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TEXTO: CELSO ARNALDO FOTOS: DIVULGAÇÃO Solidariedade 34 | REVISTA ABCFARMA | NOVEMBRO / 2011 Já imaginou atravessar uma rua de olhos fechados? Essa é a situação vivida pelos cerca de 2 milhões de deficientes visuais no Brasil. Uma das formas de con- tornar as limitações é o uso de um cão-guia, cachorro treinado especialmente para conduzir o deficiente visu- al em suas atividades diárias. Esse animal fica 24 horas ao lado do dono em qualquer lugar: loja, supermercado, cinema, teatro, Metrô, ônibus, café, restaurante, etc. Mas, infelizmente, ainda há poucos cães-guias no Bra- sil – talvez menos de 100. A fila de espera é imensa. Só no Instituto Iris (Instituto de Responsabilidade e Inclusão Social, dirigido por Thays), há três mil pessoas esperando pela chance de ter um cão-guia – e o Iris só consegue formar 10 cães por ano. Uma pena que esse benefício não possa ser estendido a todos: ao lado de um cão-guia – e a Dra. Thays sabe isso melhor do que ninguém – a vida de um deficien- te visual ganha literalmente novo rumo, nova perspectiva. No Metrô, por exemplo, ele conduz a pessoa até o corrimão da escada que leva à plataforma para que ela possa descer em segurança. E a acompanha até o vagão. O cão-guia, ao permitir que o dono possa trabalhar e se locomover sem depender de outras pessoas, é um instrumento fantástico de inclusão social. Além de protegê-lo das dificuldades, o tira do isolamento, já que o animal acaba atraindo a atenção e a soli- dariedade das pessoas. Hoje, a luz da vida de Thays se chama Diesel, um labrador de quatro anos, também treinado nos Estados Undos. Mas Boris é inesquecível: E la perdeu a visão aos quatro anos de idade. Aos sete, ouviu falar que existiam cães-guia e, desde então, quis ter um. O sonho realizou-se apenas em 2000, quando, aos 27 anos, ganhou Boris – um labrador nascido e treinado nos Estados Unidos para ser cão-guia, a luz maior de um deficiente visual. A vida da advogada Thays Martinez se divide em antes e depois de Boris. E a dos deficientes visuais no Brasil também, pois Boris foi o primeiro cão autorizado pela Justiça paulista a entrar no Metrô em São Paulo – e isso acabaria se estendendo a nível federal. Aos oito anos, como recomendam os especialistas, ele se “aposentou”, mas continuou vivendo com Thays, que ganhou um novo cão-guia, Diesel. Um ano depois, a luz de Boris de apagou. Numa homenagem a seu grande amigo-guia, ela lançou o livro Minha vida com Boris – onde descreve o comovente trabalho dessas criaturas maravilhosas que dão senso e direção à vida dos deficientes visuais A estrela guia

Solidariedade: A estrela guia

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Matéria da Revista ABCFARMA sobre Solidariedade: A estrela guia

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Page 1: Solidariedade: A estrela guia

TexTo: celso arnaldofoTos: divulgação

Solidariedade

34 | revisTa ABCFARMA | noveMBro / 2011

Já imaginou atravessar uma rua de olhos fechados?

Essa é a situação vivida pelos cerca de 2 milhões de deficientes visuais no Brasil. Uma das formas de con-tornar as limitações é o uso de um cão-guia, cachorro treinado especialmente para conduzir o deficiente visu-al em suas atividades diárias. Esse animal fica 24 horas ao lado do dono em qualquer lugar: loja, supermercado, cinema, teatro, Metrô, ônibus, café, restaurante, etc. Mas, infelizmente, ainda há poucos cães-guias no Bra-sil – talvez menos de 100. A fila de espera é imensa. Só no Instituto Iris (Instituto de Responsabilidade e Inclusão Social, dirigido por Thays), há três mil pessoas esperando pela chance de ter um cão-guia – e o Iris só consegue formar 10 cães por ano. Uma pena que esse benefício não possa ser estendido a todos: ao lado de um cão-guia – e a Dra. Thays sabe isso melhor do que ninguém – a vida de um deficien-te visual ganha literalmente novo rumo, nova perspectiva. No Metrô, por exemplo, ele conduz a pessoa até o corrimão da escada que leva à plataforma para que ela possa descer em segurança. E a acompanha até o vagão. O cão-guia, ao permitir que o dono possa trabalhar e se locomover sem depender de outras pessoas, é um instrumento fantástico de inclusão social. Além de protegê-lo das dificuldades, o tira do isolamento, já que o animal acaba atraindo a atenção e a soli-dariedade das pessoas. Hoje, a luz da vida de Thays se chama Diesel, um labrador de quatro anos, também treinado nos Estados Undos. Mas Boris é inesquecível:

Ela perdeu a visão aos quatro anos de idade. Aos sete, ouviu falar que existiam cães-guia e, desde então, quis ter um. O sonho realizou-se apenas em 2000, quando, aos 27 anos, ganhou Boris

– um labrador nascido e treinado nos Estados Unidos para ser cão-guia, a luz maior de um deficiente visual. A vida da advogada Thays Martinez se divide em antes e depois de Boris. E a dos deficientes visuais no Brasil também, pois Boris foi o primeiro cão autorizado pela Justiça paulista a entrar no Metrô em São Paulo – e isso acabaria se estendendo a nível federal. Aos oito anos, como recomendam os especialistas, ele se “aposentou”, mas continuou vivendo com Thays, que ganhou um novo cão-guia, Diesel. Um ano depois, a luz de Boris de apagou. Numa homenagem a seu grande amigo-guia, ela lançou o livro Minha vida com Boris – onde descreve o comovente trabalho dessas criaturas maravilhosas que dão senso e direção à vida dos deficientes visuais

A estrela guia

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Como você compara Boris a Diesel, como cão-guia?

São diferentes, mas apaixonantes, cada um à sua maneira. O Diesel está comigo há dois anos e meio. O Boris ficou quase 10 anos. Recebi-o no ano 2000 e ele se foi no final de 2009, quan-do ele já estava aposentado há um ano e morando comigo e com o Diesel. Foi uma fase difícil para nós três. No início, eu pegava o equipamento de guia para colocar no Diesel e o Boris vinha vestir primeiro. Mas aos poucos ele começou a curtir a aposentadoria.

Como o cão-guia entrou na sua vida?

Perdi a visão com quatro anos de idade. E aos sete anos, quando uma pro-fessora falou em cão-guia, nasceu o so-nho de ter um. Sempre fui apaixonada por cães e essa ideia parecia maravilho-sa. Comecei a procurar um, ao chegar à adolescência, quando a gente começa a sentir falta de autonomia. Eu não que-ria andar pendurada na saia da mãe. Mas não existiam escolas de cães-guias no Brasil e eu tive de esperar muitos anos para realizar esse sonho.

mas, na prática, é uma relação mais estreita que um casamento, porque se convive com o cão 24 horas por dia. Outra coisa: se a pessoa gosta de con-tato com pessoas, não pode ter um cão refratário a isso. Quando apareceu um cão compatível comigo, fui aos Estados Unidos conhecer e buscar o Boris.

Como é a cabeça de um cão-guia?Eles são atentos 24 horas por

dia. Têm plena consciência da missão. A qualquer movimento do usuário, levantam e estão sempre prontos para trabalhar. Por isso o treinamento é tão complexo – até dois anos.

Como é o treinamento?São duas fases. A primeira é a de

socialização, quando o cão tem dois a três meses, feita por uma família de voluntários, que ensinam ao filhote as chamadas boas maneiras caninas: não subir no sofá ou na cama, não comer alimentos humanos, fazer necessidades em lugar apropriado. A família volun-tária o leva para todo tipo de ambiente para que ele se acostume às pessoas,

E como ele se realizou?Eu já estava na faculdade e tra-

balhando, quando soube de um projeto da PM com cães-guia. Cheguei a pegar um labrador, mas não deu certo. Havia a boa intenção, mas não existiam no Brasil profissionais especializados no treinamento de guias. Amigas começa-ram a me ajudar a procurar na internet escolas de treinamento em outros paí-ses. Encontramos uma escola america-na, A Leaders Dog for the blind. Entrei na fila seletiva e acabei preenchendo os requisitos. Mas tive de esperar um cão compatível. Um cão-guia não é cedido para o próximo da fila, mas para a pessoa certa. Há um cão certo para cada deficiente visual, em termos de características físicas, como velocidade para caminhar, e tipos de rotina – cer-tos cães, para se sentirem à vontade, precisam de uma rotina fixa. Não era meu caso, porque, no meu trabalho de advogada, eu rodo bastante. Enfim, pre-cisa haver uma compatibilidade. Os ins-trutores brincam que é um casamento arranjado entre um homem e um cão,

“O Boris ficou quase 10 anos. Recebi-o no ano 2000 e ele se foi no final de 2009. Ela já estava aposen-tado e morando comigo e com o Diesel há um ano. Foi difícil para nós três. ”

Thays com Boris e Diesel, seu novo cão-guia. Os três conviveram juntos por quase dois anos

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a andar de carro, a pé, de ônibus, etc, para que nenhum ambiente gere ansie-dade. Quando o cão amadurece, começa o treinamento propriamente dito, de três a cinco meses. É quando eles apren-dem a guiar o deficiente visual em linha reta, a menos que recebam um coman-do para mudar de direção ou detec-tem um obstáculo. Aprendem também a desviar de obstáculos aéreos, como orelhões e árvores, o que é fundamen-tal para quem tem deficiência visual e usa bengala – porque você só tem con-tato com o solo. O cão é treinado para fazer o cálculo de altura em relação à pessoa, não a ele. Vai aprender o que é obstáculo, degrau, a encontrar pontos de referência. Se eu vou a um local des-conhecido, peço ao Diesel para achar uma escada ou uma porta. Isso facilita muito a minha vida.

O cão-guia erra? Boris ou Diesel já a colocaram em perigo?

Pode acontecer, sim. Mas é raro. É importante lembrar que já passei por pequenos acidentes mais com pesso-as do que com cães... O índice de acer-to dos cães é impressionante. Quando “erram”, pode ser até proposital. Há uma história no livro. Saí para uma caminhada com o Boris, tinha chovido muito e, logo que pisamos na calçada, o Boris desviou para o meio da rua e voltou. Fiquei curiosa e fui checar a cal-çada. Tinha uma árvore caída. Fiz aque-la festa para ele e lhe dei os biscoitos que amava. Mais uns metros, e ele fez a mesma coisa. Atravessou a rua e voltou para a calçada. Fiz mais festa, dei mais biscrocs. Na quarta vez, fiquei intriga-da. Tinha um casal no portão de uma casa, conversando. Perguntei: tem mui-ta árvore na rua? E eles: “Só tem uma, lá atrás”. O Boris desviou das outras “árvores” para comer biscrocs...

As pessoas devem mexer com o Diesel quando ele está com você?

Quando o cão estiver trabalhan-do, não, porque qualquer carinho o dis-trai. É como estar guiando um carro e alguém chamar sua atenção. Tanto o Boris como o Diesel desenvolveram a tática de ignorar um pouco. Há usuá-

rios que não gostam que mexam com o cão em nenhum momento, mesmo que estejam sentados, descansando. Eu não me importo. Gosto que as pessoas se aproximem, perguntando. Isso propicia a aproximação das pessoas e um melhor entendimento sobre inclusão social.

O cão-guia já é plenamente aceito no Brasil?

Sim, e por lei federal, baseada na lei estadual de São Paulo, que foi inspi-rada no Boris. Algumas pessoas devem se lembrar que tive um problema sério com o Boris em relação ao Metrô, resol-vido por ação judicial que durou seis anos. Em 2005, uma lei federal garantiu a entrada de cão-guia em qualquer lu-gar do Brasil.

E as pessoas aceitam bem isso?Há raros problemas. Em São Pau-

lo, quase nunca. Eu costumo dizer que, às vezes, para a gente tomar um sor-vete, tem de dar uma aula de direitos humanos. Quando o Boris chegou, em 2000, havia 10 cães-guia no Brasil in-teiro. Hoje, as pessoas sabem que é um cão-guia. Ficaram para trás situações como a que relato no livro. Fui fazer compras num shopping com o Boris e, em dado momento, entrei num restau-rante. O garçom nos barrou: “O cachor-ro não pode entrar”. Ponderei que era um cão-guia. E o rapaz: “Não pode raça nenhuma...”. O Diesel é de uma geração que não enfrenta problemas.

Por que há tão poucos cães-guias no Brasil?

É uma triste realidade, porque eu sei da qualidade de vida que esses cães trazem para a gente. Eles mudaram a minha vida e eu queria muito que as pessoas tivessem a mesma oportuni-dade. Já temos ótimos profissionais de treinamento, há alguns centros especializados no país, mas faltam recursos. Já buscamos apoio jun-to ao governo, sem resposta. O cão-guia tem um custo elevado, que não pode ser repassado para o usuário – o cão é doado para o defi-ciente visual. A gente trabalha com patrocínio de empresas e doação de pessoas físicas.

Depois de oito anos com o Boris, você se adaptou bem ao Diesel?

Confesso que, no começo, cheguei a pensar em devolver o Diesel, mas era por razões emocionais. Por causa de meu vínculo forte com o Boris, eu fica-va pondo defeito no Diesel. Mas foi um aprendizado importante: não se pode comparar pessoas e cães. O Boris era da família, meu grande amigo e parcei-ro, era parte de mim. Foram quase 10 anos, 24 horas por dia. Eu acordava, ele estava do meu lado. Eu estava triste, ele vinha me alegrar. Foi difícil. Sinto mui-tas saudades do Bóris, mas consegui ver o Diesel como um outro cão e eu o adoro. A gente tem de aprender a res-peitar e se adaptar às diferenças. n

A advogada Thays Martinez com Diesel, num dos vagões do Metrô de

São Paulo. Ela foi a primeira pessoa a obter na Justiça o direito de

entrar com seu cão-guia em todos os lugares públicos da cidade – e

essa legislação estendeu-se aos deficientes físicos de todo o país

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