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Sonegação fiscal e identidade constitucional Bárbara Gonçalves de Araújo Braga Josiane Marques Roberto Chateaubriand Domingues 1 I. Introdução II. O sujeito tributário como sujeito constitucional: a formação da identidade do sujeito III. Resistência ao pagamento de tributos IV. Combate à sonegação fiscal e fortalecimento da cidadania V. A elisão fiscal (economia fiscal): a lógica do sistema capitalista, ética e punição VI. Conclusão VII. Bibliografia I. Introdução Não podemos olvidar que o homem está ínsito em um processo de constante redefinição de projetos de vida, de horizontes de compreensão, perfazendo sua identidade em um contexto de incompletude, de um verdadeiro vazio existencial que precisa ser preenchido e definido para promover a construção de um sentido, de um valor significante. O Direito pretende, preliminarmente, segundo entendimento de Habermas, estabilizar, mediar, as relações entre os sujeitos e permitir, a elaboração e aplicação de normas factualmente definidas em um processo discursivo válido cujas regras sejam previamente estabelecidas em condições de igualdade e não violência. No contexto do Estado Democrático de Direito, resta-nos interpelar acerca da identidade do sujeito, do cidadão que irá se sujeitar às regras, não porque está somente obrigado e coagido a fazê-lo, mas porque se comprometeu a respeitar as ‘regras do jogo’, já que reconhece ( ou deveria reconhecer) a legitimidade do sistema normativo como condição sine qua non da sociedade. A construção da identidade da ciência jurídica como sistema autônomo, diverso, portanto, da moral, da religião é essencial para a existência do próprio Direito no mundo do dever- ser, o que não significa distanciamento a ponto de torná-lo insensível às reais demandas sociais, a ponto de, não obstante, ser a norma eficiente, no entanto, tornar-se inefetiva. A autora Paula de Abreu Machado Derzi Botelho(2005) questiona na Introdução do seu livro Sonegação Fiscal e Identidade Constitucional, se é possível um ‘Direito Constitucional’ como Ciência Jurídica e como conseqüência se podemos falar de uma identidade constitucional e de uma identidade tributária distinta em relação à primeira. Utiliza-se como parâmetro para desenvolver esta pesquisa científica, como marco teórico primordial a doutrina de Michel Rosenfeld( a 1 Advogados, com especialização em Direito Público – IEC/PUC-MG em 2008.

Sonegação fiscal e identidade constitucional

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Este texto discute o fenômeno da sonegação fiscal na perspectiva da teoria da identidade do sujeito constitucional proposta por Michel Rosenfeld

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Sonegação fiscal e identidade constitucional

Bárbara Gonçalves de Araújo BragaJosiane Marques

Roberto Chateaubriand Domingues1

I. Introdução II. O sujeito tributário como sujeito constitucional: a formação da identidade do sujeito III. Resistência ao pagamento de tributos IV. Combate à sonegação fiscal e fortalecimento da cidadania V. A elisão fiscal (economia fiscal): a lógica do sistema capitalista, ética e punição VI. Conclusão VII. Bibliografia

I. Introdução

Não podemos olvidar que o homem está ínsito em um processo de constante redefinição

de projetos de vida, de horizontes de compreensão, perfazendo sua identidade em um contexto de

incompletude, de um verdadeiro vazio existencial que precisa ser preenchido e definido para

promover a construção de um sentido, de um valor significante.

O Direito pretende, preliminarmente, segundo entendimento de Habermas, estabilizar,

mediar, as relações entre os sujeitos e permitir, a elaboração e aplicação de normas factualmente

definidas em um processo discursivo válido cujas regras sejam previamente estabelecidas em

condições de igualdade e não violência.

No contexto do Estado Democrático de Direito, resta-nos interpelar acerca da identidade

do sujeito, do cidadão que irá se sujeitar às regras, não porque está somente obrigado e coagido a

fazê-lo, mas porque se comprometeu a respeitar as ‘regras do jogo’, já que reconhece ( ou deveria

reconhecer) a legitimidade do sistema normativo como condição sine qua non da sociedade.

A construção da identidade da ciência jurídica como sistema autônomo, diverso,

portanto, da moral, da religião é essencial para a existência do próprio Direito no mundo do dever-

ser, o que não significa distanciamento a ponto de torná-lo insensível às reais demandas sociais, a

ponto de, não obstante, ser a norma eficiente, no entanto, tornar-se inefetiva.

A autora Paula de Abreu Machado Derzi Botelho(2005) questiona na Introdução do seu

livro Sonegação Fiscal e Identidade Constitucional, se é possível um ‘Direito Constitucional’ como

Ciência Jurídica e como conseqüência se podemos falar de uma identidade constitucional e de uma

identidade tributária distinta em relação à primeira. Utiliza-se como parâmetro para desenvolver

esta pesquisa científica, como marco teórico primordial a doutrina de Michel Rosenfeld( a

1 Advogados, com especialização em Direito Público – IEC/PUC-MG em 2008.

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identidade do sujeito constitucional), Hegel e Lacan(a construção da identidade do sujeito),

Habermas (teoria da ação comunicativa), Luhmann (teoria dos sistemas).

A autora pretende solucionar o seguinte problema: Qual a relação entre obrigação fiscal,

mormente resistência ao pagamento de impostos, e afirmação da identidade do sujeito firmada na

idéia de cidadania, legitimidade, participação, reconhecimento da correlação entre o binômio

Estado/políticas públicas e tributo, bem como na percepção do sujeito como ator político e social

consciente não apenas de seus direitos, mas também de suas obrigações, mormente como cidadão-

contribuinte.

Afirma que, no transcurso histórico, em relação ao tributo, o cidadão buscou ou busca

sempre se esquivar da obrigação de contribuir com a manutenção do Estado, até mesmo quando a

Igreja ou outras instituições ocupavam o centro do Poder.

A sonegação fiscal, uma espécie de resistência ao adimplemento da obrigação fiscal, é

relacionada não apenas ao valor excessivo dos tributos ou a idéia egoística de conservação do

patrimônio, mas principalmente, à falta de reconhecimento do papel do Estado como instituição

legítima, apta a corresponder aos anseios mais evidentes da população, tais como saneamento

básico, saúde, educação e assistência social. Configura-se, portanto, a necessidade, segundo

afirmado por Friedrich, da correspondência entre o povo-legislador e o povo-destinatário para a

realização da democracia e da efetividade da norma.

“ A obediência aos preceitos tributários postos na Constituição Federal depende exatamente do preenchimento desse descompasso entre a vontade do constituinte ou legislador e a vontade geral, ou seja, composição dos interesses. Enfim, depende da construção de uma identidade.( BOTELHO, 2005, p.5)

Nos regimes democráticos, maior é liberdade de participação e, portanto, teoricamente,

a cada cidadão compete contribuir para a manutenção de um Estado projetado e constituído para

implementar políticas sociais que possibilitem a concreção das múltiplas demandas da sociedade.

O imposto é visto (ou deveria sê-lo) não apenas como dever, mas também, como direito

subjetivo público, já que na elaboração e aplicação do comando legal, o cidadão tem de ser

chamado a participar do espaço público para decidir acerca dos recursos necessários para a

manutenção da vida coletiva, bem como o melhor modo de aplicá-los. Como asseverou Paula de

Abreu Machado Derzi Botelho(2005, p.26):

“Além disso, o consentimento do imposto não se resume à busca do poder legítimo; o indivíduo deve admitir que, pelos mecanismos de decisão coletiva, o povo soberano, do qual ele faz parte como cidadão, decidiu pela imposição, e que o

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destino dos recursos arrecadados também diz respeito à decisão coletiva da qual ele participou ( ou deveria participar).”

O imposto como contribuição solidária, em contraposição do signo confisco,

expropriação injusta de um poder imposto, ilegítimo, não deveria, segundo entedimento de Paula de

Abreu Machado Derzi Botelho(2005) ser repudiado já que nos regimes democráticos, mediante o

fortalecimento da cidadania fiscal, há (ou deveria haver) o desaparecimento das revoltas fiscais(

como no caso da derrama) fundamentadas pela idéia de ilegitimidade do poder.

Na modernidade, ou pós-modernidade, entretanto, não há espaços para a certeza pré-

formatada tanto pela tradição ou pelo rigor científico, mas apenas para atitude reflexiva e crítica que

permita a reelaboração do saber, não se desprezando, no entanto, a pré-compreensão histórica, já

que não se cogita mais em verdades, mas sim, em argumentos válidos consistentes que por sua vez

poderão perder a validade diante de argumentos apresentados posteriormente.

Sendo assim, há outros fatores que deverão ser considerados, em um contexto de

complexidade na distribuição do poder político, bem como na definição dos centros de decisão e na

própria redefinição do signo Estado. Isto porque, os fundamentos da condição pós-moderna são a

desregulamentação, a apatia, o questionamento da autoridade.

As razões motivadoras da resistência ao pagamento de impostos não estão apenas

concentradas em questões de sua legitimidade ou da eficiência e eficácia da atuação estatal na

implementação de políticas públicas, mas também na lógica do sistema capitalista, na imposição

inconseqüente do lucro acima dos impositivos da ética coletiva.

Segundo entendimento de Paula de Abreu Machado Derzi Botelho(2005), são

identificadas pelos doutrinadores diferentes formas de resistência ao pagamento de impostos nos

regimes representativos e para combatê-las defende a constituição de atitudes coletivas apropriadas

à redução dos motivos que as geram, possibilitando o fortalecimento da cidadania na correlação dos

projetos dos indivíduos aos projetos da Constituição do Estado, ou se for o caso, implementar

sistemas de punição consitentes que “ tratam-se, portanto, de adicionar ao caráter de ilicitude da

sonegação fiscal um componente moral, capaz de provocar repulsa, indignação e desprezo em

terceiros, vergonha e culpa no infrator.”(BOTELHO, 2005, p.35)

II. O sujeito tributário como sujeito constitucional: a formação da identidade do sujeito

Primeiramente, destaca-se que o sujeito tributário encontra os fundamentos para a

formação de sua identidade na Constituição e por isso, não se pode cogitar em um sujeito

tributário distinto do sujeito constitucional.

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A autora ao citar Geraldo Ataliba demonstra a unicidade do Direito, já que a

Constituição é o núcleo básico, fundamento imediato das normas de Direito Tributário. Os

direitos definidos na Carta Magna não podem ser restringidos pela lei, já que constituem um

conjunto de limites a proteger os contribuintes. Sendo assim, toda a legislação

infraconstitucional terá de se adequar ao substrato constitucional, segundo o critério de

parametricidade.

A identidade do sujeito constitucional está constituida como um processo, não como

algo dado e solidificado, mas como uma contínua redefinição do indivíduo no exercício não

apenas dos direitos públicos, mas também dos deveres de cooperação para com a comunidade,

expressão do estado de cidadania, do qual faz parte o de pagar impostos.

O dever de contribuir deveria ser visto como algo inato à pessoa como ser social e como

pressuposto constitucional para a constituição da sociedade política, no entanto, a consciência

cidadã cooperativa deve ser redefinida como identidade do próprio sujeito que é reconstruida

pela linguagem, pelo discurso que tem função pedagógica e de reciprocidade entre a atuação

estatal e as demandas da população que deveriam ser satisfeitas pela implementação de políticas

públicas eficientes e eficazes.“Portanto, as questões relativas ao alto índice de sonegação fiscal

e à fraude à lei tributária são questões de identidade jurídica, de identidade

constitucional.”(BOTELHO, p.13,2005).

Para a definição do sujeito tributário em decorrência do sujeito constitucional, mister

analisarmos, primeiramente, qual a natureza da Constituição que define normativamente os

elementos estruturantes do indivíduo como ser atuante no ambiente público, portanto, como

contribuinte para a vida em comunidade.

A Constituição seria o marco formal e normativo para a regulação da sociedade política,

inerte à realidade política e econômica, como definido por Kelsen, significando portanto, a carta

constituinte de uma identidade do sujeito, abstratamente, idealmente posta coercitivamente aos

membros de uma comunidade? A distância entre norma e realidade deveria ser essencial para a

formação da identidade normativa de um sujeito constitucional?

Paula Derzi Botelho (2005, p.37) explica que pode haver uma relação conflituosa entre

norma escrita e prática constitucional, e tal fato foi objeto de estudos em diferentes épocas e por

escolas teóricas distintas. Cita correntes opostas-

“uma desprezando a Constituição nominal-formal, enfocando somente a realidade política, econômica e social, a outra fazendo total abstração da realidade e situando a ciência do Direito no mundo do dever-ser – foram conciliadas recentemente pela teoria dos sistemas, a qual vê na distância entre o ambiente e o sistema científico a condição de sua existência. Entretanto, até que ponto esse distanciamento

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compromete a validade da norma(como diria Kelsen) e quebra ou compromete a identidade constitucional?”(BOTELHO,2005, p.37)

Os positivistas que definiram o direito como algo posto, ou seja, é o que é, e o

jusnaturalista que considerava a Constituição como dever ser; não criaram um sistema

conciliatório entre a idéia de que o direito é norma, mas que também, não pode se divorciar da

realidade social, sob pena de tornar-se inefetivo.

Sendo assim, deve haver uma correlação entre norma, conteúdo, contexto social e

representatividade do povo destinatário do ordenamento. José Afonso da Silva(2002, p.33)

assim define a constituição:

“ algo que tem, como forma, um complexo de normas(escritas ou costumeiras); como conteúdo, a conduta motivada pelas relações sociais(enconômicas, políticas, religiosas,etc); como fim, a realização dos valores que apontam para o existir da comunidade e, finalmente, como causa criadora e recriadora, poder que emana do povo. Não pode ser compreendida e interpretada, senão tiver em mente essa estrutura, considerada como conexão de sentido, como é tudo aquilo que intera um conjunto de valores. Isso não impede que o estudioso dê preferência a dada perspectiva. Pode estudá-la sob o ângulo predominantemente formal, ou do lado do conteúdo, ou dos valores assegurados ou da interferência do poder.”

As normas constitucionais, no Estado pós-moderno, do pluralismo de ideologias,

passam a ser vistas não somente como legitimantes do poder instituído ou de reprodução

acrítica da tradição e da pré-compreensão que a instituiu, mas como estatuto reflexivo de

inclusão participativa das inúmeras pretensões de projetos de vida.

A sociedade atual é moderna. À diferenciação sistêmica, à autonomização normativa e à perda de um centro acrescenta-se o fato de a sociedade atual ser marcada por um pluralismo de formas de vida e de visões de mundo as mais diferentes, até concorrentes e em desacordo, acerca do que seja justo, do que seja ético ou do que seja sucesso. E, ainda mais, diversidades de formas de vida e de visões de mundo são vistas como igualmente razoáveis e podem assim pretender concorrentemente o reconhecimento de sua dignidade.(CATTONI,2006 p.38)

Sendo assim, a Constituição tem caráter auto-regulatório, que segundo, José Joaquim

Gomes Canotilho(1992,p.14) , deve permitir o exercício das opções plurais em um contexto

mediado pelo direito que estabeleça processos de informação compatibilizadores dos dissensos,

possibilitando a identidade marcada pela inclusão das diferenças e que garanta a os vários jogos

políticos e quando necessário viabilize a mudança através de rupturas.

As sociedades complexas demandam por teorias igualmente complexas que abarquem

as mútiplas possibilidades de cada sistema social. Neste contexto, Niklas Luhmann,

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desenvolveu o conceito de sistemas e ambiente a partir da noção de autopoiesis, segundo a

qual, o sistema é auto-regulado (produzem constantemente sua própria constituição) de forma a

possibilitar ora a mudança, ora a estabilidade em um contexto complexo.

Somente a partir do fechamento é que o sistema passa a produzir operações próprias, reproduzindo em rede seus recursivos avanços e recuos. Isso significa que o sistema não pode operar fora de seus limites. Mas mesmo fechado, o sistema interage com o ambiente, utilizando ou descartando elementos introjetados, transformados em dados operáveis intra-sistematicamente (mas que, mesmo descartados, permanecem ainda como oportunidades), sempre com a tarefa de simplificar a complexidade do mundo moderno (BOTELHO, 2005, p.42-43)

Um sistema ou o ambiente não poderiam contribuir para a formação de outro sistema,

mas, através do denominado acoplamento estrutural, ocasionar uma irritação mútua ou mediante o

emprego da linguagem como meio de ligação entre consciência e comunicação, provocar a

recepção de uma nova informação que poderá ser aclopada ou não ao sistema receptor.

Paula Derzi Botelho(2005) destaca que a teoria de Niklas Luhman, não ofereceu

respostas aos problemas da dinâmica social, das tendências inovadoras e da mudança estrutural

ocorrida no ambiente, já que elimina as formas conflitantes de racionalidade. Atribui-se ao direito o

dever de financiar todas as suas realizações com recursos por ele produzidos, sem a contudo,

verificar-se a interferência de outros sistemas, admitindo-se apenas rúidos que poderão ser ou não

verificados.

Jürgem Habermas, em sua teoria da razão comunicativa, utilizou-se da teoria dos

sistemas, mas com ressalvas em relação à não influência entre sistemas distintos.

Segundo a perspectiva da teoria da razão comunicativa em contraposição à razão

prática, a racionalidade deve ser reconstruida a partir do emprego da linguagem direcionada ao

objetivo de provocar o entendimento e a mediação entre a realidade social que se reproduz no nível

do sistema e do nível do mundo da vida (ambiente compartilhado).

Nesse pano de fundo compartilhado ( ou mundo da vida), o sujeito só pode sustentar sua pretensão, ou vê-la justificadamente afastada, através da comunicação, ou seja, adotando uma ação voltada ao entendimento (e que Habermas denomina ação comunicativa)( BOTELHO, 2005,p.49)

O direito incorpora questões do mundo da vida como norma jurídica a partir da

estruturação de processos discursivos livres, de formação da opinião e da vontade política, de modo

a impor regras autorizadas pelos sujeitos destinatários. A identidade do sujeito constitucional

deverá ser constituida na prática intersubjetiva de se alcançar o entendimento, não consoante às

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ações estratégicas voltadas apenas aos interesses pessoais, mas sim por meio de um discurso

cooperativo em torno do melhor argumento.

A identidade do sujeito constitucional é uma potencialidade, ou seja, um poder vir-a-ser,

um construir através do tempo, da linguagem e do exercício da cidadania.

Paula Derzi Botelho(2005) cita as teorias de Hegel, Lacan e Michel Rosenfeld, como

caminho teórico para definir a evolução do sujeito - da Consciência(o ser em si- contemplativo) até

chegar à autoconsciência(o ser em-si e para-si).

Segundo a teoria de Hegel, o desejo e não a razão tem o papel de incitar o sujeito a se

conhecer enquanto fenômeno existencial. Em um primeiro momento, o homem revela-se como ser

contemplativo,ou seja, tem consciência do mundo que o rodeia, sendo assim, esgota-se na certeza

sensível, de percepção. O ser observado é apenas objeto .

É interessante salientar que o homem somente se torna humano quando se direciona

para o outro (não-eu) como desejo de preenchimento do conteúdo do ser que procura ser

reconhecido.

No entanto, para que o “eu” seja humano, é preciso que o desejo volte-se para um “eu” não-natural. A passagem do sentimento de si para a autoconsciência só ocorre quando o desejo dirige-se para outro desejo(terceira etapa: homem em-si e para-si). Mas ela só se liberta da certeza subjetiva no reconhecimento, que só pode ocorrer quando se admite a preexistência de um código(fala) que permita a articulação entre as diversas autoconsciências e, por conseqüência, a constituição de suas verdades subjetivas.(BOTELHO, 2005, p.26)

Lacan, em sua teoria do Estádio do Espelho, salientou a necessidade de alienação ao

outro para a constituição do sujeito, bem como o papel da linguagem no processo de

reconhecimento da identidade. Para o sujeito, inicialmente, o objeto original do desejo é a mãe que

o complementa, no entanto, não há a idéia consciente de identidade, pois não há um direcionamento

ao olhar(desejo) do outro.

Paula Derzi Botelho (2005, p.60) cita Rosenfeld para indicar os processos de formação

da identidade do sujeito que também foram utilizados para fundamentar a estruturação do sujeito

constitucional, são eles, a negação, metáfora (condensação) e metonímia (deslocamento).

Segundo conceituação de Laplanche e Pontalis:

Negação. Processo pelo qual o sujeito, embora formulando um dos seus desejos, pensamentos ou sentimentos até então recalcado, continua a defender-se dele negando que lhe pertença.Condensação. Um dos modos essenciais do funcionamento dos processos inconscientes. Uma representação única representa por si só várias cadeias associativas, em cuja interseção ela se encontra...Traduz-se no sonho pelo fato de o

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relato manifesto, comparado com o conteúdo latente, ser lacônico: constitui uma tradução resumida.Deslocamento. Fato de a importância, o interesse, a intensidade de uma representação ser suscetível de se destacar dela para passar a outras representações originariamente pouco intensas, ligadas à primeira por uma cadeia asssociativa.

Nessa perspectiva, o processo da formação da identidade constitucional se dá, em um

primeiro momento a partir do mecanismo da negação pelo o qual se chega ao que a identidade

constitucional não é, ou seja, revela-se o Sujeito como carência, como falta a ser preenchida. Em

um segundo momento observa-se o preenchimento do vazio a partir da incorporação seletiva de

traços e substratos das identidades descartadas, utilizando-se, para tanto da Metáfora, uma vez que

ela se apresenta como instrumento de busca de similaridades e equivalência, da Metonímia, esta

entendida como mecanismo doador de sentido a partir das diferenças em determinados contextos

impedindo que a identidade seja fixada.

A identidade do ser humano no que diz respeito à atribuição de significado à existência, ou à

ligação do sujeito a um projeto de vida, está estritamente relacionada, segundo Lacan, à

compreensão do inconsciente estruturado como linguagem que possibilita o reconhecimento do

“eu” diante de si, entre o “eu” e o outro, entre o “eu” e a realidade.

III. Resistência ao pagamento de tributos

De acordo com as lições do Prof. Paulo Adyr, a gênese da resistência ao pagamento de tributos

pode ser localizada na concepção, ainda que equivocada, de propriedade como um direito absoluto,

sacralizado e intocável, entendimento que vigorou por séculos não obstante as evidências que,

segundo este autor, nunca deixaram de estar presentes como ínsitas ao próprio conceito de

propriedade. Desde os romanos pode-se perceber a vulnerabilidade do caráter absoluto, estando

presentes na Lei das XII Tábuas restrições inequívocas a esse direito (AMARAL, 2006).

Todavia, a propriedade, sobretudo durante a Idade Média, surge como parâmetro de tributação

e, portanto, todo e qualquer ato tendente a diminuir as posses de um indivíduo passa a ser

representada como violação ou agressão do Estado, legitimando ações de resistência.

Ao operarmos com o conceito de propriedade balizado por restrições, sejam essas fundadas em

motivos de ordem pública, ética ou prática, não mais se sustenta a idéia de resistência ao pagamento

de tributos a partir da singela afirmação de invasão do Estado ao direito do cidadão, sendo aquela

deslocada para a seara do abuso ao poder de restrição ao direito de posse.

No Brasil, a partir da Constituição de 1988, esse entendimento passa a ser sedimentado, tendo

em vista o art. 5º, inciso XXII que dispõe, com clareza, acerca do direito à propriedade como direito

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fundamental, porém limitado à sua função social. Denota-se a relativização do direito de

propriedade orientado para a realização de valores caros ao homem – dignidade da pessoa humana,

igualdade, erradicação da pobreza.

É cediço que a tributação perfaz-se como uma das modalidades de limitação da esfera

patrimonial, todavia, não se pode confundi-la como expropriação ou atribuí-la, ontologicamente,

caráter confiscatório, uma vez que os tributo constituem-se como instrumento de redistribuição de

riquezas sendo inerente a ele uma contraprestação desigual – maior para uns e menor para outros de

acordo com as demandas e necessidades sociais que também são desiguais (AMARAL, 2006).

Ainda que se mantenha no horizonte e no imaginário social a íntima relação entre tributação e

expropriação ou confisco de bens particulares, delineia-se, com cristalina clareza, os contornos do

que se conhece hodiernamente como solidariedade tributária. Em outros termos, o cidadão passa a

reconhecer o seu dever de colaboração para a concretização dos objetivos precípuos da República

elencados no art. 3º da Constituição vigente o que se traduz, ao fim e ao cabo, no dever fundamental

de pagamento de tributos.

Cabe, aqui, uma importante observação. A percepção deste dever fundamental encontra-se

relacionado à idéia corrente de um Estado portador de uma atitude positiva capaz de propiciar a

construção de um ambiente de confiança e colaboração visando a conformação do cidadão com o

encargo fiscal. Para tanto se requer deste mesmo Estado a demonstração de que as receitas

arrecadadas são empregadas com eficiência e probidade, além da certeza de que a relação

estabelecida entre o “povo” e o ente arrecadador seja o quanto tanto possível simétrica, implicando

na imagem de um Estado cumpridor de seus deveres, inclusive, em seus pagamentos devidos,

quando este for o caso.

Um ambiente de confiança e colaboração, tendo em vista a garantir a adesão do cidadão ao

projeto constitucional rumo a uma sociedade mais justa e solidária, pressupões, dentre outros

fatores, uma profunda mudança paradigmática na qual o cidadão possa ser representado como

aliado do Estado, como participante ativo e atuante e não expectador passivo das políticas públicas

a ele destinadas. Além disso, deve ser tratado com confiança ao invés de ser visto como um

potencial infrator das normas tributárias e, sobretudo, que possa ser, efetivamente, amparado por

garantias legais que lhe proporcione a certeza de um devido processo tributário quando este lhe for

proposto (AMARAL, 2006).

Para além dos pressupostos acima descritos, um ambiente de confiança e colaboração requer,

ainda, o estabelecimento e a observância de duas éticas distintas, embora inter-relacionadas e inter-

dependentes, a saber: uma ética fiscal privada e outra ética fiscal pública.

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A ética privada é uma ética de condutas que norteia o cidadão-contribuinte que tem o dever fundamental de pagar tributos segundo a sua capacidade contributiva. Ao cidadão-contribuinte não é ético contribuir a menos para o montante da riqueza social, em proporção ao que suas faculdades lhe permitiam pagar, o que não deixa de ser uma exigência aristotélica na teoria da justiça tributária contemporânea. Já a ética fiscal pública é informada por quatro valores superiores, a saber, a liberdade, que consiste na aceitação da opção fiscal a ser adotada pelo contribuinte, desde que respeitada a sua capacidade contributiva; a igualdade, no sentido de que todos que estiverem na mesma situação haverão de sofrer a mesma tributação; a segurança, que pugna pela não tributação de surpresa, irracional etc, e finalmente; a solidariedade, ápice da efetivação da ética fiscalpública. (Nogueira, 2002)

Esta construção teórica indica o delineamento do que se pode denominar de justiça tributária

que compreende, dentre outros elementos, a solidariedade com os carentes garantindo-lhes a oferta

de bens primários intributáveis. Parte-se da premissa básica de que os pobres, desempregados e os

assalariados não podem suportar o ônus tributário do Estado, mas, sim, hão que ser suportados pelo

Estado via ética tributária da solidariedade mediante a arrecadação e distribuição de riquezas

oriundas do pagamento de tributos dos cidadãos-contribuintes.

A idéia de cidadania fiscal, defendida pelo Professor José Casalta Nabais, da Faculdade de Direito

da Universidade de Coimbra, deixa antever que a existência de uma cidadania fiscal bilateral

pressupõe que aqueles cidadãos que têm o dever de suportar o ônus financeiro do Estado, ou seja, a

qualidade de destinatários do dever fundamental de pagar tributos, o tem na medida de sua

respectiva capacidade contributiva, isto é, mediante o reconhecimento ético-tributário de que

estamos frente a um Estado Fiscal suportável nos limites dos princípios constitucionais tributários,

que se apresenta como pressuposto, limite máximo e parâmetro do dever de pagamento de tributos

(Nogueira, 2002).

Como pressuposto do dever tributário o aspecto material da capacidade contribuitiva revela-se

na medida em que constitui o seu próprio fundamento. Como limite máximo, opera-se com a idéia

de que ninguém pode legal ou legitimamente ser obrigado a recolher um tributo superior à sua

capacidade econômica. Já o seu caráter de parâmetro surge a partir da aferição da conexão razoável

entre a fatispécie econômica e o montante do dever tributário, bem como, para que seja apurado se

o valor recolhido pelo contribuinte está na medida correta (não pode ser inferior, nem superior) de

suas possibilidades, tendo em vista que é dever de todos concorrer para o financiamento das

despesas públicas na medida de sua capacidade econômica (Nogueira, 2002).

Pelo exposto, vê-se que a resistência à tributação não é uma reação frente à concepção da

cobrança tributária como sendo, em si mesma, ofensiva ao direito de propriedade, mas sim o seu

abuso que pode ser verificado a partir do excesso na tributação revelado por uma alta carga

tributária associada à falta de contraprestação Estatal e à má destinação dos recursos obtidos, bem

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como pela flagrante desigualdade de tratamento entre contribuintes e pela desigualdade de

tratamento na órbita da relação jurídica de direito público, ou seja, entre o Estado e cidadão

contribuinte.

IV. Combate à sonegação fiscal e fortalecimento da cidadania

Paula Diniz Botelho (2005, p.32) traz na sua obra uma classificação possível sobre o tema da

evasão, baseando-se nos ensinamentos de Sacha Calmon Coelho na obra “Teoria da evasão e da

elisão em matéria tributária”.

Desta forma a autora apresenta Evasão como um gênero que abriga duas espécies, a saber,

Evasão omissiva – intencional ou não e Evasão comissiva – sempre intencional.

A evasão omissiva, por sua vez, pode ser subdividida em evasão imprópria, caracterizada pela

abstenção intencional de incidência e em evasão em sentido próprio, designando o que se conhece

tanto como sonegação, esta sempre intencional e quanto como o não pagamento por

desconhecimento ou mau conhecimento do dever fiscal, via de regra uma ação não intencional.

Já a evasão Comissiva pode ser agrupada em Ilícita – fraude, simulação, conluio e Lícita –

economia fiscal ou elisão, conforme se detalhará mais abaixo.

Portanto, de acordo com essa classificação, a evasão poderia tanto decorrer de um não fazer

(intencional ou não), chamada de evasão omissiva, quanto de um fazer, denominada evasão

comissiva, a qual seria sempre intencional.

A evasão omissiva se subdivide em evasão imprópria e evasão em sentido próprio. A

evasão em sentido impróprio significa a abstenção intencional de incidência, ou seja, quando não se

pratica o fato gerador. Por sua vez, a evasão em sentido próprio pode envolver tanto a sonegação

quanto o não pagamento de tributos por desconhecimento ou mau conhecimento do dever fiscal,

sendo que a sonegação tem caráter intencional e os demais não.

Já evasão comissiva divide-se apenas em ilícita e lícita. A evasão comissiva ilícita

remete a fraude, simulação ou conluio. A evasão comissiva lícita inscreve-se no fenômeno da elisão

ou da economia fiscal.

A autora esposa a tese de que, em geral, as formas de resistência são fundadas no desejo

de lucro ou na ausência de inserção num projeto coletivo. Portanto, o descontentamento com o

pagamento dos tributos não decorreria somente da complexidade e da elevada carga fiscal, mas,

principalmente, da insatisfação com a aplicação dos recursos arrecadados pela Administração na

satisfação dos anseios populares mais evidentes.

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Isso posto, de acordo com Botelho (2005, p.35) a evasão em sentido próprio e a evasão

comissiva ilícita apenas serão reduzidas na medida em que os contribuintes passem a se ver como

sujeitos (e não mais somente como objeto) da Constituição. Portanto, passemos a examinar as

referidas formas de evasão.

Conforme já foi dito, a evasão em sentido próprio remete tanto a sonegação quanto ao

não pagamento de tributos por desconhecimento ou mau conhecimento do dever fiscal. Para falar da

sonegação, Botelho (2005, p.33) cita Calmon o qual define a sonegação como a omissão de dados,

informações e procedimentos que causam a oclusão, diminuição ou retardamento do dever

tributário.

No art. 1º da lei 4.729/65, a sonegação é tipificada como a atividade do contribuinte na

qual se suprime ou reduz tributo ou contribuição social, ou qualquer acessório, mediante a prática

das condutas descritas em seus incisos. Ressalte-se que para configuração do tipo penal a sonegação

é exigida a intenção do agente voltada para o não pagamento do tributo.

Em relação ao não pagamento de tributos por desconhecimento ou mau conhecimento

do dever fiscal, Botellho (2005, p.33) expressa, em citação, o entendimento de Calmon no sentido

de que essa teria o mesmo efeito prático da sonegação.

A evasão comissiva ilícita engloba a fraude, a simulação e o conluio. Lembrando as

definições dadas pelo Direito Civil, a fraude consiste em um subterfúgio para alcançar um fim

ilícito, ou ainda, o engano dolosamente provocado, o malicioso induzimento em erro ou

aproveitamento de pré-existente erro alheio, para o fim de enriquecimento ilícito. Na simulação o

ato existe apenas aparentemente. É um ato fictício, que encobre e disfarça uma declaração real da

vontade, ou que simula a existência de uma declaração que se não fez. A simulação visa produzir

efeito diverso do ostensivamente indicado. Por fim, o conluio remete a associação ardilosa para fins

não lícitos.

Como já mencionado, Botelho deposita no reconhecimento dos contribuintes como

sujeitos da Constituição grandes esperanças para redução da evasão em sentido próprio e da evasão

comissiva ilícita. Dessa forma, a autora passa a discorrer sobre o papel da linguagem (discurso) na

formação do sujeito. Para tanto, vai buscar, em estudiosos que se inserem na chamada filosofia da

linguagem, algumas referências.

De acordo com Dummett (1994, p.4-14), a filosofia da linguagem pode ser

caracterizada como a filosofia “pós-fregeana”, pois foi a partir da obra de Frege, marcadamente, Os

fundamentos da Aritmética, de 1884, que se delineou a tão aclamada mudança na ênfase filosófica,

a qual deixa de ser centrada no sujeito, com o subjetivismo da introspecção, passando a se situar na

análise da linguagem.

Page 13: Sonegação fiscal e identidade constitucional

Sem considerar as especificidades de cada filósofo analítico, a filosofia da linguagem se

consubstancia na idéia de que todo pensamento ocorre por meio de signos. O pensamento não se dá

imediatamente, mas é mediatizado por signos, e da mesma forma ocorre com o conhecimento e

acesso a realidade. Portanto, o pensamento é dialógico e não centrado no indivíduo, como ocorria

na tradição cartesiana.

Pode-se dizer que há duas gerações bem distintas a cerca da filosofia da linguagem.

Para a primeira geração a linguagem cotidiana é repleta de problemas, ambígua e imprecisa,

havendo a necessidade de substituí-la por uma linguagem lógico/formal. Caberia, portanto, à

filosofia da linguagem esta missão. Já para a segunda geração, incumbiria a filosofia da linguagem

buscar esclarecer conceitos como verdade, significação e referência. John Austin, filósofo o qual

Botelho faz referência, se insere nessa geração.

Austin elabora a Teoria dos Atos de Fala e propõe, como parte constitutiva de sua

teoria, os atos locucionários, ilocucionários e perlocucionários. Segundo Austin, todo ato de

linguagem é iniciado quando se diz algo. O ato locucionário abrange toda a dimensão do falar à

medida que remete a presença de conteúdo sintático/semântico. De acordo com Austin, o ato

locucionário é constituído por 3 (três) dimensões distintas. A primeira dimensão relaciona-se ao ato

fonético que significa o ato de proferir certos ruídos ou certa seqüência sonora, que Austin chama

de fone. A segunda dimensão é relativa ao ato fático e diz respeito ao proferimento de certas

palavras ou vocábulos pertencentes e em conformidade com certa gramática, que Austin chama de

fema. Finalmente, a terceira dimensão, ou seja, o ato rético, denominado por Austin de rema,

refere-se à utilização de tais vocábulos com certa significação que deve ter certo sentido e

referência.

O ato ilocucionário, por sua vez, não remete tão somente a descrição, mas a criação de

um novo objeto. O ato ilocucionário diz respeito ao modo e ao sentido de como se utiliza a

linguagem em situações particulares e em relação a um contexto definido.

Por fim, o caráter perlocucionário diz respeito aos efeitos que o ato de fala pode

provocar numa pessoa. Este efeito, diferentemente do ato ilocucionário, não é convencional e nem

está ligado a um contexto definido. O efeito pode ser esperado ou não, da mesma forma que pode

ser deliberado ou não. É um tipo de efeito que não se pode ter controle sobre ele.

É importante ressaltar que a separação realizada (ato locucionário, ilocucionário e

perlocucionário) deve ser vista apenas sob a perspectiva técnico-analítica, que foi utilizada tão-

somente para a formulação da Teoria dos Atos de Fala. Segundo Austin, os três atos de linguagem

ocorrem sempre simultaneamente. Portanto, linguagem não se reduz à descrição da realidade,

quando o homem fala está agindo e criando objetos no mundo. Noutros termos, a linguagem não se

Page 14: Sonegação fiscal e identidade constitucional

limita a proposições que apenas descrevem uma ação, uma situação ou um estado de coisa. A

linguagem faz com que algo aconteça, faz com que algo se efetive.

Apresentado Austin, Botelho ressalta que Habermas irá recorrer a idéias austianas para

desenvolvimento da Teoria Discursiva do Direito. Botelho (2005, p.78) ilustra com a afirmação

habermasiana de que qualquer discurso argumentativo é constituído por um ato performático, que

busca dissuadir ou convencer o outro, podendo levá-lo, inclusive, a assunção de obrigações.

A Teoria Discursiva do Direito reconhece a importância das interações intersubjetivas e,

dessa forma, desenvolve um pensamento que concebe a razão enquanto razão comunicativa, que

pode ser definida como sendo "el medio lingüistico, mediante el que se concatenan las interacciones

y se estructuran las formas de vida" (HABERMAS, 1998, p.65). Com efeito, a legitimidade do

Direito assenta-se na possibilidade de aceitabilidade racional por parte dos destinatários dos

resultados de discursos jurídicos de fundamentação e de aplicação. Nesse sentido, Habermas afirma:

Não é a forma do direito, enquanto tal, que legitima o exercício do poder político, e sim a ligação com o direito legitimamente estatuído. E, no nível pós-tradicional de justificação, só vale como legítimo o direito que conseguiu aceitação racional por parte de todos os membros do direito, numa formação discursiva da opinião e da vontade (HABERMAS, 1997, p.172).

Botelho (2005, p.79) afirma que a Teoria do Discurso de Habermas reconhece no Poder

Político duas facetas, quais sejam: o poder da Administração Pública, constituído em termos

jurídicos, instrumentalizado, chamado por Habermas de Poder Administrativo e o poder produtor do

Direito, denominado Poder Comunicativo.

O Poder Comunicativo não se circunscreve no âmbito do ator individual ou mesmo no

domínio estrito de instituições como o Estado. O Poder Comunicativo implica agir comunicativo,

isto é, uma ação voltada ao entendimento no qual o médium lingüístico equilibra as interações.

Nesse sentido, Botelho (2005, p.80) chega a afirmar que “o poder não pode ser

produzido nem armazenado pelo Estado para utilizá-lo nas ‘crises de Legitimidade’.” À medida que

o Direito é compreendido como meio pelo qual se autoriza o Estado a usar a coerção, ele deve ser

fundado nas convicções alcançadas discursivamente pelo Poder Comunicativo. Portanto, o Poder

Comunicativo seria requisito para a produção legítima do Direito. Só através do Direito, o Poder

Comunicativo converte-se em Poder Administrativo de forma legítima.

Habermas considera que a comunicação não pode ser impedida por influxos externos

e/ou por coação. No entanto, o filósofo alemão reconhece a existência de ações estratégicas,

voltadas à obtenção de objetivos pessoais, razão pela qual se faz necessária a regulação normativa

da ação estratégica. Como ressalta Botelho (2005, p.49) essa normatização só pode acontecer

Page 15: Sonegação fiscal e identidade constitucional

através da ação comunicativa, ou seja, somente as partes podem acordar acerca da imposição de

limites ao uso da ação estratégica.

De todo modo, como coloca Botelho (2005, p.52), a ação comunicativa só terá êxito

diante do convencimento, que antes de tudo, requer como fundamento de validade, a garantia do

direito de participação no discurso e a conseqüente obediência às normas reguladoras da ação

estratégica.

Dessa forma, Habermas pressupõe para toda ação comunicativa aquilo que denominou

situação ideal de fala, isto é, a exigência da distribuição simétrica das oportunidades de eleger e

executar atos de fala.

Conforme pondera Botelho (2005, p.82), apesar de Habermas defender a não absorção

do Direito pela política, a Teoria do Discurso exige do Estado Democrático de Direito requisitos

materiais básicos para que a ação comunicativa ocorra. Não obstante, Botelho ressalta que uma

importante consideração de Menelick de Carvalho Neto. O referido constitucionalista acentua que,

de fato, deve ser assegurado a todos oportunidades mínimas para alcançarem condições materiais

necessárias, no entanto o exercício da cidadania não pode ser condicionado à efetividade dessas

prestações publicas materializadoras.

Isso posto, a autora passa a tratar dos riscos do fortalecimento do discurso no combate à

sonegação fiscal. Botelho cogita a perda de credibilidade do discurso por distorções na estrutura da

comunicação e a complexidade dos comandos normativos como fatores que possam prejudicar o

combate à sonegação fiscal.

Botelho (2005, p.92) adverte que, em razão do Poder comunicativo, o contribuinte pode

participar da elaboração de leis sucessivas de anistia ou remissão, enfraquecendo, por conseguinte,

o discurso anterior, que ordenava o pagamento do tributo.

Dessa forma, as anistias e remissões reiteradas podem levar ao enfraquecimento da

coercibilidade jurídica e aumento do hiato entre o comando normativo e o comando social, o que

conseqüentemente leva à ineficácia da norma tributária.

Para Botelho (2005, p.93), outro fator que enfraquece o discurso legal consiste no

desvio ou a malversação de recursos públicos. Todavia, a autora não irá desenvolver este

argumento, mas apenas o exemplifica remetendo a situações como quando a própria administração

fiscal destina contribuições sociais reservadas à Previdência Social para o caixa da União.

Quanto ao risco da complexidade dos comandos normativos a autora propõe algumas

reflexões. Como é sabido, a Teoria Discursiva do Direito apregoa a concessão de oportunidades

comunicativas iguais aos participantes, no entanto Botelho (2005, p.94) acredita que essa

oportunidade possa determinar a elaboração de leis complexas, confusas e incoerentes, de difícil

Page 16: Sonegação fiscal e identidade constitucional

compreensão. Seria, portanto, a complexidade das normas o resultado da própria aplicação da ação

comunicativa no contexto pós-moderno. Assim, Botelho (2005, p.96) conclui que a complexidade

dos comandos normativos pode ser um risco inevitável no contexto do Estado Democrático de

Direito.

No entanto, há de se considerar que, conforme coloca Nabais, na obra “O dever

fundamental de pagar impostos”, a coerência e a harmonização de princípios são requisitos de um

sistema tributário justo.

Isso posto, acreditamos que, uma das formas de dirimir o aparente dissenso entre as

exigências do agir comunicativo e do sistema tributário estaria na liberdade com limites, mesmo

porque para real condição de existência desta deve-se ter aquela. Nesse sentido, nas conclusões

finais de seu livro, a própria autora pondera que uma das características do regime democrático

deve ser “gerir o tributo na estreita margem que existe entre a coação e a liberdade, entre as lutas

contra fraude e as garantias dos contribuintes, entre consentimento e resistência.” (BOTELHO,

2005, p.100).

V. A elisão fiscal (economia fiscal): a lógica do sistema capitalista, ética e punição

Em consonância com o Princípio da Legalidade e da Segurança imputados aos regimes

democráticos, o tributo somente pode ser instituído por lei em sentido material e em sentido formal.

Assim como define, no Direito Tributário pátrio, nos artigos 97 e 108 do CTN, o tributo tem de ser

criado por lei e o emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em

lei, bem como não poderá resultar na dispensa do pagamento de tributo devido.

O Princípio da Legalidade, não obstante, a sua centralidade no sistema jurídico

democrático, mormente como limite imposto ao poder do Estado de tributar, coexiste com outros

Princípios, como a Capacidade contributiva, Princípio da Solidariedade e demais Princípios

Constitucionais, já que não há distinção entre o Sujeito Tributário e o Sujeito Constitucional, como

dito anteriormente.

Em decorrência de um sistema complexo de leis, decretos e medidas provisórias, há

uma idéia perene de anomia, também como conseqüência de uma crescente demanda social acerca

das prestações estatais. Não há correspondência entre sujeito constitucional como projeto de vida

coletivo e o projeto efetivamente concretizado pelos atores políticos e agentes públicos.

A elisão fiscal é considerada lícita, sob o ponto de vista formal da legalidade, já que

ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude lei.

Page 17: Sonegação fiscal e identidade constitucional

Ocorre quando o agente, visando certo resultado econômico, buscasse por instrumentos sempre lícitos, fórmula negocial alternativa e menos onerosa do ponto de vista fiscal, aproveitando-se de legislação não proibitiva ou não equiparadora de formas ou fórmulas de Direito Privado (redução legal das formas ao resultado econômico). Temos a elisão induzida, quando a própria lei deseja o comportamento do contribuinte, por razões extrafiscais. São exemplos a isenção por 10 anos do IR para os lucros das indústrias que se instalem no Norte-Nordeste do Brasil e a celebração de negócios em zonas francas ou com compradores do exterior; e a elisão por lacuna, quando a lei, sendo lacunosa, deixa buracos nas malhas da imposição, devidamente aproveitadas pelos contribuintes. A verdadeira elisão fiscal é esta, por apresentar questionamentos jurídicos e éticos na sua avaliação. Baseia-se na premissa de que se o legislador não a quis, como na elisão fiscal induzida pela lei, pelo menos não a vedou expressamente, quando podia tê-lo feito ( princípio da legalidade). Este princípio, no particular, abriga duas conotações relevantes. A primeira é a de que o contribuinte, observada a lei, não está obrigado a adotar a solução fiscal e jurídica mais onerosa para o seu negócio, pelo contrário, está eticamente liberado para buscar a menos onerosa, até porque sendo o regime econômico considerado de livre iniciativa e de assunção de responsabilidades, prevalece a tese de minimização dos custos e maximização dos resultados. Na elisão, a utilização dos meios ocorre antes da realização do fato jurígeno-tributário ou antes que se exteriorize a hipótese de incidência tributária, pois, opcionalmente, o negócio revestirá a forma jurídica alternativa não descrita na lei como pressuposto de incidência ou pelo menos revestirá a forma menos onerosa.(BOTELHO,2005,p.33-34)

A elisão fiscal pode ser definida, então, como a forma lícita de evitar a ocorrência do

fato gerador do tributo, reduzindo ou impedindo o surgimento do dever tributário. Segundo Paula

Derzi Botelho(2005), a forma de reduzir a evasão fiscal lícita, ou elisão fiscal, só poderia estar

contida no âmbito da implementação de penalidades, já que a razão motivadora do ato não está mais

na não correspondência do projeto individual em relação ao projeto constitucional de Estado:

Como efeito, a resistência motivada por idealismo ( é o caso das revoltas fiscais ou da recusa individual) tende a desaparecer com a maior participação dos insatisfeitos no espaço público, mas aquela motivada pelo lucro, se não for reduzida pela conscientização de seus praticantes, só poderá ser inibida pela dificuldade e pelas conseqüências de levá-la a cabo, diante da indignação que causará em seus pares. Trata-se, portanto, de adicionar ao caráter de ilicitude da sonegação fiscal um componente moral, capaz de provocar repulsa, indignação e desprezo em terceiros, vergonha e culpa no infrator.(BOTELHO,2005, p.35)

Segundo entendimento de Rudolf von Ihering, em seu livro A finalidade do direito, o

mundo existe, por colocar o egoísmo a seu serviço , pagando-lhe a recompensa que ele deseja, ou

seja, define a atuação do ser humano sempre direcionada a um interesse próprio.

A autopreservação e a propagação do indivíduo são condições necessárias para a realização da finalidade da natureza. Como ela atinge essa finalidade? Despertando o egoísmo. Ela realiza isso, oferecendo-lhe um prêmio caso faça o que deveria, a saber, prazer; e ameaçando com punição se não fizer o que deveria, ou se fizer o que não deveria, a saber, sofrimento.... Se existe alguma coisa que confirma minha crença na finalidade da natureza, é o uso que ela faz do sofrimento e do prazer. Imagine-os os ausentes ou trocados, associe sofrimento com alimentação e prazer

Page 18: Sonegação fiscal e identidade constitucional

com morte, e a raça humana desapareceria na primeira geração...As finalidades da vida social também só podem ser atingidas movendo-se o outro lado com a alavanca do interesse, só que o interesse aqui é de uma natureza diferente daquela que é empregada na vida comercial. Aqui é o interesse de entretenimento, de distração, de prazer, de vaidade, de ambição, de respeito social, etc.(MORRIS,p.401,2003)

A cooperação na sociedade para se atingir uma finalidade comum, só é realizada quando

há a convergência de todos os interesses para o mesmo ponto. “Onde não está presente

originalmente, deve ser criado de maneira artificial.”

A teoria de Rudolf von Ihering explica perfeitamente a existência da punição no direito,

mormente em relação à resistência ao pagamento de tributos. Se na busca pelo lucro, pessoas físicas

e jurídicas não se interessam pelo projeto constitucional e não se orientam por questões éticas, não

pelo fato de não estarem incluídas no discurso público, mas por serem, na denominação dada por

Habermas, oportunistas; um interesse “artificial” deverá ser criado pela norma.

Esse interesse artificial pode ser representado pela certeza de punição daqueles que não

cumprem obrigações acordadas em um regime democrático. Segundo Habermas(2002,p.96):

Somente àqueles que têm interesse numa interação regrada apresenta-se como racional a assunção de obrigações mútuas. Assim, o conjunto dos detentores de direitos só pode abranger pessoas das quais, pelo fato de quererem ou deverem cooperar, é possível esperar uma contrapartida. Por outro lado, o hobbesianismo digladia-se em vão com o conhecido problema dos oportunistas, que admitem a praxe comum, mas se reservam o direito de, na primeira oportunidade em que isso lhes trouxer maiores benefícios, divergir das normas gerais acordadas. A personagem do free rider demonstra que um acordo entre interesses não pode per se fundamentar obrigações.

A elisão fiscal se justificaria em um primeiro momento se analisássemos as condições

de refundação do Estado em face da globalização, que segundo Mário Lúcio Quintão(2008, p.360),

revela-se como uma contradição entre a busca pela eficiência e a conseqüente redução dos espaços

públicos para a implementação do discurso( poder comunicativo):

Revela-se, assim, a contradição entre a ampliação de espaços econômicos e sociais, necessários ao desenvolvimento da existência humana, que extrapolam as fronteiras estatais, e a redução drástica dos espaços políticos, evidenciada na legitimação política do sistema, na qual se prioriza a eficiência em detrimento do princípio democrático.

O Estado não é mais tido como instituição máxima de concretização dos projetos

humanos, já que a sociedade também se organiza em sistemas autônomos de poder, tais como as

organizações, fundações, para a realização de serviços essenciais. Sendo assim, se o Estado não é

Page 19: Sonegação fiscal e identidade constitucional

única instituição legítima, questiona-se a validade da norma imposta e a possibilidade da

coexistência de outras regras, como as determinadas pelo mercado.

Segundo Mario Lúcio Quintão(2008, p.360), no limiar do terceiro milênio, a

globalização é um processo policêntrico, na há mais a designação de um centro de poder político, e

ocorre nas áreas da economia, política, tecnológica, militar, cultural e ambiental:

O discurso da global governance torna-se sedutor, ao perceber o mundo como fábula, recortada por metáforas e fantasias, dentre elas a multiplicação de objetos e serviços, acessíveis a todos.Tais fantasias alimentam o imaginário coletivo. As bases materiais dessa mitificação situam-se na realidade da tecnologia atual, em que a técnica apresenta-se ao cidadão comum como uma mescla de mistério e banalidade.

Destaca-se a tensão permanente entre as fabulações da globalização econômica, com

sua lógica de cálculos de custos e benefícios, e o discurso sobre os fundamentos democráticos do

Estado Constitucional.

Para Milton Santos, a globalização em si pode ser considerada um retrocesso quanto à noção de bem público e de solidariedade, do qual é emblemático o encolhimento das funções sociais e políticas do Estado constitucional, gerando, em vez de abundância e riqueza, autêntica fábrica de pervesidades.

O Direito também não pode ser considerado como uma rígida pirâmide a fim de apurar

a validade da norma em relação a uma norma fundamental constituinte, já que como segundo Paula

de Abreu Machado Derzi Botelho(2005), a pós-modernidade é marcada pela ausência de normas,

pela incerteza e pela mudança constante. É o que asseverou Marc Pelletier:

A complexidade e o pluralismo aos quais são confrontadas as sociedades diferenciadas deixarão em suspenso as representações tradicionais do sistema jurídico. A metáfora da pirâmide Kelsiana do ordenamento jurídico cederá, por isso, o lugar a uma representação do sistema jurídico centrado sob o modelo de uma rede entrelaçada. À verticalidade de uma ordem jurídica imposta sucederiam a circularidade e a horizontalidade de um tecido normativo negociado, na medida em que as considerações de eficiência das políticas públicas tendem a disputá-lo à validade formal do direito. A fim de considerar esse fenômeno, certos autores se propõem a recorrer a um novo conceito: a pós-modernidade.

Segundo Mizabel Derzi, pode-se destacar a negociação para a formação do direito:

A formação do direito e sua aplicação – mesmo no campo tributário- parecem cada vez mais negociadas. Diferentes alternativas, para a resolução das controvérsias tributárias com participação ativa do contribuinte ou seu consenso, são adotadas em ordens jurídicas distintas, com limites mais ou menos estreitos, com a transação, os acordos prévios de valoração de bases, e arbitragem. (BOTELHO, 2005)

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Paula de Abreu Machado Derzi Botelho (2005) destaca como risco na ação

comunicativa, em decorrência da complexidade social, o neo-corporativismo, a invisibilidade do

imposto na economia globalizada e a economia informal.

O Neo-corporativismo é marcado pelo uso excessivo da negociação, em detrimento da

comunicação, e na teoria habermasiana, caracteriza-se pelas ações estratégicas que visam

primordialmente concretizar interesses particulares inerentes a cada grupo de interesse.

Neste caso, não há distribuição de oportunidades iguais aos partícipes do discurso para a

demonstração das razões argumentativas para a confirmação de direitos, mas a delegação de

poderes é desigual, e no caso tributário, somente as grandes corporações são chamadas pelo Fisco, a

negociarem suas dívidas. Sendo assim, a norma perde seu valor sancionatório, mormente em

relação aos denominados “oportunistas” que podem divergir do comando legal, sempre que não lhes

sejam benéficas.

Um exemplo citado está presente na guerra fiscal dos estados, à medida que os

Executivos estaduais asseguram vantagens tributárias a grandes empresas nacionais ou

internacionais, em troca de instalação de fábricas e filiais em seus territórios. E, segundo a autora, a

redução na arrecadação é compensada pela tributação de gêneros essenciais à população, como

combustíveis, energia elétrica.

O problema essencial é que não há reciprocidade prestacional em correspondência com

as expectativas do contribuinte que aguarda do Estado a aplicação eficiente e eficaz dos recursos

orçamentários, mas ao contrário, estes podem atender a reivindicações de grupos específicos de

interesses.

Em decorrência da redução da atuação estatal e da lógica capitalista agravada pela

globalização,o surgimento da moeda e comércio eletrônicos, proliferação das empresas de prestação

de bens corpóreos, traz a redução na arrecadação, o que leva à necessidade de reformulação do

sistema fiscal e a reafirmação das idéias de descentralização e autonomia financeira e fiscal das

coletividades locais.

A invisibilidade do imposto na economia globalizada não permite que o indivíduo

reconheça o quantum de sua contribuição para a formação da sociedade, o que “ não deixa de ser

um símbolo de sua inserção.” Como afirma Paula de Abreu Machado Derzi Botelho(2005, p.97),

no caso do ICMS, não há a imediata percepção, pelo contribuinte, do montante pago ao Estado.

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Outra conseqüência gravosa decorrente da desregulamentação e da retração do Estado

na seara econômica é o aumento da economia informal e a redução de receitas. “Cada vez menos

Estado, cada vez menos imposto, cada vez mais mercado.”

VI. Conclusão

Pelo exposto na obra de Paula Derzi Botelho o fortalecimento da identidade constitucional -

nos termos propostos por Michel Rosenfeld – apresenta-se como uma poderosa arma de combate à

sonegação fiscal já que o descontentamento com o pagamento dos tributos decorre tanto da

complexidade e da elevada carga fiscal quanto da distância entre o cidadão e o projeto

constitucional vigente auferida, principalmente, pela insatisfação com a aplicação dos recursos

arrecadados pela Administração na satisfação dos anseios populares mais evidentes (saneamento

básico, saúde, educação).

A inclusão do cidadão contribuinte no debate público sobre tributos e sua destinação,

discursivamente forjado, mostra-se essencial para o estabelecimento de uma ética tributária

comprometida e estruturante de uma sociedade justa e solidária, de acordo com os preceitos

constitucionais vigentes, já que é a correspondência entre o povo-legislador e o povo-destinatário o

mecanismo legítimo capaz de mostrar-se eficaz para se garantir a realização da democracia e da

efetividade da norma, inclusive aquela que institui e exige os tributos.

Page 22: Sonegação fiscal e identidade constitucional

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