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Sociologias, Porto Alegre, ano 2, nº 4, jul/dez 2000, p.66-87 O acontecimento foi escorraçado na medi- da em que foi identificado com a singularidade, a contingência, o acidente, a irredutibilidade, o vivido... Foi escorraçado não só das ciências fí- sico-químicas mas também da sociologia, que tende a ordenar-se à volta de leis, modelos, estruturas, sistemas. Tende até a ser escorraçado da história, que é, cada vez mais, o estudo de processos que obedecem a lógicas sistemáticas ou estruturais e cada vez menos uma cascata de seqüências de acontecimentos. Mas segun- do um paradoxo que se encontra freqüentemente ao nível da história das idéias, é no momento em que uma tese atinge as pro- víncias mais afastadas do ponto de partida, é neste momento que se opera uma revolução, precisamente no ponto de partida, que invalida radicalmente a tese. É no momento em que as ciências humanas se moldam segundo um es- quema mecanicista, estatístico e causalista, pro- veniente da física, é neste momento que a pró- pria física se transforma radicalmente e põe o problema da história e do acontecimento (Morin, 1982). Trabalho e sociedade em transformação SOCIOLOGIAS 66 DOSSIÊ Decisae/Unicamp MÁRCIA DE PAULA LEITE

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O acontecimento foi escorraçado na medi-da em que foi identificado com a singularidade,a contingência, o acidente, a irredutibilidade, ovivido... Foi escorraçado não só das ciências fí-sico-químicas mas também da sociologia, quetende a ordenar-se à volta de leis, modelos,estruturas, sistemas. Tende até a ser escorraçadoda história, que é, cada vez mais, o estudo deprocessos que obedecem a lógicas sistemáticasou estruturais e cada vez menos uma cascatade seqüências de acontecimentos. Mas segun-do um paradoxo que se encontrafreqüentemente ao nível da história das idéias,é no momento em que uma tese atinge as pro-víncias mais afastadas do ponto de partida, éneste momento que se opera uma revolução,precisamente no ponto de partida, que invalidaradicalmente a tese. É no momento em que asciências humanas se moldam segundo um es-quema mecanicista, estatístico e causalista, pro-veniente da física, é neste momento que a pró-pria física se transforma radicalmente e põeo problema da história e do acontecimento(Morin, 1982).

Trabalho e sociedadeem transformação

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DOSSIÊ

Decisae/UnicampMÁRCIA DE PAULA LEITE

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OIntrodução

rápido processo de reestruturação produtiva por que vempassando a economia global e as profundas transforma-ções que, à raiz desse processo, vêm atingindo o traba-lho desde o início dos anos 80 fizeram dele um dos te-mas mais debatidos da Sociologia. Apesar das previsões

de que o trabalho estaria deixando de ser a categoria chave da disciplina, namedida em que estaria perdendo a centralidade que sempre teve para aorganização da vida social (Offe, 1989), os estudos sobre o tema vêm-semultiplicando enormemente nos últimos anos, abarrotando as estantes denossas bibliotecas e escritórios. Contrariamente às previsões, o trabalhovem-se tornando um tema da moda.

Buscando entender as profundas modificações que vêm ocorrendoneste universo, os estudiosos se têm debruçado sobre suas várias manifes-tações, tentando, ao mesmo tempo, desvendar as transformações por queele vem passando e suas implicações para a sociedade. Da análise dastransformações restritas ao que se passa nos estabelecimentos econômi-cos, que caracterizaram o debate durante os anos 80, o olhar sociológico sevem deslocando cada vez mais para o tipo de sociedade a que essas trans-formações nos estariam conduzindo, retomando uma tradição cara à Socio-logia do Trabalho desde seus primórdios, a partir da qual a disciplina tempautado seus questionamentos, suas indagações, suas hipóteses e seusdesenhos metodológicos.

Nesse movimento, o trabalho vem sendo nos últimos anos um dostemas mais controversos da Sociologia. O leque de alternativas contempla-das e discutidas vai da imagem de uma sociedade da comunicação libertadadas carências, na qual poucas horas de trabalho seriam suficientes para quea humanidade tivesse suas necessidades materiais satisfeitas, a uma socie-dade apartada, caracterizada por uma grande massa de excluídos condena-

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dos ao trabalho árduo e desqualificado, marcado pela insegurança e baixarecompensa financeira. O presente texto pretende debater essas questõesa partir de uma discussão do quadro teórico metodológico que a Sociologiado Trabalho vem utilizando nos últimos anos.

O argumento central em torno do qual ele se organiza é de que,embora pareça que a Sociologia do Trabalho está perdida entre opiniõesabsolutamente contraditórias, aos poucos se vai conformando um mainstreamna disciplina, que tem apontado para a complexidade da realidade, insistin-do que, ao invés de situações polares e unidimensionais como as acimareferidas, presenciamos hoje a convivência de realidades muito diferenci-adas, que apenas uma visão mais sistêmica e interdisciplinar permite com-preender.

A interdisciplinaridade nos estudos sobre o trabalho

As preocupações que têm embasado os estudos sobre o trabalhonos últimos anos parecem indicar um movimento que busca cada vez maisa compreensão deste fenômeno a partir de uma visão sistêmica. Tentandovinculá-lo crescentemente a questões mais amplas, essa linha de pesquisavem enriquecendo significativamente seu olhar, relacionando-o a outrasesferas de análise, que se abrem para além do espaço empresarial, aindaque a ele interligadas, como as relacionadas ao mercado de trabalho, àsdiferenciações sociais de gênero, idade e raça, às políticas industriais e dedesenvolvimento, à globalização econômica e às relações internacionaispor ela induzidas, às novas institucionalidades, às novas formas degovernabilidade, etc.

Neste processo, a Sociologia do Trabalho foi também estreitandorelações com várias outras áreas do conhecimento, que se têm mostradofundamentais para auxiliar no desvendamento da intrincada realidade domundo do trabalho.

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O diálogo com a engenharia de produção, por exemplo, vem sendode enorme importância para ajudar a compreender as lógicas do processoprodutivo e da organização do trabalho, assim como para elucidar a dinâmi-ca do processo de inovação tecnológica, seu funcionamento e suas conse-qüências para o desempenho das empresas; da mesma forma, o debatecom a administração vem permitindo saltos significativos na compreensãodas novas formas de gestão da mão-de-obra, suas razões do ponto de vistaempresarial, bem como suas consequências para as condições de trabalho.

Já a colaboração da psicologia, especialmente a psicopatologia dotrabalho, vem-se dando, sobretudo, pelo fornecimento de um instrumentalde enorme validade para trazer à tona a subjetividade dos trabalhadores etrabalhadoras, permitindo que eles e elas pudessem passar a ser analisadoscomo sujeitos do processo de trabalho. Através da incorporação desta pers-pectiva, vem sendo possível trazer à tona os sentimentos e subjetividadespresentes nos locais de trabalho, bem como as condutas e ações que elesinformam.

Também o diálogo com o direito do trabalho vem sendo de grandevalia para iluminar os estudos sobre a desregulamentação dos direitos, bemcomo as análises sobre o conjunto de modificações que vêm ocorrendo nainstitucionalidade sindical. Tendo em vista o vulto e rapidez com que essastransformações vêm ocorrendo, esta parceria entre as duas áreas se apre-senta tão central quanto promissora, devendo estreitar-se significativamen-te nos anos vindouros.

A relação com a economia, especialmente a Economia Industrial edo Trabalho, áreas tradicionalmente próximas da Sociologia do Trabalho,vem sendo profícua sob vários pontos de vista. Valeria destacar, nesse sen-tido, a decisiva contribuição deste campo ao relacionar os processos queafetam o trabalho com o processo mais geral de globalização da economia,bem como ao evidenciar, através dos estudos voltados ao mercado de tra-balho, que os efeitos relacionados às melhorias das condições de trabalho,principalmente no que se refere à estabilidade, remuneração e qualificação

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da mão-de-obra – que muitos dos primeiros estudos sobre reestruturaçãoprodutiva identificavam nas empresas líderes dos setores de ponta dos pa-íses avançados - não atingem o conjunto do mercado de trabalho como sepressupôs inicialmente, mas apenas uma parcela dele.

Vale lembrar, finalmente, a importância do diálogo que se foi esta-belecendo com outras áreas da Sociologia. Os estudos sobre relações soci-ais de gênero e família, por exemplo, vêm sendo fundamentais para explicitara lógica da divisão sexual do trabalho no interior dos estabelecimentos eco-nômicos, da mesma forma que os estudos étnicos vêm permitindo umimportante aprofundamento da compreensão da discriminação de raça noslocais de trabalho e seus efeitos sobre as diferentes etnias.

Evidentemente, esse processo não está isento de contradições, difi-culdades e desafios, sendo o mais evidente deles o risco de que ainterdisciplinaridade acabe levando a uma perda de identidade das áreasque dialogam ou à dominação de uma área sobre a outra. Aos poucos,entretanto, vai-se fortalecendo a compreensão de que é fundamental quecada área preserve suas preocupações, mantendo vivas as questões e per-guntas de seu campo, ao mesmo tempo que busca uma visão mais comple-xa da realidade através do diálogo com outras áreas.

Em direção a uma nova metodologia

Esse movimento vem exercendo uma profunda transformação nosobjetos e focos de análise que foram paulatinamente se transladando dosestudos iniciais, centrados nas implicações sociais do processo dereestruturação produtiva a partir de pesquisas desenvolvidas em empresasindividuais, para projetos cada vez mais abrangentes. Alargando o escopode análise e propondo novas tematizações, esses estudos foram trazendo àluz um conjunto enorme de novas questões, entre as quais valeria destacaras segmentações do mercado de trabalho, as diferenças setoriais, as impli-

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cações diferenciadas do processo para as distintas empresas das cadeiasprodutivas tomadas em seu conjunto, as diferenças do processo brasileirocom relação ao dos países do Primeiro Mundo, só para ficar nas mais can-dentes.

Cabe ressaltar, ainda, que esse caminho se apresenta tão mais im-portante nos dias atuais quanto mais nos aprofundemos na discussãoepistemológica que vem sendo levantada por várias outras áreas da ciência,que têm insistido na complexidade do conhecimento científico; na impor-tância de se romper com as barreiras das especializações; na necessidadede se estabelecer a comunicação entre o observado e seu observador ou,em outras palavras, entre sujeito e objeto; na urgência de se considerar quea realidade não está determinada aprioristicamente a trilhar caminhosirreversíveis, mas está, antes, aberta a conflitos, contradições, acidentes eacontecimentos não previstos de antemão, que são capazes de moldá-la deformas diferentes, ainda que circunscritas ao interior de um universo depossibilidades.

É a partir desse quadro que valeria a pena discutir algumas questõesmetodológicas importantes que esse olhar tem informado, e que têm vindoà tona com as pesquisas mais recentes sobre o processo de reestruturaçãoprodutiva.

A compreensão de que a análise do processo de reestruturaçãoe suas implicações para os trabalhadores não pode ser feita apartir apenas do estudo de algumas grandes empresas

Se bem que a compreensão do que acontece nas empresas líderesseja fundamental na medida em que é delas que emanam estratégias quese difundem para a base produtiva em seu conjunto, tem-se mostrado cadavez mais importante abandonar o estudo de empresas isoladas e assentar apesquisa no conceito de cadeia produtiva, partindo de análises que indicam

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que a interdependência entre as empresas se faz cada vez mais forte, e asrelações interfirmas se mostram fundamentais para entender o que se pas-sa em cada uma das empresas tomadas individualmente. Nessa medida, asempresas vêm sendo estudadas como um elemento de um conjunto maior– cadeia produtiva – no qual elas se inserem com funções e com umadinâmica que só pode ser compreendida a partir da análise da cadeia emseu conjunto.

Os resultados de recente pesquisa que desenvolvemos na cadeiaautomotiva brasileira (Leite, 1999) são eloqüentes nesse sentido. Emborase refiram basicamente à discussão da qualificação, vale a pena citar osprincipais achados do estudo:

A primeira questão que chama a atenção naanálise da cadeia estudada se refere à enormediferença entre as condições de trabalho en-contradas em seu interior... Esse achado só podeser compreendido como uma conseqüência dasrelações que a montadora estabelece com seusfornecedores, as quais parecem ter muito pou-co a ver com a imagem de parceria. Pelo con-trário, a pesquisa evidenciou relações poucoformalizadas nas quais, ao invés de contratos,predominam, quando muito, acordos ou sim-plesmente pedidos de venda e o que prevaleceé a pressão pela redução de custos. Essa reali-dade parece estar na base da precarização dotrabalho conforme se caminha para o final dacadeia, que se explicita claramente nas condi-ções de trabalho encontradas nas fornecedorasde segundo nível, bem como na terceira produ-tora de estampados de aço... Evidentemente, o

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efeito desse tipo de relação sobre a mão-de-obra não pode ser outro senão a precarizaçãodo trabalho: se ele é menos sensível nas em-presas que trabalham com processos mais com-plexos, para os quais a precarização tem inevi-tavelmente sérias repercussões sobre a qualida-de do produto, o mesmo não acontece para asque trabalham com processos mais simples. Essatendência parece confirmar- se claramentequando se atenta para as diferenças das condi-ções de trabalho entre a montadora e seus for-necedores de autopeças. Convém destacar,nesse sentido, o achado de que, se namontadora o processo de requalificação da mão-de-obra parece real e extensivo à grande maio-ria de trabalhadores, o mesmo não acontecenas fornecedoras. Já para os fornecedores deprimeira linha, os resultados da pesquisa sãoevidentes de que o trabalho taylorizado se man-tém em setores importantes dessas empresasno que se refere à concentração da mão-de-obra. Nessas empresas, torna-se clara a separa-ção entre um core constituído pelos profissio-nais (basicamente aqueles que trabalham comas máquinas como tornos, fresas, laminadoras,extrusoras, etc..), que tendem a desenvolverum trabalho que se vai tornando cada vez maismental e aqueles que continuam a desenvolverum trabalho basicamente manual. Enquanto paraos primeiros parece haver um efetivo incremen-to da qualificação, tendo em vista a integração

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de tarefas de controle de qualidade, manuten-ção, preparação e otimização das máquinas, omesmo não acontece com os trabalhadores quecontinuam a desempenhar trabalhos manuaisrepetitivos e destituídos de conteúdo, entre osquais há uma nítida concentração de mulherese onde se encontram também os menores comque a pesquisa se deparou. Para este conjuntode trabalhadores - em geral trabalhadoras - oinvestimento das empresas tende a se restringirà escolarização, uma exigência cada vez maiordas normas de certificação da qualidade, que,via de regra não tem correspondência em umtrabalho mais intelectualizado, e a cursoscomportamentais, cujos conteúdos pouco têma ver com um incremento efetivo de sua quali-ficação, embora pressuponham um trabalho maisresponsável (Leite, 1999, p. 25-27).

O princípio não determinista

Esse princípio tem levado os estudos a partir da consideração deque, ao invés de uniformizar as estruturas produtivas nas várias regiões domundo, o processo de globalização pressupõe formas de inserção diferen-ciadas dos países na economia global, o que sugere que nem sempre o queocorre nos países centrais se repete ou se repetirá futuramente da mesmaforma nos demais países. Tal postura teórica nos tem orientado para a buscadas singularidades do processo brasileiro face à experiência internacional esuas implicações para a mão-de-obra, o que vem elucidando diferençassignificativas entre os dois processos. Recente pesquisa que desenvolve-

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mos sobre o tema na cadeia automotiva, por exemplo, revelou duas situa-ções bastante diferenciadas, conforme esclarece o trecho a seguir (Leite,1998):

Nos países centrais, o tipo de relaçõesinterfirmas que se está desenvolvendo na ca-deia automotiva apresenta aspectos bastantepositivos para as empresas fornecedoras, os quaisse expressam no estabelecimento de relaçõesde cooperação e confiança e na difusão demétodos e tecnologias ao longo da cadeia... Estequadro tem certamente implicações positivastambém para o trabalho: na medida em que asempresas passam a produzir com maior con-teúdo tecnológico, difunde-se a qualificaçãoentre sua mão de obra, que começa a ser esta-bilizada e melhor remunerada. Já no caso dospaíses em desenvolvimento, contudo, a rela-ção interfirmas adquire outras características.Haveria que se considerar em primeiro lugarque o processo de globalização significou paraas grandes montadoras uma mudança em dire-ção a uma política de utilização de projetos co-muns em suas várias fábricas ao redor do mun-do. Como esclarece Humphrey (1998, p. 5),por volta de 1990, a homogeneização dos pro-jetos estava ocorrendo nos Estados Unidos e naEuropa. A Ford, por exemplo, reestruturou suasoperações nesses países de forma a projetar,numa só localidade, modelos estandardizados aserem produzidos pelo conjunto de suas fábri-

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cas. Isto é parte de um processo mais geral deestandardização de modelos e redução do nú-mero de plataformas de projeto que passaram ase concentrar em apenas algumas fábricas daempresa. Com isso, a produção de modelosespecificamente desenvolvidos para os merca-dos locais, ou mesmo a introdução de mudan-ças significativas nos modelos projetados na Eu-ropa e nos Estados Unidos, como era comumacontecer até o final dos anos 70, deixou deocorrer. Esse processo teve impactos de enor-me importância para a indústria automotriz dospaíses em desenvolvimento. Em primeiro lugar,porque as montadoras reduziram muitíssimo osseus quadros de engenheiros envolvidos comP&D, na medida em que diminuíram sobrema-neira as atividades de projetos nesses países;em segundo lugar, porque passaram a se utilizarnessas localidades das mesmas fornecedorascom que trabalham nos países centrais. Tal po-lítica vem afetando profundamente o quadrode fornecimento na cadeia automotiva dos paí-ses em desenvolvimento. Conforme esclareceHumphrey (1998, p. 6), isso tudo permitiu queas montadoras passassem a procurar fornece-dores globais, já que idealmente elas necessi-tam das mesmas peças, com a mesmatecnologia, o mesmo sistema de qualidade e amesma base subjacente de comunicaçãointerfirmas qualquer que seja o lugar onde es-tão atuando. Esse processo se tem concretiza-

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do através de duas formas: o global sourcing(que consiste na importação pelas montadorasde partes produzidas por empresas de auto pe-ças que são suas fornecedoras nos seus paísesde origem) e o follow sourcing (que é a abertu-ra nos países em desenvolvimento de filiais dasempresas de auto peças que já atuam comofornecedoras das montadoras em seus paísesde origem). As implicações desse processo parao desenvolvimento tecnológico das empresasde auto peças instaladas nos países em desen-volvimento, bem como para o emprego e aqualificação dos trabalhadores no setor são ex-tremamente perversas. No caso do globalsourcing, as conseqüências danosas são maisdo que evidentes: o processo não cria empre-gos e não desenvolve a base tecnológica local;no caso do follow sourcing, embora o empregoseja criado, a difusão tecnológica local fica res-trita, seja porque o projeto vem da matriz,seja porque esses fornecedores acabam subs-tituindo as empresas nacionais, que sãorelegadas aos últimos níveis da cadeia produ-tiva ou simplesmente desaparecem do mer-cado (Leite, 1998, p. 5-6).

Vale lembrar ainda que esse conjunto de transformações nas rela-ções entre as firmas da cadeia, já em si desfavorável à capacitação tecnológicalocal para os países em desenvolvimento, vem ocorrendo, em nosso caso,num quadro institucional ainda mais adverso à indústria de auto peças e aosseus trabalhadores.

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Com efeito, ao desprezar as novas institucionalidades criadas no iní-cio dos anos 90, como as Câmaras Setoriais, que por seu caráter tripartite(governo, empresários de toda a cadeia e trabalhadores) garantiam a repre-sentação dos interesses do conjunto dos setores envolvidos, o governo per-mitiu que a política para o setor passasse a ser ditada pelas grandesmontadoras, com evidentes prejuízos para o setor de auto peças.

Conforme esclarece Bresciani (1997, p. 17), aliado às grandesmontadoras, o governo brasileiro cria, com a edição de uma Medida Provi-sória em dezembro de 1995, o novo regime automotivo, ignorando a legis-lação negociada sobre o comércio internacional na Câmara do SetorAutomotivo durante os anos de 1992 e 1993. Os benefícios ficaram para asmontadoras e as medidas que garantiam os interesses das auto peças e dostrabalhadores foram ignoradas. Os efeitos desse novo quadro na relação depoder entre os vários atores da cadeia são bastante preocupantes. No quese refere à indústria de auto peças, os dados apontam para uma profundacrise, marcada por fechamentos de empresas, vendas e fusões que estãolevando a um evidente processo de concentração de capital edesnacionalização do setor. Como sublinha Humphrey (1998, p. 14), umadas evidências mais impressionantes desse quadro é a venda de grandescompanhias brasileiras de auto peças a empresas multinacionais: até o fimde 1997 isso já tinha acontecido com quatro das nove maiores empresasnacionais. No que diz respeito ao trabalho, as implicações tampouco sãoalvissareiras: não há crescimento do emprego e, ainda que se observemmelhorias na qualificação do trabalho de chão de fábrica na ponta à jusanteda cadeia, a demanda pela qualificação em nível de técnicos e engenheirostem declinado em função da concentração do setor de projetos nas matri-zes (Leite, 1998, p. 7).

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O entendimento de que a compreensão do universo da pro-dução pressupõe não só a visão empresarial, mas também dossujeitos do processo de trabalho, ou seja, dos trabalhadores etrabalhadoras

O princípio metodológico que está por trás dessa escolha baseia-sena busca de evitar a unidimensionalidade. Parte-se aqui do suposto de que,se as percepções que trabalhadores e gerências possuem sobre as implica-ções das transformações que estão ocorrendo sobre o trabalho são diferen-tes, na medida em que vêem o processo a partir de lugares, vivências einteresses distintos, uma visão pluridimensional exige levar em conta a vi-são dos vários atores sociais envolvidos no processo.

O cuidadoso e contínuo cotejamento do discurso gerencial com aprática dos trabalhadores e trabalhadoras na última pesquisa que desenvol-vemos sobre a cadeia automotiva, por exemplo, mostrou- se importantenão só por permitir a elucidação de uma riqueza de detalhes, como paracontrapor o discurso à realidade do processo de trabalho. Foram inúmerosos exemplos de generalizações sobre os novos métodos de organização dotrabalho expressos pelos gerentes, cuja aplicação se mostrava muito maisrestrita quando se perguntava aos trabalhadores o que eles efetivamentefaziam em seu cotidiano de trabalho. Também no que se refere às implica-ções desses novos métodos para o trabalho, muitas afirmações relacionadasao enriquecimento dos conteúdos se mostravam pouco efetivas quandocotejadas com as entrevistas, nas quais os trabalhadores e trabalhadorasdescreviam seu cotidiano de trabalho no dia-a-dia da produção. As entrevis-tas e discussões com as trabalhadoras foram também fundamentais paraexplicitar a pouca interferência dos programas de treinamento no trabalhocotidiano das operárias e seu forte imbricamento com a divisão sexual dotrabalho. A lógica que elas permitiram revelar foi um importante achado dapesquisa, que poderíamos resumir da maneira que se segue: por um lado,como os postos de trabalho femininos são destituídos de conteúdo, as ope-

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rárias em geral são direcionadas apenas aos cursos comportamentais, poucofreqüentando os treinamentos de conteúdo técnico; por outro lado, comoa falta de conteúdo de suas tarefas dificulta mudanças mais significativas naorganização do trabalho, não se criam condições favoráveis para que osconteúdos desses cursos possam ter implicações importantes na naturezado trabalho; finalmente, como não têm nem formação, nem experiênciatécnica, elas raramente têm possibilidade de ascender na carreira. Cria-seassim um círculo vicioso que mantém as mulheres confinadas nos mesmospostos desqualificados e destituídos de conteúdo, em que a lógica dosprogramas de treinamento é não só insuficiente para romper como acabacolaborando para sua perpetuação (Leite, 1999).

A visão de que a análise do processo produtivo deve contem-plar sua complexidade, buscando entender a particularidadedos diferentes tipos de processo que formam o seu todo

De novo, busca-se fugir da unidimensionalidade, levando-se emconsideração as particularidades de cada setor. Vale lembrar, nesse sentido,a incorreção em se supor que as tendências encontradas nos setores maisintensivos em tecnologia, como o automobilístico e o químico, na qual acentralidade da qualidade dos produtos tende a ter interferências positivassobre o uso do trabalho, sejam extensivas ao conjunto do aparelho produti-vo. É mais do que evidente que as preocupações com a qualidade do pro-duto final e suas implicações sobre os padrões de gestão do trabalho sãoabsolutamente diferentes quando se trata da fabricação de produtos depouca sofisticação tecnológica como ocorre na indústria de bens não durá-veis em que as implicações da reestruturação sobre o trabalho apontampara inúmeras práticas precarizadoras.

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As novas institucionalidades

Finalmente, um último ponto que valeria a pena ser desenvolvido éque esse novo olhar vem revelando experiências novas de enorme impor-tância para a discussão sobre o futuro da sociedade, as quais dizem respeitoà criação de novas institucionalidades relacionadas ao trabalho, que apon-tam em direção a uma nova forma de regulação social.

Refiro-me aqui ao fato de que, juntamente com novos movimentossociais, os trabalhadores vêm sendo capazes de criar novas instituições, quesão importantes menos pelas conquistas que vêm conseguindo efetivar doque pela proposta que elas encerram de reconstrução do espaço público ede criação de uma nova forma de governabilidade.

Valeria lembrar, nesse sentido, um importante exemplo desse novotipo de institucionalidade que, embora não seja o único, é certamente umdos mais promissores: o da Câmara Regional do Grande ABC.

Baseando-se numa articulação que compreende as prefeituras daregião, o governo do Estado de São Paulo, os sindicatos de trabalhadores, asprincipais empresas da região e a sociedade civil organizada, reunida noFórum da Cidadania, a Câmara emerge como uma instituição capaz dearticular uma ampla proposta não só de reconversão da região, como tam-bém de uma nova forma de governabilidade baseada na sociedade civilorganizada, que se afasta tanto do modelo de governança baseado no Esta-do do Bem-Estar Social, como do capitalismo desorganizado caracterizadopela hegemonia do mercado.

Conforme atesta sua dinâmica, os passos iniciais da Câmara estive-ram marcados por discussões voltadas à identificação, demarcação e análisedos problemas econômicos e sociais enfrentados pela região e suas diferen-tes possibilidades de resolução, nas quais foi sendo elaborado um conjuntobastante rico de diagnósticos que vêm permitindo aos atores envolvidos emseu funcionamento um conhecimento mais aprofundado dos problemas epotencialidades regionais. Nesse caminhar, a Câmara foi evoluindo para a

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elaboração de uma proposta mais ampla e estratégica, que se configuracomo um projeto sistêmico de desenvolvimento local, baseado em trêseixos: I) na compreensão de que o modelo de desenvolvimento seguidopela região até o final dos anos 70, baseado na grande empresa internacio-nal atuando segundo os princípios da Segunda Revolução Industrial, atingiraseu esgotamento a partir dos anos 80; II) na visão de que muitos dos pro-blemas vividos pela região nos dias atuais devem-se ao modelo seguido atéentão, devido a sua face predatória, seja em termos ambientais (poluição,esgotamento dos recursos naturais, problemas de tráfego, enchentes etc),seja em termos sociais (alta concentração de renda com disseminação dapobreza, de favelas, do analfabetismo, de crianças de rua etc); III) no en-tendimento de que o poder público juntamente com a sociedade civilmobilizada são agentes capazes de redirecionar a economia regional, ade-quando-a ao novo momento do desenvolvimento econômico mundial e aoenfrentamento dos problemas colocados pelo ciclo produtivo anterior.

A partir desses eixos, a proposta de desenvolvimento econômicolocal que se vem gestando é a de que a região deve reconverter-se emtermos econômicos e urbanos, transformando-se num pólo tecnológico queconcentre atividades avançadas do ponto de vista tecnológico, através daformação de uma rede estruturada de pequenas e médias empresas, com-plementar à grande indústria globalizada, bem como da dinamização doterciário a partir da conformação de um centro avançado na produção deserviços ligados quer ao setor produtivo, quer ao próprio setor terciário,especialmente às atividades de turismo, lazer, entretenimento e cultura.

Trata-se, nesse sentido, de uma ampla proposta de reconversão eco-nômica e social, que parte do princípio de que face às transformaçõesprodutivas que estão ocorrendo atualmente, para continuar sendo atrativapara as grandes empresas, em especial a automobilística, a região deveriatransformar-se num centro tecnológico de pesquisa e desenvolvimento ba-seado na produção e no trabalho qualificado, ao mesmo tempo que teriaque apresentar boas condições no que se refere à qualidade de vida e ao

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meio ambiente.Partindo, portanto, de uma cuidadosa análise da região, bem como

das transformações que se operam na economia internacional, a Câmarafoi chegando a uma proposta de desenvolvimento econômico local que seconstitui numa resposta sistêmica aos problemas que a região vem enfren-tando. Trata-se, nesse sentido, de resolver os problemas pontuais que so-bre ela se abatem no momento através de medidas que não estão maissendo pensadas isoladamente, mas se inserem numa concepção mais am-pla de desenvolvimento econômico, entendido como sustentável em ter-mos ambientais e justa em termos sociais.

Há que se considerar, nesse sentido, que a principal conquista daCâmara não está nas propostas que já se concretizaram ou que podem vir afazê-lo futuramente, por mais importantes que elas possam ser, mas nacriação de um sentimento regional, de uma concepção de que há questõesque só podem ser abordadas e equacionadas no nível regional e cuja reso-lução passa pelo envolvimento dos diferentes atores sociais nela implica-dos. Embora essa visão não seja assumida por todos os protagonistas com amesma intensidade e o nível de envolvimento com a experiência seja dife-rente, há, sem dúvida, uma convicção entre os atores de que o sentimentoregional se vem tornando mais sólido, assim como se vem solidificando acompreensão de que a participação dos agentes sociais, a negociação deconsensos e a busca de parcerias são caminhos sem os quais as soluções setornam muito difíceis.

Evidentemente, é muito cedo para avaliar se a Câmara logrará efeti-var seus objetivos; se ela conseguirá ser exitosa em suas propostas concre-tas; se cumprirá seu desejo de uma ampla reconversão da região. Não hácomo ignorar, entretanto, que o caminho que ela vem trilhando, baseadonuma nova proposta de governabilidade assentada num novo conceito decidadania e de democracia é não só extremamente promissora, mas o pres-ságio de que novas formas de regulação social que buscam colocar o desen-volvimento econômico sob controle social podem ser viáveis. Ainda que

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seu futuro seja incerto e sua capacidade de difusão para outras regiões dopaís não possa ser pensada de maneira mecânica (tendo em vista sobretudoa singularidade da região em termos de capital social), ela se configuracertamente como uma alternativa virtuosa ao capitalismo desorganizadoque impera no espaço nacional. Nesse sentido, mais do que uma amplaproposta de reconversão da região, ela emerge como o presságio de umanova forma de governabilidade, assentada em novas relações sociais, queapontam para uma sociedade mais justa, mais equilibrada e mais democrá-tica.

Conclusão

O caminho que vem sendo trilhado pela Sociologia do Trabalho des-de o início do processo de reestruturação produtiva parece apontar para umprofundo processo de enriquecimento de seu olhar que, partindo do estu-do de empresas isoladas, foi ampliando o foco de análise, incorporando oestudo de setores, de cadeias, de diferentes segmentos do mercado detrabalho, de regiões, de relações entre países, etc. A tentativa de compre-ender a realidade através de suas inúmeras e diferentes manifestações, daqual faz parte a busca do diálogo com outras disciplinas que estudam otrabalho, vem permitindo à Sociologia do Trabalho o abandono da visãodeterminista que marcou os primeiros estudos sobre o tema, ao mesmotempo que vem apontando para uma maior compreensão da complexidadeda realidade do trabalho nos dias atuais. Ao invés das visões quase semprepolares e unidimensionais que marcaram os primeiros estudos sobre o tema,a disciplina foi evoluindo para um quadro muito mais rico e complexo,capaz de captar tanto as tendências de enriquecimento do trabalho, pre-sentes em pontos localizados das cadeias produtivas e do mercado de tra-balho, como as de precarização, seja do emprego, seja do trabalho, queafetam amplos setores da mão-de-obra. Nesse processo, a Sociologia do

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Trabalho logrou não só reencontrar suas antigas preocupações sobre as im-plicações das transformações que vêm ocorrendo com o trabalho para asociedade, como vem sendo capaz de evidenciar experiências inovadorasno mundo do trabalho, as quais vêm sendo identificadas como portadorasde novas potencialidades.

Para finalizar, convém assinalar que, para captar a potencialidadedessas novas experiências, foi fundamental que a Sociologia do Trabalhoadotasse uma visão sistêmica e interdisciplinar a que nos referimos anterior-mente, e especialmente que abandonasse o determinismo tão presentenos estudos iniciais sobre a reestruturação produtiva. Foi fundamental, nes-se sentido, alargar o olhar para captar o novo, colocando-se numa posturaaberta a novas experiências que não estavam previstas, seja pelas teoriasque não conseguem apreender as transformações sociais que se insinuampor caminhos diferentes daqueles traçados aprioristicamente, seja por aquelasque consideram que as transformações sociais já estão todas definidas por-que já teríamos chegado ao fim da História.

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Resumo

O texto discute as transformações teórico-metodológicas por quevem passando a Sociologia do Trabalho, ressaltando, nesse processo, oslimites da visão determinista, bem como a importância dos debatesinterdisciplinares e do alargamento do olhar daquilo que se passa dentrodas fábricas e dos sindicatos para novas tematizações que incluam os estu-dos sobre o mercado de trabalho e suas segmentações, as diferenças setoriais,as implicações diferenciadas do processo de reestruturação para as distintasempresas das cadeias produtivas, as diferenças entre o processo brasileiro eo dos países do Primeiro Mundo, entre outros.

Palavras-chave: interdisciplinaridade, determinismo tecnológico, com-plexidade.

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