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1 Sociedades do Antigo Oriente-Próximo Ciro Flamarion S. Cardoso Sumário Introdução, Palácios, Templos e aldeias: o “Modo e produção Asiáticas”, Antecedentes do conceito de "modo de produção asiático" ...................................................... 2 Da elaboração do conceito ao seu ............................................................ Reabre-se a discussão ..................................................................... "Modo de produção doméstico" e "modo de produção palatino" ................................... 10 Baixa Mesopotâmia, Introdução ............................................................. As forças produtivas da Baixa Mesopotâmia .................................................. Descrição das principais atividades econômicas da Baixa Mesopotâmia ...................... 16 Propriedade e relações de produção: interpretação das estruturas ec ......................................................................................... 17 O III Milênio a.C. .......................................................................... 18 O II Milênio a.C. ........................................................................... 20 O I Milênio a.C ........................................................................... 21 O Egito faraônico, Introdução ................................................................ 23 As forças produtivas do Egito ................................................................ Descrição das principais atividades econômicas do Egito ......................................... 27 Propriedade e relações de produção: interpretação das estruturas ec A formação da sociedade faraônica ........................................................... 28 As estruturas básicas do Egito durante o III milênio a.C. e a prime milênio a.C ............................................................................... 29 Transformações ocorridas na segunda metade do II milênio a.C. e no . 31 Conclusão ................................................................................ 32 Vocabulário crítico ......................................................................... 33 Bibliografia comentada Obras de cunho teórico sobre o "modo de prod 36 Obras gerais .............................................................................. 37 Obras sobre a Mesopotâmia ................................................................ 38 Obras sobre o Egito ........................................................................ 39

Sociedades Do Antigo Oriente-proximo

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Sociedades do Antigo Oriente-PrximoCiro Flamarion S. Cardoso

SumrioIntroduo, Palcios, Templos e aldeias: o Modo e produo Asiticas, Antecedentes do conceito de "modo de produo asitico" .............................................................................. 2 Da elaborao do conceito ao seu .......................................................................................... 4 Reabre-se a discusso .............................................................................................................. 7 "Modo de produo domstico" e "modo de produo palatino" ..................................... 10 Baixa Mesopotmia, Introduo ........................................................................................... 12 As foras produtivas da Baixa Mesopotmia ........................................................................... 13 Descrio das principais atividades econmicas da Baixa Mesopotmia ...................... 16 Propriedade e relaes de produo: interpretao das estruturas econmico-sociais ..................................................................................................................................................... 17 O III Milnio a.C. ...................................................................................................................... 18 O II Milnio a.C. ........................................................................................................................ 20 O I Milnio a.C ......................................................................................................................... 21 O Egito faranico, Introduo ................................................................................................ 23 As foras produtivas do Egito ................................................................................................. 24 Descrio das principais atividades econmicas do Egito ................................................ 27 Propriedade e relaes de produo: interpretao das estruturas econmico-sociais, A formao da sociedade faranica ...................................................................................... 28 As estruturas bsicas do Egito durante o III milnio a.C. e a primeira metade do II milnio a.C ................................................................................................................................. 29 Transformaes ocorridas na segunda metade do II milnio a.C. e no I milnio a.C. . 31 Concluso .................................................................................................................................. 32 Vocabulrio crtico .................................................................................................................... 33 Bibliografia comentada Obras de cunho terico sobre o "modo de produo asitico" 36 Obras gerais .............................................................................................................................. 37 Obras sobre a Mesopotmia .................................................................................................. 38 Obras sobre o Egito ................................................................................................................. 39

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IntroduoA partir de fins dos anos 50, uma polmica internacional se travou em torno do conceito de modo de produo asitico. No somente procurou-se renovar a viso de determinadas sociedades - muitas delas no-asiticas -,como tambm criticou-se a noo de que, em princpio, todas as sociedades devessem atravessar as mesmas etapas em seu desenvolvimento histrico. Este livro aborda essa polmica, tomando-a como pano de fundo para a anlise das sociedades do antigo Oriente Prximo, atravs de dois exemplos: Egito e Baixa Mesopotmia. Ciro Flamarion S. Cardoso professor da Universidade Federal Fluminense. Publicou, entre outros ttulos, O Egito antigo, O trabalho compulsrio na Antiguidade, A cidade-Estado antiga e O trabalho na Amrica Latina colonial (na Srie Princpios).

Palcios, templos e aldeias: o "modo de produo asitico"A forma como abordaremos, neste livro, o estudo das sociedades do antigo Oriente Prximo - atravs dos exemplos egpcio e mesopotmico - vincula-se diretamente noo de modo de produo asitico. Comearemos, ento, por uma exposio sumria: dos antecedentes do surgimento deste polmico conceito; da sua elaborao na obra de Marx; e do seu complexo destino posterior. Em seguida, trataremos de expor a verso especfica do mencionado conceito, que nos servir de base para interrogar os exemplos escolhidos.

Antecedentes do conceito de "modo de produo asitico"Do sculo XVI ao XVIII, os escritores europeus que, por alguma razo, se referiam ao Oriente - sia -, faziam-no no contexto do pensamento acerca do social como existia em sua poca, isto , manifestando interesse prioritrio, ou mesmo exclusivo, pelos aspectos polticos. A ideia de que a poltica no passa de uma parte do todo social, do qual s aparentemente o princpio condutor, no comeou a se desenvolver antes do sculo XIX. Assim, na fase anterior, noes como o "despotismo oriental" apareciam como objetos perfeitamente autnomos e legtimos de anlise. Inicialmente, os materiais usados provinham da Bblia e de escritores clssicos antigos por exemplo, as opinies manifestadas pelos gregos acerca do Imprio Persa -, bem como de informaes no muito precisas sobre os turcos otomanos e o Imprio Moscovita. A partir do sculo XVII, porm, multiplicaram-se as publicaes de escritos de viajantes, mercadores, navegantes e diplomatas que se dirigiam ao Oriente (Imprio Turco, Prsia, ndia, China etc.) em busca de ganho mercantil, de vantagens comerciais para si prprios ou para os pases que os enviavam. Tais escritos foram lidos e utilizados, na Europa, por pensadores (filsofos, historiadores, economistas polticos) interessados principalmente em contrastar os dados que conheciam ou acreditavam conhecer a respeito da "sia" ou do "Oriente" - ento quase sempre visto como uma nica totalidade homognea - com sua interpretao do que ocorria na Europa, em polmicas acerca do absolutismo, do livre comrcio, dos direitos naturais dos homens, e de outros temas. Foi unicamente no sculo XIX que as sociedades asiticas passaram a ser encaradas em sua heterogeneidade e multiplicidade, e vistas como objeto de estudo em si mesmas, em funo no apenas das mudanas ocorridas na maneira de abordar o social, mas tambm de uma penetrao crescente e em profundidade dos interesses europeus nessas sociedades orientais. No sculo XVI, a Europa vivia a emergncia das naes-Estados modernas, das monarquias absolutistas. Questes como a necessidade de exrcitos e

3 burocracias permanentes, de sistemas nacionalmente integrados de finanas, impostos e leis, estavam na ordem do dia. Pensadores se debruavam sobre tais problemticas, tentando entend-Ias e dar-Ihes respostas positivas e pragmticas, alguns dos quais foram pioneiros na apresentao do Estado oriental como anttese da monarquia europeia. MachiaveIli, por exemplo, acreditava que no Imprio Turco havia um nico senhor, sendo todos os outros homens seus servidores; a razo disto seria que, ao contrrio do que ocorria na Europa, entre os otomanos inexistiria uma nobreza hereditria, ideia algum tempo depois retomada por Francis Bacon. Ele opunha, ento, o governo europeu, exercido por um monarca cercado de conselheiros, ao despotismo oriental; contrastava os numerosos Estados europeus, em que havia condies que favoreciam a criatividade dos habitantes, aos imensos imprios orientais, caracterizados por uma populao servil. Bodin, por sua vez, sob forte influncia de Aristteles, comparou a "monarquia real" europeia - em que os sditos obedeciam s leis do rei e s leis naturais, sendo-Ihes reconhecido o direito liberdade natural e propriedade - com a "monarquia senhorial" do Oriente, esta ilustrada pelos Estados turco e moscovita. Em tais Estados o rei, senhor dos bens e das pessoas por direito de conquista, governava seus sditos como um chefe de famlia romano governava seus escravos. Em 1650, Thomas Hobbes endossou algumas das ideias de Bodin, ao tratar do que, por influncia grega, chamou de "reino desptico". No sculo XVII, comerciantes e embaixadores que haviam conhecido a Prsia e a ndia especularam sobre as origens e bases do "poder desptico": elementos de seus escritos foram amplamente usados, sobretudo na Frana, nas acaloradas polmicas acerca do absolutismo monrquico. Em seus contatos com o Oriente, os europeus notaram, em primeiro lugar, o contraste entre a imensa riqueza das cortes e a pobreza abjeta da maioria da populao, confirmando, portanto, uma viso como a de Machiavelli e Bacon acerca da ausncia de mediaes sociais entre a corte e o povo. Quase todos afirmaram que o dspota era o nico proprietrio do solo. O mais famoso dos viajantes, Bernier, acreditava ser esta propriedade a fonte do poder desptico - tese que seria adotada posteriormente pelos fisiocratas, por Adam Smith e por Marx -, enquanto outros, pelo contrrio, achavam que era do poder absoluto que o governante derivava seus direitos sobre as pessoas e os bens. Bernier notou tambm que os artfices orientais - artesos de alta qualificao - dependiam, para viver, da redistribuio das riquezas concentradas atravs de tributos feita pelos soberanos, para os quais trabalhavam. No sculo XVIII, alm de uma voga generalizada, na Europa, das coisas e dos costumes turcos e persas - como os viam os europeus, numa evidente reinterpretao -, a China fez sua apario no universo intelectual do Ocidente, alimentando a oposio entre "sinfilos" e "sinfobos": Voltaire serve para ilustrar a primeira posio e Montesquieu, a segunda. Montesquieu, em 1748, considerou o "despotismo" como sendo uma qas formas fundamentais de governo, exemplificando-o, porm, no apenas com sociedades orientais, mas igualmente com personagens do Imprio Romano e com a Inglaterra de Henrique VIII. Seu contraste entre "monarquia" e "despotismo" baseavase na noo de que, sob este ltimo regime, inexiste qualquer instncia entre o dspota e o povo: todos os sditos so "nada" diante do governante todo-poderoso. Uma sociedade desptica carece de leis polticas fundamentais e de comrcio; nos casos extremos, o dspota monopoliza a propriedade da terra. Voltaire, que via a China como o pas dos reis filsofos, prottipo do "despotismo esclarecido", por ele preconizado, criticou Montesquieu, no que foi imitado por alguns fisiocratas. Quesnay, por exemplo, encarava a China como um "despotismo legal", em oposio ao "despotismo arbitrrio". Embora nem todos os fisiocratas fossem "sinfilos", credita-se a eles a formulao do primeiro modelo econmico sistemtico aplicado ao "despotismo oriental"; isto porque foram tambm

4 os primeiros que perceberam a economia como uma totalidade coerente, feita de partes interdependentes ou solidrias. Numa posio relativamente isolada na poca, o orientalista francs AnquetilDuperron, em obras publicadas entre 1778 e 1791, ops-se ideia de que o governo da ndia fosse desptico e ignorasse as leis ou o direito de propriedade, e tambm afirmao - feita em 1783 por A. Dalrymple - de que a terra ali fosse possuda coletivamente pelas aldeias. Ainda no final do sculo XVIII, Adam Smith, em A riqueza das naes (1776), afirmou que na ndia e na China a agricultura, e no a manufatura, era altamente considerada e favorecida. A riqueza (ouro e prata) estava nas mos de uns poucos magnatas, que no a investiam nem permitiam que outros o fizessem. O Estado proprietrio de todo o solo - interessava-se em promover a agricultura, manter os caminhos e os canais de irrigao. J no incio do sculo XIX, o filsofo alemo Hegel - que lera os filsofos franceses do sculo XVIII e Adam Smith - procedeu a um contraste entre Oriente e Ocidente. A Europa conhecera um progressivo desenrolar da autoconscincia, enquanto no Oriente se dera o desenvolvimento de uma conscincia moral externa ao indivduo, ou seja, abstrata. Por tal razo, na China a histria se reduzia a uma mera crnica, enquanto na ndia ela simplesmente no existia. A poltica, na forma de invases ou revoltas palacianas, era indiferente para os camponeses, em suas aldeias imutveis. A imutabilidade das aldeias como base da estagnao da ndia pr-britnica foi salientada por John Stuart Mill, em 1848: nelas se combinavam o artesanato e a agricultura, e, embora o Estado fosse o proprietrio das terras, os camponeses detinham seu usufruto mediante o pagamento de rendas fixadas pelo costume. Outro economista poltico, cujas ideias teriam grande influncia sobre Marx, foi Richard Jones: em 1831 caracterizara a "renda em forma de tributo" - tpica, para ele, da ndia e de outras sociedades asiticas - entre as modalidades possveis da renda desenvolvendo, neste ponto, certas ideias de Adam Smith -, e ligara-a estagnao oriental, pelo fato de impedir a acumulao individual e preservar o despotismo. A partir de meados do sculo XIX, multiplicaram-se os estudos de sociedades orientais, no mais a partir dos governantes e, sim, das unidades aldes e suas instituies. Tais estudos foram influenciados por duas grandes correntes de pensamento. Uma delas consistia na crena de ser o snscrito a lngua-me das grandes lnguas da Europa, o que levava a crer numa espcie de "unidade institucional indo-europeia", exemplificada nos estudos em que, entre 1861 e 1875, Henry Maine comparou as comunidades aldes da ndia s dos eslavos, germanos e celtas. A outra foi a longa polmica - ainda atual - acerca de serem ou no as sociedades aldes primitivas caracterizadas pela propriedade coletiva sobre o solo, reconhecendo-se s famlias individuais unicamente um direito de usufruto.

Da elaborao do conceito ao seu abandonoNa obra de Marx o "modo de produo asitico" aparece, na imensa maioria dos escritos - como ocorre, alis, com todos os modos de produo pr-capitalistas -, num contexto bem definido: em relao mais ou menos direta com a anlise do capitalismo e com a crtica da economia poltica que hoje chamamos "clssica". Nestas condies, no se pode esperar encontrar nos escritos do fundador do marxismo uma teoria explcita e acabada a respeito das sociedades "asiticas". Mesmo assim, embora baseadas nas ideias que vinham se desenvolvendo na Europa durante cerca de trs sculos a respeito do Oriente, as suas concepes acerca do "modo de produo asitico" foram suficientemente interessantes para terem duradoura influncia. Na dcada de 1850, como correspondente do jornal New York Daily Tribune, em Londres, Marx redigiu uma srie de artigos sobre a ndia e a China, ao cobrir

5 debates no Parlamento britnico a respeito de temas como a renovao dos privilgios da Companhia das ndias Orientais, as rebelies Taiping, a revolta dos cipaios etc. Sua correspondncia com Engels, na mesma poca, preparou alguns dos desenvolvimentos presentes naqueles artigos. Em carta a Engels, em 1853, Marx cita longos extratosdo livro Voyages contenant ia description des tats Du Grand Mogoi, de Bernier (1670), chegando concluso de que o viajante do sculo XVII tivera razo ao ver, na inexistncia da propriedade privada da terra - na Turquia, Prsia, 1ndia -, a base de todos os fenmenos do Oriente, inclusive a ausncia de histria de que falara Hegel. Engels sugeriu-lhe, em resposta, que a origem da inexistncia de propriedade privada residiria nas condies climticas de semi-aridez, fazendo com que a irrigao artificial, organizada seja pelas comunidades, seja pelo Estado, fosse condio primordial para que a agricultura pudesse ser praticada. Estas e outras ideias expostas na carta de Engels foram retomadas por Marx, com algumas modificaes, em seu artigo de 25 de junho de 1853, a partir do papel do governo no que diz respeito s obras pblicas de irrigao. Na ndia, a ausncia de propriedade privada da terra e o papel do Estado nas obras pblicas, bem como o carter autrquico das aldeias - cada uma das quais, um pequeno mundo em si -, cujas terras podiam ser cultivadas em lotes familiares, permanecendo porm comuns as pastagens, explicariam a estagnao, o carter estacionrio da sociedade. Essas comunidades conheciam, sem dvida, as distines de casta e a escravido; mas, na medida em que combinavam o artesanato e a agricultura, sua auto-suficincia bloqueava o desenvolvimento do indivduo e servia de base ao despotismo oriental. A nica revoluo autntica na histria da sia se devia ao impacto do capitalismo. Num artigo de 8 de agosto de 1853, Marx tratou do modo pelo qual os britnicos, rompendo a autarquia alde na ndia - pela introduo de tecidos baratos de algodo e pela construo de estradas de ferro - e absorvendo-a em sua civilizao, estavam lanando as bases do progresso de uma efetiva transformao social. Entre 1857 e 1859, Marx redigiu um extenso manuscrito para pr em ordem suas pesquisas em economia, como tambm a elaborao do seu mtodo especfico de anlise. Tal manuscrito - os Grundrisse (Fundamentos da crtica da economia poltica) - s seria publicado pela primeira vez em 1939-41, tendo maior difuso somente no fim da dcada de 1950. Numa passagem dos Grundrisse - "Formas que precedem a produo capitalista" -, Marx aborda o processo da separao do trabalhador em relao s condies objetivas da produo e reproduo de sua vida, o que significou, historicamente, tanto a dissoluo da pequena propriedade quanto a da propriedade coletiva, baseada na comunidade oriental. De fato, no texto, a "forma asitica" de propriedade comum da terra aparece como uma entre vrias modalidades possveis justamente a mais resistente mudana, devido unio entre agricultura e artesanato nas comunidades autrquicas, e devido a que, no interior destas, o indivduo no pudesse converter-se em proprietrio, tendo exclusivamente a posse da terra. Assim, mesmo o surgimento da escravido ou da servido e da riqueza monetria pouco pde afetar as resistentes comunidades "asiticas". Marx imagina uma evoluo que, passando pelo pastoreio nmade, levasse a tribo sedentarizao em determinado territrio, mantendo sua comunidade de sangue, lngua e costumes. Na variedade "asitica" de comunidade, o produtor individual v na organizao tribal formada "naturalmente" - um suposto natural ou divino do processo de trabalho, no produzido por este. O indivduo s pode apropriarse das condies objetivas de sua vida na qualidade de membro da comunidade: a apropriao real dessas condies atravs do trabalho s se pode dar sob aquele suposto que aparece como natural, ou sobrenatural. Por cima das comunidades locais est uma unidade superior ou englobante, encarnada, em ltima anlise, numa s pessoa - o dspota -, que se apresenta como a nica proprietria do solo; as comunidades locais so, simplesmente, possessoras hereditrias. Deste modo, a

6 unidade superior mediatiza a relao entre o indivduo e as condies de trabalho por intermdio de cada comunidade particular, que dela parece receber o direito de uso sobre os recursos naturais. Em consequncia, uma parte do trabalho excedente de cada comunidade local destina-se unidade englobante, ou "comunidade superior", na forma de tributo e de trabalho comum para exaltao da unidade, prestado ao dspota real ou ao ser imaginrio que encarna a unidade tribal: a divindade. V-se que, na anlise de Marx, na fundao material do "despotismo oriental", por trs das aparncias poder desptico, ausncia de propriedade - se perfila a base real constituda pela propriedade comunal, em que se combinam agricultura e artesanato, nas comunidades autrquicas que contm em seu interior todas as condies para sua reproduo e para a produo de excedentes. A realizao do trabalho pode dar-se tanto pelas famlias, em lotes individuais, quanto pelo cultivo em comum do solo. Dentro de cada comunidade, a unidade desta pode-se encarnar, seja num chefe individual, seja num conselho de chefes de famlias. As obras pblicas, na prtica levadas a cabo pelas comunidades, aparecem como realizao da unidade englobante do regime desptico ao qual cada indivduo, de cada comunidade, parece pertencer. O excedente acumulado pela "comunidade superior" serve para o comrcio exterior, as obras pblicas e a remunerao de artesos especializados, a servio da corte. Inexiste o intercmbio mercantil no interior de cada comunidade, podendo haver, no entanto, trocas entre as comunidades. Em 1859, no prefcio sua Contribuio crtica da economia poltica, Marx afirmou que, de maneira geral, os modos de produo asitico, antigo, feudal e burgus moderno podem ser encarados como pocas que marcam sucessivos progressos no desenvolvimento econmico da sociedade. No livro, chamou a ateno sobre o fato de que, na sia, a tesaurizao da riqueza em metais preciosos tinha pequeno papel no mecanismo total de produo; em contraste com o capitalismo, a imobilizao da riqueza em tesouros ainda aparecia como uma finalidade em si. Em O capital - obra da qual somente o primeiro tomo foi publicado com Marx ainda em vida (1867), surgindo os outros dois postumamente, em funo de formidvel esforo de Engels na organizao do texto (1885, 1894) -, diversas passagens esparsas tm a ver com o "modo de produo asitico" ou com sociedades especficas por ele conformadas (ndia, Peru pr-colombiano), tendo sempre como ponto de referncia o contraste com o modo de produo capitalista. Tratando do destino do excedente nas sociedades "asiticas", diz Marx que ele se destina, em parte, troca entre as aldeias e, em parte, renda apropriada pelo Estado, com a qual este paga os artesos pelo seu servio e realiza o comrcio de longo curso. Seguindo uma opinio de Adam Smith e de Richard Jones, ele afirma que, nos Estados da sia, d-se a coincidncia. entre renda e tributo. Por outro lado, nas sociedades "asiticas", como em todas aquelas em que o produtor direto controla os meios de produo, a extorso do trabalho excedente s pode ocorrer mediante o recurso coao extraeconmica, ou seja, pela utilizao da represso militar, dos mecanismos judiciais, da ideologia etc. O papel de Engels na elaborao do conceito de "modo de produo asitico" foi bem menor do que o de Marx. No Anti-Dhring (1878), Engels reafirmou a necessidade de organizao das obras de irrigao no Oriente como elemento que explica o surgimento dos Estados despticos. Ele via no despotismo oriental a mais forma de Estado, por basear-se na mais elementar das formas de renda: a renda em trabalho. O livro mencionava tambm que as comunidades aldes da ndia haviam evoludo da propriedade comunal tribal ao parcelamento da terra e ao surgimento de diferenas de riqueza entre os indivduos, devido distribuio desigual do produto das trocas intercomunitrias. Em sua obra A origem da famlia, da propriedade privada e do Estado (1884), Engels descartou a anlise da "histria antiga dos povos civilizados da sia". Isto foi interpretado por alguns como significando o seu abandono do conceito de "modo de produo asitico", o que no parece procedente. No Anti-Dhring ele sugerira a existncia de dois caminhos histricos para o surgimento do Estado: o que conduz ao

7 despotismo oriental, no qual se mantm em existncia as comunidades aldes, e o que passa pela dissoluo das comunidades tribais e pela evoluo das foras produtivas, levando ao desenvolvimento do escravismo. Tudo indica que, no novo livro, decidira limitar-se ao segundo caminho, para ele o mais completo por dar acesso s sociedades de classes nas quais se desenvolvem a propriedade privada e a produo mercantil. No sculo XIX, a arqueologia no revelara, ainda, a existncia de civilizaes prximas por suas caractersticas das sociedades orientais na Grcia continental e insular proto-histrica; assim a Engels parecia que, na Grcia, passarase da organizao tribal sociedade clssica, num processo que no conhecera qualquer modalidade social de tipo "asitico". Da morte de Marx, em 1883, at 1929, o conceito de "modo de produo asitico" apareceu com bastante frequncia, e sem contestao, na obra de diversos autores marxistas (P. Lafargue, H. Cunow, R. Luxemburg, G. Plekhanov etc.) e nos debates da Segunda Internacional. Na Rssia, as intervenes a respeito tiveram muitas vezes, como pano de fundo, a discusso dos marxistas com os chamados "populistas", que idealizavam a comuna agrria russa, ou mir, acreditando poder ela ser a base da transio ao socialismo, enquanto os marxistas sublinhavam que, por um lado, historicamente, as comunidades rurais haviam servido de base ao despotismo - inclusive na Rssia - e, por outro, encontravam-se em franca dissoluo. Plekhanov tinha, das origens do "modo de produo asitico", uma concepo apoiada num determinismo geogrfico e tecnolgico bastante estreito. Nos anos que se seguiram Revoluo de 1917, as discusses acerca do "modo de produo asitico" passaram a estar crescentemente dominadas por preocupaes polticas ligadas a qual deveria ser a posio socialista correta da Terceira Internacional diante das consequncias do colonialismo europeu e da determinao das principais foras revolucionrias presentes nas sociedades orientais. No fim da dcada de 1920, a situao da China concentrava quase toda a ateno. Enquanto Varga e Riazanov acreditavam ver na sociedade chinesa a articulao de dois modos de produo - o asitico e o capitalista -, outros lderes tinham opinies diferentes, e achavam que a ideia de "estagnao", que em vrios textos de Marx se vinculava noo de "modo de produo asitico", poderia levar concluso da impossibilidade da revoluo socialista no Oriente. Simpsios realizados em Tbilisi (1930) e em Leningrado (1931) concluram pela inexistncia de um "modo de produo asitico" especfico, havendo apenas uma "variante asitica" do escravismo ou do feudalismo. Estruturava-se, j ento, a viso unilinear da evoluo da humanidade que Stalin consagraria em 1938. Defensores do "modo de produo asitico", como Riazanov e Madiar, desapareceram na represso dos anos 1930, e o conceito foi quase universalmente abandonado por vrias dcadas:

Reabre-se a discussoWittfogel, ex-membro do Partido Comunista Alemo que, mudando-se para os Estados Unidos, ali ensinara histria da China e fora um delator quando das perseguies da era de McCarthy, publicou, em 1957, Oriental despotism, livro no qual exps sua teoria a respeito das"sociedades hidrulicas", cujas mximas representantes no mundo contemporneo seriam a Unio Sovitica e a China socialista, as grandes inimigas do Ocidente. Wittfogel mescla uma concepo ecologista e tecnicista, semelhante de Plekhanov, ao difusionismo e a outras influncias. Afirma que as condies em que surge a oportunidade - no a necessidade - para que se desenvolvam padres despticos de governo e sociedade, por ele identificados com a "sociedade hidrulica", dependem de certos requisitos: 1. A reao do grupo humano diante de uma paisagem deficitria em gua. 2. Tal grupo tem de estar acima do nvel de uma estrita economia de subsistncia. 3. O grupo deve estar distante da influncia de centros

8 importantes da agricultura de chuva. 4. O nvel do grupo precisa ser inferior ao de uma cultura industrial baseada na propriedade privada. Cumprindo-se todos esses requisitos, o surgimento de uma sociedade hidrulica torna-se possvel, embora no necessrio; a escolha entre adotar ou no tal forma de organizao permanece em aberto, sempre havendo alternativas. O controle, armazenagem e uso de grandes massas de gua atravs de obras hidrulicas exigem um trabalho macio, que tem de ser coordenado, disciplinado e dirigido, o que impe a subordinao autoridade reguladora de um Estado forte e eficaz; este acaba por esmagar a liberdade do grupo que lhe est submetido. Para Wittfogel, a economia hidrulica primeiramente surgiu nas regies ridas, difundindo-se depois pelas semi-ridas e midas, sempre na dependncia da sua aceitao por parte dos grupos humanos aos quais se tenha colocado a opo. Ele acha que possvel a adoo da forma hidrulica de sociedade e de Estado, mesmo em regies onde no exista ou seja pouco importante a agricultura hidrulica: a "sociedade hidrulica marginal". No caso de serem adotadas s parcialmente as caractersticas do "despotismo oriental", teramos uma "sociedade hidrulica submarginal". Assim, a necessidade de obras hidrulicas seria condio necessria para o surgimento da sociedade hidrulica em carter pioneiro, sem ser, no entanto, imprescindvel para a difuso de tal forma de organizao social. Por fim, diz o autor que, uma vez esgotadas as possibilidades de desenvolvimento e de mudanas criadoras contidas no modelo da "sociedade hidrulica", esta tenderia repetio estereotipada - epigonismo - ou mesmo decadncia. O seu ciclo completo seria: formao, crescimento, maturidade, estagnao, epigonismo e retrocesso institucional. As ideias de Wittfogel tiveram muitos seguidores. Outrossim, uma de suas posturas bsicas, a "hiptese causal hidrulica" - isto , a ideia de que a necessidade de controle sobre os grandes trabalhos exigidos pela manuteno de um sistema complexo de irrigao foi o fator central na gerao do Estado "desptico" -, era j bem antiga, tendo sido defendida por historiadores como J. Baillet, J. Pirenne, A. Moret, J. Vercoutter e H. W. F. Saggs. Tal hiptese falsa, o que foi evidenciado, sem dvida, por inmeras pesquisas bem apoiadas na arqueologia e em fontes escritas. irnico que uma dessas pesquisas tenha sido realizada por um dos mais incondicionais seguidores de Wittfogel, A. Palerm, que comeou sua investigao arqueolgica e etno-histrica pensando provar a "hiptese causal hidrulica" no caso do Mxico pr-colombiano, mas demonstrou, de fato, o contrrio: que o controle dos sistemas de irrigao competia s comunidades locais, e que s muito tardiamente o Estado desenvolveu uma poltica de grandes obras pblicas de tipo hidrulico. Entre os marxistas, o livro de Wittfogel - que provocou grande indignao constituiu apenas um entre muitos fatores que deram impulso retomada do interesse pelo conceito de "modo de produo asitico". Outros fatores foram: a "desestalinizao", iniciada pelo XX Congresso do Partido Comunista da Unio Sovitica, que no campo do materialismo histrico desencadeou um ataque noo do unilinearismo evolutivo das sociedades humanas; o progresso dos movimentos de libertao nacional, sobretudo a partir da dcada de 1950, com a admisso sucessiva, s Naes Unidas, de numerosas naes afro-asiticas, cujos problemas socioeconmicos especficos exigiam tambm respostas de tipo histrico; a ampla circulao dos Grundrisse, texto de Marx praticamente desconhecido at a mesma dcada, bem como a republicao de seus artigos sobre a ndia e de escritos de Plekhanov, Varga e outros autores acerca das sociedades "asiticas". Nos pases socialistas, na Frana, na Itlia, no Japo e em outras partes do mundo, inclusive na Amrica Latina - se bem que modestamente, a no ser no caso do Mxico -, os anos 60 e 70 viram proliferar uma bibliografia numerosa e variada sobre o "modo de produo asitico", em meio a ativa troca de ideias - poder-se-ia mesmo dizer, no contexto de um vivo debate e de agudas divergncias.

9 Entre os temas em torno dos quais se desencadeou a discusso acerca do "modo de produo asitico" -- que muitos passaram a chamar de "tributrio", "desptico-tributrio", "desptico-aldeo" etc., por ser obviamente inadequado o adjetivo asitico aplicado a um tipo de sociedade que os pesquisadores julgavam encontrar na histria de regies situadas em todos os continentes estavam as seguintes indagaes: Qual a sua organizao interna, sua origem, suas contradies, seu desenvolvimento? Tratar-se-ia de uma forma de transio das sociedades comunitrias tribais s sociedades de classes plenamente desenvolvidas, ou de um tipo especfico e bem definido de sociedade de classes? Seria uma formao marginal restrita somente a certas sociedades, ou universal? As respostas dadas a estas e outras perguntas foram heterogneas segundo autores e tendncias, em parte porque nos prprios textos a que todos recorriam, como diz Melotti,A nfase de Marx se desloca, nas diversas passagens, de um a outro dos (. . .) aspectos. Ora afirma que o elemento fundamental do sistema oriental a ausncia da propriedade privada, ora atribui esta mesma ausncia aos fatores particulares de carter geogrfico e climtico (.. .). Ora explica o papel eminente do Estado por estes fatores ecolgicos, que impunham a necessidade de grandes trabalhos hidrulicos, ora, pelo contrrio. pela disperso e pelo isolamento das aldeias. Em certas passagens, atribui este isolamento economia auto-suficiente. garantida pela combinao de agricultura e artesanato domstico. Em outras, parece adotar contrariamente a ideia de que seja a estrutura simples destas aldeias, e portanto a limitada diviso do trabalho, o que explica a estagnao do sistema oriental. Alhures, sublinha fatores diversos, como a civilizao demasiado rudimentar. o baixo nvel das foras produtivas ou a particular estrutura de c/asses, que alis faz decorrer, por sua vez, d insuficincia da diviso do trabalho.

O que significa, como j foi mencionado, que Marx no chegou a elaborar uma teoria sistemtica e acabada do "modo de produo asitico". Embora alguns autores (K. A. Antnova, P. Anderson, B. Hindess e P. Q. Hirst, G. Komorczy) conclussem pela inexistncia de tal modo de produo como forma especfica de sociedade, outros (F. Tokei, Godelier, Melotti, J. Suret-Canale, J. Chesneaux, R. Bartra etc.) chegaram concluso contrria e tambm salientaram a importncia desse conceito para basear uma viso multilinear do desenvolvimento das sociedades humanas, em oposio perspectiva unilinear consagrada por Stalin. Ainda mais interessante a posio de Goblot, que se ope tanto ao unilinearismo quanto ao multilinearismo, j que defende a opinio de que a evoluo das sociedades no linear: o desenvolvimento social, caracterizado por contatos e influncias, deslocamentos, "novos comeos", no contnuo em cada unidade "etnogeogrfica" que pode mesmo conhecer estagnaes e involues -, por mais que a continuidade temporal e lgica daquela evoluo possa ser recuperada quando integramos os diferentes processos evolutivos numa unidade superior. Por isso, diz M. Rebrioux que o historiador deve abandonar a busca (absurda) da continuidade geogrfica do desenvolvimento histrico e aprender "a ver o contnuo no descontnuo". Embora seja impossvel seguirmos aqui toda a trajetria do conceito de "modo de produo asitico" desde que sua discusso foi retomada, pouco antes de 1960, mister, alm de remeter o leitor aos textos principais gerados em tal discusso, recordar que, se bem que at meados da dcada de 1960 ainda fossem comuns os escritos puramente exegticos e tericos a respeito, desde ento tem-se desenvolvido a perspectiva de que, sem descurar da teoria, essencial proceder ao seu confronto com o material emprico disponvel, infinitamente mais rico do que no sculo passado.

10 Afinal, foram Marx e Engels que frisaram, referindo-se "sntese dos resultados mais gerais que possvel abstrair do estudo do desenvolvimento histrico":Tais abstraes, tomadas em si mesmas, separadas da histria real, no tm qualquer valor.

"Modo de produo domstico" e "modo de produo palatino"As tentativas de aplicao do conceito de "modo de produo asitico" disseram respeito a grande nmero de sociedades e a cortes cronolgicos tambm variados: as civilizaes do antigo Oriente Prximo; algumas das civilizaes da proto histria mediterrnea (cretense, micnica e, com menos verossimilhana, a etrusca); ndia, Sudeste Asitico e China pr-coloniais; algumas das culturas da frica negra pr-colonial; as altas culturas da Amrica pr-colombiana. Casos muito controversos, e com graus de probabilidade muito mais baixos, so o Imprio Bizantino, o mundo muulmano - insistiu-se mais no caso turco -, a Rssia tzarista e o Japo. Aqui nos interessa o antigo Oriente Prximo, visto atravs de dois exemplos: o Egito faranico e os Estados da Baixa Mesopotmia. Por tal razo, apoiar-nos-emos na interpretao da evoluo social prximo-oriental elaborada, sob inspirao das discusses acerca do "modo de produo asitico", por dois autores italianos, especialistas na histria dessa regio: M. Liverani e C. Zaccagnini. Por volta de 7000 a.C. j existiam, na sia Ocidental, aldeias sedentrias, resultantes do processo que o arquelogo australiano Gordon Childe props fosse chamado "revoluo neoltica"; esta forma de organizao se generalizou aos poucos no Oriente Prximo. Alguns sculos antes de 3000 a.C., na Baixa Mesopotmia, e por volta dessa data, no Egito, nova transformao - que Childe chamava "revoluo urbana" - se traduziu no surgimento de cidades, do Estado, e de uma diferenciao social profunda; ou, mais em geral, do que se convencionou denominar "civilizao". Liverani, ao interpretar a situao posterior "revoluo urbana", prope um duplo quadro de referncia: o "modo de produo domstico", ou "aldeo", e o "modo de produo pala tino". O primeiro seria uma estruturao social cuja origem remonta "revoluo neoltica"; so caractersticas suas a economia de subsistncia, a ausncia de diviso e especializao do trabalho - dando-se, em cada aldeia, a unio da agricultura e do artesanato _, a ausncia de uma diferenciao em classes sociais, a propriedade comunitria sobre a terra. O "modo de produo pala tino", por sua vez, resultaria da "revoluo urbana", que desembocara no surgimento de complexos palaciais e templrios como centros de nova organizao social. A economia passara a basear-se na concentrao, transformao e redistribuio dos excedentes extrados por templos e palcios dos produtores diretos - em sua maioria ainda membros de comunidades aldes -, mediante coao fiscal, configurando tributos in natura e "corveias", ou trabalhos forados por tempo limitado, para atividades civis (trabalhos diversos) e militares; isto manifestava diviso e especializao do trabalho, com o surgimento de especialistas de tempo integral (artesos, sacerdotes e burocratas dependentes dos templos e palcios), uma diferenciao fortemente hierrquica da sociedade, um sistema j complexo de propriedade que inclua, entre outras formas, as propriedades dos palcios e dos templos. As comunidades aldes e, em regies marginais, tambm as comunidades tribais, tomadas em si mesmas, eram o resduo de um modo de produo cujas razes mergulhavam no passado pr-histrico; mas constituam, ao mesmo tempo, a base sobre a qual se desenvolvera o novo modo de produo; este s pde surgir e se expandir explorando o modo de produo mais antigo, que foi subordinado, adaptado e utilizado de acordo com os novos interesses, mas sem perda de todas as suas caractersticas prprias. Para Zaccagnini, a articulao entre estruturas palatinas hegemnicas e estruturas aldes subordinadas - mas ainda reconhecveis e com certo nvel de autonomia local - que constitui o "modo de produo asitico", ou "tributrio", tal

11 como existiu no antigo Oriente Prximo. Ele cr tambm que, nos grandes vales fluviais irrigados e urbanizados (Egito, Baixa Mesopotmia), a forte centralizao palatina levou, j no III milnio a.C.,a um redimensionamento to profundo das comunidades aldes, que elas perderam a maior parte de sua autonomia e importncia econmica - talvez tenhamos a uma apreciao exagerada, como veremos. Nas regies menos nucleares do antigo Oriente Prximo (Palestina, Sria, sia Menor, partes da Assria), pelo contrrio, o sistema de comunidades de aldeia teria sobrevivido com fora, mantendo reconhecvel seu carter comunitrio tradicional at pelo menos 1200 a.C., aproximadamente. Como foi possvel a transio de aldeias indiferenciadas situao de desigualdade e domnio que se configurava j claramente desde o III milnio a.C.? Obviamente, o ponto de partida tem de ser um incio de diferenciao funcional no seio das prprias comunidades aldes, tanto devido a fatores internos quanto por impactos externos (comrcio intercomunitrio ou de longo curso, guerra, influncias diversas). Tal diferenciao, ao ocorrer, se cristaliza no plano do prestgio, do ganho e do poder decisrio: certos "notveis" sados das famlias mais' importantes passam a manipular de fato, por sua influncia e formas materiais de presso, as decises do "conselho de ancios" da aldeia. A origem primeira da diferenciao pde decorrer do fato de que certas famlias, mais numerosas que outras, concentraram o controle de mais lotes de terra comunitria e mais cabeas de gado do que as demais; ou de que as famlias estabelecia das h mais tempo na aldeia tivessem privilgios negados s mais recentes; ou ainda do resultado da distribuio desigual de bens provenientes do comrcio intercomunitrio ou de longo curso. Seja como for, quem alcanasse posies vantajosas tentaria garanti-Ias para seus filhos. Com o tempo, estabelecia-se uma diferena entre os que trabalham e os que dirigem o trabalho alheio; entre os que decidem e os que executam; entre os que realizam trabalhos "comuns" (agrcolas) e "especializados" (de transformao, troca, administrao). Quando as mudanas desembocam plenamente na urbanizao e na organizao estatal, trs setores sociais bsicos so perceptveis: 1. A imensa maioria da populao dedica-se s atividades agropecurias, consumindo diretamente parte do que produz e entregando o resto ao poder central; tal populao no participa das decises comuns. 2. Um grupo muito minoritrio se ocupa com atividades artes anais, de troca, de administrao, religiosas; mantido pela redistribuio dos excedentes extrados das aldeias, e no participa das decises comuns. 3. Um grupo nfimo organiza o trabalho das comunidades, pelas quais sustentado, e decide por todos; este poder de deciso tende a personalizar-se, a ter como expoente uma s pessoa. A ampliao do corpo social, que passa a englobar numerosas comunidades aldes, mais os ncleos urbanos, leva a uma coeso cada vez mais artificial e menos automtica; se tal coeso na aldeia decorre de relaes de parentesco e vizinhana e de decises tomadas por representantes das famlias nas confederaes tribais amplas e, mais ainda, num Estado, recorre-se sano divina do poder e da ordem social. O governante supremo passa a situar-se num plano diferente do que caracteriza o resto da sociedade: a sacralidade facilita a aceitao das decises pela maioria no consultada. A contraparte dos excedentes recebidos das comunidades de tipo administrativo, mas sobretudo ideolgico: o rei, ou governante, o garantidor da justia - ordem csmica aplicada a casos particulares - e da fertilidade da terra e dos rebanhos, utilizando-se, para tal, de meios sobrenaturais. O palcio e o templo so impensveis sem a aldeia, mas esta, ao inserir-se no interior de um sistema palatino, sofre transformaes: j no a aldeia autnoma do Neoltico; assim, os dois nveis bsicos da integrao social so interdependentes. No entanto, as relaes entre eles so de iniciativa exclusiva do nvel superior, manifestando-se na taxao, no recrutamento militar, na represso. Existe uma tenso, um hiato de interesses e mesmo de compreenso entre ambos os nveis, que a ideologia oficial tenta ocultar, difundindo a imagem de uma sociedade homognea

12 em que todos - do mais pobre campons ao mais exaltado funcionrio - so "servos" do monarca, que, por direito divino, o senhor de suas vidas e o dispensador da abundncia.

A Baixa Mesopotmia IntroduoA Mesopotmia - vale fluvial do Eufrates e do Tigre - pode ser dividida em duas partes, respectivamente a noroeste e a sudeste do ponto em que os dois rios mais se aproximam um do outro: a Alta Mesopotmia, mais montanhosa, e a Baixa Mesopotmia, imediatamente ao norte do golfo Prsico, regio extremamente plana. Enquanto o povoamento da Alta Mesopotmia deu-se desde tempos prhistricos muito antigos, a Baixa Mesopotmia - potencialmente frtil, mas pouco adequada agricultura primitiva de chuva - no parece ter sido ocupada em carter permanente antes do V milnio a.C., durante a fase de Ubaid, talvez entre aproximadamente 5000 e 3500 a.C. - basicamente neoltica ou, mais exatamente, calcoltica, pois objetos de cobre j aparecem em pequeno nmero a partir de 4500 a.C. A fase arqueolgica seguinte, a de Uruk (aproximadamente 3500-3100 a.C.), viu os primrdios da urbanizao e da escrita, inovaes que se consolidaram no Perodo Inicial do Bronze (3100-2100 a.C.), iniciado com a fase de Jemdet-Nasr (aproximadamente 3100-2900 a.C.), considerada como a poca da verdadeira revoluo urbana. O espao de que dispomos neste livro no permite uma apresentao, mesmo sumria, das etapas por que desde ento passou a histria da Baixa Mesopotmia. (Ver o quadro 1.) Pela mesma razo, no ser possvel fazermos justia cabal s heterogeneidades regionais, por muito tempo tpicas de uma civilizao cuja unidade sociopoltica bsica foi, primeiro, a cidade-Estado. A gravitao das numerosas cidades-Estados da Baixa Mesopotmia no deixou de se fazer sentir mesmo quando, a partir de 2371 a.C., aproximadamente, tentativas de unificao imperial se sucederam, cada vez mais consistentes. Do ponto de vista etnolingustico, o povoamento da Baixa Mesopotmia, no perodo histrico, esteve marcado por dois grupos iniciais: os sumrios, que se julgava terem migrado por mar para a regio, mas arqueologicamente se vinculavam ao sudoeste do Ir (o Elam, ou Susiana), e falavam uma lngua aglutinante; e os acdios, que falavam uma lngua de flexo do grupo semita, e provavelmente vieram do oeste. O elemento sumrio predominava ao sul (pas de Sumer, ou Sumria) da Baixa Mesopotmia, e o acdio, ao norte (pas de Akkad, ou Acdia). A verdade, porm, que, quando comeamos a ter mais informaes, em meados III Milnio a.C., esses grupos estavam j bastante mesclados. No milnio seguinte, a fuso se completou; predominaram, desde ento, as lnguas semitas: o acadiano, o babilnio dele derivado e, por fim, o aramaico. Com o tempo, o mapa etnolingustico se complicou devido a sucessivas migraes - que s vezes desembocavam em invases violentas - de nmades semitas vindos do oeste atravs do deserto da Sria (amorreus, ou amorritas, arameus, caldeus) e de montanheses do leste (gtios, elamitas, cassitas; estes ltimos, provavelmente dirigidos por um reduzido grupo de lngua indo-europeia) ou do norte (os assirios, que representavam um velho povo da Alta Mesopotmia, posteriormente semitizado) .

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As foras produtivas na Baixa MesopotmiaOs grandes rios da Mesopotmia tm uma cheia mais irregular do que a do Nilo em sua cronologia e incidncia. As guas sobem, em princpio, entre maro e maio, e baixam entre junho e setembro. A enchente se caracteriza por sua grande violncia: o Eufrates e o Tigre, ao descerem velozmente, durante a cheia de zonas montanhosas, a uma regio absolutamente plana, depositam enormes quantidades de aluvies - limo misturado com cal - e, embora a corrente se faa mais lenta na plancie, como natural, ainda suficiente para causar muita destruio. Ora, quando as guas sobem, as plantaes j foram semeadas h vrios meses; a inundao poderia, em tais condies, destruir os campos cultivados e pr a perder todo o trabalho. Isto torna imperativo um sistema de diques e barreiras de proteo, e ao mesmo tempo preciso acumular gua e cavar canais que irriguem os campos durante os meses de seca; em suma, necessrio um sistema completo de proteo e de regadio, de caractersticas perenes.

Dos rios, o Tigre, mais violento e cujo leito baixo demais em relao s margens, menos til para a irrigao, enquanto o Eufrates sempre teve mais possibilidades de aproveitamento, j que corre acima do nvel da plancie. Os dois j mudaram de leito vrias vezes. O Eufrates, alm disto, sempre correu por mais de um leito ao mesmo tempo: no III milnio a.C., o principal dos trs canais naturais deste rio era o que passava pela cidade acadiana de Kish; o da cidade de Babilnia se tornou o mais importante no final do milnio seguinte. A mudana de curso dos rios significava igualmente uma transformao gradual dos assentamentos e das concentraes demogrficas. Por outro lado, a plancie no constitui uma zona integralmente frtil. No caso da Sumria, por exemplo, as cidades-Estados constituam dois grupos principais, separados pelo deserto de Edin: a oeste, as cidades de Nippur, Shuruppak, Uruk, Ur e Eridu; a leste, alm do deserto, as de Abad, Zabalam, Umma, Bad- Tibira e Lagash. O terreno cultivvel formava, alm do mais, manchas mais ou menos separadas entre si. As condies ecolgicas explicam que a agricultura de irrigao, ao impor trabalhos considerveis embora no necessariamente transcendam a esfera local, como veremos -, torna impossvel uma organizao individualista da agricultura. As

14 obras de proteo e de irrigao exigiam, para serem construdas, limpas e conservadas, um esforo coletivo; e o seu uso devia ser regulamentado e disciplinado pela lei. A dependncia para com os diques e instalaes de irrigao era to grande que h casos historicamente comprovados de reverso vida nmade, devido sua destruio local. No caso do Eufrates, o trabalho em si de cortar a margem no apresenta dificuldades especiais, e com o sistema de diques de proteo, tanques, canais principais e regos, a cheia fertiliza o solo com seus aluvies, e pode-se ter gua abundante durante o ano todo. O problema maior consiste em ser a regio absolutamente plana, o que dificulta o escoamento do excesso de gua, que se imobiliza em charcos e tende a impregnar a terra de sal e gesso. Tal problema, assinalado j em fontes do III milnio a.C., no foi solucionado na Antiguidade; a drenagem insuficiente causou, frequentemente, o abandono de amplas superfcies de terra, que antes haviam sido frteis. Os canais, cortados nas margens altas, eram reforados pelo acmulo de aluvio, ao qual s vezes se somavam esteiras de junco. Muitos cursos naturais, correspondentes aos braos dos rios principais e aos tributrios destes, foram regularizados e canalizados, mesmo porque tambm serviam para a navegao. O sistema de regadio acompanhava tradicionalmente o curso do sistema fluvial natural, e foi mudando para acompanhar seus frequentes deslocamentos. O enorme esforo gasto era compensado por um rendimento muito considervel. Sem que aceitem rendimentos de 200 e at 300 gros colhidos para cada gro semeado, de que fala Herdoto (I, 193), os autores de hoje, baseando-se no testemunho menos espetacular dos prprios documentos mesopotmicos, admitem variaes de 8 a 103 gros colhidos para cada gro semeado, caindo depois de 2.000 a.C. para a mdia de 30 por um. Seja como for, trata-se de rendimentos importantes, alm de que, com frequncia, era possvel obter duas colheitas anuais. Isto sem dvida explica a grande concentrao demogrfica e a forte urbanizao da Baixa Mesopotmia, embora as estimativas tentadas variem muito. Para o final do III milnio a.C. e incio do seguinte, L. WooIley calculou, para a cidade de Ur, uma populao de 360000 habitantes. Outros autores acham, com maior verossimilhana, que a populao das cidades sumrias variava de 10000 a 50000 habitantes, aproximadamente, e que Ur - a maior delas - poderia ter uns 200000 habitantes. Tais clculos so frgeis, mas h dados indiretos que permitem comprovar o carter de "formigueiro humano" que apresentavam na Antiguidade os 30000 km de terras cultivveis da Baixa Mesopotmia. Em que medida pode-se aceitar, para a regio em estudo, uma "hiptese causal hidrulica", como a que foi discutida no primeiro captulo? Bem antes dos textos mais conhecidos de Wittfogel e seus seguidores, tal hiptese era j muito popular na primeira metade deste sculo, como podemos comprovar em obras como as do arquelogo australiano Childe e do historiador francs A. Morel. Mais recentemente, Saggs afirmava, em tom peremptrio, quea reunio de comunidades no sul. formando cidades, foi quase certamente ditada pelos rios: para control-Ios,utilizIos forma efetiva precisava-se da cooperao numa escala maior do que a que pequenas aldeias isoladas e primitivas poderiam prover.

No entanto, a tendncia dominante tem sido, cada vez mais, a que predomine a opinio que v na "hiptese causal hidrulica" uma simplificao abusiva de processos multicausais e complexos. Entre os que assim pensam, a opinio de R. M. Adams uma das que tm maior peso, j que ele um dos poucos arquelogos que levaram a cabo escavaes relativas aos sistemas mesopotmicos de irrigao. Ele mostrou que os padres bsicos de assentamento seguiam de perto os cursos dos principais rios,

15 caracterizando-se por sistemas locais de irrigao em pequena escala, desde aproximadamente 4000 a.C.Tal situao continuou a predominar mais tarde, apesar das considerveis obras hidrulicas levadas a cabo pelos governantes a partir de meados do III milnio a.C., obras que, seja como for, s foram iniciadas muito posteriormente urbanizao e ao surgimento da civilizao, o que desmente a "hiptese causal hidrulica". Como explicar, ento, o desenvolvimento das cidades-Estados sumrias? Embora este seja um tema mal conhecido - porque no o iluminam os textos decifrveis, j que, quando comeam, o processo de urbanizao j terminou -, provvel que a explicao tenha de ser multicausal e complexa, incluindo fatores como a prpria irrigao - ligada multiplicao dos excedentes agrcolas e ao crescimento demogrfico, sem os quais as cidades no poderiam ter surgido -, mas em conjunto com outros: religiosos, polticos, militares, populacionais etc. Os milnios IV e III a.C. viram constituir-se o sistema bsico da Mesopotmia da poca do Bronze e, no conjunto, do a impresso de um dinamismo maior das foras produtivas do que, por exemplo, o que se v no Egito da mesma poca. O arado de madeira mesopotmico, acoplado a um dispositivo por onde entravam os gros, permitia arar e semear ao mesmo tempo. A transio do cobre ao bronze se fez muito mais rapidamente do que no Egito, j no perodo protodinstico, e embora o metal fosse caro - j que os minrios tinham de ser integralmente importados -, seu uso para fins produtivos difundiu-se mais do que no Egito na poca do Bronze. O instrumento para elevao de gua baseado no princpio do contrapeso, conhecido pelos egpcios de hoje como shaduf, aparece representado na Mesopotmia por volta de 2000 a.C. e, no Egito, s uns seiscentos anos mais tarde. Mas convm no exagerar: o instrumental agrcola era, no conjunto, bastante rudimentar. O metal s substituiu de todo a madeira e a pedra ao difundir-se o ferro, a partir de .fins do II milnio a.C. Enxadas, picaretas e machados eram de cobre e depois de bronze. Mas o arado foi, durante muitos sculos, feito de madeira, bem como a foice - na qual se inseriam pedras cortantes de slex - e o tren usado para separar o gro da palha - prancha sob a qual se fixavam pedras pontudas. Como os instrumentos de bronze no permitiam tosquiar as ovelhas, antes da Idade do Ferro a l tinha de ser arrancada. Um documento de aproximadamente 1700 a.C., que os especialistas chamaram de "almanaque do lavrador", descreve os trabalhos agrcolas, que comeavam logo depois das chuvaradas de outubro-novembro. Tal texto menciona a necessidade de controlar a altura da gua antes de comear a preparar a terra. Previamente ao uso do arado, o terreno era trabalhado com picaretas, para torn-lo fofo; se necessrio, os torres eram quebrados com um malho. O arado, puxado por bois, abria sulcos separados por aproximadamente um metro, para evitar o esgotamento do solo. Cem litros de sementes bastavam para semear 20000 m - contra 5000 m atualmente. Depois da semeadura, os sulcos eram limpos; as sementes deviam ser protegidas contra insetos e pssaros, e regadas em quatro ocasies. A colheita - de abril a junho ou julho - era realizada pela sega com a foice; as espigas eram cortadas curtas, e os caules do cereal, queimados. interessante notar que, segundo o "almanaque do lavrador", as diferentes operaes do ciclo agrrio acompanhavam-se de rezas a diversas divindades. Tanto na agricultura quanto no artesanato, a produtividade do trabalho parece ter sido baixa, o que era compensado mediante o uso macio de trabalhadores. Trs mulheres deviam trabalhar oito dias, por exemplo, para fiar e tecer um pano de 3,5 X 4 m. A diviso tcnica do trabalho artesanal e agrcola teve pouco desenvolvimento, predominando a cooperao simples, onde todos os trabalhadores realizam as mesmas operaes. Na economia da Baixa Mesopotmia, as fomes e crises de subsistncia eram frequentes, causadas pela irregularidade da cheia, como tambm pela guerra, que destrua as instalaes de irrigao ou as colheitas. Uma dessas crises acompanhou a

16 queda do Imprio de Ur, em 2004 a.C. Outro perodo de crises econmicas relativamente bem conhecidas ocorreu nas cidades de Eshnunna, Ur e Larsa, pouco antes da expanso imperial de Hammurapi, no sculo XVIII a.C.; mas no se deu ento a mesma coisa em Mari e Babilnia. A economia continuava no-unificada e os transportes eram lentos. Quando a guerra ou a incidncia de calamidades naturais afetavam o equilbrio instvel inerente a foras produtivas apesar de tudo insuficientes ou precrias -, numa sociedade marcada por extremas desigualdades, o resultado era o endividamento e o aumento do sofrimento dos agricultores mais pobres e do povo em geral.

Descrio das principais atividades econmicas na Baixa MesopotmiaA agricultura intensiva era a base da vida econmica e da urbanizao. Os textos sumrios anteriores ao Imprio de Akkad permitem conhecer com algum detalhe as atividades agrcolas desde meados do III milnio a.C. O cereal mais cultivado era a cevada, usada como alimento humano e do gado, e como matriaprima para fabricao de cerveja. Diversos tipos de trigo eram tambm plantados, alm do ssamo (gergelim), do qual se extraa o azeite para alimentao e iluminao. Os textos mencionam igualmente legumes, razes, pomares de rvores frutferas, e mesmo rvores plantadas para obteno de madeira, muito escassa na regio. O cultivo da tamareira da qual se aproveitavam os frutos, fibras e madeira ordinria - exigia o uso da polinizao artificial. Desde o Neoltico, a agricultura se associava pecuria: criavam-se ovinos, caprinos, sunos, bovinos e muares. O gado bovino era usado como animal de tiro para o arado e para os carros - estes tambm podiam ser puxados por asnos; o cavalo s se difundiu no II milnio a.C. -, alm de fornecer carne, um alimento de luxo, e leite. A l das ovelhas era a matria-prima bsica para a produo txtil, embora tambm se conhecesse o linho e, bem mais tarde, o algodo. O asno era o meio de transporte terrestre mais importante. Sabe-se que os rebanhos eram muito numerosos desde o III milnio a.C., e que s vezes eram importados animais de boa raa para aprimoramento das espcies criadas. H prova documental da importncia persistente da pesca (no golfo Prsico, nos pntanos costeiros, rios e canais), que empregava um pequeno barco feito de molhos de junco tranado, anzol e rede. A caa, atividade complementar, era bem menos vital. Praticava-se a coleta em terras pantanosas, especialmente para obteno do junco, que, alm de ser usado em cestas, barcos, cordas e cabos de ferramentas, constitua o material de construo, por excelncia, de cabanas rurais. A argila era tambm matria-prima essencial, usada na fabricao de cermica, tijolos. Existiam numerosas especializaes artesanais. Os textos e algum material iconogrfico - muito menos rico do que o egpcio - permitem-nos conhecer a produo de cerveja, vasilhas (de argila, sobretudo, mas tambm de pedra, madeira e vidro), tijolos - secos ao solou cozidos no forno -, que eram a base de todas as construes, objetos de metal, txteis, objetos de couro (sandlias, roupa, equipamento militar, odres, sacos, guarnies de carros, certas embarcaes), artigos de madeira etc. Os textos da III Dinastia de Ur, por exemplo, mencionam escultores, ourives, cortadores de pedra, carpinteiros, forjadores de metais, curtidores, alfaiates, calafates. Havia grandes oficinas pertencentes aos templos e palcios; assim, no final do III milnio a.C., em trs localidades prximas cidade de Lagash trabalhavam 6.400 artesos txteis em oficinas estatais. Mas tambm existiam oficinas familiares, e nas cidades os artesos se agrupavam em ruas especiais. O desenvolvimento da produo era dificultado pela escassez de combustveis, matrias-primas, metal para

17 as ferramentas, cujo abastecimento dependia quase totalmente da importao. Mesmo assim, certas unidades de produo empregavam muita mo-de-obra, especialmente os moinhos e as manufaturas txteis. O comrcio local e o entre as cidades da Baixa Mesopotmia, utilizando a navegao nos rios e canais para o transporte, implicavam poucos riscos, mas a concorrncia era grande. Muito mais importante foi o comrcio de longo curso. J aproximadamente em 4.000 a.C., a obsidiana e o slex eram importados do leste, e o asfalto, do curso mdio do Eufrates. Na fase de Jemdet-Nasr, alguns textos j mencionam um "chefe dos agentes comerciais" entre os funcionrios das cidadesEstados. que a Baixa Mesopotmia s conta com pouca madeira, de m qualidade, faltando-lhe de todo pedra e metais. At as grandes ms de pedra dos moinhos tinham de ser incomodamente importadas. Assim, excedentes agrcolas e produtos manufaturados (especialmente txteis de l) foram desde cedo mobilizados para serem trocados no exterior por matrias-primas (madeira, cobre, estanho, pedras duras) e por artigos de luxo (ouro, prata, lpis-Iazli, tecidos estrangeiros etc.). A principal rota terrestre para o norte e o oeste, percorrida por caravanas de asnos, ganhava a sia Menor atravs da Assria, que ficava na parte leste da Alta Mesopotmia. Por mar, havia contatos frequentes com Dilmun - atual Bahrein -, com outros pontos da Arbia e, indiretamente, com a ndia. Os comerciantes mesopotmicos mantinham uma rede de agentes e correspondentes ao longo das rotas comerciais. Apesar de riscos considerveis, desde que deixou de ser monoplio exclusivo dos palcios e templos, o comrcio de longo curso passou a permitir considervel acumulao privada de riquezas - mesmo porque se associava compra de terras e escravos e ao emprstimo a juros. A economia era protomonetria: no houve moeda cunhada antes do domnio persa, mas a cevada e os metais (prata e cobre, sobretudo) funcionavam como padro de valor e unidade de conta nas transaes. No comrcio exterior o pagamento podia ser feito com lingotes de metal. Em certas ocasies falhava o abastecimento de matrias-primas importadas, afetando as atividades de transformao. Na poca do apogeu do Imprio de Akkad, por exemplo (sculo XXIV a.C.), houve uma reverso passageira do bronze ao cobre, aparentemente porque faltou o estanho.

Propriedade e relaes de produo: interpretao das estruturas econmico-sociais na Baixa MesopotmiaEscreveu certa vez o arquelogo Petrie:A ideia de propriedade no absolutamente uma abstrao simples; de fato to complexa em suas variadas naturezas que se trata de uma generalizao que no podemos esperar encontrar em uma sociedade arcaica. Existem vrias modalidades de propriedade, to diferentes entre si que, para a maneira concreta de perceber, nada tm em comum. Existe o lote de terra tribal. ocupado unicamente em usufruto e usado s como um meio de trabalho. Existe a arma ganha ao inimigo, ou o saque de assentamentos. que o prmio da bravura. Existe a poro de manteiga feita pela dona-de-casa. e que ser consumida. Existe o chifre esculpido, que serve para beber, produto de um artesanato individual. guardado como herana de famlia. Estas diferentes modalidades de coisas no so percebidas como similares em sua origem, na natureza da posse sobre elas. ou em sua finalidade. Generaliza-Ias todas como propriedade no , absolutamente, algo bvio.

Embora Petrie no estivesse pensando, aqui, numa sociedade como a da Mesopotmia e, sim, numa cultura como a dos celtas da fase pr-romana, esta passagem serve para alertar-nos sobre um ponto importante: quando empregamos o termo propriedade, muitas vezes lhe associamos, automtica e implicitamente, uma noo unificada e absoluta de propriedade, tpica da tradio ocidental que remonta ao

18 Direito Romano. Ora, tal noo, no sendo adequada nem pertinente ao se tratar do antigo Oriente Prximo, pode conduzir a becos sem sada e a falsas percepes. Nas terras pertencentes aos templos sumrios do lII milnio a.C., por exemplo, havia extenses considerveis cuja renda era revertida ao rei e a membros da famlia real. Seriam, por tal razo, "propriedade" do rei e de seus familiares? Um sumrio no veria assim as coisas, nem sentiria necessidade de fazer tal pergunta. Mas, se a renda dessas terras, sistematicamente, no ia para os templos, que significa dizer que tais terras pertenciam a eles? Outrossim, o rei e a famlia real dispunham tambm de terras prprias: uma parte do rendimento delas derivado podia, no entanto, destinar-se a financiar despesas dos templos, como ocorria no perodo da III Dinastia de Ur. Vejamos outro exemplo: Na antiga Baixa Mesopotmia havia seres humanos que chamamos de escravos, pois pertenciam a pessoas que podiam vend-Ios, leg-Ios ou alug-Ios, bem como castig-Ios fisicamente, marc-Ios com signos de propriedade e faz-Ios trabalhar. Com algumas excees - sob a III Dinastia de Ur, por exemplo, os prisioneiros de guerra escravizados (namra) careciam de status jurdico -, tais escravos, porm, podiam casar-se com pessoas livres, ter bens, intentar aes em justia; e pagavam impostos. De certa forma eram "propriedade" de seus donos, mas certamente no no mesmo sentido e extenso em que o eram os escravos no mundo greco-romano clssico. Poderamos dar outros exemplos, mas importante que fique registrada apenas a seguinte advertncia: o uso de termos comuns no garante, ao se tratar de sociedades to diferentes da nossa, que o seu significado permanea necessariamente o mesmo.

O III Milnio a.C..O polo "palatino" da sociedade histrica da Baixa Mesopotmia, ou seja, uma classe dominante mais ou menos confundida com o aparelho de Estado, j havia surgido claramente na passagem do IV para o III milnio a.C. - fase de Jemdet-Nasr; ento aparecem, nos documentos, funcionrios como o chefe da cidade-Estado, que era tambm sumo sacerdote (en), o chefe dos agentes comerciais, a grande sacerdotisa, e outros. A partir de meados do III milnio comeamos a perceber outros elementos da organizao estatal: o sistema de tributos in natura e "corveias" trabalhos forados, por tempo limitado, para obras pblicas, servios para o grupo dirigente e servio militar - imposto populao, e destacamentos militares recrutados entre os dependentes do templo, o que permitia a existncia de um ncleo de fora policial e militar independente da milcia camponesa convocada em poca de guerra. Nas cidades-Estados da Baixa Mesopotmia, no polo dominante estatal, o setor dos templos por muito tempo predominou sobre o do palcio, aparentemente mais tardio, mas ambos eram ligados entre si; a tendncia ao longo do III milnio a.C. foi ascenso dos "chefes" (en, ensi), que em certos casos assumiram o ttulo de "rei" (lugal) e, por fim, no perodo de Akkad, declararam-se de carter divino, em detrimento dos templos: o aparelho militar sob comando real se ampliou, independentemente das milcias dos templos, e as terras reais tomaram-se gradualmente mais extensas do que as dos santurios. At 1950, aproximadamente, foi popular entre os especialistas a tese da "economia-templo", ou "cidade-templo", sumria: os templos, acreditava-se, possuam toda a terra cultivada. Foi Diakonoff que demonstrou ser falsa tal opinio. Os templos talvez ocupassem, em meados do III milnio a.C., a metade do solo arvel; o resto dividia-se em terras do palcio e terras comunais - de famlias extensas e de comunidades aldes. A pesquisa posterior obriga a acrescentar um quarto elemento: a propriedade privada incipiente, que aparece em documentao publicada por D. O. Edzard e pode tambm ser deduzida do fato, iluminado pelo prprio Diakonoff, de

19 se darem vendas de terra comunal a indivduos que nem sempre representavam o Estado. Devemos, ento, imaginar o funcionamento da economia baixo-mesopotmica a partir de duas estruturas bsicas, que correspondem ao que Liverani chama de "modo de produo palatino" e "modo de produo domstico", ou "aldeo": 1. Os complexos econmicos organizados em cada cidade-Estado volta dos templos e do palcio real, alm de concentrarem os resultados dos impostos e corveias que a maioria da populao devia redistribudos aos dependentes em forma de raes -, controlavam terras prprias dotadas de sistemas de irrigao. 2. Por outro lado, as comunidades familiares, ou aldes, possuindo a terra coletivamente, utilizavam o esforo comunal para organizarem a irrigao, para a ajuda mtua, para se defenderem dos efeitos da usura - em anos de ms colheitas era preciso pedir gros emprestados, que nem sempre podiam pagar -, para a prestao de corveias e o pagamento dos impostos. Tanto a nvel de cada aldeia quanto da prpria cidade, existia um "conselho de ancios" e uma "assembleia" como rgos administrativos e para dirimir disputas, de clara derivao comunal e tribal. 5 Ao lado das duas estruturas polares da sociedade, a propriedade privada aparecia como algo ainda pouco importante; pode mesmo ter desaparecido momentaneamente durante o perodo estatizante da III Dinastia de Ur, como pretendem alguns autores. Ignoramos o detalhe da organizao econmica do complexo palacial, que segundo parece se baseou na dos templos. A organizao destes nos conhecida sobretudo por um exemplo, o do santurio da deusa Baba o segundo em importncia da cidade de Lagash, que tinha uma vintena de templos -, possuidor de 4.465 hectares de terra, nos quais trabalhavam 1.200 indivduos, sob a superviso de um sacerdote administrador, um intendente, um inspetor e grande nmero de capatazes e escribas. As suas terras se dividiam em trs blocos principais: uma quarta parte era cultivada diretamente para o templo, atravs de alguma mo-de-obra escrava, mas sobretudo do trabalho de dependentes juridicamente livres; o resto dividia-se em "terras de labor", dadas em arrendamento por 1/7 ou 1/8 da colheita, e "campos de subsistncia", em que pequenas parcelas eram distribudas aos agricultores, artesos, guardas, pescadores, escribas, serviais etc., que tambm recebiam raes. Os templos devem ser imaginados como enormes complexos, com terras, reservas de pesca, rebanhos, oficinas artesanais e uma participao direta e talvez predominante no comrcio de longo curso e nos emprstimos usurrios de prata e cereal. Os trabalhadores dependentes parecem ter tido origens variadas: refugiados estrangeiros transformados em "clientes" dos templos, membros de famlias e comunidades arruinadas pela usura. Quanto escravido, predominantemente feminina nesta poca, era importante na tecelagem, nos moinhos, no servio domstico, mais do que na agricultura. No perodo fortemente estatizante da III Dinastia de Ur, os lavradores dependentes (gurush), agora na sua imensa maioria instalados em terras estatais, j no recebiam lotes de subsistncia e, sim, somente raes: trabalhavam em tempo integral para o Estado, e suas raes, ao que parece, eram pequenas demais para que pudessem constituir famlia. Este sistema foi abandonado no milnio seguinte. Tambm a produo artesanal tornou-se, na poca, estatal na sua maioria, e os artesos eram muito vigiados. Como a escrita era usada sobretudo na administrao dos templos e palcios, as comunidades aldes so mal conhecidas. Tais comunidades somente aparecem em alguma documentao, sobretudo em contratos de venda de pores de terra comunal em que os vendedores so vrios - representando grupos de parentes e recebendo pores desiguais do pagamento em cobre e de "presentes" in natura --, e o comprador um s: o rei, um comerciante agiota, um funcionrio. Interpreta-se, portanto, este tipo de contrato como significando a venda de terra comunitria, sob coao poltica - o rei acadiano Manishtusu, por exemplo, comprou, " fora", grande

20 extenso de terreno de comunidades, para distribu-Ia em usufruto a dependentes seus - ou como resultado da usura. Os comerciantes (damgar) eram funcionrios a servio do palcio e dos templos, dos quais recebiam os produtos para serem trocados no exterior. No entanto, tambm faziam negcios por conta prpria; certos funcionrios aparecem, igualmente, comprando terras e realizando empreendimentos prprios, s vezes financiados por emprstimos dos templos, mesmo no perodo estatizante de fins do III milnio a.C.

O II Milnio a.C.Os historiadores esto de acordo em perceber trs tipos de propriedade sobre a terra na primeira metade do II milnio a.C.: 1. As extensas terras reais. 2. Os domnios dos templos, muito menos importantes do que no perodo sumero-acadiano. 3. As propriedades privadas, geralmente pequenas, mas numerosas; segundo alguns, predominantes em termos de rea total, afirmao difcil de ser provada. Um quarto setor objeto de divergncias: Diakonoff cr que as comunidades se mantivessem como proprietrias de terras coletivas ainda neste perodo, enquanto Komorczy acha que elas continuavam sendo rgos administrativos e judiciais, mas haviam perdido toda a importncia econmica nas reas mais dinmicas, conservando-se por algum tempo a propriedade comunal sobre certas terras, unicamente em regies mais atrasadas, perifricas. H muitos indcios de um desenvolvimento da propriedade e das atividades privadas nesta poca, e no somente no setor rural. Os tamkaru (mercadores) formavam, em Babilnia, uma corporao subordinada ao Estado, e faziam negcios a mando do governo. Mas tambm negociavam em proveito prprio, aproveitando-se da ampla rede de agentes que mantinham dentro e fora da Mesopotmia; praticavam, ainda, o emprstimo a juros, formavam sociedades mercantis, compravam terras e escravos. Um dos sinais de que tais atividades tinham importncia considervel o desenvolvimento do direito privado, que se expressa na atividade legislativa dos reis, em especial de Hammurapi (1792-1750 a.C.), fundador do Imprio Paleobabilnico. Outro sinal a frequncia com que, a prazos irregulares e sem aviso prvio - para no interromper as atividades de crdito -, os reis decretavam o misharum ("justia"), edito que anulava as dvidas e a escravido por dvidas, o que era uma forma de proteger a pequena propriedade privada da terra, a qual devia, portanto, desempenhar um papel importante. Nas terras reais encontramos trs setores: 1. A parte administrada diretamente pelo palcio, trabalhada por lavradores dependentes e pessoas que cumpriam a "corveia real". 2. Lotes arrendados, ou confiados a colonos aos quais o rei adiantava os animais de tiro -, contra uma renda in natura. 3. Pores (ilku) concedidas em usufruto a soldados e funcionrios em troca de servio; eram inalienveis mas transmissveis por herana. Embora a escravido continuasse existindo, alimentada pela guerra, pelo trfico, por condenaes judicirias e pelo no-pagamento de dvidas - neste ltimo caso foi limitada, por Hammurapi, a uma durao de trs anos -, os escravos eram raramente empregados no trabalho agrcola, mas com maior frequncia, nas oficinas artesanais e no servio domstico. A mo-de-obra agrcola compreendia lavradores dependentes (ishshakku) e tambm assalariados alugados por dia, em especial para a colheita, tanto nas terras do rei quanto nas de particulares. A sociedade dividia-se em trs categorias jurdicas: awilum, o homem livre que gozava da plenitude dos direitos; mushkenum, o homem livre de status inferior - talvez uma categoria de dependentes do palcio, e por este tutelados e protegidos; wardum, o escravo. Os direitos, deveres e privilgios desses grupos variavam de acordo com a sua categoria. Embora as menes aos mushkenu tenham comeado ainda no III milnio a.C., sua origem no clara, e a documentao disponvel no permite que se d razo em forma decisiva a alguma das numerosas teorias existentes a respeito.

21 O perodo paleobabilnico viu sem dvida um desenvolvimento das transaes mercantis e creditcias, mesmo na ausncia de moeda cunhada, e um incremento da diviso social do trabalho. Alguns acham que isto teria abalado as estruturas comunitrias das aldeias, mas tal coisa duvidosa. H indcios, outrossim, de uma grande heterogeneidade regional na Baixa Mesopotmia, que exemplificaremos. Uma pesquisa baseada em 1.600 documentos, que permitiram conhecer as atividades de cerca de 20.000 pessoas, mostrou, na cidade de Sippar, entre 1894 e 1595 a.C., a existncia de muitas famlias ricas sem conexes com os templos e o governo real, dedicadas agricultura e ao comrcio exterior, sendo que os ganhos comerciais eram investidos na compra de terras e na importao de escravos. Mesmo o rei de Babilnia vendeu terrenos rurais a pessoas de Sippar, que eram, em parte, arrendados. Eshnunna apresentava caractersticas similares s de Sippar, e Ur - centro da importao do cobre - estava, pelo contrrio, sob estreito controle estatal e mostrava menor pujana da iniciativa privada. O perodo seguinte - a segunda metade do II milnio a.C., ou perodo cassita da Babilnia - mal conhecido. Ao chegarem Mesopotmia, imigraes de povos ainda tribais (os cassitas, os arameus e, j no incio do I milnio a.C., os caldeus) revitalizaram as estruturas comunitrias. Por outro lado, a interrupo dos editos do tipo misharum significou o abandono da proteo aos pequenos proprietrios endivida dos, disto resultando a concentrao da propriedade do solo. Os santurios viram-se novamente com a atribuio de muitas terras, mas sob estreito controle real. Os reis cassitas doaram extensos apangios a seus parentes, a chefes militares e a funcionrios do palcio, isentando-os de corveias e impostos, como sabemos por monumentos inscritos de pedra (kudurru). A diferenciao sociojurdica entre os awilu e os mushkenu continuou em vigor, prolongando-se at o milnio seguinte.

O I milnio a.C.A Baixa Mesopotmia - sob domnio s vezes somente nominal de Babilnia estava, na primeira parte do I milnio a.C., inicialmente sob a influncia indireta dos assrios e, depois, sob seu governo. Babilnia, Sippar, Nippur, Uruk faziam parte, porm, de um grupo de cidades privilegiadas, centros agrcolas e manufatureiros no caso de Babilnia, "cidade santa" -, em cujas estruturas internas os dominadores do norte pouco intervieram. Os assrios favoreceram os templos com muitas doaes, mantendo-os, porm, sob controle estatal. As comunidades aldes foram reformuladas: as famlias camponesas em muitas regies do imprio vindas de outras plagas, segundo o sistema assrio de deportaes de populaes inteiras deviam entregar certas taxas in natura ao governador provincial, enquanto a aldeia, em bloco, devia outras taxas ao rei. Esta reorganizao rural assria afetou poucas regies na Baixa Mesopotmia, onde muitas das cidades gozavam de privilgios fiscais e conservavam suas prprias leis e instituies, incluindo as assembleias e conselhos de ancios (aldees e urbanos), de tradio muitas vezes milenar. Embora as numerosas guerras do perodo tenham intensificado a escravido, esta continuou constituindo um aspecto secundrio das relaes de produo. Ao domnio assrio sucedeu-se o Imprio Neobabilnico (626-539 a.C.). Nesta fase - a ltima da histria independente de Babilnia -, os templos tiveram outra vez um papel fundamental na economia. Um nico templo (o Eanna, de Uruk) possua, em meados do sculo VI a.C., 20.650 hectares de terra conhecidos, que eram, como se sabe, s uma parte de um conjunto ainda mais vasto. No entanto, o dzimo real atingia todas as terras, inclusive as dos templos, e a ingerncia do Estado na economia dos santurios foi causa de forte oposio sacerdotal ao rei Nabonido. As propriedades do palcio, menos conhecidas, eram tambm importantes. Os domnios dos templos eram em grande proporo arrendados a pequenos parceiros, que entregavam parte da colheita (erreshu), ou a pessoas de posses (os arrendatrios ikkaru), que arrendavam grandes extenses de terra por perodos

22 longos, para explor-Ias mediante trabalhadores (sab); estes podiam ser livres ou escravos, os quais se alugavam coletivamente: formavam "tropas" errantes em busca de trabalho. As terras administradas pelo prprio templo eram cultivadas por agricultores dependentes, que, tal como os pastores e os artesos do santurio, recebiam alimentos, roupas e prata em troca de trabalho. A renda de certas terras era dada em prebenda a trabalhadores graduados e dignitrios do templo, correspondendo a dias de servio, e os titulares podiam negociar com ela. A importncia social dos complexos dos santurios era tanta que se pode falar de uma espcie de "sociedade dos templos", muito estratificada, dentro da sociedade babilnica global. Esta "sociedade dos templos" (shirkatu) estava constituda por indivduos que haviam sido consagrados divindade por seus pais ou outras pessoas, formando uma hierarquia que ia desde grandes personagens - possuidores de terras e escravos, e que participavam do grande comrcio - at agricultores, pastores e artesos dependentes. Nota-se a ligao dos templos com a sociedade global no fato de que o grupo de "notveis" (os mar bani), que ocupava o topo da sociedade mesopotmica, exercia prebendas nos templos e era formado por "ancios" dos conselhos ou tribunais que funcionavam no interior dos santurios. possvel que as grandes oficinas artesanais e o intenso comrcio exterior tenham sido majoritariamente controlados pelos templos. Mas os comerciantes tamkaru continuavam ativos, ligados ao palcio: o principal tamkarum do rei Nabucodonosor tinha nome fencio, e sabemos que as cidades de Tiro e Sidon ocupavam lugar privilegiado no comrcio do Imprio Neobabilnico. Havia verdadeiras firmas privadas, como os Egibi, de Babilnia, e os Murashu, de Nippur, que investiam no comrcio, possuam terras - que em parte arrendavam - e atuavam como bancos. No perodo persa no houve grandes mudanas estruturais, mas com a introduo da moeda cunhada deu-se, ao que parece, um empobrecimento ainda maior dos camponeses de menos recursos. Apesar do grande desenvolvimento da propriedade privada, da economia mercantil e da escravido, concordamos com Adams quando afirma o seguinte a respeito das comunidades aldes:(. . .) o papel das comunidades corporativas na agricultura mesopotmica permaneceu substancial no apenas durante o 1/ milnio. mas at muito mais tarde. Seu nmero e influncia sobre o curso dos acontecimentos seguramente foram sujeitos a fIutuaes. mas enquanto tais comunidades so fracas. individualmente, coletivamente parecem quase indestrutveis. Em suma, elas eram regularmente minadas e continuamente geradas de novo por um contexto mais amplo de incerteza ecolgica. de presses no sentido de sua subordinao ao crdito e ao poder urbanos, de resistncia a tais presses. e de cristalizao e decadncia alternadas dos controles polticos e administrativos impostos por dinastias sucessivas.

Este fato pode ser ocultado por uma documentao de origem maciamente urbana e no-rural, e pela insistncia dos poderes constitudos s nas formas legais de propriedade, deixando na sombra - por no mencion-Ias - as modalidades informais e consuetudinrias de acesso ao solo e gua, que nem por isso cessavam de existir e de ter grande peso nas zonas rurais.

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O Egito faranico IntroduoComo rea de assentamento permanente, o antigo Egito sinnimo das terras imediatamente atinentes ao curso do rio Nilo: do Mediterrneo, ao norte, at a atual Assuan, ao sul, onde comeava a Nbia. Rio perene, em zona desrtica, o Nilo era a garantia da vida num pas onde a agricultura de chuva representava uma impossibilidade. Por razes que tanto a Histria quanto a Geografia justificam, usual a distino entre o Baixo Egito, que compreende o delta do Nilo e uma pequena poro do vale fluvial imediatamente ao sul, e o Alto Egito, integrado pela poro do vale do Nilo, ao sul do atual Cairo e ao norte de Assuan. Era corrente, entre os egiptlogos mais antigos, acreditar numa espcie de "prioridade" do delta em matria de povoamento e civilizao, quando comparado ao vale que, no entanto, foi a regio de onde partiu a unificao do reino - mesmo se este continuou sendo visto como um pas duplo: o fara, ou monarca egpcio, era "rei do Alto e Baixo Egito", ou "senhor das duas terras". Atualmente, a tendncia inversa: estudos unindo a paleoecologia com mtodos arqueolgicos e histricos mostraram que o vale, no perodo chamado Pr-Dinstico que antecede o processo de unificao completado por volta de 3.000 a.C. -, era mais densamente povoado que o delta. Este ltimo manteve-se como zona de colonizao agrcola ao longo de boa parte da histria faranica, e qui s por volta de fins do 11 milnio a.C. sua populao tenha se igualado do sul em nmeros absolutos, conservando-se ainda inferior em densidade. O Egito foi povoado desde tempos pr-histricos muito remotos, mas provvel que o fator decisivo na formao do pas como o conhecemos na fase histrica tenha sido a constituio da ecologia atual da regio, com o vale do Nilo apertado entre colinas que o separam do deserto Lbico, a oeste, e do deserto Arbico, a leste. No passado, a agricultura e a criao de gado foram possveis numa faixa de vrios quilmetros de cada lado do curso do Nilo, e igualmente em vales tributrios, hoje secos. Porm, por volta de 3300-3000 a.C., isto , no final do Pr-Dinstico e na fase da unificao, uma forte queda da pluviosidade, ligada desertificao agora completa do norte da frica, tornou impossvel a vida agrcola fora do vale do Nilo. Isto estimulou o incio, ainda tmido, da irrigao artificial. A lngua egpcia antiga, na classificao de M. Greenberg, pertence famlia "hamito-semtica", ou "afro-asitica", o que a vincula, por um lado, a lnguas africanas (berbere, tchadiano) e, por outro, s lnguas semticas da sia Ocidental. Isso talvez reflita dados do povoamento do pas, onde elementos vindos do Saara, outrora frtil, se mesclaram com elementos chegados da Sria-Palestina, enquanto a arqueologia e outros dados mostram um forte influxo de negrides que desceram o curso do Nilo. Pretendeu-se mesmo, recentemente, que os antigos egpcios fossem total ou predominantemente negrides, mas a verdade que os elementos disponveis no permitem decidir a respeito, numa discusso marcada por fortes injunes ideolgicas (negritude, unidade africana). Como no caso da Baixa Mesopotmia, o espao disponvel neste livro nos probe at mesmo fazer uma resenha rpida das etapas da histria faranica do Egito. (Ver o quadro 2.)

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As foras produtivas no Egito Sobre este tema, fizeram-se progressos muito grandes nos ltimos anos, o que talvez explique que em manuais recentes ainda se veiculem informaes falsas. O de Finegan, por exemplo, assim apresenta as fases da metalurgia, no caso do Egito:

Ora, esta projeo da cronologia das fases da metalurgia da sia Ocidental sobre o Egito absurda, pois a sequncia correta a que apresentamos no quadro 2: a um longo perodo de emprego do cobre, endurecido com arsnico, segue-se uma fase ainda inicial do bronze no Reino Mdio - baseada, parece, na importao de lingotes prontos ou na fuso de minrios contendo, em forma natural, cobre e estanho, sendo que continuava persistindo amplamente o uso do cobre - e, depois, uma fase plenado bronze como resultado da introduo, por invasores asiticos (hiesas) de tcnicas mais aperfeioadas de metalurgia, permitindo finalmente a fuso simultnea de minrios de cobre e de estanho; quanto ao ferro, embora conhecido desde a segunda metade do II milnio a.C., sua produo no teve qualquer importncia no Egito at a invaso dos assrios (sculo VII a.C.). Insistimos nisso porque no Brasil, ao que tudo indica, esses dados ainda so amplamente ignorados.

Tambm no tocante ao estudo da irrigao antiga, os progressos foram fantsticos nas duas ltimas dcadas, em especial devido s pesquisas de KarI Butzer e Barbara BeIl. Os nveis das cheias do Nilo, a populao egpcia e a superfcie

25 cultivada, antes tratados quase sempre como constantes - salvo fIutuaes acidentais -, passaram a ser vistos como variveis. O nvel do rio e de suas cheias variou segundo fases perceptveis nos tempos histricos; a populao aumentou ou diminuiu conforme as pocas, mudando a sua distribuio espacial, e o sistema de irrigao - de incio baseado quase todo nas bacias formadas naturalmente pelo rio - foi-se complicando e aperfeioando ao longo dos sculos para adaptar-se presso populacional - criando maior superfcie cultivvel e aos insumos de trabalho variveis. Ao mesmo tempo que as tcnicas da irrigao mudaram constantemente, as do cultivo e da colheita permaneceram, pelo contrrio, praticamente inalteradas, por serem adequadas s condies da agricultura egpcia. (Ver o quadro 3, cujos dados devem ser encarados somente como ordens de grandeza, admitindo importante margem de erro.)

Para o perodo que consideramos - da unificao at a conquista macednica -, os estudos de Butzer constataram maior densidade demogrfica no vale do que no delta e ocorrncia de diminuies da populao nas pocas de diviso e anarquia poltica (os trs perodos intermedirios do quadro 2). O sistema de irrigao egpcio era muito diferente do complexo sistema mesopotmico, porque as condies naturais eram muito diversas nos dois casos. A cheia do Nilo tambm fertiliza as terras com aluvies, mas muito mais regular e favorvel em seu processo e em suas datas do que a do Tigre e Eufrates, alm de ser menos destruidora. Sua fase principal comea em julho; isto quer dizer que nos meses de maior calor o solo arvel coberto pela gua, sendo protegido ao mesmo tempo em que fertilizado. Quando as terras voltam a emergir, em fins de outubro ou em novembro, o momento adequado para a semeadura. Entre a colheita (abril-maio) e a nova cheia passa-se tempo suficiente para a limpeza e o conserto das instalaes de irrigao. No so necessrias, na maioria dos casos, as obras de proteo, absolutamente essenciais na Mesopotmia. Embora as circunstncias da agricultura irrigada egpcia, no perodo faranico, no permitissem mais de uma colheita anual, os rendimentos eram satisfatrios na maioria dos anos. Outrossim, o vale e o delta do Nilo so autodrenados ao passar os meses de inundao, ao contrrio do que acontece na Baixa Mesopotmia. Ao ocorrer a cheia, o rio invade uma srie de tanques naturais interconectados, formando conjuntos locais totalmente independentes uns dos outros quanto entrada e sada da gua. No incio do perodo histrico, uma agricultura irrigada herdada do Pr-Dinstico, adaptada s bacias, ou tanques, naturais - regularizadas e s vezes subdivididas e providas de diques de separao para o controle da entrada e sada do fluxo -, comeava apenas a criar tambm redes de canais pequenos para melhor distribuio da gua pelos campos. Com o tempo, o sistema passou por sucessivos aperfeioamentos e as

26 hortas e vergis situados em terrenos mais altos deviam ser regados com a gua transporta