses tão opostos quanto os presentes na sociedade angolana

requer uma estratégia de aproximação que permita aumentar a confiança entre os

actores por via do diálogo, mas que enfrenta duas importantes dificuldades: o silêncio e

a diferença. A primeira resulta da destruição parcial durante o período colonial, e do não

reconhecimento após a independência, das formas de conhecimento próprias do povo,

176 PESTANA, Nelson. (2004), “As Dinâmicas da Sociedade Civil em Angola”. Lisboa, Centro de Estudos Africanos, ISCTE. Occasional Paper.

177 A conjugação dos limites e constrangimentos da cultura política dominante em Angola, com a falta de recursos financeiros, aumenta a sua dependência do financiamento externo. A escassez de recursos financeiros e materiais para

a realização dos objetivos que levaram à sua criação, e as dificuldades em agenciar tais recursos entre os seus membros e/ou na sociedade, na ausência de políticas públicas de apoio à sua constituição e funcionamento sob a

forma de subsídios, incentivos, ou outro tipo de dotações orçamentais, conduzem a uma procura por financiamentos externos junto de agências do sistema das Nações Unidas, das representações das instituições de Bretton Woods, ou das agências bilaterais de cooperação. Em muitos casos, esta dependência financeira acaba se transformando numa

dependência das agendas, ou seja, as organizações abandonam, temporária ou definitivamente, os objetos sociais que levaram à sua criação. Por outro lado, esta situação acaba por gerar desequilíbrios entre as organizações, não só

resultantes das diferenças existentes entre elas do ponto de vista da capacidade de agenciamento de recursos, mas também porque determinados temas ou áreas de intervenção, menos valorizados pelos doadores internacionais, não

conseguem mobilizar os recursos necessários (muitas vezes bem reduzidos e com elevadas taxas de retorno em termos dos seus potenciais efeitos na sociedade).

178 REIS, Elisa. (1995), “Desigualdade e Solidariedade: Uma releitura do ‘Familismo Amoral’ de Banfield”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº. 29, pp.35-48.

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criando “silêncios que tornam impronunciáveis as necessidades e aspirações dos povos

e grupos sociais cujas formas de saber foram objecto de destruição”179, funcionando

como bloqueio de uma potencialidade que não se consegue desenvolver. A segunda

resulta da incompreensão entre as diversas culturas sobre necessidades, práticas e

aspirações de cada uma delas, porque a solidariedade cria-se no conhecimento e

aceitação das diferenças: a inexistência de diálogo, por dificuldade ou ausência de

comunicabilidade entre os diversos grupos sociais, gera indiferença de uns em relação

aos outros, e coloca a necessidade de recorrer a formas de tradução das suas

necessidades, práticas e aspirações, para que as mesmas se tornem compreensíveis,

criando as condições para o estabelecimento do diálogo entre eles.

Outro dos desafios à articulação entre interesses dos grupos sociais dominantes e os dos

grupos dominados e destituídos é que os primeiros parecem ter-se desinteressado do

consenso social no âmbito do qual os segundos acreditavam ser governados em nome

do interesse geral, consentindo nessa governação. Após a independência, os termos de

incorporação dos pequenos produtores rurais no estado-nação e na economia nacional,

constituíram um retrocesso para eles e evidenciaram o não-reconhecimento pela sua

contribuição na luta contra o colonialismo. As políticas agrícolas adotadas com

objetivos tidos como públicos, mas que refletiam escolhas feitas em resposta a

interesses organizados, foram usadas para obter apoio político, permitindo aos

governantes desorganizarem a oposição, neutralizando politicamente uma parte

significativa da população. Sendo Angola um país onde a maioria da população ainda

depende da agricultura para sobreviver, a persistência de políticas que resultam em

benefícios para outros grupos sociais que não os camponeses, apenas se explica pela

ausência de competição partidária180. A confiança na sua hegemonia, por falta de

179 SANTOS, Boaventura S. (1999), “Porque é tão difícil construir uma teoria crítica?”. Travessias, nº. 1, pp.21-38. 180 No período pré-independência, esses grupos foram aliados dos camponeses, os interesses que os separavam estavam, então, submetidos ao interesse maior e comum de lutar contra a dominação colonial. Com o triunfo da coalizão nacionalista, o conflito de interesses entre camponeses e os demais grupos sociais não ficou mais submetido a interesses comuns. A formação de uma coalizão do desenvolvimento entre trabalhadores urbanos, industriais, o Estado e os seus aliados no meio rural (os grandes produtores ou os beneficiários dos projetos governamentais), colocou em oposição aos interesses dos pequenos produtores agrícolas, os interesses dos trabalhadores urbanos procurando alimentos mais baratos, dos industriais pretendendo matérias primas e força de trabalho a baixos custos, dos burocratas querendo salários elevados, vantagens sociais, e alimentos a baixos custos, e dos políticos, dirigindo governos que necessitam de impostos e que são, simultaneamente, os maiores empregadores e industriais. Os pequenos produtores, defendiam uma avaliação justa dos custos de produção e o beneficiamento primário dos seus produtos, a criação de infraestruturas de transporte e comunicações, melhores condições de vida e inclusão na sociedade. O afastamento dos ex-aliados e das lideranças dos movimentos de libertação provocou o isolamento, a desmobilização e o abandono do recurso à ação política para fins econômicos: evitando os mercados publicamente monitorados, trabalhando pequenas parcelas familiares, e procurando refúgio na mais privada das instituições, a

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alternativas, leva esses grupos a menosprezar a existência de ideias ou projectos que

lhes sejam adversos, considerando-os irrelevantes ou votados ao fracasso, e baseiam

esta crença no silêncio e/ou na resignação dos grupos dominados.

A coincidência da guerra civil com as duas primeiras décadas pós-independência inibiu

o desenvolvimento de organizações autônomas actuando no espaço público, na medida

em que toda a tentativa de autonomização da sociedade civil “é [também] esmagada

pela guerra porque toda a deslegitimação do poder do Estado vem reforçar um outro

poder, armado e de natureza totalitária, toda a rejeição deste outro poder faz funcionar a

máquina do Estado, contribuindo, para bem ou para mal, para o seu reforço: esta

dualidade de poderes opressores estimulando a sua (deles) radicalização e mantendo-os

para lá deles, sendo o seu resultado comum o sufocar das forças e vias independentes e

pacíficas”181.

Benjamin Castello afirma que “nos primeiros quinze anos pós-independência, a rigidez

do sistema político vigente permitiu somente a emergência de organizações sociais

subordinadas ao regime ou fiéis ao seu serviço. O que significou uma obediência

absoluta ao partido no poder. Durante este período a sociedade civil angolana não

exercia nenhum protagonismo digno de realce. Salvo na diáspora”182. Nelson Pestana,

contudo, considera que “as análises sobre a sociedade civil angolana no período do

partido único são geralmente redutoras, negando uma qualquer existência de uma

autonomia latente, ou exclusivamente legitimadoras, fazendo passar as organizações de

massas como pseudo-representações dessa sociedade civil”. Por isso, considera

necessário “traçar a genealogia analítica dessa realidade que ainda não ousava dizer seu

nome e que por vezes era designada como o conjunto de cidadãos sem partido”, porque

“(...) a sociedade civil angolana tem uma história antiga e uma recente”183.

família, os camponeses e pequenos produtores optaram por soluções privadas para enfrentarem o problema da sobrevivência econômica. BATES, Robert. (1981), op. cit. BATES, Robert. (1983), op. cit. 181 MESSIANT, Christine. (1999), “A Propôs des transitions démocratiques. Notes comparatives et préalables à l’analyse du cas angolais”. Africana Studia, 2, CEA, Universidade do Porto, pp. 61-95. 182 CASTELLO, Benjamin A. (2000), A Força e o Papel da Sociedade Civil Angolana em Busca da Paz em Angola. Conferência de Maputo sobre Angola, Junho. 183 PESTANA, Nelson. (2004), op. cit. Segundo Pestana, existe uma história antiga, porque a independência não é o

grau zero da política em Angola, nem mesmo o nacionalismo moderno dos anos 50/60 que conduziu a luta armada de

libertação nacional. É a história do movimento associativo angolano, com origens em meados do século XIX, e das

associações culturais e movimentos cooperativos e mutualistas angolanos que davam corpo à afirmação do direito de

cidadania dos africanos, e se prolongou durante o século XX, mesmo após o início da luta armada de libertação

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2. Década e meia após a mudança do quadro jurídico-legal e institucional do país, a

ideia de sociedade civil que trespassa o discurso oficial parece incluir apenas as

organizações formais e, acima de tudo, as que num passado recente se mobilizaram no

âmbito da assistência de emergência às populações atingidas pela guerra, e as

provedoras de serviços sociais no âmbito de projetos de apoio a comunidades carentes,

principalmente nas áreas rurais e periurbanas. Esta posição reflecte a ausência de

incentivos por parte do Estado angolano à constituição e fortalecimento de uma

sociedade civil capaz de influenciar a agenda política e social, e de interpelar as

instituições estatais sobre questões de interesse público, apesar da mudança no quadro

jurídico e da implantação de instituições democráticas, não foi promovida a inserção de

valores democráticos nas práticas do dia-a-dia184. Contrapõe à perspectiva mais ampla

de uma arquitectura social que permita mudar as relações de poder em Angola e criar

uma cultura de diálogo, de respeito e reconhecimento da diferença de opiniões e de

papéis sociais, a visão estreita e despolitizada de organizações sociais, ontem envolvidas

em projectos de assistência humanitária, e hoje em projetos de apoio a comunidades ou

grupos sociais carentes, mas sem envolvimento político.

A disposição em promover as sinergias capazes de lutar por mudanças que promovam a

melhoria das condições de vida dos angolanos é acentuada por Maria da Imaculada

Melo, presidente da Ação Cívica Angolana (ACA), ao considerar que “a sociedade civil

não tem que ser força de oposição, mas procurar as melhores parcerias (incluindo o

partido no poder) desde que tragam mudança, isto é, desenvolvimento, melhorias nas

condições de vida das populações”185. Neste sentido, Fernando Macedo, presidente da

Associação Justiça, Paz e Democracia, acrescenta que “segundo um princípio de

eficácia de esforço, a sociedade civil pode também integrar indivíduos activos

nacional. A história mais recente remete ao “renascer” do movimento associativo, a afirmação da sua autonomia e da

sua legitimidade de intervenção ao espaço público criado no contexto do Estado colonial, que lhe foi negada pelos

movimentos de libertação, ao assumirem-se como partidos-nação. 184 Voltou a evidenciar-se no discurso oficial o não reconhecimento do papel das organizações da sociedade civil, a nível central, provincial e mesmo das administrações municipais. Um decreto recentemente aprovado regulamenta a atividade das ONG’s, incluindo as internacionais; apesar de promulgado após um processo de consulta entre o governo e estruturas de representação de ONG’s nacionais e estrangeiras, não parece ter incorporado as sugestões das organizações cuja ação visa regulamentar. As preocupações do governo são justificadas pelo fato de aquele considerar que nas intervenções de prestação de serviços às comunidades, ou de advocacia social, as ONG’s muitas vezes ignoram as disposições governamentais que regulam a sua atividade. 185 Citada em PESTANA, Nelson. (2004), op. cit.

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[notáveis], na medida em que este encontrem respaldo na massa, e os seus interesses e

ideias sejam reconhecidos pela massa, porque só esta é capaz de oferecer mudanças186.

A jurista e ativista dos direitos da Mulher Anacleta Pereira, ao considerar que “a

sociedade civil é um terreno de luta porque a participação na vida pública visa um

objectivo de mudança ou de manutenção do status”, destaca um outro aspecto

fundamental da análise dos debates sobre sociedade civil, o das utopias e ideologias que

os discursos neles usados veiculam. Essa análise constitui o objetivo do próximo

capítulo, no sentido de avaliar as possibilidades da sociedade civil em Angola no que

respeita à capacidade de influenciar as políticas públicas e obter resultados187.

Ao destacar que “embora incipiente, a sociedade civil angolana tem um enorme

potencial e deve ser, simultaneamente, uma escola e uma trincheira de liberdade”188,

Fernando Pacheco, fundador e presidente da ADRA uma ONG angolana, recoloca em

pauta a necessidade da incorporação dos valores democráticos nas práticas do dia-a-dia,

chamando a atenção para a necessidade de inserir a sociedade civil e os indivíduos,

grupos e organizações que a integram, num amplo laboratório de aprendizagem e

prática dos direitos de cidadania.

2. Os dilemas da Participação em Angola

Num ambiente institucional onde parece não existir vontade política para a remoção

gradual dos impedimentos que ainda obstruem a construção de uma cidadania ampla e

plena, cabe à sociedade civil o papel de a promover. Essa foi uma das mensagens dos

participantes na pesquisa, apesar das dificuldades e limitações que identificaram na

sociedade civil em si, e na sua capacidade de interpelar o Estado e as suas instituições.

A expansão dos direitos de cidadania passa pela criação de oportunidades de acesso a

bens colectivos e serviços públicos numa base universal, o que implica, para além das

necessárias intervenções junto do executivo e do legislativo para adequação das

políticas públicas às necessidades da população, mudanças nas intervenções da

186 Idem. 187 Idem. 188 PACHECO, Fernando. (2002), “Caminhos para a Cidadania: poder e desenvolvimento a nível local na perspectiva de uma Angola nova”. Política Internacional, nº. 25, Primavera/Verão, pp.43-50. Igualmente citado por Nelson Pestana. (2004), op. cit.

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sociedade civil. A prática de privatizar o público produz uma proliferação de “ilhas”

constituídas pelos interlocutores e/ou destinatários dos projetos ou atividades

promovidas por ONG’s e outras organizações da sociedade civil, acentua a

fragmentação social e historicamente construída do público em Angola.

O duplo objetivo de promover articulações entre os diversos públicos do público em

Angola, e a criação de instâncias de participação aos diversos níveis da sociedade e

sobre os mais variados temas de interesse público, exercita a democracia entre os que

nelas participam estimulando o desafio à lógica dominante, amplia os espaços públicos

através da diversificação dos atores e dos discursos, e produz oportunidades de troca de

informações e troca de experiências, permitindo um conhecimento mais amplo dos

problemas e das possíveis soluções para os mesmos. Para isso, porém, é preciso vencer

as resistências que ainda prevalecem, não só por parte do Estado, mas também por parte

dos próprios cidadãos.

Algumas experiências, como a criação de estruturas de participação e representação em

alguns bairros de Luanda, parecem encaminhar-se nesta direção: na comuna do Hoji Ya

Henda, em Luanda, foi criada a APDCH, aliança das organizações da sociedade civil

para a promoção e desenvolvimento da comuna, que define como sua principal missão

“criar espaços e mecanismos de concertação das organizações da sociedade civil, servir

de voz dos sem voz e engajar-se com as autoridades locais na promoção da democracia

e o respeito pelos direitos e deveres dos cidadãos”189. No município do Kilamba Kiaxi,

também em Luanda, foi criado um Fórum de representação e participação de

organizações da sociedade civil junto da administração municipal, com os mesmos

objetivos.

Iniciativas como as da Rede Mulher, Rede Eleitoral, Rede Terra e Rede Maiombe, são

exemplos de novos desenvolvimentos no ambiente institucional angolano, embora

carentes de apoio para a capacitação dos seus membros, e de meios técnicos e

financeiros para cumprirem os objectivos da sua criação. A troca de experiências com

outras organizações com interesses afins como a coalisão LIJUA, organização angolana

da Jubileu 2000 que luta pelo perdão da dívida externa dos países sub-desenvolvidos,

189 ECOS DO HENDA, Jornal Comunitário da Aliança das Organizações da Sociedade Civil do Hoji-ya-Henda, nº. 01, ano I, Out/Nov. Editorial.

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pode constituir-se num interessante campo de experiências com vista ao reforço destas

organizações e à multiplicação destas experiências.

3. Subsídios para um quadro teórico da sociedade civil em Angola

A interpretação das opiniões dos participantes na pesquisa, se destacado o lado das

distinções entre si, conduziria à ideia de distintas esferas públicas nas três cidades

abrangidas pela pesquisa, partindo do conceito de comunidade constituída por pessoas

privadas reunidas como um público, discutindo e debatendo questões de interesse

comum, e criando mecanismos de articulação com o Estado para responder às

necessidades da sociedade190. Por meio da reunião e do diálogo, gerando opiniões e

atitudes para confirmar ou desafiar a gestão dos assuntos de Estado, a esfera pública

constitui-se como a fonte da opinião pública necessária para legitimar a autoridade em

ambiente democrático191. Contudo, é muito forte a presença dos traços comuns nas

respostas, nas matérias dos meios de comunicação, nas conversas do dia-a-dia, nos

discursos oficiais e de atores externos. Este outro lado, parece indicar que o quadro

teórico mais ajustado à interpretação dessas opiniões é o que toma o conceito

habermasiano de esfera pública como quadro de referências, e identifica a existência de

“públicos” ou “perspectivas” diferenciados no âmbito de uma mesma esfera pública192.

Ou seja, a significativa presença de similitudes nas opiniões dos oito conjuntos de atores

sociais (idênticos na sua constituição e na sua inserção na estrutura social) nas 3

cidades, parece recomendar que essas opiniões sejam entendidas como expressões da

“esfera pública angolana” e as distinções entre si como configurações de “públicos

locais” relacionados com as três cidades abrangidas pela pesquisa.

A interpretação das opiniões sobre as relações entre o Estado e os atores não-estatais

confrontou-se com outro problema no quadro teórico da esfera pública de Habermas

relacionado com atores sociais - meios de comunicação, igrejas e organizações

religiosas, e autoridades tradicionais -, não considerados por Habermas na esfera

190 HABERMAS, Jürgen. (1962) [1989], op.cit. 191 AVRITZER, Leonardo & COSTA, Sérgio. (2004), op. cit. 192 FRASER, Nancy. (1992), “Rethinking the Public Sphere: A Contribution to the Critique of Actually Existing Democracy”, in Craig Calhoun (org.), Habermas and the Public Sphere. Massachusetts, Massachusetts Institute of Technology.

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pública. Integrando a sociedade civil193, ou não, estas três categorias de atores são

identificadas pelos participantes como desempenhando papel relevante na sociedade e

recurso indispensável na articulação de interesses, na constituição democrática da

opinião e da vontade coletivas, e na influência do Estado e do mercado no que respeita à

agenda pública em Angola.

O entendimento dos meios de comunicação na esfera pública era relevante para

Habermas e construído em torno do papel da imprensa, essencialmente a escrita.

Referindo-se ao papel dos meios de comunicação de massa, a rádio e a televisão,

Habermas mostrou-se bastante pessimista no que se refere à sua capacidade de

promoverem a participação na esfera pública, considerando-os mais conducentes a

estimular uma progressiva passividade e alienação194. Percebendo-os como meros meios

de disseminação de ideias e opiniões, Habermas parece ter deixado escapar o potencial

dos atuais meios de comunicação em formatar novos quadros de pensamento, introduzir

novos temas e novos atores na arena pública, e por esse motivo influenciar a agenda e a

opinião públicas. Mais do que um papel informativo, os meios de comunicação

modernos são importantes veículos na formação da opinião pública e como tal não

podem deixar de ser considerados nesta análise, tanto na perspectiva de veiculadores da

ideologia dominante quanto na criação de espaços para a manifestação da utopia de uma

Angola melhor195.

Igrejas e organizações construídas em torno de solidariedades religiosas, ou numa

perspectiva mais ampla, o papel da religião na construção do espaço público, não foi

considerado por Habermas como relevante, segundo ele devido ao fato de o seu papel

na sociedade ter mudado em resultado da Reforma, e as opções religiosas de cada um

terem passado a ser entendidas, a partir daí, como pertencendo à esfera do privado. No

caso específico de Angola, contudo, não parece possível compreender as relações no

espaço público, principalmente no período pós-colonial e, dentro deste, com especial

ênfase durante a I República [1975-1991], sem considerar o papel fundamental das

igrejas, as únicas instituições que se mantiveram independentes do poder do Estado e se

193 Segundo os resultados da pesquisa, apresentados e discutidos em outro capítulo desta tese, as igrejas consideram-se e são consideradas como integrando a sociedade civil, enquanto os meios comunicação e as autoridades tradicionais, não se consideram nem são percebidos pelos demais atores sociais, como integrando a sociedade civil em Angola. 194 HABERMAS, Jürgen. (1962) [1989], op.cit. 195 COMERFORD, Michael. (2003), op.cit.

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mostraram capazes de influenciar a agenda pública em defesa dos interesses dos grupos

sociais mais desfavorecidos, a favor de uma ampla coalisão pela Paz, e na denúncia de

práticas contra os direitos humanos, defendendo uma sociedade mais justa, inclusiva e

equitativa.

Importante, também, é o papel das autoridades tradicionais na configuração do espaço

público angolano, considerando o seu potencial de articuladores das relações entre as

comunidades de base e a sociedade em geral. Em geral relacionadas com a existência de

um “público primordial”, cuja relação com o “público cívico” se materializa

essencialmente através dessas instituições do poder local, elas constituem

reminiscências dos antigos chefes de clãs ou descendentes de famílias reais196, que

apesar de terem perdido grande parte dos seus poderes num longo processo que remete

aos primeiros contactos com a potência colonial, ainda constituem a fonte de autoridade

e de orientação das comunidades rurais em Angola, desempenhando um papel de

articuladores / mediadores das relações sociais e de poder entre a ampla base rural da

sociedade e as demais camadas sociais urbanizadas.

Várias têm sido as críticas, os receios e as expectativas de diversos atores angolanos

sobre a pretendida reposição do papel das autoridades tradicionais. As críticas e os

receios remetem a uma possível intenção de serem repostos valores e regras

considerados injustos e ultrapassados, nomeadamente as restrições à participação das

mulheres e dos jovens nos processos de tomada de decisão. As expectativas relacionam-

se com o desejo de verem adoptadas algumas práticas de participação nos processos de

tomada de decisão, principalmente a abertura/transparência reconhecidas no Ondjango e

a ansiedade em verem incorporadas na ordem jurídica do Estado de direito, normas com

reconhecido valor social enquanto mecanismos de prevenção de conflitos, de

compensação e intermediação, com papel fundamental na preservação da ordem social,

alterando a estrutura de incentivos que se colocam às partes em conflito, de forma a

descartar a decisão do recurso à violência e contribuir para a consolidação da paz social.

196 Para Mahmood Mamdani, os chamados chefes hereditários [na terminologia angolana os “Sobas por linhagem”] foram em geral impostos ao povo pelos poderes coloniais, tendo-se cristalizado um sistema dinâmico e complexo de governo hereditário num único conjunto de hábitos esvaziados do seu conteúdo democrático em nome da estabilidade do governo colonial. MAMDANI, Mahmood (1997), Inaugural Meeting, I African Workshop, International Society for Third Sector Research (ISTR). Johannesburg, South Africa, December 1997.

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CAPÍTULO 3 – OS DISCURSOS DA SOCIEDADE CIVIL

I. INTRODUÇÃO A análise dos debates sobre a sociedade civil mostrou a amplitude dos contextos nos

quais o conceito é recorrente, porque nele encontram valor de uso, tanto como ideia

quanto como praxis. Caracterizados pela diversidade, principalmente a sul, os discursos

que os explicitam revelam o potencial do conceito para projetar expectativas de

mudança social e endereçar demandas por equidade e justiça sociais, em todos os

quadrantes do mundo, e nas mais diversas linguagens. Contrastando com a hegemonia

dos discursos ocidentais, a diversidade e a criatividade caracterizam as apropriações do

conceito em outras paragens, em resposta à alegada inadequação do uso do mesmo fora

do mundo ocidental. Mas também constituem formas de resistência aos modelos

impostos e veiculados pelo discurso ocidental, no âmbito do léxico do desenvolvimento

que constitui o paradigma dos programas de ajuda e cooperação.

As perspectivas apresentadas no capítulo anterior, ao constituírem-se em distintas

abordagens dos campos e dos interesses públicos e privados, afirmam-se como formas

diferenciadas de enquadrar o debate sobre sociedade civil na atualidade, traduzindo

entendimentos e usos diferentes do mesmo. O fim do colonialismo e das ditaduras

militares no terceiro mundo, e da guerra fria que opunha o primeiro ao segundo

mundos, produziu profundas alterações nas concepções geográficas, políticas,

económicas e sociais no planeta. O aumento crescente de diferenciação e

complexificação das sociedades atuais, acelerado pelo processo de globalização,

resultou na desconstrução de antigas identidades coletivas e na recriação de novas e

mais diversificadas identidades sociais.

Parece haver, por um lado, uma relação entre o aumento de complexificação e de

diferenciação do mundo, e a plétora de concepções de sociedade civil, incluindo as

diversas visões do mundo não-ocidental. Por outro lado, mais do que nunca antes, as

construções de sociedade civil enquanto conceito teórico e enquanto prática, são

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influenciadas e por sua vez influenciam a arquitectura da sociedade civil global,

enquanto movimento supraterritorial que acompanha o desenvolvimento do processo de

globalização.

Por essa razão, este capítulo vai ocupar-se dos discursos contemporâneos que

mobilizam o conceito de sociedade civil, como forma de expressão das ideologias e das

utopias prevalecentes nos imaginários sociais. Para além da sua influência na

sociabilidade, tanto do ponto de vista da manutenção do status quo, quanto do ponto de

vista da mudança, os discursos têm um papel relevante na formação da opinião pública

e na identificação das opções institucionais, existentes ou a criar, a que os atores podem

recorrer, porque o desvendar da realidade torna possível a emancipação.

A identificação dos elementos ideológicos e utópicos adjacentes às construções sociais e

políticas sobre sociedade civil justifica-se devido ao seu papel estruturante na criação

dos campos de elaboração das concepções, imagens e usos do conceito mais comuns

nos nossos dias. Uma vez que estas construções são tornadas perceptíveis através dos

discursos, importa identificar os elementos ideológicos e utópicos neles presentes e as

formas pelas quais ambos contribuem para estruturar os campos de análise e as práticas

da sociedade civil.

O enfrentamento conceitual entre ideologias e utopias origina diversos campos de forças

relacionados com perspectivas sócio-culturais e contextos geográficos mais ou menos

definidos, operando em sentidos contrários, universais e globalizantes umas, contextuais

e culturalmente definidas outras, que influenciam os entendimentos atuais sobre

sociedade civil e, por conseguinte, as maneiras pelas quais os indivíduos, grupos e

sociedades constróem as suas imagens e lhes atribuem significados e usos.

II – O QUADRO TEÓRICO PARA ANÁLISE DOS DISCURSOS

1. A teoria do discurso

O entendimento de discurso neste trabalho é o de “uma condição para a construção

social e cultural da realidade”, devido à sua “posição de mediação entre interação social

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ou processos de comunicação, e cultura”197. A teoria do discurso proposta por Strydom

busca referências na sociologia do conhecimento de Mannheim, para quem todo o

conhecimento é socialmente situado e, portanto, socialmente condicionado: “toda a

forma de ... pensamento é essencialmente condicionada pela situação de vida do

pensador e do grupo ao qual pertence ... para além de cada teoria existem forças

coletivas e um ponto de vista coletivo” 198.

A teoria do discurso proposta por Strydom procura relacionar duas lógicas opostas: a da

cultura de Habermas (o discurso como problematização que provoca ou restabelece uma

compreensão e uma aceitação mútua partilhada, através do desenvolvimento de

símbolos e suas consequências na organização publicamente relevante da sociedade199),

e a do poder de Foucault (o discurso controla sentimentos, pensamentos, julgamentos e

ações, daí o foco da sua teoria exclusivamente na ação estratégica200), com base no

argumento de que na atualidade as duas lógicas se complementam, uma vez que o

discurso apenas pode originar universalização simbólica na medida em que o poder

jogue o seu papel, e o exercício discursivo do poder apenas se torna possível na medida

em que a cultura se abra. O discurso permite que o poder seja chamado a regular e

controlar a comunicação, mas impõe a sua própria lógica argumentativa ou simbólica

para pressionar os processos de comunicação. Estas duas faces do discurso qualificam-

no como mediador entre a interação social, ou processos de comunicação, e a cultura.

Emergindo da, e estruturando a, acção comunicativa, o discurso ocorre no contexto da

cultura, ou mais particularmente de algumas semânticas sócio-políticas (linguagens e

vocabulários especializados) formatadas historicamente, jogando um papel central na

reprodução e transformação da cultura, enquanto a sua própria lógica é reconstituída por

essas semânticas. Strydom identifica no seu trabalho 3 tipos de discursos de crise

historicamente produzidos, cada um deles relacionado com uma forma específica de

ação coletiva: dos direitos, da justiça e da responsabilidade. Segundo ele, a construção

da sociologia pode ser entendida no contexto de cada um destes discursos da crise. Ao

permitir que os atores sociais comuniquem uns com os outros para expressar as suas

197 STRYDOM, Piet. (2000), Discourse and Knowledge. The Making of Enlightenment Sociology. Liverpool, Liverpool University Press. 198 MANNHEIM, Karl. (1929) [1972], op. cit. 199 STRYDOM, Piet. (2000), op. cit. 200 Idem.

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identidades, para se reconhecerem mutuamente e para manifestarem os seus interesses e

as suas diferenças, os discursos da crise tornam possível a construção da ação coletiva e

de atores coletivos, mas também, e pela mesma razão, a desconstrução dos movimentos

precedentes201.

Na teoria proposta, o discurso enquanto mecanismo coletivo para a identificação dos

problemas, a definição das questões e a coordenação da ação, é um elemento central no

processo dinâmico de construção da sociedade. Numa tentativa de revitalizar o papel

público da sociologia, relacionando a sua origem e a formação da modernidade com o

discurso público, a abordagem teórica de Strydom privilegia o protagonismo de atores

coletivos de diferentes tipos e transforma a interação dos processos que eles causam e os

resultados produzidos no problema teórico. Ou seja, o que se torna central é a interação

ou a separação/distância/oposição na coordenação dos processos de ação coletiva202.

Para além da teoria do discurso e de alguma forma complementar a ela, outro dos eixos

da sua proposta consiste na teoria dos frames (quadros de referência) cognitivos que

estruturam a vida social na modernidade, designadamente o dos direitos, o da justiça e o

da responsabilidade203. No âmbito da perspectiva de sociedade estruturada

construtivamente e de seus universos particulares, os quadros gerais fornecem o pano de

fundo para a construção de narrativas sobre a compreensão do mundo e da história, a

elaboração de identidades e a criação de solidariedades, a definição de projetos e a

articulação de discursos sobre a vida social204.

Analisando o papel do discurso na geração, utilização e desenvolvimento do

conhecimento, Strydom busca identificar “como o discurso torna possível e facilita a

interrelação ou interconexão dos distintos tipos de conhecimento – o informal, de todos

os dias das pessoas comuns, o sistemático dos profissionais, o público, como quadros de

referência de sentidos e modelos culturais – no processo de constituição da realidade

social”205. Nas atuais sociedades da comunicação o discurso é, assim, uma forma

específica de comunicação reflexiva através da qual os problemas são coletivamente

201 EDER, Klaus. EDER, Klaus. (1993), “Contradicitions and Social Evolution: A Theory of the Role of the Class in the Production of Modernity”, in Klaus Eder, The New Politics of Class: Social Movements and Cultural Dynamics in Advanced Societies. London, Sage publications Inc. pp.17-41. 202 STRYDOM, Piet. (2000), op. cit. 203 Idem. 204 DOMINGUES, José M. “Resenha do Livro Discourse and Knowledge. The Making of the Enlightnment Sociology, de Piet Strydom”. TRAVESSIAS, nº. 2/3 – 2000/2001, pp. 244-248. 205 STRYDOM, Piet. (2000), op. cit.

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identificados, as questões coletivamente definidas, e as ações coletivamente

coordenadas, uma característica constitutiva da modernidade destas sociedades.

A abordagem sobre a noção de crise e a sua relação com a modernidade, a esfera

pública e a democracia, na constituição dos espaços de participação política e de debate,

proposta pelo autor, refere-se ao contexto da formação da sociologia e da constituição

da modernidade. Contudo, a análise sobre a exclusão de grupos, social e culturalmente

distintos, dos espaços de participação apesar de institucionalizados os arranjos políticos,

constitucionais e legais necessários para assegurar esse acesso, é extremamente atual

para o caso de Angola. A ação de uma esfera pública elitista e de um discurso

hegemônico antes, na era colonial, e hoje trinta anos após a independência, resulta num

ambiente de pouca abertura para a produção e reprodução das diferenças culturais entre

grupos e classes sociais. Uma política de opinião pública administrada pela elite no

poder não dá espaço para a participação no processo de tomada de decisão, muito

menos para a manifestação da contestação e do conflito. O conteúdo dos compromissos

necessários para garantir a ordem social e o alcance dos objetivos dos programas do

governo são produzidos aos mais altos níveis de decisão e transmitidos à sociedade,

numa abordagem de cima para baixo que se apresenta hegemônica, apesar de uma

crescente, embora tímida, capacidade de expressão de dissensos. Então, como agora, a

falta de um nível suficiente de política não apenas constituiu a crise, como também

forneceu o ponto de partida para a patogênese da moderna sociedade angolana, a

ausência de uma política participativa do conflito, da contestação e do compromisso e

uma cultura de contradições, como pano de fundo206.

A perspectiva da interação de diversos tipos de conhecimento, do teórico-científico ao

empírico e informal do dia-a-dia dos cidadãos comuns, para alcançar uma compreensão

mais ampla da realidade social, serve de esteio a esta tese, que recorre aos quadros de

referência teóricos dos temas contidos na discussão que endereça, relacionando-os com

as percepções de atores sociais sobre a sociedade civil em Angola. Estas percepções

sinalizam a diversidade das visões e dos contextos e a complexidade da mobilização da

ação coletiva para a produção dos compromissos com base em consensos e dissensos

para acomodar as diferenças, e realçam as dificuldades de afirmação de uma ideia

206 Idem.

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acoplada às noções e práticas de participação, modernização e democratização, num

contexto em que o espaço público tem sido ocupado pelo Estado, tanto na era colonial,

quanto após a independência.

A análise dos discursos é uma ferramenta de aplicação do pensamento crítico às

situações sociais e às motivações veladas dos discursos dominantes e dos demais

discursos, como interpretações de mundo, sistema de crenças, etc. Trata-se de uma

leitura interpretativa e desconstrutiva que, embora não fornecendo respostas definitivas

para os problemas que visa compreender, expande os horizontes e torna-nos conscientes

das nossas próprias debilidades e motivações, e das dos outros. Revela, portanto, o que

vai acontecendo para além de nós e dos outros, que determina as nossas ações.

Focalizando a mensagem contida nas expressões discursivas e localizando-as num

contexto sócio-histórico, a análise dos discursos pode revelar mais eficazmente as

motivações e as políticas envolvidas na argumentação a favor ou contra determinada

escolha ou determinado valor, mais eficazmente do que o debate de ideias, e por essa

razão, contribuir para mudanças fundamentais nas práticas de uma instituição ou da

sociedade como um todo. É uma forma de abordar e pensar um problema e não uma

metodologia de pesquisa, é uma maneira de questionar os pressupostos básicos dos

resultados de pesquisas quantitativas e qualitativas, por exemplo. Embora não forneça

uma resposta clara e definitiva para os problemas, permite explicitar os pressupostos

ontológicos e epistemológicos de um projeto, de uma declaração, de um método de

pesquisa, ou de um sistema de classificação, revelando as mais secretas motivações de

uma dada construção discursiva. O entendimento da essência do problema contribui

para a sua resolução com base nos seus pressupostos, porque tornando-os explícitos

permite construir uma visão compreensiva sobre ele e sobre nós próprios em relação ao

problema, capacitando-nos para encontrar soluções concretas.

2. Aspetos metodológicos da discussão

Os entendimentos do conceito de sociedade civil em algumas tradições do pensamento

ocidental, em vertentes da discussão académica no hemisfério sul (Ásia, América Latina

e África), nos discursos de organizações internacionais e regionais de estados, e de

redes mundiais, regionais e nacionais de organizações e grupos de cidadãos, parecem

apontar para as seguintes conclusões preliminares, importantes para a organização desta

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discussão: a) a utilidade do conceito de sociedade civil, associado à noção de esfera

pública, para a interpretação dos processos de reconfiguração das relações entre as

organizações de cidadãos e os estados; b) a existência de diversos movimentos e tensões

na construção das representações da sociedade civil: internos e externos, locais,

nacionais e supranacionais; c) a necessidade de adotar uma metodologia alternativa,

aliando teoria e empiria, incluindo na análise e discussão teóricas, as representações,

expectativas e experiências de atores sociais.

Seguindo esta recomendação, a metodologia seguida neste trabalho recorre a dois

autores: Koselleck e Mannheim. Do primeiro207, relembra-se a constatação de que a

análise comparativa (no caso da Bürgertümer europeia) conduz a inúmeras dificuldades,

a menos que o objetivo seja uma inventariação descritiva de usos. Considerando

fundamental o recurso às fontes linguísticas, Koselleck acrescenta que o testemunho

linguístico deve ser traduzido de maneira a ser semanticamente comparável, e que os

processos sociais, económicos e políticos dele deduzidos devem tornar-se comparáveis,

ou seja, serem reproduzidos de outras linguagens através de conceitos similares

correspondentes208. Esta preocupação reflete o cuidado que deve haver quando se lida

com conceitos que trazem consigo horizontes descolados da experiência atual, embora

plenos de potencial para o futuro, como parece ser o caso do conceito de sociedade

civil. Num ambiente crescentemente complexo como o do mundo de hoje, torna-se

necessário desenvolver capacidades que permitam entender as diferentes linguagens em

uso e isolar as suas particularidades, sejam elas funções do tempo ou do espaço entre as

diferenças de sentido encontradas.

De Mannheim retém-se a contribuição da sua “sociologia do conhecimento”209,

nomeadamente o método da compreensão, o mais adequado em seu entender, na medida

em que “uma situação humana somente pode ser caracterizada quando se leva em

consideração as concepções que dela têm os seus participantes, como eles

experimentam suas tensões nessa situação, e como eles reagem às tensões assim

surgidas – diagnósticos situacionais”, uma vez que cada diagnóstico da ciência social se

acha estreitamente ligado às avaliações e orientações inconscientes do observador.

207 KOSELLECK, Reinhart. (2002), op. cit. 208 KOSELLECK, Reinhart. (1992), op. cit. 209 MANNHEIM, Karl. (1976), op. cit.

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Contrariamente às abordagens que sob o argumento da parcialidade e do envolvimento

emocional do observador com o objeto em estudo, subestimam a capacidade de análise

deste e desvalorizam as vantagens de pertencer ao meio em análise, Mannheim

argumenta que “(...) para trabalhar em ciências sociais é preciso participar do processo

social (...) sendo a participação no contexto da natureza social, um pressuposto para a

compreensão da natureza interna deste contexto de vida”, acrescentando que “o tipo de

participação do pensador determinará como este irá formular os seus problemas210”.

Este método permite concretizar a tese principal da sociologia do conhecimento,

segundo a qual “existem modos de pensamento que não podem ser compreendidos

adequadamente enquanto se mantiverem obscuras as suas origens sociais”. Por isso, a

sociologia do conhecimento busca compreender o pensamento no contexto concreto de

uma situação histórico-social, considerando que “só muito gradualmente emerge o

pensamento individualmente diferenciado (...) quem pensa não são os homens em geral,

nem tampouco indivíduos isolados, mas os homens de certos grupos, que tenham

desenvolvido um estilo de pensamento particular em sua interminável série de respostas

a certas situações típicas, características de sua posição comum (...) cada indivíduo é,

dessa forma, predeterminado em duplamente pelo fato de crescer numa sociedade:

encontra, por um lado, uma situação definida e, por outro lado, descobre em tal situação

padrões de pensamento e de conduta previamente formados”. A segunda tese da

sociologia do conhecimento defende a não separação dos modos de pensamento

concretamente existentes do contexto de ação coletiva, por meio do quais descobrimos

inicialmente o mundo211.

Para além de propiciarem algum conforto no que respeita à posição do observador, não

relacionando à priori a qualidade da sua análise ao fato de estar envolvido com o objeto

dessa análise, pelo contrário, chamando a atenção para a vantagem que o observador

pode retirar dessa posição, enriquecendo a análise, as recomendações de Mannheim

abrem caminho para o recurso e a inclusão das contribuições de atores sociais locais

para a discussão dos sentidos atribuídos aos conceitos e a sua aplicação a contextos

sócioculturais e políticos distintos. Para Mannheim, o problema mais imediato para a

210 Idem. 211 Idem.

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pesquisa consiste em levar o sistema conceptual e a realidade empírica a um contato

mais próximo212.

Para a análise dos discursos contemporâneos sobre sociedade civil foram retidas as

noções de ideologia e de utopia de Mannheim213. O autor atribui dois significados para

ideologia em função do tipo de concepção que dela se apresenta: a particular e a total. A

primeira refere-se à concepção comum de ideologia como distorção, ou uma tentativa

mais ou menos consciente de manipular os outros para prevenir decepções.

Evidenciando o nosso ceticismo em relação às ideias e representações apresentadas pelo

nosso interlocutor, encaradas como distorções mais ou menos conscientes da natureza

real da situação em referência cujo reconhecimento não estaria de acordo com seus

interesses, estas distorções vão das mentiras conscientes aos disfarces semiconscientes e

dissimulados. A particularidade desta concepção torna-se mais evidente quando

comparada com a concepção de ideologia total, ou seja, o sistema de pensamento

associado a uma época ou a um grupo histórico-social concreto. O interlocutor não é

visto como um indivíduo ou um grupo concreto, mas antes uma perspectiva que reflete

a vida coletiva; por outro lado, a concepção total de ideologia não está preocupada com

as motivações ou os interesses, procurando antes identificar a relação entre forças

sociais e visões de mundo.

O elemento comum às duas consiste no fato de que nenhuma delas depende apenas do

que foi efetivamente dito pelo interlocutor para compreender o seu significado real e

intenção; ambas processam um entendimento do que foi dito pelo método indireto de

analisar as condições sociais do indivíduo ou do grupo social a que pertence. As ideias

expressas são percebidas como funções da sua existência; as opiniões, declarações,

proposições e sistemas de ideias não são tomados por seu valor aparente, mas

interpretados à luz da situação de vida de quem os expressa. Significa, ainda, que o

carácter e a situação de vida específicos do sujeito influenciam suas opiniões,

percepções e interpretações. Em ambas as concepções de ideologia, as ideias são função

de quem as expressa, e da sua posição em seu meio social.

212 Idem. 213 Idem.

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Um estado de espírito é utópico quando é incongruente em relação ao estado de

realidade no âmbito do qual ocorre; a incongruência torna-se evidente porquanto este

estado de espírito no pensamento, na experiência, e na prática, se orienta para objectos

que não existem na situação real. Para o autor, contudo, serão “utópicas somente

aquelas orientações que transcendendo a realidade, tendem a abalar parcial ou

totalmente a ordem das coisas, caso se transformem em conduta”214. Esta distinção

permite diferenciar estados de espírito utópicos de estados de espírito ideológicos: um

indivíduo pode orientar-se para objetos que sejam estranhos à realidade e que

transcendam a existência real, e não obstante, permanecer ainda no nível da realização e

da manutenção da ordem de coisas existente. Esta orientação incongruente (com a

realidade) apenas se torna utópica quando, em acréscimo, tende a por fim aos laços da

ordem existente.

Todas as ideias que não caibam na ordem em curso são “situacionalmente

transcendentes” ou irreais: as ideologias são as ideias situacionalmente transcendentes

que jamais conseguem, de facto, a realização de seus conteúdos pretendidos; embora se

tornem com frequência motivos bem intencionados para a conduta subjectiva do

indivíduo, os seus significados são com frequência deformados quando incorporados

efectivamente à prática. As utopias também transcendem a situação social, pois também

orientam a conduta para elementos que a situação não contém, mas não são ideologias,

na medida em que conseguem, através da contra-actividade, transformar a realidade

histórica existente em outra, mais de acordo com suas próprias concepções215.

A distinção entre o que são ideologias e o que são utopias não é fácil, implicando o

conhecimento dos sentimentos e das motivações das partes em oposição pelo

apoderamento da realidade histórica: os representantes de uma dada ordem irão rotular

de utópicas todas as concepções de existência que, do seu ponto de vista, jamais

poderão se realizar, o que leva a pensar que a conotação contemporânea do termo

utópico é, predominantemente, uma ideia em princípio irrealizável. Mannheim chama a

atenção para um princípio vital de vinculação da construção da utopia ao

desenvolvimento da ordem existente, que estabelece uma relação dialética entre ambas:

cada época permite o surgimento em grupos sociais diversamente localizados de ideias e

214 Idem. 215 Idem.

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valores em que se acham contidas, de forma condensada, as tendências não realizadas

que representam as necessidades dessa época, que se transformam, assim, em potenciais

desafios dos limites da ordem existente. A ordem existente dá surgimento a utopias que,

por sua vez, rompem com os laços da ordem existente, deixando-a livre para evoluir em

direcção à ordem seguinte. A determinação do que se deve considerar utópico cabe

sempre ao grupo dominante, que esteja em pleno acordo com a ordem existente,

enquanto o grupo ascendente, em conflito com o status quo, determinará o que deve ser

considerado ideológico. Contudo, Mannheim alerta que “as utopias das classes

ascendentes se acham frequentes vezes permeadas por elementos ideológicos”. A visão

utópica, que transcende o presente e se orienta para o futuro, não constitui um mero

caso de negação da perspectiva ideológica que oculta o presente, procurando

compreende-lo em termos de passado. A existência de estratos sociais cujas aspirações

ainda não se realizaram, implica a ininterrupta existência de, pelo menos, uma forma de

utopia216.

A distinção entre discursos ideológicos (ideias que servem para preservar o status quo)

e discursos utópicos (ideias que visam a sua transformação), embora impossível em

termos absolutos, mostra-se necessária, porque um dos denominadores comuns que

ressalta da análise de abordagens de sociedade civil em diversos contextos,

principalmente do sul, é o seu papel (ou a expectativa nela depositada) de pivot na

geração dos consensos que caracterizam e condicionam a produção de sentido nas

sociedades contemporâneas. Operando nos campos comunicacional e cultural, na

articulação de imaginários sociais em oposição ao status quo moldado pela hegemonia

cultural dominante, os sistemas simbólicos emergem para unificar o imaginário social,

arquitetando as finalidades e a funcionalidade das instituições e dos processos sociais217.

III – IDEOLOGIAS E UTOPIAS NOS DISCURSOS CONTEMPORÂNEOS

SOBRE SOCIEDADE CIVIL.

1. Ideologias e utopias inscritas nas representações discursivas

A análise dos debates sobre sociedade civil identifica tanto elementos ideológicos

quanto utópicos e, embora seja extremamente difícil estabelecer um divisor de águas

216 Idem. 217 MORAES, Dênis Villasboas de. (1997), “Notas sobre o Imaginário Social e Hegemonia Cultural”. Revista Contracampo, n°.1, Julho/Dezembro, pp. 91-103.

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entre os discursos essencialmente ideológicos e os essencialmente utópicos, parece

possível identificar a predominância de ideologias com pretensões hegemônicas nos

discursos de atores da sociedade civil global, designadamente das agências multi e

bilaterais de cooperação. Nos discursos de atores da sociedade civil a nível local, pelo

contrário, identificam-se mais nitidamente utopias em oposição às ideologias

dominantes, propondo alternativas para as políticas neoliberais, para as formas

predominantemente económicas do processo de globalização (que simultaneamente

integra as regiões mais avançadas do mundo e marginaliza as mais fracas), para uma

nova ordem social com mais justiça e equidade sociais, articulando visões de futuro e

caminhos para transformar e moldar a realidade social atual. O Fórum Social Mundial,

ao instituir-se em instância de representação transnacional dos discursos e práticas de

atores locais assume discursos e práticas que contêm e são coerentes com as utopias

embutidas na ideia axial do movimento, “um outro mundo é possível”.

Embora em alguns discursos a utopia da sociedade civil apareça com o sentido

coloquial, como algo inerentemente bom e relacionado com o ideal da sociedade

perfeita apesar de inalcançável, ou apenas da boa sociedade, são mais comuns os que

veiculam ideias ou orientações que, se concretizadas, transformariam parcial ou

totalmente a ordem das coisas prevalecente num dado período e num certo contexto,

pela sua conotação com a capacidade de operar transformações ou mudanças. Tais

discursos projetam a visão de reconstituição imaginária da sociedade, em que as utopias

revelam um modelo fundacional, desejável, mas também expõem inconsistências,

contradições e pressupostos não explicitados. A atribuição à sociedade civil de um

potencial utópico, o seu entendimento como ideia transformadora, depende, por um

lado, da existência de arenas discursivas nas quais a ideia e a enorme flexibilidade do

conceito conduza a, ou promova, atividades em ethos distintos dos existentes nas

sociedades onde tais discursos são produzidos, e, por outro lado, da existência de

construções coletivas com base no valor positivo atribuído à sociedade civil, mais

amplas e abrangentes do que as concebidas (e transmitidas) pelos discursos oficiais nas

sociedades às quais remetem.

Relativamente à primeira condição, as perspectivas locais mostram-se muito

interessantes, evidenciando noções de universalidade (a mobilização de todos os

participantes relevantes) e capacidade para, apesar das intenções dos respectivos

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poderes instituídos, desenvolverem e implementarem políticas locais adequadas,

legitimando-as em termos de promoverem as suas próprias formas de sociedade civil.

Contudo, estas iniciativas locais são afetadas por uma falta crónica de recursos, gerando

frustrações e propiciando dependências, tanto em relação ao poder central, quanto em

relação a atores externos. No que respeita à segunda condição, estudos, pesquisas e

análises de discursos produzidos em diversos locais do planeta, mostram não só a

criatividade das construções coletivas de sociedade civil, mas também o potencial

reconhecido ao conceito, enquanto instrumento analítico e enquanto praxis,

mobilizando a ação coletiva e promovendo a implementação de programas e projetos

para dar voz e visibilidade às suas iniciativas, apesar das limitações em recursos, da

ausência de um ambiente político mais propício, e das pressões internas e externas

visando a cristalização da ideia neoliberal de sociedade civil.

Estas constatações, retiradas da síntese dos debates atuais apresentados anteriormente,

parecem conduzir a dois caminhos, ou duas possibilidades, para a sociedade civil:

A prevalência das ideologias com vista à manutenção do atual estado das coisas,

e das atuais orientações dos discursos oficiais, com fortes limitações em termos

das abordagens sobre participação, inclusão social, desenvolvimento de

capacidades, cidadania, direitos, etc.;

um programa utópico, construído com sentido construtivo e orientador, mais

focalizado na espécie de sociedade que se quer construir, e nos programas e

projetos que contribuam para o alcance desse objetivo, abrindo e ampliando

simultaneamente as bases do debate democrático, em resposta à questão

fundamental: quem somos nós e o que queremos para nós e para os outros,

assente no questionamento de princípios e valores como solidariedade,

diversidade, capacidades, escolha dos percursos, etc., numa abordagem

coordenada, holística e, ao mesmo tempo, institucional (para permitir o

delineamento e a viabilização de estratégias de poder e de hegemonia).

A realização deste debate, alargando a esfera pública como o espaço institucional de

discussão de assuntos cívicos e da vida comunitária, e de deliberação acerca dos

problemas comuns, a novos atores e novos temas, permitindo que a opinião popular seja

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canalizada e incorporada nas políticas governamentais218, seria, em si, uma prova do

potencial de ideia transformadora do conceito. A possibilidade de transformação

atribuída à sociedade civil incorpora necessariamente, a noção de espaço público, com

vista à construção coletiva de mútuos entendimentos, os consensos de Habermas, mas

pressupõe, igualmente, a aceitação dos dissensos moralmente aceitáveis de Taylor219, e

até de conflitos220, naturais no ambiente de diversidade de objetivos e de interesses das

sociedades modernas.

2. Sociedade Civil no discurso neoliberal

Na atualidade, a ideologia dominante nos discursos sobre sociedade civil é a neoliberal,

segundo a qual o bem coletivo é considerado resultante da ação baseada no interesse

próprio221 e na crença na mão invisível do mercado, no âmbito de um amplo projeto de

inventar uma realidade cuja única raison d’être reside na reprodução do Consenso de

Washington, com pretensões de expansão a todas as sociedades do mundo

independentemente das realidades sôcio-econômicas, culturais e políticas de cada uma

delas, numa negação agressiva de outras realidades222. E é dominante na medida em que

procura impor as suas visões sobre a organização das relações sociais num ambiente em

que cabe ao mercado a tomada de decisões políticas e sociais vitais, e em que o Estado

se auto-demite de funções anteriormente assumidas, particularmente no que respeita à

proteção social do cidadão, deixando de constituir-se no locus do universal. Aconteceu

o que Polanyi temia há mais de 50 anos, quando declarou que “permitir que o

mecanismo de mercado governe em exclusivo o destino da humanidade e seu

ecossistema natural (...) levaria à devastação da sociedade”223.

Nos desdobramentos temporais da evolução do pensamento liberal e do capitalismo, e

mantendo como princípio orientador a ideia de que uma política de liberdade do

indivíduo é o único caminho para o progresso, o movimento neoliberal organizou-se a

partir do Colóquio Walter Lippman em Paris, em Agosto de 1938, ascendendo à

218 HABERMAS, Jürgen. [1962] (1989), op. cit. 219 TAYLOR, Charles. (1993), op. cit. 220 STRYDOM, Piet. (2000), op. cit. 221 EDER, Klaus. (2003), “Identidades Coletivas e Mobilização de Identidades”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 18, nº. 53, pp.5-18. 222 MACAMO, Elísio. (2005), The Hidden Side of Modernity in Africa – Domesticating Savage Lives. In Sérgio Costa, José Maurício Domingues, Wolgang Knöbl e Josué P. da Silva (orgs.), Modern Trajectories, Social Inequality and Justice. Mering, Hampp (no prelo). 223 POLANYI, Karl. [1944] (2000), A Grande Transformação. As origens da nossa época. Rio de Janeiro, Editora Campus Ltda.

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condição de pensamento dominante após mais uma crise dos ideais liberais, desta feita a

do Welfare State na década de 70 do século XX. O perfil ideológico deste movimento é

construído em torno da insurgência contra a considerada “interferência” crescente do

Estado na produção e distribuição e no campo social, do apostolado em defesa da

iniciativa privada, e da primazia da liberdade em relação à igualdade, aos quais se junta

a ideologia do livre mercado. Os expoentes teóricos do neoliberalismo são O caminho

da servidão de Hayek (1944) e Capitalismo e Liberdade de Milton Friedman (1984),

interpretados e veiculados por uma extensa rede internacional de fundações,

instituições, centros de investigação, publicações, técnicos, escritores e relações

públicas, que apresentam o neoliberalismo como o curso normal e natural da

humanidade, a única ordem econômica e social viável224. E as instituições financeiras

internacionais, criadas em Bretton Woods em 1944, com a função fundamental de evitar

futuros conflitos através do apoio financeiro a programas de reconstrução e

desenvolvimento e aos problemas conjunturais de balança de pagamentos, figuram

atualmente entre as veiculadoras mais visíveis do neoliberalismo, com funções

ampliadas que lhes permitem interferir nas decisões econômicas dos governos e nos

assuntos internos dos países225.

Um dos seus paradigmas relaciona sociedade civil com o discurso do desenvolvimento,

embora o conceito também seja recorrente nos discursos dos direitos humanos, da boa

governança, da transparência e do combate à corrupção, das reformas

(redimensionamento) do estado e consequentes mudanças nas relações estado-

sociedade, dos ambientalistas, das mulheres, das minorias, dos excluídos, para citar os

mais frequentes, sendo apresentado como proxy de participação, empoderamento

(empowerment) e democratização bem sucedida226.

O recurso a noções qualitativamente positivas embora com conteúdos muito vagos

(devido aos muitos sentidos que lhes podem ser atribuídos), por um lado confere aos

discursos dominantes (neoliberais) do desenvolvimento uma aura de benevolência e

abertura ou pluralismo, dificultando a percepção do seu carácter intrinsecamente

224 FERRARO, Alceu R. (2004), Neoliberalismo e Políticas Sociais: A Naturalização da Exclusão. VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, Coimbra, 16 a 18 de Setembro. 225 GEORGE, Susan. (1999), Breve História do Neoliberalismo. Duas décadas de economia de elite e oportunidades emergentes para a mudança estrutural. Conferência sobre a Soberania Econômica num Mundo em Processo de Globalização. Bangkok, 24-26 de Março. 226 LENZEN, Marcus H. (2002), op. cit.

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desigual e não-democrático, por buscar na naturalização do social a legitimação da

exclusão social, transformando os pobres, de vítimas, em responsáveis pela própria

miséria227. Por outro lado, a plasticidade dessas construções abstratas e a infinidade de

sentidos que lhes podem ser atribuídos, permitem a sua utilização e/ou aplicação por um

vasto leque de instituições, atores e movimentos sociais, que lhes atribuem os seus

próprios sentidos, e os usam para alcançar os seus objetivos, manipulando os seus

outros sentidos, em função das audiências, momentus ou objetivos em pauta.

As noções de boa governação, de descentralização, de desenvolvimento de base e,

sobretudo, de sociedade civil, são impostas como categorias-chave das novas formas de

intervenção multilaterais, no âmbito de discursos sobre a reforma do Estado e a

redefinição do seu papel na economia. Esta abordagem de sociedade civil, fundada

numa concepção simplista e dicotômica do espaço social, tem por objetivo a

despolitização da questão da democratização228.

Os discursos que procuram harmonizar os conceitos e as práticas de sociedade civil e de

desenvolvimento ganharam fôlego a partir dos anos 80, quando se tornou evidente a

falência do paradigma liberal do crescimento econômico, e tornaram-se dominantes nos

anos 90, quando passaram a incorporar os discursos da democratização e da

globalização econômica. Um dos mais veiculados na atualidade é o que, naturalizando o

capitalismo, o apresenta como a ordem natural das coisas à escala global. Contudo, sob

esta umbrella podem encontrar-se agendas políticas e abordagens de sociedade civil

bastante divergentes.

Os discursos de organizações supranacionais (União Europeia), das instituições

financeiras internacionais (Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional), das

agências multilaterais do sistema das Nações Unidas e bilaterais para a cooperação e o

desenvolvimento, são construídos com o objectivo de difundir a abordagem neoliberal

de sociedade civil e as estruturas e processos que lhe são inerentes, condicionando a

ajuda ao desenvolvimento. Os países receptores são “convencidos” a adotar processos

de fundação e/ou fortalecimento de instituições e práticas democráticas, sob a forma de

227 FERRARO, Alceu R. (2004), op. cit. 228 HIBOU, Béatrice. & BANEGAS, Richard. (2000), “Société Civile et Espace Publique en Afrique”. Bulletin du CODESRIA, Número 1, Dakar, pp.40-45.

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programas executados por ONG’s dos países doadores, ou credenciadas pelas agências

financiadoras/doadoras, nos quais a sociedade civil é uma categoria central e

incontornável. Em geral, o design destes programas é padronizado e apresentado sob a

forma de um pacote – financiamento, assistência técnica e fornecimento de bens e

equipamentos -, pronto a ser consumido, com poucas ou nenhumas possibilidades de

incorporação das opiniões e necessidades dos grupos sociais a que se destinam.

O conceito de sociedade civil usado pelas agências multi e bilaterais é indissociável das

suas percepções de política, que formatam os discursos de boa governação e sobre a

necessidade de reformar as instituições estatais, mas na verdade essas percepções são

caracterizadas pela vontade de circunscrever a política, o que é conseguido com o

recurso às correntes ideológicas da economia política liberal, nomeadamente: a nova

economia política, a análise neo-institucional, e as teorias da sociedade civil. A

finalidade é a de esvaziar o conteúdo da política: os atores políticos são analisados como

atores econômicos, o individualismo metodológico e o postulado individualista

estendidos as todas as formas de organização, inclusivamente as estatais229.

Os programas de ajustamento estrutural das instituições financeiras internacionais são

construídos com o recurso ao conhecimento-regulação (que, segundo Boaventura

Santos, é típico da modernidade e tornado possível pela necessidade ideológica de

produzir a ordem), mas usam um horizonte discursivo profundamente enraizado no

conhecimento-emancipação (que, ainda segundo Boaventura Santos, retira a sua

legitimidade de uma ética de solidariedade); assim, o projeto epistemológico que

legitima a ajuda ao desenvolvimento, cria as condições para a sua reprodução através do

uso de um discurso social repleto de referências emancipatórias, tais como “dimensão

social”, “capital social”, “participação”, “apropriação”, “criação de capacidades”, etc.,

tornando inócua qualquer crítica à ordem das coisas. Este projeto visa, essencialmente,

produzir uma ordem definida claramente de forma normativa e ontológica230.

No léxico desenvolvimentista, e num movimento que remete do norte desenvolvido

para o sul atrasado, o conceito de sociedade civil é pouco aprofundado, em geral

meramente indicativo, fornecendo poucas ou nenhumas contribuições analíticas

229 HIBOU, Béatrice. & BANEGAS, Richard. (2000), op. cit. 230 MACAMO, Elísio. (2005), op. cit.

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significativas sobre as dinâmicas de funcionamento social e sobre o próprio

entendimento do conceito nesses contextos, sendo muitas vezes apresentado como um

fim em si mesmo, como quando se pretende medir o desenvolvimento democrático pelo

número de ONG’s criadas num dado período de tempo, por exemplo. Nas formulações

que definem a sociedade civil como a esfera não-estatal parece não haver distinção entre

sociedade e sociedade civil; nos modelos tripartidos é muito frequente a colagem entre

sociedade civil e as ONG’s, o chamado terceiro ou quarto setor, incluindo organizações

que prestam serviços sociais (no abastecimento de água ou na instalação de fontes

alternativas de energia em comunidades periurbanas pobres, ou que apoiam o aumento

da produção e comercialização de bens alimentares, industriais ou artesanato), ou que

promovem a democracia, o respeito pelos direitos humanos, entre outras.

Estas percepções são associadas a pacotes de financiamento, concebidos em um

qualquer lugar do hemisfério norte, sendo raríssimas as iniciativas visando a criação

matricial de visões locais de sociedade civil, cruzando os conceitos teóricos com as

realidades vividas dos grupos sociais aos quais esses programas são dirigidos. Na maior

parte dos casos, seminários e workshops são concebidos para transmitir ideias, visões,

programas e projetos concebidos de cima, sem se colocar a hipótese de incluir os grupos

sociais relacionados com a sociedade civil local, em busca dos seus entendimentos

sobre os conceitos envolvidos e conhecer as praxis locais com eles relacionadas.

No âmbito da sua estratégia de influência, para além da exercida sobre outros

financiadores231, as instituições financeiras internacionais e o Banco Mundial em

particular, são os maiores provedores de dados relacionados com o desenvolvimento da

África Subsahariana232, e dedicam vastos recursos a atividades de formação “não isentas

de supostos ideológicos para moldar perfis intelectuais e de investigação (...) o que tem

como efeito que, muitos dos ministros com maior influência nos governos africanos, da

economia e finanças, assim como governadores dos bancos centrais, tenham sido

231 A aceitação pelas agências bilaterais de cooperação das condicionalidades impostas pelo Consenso de Washington, reconhece ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional a capacidade de classificar como boas ou más as políticas nacionais, principalmente no que se refere ao continente e mais especificamente à África Sub-Sahariana. 232 Segundo Macamo uma das maiores prioridades dos programas de ajustamento estrutural é a aquisição da capacidade de apreender um país através de números, de o quantificar; a redução do país a números não apenas dá conta da necessidade de prover uma informação mais sistemática para uma melhor intervenção, mas também permite às instituições de Bretton Woods manter a sua indiferença em relação aos impactos sociais das suas políticas. MACAMO, Elísio. (2005), op. cit.

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anteriormente staff do BM ou do FMI (...) [os quais] defendem posições ideológicas

muito próximas das instituições de Bretton Woods (...) [o que] para além de reduzir as

opções de política e de estratégias especialmente no âmbito das políticas macro-

econômicas e fiscais, facilitam a comunicação entre os governos e o BM e o FMI

(...)”233. Esta estratégia pode explicar a convergência crescente entre as fórmulas de

políticas de desenvolvimento e os marcos analíticos vigentes em instituições da África

Subsahariana, e as estruturas do Banco Mundial. Na miscelânea de objetivos e

prioridades o fortalecimento da sociedade civil no âmbito nacional e local tem papel de

destaque. Para Oya, o desfazamento entre o discurso dos dirigentes do Banco e a prática

das suas equipas técnicas, caracteriza uma certa esquizofrenia estrutural234.

As consultas à sociedade civil por parte do Banco Mundial resumem-se,

frequentemente, a sessões de apresentação dos programas ou projetos elaborados pelas

equipas do banco, algumas vezes com a contribuição de consultores internacionais ou

nacionais, mas dentro de um quadro de referências dado. São sessões de informação,

em geral limitada por imperativos de tempo, com poucas ou nenhumas oportunidades de

inclusão de pontos de vista dos convidados, muitos das quais representando-se apenas a

si mesmos, uma vez que o convite em cima da hora e a distribuição in loco dos

documentos não permitem que as organizações tomem posições enquanto tal. É o caso

de concordar com Tamang quando afirma que “a sociedade para ser civil, deve obedecer

às restrições impostas pelos patrões da sociedade civil”235. A pobreza conceitual surge

não apenas na qualidade da produção das agências multi e bilaterais, mas também da

reduzida produção acadêmica das, e sobre as, sociedades africanas, a maior parte

financiada por agências doadoras, por isso desenhada e produzida com base em chaves

de referência ocidentais e com pouca circulação nas áreas estudadas, servindo acima de

tudo de fonte de informação para as agências que os financiaram.

O discurso neoliberal sobre sociedade civil visa, simultaneamente, dois objetivos: por

um lado, impor a ideia de um terceiro ou quarto (consoante as abordagens) setor não-

lucrativo, que em substituição do Estado é chamado à prestação de serviços sociais nos

233 OYA, Carlos. (2004), El modelo del Banco Mundial para África: hacia um consenso internacional?. IV Congreso de Estudios Africanos del Mundo Ibérico, Barcelona, 12-15 Enero. 234 Idem 235 TAMANG, Seira. (2003), op. cit.

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mais diversos domínios, com todas as consequências em termos da abrangência (no

particularismo dos atendimentos, na criação de sub-universos de receptores desta ou

daquela organização ou conjunto de organizações, pulverizando o público em oposição

à universalidade desejada e devida) e da desigualdade social acrescentada à existente,

em resultado da criação de critérios de acesso, de condições e de oportunidades para

grupos atendidos e grupos excluídos. Por outro lado, argumentando contra o tamanho e

a ineficência do Estado, transmite a ideia de que este não tem capacidade para prover

serviços sociais, pelo menos não tão eficientemente quanto as ONG’s e que, por isso,

deve ser reduzido a um mínimo necessário para o exercício de funções que ainda não

entraram no rol da privatização de serviços públicos, como as de regulação, de defesa da

soberania nacional, da preservação da legalidade, e da manutenção da ordem e da

segurança públicas. Em lugar de se fortalecer o Estado em termos de capacidades e

meios para cumprir o seu papel social, promove a sua redução e substituição, o que tem

um duplo impacto negativo na constituição e fortalecimento das sociedades civis nos

países em desenvolvimento: devido à sua natureza relacional, Estado fraco, sociedade

civil também fraca, e atribuindo às organizações da sociedade civil uma infinidade de

tarefas e transformando-as em provedoras de serviços sociais, criam-se condições para a

progressiva despolitização de uma sociedade civil sem cidadania.

Esta estratégia não se alimenta apenas das abordagens liberais e neo-liberais; recorre,

igualmente, a desconstruções ou reinterpretações das abordagens marxistas,

simplificando as suas concepções sobre o papel da sociedade civil e suas implicações

nas lutas democráticas por mudanças sociais, higienizando ideias como a de hegemonia

e de sociedade civil em Gramsci, destituindo-as dos potenciais dissenso, conflito e

processos de luta por legitimação. Ou seja, em lugar da sociedade civil como o

instrumento através do qual o Estado ganha legitimidade para as suas políticas e

programas e generaliza a sua aceitação na sociedade, oferece-se uma interpretação que

aproxima a ideia marxista de sociedade civil, o espaço de produção da contra-

hegemonia, da ideia liberal do consenso pluralista e dos sistemas dominantes que

mudam de acordo com as necessidades e com a implementação dos ideais da

democracia e dos direitos humanos, resolvidos, assim, de maneira não problemática.

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Criticando as abordagens de sociedade civil nas teorias liberal e marxista, Agnes Ku236

argumenta que a análise do locus da sociedade civil e das implicações da distinção

convencional entre sociedade civil e Estado na noção de cidadania - enquanto categoria

de estatuto social e de agência -, torna evidente, em ambas as teorias, o paradoxo da

sociedade civil sem cidadania: a sub-valorização do carácter polivalente da cidadania e

dos direitos, em ambos os casos, reflete uma compreensão bastante empobrecida da

cultura, do discurso e da simbolização. Contudo, o maior problema não reside nas

narrativas empobrecidas da sociedade civil, nem na colagem entre a ideia de sociedade

civil e do terceiro setor não lucrativo, mas no fato de, apesar de inconsistentes e pouco

ou nada elucidativos acerca dos entendimentos e das dinâmicas locais, estes conceitos

impostos assumirem importância oficial e pública e, devido a aludidos imperativos

econômicos e políticos, serem relacionados com, ou são sugeridos como, condições

para o acesso aos financiamentos, sem que os intelectuais e os profissionais do

desenvolvimento locais se interroguem sobre os termos de tal discurso e as implicações

da sua incorporação acrítica.

Em contextos nacionais fortemente dependentes dos mecanismos internacionais de

assistência humanitária e/ou ao desenvolvimento, é grande o risco que as construções de

sociedade civil sejam produzidas “de fora”, considerando as dificuldades na

transferabilidade do conceito ocidental de sociedade civil para contextos nos quais nem

sempre se encontram noções equivalentes. Devido à grande dependência dos países

receptores da ajuda externa, e à desvalorização do recurso a mecanismos metodológicos

por parte dos doadores, para analisarem e operacionalizarem a noção de sociedade civil

com atores sociais locais, e desenharem os programas que pretendem financiar de

acordo com essa análise matricial, várias são as críticas que denunciam a imposição de

uma ideia ocidental de sociedade civil, através de processos considerados

intervencionistas ou neocolonialistas, por parte de agências financiadoras e doadoras e

das ONG’s envolvidas237.

236 KU, Agnes. (2002), “Beyond the Paradoxical Conception of ‘Civil Society without Citizenship’”. International Sociology, vol. 17, nº. 4, pp. 529-548. 237 HOWELL, Jude. (2002), “In their Own Image: Donor Assistance to Civil Society”. Lusotopie 2002/1, pp. 117-130. HOWELL, Jude. (2000), Manufacturing Civil Society from the Outside: Some Dilemmas and Challenges. ISTR 4th. International Conference on The Third Sector: For What and form Whom?, July 5-8, 2000. Dublin. HUDOCK, Ann C. (1999), NGO’s and Civil Society. Democracy by Proxy?. Cambridge, Polity Press. LUONG, Pauline J. & WEINTHAL, Erika. (1999), “The NGO Paradox: Democratic Goals and Non-democratic Outcomes in Kazakhstan”. Europe-Asia Studies, vol. 51, no.7, pp. 1267-1284. MACAMO, Elísio. (2005), op. cit. NYAMNJOH, Francis B. (2000), ““For Many are Called but Few are Chosen”: Globalization and Popular Disenchantement in Africa”. African

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3. Desconstruindo o discurso dominante

Estudos produzidos pelo CODESRIA238 (alguns incluídos na bibliografia) vêm

demonstrando que a sociedade civil em África é um campo muito mais contraditório do

que pretende o discurso ocidental dominante, ao privilegiar de forma simplista os

conflitos entre Estado e sociedade, romantizando a sociedade civil como um bastião da

democracia. As formas de relacionamento de indivíduos e grupos da sociedade civil

com o Estado variam da acusação, quando os seus interesses são postos em questão, à

aliança e cooperação, quando para tal têm oportunidade e vantagem. A maioria dos

grupos e organizações da sociedade civil em África é dependente da comunidade

internacional para efeitos de financiamento e, até, de aprovação dos seus programas de

ação, acabando por incorporar acriticamente conceitos e práticas, sem a necessária

reflexão quanto à sua adequação ao contexto no qual vão ser aplicados.

Estas constatações confirmam a influência externa na configuração da ideia de

sociedade civil em África. A perspectiva das agências de financiamento internacionais e

bilaterais imposta através das condicionalidades dos mecanismos de ajuda, constitui um

dos lados da configuração dos espaços públicos e da construção da sociedade civil em

África. Mas para essa configuração também contribuem os processos de reação a essa

imposição, e o enfrentamento do Estado e do mercado por grupos sociais, políticos e

económicos, em defesa dos seus interesses individuais e de grupo, com vista à

reconfiguração das relações sociais e de poder, na atual fase de transição para a

democracia239.

Assim como o colonialismo gerou os movimentos nacionalistas, a visão neoliberal

veiculada pelas organizações transnacionais e pelas agências de desenvolvimento está

gerando movimentos internos de conscientização e de afirmação de interesses, em torno

dos quais novos entendimentos (as formas) de sociedade civil estão sendo criados e

fortalecidos, e novos discursos são formulados. No processo de organização da

Sociological Review, vol.4, nº. 2, pp. 1-45. ONG, Aihwa. (1999), op. cit. OYA, Carlos. (2004), op. cit. SOGGE, David. (1997), “The Civil Sector”, op. cit. TAMANG, Seira. (2003), op. cit. 238 CODESRIA, Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa Científica em África, com sede em Dakar, Senegal. 239 Considerada de “democrática” (numa visão minimalista de realização de eleições, separação de poderes [mais fictícia do que real], constituição de instituições de representação política, e liberalização dos mercados [em especial de matérias primas e de força de trabalho não especializada, ou seja, na abertura aos interesses dos países do norte]), e que caracteriza a maioria das sociedades africanas nos dias de hoje. Esta visão da democratização em África é defendida, entre outros, por Samuel Huntington, citado por WISEMAN, John A. (1996), The New Struggle for Democracy in Africa. Aldershot, Avebury..

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resistência ao autoritarismo e à implementação de programas (de ajustamento estrutural,

por exemplo) e de práticas (de boa governação, por exemplo) impostos de fora,

começam a desenhar-se novas oportunidades democráticas, apesar da repressão

estatal240, sendo visível o papel da sociedade civil na iniciação e consolidação de

reformas democráticas241.

A negação ou relativização da adequação do conceito à África limita o âmbito da

discussão teórica, desincentivando a busca por uma mais ampla compreensão das

formas de organização do espaço público africano através de estudos empíricos. A

dicotomia introduzida no discurso em termos de universal versus local, opondo direitos

civis e etnicidade, ignora o legado histórico da construção da sociedade civil colonial e

reproduz a marginalização histórica de culturas políticas africanas. Mais importante do

que isso, a persistência do traço ideológico deste discurso, desde a fase de consolidação

dos estados coloniais - com o recurso ao conceito para excluir grupos sociais do espaço

público e da cidadania com base num pressuposto civilizacional -, à negação da

existência de sociedades civis em África, pelo desligamento dos estudos e trabalhos

teóricos das realidades empíricas que era suposto refletirem, parece intencional de uma

marginalização tácita, reproduzindo uma tendência de manter as realidades africanas

invisíveis, tanto no âmbito da ação cívica quanto da participação política, das

instituições de governação existentes e das instâncias de oposição a elas, e, por isso,

incompreensíveis, porque não traduzíveis segundo a bitola dos ideais universais242.

Um dos possíveis contra-argumentos a estas posições é fornecido pela análise dos

processos de construção e fortalecimento das sociedades civis nos diversos países

ocidentais, onde se constata que esse processo não só não foi uniforme, do ponto de

vista das trajetórias de construção dos estados-nação, como também não teve uma

entidade homogênea como centro ou ponto de partida, mas antes uma diversidade de

entidades coletivas, com formas diferenciadas e distintos estágios de organização social

e política243. Os estudos de Maina (sobre as relações entre o Estado, os doadores e a

política de democratização no Kenya) e de Fatton (sobre os limites da sociedade civil

240 OLUKOSHI, Adebayo. (2001), “West Africa’s Political Economy in the Next Millenium: Retrospect and Prospect”. Monograph Series 2. CODESRIA. Dakar. 241 NKWACHUKWU, Orji. (2003), op. cit. 242 GUEDES, Armando M. (org.) (2003), op. cit. 243 MARTIN, William G. (2000), Africa in World-Historical Perspective: A Post-nationalist Project?. International Conference on Africa at the Turn of the Century, 20-23 September, Lisboa.

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em África) apresentam como uma das principais consequências do não reconhecimento

pelas agências de cooperação multi e bilaterais das expressões informais de associação

muito comuns na Ásia e na África, a não identificação de forças capazes de produzir

mudanças políticas244. A não-identificação e/ou não-reconhecimento de formas

equivalentes de vida associativa, cria descontinuidades ou silêncios nos diálogos entre

países ocidentais e o resto do mundo.

Tornam-se necessárias perspectivas mais abrangentes e flexíveis para permitir a

manifestação de valores e formas de organização social e política de outros contextos e

filosofias, e contribuir para novas articulações nas relações entre o ocidente e o resto do

mundo, consentindo ousar um outro discurso capaz de descondicionar as teorias

construídas em outros lugares e momentos e de compreender as condições locais a partir

das suas próprias práticas discursivas. Incentivando a reimaginação das lógicas

fundamentais para mudar as relações atuais entre as sociedades, e colocando os

imaginários sociais ao serviço da reemergência de uma nova orientação para os

discursos sobre a diversidade sócio-cultural prevalecente no mundo de hoje, será

possível estruturar uma nova visão destas realidades locais sobre si próprias e

emprestar-lhe a força teórica necessária para a refundação de um mundo pós-colonial,

pós-ocidental e pós-capitalista. Cabe às ciências humanas e sociais contribuir para o

reconhecimento e a transcendência dos pontos de diferença, produzindo e

disponibilizando instrumentos analíticos, entre os quais os ideológicos, que facilitem o

diálogo entre povos e culturas, e a resolução de conflitos de diversa natureza, criando as

pré-condições para acabar com os monólogos entre poderosos e fracos245.

4. A oposição à ideologia neoliberal

A naturalização da globalização veiculada pelos discursos neoliberais apresentado-a

não só como o único, mas também o melhor caminho para a prosperidade, é defendida

por organizações como o Centre for Civil Society in India e The Meltzer Commission,

alguns jornais como o Wall Street Journal e o The Economist, empresas privadas e

algumas individualidades. Poucas ONG’s e nenhum movimento social integram esta

244 Citados em LENZEN, Marcus H. (2002), op. cit. 245 ALATAS, Syed Farid. (2002), “The Role of Human Sciences in the Dialogue Among Civilizations”. Development and Society, vol. 31, n°.2, pp.265-279. RANDERIA, Shalini. (1999), Beyond Sociology and Social-Cultural Anthropology: The Place of the Non-Western World in a Future Social Theory. Mimeo. MOUFFE, Chantal (org.), The Challenge of Carl Schmitt, Introduction, London, Verso.

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posição. As reações que se vêm manifestando contra a hegemonia do discurso

neoliberal mais referidas na literatura consultada, são agrupadas em três posições

ideológicas designadas de isolacionistas, reformistas e alternativas, em função das

estratégias discursivas por eles utilizadas246.

Os isolacionistas consideram-se os únicos verdadeiramente anti-globalização, clamando

pela abolição da ordem económica global vigente, defendendo que o único caminho na

busca das alternativas para a globalização orientada pelas corporações é a auto-

confiança dos atores e a auto-suficiência das suas organizações. Nesta categoria situam-

se organizações como Friends for the Earth, Focus on the Global South, International

Forum on Globalisation, Global Exchange, 50 years is Enough, movimentos sociais

como o MST do Brasil, e individualidades como Noam Chomsky e Walden Bello da

Red de los Movimientos Sociales. Embora apresentados como constituindo um grupo à

parte dos alternativos manifestam-se em sintonia com a utopia “um outro mundo é

possível” do Fórum Social Mundial, apontando-a como o caminho para criar uma nova

ordem mundial.

O grupo dos reformistas inclui a maior parte dos movimentos sociais e organizações da

sociedade civil global, nomeadamente sindicatos, movimentos trabalhistas, ONG’s

transnacionais como a OXFAM e a Worldvision, a Liga Jubileu 2000, funcionários das

instituições financeiras de Bretton Woods, jornais como o Financial Times, e

individualidades como Joseph Stiglitz, George Soros e James Wolfenson. Visam

mudanças parciais para compensar as injustiças e desigualdades atuais, mas não apoiam

as demandas por mudanças radicais e uma nova ordem mundial. O objetivo é manter as

vantagens do modelo capitalista, mitigando os seus excessos através de medidas de

regulação e de redistribuição. Apesar de se encontrarem sob a mesma categoria de

oposição à globalização devido à natureza das posições que defendem, as relações entre

reformistas nem sempre são de suporte institucional: por exemplo, a Liga Jubileu 2000

defende o cancelamento da dívida dos países do terceiro mundo e propõe profundas

reformas no sistema de Bretton Woods, particularmente no Fundo Monetário

Internacional.

246 TUSSIE, Diana & RIGGIROZZI, Maria Pia. (2001), op. cit. DESAI, Meghnad & SAID, Yahia. (2001), op. cit. BELLO, Walden. (2003), op. cit. CHANDHOKE, Neera. (2002), op. cit.

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No grupo das alternativas encontra-se uma grande variedade de movimentos sociais

com os mais diversos objetivos, redes transnacionais e regionais, coalisões e campanhas

mais ou menos amplas, defendendo a transformação ou reforma do capitalismo global,

manifestando preocupação nos seus discursos com as consequências políticas e culturais

do capitalismo, e denunciando os custos ambientais e econômicos das atuais políticas

econômicas defendidas pelas instituições financeiras internacionais. Entendem a

usurpação do espaço público pelo mercado como um desafio à democracia, contrapondo

campanhas de denúncia e censura coletiva e pública contra os abusos e em nome dos

direitos humanos, principalmente nas sociedades do sul.

No âmbito das iniciativas em busca de alternativas à atual ordem mundial e ao discurso

dominante sobre a sociedade civil, merece realce o apoio das agências de cooperação

dos países nórdicos ASDI (Suécia), NORAD (Noruega), DANIDA (Dinamarca) e a

FINIDA (Finlândia), que através das relações bilaterais e a nível transnacional,

promovem a realização de debates, conferências, produção e circulação de informação,

e financiam a participação de atores sociais, individuais e coletivos, das sociedades do

sul, em fora transnacionais, como o Fórum Social Mundial. Entre essas iniciativas,

destaca-se a Conferência de Helsínquia realizada em 2002, para promover o diálogo

sobre as mudanças necessárias nas estruturas da governação supranacional e propor

novos caminhos para resolver os problemas globais mais urgentes247. Entre estes

problemas, foi destacada a necessidade de intensificação do diálogo construtivo entre o

Norte e o Sul, no qual a sociedade civil surge como uma categoria central, apesar de se

reconhecer a grande variedade de atores sociais que ela comporta e suas distintas

orientações políticas, e o amplo leque de estratégias possíveis, reformistas, conformistas

ou transformistas.

Aparentemente, este discurso poderia ser confundido com o do Banco Mundial ou do

PNUD. A grande diferença reside no fato que o processo de Helsínquia não restringe o

debate aos representantes dos governos e das instituições internacionais, envolvendo

intelectuais, think-tanks e outros representantes de organizações nacionais de sociedades

civis em todo o mundo. Neste âmbito, os diálogos construtivos entre a sociedade civil

do Norte e do Sul são entendidos como contribuições para: (1) abrir espaços onde

247 HELSINKI CONFERENCE 2002, Searching for Global Partnerships. Conference Report, 2003.

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possam florescer e expressar-se múltiplas visões; (2) institucionalizar estruturas ou

redes quase-permanentes para encorajar o diálogo entre grupos, clubes, instituições,

redes, movimentos sociais, para discutir formas positivas de intervenção em reforço da

democracia; (3) produção independente e em rede, de informação, pesquisa e circulação

de dados sobre lutas, práticas, experiências e utopias relacionados com a democracia;

(4) construção de uma frente global para defender, aprofundar e expandir a

democracia248. Ainda no âmbito do desenvolvimento do Processo de Helsínquia, uma

das organizações não-governamnetais com maior destaque tem sido a NGID (Network

Institute for Global Democratization), criada em Helsínquia em 1997. Produzindo e

fazendo circular informação relacionada com os temas da sociedade civil, globalização

e democracia, e promovendo a realização de seminários, treinamentos e debates, esta

organização destaca-se pelo apoio às atividades do Fórum Social Mundial, percebido

como uma plataforma internacional para a troca de informações, criação de redes e de

uma verdadeira sociedade civil global, a partir da qual novas iniciativas para uma

democracia global podem ser promovidas249.

Entre as reações aos discursos e práticas com pretensões hegemônicas, as mais visíveis

atualmente são elaboradas por movimentos sociais como o Fórum Social Mundial,

propondo entendimentos de sociedade civil que acomodem manifestações culturais

locais e suas formas específicas de organização do político e das relações sociais.

Autodesignado de “recurso na luta global contra o neoliberalismo através de uma ação

civil global”, o Fórum constitui-se em ponto de encontro de grupos e movimentos da

sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e à dominação do mundo pelo capital

ou qualquer outra forma de imperialismo, apresenta-se aberto ao pensamento reflexivo,

ao debate democrátrico de ideias, à formulação de propostas e livre troca de

experiências, e declara-se comprometido com a construção de uma sociedade planetária,

orientada para relações frutuosas entre a humanidade, e entre esta e a Terra.

Acomodando o pluralismo e a diversidade de atividades e formas de engajamento de

organizações e movimentos que nele decidam participar, considera especialmente

valiosa “a troca de experiências sobre o que está sendo feito para que a atividade

248 PRATAP, Vijay, PRIYA, Ritu and WALLGREN, Thomas. (2004), Vasudhaiva Kutumbakam. An Alliance for Comprehensive Democracy. Capital Creations, New Delhi. 249 RIKKILÄ, Leena & PATOMÄKI, Katarina Sehm (orgs.) (2002), From a Market Place to Political Spaces. The North-South Dialogue continues. NIGD Working Paper 1.

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económica e a ação política enderecem e respondam às necessidades das pessoas e ao

respeito pela natureza, nas presentes e nas futuras gerações” 250. Apesar da afirmação de

espaço de manifestação da diversidade cultural e ecológica, e da centralidade da

categoria sociedade civil nas declarações do Fórum, não parecem questionados os

conteúdos, significados, formas e processos envolvidos nas ideias e representações de

sociedade civil dos grupos e organizações que nele participam, o que não contribui para

a reformulação do quadro teórico do conceito nem para o conhecimento empírico da

diversidade das suas aplicações.

A CIVICUS é “uma aliança internacional para reforçar a ação cidadã e a sociedade civil

em todo o mundo”, criada em Washington em 1993, envolvendo 600 organizações de

uma centena de países. Apesar de adotar uma definição normativa de “sociedade civil

como a esfera das instituições, organizações e indivíduos, localizados entre a família, o

estado e o mercado, na qual as pessoas se associam voluntariamente para alcançar

interesses comuns”, a CIVICUS procura “conectar o normativo com o empírico,

pensando em sociedade civil de maneira mais ampla, como o campo da liberdade e do

engajamento cívico, protegido pelo Estado, embora auto-regulado em grande medida,

onde diversidade, auto-afirmação e voluntarismo não só são tolerados, como

encorajados”251.

Existem diferenças significativas nas duas abordagens acima apresentadas252. O Fórum

Social Mundial reflete uma compreensão de sociedade civil orientada pelo valor,

promovendo a ética e a prática da solidariedade e da emancipação, animando e

inspirando a ação em relação ao Estado e ao mercado, sendo o conflito (não-violento)

visto como um motor necessário para a mudança social. O seu pressuposto político

assenta na ideia de públicos fortes, sendo o desenvolvimento das opiniões e o incentivo

à iniciativa política fortemente encorajados. O seu quadro teórico remete aos

movimentos sociais e a intelectuais europeus e latinoamericanos engajados na luta anti-

colonial pela emancipação, sendo perceptível a influência do pensamento de Gramsci

250 WORLD SOCIAL FORUM ORGANISING COMMITTEE. (2004), op. cit. 251 SMITH, Barry. (2001), The Concept and the Practice of Civil Society: Perspectives from CIVICUS – World Alliance for Citizen Participation. INTRAC 10th. Anniversary International Conference. Oxford, 13.15 December. 252 Análise construída com recurso a SOGGE, David. (2004), “Civil Domains in African Settings: Some Issues”. Civil Society Observer – UN Non-governmental Liaison Service, vol. 1, Issue 3, June-July. http://www.un.org/terms.html

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nos seus posicionamentos. Mobilizando os contra-poderes, o Fórum visa a constituição

de alianças entre grupos de pobres e excluídos, recorrendo aos canais políticos, judiciais

e mediáticos. O Fórum é constituído, essencialmente, por movimentos sociais,

sindicatos, organizações comunitárias de base (OCB’s), organizações não-

governamentais (ONG’s) locais dedicadas à produção e difusão de conhecimento, e

meios de comunicação independentes. Pelo seu lado, a CIVICUS contrapõe um

entendimento claramente normativo e insere-se na perspectiva de sociedade civil

enquanto terceiro setor, complementando o Estado e o mercado, através da promoção

das chamadas parcerias público-privadas. O seu enquadramento teórico remete a

Fukuyama e Putnam, visando a negociação de consensos sociais e consentimentos em

relação às regras, com vista a evitar os conflitos. Atuando fundamentalmente através da

advocacia e do lobbying, promove programas de boa governação, transparência e

prestação de contas por parte do governo. Na sua constituição prevalecem as ONG’s,

locais ou internacionais, as organizações filantrópicas, as missões religiosas, e as

associações profissionais e de negócios.

Apesar das ambiguidades e dificuldades antes referidas, o Fórum Social Mundial parece

posicionar-se, nitidamente, numa perspectiva alternativa ao discurso global,

hegemônico, com o qual a CIVICUS parece conviver, dada a proximidade das suas

posições com as defendidas pelas instituições internacionais em geral, não apenas as

financeiras, e as agências de cooperação bilaterais. Como pontos comuns, o fato de

ambas as organizações atribuírem à sociedade civil objetivos positivos, configurando-a

numa perspectiva de civil, excluindo organizações relacionadas com o crime organizado

e a vida associativa não civil, em geral.

IV – O QUADRO PARA A ANÁLISE DOS DISCURSOS SOBRE A SOCIEDADE CIVIL EM

ANGOLA A participação consciente na vida social pressupõe a compreensão da natureza do

pensamento sobre a sociedade; a concepção de natureza humana baseada na razão,

mediação e auto-reflexão, credita ao ser humano o potencial de auto-avaliação e

consciência do contexto, que o habilita a entender o seu objeto de estudo. Mannheim

identifica nas sociedades divididas em classes um estrato social cujo único capital reside

na sua educação, e que por ser constituído por indivíduos de classes diferentes, contém

em si a semente das contradições, e que alimenta uma energia potencial para

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desenvolver uma sensibilidade social para compreender as dinâmicas e as forças em

conflito na sociedade253.

Forjado na luta política e usado como arma discursiva para ganhar terreno nas lutas

reais do mundo da vida e nas batalhas ideológicas do mundo das ideias, o conceito de

sociedade civil tem sido apropriado pelos discursos políticos mais diversos, sempre com

um sentido positivo. Nos países o Leste Europeu mobilizou a constituição da oposição

aos regimes do socialismo real; nos países latino-americanos, simbolizando o que não

era militar, difundiu-se nas manifestações de resistência às ditaduras militares que

dominavam o sub-continente; na Ásia e na África emprestou argumentos às coalisões

que conduziram os processos de luta contra o colonialismo. Em todos estes contextos,

apesar das suas particularidades, o denominador comum do recurso ao conceito é o

conflito social, e o objetivo a conquista de espaço público ao Estado.

Fortalecido nas estratégias discursivas das lutas sociais contra regimes de partido único,

ditaduras militares e colonialismo, e colocado no centro das preocupações e

reivindicações dos movimentos sociais e políticos que recorreram à sua bandeira

inspiradora e mobilizadora, os discursos da sociedade civil germinaram em contextos

sociais muito variados e enfrentaram resistências muito diversas. Apesar dessa

polissemia, ou devido a ela, o recurso à utopia da sociedade civil jogou um papel

decisivo nos processos de restabelecimento ou de instalação progressiva das regras do

jogo democrático em todos esses contextos.

As contribuições teóricas da análise dos processos nos quais a utopia da sociedade civil

foi recurso discursivo tornaram possível a representação tripartida do social, com base

na vontade expressa de auto-limitação operada em sentido duplo, por um lado

diferenciando-se e autonomizando-se da sociedade política que não pretende substituir,

por outro, distanciando-se da noção reducionista que a identificava com o mercado.

Estas contribuições conduziram à percepção de uma arena cultural separada das arenas

política e econômica, capaz de superar a dicotomia entre sociedade civil e Estado254. A

sociedade civil, percebida como espaço diversificado e contraditório de configuração

253 MANNHEIM, Karl. (1976), op. cit. 254 COHEN, Jean & ARATO, Andrew. (1992), op. cit.

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das orientações discursivas e das atitudes dos cidadãos em relação à economia e ao

Estado, oferece um vasto campo de oportunidades para a transmissão cultural (herança

de valores, crenças e normas), para a integração social (coesão que serve de base para o

desenvolvimento de ações conjuntas ou coletivas) e para a socialização (incorporação

progressiva nos indivíduos dos diversos conteúdos culturais que permitem o surgimento

de sentimentos de pertença e de adesão a um “nós” parcial em constante processo de

redefinição).

Contudo, prevalecem nos discursos sobre a sociedade civil a ambiguidade dos conflitos

de interesses, a polaridade entre egoísmo e altruísmo, a tensão entre as estratégias

individuais e a reflexão racional presentes nas corporações de Hegel e no interesse bem

compreendido das associações de Tocqueville, e a solidariedade mais ampla que

alimenta o mutualismo e as normas de reciprocidade. O apelo discursivo à civilidade

surge, então, relacionado com o esforço de compatibilizar de uma forma equitativa e

durável os conflitos de interesses presentes na sociedade civil. Mas estas tensões

parecem igualmente alimentadas pelos impactos desiguais das resistências aos avanços

da sociedade civil nas distintas formas de organização que a integram, nos diversos

contextos em que o discurso da sociedade civil foi usado como força mobilizadora e

inspiradora. Nem todas as formas de associação independente do Estado nos diversos

regimes, socialismo real, ditadura militar ou dominação colonial, foram atingidas na

mesma proporção ou segundo os mesmos critérios: enquanto organizações de base,

sindicatos de trabalhadores, associações de camponeses, organizações de povos

indígenas, etc., foram silenciadas ou mesmo destruídas, algumas formas corporativas de

representação de interesses, alguns meios de comunicação, e alguns partidos políticos e

políticos profissionais, mantiveram-se em interação com as instituições do poder e do

mercado.

Em resultado de processos que simultaneamente destruíam e desarticulavam relações

sociais do mundo popular, e liberavam ou impulsionavam novas formas de organização

no mundo dos negócios e de apropriação da representação dos interesses “do povo”

pelos políticos profissionais da oposição, resultaram dois tipos de discursos: os da

sociedade civil “burguesa”, que se manteve ou se constituiu durante as lutas contra as

ditaduras e o colonialismo, e os da sociedade civil “popular”, construída na contramão

de processos que visavam a sua destruição ou desarticulação, com o apoio de forças

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autônomas como igrejas e organizações não-governamentais, e que originaram novos

tipos de organização com base em laços de associação solidária em espaços não muito

politizados, visando superar a atomização social resultante da repressão pelos aparatos

estatais de partido único, militares ou coloniais.

Nos processos de instauração de democracias restritas e elitistas, que sob os mais

variados matizes sucederam aos períodos pós-conflitos atrás referidos, a ideia de

sociedade civil parece ter-se emancipado das suas origens no mundo das lutas sociais,

para se converter no centro de exercícios intelectuais sobre processos políticos

supostamente separados da base produtiva e distributiva, passando a ser usado de uma

forma discursiva que reforça a ideologia dominante. E isso acontece porque a) a

dicotomia simplista Estado-sociedade civil é usada para significar que qualquer

fortalecimento institucional que não dependa do Estado representa um passo em direção

à emancipação social (recorrente nos discursos da ideologia neoliberal como argumento

para relacionar a privatização com uma sociedade civil mais forte); b) a ideologia

contida na designação generalizada de “atores sociais”, transmitindo uma mensagem de

igualdade de direitos e de oportunidades, mascara as profundas desigualdades existentes

nas sociedades atuais; c) a colagem entre a ideia de sociedade civil e as ONG’s serve os

objetivos da ideologia neoliberal, excluindo outras formas de organização da sociedade

civil, designadamente associações diversas, movimentos sociais e grupos de cidadãos. O

argumento recorre à origem das ONG’s numa esfera fora da alçada do Estado, para as

apresentar como naturalmente livres da sua influência e do seu poder, transformando-as

nos atores legítimos da sociedade civil, ignorando as profundas diferenças entre elas,

particularmente ao nível dos seus vínculos com organizações populares, ou de suporte a

interesses do grande capital ou fonte de emprego de intelectuais255.

Se não parecem existir dúvidas de que sociedade civil é um conceito recorrente nos

discursos contemporâneos independentemente da latitude em que os mesmos sejam

pronunciados, a análise em contextos distintos aponta para distinções significativas no

sentido, forma, e funções a ele atribuídos. Contudo, os usos discursivos do conceito nos

dias de hoje parecem ultrapassar a relação binomial entre grupos sócio-culturais e os

255 MESCHKAT, Klaus. (1999), “Una critica a la ideología de la ‘sociedad civil’”, in P. Hengstenberg, K. Kohut, G. Maihold (org.), Sociedad Civil en America Latina: representación de intereses y governabilidad, Caracas, Nueva Sociedad.

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respectivos Estados para a organização das relações sociais e de poder, parecendo

visível a intenção de estabelecer uma forma de entendimento normativa sobre a ideia de

sociedade civil, desenvolvida no âmbito do paradigma neoliberal.

Os discursos atuais sobre o conceito parecem configurados nos interfaces entre

correntes opostas. De um lado, um movimento de ideias hegemônicas construídas em

torno da retórica neoliberal, incorporadas nas exigências e condicionamentos dos

programas de assistência ao desenvolvimento veiculados pelas agências internacionais,

as organizações supranacionais do sistema mundial, e as organizações não

governamentais. No léxico do discurso desenvolvimentista, a sociedade civil joga um

papel fundamental na reconfiguração das relações entre Estado e sociedade, através de

processos de destituição do Estado dos poderes e atribuições com relação aos cidadãos,

nomeadamente nas garantias de proteção social e de desenvolvimento do capital

humano e social.

Na África em geral, e em Angola em particular, o conceito de sociedade civil ganhou

visibilidade pública nos anos 90 do século XX, coincidindo com a expansão global da

ideologia neoliberal sob o slogan do fortalecimento da sociedade civil no âmbito da

liberalização política e económica, liderada pelas instituições financeiras de Bretton

Woods, as agências multilaterais das Nações Unidas (em particular o PNUD), e

bilaterais ocidentais. Também remonta a esta época a colagem entre a ideia de

sociedade civil e ONG’s com funções cívicas mas também sociais e económicas. Neste

novo entendimento de sociedade civil - praticamente oposto ao que prevaleceu nos anos

70 e 80, quando o conceito era usado para mobilizar a crítica e a resistência contra

regimes autoritários na América Latina e na Europa do Leste, e a resistência e a luta

contra os regimes coloniais na Ásia e na África -, os protagonistas mais visíveis não são

os diversos atores sociais nacionais, mas sim as ONG’s transnacionais (porque as

nacionais não haviam sido criadas ou porque, mesmo existindo, não tinham a

capacidade nem os meios para agir), transformadas em promotoras do desenvolvimento

democrático do mundo.

Sendo o Estado compelido a renunciar a uma participação direta na produção e na

distribuição da riqueza nacional, e a reduzir as suas funções à manutenção da ordem

pública e à regulação multidimensional da actividade política, econômica e social, as

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ONG’s são apresentadas como os mecanismos ideais para a provisão de serviços

sociais. Apesar do seu discurso profundamente político e hegemônico, assumem-se

como apolíticas e não-lucrativas, negando qualquer afinidade com a política e

afirmando apenas um espírito de filantropia. Nos últimos anos, a juntar-se ao pacote de

serviços sociais públicos, as ONG’s receberam o mandato adicional de democratizar o

mundo através da difusão e promoção da democracia e da sociedade civil, como parte

da sua missão pró-desenvolvimento, numa estratégia bem liberal de reduzir questões

essencialmente políticas, como a pobreza, a desigualdade e a exclusão sociais, a

injustiça social, entre outras, a questões econômicas ou éticas, despolitizando os vários

domínios do mundo da vida, de maneira a lidar com os conflitos políticos através de

mecanismos de mercado. Este mandato transformou as ONG’s em sociedade civil por

excelência256. Neste seu papel, surgem como fundadoras da cultura cívica, o bastião

para combater as forças não-democráticas que ameaçam a sociedade. Mas as

organizações da sociedade civil não se limitam às ONG’s, e este discurso traduz uma

versão ideológica da sociedade civil, que não é, em si, um bastião da democracia

conforme se pretende, sendo comuns as tentativas de dominação e / ou de luta por

posições hegemónicas (poder de imposição de normas, práticas e concepções de

destaque, de comando ou liderança e de prestígio) entre e dentro das organizações que a

integram.

Ainda no que respeita ao papel das ONG’s, enquanto instâncias preferenciais de

implementação dos programas de ajuda, importa considerar uma outra vertente da

discussão: a dicotomia urbano-rural. Enquanto as ONG’s políticas, envolvidas em

programas de promoção de direitos humanos, de cidadania, etc., se localizam e atuam

principalmente nas áreas urbanas, as ONG’s de desenvolvimento, envolvidas em

programas de aumento e diversificação da produção agro-pecuária, transformação

primária, fontes alternativas de rendimento, etc., atuam nas áreas rurais. As agendas, de

umas e de outras, apresentam diferentes tipos de metodologias e de discursos orientados

para públicos-alvo distintos, com impactos na acentuação das distinções entre as

256 Sobre a relação das ONG’s com a sociedade civil: FOWLER, Alan. (2000), “Civil Society, NGDOs and Social Development: Changing the Rules of the Game”. Geneva, UNRISD (United Nations Research Institute for Social Development. Occasional Papers. HUDOCK, Ann C. (1999), op. cit. LUONG, Pauline J. & WEINTHAL, Erika. (1999), op. cit. SILIMAN, G. Sidney & NOBLE, Lela G. (orgs.) (1998), op. cit. TVEDTEN, Inge. (2001), “Angola 2000/2001. Key Development Issues and the Role of NGO’s”. Report 1. Bergen, Chr. Michelsen Institute (CMI). TVEDTEN, Inge. (2002), “La Scène angolaise: limites et potenciel des ONG’s”. Lusotopie, nº. 9, pp. 171-188.

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representações discursivas sobre sociedade civil entre zona urbana e meio rural,

dificultando os diálogos e mútuos entendimentos.

O segundo movimento que condiciona a configuração dos entendimentos e a elaboração

dos discursos sobre sociedade civil, comporta uma plétora de novas propostas para a

organização das relações sociais e de poder na sequência dos processos de

desconstrução do Estado e de construção de novos espaços sócio-políticos mais

adequados às novas identidades coletivas que os produzem, no âmbito das quais é

atribuída à sociedade civil a tarefa de condução da sociedade rumo a um futuro melhor.

As aspirações de grupos mais ou menos localizados e identificados com etnias, laços de

parentesco, afinidades religiosas, entre outras manifestações culturais mais

particularizadas relacionadas com subjetividades coletivas em busca de reconhecimento,

parecem expressar utopias de auto-afirmação de formas distintivas de organização da

participação e da representação257.

O recurso ao conceito para expressar expectativas e desejo de mudança para sociedades

mais inclusivas e menos desiguais, o respeito e o reconhecimento de grupos sociais

marginalizados e de minorias étnicas, a construção de solidariedades e

responsabilidades sociais mais abrangentes, etc., contrapondo à pretensão hegemónica

do discurso neoliberal da sociedade civil as visões locais e respectivas formas de

organização social e política, torna-se mais presente nos discursos à medida que estes se

relacionam com realidades sócio-culturais mais localizadas, expressando opiniões de

cidadãos e grupos de cidadãos no âmbito de quadros de referência nacionais. Importa

ainda reter as contribuições da sociedade civil global em termos da sua capacidade de

expandir e tornar mais inclusiva e diversificada a esfera pública, de influenciar

mudanças institucionais, de denunciar situações de injustiça e exclusão social, e de dar

visibilidade e voz às expectativas de grupos sociais hoje excluídos dos processos de

participação e de representação.

Os discursos que traduzem os entendimentos de sociedade civil como processos

dinâmicos e fundamentalmente políticos de interação entre várias organizações da

257 Para Boaventura Souza e Santos, o Fórum Social Mundial simboliza a “re-emergência da utopia crítica, ou seja, a crítica radical da realidade presente e a aspiração por uma sociedade melhor”. “The World Social Forum: Toward a Counter-Hegemonic Globalization”, in Jai Sen; Anita Anand; Arturo Escobar; Peter Waterman (orgs.), op. cit., pp. 336-343.

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sociedade e entre estas e o Estado, através do qual são forjadas, fortalecidas ou

enfraquecidas as relações de poder, pela criação de oportunidades para diferentes grupos

(particularmente aqueles em situações política ou socialmente desvantajosas)

adquirirem a capacidade de influenciar os resultados políticos, e contribuirem para a

emergência de modelos alternativos de desenvolvimento, constituem-se em propostas

alternativas à estratégia discursiva das instituições financeiras internacionais e das

ONG’s supranacionais, ideologicamente elaborada com base na noção neoliberal do

homo economicus258.

Relativamente às iniciativas externas de apoio e fortalecimento da sociedade civil

nacional, a análise dessa estratégia discursiva sugere que sejam tidas em atenção as suas

implicações nos processos de mudança social e política, principalmente porque a

insistência na relação entre desenvolvimento dos mercados e democratização, e a busca

desenfreada pelo desenvolvimento econômico podem “minar o processo de

democratização, por ignorar ou não prestar a devida atenção aos meios nada liberais

para alcançar a abertura dos mercados”259. Em países em processos de democratização,

as pressões econômicas podem favorecer relações patrimoniais, antigas ou recentes,

porque o acentuar das desigualdades sociais dificulta a mobilização de camadas sociais,

especialmente as mais carentes, em torno de questões sociais, acabando por privilegiar

as elites existentes, com mais oportunidades para tirarem vantagem das reformas

econômicas devido à sua posição, e a nova classe comercial emergente260.

258 MACAMO, Elísio. (2005), op.cit. 259 LUONG, J. & WEINTHAL. (1999), op. cit. 260 DILLA, H., & OXHORN, P. (2002), “The Virtues and Misfortunes of Civil Society in Cuba”. Latin American Perspectives, vol.29, no. 4, pp.11-30.

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CAPITULO 4 - A SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA: contribuições da pesquisa

de campo.

I. INTRODUÇÃO

As opiniões dos atores sociais angolanos incluídos na pesquisa261 expressam-se em

consonância com os discursos mais comuns na atualidade, constantes na literatura ou

veiculados pelos meios de comunicação, expressando as tensões, expectativas e as

visões presentes nos debates nas diferentes regiões do globo. Como conceito recorrente

é mobilizado para explicar as mudanças experimentadas pelas sociedades atuais, como

se procurou mostrar nos capítulos dedicados à construção do quadro teórico, para

apresentação e discussão dos resultados obtidos na pesquisa de campo. Em Angola,

como em outras partes do mundo, a invocação da sociedade civil como a solução para

os diversos problemas políticos, econômicos e sociais que as sociedades enfrentam, está

fortemente presente nas respostas às perguntas abertas, nas quais os participantes

expressaram as suas opiniões através das suas próprias palavras. Como acontece em

outras sociedade africanas em processo de iniciação ou de consolidação de reformas

democráticas, também os atores sociais angolanos atribuem à sociedade civil o papel de

motor na condução dos processos de consolidação da paz, da reconciliação nacional, de

justiça social, e de democratização e modernização262.

Confrontando as respostas às perguntas abertas com as respostas às perguntas semi-

abertas (construídas a partir de depoimentos, opiniões, títulos de notícias dos periódicos

locais, programas de Tv e opiniões expressas em debates públicos) parecem encontrar-

se situações de complementaridade e de fundamentação, como, por exemplo, nos traços

de solidariedade e ajuda mútua, e de confiança nas pessoas e nas instituições, ou ainda

quando se comparam as respostas sobre a constituição da sociedade civil, num e noutro

questionário; mas também se observam alguns desencontros, como quando se

261 A pesquisa de campo que forneceu o suporte empírico a esta tese é apresentada no Anexo Metodológico, que inclui os questionários usados. 262 BRATTON, Michael. (1994), “Civil Society and Political Transition in Africa”. Institute for Development Research, IDR Reports, Volume 11, nº. 6. BRATTON, Michael. & van de VALLE, Nicholas (1997), Democratic Experiments in Africa: Regime Transitions in a Comparative Perspective. Cambridge, Cambridge University Press. NKWACHUKWU, Orji (2003), op. cit. SJORGEN, Anders. (2001), “State, Civil Society and Democratisation: Theoretical Debates Past and Present”, in Bjorg Beckman; Eva Hansson and Anders Sjorgen (orgs.) Civil Society and Authoritarianism in the Third World. A Conference Book. PODSU, Stockholm University, pp.21-48. WALRAVEN, Klaas van. (2002), “Social Stratification, History and Democratization: Some Comparative Reflections on Europe and Africa”, in Klaas van Walraven & Céline Thiriot (orgs.), Democratization in sub-Saharan Africa: Transitions and Turning Points. An overview of the literature (1995-1996). Leiden, African Studies Centre, nº. 65.

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confrontam os ideais de participação, ação coletiva e engajamento social inscritos nas

respostas sobre as imagens e papéis da sociedade civil no questionário aberto, e os

resultados às perguntas sobre interesse e participação na política do questionário semi-

aberto. É ainda possível observar a não coincidência das imagens descritivas da

sociedade civil com as opiniões sobre o seu dinamismo, visibilidade e desempenho

atuais.

Parece possível retirar das respostas não só uma forte corrente normativa e ideológica,

conformando-as ao desejável das relações sociais e de poder intermediadas por

organizações da sociedade civil agindo entre o Estado, o mercado e a sociedade, mas

também um potencial utópico associado à ideia da sociedade civil como a condutora da

mudança para uma Angola melhor, sem que aparentemente se tenham em conta as

enormes dificuldades com que se defrontaria esse protagonismo nos planos político e

econômico, e até mesmo social, devido às dificuldades da ação coletiva no contexto

angolano, como se procurou caracterizar no capítulo sobre modernidade e tradição.

O pressuposto mais amplo da pesquisa assumia a contextualização das imagens sobre a

sociedade civil em Angola. As opiniões dos atores sociais que participaram na pesquisa

de campo expressam-se recorrendo a discursos e representações comuns na literatura

sobre o tema. Ainda que limitadas, as aberturas do espaço público angolano após as

reformas dos anos 90 e após o Acordo de Paz que, em 2002, pôs fim a décadas de

guerra civil, criaram oportunidades para a apropriação do conceito pelos atores

angolanos e a sua inclusão nas representações a que os mesmos recorrem nos seus

pronunciamentos sobre as soluções para Angola no pós-guerra.

Se nesta apropriação pode perceber-se a inspiração em processos de democratização no

continente, em particular o que legalizou a oposição ao regime do apartheid na África

do Sul, e a influência dos discursos e representações das agências multi e bilaterais, das

ONG’s e de outras organizações da sociedade civil global, facilitada pela evolução

tecnológica dos sistemas de comunicação, ela mostra-se sui generis em termos dos

critérios de pertenciamento a que os atores recorreram, ao incorporar na sociedade civil

os grupos informais, as organizações de base, e as igrejas e organizações constituídas

com base na fé e na solidariedade religiosas, e também no que respeita aos processos de

gênese da organização da sociedade civil, ao argumentarem a favor da realização de

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conferências nacionais e de assembleias instituintes, que remetem a formas criativas de

recuperação e renovação de instituições ou instâncias de deliberação e de intervenção

nos espaços públicos, buscando na tradição soluções alternativas às instituições

modernas do modelo neoliberal dominante.

Assim, se por um lado, existem comunalidades nos discursos e representações dos

atores sociais que participaram na pesquisa quando comparados com os dos atores

supranacionais (agências financeiras internacionais, agências bilaterais e ONG’s),

importa reter as singularidades porque elas representam a oportunidade para a

construção de uma sociedade civil, enquanto conceito e enquanto prática, mais

adequada ao momento que Angola vive e, por isso, com mais condições de contribuir

para a busca de saídas para a sociedade angolana, com base no potencial de mobilização

e de movimento reconhecidos ao conceito e já anteriormente referidos263.

Os pressupostos assumidos pela pesquisa parecem ter sido confirmados pelas respostas

obtidas, mormente no que se refere a uma noção ampla de sociedade civil envolvendo

todos os agentes que operam no espaço intersticial entre o Estado, a sociedade e o

mercado, capazes de mobilizar e organizar as demandas coletivas e individuais por

direitos civis, sociais, culturais, políticos e econômicos, de produzir novas formas de

solidariedade e responsabilidade social, e de contribuir para a criação de plataformas de

concertação social e de luta por justiça e equidade sociais. Esta dimensão analítica ou

estrutural das respostas evidenciou a importância atribuída pelos participantes às

diversas formas de organização social e às redes por elas constituídas, identificando

numa perspectiva mais ampla a noção de arena ou espaço de negociação no qual os

cidadãos se juntam e procuram promover os interesses comuns.

No concernente às motivações e aos papéis atribuídos à sociedade civil em Angola, o

pressuposto de que eles seriam relacionados com a organização de espaços de

negociação de processos de mudança, onde prevaleciam as ideias de construção de

nação e de cidadania, de modernização e democratização da sociedade, e de combate à

pobreza e à desigualdade social, confirmou-se apenas em parte devido à pouca

prioridade atribuída pelos participantes à democratização e modernização da sociedade,

263 KOSELLECK, Reinhart (2002), op. cit.

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enquanto objectivos. Estes pressupostos continham implícita uma prioridade explicitada

pelas respostas dos atores sociais que participaram na pesquisa, nomeadamente a da

consolidação da Paz e da reconciliação nacional. Esta definição cognitiva destacou a

importância atribuída pelos participantes às normas, aos valores sociais e atributos (tais

como confiança, tolerância e cooperação), fundamentais para a construção da noção de

uma sociedade “civil” que reflecte uma forma de ser e de estar no mundo, que é

diferente da racionalidade, tanto do Estado quanto do mercado264.

Importa destacar que, apesar das dificuldades e constrangimentos que se colocam à

construção das relações sociais fora das esferas de influência do Estado e do mercado

em Angola, as respostas à pesquisa mostram que os participantes recorrem a

combinações entre formas e normas para expressar as suas representações sobre a

sociedade civil, o que significa que superam as definições que destacam apenas os

aspectos organizativos ou apenas os cognitivos, estabelecendo uma conexão natural

entre ambas ao assumirem que as organizações da sociedade civil promovem valores

cívicos.

Ao atribuírem à sociedade civil em Angola papéis econômicos, sociais e políticos,

respectivamente com vista a proteger modos de vida e promover o capital social

necessário às formas de sustentação econômica no setor informal da economia, prover

serviços em áreas ou segmentos da sociedade onde o Estado e o mercado se mostram

ausentes ou ineficazes, constituir-se em reservatório de valores de cooperação, cuidado,

vida cultural e inovação intelectual, ou ainda de funcionar como motor da mudança nas

relações de poder e de regime político, os participantes evidenciaram um entendimento

inclusivo de sociedade civil que pratica a não-discriminação, promove uma base

material robusta e independente, combina formas coletivas capazes de estabelecer

relações dentro e entre os grupos e associações que influenciem o Estado no que

respeita à garantia dos direitos universais.

264 ELSTER, John. (1989), The Cement of Society: A Study of Social Order. Cambridge, Cambridge University Press.

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II. IMAGENS, CONTORNOS E PAPÉIS DA SOCIEDADE CIVIL

O pressuposto mais amplo deste trabalho considerava a possibilidade de encontrar

representações de sociedade civil marcadas pelo contexto de Angola, devido ao seu

percurso histórico (sumariamente descrito no capítulo 1), de dominação colonial

seguida de um regime autoritário e ditatorial nos primeiros 16 anos pós-independência,

um ambiente de guerra civil nos últimos 30 anos, uma abertura política em 1991 após a

assinatura dos Acordos de Bicesse, e outra mais recente, após a assinatura dos Acordos

de Paz em 4 de Abril de 2002.

Este pressuposto foi construído levando em consideração que a maior parte dos

angolanos nasceu depois da independência (50% dos angolanos têm menos de 15 anos,

60% menos de 16 anos e cerca de 85% menos de 45 anos)265, não parecendo carecer de

demonstração a afirmação de que, de uma maneira geral, os seus quadros de referência,

as suas aspirações e as suas experiências de vida foram marcados pela omnipresença da

guerra, se não diretamente, ao menos indiretamente: se não foram vítimas diretas,

sofreram os efeitos do desinvestimento na economia e nas áreas sociais pela canalização

dos recursos do país para a guerra, potenciados pela destruição das infraestruturas de

educação e de saúde, de comunicação e outras.

Essa guerra coexistiu com o período em que vigorou em Angola um regime autoritário,

durante o qual o espaço público foi ocupado pelo partido/estado, sem oportunidades

para a livre expressão de opiniões, nem da criação de uma cultura de debate e de

participação no processo de tomada de decisões. Para além do clima de intimidação

principalmente notável a partir de 27 de Maio de 1977, quando ocorreu uma tentativa de

golpe de estado, a situação de guerra realçou os instintos de sobrevivência, canalizou a

atenção das pessoas para estratégias de satisfação das necessidades básicas, introduziu

critérios de prioridade que delimitaram a expressão de opinião ao mínimo necessário e

raramente em público, e o recurso frequente ao discurso politicamente correto ou a

expressões mais comuns dos discursos oficiais veiculados pelos meios de comunicação

estatais. As dificuldades de circulação de pessoas, bens e ideias em resultado da guerra

civil, obrigaram a uma fixação forçada da população urbana nas áreas de residência,

265 INE- Instituto Nacional de Estatística/UNICEF (2003). “MICS, Multiple Indicator Cluster Survey. Assessing the Situation of Angolan Children and Women at the Beginning of the Millenium”. Analytical Report. Luanda.

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sendo que em muitos casos e durante longos períodos de tempo, muitas cidades eram

apenas alcançáveis por via aérea, e as deslocações limitavam-se a missões de serviço,

ou a situações familiares pontuais de urgência, por motivos de falecimento, de

casamento ou de conflitos.

Por outro lado, a população angolana com mais de 45 anos acrescenta à experiência da

guerra civil após a independência a vivência sob a dominação de uma potência colonial

com um regime fascista. Parece também pacífico afirmar que as suas experiências de

vida foram essencialmente marcadas pelo autoritarismo e pelas restrições impostas ao

exercício da cidadania, já de si limitada pelos padrões vigentes na sociedade portuguesa

por imperativos do regime, e em Angola ainda mais restrita, pela necessidade de cercear

as aspirações de autodeterminação, primeiro, e de independência depois, que ganharam

forma a partir de meados do século XX. Apesar de conferir direitos mais amplos, a

“cidadania de segunda” separava os nascidos em Angola dos colonos chegados de

Portugal (no âmbito da estratégia de povoamento da última fase da colonização),

qualquer que fosse o estatuto social e nível de educação destes últimos.

Esta “cidadania de segunda” era reconhecida a um pequeno número de africanos, não

abrangia a maior parte da população angolana, à qual se aplicou até 1961 o estatuto dos

indígenas266. A reforma administrativa que marcou a abolição deste Estatuto (devido à

eclosão da luta armada e às suas repercussões internacionais às quais Portugal procurava

dar resposta “negando haver algo para descolonizar, uma vez que não havia

colónias”...), fixava as relações dos “cidadãos de segunda” com as Câmaras Municipais

e/ou Juntas de Freguesia (seguindo a organização corporativista do Estado Português, e

a tradição municipalista da sua administração), e dos indígenas com as regedorias,

grupos de povoações, ou povoações267, mantendo assim uma separação entre os

angolanos que se regiam pela constitucionalidade (possível) da província ultramarina, e

os que se regiam pelas leis costumeiras ou tradicionais, que nem acesso tinham aos

tribunais268.

266 NETO, Mª. da Conceição (1997), op. cit. 267 BOLETIM OFICIAL de ANGOLA. (1961), I Série, n°. 37, Suplemento, de 13 de Setembro, p. 1110. 268 NETO, Mª. da Conceição (1997), op. cit.

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Para além de evidenciar a intencionalidade de exacerbar e fixar as diferenças naturais

entre os angolanos (com base em estudos antropológicos, dos quais se destacam os de

José Redinha, e P.e. Carlos Estermann) pela prática do “dividir para melhor reinar” que

sempre pautou a administração colonial em Angola - e a crescente dificuldade daí

derivada em agregar solidariedades e capacidades em torno dos objetivos da libertação

nacional do jugo colonial -, esta ideologia colonial destruiu elementos das identidades

coletivas dos grupos sociais que habitavam o espaço geográfico hoje conhecido como

Angola. Este processo de aculturação e assimilação recorreu à proibição do uso das suas

línguas maternas no espaço público e pela obrigatoriedade do português no sistema de

ensino, aos programas curriculares do sistema de educação focalizados no ensino da

língua, da história, e da geografia portuguesas, ignorando ou minimizando o

conhecimento das realidades angolanas, à imposição de regras sobre nomes, maneiras

de vestir, profissões, ocupações laborais, e crenças religiosas, etc., compatíveis com o

estatuto de assimilados. Se ser negro ou mestiço assimilado ou branco nascido em

Angola equivalia a uma cidadania de segunda, ser indígena ou gentio equivalia a não ter

nenhum direito de cidadania. Esta situação foi comum às demais sociedades colonizadas

em África, como extensivamente o demonstram estudos sobre a desigualdade de

cidadania entre os cidadãos e os sujeitos nos estados coloniais269.

Sem pretender aprofundar a análise da situação colonial em Angola, nem estudar as

causas e os efeitos da guerra, importa assinalar a essência que destas situações se retirou

para a construção do pressuposto da contextualização das ideias sobre sociedade civil:

os efeitos conjugados da curta experiência de um processo democrático (ainda que

entendido de maneira minimalista, ou seja, reduzido à realização de eleições gerais, em

1992, apenas, e à constituição de instituições da democracia representativa, como a

Assembleia Nacional), após uma longa vivência marcada pelo não exercício da

cidadania pela maioria da população, a ausência de uma cultura de participação e de

debate, a não valorização da própria opinião e da dos outros, a violência e a falta de

perspectivas decorrentes do ambiente de guerra, as dificuldades na circulação de

pessoas, bens e ideias, entre outros, teriam contribuído para a configuração de uma ideia

de sociedade civil limitada pelas experiências locais, pela ausência de diálogo interno e

com o exterior, pela falta de protagonismo em práticas democráticas no espaço público

269 MAMDANI, Mahmood. (1996), op. cit. EKEH, Peter (1975), op. cit.

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potenciada pelo medo de retaliações, pela insegurança e pela falta de confiança nas

pessoas e nas instituições.

Para além das 10 perguntas abertas relacionadas com as imagens, contornos e papéis

atribuídos à sociedade civil em Angola, a pesquisa incluía, ainda, um questionário

visando obter informações sobre participação, solidariedade, associativismo,

voluntariado, relações de vizinhança, e sentimentos de confiança nas pessoas e nas

instituições, entendidos como próxys de cultura cívica. O objetivo era o de encontrar nas

respostas às 20 questões deste questionário, eventuais razões, ou explicações para as

esperadas contextualizações das representações sociais do conceito em Angola.

A escolha de um amplo leque de atores sociais buscou ampliar o campo de recolha de

opiniões sobre o tema. Os grupos “mulheres” e “jovens” foram incorporados com o

objetivo de conferir representatividade à amostra face à constituição da população

angolana, majoritariamente feminina (52%) e jovem (85% com menos de 45 anos de

idade).

Alguns questionários dirigidos a categorias de análise incluídas na amostra, como

entidades religiosas, meios de comunicação social, poder local e setor informal, visavam

a recolha de opiniões e informações complementares aos dois questionários-base,

alimentando a discussão sobre os entendimentos em relação à sociedade civil, os

critérios de pertencimento, as motivações para a ação coletiva, a construção de

solidariedades e responsabilidades sociais, e as relações entre o Estado e a sociedade em

Angola.

1. Os entendimentos sobre sociedade civil

Em geral, as imagens dos atores sociais angolanos sobre sociedade civil recorrem a

expressões que remetem a formas de organização da ação coletiva como as de conjunto,

grupos de interesse, grupos de pressão ou grupos intermediários, organizações e

instituições sociais, funcionando num terreno, ou espaço/esfera situado entre o Estado e

a sociedade, com o qual a maioria se identifica, e no qual se produz a negociação do

consentimento sobre ideias e iniciativas de ação coletiva, no interesse de grupos ou no

interesse comum mais amplo, ou bem comum.

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Estas estruturas organizativas são integradas por cidadãos, pessoas singulares,

individualidades, intelectuais, formadores de opinião, e também por redes de

informação, fora, coalisões, alianças e outras instituições sociais. Estas opiniões

traduzem um entendimento da constituição da sociedade civil que engloba estruturas

formais (as organizações e as instituições sociais), estruturas informais (os grupos), e

pessoas singulares às quais se reconhece a capacidade de influenciar a opinião pública,

de promover a aglutinação de interesses e anseios, e de contribuir para o alcance do bem

comum.

A grande maioria270 dos participantes recorreu a noções de agrupamento, de

organização e de conjunto, ou ainda “de vasto leque de indivíduos, organizações, mídia,

associações, igrejas e outras”, para expressar as suas imagens sobre sociedade civil.

Essas imagens são complementadas com as ideias de “pessoas/indivíduos”, e

“cidadãos”, incluindo ainda personalidades ou individualidades com capacidade de

influenciar a opinião pública. Parece presente na grande maioria das respostas o sentido

do coletivo, tanto do ponto de vista da constituição, quanto do ponto de vista dos

objetivos perseguidos. O sentido de movimento embutido no conceito de sociedade

civil271 está contido nas respostas através da atribuição do potencial de mobilização de

forças sociais com vista à indução de processos de mudança, nas respostas abertas, e da

seleção dos movimentos sociais na lista de organizações e instituições apresentada aos

participantes para que indicassem quais, em sua opinião, integram a sociedade civil.

Como exemplos, algumas das imagens identificam a sociedade civil com “uma força de

mudança”, “uma oportunidade para a participação dos cidadãos na gestão pública e na

tomada de decisões”, “iniciativas de pessoas sem vínculos com os poderes públicos,

mas colaborando com eles”, “os que atuam entre os ‘sem voz’ e o Estado em sentido

restrito”, “cidadãos e suas organizações atuando no domínio público”, “grande força

que poderá ajudar o país a sair da pobreza”, “a voz da sociedade, que será ouvida e tida

em conta”, “força capaz de provocar mudanças sócio-econômicas no país, penso na

solução para o país”, para citar algumas.

270 Na avaliação dos resultados recorreu-se ao critério de 50%+1 das indicações para considerar “maioria”, > 75% para “grande maioria”, e < 25% para “poucas”. As avaliações qualitativas relativas às atribuições, funções e papéis da sociedade civil são apresentadas na ordem decrescente do número de indicações registradas nas respostas. 271 KOSELLECK, Reinhart. (2002), op. cit.

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As qualificações atribuídas pela grande maioria das respostas às estruturas da sociedade

civil são as de organização, de promoção da cidadania, da tomada de consciência e

exercício de direitos e deveres, de união, de participação, de formação de opinião, de

discussão e debate, e de mobilização da ação coletiva. As funções de representação, de

iniciativa, de influência e de dignidade constavam da maioria das respostas, enquanto as

funções de responsabilidade, de reconhecimento de voluntariado e de filantropia

manifestavam-se em cerca de ¼ das respostas.

Do ponto de vista das motivações vinculadas às imagens da sociedade civil em Angola,

o bem comum ou o bem social, uma sociedade mais justa, mais equilibrada, e no

interesse coletivo ou comum, são as mais presentes na grande maioria das opiniões,

enquanto justiça, democracia e liberdade (associadas), participação na tomada de

decisões e na resolução dos problemas sociais, e envolvimento direto nas decisões do

país, foram agregadas às imagens em pouco menos da maioria das respostas. Os fins

cívicos e a ampliação da cidadania, a visibilidade dos sem voz, a preservação de valores

morais, a indução de transformações e/ou mudanças sócio-econômicas duráveis, com

base numa participação entendida como voluntária, mereceram, igualmente, indicações

pela maioria dos participantes.

As atribuições mais frequentemente relacionadas com essas imagens são as de

organização, intervenção e coordenação da ação no espaço entre o cidadão e o Estado,

de representação e de influência no processo de tomada de decisões, de oportunidade de

participação na gestão da “coisa pública”, de constituição de parcerias e de apoio ou

ajuda ao Estado. Interação, questionamento, crítica, influência, complementaridade,

resolução dos problemas sociais, dar voz à sociedade, e fazer valer as suas ideias e

convicções no combate à pobreza, na gestão local e no desenvolvimento e progresso

social, constituem a maioria das atribuições embutidas nas opiniões dos participantes.

Apesar de menos representativa, a função ou atribuição de se constituir como alternativa

ao poder instituído também foi sugerida pelos poucos participantes que consideram os

partidos políticos como integrando a sociedade civil.

Para posterior reflexão ao longo da discussão, importa reter desta primeira leitura dos

resultados que as imagens, e acima de tudo as funções éticas e normativas atribuídas à

sociedade civil pela maioria dos participantes na pesquisa, são mais comuns em

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abordagens teóricas do que nas empíricas, nas quais se encontram mais contribuições no

tocante a explicações e compreensões realistas do papel, natureza, carácter e finalidade

das formas de engajamento entre o Estado e a sociedade. A particularidade, aqui, tem a

ver com o fato de todas essas imagens serem construídas em torno do alcance do

objetivo maior dos participantes (facilmente extrapolado para a sociedade angolana em

geral), que é o alcance da paz social durável, pelo que a reconciliação entre os

angolanos surge quase sempre de imediato. A sociedade civil parece ser entendida,

assim, como um baluarte na luta pela consolidação da paz e preparação do terreno para

a convivência pacífica entre todos os angolanos, apesar das suas diferenças,

correspondendo ao espaço do diálogo e da inclusão, do respeito pela diferença, e da

tolerância, que permitiria evitar um retorno à guerra.

Considerando a natureza relacional do conceito, importa interpretar os vazios entre as

abordagens teóricas e as práxis da sociedade civil, prestando especial atenção aos

contextos e às conjunturas no âmbito dos quais a análise é feita, às relações entre o

Estado e os cidadãos, particularmente as organizações criadas pelos atores para interpor

formas alternativas de participação no processo de tomada de decisão e pressionar o

Estado a uma abertura mais abrangente e tendencialmente crescente do espaço público.

Nesse sentido, é necessário perceber a que critérios de pertencimento os participantes

recorrem para delimitar a inclusão na sociedade civil, e o porquê dessas escolhas.

2. Critérios de inclusão ou de pertencimento

Com base no pressuposto mais amplo da contextualização das imagens, contornos e

papéis atribuídos à sociedade civil em Angola, assumiu-se que as interfaces

público/privado, moderno/tradicional e formal/informal, seriam igualmente importantes

para a elaboração, pelos participantes, dos critérios de inclusão ou de pertencimento.

Devido ao contexto de Angola, assumia-se que os critérios de pertencimento a que os

participantes recorreriam para delimitar os contornos da sociedade civil conteriam

elementos destas três interfaces, partindo da ideia de que nelas se materializa a divisão

do país em diversos mundos, pela inexistência de pontes e modos coerentes de

articulação das ordens jurídicas prevalecentes - a constituição e o conjuntos de normas

do direito consuetudinário -, reduzindo as possibilidades de colaboração entre os atores

sociais e aumentando a probabilidade de eclosão de conflitos entre esses vários mundos,

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pelos vazios devidos à ausência de laços resultantes de escolhas sociais entre espaços

político-jurídicos em aparente oposição. A ausência de articulação cria espaços sociais

instáveis, porque envolvem contingentes populacionais consideráveis – incluindo, entre

outras, as pessoas deslocadas das suas áreas de origem devido à guerra ou em busca de

melhores condições de vida, e que se fixaram na periferia dos principais centros urbanos

-, cujos problemas identitários se avolumam sem uma visível reação por parte dos

poderes públicos: de um lado, a modernidade truncada por uma ordem jurídica que se

pretende única, legal mas ilegítima, do outro lado, uma tradição plural bem enraizada de

ordens jurídicas legítimas, mas ilegais272.

Contudo, os resultados mostram que os critérios de pertencimento ou de inclusão mais

valorizados pelos participantes na pesquisa situam-se na interface público/privado,

Estado/não Estado, ou, dito de outra forma, definem-se na autonomia em relação a este,

na capacidade de influenciar o processo de tomada de decisões e as políticas públicas,

na promoção e exercício da cidadania, e na democratização da sociedade. A interface

moderno/tradicional merece alguns comentários, na medida em que a ele se recorre para

excluir instituições sociais – as autoridades tradicionais – da sociedade civil, o que

indica que, à primeira vista, a sociedade civil é entendida como uma estrutura moderna

do ponto de vista das soluções institucionais para organização da vida pública. A

interface formal/informal parece não ter sido considerada muito importante, talvez

devido ao elevado grau de informalidade na vida pública angolana.

A questão da formalização, ou seja, da legalização das organizações da sociedade civil

não parece constituir problema nem critério de inclusão em si. Por experiência própria,

os angolanos sabem reconhecer o papel que grupos e associações tiveram no passado,

nas lutas contra o regime colonial e o regime de partido único instalado após a

independência, e têm no presente, agregando interesses e opiniões sobre questões

fundamentais para a sua vida, buscando a integração da opinião da sociedade no

processo de tomada de decisão, como aconteceu com a Lei de Terras, a Lei Eleitoral, a

Estratégia de Combate à Pobreza, etc., na defesa dos direitos dos cidadãos, e no

aproveitamento de algumas oportunidades que se têm apresentado, principalmente após

2002, para conduzir o país da paz militar para a paz social.

272 SANTOS, Daniel dos (2003), op. cit. SANTOS, Daniel dos (2004), op. cit.

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Para os participantes, os limites ou critérios de pertencimento que identificam as

organizações que constituem a sociedade civil em Angola, demarcam-nas acima de tudo

pela pertença ao domínio do privado, do civil, fora do âmbito do aparelho de Estado e

do governo. A exclusão de organizações militares, referida pela maioria, parece uma

preocupação relacionada com a história de guerra tão presente na vida dos angolanos,

indicando a necessidade de sublinhar o carácter “civil” dos seus constituintes. Outra

característica que parece remeter ao contexto angolano, principalmente à I República, é

a indicação do carácter apartidário ou de não filiação a partidos políticos, estes também

excluídos da sociedade civil pela maioria dos participantes. Apesar de destacarem que

as estruturas que a constituem se caracterizam pela capacidade organizativa, de

representação e de intervenção política, foi claramente indicado que as mesmas são

entendidas como não visando ou perseguindo o poder político.

Nas respostas às perguntas abertas sobre a constituição da, e os critérios de

pertencimento à sociedade civil, não foi feita nenhuma delimitação específica desta em

relação ao sistema econômico e ao mercado, o que parece indicar que os entendimentos

são formulados e se desenham seguindo modelos bipartidos entre sociedade e Estado.

Contudo, perante a lista de organizações e instituições apresentada, e em resposta à

solicitação de selecionarem os integrantes da sociedade civil, as empresas foram

excluídas pela maioria dos participantes, e, em alguns casos, também as associações

empresariais ou de patrões.

Na perspectiva da maioria dos participantes, integram a sociedade civil em Angola as

associações cívicas, as associações culturais, recreativas e desportivas, as associações de

moradores, as organizações comunitárias de base, os sindicatos, os movimentos sociais,

as organizações não-governamentais, as entidades religiosas, as associações de

produção e cooperativas, os grupos de interesse, e as comissões de bairro.

Merecem destaque algumas diferenças significativas entre os conjuntos de participantes

nas três cidades: em Malanje, não foram consideradas as associações profissionais,

indicadas por 87% das respostas em Luanda e 95% das respostas em Benguela. Por

outro lado, em Luanda, não foram incluídas as agências de desenvolvimento local,

indicadas por 63% das respostas em Benguela e 53% das respostas em Malanje. Numa

primeira reflexão, estas diferenças parecem indicar leituras diferenciadas sobre a

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constituição ou abrangência da sociedade civil, influenciadas pelas culturas urbanas de

Luanda, a cidade capital cosmopolita na constituição da sua população majoritariamente

urbanizada, mais próxima do centro de decisão e do poder, e das outras duas cidades,

com visões que demonstram ter em comum uma maior proximidade com, e talvez até

uma maior valorização, das organizações de base da sociedade.

TABELA RESUMINDO AS RESPOSTAS SOBRE CONSTITUIÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL EM

ANGOLA (por número de indicações recebidas). INSTITUIÇÕES/

CIDADES LUANDA #& BENGUELA§ MALANJE#&

AS.CÍVICAS 58/60* 19/19* 27/32* AS.CULTURAIS 49 19 27 AS.MORADORES 49 19 27 AS.PROFISSIONAIS 52 18 16 OCB’S 47 18 23 SINDICATOS 44 16 18 MOV.SOCIAIS 50 16 23 ONG’S 54 15 26 ENT.RELIGIOSAS 40 14 25 AUT.TRADICIONAIS 12 14 14 AS.PROD/COOP 37 14 23 AG.DESENV.LOCAL 30 13 17 GRUPOSINTERESSE 42 12 19 COM.BAIRRO 41 11 25 PART.POLITICOS 8 7 3 EMPRESAS 18 6 10 G.AÇÃO.PARTID. 10 5 2 MEIOS COMUNIC. 27 3 10 AG.BI/MULTILAT. 5 1 4 TRIBUNAIS 2 - - FAA 2 - 1 PARLAMENTO 2 - 2

* participantes que responderam ao questionário 2, embora nem todos tenham respondido a todas as perguntas do questionário;

Luanda: (#) os integrantes das categorias de análise “poder local” e “setor informal” não responderam a este questionário;

(&) na categoria de análise “comunicação social” responderam ao questionário 2 apenas 5 dos 10 integrantes; Benguela:

(§) os integrantes das categorias de análise “poder local”, “comunicação social”, “entidades religiosas” e “setor informal” não responderam ao questionário 2;

Malanje: (#) os integrantes das categorias de análise “poder local” e “entidades religiosas” não responderam a este

questionário; (&) na categoria de análise “comunicação social” respondeu ao questionário 2 apenas 1, e na categoria “setor

informal” responderam 6 dos 8 integrantes.

De acordo com as opiniões dos participantes, e seguindo os critérios acima referidos,

não fazem parte da sociedade civil em Angola, os partidos políticos, as empresas

(embora poucos participantes tenham indicado que as empresas privadas fazem parte),

os grupos de ação partidários, os meios de comunicação social (poucos participantes

consideraram que os meios de comunicação privados fazem parte da sociedade civil,

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estabelecendo uma ligação entre estes e a veiculação das posições da oposição), as

autoridades tradicionais, as agências bi e multi-laterais, os tribunais, as forças armadas,

e o parlamento.

Cruzando as opiniões emitidas sobre a lista apresentada aos participantes com as

respostas à pergunta aberta sobre a constituição da sociedade civil em Angola do

questionário 2, identificam-se outros integrantes, para além dos listados. Em Luanda, as

universidades, as fundações, as redes de informação, os formadores de opinião

(intelectuais, individualidades) “na condição de não serem manipulados/influenciados

por disciplinas ou lealdades partidárias, de caserna ou de sacristia”. Em Benguela, os

clubes (muito comuns naquela cidade), e as associações de naturais e amigos (de

cidades, de regiões, ou temáticas)273. Em Malanje, a família, os clubes, e as sociedades

não-governamentais. A inclusão da família no conjunto das instituições e organizações

sociais identificadas com a sociedade civil pode atribuir-se ao fato de a família ter

constituído o refúgio seguro, a protetora e a provedora de serviços básicos na ausência

de instituições públicas que garantissem tais funções, num ambiente de bastante

insegurança, politicamente turbulento e repressivo, que dominou a vida política em

Malanje até 2002, altura em que a população exigiu do presidente da República em

visita à cidade, a demissão imediata do então governador provincial274.

3. Os Papéis atribuídos à sociedade civil

Os participantes em Luanda destacaram como atribuições da sociedade civil as

seguintes: defesa de interesses de grupos ou de todos os cidadãos; defesa dos direitos de

grupos ou mais amplos, como os direitos humanos; identificação de interesses comuns

aos membros de grupos e entre os grupos; educação para a cidadania, para o exercício

de direitos e o cumprimento dos deveres; emancipação cidadã (“cidadãos pensarem

pelas suas próprias cabeças”) e participação no processo de tomada de decisão;

273 Segundo um participante, os partidos políticos “civis” também pertencem à sociedade civil: o sentido contido

nesta opinião parece relacionar-se especificamente com o contexto angolano, fazendo alusão à existência de forças militares e de guerrilha na UNITA, até há pouco tempo atrás, e relacionando as Forças Armadas Angolanas (o exército nacional) com o partido no poder, devido à separação pouco clara entre o Estado e o partido no poder herdada da I República, período durante o qual Angola foi governada por um regime político no qual não havia

separação entre Estado e partido, ou melhor, em que o partido tinha uma ascendência evidente e assumida sobre o Estado.

274 Este caso chama a atenção pelo fato de não ser comum, em Angola, o atendimento das reivindicações populares pelo poder público. Algumas opiniões vão no sentido de considerar que houve uma utilização da vontade popular por

interesses do partido no poder em Malanje.

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reconhecimento e respeito por pessoas e grupos; inclusão de grupos excluídos; criação

de parcerias entre o Estado e a sociedade e entre as organizações da sociedade entre si;

promoção da cooperação entre indivíduos, organizações e instituições; influência,

lobbying e pressão; representação de interesses de grupos e reivindicação de direitos;

debate de assuntos de interesse público, denúncia, divulgação / disseminação de

informações de interesse público; promoção da mudança social, económica e política; e

troca de experiências.

Em Benguela, os participantes consideram como atribuições da sociedade civil as

seguintes: sensibilização e motivação da população; defesa de direitos da população e

de interesses de grupos; desenvolvimento do capital humano e integração social; criação

de parcerias; informação e educação para a cidadania; eliminação da desigualdade e da

injustiça sociais; fiscalização das ações governamentais; criação de espaços de

discussão e debate de ideias e troca de experiências; defesa de direitos e de interesses.

Em Malanje os participantes destacaram as seguintes atribuições para a sociedade civil:

organização das pessoas e grupos com vista à defesa dos seus direitos e interesses;

integração e inclusão de todos (associações e grupos) no processo de desenvolvimento;

criação de espaços de expressão de pensamentos e ideias, de debate e de concertação;

organização da discussão política e da participação no processo de tomada de decisões;

luta pela justiça social, defesa e promoção dos direitos humanos, e por mudanças

sociais; influência e pressão na produção de legislação e nas políticas públicas; luta pela

Paz; combate à pobreza e resolução dos problemas da população; contribuição para a

mudança de comportamentos; cooperação com o governo e outras instituições estatais.

Quanto às funções relacionadas com essas atribuições, as respostas foram as seguintes:

em Luanda, sensibilização, mobilização, organização, união, integração cívica e social,

representação, liderança, educação / formação / capacitação dos cidadãos e suas

organizações, esclarecimento e divulgação de informações, formação de opinião,

influência da opinião pública, intervenção, manifestação, reivindicação, crítica e

denúncia. Em Benguela, informar, formar, sensibilizar / motivar / mobilizar, ajudar /

apoiar, questionar, criticar, sugerir e influenciar, intervir e representar, criar espaços de

discussão e de debate de ideias, de troca de experiências e de construção de parcerias,

defender direitos e interesses. Em Malanje, agrupar / organizar pessoas e grupos /

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incluir, informar, formar, ajudar / apoiar / promover a solidariedade e ajuda mútua,

intervir / participar / representar / “dar voz”, debater / questionar, cooperar / criar

parcerias / contribuir, influenciar / pressionar.

As respostas indicam diversas atribuições e funções de organização e coordenação da

ação coletiva na esfera entre o cidadão e o Estado. As mesmas desenvolvem as ideias

incorporadas nas respostas à primeira pergunta, e não apresentam diferenças

substanciais entre si, nem relativamente aos papéis comumente atribuídos à sociedade

civil em abordagens referidas a outros contextos, a não ser no que respeita à prioridade

atribuída à “reconciliação entre os angolanos e consolidação da Paz”. Importa ainda

salientar a diversidade de funções, coincidentes com as que surgem na literatura sobre o

tema, mas que apresentam, em geral, uma conotação normativa, parecendo corresponder

mais às enormes expectativas que os participantes depositam na sociedade civil em

Angola, do que à representação de experiências realmente vividas.

Parece possível, contudo, perceber como que uma estratificação, ou seja, níveis

diferenciados de capacidades, de obrigações, e de resultados esperados, na identificação

das atribuições e funções das organizações da sociedade civil pelos participantes,

parecendo existir um mais elevado grau de expectativas nos participantes de Luanda, e

níveis mais incipientes / modestos em Malanje.

4. Relações dos participantes com a sociedade civil

A maioria dos participantes sente-se “parte” da sociedade civil, integrando uma ou mais

das organizações identificadas como suas constituintes. Contudo, parece relevante

destacar que, em Luanda, nenhum dos 7 jovens se sente parte da sociedade civil nem

pertence a qualquer tipo de associação, o que pode ser interpretado como indicador de

um certo individualismo, de ausência de referências sobre vida associativa e falta de

cultura de participação na vida pública, de desinteresse na política em geral e um certo

desencanto em relação à situação prevalecente no país. Em outras respostas dos

questionários, este grupo etário mostrou-se muito céptico e crítico, relativamente ao

momento que Angola vive.

Poucos participantes limitaram-se a qualificar essa relação como “boa”, “ótima” ou de

“parceria”, sem darem mais detalhes sobre a mesma. Para além dos problemas inerentes

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à mobilização da ação coletiva, esta posição parece enquadrar-se no âmbito das

respostas politicamente corretas, tão comuns em pesquisas realizadas em Angola275, e

em geral atribuídas à pouca presença de discursos não oficiais no espaço público, à falta

de cultura de debate, e à não valorização da opinião própria e dos outros.

As respostas mostram-se coerentes com as dadas a outra pergunta do primeiro

questionário, segundo as quais mais de 80%, em média, dos participantes nas três

cidades pertence a algum tipo de associação: em Luanda, 78% pertence a algum tipo de associação em Benguela, 87,5% pertence a algum tipo de associação em Malanje, 75% pertence a algum tipo de associação.

5. Relações entre os constituintes da sociedade civil

Em Luanda foram identificadas as seguintes relações: inter-ajuda, interação,

solidariedade e cooperação; coordenação de estratégias quando existem interesses e

objetivos comuns; debate, intercâmbio de ideias, troca de informações e de

experiências, e elaboração de estratégias comuns; criação de fora, redes, plataformas de

concertação, debates, encontros e seminários; criação de espaços de debate, reflexão e

de solidariedade; espaços de debate e de informação; diálogo e negociação. Mas

também foram indicadas relações de competição, indiferença ou mesmo de

antagonismo, de desconfiança, e problemas de protagonismo, separatismo e

sobreposição, bem como dificuldades de mobilização e de colaboração, competição por

reconhecimento e recursos.

Em Benguela, mereceram destaque as seguintes relações: aproximação, troca de ideias e

experiências; cooperação, parceria, em actividades com os mesmos objetivos; respeito

mútuo; criação de fora, redes e parcerias. Mas também foram identificadas a

inexistência de entrosamento e de união prevalecendo o “desafio” como forma de

relacionamento, relações “não uniformes, instáveis” que vão da cooperação à acusação

mútua, e relações informais, dinâmicas e voluntárias.

Em Malanje, os participantes expressaram as seguintes ideias sobre as relações

existentes entre os constituintes da sociedade civil: aproximação, através de encontros, 275 CARVALHO, Paulo de. (2002), CARVALHO, Paulo de. (2002), Angola: Quanto Tempo Falta para Amanhã. Reflexões sobre as Crises Política, Econômica e Social. Oeiras, Editora Celta.

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debates, assinatura de protocolos e estabelecimento de parcerias; conhecimento, troca de

ideias e experiências, identificação de interesses e causas comuns; união/comunhão,

através da criação de consciência de grupo, e de contatos permanentes; inter-ajuda,

cooperação, complementaridade e concertação; criação de espaços/sistemas de

concertação – alianças, fora como o FOSCIM (Fórum das Organizações da Sociedade

Civil em Malanje), redes, clubes. Mas foram ainda identificadas “discordâncias que

levam ao afastamento de um ou mais membros”, ou seja, conflitos e discussões internas

que, por vezes, culminam em desacordos que podem dar origem a dissidências.

De uma forma geral, e apesar das debilidades identificadas, foram majoritariamente

indicadas formas de aproximação, organização, debate e busca de soluções para os

problemas comuns, de âmbito mais ou menos limitado, tanto do ponto de vista temático,

quanto geográfico. Em Malanje a avaliação mostra-se positiva, reconhecendo-se

contudo como “frágil a articulação entre as organizações / instituições que constituem a

sociedade civil”, o que pode relacionar-se com o estágio mais embrionário de

desenvolvimento de organizações da sociedade civil naquela cidade. Contrariamente ao

que aconteceu em Luanda e em Benguela, não houve qualquer referência a relações de

concorrência / competição / desentendimento, sendo enfatizadas as formas de

aproximação, de conhecimento mútuo, de troca de ideias e experiências, de discussão de

interesses específicos com vista ao alcance do entendimento, à construção de consensos,

“à ação conjunta via parcerias, evitando atropelos”.

Em Benguela, foi lembrado que os elementos constitutivos da ideia de sociedade civil

se encontram também, para além dos locais de reunião e encontro habitualmente

citados, “em reuniões programadas por líderes tradicionais, políticos ou governantes” –

sugerindo que estes seriam elementos dinamizadores / catalizadores da aproximação

entre as organizações da sociedade civil -, e que as cerimónias e os óbitos funcionam

como espaços de aproximação entre os elementos constitutivos da sociedade civil.

6. Dinamismo e visibilidade da sociedade civil

Em Luanda as opiniões vão no sentido de considerar a sociedade civil como pouco

dinâmica e pouco visível (15), emergente (18), em vias de crescimento (8), visível mas

pouco dinâmica (4) e pouco visível mas dinâmica (3). Entretanto, essa visão pode ser

entendida de duas maneiras: aqueles que, embora reconhecendo debilidades,

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fragilidades, ausências, omissões, falta de protagonismo, receio/medo, etc., reconhecem

que a sociedade civil está em expansão, se fortalecendo e reforçando as suas

capacidades de mobilização, intervenção e influência, conquistando progressivamente

mais espaço público, anteriormente praticamente colonizado pelo Estado. Por outro

lado, aqueles que apontando essas mesmas debilidades, fragilidades, ausências,

omissões e falta de protagonismo, o fazem de forma céptica, quase estática, como

revelam as respostas “semi-apática, influenciada pelo medo”, e “pouco atuante, porque

‘encalhada’ no contexto atual do país”. Poucos (4) foram mais otimistas, afirmando que

a sociedade civil está fazendo o seu papel, não só de forma responsável, participativa,

criativa, como até bem-humorada (segundo um deles). Dos que não responderam, 3

pertencem à categoria “jovens”.

Em Benguela, apenas 3 participantes consideram a sociedade civil dinâmica e visível,

“muito eficaz”, “com visão sobre os grandes problemas do país” (embora sem recursos

para agir em conformidade) ou “com grandes poderes” (mas ainda com muito por

fazer). Sete (7) participantes consideram-na pouco dinâmica e quase nada visível ou

mesmo inexistente. Acrescentaram que precisa de: estabilizar e sentir-se como tal; mais

informação e formação; mais intervenção no processo de tomada de decisões; conhecer

melhor seus direitos e deveres; ser mais eficiente e eficaz. Os demais participantes,

dividiram as suas opiniões em distintos níveis de dinamismo e visibilidade: há

dinamismo e visibilidade, mas há poucas aberturas e muitas barreiras à sua ação; algum

dinamismo, mas ainda sem a correspondente visibilidade; grande visibilidade mas

pouco dinamismo principalmente em situações de confrontação com o governo; a

intervenção ao serviço dos interesses fundamentais das comunidades amplia a

repercussão da sua participação; apesar do seu dinamismo e visibilidade, “rema contra a

maré” sendo muitas vezes conotada com “partidos políticos”. Um afirmou que “ainda é

cedo para diagnosticar”.

Em Malanje, oito (8) dos 30 respondentes fazem uma avaliação positiva da sociedade

civil, argumentando que já se vêm resultados do seu trabalho; é dinâmica e com visão

ampla (só que necessita de apoio para cumprir seus objetivos); bastante dinâmica,

influencia positivamente com propostas de políticas para o país (o problema é que não

sabe para onde vai...); tem mais dinamismo no meio rural. Outros, estabelecem uma

comparação com o passado recente: já deu passos importantes participando na definição

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de políticas para o desenvolvimento, melhorou bastante (comparando com 2 anos atrás),

existem muito mais associações em que identificamos as atividades com os seus

compromissos. Entretanto, quinze (16) participantes têm uma opinião mais negativa /

pessimista / crítica relativamente ao dinamismo e visibilidade da sociedade civil,

considerando que é passiva, não dando continuidade às atividades; fechada em torno

dos seus interesses; nem dinâmica nem visível; muito fraca, não aproveita as

oportunidades, tem pouca experiência na criação de estratégias; sofredora, desenrascada

e com pouco dinamismo; lançada à sua sorte, tem de desenrascar; desconhecimento, por

parte dos seus membros, do seu papel; rápida (do ponto de vista do dinamismo), mas

lenta (do ponto de vista da visibilidade); atemorizada, sem convicção, necessita de

muito exercício de cidadania e educação cívica; ainda não é muito sólida, poderá dar-se

um salto qualitativo com a instituição do poder local; muitas das suas organizações

ainda andam á procura do norte...; é fraca, de ambos os pontos de vista, porque não há

participação dos jovens nessa causa. Três (3) participantes optam por não qualificar a

sua resposta, limitando-se a considerar que é razoável; cada um tem seu dinamismo;

está no bom caminho. Não responderam a esta pergunta três (3) jovens.

Resumindo, a maioria dos participantes considera que a sociedade civil em Angola é

pouco dinâmica e quase nada visível, sendo muito poucos os que consideram que é

dinâmica e visível; entre estas duas posições, as opiniões dividem-se por distintos níveis

de dinamismo e visibilidade, principalmente levando em linha de conta as dificuldades,

barreiras e constrangimentos existentes no cenário angolano, e que dificultam a

expansão e fortalecimento da sociedade civil. Duas opiniões foram no sentido de

considerar que “ainda é cedo” para fazer este tipo de avaliação.

Confrontando os papéis / atribuições e funções identificados para a sociedade civil, com

as percepções sobre o seu dinamismo e a sua visibilidade, começam a desenhar-se

diferenças significativas entre as expectativas expressas quando se trata de expor as

ideias sobre o tema em respostas abertas, e as avaliações feitas sobre a mesma sociedade

civil quando as perguntas são dirigidas a um ou outro dos seus atributos,

especificamente. Várias são as interpretações para esta contradição, desde o recurso a

respostas politicamente corretas como refúgio para encobrir a verdadeira opinião sobre

as questões perguntadas, passando pela ausência de experiências de vida democrática, o

recurso a figuras ou ideias emprestadas da retórica dos discursos oficiais ou outros, até à

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expressão de utopias que identificam a sociedade civil como o motor da mudança, ou,

ainda, a influência do contexto sócio-político e cultural de Angola, particularmente os

constrangimentos à abertura plena e universal do espaço público, tão longamente

ocupado pelas instituições do Estado.

7. Satisfação com o desempenho da sociedade civil

A maioria dos participantes na pesquisa, nas 3 cidades, mostra-se insatisfeita com o

desempenho da sociedade civil em Angola, argumentando que: está muito dispersa;

precisa crescer, organizar-se e interiorizar o seu papel na sociedade; precisa impor-se

como interlocutora, agir com protagonismo e liderança no papel de contra-poder ao

Estado e no confronto do governo; deve mudar de atitude e de comportamento e

consciência: ter visão de futuro e aprender com experiências de outros países; ainda atua

com receio e com ressentimento; precisa conhecer melhor a legislação vigente e

exercitar a democracia no seu seio; ainda é muito tímida e conformada.

Poucos, 38 participantes (15 em Luanda, 1 em Benguela e 13 em Malanje), mostram-se

satisfeitos, alegando as seguintes razões: apesar dos constrangimentos e das dificuldades

de todo o tipo, até da guerra, procurou organizar-se; tem contribuído muito para a

reconciliação/aproximação entre os angolanos; tem estado presente e feito sentir sua

opinião em defesa dos mais desfavorecidos; mostra confiança no futuro e vontade de

construir uma sociedade mais justa e equitativa; as poucas organizações existentes são

sérias; tem contribuído para mudanças significativas nas políticas do Estado; as

organizações existentes são como “molas impulsionadoras” para o desenvolvimento;

está conquistando seu espaço; é a possível. Em Luanda 8 participantes não responderam

a esta pergunta.

Em resumo, foram manifestadas três posições em resposta a esta pergunta: os que

demonstram satisfação, os que demonstram insatisfação, e um pequeno número que não

respondeu. Cerca da quinta parte das respostas mostraram satisfação com o desempenho

da sociedade civil, alegando que apesar dos constrangimentos e das dificuldades de todo

o tipo, principalmente da guerra, está conquistando seu espaço. Segundo estas opiniões,

as poucas organizações existentes são sérias, têm contribuído para mudanças

significativas nas políticas do Estado, agindo como “molas impulsionadoras” para o

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desenvolvimento do país. Houve quem se considerasse satisfeito “porque esta é a

sociedade civil possível no atual contexto angolano”.

Mais uma vez, a confrontação das respostas a esta pergunta com as obtidas às perguntas

abertas, mostra diferenças significativas entre as expectativas ou aspirações acopladas

às imagens descritas sobre a sociedade civil num sentido normativo, e as opiniões dadas

às perguntas dirigidas/concretas, como as que pediam uma avaliação sobre o dinamismo

e a visibilidade da sociedade civil e o seu desempenho.

8. Influência do contexto angolano na sociedade civil

As respostas à pergunta sobre a influência do contexto angolano na constituição e no

funcionamento da sociedade civil, divididas em três categorias, os que consideram que o

contexto afeta, os que acham que não afeta, e os que preferiram omitir sua opinião,

fornecem elementos para um melhor entendimento sobre as relações entre a sociedade e

o Estado em Angola. Em síntese, os resultados indicam que:

a) a maioria (79) que respondeu à pergunta (44 em Luanda, 13 em Benguela e 22

em Malanje) considera que o contexto angolano afeta o desenvolvimento da

sociedade civil;

b) 18 defendem opinião contrária, que o contexto angolano não afeta o

desenvolvimento da sociedade civil (7 em Luanda, 4 em Benguela e 7 em

Malanje);

c) 12 não responderam à pergunta (10 em Luanda, a maioria da categoria “jovens”,

1 em Benguela e 1 em Malanje).

Os principais constrangimentos, obstáculos e dificuldades identificados pelos que

defendem que o contexto afeta a constituição e o funcionamento da sociedade civil são a

falta de transparência na condução do processo de democratização, a pouca abertura

política e a tentativa de “silenciar”, “controlar” ou “paralisar” a sociedade civil, a

inexistência de uma cultura de participação, interação e articulação dos vários grupos e

estratos sociais, a arbitrariedade no exercício do poder pelas instituições do Estado, os

limites impostos pelo quadro jurídico-legal vigente e as dificuldades financeiras e

burocráticas à criação de organizações autónomas de cidadãos, o individualismo

crescente (em geral atribuído aos efeitos do longo período de guerra civil), a pobreza

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que atinge uma grande percentagem de angolanos, a discriminação de diversos grupos

sociais e a desigualdade social.

Os principais argumentos dos que consideram que o contexto angolano não afeta a

sociedade civil parecem enquadrar-se numa visão minimalista de democracia, ao

considerar que “Angola é um Estado de Direito Democrático” e que existem

instrumentos legais e orgãos do Estado para a legalização de qualquer associação, bem

como abertura política, ou ao afirmar que “a Constituição defende a ‘sociedade civil’”,

ou ainda que “o Governo de Angola reconhece a sociedade civil como parceira”, ou que

“a Assembleia Nacional tem uma Comissão de Petições para ouvir queixas e

reclamações dos cidadãos”. Outro tipo de argumento estabelece comparações no tempo,

“o contexto era adverso no passado, na era colonial e até à morte do Savimbi e ao

cessar-fogo em 2002”.

III. ELEMENTOS DA CULTURA CÍVICA EM ANGOLA

Com vista a complementar, fundamentar e discutir, as imagens apresentadas sobre a

sociedade civil em Angola, a pesquisa incluíu um questionário semi-estruturado

destinado à recolha de elementos para avaliar as predisposições dos participantes para a

solidariedade, o associativismo e a ajuda mútua, a confiança nas pessoas e nas

instituições, o interesse e a participação na política, e as relações de vizinhança,

entendidos como indicadores de ideais, sentimentos e práticas de cultura cívica.

1. Interesse e participação na política

As respostas a um conjunto de perguntas para compreender as relações dos participantes

com o processo político permitem afirmar que a maioria mostra muito ou algum

interesse em política, apesar de existirem diferenças entre os conjuntos de respostas,

sendo esse interesse mais evidente em Luanda do que nas outras duas cidades. Os

círculos de amizade são preferidos em relação aos círculos de colegas de trabalho, pela

maioria dos participantes, para a ocorrência de conversas sobre temas políticos.

Também neste caso, existem diferenças na frequência desse tipo de conversas entre as 3

cidades: em Luanda registrou-se a maior percentagem (55%) de participantes

demonstrando “muito interesse” em política; em Benguela, a opção mais escolhida

(45%) foi a de “algum interesse”, e em Malanje prevaleceu a opção “não muito

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interesse” em 49% das respostas. Juntando as opções “muito interesse” e “algum

interesse”, a posição das 3 cidades foi: Luanda – 86%, Benguela – 76% e Malanje –

45%.

A discussão e/ou conversa sobre a situação económica e social do País mobiliza mais

atenções e disponibilidades dos participantes do que a conversa e/ou discussão sobre

política, sendo também o círculo de amigos o mais mobilizador para este tipo de

conversa ou discussão, quando comparado com o círculo de colegas de trabalho.

Relativamente à frequência da discussão e conversa sobre política, as respostas mostram

diferenças significativas entre as três cidades: ocorrem frequentemente em Luanda,

entre amigos 61% e entre colegas 52%. Nas outras duas cidades, essa conversa ocorre

apenas ocasionalmente em Benguela, 74% entre amigos e 76% entre colegas, e em

Malanje, 72% entre amigos e 74% entre colegas.

Os participantes sentem-se mais à vontade conversando ou discutindo sobre a situação

económica e social do país do que sobre política, como se pode verificar pelas respostas

obtidas nas três cidades. E mais, não existem diferenças significativas entre as três

cidades, pois como mostram os resultados a conversa sobre a situação econômica e

social do País ocorre frequentemente. Os dados obtidos foram: dos Luandenses, 84%

fazem-no entre amigos e 76% entre colegas, dos Benguelenses, 81% fazem-nos entre

amigos e 72% entre colegas, e dos Malanjinos, 50% fazem-no entre amigos e 60% entre

colegas.

Ocasionalmente os participantes procuram convencer familiares, amigos e colegas de

trabalho a envolverem-se em assuntos relacionados com a situação política económica e

social do País, embora o façam frequentemente quando se trata de questões relacionadas

com a situação econômica e social do país, o que se mostra coerente com as respostas

anteriores, e sugere que ainda se mantém um certo retraimento das pessoas no tocante a

tornar públicas as suas opiniões sobre política. Os dados sobre o hábito de convencer

familiares, amigos e colegas de trabalho a envolverem-se mais com os assuntos

relacionados com a situação política, económica e social do País, indicam que os

Luandenses são mais mobilizadores, fazendo-o frequentemente 44% e ocasionalmente

em 41% das respostas, perfazendo 85%; os Benguelenses mostram menos preocupação

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com tal mobilização, uma vez que 39% o fazem ocasionalmente e 32% frequentemente,

perfazendo 71%; os Malanjinos apresentam a mesma proporção total que Luanda, 85%,

mas distribuída de forma distinta, com 47% envolvendo-se ocasionalmente e 38%

frequentemente. De notar que a maior percentagem das respostas à opção “nunca” foi

registrada em Benguela, com 13% das respostas.

Não parece haver, contudo, um manifesto interesse em aumentar os níveis de

participação dos cidadãos nos processo de tomada de decisão e de gestão da coisa

pública. Para além do receio de retaliações por expressar opiniões sobre questões

políticas, cristalizada que parece a ideia de que a política é assunto reservado aos

membros do sistema político, alimentada pela pouca abertura do espaço público que

inibe o desenvolvimento de uma cultura de debate e a valorização da própria opinião e a

dos outros, os custos da ação coletiva parecem pesar na opção pela não participação

direta: numa sociedade que vive no curto prazo, no imediatismo por encontrar soluções

para os problemas de sobrevivência no dia-a-dia, a disponibilidade de tempo para

participar é um luxo de que a maioria não dispõe. Por outro lado, sentimentos de

inevitabilidade e de resignação, parecem também influenciar esta escolha, percebida

como a mais segura.

Atendendo à importância da informação na participação dos cidadãos no espaço público

e na formação da opinião pública sobre as questões que mais preocupam os angolanos,

importa considerar nesta discussão os dados do Índice de Acesso à Informação276,

construído a partir dos dados de uma pesquisa quantitativa realizada em 2003 relativos

às 3 cidades abrangidas pela pesquisa de campo.

Os resultados, por cidade, são os seguintes:

a) Luanda:

- Com acesso à informação - 11%, de uma amostra composta de 1 506

respondentes, ouve notícias na rádio, lê os jornais e assiste televisão,

numa base de 5 a 7 dias por semana;

- Com acesso limitado à informação - 44%, ouve notícias na rádio, lê os

jornais e assiste televisão, de 2 a 5 dias por semana;

276 O rationale da construção deste Índice consta do Anexo Metodológico, pp.24-27.

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- Sem acesso à informação – 45%, ouve notícias na rádio, ê os jornais e

assiste televisão de 0 a 2 dias por semana.

b) Benguela:

- Com acesso à informação - 3%, de uma amostra composta de 1 506

respondentes, ouve notícias na rádio, lê os jornais e assiste televisão, de 5

a 7 dias por semana;

- Com acesso limitado à informação - 23%, ouve notícias na rádio, lê os

jornais e assiste televisão, de 2 a 5 dias por semana;

- Sem acesso à informação – 74%, ouve notícias na rádio, lê os jornais e

assiste televisão de 0 a 2 dias por semana.

c) Malanje:

- Com acesso à informação - 4%, de uma amostra composta de 1 506

respondentes, ouve notícias na rádio, lê os jornais e assiste televisão, de 5

a 7 dias por semana;

- Com acesso limitado à informação - 27%, ouve notícias na rádio, lê os

jornais e assiste televisão, de 2 a 5 dias por semana;

- Sem acesso à informação – 69%, ouve notícias na rádio, lê os jornais e

assiste televisão de 0 a 2 dias por semana.

A mesma pesquisa quantitativa277 qualifica o acesso dos angolanos à informação pelos

meios de comunicação social:

- cerca de 30% dos cidadãos não têm acesso à informação via rádio, jornal ou

televisão numa base semanal, e apenas 3% têm acesso numa base diária (...),

- existe uma correlação positiva entre os níveis de acesso à informação e de

incerteza na neutralidade dos meios de comunicação, durante as eleições (p. 11)

- o nível de confiança nos jornalistas é baixo: 60% dos que têm acesso à

informação em Luanda, e 50% nas restantes províncias, revelaram que não iriam

confiar no que os jornalistas mostram, dizem ou escrevem (p.12).

Contudo, as limitações traduzidas por estes indicadores não implicam que as pessoas se

tenham acomodado ao status quo, como o demonstram as respostas a outras perguntas

277 IRI (International Republican Institute). (2003), “Expectativas dos Angolanos em Relação às Próximas Eleições”. Relatório da pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Social (A-IP). Luanda.

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da pesquisa. Por exemplo, solicitados a escolher as três afirmações que melhor

descrevem a situação do País (de 8 possíveis, escolhidas no período de Abril de 2002 e

Outubro do mesmo ano, data da preparação dos questionários, entre as mais citadas nos

orgãos de comunicação social do país), as respostas dos participantes indicam não

apenas insatisfação, mas também a necessidade de mudanças:

LUANDA BENGUELA MALANJE O sistema econômico precisa mudar radicalmente

12%

14%

7,5%

O governo deveria ser mais aberto às mudanças públicas

13%

9%

14%

É necessário criar mais oportunidades de negócios e empregos

13%

27%

20%

Precisamos de uma justiça mais justa e ao alcance de todos

21%

16%

22%

O sistema político precisa de reformas profundas

14%

9%

8%

Estado e sociedade deveriam trabalhar em parceria

12%

11%

18%

A sociedade está muito dividida e não consegue apresentar-se como parceira credível

10%

7%

7,5%

Os mecanismos sociais de auscultação criados são ineficazes

5%

7%

3%

No conjunto das respostas nas 3 cidades, os resultados são:

1º. É necessário criar mais oportunidades de negócios e de empregos (60%)

2º. Precisamos de uma justiça mais justa e ao alcance de todos (59%)

3º. Estado e sociedade deveriam trabalhar mais em parceria (41%).

Existem diferenças visíveis entre as opções nas três cidades, que mais à frente serão

analisadas; entretanto, para além de expressarem insatisfação com a situação atual e a

necessidade de mudança em sentido amplo, estas escolhas parecem indicar os caminhos

através dos quais essas opções deveriam ser concretizadas. Sendo a “mudança” o eixo

temático mais amplo das frases escolhidas, a ideia contida na seleção destas frases

visava aferir da necessidade dessa mudança pressuposta e perceber de que forma, com

que objetivos e seguindo que percurso, os participantes projetavam essa mudança.

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Considerando as oito frases selecionadas, as opções poderiam ter simplesmente

indicado a necessidade de mudanças, tanto na perspectiva política quanto na perspectiva

econômica, incluindo ou não a necessidade de mudança no sistema judicial. As

respostas obtidas, contudo, parecem mostrar que foram escolhidas frases que indicam

não apenas a necessidade de mudança, mas qualificam essa mudança, ou seja, ao

escolher “é necessário criar mais oportunidades de negócios e empregos” e não apenas

“o sistema económico precisa mudar radicalmente”, e também na escolha de “Estado e

sociedade deveriam trabalhar em parceria” em lugar de apenas indicar que “o sistema

político precisa de reformas profundas”. Por outro lado, a escolha da frase “precisamos

de uma justiça ‘mais justa’ e ao alcance de todos”, acrescenta a essa necessidade de

mudança a perspectiva de equidade social, ao defender a igualdade de condições de

acesso à justiça para todos os angolanos. A percepção da intencionalidade de expressar

a necessidade de mudança nas relações entre o Estado e a sociedade parece coerente

com a fraca incidência de escolha da frase “a sociedade está muito dividida e não

consegue apresentar-se como parceira credível”, muito presente nos discursos oficiais,

quando pretendem justificar a ausência ou a fraca inclusão da sociedade ou de grupos

dentro desta, no processo de tomada de decisão.

Por outro lado, a indicação de que essas relações se devem pautar por uma nova

distribuição dos papéis sociais pode ser a razão pela qual a frase “os mecanismos sociais

de auscultação criados são ineficazes” praticamente não foi escolhida. A reduzida

importância atribuída a esta afirmação pode ser interpretada como pouco interesse em

participar diretamente nesse processo de mudança, o que se mostra coerente com outros

resultados desta e das outras duas pesquisas realizadas na mesma altura278, cujas

conclusões parecem validar a última interpretação apresentada.

Os resultados do Índice de Participação Política279 construído a partir da base de dados

da pesquisa sobre a Expectativa dos Angolanos em relação às próximas Eleições,

indicam os seguintes níveis médios de participação:

Participação política ativa – 13%

Média participação – 27%

278 IRI (International Republican Institute). (2003), op. cit. 278 NDI (National Democratic Institute for International Affaires). (2003), op. cit. 279 O rationale da construção deste Índice de Participação Política consta do Anexo Metodológico, pp. 19-22.

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Baixa participação – 32%

Muito baixa a nula participação – 28% .

Estes resultados indicam que a maioria das respostas àquela pesquisa (60% de uma

amostra de 2 514 cidadãos de Luanda, Benguela e Malanje) se enquadra nas categorias

de Baixa a Muito Baixa, ou Nula participação política. As causas ou justificações para a

aparente contradição entre o reconhecimento (ou mesmo a exigência) da necessidade de

amplas mudanças nos sistemas político, econômico e judicial, e a falta de interesse num

envolvimento participativo direto, parecem variadas e serão discutidas no próximo

capítulo.

2. Confiança nas pessoas e nas instituições

Os níveis de confiança na sociedade angolana parecem muito baixos e os seus efeitos

são sentidos no quotidiano através dos elevados custos de transação devidos à

expectativa do não cumprimento dos acordos ou contratos firmados ou apalavrados, e à

ineficiência das instituições em geral, e particularmente as instituídas do poder de julgar

e impor sanções à falta de cumprimento dos compromissos assumidos280. Tanto em

relação à confiança nas pessoas, quanto nas instituições, as opções escolhidas pelos

participantes na pesquisa confirmam esta avaliação.

A grande maioria das respostas nas três cidades privilegiou opções que evidenciam um

baixo nível de confiança nas pessoas: (38%) demonstram ser, no mínimo, cautelosos e

precavidos nas suas relações com outras pessoas, enquanto (33%) depositam confiança

apenas nos conhecidos. Só ¼ dos participantes considera que “a maior parte das pessoas

é confiável”, e muito poucos afirmaram “não ser preciso ser muito cauteloso”. LUANDA BENGUELA MALANJE A maior parte é confiável 25% 10% 9% Não é preciso ser muito cauteloso 14% 2,5% 12% Só confio em quem conheço 29% 32,5% 38% “O seguro morreu de velho” 27% 50% 38% Não sei 5% 5% 3%

Relativamente à confiança nas instituições, as respostas indicam que as instituições

mais confiáveis são a Igreja, as associações cívicas, as autoridades tradicionais, as

forças armadas e as ONG’s. Parece importante detalhar um pouco mais as respostas 280 NORTH, Douglas. (1990), Institutions, Institutional Change and Economic Performance. Cambridge, Cambridge

University Press

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obtidas para perceber a importância diferenciada atribuída pelos participantes às

instituições nas quais depositam confiança, e procurar entender as razões dessa

distribuição.

LUANDA BENGUELA MALANJE

M B NM N M B NM N M B NM N Igreja 32 19 14 1 21 6 3 1 17 9 2 -

Governo 2 5 43 16 7 6 12 3 3 5 15 1 FAA 11 23 26 3 16 8 4 1 8 6 7 1 Justiça 4 4 56 13 6 3 16 4 5 5 15 1 Imprensa 8 13 37 6 7 7 14 1 2 7 13 - Sindicatos 5 8 38 13 4 5 12 4 8 4 6 2 Assoc.Cív. 11 31 21 1 9 9 9 2 8 7 4 - Parlamento 4 6 41 14 6 9 11 2 7 2 8 2 ONG’s 8 21 36 - 11 6 10 2 12 11 3 - Serv.Público 1 3 39 21 8 3 14 2 4 4 10 1 Empresas 5 10 39 8 6 5 16 - 2 4 10 1 Part.Políticos 4 1 36 22 1 1 22 3 5 1 11 4 Aut.Tradicio. 10 27 23 3 13 6 8 - 11 6 7 1 Polícia 5 5 36 18 5 4 16 4 3 5 14 3

Legenda: M= Muita, B= Bastante, NM= Não muita, N= Nenhuma.

A Igreja é a instituição em que os participantes mais confiam, seguindo-se as

Associações Cívicas, as Autoridades Tradicionais281, as Forças Armadas282 e as ONG’s.

À excepção das Forças Armadas, todas as demais instituições do Estado receberam

manifestações de desconfiança, sendo em geral consideradas pouco confiáveis, como

mostram os resultados obtidos pelos Partidos Políticos, a Justiça, o Serviço Público, a

Polícia, o Governo e o Parlamento. Entre as instituições pouco confiáveis, encontram-se

ainda as Empresas, os Sindicatos283, e os Meios de Comunicação.

A interpretação destas respostas como um sinal de pouca confiança nas instituições,

parece confirmar-se com as percepções de confiança institucional reveladas pela

pesquisa quantitativa284 e que mostra o seguinte cenário atual:

- “um nível geral de déficit de confiança institucional, em particular nas

instituições públicas do Estado, que ocuparam as 5 primeiras posições entre as 6

menos confiáveis para a resolução dos problemas da população”;

281 Atendendo à avaliação negativa da Justiça e ao papel de articuladores e mediadores das relações sociais que em geral lhes são atribuídos, talvez fosse de esperar uma melhor posição das Autoridades Tradicionais neste ranking de instituições merecedoras de confiança. 282 Estes resultados parecem espelhar reconhecimento, mas também algum ressentimento, em relação às FAA durante

e depois da guerra, sendo identificadas como os principais protagonistas do fim da guerra. 283 Malanje é a cidade onde os Sindicatos ficaram melhor colocados no ranking de confiança nas instituições, o que parece entrar em contradição com as respostas das autoridades tradicionais, que mostraram não estar informadas sobre os papéis e actividades dos sindicatos. 284 IRI (International Republican Institute) (2003), op. cit.

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- “um descrédito nas instituições políticas pela sua incapacidade em influenciar

positivamente a solução dos problemas da população”;

- “os partidos políticos encontram-se no penúltimo lugar de um total de 23

instituições seleccionadas entre as três mais confiáveis para a resolução dos

problemas da população (...) e quando a questão é formulada no sentido de saber

dos entrevistados em que instituição menos confia para a resolução dos

problemas da população, os partidos políticos aparecem na terceira posição”.

A pesquisa demonstrou a valorização desproporcionada de instituições como a família e

as igrejas na solução dos problemas da população, e identificou níveis diferenciados de

confiança institucional entre o centro (Luanda) e a periferia (outras províncias). Os

resultados da pesquisa quantitativa mostraram que numa amostra de 411 respondentes

das zonas urbanas das três cidades (291 em Luanda, 51 em Benguela e 69 em Malanje),

as instituições identificadas como as mais confiáveis para a resolução dos problemas

das pessoas são:

a Família (135 indicações), as Igrejas (60 indicações), e o Presidente da

República (44 indicações).

As menos confiáveis para um conjunto de 404 respondentes urbanos (291, 47 e 66,

respectivamente), são:

a Polícia (97 indicações), os Governadores provinciais (35 indicaçõe), e os

Partidos Políticos (33 indicações).

Surpreendentemente, os Amigos foram igualmente identificados como não confiáveis,

com 32 indicações285.

Na construção do Índice de Confiança286 foi considerada a necessidade de ter em conta

duas dimensões da influência das relações de confiança nas escolhas políticas dos

cidadãos:

a) a confiança embutida nas relações e percepções dos cidadãos face aos políticos e

partidos políticos, que influencia as opções entre “conhecimento dos candidatos”,

“conhecimento dos partidos”, “proximidade regional” (ser da mesma região), “as

285 A listagem da pesquisa quantitativa abrange 23 instituições, nem todas presentes na minha lista; apesar disso, pode comprovar-se que, para os respondentes urbanos das 3 cidades abrangidas pelas duas pesquisas, para os angolanos as Igrejas são das instituições mais confiáveis (apenas perdendo para as famílias), e a Polícia e os Partidos Políticos encontram-se entre as menos confiáveis. 286 O rationale da construção deste Índice consta, igualmente, do Anexo Metodológico, pp. 22-24.

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posses do candidato”, “a antiguidade/carisma de um partido político” e “melhores

ideias/propostas nas campanhas de outros candidatos e partidos políticos”, e se

expressa num voto que se pode considerar de “conservador”, “no seguro”,

ancorado num tipo de confiança que prende as pessoas ao passado, ao conhecido,

inibindo a opção pelo novo, pela inovação. É um tipo de confiança que penaliza a

inovação, o risco, a mudança, numa situação de conflito de interesses. Esta é a

componente 1 do Índice de Confiança (CONFIND1).

b) a confiança prospectiva na mudança, partindo das actuais percepções avaliatórias

das pessoas sobre comportamentos e práticas de políticos e partidos políticos,

influenciando as suas opções futuras em termos de escolhas políticas entre o

conhecido, o que está e é relacionado com “incompetência”, “favorecimento”,

“interesse”, “ausência” (de relação político/cidadão), “corrupção”, e a mudança, a

aceitação de algo novo, diferente. É um tipo de confiança que penaliza as más

práticas e favorece a inovação, a mudança. Esta é a componente 2 do Índice de

Confiança (CONFIND2).

Interpretando os resultados do Índice de Confiança, por cidade:

a) Luanda: 12% enquadram-se no grupo dos “desconfiados”, 59% no grupo dos

confiantes, abertos à inovação, pouco influenciáveis; o grupo intermédio – 29%

- pode tender para um ou outro lado, dependendo das situações;

b) Benguela: 13% enquadram-se no grupo dos “desconfiados”, 59% no grupo dos

confiantes, abertos à inovação e pouco influenciáveis por terceiros; o grupo

intermédio – 28% - pode ser “conquistado” por um ou outro lado, em função de

situações pontuais;

c) Malanje: 32% constituem o grupo dos “desconfiados”, “conservadores”,

ancorados em relações de conhecimento pessoal ou de identidade religiosa,

étnica, regional, etc.; o grupo 3, dos confiantes, abertos à inovação, pouco

influenciáveis por terceiros, é constituído por outros 32% da amostra; o grupo

intermédio – 36% - pode fazer a diferença, aliando-se a um lado ou a outro.

O cruzamento das respostas da pesquisa qualitativa com os dados do Índice de

Confiança construído a partir da base de dados da pesquisa quantitativa já anteriormente

referida, aponta para as seguintes conclusões preliminares:

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a) parece haver consistência nas constatações que metade dos respondentes 50%,

mostra desconfiança (19% em média) ou cautela e precaução (31%, em média)

no seu relacionamento com terceiros; os Luandenses mostram-se mais

confiantes do que os participantes das outras duas cidades;

b) na análise qualitativa, os bengueleneses mostram-se mais “desconfiados” do que

os Malanjinos, contrariamente ao que mostram os resultados do índice;

c) a presença de uma percentagem considerável (50% em média) de pessoas

“confiantes” – 59%, 59%, 32% - parece emprestar consistência à constatação da

análise qualitativa segundo a qual existe um potencial de mudança nos

participantes da pesquisa nas 3 cidades.

3. Ação coletiva

As respostas às perguntas relacionadas com a ação coletiva são desdobradas nas

perspectivas do associativismo, da ajuda mútua e solidariedade, e do voluntariado.

3.1. Associativismo

A maioria dos participantes na pesquisa nas três cidades (80%) pertence a algum tipo de

associação, e as associações de carácter cívico e profissional são as que mobilizam

maior número de filiações pelos participantes da pesquisa.

LUANDA BENGUELA MALANJE Profissional 28% 26% 13% Cívica 27% 19% 30% Cultural ou recreativa

16% 17% 7%

De produção 2% 5% 17% De consumo - - - Grupo de mulheres 10% 14% 10% Grupo de jovens 9% 2% 7% Caixas de apoio mútuo

- 10% -

Outras 8%: religiosa (3%), internacional(1%),desportiva (2%), de desenvolvimento (1%), ambiental (1%)

7%: promoção de espectáculos (5%), comunitária (2%)

16%: religiosa (7%), desportiva (7%), ONG (2%)

A tabela a seguir apresenta as respostas sobre as principais motivações para trabalho

cívico e voluntário:

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LUANDA BENGUELA MALANJE

1 2 3 4 5 1 2 3 4 5 1 2 3 4 5 Solidariedade 1 3 3 3 56 - - - - 29 - - - 1 34 Compaixão 19 5 5 2 15 3 1 - - 14 6 - 1 - 10 Reciprocidade 30 7 3 - 2 7 2 2 - 3 5 2 - 1 1 Dever 8 2 6 10 37 - - - 5 17 1 - 1 1 21 Identificação c/ quem sofre

7 3 6 6 30 - 1 2 - 24 1 1 - - 29

Bem comum 3 2 9 6 46 2 1 1 - 27 3 - - - 21 Tempo livre 34 7 4 1 5 8 - 1 - 8 5 2 - - 6 Crença relig. 24 6 3 2 17 5 1 - - 18 2 1 1 - 8 Satisf. Pessoal 25 9 4 1 14 5 1 - - 18 3 - 1 1 5 Neces.mudança 1 3 6 4 43 - - - 2 17 - - - 2 15 Dar esperança e dignidade

1 4 6 6 32 - - 2 2 20 - 1 1 2 23

Encontrar pessoas

19 4 8 2 13 5 1 2 - 6 3 1 2 2 5

Experiência para a vida

19 5 8 2 20 1 - 2 - 19 2 - 2 1 15

Prestígio social 18 3 5 2 16 7 - 1 1 7 4 1 1 1 6 Vergonha de recusar

34 4 1 - 2 8 - - - 1 7 - - - -

Em resumo, as principais motivações para trabalho cívico e voluntário são:

a) a solidariedade com o maior número de indicações de “muito importante” (119),

seguindo-se bem comum (94), a identificação com quem sofre (83), dar

esperança e dignidade, sentido de dever e necessidade de mudança (75

indicações cada), foram as razões apontadas como mais importantes;

b) sentimentos mais individuais também foram assinalados como muito

importantes, nomeadamente a satisfação pessoal (37), experiência para a vida

(54), prestígio social (29), e encontrar outras pessoas (24);

c) as razões que receberam maior número de indicações de pouca importância

foram vergonha em recusar (49), reciprocidade (42), tempo livre (39), satisfação

pessoal (33), crença religiosa (31) e compaixão (28). Em todas as cidades,

parece haver uma conotação negativa do conceito de “reciprocidade”, como algo

que se relaciona com egoísmo e/ou interesse de quem faz alguma coisa

esperando obter uma outra coisa em troca;

d) a motivação compaixão recebeu 39 indicações de muito importante e 28 de

pouco importante, o que parece mostrar que “ter pena” ou condoer-se com a

situação das pessoas carentes ou dos grupos-alvo a quem se dirige o trabalho

cívico ou voluntário, não é considerada uma razão “nobre” para a vinculação aos

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trabalhos cívicos e voluntários, ou ter sido relacionada com a prática da

“esmola” (compaixão pelos pedintes).

Perante a suposição de criação de uma associação, grupo, comissão, cooperativa ou

clube, as reações manifestadas, divididas entre sentimentos expressos e atitudes (por

ordem decrescente de indicações), foram as seguintes :

sentimentos expressos: aceitação/receptividade, entusiasmo / empenho / alegria,

cautela e avaliação cuidadosa dos proponentes, dos objetivos, dos grupos-alvo e

dos riscos envolvidos

atitudes de adesão, envolvimento, contribuição para o desenvolvimento da ideia,

apoio e participação, encorajamento e participação, incentivo com ideias e

experiências.

Contudo, nas 3 cidades, a maioria dos respondentes condicionou a manifestação dos

sentimentos e a concretização das atitudes, acima referidos, à idoneidade dos membros

proponentes ou fundadores, e à existência de confiança nos mesmos, a uma avaliação

criteriosa das vantagens e dos riscos envolvidos, a ver reflectidos nos objetivos da

iniciativa os seus próprios interesses, à clareza dos propósitos que devem ter carácter

social (apoiar os necessitados ou melhorar as condições de vida dos seus integrantes)

e/ou visar o interesse de todos, a não haver “fundos obscuros” nem interesses pessoais

ou de grupo.

Alguns participantes não condicionaram a sua participação neste tipo de iniciativa, mas

em Luanda e em Benguela, em todas as categorias de análise, foram poucos os que se

manifestaram prontos a aderir, incentivar e dar a sua colaboração sem condições. Em

Malanje também foram poucos os que não condicionaram a sua participação, embora

tenham argumentado que “só através das associações se torna efetiva a participação do

cidadão”, e que “associações são formas de participação na vida local”, ou ainda que a

associação “é a melhor maneira de contribuir intelectual e culturalmente, transmitindo e

recebendo conhecimentos”, sendo uma “forma de juntar sinergias em prol do

desenvolvimento” e também “um motivo de intercâmbio e de partilha”. Um traço de

desconfiança que permeia as relações sociais em Angola, anteriormente identificado,

parece constituir a razão de ser destas precauções e condicionalidades.

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3.2. Ajuda Mútua e Solidariedade

Sobre a reação perante uma notícia relacionada com o estado de saúde de alguém

próximo, as opiniões manifestadas foram divididas entre sentimentos expressos e

atitudes (por ordem decrescente de indicações), como se segue:

a) sentimentos expressos: preocupação, inquietação, compaixão, dever de ajudar,

aconselhamento, solidariedade, ansiedade, desagrado.

b) Atitude: solidariedade, apoio moral e financeiro, colocar-se à disposição,

acompanhar, informar-se/identificar o problema, encaminhamento ao médico

c) 1 participante (Luanda) condicionou esta ajuda e apoio ao conhecimento de

“quem necessita”, vizinho ou amigo.

A reação perante a confidência, por parte de alguém próximo, de estar passando por

graves problemas financeiros, mostrou os seguintes resultados: a procura por formas de

ajudar em 57% das respostas, e na impossibilidade de ajudar diretamente, encaminhar a

quem possa faze-lo, em 40% das respostas. Os resultados obtidos constam da tabela

seguinte:

LUANDA BENGUELA MALANJE “Fico na minha”, afinal só se queixou, nada pediu...

- - 2%

Procuro forma de ajudá-lo

58% 54% 60%

Todos estamos com dificuldades

1% 2% -

Não podendo, procuro encaminhá-lo a quem o possa ajudar, recomendando-o

40% 44% 38%

Nenhuma destas 1% - -

Estas respostas mostram-se consistentes com as anteriores, permitindo identificar um

traço de solidariedade e de vontade de ajudar quem necessita, tanto numa situação de

doença quanto num caso de necessidades financeiras, apesar das dificuldades que a

maior parte das pessoas enfrenta no dia-a-dia. Mas parecem expressar também a busca

por soluções individuais e de grupo em detrimento de soluções institucionais, o que

sugere que a maior parte das pessoas não espera ou não acredita em soluções universais

através de políticas públicas abrangentes. Parece necessário estabelecer uma relação

entre estas respostas e a situação de crise social prevalecente na sociedade angolana há

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séculos: escravidão, colonização, regime autoritário e guerra. O refúgio na família e nas

igrejas como fontes de solidariedade e de ajuda, parece natural numa situação em que as

pessoas pouco confiam na possibilidade de obterem ajuda por parte das instituições do

Estado.

3.3. Relações de Vizinhança

As escolhas mostram sentimentos de animosidade dentro dos padrões de resposta

possíveis de obter em qualquer cidade do mundo, pois dirigiram-se a “tipos” sociais em

geral mal quistos. LUANDA BENGUELA MALANJE Passado criminal 12% 8% 7% Outra raça - - - Extremista político 24,5% 16% 13% Bêbado 17% 23% 21% Família numerosa 1% 1% 1% C/ perturbações mentais

12% 9,5% 7%

Deficiente físico 1% 1% 2% Imigrante/estrangeiro 3% 2% 3% Drogado 19% 25% 28% Homossexual 6,5% 9,5% 14% Outros: 4%: racista, fanático,

tribalista, abusador, conflituoso, novo rico arrogante

5%: insensível, autoritário/orgulhoso Com qualquer tipo de pessoa (2%)

4%: gatuno (2%) e não especificados (2%)

Assim, os participantes indicaram que os drogados (24%), os bêbados (20%) e os

extremistas políticos (18%) são os vizinhos indesejados, ganhando dos que têm passado

criminal, das famílias numerosas, dos doentes mentais, dos deficientes físicos, dos

homossexuais. Importa registrar que não se registraram manifestações de “racismo”

(nenhuma indicação) nem de “xenofobia” (3%).

IV – EM JEITO DE CONCLUSÃO

A interpretação das respostas à pesquisa, e do cruzamento ou confrontação dessas

respostas com os resultados das outras duas pesquisas já referidas, mostrou que os

entendimentos dos atores sociais sobre o conceito de sociedade civil em Angola são

bastante compreensivos e amplos, evidenciando as percepções mais comuns sobre a

natureza da sua composição, as funções e os papéis sociais que lhe são atribuídos. As

respostas enquadram-se numa perspectiva de sociedade civil como um amplo espaço de

relações sociais auto-reguladas buscando a emancipação do poder político, tendo como

objectivo a criação de instâncias de transformação das relações de dominação sem

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pretender constituir-se como contra-poder ou antítese do Estado, reconhecendo, pelo

contrário, a distinção e complementaridade de ambas as esferas – e a legitimidade de

uma e de outra -, e o papel do Estado em promover a emergência e o fortalecimento da

sociedade civil, numa sociedade com pouca experiência de vida política independente.

À primeira vista, essas respostas parecem moldadas por uma certa normatividade,

traduzindo uma prescrição de tarefas a constituir a agenda da sociedade civil em Angola

para os próximos anos, que correspondem às encontradas na literatura sobre o tema. Por

um lado, as respostas às perguntas abertas do questionário 2287 atribuem à sociedade

civil o papel essencial de motor de uma ampla mudança institucional e de valores, num

processo que visa a consolidação da Paz e a melhoria das condições de vida dos

angolanos. Reconstituindo as respostas dos participantes a partir dos entendimentos

sobre o que é e como se constitui a sociedade civil, parece pacífico assumir que o

protagonismo desse processo é conferido aos cidadãos, e aos grupos e organizações por

eles constituídos e que integram a sociedade civil, com capacidades reconhecidas de

mobilização, articulação, organização, representação e participação, entre outras.

Por um lado, e como já se referiu, esta abordagem levanta algumas interrogações, na

medida em que as opções que implicariam a criação, promoção ou reforço de instâncias

de participação dos cidadãos, não mereceram prioridade nas escolhas dos participantes.

Algumas interpretações para estes desencontros podem ser sugeridas, entre as quais que:

• optaram por emitir opiniões “politicamente corretas” e normativas sobre os

papéis comumente atribuídos à sociedade civil na literatura e nos discursos dos

políticos e intelectuais, bem como das agências multi e bilaterais de cooperação,

reproduzindo a ideologia da sociedade civil dominante;

• auto-limitaram o protagonismo da sociedade civil implícito nas respostas

abertas, em resultado das experiências de vida sob um regime autoritário, no

âmbito do qual o significado mais comum atribuído ao conceito de participação

é o de ouvir as prioridades do governo e fazer o que ele espera seja feito para

concretizar essas prioridades,

• consideram que a consolidação da Paz e a melhoria das condições de vida da

população são objectivos alcançáveis através do crescimento econômico, do

287 Os questionários da pesquisa constam do Anexo Metodológico.

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combate à corrupção e de uma gestão mais transparente (na perspectiva da boa

governação e da prestação de contas) dos recursos e interesses públicos.

Numa outra perspectiva, os discursos destes atores sobre a sociedade civil podem ser

percebidos como utopias, veiculando ideias e orientações relacionadas com a

transformação da realidade angolana, tão duramente por eles criticada. Embora se possa

reconhecer algum sentido coloquial na utopia da “boa sociedade”, capaz de induzir e

conduzir o processo de mudanças tão desejadas pelos angolanos, as ideias inscritas nas

respostas à pesquisa (de forma mais evidente nas respostas abertas, nas quais os

participantes recorrem às suas próprias palavras para exprimir sentimentos, aspirações,

receios e frustrações), parecem impregnadas de visões de reconstituição da sociedade

angolana, como imagens fundacionais de uma sociedade desejável.

Parecem colocar-se duas opções para a interpretação dos resultados até agora

apresentados: por um lado, a reprodução da hegemonia cultural predominante,

caracterizando um cenário em que prevalecem as ideias de preservação do status quo,

pautando-se pela omissão dos cidadãos na participação activa nos processos de tomada

de decisão, e limitando o exercício democrático de cidadania à escolha periódica dos

seus representantes pelo voto, à recepção das informações relacionadas com a gestão

dos recursos e interesses públicos sob a forma de prestação de contas por parte das

instituições do Estado, num processo unilateral de mão-única, configurando em lugar do

papel social do cidadão, o de “cliente” (ou beneficiário, o que o torna ainda mais

passivo) do Estado e do mercado. Por outro lado, a capacidade crescente de afirmação

no espaço público de uma ideia transformadora de sociedade civil, caracterizando um

cenário de mudanças mais amplas e abrangentes tornadas possíveis pelas construções

coletivas com base no valor positivo de transformação atribuído ao conceito, ampliando

os espaços públicos de participação cidadã aos diversos níveis e sobre os mais variados

temas (inclusive a discussão política fora do sistema político-partidário), e estendendo o

exercício da cidadania a uma porção progressivamente maior de grupos sociais, hoje

excluídos (pobres, ex-militares, setor informal, mundo rural, etc..).

As interrogações colocadas no primeiro período desta conclusão remetem a indagações

sobre a apreciação valorativa dos participantes no que respeita à importância dos

processos de democratização e de modernização da sociedade angolana como esteios

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para o alcance de objectivos como a consolidação da Paz, a erradicação da pobreza e a

eliminação da desigualdade social, e a ampliação da cidadania, como pressupunha a

pesquisa.

Se a análise subsequente apontar para a prevalência dos discursos ideológicos de

manutenção do status quo, os papéis atribuídos à sociedade civil ganharão contornos

cada vez mais evidentes de provedora de serviços sociais em parcerias com o Estado, na

execução de políticas de desenvolvimento do capital humano – erradicação do

analfabetismo, combate à pobreza, redução da mortalidade infantil, entre as priorizadas

-, e políticas tendentes a eliminar a corrupção e conferir mais transparência à gestão dos

interesses públicos. Este caminho será sinalizado pela não priorização de opções que

impliquem a promoção da participação ativa no processo de tomada de decisão sobre as

questões de interesse público.

A afirmação das ideias utópicas de transformação social inscritas nas respostas abertas,

sustentar-se-ia em opções privilegiando a mudança nas relações sociais e de poder, para

conduzir o país na trilha do progresso e desenvolvimento social, englobando estratégias

para o estabelecimento de uma cultura de Paz, o combate à pobreza e à desigualdade

social, através da promoção de políticas de desenvolvimento do capital humano num

quadro de mudanças e/ou reformas institucionais mais ou menos profundas, envolvendo

os sistemas político e econômico, visando a mudança de comportamentos e de

mentalidades, e a gestão mais transparente e participativa dos interesses públicos.

Neste cenário, que implica a aquisição gradual do poder formal de decidir sobre si e os

seus caminhos, opções e estratégias de forma cada vez mais autônoma, a sociedade civil

estaria cada vez mais capaz de co-protagonizar com o Estado a condução dos processos

de mudança e de desenvolvimento do País tão desejados. Mas para isso, contudo, é

fundamental a abertura progressiva do espaço público por desocupação pelo Estado, e o

debate público das bases fundamentais da sociedade a construir em Angola, o que passa

pela discussão das relações de poder, da sua posse e do seu exercício, num ambiente de

abertura para a discussão das, e escolha entre, distintas modalidades de reinvenção do

“estar-em-conjunto”.

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CAPÍTULO 5 – A SOCIEDADE CIVIL COMO MOTOR DA MUDANÇA

I. INTRODUÇÃO

Retendo do capítulo anterior, dedicado à análise das representações de sociedade civil

de diversos grupos de atores sociais em 3 cidades de Angola, os papéis que lhe foram

atribuídos, importa destacar a profusão de atribuições e funções com elas relacionadas

conferidas pelos participantes na pesquisa à sociedade civil. Em jeito de síntese, parece

pacífico afirmar que o essencial desse papel social é o de motor de um processo de

transformação societal pluridimensional, onde se destacam as funções de articulação e

mediação de interesses dos diversos grupos sociais que constituem a sociedade

angolana, o fortalecimento das suas formas de organização, e a sua proteção contra a

dominação das elites no poder.

A sociedade civil parece percebida como o espaço de formação democrática da opinião

pública, enquanto expressão do consenso ou dissenso (os desacordos morais de

Taylor288) com respeito às instituições, veiculada pelos órgãos de comunicação social.

Esta função surge particularmente valorizada, dada a situação de transição que o país

vive, de um regime289 autoritário (no qual a sociedade civil foi absorvida pelo

Estado/partido e onde prevalecia uma opinião oficial), para um regime que se anuncia

pluralista no discurso, mas que, apesar de mais aberto que anteriormente, continua a

mostrar extrema dificuldade em lidar com a diferença de opinião e das formas de estar

em sociedade.

As percepções dos actores sociais colhidas pela pesquisa vão no sentido de considerar o

regime político angolano como pouco propenso a implementar mudanças institucionais

com vista à efectiva separação de poderes, ao fim da convivência promíscua entre

aparelho de Estado e o partido no poder290, e à promoção de um ambiente democrático

em todos os níveis da vida do país, nomeadamente através da implementação dos

programas de descentralização e desconcentração do poder político e administrativo.

Perante a mudança nas relações de força no plano internacional, e as pressões internas

crescentes nos anos 80, o Estado angolano, que se caracterizava pelo seu fechamento e 288 TAYLOR, Charles (1993), op. cit. 289 O conceito de “regime” é usado nesta tese para significar os distintos arranjos institucionais, como por exemplo: democracia representativa, autoritarismo burocrático, regime de partido-único. 290 Manifestada abertamente na ambiguidade dos discursos do Presidente da República que é, simultaneamente presidente do partido no poder, candidato à presidência nas próximas eleições, chefe do executivo, e, ainda, comandante-em-chefe das forças armadas angolanas.

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pouca permeabilidade em relação à sociedade, uma estrutura de governação

neopatrimonialista, um regime monopartidário e uma forte oligarquia militar

relacionada com a longa duração da guerra civil, promoveu a mudança para uma

democracia representativa. Contudo, procurou assegurar o controle sobre os recursos

materiais, necessário para manter o sistema de governação garantindo os fluxos de

recursos para as redes clientelistas. A prevalência desta forma de governação vem

esvaziando o conteúdo da frágil democracia representativa, formalmente instituída, e

reforça as condições da sua reprodução.

Esta resistência à mudança é percebida pelos participantes como uma ameaça, um sério

risco para a consolidação do processo democrático em Angola, formalmente iniciado

com a liberalização política - eleições, instituições da democracia representativa, e

direitos civis básicos -, no início dos anos 90. Parece existir entre os participantes a

consciência de que nem os arranjos constitucionais e institucionais, por si sós, nem a

ressurreição do sistema econômico baseado no livre funcionamento do mercado, serão

capazes de promover a instauração de um regime democrático durável em Angola. A

insistência na necessidade de mudanças nos sistemas político e econômico presentes em

inúmeras respostas a questões analisadas no capítulo anterior, assim o demonstram,

denotando a preocupação dos atores sociais com relação à capacidade de reprodução,

pelo Estado, das atuais relações de poder e sociais.

A associação entre a ideia de necessidade de mudanças e/ou reformas e a sua aplicação

tanto ao sistema político quanto ao econômico parece elucidativa da consciência da

profunda inter-relação entre a política e a economia na configuração das atuais relações

sociais e de poder; ou seja, apesar de não designado como tal, os participantes

identificaram no Estado angolano as características de estado neopatrimonialista291 ao

apontarem, ainda que nem sempre de forma direta, as suas características constituintes:

governo personalizado e organizado através de redes de clientelismo envolvendo a

distribuição massiva dos recursos do Estado e a demanda por lealdade personalizada, e

fazendo recurso à coerção, num ambiente caracterizado por um elevado grau de

informalidade, não apenas na economia de subsistência. O reconhecimento da ausência

de transparência no uso dos rendimentos que o Estado obtém com a exploração

291 BRATTON, Michael & van de VALLE, Nicholas (1997), op. cit.

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monopolista de recursos naturais como o petróleo e os diamantes – que constituem a

principal fonte de receitas -, adicionou à configuração do estado neopatrimonial novos

atores, externos, designadamente as grandes multinacionais com concessões para a

exploração de petróleo e de diamantes, e outras operando em diversos setores, como

construção civil, comunicações, entre outros.

Com base nas opiniões dos participantes na pesquisa sobre as relações entre o Estado e

a sociedade civil em Angola, este capítulo vai discutir as dinâmicas sociais que

condicionam essas relações sociais e de poder, e que configuram as imagens e as

representações que os atores sociais angolanos expressam sobre a sociedade civil em

Angola. Estas imagens parecem indicar que as funções habitualmente atribuídas às

organizações da sociedade civil em ambiente democrático precisam ser equacionadas

numa perspectiva mais ampla, recorrendo a atores sociais capazes de promover a

mediação e articulação dos interesses político-sociais nelas presentes e de influenciar a

agenda política pública, nomeadamente as igrejas as formas de poder local tradicional e

os meios de comunicação, operando como descodificadores semânticos das relações

entre atores e camadas sociais distanciados por uma profunda desigualdade social de

condições, de oportunidades e de participação, num ambiente caracterizado pela

ausência de uma cultura de debate e de troca de experiências, e de valorização da

opinião própria e de terceiros, herança de tempos ancestrais acentuada durante o regime

pós- independência. O medo de retaliações, a não valorização da opinião e da

participação individual ou em grupo, a falta de experiência de participação e expressão

de opiniões em espaços públicos, herdados do passado colonial e exacerbados após a

independência, particularmente durante a I República, criam um ambiente desfavorável

ao exercício pleno da cidadania pelos diversos atores sociais angolanos, limitam o

espaço público da sociedade civil, e facilitam a manutenção da dominação política por

parte das elites no poder.

II. O ESTADO E A SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA, SEGUNDO OS

PARTICIPANTES NA PESQUISA.

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As opiniões sobre as relações entre o Estado e a sociedade civil em Angola, por cidade,

são as seguintes:

Luanda: é muito crítica e negativa a avaliação das relações entre o Estado angolano e a

sociedade civil, uma vez que apenas 1 participante da categoria de análise “mulheres”

considerou as relações actuais como “normais”, e 2 da categoria de análise “associações

e ONG’s” classificou-as de “satisfatórias”. Poucos participantes (7), consideram que se

vive um momento de aprendizagem para ambos. A responsabilidade pela avaliação

negativa é atribuída, pela maioria dos participantes, à falta de cultura democrática

dominante na cena política angolana, à falta de vontade política dos representantes do

Estado (e do governo, particularmente) em criar verdadeiras instâncias de consulta e

auscultação da opinião dos cidadãos e à relutância em desocupar o espaço público. Uma

parte da responsabilidade é atribuída à falta de uma verdadeira oposição por parte dos

partidos políticos (a configuração Estado=partido no poder, a bipolarização política

ainda prevalecente, a extrema fragmentação do sistema político angolano com mais de

130 partidos políticos e a “instrumentalização” dos mesmos por parte do partido no

poder são frequentemente apontadas, nos mídias e em debates, como razões para a

ausência de uma verdadeira oposição política em Angola); outra parte (menor) da

responsabilidade, é atribuída à própria sociedade civil, por ainda não ter encontrado os

meios de se organizar e fortalecer, e, ainda, por se omitir em situações em que deveria

assumir o protagonismo do contra-poder. Poucos participantes (5) acusam o Estado de

arrogância e intolerância para com as organizações da sociedade civil que não consegue

manipular e controlar; muitas respostas foram no sentido de chamar a atenção para as

barreiras [a uma mais estreita relação] derivadas da deficiente governação e gestão do

país. Uma resposta muito crítica considerou que “os representantes do Estado, quando

criticados, por falta de um espírito democrático, vêm na sociedade civil um “inimigo”

(...), e a sociedade civil ainda desorganizada, alheia-se dos reais problemas do País”, e

outra acrescentou que “o governo de Angola, o Chefe do Estado e os ministros estão

desacreditados, de maneira geral a ação dos partidos políticos da oposição não tem

muita relevância devido ao controlo do ‘partido-Estado’”. Outra, considera que “essa

relação é mais retórica do que prática”.

Sumariamente, essas relações são caracterizadas pela grande maioria como sendo de

desencontro, de desentendimento, de oposição, de desconfiança, de intolerância, de

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turbulência, de intolerância, principalmente por parte do Estado, mas em alguns casos, a

inversa também é verdadeira, de não reconhecimento mútuo (principalmente por parte

do Estado), de desiguais e desniveladas, de distantes, de inimizade e conflitualidade, de

chantagem, de subserviência/servidão/receio, de pouca transparência. Apenas em 2

respostas essas relações foram descritas como sendo de cooperação e colaboração, e de

parceria em construção.

Na avaliação dos participantes de Benguela, as relações entre a sociedade civil e o

Estado não são as melhores (numa perspectiva mais normativa, do que desejariam que

fossem), sendo caracterizadas de difíceis, não muito salutares/não muito amistosas, não

muito boas, muito débeis. As 7 avaliações menos negativas, consideram-nas

“razoáveis”, “as possíveis” ou “incipientes”, numa perspectiva em que falta de

organização, de experiência e de confiança entre as organizações, são as principais

críticas apontadas à sociedade civil, e por outro lado, a falta de sensibilidade, a falta de

atenção, consideração e apoio, as muitas barreiras existentes ao seu desenvolvimento,

são as principais razões identificadas pelos participantes como da responsabilidade do

Estado angolano, que ainda não “descobriu o verdadeiro papel da sociedade civil”. A

associação da dificuldade e/ou debilidade das relações entre a sociedade civil e o

Estado, com a “guerra e suas sequelas” no tecido social, político e económico nacional,

aparece em algumas respostas, à semelhança do que já tinha acontecido nas respostas a

perguntas do questionário 1, o que parece validar o argumento “guerra” como uma das

principais justificações para a atual situação do país. Um dos respondentes identificou

“a falta de espaço de atuação para a criação de confiança entre ambos” como a causa do

atual estado de relações, caracterizadas sumariamente como sendo de animosidade, de

desconfiança, de não reconhecimento (por parte do Estado), de falta de organização e

experiência (por parte da sociedade civil).

Segundo a maioria dos participantes em Malanje (16 em 30), as relações entre a

sociedade civil e o Estado “não são boas” ou “ainda não o são”, tendo sido

caracterizadas como sendo de dependência, não corresponderem aos anseios da

sociedade civil, serem muito fracas ou muito frágeis, débeis ou quase nulas

(inexistentes), pouco participativas/representativas, caracterizadas pela falta de abertura,

de diálogo, de oportunidades de cooperação e de interação, pelo não reconhecimento do

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papel da sociedade civil, e pela desconfiança, podendo chegar à adversidade e ao

conflito aberto, em casos pontuais.

O Estado angolano foi responsabilizado em grande medida por esta situação, porque

não tem, ainda, uma cultura de relações horizontais com os seus parceiros, porque não

respeita a opinião da sociedade civil, porque até há bem pouco tempo, as ações da

sociedade civil eram vistas como “atentados aos interesses do Estado”, porque não há

abertura, não há apoios nem emancipação (esta última parte, parece dirigir-se à

sociedade civil), porque recorre ao “suborno” para desvirtuar uma causa justa, porque

confunde/conota a sociedade civil com “interesses políticos”.

As avaliações menos negativas (4 em 30), consideram que as relações “ainda” não são

as melhores; ou que são “as possíveis”. Nesta perspectiva, a argumentação é que elas

tendem a mudar para melhor no atual contexto de Malanje (antes eram péssimas...);

dependem de quem dirige as organizações da sociedade civil; em alguns casos existem

relações de cooperação com igrejas e algumas ONG’s, noutros casos existe uma forte

ligação com o poder (FESA, UNTA, OMA, AJAPAZ,292 etc.) e relações de

privilégio/preferência, e, noutros ainda (SINPROF293), são relações de conflito

permanente; o Estado escuta pouco as preocupações levantadas pela sociedade civil.

Mais positivas foram 7 opiniões que qualificaram as relações entre o Estado angolano e

a sociedade civil como sendo “boas”, “salutares”, “como devem ser: de reclamação e

defesa dos direitos dos cidadãos, agindo no espaço entre a esfera privada e as

instituições políticas e do Estado” ou de “participação/parceria”, argumentando que se

realizam ações conjuntas em benefício do País, conseguem trabalhar juntos em prol dos

angolanos, cumprem os seus respectivos papéis, se buscam em conjunto soluções para

os problemas dos angolanos, e ainda porque existe um razoável nível de cooperação

entre o Estado e algumas organizações da sociedade civil, sendo já notável a

participação de algumas delas na discussão e definição de algumas políticas (p. ex. os

sindicatos.

292 FESA é a Fundação Eduardo dos Santos, Presidente de Angola; UNTA é a União Nacional dos Trabalhadores Angolanos e, tal como a OMA (Organização da Mulher Angolana), é uma organização de massas criada pelo MPLA, partido no poder; AJAPAZ é uma organização não-governamental identificada como tendo sido criada por membros do MPLA. 293 O SINPROF é o Sindicato Independente de Professores, conhecido pelas posições frontais que vem assumindo em defesa dos interesses da classe em Angola.

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Resumindo, a avaliação das relações entre o Estado e a sociedade civil é muito crítica e

negativa nas três cidades e nas diversas categorias de análise. As avaliações positivas

(ou menos negativas) parecem tomar uma forma muito mais normativa (o que os

participantes gostariam que fossem), do que analítica. Essa avaliação negativa é, em

geral, atribuída à falta de cultura democrática predominante no cenário político-social

angolano, à falta de vontade política dos representantes do Estado (e do governo,

particularmente) em criar instâncias de consulta, auscultação e participação dos

cidadãos, e à relutância em “desocupar” o espaço público colonizado pelo Estado

colonial, no qual o Estado angolano se instalou de uma forma absoluta durante a I

República, mantendo essa postura de dominação na II República, ainda que de forma

menos ostensiva e salvaguardada num discurso de abertura democrática. Um dos

participantes referiu que “tanto há parcerias entre Estado e Sociedade quanto posições

contrapostas, essencialmente com elementos organizacionais autónomos”. A sociedade

civil também é responsabilizada, embora em menor escala, por ainda não ter encontrado

os meios de se organizar e fortalecer, e, também, por se omitir em situações em que

deveria assumir o protagonismo do contra-poder, confrontando as instituições do Estado

em defesa de interesses dos cidadãos em geral, ou de grupos sociais, em particular; um

dos participantes refere a propósito que, “porque a sociedade civil é estruturalmente

heterogénea, existem [nela] elementos tendencialmente autónomos do Estado, de quem

reclamam independência, a par de outros que se assumem [na sua prática], como

espaços de apropriação da sociedade civil pelo Estado”. Segundo outro participante “o

conceito de sociedade civil esteve demasiado tempo associado ao conceito de

participação política no sentido partidário da expressão “política” e a prevalência, [em

Angola] de forte aproximação entre os conceitos de Estado e de Partido (o único)

reforça esta atuação”.

A associação da dificuldade e/ou debilidade das relações entre a sociedade civil e o

Estado com a “guerra e suas sequelas” no tecido social, político e económico nacional,

aparece em algumas respostas, à semelhança do que já tinha acontecido nas respostas a

perguntas do questionário 1, o que parece validar o argumento “guerra” como uma das

principais justificações para a atual situação do país. A resposta mais crítica foi a que

considerou que “os representantes do Estado quando criticados, por falta de um espírito

democrático, vêm na sociedade civil um “inimigo” (...), a sociedade civil ainda

desorganizada, alheia-se dos reais problemas do País”. Esta associação de ideias foi

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expressa com mais frequência em Luanda, o que parece caracterizar uma diferença

substancial na exteriorização das percepções entre os três conjuntos de participantes,

sendo bastante mais crítica em Luanda. Um deles identificou “a falta de espaço de

atuação para a criação de confiança entre ambos” como a causa do atual estado de

relações.

A caracterização qualitativa das relações entre o Estado e a sociedade com base nas

opiniões dos participantes na pesquisa, os mesmos que atribuíram à sociedade civil um

papel de motor de uma ampla mudança em Angola, acima apresentada, permite

antecipar o tamanho da tarefa atribuída à sociedade civil e o grau de dificuldade que a

mesma terá para conseguir cumprir esse papel. Por isso, importa aprofundar as

mensagens endereçadas à sociedade civil pelos participantes, com vista a perceber se, e

como, elas apontam os caminhos a seguir para que esse protagonismo seja conseguido.

III. INSATISFAÇÃO E MUDANÇA. Descodificando mensagens

endereçadas à sociedade civil.

1 – Dimensionando e qualificando a insatisfação

Uma das mensagens mais fortes que transparecem das respostas à pesquisa sobre a

caracterização (apresentada no capítulo anterior) da sociedade civil em Angola, tal

como ela é percebida por atores sociais angolanos, é a de um traço de insatisfação

relacionado com a identificação da necessidade de amplas mudanças nos cenários

político e econômico do País. E como oportunamente se procurou mostrar, os

participantes associaram à identificação dessa necessidade os caminhos da mudança e

os objetivos que ela deveria permitir alcançar.

Revisitando as respostas à pergunta que procurava conhecer as percepções dos

participantes sobre a situação atual do país, as mesmas mostraram outros elementos

comuns aos três conjuntos de respostas (correspondentes às três cidades) para além da

insatisfação e da necessidade de mudanças, nomeadamente o fato de não aparecer

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evidente a prioridade de alargar os espaços de participação dos cidadãos. Mas também

foram encontradas diferenças sensíveis entre os três conjuntos de respostas294.

Assim, as opções dos luandenses surgem mais centradas em torno do “político”,

demonstrando insatisfação relativamente à situação actual do país, necessidade de

justiça social e de mudança no sistema político, no sistema económico e nas relações

sociais, para que se instale em Angola uma sociedade mais inclusiva. O fato de a frase

“a sociedade está muito dividida e não consegue apresentar-se como parceiro credível”,

ter recebido apenas um décimo das indicações em Luanda, pode significar que a maioria

considera que a sociedade é capaz de criar mecanismos de participação e parceria com o

Estado e com outros actores sociais. Entretanto, chama a atenção o fato de a frase “os

mecanismos sociais de auscultação criados são ineficazes”, ter igualmente sido indicada

apenas por poucos participantes. Este resultado, tanto pode significar que os

participantes não identificaram esta frase como um próxy de participação política, ou

não estão dispostos a participar mais ativamente da vida política do país, apesar de

quererem mudanças.

Em Benguela, as respostas parecem indicar preocupações mais centradas na economia

do que na política e na participação dos cidadãos, mobilizando quase metade (41%) das

escolhas: em todos os grupos, o maior número de indicações foi para a frase “É

necessário criar mais oportunidades de negócios e empregos” (27%), e todos os grupos

indicaram que “O sistema económico precisa mudar radicalmente”, (14%). Entretanto, e

à semelhança do que aconteceu em Luanda, os benguelenses também mostram

preocupação e insatisfação no que respeita à justiça (ou ausência dela como instituição

ao alcance de todos). No tocante à necessidade de mudança nas relações de poder,

nomeadamente uma maior participação da sociedade, as escolhas feitas pelos

participantes nesta cidade parecem assinalar que esta não é uma preocupação muito

grande, desde que se concretizem as desejadas mudanças no sistema económico. Esta

interpretação parece ganhar fundamento quando se observa que as frases relacionadas

com uma maior participação dos cidadãos na vida política e no processo de tomada de

decisões tiveram um pequeno número de indicações, somando 14% das indicações.

294 A tabela com os resultados obtidos nas três cidades e a análise dos mesmos constam das páginas 159-160, Capítulo 4.

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Em Malanje, as opções escolhidas podem ser interpretadas como indicadores de uma

necessidade de mudança que abrange melhorias significativas no sistema judicial, e a

criação de oportunidades de negócios que signifiquem mais empregos. O fato de a

opção “a sociedade está muito dividida e não consegue apresentar-se como parceira

credível”, ter sido escolhida por apenas 8 dos participantes, pode ser um sinal de que,

para os malanjinos que participaram da pesquisa, a falta de parcerias mais frequentes e

diversificadas entre Estado e sociedade não decorre da capacidade ou da credibilidade

desta, tendo em conta que a terceira frase selecionada aponta para a necessidade de

Estado e sociedade trabalharem mais em parceria. Contudo, e tal como aconteceu nas

outras duas cidades, a frase “os mecanismos sociais de auscultação criados são

ineficazes”, teve apenas 3% das indicações, conferindo consistência às interpretações

acima apresentadas: ou a mesma não foi identificada como um próxy de participação

política, ou os participantes não estão dispostos a participar mais ativamente na vida

política do país.

Retendo esta ideia de insatisfação generalizada entre os participantes na pesquisa

perante a atual situação política, económica e social do País, e a necessidade de

mudança nas relações sociais e de poder no País, e assumindo que existe uma relação

entre “insatisfação” e expectativa ou desejo de “mudança”, vale a pena conhecer que

sentimentos acompanham os participantes em situações de mudança, na vida pessoal ou

profissional.

De entre vários sentimentos como: ansiedade, tranquilidade, expectativa, satisfação,

desagrado, e outros, as respostas dos participantes nesta pesquisa indicam que os dois

sentimentos que acompanham a maioria deles, nas três cidades, são “expectativa” e

“satisfação”, sendo de realçar que nenhum deles escolheu a opção “desagrado”. LUANDA BENGUELA MALANJE

ANSIEDADE 21% 12% 11% TRANQUILIDADE 5% 18% 11% EXPECTATIVA 39% 35% 45% SATISFAÇÃO 29% 33% 30% DESAGRADO - - - OUTROS Otimismo – 2

Determinação – 1 Bom experimentar desafios -1 Empenho -1 Medo -1

Solidariedade – 2% 3% (não especificados)

Os resultados a esta pergunta indicam que:

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a) nas 3 cidades, em média, 40% das indicações identificam a “expectativa” e 31%

identificam a “satisfação” como os sentimentos dominantes em situações de

mudança;

b) a “ansiedade” com 15% e a “tranquilidade” com 11%, foram também

sentimentos identificados;

c) nenhum participante optou pelo “desagrado” como sentimento em época de

mudança;

d) apenas 1 indicou o “medo” (na opção “outros”) como sentimento que o

acompanha em situação de mudança.

Estas respostas parecem contribuir para reforçar a ideia retirada da análise do

cruzamento das respostas sobre “confiança nas pessoas e nas instituições”, com as

respostas às perguntas abertas e semi-abertas dos questionários sobre o mesmo tema

(páginas 30-34 do capítulo 4), indicando a existência de um apreciável contingente

manifestando uma confiança prospectiva, que favorece a inovação e a mudança.

Para além dos sentimentos de insatisfação mais ou menos generalizada em relação à

situação prevalecente no País, e da identificação de um potencial de mudança nos três

conjuntos de participantes na pesquisa, sustentados pelo cruzamento com os resultados

quantitativos obtidos em pesquisas mais amplas nas mesmas cidades, importa perceber

que direcção e qual caminho os participantes procuram imprimir a esse processo de

mudança. Outras respostas ao questionário 1 parecem fornecer mais elementos para

caracterizar as opiniões dos participantes e perceber quais os papéis por eles atribuídos à

sociedade civil em Angola.

2 – Pacificar os espíritos, articular plataformas: a consolidação da Paz como

prioridade primeira

O sentimento de insatisfação e a necessidade de mudança aparecem constantemente nas

respostas a esta pesquisa, e encontram respaldo numa outra caracterização da situação

atual do país feita pelos participantes, a partir das seguintes opções apresentadas: “é a

possível devido aos problemas da história recente de Angola”, “apesar da guerra,

poderíamos estar muito melhor”, “agora que a guerra acabou, precisamos mudar”,

“nenhuma delas”. As escolhas feitas, e acima de tudo, as explicações que acompanham

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essas escolhas, parecem reforçar a interpretação acima apresentada, embora com pontos

de partida distintos. Enquanto a maioria dos participantes em Luanda consideram que

“apesar da guerra, poderíamos estar muito melhor”, em Benguela e de Malanje a

maioria dos participantes preferiu a opção “agora que a guerra acabou, precisamos

mudar”. LUANDA BENGUELA MALANJE É a possível devido aos problemas da história de Angola

6%

5%

5%

Apesar da guerra, poderíamos estar muito melhor

54%

34%

21%

Agora que a guerra acabou precisamos mudar

40%

59%

74%

Nenhuma delas - 2% -

Em Luanda, a maioria rejeita o argumento da guerra como justificativa para o que não

foi feito, principalmente pelo fato de o país possuir inúmeros recursos naturais, que

poderiam ter sido utilizados para evitar que a situação do País se deteriorasse tanto, e

não o foram devido à incompetência, descaso e falta de lucidez e ganância da elite

próxima ao/ou no poder; atribuiu à longa duração da guerra a instalação de um certo

conformismo e resignação, que precisa ser combatida, porque é necessário “reivindicar,

exigir, pedir contas”.

Relacionando o fim da guerra com a possibilidade de mudança, a maioria das respostas

em Benguela considera implicitamente que o processo de mudança não só com efeitos

no sistema econômico, produtivo e educacional, na livre circulação de pessoas e bens, e

na criação de empregos, mas também nas atitudes e comportamentos dos governantes,

só seria possível após o término da guerra. Para além de moralizar os cidadãos e dar

credibilidade ao País, esse processo de mudança é percebido como necessário para

promover o desenvolvimento do capital humano, reduzir as desigualdades sociais e

melhorar as condições de vida da população.

Para a grande maioria em Malanje, o processo de mudança que o final da guerra torna

possível, visa melhorar as condições de vida da população, consolidar a Paz, melhorar o

entendimento e o diálogo entre os angolanos, construir alianças ou redes que permitam a

participação de todos, sem discriminação, na reconstrução de Angola, e criar

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oportunidades para os mais jovens, cujos efeitos seriam visíveis na mudança de

mentalidades, entre outras.

Para além de as frases mais indicadas serem demonstrativas de insatisfação e vontade de

mudar, o reduzido número de indicações da terceira frase, que expressava a ideia de que

“a situação é a possível devido aos problemas da história de Angola”, parece um

indicador de que a maioria dos participantes não se conforma (ou resigna) com a atual

situação, sendo que muitos entre os participantes, especialmente em Luanda, não

aceitam a guerra como justificação de todos os problemas que o país hoje enfrenta.

Interpretando o conjunto das respostas, o apelo de mudança aparece relacionado com

aspirações que privilegiam a consolidação da Paz, a equidade e a justiça social,

desenvolvidas nos comentários ou explicações adicionais dos participantes.

Ao longo de quase 4 décadas de guerra civil, apenas em alguns (poucos e curtos)

períodos os angolanos tiveram oportunidade de viver em ambiente de ausência de

guerra, mas não de Paz, dada a presença difusa mas constante da ameaça do retorno às

armas como saída para os conflitos presentes na cena política angolana. Várias gerações

de angolanos nasceram e cresceram, fizeram-se adultos, escutando notícias, ouvindo

comentários e, principalmente, sentindo os efeitos da guerra na vida quotidiana devido

aos deslocamentos forçados em busca de segurança pessoal e familiar, ao êxodo das

áreas de origem em busca de melhores condições de vida nas principais cidades e suas

periferias, à morte de familiares e amigos em ataques, emboscadas, ou minas, às

carências em alimentos e produtos básicos de higiene, vestuário e agasalho, à deficiente

prestação de serviços básicos de saúde, educação, assistência social, às dificuldades em

encontrar um emprego, entre outras.

Muitas destas gerações formaram-se ao abrigo de estratégias de sobrevivência

individual, familiar ou de grupo. Uma das mais presentes, e cujos efeitos ainda hoje

estão presentes na vida pública angolana, consistia em evitar posicionamentos ou

opiniões sobre a situação do País em lugares públicos, e mesmo em ambientes onde

houvesse desconhecidos ou elementos relacionados com o regime no poder. Isto

aconteceu devido à polarização do discurso político em Angola, entre outras razões,

como já se referiu no capítulo anterior. O que importa reter é que, para uma sociedade

carente de protagonismo político, com um déficit histórico de participação em assuntos

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de interesse público herdado do colonialismo, as experiências de vida sob o regime da I

República acentuaram os efeitos da ausência do exercício de uma cidadania plena para a

grande maioria dos angolanos.

Durante os anos 90, houve uma mudança sensível com a instituição do Estado de direito

democrático (artigo 2º. da Constituição), a realização de eleições gerais, a criação de

instituições democráticas, e a abertura do sistema econômico. O reinício da guerra, mais

uma vez, interrompeu o processo de democratização em curso. E em resultado desta

retomada do argumento das armas, o espaço público voltou a ser ocupado pelas notícias

sobre a situação militar do país, e os mujimbos (os rumores angolanos) sobre todos os

demais temas da vida de uma sociedade. Na verdade, o espaço noticioso dos meios de

comunicação falada, escrita e televisionada, foram tomados de assalto pelas façanhas e

derrotas dos personagens fardados e armados da guerra civil em Angola, merecendo

pouco cuidado o elevado número de mortes em combate ou pela ativação de minas, e os

efeitos nas famílias e comunidades.

A Declaração de Paz do governo prometia não só encerrar o ciclo de guerra civil em

Angola, mas também abrir o espaço público, declarando a sua intenção de “trabalhar

com toda a sociedade, nomeadamente as igrejas, os partidos políticos, as associações

cívicas e as associações sócio-profissionais”, afirmando contar com “a participação

efectiva das igrejas, organizações não-governamentais e demais vontades da sociedade

civil” no âmbito da ajuda humanitária. Na Declaração, o governo ressaltava a

necessidade de que a sociedade civil mantivesse “um elevado sentido de

responsabilidade nos seus actos e palavras”295.

Apesar do Acordo assinado em 4 de Abril de 2002, marcando o final da guerra, ter sido

considerado como um marco histórico fundamental, as atitudes públicas são ainda de

desconfiança e de precaução. Em lugar de um esperado optimismo, existe um grande

desapontamento e alguma desilusão relativamente ao governo, na medida em que se

considera que não tem respeitado os seus compromissos na resolução dos principais

problemas que afligem a sociedade angolana.

295 Agenda para a Paz do Governo de Angola, publicada no Jornal de Angola de 14 de Março de 2002. PESTANA, Nelson. (2004), op. cit.

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Na busca dos entendimentos dos participantes na pesquisa sobre a caracterização da

situação prevalecente no País um ano após a assinatura do cessar fogo, o questionário 1

continha uma pergunta aberta sobre “o que [os participantes] gostariam de ver acontecer

em Angola, na fase de transição da guerra para a Paz”. As respostas mostram

inequivocamente, e sem surpresa, que os sentimentos / valores presentes na grande

maioria das respostas nas três cidades são predominantemente relacionados com

reconciliação, perdão, pacificação dos espíritos, justiça social, inclusão e bem estar

comum, respeito pela diferença e pelos direitos humanos, recuperação de valores morais

e de solidariedade, restauração da ordem e da disciplina (principalmente por parte dos

dirigentes), criatividade e iniciativa na criação de parcerias entre o Estado e a sociedade.

Estes sentimentos conformam atitudes visando o investimento em capital humano e

mudanças nas mentalidades e nos comportamentos, mudanças políticas e económicas, e

na administração e na economia, educação cívica e realização de eleições, erradicação

da pobreza, políticas de redistribuição e redução do custo de vida, criação de

oportunidades de emprego e políticas de crédito principalmente na agricultura e para os

jovens, transformações económicas e sociais em geral, e combate à corrupção.

Estas escolhas mostram que os valores holísticos relacionados com a Paz e a justiça

social predominam sobre as principais necessidades materiais e os desejos individuais

dos participantes, e que esses valores indicam mudanças não apenas no quadro

institucional e nos sistemas político, administrativo, económico e social, mas também

no quadro dos valores relacionados com mentalidades e comportamentos sociais. De

notar que, mais uma vez, as respostas às perguntas abertas, nas quais os participantes

têm a oportunidade de escolher as palavras e as expressões para traduzir o seu

pensamento, são mais abrangentes, mais universais.

3 – Os caminhos da mudança

Os angolanos em geral, e os participantes nesta pesquisa, em particular, nunca tiveram a

oportunidade de manifestar, de forma sistemática e universal, as suas opiniões sobre os

rumos do país, em qualquer dos possíveis ângulos de análise, o caminho da guerra ou a

busca pela Paz, as opções nos domínios político, econômico e social, os contrastes ou a

aproximação entre os mundos rural e urbano, as políticas internas e as relações

internacionais e regionais. Mas os caminhos da mudança são dados pela intenção

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evidenciada pelas opções de políticas públicas, e não pelos montantes do investimento

público do orçamento anual. Até agora, a condução da economia não destoa das

restantes vertentes da direção do País: uma visão vertical, de cima para baixo, tendo

como foco central a exploração dos vastos recursos naturais de origem mineral, como o

petróleo e os diamantes, e o investimento público em infraestruturas, ambas opções que

favorecem a manutenção do sistema patrimonialista alimentado pelos rendimentos dos

grandes negócios envolvendo tanto a exploração dos recursos naturais quanto a

realização das grandes obras do PIP (Plano de Investimentos Públicos) 296.

O sentido das opções de desenvolvimento do governo para o País foi publicamente

apresentado pelo Presidente da República297, a reconstrução nacional “através da

recuperação das infra-estruturas destruídas pela guerra, a construção de novas

estruturas, projectos e as mais modernas instituições”, numa perspectiva de projeção do

País no continente e no mundo. Contudo, o desenvolvimento do capital humano e a

situação de pobreza que afeta 57% da população urbana e 94% da população rural, não

mereceram quaisquer referências do mais alto mandatário da nação.

Resumida a macrovisão governamental do desenvolvimento para Angola nos próximos

anos, importa perceber o que os participantes fariam, em termos das opções que

escolheriam para imprimir o sentido que conferem ao processo de mudança, que tem

vindo a ser identificado a partir das suas opiniões. Assim, os participantes foram

convidados a indicar “que políticas públicas teriam prioridade caso tivessem

oportunidade de escolha”, de uma lista de 12 medidas de política pública:

- reconciliação entre os angolanos

- eliminação da pobreza

- eliminação das desigualdades

- democratização da sociedade

- modernização da sociedade

- erradicação do analfabetismo

296 Em Angola, por exemplo, o investimento público anual é bastante superior (59% do PIB - produto interno bruto - entre 1992 e 2002) ao de países vizinhos (24,5% na região da África Austral, em média, para o mesmo período); contudo, Angola detém um dos mais baixos Índices de Desenvolvimento Humano da região). VINES, Alex; SHAXSON, Nicholas; RIMLI, Lisa; HEYMANS, Chris. (2005), ANGOLA, Drivers of Change: an overview. London, Chatam House/DFID. 297 Discurso proferido na abertura de uma reunião do Comité Central do MPLA, em Luanda, em 18 de Fevereiro de 2005.

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- aumento da esperança de vida

- redução da mortalidade infantil

- combate à corrupção

- gestão pública mais transparente e participativa

- expansão das oportunidades de participação

- redistribuição dos rendimentos nacionais.

Colocação pela pontuação obtida por cidade Políticas

LUANDA BENGUELA MALANJE Reconciliação entre os angolanos 1°. 3°. 1°. Eliminação da pobreza 7°. 2°. 6°. Eliminação das desigualdades 11°. 10°. 11°. Democratização da sociedade 5°. 8°. 7°. Modernização da sociedade 10°. 11°. 12°. Erradicação do analfabetismo 1°. 7°. 3°. Aumento da esperança de vida 8°. 9°. 9°. Redução da mortalidade, principal/ infantil

6°.

5°.

4°.

Combate sem tréguas à corrupção

4°. 4°. 2°.

Gestão pública mais transparente e mais participativa

2°. 1°. 5°.

Expansão das oportunidades de participação

9°.

12°.

8°.

Melhor redistribuição dos rendimentos

3°. 6°. 10°.

As três políticas mais escolhidas, por cidade, foram:

a) Luanda: “reconciliação entre os angolanos” e “erradicação do analfabetismo”;

“gestão pública mais transparente e participativa”; melhor redistribuição dos

rendimentos.

b) Benguela: “gestão pública mais transparente e participativa”; “eliminação da

pobreza”; reconciliação entre os angolanos”.

c) Malanje: “reconciliação entre os angolanos”, “combate sem tréguas à

corrupção”; “erradicação do analfabetismo”.

De uma forma geral, não houve grandes diferenças entre as cidades nas prioridades

atribuídas às políticas; contudo, algumas comparações parecem inevitáveis:

a) “a erradicação do analfabetismo” ocupou a 1ª. e a 3ª. posições, em Luanda e

Malanje, e ficou em 7ª. posição em Benguela

b) “a redistribuição de rendimentos” também teve prioridades diferenciadas nas 3

cidades: Luanda 3ª. posição, Benguela 6ª. posição e Malanje 10ª. posição;

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c) “a eliminação da pobreza” parece constituir prioridade maior em Benguela (2ª.

posição), do que em Luanda (7ª. posição) ou em Malanje (6ª. posição), e estas

escolhas parecem demonstrar a consciência de que esses objectivos apenas serão

alcançados se outras medidas criarem as condições prévias, como uma mais

justa “redistribuição dos rendimentos nacionais” (numa perspectiva de alocações

orçamentais para os sectores relacionados com o desenvolvimento do capital

humano) e a “redução do analfabetismo” (particularmente entre as mulheres).

As prioridades eleitas pelos participantes suscitam alguns comentários:

a) Na procura dos caminhos que conduzam a sociedade angolana na consolidação

da paz, foi sido muito valorizada a necessidade da “reconciliação entre os

angolanos” como condição para uma paz durável, fundamental para edificar as

bases de um futuro melhor para todos os angolanos. Os participantes na pesquisa

mostram-se sintonizados com essa aspiração tão presente na sociedade angolana

após a assinatura do cessar-fogo;

b) Uma vez salientada a necessidade da Paz e demonstrada toda a sua prioridade, as

expectativas de um futuro melhor e para todos expressam-se, em geral, pela

ideia de que a educação é um veículo privilegiado para construir o caminho em

direção a esse futuro melhor, pelo seu papel no desenvolvimento do capital

humano, no combate à pobreza, na eliminação da desigualdade social, e na

melhoria das condições de vida;

c) A insatisfação perante a forma como os “interesses públicos” têm sido geridos

continua visível, através da alta prioridade (2ª., 1ª., e 5ª., posição,

respectivamente em Luanda, Benguela e Malanje) atribuída à “gestão mais

transparente e participativa”; mas como a “expansão das oportunidades de

participação” não conseguiu mais do que um 8°. lugar em Malange, 9º. em

Luanda, e último lugar (12º.) em Benguela, parece indicar que os participantes

gostariam de ver “mais transparência” na condução dos destinos da nação e na

gestão dos interesses públicos, embora não associem a sua “participação” a essa

prioridade. Esta interpretação reforça a análise apresentada no capítulo anterior,

segundo a qual, apesar do criticismo, da insatisfação, e da necessidade de

mudanças, etc., implícitos nas respostas dos participantes e da suprema

expectativa de ver consolidadas as bases de uma Paz duradoura enquanto

alicerces de um futuro melhor para todos, a busca por uma estratégia nacional

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construída com base na participação de todos não parece ser uma prioridade para

a maioria dos participantes na pesquisa;

d) O combate à corrupção (4º., 4º., e 2º.) parece associado ao desejo de “gestão

mais transparente” (2º., 1º., e 5º.), reduzindo as evasões e as despesas públicas e,

por essa via, aumentando a porção dos rendimentos nacionais susceptíveis de

serem redistribuídos, parecendo percebido como condição sine qua non para o

combate à pobreza e à desigualdade social em Angola;

e) A democratização (5°, 8°, 7°) parece mais importante para os participantes de

todas as cidades, do que a modernização da sociedade (10°, 11°, 12°), embora

nenhuma das duas se mostre como prioridade para os participantes, não tendo

sido por eles identificadas como processos através dos quais os objetivos eleitos

da reconciliação entre os angolanos, da gestão mais transparente, e do combate à

pobreza, possam ser atingidos.

f) A pouca prioridade atribuída à “expansão das oportunidades de participação”

(9ª., 12ª., e 8ª. posições, respectivamente) não se mostra coerente com a

preocupação relativamente à “democratização da sociedade”. No seu conjunto,

estes resultados parecem sugerir que a vontade de mudança, identificada como

reflexo de algumas respostas anteriormente apresentadas, pode não ser

abrangente em termos de regime político nem pressupor uma alteração radical

no status quo actual, o que entra em contradição com respostas anteriores;

g) O “combate à pobreza” (7°, 2° e 6°.) surge com mais prioridade do que o

“combate às desigualdades sociais” (11°, 10° e 11°), ou seja, parece mais

importante reduzir o número de pessoas que vivem na pobreza, ainda que se

mantenha a estrutura de desigualdade social. Em outras respostas, contudo, a

erradicação da pobreza e a eliminação das desigualdades sociais haviam

merecido maior prioridade (indicar quais e número de página);

h) As políticas de investimento em capital humano, nomeadamente a “redução da

mortalidade, principalmente a infantil” e “o aumento da esperança de vida”, não

parecem ter sido associadas pelos participantes como causa e efeito, uma vez

que a primeira recebeu maior prioridade (6°, 5°, 4°) do que a segunda (8°, 9°,

9°).

No seu conjunto, os resultados acima apresentados reforçam as ideias de

descontentamento e insatisfação, já antes identificadas, indicando ainda que a

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necessidade de mudanças ou reformas é uma preocupação para os participantes. A falta

de uma cultura de participação no processo de tomada de decisões sobre questões de

interesse público, inscrita numa bem mais ampla ausência de mecanismos institucionais

de auscultação e envolvimento da sociedade angolana, por um lado, e a situação de

precariedade generalizada na sociedade angolana, por outro, podem responder, em

parte, pelas aparentes contradições expressas pelas respostas.

Por um lado, à sociedade civil é atribuído o papel de motor de uma ampla mudança

institucional e de valores, num processo que visa a consolidação da Paz e a melhoria das

condições de vida dos angolanos, que não prioriza, segundo essas respostas, os

processos de democratização e de modernização da sociedade angolana, como

pressupunha a pesquisa. Os contornos dessa mudança são definidos por políticas de

desenvolvimento do capital humano – erradicação do analfabetismo, combate à pobreza,

redução da mortalidade infantil, entre as priorizadas -, e políticas tendentes a eliminar a

corrupção e em conferir mais transparência à gestão dos interesses públicos. Por outro

lado, e em diversas respostas, não foram priorizadas as opções que implicavam políticas

de democratização do espaço público e de promoção da participação ativa dos cidadãos

no processo de tomada de decisão sobre questões de interesse público, que conduziriam

a uma situação na qual o exercício de cidadania poderia ser ampliado, não apenas do

ponto de vista do seu conteúdo político, social e civil, mas também do ponto de vista da

extensão desse exercício a grupos sociais hoje excluídos.

Parece haver, em geral, uma correspondência quando se confrontam as prioridades

atribuídas às políticas públicas pelos participantes na pesquisa, e as respostas dos

jornalistas nas três cidades sobre os principais temas abordados nos programas de

opinião dos meios de comunicação falada, escrita e televisionada aos quais pertencem,

nomeadamente política, paz e democratização, combate à pobreza, direitos humanos,

liberdade de expressão, associação e reunião, economia, desenvolvimento, e combate à

desigualdade social. Contudo, chama a atenção a relação estabelecida entre os temas paz

e democratização, e a importância da discussão sobre direitos humanos (políticos, civis

e sociais) nos meios de comunicação, que não surgiram de forma tão explícita nas

respostas dos participantes, tanto às perguntas abertas quanto às semi-abertas.

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O desdobramento por área geográfica, mostra que em Luanda, os temas mais abordados

relacionam-se com o desenvolvimento e o combate às desigualdades, a paz, direitos

humanos e liberdade de expressão, associação e reunião, combate à pobreza, economia

e política. Em Benguela, os relacionados com a paz, a democratização, o combate à

pobreza, a política, e os direitos humanos e liberdade de expressão, associação e

reunião, e desenvolvimento, economia e combate às desigualdades sociais. Em Malanje,

os relacionados com o combate à pobreza, a paz, a economia, a política e os direitos

humanos e liberdade de expressão, associação e reunião; os temas democratização,

desenvolvimento e combate às desigualdades não receberam qualquer indicação.

4 - Combate à Pobreza

A insatisfação, não resignação, e aspiração a uma sociedade mais justa, parecem poder

identificar-se, igualmente, nos resultados a outra pergunta, que buscava opiniões sobre a

situação de pobreza que prevalece no país. Foram apresentadas 5 opções, sendo a

última “não sei”, a qual apenas foi escolhida em Malanje (40% das indicações). Para

além desta, as opções disponíveis eram as seguintes: “porque não têm sorte”, “porque

são preguiçosos e não têm força de vontade”, “porque a nossa sociedade é injusta”, e

“por causa da guerra”.

LUANDA BENGUELA MALANJE Porque não têm sorte - - Porque são preguiçosos e não têm força de vontade

-

2%

-

Porque a nossa sociedade é injusta

65% 49% 7,5%

Por causa da guerra 35% 49% 52,5% Não sei - - 40%

Por cidades, as respostas foram:

a) Luanda: a grande maioria (65%) considera que a pobreza em Angola é devida ao

fato de que “a nossa sociedade é injusta”, enquanto 35% considera que é devida

à “guerra”. Não parece haver uma naturalização da ideia de pobreza no conjunto

de participantes de Luanda, uma vez que as opções: “porque não têm sorte” e

“porque são preguiçosos e não têm força de vontade” não receberam qualquer

indicação;

b) Benguela: as opiniões dividiram-se em partes iguais para as duas opções:

“porque a nossa sociedade é injusta” e “por causa da guerra” (49%) indicando,

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uma vez mais, a forte presença do argumento da guerra como justificação da

situação em Angola, para os participantes desta cidade. Apenas 1 considerou que

a causa era porque os pobres são “...preguiçosos e não têm força de vontade”. A

opção “porque não têm sorte” não recebeu qualquer indicação, e isso pode

significar que, tal como em Luanda, também em Benguela não existe uma

naturalização da ideia de pobreza;

c) Malanje: A maioria dos participantes também escolheu a opção “porque a nossa

sociedade é injusta” (52,5%), tendo a opção “por causa da guerra” recebido 40%

das indicações. A forte presença dos efeitos da guerra prolongada que o país

viveu durante 3 décadas298, pode ser a razão que levou 40% dos malanjinos que

participaram na pesquisa a escolherem a opção “por causa da guerra”. Um

pequeno número de participantes optou pela causa “porque são preguiçosos e

não têm força de vontade”

A eleição pela maioria dos participantes, no conjunto das 3 cidades, da opção que

relaciona pobreza com injustiça social, mostra-se coerente com a análise anterior: por

um lado, as pessoas manifestam-se insatisfeitas com a situação sócio-económica e

política do país, e, por outro lado, sugerem mudanças para corrigir os problemas atuais.

Importante referir que, nas 3 cidades, não se manifesta a naturalização da ideia de

pobreza, porque as opções “porque não têm sorte” e “porque são preguiçosos e não têm

força de vontade” receberam um número insignificante de indicações.

Por seu lado, o governo299 identifica como as causas para a pobreza em Angola, o

conflito armado, a pressão demográfica, a destruição e a degradação das infra-estruturas

económicas e sociais, o funcionamento débil dos serviços de educação, saúde e

protecção social, a quebra muito acentuada da oferta interna de produtos fundamentais,

em particular de bens essenciais, debilidade do quadro institucional, a desqualificação e

desvalorização do capital humano, e a ineficácia das políticas macroeconómicas. Ainda

segundo aquele documento, “a pobreza urbana atinge 57% dos agregados familiares,

enquanto que a rural foi estimada em 94%. A gravidade da pobreza rural, espelhada

pelos três indicadores é consequência directa da guerra que limitou o acesso dos

298 Que tiveram uma forte incidência em Malanje, particularmente no período entre 1998 e 2001, durante o qual a cidade esteve sitiada pela forças da UNITA. 299 GOVERNO de ANGOLA, Ministério do Planeamento (2004), op. cit.

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agregados familiares às áreas de cultivo e aos mercados, devido a insegurança. O

recrutamento militar reduziu a mão-de-obra disponível para a agricultura”.

Existe uma clara diferença entre as visões dos atores sociais que participaram na

pesquisa, e a posição oficial do governo inscrita na ECP, no que respeita à principal

causa da pobreza em Angola. Contudo, esta posição pode criar uma oportunidade de

intervenção para a “sociedade civil”, terminada que está a principal causa alegada pelo

governo, exigindo que sejam tomadas as medidas necessárias para a erradicação da

pobreza em Angola, ou pelo menos a sua redução significativa no mais curto espaço de

tempo, e não a sua redução para metade até ao ano 2008, como assinala o documento300.

5 – Necessidade de democratização ou mera insatisfação?

A questão da democratização merece uma reflexão porque, apesar de não ter merecido

uma alta prioridade na seleção das políticas públicas, identifica-se uma constância do

traço de insatisfação na maioria das respostas apresentadas até agora, reforçado pelas

respostas a uma pergunta que procurava saber as opiniões dos participantes

relativamente ao regime político que governa Angola. Entre as opções apresentadas:

“Angola é governada por poucos, grandes interesses”, “no interesse de todos”, “pelas

elites”, “com a participação de todos”, “não sei”, a maioria dos participantes na pesquisa

escolheu a resposta “Angola é governada pelas elites” (53%, 37% e 54%), logo seguida

da resposta “por poucos, grandes interesses” (42%, 37% e 14%).

LUANDA BENGUELA MALANJE Por poucos, grandes interesses 42% 37% 14% No interesse de todos 4% 5% 8% Pelas elites 52% 37% 54% Com a participação de todos 1% 16% 8% Não sei 1% 5% 16%

A pequena percentagem de escolha que mereceram as opções “no interesse de todos”

(4%, 5%, 8%) e “com a participação de todos” (1%, 16%, e 8%), tão comuns nos

discursos políticos desde a independência, são manifestações evidentes de insatisfação e

da consciência de exclusão da maioria da população do processo de tomada de decisões

em Angola. Estas respostas mostram-se coerentes com as anteriores, em termos do

300 Idem.

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criticismo presente na avaliação do regime político vigente em Angola, e demonstram

insatisfação com o status quo.

Estas respostas parecem sinalizar que a maior parte dos participantes percebem o

sistema vigente em Angola como neopatrimonialista, ancorado na centralização da

condução da economia na presidência, que exerce o seu poder por redes de interesses,

através da distribuição de postos políticos e outros, de dinheiro e de favores, em troca de

apoio político. A exploração dos recursos naturais, nomeadamente petróleo e diamantes,

e os grandes projetos de infraestrutura, estende essa rede de patronagem e clientelismo a

operadores econômicos externos envolvidos nessas atividades.

Entretanto, apesar de todo o criticismo das respostas anteriormente apresentadas, existe

um forte sentimento de “orgulho em ser angolano”. LUANDA BENGUELA MALANJE Muito 71% 70% 79% Bastante 20% 16% 18% Não muito 9% 14% 3% Nenhum - - -

Os resultados mostram que:

a) a grande maioria – 71%, 70% e 79% - declaram ter “muito” orgulho em ser

angolano;

b) um grupo significativo – 20%, 16% e 18% - diz ter “bastante” orgulho em ser

angolano;

c) um pequeno grupo – 9%, 14%, 3% - optou pela afirmação de ter “não muito”

orgulho em ser angolano.

A consciência do tamanho do desafio e do tipo de dificuldades que a sociedade civil e

os angolanos em geral terão de enfrentar e vencer, se pretendem realmente uma

sociedade política, econômica e socialmente mais justa, como parece ser a mensagem

dos participantes, pode constituir um “ponto forte” a favor das opiniões que atribuem à

sociedade civil o papel de motor da mudança em Angola. Mas para se poderem avaliar

as possibilidades e as oportunidades existentes no contexto em que se desenrolam as

relações entre o Estado e a sociedade civil em Angola, é importante considerar a

intervenção dos atores sociais e dos meios capazes de estabelecer ligações entre os

diversos grupos e segmentos sociais que compõem a sociedade angolana.

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IV – ARTICULAÇÕES E MEDIAÇÕES

A discussão sobre o processo de modernização das sociedades contemporâneas, em

particular das africanas e das respectivas dinâmicas sociais, e a caracterização da

situação político-econômica e social de Angola, indicam que as análises sobre as

relações sociais e de poder nestes contextos precisam prestar atenção à configuração do

espaço público, no qual amplas camadas sociais que constituem o chamado “público

primordial”, ao qual não se aplicam os direitos democráticos das sociedades urbanas

modernas mas antes o chamado direito costumeiro, apenas têm alguma visibilidade e

voz por intermédio de outros atores sociais, entre os quais as autoridades tradicionais, as

igrejas e os meios de comunicação.

Dada a grande influência da cultura urbana e da ideologia neoliberal nas representações

dominantes sobre o conceito de sociedade civil, e a limitada utilização no continente do

modelo do espaço público301 para o entendimento do contexto em que se desenrolam as

relações entre o Estado e a sociedade no quadro da democratização em curso nas

sociedades africanas, é importante incorporar na análise as experiências que contribuam

para a transformação (democratização) do espaço público africano, designadamente da

arena discursiva tradicional, conhecida em Angola como “Ondjango”, das instâncias de

mediação dinamizadas pelas igrejas e do papel dos meios de comunicação.

O objetivo é o de explicitar os papéis destes e de outros atores, considerados como

integrando a sociedade civil e a esfera pública, como diversos tipos de associações,

organizações não governamentais, clubes e grêmios recreativos e culturais, igrejas e

entidades religiosas, e instituições independentes de pesquisa e de ensino, na reforma do

Estado para que o poder seja democraticamente organizado com vista a promover o

exercício dos direitos e o desenvolvimento sócio-econômico, as principais demandas

atribuídas pelos participantes à sociedade civil em Angola.

1. As Igrejas e entidades religiosas

A inclusão de entidades religiosas ou de solidariedades construídas em torno da fé,

merece alguns comentários. Os antecedentes considerados pela pesquisa tiveram em

conta os diversos ângulos através dos quais se pode compreender a relação entre as

301 COMERFORD, Michael (2003), op. cit.

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Igrejas e organizações religiosas e a sociedade angolana: por um lado, existem na

história de Angola relatos e depoimentos diversos sobre o papel que a Igreja

(principalmente a Católica) desempenhou no processo de submissão dos povos

africanos (das sociedades pré-coloniais) que existiam no território que hoje é Angola,

em apoio à legitimação do colonialismo sob a bandeira da civilização e da

evangelização, e também o silêncio, a ocultação ou mesmo a cumplicidade no que

respeita a atrocidades cometidas em nome desses processos.

Por outro lado, reconhece-se o papel ativo que as igrejas e entidades religiosas

desempenharam em todo o processo de colonização em apoio à organização da luta

nacionalista contra o poder colonial, desde a formação de muitas das lideranças que

conduziram esse processo até ao encobrimento de atividades clandestinas, por vezes

com recurso aos próprios espaços de culto, passando pelo envolvimento direto de alguns

dos seus padres e pastores na luta contra o regime colonial. Alguns dos seus membros

também desempenharam papel relevante na denúncia da situação prevalecente no país,

principalmente após a independência.

Para além disso, foi e é bastante valorizada a autonomia que a Igreja manteve em

relação ao Estado angolano após a independência, o que lhe permitiu dar visibilidade e

voz às aspirações dos angolanos durante o período de vigência do regime marxista-

leninista da I República, quando o espaço público foi completamente ocupado pelo

partido/estado, bem como nas diversas fases da assistência humanitária às populações

mais atingidas pela guerra, e nas campanhas em defesa dos direitos humanos e civis dos

cidadãos na Angola independente. Por todas estas razões, é muito próxima a relação

entre a igreja e os angolanos em geral, e a sociedade civil em Angola em particular.

Algumas abordagens teóricas parecem não incluir as igrejas e as organizações

constituídas em torno de interesses religiosos no universo da sociedade civil, com base

no argumento de que se trata de organizações hierarquicamente dirigidas e controladas,

com uma rígida disciplina exercida do topo à base, e sem espaço para exercícios

democráticos no seu funcionamento.

O pressuposto assumido neste trabalho de que as Igrejas e as entidades religiosas são

consideradas, e consideram-se, parte da sociedade civil em Angola, foi comprovado

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pela opinião da maioria dos participantes nas 3 cidades e em todas as categorias de

análise incluídas. A razão desta inclusão tão unânime pode residir no fato, já antes

assinalado, de terem sido mais valorizados como critérios de pertencimento ou de

inclusão na sociedade civil, a autonomia em relação ao estado angolano, e a capacidade

de influenciar o poder político e as políticas públicas. Para além de terem conseguido

manter a sua autonomia perante o Estado, as Igrejas também se destacaram pelo uso da

sua influência em diversos momentos da vida nacional, o que se pode perceber pelas

reações imediatas do Estado angolano às Pastorais da Igreja Católica, e aos

posicionamentos públicos das Igrejas a favor da Paz, da melhoria das condições de vida

dos angolanos e da justiça social. Uma maior visibilidade social teria sido certamente

alcançada se as Igrejas tivessem conseguido superar as suas próprias diferenças e se

tivessem apresentado unidas em torno do objetivo do alcance da Paz via diálogo, como

aconteceu por exemplo em finais dos anos noventa com a criação do CIOEPA, Comité

Inter-Eclesial para a Paz em Angola.

A maioria das opiniões das entidades religiosas que participaram na pesquisa e que

responderam ao questionário 4, argumentam pela sua inclusão na sociedade civil302 com

base no argumento central de que a igreja/entidade religiosa é composta de cidadãos e,

como tal, insere-se na sociedade civil. Outros argumentam que a igreja “faz parte”

porque é na sociedade civil que as entidades religiosas atuam, é nela que se encontram

as bases para o trabalho social das igrejas, ou ainda, defendendo a inclusão, porque as

entidades religiosas, na sua iniciativa social, trabalham com as pessoas, com vista a

reforçar a sua autonomia, fortalecer o seu exercício de cidadania e incrementar a sua

capacidade de decidir de sua vida, tanto numa perspectiva pessoal quanto coletiva.

2. Os Meios de Comunicação

Para melhor compreender a relação entre os meios de comunicação social, e os orgãos

que a constituem, e a sociedade civil em Angola, foi incluída uma categoria de análise

composta por jornalistas e trabalhadores da comunicação social, visando criar uma

oportunidade para dar maior abrangência à expressão de opiniões e confrontar as suas

302 Importa frisar que esta ideia de pertencimento não inclui a instituição “Igreja”, mas formas de organização da ação coletiva com motivação religiosa, ou seja, segundo os participantes “não se trata da igreja enquanto hierarquia, mas

sim das organizações dos seus crentes”.

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próprias visões e opiniões sobre os temas em discussão e sobre a sua inclusão (ou não),

enquanto categoria profissional e grupo com interesses muito específicos.

Considerando o seu papel na formação da opinião pública, as iniciativas que os

profissionais da comunicação social vêm assumindo no espaço público angolano

relacionadas com a formação da opinião pública, a democratização e a modernização da

sociedade angolana, a defesa dos direitos humanos e civis, e outros temas relacionados

com a discussão sobre sociedade civil em geral, não apenas em Angola, assumiu-se

como pressuposto neste trabalho que os meios de comunicação consideram-se parte da

sociedade civil, devido ao seu papel de formadores de opinião, mas não seriam

incluídos pelos outros atores sociais por diversas razões, entre as quais a desconfiança

na sua imparcialidade, e a sua ligação com o poder (principalmente no que toca aos

meios de comunicação estatais).

Os critérios de pertencimento na interface público/privado, com base na autonomia em

relação ao estado, parecem ter sido os mais aplicados pelos participantes da pesquisa,

que excluíram os meios de comunicação estatais, enquanto os privados foram

entendidos como atores sociais com suficiente autonomia do Estado para denunciar,

influenciar e contribuir decisivamente para a formação da opinião pública. O receio

prevalecente quanto à imparcialidade meios de comunicação estatais, fundamenta-se e é

confirmado pelo antigo Secretário Geral do Sindicato dos Jornalistas Angolanos (SJA):

“a instrumentalização político-militar dos orgãos [de comunicação social] foi a lógica

dominante nos 16 anos que se seguiram à independência”, razão pela qual “os orgãos de

comunicação social em Angola enfrentam hoje o enorme desafio de se transformarem

numa força que trabalha em benefício da democracia e da reconciliação, depois de

décadas de serem vistos basicamente como instrumentos de luta politico-ideológica e de

combate aos inimigos militares”303.

Os jornalistas, tanto dos meios de comunicação estatais quanto privados, mostraram-se

muito evasivos nas suas respostas, não sendo possível identificar a priori diferenças

significativas nem entre eles, nem entre as três cidades, no que respeita à pergunta sobre

a pertença ou inclusão dos meios de comunicação na sociedade civil em Angola. As

303 MATEUS, Ismael (2004), “O papel dos mídia no conflito e na construção da democracia”. Número especial, Da paz militar à justiça social? O processo de paz angolano. Conciliation Resources, nº. 15, pp.62-63.

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opiniões dividiram-se entre uma parte que considera que fazem parte, porque promovem

a sociedade civil entre outras razões, e os que consideram que não fazem parte, porque

não se envolvem, regendo-se por um movimento e uma dinâmica próprios; uns ficaram-

se na reflexão sobre os papéis da comunicação social em sociedades democráticas, não

respondendo à pergunta; outros, ainda, acham que os meios de comunicação estatais não

são parte da sociedade civil, mas os privados sim.

A maioria dos participantes na pesquisa, nas três cidades e em todas as categorias de

análise, incluindo os jornalistas, não consideram os meios de comunicação social como

integrando a sociedade civil, apesar de reconhecido o seu papel como formadores de

opinião, o argumento usado pelos poucos profissionais da comunicação social

envolvidos na pesquisa para justificar a sua opinião de que a comunicação faz parte da

sociedade civil. As indecisões manifestadas por alguns profissionais da comunicação

social, a esta e a outras perguntas dos questionários, parece indicar não haver no seio da

classe uma reflexão sobre a relação dos meios de comunicação com a sociedade civil,

apesar da presença diária deste conceito na imprensa angolana, e não obstante a

existência de espaços de organização dos interesses dos profissionais da classe, como

sindicatos e associações, que se assumem, coletivamente, como parte integrante da

sociedade civil. Como refere Mateus, “... apesar de existirem estruturas profissionais

como o Sindicato dos Jornalistas Angolanos (SJA) e o Centro de Imprensa em Luanda,

estas necessitam ser reforçadas. Juntamente com a fraca formação profissional, esta

situação restringe a capacidade da comunicação social para dar resposta imediata a este

desafio [o apoio à democracia em Angola (...) [sendo] a sua maior participação (...) a

inversão do entendimento conceptual da ideia de serviço público”304.

3. As Autoridades Tradicionais e o poder local

Na busca por elementos para esclarecer a relação entre a sociedade no sentido mais amplo e as comunidades de base, entendidas de forma generalizada como correspondendo ao público moderno ou

cívico e ao público primordial, respectivamente, a pesquisa incluiu uma categoria de análise designada de Poder Local. Nesta categoria foram mobilizados membros do poder local, tanto

tradicional305 quanto da administração do Estado, com o objetivo de enquadrar o poder tradicional na discussão, devido às ambiguidades ainda prevalecentes sobre os seus papéis sociais. Após a

independência, foi comum a acusação de colaboracionismo com o regime colonial, sendo as autoridades tradicionais apresentadas à sociedade como representantes da sociedade colonial cujos vestígios era preciso apagar, ao mesmo tempo que eram identificados como representantes de uma sociedade feudal e obscurantista, que era fundamental combater306. A reação individual mais ou

304 Idem.

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menos generalizada, foi a de não participação no projeto de construção da nova sociedade, e/ou o exílio em áreas urbanas ou suas periferias em busca do anonimato.

No âmbito das reformas dos anos 90, houve o reconhecimento jurídico e a definição

legal das autoridades tradicionais, bem como a atribuição das respectivas funções e

prerrogativas (incluindo um salário mensal) e símbolos (fardamentos e insígnias). A lei

reconhece os dois tipos de autoridade tradicional: a chefia fundada na linhagem, mais

comum nas zonas rurais, e a chefia fundada na eleição pela população local (mais

comum nas áreas urbanas e peri-urbanas).

A inclusão desta categoria na pesquisa visava obter informações sobre as formas de

integração destas entidades na vida pública nacional, principalmente face a algumas

interrogações sobre uma eventual manipulação política com vista à mobilização de

bases eleitorais, entre outras possíveis razões, dada a proximidade da realização das

próximas eleições. Outra preocupação relaciona-se com uma possível intenção de

despolitização e desconexão destas entidades da vida pública nacional, através de

alguma forma de destituição das suas prerrogativas em favor da administração local do

Estado ou de conselhos regionais de chefias tradicionais. Estas preocupações surgem no

âmbito das discussões sobre as ambiguidades sobre o papel desses personagens

enquanto representantes dos maiores grupos de interesse nacionais, os camponeses, até

agora claramente sub-representados em todas as instâncias de poder, ou como

representantes de identidades étnico-regionais, sua fonte de legitimidade, ou, ainda,

como representantes da administração local do Estado307.

Embora o questionário destinado a esta categoria não tivesse uma pergunta direta sobre

o pertencimento das autoridades tradicionais à sociedade civil em Angola, procurava

305 Importa referir que o uso do termo tradição e seus derivados se faz neste trabalho com reservas, uma vez que não subscreve o carácter de cristalização e imutabilidade que habitualmente lhe são consignados; pretende-se com esse

termo fazer referência ao “acervo cultural que (...) pode ser razoavelmente dinâmico, enriquecendo-se e transformando-se pelas conjunturas”. Reservas idênticas à ideia de sociedade tradicional como termo adequado para

descrever as sociedades rurais africanas dos nossos dias, dado que “ignora as alterações que essas sociedades sofreram por força da ocupação colonial e da sua consequente exposição à economia capitalista”. NICOLAU, Victor

Hugo. (1999), op. cit. 306 Enquanto alguns autores africanos, como Mamdani, vêm a tradição como fornecendo a base para um despotismo descentralizado, outros visualizam-na como constituindo um espaço de socialização e de vida, alternativo ao individualismo e à cultura globalizante do ocidente (Nyamnjoh), ou como contendo o possível modelo de uma alternativa denmocrática (Wamba-dia-Wamba). Outros (Michael Neocosmos), opõem à celebração acrítica da tradição como cultura autêntica, e ao discurso neoliberal dos direitos humanos, uma visão alternativa da tradição em África, sugerindo que ela seja entendida na perspectiva de um caminho completamente novo de pensar a política. 307 NETO, Mª da Conceição. (2002), Respeitar o passado – e não regressar ao passado. Contribuição para o debate sobre a Autoridade Tradicional em Angola. I Encontro Nacional sobre a Autoridade Tradicional. Luanda, 20-22 de Março.

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conhecer as relações entre estas e as diversas instituições habitualmente identificadas

como pertencendo à sociedade civil, o que parecia endereçar a questão assumida no

pressuposto. As respostas obtidas permitem identificar relações de proximidade e de

colaboração/cooperação entre as autoridades tradicionais e os grupos e organizações

identificados como pertencendo à sociedade civil em Angola, nomeadamente as Igrejas

e as organizações locais (associações de moradores, comissões de Bairro), com as quais

as autoridades tradicionais mantêm relações, por eles consideradas de muito boas ou

boas, e as associações cívicas e outras associações e grupos de interesse são também

organizações com as quais as autoridades tradicionais mantêm relações próximas.

De notar que as organizações comunitárias de base não mereceram a mesma

unanimidade das outras organizações locais, tendo sido ocasionalmente identificadas

pelas autoridades tradicionais em Luanda e em Benguela, e ignoradas em Malanje. Uma

eventual explicação para a diferença de tratamento, tanto relativamente às outras

organizações locais, quanto entre as três cidades, pode residir no fato de estas

organizações serem entendidas como competindo com as autoridades tradicionais em

alguns dos pelouros que estas gostariam de ter ou manter sob sua responsabilidade.

As relações com outras organizações identificadas como pertencendo à sociedade civil,

nomeadamente as ONG’s e as cooperativas ou associações de produção e de consumo,

parecem ser diferentemente percebidas em função das experiências locais, da maior ou

menor presença dessas organizações nas três cidades. As ONG’s parecem ter uma

relação próxima com as autoridades tradicionais em Benguela e em Malanje, mas não

receberam essa indicação de todos os participantes nesta categoria em Luanda,

provavelmente devido ao papel que algumas delas desempenharam como agentes na

ajuda alimentar ou de emergência durante a guerra civil, que foi mais visível naquelas

duas cidades do que em Luanda. Não existem cooperativas ou associações de produção

e de consumo nos bairros das autoridades tradicionais que participaram em Luanda

(urbanos e periurbanos), que foram indicadas por poucos participantes desta categoria

em Benguela e em Malanje.

As relações com os partidos políticos foram qualificadas de boas ou normais por quase

todos os participantes desta categoria nas três cidades; contudo, em outras respostas,

nomeadamente sobre as relações entre as autoridades tradicionais e os deputados eleitos

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em 1992, as mesmas foram consideradas “esporádicas e remetendo a situações de

interesse para os partidos que representam”, ou seja, essa relação acontece quando os

partidos (mais especificamente o partido no poder, com maior presença em Luanda)

precisam de alguma forma de legitimação/adesão por parte da população, relativamente

a alguma decisão considerada importante para o partido. Outras opiniões consideraram-

na como “praticamente inexistente, e quando acontece visa responder a uma

necessidade identificada pelo partido e não tem em vista auscultar as preocupações da

população: os deputados eleitos terem dado costas às autoridades tradicionais”, criticou

um dos participantes. Parece o caso de considerar algumas dessas respostas como

politicamente corretas, sendo de notar que 2 dos integrantes desta categoria em Luanda,

pediram anonimato para participarem na pesquisa.

Os sindicatos não figuram entre as instituições próximas ao poder local, em nenhuma

das três cidades, sendo visível a falta de informação sobre os papéis e as atividades dos

mesmos pelos participantes do poder local. O fraco desenvolvimento do sindicalismo

em Angola, e a sua concentração em algumas áreas urbanas, pode constituir parte da

razão deste desconhecimento.

De uma forma geral, os representantes do poder local que participaram na pesquisa

chamaram a atenção para o fato de as associações de moradores e alguns outros tipos de

associações cívicas serem confundidas com partidos políticos. Esta percepção é bastante

comum no atual panorama político angolano, muitas vezes veiculada por figuras

públicas ligadas ao poder, quando associam/denunciam a actividade política de

organizações cívicas, sindicatos, ONG’s, e outras organizações da sociedade civil, como

sendo político-partidária. A argumentação a que se decorre parece evidenciar a intenção

de confundir a acção política, entendida na perspectiva dos direitos reconhecidos

constitucionalmente a todos os cidadãos, de livre expressão, associação e reunião, com a

ação político-partidária dos partidos. Talvez esta percepção se fundamente numa

identificação das autoridades tradicionais com o discurso do poder, que foi denunciada

pela relação de pertencimento obrigatório das autoridades tradicionais ao partido no

poder, particularmente em Luanda, onde os Sobas eleitos atualmente seriam antigos

combatentes do MPLA, o que foi confirmado pelos próprios Sobas, afirmando que

saíram de organizações de base do “Partido” (entenda-se MPLA). Embora não seja

possível afirmar que esta seja uma situação comum a todos os Sobas da área de Luanda,

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o fato de ter sido estabelecida esta relação, parece indicar a intenção de usar

politicamente o chamado poder tradicional, e que é necessário aprofundar esta análise

através de futuras pesquisas.

Entretanto, uma constatação sugerida por estas respostas parece ser que as autoridades

tradicionais se movimentam com alguma facilidade no meio das organizações

consideradas como pertencendo à sociedade civil em Angola, pelo menos aquelas que

receberam unanimidade nessa inclusão. Embora na ótica das demais categorias de

participantes as autoridades tradicionais não façam parte da sociedade civil, os

resultados acima expostos parecem indicar a existência de uma proximidade que

facilitaria a sua atuação como mediadores e/ou articuladores das relações entre as

comunidades de base e as demais organizações e instituições, da sociedade e do Estado.

Diversas experiências têm revelado essa capacidade de mediação e articulação das

autoridades tradicionais, nomeadamente programas e projetos de combate à pobreza, de

vacinação, de desenvolvimento comunitário, etc., facilitando o diálogo entre atores

sociais locais e de outras camadas sociais, nomeadamente as relações entre ONG’s,

políticos, técnicos de diversas áreas, empresários, etc. e as populações das comunidades

de base. Nas avaliações desses encontros ou desses programas, encontram-se referências

ao papel de charneira, de mediação entre comunidades de base e outras camadas sociais,

potencialmente útil para a expansão dos espaços públicos e da inclusão social. Contudo,

também existem referências (por exemplo na coleta de opiniões de comunidades de base

sobre o então Ante-Projeto da Lei de Terras, em 2003), do seu papel na manutenção de

práticas discriminatórias, nomeadamente em relação às mulheres e aos jovens, não só no

tocante ao acesso e uso da terra e seus proventos, mas também em relação à participação

destes grupos nos processos de tomada de decisões, a nível das comunidades, numa

tentativa de retorno aos valores tradicionais que representam perdas para mulheres e

jovens.

Por isso, e como em outras situações em que se buscam formas de aproximação e de

interação entre mundos sociais muito distantes, entre realidades socio-econômicas e

culturais tão distintas, especialmente quando se pretende estabelecer pontes entre elas,

importa considerar todas as possibilidades de articulação, existentes ou potenciais, e

ponderar as consequências de uma simples restauração dos poderes das autoridades

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tradicionais, em resposta às demandas por estas colocadas308 (ou algumas de entre elas)

no âmbito do processo de descentralização administrativa em curso e da projetada

criação de autarquias locais309.

Para além da reflexão sobre as mudanças nas relações de poder e sociais produzidas

pelos processos de conquista e de colonização, da luta anti-colonial, e dos movimentos

migratórios pós-independência, e das suas consequências na desarticulação das formas

ancestrais de relação das instituições tradicionais com as respectivas comunidades de

base, importa considerar, também, os efeitos acumulados da modernização da sociedade

na configuração das relações sociais310. As unidades territoriais e as bases populacionais

às quais essas autoridades estavam relacionadas, os antigos reinos existentes em Angola

não mais existem, prevalecendo na memória social das comunidades ou grupos de

comunidades as relações com os descendentes das chefias de linhagem, embora sejam

cada vez mais comuns as chefias eleitas para os diversos cargos incluídos nesta

designação. A maior parte dos Sobas que participaram na pesquisa foram eleitos, muito

poucos tinham essas funções por linhagem.

A prática de eleição dos Sobas tem vindo a expandir-se em todas regiões do país, e tem

sido vista como resultado de alguma pressão, por parte do Estado, no sentido de criar

pontes entre a população e as estruturas de poder aos diversos níveis, ancorando no

exercício das normas tradicionais que regem a vida comunitária, uma extensão da

administração do Estado nas comunidades. Assim, a prática de eleição das autoridades

tradicionais é considerada por alguns como uma forma mais democrática de escolher os

representantes da população, enquanto para outros permite uma maior intervenção do

poder público, ou de interesses alheios à comunidade, na escolha dos seus

representantes.

Talvez tão importante, ou mais, do que saber se os “Sobas” foram eleitos ou

empossados por descenderem de linhagens reais ou nobres, importa saber se, em função

dessas novas práticas de escolha das lideranças locais, houve mudanças também nas

práxis relacionadas com o processo de tomada de decisão, nomeadamente o seu carácter

308 NETO, Mª. da Conceição (2002), op. cit. 309 MAT (Ministério da Administração do Território)/ PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) (2003), op. cit. 310 PACHECO, Fernando. (2002), op. cit.

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aberto, público. Ou seja, até que ponto os novos “Sobas” mantêm a prática do Ondjango

(espaço circular, aberto, que permite aos não diretamente envolvidos nas discussões,

verem, ouvirem e participarem), e que com frequência surge relacionada com a

recriação e/ou renovação dos espaços públicos em Angola.

As respostas obtidas não foram muito específicas em relação à questão supracitada.

Mais do que referir “como” esse processo de debate e tomada de decisão ocorre, numa

perspectiva de relacionar poder local tradicional com a respectiva comunidade, a

maioria das respostas enveredou pelo caminho da relação entre os dois poderes locais, o

tradicional e o estatal, definindo-a em geral, como de “subordinação” daquele em

relação a este. Apesar de ter sido realçada a necessidade de articulação entre as

responsabilidades assumidas perante a administração do Estado, e o trabalho de

sensibilização, mobilização e organização do trabalho nas comunidades, e de terem sido

indicadas dificuldades não especificadas para o exercício das suas funções, nenhum dos

10 membros do poder tradicional que participaram na pesquisa se referiu explicitamente

ao Ondjango. Um deles, contudo, desabafou: “Aqui em Luanda, nesta situação [de

deslocado], pouco ou nada faço, não encontro espaço para exercer as minhas funções,

que são de organizar a minha sanzala e o meu povo”.

A ausência de referência ao Ondjango pelos membros do poder local, tanto tradicional

quanto estatal, pode ter sido devida à falta de clareza das perguntas. Outra possibilidade

é que esta instituição de tomada de decisão esteja perdendo espaço fora das

comunidades rurais, “nas áreas peri-urbanas, os sobas têm mais dificuldade em

encontrarem espaço e conseguirem os meios para a construção destes espaços de

decisão, transferindo o Ondjango para suas casas, em geral pequenas e pouco abertas,

limitando a participação aos diretamente envolvidos no assunto em discussão”311. Uma

outra possibilidade, ainda, é a de que a imagem do Ondjango esteja sendo transformada

em utopia da recriação de espaços de participação por intelectuais, organizações e

grupos da sociedade civil urbana, embora o seu uso possa estar em declínio nos espaços

peri-urbanos pelas razões acima apontadas.

311 ROBSON, Paul & ROQUE, Sandra. (2001), op. cit. ROBSON, Paul. (2001), op. cit.

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Talvez em resultado dos efeitos dos processos anteriormente referidos, existe uma

ambiguidade por parte das próprias autoridades tradicionais relativamente à sua

legitimidade, representatividade e reconhecimento, apresentando-se em algumas

ocasiões como representantes das comunidades de base, e noutras como representantes

do mais baixo escalão da administração do Estado. Quem representam, um grupo de

pessoas ou uma comunidade junto do Estado, ou o Estado nessa comunidade ou junto

desse grupo de pessoas?312. Por outro lado, a heterogeneidade sócio-cultural das cidades

(principalmente nas áreas peri-urbanas), em resultado dos movimentos migratórios

provocados pela guerra, a sobrevivência e a busca de melhores condições de vida,

“dificulta o uso de mecanismos tradicionais de ligação com os moradores”313, e torna

quase impossível a função de organização da ação coletiva e o exercício da mediação na

resolução de conflitos entre os moradores.

V. ENTRE O PODER DO ESTADO E A VULNERABILIDADE DA

SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA

A saída para a Paz, conseguida no plano militar, não deixou muitas possibilidades para

o protagonismo da sociedade civil na construção da Paz social. As respostas evidenciam

percepções críticas da debilidade da sociedade civil, e também mostram que os

participantes relacionam a forte ligação entre interesses políticos e econômicos com o

elevado grau de dificuldade de influenciar ambos os sistemas, condição sine qua non

para alcançar o objetivo de mudança societal ampla.

A atribuição à sociedade civil do protagonismo num processo de mudança social parece

indicar que os participantes a identificam como um espaço de contestação democrática e

mobilização social fora do Estado, do mercado e da família, capaz de interpor ao Estado

e ao mercado alternativas para a saída da crise que o país continua vivendo. Se por um

lado a sociedade angolana já não se caracteriza por um regime totalitário no qual o

Estado tinha o controle sobre todos os aspectos da vida social e onde, para além da

família, não existia qualquer outra esfera privada organizada e independente a não ser a

das igrejas, ainda não se alcançou um estado de democracia em que todos os cidadãos

tenham acesso aos meios de comunicação, e que todos os grupos sociais tenham a

312 ROBSON, Paul & ROQUE, Sandra. (2002), op. cit. 313 ROBSON, Paul & ROQUE, Sandra (2001), op. cit.

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oportunidade de interpelar o Estado com vista à formulação de políticas públicas

tendentes a resolver os seus problemas. Pelo contrário, Angola é formalmente um

estado democrático de direito, mas o ambiente caracteriza-se pela pobreza, a

desigualdade social, o acesso desigual aos meios de comunicação, às instituições do

Estado, e aos direitos, e onde a esfera pública é frequentemente percebida como um

espaço de legitimação das decisões dos detentores do poder.

O processo de democratização iniciou formalmente há cerca de 15 anos, mas a

prevalência da guerra civil durante a maior parte desse período não favoreceu a

constituição legalização, fortalecimento e diversificação das organizações da sociedade

civil em Angola. As formas organizativas da sociedade civil são recentes, com grandes

limitações na mobilização de recursos financeiros, materiais e humanos para o

desenvolvimento das suas atividades, o que as tornam extremamente dependentes de

agências multi e bilaterais, enfrentando enormes problemas de ordem burocrática para a

sua legalização. A sua distribuição pelo país também é bastante desigual, concentrada

nas principais cidades, ou seja, mais do que um fenômeno urbano comum em África, a

sociedade civil tem pouca presença em cidades mais pequenas do interior, ou que

tenham sido mais atingidas pela guerra. Ainda assim, a sua visibilidade está crescendo e

a sua relação com o Estado tende a encaminhar-se para uma situação de tensão criativa,

combinando cooperação e oposição, esta última entendida como confrontação /

interpelação com vista à defesa de interesses dos grupos e organizações que representa

ou que busca publicitar.

A par das organizações habitualmente identificadas com a sociedade civil, as igrejas

continuam sendo as principais porta-vozes dos grupos sociais mais desfavorecidos nas

áreas urbanas e periurbanas, embora algumas igrejas consigam manter, e até expandir, a

sua presença em áreas rurais, mais remotas. Contudo, de uma forma geral, os interesses

das populações residentes nestas áreas, que constituem a maioria mais necessitada entre

os angolanos, não chegam às instituições do Estado, com as quais estas comunidades

praticamente não têm contacto. É através das autoridades tradicionais que estas

comunidades se relacionam com a sociedade em geral, e que são conhecidos os seus

problemas e necessidades, bem como as soluções que identificam para a superação dos

mesmos, nas quais colocam habitualmente uma razoável dose de auto-envolvimento.

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A perspectiva de uma Angola verdadeiramente unificada através de um processo de

consolidação da Paz social, contida na maioria das respostas, parece considerar a

inclusão dos grupos sociais hoje marginalizados e das comunidades rurais, que

constituem a maioria da população, e que ainda se regem por regras e normas do direito

costumeiro, não se reconhecendo e nem tendo acesso aos mecanismos do direito

moderno. E, também neste aspeto da luta pela democratização, a sociedade civil é

chamada a desempenhar o papel de promotor da inovação e da criatividade sociais, no

sentido de encontrar as estratégias mais eficazes para induzir a mesclagem de valores e

costumes tradicionais nos valores e práticas do quadro de referências dominantes nas

sociedades atuais, de valores políticos democráticos e de práticas econômicas liberais,

enquanto se identificam os melhores caminhos para incluir as comunidades rurais no

processo de modernização em curso, designadamente através do fortalecimento das

relações entre os meios rural e urbano e da transferência / introdução de novas

tecnologias de produção, de construção civil, de comunicações e de transportes.

Atendendo aos valores de inclusão, justiça e equidade social reivindicados pela grande

maioria dos participantes na pesquisa, a desejada transformação societal passa pela

modernização, ainda que lenta, das regras e normas tradicionais, por exemplo no que

respeita às práticas discriminatórias em relação às mulheres e aos jovens, e pela

incorporação de regras e normas tradicionais nos dispositivos legais do sistema jurídico

moderno.

Enquanto a luta da sociedade civil se pauta pela democratização das formas de governo,

nomeadamente através de ações que visem levar o Estado a sentir-se obrigado a engajá-

la na formulação, implementação e avaliação das políticas públicas, e na expansão dos

direitos de cidadania através da transformação dos atuais clientes dos serviços públicos

em cidadãos co-gestores dos interesses públicos, os meios de comunicação têm

procurado cumprir o seu papel de denúncia de desrespeito aos direitos humanos, e de

implantação de uma cultura de prestação de contas e de transparência na gestão dos

interesses públicos, com particular destaque nos meios de comunicação privados. Mas

os dados apresentados também mostram que a sua área de influência é muito restrita,

quase urbana, pouco diversificada, bastando citar que existe apenas um jornal diário, e

que até agora a lei não permitia canais de televisão privados, e praticamente sem espaço

para a expressão de dissensos em relação à condução do país nos planos político,

econômico e social. A contribuição dos meios de comunicação social para a

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democratização das formas de governo em Angola, a par dos esforços da sociedade civil

para expansão do espaço público, parece assim comprometer o alcance dos objetivos

preconizados pelos participantes na pesquisa.

A releitura dos dados sobre a situação de pobreza e dos indicadores de desenvolvimento

humano e social, mostram inequivocamente que esses progressos não têm sido os

necessários para provocar as mudanças que transformem a realidade atual. Para isso

será necessário que a sociedade civil e os atores sociais com funções de articuladores e

mediadores consigam mobilizar uma mais ampla participação da sociedade, e formas

mais adequadas de representação de direitos e interesses, de maneira a despoletar um

processo de mudança na própria atitude das lideranças do país e dos responsáveis pelas

instituições do Estado e do sistema político angolano, mudanças estas também

identificadas pelos participantes como necessárias para que a transformação societal

mais ampla possa acontecer.

Este capítulo dedicou-se à análise dos papéis atribuídos à sociedade civil pelos

participantes com vista a testar os pressupostos assumidos, de que esses papéis seriam

relacionados com a organização de espaços de negociação de processos de mudança,

onde prevaleciam as ideias de construção de nação e de cidadania, de modernização e

democratização da sociedade, e de combate à pobreza e à desigualdade social, também

se confirmou. Estes pressuposto continha implícita uma prioridade que foi explicitada

pelas respostas dos atores sociais que participaram na pesquisa, nomeadamente a da

consolidação da Paz e da reconciliação nacional.

A organização da discussão do capítulo permitiu dar a conhecer as opiniões dos

participantes sobre os papéis que atribuem à sociedade civil. A partir de um traço de

insatisfação revelado pela maioria dos participantes em todas as respostas em que

pudessem expressá-la, identificaram-se as prioridades e os caminhos de um amplo

processo de mudança social orientado para o desenvolvimento do capital humano, no

âmbito de reformas nos sistemas político e econômico com vista a tornar mais

transparente a gestão dos interesses públicos, a proporcionar uma mais justa

redistribuição dos rendimentos nacionais, relacionada com o combate à corrupção, a

consolidação da Paz e a reconciliação entre os angolanos.

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A democratização da sociedade parece entendida como um resultado do processo de

mudança e não um objetivo em si. O alargamento dos espaços públicos, através da

institucionalização de instâncias de participação a todos os níveis, não parece constar

das preocupações imediatas dos participantes, o que ficou evidente no cruzamento de

opiniões sobre prioridades atribuídas a políticas públicas visando tornar a gestão mais

transparente e participante, com as que previam a expansão das oportunidades de

participação dos cidadãos, entre outros exemplos.

A modernização da sociedade não mereceu o mínimo destaque nas três cidades e em

todas as categorias de análise. Uma possível interpretação é que, tal como aconteceu

com a democratização da sociedade, a modernização seja entendida mais como

resultado do que como objetivo de política. Considerando as respostas no seu todo, e

dada a dimensão da insatisfação manifestada, parece implícita uma amplitude mais

significativa no processo de mudança do que aquela que foi identificada. A confirmação

desta suposição implica a realização de estudos mais abrangentes e desenhados com

esse objetivo.

À primeira vista, a atribuição pelos participantes à sociedade civil da responsabilidade

de motor da mudança em Angola, parece ultrapassar as reais possibilidades que ela

demonstra possuir, devido às relações históricas entre o Estado e a sociedade em Angola

que determinam a falta de incentivos e apoios institucionais ao seu desenvolvimento e

expansão, e consequentemente, uma grande dependência de apoios e recursos externos,

o que pode condicionar a sua agenda e o seu papel social.

CAPÍTULO 6 – 212 PÁGINAS DEPOIS ... QUE CONCLUSÕES?

I

Sobre a importância do tema da tese para a atualidade em Angola destacam-se, entre

outras, as seguintes conclusões: 1º. o tema mostrou-se relevante não apenas como

conceito recorrente nos discursos dos atores sociais, estatais e não-estatais, tanto nas

matérias veiculadas ou transmitidas pelos meios de comunicação como em opiniões

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expressas em encontros, seminários, documentos oficiais, entre outros, mas também

como prática da ação coletiva num espaço de intervenção social fora da esfera estatal e

do sistema político-partidário, no qual atores não-estatais procuram as estratégias mais

eficazes para fazerem ouvir a sua voz em defesa dos seus interesses, numa fase pós-

guerra civil em que é evidente a expectativa de amplas mudanças nos cenários político,

econômico e social. 2º. A realização da tese revelou a complexidade da análise do tema

no contexto angolano e a vantagem de recorrer a diversos métodos de pesquisa para

além da bibliográfica. A observação direta, a pesquisa de campo, os debates sobre o

tema, a participação em seminários e grupos de trabalho no âmbito de reformas

institucionais em curso em Angola, a troca de experiência com outros estudiosos da

realidade angolana, entre outras oportunidades, contribuíram para uma análise mais

compreensiva, ainda que limitada e insuficiente em termos de abrangência dos atores

sociais abrangidos e dos espaços que eles ocupam; aliando teoria e empiria tornou-se

possível caracterizar as percepções coletadas na pesquisa de campo, perceber a riqueza

das expressões plurais sobre o tema e confronta-las com os quadros teóricos disponíveis

na literatura consultada. 3º. A tese, para além de trazer para a discussão diversas fontes

de referência sobre a sociedade civil incluindo os debates atuais no sul e no mundo não

ocidental, em particular reflexões de acadêmicos, políticos e outros atores sociais

africanos, e de dar a sua contribuição para a compreensão das dinâmicas sociais

prevalecentes na Angola de hoje, permitiu identificar futuras linhas de pesquisa, com

vista a ampliar o conhecimento sobre os atores sociais, suas representações,

expectativas e limitações, identificar as oportunidades e constrangimentos para a

participação e a influência que a atual configuração do espaço público oferece, através

do alargamento da base de recolha de opiniões tanto do ponto de vista da inclusão de

outros grupos sociais, quanto da cobertura geográfica.

Sobre a inclusão da análise do percurso histórico como ponto de partida para a

compreensão do momento atual em Angola, conclui-se que a mesma a) permitiu uma

melhor compreensão das representações sociais sobre a sociedade civil, revelando a

enorme expectativa nela depositada pela maioria dos participantes na pesquisa de

campo, bem como nos trabalhos de autores angolanos incluídos na pesquisa

bibliográficas, principalmente no que respeita ao papel da sociedade civil em Angola

como motor da mudança; b) mostrou a adequação da aplicação do argumento de Ekhe

ao contexto sócio-político atual em Angola, para avaliar as consequências dos processos

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de colonização na desigualdade do acesso e exercício da cidadania, tornando visível as

distintas condições e oportunidades de acesso ao espaço público de um reduzido público

cívico e da maioria de um público primordial; c) forneceu as bases para identificar a

necessidade de incorporar a qualquer análise sobre a sociedade civil em Angola, a teoria

do espaço público; esta necessidade resulta da insuficiência das teorias da sociedade

civil fundadas na noção da vida associativa, para a construção de um quadro teórico

capaz de conferir sentido às representações dos atores sociais, estatais e não-estatais, e

mostrar as possibilidades de concretização das aspirações de inclusão e de participação

de amplos segmentos da sociedade angolana.

A análise do quadro institucional angolano constituiu a chave para a compreensão das

relações sociais e de poder em Angola, porque a) permitiu identificar a concentração do

poder nas instituições estatais, em geral, e na presidência em particular, e as suas

consequências na ocupação do espaço público, na construção da opinião pública e na

formatação das representações e papéis atribuídos à sociedade civil; b) revelou a forte

interligação de interesses entre a esfera estatal e a esfera econômica, o que constitui um

elemento importante na identificação das condições de possibilidade de um maior

protagonismo da sociedade civil em Angola no processo de mudança preconizado pela

grande maioria dos participantes na pesquisa de campo, considerado condição sine qua

non para que tal mudança possa acontecer; c) evidenciou a grande fragmentação do

sistema político, e a dificuldade de construção de uma oposição política capaz de

organizar os interesses dos grupos sociais mais desfavorecidos ou dos excluídos do

espaço público angolano, em programas alternativos ao do partido no poder, que luta

pela sua manutenção no poder; d) tornou visível a necessidade da intervenção de atores

sociais, individuais ou coletivos, como igrejas, meios de comunicação e autoridades

tradicionais, na articulação ou mediação das relações sociais e de poder, capazes de

operar nas interfaces moderno/tradicional, público/privado, formal/informal, e de

estabelecer as pontes de comunicação entre as diversas partes que constituem a

sociedade angolana, agindo como descodificadores semânticos entre elas, e assim

contribuir para a construção de um futuro melhor para os angolanos; e) criou uma

oportunidade para compreender o papel das agências bi e multilaterais na configuração

da sociedade civil em Angola, possível devido à enorme dependência financeira das

organizações nacionais, por um lado, e às condicionalidades impostas através dos seus

programas de combate à pobreza, de ajustamento estrututal, ou de financiamento de

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comunidades carentes, impondo as suas noções de democracia, boa governação,

transparência e prestação de contas, que tendem a formatar uma sociedade civil sem

cidadania, esvaziada do seu conteúdo político, ao mesmo tempo que visam outro

objetivo que também atinge a sociedade civil, e que é o da redução do papel do Estado,

em particular no que respeita à garantia de segurança social, de investimento em capital

humano, redistribuição da riqueza nacional através de políticas públicas de combate à

desigualdade social, entre outras.

Sobre a utilidade do recurso ao conceito de sociedade civil para explicar as dinâmicas

sociais em África em geral, e em Angola em particular, as incursões sobre os

entendimentos do conceito em algumas tradições de pensamento ocidentais, nos

discursos de organizações internacionais e regionais de estados, e de redes mundiais,

regionais e nacionais de organizações e grupos de cidadãos, e em algumas vertentes da

discussão académica em África, parecem apontar para as seguintes conclusões

importantes para a organização da discussão: 1º. que o conceito de sociedade civil é

necessário, porque recorrente para a interpretação dos processos de reconfiguração das

relações entre as organizações de cidadãos e o Estado; 2º. a existência de diversos

movimentos e tensões na construção das representações da sociedade civil: internos e

externos, locais, nacionais e supranacionais, e a insuficiência dos complexos binários do

local versus global, do tradicional versus moderno, ou do conhecimento legitimado

versus conhecimento rival, apontando outrossim para a caracterização de uma dinâmica

própria, condicionada pelas conjunturas externas, mas que não busca na contra-

hegemonização a sua motivação ou raison d’être; 3º. a necessidade de adotar uma

metodologia alternativa, aliando teoria e empiria, para refletir na discussão a riqueza da

diversidade de representações, vivências / experiências e expectativas dos diversos

atores civis. No caso particular de Angola, a incorporação de uma parcela significativa

do seu tecido social e suas representações, correspondente ao “público primordial” de

Ekhe e aos “sujeitos” de Mamdani, implica o reconhecimento da oralidade como forma

de expressão de conhecimentos válidos e essenciais para a compreensão das realidades

sociais em estudo, e a busca por uma conciliação difícil, mas não impossível, entre a

objetividade do pensamento ocidental e a riqueza da retórica africana na busca de um

novo caminho para pensar a política; 4º. A diversidade das formas de organização

identificadas, dos grupos informais às organizações legalmente instituídas, dos papéis

atribuídos, da auto-ajuda à luta pela defesa de direitos universais, das motivações e

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agendas, e dos espaços de intervenção aos diversos níveis do processo de tomada de

decisões, aponta para a perspectiva ampla de um entendimento de sociedade civil como

processo dinâmico e fundamentalmente político de interação entre várias organizações

da sociedade e entre estas, o Estado e o mercado, através do qual são forjadas,

fortalecidas ou enfraquecidas as relações de poder, pela criação de oportunidades para

diferentes grupos (particularmente aqueles em situações política ou socialmente

desvantajosas) adquirirem a capacidade de influenciar os resultados políticos, e

contribuírem para a emergência de modelos alternativos de desenvolvimento,

contribuindo assim para a construção de um novo paradigma e suas metodologias314.

II

O desejo de compreender as semelhanças e as distinções entre os significados ou

sentidos expressos pelos participantes na pesquisa, e os retidos na pesquisa bibliográfica

sobre o tema em diversos quadrantes, do Ocidente à África e a outras regiões do

hemisfério sul, apontou para a necessidade de iniciar este estudo pela discussão da

modernidade e das formas de inserção das sociedades não-ocidentais no processo de

globalização percebido como profundamente orientado por sistemas de valores e

crenças ocidentais.

A realização do estudo numa época em que não é possível ignorar os impactos do

processo de globalização nas realidades locais, mas em que se reconhecem igualmente

os efeitos dessas realidades locais na formatação desses impactos, explicitados nos

processos de influência em mão dupla, determinou a necessidade de dar um espaço à

relação dos atores sociais angolanos com instâncias de participação e de influência a

nível supranacional, através das oportunidades criadas pelas organizações da sociedade

civil global. Esta opção permitiu perceber a influência dos debates e dos discursos da

sociedade civil global na configuração das representações dos atores sociais angolanos,

que por sua vez aproveitam essas oportunidades para dar a conhecer a realidade

angolana, denunciar situações de injustiça social e de violação de direitos, engajar-se em

lutas pelo reforço das capacidades cidadãs numa arena cívica mais inclusiva, mobilizar

solidariedades e identificar formas de cooperação e ajuda aos diversos níveis de

314 NEGRÃO, José. (2004), op. cit.

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intervenção a que têm acesso, rompendo com o isolacionismo que o regime político tem

imposto, e contribuindo assim para incluir Angola no debate global, enriquecendo-o

com as suas experiências, sucessos e fracassos, e emprestando-lhe as suas próprias

nuances ideológicas e utópicas.

A inclusão das ideias sobre sociedade civil no mundo não-ocidental visou uma tipologia

não apenas político-geográfica mas também teórico-ideológica, a partir dos elementos

aparentemente comuns veiculados por essas ideias. Com o objetivo de contribuir para a

poliformia e polissemia desse debate, monopolizado pelas abordagens do pensamento

ocidental frequentemente redutor na interpretação das muitas estórias, das muitas

geografias e das muitas culturas que se compõem e decompõem em múltiplas trajetórias

que convergem e divergem em movimentos de atores com fontes e recursos variados,

incorporaram-se representações coletivas e interpretações eruditas e populares de outros

contextos onde o conceito é recorrente nas lutas pelo acesso aos recursos reais e

simbólicos, políticos e econômicos, pela melhoria da qualidade de vida dos indivíduos e

dos grupos315. O alargamento ao mundo não ocidental da base de recolha das

configurações dos debates atuais sobre o conceito contribuiu para confirmar a

legitimidade da adequação do conceito a esses contextos, tão frequentemente discutida

no debate ocidental, mostrando a diversidade de processos nos quais o conceito é

recurso, devido ao potencial de movimento e de mobilização que vem demonstrando ao

longo da sua história. Permitiu, ainda, perceber o seu papel na organização da

resistência das sociedades colonizadas em geral, e africanas em particular, contra a

assimilação e a aculturação nos processos através dos quais os impérios coloniais

influenciaram as texturas sociais, culturais, econômicas e políticas africanas. Esse papel

de organizador da resistência, através das amplas coalisões que deram consistência e

conferiram legitimidade aos movimentos nacionalistas pela independência a partir de

meados do século XX, e foi apropriado mais tarde na constituição das amplas frentes

que lutaram por reformas democráticas entre finais dos anos 80 e início dos anos 90,

continua hoje a alimentar a utopia de uma sociedade melhor e de um futuro mais digno

para as sociedades africanas, servindo de inspiração a diversos tipos de luta contra o

status quo e as ideologias que lhe servem de suporte, particularmente a neoliberal.

315 DIOUF, Mamadou. (1999), “Des histoires et des histoires, pourquoi faire? L’ historiographie africaine entre L’État et les Communautés”. Revue Africaine de Sociologie, nº. 3, vol. 2, pp. 99-128.

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A ideia de sociedade civil confere sentido à organização da ação coletiva num contexto

de reconhecimento, por parte dos atores sociais, de que o Estado e o mercado são,

apenas, dois componentes de uma trilogia essencial: a sociedade importa, as instituições

sociais contam, e os cidadãos fazem a diferença no que respeita à riqueza da política e

ao sucesso econômico. O contraste entre o progresso político e econômico de uma

pequena porção da sociedade angolana, e a pobreza e a exclusão social da grande

maioria da população que pagou a maior parcela dos custos sociais e econômicos da

guerra civil, incita os atores angolanos a constituírem (ou reforçarem as já existentes),

organizações cívicas, comunitárias, de residência, profissionais, ou outras, com vista à

formulação de estratégias de influência junto dos poderes públicos. Esta ampla

construção social, aliando organizações de base, muitas vezes informais, a organizações

especializadas na defesa dos mais diversos tipos de direitos, demonstra a percepção da

necessidade de superar diferenças e unir forças com vista ao alcance de objetivos

comuns, e constitui em si uma promessa da capacidade da sociedade civil em Angola

em assumir o protagonismo no processo de mudança, atribuído pelos participantes na

pesquisa. Num contexto fortemente marcado pelas sequelas de uma guerra civil que se

prolongou desde o período imediatamente anterior à independência até 2002, o combate

à pobreza e à exclusão social parece percebido como um caminho para a reconciliação

nacional e a consolidação da paz social.

A análise dos debates apresentada no capítulo 2 mostrou que não é possível desenvolver

uma definição padrão para a sociedade civil aplicável de igual modo a diferentes

contextos, sendo necessário uma maior compreensão, melhor informação e uma maior

diversidade de caminhos ou meios de situar a noção de sociedade civil em suas diversas

dimensões nos contextos da economia, da política e da sociedade em geral. As

diferentes perspectivas segundo as quais o conceito é apresentado não são, contudo,

necessariamente contraditórias, nem as várias abordagens para a compreender opostas

ou mutuamente excludentes; pelo contrário, são frequentemente complementares,

diferindo mais na ênfase, no foco da explicação, e nas implicações políticas dessas

análises do que nos princípios que orientam a sua construção. Outra evidência dessa

análise é a que sugere como estratégia mais proveitosa uma abordagem que situe

qualquer definição do conceito como o resultado dos esforços empíricos correntes para

melhor compreender a sociedade civil, uma vez que qualquer definição do conceito

certamente evoluirá com o tempo, não devendo por isso ser entendida como dada, nem

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como algo que possa ser imposto316. Parece mais importante compreender a mudança e

inclui-la como variável normativa, do que interpretar a estrutura e procurar encaixar o

“mundo real” em matrizes dadas, onde as relações tenham de ser, compulsivamente,

dicotômicas ou tricotômicas317.

Contudo, apesar do recurso ao conceito para expressar insatisfação em relação ao status

quo, articular objetivos emancipatórios e perseguir a utopia de uma Angola melhor num

mundo melhor, e do aumento significativo de organizações formais, como associações

cívicas e culturais, entidades religiosas, associações profissionais, sindicatos, e

informais, como redes, mutualidades, grupos de auto-ajuda, etc., o quadro de referências

para a compreensão das dinâmicas presentes na sociedade angolana não parecia

completo, porque incapaz de fornecer a chave explicativa da razão pela qual a esse

crescimento da vida associativa em Angola não correspondia uma maior visibilidade e

influência dos actores da sociedade civil em direção às mudanças identificadas como

necessárias. Foi necessário que à teoria da sociedade civil, construída em torno da ideia

de arena da vida associativa situada entre o Estado, o mercado e a família, auto-regulada

e independente dos interesses do Estado e privados, se acrescentasse a teoria da esfera

pública, como meio de incluir as questões relacionadas com o acesso e uso dos direitos

de associação, livre expressão e de constituição da opinião pública na esfera pública

angolana.

No sentido amplo do entendimento sobre o conceito, a sociedade civil corresponde à

auto-organização da sociedade fora dos campos estritos do poder do Estado e dos

interesses do mercado. Relacionando sociedade civil e esfera pública, amplia-se o

entendimento da dimensão organizativa com a capacidade de perceber e debater os

problemas sociais da vida privada, e influenciar e pressionar o campo político com vista

à sua resolução, enfatizando o papel dos meios de comunicação, e os meios pelos quais

os indivíduos constituem um espaço público comum através da participação e do

engajamento cívico. Permite perceber a importância da instituição e operacionalização

do acesso e uso efectivo e universal dos diversos tipos de direitos, liberdade de

pensamento e de expressão, de imprensa e de comunicação, liberdade de associação e

316 ANHEIER, Helmut K. & CARLSON, Lisa (2002), “Civil Society: What it is, and how to measure it”. Centre for Civil Society, Department of Social Policy, London School of Economics and Political Science, Briefing Nº. 3. 317 NEGRÃO, José. (2004), op. cit.

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de reunião, proteção da intimidade e da privacidade, e da integridade pessoal, para

possibilitar o exercício formal da influência sobre os processos de tomada de decisão e

as políticas públicas, e enquadrar nesta perspectiva a participação de diversos atores

sociais que, integrando ou não a sociedade civil, funcionam como articuladores ou

mediadores da ação coletiva, agindo ou constituindo instâncias de intermediação e de

diálogo entre os atores da sociedade civil e os atores estatais e do mercado.

Para criar uma democracia participativa genuína, os cidadãos precisam estar

informados, capazes de argumentar e de participar, e ser activos e organizados para se

tornarem numa força com potencial de transformação política. A limitação da

democracia à esfera da discussão do mundo da vida e da sociedade civil, desconsidera

os pressupostos necessários para a deliberação democrática e a argumentação de uma

cidadania informada e intelectualmente competente, capaz de transformar informação

em conhecimento, e assim produzir cidadãos capazes de participar na discussão e na

deliberação democrática. A complexidade e a desigualdade sociais prevalecentes em

Angola requerem uma percepção de espaço público onde coexistem, conflituam ou se

sobrepõem diversas esferas publicas, incluindo os grupos hoje excluídos, os novos

movimentos sociais, as oportunidades criadas pelas novas tecnologias, e os atores

sociais capazes de desempenhar o papel de articuladores e mediadores do diálogo e do

debate entre esses grupos e os demais segmentos da sociedade, gerando novos

“públicos”.

III

A análise dos dados da pesquisa de campo, e a sua comparação com os resultados de

uma pesquisa quantitativa e a outra de grupos focais realizadas na mesma altura (2003),

não evidenciou particularidades nos discursos dos atores sociais envolvidos, que

pudessem caracterizar uma linguagem específica, uma formulação simbólica

socialmente construída que apenas fizesse sentido no ambiente institucional de Angola.

Não parecem existir especificidades na expressão dos entendimentos sobre o conceito e

os papéis atribuídos à sociedade civil por aqueles atores sociais, quando comparados às

construções sociais em outros países, em particular no hemisfério sul onde se encontram

a maior parte das nações mais jovens, que em geral também foram colonizadas como

Angola, e também na Europa do Leste, onde o fim da guerra fria provocou profundas

mudanças geopolíticas devido às desconstruções e reconstruções de identidades

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coletivas nas sociedades que compunham o bloco socialista e que viveram a experiência

do regime político marxista-leninista (também conhecido como “o segundo mundo” em

oposição ao primeiro mundo composto pelos países da Europa ocidental e da América

do Norte). As diferenças encontradas nas percepções sobre o conceito, formas e

atribuições da sociedade civil em Angola, encontram respaldo em qualquer pesquisa

bibliográfica que se faça sobre o tema, incluindo nas mais avançadas democracias

ocidentais, não conformando uma “tipificação” exclusiva/particular.

Sobre a constituição da sociedade civil em Angola, o pressuposto era que ela envolveria

todos os agentes que operam no espaço intersticial entre estado e sociedade, capazes de

mobilizar e organizar as demandas coletivas e individuais por direitos civis, sociais,

culturais, políticos e econômicos, de produzir novas formas de solidariedade e

responsabilidade social, de contribuir para a criação de plataformas de concertação

social e de luta por justiça e equidade sociais.

Os critérios de pertencimento a que recorreram os participantes na pesquisa levaram à

inclusão de atores sociais individuais, como os intelectuais ou individualidades (no

sentido de pessoas reconhecidas na sociedade em geral), e coletivos, como as igrejas e

entidades religiosas, os grupos informais, as organizações de base ou comunitárias; os

clubes, as fundações, as universidades também foram indicados por alguns participantes

como pertencendo à sociedade civil. Igualmente interessante e sui generis, a ideia que

relaciona processos de gênese da sociedade civil com conferências nacionais e

assembleias instituintes, no que parece uma recuperação de instâncias de deliberação e

de intervenção no espaço público, típicas de África e conhecidas em Angola sob a

designação geral de Ondjango, buscando na tradição soluções alternativas para arranjos

institucionais alternativos.

Contudo, também foram identificadas algumas contradições ou incoerências entre as

visões expressas pelos participantes nas perguntas abertas, e alguns indicadores

quantitativos e qualitativos relacionados com cultura cívica, associativismo, ajuda

mútua, relações de vizinhança e confiança, nas pessoas e nas instituições, recolhidos

através do questionário semi-aberto. Enquanto os discursos parecem expressar

entendimentos / expectativas normativos sobre uma sociedade civil desejada na qual se

depositam as esperanças de mudança em nome da justiça social da equidade, da

inclusão e do respeito pela diferença e pelo reforço da democracia, as respostas às

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perguntas visando perceber o ambiente social e a predisposição para participação cívica

desses atores permitem traçar um cenário mais realista das muitas limitações que é

necessário ultrapassar para que esse desiderato se converta em realidade.

A análise das respostas ao questionário 1, com 20 perguntas direcionadas a captar o

entendimento dos participantes em relação aos ambientes que envolvem os atores

sociais nas três cidades abrangidas pela pesquisa, e as suas práticas e opiniões sobre as

seis categorias de itens relacionados com os indicadores acima referidos, e das respostas

a questionários dirigidos a outras categorias de atores sociais incluídos na pesquisa,

como entidades religiosas, meios de comunicação social, setor informal e poder local,

dão consistência à interpretação das opiniões expressas no questionário 2, constituído

por perguntas abertas relacionadas com as imagens, contornos e papéis atribuídos à

sociedade civil em Angola. O cruzamento dessas respostas contribui para esclarecer a

realidade atual de Angola, onde a uma sociedade civil desejada se contrapõem as

limitações e os constrangimentos de um espaço público muito limitado pela forte

presença do discurso oficial, e no qual as organizações da sociedade civil e outras vozes

independentes da esfera estatal, ainda experimentam muita dificuldade para se

manifestarem, dar visibilidade às suas ações, fazer ouvir a sua voz e influenciar a

agenda pública.

Os resultados parecem apontar para a existência de um diferencial entre as aspirações

expressas nas representações sobre a sociedade civil em Angola, e as predisposições,

capacidades e possibilidades reais de intervenção dos atores sociais angolanos no

espaço público, com vista à influência da agenda política nas distintas vertentes que

mais preocupam esse atores, nomeadamente, a reconciliação nacional e a consolidação

da paz, a erradicação da pobreza, o respeito pelos direitos humanos, a mudança

institucional que torne possível uma sociedade mais justa, equitativa, inclusiva e

democrática. Importa realçar que as predisposições para participação política que

resultam da análise, apesar de indicarem um elevado interesse por parte da maioria dos

actores sociais envolvidos na pesquisa, mostram um potencial que não se realiza na vida

quotidiana dos angolanos. As razões desta décalage entre potencial e real parecem

relacionadas com uma auto-limitação que os atores se colocam em resultado do receio

de retaliações ainda prevalecente, da falta de cultura de debate público, da não

valorização da própria opinião e da do outro, entre outras explicações possíveis mas não

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implícitas nos resultados e que demandam estudos orientados nesse sentido, a realizar

posteriormente. Estas possíveis razões, por sua vez, são consequências da construção

histórica do espaço público em Angola, mas também se devem à prevalência de práticas

coercitivas que não contribuem para a expansão e democratização do espaço público

angolano.

Relativamente aos modos de pensar o laço social e o contrato político e as

possibilidades de obtenção de consensos, ainda que parciais, numa sociedade cujos

processos de mudança têm vindo a ser conduzidos por procedimentos “de cima”, o

pressuposto era que estes consensos se relacionam com as ideias de construção de nação

e de cidadania, de modernização e democratização da sociedade e de combate à pobreza

e à desigualdade social.

A análise das respostas identificou alguns dos fatores que, na opinião dos participantes,

limitam o exercício de uma cidadania ampla e ativa em Angola e que influenciam e são

influenciados pela fragilidade e fragmentação da sociedade civil angolana. Entre esses

fatores, os mais importantes resultam de uma democracia frágil e limitada por uma

visão formalista e redutora, que não garante igualdade de condições e de oportunidades

para o exercício da cidadania; a ausência de uma cultura política por parte dos actores

sociais, capaz de interpelar o Estado e romper com relações clientelistas e corporativas,

e o autoritarismo patrimonialista, que limitam a expansão do processo democrático; o

acesso desigual aos serviços públicos, como educação, saúde, saneamento, justiça, entre

outros, discriminando largas porções da sociedade; um distanciamento das instituições

do Estado em relação aos cidadãos, ignorando a existência de amplos segmentos sem

voz nem visibilidade, agravada pela incapacidade crónica de garantir os direitos básicos;

a presença de sentimentos de impotência política, desamparo social, resignação e/ou

conformismo, reduzindo ainda mais as probabilidades de diálogo social.

Para os participantes, a reversão da atual situação exige a intervenção da sociedade civil

para a criação de condições que pressionem o Estado a criar o ambiente propício à

mudança política, económica e social. Mas para alcançar esse objetivo, os indivíduos,

grupos e organizações da sociedade civil precisam recriar os meios para influenciar e

ocupar o espaço publico angolano, o que requer a adopção de estratégias de luta

emancipatória visando o acesso e uso efetivo dos direitos de associação, de reunião e de

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expressão a todos os cidadãos. Sem essa conquista, e apesar do crescimento do número

de grupos e de organizações que a constituem, os impactos da sociedade civil em

Angola continuarão a ser limitados pelas dificuldades de acesso aos meios de

comunicação social, as restrições à liberdade de promover encontros, reuniões e debates

em qualquer espaço do público, à dificuldade em fazer ouvir a sua voz nos processos

deliberativos dos poderes executivo e legislativo.

A identificação e discussão de elementos distintivos na estrutura e nos processos de

organização da ação coletiva civil, percebidos na análise das respostas, e em tese

resultantes da diversidade sócio-cultural angolana e das distinções nas relações entre o

Estado colonial e a sociedade nas 3 cidades abrangidas pela pesquisa, no espaço e no

tempo, parece indicar que as formas de organização das solidariedades coletivas e das

responsabilidades sociais se pautam por primazias distintas do político, do social e do

económico. Ou seja, enquanto parece claro que os participantes identificam a sociedade

civil como o condutor da mudança, os caminhos escolhidos como esteios desse processo

parecem orientados por prioridades distintas, o que tem como consequência formas

diferenciadas de mobilização da ação coletiva.

Em Luanda as opções parecem apontar para a primazia da ação política, organizada em

torno de programas político-partidários e de uma cidadania plenamente exercida,

estando a preocupação centrada na democratização das formas de governo, na

instituição do estado de direito “de fato”, na promoção da justiça social, na necessidade

de mudança, e na ampla discussão dos papéis do Estado e da sociedade, numa

formulação em que questões com um carácter essencialmente “político” parecem

constituir-se no eixo aglutinador da mobilização para a ação social com vista à

resolução dos inúmeros problemas da sociedade angolana. Em Benguela a opção pelo

desenvolvimento da economia e da expansão das oportunidades de emprego e de

geração de rendimentos mostra-se como a preferida pela maioria dos participantes

daquela cidade; a via do mercado, através da mobilização de recursos e potencialidades

do país, a criação de empregos, estímulos ao relançamento e aumento da produção e

alargamento dos mercados, numa formulação construída em torno de questões com um

carácter essencialmente econômico, em que a economia/o mercado parece surgir das

respostas como a “locomotiva” do processo de democratização e de modernização da

sociedade angolana, através dos quais seja alcançada uma vida melhor para os

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angolanos. Já em Malanje, as preocupações com o desenvolvimento sócio-econômico

percebidas nas combinações propostas de políticas sociais e de oportunidades e

estímulos à produção agro-pecuária, num ambiente de reforma estrutural, parece indicar

uma formulação mais centrada em questões de carácter social: o “social” parece ser o

eixo priorizado pelos participantes na pesquisa, elegendo opções vinculadas a uma

melhoria dos indicadores de desenvolvimento humano, a livre circulação de pessoas e

bens refletindo, provavelmente, uma necessidade relacionada com a situação de “cidade

sitiada” no período de 1998 a 2000, as transformações / reformas no sistema político

com vista à sua “humanização”, e a promoção dos recursos locais, agro-pecuária,

essencialmente, como fonte de geração de renda e de criação de empregos.

Contudo, estas formulações permitem também identificar preocupações comuns,

presentes em praticamente todas as respostas, nomeadamente a reconciliação entre os

angolanos e a consolidação da Paz, o investimento em capital humano e o combate à

pobreza, o combate à corrupção e mais transparência na gestão da “coisa” pública,

percebidos como elementos aglutinadores de solidariedades e responsabilidades sociais,

e como questões-chave no papel da sociedade civil em Angola, que constituiriam o

núcleo duro das políticas públicas num futuro imediato. A ênfase generalizada nas

prioridades comuns em todas as categorias de análise, e as comunalidades nas imagens,

contornos e papéis atribuídos à sociedade civil, apresentadas nos capítulos anteriores,

parecem sugerir que as distinções resultam de nuances nas motivações para a ação

social, na eleição de prioridades e na construção de expectativas com relação ao futuro,

onde a história e as vivências recentes dos atores sociais parecem influenciar as escolhas

por caminhos distintos para a articulação da ação social e das relações de poder318.

Trata-se, contudo, de constatações preliminares, sem possibilidade de serem muito

mais aprofundadas devido não só à ausência de outros elementos de análise necessários

para verificar a consistência das mesmas, mas sobretudo devido à representatividade da

base de recolha de opiniões, não só do ponto de vista do seu tamanho, mas também do

ponto de vista da sua abrangência geográfica e sócio-cultural. Por essa razão, essas

constatações precisam ser confirmadas, ou não, através de estudos orientados nesse

318 Importa realçar que a interpretação acima exposta não ignorou a presença de um misto de motivações para a ação coletiva, apenas quis salientar que parece nítido o predomínio, em cada conjunto de respostas, de um tipo de motivação política, econômica ou social, em relação aos outros dois. Os trabalhos de campo subsequentes, nomeadamente encontros com os participantes, em cada uma das cidades, legitimaram esta interpretação.

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sentido, mais amplos do ponto de vista da representatividade da diversidade sócio-

cultural, e também da inclusão do mundo rural e das suas representações. Esta parece

ser, portanto, mais uma das linhas de pesquisa futura a extrair da análise dos resultados.

Enfim, sobre a interpretação das sintonias e dissonâncias das sociedades africanas com

os tempos e os ritmos do mundo fornece o quadro de referências essencial que confere

sentido à discussão sobre sociedade civil. Para este efeito, considerou-se a necessidade

de discutir diversos argumentos sobre civilizações e modernidade, buscando encontrar o

quadro analítico que melhor acomode uma realidade social que parece caracterizar-se

pela existência de um processo de modernização não uniforme nas diversas esferas da

sociedade angolana.

Na realidade angolana, as formas de organização do político são significativamente

distintas nas áreas urbana e rural, com predomínio do civil nas áreas urbanas e do

costumeiro ou tradicional no meio rural. Como resultado, a acentuação da dicotomia

entre cidadãos e sujeitos, os primeiros com uma cultura de direitos e os segundos com

uma cultura de costumes. Esta discussão remete à distinção entre público cívico e

público primordial, sendo o primeiro relacionado com a ideia de meio urbano e o

segundo com comunidade de base. Esta dicotomia tem originado muita discussão nos

meios acadêmicos africanos, que em geral rejeitam a utilidade da mesma,

argumentando-se que a sua maior utilidade é a de fornecer uma explicação para a

ineficácia da sociedade civil baseada nesta bifurcação dialética, lembrando que apesar

da existência de desigualdades reais no acesso e exercício da cidadania plena por parte

de amplos segmentos da sociedade, principalmente no meio rural, a face da sociedade

civil, hoje, é bem mais complexa e plural do que se consegue perceber seguindo o

paradigma da teoria dos dois públicos. E uma das razões reside na constatação, que a

pesquisa também demonstrou, da existência de outros tipos de organizações não-estatais

para além das “tradicionais”, como as associações ou grupos de jovens, de mulheres, de

vizinhos, ou profissionais. Um vasto leque de organizações, de ONG’s a associações

com diversas motivações, ambientais, direitos humanos, pesquisa, prestação de

serviços, etc., veio matizar o ambiente do campo de mobilização da ação coletiva fora

da influência da esfera do Estado e do mercado, e situa-se também fora do campo do

público primordial, estabelecendo contudo articulações de natureza diversa, facilitada

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entre outras, pelo fato de alguns dos membros destas organizações também pertencerem

a diversos públicos primordiais.

Como a discussão do capítulo 1 demonstrou, a abordagem da modernidade articulada

mista, proposta por Domingues, parece fornecer o quadro de referências mais adequado

à compreensão da realidade angolana de hoje, até porque se mostra a mais aberta aos

subsídios de outras visões e entendimentos sobre as complexas relações das sociedades

atuais com o processo de globalização. As discussões sobre modernidade, globalização

e cosmopolitismo têm privilegiado de forma unilateral a perspectiva do projeto colonial

enquanto missão civilizadora de uma modernização cuja qualificação é forçosamente

ocidental, à qual se juntou, há anos atrás, a modernidade islâmica através de

movimentos fundamentalistas. Apesar disso, continuam em desenvolvimento os

projetos de construção de identidades pós-coloniais, autônomas ou subordinadas, numa

reconciliação difícil, mas não impossível, entre as temporalidades e espiritualidades

locais e o tempo do mundo319.

Na era da globalização, as opções dos países africanos para o reajustamento

institucional às suas dinâmicas sociais, não podem prescindir da combinação de

elementos tradicionais e modernos, acrescentando ao carácter endógeno da sua lógica e

formulação, os elos de ligação do continente ao mundo, dando espaço a que novos

atores sociais compitam livremente na defesa de seus ideais e propostas de agenda

política320. Se o objetivo é reduzir a desigualdade crescente nas trocas e as disparidades

entre os diversos países, regiões e grupos sociais, é importante que, na luta contra a

tendência homogeneizadora da globalização, se evite o encantamento do

multiculturalismo, negligenciando os quadros sociais e as relações de força subjacentes

aos contactos entre as distintas culturas, uma vez que o contexto mundial atual não

oferece chances idênticas a todas as culturas, para beneficiarem das vantagens das

trocas e dos contactos, e prosperarem fora das suas fronteiras históricas321. Por isso

importa que o processo de globalização comporte vários centros de decisão, que

319 DIOUF, Mamadou. (2000), op. cit. 320 NICOLAU, V.H. (1999), op. cit. HOUTARD, François. (org.) (2000), op. cit. 321 HOUTART, François. (2000), op. cit.

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dialoguem em pé de igualdade, contribuindo para a construção de um mundo mais

humano322.

IV.

Num ambiente institucional em que parece não existir vontade política por parte dos

poderes instituídos para a remoção gradual dos impedimentos que ainda obstruem a

construção de uma cidadania ampla e plena, cabe aos cidadãos e à sociedade civil o

papel de a promover. Essa foi uma das mensagens dos participantes na pesquisa, apesar

de todas as dificuldades e limitações que reconheceram na sociedade civil em si, e na

sua capacidade de interpelar o Estado e as suas instituições, devido ao ambiente

institucional pouco permeável ao diálogo e ao estabelecimento de parcerias. Os papéis

normalmente atribuídos à sociedade civil e também encontrados na pesquisa que deu

suporte empírico à tese, e noutros trabalhos sobre o tema em Angola, confrontam-se

com enormes e inúmeras dificuldades para se concretizarem, mas os desenvolvimentos

recentes da sociedade civil no país indicam que, paulatinamente, os indivíduos, grupos e

as organizações que a constituem serão capazes de se afirmarem no espaço público

angolano.

A promoção da cidadania passa pela criação de oportunidades de acesso a bens

colectivos e serviços públicos numa base universal, o que implica, para além do

desenvolvimento das capacidades necessárias para intervir junto do executivo e do

legislativo com vista à adequação das políticas públicas às necessidades da população,

mudanças nas intervenções de alguns integrantes da sociedade civil, particularmente as

ONG’s, com vista a eliminar a atual prática de criação de públicos “privatizados” (os

beneficiários/destinatários dos seus programas/intervenções) e buscando formas de

articulação entre si para reduzir a pulverização de públicos adstritos aos projetos ou

atividades que promovem.

A criação da instâncias de participação, aos diversos níveis da sociedade e sobre os mais

diversos temas de interesse público, exercita a democracia entre os que nelas

participam, estimula o desafio à lógica dominante, amplia os espaços públicos através

da diversificação dos atores e dos discursos, e produz oportunidades de troca de 322 HOUNTONDJI, Paulin. J. (2000), “Cultures Africaines et Mondialisation: un appel à la résistence”, in François Houtart (org.), Cultures et Mondialisation: Résistences et Alternatives. Paris/Dakar, L’Harmattan, pp.47-55.

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informações e troca de experiências, permitindo um conhecimento mais amplo dos

problemas e das possíveis soluções para os mesmos. Mas para isso, é preciso vencer as

resistências à participação que ainda prevalecem, não só por parte do Estado mas

também por parte dos próprios cidadãos, como a pesquisa demonstrou.

As intervenções visando dar voz e visibilidade ao papel das lideranças locais, mais

propriamente das autoridades tradicionais, potencialmente articuladoras das relações

entre as comunidades e o seu entorno, e outros atores sociais, se por um lado ampliam

as condições de diálogo e de aproximação entre os diversos grupos e camadas sociais de

Angola, por outro lado precisam ter em atenção as ambiguidades em relação ao papel

que reivindicam como representantes das comunidades, sem contudo deixarem de

ambicionar o seu reconhecimento enquanto representantes do Estado junto das

comunidades.

A década de 90 conheceu um amplo desenvolvimento de associações cívicas, culturais e

recreativas e de ONG’s, que se ampliou ainda mais após a assinatura do acordo de

cessar-fogo em 2002, e que pode ser entendido como a resposta dinâmica da população

aos diversos problemas que afligem a sociedade angolana, em diversas frentes de luta,

como direitos civis, sociais, políticos e culturais. A grande maioria foi criada a partir de

meados da década passada, e embora sejam organizações muito recentes, têm

conseguido, pontualmente, alguns êxitos no alcance dos seus objectivos, confrontando-

se com a ausência de uma cultura de diálogo, principalmente entre os sistemas político e

económico, e a sociedade, e a falta crônica de recursos humanos, financeiros e

materiais.

A participação destas organizações na vida pública, na formulação de políticas públicas,

na alocação de recursos, no desenho institucional e na implementação de programas e

projectos, é ainda fortemente condicionada pela inexistência de mecanismos

permanentes ou sistemáticos de auscultação, concertação, integração e

acompanhamento nas diferentes etapas desse processo, o que significa que existe um

enorme desperdício de sinergias, devido à tendência do governo (e do sistema político

em geral), em manter essa dicotomia na vida pública angolana.

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A conjugação das dificuldades resultantes dos constrangimentos e dificuldades

resultantes da cultura política dominante em Angola, com a falta de recursos

financeiros, está na base de uma das maiores debilidades das organizações da sociedade

civil emergente em Angola: a sua enorme dependência dos doadores, agências bi e

multilaterais. A escassez de recursos financeiros e materiais para a realização dos

objetivos que levaram à sua criação, e as dificuldades em conseguir agenciar tais

recursos nos seus membros e na sociedade, aliada à ausência de políticas públicas de

apoio à sua constituição e funcionamento, sob a forma de subsídios, incentivos, ou outro

tipo de dotações orçamentais, conduzem a uma procura por financiamentos externos

junto de agências do sistema das Nações Unidas, das representações das instituições de

Bretton Woods, ou das agências bilaterais de cooperação.

Em muitos casos, esta dependência financeira acaba se transformando numa

dependência das agendas, ou seja, as organizações abandonam, temporária ou

definitivamente, os objetivos sociais que levaram à sua criação. Por outro lado, esta

situação acaba por gerar desequilíbrios entre as organizações, não só resultantes das

diferenças existentes entre elas do ponto de vista da capacidade de agenciamento de

recursos, mas também porque determinados temas ou áreas de intervenção, menos

valorizados pelos doadores internacionais, não conseguem mobilizar os recursos

necessários (muitas vezes bem reduzidos e com elevadas taxas de retorno em termos

dos seus potenciais efeitos na sociedade).

Parece possível extrair-se das opiniões coletadas que os participantes gostariam de ver

os rendimentos obtidos com a exploração dos recursos naturais investidos na gestão das

relações societais, promovendo investimentos na educação e na saúde, mas também na

organização social, e na satisfação de outras necessidades da sociedade angolana,

imensas e diversificadas. O combate à pobreza e o investimento no capital humano

foram identificadas pelos participantes como prioridades fundamentais das políticas

públicas. Entretanto, as opiniões sobre as relações entre o Estado angolano e a

sociedade denunciam tensões e problemas diversos no reconhecimento do papel que os

próprios participantes, e a literatura em geral, atribuem à sociedade civil, e são

elucidativas em relação ao grau de dificuldade em estabelecer as bases de diálogo

necessárias para levar a bom termo as negociações para alcançar um entendimento

mútuo sobre as bases do percurso de Angola rumo ao futuro, e os recursos a mobilizar

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para encetar sustentadamente esse caminho contando, acima de tudo, com as próprias

forças, o que significa dizer, investindo os rendimentos da exploração dos recursos

naturais que são pertença de todos na criação de melhores condições de vida para os

angolanos.

Contudo, esses rendimentos parecem inexistentes ou invisíveis: apesar do fim da guerra

e as consequentes liberação de recursos humanos e redução da pressão sobre o

orçamento nacional, não se vem tornando visível o impacto do chamado “dividendo da

Paz” – o laço entre a redução da insegurança individual e coletiva e o desenvolvimento

a longo prazo -, num esforço coletivo alimentado pela realocação dos recursos outrora

destinados ao esforço de guerra, com vista a transmitir confiança, compromisso e

credibilidade, visando a melhoria dos padrões de vida, quantitativos e qualitativos,

sustentados no desenvolvimento do capital humano e social de Angola323. Por outro

lado, apesar do crescimento da produção do petróleo e do aumento do seu preço no

mercado internacional, e da expansão do controle do Estado sobre as áreas de

exploração diamantífera324 (uma das fontes geradoras de recursos para a UNITA), os

problemas e as necessidades mais básicas de amplos sectores da sociedade angolana

permanecem, em grande medida, sem resolução.

Ao nível macro-económico as principais tendências manifestam-se na progressiva

mudança de uma abordagem de apoio às situações de emergência, para uma perspectiva

de desenvolvimento pós-conflito. Estas tendências são manifestas nos recentes

discursos presidenciais anunciando o fim do centralismo democrático, o aumento das

alocações para os sectores sociais no orçamento geral do Estado (OGE), e também nas

cada vez mais presentes pressões da sociedade civil e dos doadores no sentido de um

aumento da transparência na gestão dos recursos públicos e na canalização dos

rendimentos dos recursos naturais – petróleo e diamantes – para investimentos públicos

e para o combate à pobreza, modernização da sociedade e construção de cidadania, e na

preparação do próximo pleito eleitoral, sem data ainda marcada, transparecendo de

323 FERREIRA, Manuel Ennes (2005), “Development and the Peace Dividend Insecurity Paradox in Angola”. European Journal of Development Research, vol. 17, nº. 3, pp. 509-524. 324 Angola é o quarto produtor mundial de diamantes brutos segundo o relatório Angola, Selected Issues and Statistical Appendix, International Monetary Fund, February 2005. Entretanto, outro estudo considera que, juntando aos dados oficiais, a extração e a comercialização nos circuitos ilegais, Angola é o 3º. produtor de diamantes do Mundo. MIRANDA, Armindo (2004), Angola 2003/2004. Waiting for Elections. Bergen, Chr. Michelsen Institute (CMI).

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algumas declarações de membros do governo de Angola a impossibilidade de virem a

acontecer em 2006 as eleições legislativas e presidenciais.

V

Num balanço entre os avanços da sociedade civil e a pouca visibilidade que ela ainda

tem em Angola, apenas o recurso à discussão sobre a atual configuração do espaço

público angolano permite perceber as possibilidades de êxito de iniciativas tendentes à

mudança das relações de poder e sociais em Angola.

A sociedade civil em Angola deu passos importantes para se afirmar, considerando os

constrangimentos anteriormente apresentados ao seu fortalecimento e expansão, tanto

em termos quantitativos – geográficos e temáticos – quanto em termos da criação da

capacidade de influenciar a agenda pública. Não só na literatura sobre o tema, mas

acima de tudo nas respostas obtidas, constatou-se a utilidade social e o potencial da

ideia a ela associados como tecnologia do progresso coletivo, apesar da sua

heterogeneidade, o que aponta para a necessidade de mais pesquisas sobre este

potencial, com vista a adicionar valor teórico às representações que dela fazem os atores

sociais, favorecendo deste modo a apropriação do conceito por esse atores.

Na situação de crise atual, parece central o papel do Estado com vista a superar a

pobreza e a promover a integração social, mas para isso, é preciso humanizá-lo,

sensibilizá-lo para a causa da justiça sócio-econômica e do desenvolvimento do

potencial humano. Os desafios consistem em formular novas visões sobre a sociedade e

promover a constituição uma força social capaz de induzir as mudanças necessárias para

a mudança societal, o que passa pela transformação do domínio privado em domínio

público e a reformulação da agenda pública, tornando-a mais inclusiva da diversidade

sócio-cultural existente. O caminho parece residir na construção de uma ampla

plataforma de debate e discussão em todo o país, incluindo o seu amplo público

primordial, em busca de entendimentos alternativos sobre as relações entre o Estado e a

sociedade civil, que forneçam as bases para a construção social de um projeto

emancipatório em torno da reapropriação da ideia de bem-comum.

De acordo com a análise das relações entre o Estado angolano e os atores não estatais, a

construção de uma esfera pública verdadeiramente independente para a deliberação

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crítica por parte de cidadãos iguais em direitos, constitui uma prioridade desse projeto

emancipatório, e mais do que buscar confrontações com o Estado, os atores da

sociedade civil precisam procurar formas de articulação com ele, com vista à expansão

do espaço público e à consolidação de um ethos democrático em Angola, tendo presente

que o Estado autoritário com que as organizações cívicas se confrontam é o mesmo a

quem compete criar o quadro legal e político para a sua existência.

Por isso, as organizações da sociedade civil precisam de ser mais pró-ativas do que

reativas, conhecerem melhor as relações de poder e as dinâmicas sociais e os seus

efeitos na criação de oportunidades mas também de constrangimentos para a

intervenção da sociedade civil, e perceberem melhor o papel dos atores externos na

configuração do panorama cívico do país. Sobretudo, precisam dedicar mais tempo e

atenção ao conhecimento da sua própria realidade sócio-cultural e respeitar a sua

diversidade.

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ANEXO METODOLÓGICO

A Pesquisa Qualitativa: “Imagens, Contornos e Papéis da sociedade civil em Angola”.

I – Apresentação da Pesquisa

A pesquisa qualitativa teve como ponto de partida uma entendimento de sociedade civil

como um conceito relacional, resultado da pesquisa bibliográfica inicial sobre o tema,

apontando para a necessidade da incorporação das ideias e práticas dos atores sociais

angolanos sobre o assumido locus clássico dos laços sociais independentes do Estado e

do mercado, para o caracterizar no contexto angolano.

Assim, a questão da tese é identificar e definir conceitualmente a sociedade civil em

Angola. Foram os seguintes os pressupostos assumidos a partir da pesquisa teórica

inicial:

primeiro, que ela envolve todos os agentes que operam no espaço intersticial

entre Estado e sociedade, capazes de mobilizar e organizar as demandas

coletivas e individuais por direitos civis, sociais, culturais, políticos e

econômicos, de produzir novas formas de solidariedade e responsabilidade

social, de contribuir para a criação de plataformas de concertação social e de luta

por justiça e equidade sociais. Através dos discursos e meios de auto-

identificação desta diversidade de instituições e organizações, da identificação

de espaços de troca, de solidariedade e de mecanismos de redução da demanda

ao Estado, e da auto-avaliação das condições e possibilidades para o seu

desenvolvimento, parece possível compreender os modos de pensar o laço social

e o contrato político, a polarização do espaço social devida à distância crescente

entre a minoria privilegiada e a maioria destituída, as noções de parceria e de

participação, e as possibilidades de obtenção de consensos, ainda que parciais,

através da organização de espaços de negociação, numa sociedade cujos

processos de mudança têm vindo a ser conduzidos por procedimentos ‘de cima’.

segundo é de que estes consensos se relacionam com as ideias de construção de

nação e de cidadania, de modernização e democratização da sociedade, e de

combate à pobreza e à desigualdade social. O pano de fundo por detrás desta

discussão remete às indagações sobre a inserção da África em geral, e de Angola

em particular, na modernidade. A interpretação das sintonias e dissonâncias das

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sociedades africanas com os tempos e os ritmos do mundo fornece o quadro de

referências que confere sentido à discussão sobre sociedade civil. Para este

efeito, serão discutidos diversos argumentos: múltiplas modernidades,

modernidades selectivas e modernidade múltipla, buscando encontrar o quadro

analítico que melhor acomode uma realidade social que parece caracterizar-se

pela

existência de um processo de modernização não uniforme nas diversas esferas

da sociedade angolana, como terceiro pressuposto.

Os pressupostos acima apresentados – mais do que hipóteses previamente formuladas -

são caminhos ou roteiros para as 4 interrogações que a tese busca responder sobre a

sociedade civil em Angola:

1ª - a que corresponde

2ª - quais as suas representações

3ª - como se constitui ou que organizações/instituições/entidades a compõem

4ª - que papéis lhe são atribuídos na sociedade angolana.

A posição epistemológica adotada foi a interpretativa partindo do pressuposto que “as

pessoas criam e associam os seus próprios significados subjetivos e intersubjetivos

quando interagem com o mundo que os cerca”325, procurando explicar os fenômenos em

estudo segundo o ponto de vista dos sujeitos observados, não impondo pontos de vista

externos nem formulados a priori. A preocupação era, portanto, a de procurar

identificar e deixar manifestar-se a originalidade dos valores, a configuração das formas

de sociabilidade e das relações de poder em Angola326.

Objetivos da Pesquisa

A pesquisa de campo teve como objetivo geral a recolha de opiniões de atores sociais

angolanos, agrupados em 8 categorias de análise: entidades religiosas, jornalistas/meios

de comunicação, associações profissionais, associações cívicas culturais, recreativas e

outras, ONG’s, poder local, setor informal, mulheres e jovens, em 3 cidades de Angola

– Luanda, Benguela, Malanje -, sobre o tema da tese.

325 ORLIKOWSKI, Wanda. & BAROUDI, Jack. (1991), “Studying Information Technology in Organizations: Research Approaches and Assumptions”. Information Systems Research, vol. 2, nº. I. 326 NEGRÃO, José. (2004), O Contributo dos Cientistas Sociais Africanos. VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, Coimbra 16-18 de Setembro.

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O pressuposto mais amplo deste trabalho considerava a possibilidade de encontrar

representações de sociedade civil marcadas pelo contexto de Angola, uma sociedade

que conheceu a colonização, um regime ditatorial nos primeiros anos pós-

independência, e que viveu num ambiente de guerra civil nos últimos 40 anos. Seria de

esperar a contextualização do conceito de sociedade civil, atendendo até ao curto

período de tempo, a partir de 1991, de construção de espaço público, num ambiente de

democratização das relações sociais e de poder no país.

Por esta razão, a pesquisa incluía um questionário com vinte (20) questões, visando

obter informações sobre próxys de cultura cívica, participação, solidariedade,

voluntariado, relações de vizinhança, e sentimentos de confiança nas pessoas e nas

instituições. O objetivo era o de encontrar eventuais explicações/razões para a esperada

contextualização do conceito de sociedade civil327.

A escolha de um amplo leque de atores sociais, a maioria dos quais vinculados a

organizações identificadas em estudos e pesquisas consultados, e na literatura em geral,

como integrando a sociedade civil, buscou ampliar o campo de recolha de opiniões

sobre o tema. Foram incorporados dois grupos, “mulheres” e “jovens”, para conferir à

amostra a representatividade da população angolana: mais mulheres (52%) que homens,

e a maioria (85%) com menos de 45 anos de idade.

Alguns questionários complementares, dirigidos a categorias de análise incluídas na

amostra, visavam a recolha de opiniões e informações a usar na análise das relações

entre o Estado e a Sociedade em Angola.

Metodologia e concepção da pesquisa

A pesquisa envolveu dois tipos de análise:

A) Bibliográfica, para elaboração teórica dos pressupostos da pesquisa,

principalmente sobre o conceito de sociedade civil e os temas relacionados com

cultura cívica, e sobre as cidades abrangidas pelo estudo;

327 REIS, Fábio W. & CASTRO, Mônica M. M. de (2001), “Democracia, Civismo e Cinismo. Um estudo empírico sobre normas e racionalidade”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.16, no.45, pp.25-46.

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B) Trabalhos de campo compreendendo mobilização dos atores sociais, distribuição

e recolha dos questionários, encontros de retorno aos participantes e de debate,

nas três cidades.

1 – Tipo de abordagem

Em função da natureza do problema a ser pesquisado, foi adotado como método de

trabalho principal, mas não o único, a pesquisa qualitativa, porque ela permite entender

a natureza de determinado fenômeno social, e compreender e classificar os processos

dinâmicos vividos por grupos sociais, possibilitando a compreensão mais profunda do

comportamento, percepções e expectativas dos participantes, de vido às suas principais

características, a saber:

1. ter como fonte direta dos dados o ambiente natural, e o pesquisador como

instrumento-chave;

2. serem os dados coletados, na sua maioria, descritivos;

3. ser o processo em si mais valorizado, pelo pesquisador, do que os resultados e o

produto;

4. serem os dados analisados de forma predominantemente indutiva;

5. serem mais valorizados os “significados” atribuídos pelos indivíduos à vida e às

coisas da vida, do que a frequência desses fenômenos.

A abordagem qualitativa usa diversas técnicas interpretativas e admite diversas formas

de coleta e registro de dados, acomodando muito facilmente contribuições de outros

métodos de análise, como o quantitativo, o documental, e a observação direta, a que a

pesquisa também recorreu328.

2 – Campos de observação (assinalados no Mapa de Angola)

Na impossibilidade de estender esta análise a todo o país, foram escolhidas 3 cidades

por elas oferecerem um quadro bastante diversificado no que respeita às relações sociais

em Angola:

Luanda, receptáculo de pessoas oriundas de praticamente todas as províncias, o

que lhe confere um traço cosmopolita,

Benguela, com uma organização social à primeira vista mais densa e fechada,

horizontal do tipo familismo,

328 BABBIE, Earl. (1997) [1999], Métodos de pesquisas de surveys. Belo Horizonte, Editora da Universidade Federal de Minas Gerais.

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Malanje, uma cidade sitiada durante cerca de 3 anos (a partir de finais dos anos

90) pelas tropas da UNITA, submetida a intensos bombardeamentos durante

esse tempo, e onde um episódio da época (2002) chamou a atenção, pelo fato de

a população ter interpelado o Presidente da República, exigindo a demissão

imediata do governador da província, o que aconteceu nos dias subsequentes à

manifestação. Por outro lado, a cidade situa-se numa zona de fronteira e base

logística de dois mundos, a região diamantífera da Lunda e os grandes

latifúndios da monocultura do algodão, com um aparente traço de mercantilismo

permeando as relações sociais, presente nos ditos populares sobre os malanjinos.

A realização do estudo nestas cidades pressupunha a recolha elementos narrativos das

culturas urbanas de Angola, que ajudassem a reconstituir o contexto, multifacetado por

hipótese, do processo de construção da sociedade civil em Angola.

3 – Pesquisa de campo

A) Plano de amostragem

• Universo – cidadãos com 18 anos ou mais anos, relacionados com organizações,

instituições ou entidades sociais, econômicas, políticas, culturais, recreativas,

etc., que funcionam no espaço público angolano.

• Tamanho – Foi inicialmente previsto que cada amostra comportaria 50

indivíduos, não se tendo em conta a desproporção da distribuição da população

entre as cidades abrangidas pela pesquisa. Contudo, as amostras acabaram por

ficar com diferentes tamanhos, Luanda com 81, Benguela com 40 e Malanje

com 46 participantes, devido à aderência diferenciada à pesquisa.

B) Desenho das ‘amostras’

As amostras foram constituídas a partir de listagens de organizações, instituições e

entidades em geral consideradas como integrando a sociedade civil: associações cívicas,

profissionais, sociais, culturais, recreativas, esportivas e outras, organizações

comunitárias de base (OCB’s), ONG’s, entidades religiosas, grupos de interesse

(mulheres, jovens), autoridades locais (tradicionais e da administração do Estado) e

sector informal, seguindo critérios de seleção de abrangência, representatividade,

pertencimento, equivalência e equidade, a saber:

• Levantamento das organizações existentes ou referidas como existentes no

espaço público das 3 cidades

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• A categoria “associações” foi sub-dividida em duas: as cívicas, culturais,

recreativas, esportivas, etc., e as profissionais

• As categorias sociais selecionadas funcionavam efetivamente nos interfaces

público/privado, moderno/tradicional e formal/informal da sociedade

• Deu-se preferência a organizações, entidades e grupos existentes ou

representados nas 3 cidades, o que permitiria a análise comparativa dos

resultados, isolando os fatores contextuais como causais de eventuais

semelhanças ou diferenças

• Houve o cuidado de evitar privilegiar as organizações, instituições, entidades e

grupos com maior presença, visibilidade e mais intervenção nos espaços

públicos das 3 cidades, pelo que em todos os casos foram incluídas organizações

locais, menos visíveis, menos poderosas, mais frágeis em termos de recursos

humanos, materiais e financeiros.

C) Seleção dos participantes

Os indivíduos convidados a participar na pesquisa foram selecionados numa perspectiva

de respeitar as cotas de idade e gênero da sociedade angolana, com base nos seguintes

critérios:

• idade igual ou superior a 18 anos e de nacionalidade angolana (este recorte de

nacionalidade corresponde à intenção de avaliar a apropriação da ideia de

sociedade civil em ambiente multicultural);

• concentração nas faixas etárias dos 18 aos 50 anos, considerando que cerca de

86% da população angolana tem menos de 45 anos de idade;

• representação pelo menos igualitária entre homens e mulheres, considerando que

estas representam 52% da população angolana;

• incluir nas categorias de análise “grupos de mulheres e de jovens” para

compensar os esperados déficits na sua representação nas demais categorias de

análise;

• escolha aleatória dos participantes dentro das organizações e dependente da

vontade ou manifestação de interesse em participar.

D) Coleta de dados

Operacionalização

preparação dos questionários – foram preparados 7 questionários semi-

estruturados e abertos e impressos, permitindo o anonimato, e dando a

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oportunidade de resposta num período de tempo mais amplo que o ocupado por

uma entrevista. A preparação dos questionários foi precedida da preparação do

Plano de Análise, um exercício em que foram identificados os antecedentes, os

pressupostos e os objetivos em vista;

elaboração e distribuição da Carta de Apresentação da pesquisa – a carta foi

anexada aos questionários, para que os participantes a pudessem ler com mais

tranquilidade, após os contactos para sensibilização e mobilização, e entrega dos

questionários;

realização do teste de qualidade – durante a fase de sensibilização e mobilização,

e antes da distribuição dos questionários, foram realizados testes nas 3 cidades,

envolvendo indivíduos escolhidos aleatoriamente, aos quais foi pedido que

dessem a sua opinião sobre a precisão, clareza e objetividade das perguntas. Em

função das opiniões colhidas, foram feitas algumas alterações nos questionários

originais.

Sensibilização e mobilização dos participantes e distribuição dos questionários –

para além da Carta de Apresentação e de contactos pessoais com potenciais

participantes da pesquisa, foram realizados diversos encontros com membros das 8

categorias de análise nas 3 cidades, entrevistas nas Rádios locais para explicação e

sensibilização à participação, e utilização de pessoas-recurso para mobilização de

participantes nas respectivas áreas de atuação.

Faseamento e calendário de execução

Apesar de ter sido respeitado o marco inicial para o arranque dos trabalhos de campo,

Março de 2003 com as primeiras deslocações a Benguela e a Malanje, as primeiras

reuniões e encontros de sensibilização, e os testes de qualidade, não foi possível cumprir

o calendário previamente estabelecido. A recolha dos dados em Luanda apenas

terminou em Fevereiro de 2004.

4 – Validade e limitações da pesquisa

Validade

Considerando “validade” como verdade ou fiabilidade da pesquisa, no sentido de avaliar

em que medida o argumento representa o fenômeno social ao qual se remete, as

variáveis para atingir um grau elevado de validade da pesquisa são, entre outras:

- escolha das perguntas da pesquisa;

- constituição da amostra;

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- qualidade da informação obtida;

- qualidade da análise dessa informação329.

Para garantir o mais elevado grau de validade da pesquisa e acautelar esse objetivo, a

metodologia adotada teve em conta:

a) Garantir a adequação e abrangência das perguntas, através de uma consulta

prévia (pré-teste) a diversas entidades relacionadas com o tema;

b) Constituir uma amostra qualitativamente representativa, que permita a coleta de

elementos significativos para interpretação;

c) Preparar cuidadosamente a condução das entrevistas (e da apresentação sob a

forma de questionários abertos ou semi-estruturados), dos encontros e dos

debates com os participantes;

d) Produzir relatórios provisórios por amostra, após cada etapa da pesquisa,

analisando e incorporando progressivamente as contribuições dos participantes.

Limites

Embora se tenha procurado incorporar os campos e interfaces de análise sugeridos pela

pesquisa bibliográfica, as condições concretas de realização da pesquisa (a sua inclusão

no âmbito de um trabalho individual de doutoramento) impuseram limites no tocante ao

número, tamanho e constituição dos conjuntos amostrais. Por essa razão, os relatórios

descritivos e a análise comparativa poderão apontar para “conclusões preliminares” que

devem ser entendidas como pontos de partida para elaboração de futuras pesquisas, com

vista a confirmar ou ampliar tais conclusões preliminares.

A extraordinária diversidade sócio-cultural e econômica de Angola, e o momento de

transição de um longo período de guerra civil para uma era de Paz, são fatores que

aconselham a encarar esta pesquisa como um mapeamento preliminar dos principais

elementos relacionados com as construções sociais sobre a sociedade civil em Angola.

5 - Constrangimentos

As principais limitações esperadas em relação ao alcance dos objetivos propostos pela

pesquisa eram de natureza diversa:

329 BABBIE, Earl. (1997) [1999], op. cit.

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- financeira, em resultado dos elevados custos das viagens e acomodação,

aquisição de materiais e outros inputs necessários à realização do trabalho;

- temporal, porque a pesquisa inserida no âmbito de um curso de doutoramento

deveria ser concluída no horizonte temporal de um ano;

- de fiabilidade dos dados obtidos, em resultado da alteração, omissão ou

manipulação das informações e dos dados, por razões que vão da ausência de

cultura de debate e de diálogo, da falta de experiência ou de hábito em lidar com

pesquisas de opinião, do medo em expressar opiniões pessoais sobre a situação

do país, ou da não valorização da própria opinião e da dos outros, da tendência

para dar respostas politicamente corretas, da estratégia de responder o

“esperado”, ou seja, o que se julga que o entrevistador gostaria de ouvir, até às

respostas forjadas para destacar interesses específicos.

Relativamente aos dois primeiros tipos de limitações, procurou-se agenciar apoios

institucionais e financeiros, para financiar os custos, e facilitar os contactos e a

mobilização dos atores sociais a envolver. O apoio institucional visava, ainda, beneficiar

da credibilidade das organizações e instituições envolvidas para encurtar o tempo de

mobilização e reduzir os custos de informação e sensibilização, e de organização das

diversas atividades previstas no âmbito da pesquisa.

Optou-se, ainda, pela apresentação escrita dos objetivos da pesquisa aos participantes

individuais e pela impressão das perguntas sob a forma de questionários a serem

preenchidos sem a presença da pesquisadora. Relativamente aos grupos focais, tinha-se

em vista a criação de um clima favorável que não influenciasse as respostas nem criasse

constrangimentos nos participantes, nomeadamente: apresentação escrita dos objetivos a

alcançar, escolha de espaços “neutros” para realização dos encontros, impressão das

questões a responder, criação de uma dinâmica de grupo, seleção de um coordenador da

discussão entre e pelos participantes, e a intervenção limitada ao indispensável por parte

da pesquisadora.

6 - Dificuldades encontradas

Parece ser possível atribuir à fase de transição que Angola vive e à sua história recente,

as principais dificuldades encontradas para a realização da pesquisa de campo, tanto do

ponto de vista dos elevados custos envolvidos em viagens, alojamentos, reprodução de

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material, etc., mas principalmente de mobilização dos participantes. O país encontra-se

numa fase algo difícil de qualificar, por várias razões:

por um lado, são visíveis os sinais de relançamento da economia e de criação das

bases de crescimento económico, nomeadamente nas infraestruturas (estradas,

pontes, recuperação dos sistemas de abastecimento de energia e água), no

surgimento de empresas e negócios, na multiplicação de atividades de formação

profissional, e nos indicadores de crescimento econômico;

por outro lado, Angola é uma sociedade marcada pela sobreposição de feridas no

seu tecido social, resultantes da escravidão, da colonização, das invasões por

exércitos estrangeiros antes e após a independência, das décadas de guerra civil

e de mau governo, entre outras causas, com consequências nas relações sociais e

de poder, na ausência de uma cultura de participação, de debate, de valorização

pela própria opinião e do outro, de respeito pela diversidade étnica, cultural e

social. A cultura do medo e a lei do silêncio, que serviram de lastro durante

séculos às estratégias de sobrevivência e de resistência passiva, ainda hoje se

manifestam nos silêncios ou nas fugas à manifestação pública de opiniões sobre

questões políticas. A estratégia de evitar demonstrar lealdade publicamente,

refugiando-se no privado, tem sido um recurso bastante comum, e ainda se

manifesta nos dias de hoje.

Luanda em particular, e Angola em geral, está passando um momento em que a história

parece estar se vivendo em múltiplas camadas, algumas a uma velocidade vertiginosa,

enquanto outras parecem cristalizadas em formas passadas, quasi-arcaicas. Por um lado,

um processo de modernização acelerada, muito enviezado em termos de abrangência

(dos setores em que se manifesta e dos atores sociais envolvidos), procura a todo o

custo e por quaisquer meios, sintonizar Angola com o tempo do mundo, ao mesmo

tempo que uma grande letargia parece reinar absoluta sobre a grande extensão do

território e na maioria das pessoas.

A estrutura do poder em Angola, tal como em muitos outros países africanos, é bastante

personalizada e encontra-se concentrada na entourage da presidência; por outro lado, se

o final da guerra em 2002 criou a expectativa do fim da bipolarização política que

dominou o panorama político de Angola desde a independência, a extrema

fragmentação do sistema político com os seus cerca de cento e trinta partidos políticos,

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a falta de legitimidade de um parlamento e de um presidente eleitos há 13 anos,

permitem que as questões mais importantes da vida política do país continuem

remetidas a um círculo muito restrito de interesses.

Nesse desencontro, grupos deserdados do processo de modernização mas não

completamente destituídos dos meios de influência, buscam estratégias indutoras de

mudança, através dos meios que se evidenciam capazes de gerarem solidariedades e

formas de responsabilidade social, que parecem reduzidos às lealdades religiosas e aos

laços familiares, focos de concentração de confiança. Contudo, formas de organização

associativa e em rede, começam a manifestar-se, operando no reduzido espaço público

não controlado pelos orgãos do estado, e ganhando alguma visibilidade.

Em finais de Setembro de 2003 colocou-se, de forma premente, a necessidade de

repensar a realização prática da pesquisa, terminada que estava a fase de recolha das

participações individuais, através dos questionários, em Benguela e em Malanje. Depois

de duas deslocações a estas duas cidades durante o terceiro trimestre, subsistiram as

dificuldades em realizar os grupos focais, apesar dos esforços de mobilização por parte

das organizações que apoiaram institucionalmente a realização da pesquisa, e dos

contactos pessoais. Em conversas com diversas pessoas, entre as quais algumas também

em fase de desenvolvimento das respectivas pesquisas, diagnosticou-se que muitas

dessas dificuldades eram devidas ao momento que o País vivia, que não favorecia a

realização desse tipo de trabalho:

por um lado, porque sendo já normalmente difícil conseguir articular as

disponibilidades de várias pessoas para um mesmo horário, envolvidas que estão

na luta pela sobrevivência, a ausência de um retorno imediato e

individual/organizacional, ou seja, nada para oferecer em troca ou em resultado

dessa participação numa perspectiva de vantagens comparativas, não motivava

as pessoas, que preferiam comparecer a encontros que, pelo menos em hipótese,

lhes proporcionassem mais oportunidades;

por outro lado, um outro aspecto parecia relacionar-se com o tema da pesquisa,

em si: particularmente nas cidades de Benguela e Malanje, e em alguns grupos,

como os jornalistas, os membros de ONG’s e de igrejas, pareceu haver uma

“fuga” à exposição quase pública (em grupo, perante seus pares) de ideias e

opiniões sobre um tema que não é exatamente do domínio comum, embora

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quase todos os dias haja alusões a ele nas páginas dos jornais ou nos programas

de rádio. Isto, aliado à ausência de uma cultura de diálogo e debate, e ao fato de

se tratar da recolha de material para uma tese de doutoramento, pareceu retrair e

limitar a participação das pessoas.

A análise do contexto parecia indicar que as oportunidades que constituíam na época

vantagens comparativas relacionavam-se com a melhoria das condições sócio-

econômicas da vida das pessoas, e com visibilidade política, designadamente:

- participação nos processos de preparação dos planos das respectivas

organizações para o ano seguinte, buscando a inclusão em projetos e/ou

programas que lhes garantissem salários, visibilidade e, por via disso, outras

oportunidades de melhorarem as suas condições de vida;

- participação no processo de preparação de programas a serem apresentados pelo

governo a agências das Nações Unidas, na perspectiva de ajuda humanitária, ou

na busca de financiamentos para programas locais de recuperação econômica e

social (mesa redonda de doadores);

- participação no processo de escolha de representantes dos escalões municipais e

provinciais ao congresso do MPLA, que teria lugar em Dezembro desse ano.

Em cidades como Benguela e Malanje, a coincidência destes eventos liquidou as

chances de conseguir mobilizar as pessoas para os encontros de “grupos focais”. Assim,

decidiu-se canalizar todas as atenções para a distribuição e recolha dos questionários em

Luanda, e deixar para uma outra oportunidade a realização de um seminário em cada

uma das cidades abrangidas pela pesquisa.

7 - Soluções encontradas A persistência dos fatores acima referidos apontou para a necessidade de identificar uma

metodologia alternativa, nomeadamente:

a) adiar para outra oportunidade, durante 2004 (em princípio durante o mês de

Julho) as deslocações a Benguela e a Malanje, com vista à realização de

encontros com grupos de participantes para retorno e validação da interpretação

dos dados coletados;

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b) organizar encontros com as pessoas disponíveis, os quais só foram realizados

durante o mês de Agosto de 2004 (3 encontros de retorno aos participantes na

pesquisa, nas 3 cidades que constituem campo de pesquisa);

c) recolha de dados e informações relacionados com a cultura cívica das 3 cidades

abrangidas pela pesquisa, através do recurso à base de dados da pesquisa

quantitativa330 realizada nesse mesmo ano nas mesmas cidades, visando a

criação de dois instrumentos de análise:

i) criação de 3 bases de dados em SPSS, uma para cada cidade, com uma

série de informações complementares sobre cultura cívica e a relação

cidadão/Estado em cada uma das cidades;

ii) criação de 3 índices compostos, de participação política, de confiança nas

instituições e de acesso à informação, para cada uma das cidades;

d) Cruzamento dos resultados e análises desta pesquisa com uma outra, também

qualitativa, realizada com grupos focais em diversas províncias, entre Março e

Dezembro de 2003331.

8 - Constituição final das amostras332

Concluída a 1ª fase com a recolha dos questionários, a amostragem da pesquisa acabou

por refletir a desproporcional distribuição da população nas 3 cidades:

Luanda, com 83 respondentes de 98 pessoas mobilizadas e que aceitaram

responder aos questionários

Benguela, com 40 respondentes de 66 pessoas mobilizadas e que aceitaram

responder aos questionários

Malanje, com 46 respondentes de 95 pessoas mobilizadas e que aceitaram

responder aos questionários.

Foram constituídos os perfis dos 3 conjuntos de respondentes e pode constatar-se que:

i) o alcance da cota de idade situou-se em: 70% (Luanda), 77,5%

(Benguela) e 80% (Malanje)

330 IRI (International Republican Institute). (2003), “Expectativas dos Angolanos em Relação às Próximas Eleições”. Relatório da pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Social (A-IP). Luanda. 331 NDI (National Democratic Institute for International Affaires). (2003), O Futuro Depende de Nós. Relatório da Pesquisa de Grupos Focais de Mulheres e Homens Angolanos, Abril-Maio. 332 A lista nominal e o perfil dos três conjuntos de participantes não foi incluída devido à sua extensão, mas constitui anexo do relatório da pesquisa.

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ii) o alcance da cota de gênero ficou bastante aquém do objetivo: Luanda

(37%), Benguela (22,5%) e Malanje (33%).

9 – Plano de Análise

Foram criados instrumentos de colecta de dados destinados aos diversos actores sociais

e relacionados com as distintas etapas de realização da pesquisa. Os questionários foram

construídos a partir dos pressupostos da pesquisa, anteriormente apresentados. Os

pressupostos da pesquisa, por sua vez, foram elaborados com base nos resultados

preliminares da pesquisa bibliográfica para a preparação da proposta de tese, e

incorporaram discursos de atores sociais angolanos veiculados em peças da

comunicação social angolana, relacionadas com o tema da tese.

Os questionários 1 e 2 visavam analisar as predisposições para a solidariedade,

confiança e mudança, interesse na política e participação, associativismo e ajuda mútua,

entre outros, como indicadores de potencial de geração e fortalecimento de ideais,

sentimentos e práticas de cultura cívica. Como antecedentes, levou-se em consideração

que em Angola em geral, e nas áreas urbanas e periurbanas abrangidas pela pesquisa em

particular, os efeitos de longas décadas de guerra e de má gestão dos interesses públicos,

indubitavelmente traduzidos pelos indicadores de desenvolvimento humano da sua

população, agravaram as distorções herdadas do colonialismo e criaram um ambiente

social, político e económico, que privilegiou o individualismo e favoreceu o

clientelismo e o jogo de influências; ao cidadão comum, não parecem restar mais do que

estratégias de sobrevivência individuais ou de grupo.

As questões em análise:

1a. No meio urbano e peri-urbano, mais do que normas de reciprocidade difusa ou

generalizada que facilitam as trocas solidárias, predominam as estratégias de

reciprocidade entre grupos de pessoas, em geral pequenos e próximos, do ponto de vista

familiar ou de relações profissionais ou de amizade. Estas estratégias envolvem uma

ideia de troca de favores, objectos ou bens, de valores idênticos ou assim avaliados;

2a. As relações de confiança e solidariedade são afectadas pela elevada heterogeneidade

das áreas urbanas e periurbanas, em resultado da diversidade de origens, tempo de

permanência no bairro e mistura de classes e estratos sociais, tendo como consequência:

a) a redução do número e importância dos laços sociais entre vizinhos

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b) a cordialidade entre vizinhos não parece implicar interacção entre eles nem

existência e partilha de lugares/espaços de interacção; evita-se o contacto para

não arranjar problemas;

3a. No âmbito da relação público/privado, se os espaços partilhados por várias famílias

ou grupos, como quintais, largos, pátios, ruelas, etc., são espaços semi-públicos e semi-

privados, o que se vem assistindo é uma redução progressiva dos espaços semi-públicos

em favor dos espaços semi-privados, o que terá como efeito, a prazo, uma redução da

coesão social e uma sociedade civil potencialmente mais débil e mais dispersa;

4a. As redes sociais de solidariedade mais frequentes são as redes de parentesco, as

redes entre elementos do mesmo grupo étnico-linguístico ou entre membros de uma

mesma igreja; ou seja, os elementos aglutinadores de confiança e de solidariedade são a

família, a identidade étnica e a fé religiosa, seguindo-se os amigos e colegas de

profissão.

O questionário aberto 4 dirigido às “entidades religiosas”, assumiu como antecedentes

o papel activo que as igrejas e entidades religiosas desempenharam em todo o processo

de colonização, da organização da luta nacionalista contra o poder colonial e as diversas

etapas de assistência humanitária de campanhas pela defesa dos direitos humanos e civis

dos cidadãos no pós-independência. Estes antecedentes apontam para uma relação

muito próxima entre as igrejas e entidades religiosas e os indivíduos e grupos

abrangidos pela pesquisa, sendo habitualmente vistas como integrando a sociedade civil

em Angola. Contudo, algumas abordagens teóricas parecem não incluir as igrejas e as

organizações constituídas em torno de interesses religiosos no universo da sociedade

civil com base no argumento de que se trata de organizações hierarquicamente dirigidas

e controladas, com uma rígida disciplina exercida de topo à base e sem espaço para

exercícios democráticos no seu funcionamento.

A colecta de opiniões de participantes vinculados a igrejas e organizações/entidades

religiosas visava confrontar as suas visões e opiniões com as dos demais participantes,

não só sobre as questões em discussão, mas também sobre a sua inclusão (ou não) na

sociedade civil em Angola.

O questionário semi-estruturado 5 destinou-se a jornalistas ou trabalhadores de meios

de comunicação social, considerando-se como antecedentes que, devido ao seu papel na

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formação da opinião pública, os profissionais da comunicação social vêm assumindo

algumas iniciativas no espaço público angolano, relacionadas com a democratização e a

modernização da sociedade, a defesa dos direitos humanos e civis e temas relacionados

com a discussão sobre sociedade civil, proposta nesta pesquisa.

O objectivo com a inclusão, individual e em grupo, dos profissionais da comunicação

social era o de criar uma oportunidade para dar maior abrangência à expressão de

opiniões, e confrontar as suas próprias visões e opiniões sobre os temas em discussão e

sobre a sua inclusão (ou não) na sociedade civil em Angola, enquanto categoria

profissional e grupo com interesses específicos.

O questionário aberto 6 destinou-se ao enquadramento do poder tradicional nesta

discussão, com base nos seguintes antecedentes: no período pós-independência, foi

comum a acusação de colaboracionismo com o regime colonial, identificando as

autoridades tradicionais como representantes da sociedade colonial cujos vestígios era

preciso apagar, ao mesmo tempo que eram identificados como representantes de uma

sociedade feudal e obscurantista, que era fundamental combater. A reacção individual,

mais ou menos generalizada, foi a de não participação no projecto de construção da

nova sociedade e/ou do exílio em áreas urbanas ou suas periferias e busca do

anonimato.

No âmbito das reformas dos anos 90, houve o reconhecimento jurídico e a definição

legal das autoridades tradicionais, bem como a atribuição das respectivas funções e

prerrogativas, entre as quais a atribuição de um salário mensal e o uso de símbolos,

como fardas e insígnias. A lei reconhece os dois tipos de autoridade tradicional, tanto a

chefia fundada na linhagem como a chefia fundada na eleição pela população local

(mais comum nas áreas urbanas e peri-urbanas).

Esta discussão visa os seguintes objectivos:

a) Saber se existe, implícita ou explicitamente, a tentativa de despolitização e

desconexão destas entidades da vida pública nacional, nomeadamente através da

interdição legal de acumular cargos públicos e cargos tradicionais (conferir na

legislação);

b) Averiguar se existe alguma forma de destituição das prerrogativas das

autoridades tradicionais em favor da administração local ou de ‘conselhos

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regionais de chefias tradicionais’ (complementar a análise com a consulta da

legislação vigente);

c) Aferir até que ponto as relações entre estas entidades e os partidos políticos,

nomeadamente os representados no parlamento, subvertem a tentativa do

governo de despolitizar as autoridades tradicionais, por exemplo, pela criação de

uma organização informal paralela à organização administrativa estatal;

d) Procurar entender o papel desses personagens enquanto representantes dos mais

vastos grupos de interesse nacionais, os camponeses, até agora claramente sub-

representados em todas as instâncias de poder, e enquanto representantes de

identidades étnico-regionais, sua fonte de legitimidade;

e) Analisar as dificuldades que se colocam à construção de solidariedades

horizontais e relações de confiança nas áreas urbanas e peri-urbanas, devido à

heterogeneidade étnico-cultural e à aquisição de novos hábitos.

Sobre o enquadramento e gestão do poder tradicional em Angola, uma das possíveis

hipóteses é que no conflito entre duas visões que conformam dois modelos de

organização social, um moderno e um tradicional, com bases de legitimidade diferentes

(plebiscito versus identidades culturais locais), as autoridades tradicionais jogam um

papel de charneira, de articuladores e de mediadores entre esses dois mundos. No

processo de formação do estado angolano que acontece em simultâneo com o processo

de reconciliação nacional, de modernização e democratização da sociedade, e de

combate à pobreza e às desigualdades sociais, estes actores desempenham o papel de

descodificadores semânticos entre a base e o topo da sociedade.

O questionário 7 destinava-se a enquadrar a discussão sobre a influência do sector

informal no meio (e na cultura) urbano, partindo dos seguintes antecedentes: o sector

informal angolano formou-se como resultado dos desequilíbrios entre oferta e demanda

nos diferentes mercados, principalmente no mercado de trabalho. Estima-se que ocupe

cerca de 50% da força de trabalho urbana, nas cidades abrangidas pela pesquisa: Luanda

cerca de 41% e Benguela 29% (não disponho de dados para Malange). Cobre

praticamente todas as áreas de actividade, mas é mais visível no comércio (Luanda e

Benguela 22%). Em Luanda, 78% das famílias têm pelo menos um membro empregado

no sector informal e em Benguela é de 63%. O segmento mais visível desse sector

apresenta uma face feminina, com cerca de 87% e Benguela 80% de mulheres, muitas

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delas chefes de família; os segmentos predominantemente masculinos, transportes,

indústria de manufactura e construção, requerem mais capital financeiro (as mulheres

não têm, a este nível, acesso ao crédito) e maior nível educacional.

Recentemente, e talvez em resposta a uma acção que visou baixar os preços ao

consumidor realizando um grande stock de produtos que depois foram colocados no

mercado, provocando quedas significativas nos preços dos produtos de maior procura

por parte da população, foi criado um Sindicato do Comércio Informal que apresentou

ao governo, entre outras, duas solicitações relacionadas com a criação de mais e

melhores espaços de vendas, nomeadamente através da criação de feiras. Apresentou,

igualmente, a proposta de criação de uma comissão mista governo-sindicato, para o

apurar infracções nas diversas etapas do circuito de comercialização, e também as

relacionadas com as queixas de assédio pelos agentes da polícia, que extorquem

montantes em dinheiro aos vendedores com a promessa de não os incomodarem.

Os principais objectivos a alcançar eram os de:

- Estabelecer contactos com o Sindicato no sentido de procurar compreender o seu

papel, seus objectivos, sua organização e expansão nas cidades abrangidas pela

pesquisa, no sentido de avaliar a possibilidade de ele poder ser um dos principais

interlocutores nesta vertente da pesquisa;

- Procurar conhecer as dinâmicas de grupo no desenvolvimento de redes de

comercialização e de alianças com base em laços de parentesco e/ou em laços de

solidariedade entre os grupos que compõem a rede, dentro e fora de Angola;

- Recolher elementos que ajudem a compreender se, e em que medida, iniciativas

criativas e inovadoras como os grupos rotativos de poupança ou caixas de

solidariedade – Kixikilas – e as instituições de solidariedade tradicional de

reciprocidade de trabalho ou empréstimos – Ondjuluka -, ambas fundadas no

espírito de entre-ajuda e de cooperação no interior do grupo, repercutem na

sociedade.

Adjacente a esta discussão, uma das possíveis hipóteses é a de que, sendo o sector

informal facilmente confundido com o mercado negro ou paralelo tanto no discurso do

governo quanto na expressão de outros actores sociais, a ausência de medidas de

integração macroeconómica e de acesso às estruturas e instituições do sector formal, e a

falta de apoio institucional tanto por parte do governo quanto por parte do sector

privado, mostram que ele é ignorado ou tornado invisível, apesar da sua visibilidade nas

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ruas das cidades e na sobrevivência de uma elevada percentagem das famílias urbanas.

O ciclo vicioso que se cria com as perseguições da polícia/subornos/redução dos lucros,

que incide sobre os retalhistas e não sobre os fornecedores, gera instabilidade e reduz as

oportunidades de multiplicação dessas iniciativas. A invisibilidade ou ilegalidade

inibem o seu desenvolvimento.

II - INDICES PARA A PESQUISA SOBRE SOCIEDADE CIVIL EM

ANGOLA: Participação Política, Confiança e Acesso à Informação

(descrição metodológica)

Rationale

A construção destes Índices visa sintetizar, num único valor relacionado com

participação política, com confiança nas pessoas e nas instituições, e com acesso à

informação, diversas dimensões da participação cívica dos cidadãos, com vista a

complementar a análise qualitativa levada a cabo através de questionários semi-

estruturados e abertos, dirigidos a 8 categorias de respondentes, agrupados por idade,

género, e interesses específicos e laços de solidariedade específicos, designadamente:

Jovens, Mulheres, Associações diversas, ONG’s, Entidades religiosas, Meios de

Comunicação, Poder local e Sector Informal.

A base de dados utilizada para a construção dos Índices foi a criada para a “Pesquisa

sobre as Expectativas dos Angolanos em relação às Próximas Eleições”, pelo Instituto

de Pesquisa Económica e Social (A-IP), para o Instituto Republicano Internacional

(IRI). A pesquisa de campo foi realizada no período de Abril de 2003 a Junho de 2003,

abrangendo 7 das 18 Províncias de Angola, entre as quais Luanda, Benguela e Malanje.

O cruzamento deste índice com as varáveis que identificam o perfil dos cidadãos

maiores de 18 anos nas 3 cidades envolvidas na amostra, permitirá validar (ou não) os

dados resultantes da análise qualitativa sobre as informações e opiniões colectadas no

decurso da pesquisa de campo nas cidades de Luanda, Benguela e Malanje.

1º. Índice de Participação política

A construção do Índice de Participação Política começou com a selecção das variáveis

da base de dados do módulo 1 relacionadas, designadamente:

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a) Votou nas eleições de 1992

b) Vai votar nas próximas eleições

c) Aceitaria ocupar um cargo político se fosse para tal convidado

d) Filiação político-partidária

A resposta positiva a todos os itens, com indicação de militância num partido político

em d), qualificaria participação ativa. A resposta positiva aos itens a) e b), e negativa

aos itens c) e d), qualificaria participação passiva.

2º. Definição das componentes:

Componente 1 = “votou” Componente 2 = “vai votar” Componente 3 = “cargo político” Componente 4 = “filiação política”

3º. Cálculo do Índice

(comp. 1 + comp. 2 + comp. 3 + comp. 4) /4 Valor máximo = 01 Valor mínimo = 00

3-A) Participação Activa

(01 + 01 + 01 + 01) / 4 = 1

3 – B) Participação Passiva

(01 + 01 + 00 + 00) / 4 = 0,5

4º. Categorização do Índice

Os respondentes foram repartidos em 4 classes de participação política,

1 – 0,75 = alta participação 0,75 – 0,5 = média participação 0,5 – 0,25 = baixa participação 0,25 – 00 = muito baixa a nula participação

Seleccionando os grupos extremos e comparando comportamentos, poder-se-á,

eventualmente, encontrar variáveis explicativas para a variação dos níveis de

participação política dos cidadãos.

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A tabela a seguir apresenta os resultados para Luanda:

Indice de participacao politica categorizado Frequency Percent Valid Percent Cumulative Percent

0,75 - 1,0 164 10,9 10,9 31,4 0,50 - 0,75 353 23,5 23,4 65,5 0,25 - 0,50 510 33,9 34,1 89,1 0 – 0,25 471 31,3 31,4 100

Valid

Total 1498 99,6 100 Missing System 8 0,4 Total 1506 100

Os dados relativos a uma amostra de 1 506 pessoas, indicam que 11% dos participantes

se mostram interessados numa participação política ativa. A maioria – 65,5% -

enquadra-se nas categorias de “baixa” a “muito baixa ou nenhuma” participação

política.

Em Benguela os resultados do índice são os seguintes;

Indice de participacao politica categorizado Frequency Percent Valid Percent Cumulative Percent

0,75 - 1,0 33 6,6 7,1 7,1 0,50 - 0,75 110 22 23,6 30,7 0,25 - 0,50 149 29,7 32 62,7 0 - 0,25 174 34,7 37,3 100

Valid

Total 466 93 100 Missing System 35 7 Total 501 100

Segundo estes dados, 7% dos participantes de uma amostra de 501 pessoas, mostram-se

interessados numa participação política ativa. A maioria (quase 70%) enquadra-se nas

categorias “baixa” a “muito baixa ou nenhuma” participação política.

Em Malanje, o índice apresenta os seguintes resultados:

Indice de participacao politica categorizado Frequency Percent Valid Percent Cumulative Percent

0,75 - 1,0 106 20,9 21,4 21,4 0,50 - 0,75 166 32,7 33,5 54,9 0,25 - 0,50 152 30 30,7 85,7 0 - 0,25 71 14 14,3 100

Valid

Total 495 97,6 100 Missing System 12 2,4 Total 507 100

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Estes dados são relativos a uma amostra de 507 pessoas, e mostram que 21% dos

malanjinos têm uma participação política ativa e que 34% se enquadra na categoria de

“média participação”. Os restantes 45% dos respondentes demonstram pouco interesse

e “baixo nível de participação” (31%) ou “muito baixo a nenhum” nível de participação

política (14%).

2º. Índice de Confiança A sua construção visou sintetizar num único valor relacionado com confiança nas

pessoas e nas instituições, dimensões da participação cívica dos cidadãos, tendo em

consideração a necessidade de incorporar as duas dimensões da influência da confiança

nas escolhas políticas dos cidadãos:

c) a confiança embutida nas relações e percepções dos cidadãos face aos políticos e

partidos políticos, que influencia as opções entre “conhecimento dos candidatos”,

“conhecimento dos partidos”, “proximidade regional” (ser da mesma região), “as

posses do candidato”, “a antiguidade/carisma de um partido político” e “melhores

ideias propostas nas campanhas de outros candidatos e partidos políticos”, e se

expressa num voto que podemos considerar de “conservador”, “no seguro”,

ancorado num tipo de confiança que prende as pessoas ao passado, ao conhecido,

inibindo a opção pelo novo e pela inovação. É um tipo de confiança que penaliza a

inovação, o risco, a mudança, numa situação de conflito de interesses. Esta será a

componente 1 do Índice de Confiança.

d) a confiança prospectiva na mudança, partindo das actuais percepções avaliatórias

das pessoas sobre comportamentos e práticas de políticos e partidos políticos,

influenciando as suas opções futuras em termos de escolhas políticas entre o

conhecido, o que está, e que é relacionado com “incompetência”, “favorecimento”,

“interesse”, “ausência” (de relação político/cidadão), “corrupção”, e a mudança, a

aceitação de algo novo, diferente. É um tipo de confiança que penaliza as más

práticas e favorece a inovação, a mudança. Esta será a componente 2 do Índice de

Confiança.

Índice de Confiança = (Componente 1 + Componente 2) / 2

Na categorização do índice, foram considerados como extremos:

Valor 1,0 = abertura a confiar/inovar/mudar, sofrendo pouca influência das

variáveis seleccionadas

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Valor 00 = fechado à inovação, desconfiado em relação ao novo e desconhecido

0,0 - 20,00 – grupo 1 = desconfiados, conservadores, influenciáveis 20,00 - 40,00 - 40,00 – 60,00 – grupo 2, intermediário 60,00 – 80,00 – 80,00 – 100,00 – Grupo 3 = Confiantes, abertos à inovação e pouco influenciáveis. Resultados obtidos:

a) Luanda

b) Benguela

c) Malanje

Interpretação dos resultados:

d) Luanda

- 12% enquadram-se no grupo dos “desconfiados”, 59% no grupo dos

confiantes, abertos à inovação, pouco influenciáveis; o grupo intermédio

– 29% - pode tender para um outro lado, dependendo das situações;

e) Benguela

indicedeconfiançanategorizado

180 12,0 12,0 12,0431 28,6 28,6 40,6895 59,4 59,4 100,0

1506 100,0 100,0

1,002,003,00Total

ValidFrequency Percent

ValidPercent

Cumulative Percent

indicedeconfiançacategorizado

68 13,6 13,6 13,6139 27,7 27,7 41,3294 58,7 58,7 100,0501 100,0 100,0

1,002,003,00Total

ValidFrequency Percent

ValidPercent

Cumulative Percent

indicedeconfiançacategorizado

162 32,0 32,0 32,0184 36,3 36,3 68,2161 31,8 31,8 100,0507 100,0 100,0

1,002,003,00Total

ValidFrequency Percent

ValidPercent

Cumulative Percent

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- 13% enquadram-se no grupo dos “desconfiados”, 59% no grupo dos

confiantes, abertos à inovação e pouco influenciáveis por terceiros; o

grupo intermédio – 28% - pode ser “conquistado” por um ou lado, em

função de situações pontuais;

f) Malanje

- 32% constituem o grupo dos “desconfiados” “conservadores”, ancorados

em relações de conhecimento pessoal ou de identidade religiosa, étnica,

regional, etc.; o grupo 3, dos confiantes, abertos à inovação, pouco

influenciáveis por terceiros, é constituído por outros 32% da amostra; o

grupo intermédio – 36% - pode fazer a diferença, aliando-se a um lado

ou outro.

Comparando estes dados com os resultados da pesquisa qualitativa, parece possível

retirar as seguintes conclusões preliminares:

d) parece haver consistência nas constatações de que uma parte considerável dos

respondentes (50% em média) mostra desconfiança (19% em média) ou cautela

e precaução (31%, em média) no seu relacionamento com terceiros; os

Luandenses mostram-se mais confiantes do que os respondentes das outras duas

cidades;

e) na análise qualitativa, os bengueleneses mostram-se mais “desconfiados” do que

os Malanjinos, contrariamente ao que mostram os resultados do índice;

f) a presença de uma percentagem considerável (50%) de pessoas “confiantes” –

59%, 59%, 32% -, parece emprestar consistência à constatação da análise

qualitativa, segundo a qual, existe um potencial de mudança nos participantes da

pesquisa, nas 3 cidades.

3º. Índice de Acesso à Informação

Considerando o papel dos meios de comunicação social como canais de informação,

formadores de opinião, mediadores do espaço público, e da influência que poderão

exercer nos comportamentos, práticas e atitudes dos cidadãos, assim como nas suas

escolhas políticas, a construção deste Índice visa facilitar a percepção dos níveis de

acesso dos cidadãos à informação, falada, escrita e televisionada, e à frequência desse

acesso.

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Esta informação serve para validar (ou não) os resultados da análise qualitativa das

respostas aos questionários, semi-estruturados e abertos, endereçando perguntas que

visam um maior entendimento da relação dos cidadãos com os meios de comunicação e

as percepções que os próprios profissionais – jornalistas de diversos meios de

comunicação social em funcionamento nas 3 cidades abrangidas pela pesquisa – têm

sobre si enquanto cidadãos e profissionais dos mídia, os orgãos em que trabalham e o

seu papel na sociedade, e os demais actores sociais, seus papéis, funções e relações

entre si.

O Índice de Acesso à Informação foi criado com base nas perguntas relacionadas com

os 3 meios de comunicação com maior abrangência em termos da sua capacidade de

cobertura populacional e geográfica – rádio, jornal e televisão - e da frequência desse

acesso, medida em número de dias de audição de notícias na rádio, leitura de jornais e

assistência de Tv.

Foram selecionadas as seguintes variáveis:

13. Quantas vezes lê jornal por semana

14. Quantas vezes acompanha notícias/debates pela rádio

15. Quantas vezes acompanha notícias/debates pela TV

Estabeleceram-se os seguintes valores extremos: Valor Máximo 7 (dias), significando

que o respondente tem acesso aos 3 meios de comunicação social todos os dias da

semana, e Valor mínimo 1 (0 dias), significando que o respondente não tem acesso,

numa base semanal, à rádio, ao jornal e à Tv.

Foram criadas 3 categorias de acesso:

S/acesso 0 – 2

Acesso limitado 2 – 5

Acesso à informação 5 – 7.

As tabelas seguintes mostram os resultados obtidos para as 3 cidades: a) Luanda

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b) Benguela

c) Malanje

Interpretação dos resultados:

d) Luanda:

- Com acesso à informação - 11%, de uma amostra composta de 1 506

participantes, ouve notícias na rádio, lê os jornais e assiste televisão, de 5

a 7 dias por semana;

- Com acesso limitado à informação - 44%, ouve notícias na rádio, lê os

jornais e assiste televisão, de 2 a 5 dias por semana;

- Sem acesso à informação – 45%, ouve notícias na rádio, ê os jornais e

assiste televisão de 0 a 2 dias por semana.

e) Benguela:

- Com acesso à informação - 3%, de uma amostra composta de 1 506

participantes, ouve notícias na rádio, lê os jornais e assiste televisão, de 5

a 7 dias por semana;

- Com acesso limitado à informação - 23%, ouve notícias na rádio, lê os

jornais e assiste televisão, de 2 a 5 dias por semana;

- Sem acesso à informação – 74%, ouve notícias na rádio, lê os jornais e

assiste televisão de 0 a 2 dias por semana.

Frequency Percent Valid Percent Cumulative Percent5-7 dias/semana 166 11 11,1 11,12-5 dias/semana 660 43,8 44 55,10 - 2 dias/semana 674 44,8 44,9 100Total 1500 99,6 100

Missing System 6 0,41506 100Total

Indice de acesso a informacao categorizado

Valid

Frequency Percent Valid Percent Cumulative Percent5-7 dias/semana 15 3 3,1 3,12-5 dias/semana 109 21,8 22,7 25,80 - 2 dias/semana 357 71,3 74,2 100Total 481 96 100

Missing System 20 4501 100Total

Indice de acesso a informacao categorizado

Valid

Frequency Percent Valid Percent Cumulative Percent5-7 dias/semana 21 4,1 4,2 4,22-5 dias/semana 134 26,4 27,1 31,30 - 2 dias/semana 340 67,1 68,7 100Total 495 97,6 100

Missing System 12 2,4507 100

Valid

Total

Indice de acesso a informacao categorizado

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f) Malanje:

- Com acesso à informação - 4%, de uma amostra composta de 1 506

participantes, ouve notícias na rádio, lê os jornais e assiste televisão, de 5

a 7 dias por semana;

- Com acesso limitado à informação - 27%, ouve notícias na rádio, lê os

jornais e assiste televisão, de 2 a 5 dias por semana;

- Sem acesso à informação – 69%, ouve notícias na rádio, lê os jornais e

assiste televisão de 0 a 2 dias por semana.

A pesquisa quantitativa a partir da qual se criou a base de dados que permitiu a criação

deste índice, refere ainda que:

- cerca de 30% dos cidadãos não têm, numa base semanal, acesso à informação,

seja via rádio, jornal ou televisão,

- apenas 3% dos cidadãos têm acesso à informação, a partir destes meios, numa

base diária,

- foi constatado um elevado nível de incerteza sobre a neutralidade da

comunicação social durante as eleições e verificou-se uma correlação positiva

entre os níveis de acesso à informação e os níveis de incerteza na neutralidade

dos meios de comunicação, durante as eleições (p. 11)

- o nível de confiança dos cidadãos entrevistados nos jornalistas é

substancialmente baixo: “60% dos respondentes com acesso à informação em

Luanda, e 50% nas restantes províncias, revelaram que não iriam confiar ou

iriam confiar pouco naquilo que os jornalistas mostram, dizem ou escrevem,

devido à “percepção de falta de neutralidade da comunicação” (p.12).

III - QUESTIONÁRIOS DA PESQUISA DE CAMPO

QUESTIONÁRIO no. 1 1. Dados sócio-demográficos Nome:..................................................................................................................................Faixa etária: (<20 anos) (20-30) (30-40) (40-50) (>50 anos) Profissão..............................................................................................................................Ocupação/função................................................................................................................. Cidade..................................................................................................................................

Dados facultativos: Raça................Nível educacional..............................................Estado civil....................... Sexo.................Rendimento mensal.......................................No. de filhos.........................

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1. Interessa-se por política? ( ) – Muito interesse ( ) - Algum interesse ( ) – Não muito ( ) – Nenhum interesse. 2. Costuma discutir/conversar sobre política? Entre amigos Entre colegas de trabalho ( ) – Frequentemente – ( ) ( ) – Ocasionalmente - ( ) ( ) – Nunca - ( ) 3. E sobre a situação económica e social do país? Entre amigos Entre colegas de trabalho ( ) – Frequentemente – ( ) ( ) – Ocasionalmente – ( ) ( ) – Nunca - ( ) 4. Tem por hábito tentar convencer seus familiares, amigos e colegas de trabalho a envolverem-se mais com os assuntos (as ‘makas’) relacionadas com a situação política, económica e social do país? ( ) – Frequentemente ( ) – De vez em quando ( ) – Raramente ( ) – Nunca 5. Indique 3 frases que, em sua opinião, melhor descrevem a situação de Angola: ( ) – O sistema económico precisa mudar radicalmente ( ) - O governo deveria ser mais aberto às mudanças públicas ( ) – É necessário criar mais oportunidades de negócios e empregos ( ) – Precisamos de uma justiça ‘mais justa’ e ao alcance de todos ( ) – O sistema político precisa de reformas profundas ( ) – Estado e sociedade deveriam trabalhar em parceria ( ) – A sociedade está muito dividida e não consegue apresentar-se como parceira credível ( ) – Os mecanismos sociais de auscultação criados são ineficazes 6. Pensando no momento actual do país, qual das seguintes frases descreve melhor a situação? ( ) – É a possível devido aos problemas da história de Angola ( ) – Apesar da guerra, poderíamos estar muito melhor ( ) – Agora que a guerra acabou precisamos mudar ( ) – Nenhuma delas Qual a sua posição?............................................................................................................. .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 7. Porque razão há tanta gente pobre, sobrevivendo com tanta dificuldade? ( ) – Porque não têm sorte ( ) - Porque são preguiçosos e não têm força de vontade ( ) – Porque a nossa sociedade é injusta ( ) – Por causa da guerra ( ) – Não sei.

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8. No actual momento de transição da guerra para a paz, o que gostaria de ver acontecer em Angola?.......................................................................................................................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 9. Numa situação de mudança em sua vida pessoal ou profissional, qual o sentimento que o acompanha? ( ) – ansiedade ( ) – tranquilidade ( ) - expectativa ( ) – satisfação, porque é bom mudar ( ) – desagrado, porque não vale a pena arriscar ( ) – outro Qual?.................................................................................................................................... 10. Se pudesse votar em políticas, qual a importância que atribuiria aos seguintes objectivos de política, para Angola? Escala de 1 (insignificante) a 10 (fundamental) ( ) – Reconciliação entre os angolanos ( ) - Eliminação da pobreza ( ) - Eliminação das desigualdades ( ) - Democratização da sociedade ( ) - Modernização da sociedade ( ) – Erradicação do analfabetismo ( ) – Aumento da esperança de vida ( ) – Redução da mortalidade, principalmente a infantil ( ) – Combate sem tréguas à corrupção ( ) - Gestão pública mais transparente e mais participativa ( ) – Expansão das oportunidade de participação ( ) – Melhoria significativa na redistribuição dos rendimentos nacionais 11. Em sua opinião, Angola é governada ( ) – Por poucos grandes interesses ( ) – No interesse de todos ( ) – Pelas elites ( ) – Com a participação de todos ( ) – Não sei 12. Tem orgulho em ser angolano? ( ) – Muito ( ) – Bastante ( ) – Não muito ( ) - Nenhum 13. As pessoas são confiáveis, em geral, ou é preciso ser cauteloso ao lidar com elas? ( ) – A maior parte é confiável ( ) - Não é preciso ser muito cauteloso ( ) – Só confio em quem conheço ( ) – “O seguro morreu de velho” ( ) – Não sei 14. Que confiança merecem as seguintes instituições? (Muita) (Bastante) (Não muita) (Nenhuma) Igreja Governo Forças armadas

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Justiça Imprensa Sindicatos Associações cívicas Parlamento Organizações não governamentais Serviço público Empresas Partidos políticos Autoridades tradicionais Polícia 15. Pertence a alguma associação? (sim) (não) Se sim, de que tipo? ( ) – profissional ( ) – cívica ( ) – cultural ou recreativa ( ) – de produção ( ) – de consumo ( ) – grupos de mulheres ( ) – grupo de jovens ( ) – caixas de apoio mútuo ( ) – outra Qual?.................................................................................................................................... 16. Em sua opinião, quais as razões para fazer trabalho cívico ou voluntário? Escala de 1 (pouco importante) a 5 (muito importante) ( ) - Solidariedade ( ) - Compaixão ( ) - Oportunidade para pagar algo, dar algo em troca ( ) - Sentido de dever ( ) - Identificação com os que sofrem ( ) - Melhorar o nosso bem-estar comum ( ) - Ocupação de tempo livre ( ) - Crença religiosa ( ) - Satisfação pessoal ( ) - Necessidade de mudança social e política ( ) - Ajudar a dar esperança e dignidade aos pobres e necessitados ( ) - Encontrar outras pessoas ( ) - Ganhar experiência e ‘novas ferramentas’ para a vida ( ) - Mobilizar prestígio social ( ) - Vergonha de recusar 17. Que tipo de pessoa não gostaria de ter como vizinho? ( ) – passado criminal ( ) – outra raça ( ) – extremista político ( ) – bêbado ( ) – família numerosa ( ) – com perturbações mentais ( ) – deficiente físico ( ) - imigrante/estrangeiro ( ) – drogado

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( ) – homossexual ( ) – outros Quais?............................................................................................................................................................................................................................................................................... 18. Qual a sua reacção quando sabe que alguém próximo de si, familiar, amigo, vizinho, está passando mal de saúde?................................................................................................ ..........................................................................................................................................................................................................................................................................................

19. Um amigo confidencia-lhe que está com graves problemas financeiros. Qual a sua reacção?

( ) – fico na minha, afinal só se queixou, nada pediu ( ) – procuro forma de ajuda-lo ( ) – todos estamos com dificuldades ( ) – não podendo, procuro encaminha-lo a quem o possa ajudar, recomendando-o ( ) – nenhuma destas O que faria, então?............................................................................................................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 20. Perante a ideia de criação de uma associação/cooperativa/comissão/grupo/clube, no seu bairro, entre colegas da mesma profissão, entre amigos e conhecidos com as mesmas afinidades culturais, entre amigos da ‘farra’, qual seria a sua reacção?................ ..........................................................................................................................................................................................................................................................................................

QUESTIONÁRIO No. 2

Nome................................................................................................................................... Faixa etária (<20 anos) (20-30) (30-40) (40-50) (> 50 anos) Profissão.............................................................................................................................. Função/ocupação................................................................................................................. Cidade.............................................. 1. Quando ouve falar em sociedade civil em que é que pensa? .......................................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 2. Por favor, dê exemplos dos elementos, organizações, grupos compõem essa ideia ...... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 3. Como é que esses elementos se relacionam uns com os outros...................................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 4. Quais as funções ou papéis que relaciona com essa ideia?............................................. .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 5. Como são as relações dessa sociedade civil com o Estado angolano?............................ .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 6. Qual a sua relação com essa sociedade civil? ................................................................. ..........................................................................................................................................................................................................................................................................................

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7. Como qualificaria essa sociedade civil do ponto de vista do dinamismo e da visibilidade? ........................................................................................................................ .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 8. Em sua opinião, o contexto angolano afecta a constituição e o funcionamento dessa sociedade civil?.................................................................................................................... Como?............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................ 9. Está satisfeito com o desempenho da sociedade civil em Angola?................................. Porquê?.......................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... 10. Das organizações abaixo listadas, assinale as que identifica com sociedade civil: ( ) – tribunais ( ) – parlamento ( ) – sindicatos ( ) – associações cívicas ( ) – movimentos sociais ( ) – partidos políticos ( ) – meios de comunicação social ( ) – forças armadas ( ) – igrejas e organizações religiosas ( ) – associações profissionais ( ) – associações culturais, desportivas e recreativas ( ) – grupos de interesse ( ) – ONG’s (organizações não governamentais) ( ) – agências multi e bilaterais ( ) – OCB’s (organizações comunitárias de base) ( ) – autoridades tradicionais (sobas, sékulos) ( ) – comissões de bairro ( ) – associações de moradores ( ) – grupos de acção partidária ( ) – empresas ( ) – associações de produção/cooperativas ( ) - agências locais de desenvolvimento ( ) – outras Quais? .............................................................................................................................

QUESTIONÁRIO No. 4 – Entidades religiosas Identificação Nome................................................................................................................................... Igreja ou organização religiosa............................................................................................ Função................................................................................................................................. Cidade....................................... 1. Qual tem sido o envolvimento da Igreja/organização religiosa no fornecimento de serviços à população? (grande) (pequeno) (esporádico) (constante) (nenhum) Pode citar exemplos? ..........................................................................................................

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.............................................................................................................................................

............................................................................................................................................. Esse envolvimento afecta o alcance dos propósitos originais da Igreja/organização religiosa? (sim) (não) Porquê? ............................................................................................................................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 2. Como a Igreja/organização religiosa entende a questão da ‘participação’ e que acções desenvolve no sentido de aumentar a capacidade das pessoas?.......................................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 3. A Igreja/organização religiosa promove ou participa em acções de treinamento dos seus fiéis nos processos democráticos de tomada de decisão? (sim) (não) Se sim, dê exemplos, por favor ........................................................................................... ............................................................................................................................................. Se não, porquê? ................................................................................................................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 4. Qual a relação entre as autoridades públicas e as Igrejas e organizações religiosas?...................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... 5. Qual o entendimento da Igreja/organização religiosa sobre sociedade civil em Angola? ............................................................................................................................................. ............................................................................................................................................. 6. A Igreja/organização religiosa inclui-se na sociedade civil em Angola? (sim) (não) Porquê? ............................................................................................................................... ..........................................................................................................................................................................................................................................................................................

QUESTIONÁRIO No. 5 – Meios de Comunicação Social Identificação Nome................................................................................................................................... Profissão.............................................................................................................................. Função/ocupação................................................................................................................. Órgão de comunicação.............................................Cidade................................................ 1. Em seu entender, os meios de comunicação social são, predominantemente: ( ) - canais de informação ( ) – canais de transmissão da opinião pública ( ) - formadores de opinião ( ) - .................................................................................................................................... ............................................................................................................................................. 2. Como é preenchida a programação (espaço de antena) dos órgãos de comunicação social? ( ) – informação oficial dos órgãos estatais e governamentais? ( ) – programas de opinião dos jornalistas ( ) – programas de opinião com participação de ouvintes/telespectadores

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( ) – programas de lazer, música, novelas e entretenimento em geral ( ) – outros.......................................................................................................................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 3. Em sua opinião, existe espaço de antena para grupos sociais desfavorecidos ou excluídos, como deslocados, pobres, portadores de deficiências, dissidentes políticos, mulheres, nos meios de comunicação angolanos?............................................................... ......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 4. Em sua opinião, qual o grau de importância dos temas abaixo listados na programação dos principais órgãos de comunicação social em Angola? ( ) - notícias locais, nacionais ( ) e internacionais ( ) ( ) – entretenimento e lazer ( ) – programas de opinião com participação da audiência ( ) – programas de opinião dos jornalistas ( ) – programas dirigidos a grupos, como crianças, mulheres, idosos 5. Quais os temas mais abordados nos programas de opinião? ( ) – relacionadas com a Paz ( ) – democratização ( ) – desenvolvimento ( ) – combate à pobreza ( ) – economia ( ) – política ( ) – combate às desigualdades sociais ( ) – direitos humanos e liberdade de expressão, associação e reunião ( ) – outros Quais?.................................................................................................................................. 6. Do ponto de vista geográfico, a maior abrangência das notícias e dos programas de opinião é: ( ) questões locais, nacionais ( ), relativas ao continente ( ) relativas à região ( ) internacionais ( ) 7. Qual o papel dos meios de comunicação social no processo de reconciliação nacional ............................................................................................................................................. ............................................................................................................................................, na democratização da sociedade.......................................................................................... ............................................................................................................................................, no combate à pobreza.......................................................................................................... ............................................................................................................................................, e na construção de cidadania?............................................................................................. .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 8. Quais as fontes de financiamento do órgão de comunicação a que pertence?................ .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 9. Qual a sua opinião sobre a lei de Imprensa em vigor no país?........................................ ..........................................................................................................................................................................................................................................................................................

10. Na realização do seu trabalho diário, sente-se à vontade para expressar a sua opinião?...............................................................................................................................

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.............................................................................................................................................

............................................................................................................................................. 11. Como qualifica as relações entre as autoridades públicas e os meios de comunicação social? .... ............................................................................................................................ .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 12. No seio da comunicação social, qual o entendimento sobre sociedade civil em Angola?................................................................................................................................ .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 13. Os meios de comunicação social fazem parte da sociedade civil? (sim) (não) Porquê? ............................................................................................................................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 14. Qual a relação entre sociedade civil, meios de comunicação social e opinião pública?................................................................................................................................ .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... QUESTIONÁRIO No. 6 - Autoridades Tradicionais e Administração Local do Estado Nome................................................................................................................................... Faixa etária: (<20 anos) (20-30) (30-40) (40-50) (>50 anos) Profissão.............................................................................................................................. Função/ocupação................................................................................................................. Cidade................................................

Dados facultativos: Raça................Nível educacional..............................................Estado civil....................... Sexo.................Rendimento mensal.......................................No. de filhos.........................

1.Quais são as funções das autoridades tradicionais?.......................................................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 2. Qual a relação entre as autoridades tradicionais e a administração local do Estado?..... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 3. Como se articulam estes dois poderes na concretização de projectos, programas e campanhas nas áreas da Saúde, Educação, Terras, Agricultura, Justiça, etc...................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 4. Quais as relações das autoridades tradicionais com os deputados eleitos pelas províncias?........................................................................................................................... ............................................................................................................................................. 5. Quais as relações das autoridades tradicionais com:

( ) Igrejas ..................................................................................................................... ....................................................................................................................................... ( ) ONG’s .................................................................................................................... ....................................................................................................................................... ( ) Associações cívicas ................................................................................................

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....................................................................................................................................... ( ) Sindicatos ............................................................................................................... ....................................................................................................................................... ( ) Associações de moradores ..................................................................................... ....................................................................................................................................... ( ) Comissões de Bairro............................................................................................... .......................................................................................................................................( ) outras OCB’s .......................................................................................................... ....................................................................................................................................... ( ) outras Associações ou grupos ................................................................................ .......................................................................................................................................( ) Partidos políticos ................................................................................................... ....................................................................................................................................... ( ) cooperativas e associações de produção................................................................. ....................................................................................................................................... ( ) Outros ..................................................................................................................... .......................................................................................................................................

6. Qual a origem do Soba ou Sékulo ( ) – Deslocado das áreas rurais por causa da guerra Desde quando? .............................................................................................................. Já era Soba ou Sékulo? ................................................................................................. ( ) – É da região/cidade Quando assumiu as funções? ........................................................................................ Foi eleito? ( ) Por linhagem ( )

7. Como exerce as suas funções?......................................................................................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 8. Quais as suas expectativas em relação ao futuro da sua região e de Angola, agora que a guerra acabou?.................................................................................................................. ..........................................................................................................................................................................................................................................................................................9. Qual o seu papel, enquanto autoridade tradicional, nesse processo?.............................. ..........................................................................................................................................................................................................................................................................................

Nota: Estas mesmas questões serão colocadas aos representantes da administração local do Estado, no sentido de procurar compreender como eles vêm as autoridades tradicionais e o seu papel na sociedade.

QUESTIONÁRIO No. 7 - O sector informal e o meio urbano

1. Dados sócio-demográficos Nome:..................................................................................................................................Faixa etária: (<20 anos) (20-30) (30-40) (40-50) (>50 anos) Profissão..............................................................................................................................Ocupação/função................................................................................................................. Cidade..................................................................................................................................

Dados facultativos: Raça................Nível educacional..............................................Estado civil....................... Sexo.................Rendimento mensal.......................................No. de filhos.........................

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1. Trabalha há muito tempo no mercado informal?............................................................. 2. Desde quando?................................................................................................................. 3. Qual a razão de estar no mercado informal?................................................................... ............................................................................................................................................. 4. Já foi empregado no sector formal?................................................................................. 5. Preferiria trabalhar no sector formal?.............................................................................. 6. O que ganha aqui é suficiente para o seu sustento e de sua família? ............................. ............................................................................................................................................. 7. Quantas pessoas tem a sua família?............ Os outros membros da família trabalham no sector informal ou no sector formal?.............................................................................. ............................................................................................................................................. 8. Quais são os seus projectos para o futuro?...................................................................... ............................................................................................................................................. 9. Como é que vê o futuro de Angola, agora que a guerra acabou?.................................... .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 10. Na sua opinião, o que poderia ser feito para melhorar as condições de vida das pessoas?......................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... 11. E quem deveria fazer isso?............................................................................................ 12. O que gostaria que fosse feito para melhorar as condições de trabalho no sector informal? ............................................................................................................................. .......................................................................................................................................................................................................................................................................................... 13. Trabalha sozinho ou em grupo?.................................................................................... 14. Como e onde compram os produtos que vendem aqui? ............................................... ..........................................................................................................................................................................................................................................................................................

15. Quais as experiências que aprendeu aqui e que lhe são úteis na vida, em casa, na família ou na sociedade?...................................................................................................... ..........................................................................................................................................................................................................................................................................................

16. Em sua opinião, existe espírito de entre-ajuda entre pessoas e grupos no sector informal?............ Porquê, pode dar exemplos? .................................................................. ..........................................................................................................................................................................................................................................................................................

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Cabinda

Benguela

Huíla

CuneneNamibe

Luanda

Kwanza Sul

Bengo

HuamboBié

Zaire

Uíge

Lunda NorteMalange

Lunda

Moxico

Kuando Kubango

Kwanza

Ondjiva

Menongue

Luena

Kuito

Huambo

LubangoNamibe

Benguela

Sumbe

Malange Saurimo

Lucapa

Uíge

M´banza Congo

Caxito

Cabinda

0 1 3

Kilometers

Cidades Abrangidas na Pesquisa sobre Imagens, Contornos e papeis da Sociedade

Civil em Angola

- Capitais de Província

- Cidades da Pesquisa

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