Sontag-6 Mundo Imagens

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  • Susan Sontag Ensaios Sobre Fotografia: 6. O Mundo das Imagens 1/18

    Susan SontagEnsaios Sobre Fotografia

    Lisboa, Publicaes Dom Quixote (Coleco: Arte e Sociedade, n5, 1986, 178 pp.Ttulo original: On Photograhy (Penguin Books)

    O MUNDO DAS IMAGENS

    A realidade sempre foi interpretada atravs dos dados fornecidos pelas imagens, edesde Plato, que os filsofos procuraram reduzir essa dependncia evocando ummodelo de apreenso do real em que a imagem estivesse ausente. Mas quando, emmeados do sculo XIX, esse modelo parecia finalmente possvel, o desvanecimentodas velhas iluses religiosas e polticas perante o avano do pensamento cientfico ehumanista no provocou como se previa deseres em massa para o real. Pelocontrrio, a nova era da descrena reforou a submisso s imagens. O crdito queno podia j ser concedido a realidades compreendidas sob a forma de imagens, eraagora concedido a realidades compreendidas como imagens, como iluses. Noprefcio 2 edio (1843) de A Essncia do Cristianismo, Feuerbach critica a nossaera por preferir a imagem coisa, a cpia ao original, a representao realidade, aaparncia ao ser, tendo ele mesmo a conscincia de que tambm no escapa a isso.E, no sculo XX, esta acusao premonitria transformou-se num diagnsticogeneralizadamente aceite: uma sociedade torna-se moderna quando uma das suasprincipais actividades produzir e consumir imagens, quando as imagens, queinfluenciam extraordinariamente a determinao das nossas exigncias para com arealidade e so elas mesmas um substituto cobiado da experincia autntica, passama ser indispensveis para a sade da economia, para a estabilidade da poltica e paraa procura da felicidade privada.

    As palavras de Feuerbach, escritas poucos anos depois da inveno da cmara,parecem, mais especificamente, um pressentimento do impacto que a fotografia viria aalcanar. Na verdade, as imagens que possuem uma autoridade virtualmente ilimitadanuma sociedade moderna so principalmente as imagens fotogrficas; e o alcancedessa autoridade deriva das propriedades tpicas das imagens obtidas por meio de

    NDICE GERAL: Introduo (p.11) Na Caverna de Plato (p.13-32) A Amrica Vista Atravs de Fotografias, Sombriamente Objectos Melanclicos (p.53-80) O Herosmo da Viso (p.81-104) Os Evangelhos Fotogrficos O Mundo das Imagens (p.135-158) Breve Antologia de Citaes (Homenagem A W . B.) (p.159-178)

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    uma cmara.

    Essas imagens so, de facto, capazes de usurpar a realidade porque, antes demais, uma fotografia no s uma imagem (no sentido em que a pintura umaimagem), uma interpretao do real; tambm uma marca, um rasto directo do real,como uma pegada ou` uma mscara morturia. Enquanto uma pintura, ainda queconforme aos padres fotogrficos da semelhana, nunca mais do que a afirmaode uma interpretao, uma fotografia nunca menos do que o registo de umaemanao (ondas de luz reflectidas pelos objectos), um vestgio material daquilo quefoi fotografado e que inacessvel a qualquer pintura. Entre duas alternativasimaginrias, a de que Holbein, o Jovem, tivesse vivido o suficiente para poder pintarShakespeare ou a de que um prottipo da cmara tivesse sido inventado a tempo de oter fotografado, a maioria dos seus admiradores teria optado pela fotografia. O que seno deve apenas ao facto de ela presumivelmente mostrar o verdadeiro aspecto deShakespeare, pois ainda que essa hipottica fotografia estivesse desbotada,dificilmente legvel e com sombras acastanhadas, continuaramos provavelmente apreferi-la a outro glorioso Holbein. Ter uma fotografia de Shakespeare seria como terum prego da Autntica Cruz.

    A maior parte das expresses contemporneas do receio que o mundo real esteja aser substitudo por um mundo de imagens continua a reflectir, como em Feuerbach, adesvalorizao platnica da imagem: verdadeira na medida em que se assemelha aalgo real, falsa porque no mais do que semelhana. Mas este venervel realismoingnuo no tem qualquer sentido na era das imagens fotogrficas pois esse rudecontraste entre a imagem (cpia) e a coisa representada (o original) que Platoilustra repetidamente com o exemplo da pintura no se adequa de um modo tosimples fotografia. E esse contraste tambm no contribui para que se compreenda aproduo de imagens nas suas origens, quando era uma actividade prtica e mgica,um meio de influenciar ou de se apropriar de alguma coisa. Quanto mais retrocedemosna histria menos ntida a distino entre imagens e coisas reais, como observou E.H. Gombrich; nas sociedades primitivas, a coisa e a sua imagem no eram mais doque duas manifestaes diferentes, ou seja, fisicamente distintas, da mesma energiaou esprito. A isso se deve a suposta eficcia das imagens para propiciar e controlarpresenas de grande poder. Esses poderes, essas presenas estavam presentesnelas.

    Para aqueles que, de Plato a Feuerbach, defenderam o real, comparar a imagemcom a mera aparncia ou seja, presumir que a imagem absolutamente distinta doobjecto representado faz parte desse processo de dessacralizao que nos afastairrevogavelmente desse mundo de momentos e lugares sagrados em que, com umaimagem, se pretendia participar da realidade do objecto representado. O que define aoriginalidade da fotografia o facto de, no preciso momento em que o secularismotriunfa por completo na longa e cada vez mais secular histria da pintura, fazer reviver em termos absolutamente seculares algo que se assemelha ao estatuto primitivo

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    das imagens. A nossa irreprimvel sensao de que o processo fotogrfico qualquercoisa de mgico tem uma base genuna.. Ningum pensa que uma pintura de cavaleteseja de algum modo co-substancial ao seu tema; apenas representa ou refere. Masuma fotografia no se limita a prestar homenagem ou a assemelhar-se ao seu tema.

    tambm parte e prolongamento desse tema e um meio poderoso para o possuir econtrolar.

    A fotografia , sob vrias formas, uma aquisio. Na sua forma mais simples, umafotografia o substituto da posse de uma coisa ou pessoa querida, posse que lheconfere alguma das caractersticas dos objectos nicos. Atravs das fotografias temostambm uma relao de consumo com os acontecimentos, tanto com os que fazemparte da nossa experincia como com os outros, e so os hbitos que esseconsumismo inculca que tornam vaga a distino entre esses tipos de experincia.

    Uma terceira forma de aquisio consiste em podermos atravs das mquinas deproduo e duplicao de imagens, adquirir algo mais como informao do que comoexperincia. Na verdade, a importncia das imagens fotogrficas como meio pelo quala nossa experincia integra um nmero cada vez maior de acontecimentos , afinal,apenas um subproduto da sua capacidade de proporcionar um conhecimentodissociado e independente da experincia.

    Esta a forma mais inclusiva da aquisio fotogrfica. Ao ser fotografado, h algoque se torna parte de um sistema de informao, que se insere em esquemas declassificao e armazenamento que vo desde a ordem toscamente cronolgica dassries de instantneos nos lbuns de famlia at acumulao persistente e arquivometiculoso necessrios para a utilizao da fotografia nas previses metereolgicas,astronomia, microbiologia, geologia, nas investigaes policiais, no ensino ediagnstico mdicos, no reconhecimento militar e na histria da arte. As fotografiasno se limitam a redefinir os componentes da experincia quotidiana (pessoas, coisas,acontecimentos, tudo o que percebemos, se bem que de modo diferente e muitasvezes sem ateno, graas viso natural) e a acrescentar-lhe um largo conjunto decoisas que nunca chegamos a ver. E a prpria realidade que redefinida: como umobjecto para exposio, como um registo para um exame minucioso, como um alvopara vigilncia. A explorao e duplicao fotogrfica do mundo fragmentam acontinuidade e acumulam as peas num arquivo interminvel, possibilitando assim umcontrole que era inimaginvel no anterior sistema de registo de informao: a escrita.

    Mesmo quando essas capacidades estavam na sua infncia, logo se reconheceuque o registo fotogrfico sempre, potencialmente, um meio de controle. Delacroix, em1850, assinalou no seu Journal o sucesso de algumas experincias fotogrficasrealizadas. em Cambridge, onde alguns astrnomos que tinham vindo a fotografar oSol e a Lua conseguiram obter uma impresso da estrela Vega do tamanho da cabeade um alfinete. E acrescenta a seguinte observao curiosa:

    Como a luz da estrela que foi daguerreotipada levou vinte anos a atravessar o

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    espao que a separa da terra, 'o raio que a placa fixou tinha, assim, deixado aesfera celeste muito antes de Daguerre ter descoberto o processo graas aoqual acabamos de conseguir controlar essa luz.

    Abandonando noes de controle to dbeis como as de Delacroix, o progresso dafotografia veio a tornar ainda mais literais os sentidos em que uma fotografia permitecontrolar a coisa fotografada. A tecnologia, que reduziu j ao mnimo o grau em que adistncia que separa o fotgrafo do tema afecta a preciso e a magnitude da imagem;que proporcionou meios para fotografar tanto as coisas inimaginavelmente pequenascomo as que se encontram, como as estrelas, inimaginavelmente distantes; queconsegui que a obteno de imagens fosse independente da prpria luz (fotografiainfravermelha) e libertou o objecto- -imagem da limitao das duas dimenses(holografia); que reduziu o intervalo entre a visualizao da imagem e o momento emque a temos nas mos (desde a primeira Kodak, em que o rolo revelado demoravasemanas a ser devolvido ao fotgrafo amador at Polaroid, que ejecta a imagem empoucos segundos); que no s conseguiu imagens em movimento (cinema) comotambm o seu registo e transmisso simultneas (video); esta tecnologia tornou afotografia um instrumento incomparvel para decifrar o comportamento, prev-lo ealter-lo.

    A fotografia tem capacidades que nenhum outro sistema de imagens jamais possuipois, ao contrrio dos anteriores, no est dependente de um produtor de imagens.Por maior que seja o cuidado com que o fotgrafo intervm na organizao eorientao do processo de produo de imagens, o prprio processo no deixar deser ptico-qumico (ou electrnico), funcionando automaticamente, utilizandomecanismos constantemente adaptadas para proporcionarem mapas cada vez maisdetalhados e, por isso, cada vez mais teis, do real. A gnese mecnica destasimagens e a literalidade dos poderes que conferem, implicam uma nova relao entrea imagem e a realidade. E se possvel dizer que a fotografia restaura a relao maisprimitiva a identidade parcial da imagem e do objecto o que certo que ospoderes da imagem so agora sentidos de um modo muito diferente. A noo primitivada eficcia das imagens presume que as imagens possuem as qualidades das coisasreais, mas agora tendemos a atribuir s coisas reais as qualidades de uma imagem.

    Como se sabe, os povos primitivos receiam que a cmara os despoje de parte doseu ser. Nas memrias que publicou em 1900, no final da sua longa vida, Nadar refereque Balzac tinha tambm um vago temor de ser fotografado. A sua explicao, deacordo com Nadar, era que

    todo o corpo no seu estado natural era constitudo por uma srie de imagensespectrais sobrepostas em camadas infinitas, envoltas em pelculasinfinitesimais (...). Como o homem nunca foi capaz de criar, ou seja, fazerqualquer coisa de material a partir de uma apario, de algo impalpvel, ouconstruir um objecto a partir do nada, cada operao daguerriana ia assimagarrando, separando e consumindo cada uma das camadas do corpo que

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    focava.

    Em Balzac, este horror especfico parece ter sido muito apropriado. Nadarinterroga-se se este medo de Balzac seria real ou simulado. Era real..., j que oprocesso fotogrfico de algum modo a materializao do que h de mais original noseu processo ficcionstico. A sua actividade consistia em ampliar minsculos detalhes,como numa ampliao fotogrfica, em justapor traos ou elementos incongruentes,como num plano fotogrfico: adquirindo assim expressividade, qualquer coisa pode serrelacionada com todas as outras. Para Balzac, todo o esprito de um ambiente podeser revelado a partir de um s detalhe material, por mais insignificante ou arbitrrioque parea. Toda uma vida pode ser sintetizada numa aparncia momentnea .1)

    E a uma mudana na aparncia corresponde uma mudana na pessoa, pois elerecusava-se a conceber uma pessoa real oculta por detrs dessas aparncias. Aextravagante teoria que Balzac exprimiu a Nadar, segundo a qual um corpo composto de uma infinita srie de imagens espectrais perturbadoramente anloga teoria supostamente realista que exprime nos seus romances, em que uma pessoa um conjunto de aparncias que podem produzir, atravs de um olhar adequado,infinitas camadas de significao. Considerar a realidade como uma sucessointerminvel de situaes que se reflectem umas s outras, extrair analogias dascoisas mais dspares, antecipar a forma caracterstica de percepo que as imagensfotogrficas vo estimular. A prpria realidade comea a ser entendida como umaespcie de escrita que precisa de ser descodificada, tal como as imagens fotogrficasforam elas prprias, num primeiro momento, comparadas com a escrita. (O nome queNipce deu ao processo pelo qual a imagem aparece na placa foi heliografia, escritapelo sol; Fox Talbot chamou cmara o lpis da natureza.)

    O problema do contraste entre original e cpia em Feuerbach consiste nassuas definies estticas de realidade e imagem. Ele pressupe que o que realpersiste, inalterado e intacto, enquanto as imagens se transformam: aliceradas numafragilssima credibilidade, tornam-se de algum modo ainda mais sedutoras. Mas asnoes de imagem e de realidade so complementares. Quando se altera a noo derealidade tambm se altera a de imagem, e vice-versa. A nossa era no prefere asimagens s coisas reais por perversidade mas, em parte, como reaco s formascomo a noo do real progressivamente se complicou e debilitou; uma dessas

    Sirvo-me do estudo sobre o realismo de Balzac em Mimesis, de Eric Auerbach. A passagem do incio1)de Le Pre Goriot (1834) que Auerbach refere Balzac descreve a sala de jantar da penso Vauquers sete da manh e a entrada de Madame Vauquer no podia ser mais explcita (ou protoproustiana).Toda a sua pessoa, escreve Balzac, explica a penso, tal como a penso implica a sua pessoa [...].A gordura desmazelada de essa pequena mulher o produto desta vida, assim como o tifo aconsequncia dos eflvios de um hospital. A sua combinao de malha, mais comprida do que a saia(feita de um velho vestido), com o forro a sair pelos buracos do tecido, resume a sala de visitas, a salade jantar, o pequeno jardim, anuncia a cozinha e d uma vaga ideia dos hspedes. Quando ela l est,o espectculo completo.

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    primeiras formas foi a crtica da realidade como fachada, que surgiu entre as classesmdias esclarecidas no sculo passado. (O que teve um efeito exactamente oposto aodesejado.) Reduzir vastas zonas do que era at ento considerado real a merafantasia (como fez Feuerbach ao chamar religio o sonho da mente humana e aorejeitar as ideias teolgicas como projeces psicolgicas) ou elevar os detalhestriviais e fortuitos do quotidiano importncia de chaves para compreenso das forashistricas e psicolgicas ocultas (como fez Balzac na sua enciclopdia romanceada darealidade social), so em si mesmas formas de perceber a realidade como um conjuntode aparncias, como uma imagem.

    Poucas pessoas, nesta sociedade, compartilham o temor primitivo perante ascmaras, que derivava de se considerar a fotografia como parte material de siprprias. Mas perduram alguns vestgios da magia, por exemplo, na nossa relutnciaem rasgar ou deitar fora a fotografia de um ente querido, especialmente se est longeou j morreu. Faz-lo equivaleria a um desumano gesto de rejeio. Em Jude theObscure, a descoberta de que Arabella vendeu a moldura de madeira com um retratodele, uma oferta feita no dia do casamento, significa para Jude a morte absoluta detodos os sentimentos na sua mulher e o minsculo golpe final de todos ossentimentos que nele pudessem existir. Mas o verdadeiro primitivismo moderno noconsiste em considerar a imagem como uma coisa real; as imagens fotogrficasdificilmente so assim reais. Pelo contrrio, a realidade que cada vez mais se parececom o que a cmara nos mostra. Hoje em dia vulgar as pessoas insistirem que aexperincia de um acontecimento violento em que se encontraram envolvidas umdesastre areo, um tiroteio, um atentado terrorista parecia um filme. Isto ditopara dar a entender como tudo foi to real, j que as outras descries pareceminsuficientes. Enquanto nos pases no industrializados h muitas pessoas que aindase sentem apreensivas quando as fotografam, prevendo uma espcie de intruso, umacto de desrespeito, uma pilhagem sublimada da sua personalidade ou cultura, nospases industrializados elas esforam-se por serem fotografadas, sentem que soimagens a que as fotografias conferem realidade.

    Um sentido cada vez mais complexo do real cria os seus prprios fervores esimplificaes compensatrias, sendo a fotografia a mais tentadora. como se osfotgrafos, reagindo a um sentido da realidade cada vez mais esvaziado, procurassemuma transfuso, partindo para novas experincias e renovando as anteriores. Asactividades ubquas so a verso mais segura e radical da mobilidade. O desejo denovas experincias traduz-se no desejo de fotografar: a experincia que procura umaforma prova de crise.

    Assim como tirar fotografias um acto quase obrigatrio para quem viaja,coleccion-las apaixonadamente exerce uma especial atraco para quem estconfinado a espaos fechados, seja por escolha, por impossibilidade ou por coero.As coleces de fotografias podem ser usadas para elaborar um mundo substituto,regulado por imagens que exaltam, consolam ou atormentam. Uma fotografia pode ser

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    o ponto de partida de um romance (o Jude de Hardy j se tinha apaixonado pelafotografia de Sue Bridehead antes de a conhecer), mas mais frequente que a relaoertica no s seja criada pelas fotografias como limitada por elas.

    Em Les enfants terribles, de Cocteau, o irmo e a irm narcisistas partilham omesmo quarto, a sua sala secreta, juntamente com imagens de pugilistas, estrelasde cinemas e criminosos. Isolando-se no seu reduto para viverem a sua lenda privada,os dois adolescentes transformam estas fotografias num panteo privado. No inciodos anos 40, Jean Genet colou numa parede da cela 426 da priso de Fresnes asfotografias de vinte criminosos que tinha recortado de jornais, vinte rostos em quediscernia o signo sagrado dos monstros, e em sua honra escreveu Notre Dame desfleurs; foram as suas musas, os seus modelos, os seus talisms erticos. Vigiam osmeus gestos rotineiros, escreve Genet amalgamando sonhos, masturbao eescrita e so toda a minha famlia e os meus nicos amigos. Para os que nosaem de casa, para os prisioneiros e para os reclusos voluntrios, viver no meio defotografias de atraentes desconhecidos uma reaco sentimental e um insolentedesafio ao isolamento.

    Crash (1973), de J. G. Ballard, descreve uma coleco de fotografias maisespecializada ao servio da obsesso sexual: fotografias de acidentes de viao queVaughan, amigo do narrador, colecciona enquanto se prepara para encenar a suaprpria morte num desastre de automvel. A dramatizao da sua viso ertica damorte num automvel antecipada, e a fantasia ainda mais erotizada pelo repetidoexame dessas fotografias. Numa das extremidades do espectro, as fotografias sodados objectivos; na outra, so parte de uma fico cientfica psicolgica. E assimcomo, mesmo na realidade mais horrvel ou aparentemente neutral, se podemencontrar imperativos sexuais, tambm as mais banais fotografias documentais sepodem transformar em emblemas do desejo. A fotografia de um criminoso uma pistapara um detective e um fetiche ertico para outro malfeitor. Para Hofrat Behrens, em AMontanha Mgica, as radiografias pulmonares dos seus pacientes so meios dediagnstico. Para Hans Castorp, que cumpre uma sentena indefinida no sanatrio deBehrens e que est apaixonado pela enigmtica e inatingvel Claudia Chauchat, aradiografia de Claudia, que mostra no o seu rosto mas a delicada estrutura ssea dametade superior do seu corpo e os rgos da cavidade torcica rodeados peloinvlucro plido e espectral da carne, o mais preciso dos trofus. O retratotransparente um vestgio muito mais ntimo da sua amada do que o retrato deClaudia pintado por Hofrat, esse retrato exterior que Hans uma vez contemplou comtanta ansiedade.

    As fotografias so uma forma de imobilizar e aprisionar a realidade, consideradarebelde e inacessvel. Ou ainda de ampliar uma realidade que sentimos retrada,esvaziada, perecvel, remota. No se pode possuir a realidade mas pode possuir-se (eser-se possudo por) imagens tal como, segundo Proust, o mais ambicioso dosreclusos voluntrios, no se pode possuir o presente mas pode possuir-se o passado.

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    Nada podia estar mais longe do trabalho sacrificado de um artista como Proust do quea facilidade da fotografia, que deve ser a nica actividade que d origem a obras dearte reconhecidas em que um simples movimento, o toque de um dedo, produz umaobra acabada. Enquanto que o trabalho de Proust pressupe que a realidade distante, a fotografia implica um acesso instantneo ao real. Mas os resultados dessaprtica de acesso instantneo so outra forma de criar distncia. Possuir o mundo soba forma de imagens , precisamente, voltar a sentir a irrealidade e o afastamento doreal.

    A estratgia do realismo de Proust pressupe um distanciamento em relao ao quenormalmente sentido como real, o presente, com o objectivo de reanimar o queusualmente s acessvel de um modo remoto e sombrio, o passado: que onde opresente se torna, para Proust, real, ou seja, algo que pode ser possudo. Para esteesforo, as fotografias em nada podem contribuir. Sempre que Proust as mencionaf-lo depreciativamente, como sinnimo de uma relao superficial, exclusivamentevisual e meramente voluntria, como o passado, cujos resultados so insignificantesquando comparados com as descobertas profundas que so possveis se reagirmosaos sinais de todos os nossos sentidos: tcnica a que ele chamou memriainvoluntria. impossvel imaginar para a abertura de No Caminha de Swann umfinal em que o narrador, deparando com uma fotografia da igreja paroquial deCombray, saboreasse essa migalha visual em vez da madalena mergulhada no ch eque faz com que toda uma parte do seu passado lhe aflua memria. Isso no sedeve a que a fotografia no possa evocar memrias (de facto pode, o que dependemais das capacidades do espectador do que das qualidades da fotografia), mas sconcepes e exigncias de Proust quanto evocao imaginativa: ela deve no sser exacta e extensa como tambm revelar a textura e a essncia das coisas. E, aoequacionar as fotografias apenas na medida em que lhe podem ser teis comoinstrumento da memria, Proust interpreta um tanto erradamente o que de facto elasso: muito mais uma inveno ou um substituto da memria do que um seuinstrumento.

    O que as fotografias tornam imediatamente acessvel no a realidade, so asimagens. Por exemplo, agora todos podemos saber exactamente como ns, os nossospais e avs ramos em crianas, conhecimento que era inacessvel antes da invenodas cmaras, mesmo para a reduzida minoria que costumava mandar pintar o retratodos seus filhos. A maior parte desses retratos era menos informativa do que qualquerfotografia instantnea. E mesmo os mais abastados apenas possuam um s retrato desi mesmos ou dos seus antepassados em crianas, ou seja, uma imagem de ummomento da infncia, enquanto que hoje vulgar termos muitas fotografias de nsprprios pois a cmara oferece a possibilidade de um registo completo de todas asidades. O objectivo dos retratos das famlias burguesas nos sculos XVIII e XIX eraconfirmar uma imagem ideal do modelo (proclamado a sua importncia social eembelezando a sua aparncia); em funo deste propsito, fcil compreenderporque que as pessoas no sentiam a necessidade de ter mais do que um retrato. O

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    que o registo fotogrfico confirma , mais modestamente, que .a pessoa existe; porisso eles nunca so demais.

    O receio de que a singularidade de uma pessoa pudesse ser diminuda quandofotografada nunca foi expresso com tanta frequncia como nos anos 50 do sculopassado, quando o retrato fotogrfico proporcionou o primeiro exemplo de como ascmaras podiam criar modas instantneas e indstrias duradouras. Em Pierre, deMelville, publicado no incio dessa dcada, o heri, outro fervoroso adepto doisolamento voluntrio,

    considerava com que infinita rapidez o mais fiel retrato de algum podia agoraser obtido pelo daguerretipo, enquanto antigamente s estava ao alcance dosricos ou dos aristocratas de esprito. Parece pois natural a inferncia de que oretrato, em vez de imortalizar um gnio, como antes, apenas entroniza umcretino. Alm disso, quando se publicam retratos de tantas pessoas, averdadeira distino no o fazer.

    Contudo, se as fotografias rebaixam, as pinturas distorcem do modo contrrio:engrandecem. A intuio de Melville a de que, na civilizao do negcio, todas asformas de retrato so tendenciosas; pelo menos isso que pensa Pierre, exemplotpico da sensibilidade alienada. Se, numa sociedade de massas, a fotografia muitopouco, a pintura demasiado. A natureza de uma pintura, observa Pierre, torna-a

    mais digna de reverncia do que o homem, pois, embora se possam imaginarmuitas coisas inevitavelmente depreciativas a respeito do homem, tal no possvel a partir do seu retrato.

    Mesmo que se considere que a plenitude do triunfo da fotografia tenha acabado pordesvanecer estas ironias, a principal diferena entre uma pintura e uma fotografia, noque se refere ao retrato, ainda subsiste. As pinturas, invariavelmente, sintetizam; asfotografias, em geral, no o fazem. As imagens fotogrficas so peas testemunhaisde uma biografia ou de uma histria em devir. E, ao contrrio da pintura, umafotografia implica outras fotografias futuras.

    O Documento Humano que sempre manter o presente e o futuro em contacto como passado, disse Lewis Hine. Mas o que a fotografia proporciona no s o registodo passado mas tambm uma nova maneira de lidar com o presente, como o atestamos efeitos dos incontveis bilies de documentos fotogrficos contemporneos.Enquanto as fotografias antigas completam a nossa imagem mental do passado, asfotografias de agora transformam o presente numa imagem mental, semelhante aopassado. As cmaras estabelecem uma relao dedutiva com o presente (a realidade conhecida atravs das suas marcas) e proporcionam uma viso da experinciainstantaneamente retroactiva. As fotografias permitem formas pardicas de posse: do

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    passado, do presente e mesmo do futuro. Em Invitation to a Beheading (1938), deNabokov, Cincinnatus, o prisioneiro, v o foto-horscopo de uma criana preparadopelo sinistro M'sieur Pierre: um lbum de fotografias da pequena Emmie em beb, emcriana, na fase pr-pbere, como nessa altura e depois, utilizando e retocandofotografias da sua me, em adolescente, noiva, com trinta anos, concluindo com umafotografia de Emmie no seu leito de morte aos quarenta anos. Nabokov chama a esteartefacto exemplar uma pardia do trabalho do tempo; mas tambm uma pardiado trabalho da fotografia.

    A fotografia, que tem tantas utilizaes narcissticas, tambm um poderosoinstrumento de despersonalizao da nossa relao com o mundo; e estas duasutilizaes so complementares. Como um par de binculos em que as extremidadesse pudessem confundir, a cmara faz com que as coisas exticas paream prximas entimas, e com que as coisas familiares paream pequenas, abstractas, estranhas emuito mais distantes. Proporciona, numa actividade fcil e viciante, tanto aparticipao como a alienao, na nossa vida e na dos outros, permitindo-nosparticipar ao mesmo tempo que reafirma a alienao. A guerra e a fotografia parecemj inseparveis. E os desastres areos e outros acidentes horrveis atraem semprepessoas com as suas cmaras. Uma sociedade que impe como norma a aspirao anunca sentirmos privaes, fracassos, angstias, dor, doenas terrveis, e em que aprpria morte considerada no como natural e inevitvel mas como uma calamidadecruel e imerecida, cria uma enorme curiosidade em torno desses acontecimentos,curiosidade que a fotografia satisfaz parcialmente. A sensao de imunidade peranteuma calamidade estimula o interesse por imagens dolorosas, o que, por sua vez,sugere e refora a sensao de imunidade. Em parte, por estarmos aqui e no ali,e em parte pelo carcter de inevitabilidade que os acontecimentos adquirem quandotransformados em imagens. No mundo real h alguma coisa que acontece e no hningum que saiba o que vai acontecer. No mundo das imagens isso j aconteceu esempre acontecer da mesma forma.

    Como as pessoas conhecem muito do que existe no mundo (arte, catstrofes,belezas naturais) atravs de imagens fotogrficas, ficam frequentementesurpreendidas, desapontadas e impassveis perante a realidade das coisas. Naverdade, as imagens fotogrficas tendem a eliminar os sentimentos ligados ao queconhecemos em primeira mo e os sentimentos que em ns despertam no so, emlarga medida, os que experimentamos na vida real. E vulgar que algo nos perturbemais sob a forma de uma fotografia do que quando efectivamente a vivemos. Em 1973,assisti em Xangai remoo de nove dcimos do estmago de um operrio com umalcera em estado adiantado, anestesiado por acupunctura, e consegui acompanharessa operao de trs horas (foi a primeira operao que vi na minha vida) sem meperturbar, sem nunca sentir a necessidade de desviar o olhar. Um ano depois, numcinema de Paris, uma operao muito menos sangrenta que aparece no documentriode Antonioni sobre a China, Chung Kuo, fez-me estremecer desde o primeiro corte dobisturi e desviar por vrias vezes o olhar durante a sequncia. A nossa vulnerabilidade

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    perante acontecimentos perturbadores sob a forma de imagens fotogrficas diferentedo que face s coisas reais. Esta vulnerabilidade faz parte da passividadecaracterstica de quem espectador pela segunda vez, espectador de acontecimentosj configurados, primeiro pelos participantes e depois pelo produtor de imagens. Naoperao real tive que esterilizar as mos, vestir uma bata cirrgica e ficar de p juntode enfermeiras e mdicos atarefados e desempenhar o papel de adulto inibido, devisitante bem educado e de testemunha respeitosa. A operao no filme no simpede esta modesta participao mas tambm todo o aspecto activo dacontemplao. Na sala de operaes sou eu quem muda de foco, quem faz os grandesplanos e os planos mdios. No cinema, Antonioni escolheu j quais as partes daoperao que eu posso observar; a cmara olha por mim, obriga-me a olhar e a nicaopo que me resta a de no olhar. Mais ainda, o filme condensa vrias horas empoucos minutos, apresentando apenas as partes interessantes de um modointeressante, ou seja, com a inteno de provocar ou de chocar. O dramtico dramatizado pelo didatismo da planificao e da montagem. Quando se vira a pginade uma revista, quando se inicia uma nova sequncia num filme, o contraste maisbrusco do que o contraste entre acontecimentos sucessivos no tempo real.

    Nada poderia ser mais instrutivo sobre o que a fotografia significa para ns entreoutras coisas, um mtodo de exagerar o real do que os ataques da imprensachinesa, no incio de 1974, contra o filme de Antonioni. So um catlogo negativo detodos os recursos da fotografia ou filme modernos . Enquanto que, para ns, a2)fotografia est intimamente relacionada com modos descontnuos de ver (trata-seprecisamente de ver o todo atravs da parte: um detalhe que chama a ateno, umcorte surpreendente), para os chineses apenas est relacionada coma continuidade.No s existem temas adequados para a cmara, os que so positivos, inspiradores(actividades exemplares, pessoas sorridentes, bom tempo) e organizados, comotambm maneiras prprias de fotografar, que derivam de noes sobre a ordem moraldo espao e que tornam impossvel a prpria ideia da viso fotogrfica. Assim,Antonioni foi censurado por ter filmado coisas velhas ou antiquadas procurou efilmou paredes em runas e jornais murais h muito abandonados; por no terprestado qualquer ateno aos tractores, grandes e pequenos, a trabalharem nos

    Veja-se A Vicious Motive, Depicable Tricks A Criticism of Antonion's Anti- -China Film China2)(Peking: Foreign Languages Press, 1974), um panfleto de dezoito pginas no assinado) que reproduzum artigo publicado no jornal Renminh Ribao, em 30 de Janeiro de 1974; e Repudiating Antonioni'sAnti-China Film, Peking Review, n? 8 (22 de Fevereiro de 1974), que apresenta verses condensadasde trs outros artigos publicados nesse ms. O objectivo desses artigos no , evidentemente, exprimiropinies sobre a fotografia no nos apercebemos de qualquer interesse por isso mas construir uminimigo ideolgico modelo, como noutras campanhas educativas de massas desse perodo. Em funodesse propsito, era to necessrio que as dezenas de milhes de pessoas mobilizadas para oscomcios realizados em escolas, fbricas, unidades militares e comunas de todo o pais para criticar ofilme antichins de Antonioni tivessem de facto visto Chung Kuo como os que participaram nacampanha de 1976 para criticar Lin Piao e Confcio tivessem lido um nico texto de Confcio.

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    campos e ter mostrado apenas um burro a puxar um cilindro de pedra e porapresentar momentos indecorosos filmou, de um modo repugnante, pessoas aassoarem-se ou a irem retrete e movimentos indisciplinados em vez de terfilmado os alunos nas salas das escolas primrias das nossas fbricas, filmou-osquando saam a correr no fim das aulas. E foi acusado de denegrir os temasadequados pela maneira como os filmou: pela utilizao de cores esbatidas elgubres e por ocultar as pessoas em sombras escuras; por tratar o mesmo temacom uma variedade de planos h por vezes planos de conjunto e outras vezesgrandes planos, por vezes planos frontais ou de costas ou seja, por no mostrar ascoisas do ponto de vista de um observador nico e idealmente situado; por utilizarpicados e contrapicados A cmara foi intencionalmente apontada para aquelaponte, moderna e magnfica, a partir de ngulos muito desfavorveis a fim de faz-laparecer inclinada e pouco firme; e por ter feito um nmero excessivo de planosparciais Deu tratos ao juzo para conseguir esses grandes planos num esforopara distorcer a imagem das pessoas e deformar o seu aspecto espiritual.. Para almda iconografia fotogrfica, produzida em massa, dos seus chefes venerados, do Kitschrevolucionrio e dos tesouros culturais, tambm possvel encontrar na Chinafotografias de carcter privado. H muitas pessoas que tm fotografias dos seus entesqueridos na parede ou por baixo do vidro do aparador ou da escrivaninha. Grandeparte delas so instantneos como os que ns tiramos em reunies familiares e emviagens; mas nenhuma uma candid photograph , nem sequer do gnero que, na3)nossa sociedade, o amador menos sofisticado con- sidera normal: um beb a gatinhar,uma pessoa a meio de um gesto. As fotografias de desporto mostram a equipa comogrupo ou to-s os momentos mais estilizados da partida; em geral, o que as pessoasfazem quando vem uma cmara reunirem-se e formarem uma ou duas filas. No hqualquer interesse em captar o movimento. Supe-se que isso se deve, em parte, acertas convenes antigas de decoro na conduta e nas imagens. E trata-se do gostovisual caracterstico de quem se encontra na primeira fase da cultura da cmara,quando a imagem definida como algo que pode ser roubado ao seu proprietrio;assim, Antonioni foi criticado por ter filmado fora e contra a vontade das pessoas,como um ladro. A posse de uma cmara no justifica a intruso,: como sucede nanossa sociedade, quer as pessoas o queiram ou no. (As boas maneiras de umacultura da cmara aconselham a que se simule que no reparamos que estamos a serfotografados por um estranho num local pblico, desde que o fotgrafo permanea auma distncia discreta: ou seja, no devemos nem impedir a fotografia nem posar.) Aocontrrio do que acontece entre ns, que posamos quando podemos e transigimosquando devemos, fotografar , na China, um ritual; envolve sempre a pose e,necessariamente, consentimento. Quem segue deliberadamente pessoas quedesconhecem a sua inteno de as filmar est a priv-las, a elas s coisas, do direito

    Poder-se-ia traduzir por fotografia dissimulada; trata-se de tirar fotografias sem que a pessoa a3)fotografar se de conta disso. (N. do T)

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    de posarem para aparecerem o melhor possvel.

    Antonioni dedicou quase toda a sequncia de Chung Kuo sobre a Praa Tien AnMen, em Pequim, principal centro de peregrinao poltica do pas, aos peregrinos queestavam espera de serem fotografados. O interesse de Antonioni em mostrar oschineses a praticarem esse rito elementar de documentar uma viagem atravs dacmara evidente: a fotografia e o acto de ser fotografado so temas contemporneospreferidos pela cmara. Para aqueles que criticam o seu. filme, o desejo dos visitantesda Praa de Tien An Men de levarem uma recordao fotogrfica

    um reflexo dos seus profundos sentimentos revolucionrios. Mas Antonioni,com m-f, em vez de mostrar essa realidade, filmou apenas as roupas, omovimento e a expresso das pessoas: aqui, uma pessoa despenteada; ali,outras espreitando, ofuscadas pelo Sol; num momento, as mangas da camisa;noutro, as calas ...

    Os chineses resistem ao desmembramento fotogrfico da realidade. No se usamgrandes planos. Nem sequer os postais de obras de arte ou de antiguidades vendidosnos museus mostram fragmentos; o objecto sempre fotografado directamente,centrado, uniformemente iluminado e na sua totalidade.

    Os chineses parecem-nos ingnuos por no compreenderem a beleza de uma portaestalada ou descascada, o pitoresco da desordem, a fora de um ngulo inesperado ede um detalhe significativo, a poesia de fotografar algum de costas. Ns temos umanoo moderna do embelezamento; a beleza no intrnseca: tem que ser descobertaatravs de um modo de ver diferente; mas temos tambm uma noo mais ampla dosignificado, que ilustrada e poderosamente consolidada pelas mltiplas utilizaesda fotografia. Quanto maior o nmero de variaes, mais ricas so as suaspossibilidades de significao: assim, hoje em dia, as fotografias do Ocidente dizemmais do que as da China. Independentemente do que possa haver de verdade no factode Chung Kuo ser uma mercadoria ideolgica (e os chineses no se enganam quandoconsideram o filme paternalista), as imagens de Antonioni significam simplesmentemais do que quaisquer imagens de si mesmos que os chineses possam publicar. Oschineses no pretendem que as fotografias signifiquem muito ou sejam muitointeressantes. No querem ver o mundo de um ngulo inslito nem descobrir novostemas. Supe-se que s fotografias mostram aquilo que j foi descrito. Para ns, afotografia uma faca de dois gumes que produz clichs (o termo francs significasimultaneamente uma expresso banal e um negativo fotogrfico) e que proporcionanovas vises. Para as autoridades chinesas s h clichs, que eles no consideramclichs mas vises correctas.

    Na China actual s se reconhecem duas realidades. Enquanto que, para ns, arealidade uma irremedivel e interessante pluralidade, na China o que define umaquesto a ser debatida o facto de a seu respeito haver duas linhas, uma certa e

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    outra errada. A nossa sociedade prope um espectro de opes e percepesdescontnuas. A sociedade chinesa estrutura-se em torno de um observador nico eideal; e as fotografias contribuem tambm para o Grande Monlogo. Para ns, hpontos de vista dispersos e intermutveis; a fotografia um pollogo. A actualideologia chinesa define a realidade como um processo histrico estruturado pordualismos recorrentes como significados claramente definidos e de tom moralizante; opassado, na sua maior parte, simplesmente considerado como mau. Para ns, hprocessos histricos com significados espantosamente complexos e por vezescontraditrios; e algumas artes, como a fotografia, que vo buscar muito dos seusvalores nossa conscincia do tempo enquanto histria. ( por isso que a passagemdo tempo aumenta o valor esttico das fotografias e que as cicatrizes do tempo tornamos objectos mais fascinantes para os fotgrafos.) Com a noo de histria afirmamos onosso interesse em conhecer o maior nmero de coisas. O nico uso da histria que permitido aos chineses didctico: o seu interesse pela histria limitado, moralista,deformante e desprovido de curiosidade. Por isso a fotografia, no sentido que lhaatribumos, no tem lugar nessa sociedade.

    Os limites impostos fotografia na China no fazem mais do que reflectir o carcterde uma sociedade unificada por uma ideologia de conflitos rgidos e inconciliveis. Onosso uso ilimitado das imagens fotogrfica no s reflecte como tambm d forma nossa sociedade, unificada pela recusa do conflito. A nossa prpria noo de mundo o mundo uno capitalista do sculo XX semelhante a uma fotografiapanormica. O mundo uno no porque esteja unido, mas porque uma observaodos seus diversos contedos no revela conflitos mas apenas uma diversidade aindamais aterradora. Esta unidade espria do mundo afectada pela traduo dos seuscontedos em imagens. As imagens so sempre compatveis ou podem s-lo, mesmoquando as realidades que representam no o so.

    A fotografia no se limita a reproduzir o real, recicla-o, o que constitui um processochave de uma sociedade moderna. As coisas e os acontecimentos so submetidos,sob a forma de imagens fotogrficas, a novos usos, recebem novos significados queesto para alm das distines entre o belo e o feio, o verdadeiro e o falso, o til e ointil, o bom e o mau gosto. A fotografia um dos principais meios para produzir essaqualidade que, quando atribuda s coisas e s situaes, desvanece essasdistines: o interessante. O que torna qualquer coisa interessante o facto depoder ser considerada semelhante ou anloga a uma outra coisa. H uma arte e hmodas para ver as coisas de forma a que nos paream interessantes; e, para alimentaressa arte e essas modas, h uma reciclagem constante dos artefactos e gostos dopassado. Os clichs, reciclados, transformam-se em metaclichs. A reciclagemfotogrfica faz com que objectos nicos se tornem clichs se tornem artefactosinconfundveis e vividos. As imagens de coisas reais esto entremeadas com imagensde imagens. Os chineses circunscrevem os usos da fotografia, de modo a que no

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    haja camadas ou estratos, de modo a que todas as imagens se reforcem e reiterem .4)Ns fazemos da fotografia um meio pelo qual, precisamente, se pode dizer tudo eservir qualquer objectivo. As imagens unem o que na realidade descontnuo. Aexploso de uma bomba atmica pode, sob a forma de fotografia, ser utilizada para apublicidade a um cofre.

    Para ns, a diferena entre .o fotgrafo como olhar individual e o fotgrafo queregista objectivamente .parece fundamental, e essa diferena muitas vezesconsiderada, erradamente, como a fronteira que separa a fotografia como arte dafotografia como documento. No entanto, ambas so- extenses lgicas do que afotografia -significa: potencialmente, um apontamento de tudo o que existe de todos osngulos possveis. Nadar, que tirou os mais representativos retratos das celebridadesdo seu tempo e realizou a primeira entrevista fotogrfica, foi tambm o primeiro a tirarfotografias areas; e quando efectuou essa operao daguerriana em Paris, em1855, a partir de um balo, compreendeu imediatamente os futuros benefcios dafotografia para os militares.

    H duas atitudes que esto subjacentes ao pressuposto de que tudo no mundo motivo para a fotografia. Uma delas considera que em tudo existe beleza ou, pelomenos, interesse, desde que o olhar sej a suficientemente perspicaz. ( a estetizaoda realidade, que torna tudo disponvel para a cmara, tambm o que permite que seeleja como arte qualquer fotografia, mesmo a mais obviamente prtica.) A outra atitudetrata tudo como objecto de um uso presente ou futuro, como matria para clculos,decises e predies. De acordo com uma dessas atitudes, no h nada que no devaser visto; de acordo com a outra, no h nada que no deva ser registado. As cmarasconcretizam uma viso esttica da realidade por serem brinquedos mecnicos quecolocam ao alcance de todos a possibilidade de emitirem juzos desinteressados sobrea importncia, o interesse e a beleza. (Aquilo dava uma boa fotografia.) Econcretizam uma viso instrumental da realidade ao reunirem informaes que nospermitem reaces muito mais acertadas e rpidas. E claro que a reaco pode serrepressiva ou benvola: as fotografias de reconhecimento militar contribuem para a

    O interesse dos chineses pela funo iterativa das imagens (e, das palavras) inspira a distribuio de4)imagens adicionais, fotografias, que representam cenas em que, obviamente, nenhum fotgrafo poderiater estado presente; e o uso persistente dessas fotografias sugere como limitada a compreenso dapopulao das .implicaes de tirar fotografias e das imagens fotogrficas. Simon Leys, no seu livroSombras Chinesas, d o exemplo do Movimento de Emulao de Lei Feng, uma campanha demassas de meados dos anos 60 para inculcar os ideals da cidadania maoista erguidos em torno daapoteose de um Cidado Desconhecido, uni recruta chamado Lei. Feng que morreu aos vinte anos numacidente banal. As Exposies Lei, Fang, organizadas nas grandes cidades, incluam documentosfotogrficos, tais como `Lei Feng auxiliando uma velhinha a atravessar a rua', `Lei Feng levandosecretamente' (sic) a roupa de um camarada', `Lei Feng dando o seu almoo a um camarada que seesqueceu da sua comida, e assim sucessivamente, sem que aparentemente algum se tivesseinterrogado sobre a presena providencial de um fotgrafo durante os diversos episdios da vida dessesoldado humilde, at ento desconhecido. Na China, o que confere verdade a uma imagem o factode ser bom para o povo v-la.

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    destruio de vidas, os raios X para as salvar.

    Embora estas duas atitudes, a esttica e a instrumental, paream suscitarsentimentos contraditrios e mesmo incompatveis sobre pessoas e situaes, essaatitude contraditria e caracterstica que os membros de uma sociedade que divorcia opblico do privado devem partilhar e tolerar. E talvez no haja nenhuma actividade queto bem nos prepare para viver com estas atitudes contraditrias como a fotografia,que com tanto brilho se presta a ambas. Por um lado, a cmara pe a viso ao serviodo poder do Estado, da indstria, da cincia. Por outro, torna expressiva a viso nesseespao mtico conhecido por vida privada. Na China, onde a poltica e o moralismo nodeixam espao para expresses de sensibilidade esttica, s algumas coisas podemser fotografadas e apenas de determinadas maneiras. Para ns, quanto mais nosvamos distanciando da poltica maior o espao livre que pode ser preenchido porexerccios de sensibilidade como os que a cmara permite. Um dos efeitos da maisrecente tecnologia fotogrfica (vdeo, pelculas instantneas) o remeter ainda maisos usos privados da cmara para actividades narcisistas, ou seja, para aautovigilncia. Mas esses usos, hoje em dia to populares, de retroaco da imagemno quarto, na sesso de terapia e na conferncia de fim de semana, parecem menosimportantes do que as potencialidades do video como instrumento de vigilncia emlocais pblicos. presumvel que os chineses venham a ter os mesmos usosinstrumentais da fotografia com excepo, talvez, deste ltimo. A nossa tendncia paratratar o carcter como equivalente do comportamento torna mais aceitvel umaextensa instalao pblica do olhar mecnico e exterior que as cmaras possibilitam.Os padres de ordem chineses, muito mais repressivos, requerem no s umaverificao muito mais cuidadosa do comportamento como tambm uma mudana damaneira de sentir das pessoas; a vigilncia ali interiorizada num grau semprecedentes, o que leva a crer que nessa sociedade a cmara tem um futuro maislimitado como meio de vigilncia.

    A China o modelo de um gnero de ditadura em que a ideia fundamental obom, em que se impem os mais severos limites a todas as formas de expresso,incluindo as imagens. O futuro poder vir a proporcionar outra espcie de ditadura emque a ideia fundamental seja o interessante, em que proliferem toda a espcie deimagens, quer estereotipadas quer excntricas. Nabokov, em Invitation to aBeheading, sugere algo de semelhante. O seu retrato de um estado totalitrio modelocontm apenas uma arte, omnipresente: a fotografia; e o fotgrafo amigvel que rondaa cela da morte do heri acaba por revelar-se, no final do romance, como o verdugo. Eno parece haver maneira (a menos que se verifique, como na China, uma vastaamnsia histrica) de limitar a proliferao de imagens fotogrficas. A nica questoconsiste em saber se a funo do mundo das imagens criado pela cmara poderia serdiferente. A funo actual bastante clara, se considerarmos os contextos em que asimagens fotogrficas so vistas, as dependncias que criam, os antagonismos quepacificam, ou seja, que instituies apoiam e que necessidades efectivamente servem.

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    Uma sociedade capitalista requer uma cultura baseada em imagens. Necessita deproporcionar divertimentos em grandes quantidades a fim de estimular o consumo eanestesiar os sofrimentos causados por se pertencer a uma classe, raa ou sexo. Enecessita de reunir quantidades ilimitadas de informao para poder explorar melhoros recursos naturais, aumentar a produtividade, manter a ordem, fazer a guerra, daremprego aos burocratas. A dupla capacidade da cmara, a de tornar a realidade ousubjectiva ou objectiva, serve de forma ideal e refora essas necessidades. Ascmaras definem a realidade de duas maneiras essenciais para o funcionamento deuma sociedade industrial avanada: como espectculo (para as massas) e comoobjecto de vigilncia (para os dirigentes). A produo de imagens fornece igualmenteuma ideologia dominante. As alteraes sociais so substitudas por alteraes nasimagens. A liberdade de consumir uma pluralidade de imagens e bens equiparada prpria liberdade. A reduo da livre escolha poltica ao livre consumo econmicoexige a produo e o consumo ilimitado de imagens.

    A razo ltima para a necessidade de fotografar tudo reside na prpria lgica doconsumo. Consumir significa queimar, gastar e implica pois a necessidade dereabastecimento. Como fazemos imagens e as consumimos, precisamos de ainda maisimagens, cada vez mais imagens. Mas as imagens no so um tesouro que, para serdescoberto, obrigue a esquadrinhar o mundo; so precisamente o que est moonde que o olhar se detenha. A posse de uma cmara pode inspirar algo desemelhante luxria. E, como todas as formas credveis de luxria, nunca pode sersatisfeita: em primeiro lugar, porque as possibilidades da fotografia so infinitas; e, emsegundo lugar, porque o projecto acaba por se devorar a si mesmo. As tentativas defotgrafos para reforar um exaurido sentido da realidade contribuem para essaexausto. O nosso sentido opressivo da transitoriedade de tudo mais agudo desdeque as cmaras permitem fixar um momento fugaz. Consumimos imagens a umritmo cada vez mais acelerado e, assim como Balzac suspeitava que as cmarasconsumiam camadas do corpo, as cmaras consomem a realidade. A cmara oantdoto e a doena, um meio de apropriao da realidade e um meio de a tornarobsoleta.

    Com efeito, os poderes da fotografia desplatonizaram a nossa compreenso darealidade, impossibilitando cada vez mais a reflexo sobre a nossa experincia deacordo com a distino entre imagens e coisas, entre cpias e originais. Para a atitudedepreciativa de Plato em relao s imagens era conveniente assemelh-las asombras, co-presenas transitrias, minimamente informativas, imateriais eimpotentes, das coisas reais que as projectam. Mas a fora das imagens fotogrficasadvm-lhes do facto de serem realidades materiais de direito prprio, depsitos ricosem informao deixados na esteira daquilo que os emitiu, meios poderosos de pr emxeque a realidade, de a transformar numa sombra. As imagens so mais reais do quealguma vez se imaginou. E precisamente por serem um recurso ilimitado, que adissipao consumista no pode esgotar, que h muito mais razes para que se lhesadministre um tratamento que permita conserv-las. A existir uma forma de melhor

  • Susan Sontag Ensaios Sobre Fotografia: 6. O Mundo das Imagens 18/18

    integrar o mundo das imagens no mundo real, ele passar necessariamente por umaecologia, no s das coisas reais, mas tambm das imagens.

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