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Anotações da Ética – demonstrada à maneira dos geômetras SPINOZA, Baruch de. Ética: demonstrada à maneira dos geômetras. Col. A obra-prima de cada autor – série ouro. SP: Editora Martin Claret, 2003. Além de seguir pelo índice seguinte, você pode utilizar a ferramenta de busca, desde que esteja lendo o texto em formato virtual: Ctrl+F. Índice remissivo A APÊNDICE DA PARTE I Uma análise antropológica do antropocentrismo · 5, 6 As três afecções primitivas O desejo e as paixões de alegria e tristeza · 13 C Conceitos Cidade · 21 Erro e privação (de existência) · 8 Flutuação da alma · 15 Generalização de afecções · 13 Imagem · 8 Imaginação · 8 O que se deduz clara e distintamente · 24 Razão · 20 Transcendental e a priori (conceito) · 9 Vontade, apetite e desejo · 12 Corpo e Alma Uma conjunção - corpo pensante · 7 D Diagramas Diagrama 1 afecção · 16 Diagrama 2 Perfeição ou imperfeição e bem ou mal · 19

SPINOZA - ÉTICA

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Anotações da Ética – demonstrada à maneira dos geômetras SPINOZA, Baruch de. Ética: demonstrada à maneira dos geômetras. Col. A obraprima de cada autor – série ouro. SP: Editora Martin Claret, 2003. Além de seguir pelo índice seguinte, você pode utilizar a ferramenta de busca, desde que esteja lendo o texto em formato virtual: Ctrl+F. Índice remissivoAAPÊNDICE DA PARTE I · Uma análise antropológica do antropocentrismo · 5, 6 As três afecções primitivas · O desejo e as paixões de alegria e tris

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Anotações da Ética – demonstrada à maneira dos geômetras

SPINOZA, Baruch de. Ética: demonstrada à maneira dos geômetras. Col. A obra-prima de cada autor – série ouro. SP: Editora Martin Claret, 2003.

Além de seguir pelo índice seguinte, você pode utilizar a ferramenta de busca, desde que esteja lendo o texto em formato virtual: Ctrl+F.

Índice remissivo

A

APÊNDICE DA PARTE IUma análise antropológica do antropocentrismo · 5, 6

As três afecções primitivasO desejo e as paixões de alegria e tristeza · 13

C

ConceitosCidade · 21Erro e privação (de existência) · 8Flutuação da alma · 15Generalização de afecções · 13Imagem · 8Imaginação · 8O que se deduz clara e distintamente · 24Razão · 20Transcendental e a priori (conceito) · 9Vontade, apetite e desejo · 12

Corpo e AlmaUma conjunção - corpo pensante · 7

D

DiagramasDiagrama 1

afecção · 16Diagrama 2

Perfeição ou imperfeição e bem ou mal · 19

E

EpistemologiaAs três categorias e os três gêneros de conhecimento · 10O papel da Razão · 20

ÉticaA coisa mais útil ao homem é o próprio homem e apenas em conjunto podem melhor conservar o seu ser (em

conjunto) · 20

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A virtude é o útil e, como o útil é a conservação do ser do homem, é a sua própria essência · 20O bem e o mal em relação à potência de ação · 19O estado natural · 21O homem livre é o homem sobre o ditame da Razão · 22

O

OntologiaA alma não tem duração · 25A duração está no espaço-tempo da percepção · 25A força das paixões superar a potência humana · 21A idéia de corpo

o corpo como necessário ao conhecimento ontológico · 8A idéia que nasce da razão é universalmente válida · 22A imaginação também pode limitar a potência · 18A metáfora dos corpos

A Natureza é um indivíduo · 7A potência da alma pode governas os afetos · 16A tendência das coisas em si · 12A teoria das paixões (determinantes) · 12Corpo e Alma

Uma conjunção - corpo pensante · 7Corpo e alma e o dualismo · 12Deus como a categoria U · 4Deus é causa de todas as coisas e de si mesmo · 5F = PE-PS · 24Idéias claras e distintas · 18Liberdade e Necessidade em referência ao ser humano · 16Nada é dado de contingente no mundo · 5Não há finalidade em Deus · 18Natureza Naturante e Natureza Naturada · 5O desejo como conjunto que contém esforços, impulsões, apetites e volições · 17O homem autônomo não é mais livre que o homem na cidade · 23O homem como vário e inconstante · 20O homem não é autônomo, se submetido à força das paixões · 18O homem não existe necessariamente · 7O que pode a alma sobre as afecções (5 pontos) · 24O ser humano é uma parte da Natureza e a sua potência é superada pela das coisas · 23O único remédio às paixões é o conhecimento · 24Os dois princípios essenciais do ser · 15Paixões = {desejo, alegria, tristeza} · 18Pensamento e paixão

o pensamento pode se tornar paixão · 19Perfeição e modelo · 18Presença e imaginação · 8Razão

a verdadeira potência do homem · 21Resumo das paixões · 17Ser e realidade · 4ser no mundo · 11Só uma paixão mais forte pode reprimir outra paixão · 19Um par de opostos na presença · 13Volição e entendimento · 11

Os conceitos universaiso problema da diferença · 10

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P

PartesParte II · 6Parte III · 11Parte IV · 18Parte V · 23

Pedagogia de Spinoza · 8Presença e imaginação

as afecções do corpo como mediação da representação ou imagem e a idéia de si · 9

T

Teoria do conhecimentoA imaginação não se pauta no verdadeiro · 19A vida racional se define pela inteligência · 23Conhecimento e alteridade

única possibilidade · 23Corpo e Alma

Uma conjunção - corpo pensante · 7O tempo como imaginado · 11

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Parte I: De Deus

O tempo é um modus cogitandi, i.e., um modo de pensar: ele não tem realidade (Cf. Nota da Explicação da Definição VIII).

Para Spinoza, ser e realidade são uma e mesma coisa.

“[...] um ser absolutamente infinito deve ser necessariamente definido [...] como ente que constituído por uma infinidade de atributos, cada um dos quais exprime certa essência eterna e infinita [...] não existe na natureza senão uma substância única e [...] absolutamente infinita” (p. 74).

“[...] se não pode ser dada nenhuma razão ou causa que impeça a existência de Deus ou a suprima, não se poderá absolutamente evitar a conclusão de que ele existe necessariamente” (p. 75).

“[...] tudo o que uma substância tem de perfeição não se devem a nenhuma causa exterior, porquanto a sua existência tem de resultar exclusivamente da natureza que lhe é própria, a qual dela não é mais do que a própria essência” (p. 78).

“Tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus nada pode existir nem ser concebido” (p. 81, Proposição XV, grifo meu), visto que os modos só podem ser concebidos devido a uma substância, que é a natureza divina – sua causa. Esta proposição pode ser escrita

na fórmula a seguir: ∀x, x ∈ A, sendo que x é um elemento qualquer e A é Deus, o conjunto no qual tudo é.

Spinoza dirá que as partes são diferentes em modo e não em realidade, o que implica dizer que elas são divisíveis, mas, ao mesmo tempo, são substância, que é eterna e infinita.

“[...] nem o entendimento nem a vontade pertencem à natureza de Deus” (p. 90). O Deus pertence o entendimento supremo e a vontade livre. Há uma diferença de grau entre o entendimento e a vontade humana e o entendimento e a vontade divina, mas a diferença é tão grande que não se pode utilizar o mesmo nome entre ambos.

“[...] um homem é causa da existência, mas não da essência de outro homem, porque essa essência é uma verdade eterna; em conseqüência, podem convir inteiramente quanto à essência, mas devem diferir a respeito da existência” (p. 93). Neste caso, Spinoza tem, na discussão das categorias, uma posição realista.

“A existência de Deus e sua essência sua uma só coisa” (Proposição XX, p. 95).

“[...] os mesmos atributos de Deus que explicam a essência eterna de Deus [...] explicam, ao mesmo tempo, sua existência eterna, isto é, aquilo mesmo que constitui a essência de Deus constitui também a sua existência, e assim a essência e a existência são uma só e mesma coisa” (p. 96).

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Deus é causa de si e de todas as coisas: de sua essência e existência (cf. pp. 100-1, Proposição XXV).

“As coisas particulares nada mais são do que afecções dos atributos de Deus, ou melhor, modos pelos quais os atributos de Deus são expressos de maneira certa e determinada” (p. 101, os grifos são meus). Isto lembra do ser e do ente.

As coisas finitas só podem ser determinadas por Deus a produzir outro finito, mas essa coisa não pode ser conseqüência de Deus, já que esse é infinito, embora nada exista fora do modo e da substância de Deus. Há uma infinidade de coisas causadas por outras. E, em seguida, Spinoza distinguirá dois modos de coisas: 1) as infinitas imediatas (Deus é causa próxima) e 2) as infinitas mediatas.

“Nada é dado de contingente na natureza, mas nela tudo é determinado pela necessidade da natureza divina a existir e agir de modo certo” (Proposição XXIX, p. 105). Eis aí o determinismo de Spinoza em termos claros.

No Escólio da Proposição XIX (p. 106), Spinoza distinguirá Natureza Naturante (aquilo que existe por si e é concebido por si) de Natureza Naturada (os atributos de Deus, aquilo que se segue por necessidade da natureza de Deus).

Natureza Naturante é a coisa em si mesma (existente e concebida em si): “aqueles atributos da substância que exprimem uma essência eterna e infinita, ou [...] Deus considerado como causa livre. Por Natureza Naturada entendo tudo aquilo que se segue da necessidade da natureza de Deus [...] de todos os modos dos atributos de Deus, à medida que são considerados como coisas que existem em Deus e não podem existir e nem ser concebidas sem Deus” (p. 106).

“O entendimento em ato, quer seja finito quer infinito, como também a vontade, o desejo, o amor, etc., devem ser referidos à Natureza Naturada, e não à Natureza Naturante” (p. 107, Proposição XXXI).

“A vontade não pode ser chamada “causa livre”, mas somente “causa necessária”” (p. 108, Proposição XXXII), ou seja, ela deve ter “uma causa pela qual seja determinada a existir e a produzir algum efeito” (p. 109).

Em seguida, na próxima proposição, Spinoza diz que a vontade absoluta é própria à essência de Deus, o que segue a ordem (perfeita) das coisas e sua determinação dada por Deus e, em seguida, no Escólio II da mesma proposição, que “Deus não existe anteriormente a seus decretos e não pode existir sem eles” (p. 113); logo, ambos devem coexistir.

No apêndice da Parte I(p. 117), Spinoza diz que todas as coisas são predeterminadas por Deus não pela liberdade da vontade, mas por sua infinita potência. Neste apêndice há uma análise antropológica interessante, na qual Spinoza se esforça para demonstrar a

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preocupação dos homens não com as causas primeiras de seus comportamentos, mas, num interesse pragmático, com as causas finais deles e das coisas dispostas no mundo1, que são, segundo ele, “ficções humanas”, e criando, assim, preconceitos e superstições, que se “enraízam em suas mentes” (cf. em especial a p. 118): como, por exemplo, a liberdade, visto que sabem de seus desejos e volições de buscar algo (comportamento teleológico), mas não buscam as causas dessas volições; o culto aos deuses, com vista a um proveito egoísta (cultuo meu Deus para que as finalidades das coisas por Ele criadas atendam aos meus desejos cegos); e as catástrofes mundanas, que são interpretadas como a cólera dos deuses. Refuta-se assim a contingência e afirma-se que tudo que há no Mundo é necessário, visto que a “vontade de Deus”, segundo Spinoza, é o “asilo da ignorância” (p. 122). Nesta passagem, Spinoza elimina a vontade de Deus de qualquer circunstância que valide o acaso ou mesmo um fim: é tudo programado, naturalmente; além de refutar a visão antropocêntrica do Universo, incluindo a imanência da moral na ordem das coisas (para esta refutação, cf. especialmente o último parágrafo da p. 123 e a p. 125): ele diz que isto é uma inversão, que consiste na substituição do modo de ser das coisas pelo seu modo de ser na imaginação do homem – naquilo que lhe convém, por ser saudável, como diz Spinoza, incluindo, nisto, tudo que provém dos sentidos. Em seguida Spinoza diz que “os homens julgam as coisas segundo a disposição do seu cérebro [que ele admite, anteriormente, variar de homem a homem] e as imaginam mais que as conhecem” (p. 126) – este parágrafo me fez pensar no conceito de fantasia, da psicanálise.

Conclusões: Deus existe, necessariamente, em si e por si: Ele é substância.As coisas são modos determinados pelos atributos de Deus, que lhes dá essência e, assim, garante existência, uma existência determinada. E tudo o que é privado (cessa de existir) o é pela vontade livre de Deus, por seu decreto.Deus e as coisas existem necessariamente, sendo que estas últimas só existem por alguma razão, não podendo, por conseguinte, tornar-se indeterminadas por si mesmas, já que tem uma causa. O raciocínio de Spinoza, aqui, está pautado na tese de que as coisas só são em relação a outras coisas.Tudo existe em Deus.

Parte II: Da natureza e da origem da alma

“O pensamento é um atributo de Deus, ou, em outras palavras, Deus é coisa pensante” (Proposição I, p. 131).

“A ordem e a conexão das idéias são as mesmas que a ordem e a conexão das coisas” (Proposição XVII, p. 135).

1 Para Spinoza, agir a um fim é saciar uma privação; por conseguinte, se Deus agisse assim, estaria saciando uma privação, o que seria incoerente com sua perfeição.

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Spinoza (já no Escólio da Proposição III) alerta para o caráter divergente de Deus e homem, nem mesmo seu poder figura como o nosso, a saber: de criar e destruir por vontade, mas por necessidade.

“um modo da extensão e a idéia desse modo são uma e a mesma coisa, mas expressa de duas maneiras [...] o entendimento de Deus e as coisas entendidas por ele são uma só coisa” (Escólio da Proposição VII, p. 136).

Segundo a proposição X (p. 139), o homem não existe necessariamente: a forma do homem não é constituída pelo ser da substância, visto que ela é indivisível e que podem, contrariando a indivisibilidade da substância, existir vários homens.

“pertence à essência de uma coisa aquilo sem o que ela não pode existir nem ser concebida; é por isso que as coisas singulares não podem existir nem ser concebidas sem Deus e, entretanto, Deus não pertence à sua essência” (p. 141).

Vou anotar quatro proposições (não necessariamente enumeradas separadamente por Spinoza) interessantes:1) “o que constitui o elemento primeiro de uma alma humana é, pois, uma idéia. Mas não a idéia de uma coisa não existente” (p. 142). 2) “o que constitui primeiramente o ser atual da alma humana é a idéia de uma coisa singular existente em ato” (idem)3) “dizemos então que a alma humana percebe uma coisa parcial ou inadequadamente” (idem), porque “a alma humana é parte do entendimento infinito de Deus” (idem).4) “o objeto de nossa alma é o corpo existente e nada mais” (p. 144)As três primeiras pertencem à proposição XII e a última, à XIII. O que quero comentar é que, de certo modo, Spinoza concebe a existência como precedente à essência e o corpo constitui a alma, superando o dualismo cartesiano. Mas, para nossa surpresa, o Corolário da Proposição XIII, Spinoza diz que “o homem consiste em alma e corpo e que o corpo humano existe conforme o sentimento que temos dele” (p. 144); o que me faz lembrar, novamente, do conceito de fantasia (psicanálise), mas, também, deixa-me perplexo, embora pense que este corpo assumido na proposição se trate de um corpo a posteriori e não a priori, ou seja, um corpo já pensante. E é o que veremos no Escólio da mesma, em que Spinoza remete a uma conjunção de corpo e alma, que vai além do dualismo cartesiano.

Spinoza, no Escólio de seus lemas sobre os corpos, faz uma comparação da natureza geral com um indivíduo: ambos são formados por corpos infinitamente variados, que podem variar em si mesmos, mas sem prejudicar a forma do indivíduo total.

Com o que foi dito, fica-nos fácil interpretar que “tudo o que acontece no corpo humano, a alma humana deve percebê-lo” (p. 152), visto que podem ser conhecidos

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como uma mesma coisa, mas a alma, segundo Spinoza (cf. p. 153, Corolário I da Proposição XVI), pode perceber um grande número de outros corpos, além do seu próprio; e, ademais, as idéias dos corpos exteriores indicam, contudo, “mais o estado do [...] próprio corpo do que a natureza dos corpos exteriores” (idem, mas Corolário II). Assim, e só assim (vide Proposição XVII), o corpo pode considerar um corpo exterior como presente (existente em ato): quando o corpo sofrer uma afecção por conta do corpo exterior; contudo, estes corpos podem ser considerados quando não estiverem presentes, sim, caso o corpo já tenha sido afetado por sua presença uma vez2.

Existe um exemplo interessante na p. 155, que me lembrou o exemplo de Sartre (vide O ser e o nada – não me lembro da página, mas pertence à primeira parte do ensaio). O interessante deste exemplo é que, de um lado, uma pessoa, A, pode ter a idéia da essência de seu corpo, enquanto ela mesma exista; e, por outro lado, outra pessoa, B, que seja afetada pela presença do corpo de A, tem a idéia da afecção de seu próprio corpo e não da natureza do corpo de A, podendo A estar presente para B mesmo no momento em que ele já não esteja mais presente (não mais exista, visto que presença é existência em ato). Assim, o que se presenta de acordo com as afecções do corpo de quem percebe recebe o nome de “imagem” – é a representação da presença das coisas exteriores ao corpo que as percebe, i.e., imagina, que podem não refletir a figura das coisas. Com efeito, em sua pedagogia, não existe o erro, na imaginação (que é o mesmo que o conhecimento), mas a privação “de uma idéia que exclui a existência dessas coisas que ela imagina como lhe estando presentes [e que não mais existem efetivamente]” (p. 156, Escólio da Proposição XVII); ademais, Spinoza (cf. p. 157) apresenta-nos uma teoria da contigüidade, utilizando-se do exemplo duma palavra falada (sonora) com a coisa que representa, que, na verdade, não têm nada em comum, a não ser a contigüidade de presença – i.e., de afetar o corpo. E preste atenção nas primeiras linhas da demonstração da Proposição XIX: “A alma humana, com efeito, é a idéia mesma ou o conhecimento do corpo humano (Proposição XIII) que está em Deus” (p. 158, grifo meu); talvez, pudéssemos trocar esta última asserção para “está no mundo” ou “é no mundo” e, assim, teríamos uma idéia mais ou menos clara da idéia de pessoa ou idéia de si (pelas afecções do próprio corpo), que é a alma. Contudo, a idéia do corpo exterior, que é tida através da afecção do próprio corpo sentida pela alma, não é adequada – é faltante, visto que apenas só se tem a idéia corpo exterior pela idéia do próprio corpo, o que implica imaginação (cf. p. 162-3, Proposições XXV-VI) –, inclusive o é também a idéia do próprio corpo, visto que ele é composto por vários indivíduos que podem ser afetados por maneiras diversas (p. 163, Proposição XXVII), e da própria alma (p. 165, Proposição XXIX): tem-se apenas “um conhecimento confuso e mutilado” (p. 165, Escólio). No mais (proposição XXI e escólio), a idéia da alma (idéia-da-alma) também deve estar na alma, assim como a alma está no corpo (tendo-o como objeto). Disto tudo, pode-se, talvez, relacionar os conceitos de Spinoza com os hegelianos: Em-si (a coisa), Para-si (a idéia de si e da coisa) e Para-si-Em-si (a idéia da

2 A idéia do corpo como necessário ao conhecimento ontológico parece ser refutada, depois, por Spinoza, quando diz que o fracasso está associado ao pensar as coisas com base em imagens, isto é, nas afecções causadas no corpo pelas coisas exteriores.

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alma); ademais, “a idéia da alma e a própria alma são uma só coisa, que é concebida sob um só atributo, a saber, o pensamento” (p. 159), e é por isto que se sabe o que sabe (por ter a idéia da idéia). Podemos fazer uma analogia, também, ao desenvolvimento psico-topológico humano, resumidamente: das afecções corporais estrutura-se o próprio ego e sua idéia e da idéia do ego, o superego.

Em seguida, Spinoza nos dirá sobre a percepção da duração do corpo e das coisas, que é sempre inadequada, seguindo, pois, daí que as coisas particulares sejam corruptíveis e contingentes – devido à sua possibilidade de corrupção –, e é esta, avisa-nos, a única acepção de contingente. Ademais, diz-nos que “a falsidade é a privação de conhecimento que envolve as idéias inadequadas” (p. 169, Proposição XXXV; isto já foi visto acima), exemplificando (Cf. Escólio da mesma) com o engano que os homens comentem ao acharem-se livres, o que acontece por acharem que conhecer suas ações é o suficiente, mas ignoram a causa de suas ações.

Spinoza demonstrará, no Escólio da Proposição XL (“Todas as idéias que resultam, na alma, das idéias que nela são adequadas, também são adequadas”, p. 172), as “noções chamadas “comuns”, as quais são os princípios do nosso raciocínio” (p. 173), isto é, sendo Deus a essência da alma humana, estes são os a priori, no sentido kantiano (lembrando-se que Kant é ulterior a Spinoza). Segundo ele, isto será deixado para outro tratado. Pois bem, diz ele: “[...] acrescentarei algumas palavras sobre as causas de que provieram os termos chamados “transcendentais”, tais como ser, coisa, algo. Esses termos originam-se do fato de que o corpo humano, sendo limitado, é capaz apenas de formar, distintamente, em si mesmo, certo número de imagens ao mesmo tempo [...] se esse número é excedido, as imagens começam a confundir-se; e se o número de imagens distintas, que o corpo é capaz de formar ao mesmo tempo em si mesmo, é em muito excedido, todas se confundirão inteiramente entre si [...] logo que as imagens se confundem inteiramente no corpo, a alma também imaginará confusamente todos os corpos, sem distinção alguma, e os compreenderá de certa maneira sob um mesmo atributo, a saber, sob o atributo de ser, de coisa, etc. Isso pode também provir do fato de que as imagens não são sempre igualmente vivas [...] Todas, com efeito, se reduzem a que esses termos signifiquem idéias confusas no mais alto grau. De causas semelhantes se originaram também essas noções que se denominam “universais”, como homem, cavalo, cão, etc., a saber, porque se formam, ao mesmo tempo, no corpo humano, imagens, por exemplo, de homens em tão grande número que o seu poder de imaginação se acha ultrapassado; a dizer a verdade, não completamente, mas o bastante para que a alma não possa imaginar, nem as pequenas diferenças singulares (tais como a cor, o tamanho de cada um), nem o número determinado dos seres singulares, e imagine distintamente apenas aquilo em que todos convêm, à medida que afetam o corpo. Com efeito, é essa qualidade, comum a todos, pela qual o corpo foi afetado mais fortemente, tendo-o sido pelos seres singulares, que a alma exprime pelo nome de “homem” e que afirma de uma infinidade de seres singulares. Porque, como dizemos, ela não pode imaginar o número determinado dos seres singulares [...] [isto está no parágrafo seguinte, mas pertence, ainda, ao mesmo escólio] essas noções não são formadas por

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todos da mesma maneira; elas variam em cada um, em relação À coisa pela qual o corpo foi afetado mais vezes, e que a alma imagina ou lembra mais facilmente [...] e assim para os outros objetos, cada um formará, segundo a disposição de seu corpo, imagens gerais das coisas. Não é pois de admirar que entre os filósofos que quiseram explicar as coisas naturais unicamente pelas imagens das coisas se tenham originado tantas controvérsias” (p. 173-5).

Spinoza diz que é muito mais fácil a alma conhecer algo que resguarde mais propriedades em comum com o seu corpo, dando-nos, de tal modo, a idéia de que existe algo a priori na alma. Dizendo-nos, doravante, que o corpo é limitado e, portanto, “é capaz apenas de formar, distintamente, em si mesmo, certo número de imagens ao mesmo tempo [...]; se esse número é excedido, as imagens começam a confundir-se; e se o número de imagens, que o corpo é capaz de formar ao mesmo tempo em si mesmo, é em muito excedido, todas se confundirão inteiramente entre si” (pp. 173-4, Escólio da Proposição XL). E, se essas imagens confundirem-se no corpo, então também as imagens dos corpos na alma serão confundidas, sendo, pois, compreendidos sob um mesmo atributo – de ser, de coisa, de algo, etc. (cf. p. 174). Outros casos são, também, dos universais, como o conceito de “homem”, nos quais a imaginação se vê impotente para imaginar seu número determinado e suas diferenças: isto, com efeito, é devido àquelas qualidades gerais e comuns aos corpos (idem). Contudo, Spinoza ainda nos alerta para que essas noções (os universais) variam de cognoscente a cognoscente, pois cada corpo é afetado de maneiras diversas e, assim, cada alma imagina ou lembra diferentemente: as imagens gerais das coisas são, por conseguinte, formadas segundo a disposição do corpo de cada pessoa.

No Escólio II (p. 175-6), Spinoza diferencia três tipos de conhecimento, a saber: 1) da experiência vaga (apreensão dos corpos pelos sentidos, que é truncada e confusa para o entendimento); 2) dos sinais (recordação de coisas por signos, pela qual se imagina coisas e têm-se idéias semelhantes); e 3) das noções comuns e idéias comuns das propriedades das coisas (universais). E três gêneros de conhecimento: 1) que se refere aos dois primeiros tipos de conhecimento (acima), que é o “conhecimento do primeiro gênero, opinião ou imaginação”; 2) “razão e conhecimento do segundo gênero”; e 3) a “ciência intuitiva”, que alcança o conhecimento adequado e, por conseguinte a essência das coisas. Sendo que, quanto aos gêneros, o conhecimento do primeiro é causa da falsidade e os do segundo e terceiro, da verdade: ele “é necessariamente verdadeiro” (p. 176, Proposição XLI). Por conseguinte, o conhecimento verdadeiro é aquele no qual se conhece a idéia adequada da coisa (p. 177, Proposição XLIII).

Entre idéia verdadeira e idéia falsa a diferença está na mesma proporção que entre ser e não-ser, isto é, entre presença (atualidade) e não-presença (desatualidade) da coisa, excluindo-se a não-presença da imaginação apenas quando houver causas para tal;

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ademais, diz-nos, também que o tempo é imaginado, relacionando-se à presença das coisas percebidas contiguamente (p. 178-80)3.

Olhe que interessante a demonstração da Proposição XLV: “A idéia de uma coisa singular existente em ato envolve necessariamente tanto a essência como a existência da própria coisa [...] E as coisas singulares não podem ser concebidas sem Deus” (p. 181); isto é, tudo o que é está no Mundo (algo como o ser-aí de Heidegger), envolvendo, por conseguinte, a essência eterna e infinita de Deus (do Mundo), visto que, no sistema filosófico de Spinoza, Deus e o Mundo são um só.

Posso forçar uma dedução aqui: o tempo não é no Mundo, assim como o são os corpos (as coisas), mas é tão-só na imaginação, i.e., a posteriori na percepção humana, e acompanhando a percepção de uma coisa e, por conseguinte, do Mundo; percebe-se o tempo e o não-tempo (a essência eterna e infinita), ao se perceber uma coisa, o que é bem demonstrado na proposição XLVI (p. 182).

A alma humana, segundo Spinoza (p. 184, Proposição XLVIII), não pode ser causa livre e nem ter uma vontade livre, por ser um modo determinado do pensar e querer. As faculdades absolutas são, portanto, ficções ou seres (da razão) metafísicos abstraídos dos seres particulares. A vontade, para Spinoza, é a faculdade de afirmar e de negar, que se dá na alma e que a idéia envolve não como idéia (referindo-se ao pensar) (p. 185): as volições são volições particulares de querer ou de não querer, mas não absolutas. Em seguida, Spinoza nos dirá que “a vontade e o entendimento são uma só e a mesma coisa” (p. 186, Corolário da Proposição XLIX), visto que “uma idéia, à medida que é idéia, envolve uma afirmação ou uma negação” (p. 187) e visto que imagens e palavras não envolve qualquer conceito do pensamento, mas apenas movimentos corporais. E, a seguir, diz-nos que a vontade é o ser geral (uma idéia), que explica as volições singulares, i.e., que lhes é comum. É interessante notar, também, na página 191, que Spinoza diferencia ser da razão de ente real: o primeiro corresponde às noções gerais, enquanto o segundo, às particulares.

Conclusões:A idéia de qualquer coisa X exprime diretamente a essência do corpo do sujeito cognoscente do que a essência da própria coisa, já que as idéias são modificações do corpo pelas coisas exteriores.

Parte III: Da origem e da natureza das paixões

Olhe este maravilhoso conselho do autor: “o caminho reto para conhecer a Natureza das coisas, sejam elas quais forem, deve ser também um único e mesmo: isto é, sempre por meio de leis e regras universais da Natureza”, sendo que um pouco antes nos diz que elas “são em toda parte e sempre as mesmas” (p. 196).

3 A idéia de tempo, para Spinoza, dá-se por contigüidade, isto é, depende da existência das coisas mesmas, embora ele seja imaginado.

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A primeira proposição (p. 198) diz que, à medida que o homem tem uma idéia adequada, sua alma é ativa, uma causa adequada, em certas coisas; mas, ao contrário, passiva, uma causa parcial, quando tem uma idéia inadequada.

A segunda proposição (p. 199) parece aceitar um tipo de dualismo, ao dizer que só um modo do pensamento pode ser causa do pensar na alma e só um corpo ou modo da extensão pode ser causa de um modo de ser (movimento ou repouso) do corpo, mas em seguida, no corolário, sabemos que “a alma e o corpo são uma só e mesma coisa concebida ora sob o atributo do pensamento, ora sob o da extensão” (p. 200) e, por isto, deve-se explicá-las pelas leis da natureza, que, diz-se, são naturais.

E observe só as seguintes orações: “nada está menos no poder dos homens do que medir a sua linguagem, e não há coisa que possam menos governar que os seus apetites [...] os decretos da alma não são nada mais que os próprios apetites e variam conseqüentemente segundo a disposição variável do corpo [...] o decreto, o apetite da alma e a determinação do corpo são por natureza coisas simultâneas [...] nada podemos fazer por decreto da alma de que antes não tenhamos a recordação” (pp. 202-3). Nestas passagens e nas seguintes, Spinoza demonstrará a determinação da alma por dois lances: a imaginação e a recordação; assim, a decisão da alma (volição) decorre necessariamente.

E observe-se o que segue: “O que constitui, em primeiro lugar, a essência da alma nada mais é que a idéia de um corpo existente em ato” (p. 204) e o que resulta da alma é, por uma idéia inadequada, paixão ou, por uma idéia adequada, as ações da alma.

No escólio da prop. II (p. 204), Spinoza nos diz que as paixões relacionam-se com a alma no momento em que ela envolve uma negação (objeto mutilado); assim, as paixões, tal qual a alma, referem-se a coisas singulares.

Em si, as coisas têm apenas a tendência para perseverar no seu ser: o que as destrói (suprime) são as causas exteriores; tendência esta que é dada (atual) na essência das coisas.

A alma contém em sua essência tanto idéias adequadas quanto inadequadas e esforça-se indefinidamente por perseverar no seu ser, tendo, inclusive, consciência disto. Spinoza chama a isto, se referenciar-se à alma, de vontade e, se à alma e ao corpo, de apetite (libido); este último é a essência do homem, que segue sua conservação (a tendência humana). Isto pode ser cruzado com os conceitos de pulsão pulsional do ego e pulsão sexual. E “o desejo é o apetite consciente de si mesmo” (p. 208); assim, “julgamos que uma coisa é boa porque tendemos para ela, porque a queremos e desejamos” (idem).

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Na prop. X (p. 208), Spinoza diz que uma idéia contrária à existência do corpo (podemos pensar na pulsão de morte?) não pode ser dada à alma e é, pro conseguinte, contrária ao corpo mesmo.

No escólio da prop. XI (p. 209), Spinoza diferencia paixões de alegria e de tristeza. As primeiras, se referidas ao corpo e à alma, são chamadas de “prazer” (titillatio) ou “hilariedade” e as segundas, do mesmo modo, de “dor” ou “melancolia”, sendo que as de prazer e dor se referem a partes, quando afetadas, e as ouras duas, ao todo. As três afecções primitivas são, portanto: o desejo e as paixões de alegria e tristeza. E, visto que a alma tem sua gênese na idéia do corpo, não pode, portanto, haver em sua essência uma idéia contrária à existência deste próprio corpo (anote-se que isto é válido se, e somente se, a tendência essencial do corpo é conservar-se, isto é, manter-se existindo).A partir daqui o autor fará análises das relações objetais. É interessante, mas maçante. É recomendável que o leitor leia pelo menos o que estiver em negrito, se quiser saltar esta parte.

No escólio da prop. XIII (p. 211), Spinoza admite um par de opostos: amor e ódio, que se referem à presença (existência) de algo exterior: de um lado, a conservação da presença (existir no mundo) e, de outro, seu afastamento e destruição.

No escólio da XV (p. 213), nos diz que afecções podem ser generalizadas, i.e., objetos semelhantes podem causar afecções semelhantes.

Algumas semelhanças (traços) de coisas com objetos antes causa de afecções podem resultar, ao a alma ser afetada pela sua imagem, em ódio ou alegria, mas sem ser causa eficiente, i.e., é a relação do objeto primeiro e a afecção originada dele com um traço objetal a posteriori, ao ser imaginada, que poderá resultá-lo (prop. XVI, p. 214), o que quer dizer que a responsividade pode, com dada freqüência de repetição, aumentar a menores exposições de magnitudes estimulares. E, quando um objeto pode ser causa de afecções múltiplas e contrárias, chama-se “flutuação da alma” (Animu fluctuatio), “o qual está para a afecção como a dúvida para a imaginação [...] e não há diferença entre a flutuação da alma e a dúvida, senão de grau” (p. 215), podendo ser as duas afecções como causa eficiente ou uma delas como acidente. Ademais, enquanto “o homem é afetado pela imagem de uma coisa, considerá-la-á como presente, ainda que ela não exista [...] e não a imagina como passada ou futura senão à medida que a imagem dela está unida à imagem do tempo passado ou futuro” (p. 216, propor. XVIII), sendo que aquilo que se refere ao futuro é um objeto duvidoso de caráter inconstante. Disto, Spinoza deduz a esperança (alegria inconstante, nascida da imagem de uma coisa futura ou passada, de cujo resultado se duvida), o medo (do mesmo modo que a esperança, mas com tristeza), que se tornam segurança, de um lado, e desespero, de outro, se lhes tira a dúvida. Assim, visto que todo objeto que favorece a potência de agir do corpo é mais fortemente imaginado pela alma, se algo amado cessa de existir, entristecer-se-á, e, por outro lado, se algo odiado cessa de existir, alegrar-se-á (a pessoa) (pp. 217-9, prop. XIX-XX).

A alma se esforça por buscar ou imaginar a coisa amada (p. 219).No escólio da prop. XXII (p. 220), Spinoza distingue o amor que se tem àquele

que faz bem ao nosso objeto amado e o ódio, que lhe temos, se faz mal ao mesmo

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objeto, chamando-os, respectivamente, de “favor” e “indignação”/ mas não só À coisa que amamos, mas também à que se nos assemelha (pode-se cruzar isto com o narcisismo). Contudo, de certo modo, há certa medida de tristeza caso se imagine na coisa semelhante a si uma afecção de tristeza, e o mesmo vale para a alegria. E a inveja não é senão isto: sentir o contrário de seu semelhante (comprazer-se com tristeza etc.) e o mesmo vale caso haja um terceiro, que, por exemplo, alegre a coisa odiada (tem-se ódio dele e inveja da coisa odiada), ou caso ele lhe faça mal (à coisa odiada), ter-se-á amor por ele etc.

O “orgulho”, diz Spinoza, “é uma alegria originada de ter o homem uma opinião mais favorável de si mesmo do que seria justo” (p. 222, escólio da prop. XXVI); i.e., um evento no qual o homem torna-se como objeto de amor (cf. prop. XXV) e esforça-se por imaginar tudo que lhes (a si e ao objeto, o que dá no mesmo) dê alegria, chegando a um delírio, por prejudicar sua potência de agir, visto que não pode excluir a existência de tal delírio com a imaginação. As opiniões para com o outro, que sejam mais vantajosas do que seria justo, são, portanto, a “exaltação” (alegria) e “desprezo” (ódio).

A proposição XVIII (p. 223) resume o que poderíamos chamar de “empatia”: “Quando imaginamos que uma coisa semelhante a nós, e a respeito da qual não experimentamos afecção de nenhuma espécie, experimenta alguma afecção de nenhuma espécie, experimenta alguma afecção, experimentamos, por isso mesmo, uma afecção semelhante”, visto que as imagens são afecções de nosso próprio corpo, envolvendo nossa natureza e a da coisa exterior, a qual se dá como presente, por isto; assim, a semelhança dos dois corpos explicará a generalização da afecção, que se replica do corpo exterior ao nosso, e isto desde que não sintamos, a priori, nada a seu respeito. Disto, segue-se a “benevolência: “um desejo nascido da comiseração” (p. 225), de livrar o outro de sua miséria – o que Spinoza chama de”vontade de fazer o bem”.

A emulação é um desejo originado em nós; mas projetado no outro, devido à empatia.Para lembrar: Imaginar é considerar algo como existente em ato (presente), que passará, assim, a causar as mesmas afecções de sua percepção primeira.

Na demonstração da prop. XXVIII, Spinoza diz que, pelo fato de a capacidade de a alma pensar a capacidade do corpo agir serem páreas, tendemos a fazer a coisa que proporcione alegria existir: “nós a desejamos e para ela tendemos” (pp. 225-6), o que demonstra uma tendência à alegria. E na proposição XXIX (p. 226), pode-se ter uma idéia do que perpassa uma vida em comunidade: o que é imaginado como bom aos homens (comunidade) ser-me-á também bom, etc., e Spinoza define, em seguida, “ambição” (agradar a outrem por abstenção), “civilidade” ou “humanitas” (o mesmo que ambição, mas em geral, com prejuízos a si), “louvor” (alegria ao imaginar a unção de outrem por seu esforço) e “censura” (tristeza devido à aversão pela ação de outrem) (p. 227).

“Glória” e “vergonha” são retrações das afecções de, respectivamente, alegria e tristeza advindas de outrem (do outro) – após a projeção para objetos externos e com sua resposta, que são as afecções destes “de fora”. Ademais, “contentamento consigo mesmo” e “arrependimento” acompanham idéias de uma causa interior (p. 228).

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O escólio da prop. XXXI (p. 229) chama-nos a atenção para o desejo que todos têm de que o outro ame aquilo que ama e odeio aquilo que odeia, i.e., o desejo de que todos vivam de acordo com o seu entendimento, e, assim, todos acabam por odiar-se reciprocamente. E, no escólio da prop. XXXII, p. 230), diz-nos: “em virtude da disposição da sua natureza, os homens estão prontos a ter comiseração para com aqueles que são infelizes, e a invejar aqueles que são felizes”.

Flutuação da alma (embora já tenha sido definido atrás): amor e ódio por um objeto ao mesmo tempo.

O ciúme, segundo Spinoza (p. 232), é a conjunção do amor pela coisa amada com a inveja de outro que se lhe aproxime.

A proposição XXXVI e seu corolário são fabulosos, pois demonstram uma condição de generalização do amor que se tem pelo objeto à toda cena do deleite e, por conseguinte, na repetição o objeto de amor faz-se um elemento da cena, a qual se deseja por completo; logo, há falta e tristeza – eu o “desejo frustrado”, ou, no latim, desiclerium (p. 233-4).

Se a tristeza diminui a potência de agir do homem, quanto maior ela for, mais o homem desejará afastá-la de si; e, ao contrário, quanto mais um homem vê-se afetado pela alegria, maior será seu desejo de conservá-la (p. 234-5, prop. XXXVII).

Novamente, Spinoza vem a destruir a metafísica do bem e do mal: “Por bem, entendo aqui todo gênero de alegria e tudo o que, além disso, a ela conduz e, principalmente, o que satisfaz o desejo, qualquer que seja ele. Por mal entendo todo gênero de tristeza e, principalmente, o que frustra o desejo” (p. 236, Escólio da prop. XXXIX): o ser do bem e do mal é a posteriori em relação a um desejo, além de este ser um julgamento pessoal, em sua íntima face. Kant buscará, ulteriormente, a forma do bem supremo, que se resume no Imperativo Categórico, que é a priori: “Faças a teu semelhante aquilo que queres que ele faça a ti”, que é uma proposição formal, sem conteúdo propriamente dito.

O temor é uma resignação à satisfação, um modo do homem “evitar um mal que julga futuro por um mal menor” (p. 237, idem).

Spinoza tem uma visão pessimista, que pode ser reforçada com este trecho: “parece que os homens são muito mais inclinados à vingança do que a retribuir os benefícios” (p. 239, Escólio da prop. XLI). Ademais, parece também não crer no altruísmo, o que fica evidente a seguir: “aquele que, por amor, fez bem a alguém, fê-lo pelo desejo que tinha de ser, ele próprio, amado, isto é, com uma esperança de glória (Proposição XXXIV)” (p. 240, demonstração da prop. XLII).

Os dois princípios essenciais do ser são:1) Tendência à conservação (do ser);2) Afastamento da tristeza.

“[...] somos dispostos a crer facilmente no que esperamos e dificilmente no que tememos” (p. 247, Escólio L).

A Proposição LI é interessante, visto que demonstra o caráter peculiar do corpo humano e dos objetos que se lhe presentam, afetando-o de diversas maneiras em função

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do tempo e do corpo, que pode variar (Pedro e Paulo, p.ex.). Assim, um objeto pode gerar amor para Pedro, mas ódio em Paulo hoje e o inverso amanhã etc.: “os homens podem diferir tanto pelo julgamento quanto pela afeição” (p. 247), em função da distribuição dos seus corpos no mundo, o que integra o tempo.

A crença do ser humano como livre desprende-o das coisas4 e, por conseguinte, fá-lo ter paixões mais vivas por si mesmo (sentimento de si) e pelos que lhe são semelhantes (p. 248).

Spinoza diz que o homem está naturalmente inclinado à inveja e ao engrandecimento de si mesmo, ainda mais reforçado pela educação dos pais: o homem tende a mentir a potência de agir de seus semelhantes para seu benefício.

“A natureza, pois, de cada paixão deve ser necessariamente explicada por sorte que se exprima a natureza do objeto pelo qual somos afetados” (p. 254, Demonstração LVI).

Podemos chamar o objeto (corpo exterior) de A, B, etc., e as afecções de alegria, tristeza, etc.; assim, cada afecção, além da essência do corpo do sujeito cognoscente, envolve também a natureza do próprio objeto. Lembrar que o conceito de indivíduo se refere à menor parte do cosmo social, portanto indivisível, e que independe do conceito de sujeito: este último se relaciona à gnosiologia e, assim, ao posicionamento de alguém frente a algo que é ou pode ser conhecido (o objeto).

O desejo é um conceito5 que depende necessariamente da constituição (corporal) do sujeito, de sua natureza, mas que é ou pode ser afetado por afecções advindas do exterior e, portanto, varia quanto maior for o número de afecções, de objetos, etc. No escólio (p. 255), Spinoza diz que o desejo relaciona-se a um objeto e disto resultam afecções; são nestes casos que a potência da alma governa os afetos – uma potência que pode “governar e reprimir as paixões” (p. 257). Lembrar que “o desejo é o apetite consciente de si mesmo” (p. 208).

4 Isto é, desfaz seu elo necessário.5 Termo – quando menciono conceito, refiro-me a um termo (lingüístico) e não a uma idéia.

Corpo exteriorCorpo do sujeito

Afecção (afetação)

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Deve-se lembrar que todas “as paixões se reduzem ao desejo, à alegria ou à tristeza, como mostram as definições que delas demos” (p. 250, Prop. LVII); que “o desejo é a própria natureza ou essência de cada um” (idem); e que a “alegria e a tristeza são, assim, paixões pelas quais a potência de cada um ou seu esforço por perseverar no seu ser é acrescido ou diminuído, favorecido ou reprimido” (idem); que esforço por perseverar-se no seu ser é o mesmo que apetite6 e desejo; e que, “portanto, a alegria e a tristeza são o próprio desejo ou o apetite [...]” (idem), que é próprio da natureza de cada um (proposição anterior) .

Na Prop. LVIII (p. 258), em que Spinoza adentra no caráter ativo (de agente) do homem, diz que o desejo também se pode referi-lo enquanto tal. E, na próxima, diz que não há na alma ativa afecção de tristeza, pois é aquela que diminui a potência de agir; portanto, há desejo e alegria, apenas, visto que a alma, então, conhece clara e distintamente.

Doravante, diz-nos que o desejo pode opor-se pela saciação da coisa gozada e, por conseguinte, da modificação do corpo; assim, a coisa desejada pode ser adiada e o desejo ocupar-se de outro objeto (p. 260, Escólio LIX). Ademais, no mesmo, diz que algumas paixões, como tremor, palidez, soluços, etc., afetam tão-só o corpo, mas não a alma.

O “desejo é o apetite com consciência de si mesmo [...] o apetite é a essência mesma do homem enquanto determinado a fazer as coisas que servem para sua conservação [...] tenha ou não consciência do seu apetite, esse se conserva idêntico a si mesmo” (p. 260, 1ª definição das paixões). “Entendo, pois, pela palavra “desejo” todos os esforços, impulsões, apetites e volições dos homens, os quais variam segundo a disposição variável de um mesmo homem, e se opõem entre de tal forma que o homem é impelido em diversos sentidos e não sabe para onde voltar-se” (p. 261, def. I). Ou seja, desejo = {esforços, impulsões, apetites e volições dos homens}; esses elementos podem ser contrários entre si.

Lembrando-se que privação é cessação existencial, “uma privação nada é” (p. 262).

A essência do amor é a alegria causada por uma coisa exterior e sua propriedade, “o contentamento que existe no amante por causa da presença da coisa amada, contentamento pelo qual é fortificada ou pelo menos favorecida a alegria do amante” (p. 264, def. VI).

“uma [...] coisa é não duvidar de uma coisa, e outra é ter a certeza dela” (p. 266, def. XV).

A segurança brota da esperança e o desespero, do temor (idem).Spinoza, na demonstração da def. XXVII (p. 270), dá grande importância à

educação e aos fatores sociais nos sentimentos de alegria e tristeza.

“tudo o que o homem imagina que não pode, imagina-o necessariamente e se dispõe por essa imaginação de tal sorte que não pode realmente fazer o que imagina não poder. Pois, enquanto imagina que não pode isso u aquilo, não é determinado a fazê-lo,

6 Lembrar que apetite em latim escreve-se libido.

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e conseqüentemente é-lhe impossível” (p. 271). Ou seja, a imaginação limita, também, a potência .

Segundo a definição XLIV (p. 277), a “ambição é um desejo pelo qual são alimentadas e fortificadas todas as afecções; por conseqüência, essa afecção dificilmente pode ser dominada. Com efeito, sempre que o homem é possuído por um desejo, é, ao mesmo tempo, presa da ambição”.

“É claro, aliás, pelas definições das paixões explicadas, que todas nascem do desejo, da alegria ou da tristeza, ou antes, não são mais que essas três que costumam chamar por diversos nomes por causa das relações segundo as quais são consideradas e das suas denominações extrínsecas” (p. 279). Ou seja, paixões = {desejo, alegria,

tristeza} e x ∈ paixões → ∀x, x ∈ (desejo ˅ alegria ˅ tristeza).Lembrar que ter uma idéia clara e distinta resulta na atividade da alma e

que uma que seja confusa e obscura, na sua passividade.“estima-se o valor das idéias e a potência atual do pensamento segundo o valor

do objeto” (p. 280).

Parte IVDa servidão humana ou da força das paixões

“submetido às paixões, o homem não é autônomo, mas dependente da fortuna” (p. 283).

Perfeição, para Spinoza, é a conclusão – o acabamento – de uma obra, uma coisa, etc., previamente intencionada ou planejada, que corrobore com essa intenção: é algo que está de acordo com o modelo (pp. 283-4) – um modelo que já está socialmente concebido, mas pode não ser o modelo dos planos do artífice, do artista, etc. Assim, antropologicamente (isto é, a partir do próprio homem), o homem propôs a classificar as coisas da Natureza como perfeitas ou imperfeitas.

“a Natureza não age com um fim; esse Ser eterno e infinito a que chamamos “Deus” ou “Natureza” age com a mesma necessidade que existe [...] a razão ou coisa por que Deus ou a Natureza age ou existe é uma e sempre a mesma. Não existindo nenhum fim, ele não age, pois, também por nenhum” (p. 284). Causa final é desejo, que é humano.

Spinoza diz, na p. 285, que os homens são conscientes de suas ações e desejos, mas ignoram as causas.

Perfeição e imperfeição são modos de pensar, como o são o bem e o mal, que surgem da comparação entre as coisas7.

Tudo o que está na coisa lhe é necessário, segundo a necessidade da Natureza; portanto, nada pode faltar no ente, nele mesmo.

7 Como se disse atrás, antropologicamente, i.e., com base em si como modelo.Perfeito

Imperfeito

Bem

Mal

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Vê-se que a perfeição ou imperfeição é uma questão de grau – quantitativa – e a de bem ou mal, qualitativa, de caráter .

Em seguida, podemos extrair outra fórmula: perfeição = realidade.

Perfeição é a essência do homem.

O erro está no conhecimento e não na afecção e, por conseguinte, nada há nele de positivo, mas apenas privação de algo que exclua a idéia falsa; e mesmo que um conhecimento venha a ser verdadeiro, a imaginação não deixará de imaginar, pela afecção, a coisa como antes, o que nos demonstra a impotência do conhecimento, da conscientização, etc.; isto porque não é pelo verdadeiro que se exclui uma imaginação, mas por causa de outras mais fortes, que excluem a presença do que lhe era anterior (pp. 298-90).

“Somos passivos à medida que somos parte da Natureza, que não se pode conceber por si sem as outras partes” (p. 290, prop. II).

Segundo a Proposição IV, o homem está disposto à ordem da Natureza e, por conseguinte, submetido às paixões (pp. 291-2).

Só uma paixão mais forte pode reprimir outra paixão (p. 293, Prop. VII) – ambas são corporais, mas causadas externamente.

Segundo Spinoza (Prop. VII, p. 294), é bom ou mau aquilo que, respectivamente, aumenta o diminui a potência do agir, a conservação do ser, do homem: são a idéia de alegria ou tristeza advindas de afecções de alegria ou tristeza.

“A paixão é a idéia pela qual a alma afirma a força da existência de seu corpo, maior ou menor que antes (definição geral das paixões), e assim (Proposição I), nada tem de positivo que possa ser suprimido pela presença do verdadeiro; conseqüentemente, o conhecimento verdadeiro, bom ou mão, não pode, à medida que é verdadeiro, reprimir afecção alguma” (Prop. XIV, p. 299). Por outro lado, um conhecimento (bom ou mau) pode vir a se tornar paixão para reprimir outra.

As paixões podem sobrepujar em potência qualquer desejo que brote do conhecimento do bom e do mau; assim, Spinoza diz que, apesar de conhecermos o bom e aprová-lo, geralmente seguimos o pior, pela força das paixões.

“o princípio da virtude é o próprio esforço [do homem] para conservar o [seu] ser próprio, e [...] a felicidade consiste em poder o homem conservar o seu ser” (p. 303).

“Há, pois, fora de nós muitas coisas que nos são úteis e que, por isso mesmo, devemos desejar” (p. 303).

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“Nada, pois, existe mais útil ao homem do que o homem; os homens, eu digo, não podem desejar coisa mais valiosa para a conservação do seu ser do que convirem todos em tudo, de maneira que as almas e os corpos de todos componham, de certa maneira, uma só alma e um só corpo, e que todos se esforcem em conjunto por conservar seu ser; e que todos em conjunto procurem a utilidade comum a todos” (idem, Escólio da Prop. XVIII) .

“A virtude é a própria potência humana que se define pela essência do homem (Definição VIII), isto é, (Proposição VII, Parte III), a qual se define apenas pelo seu esforço pelo qual o homem se esforça por perseverar no seu ser” (p. 305, demonstração da prop. XX). Daqui podemos entender a virtude como o uso útil da realidade e por útil, aquilo que conserve o seu ser.

E veja o que nos diz Spinoza a respeito de algo contrário à conservação do ser do homem: “que o homem se esforce pela necessidade de sua natureza por não existir, ou por mudar de forma, é [...] impossível” (p. 305, escólio da precedente).

“O esforço por se conservar é o primeiro e único fundamento da virtude” (p. 306, corolário da prop. XXII), principalmente por ser a essência duma coisa.

Conhecimento, para Spinoza, é ter idéias claras e, por conseguinte, ser ativo (vide Prop. XXIII, p. 307); é em virtude da razão que a ele se tende (vide prop. XXVI, p. 308).

Lembrar: Razão é a alma à medida que conhece clara e distintamente (Escólio II, Prop. XL, Parte II).

Uma coisa má é repelida pela potência do homem e, portanto, não lhe deve ser comum, mas contrária; com o que é bom ocorre o contrário. Isto implica em a essência humana ser boa. Mas ela é boa, como o é a nossa natureza, por favorecer a perseveração do ser e aumentar a sua potência de agir: é assim que ela é chamada boa, como visto no apêndice da Parte I. Logo, a essência é um nada até que seja afetada, etc.

“as coisas que concordam entre si em uma negação apenas, isto é, naquilo que elas não têm, não concordam na realidade em nada” (Escólio da Prop. XXXII, p. 313).

Na próxima prop., Spinoza admite o homem (um homem) como vário e inconstante (p. 313). Isto me lembra a filosofia heraclitiana.

“Enquanto os homens são dominados pelas paixões, podem ser diferentes por natureza [...] e contrários uns aos outros [...] os homens, só enquanto sob a direção da Razão, fazem necessariamente o que é necessariamente bom para a natureza humana, e conseqüentemente para todo homem [...] o que concorda com a natureza de todo homem” (p. 315, Prop. XXXV). Além disso, a maior utilidade do homem ao homem se cabe àquele guiado pela Razão, que se conserva e age pelo que lhe é útil, e, por conseguinte, a outrem.“[...] refiro à religião todos os deveres e ações de que somos causa enquanto temos a idéia de Deus ou enquanto conhecemos Deus. Chamo “moralidade” ao desejo de fazer o bem que tira sua origem do fato de que vivemos dirigidos pela Razão” (pp. 319-20).“A diferença entre a virtude verdadeira e a impotência percebe-se facilmente então: a verdadeira virtude não é outra coisa que viver só sob a direção da Razão, e, por conseguinte, a impotência consiste só em o homem se deixar conduzir passivamente

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pelas coisas externas a em ser determinado por elas a fazer o que pede a constituição do mundo exterior, e não o que pede a sua própria natureza” (p. 320).

Para Spinoza, o homem tem maiores direitos sobre os animais, visto que lhe são diferentes em essência e estes últimos são, também, menores em potência (Escólio I da Prop. XXXVII, p. 320).

A força das paixões supera a potência ou a virtude humana, fazendo os ohmens agirem uns contra os outros, e não segundo a razão, o que lhes seria útil (p. 321, Escólio II da mesma).

A sociedade é instituída por meio de leis e regras comuns de vida pautadas na ameaça, visto que apenas uma paixão mais forte do que outra pode reprimi-la (idem). E diz que “no estado natural , não há nada que seja bom ou mau, pois, nesse estado natural, cada um consulta apenas a sua própria utilidade e, segundo o seu engenho, decreta o que é bom e o que é mau, não tendo outra regra senão o seu interesse e, enfim, não é obrigado por nenhuma lei obedecer a ninguém senão a si mesmo” (idem). Logo, bem e mal são convenções, que são decretadas pela cidade (o modo como Spinoza chama a sociedade mantida por leis e pelo poder de manter a si mesma) para que todos obedeçam; e, assim, pecado e obediência organizam-se de acordo com os prescritos da cidade: aquilo que é mau e aquilo que é bom, definindo, inclusive, o direito de o cidadão gozá-lo, ou não. Ademais, no estado natural não há propriedade e, por conseguinte, nada há de justo ou injusto; portanto, justo e injusto, pecado e mérito, são noções extrínsecas – não são atributos que expliquem a natureza da alma.

Cidade: sociedade humana mantida por leis e pelo poder de manter a si mesma.Uma paixão como o amor, que é boa, pode vir a exacerbar-se (o prazer) e, por

conseguinte, ser má, visto que impede o corpo de ser afetado de diversas outras maneiras; e, assim, brotará também um maior desejo (pp. 326-7, props. XLIII-IV). Talvez possamos chamar a isto, como em Freud, de perversão (quase sinônimo de “prazer sem medidas ou barreiras”).

E, também, a obstinação de objeto ou psicose, no seguinte trecho: “Vemos, com efeito, homens possuídos por um único objeto de tal modo que, a despeito de não ser presente esse último, supõem eles tê-lo diante de si, e, quando isso acontece a um home que não está dormindo, dizemos que ele delira ou que é louco” (pp. 327-8). E que “na verdade a avareza, a ambição, a lubricidade, etc., são espécies de delírio, conquanto não sejam enumeradas entre as doenças” (p. 328).

O homem movido pelo ditame da Razão, i.e., ativo, esforça-se por não ter comiseração por outrem (pp. 322-3, Prop. L).

Segundo a Prop. LII (p. 334-5), a Razão é a verdadeira potência do homem, sua virtude; assim, o contentamento íntimo brota da Razão.

Veja o seguinte trecho: “O povo é terrível quando sem temor; não há, pois, razão para que se admire de que os profetas tenham recomendado tanto a humildade, o arrependimento e o respeito, uma vez que proviam à utilidade comum, e não à de alguns. E, com efeito, os que estão sujeitos a essas paixões podem, muito mais facilmente do que os outros, ser levados a viver, enfim, sob a direção da

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Razão, isto é, ser livres e gozar a vida dos bem-aventurados” (Escólio da Prop. LIV, p. 336). Lembremo-nos que o homem não é autônomo e que são raros os homens que vivem sob o ditame da Razão. Assim, podemos dizer que o homem não nasce livre, mas que, ao contrário, nasce governado pelas paixões; por outro lado, ele tem a potência para se tornar livre (a Razão é a verdadeira potência do homem).

“quem age sob a direção da Razão deve saber necessariamente que age sob a direção da Razão” (Proposição XLIII, Parte III, p. 337, Prop. LVI).

Aqueles que ignoram o si-mesmo (Razão) “são os mais sujeitos às paixões” (Corolário da anterior, p. 338). Assim, poderíamos dizer que o sentimento de grandeza e o de inferioridade são, na verdade, afastamentos do si-mesmo, da potência real da pessoa, devido à falsificação ou distorção da realidade do outro e, por conseguinte, de si.

“Agir segundo a Razão não é nada mais [...] do que praticar essas ações que decorrem da necessidade de nossa natureza considerada por si só” (Dem. Da Prop. L, pp. 341-2).

“a todas as ações pelas quais somos determinados por uma paixão passiva podemos, sem ela, ser conduzidos só pela Razão, independentemente dela” (idem, p. 342).

“todo desejo que nasce de uma afecção, que é uma paixão, seria de nenhuma utilidade se os homens pudessem ser conduzidos pela Razão” (p. 343, idem).

“O desejo que nasce da Razão não pode ter excesso” (Proposição LXI, p. 344). Este desejo é a essência mesma do homem, que o determina a agir.

Uma idéia concebida pela alma por meio do ditame da Razão não distingue tempo; é afetada da mesma maneira por todos (um imperativo categórico?).

A alegria que não é em excesso não é uma afecção e caracteriza o desejo da Razão (Corolário Prop. LXIII, p. 347). Visto que a Razão e a virtude visam o útil (ou são ele enquanto visada), o desejo que da Razão brota tende para o bem, afastando-se colateralmente do mal, e nasce do conhecimento do bem, e não do mal.

Spinoza concebe o homem que vive sob o ditame da Razão como “livre”, obedecendo apenas a si mesmo (autônomo), e o que vive aos moldes das paixões é concebido como “seno”. Lembrar da Prop. I desta parte (IV): que o homem sob o ditame das paixões não é autônomo. A Razão opõe-se, pois, ao mando das paixões.

Vida, conservação do ser, utilidade e potência de ação parecem ser sinônimos, aqui.

O homem não nasce livre (p. 350, Proposição LXVIII). Assim, também não nasce sobre o mando da Razão.

A expressão “desejos libidinosos” aparece no Escólio da Proposição LXXI (p. 354, referindo-se a desejos sexuais.

Observe que a Proposição LXXIII não afirma a autonomia do homem livre: “O homem que é dirigido pela Razão é mais livre na cidade, onde vive segundo o

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decreto comum, do que na solidão onde só obedece a si próprio” (p. 355).“o ódio deve ser vencido pelo amor, e quem quer que seja conduzido pela Razão

deseja para os outros o que deseja para si mesmo” (Escólio da última, p. 350).No capítulo I do Apêndice da Parte IV (p. 357), Spinoza diz que o

conhecimento (acepção que ele dá, i.e., positiva) da Natureza só é possível com e pela alteridade.

No II, distingue ação reta (desejo que parte da natureza humana) e paixões (desejos que partem de causas exteriores), sendo que as primeiras referem-se à alma enquanto composta de idéias claras e as segundas, de mutiladas.

No III, diz que “a beatitude do homem não é outra coisa senão o próprio contentamento interior, que nasce do conhecimento intuitivo de Deus” (p. 358).

No V, que a vida racional (da alma) define-se pela inteligência.Lembrar sempre que a conotação de Spinoza de bem e mal diverge do senso

comum, a não ser quando ele mencione o contrário, trocando as acepções. O cap. VIII demonstra a funcionalidade de suas acepções.

A educação é ressaltada no cap. IX.No XIII, Spinoza ataca a repressão do ânimo (p. 360-1).“Para alcançar o amor entre os homens é necessário, antes de mais nada, aquilo

que se refere à religião e à moralidade” (p. 361, cap. XV).“[...] o cuidado pelos pobres incumbe, pois, à sociedade inteira e diz respeito

somente ao interesse comum” (p. 363, cap. XVII).No XXVI (p. 364), Spinoza diz que se deve aconselhar um homem mencionando

o que há nele de bom, ressaltando o amor e a alegria, para levá-lo à perfeição, a viver sob o ditame da Razão.

E esta fecha o apêndice da Parte IV: “a potência humana é extremamente limitada e infinitamente superada pela das coisas exteriores; não temos, pois, o poder absoluto de acomodar a nosso uso as coisas exteriores. Suportaremos, todavia, com equanimidade, os acontecimentos contrários aos reclamos da consideração do nosso interesse se formos conscientes de ter cumprido a nossa função, de que a nossa potência não ia até ao ponto de evitá-los, e se tivermos presente a idéia de que somos parte da Natureza inteira, a cuja ordem obedecemos. Se conhecemos isso clara e distintamente, essa parte de nós que se define como inteligência, isto é, a melhor parte de nós, contentar-se-á plenamente a se esforçar por perseverar nesse contentamento” (p. 367, cap. XXXII).

Parte V

Da potência do entendimento ou da liberdade humana

Embora o homem não tenha poder absoluto sobre suas paixões, a Razão ou potência da alma pode, em certa medida, reprimi-las ou governá-las, como Spinoza demonstrará. Descartes diz que “nenhuma alma, por mais fraca que seja, é incapaz, com uma boa direção, de adquirir um poder absoluto sobre as suas paixões” (p. 371). E Spinoza o critica por sua obscuridade, apesar dele mesmo (Descartes) ter dito conceber apenas coisas claras e distintas e criticado proposições obscuras, principalmente as dos

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escolásticos. Ademais, o critica por não ter conseguido explicitar nenhuma causa singular da união entre mente e corpo.

A passividade e a atividade do homem são a mesma coisa (vide Escólio IV); assim, o que difere uma da outra não é senão o tipo de idéia: clara e distinta ou obtusa e obscura, etc., e, portanto, referem-se os desejos às primeiras como virtudes e Às segundas como paixões (p. 375). Portanto, o único remédio às paixões é o conhecimento (p. 376). Ademais, a alma deve conhecer clara e distintamente as coisas como necessárias e, para maior potência sua, livres (props. V-VI).

Ao se ordenar as coisas no pensamento, devem-se tê-las em seu bem, para se agir sempre de acordo com uma paixão de alegria (p. 381, Escólio X). “Portanto, quem cuida de governar as suas paixões e seus apetites unicamente pelo amor da liberdade, esforçar-se-á tanto quanto pode, por conhecer as virtudes e suas causas e por encher o ânimo daquela felicidade que nasce do conhecimento verdadeiro das afecções; mas de modo algum se esforçará por contemplar os vícios dos homens, nem por imprecar contra eles, nem por gozar da falsa aparência de liberdade” (p. 382, idem).

Lembrar: as coisas conhecidas clara e distintamente são ou propriedades comuns das coisas (universais) ou o que delas se deduz.

Deve-se conhecer a si mesmo e suas paixões clara e distintamente e, por conseguinte, amar a Deus: em máximo grau.

Spinoza enumera o que pode a alma sobre as afecções:1- Conhecimento das afecções.2- Ela separa do pensamento a causa externa, que é imaginada confusamente.3- No “tempo em que as afecções superam aquelas que se referem às coisas de que

temos uma idéia confusa ou mutilada” (p. 387).4- Na “multidão de causas pelas quais são favorecidas as afecções que se referem

às propriedades comuns das coisas ou a Deus” (idem).5- A alma pode ordenar e concatenar as afecções em si.

A “força de qualquer afecção se define pela potência de uma causa exterior comparada à nossa” (p. 388), isto é, F = PE-PS, onde F é a força de qualquer afecção, PE é a potência de uma causa exterior e PS é a potência do ser afetado.

E olhe este trecho, que interessante: “Deve-se notar [...] que os desgostos e os infortúnios nascem principalmente de um amor excessivo por uma coisa sujeita a muitas variações e que não podemos possuir inteiramente. Ninguém, com efeito, é atormentado ou preocupado a não ser por causa da coisa amada [...] elas coisas de que alguém não possa ter a posse completa” (p. 388). E o único amor, imaculado e brando, é o amor para Deus.

No escólio XXIII, Spinoza diz que, no homem, há algo de imortal: a alma, que, contudo, não pode lembrar duma existência anterior ao corpo (se é que há), visto que, no corpo, não há vestígio de tal existência e que a eternidade não tem, de modo algum, relação com o tempo. Mas, Spinoza diz também que sabemos, por experiência, que

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somos eternos. “Portanto, não se pode dizer que a alma dure, e a sua existência não se pode definir por um tempo determinado senão à medida que esta envolve a existência atual do corpo, e só então tem a potência de determinar temporalmente a existência das coisas e de concebê-las na sua duração” (p. 391). Dirá, na proposição XXXI (p. 395), que “a alma ela própria é eterna”.

A alma concebe a essência do corpo com uma espécie de eternidade.

As coisas são percebidas com uma espécie de eternidade quando são concebidas em Deus e como parte de sua natureza divina: a duração está no espaço-tempo da percepção (Escólio XXIX).

Se Deus e Natureza são uma e só coisa e sendo dos três gêneros de conhecimento (obtuso, claro e o em Deus) o último provindo do segundo, então parece haver algo de metafísico nessa eternidade e terceiro gênero de conhecimento: algo como o conhecimento puro, sem tempo nem espaço.

O terceiro gênero de conhecimento (o intuitivo) parece ser puro e abstrato, portanto pertence apenas ao intelecto; é dele, do terceiro gênero, que nasce o que Spinoza chamou de o “amor intelectual por Deus”.

Para Spinoza, a parte eterna da alma é o entendimento, por ser ativo (vide corolário XL) e a imaginação perece.

Refrear aas paixões brota da felicidade (prop. XLII, p. 406).Spinoza termina favorecendo a moralidade, a religião e o conhecimento de Deus,

que atuam sobre as paixões; é este o perfil do sábio. Para ele, aqueles que crêem a moralidade ser um fardo por contrariar as paixões são ignorantes. Portanto, Spinoza não é, absolutamente, defensor do anarquismo.