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1 SONIA BIEHLER MEMORIAL - Doutora Sonia, é um prazer tê-la conosco, o Memorial do Judiciário sente-se honrado em poder entrevistá-la. Esta entrevista visa à edição, à publicação de um livro, talvez mais para o fim do ano, e tem como objetivo escrever sobre a vida profissional da mulher no Judiciário. Como a mulher veio engrandecer, ou não - como a senhora disse -, os trabalhos no Judiciário? Qual foi a diferença que a mulher trouxe? O que a mulher acrescentou? A sensibilidade, o pensamento feminino, a forma feminina de pensar, de agir. Gostaríamos também de saber alguns detalhes da sua vida, o que a levou a estudar Direito, o que a levou a entrar para a Magistratura e o caminho que a senhora percorreu no Poder Judiciário. ENTREVISTADA – Fico muito satisfeita de ter sido convidada para prestar essas informações, marcando a história da mulher no Judiciário. Acredito que a minha inclinação pelo Direito tem origem no meu desejo de Justiça, de querer a solução de conflitos, e surgiu na época da adolescência, porque eu era bastante jovem (adolescente) quando fiz o curso. Durante o curso de direito, logo me vi identificada com aquele meu objetivo inicial de solucionar conflitos. Mas sem muita inclinação para o exercício da advocacia, pois era preciso tomar partido, o que muitas vezes não me parecia adequado e nem combinar com as minhas convicções. Pareceu-me que a Magistratura dar-me-ia mais oportunidade de solucionar qualquer conflito de acordo com as minhas convicções. Certamente, sempre atendendo a lei, pois dela não se pode fugir nunca, mas interpretando-a de acordo com as minhas convicções. Fiz uma experiência como advogada, durante um ano, com colegas recém-formados, mas não me motivou. Então, fui estudar para fazer o concurso numa época em que efetivamente não se acreditava que eu seria admitida para fazer o concurso – o problema não era que não eu fosse passar. Depoimento concedido à historiadora Rosa Neuman e à estagiária Sílvia Mateus, em 16 de maio de 2007, no Memorial do Judiciário do RS. Degravação do Departamento de Taquigrafia e Estenotipia do TJ/RS. Textualização de Sílvia Mateus.

SONIA BIEHLER MEMORIAL · preocupações, porque eu sabia que, na minha falta, os meus filhos ficariam amparados pela minha pensão. ... Então, o modelo estava estabelecido, seguindo-se

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SONIA BIEHLER ••••

MEMORIAL - Doutora Sonia, é um prazer tê-la conosco, o Memorial do Judiciário

sente-se honrado em poder entrevistá-la. Esta entrevista visa à edição, à publicação de um

livro, talvez mais para o fim do ano, e tem como objetivo escrever sobre a vida profissional da

mulher no Judiciário. Como a mulher veio engrandecer, ou não - como a senhora disse -, os

trabalhos no Judiciário? Qual foi a diferença que a mulher trouxe? O que a mulher

acrescentou? A sensibilidade, o pensamento feminino, a forma feminina de pensar, de agir.

Gostaríamos também de saber alguns detalhes da sua vida, o que a levou a estudar

Direito, o que a levou a entrar para a Magistratura e o caminho que a senhora percorreu no

Poder Judiciário.

ENTREVISTADA – Fico muito satisfeita de ter sido convidada para prestar essas

informações, marcando a história da mulher no Judiciário.

Acredito que a minha inclinação pelo Direito tem origem no meu desejo de Justiça, de

querer a solução de conflitos, e surgiu na época da adolescência, porque eu era bastante jovem

(adolescente) quando fiz o curso.

Durante o curso de direito, logo me vi identificada com aquele meu objetivo inicial de

solucionar conflitos. Mas sem muita inclinação para o exercício da advocacia, pois era preciso

tomar partido, o que muitas vezes não me parecia adequado e nem combinar com as minhas

convicções.

Pareceu-me que a Magistratura dar-me-ia mais oportunidade de solucionar qualquer

conflito de acordo com as minhas convicções. Certamente, sempre atendendo a lei, pois dela

não se pode fugir nunca, mas interpretando-a de acordo com as minhas convicções.

Fiz uma experiência como advogada, durante um ano, com colegas recém-formados,

mas não me motivou. Então, fui estudar para fazer o concurso numa época em que

efetivamente não se acreditava que eu seria admitida para fazer o concurso – o problema não

era que não eu fosse passar.

• Depoimento concedido à historiadora Rosa Neuman e à estagiária Sílvia Mateus, em 16 de maio de

2007, no Memorial do Judiciário do RS. Degravação do Departamento de Taquigrafia e Estenotipia do TJ/RS. Textualização de Sílvia Mateus.

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Havia um momento preliminar em que a inscrição era examinada, sendo aprovada, ou

não. Ainda não era o concurso, era antes dele. Na época, eu já estava casada e tinha filhos e

achava que essas condições de vida pudessem ser entendidas como um fator não-conveniente

ao exercício da Magistratura na visão dos Desembargadores que compusessem aquela

Comissão de Concurso.

Mas a minha inscrição foi acolhida, fiz o concurso, e fui aprovada. Então, percebi que

não acreditar que pudesse ser aprovada era fruto da minha insegurança.

MEMORIAL - Doutora, em que época foi isso?

ENTREVISTADA – O concurso começou em 77 e continuou em 78. Eu assumi em

78. Junto comigo entraram mais duas mulheres, a Jane Maria Rosa e a Leila Vani Pandolfo.

Então, éramos três mulheres nesta turma.

A minha determinação em fazer o concurso foi reforçada pela necessidade de ajudar a

sustentar a minha família. A Magistratura ocupava um lugar importante nas minhas

preocupações, porque eu sabia que, na minha falta, os meus filhos ficariam amparados pela

minha pensão. Isso era bem claro para mim naquela época. Penso que o espírito materno de

proteção falou mais alto do que outra coisa.

Durante as provas do concurso, não pude perceber nada que viesse em detrimento da

minha condição de mulher. Nunca tive qualquer dificuldade em relação à minha condição

feminina, sempre considerei que as mulheres faziam o mesmo trabalho que os homens, não

havia diferença.

Então, o modelo estava estabelecido, seguindo-se esse modelo, se um Juiz homem

tivesse problema, uma Juíza mulher também teria problema. Nunca tive dificuldade nenhuma

pela condição de ser mulher.

MEMORIAL – A senhora foi nomeada e iniciou em que comarca?

ENTREVISTADA – Faço parte da última turma de Juízes Adjuntos, que era uma

condição intermediária do Juiz. O Juiz assumia como Adjunto, tendo competência para

determinadas causas; depois do estágio probatório, era efetivado como Juiz de Direito.

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Assumi em Porto Alegre, porque o meu estágio seria aqui, onde fiquei um ano, creio.

Depois de efetivada, fui para a minha primeira comarca, que foi Antônio Prado, acho que era

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Novamente, fiquei preocupada, porque era uma comarca do Interior com colonização

essencialmente italiana e nunca tinha tido uma Juíza.

Mas nunca tive dificuldades, inclusive comecei a entender melhor as relações familiares

na colonização italiana, da qual eu tinha uma idéia equivocada, pois pensava que era o homem

o chefe da família, mas não é. É a mulher quem chefia, a mamma. No entanto, ela não afeta a

condição de autoridade daquele homem, ela diz como ele deve fazer. É muito interessante, e

eles convivem muitíssimo bem, porque ela não se arvora num lugar de autoridade, ela possui

uma autoridade latente, ela comanda, tanto que é a avó ou a mamma que dá as coordenadas, e

todos relacionam-se bem.

Eu, realmente, não tive nenhuma dificuldade e achei muito interessante quando uma

testemunha disse: “Olha, o zuiz que é uma zuíza”. Então, para mim, foi tranqüilo.

MEMORIAL – O respeito pela mulher, numa sociedade matriarcal, então realmente

não afetou.

ENTREVISTADA – Não afetou. Talvez tivesse afetado se eu tivesse pego uma

cidade de campanha, pois ouvi falar sobre o gaúcho machista da campanha, mas não sei dizer,

porque nunca estive nesta região.

Depois fui para Osório, uma cidade de origem açoriana, completamente misturada,

mas nunca senti preconceito. Na época, havia muitos funcionários públicos provenientes de

vários lugares. Lá, também foi muito tranqüilo, inclusive houve um envolvimento com a

comunidade muito grande, bem maior do que em Antônio Prado.

De lá fui para Novo Hamburgo, colonizado pelos alemães. Foi muito bom trabalhar

em Novo Hamburgo, pois tudo funcionava, as pessoas queriam que tudo fosse bem feito, que

tudo fosse bom, que tudo tivesse aspectos positivos, havia um envolvimento muito grande

com o trabalho, que é característico da colonização alemã.

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Éramos um grupo bem interessante, havia Pretoras mulheres; mas eu era a única Juíza

mulher. No mais, eram só colegas homens.

MEMORIAL – A senhora foi a primeira?

ENTREVISTADA – Em Osório, tenho certeza de que não fui a primeira, pois a Dra.

Ana Lúcia Paiva esteve lá antes de mim. Não consigo lembrar, mas acho que não fui a

primeira em Novo Hamburgo.

Na minha época, as mulheres estavam em maior número na Pretoria. Havia um

pequeno número de Promotoras. Em Antônio Prado, trabalhei com uma Promotora. Em

Osório, não trabalhei com Promotora, eram as Pretoras e um colega homem.

De Novo Hamburgo, vim para Porto Alegre.

MEMORIAL – Aqui em Porto Alegre, que Vara a senhora assumiu?

ENTREVISTADA – Aqui, fui efetivada na 15ª Vara Cível, onde comecei com o meu

estágio na época em que as Varas não eram duplicadas. As Varas eram duplicadas apenas no

papel, na infra-estrutura, era um Cartório com duas Varas e com dois Juízes. Trabalhei com o

Des. Englert e com o Des. Ferrari. O Des. Englert era da 15ª Vara Cível, e o Des. Ferrari era

da 7ª Vara Cível.

Passaram-se os anos e constatei uma diferença forte entre a mulher e o homem na

Magistratura.

MEMORIAL -- Qual foi a diferença que a senhora constatou?

ENTREVISTADA – A aposentadoria especial, pois só havia aposentadoria especial

para os homens; para as mulheres não havia.

Atualmente, não sei como está a aposentadoria, porque nunca mais pensei sobre este

assunto.

Na época, os magistrados se aposentavam com 30 anos de trabalho, enquanto os

demais trabalhadores homens se aposentavam com 35 anos de trabalho.

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As magistradas também se aposentavam com 30 anos de trabalho, enquanto as demais

trabalhadoras mulheres também se aposentavam com 30 anos de trabalho.

Então, quando fiz 25 anos de serviço, pedi a minha aposentadoria com esse argumento

e não ganhei, porque eu queria sair, queria ir embora. Pedi também aposentadoria proporcional

e não consegui, mas tudo administrativamente, pois não queria estressar-me com a discussão

judicial. Acho que foi nessa época que tentei mudar de rumo. Pedi o reingresso na

Universidade e voltei a estudar, fui fazer Psicologia.

Então, ficou difícil atender a Vara Cível e a Faculdade de Psicologia, por isso pedi para

assumir uma Vara Criminal com menos trabalho, enquanto a minha história esteve sempre

mais voltada para o Cível. Assim, nos meus últimos três anos de Magistratura, fiquei numa

Vara Criminal para ter mais tempo para fazer a minha graduação em Psicologia.

MEMORIAL – Em qual Vara Criminal a senhora trabalhou?

ENTREVISTADA – Na 12ª Vara Criminal.

MEMORIAL– Ela se dedica a entorpecentes?

ENTREVISTADA – Não, era uma Vara comum a todos os crimes, que foi

transformada num Juizado Especial de também todos os crimes. Na época, a minha motivação

já havia encerrado, eu estava mais motivada com a Psicologia do que com a Magistratura.

Então, assim que fiz 30 anos de serviço, fui embora, fui atrás da Psicologia, inclusive fiz

Mestrado na área de Psicologia, mas nunca abandonando o Direito, usando a Psicologia para

olhar as matérias do Direito.

MEMORIAL – Até porque caminham paralelamente.

ENTREVISTADA – Caminham paralelamente, mas, às vezes, não são aceitas nessa

caminhada.

MEMORIAL– Como Juíza que a senhora achou que foi mais exigente com a mulher?

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ENTREVISTADA – Sim, quando tinha que resolver os casos.

MEMORIAL – Mesmo que a senhora tenha colocado, e concordo plenamente, que

não existem diferenças tão gritantes entre homens e mulheres - salvo as biológicas -, como

somos mais sensíveis, mais delicadas, temos uma forma diferenciada de pensar, um olhar

diferenciado sobre uma mesma questão, a senhora pensa que esses sentimentos inerentes à

mulher causam alguma diferença na hora de julgar, na hora de ponderar sobre algum aspecto?

ENTREVISTADA – Penso que as condições particulares de qualquer ser humano -

sendo homem ou mulher - estão envolvidas na hora do julgamento. Existem homens mais

sensíveis, que se afetam com a, b e c, e existem mulheres que se afetam com y, z e h.

Pareceu-me que, apesar de ter trabalhado como os homens, em relação à mulher exigia-

se um posicionamento diferente. Eu penso assim, porque o homem como poder é machista,

acaba tendo uma postura maior de proteção, de reconhecimento das necessidades da mulher, o

que, na minha forma de pensar, encobre um corte na independência, na autonomia da mulher,

pois, como não consegue fazer, ela precisa de proteção.

Eu, como magistrada, nunca concordei com esta postura. Penso que a mulher e o

homem são capazes de enfrentar a vida ombro a ombro; não é por ser mulher que precisa de

proteção maior. Talvez eu tenha sido muito exigente com a mulher.

MEMORIAL– Nas comarcas do Interior, normalmente os Juízes assumem todas as

áreas do Direito: eleitoral, criminal, de família, etc.

Em relação às questões de família e da infância e da juventude, a senhora pensa que há

diferença por causa da sensibilidade, da maternidade ou a senhora sempre conseguia seguir a

letra fria da lei?

ENTREVISTADA – Realmente, não. Eu não tive interesse pela jurisdição de uma

Vara de Família pela minha exigência com as mulheres. Eu, francamente, não gosto de dizer:

“isso é para mulher” ou “isso é para homem”. Às vezes, surpreendemo-nos ao ouvir um

homem tratar de uma questão de família, assim como também nos podemos surpreender com

uma mulher, que teria mais sensibilidade, mas é muito mais dura.

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MEMORIAL – São formas de olhar.

ENTREVISTADA – Volto a insistir, porque cada um é cada um na hora de decidir.

E toda a história de vida sempre acompanha a pessoa.

Então, quando há o envolvimento com uma questão do outro, da família do outro ou

até da própria família, muitas vezes nos batemos de frente com a nossa história. Isso acontece

seja com homem, seja com mulher, cada um tem a sua história, não se pode sair dela, podemos

apenas administrá-la.

MEMORIAL – Doutora, nestes 30 anos certamente houve fatos que marcaram a sua

trajetória, às vezes até hilários ou penosos. A senhora teria alguns fatos sui generis para nos

relatar?

ENTREVISTADA – Não posso dizer que seja sui generis, mas, quando cheguei em

Novo Hamburgo, a primeira audiência que fiz foi de busca e apreensão de um menino, em

cumprimento a uma carta precatória de Curitiba. Os advogados eram competentes, exigentes,

queriam levar a criança, mas resolvi ouvir a criança, e ela não queria ir.

Essa minha atuação não estava conforme, porque uma carta precatória deve ser

cumprida sem discussão. Foi muito difícil, e eu não cumpri a carta. Havia desespero da criança

e também da mãe, que já andava fugindo. Deparei-me com uma mãe com seriíssimas

dificuldades econômicas e um pai poderoso economicamente, bem representado por

advogado. Aquela situação foi muito difícil, foi um atrito muito grande com o advogado.

Eu não cumpri a carta no sentido de entregar a criança, mas também não deixei a

criança sair com a mãe para não propiciar uma nova fuga. A criança foi para um hotel

acompanhada de um Oficial de Justiça e de uma pedagoga.

O pai entrou com mandado de segurança e conseguiu, mas não fui eu que dei. Foi

muito difícil, conturbou a comarca inteira, foi uma comoção.

Foi difícil também porque eu não conhecia as pessoas com as quais estava lidando, os

meus funcionários, eu estava chegando, era meu segundo dia. Para mim, a relação com os

funcionários sempre foi muito importante, porque me complementava.

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MEMORIAL – Doutora, a senhora trabalhou no Judiciário ativamente num período

interessante da história, não só gaúcha e brasileira, como até internacional. Nesse período

houve muitas mudanças, a conjuntura política mudou. A senhora trabalhou em plena Guerra

Fria, depois em plena Ditadura no Brasil e na América Latina como um todo. Fim da Ditadura,

a esquerda no poder, em que medida essas alterações políticas, sociais e econômicas também –

fomos, nesses últimos 50 anos (a senhora trabalhou 30 anos, foi bem no miolo), de um país

agrícola para um país industrial - tiveram importância no Judiciário? Estatisticamente, alterou a

quantidade de novos crimes? A senhora vem do Cível, quanto às relações comerciais,

internacionais, qual a sua posição?

ENTREVISTADA – Quanto à questão econômica, em Novo Hamburgo, foi um

período em que fiquei muito impressionada com a quantidade de falências e concordatas.

Antônio Prado era uma cidade pequena e possuía apenas duas, três empresas. Osório era uma

cidade que não possuía característica industrial. Então, eu não havia passado por essa

experiência e foi muito forte.

Tudo por causa da taxa de câmbio baixa, dificuldades na exportação e na indústria de

calçados no Vale dos Sinos.

Sempre lembro aquela época em que também houve uma crise envolvendo a taxa de

câmbio, porque havia contratos de câmbio. O dólar era recebido antecipadamente, antes de a

exportação ser feita, mas nem sempre esse dinheiro era aplicado como deveria. Então, no

vencimento do contrato, quando o câmbio estava mais alto do que quando fora contratado,

havia dificuldade de pagar o valor dos dólares adiantados, e isso gerou grande confusão

econômica.

MEMORIAL – Essas confusões chegaram ao Judiciário?

ENTREVISTADA – Sim. Inclusive, em Novo Hamburgo, parece-me, foi criada,

antes da Vara de Família, uma Vara de Falências e Concordatas, pois uma quantidade muito

grande de processos relacionados a este assunto surgiu. Essas questões de política econômica,

que estamos ouvindo hoje, também ocorreram naquela época.

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Então, a questão de como o Judiciário poderia controlar aquelas massas falidas sempre

foi muito preocupante, assim como quem seria o síndico, pois não há síndico em tempo

integral, e penso que, para garantia, deveria haver. Durante este tempo que passou, houve

muitas mudanças na lei, sei que a Lei de Falências foi mudada, mas também não sei como

ficou.

Essa foi uma dificuldade que tive, pois queria muito alguém da minha confiança, mas

não é simples, as pessoas tinham as suas atividades e não podiam dedicar-se exclusivamente a

cuidar de algumas falências.

Em Novo Hamburgo, foi uma surpresa a repercussão econômica das ações

alimentícias. Quando vim para Porto Alegre, fiquei como Substituta no distrital do Alto

Petrópolis e impressionaram-me os valores que as pessoas podiam pagar de pensão alimentícia.

Ficou muito clara a diferença econômica entre quem discute pensão alimentícia em

Novo Hamburgo e em Alto Petrópolis. Em relação a esse aspecto, vê-se que ali é um bairro -

já era um bairro - com vilas também de muita pobreza, mas Novo Hamburgo estava naquela

fase de capital internacional do calçado, já havia também salários mais altos, mais emprego.

Então, as questões econômicas sempre mostraram essa desigualdade social, mas não

vejo que o Judiciário tenha ingerência sobre isso.

MEMORIAL -– Não tem ingerência, mas repercute.

ENTREVISTADA – Repercute, certamente, porque precisa tratar. O que se vai fazer

com quem não tem dinheiro para pagar pensão?

MEMORIAL – A desigualdade social repercute diretamente dentro do Judiciário, não

apenas no caso da pensão alimentícia.

ENTREVISTADA – Claro, pois é no Judiciário que as pessoas têm expectativa de

solucionar os seus conflitos.

Mas parece-me que não é do Judiciário a competência para aplacar a desigualdade,

apesar de, por decisões ou pela jurisprudência, construir-se também outras brechas na

legislação.

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O Código do Consumidor também é fruto desta busca de tratamento mais igualitário

para uma grande diferença - o dono da empresa e o consumidor.

Chamou também a minha atenção, na área criminal, a violência doméstica.

MEMORIAL – Este assunto é interessante, gostaria que nos falasse detalhadamente.

ENTREVISTADA – Na época, eu não me conformava com a jurisprudência de que

o Judiciário não precisava meter-se nas questões familiares. Então, havia uma grande

condescendência com o agressor. E, se o agressor fosse condenado, a apelação era amenizada.

MEMORIAL – Derrubava a sentença.

ENTREVISTADA – Era uma postura, eu sempre insisti na questão da violência

doméstica, assim como sempre insisti na questão da direção perigosa também. Nesses três

anos, sempre fui bem condenadora. Sei dos problemas da condenação, mas acredito que

também tem um caráter pedagógico.

Então, é uma questão de aprendizagem, não penso que se condena apenas para colocar

no presídio, quem errou tem que sentir que errou. Existe penas alternativas que podem ser

utilizadas, a questão é sua aplicação. Talvez não se tenha uma estrutura pronta que possa dar

conta de muita pena alternativa. E eu não saberia dizer como anda esta questão.

MEMORIAL – Na violência doméstica, normalmente o homem age contra a mulher

e contra as crianças ou existem outras situações?

ENTREVISTADA – Na época, o que ocorria era o homem bater na mulher, não nas

crianças. Porque a questão é o quanto a criança é atingida e o quanto ela também nunca foi

muito valorizada, aliás, ainda não é muito valorizada, mas já foi bem pior.

MEMORIAL – A senhora esta falando no sentido do pouco apreço, da pouca atenção

dada à criança que está vendo aquela violência? No sentido daquele trato psicológico que ela

necessita?

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ENTREVISTADA – É, neste sentido. O reflexo de um pai que bate na mãe e os

filhos veem isso. Depois, querem colocar todos no presídio como solução da violência. A

questão da violência não está fora, a questão da violência está dentro da casa. Sempre achei que

era ali que precisava começar a dar um rumo.

MEMORIAL – Vinte anos antes.

ENTREVISTADA – Sim. Outro fato que me marcou aconteceu na Vara Criminal,

em Porto Alegre, onde tive que ouvir uma moça, de 24 anos, que havia sido estuprada, no

Parque da Redenção, por quatro rapazes. Ela estava com o namorado, eles imobilizaram o

rapaz e estupraram a moça.

Ela chegou para conversarmos, e fiquei bastante preocupada, achei muito difícil fazer

as perguntas, tratar sobre o tema com ela, pois imaginei que tudo voltaria, ela reviveria.

MEMORIAL – Como se ela fosse violentada novamente.

ENTREVISTADA – Esse fato foi marcante porque, nessa época, eu já estava

envolvida com a Psicologia, e aquela situação me fez pensar em como seria grave ouvir uma

criança que tenha sido abusada sexualmente.

Nessa época, minha amiga Veleda estava fazendo uma pós-graduação, uma

especialização, em Processo Penal Civil, mas estava em dúvida sobre que trabalho fazer.

Trocamos idéias e a questão da inquirição de uma criança abusada foi o tema que nos causava

angústia.

Ela fez o estudo e publicou um livro - foi um belíssimo trabalho –, que foi uma das

primeiras obras sobre a questão do abuso. Ela diz que precisaria haver outras maneiras de

ouvir as crianças, e discorre sobre outros modos existentes de ouvir as crianças.

O Dr. Daltoé criou em cima disso o depoimento sem dano, que hoje é um sucesso em

todo o Brasil.

O Código não traz a maneira de ouvir as crianças. Se é difícil um adulto relatar esse

tipo de experiência, imagine fazer uma criança contar, pois é uma repetição de danos. Então,

dentro da seqüência histórica, esse fato foi muito interessante.

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Isso também me motivou estudar a questão do abuso sexual infantil intrafamiliar.

Então, junto com a minha amiga e também separadamente, estudei e fiz a minha dissertação de

Mestrado envolvendo esse assunto.

MEMORIAL – Talvez por isso a senhora diga que é uma pessoa bastante dura com a

mulher, porque, às vezes, as mulheres estão envolvidas nos abusos sexuais.

ENTREVISTADA – Quando se estuda, entende-se por que a mulher, mesmo

sabendo, não faz nada. É porque ela também foi abusada, passou por aquilo, e ninguém fez

nada por ela.

A minha decisão em fazer a dissertação sobre este tema tem a ver com uma sentença

absolvendo um avô que abusava da neta há 6 anos, onde o argumento aceito foi a alegação da

mentira da menina, pois ninguém conseguiria, durante 6 anos, abusar de alguém e não ser

descoberto.

Mas uma característica do abusador é manipular a situação familiar de forma que se

mantenha o segredo – o segredo é um componente do abuso sexual -, para que ele continue

abusando, porque vai pressionar, vai prometer matar a mãe.

Por isso, por intermédio da Psicologia, examinei esse assunto.

MEMORIAL – Mais alguma lembrança ou alguma colocação que tenha ocorrido até a

sua aposentadoria?

ENTREVISTADA – Dessa minha experiência, achei muito bom trabalhar em Porto

Alegre. O meu conceito de bom está relacionado com o fato de haver funcionários – os

funcionários eram excelentes -, as coisas funcionarem, o trabalho render. O meu conceito de

bom está relacionado com a minha equipe, com as pessoas com quem trabalho. Não adiantava

estar com o meu trabalho em dia se o cartório não fizesse a sua parte, colocando os processos

em dia. Pois, se os processos nem viessem para mim, certamente não teria o que fazer.

O bom é quando o grupo trabalha em conjunto, e a turma de Porto Alegre foi muito

eficiente, todos eram muito competentes, muito cuidadosos. Foi assim tanto no Cível, onde

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havia muito mais processos, como no Crime. Eu saí de uma Vara Cível, que tinha 2.000

processos, e fui para uma Vara Criminal, que tinha 250 processos.

MEMORIAL – Mais alguma colocação?

ENTREVISTADA – Não saberia dizer. Como estás mais acostumada, talvez se tu

perguntasse alguma outra coisa, ficaria mais fácil.

MEMORIAL – Eu acho que a senhora fez um excelente relato, é muito boa oradora,

mas, na nossa conversa preliminar, a senhora falou que, após a sua aposentadoria, começou a

participar de uma ONG. A senhora poderia falar desse período, depois da sua aposentadoria, o

trabalho que a senhora vem desenvolvendo nesta ONG e fora dela.

ENTREVISTADA – Eu fiz o meu Mestrado em Florianópolis, na Universidade

Federal de Santa Catarina e, quando cheguei, recebi um convite do João Abílio, um colega

também aposentado – conhecemo-nos em Osório -, para participar de uma ONG envolvida

com a efetividade dos direitos humanos.

Levando em conta aquela amizade de tantos anos e o fato de ele ser uma pessoa

maravilhosa, resolvi ser uma colaboradora voluntária desta ONG, cuja missão é a inclusão

social pela efetivação dos direitos humanos. Se tens os teus direitos efetivados, tens casa,

educação, saúde, trabalho, respeito às leis trabalhistas, serás um cidadão diferenciado de

quantos andam por aí hoje sem acesso a esses direitos.

A nossa ONG é o Instituto de Acesso à Justiça, mas não é a justiça judiciária, é a

justiça no sentido amplo. Justiça significa ter escola para os filhos, ter casa, ter saúde, ter

atendimento médico. Mas hoje há violação em todos os sentidos e pretende-se que esse

cidadão violado seja um cidadão exemplar. Na medida em que não é exemplar, é excluído, sem

falar no racismo, no preconceito com relação à sexualidade.

Os direitos humanos significam, na nossa vida, tudo o que implica respeito a nossa

dignidade, e são muitas nuances, mas só podemos trabalhar em cima de algumas. Então,

trabalhamos com o adolescente em conflito com a lei e com o preso. Neste contexto foi

terminado um projeto muito interessante com o Observatório de Direitos Humanos no

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Presídio Feminino Madre Pelletier, está sendo impresso um relatório e vai ser feito um

seminário.

Como as equipes que trabalham são muito competentes, o trabalho acaba sendo muito

consistente para gerar mudanças.

Por exemplo, neste projeto do adolescente em conflito com a lei, propõe-se uma defesa

transdisciplinar. Um psicólogo, um assistente social e um advogado, os três profissionais,

atenderão o adolescente e a família inclusive junto a uma rede de instituições, porque muitas

vezes esse adolescente não tem certidão de nascimento ou não recebe pensão pela morte do

pai. Então, dentro do projeto, há um balcão de direitos no qual são atendidas as necessidades

desse adolescente.

Se, por exemplo, um menino sonha em ser garçom, poderá ser proporcionado um

curso de garçom que dará a ele a capacitação necessária para conseguir um emprego, porque,

se for um adolescente saído da FASE, será mais complicado. Então, no mínimo, que ele tenha

uma capacitação para ir atrás do seu sonho.

O programa tem como meta a questão da realização dos sonhos por meio da efetivação

dos direitos humanos daquele adolescente.

É estimulante ver todos trabalhando, mas é muito difícil economicamente, porque a

nossa arrecadação mensal depende da contribuição de alguns Juízes e Promotores, e o nosso

gasto é relativo. Então, estamos sempre correndo atrás de projetos e de contribuições, mas o

trabalho é muito interessante.

MEMORIAL - A senhora comentou comigo sobre um debate, um seminário sobre

tortura do qual teria participado.

ENTREVISTADA – Sim, o IAJ participa do Comitê Estadual Contra Tortura,

coordenado por uma Promotora, pelo Ministério Público Estadual, assim como várias

instituições. Participam a AJURIS, a Promotoria Federal, os Ouvidores e Corregedores da

Polícia Civil e da Brigada Militar, etc. Participam também organizações da sociedade civil, além

do IAJ, o Igualdade, que é dos transexuais, participa do Comitê. Então, nós nos reunimos e

avaliamos as denúncias de tortura que nos chegam.

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MEMORIAL – E chegam, doutora?

ENTREVISTADA – Chegam. A tortura é uma forma de maus-tratos. O presídio, o

sistema penitenciário falido, hoje já se apresenta como uma forma de tortura.

Um dos casos foi o de um rapaz, um advogado, que provavelmente estava surtando,

mas, como ninguém levou em consideração aquele surto, ninguém teve tempo de olhá-lo, de

conversar com ele, mesmo tendo passado pela Polícia, pela Defensoria Pública, pela

Magistratura e pelo Ministério Público, mesmo com a ouvida de pessoas, quando da prisão em

flagrante, sobre o que ele estava gritando, foi encaminhado ao presídio central e lá se matou.

Mas ele teria direito a uma cela especial.

Esse foi um dos relatos que fizemos, e foram feitos o relatório e as recomendações.

MEMORIAL – Seria uma publicação similar ao relatório azul?

ENTREVISTADA – Não, não seria nesses termos.

MEMORIAL – Seria mais técnico?

ENTREVISTADA – Não, é mais sintético talvez. O azul é um grande relatório.

MEMORIAL – O Deputado Marcos Rolim, quando trabalhava na Assembléia,

presidindo a Comissão de Direitos Humanos, sempre fazia o relatório azul .

ENTREVISTADA – Então, a forma deve ser semelhante. É feito um relato da

ocorrência com toda a história, depois são dadas as recomendações às instituições envolvidas

para que melhorem a sua atuação a fim de evitar que isso aconteça. Este é um instrumento que

temos no Comitê.

MEMORIAL – É surpreendente saber que estamos em pleno século XXI, numa

época de globalização, de informação por minuto, se não segundo, e ainda se receba, no Brasil,

País dito democrático, e reconhecido por isso em todo o mundo, denúncias reais de tortura.

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ENTREVISTADA – Mas há. Outro foco de problemas é a Fazenda Guerra, no

Município de Coqueiros do Sul. Ali é constante a problemática entre a Brigada Militar, que está

a serviço do proprietário, e o MST.

Num último incidente, um acampado ferido estaria sendo levado para atendimento

médico num carro velho. A Brigada interceptou, porque aquele carro não possuía autorização

para andar nem documentos, e ainda deu nos três. Isso é tortura.

O Ministério Público não fala em tortura, o Juiz também não condena por tortura,

desclassifica para lesões corporais, para abuso de autoridade. Digo que essa palavra tortura tem

que entrar no nosso discurso, nós precisamos falar abertamente em tortura.

Então, prende-se, bate-se, baixa-se o pau, baixa-se o cacete, mas isso é tortura. Se

entrar no discurso das pessoas, vai ser como o abuso sexual infantil, que existiu a vida inteira,

mas não se falava no assunto.

Na medida em que as questões entram para o discurso, quando falamos sobre o

assunto, elas começam a existir, senão, não existem. Então, a palavra tortura tem que ser

jogada na boca das pessoas, e as instituições devem ser mais cobradas para que olhem um

pouco mais.

MEMORIAL – Essas torturas a que a senhora se refere são torturas físicas. E as

torturas psicológicas?

ENTREVISTADA – No MST, reconhecemos tortura psicológica, nas atividades para

controlar uma grande massa.

Atirando foguete, incendiando, jogando comida fora, chamando as mulheres para

manterem relações sexuais cria pânico, é uma tortura psicológica.

No Comitê Estadual contra a Tortura é avaliada a situação denunciada. Após é feito

um relatório com recomendações às instituições envolvidas nos fatos.

MEMORIAL – Doutora, se entendi, se posso julgar - agora eu como julgadora - a

Justiça está muito arraigada na senhora. A senhora não se afastou da Justiça, a senhora apenas

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aposentou-se do Poder Judiciário, mas continua a serviço dela no momento em que cumpre o

seu papel social e evita que alguns cheguem até aqui.

ENTREVISTADA – É verdade, falaste bem, posso ter tomado uma certa distância

do Judiciário, mas não da Justiça.

MEMORIAL – Mas, de certa forma, nem do Judiciário, porque a senhora evita que

alguns cheguem até aqui com alguma demanda reversível. Então, o seu papel social fica muito

bem cumprido como Juíza, como cidadã, como pessoa, porque, se hoje a senhora encaminha

um menino a um curso profissionalizante, permitindo que ele tenha um outro tipo de vida, que

não a do crime ou a da indiferença total, que o levaria ao crime certamente, a senhora está a

serviço do Judiciário ainda.

ENTREVISTADA – É verdade. Dentro da organização a qual pertenço, estamos

constantemente discutindo os rumos da nossa atividade, mesmo que não seja eu a fazer o

encaminhamento.

Então, não tenho dúvidas de que a proposta do IAJ é belíssima.

Quando trabalhei em Osório, atendendo o Crime e o Cível, sempre dizia que, se um

daqueles adolescente não voltasse a delinqüir, seria um ganho importante, porque iria

encaminhar-se na vida. Eu digo a mesma coisa em relação ao IAJ, porque, se atendermos X

adolescentes e um estiver envolvido com alguma forma de recuperação, já será um ganho. Mas

a situação é muito complicada.

Para ilustrar melhor, o projeto do Jovem Legal terminou, não há dinheiro, mas o

pessoal ainda está nos atendimentos, na militância.

Vemos que hoje o jovem entre dezoito e vinte e poucos anos é um jovem abandonado,

porque os pais acham que ele tem que trabalhar; o mercado só dá trabalho para quem tem

experiência e nem sempre eles têm dinheiro para estudar, mas ainda há lugares que atendem a

criança e o adolescente.

MEMORIAL– Isso não é um tipo de tortura, doutora?

ENTREVISTADA – Sim. Não deixa de ser.

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MEMORIAL – É horrível a pessoa se ver abandonada por aqueles que deveriam ser

responsáveis e pelo sistema que deveria cuidar para que ela tivesse educação, alimento, casa,

estudo. Como a senhora falou, e infelizmente já constatei, em algumas situações, as crianças

nem sequer têm registro de nascimento. E, sem o registro de nascimento, não se é nada,

porque não se não consegue assistência médica, não se consegue escola, não se consegue nada,

a pessoa não existe.

Isso não impede que essas pessoas pensem e observem como a sociedade se

movimenta e se sintam excluídas, revoltando-se e causando todo esse transtorno social que há.

Desculpe-me por colocar isso, a palavra é sua, mas seria até em forma de pergunta.

ENTREVISTADA – Porque o sistema não se compromete, mas o sistema é que

causa este tipo de população. Ele é desumanamente desigual. E nós andamos numa espreita

entre o capitalismo e os direitos humanos.

MEMORIAL – São dois “Brasis”.

ENTREVISTADA – Pelo menos no IAJ acreditamos que, pela efetivação dos

direitos humanos, o povo pode melhorar um pouco.

MEMORIAL – Amenizar essas diferenças, essa dualidade.

ENTREVISTADA – Amenizar esse sofrimento, a diferença. O problema é que

temos que fazer esse enfrentamento com o capital. Com o mesmo capital que não quer

empregar quem sai da FASE, que não acredita em recuperação, que quer reduzir a idade penal.

Essa sociedade que representa o capitalismo acha que construir presídios, exacerbar a pena,

condenar vai ser a grande solução, mesmo sabendo que, até hoje, presídio nunca foi solução de

nada. Não existem provas dessa solução na humanidade, mas eles insistem.

MEMORIAL – Pelo contrário.

ENTREVISTADA – Bem pelo contrário.

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MEMORIAL – Já existem estudos que provam isso, e a própria observação permite

que se afirme que a pessoa que tem uma passagem pelo presídio realmente não sai nem igual e

nem melhor, sai pior.

ENTREVISTADA – Sai pior e, além de tudo, não é aceita pelos seus iguais. Já há

tanta dificuldade no mercado de trabalho que, na hora de selecionar, eles não iriam escolher.

É mais difícil ainda procurar emprego para quem faz um curso dentro da FASE e

possui um certificado da FASE, pois é a comprovação de que passou pela FASE e não há mais

conserto.

MEMORIAL – Esses detalhes que rotulam, discriminam, abertamente - seja da

FASE, seja de qualquer instituição - não são avaliados havendo tantos profissionais envolvidos

nessas organizações? Porque a titulação de um curso em que seja constatado o envolvimentos

dessas instituições realmente é complicado.

ENTREVISTADA – Realmente é muito complicado. É difícil, há exigências, mas,

por outro lado, a sociedade não aceita.

MEMORIAL – A sociedade se fecha ao problema.

ENTREVISTADA - Acho que a característica marcante da nossa sociedade é a

hipocrisia. Ela acha que as pessoas, que os adolescentes vão recuperar-se ou que o presidiário

vai recuperar-se sem emprego.

MEMORIAL – Tiram a oportunidade da dignidade humana.

ENTREVISTADA – A violação é claríssima. E os governantes ficam pasmos quando

os Assessores da ONU fazem seus relatórios e comprovam as violações que o Estado – Nação

- pratica contra os seus cidadãos, através de uma série de instituições: Judiciário, Ministério

Público, Polícia, o sistema penitenciário, a saúde.

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Se a Administração Pública não investir, vai ser difícil, mas acho que devemos ter

expectativas.

MEMORIAL – A senhora falou que a essa entidade para a qual a senhora presta

trabalho é sustentada por alguns Juízes e Desembargadores. O número de pessoas envolvidas

que são ou foram do Judiciário é expressivo?

ENTREVISTADA – São 46 Juízes, mas acho que agora muitos já são

Desembargadores.

MEMORIAL – Alguns estão na ativa; outros, aposentados?

ENTREVISTADA – Muitos estão na ativa, mas não sei a relação.

MEMORIAL – E o número de mulheres é significativo?

ENTREVISTADA – O número de Juízas?

MEMORIAL -- Sim, que estão envolvidas neste projeto?

ENTREVISTADA – Eu sei que a tesoureira é a Ana Lúcia, nosso braço direito.

MEMORIAL – São poucas mulheres envolvidas, então. Estão mais homens

envolvidos?

ENTREVISTADA – São poucas. Uma Juíza de Pelotas contribui. Pode haver mais

mulheres, mas eu não conheço a lista toda, porque há pessoas que contribuem, mas não

comparecem. Então, não ficamos sabendo, eu não vejo a lista e não fico sabendo quem são os

Juízes. Mas são 46 Juízes.

MEMORIAL – A contribuição é muito válida e necessária, mas a sua experiência

talvez mostre que é pouco.

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ENTREVISTADA – É pouco.

MEMORIAL – É preciso comprometer-se?

ENTREVISTADA – É preciso comprometer-se, tem que haver um compromisso.

O João Abílio é aposentado; eu sou aposentada, uma Defensora Pública, aposentada

também, era a nossa coordenadora anterior, então alguns aposentados estão envolvidos, fazem

um voluntariado, que ainda é a saída, porque a equipe técnica tem que ser profissional, senão

fica difícil. Mas tudo funciona por projetos, porque essa contribuição não é suficiente nem para

pagar o aluguel e o telefone, e temos só uma funcionária.

MEMORIAL – Mais alguma colocação, doutora?

ENTREVISTADA – Não. Só gostaria de dizer que foi bem interessante, foi gostoso

resgatar a minha história

MEMORIAL – Que bom, nós ficamos felizes. Mas eu tenho uma pergunta,

retomando a primeira parte da entrevista, porque, por todas as suas colocações no nosso

encontro, deu para perceber que a senhora é muito centrada na família, que se importa muito

com os jovens e com as famílias.

A senhora iniciou as suas declarações dizendo que se importava muito com o futuro e

com a estabilidade dos seus filhos. Naturalmente essa demonstração de amor não se ateve

apenas à parte financeira. Crianças são complicadas e são carentes de tudo. Como a senhora

administrou filhos pequenos, muito estudo, viagens, transferências para o Interior?

ENTREVISTADA – Realmente foi muito difícil. Não quero dizer a Magistratura,

mas o trabalho toma muito do nosso tempo, e a casa e os filhos acabam ficando um pouco

preteridos. Então, tenta resgatar-se, naqueles poucos momentos, o melhor que se pode fazer

na relação com os filhos.

Mas houve vários complicadores. Tenho três filhos homens, e eles nem sempre

gostaram das mudanças, inclusive falam, até hoje, que perderam amigos nas mudanças.

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Naquela época, sempre tive contribuições do marido e de pessoas que trabalhavam comigo,

sempre procurei solucionar, mas esta carga da mulher acaba sendo tríplice. É bem difícil.

MEMORIAL – Não interessa qual é a profissão, pode ser Juíza, pode ser qualquer

outra.

ENTREVISTADA – Não interessa, porque és mãe, mulher e ainda Juíza ou

profissional em qualquer em outra área.

MEMORIAL – A conciliação é difícil.

ENTREVISTADA – É difícil e complicado, porque, às vezes, queremos fazer uma

coisa, mas temos o tempo tomado por outra, e ficamos divididas.

Penso que é um período de muita divisão. Quando me aposentei, o meu filho mais

velho disse: “Ah, então, agora tu vais ser mãe”. Eles não te perdoam, é a memória, porque,

para o filho, a mãe tem que ser integral, o filho quer a mãe sempre, em todo o momento, e eu

sempre trabalhei fora.

MEMORIAL – No início da entrevista, quando falou a respeito das inscrições, a

senhora disse que, por um momento, temeu que a sua inscrição não fosse aprovada. Por que

esse medo? A senhora soube de algum caso de outras mulheres que, por serem mães ou algum

outro motivo, não tiveram a inscrição aprovada?

ENTREVISTADA – Não, soube nada. Eu não sabia as razões, mas a conversa que

ouvíamos é que, em caso de mulheres, por ser mulher, a inscrição não era aceita.

MEMORIAL – Só mulheres; homens, não?

ENTREVISTADA – Só mulheres.

MEMORIAL – Independente de ser solteira, casada?

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ENTREVISTADA – Sim, bastava ser mulher. Depois, também ouvíamos que,

mulher separada, nem pensar. O discurso dos candidatos era meio subversivo, também diziam

que precisava cuidar com a roupa que comparecia ao concurso.

MEMORIAL – Era como se fosse um telefone sem fio.

ENTREVISTADA – Mas não era só aqui a questão da mulher, era muito comum no

País inteiro. Em alguns estados, já havia mulheres Juízas, mas aqui ainda havia resistência. As

pessoas falavam porque era difícil a mulher ter espaço.

MEMORIAL – Na verdade, não era só aqui. A mulher, até os anos 60, era a dona do

lar, a rainha do lar.

ENTREVISTADA – Exato. Entrei na faculdade de Direito em 1970, e meus colegas

eram todos homem.

MEMORIAL – A profissão para a mulher era trabalhar como professora. Fora disso,

ela atendia em loja, costurava em casa.

ENTREVISTADA – Costurava, porque trabalhava em casa, com os filhos.

MEMORIAL – Então, realmente, um mercado muito restrito, muito fechado, foi uma

luta muito grande.

ENTREVISTADA – E isso quem trabalhava, porque muito se ouvia dizer: “mulher

minha, não trabalha”.

MEMORIAL – Nem faz tanto tempo.

ENTREVISTADA – Realmente, não faz. Nas audiências, ouvia: “Mulher minha não

trabalha”.

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MEMORIAL – Não come, não bebe e também não veste.

MEMORIAL – Algum dos seus filhos quis seguir a carreira ou ficaram muito

traumatizados com as mudanças?

ENTREVISTADA – Não, nenhum quis fazer concurso para a Magistratura.

MEMORIAL – Mas são advogados?

ENTREVISTADA – Dois são, mas não pensaram em concurso. Um gosta muito da

advocacia, por mais que seja difícil. Ele trabalha sozinho.

MEMORIAL – O Memorial do Judiciário agradece muito a sua presença e sente-se

muito honrado. Foi muito bom ouvir o que a senhora tinha a dizer-nos. Muito obrigada.

ENTREVISTADA – Eu é que fico honrada pela lembrança. Agradeço a

oportunidade.