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Sérgio Campos Matos & Maria Isabel João (orgs.)

Sérgio Campos Matos & Maria Isabel João (orgs.) · de Königsberg, em 1833, no campo da História, do tipo de aula que ficou conhecido como seminário (onde se lançam sementes)

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HISTORIOGRAFIA E RES PUBLICA

Lisboa

Centro de História da Universidade de LisboaCentro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais da Universidade Aberta

2017

Sérgio Campos Matos & Maria Isabel João (orgs.)

NOS DOIS ÚLTIMOS SÉCULOS

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Título | TitleHistoriografia e Res PublicaNos dois últimos séculos

Direcção da Colecção | Series EditorsSérgio Campos Matos & Covadonga Valdaliso

Organização | OrganisationSérgio Campos Matos & Maria Isabel João

Editor | EditorSérgio Campos Matos

Assistentes de Edição | Editorial AssistantsGonçalo Matos Ramos, Ricardo de Brito

Comissão Editorial | Editorial BoardLuís Filipe Barreto, Valdei Araújo

Capa | FrontcoverDetalhe da representação da Divina Comédia de Dante Alighieri. Almada Negreiros, 1961. Pórtico da entrada da Faculdade de Letras. Arte parietal, gravuras incisas coloridas sobre parede revestida a cantaria de calcário, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Fotografia de Armando Norte.

Frontispício | FrontispieceDetalhe de Cabeça Mecânica (O Espírito da Nossa Era). Raoul Hausmann, c. 1920. Montagem. Paris, Musée National d’Art Moderne, Centre Pompidou.

Contra-capa | BackcoverMusa (Clio?) lendo um uolumen. Pintor de Klügmann, c. 435-425 BCE (Beócia?). Lekythos, cerâmica ática de figuras vermelhas, Museu do Louvre, CA 220.

Historiografia – História Contemporânea – Memória | 930(469) MAT,S

Editora | PublisherCentro de História da Universidade de Lisboa & Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais da Universidade Aberta | 2017

Concepção Gráfica | Graphic DesignBruno Fernandes

Impressão Gráfica | Printing ShopSersilito-Empresa Gráfica Lda.

ISBN 978-989-8068-22-4Tiragem 300 exemplaresP.V.P. 15.00€

Centro de História da Universidade de Lisboa | Centre for History of the University of LisbonFaculdade de Letras da Universidade de Lisboa | School of Arts and Humanities of the University of LisbonCidade Universitária - Alameda da Universidade,1600-214 LISBOA / PORTUGALTel.: (+351) 21 792 00 00 (Extension: 11610) | Fax: (+351) 21 796 00 63URL: http://www.centrodehistoria-flul.com

This work is funded by national funds through FCT – Foundation for Science and Technology, under project UID/HIS/04311/2013 and project PEST-OE/SADG/UI0289/2014.

This work is licensed under the Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International License. To view a copy of this license, visit http://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/ or send a letter to Creative Commons, PO Box 1866, Mountain View, CA 94042, USA. Copyright for authors and editors remain as reserved according to the afore-mentioned license and complying with the FCT directive “Política sobre Acesso Aberto a Publicações Cientificas resultantes de Projectos de I&D Financiados pela FCT (05/05/2014)”.

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Í N D I C E

SOBRE A ESCRITA DA HISTÓRIA NOS DOIS ÚLTIMOS SÉCULOSSérgio Campos Matos e Maria Isabel João

I – HISTÓRIA, TEMPO, CIDADANIA

O HISTORIADOR NA CIDADE: HISTÓRIA E POLÍTICAFernando Catroga

HISTOIRE GLOBALE, HISTOIRE NATIONALE? COMMENT RÉCONCILIER RECHERCHE ET PÉDAGOGIE Christophe Charle

AS FORMAS DO PRESENTE.ENSAIO SOBRE O TEMPO E A ESCRITA DA HISTÓRIATemístocles Cezar

CONTINUIDADES E RUPTURAS HISTORIOGRÁFICAS: O CASO PORTUGUÊS NUM CONTEXTO PENINSULAR (C.1834 - C.1940) Sérgio Campos Matos

II – DIRECÇÕES DE ESTUDO

MODERNIZAÇÃO E BLOQUEIOS: PROBLEMAS DO DESENVOLVIMENTO ECONÓMICONA MEMÓRIA HISTÓRICA José Luís Cardoso

A HISTÓRIA SOCIAL EM PORTUGAL (1779-1974)ESBOÇO DE UM ITINERÁRIO DE PESQUISA Nuno Gonçalo Monteiro

ESPIRITUALIDADE E RELIGIÕES:UNIVERSOS DE MOTIVAÇÃO E DE CRENÇA António Matos Ferreira

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AS MIGRAÇÕES NA HISTORIOGRAFIA PORTUGUESA (1779-1974)Jorge Fernandes Alves

O IMPÉRIO E AS SUAS METAMORFOSES NA HISTORIOGRAFIA Diogo Ramada Curto

A HISTORIOGRAFIA NO ÂMBITO DOS ESTUDOS REGIONAIS Maria Isabel João

III – PERIODISMO E HISTÓRIA

HISTÓRIA, OPINIÃO PÚBLICA E PERIODISMO José Augusto dos Santos Alves

DIVULGAR O CONHECIMENTO HISTÓRICOAS PUBLICAÇÕES COLECTIVAS DA ACL SOB O LIBERALISMO (1820-1851) Daniel Estudante Protásio

O CONTRIBUTO D’O PANORAMA NA DIVULGAÇÃO HISTÓRICA EM PORTUGAL NO SÉCULO XIX (1837-68) Ricardo de Brito

DIFERENTES CONCEPÇÕES DE HISTÓRIA NA VÉRTICE DURANTE O ESTADO NOVO (1942-1974) José de Sousa

OS ARQUIVOS DO CENTRO CULTURAL PORTUGUÊS (1969-1993): UMA “COLECTÂNEA ERUDITA” AO SERVIÇO DA HISTÓRIA Andreia da Silva Almeida

A HISTÓRIA DE PORTUGAL NA SEARA NOVA:A BUSCA NO TEMPO PASSADO PARA A CONSTRUÇÃODE UM PRETENDIDO FUTUROJoaquim Romero Magalhães

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S O B R E A E S C R I T A DA H I S T Ó R I A N O S D O I S Ú L T I M O S S É C U L O S

Desde os finais do século XX, em Portugal e por esse mundo fora têm-se intensificado os trabalhos sobre historiografia e teoria da história. O que leva os historiadores a investigarem e estudarem o passado da sua actividade profissional, quer no plano teórico quer no da aplicação concreta, em domínios específicos? Será a necessidade de conhecer os seus antecedentes e de reflectir sobre o ofício? A consciência de que a escrita da história tem a sua historicidade, é marcada de um modo ou doutro pelo tempo presente do historiador? A noção de que as meta-histórias transportam consigo estádios de um saber acumulado? Sem dúvida, por tudo isso. Ora a historiografia é também um dos modos de os humanos lidarem com a ausência, um dos modos de a representar, mas sobretudo um lugar plural de fixação da experiência humana. Tal como em qualquer conjuntura histórica passada há sempre uma multiplicidade de caminhos possíveis, também sempre houve uma diversidade de escritas da história – o que bem exprime a irredutibilidade de diferentes modos de fixação da memória social e de expectativas de futuro. A memória histórica vai-se fixando em camadas sucessivas, sempre sujeita a

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revisão e incorporando novidades. Alarga-se o conhecimento, mudam os pontos de vista, constroem-se novos conceitos operatórios, rasgam-se novos horizontes de compreensão do passado. Revisitar periodicamente historiografias e teorias da história é sempre um indispensável desafio para aqueles que trabalham na investigação científica e na comunicação dos seus resultados: convocam-se outros olhares a partir de diferentes pontos de observação no tempo e no espaço. Evita-se assim frequentemente a presunção (ou ignorância?) dos que julgam ter descoberto a pólvora ou a imprensa – quando estas eram há muito conhecidas noutras paragens.

Mas a ideia de que toda a história é contemporânea (Croce) não é unânime. Pelo contrário, quando na segunda metade do século XIX se afirmava um conceito de história ciência e a Idade Média e os tempos modernos mobilizavam maioritariamente os interesses dos historiadores, era muito comum a resistência ao contemporâneo como objecto de estudo. Dominava então a noção de uma história ciência pura, comparável às ciências da natureza, distanciada dos problemas do presente (lembre-se Fustel de Coulanges ou a Revue Historique que, todavia, não foram indiferentes à causa do ressurgimento nacional). E um perfil de historiador passivo, próximo dos registos documentais, um historiador frequentemente ligado às práticas do arquivista e do bibliotecário que preferia apagar-se e deixar falar o passado através das suas vozes. Insistia-se na ideia de que história contemporânea era política ou jornalismo: o contemporanista não teria a distanciação necessária para estudar o passado próximo. Esse passado recente e esse presente eram entretanto centro da atenção do romance realista e do trabalho também ele então bem recente dos fotógrafos. Não surpreende pois que, em 1900, só cerca de 2% dos historiadores europeus se dedicasse à história dita contemporânea. E que só desde meados do século XX o tempo recente começasse a merecer uma maior atenção. A partir dos anos 70, a aceleração motivada pelo processo de mundialização e pelas novas tecnologias da informática e da comunicação, viria acentuar esta tendência.

Nos séculos XIX e XX a historiografia atravessou profundas mudanças que só podem entender-se nas suas conexões com transformações da modernidade ocidental, que apontavam no sentido da autonomização, individualização e secularização do Estado, das sociedades e da escola pública. Da época umbral a que se referiu R. Koselleck – as últimas décadas do século XVIII e as primeiras

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do século seguinte – até ao tempo em que vivemos, também ele um tempo de aceleração, a experiência histórica passada esteve presente em diferentes momentos e foi assumindo funções diferenciadas. Em que medida a atenção conferida ao tempo recente esteve relacionada com a perturbação suscitada por estes momentos de maior velocidade? É que nem sempre a aceleração da história se traduziu num alargamento pelo interesse dos historiadores pelo passado imediato: se nos finais de Setecentos e na primeira metade do século XIX ela é acompanhada por uma desvalorização da história do tempo presente, nos finais do século XX, quando parece dominar o presentismo (essa “omnipresença do presente” que todavia não exclui uma crescente atenção em relação ao passado), assistiu-se a uma verdadeira explosão do contemporâneo.

*

Desde os finais do século XVIII, verificara-se a erosão de um cânone de história centrada na figura do príncipe e foi emergindo um outro em que a personagem central é a nação, por vezes identificada com povo. Os historiadores oitocentistas invocaram a nação como referente identitário, mas não só, também como princípio estruturante da política, fonte de soberania legitimadora do sistema moderno de representação parlamentar. Paralelamente foi-se afirmando um conceito de história-crítica por oposição à história fabulosa tão vulgarizada nos séculos XVI e XVII e às filosofias da história herdadas de Setecentos; uma história da civilização por oposição a uma história centrada nas “raças” reais e uma história universal ainda centrada na Europa e nos seus império-mundo, num tempo que era já de mundialização. No século XIX, a História foi progressivamente introduzida em todos os graus de ensino, do então chamado ensino primário ao ensino superior, passando pelos liceus (criados no caso português em 1836). O que mostra bem o reconhecimento do Estado na relevância da disciplina para a formação cívica dos cidadãos – sobretudo das elites, já que a esmagadora maioria das populações do sul da Europa era iletrada até finais da centúria. O patrocínio estatal a uma série de corpus documentais relativos à história medieval, à história do regime liberal

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e à história diplomática ao longo de séculos assinala como as elites no poder valorizavam a dimensão histórica, também evidentemente por razões instrumentais: a preparação de políticos e diplomatas para exercerem as suas funções na posse de um conhecimento útil dos antecedentes das suas práticas.

Uma retórica da imparcialidade e depois da cientificidade da história foi usada para legitimar a autonomia do trabalho historiográfico e da figura de um novo profissional – o historiador -, já distanciado do perfil do cronista. A construção deste conceito de história-ciência não foi um processo isento de tensão com a intencionalidade de submeter a historiografia à lógica do estado-nação e da sua necessidade de coesão. E a profissionalização dos historiadores esteve longe de ser um processo rápido e linear. Neste domínio – tal como no que respeita à modernização da universidade, instituição que foi central nesse processo - a Alemanha precedeu as outras nações do continente. A introdução na Universidade de Königsberg, em 1833, no campo da História, do tipo de aula que ficou conhecido como seminário (onde se lançam sementes) acabou por ser, mais cedo ou mais tarde, adoptado por toda a Europa. Portugal só o introduziu tardiamente, em meados do século XX. O que não surpreende se lembrarmos que também noutros países europeus – incluindo a Grã-Bretanha - os historiadores profissionais tardaram em diferenciar-se dos seus pares amadores.

Dominavam, quer no plano de uma história nacional quer da história regional e local, os intelectuais que cultivavam o interesse erudito pelo passado ou a simples vontade de difundirem a memória dos heróis e das glórias nacionais. No caso português eram sobretudo homens das classes médias, jornalistas, funcionários públicos, militares e eclesiásticos para quem o valor da independência nacional, o culto dos sucessos nacionais e a resistência ao ideal em voga das grandes nações e estados era um empenho no seu futuro profissional e numa expectativa de futuro da pátria (mas não só).

Num tempo marcado pelo autodidactismo e o eruditismo exteriores à Universidade, mas já influenciado pelo trabalho das academias, foram-se multiplicando instituições que contribuíram decisivamente para a formação de novos públicos e de novos historiadores: academias, periódicos generalistas (caso d’ O Panorama, da Seara Nova ou de Vértice), arquivos nacionais e regionais e museus.

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Hoje vivemos num tempo de descontinuidade com o passado, de descontinuidade na escrita de uma história, que rompe com modos tradicionais de narrar o passado – a história problema, a história conceptual, a história global. Torna-se evidente que é o Autor que escolhe e constrói o seu objecto de trabalho com uma ferramenta específica – um quadro conceptual. Por outro lado, retomam-se esses modos tradicionais, mais eficazes aliás no plano da comunicação pública: vejam-se tantas das biografias que entretanto proliferaram no mercado, sem esquecer que algumas delas, de grande consistência, inovaram nos modos de representar o singular na sua relação com o geral. No século XIX e em boa parte do século XX os historiadores foram também mentores da nação e depois deixaram de o ser. Era o caso dos historiadores liberais e republicanos, mas também daqueles que fizeram a apologia das ditaduras. De que lugar falam os historiadores, que lugar passaram a ocupar hoje em dia quando intervêm como comentadores políticos e por vezes assinam como profissionais da história? Respostas para outra ocasião.

Desde os finais do século XX, sob o efeito do processo da globalização e quando os horizontes de futuro de uma União Europeia ainda pareciam promissores para muitos, os parâmetros da história nacional foram-se revelando cada vez mais insuficientes para compreender os problemas específicos de cada nação. Grandes desafios transnacionais como o empobrecimento, as epidemias, o aquecimento global, a poluição, o narcotráfico ou as vagas de refugiados revelaram a exiguidade da escala nacional para dar resposta a tais problemas. Também no campo historiográfico a reafirmação de uma história transnacional (não tão recente como por vezes se supõe), da história comparativa e dos estudos transculturais alargavam o horizonte de compreensão das experiências históricas nacionais. Não deixa de ser significativo que a chamada história conectada e uma por vezes equívoca “história do presente” entrassem na ordem do dia precisamente no tempo em que cada vez mais o espaço se restringia e, sob a pressão do imediato, o presente se diluía no seu excesso: um presente que simultaneamente é passado e é já futuro. Desde o linguistic turn multiplicaram-se teorias e ângulos de visão, tudo se relativizou no espaço público, incluindo o próprio estatuto da história enquanto ciência social. E se este processo foi produtivo no plano do debate teórico, também não deixou de minar a relevância social e cultural da história (até na sua relação com as outras

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ciências do homem) e corroer uma ética da veracidade. O que não é contraditório com o movimento de imenso interesse que o passado desperta, a par da obsessão memorial que atravessa o nosso tempo. É que, com o investimento nas memórias, coexiste nas sociedades hipermodernas a produção de esquecimento em massa . E a erosão da memória sucede a par de um recuo das expectativas dos cidadãos em projectos políticos supranacionais e da reafirmação de nacionalismos étnicos que há algumas décadas atrás pareciam adormecidos.

*

O presente livro estrutura-se em três partes: I. História, cidadania, tempo; II. Direcções de estudo e III. Periodismo e história. Em todos eles lidamos com diversas escalas de incidência do trabalho dos historiadores - o local, o nacional, o transnacional – diferentes temporalidades (embora mais centradas nos séculos XIX e XX), diferentes ângulos de compreensão dos problemas.

A abrir a secção I, uma questão central como ponto de partida: em que termos se pode estabelecer a relação entre história e a cidade política ou, por outras palavras, como coexistiu a intenção dos historiadores de busca da veracidade com a sua intervenção na cidade? Fernando Catroga reflecte sobre a função da história nas sociedades, da antiguidade grega à emergência da modernidade, passando pelas filosofias da história cristãs e a afirmação do método histórico-filológico – designadamente no que respeita à relação presente-passado-futuro e ao tópico historia magistra vitae. Permite-nos assim alargar a compreensão das raízes das políticas de memória e das historiografias nacionais enquanto instrumentos de consenso social nos dois últimos séculos. É que desde a antiguidade, a historiografia nasceu como ars memoriae, um dos meios de combater o esquecimento. Se na polis da tradição clássica a investigação do passado tinha também um papel pragmático, ético-cívico, na modernidade ocidental, herdeira deste paradigma, viriam a erguer-se políticas da memória e historiografias empenhadas em socializar novos contratos políticos.

Das revoluções liberais oitocentistas à actualidade, a história centrada na nação sofreu profundas metamorfoses e deslocações. Compreende-se no entanto

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que no caso francês estudado por Christophe Charle, apesar de a história comparada e de a história global se terem afirmado nas últimas décadas, ela continue a ocupar a esmagadora maior parte dos historiadores (em contraste com o que se tem passado no Reino Unido ou nos EUA). Na verdade, nada é linear na afirmação de perspectivas transnacionais e comparadas. Mas não deixa de surpreender o facto de serem raras as teses de doutoramento que em França se aventuram nesses sentidos. Resistência galocêntrica e constrangimentos de um sistema que impõe prazos relativamente curtos de execução dos trabalhos explicam essa situação. Por outro lado, a história global suscita problemas no campo da comunicação pública: como tornar acessível uma história “sem fronteira, sem território, sem cronologia, sem heróis”, que se afasta destes parâmetros da história tradicional? Como difundir entre um público médio esta história global e a história comparativa, uma história que exige da parte do leitor conhecimentos mais diversificados e por vezes improváveis? Trata-se de um desafio exigente e nada fácil. Tanto mais que nos situamos num tempo em que o multiculturalismo e as tentativas de resolução dos problemas humanos de um modo pactuado e à escala global têm sofrido fortes reacções, como se se tratasse de ameaças a “identidades” nacionais feridas.

Estamos no contexto de uma problemática que também se prende com as recentes experiências do tempo, com a relação entre passado e presente. Como bem observa Temístocles Cezar, na nossa época, o presente é omnipresente e como que impõe uma resposta aos historiadores, a partir do exterior à sua disciplina. O seu texto é uma reflexão sobre o presentismo, convocando exemplos literários e a relação dos historiadores e da sua escrita com o tempo. Se é certo que há momentos em que a interpretação do passado é sujeita a revisões mais profundas, também é verdade que na historiografia se vai operando um processo cumulativo em que as continuidades parecem dominar. Mas, como lembra o historiador brasileiro, o presente é o tempo de todos os historiadores “de qualquer época ou lugar” - compreende-se assim que, em momentos de intempestiva aceleração (como recentemente no Brasil), a escrita da história sofra profundas mutações. Estas parecem por vezes abalar em termos radicais a sua legitimidade enquanto disciplina autónoma: caso do linguistic turn, nos anos 60 - mas a palavra turn tem-se multiplicado para designar muitas outras viragens historiográficas (cultural turn,

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memorial turn, global turn, etc.) num tempo ”desorientado” em que a própria actividade dos historiadores se torna omnívora e fragmentada.

O modo como os historiadores se relacionam com o passado e com o presente pode ser observado no caso português em dois momentos que se sucederam a tempos de aceleração da experiência histórica, convocados por Sérgio Campos Matos. Esses dois momentos lidos numa perspectiva das suas conexões transnacionais - o de Herculano que coincide com a revolução liberal e a estruturação de um novo estado (decénio de 1840) e o momento do Integralismo Lusitano, de crise e distanciação em relação ao modelo liberal (1920/30) – revela duas leituras bem diversas da modernidade em que a uma interpretação liberal do passado das nações peninsulares se contrapôs, tardiamente mas de um modo sistemático, já no século XX, um cânone tradicionalista. Em conjunturas históricas bem diferenciadas, estruturaram-se dois modos de conviver com a perda, isto é com a decadência. Mas em ambas as narrativas há marcas de inspirações transnacionais e a presença de uma inspiração cristã.

Na secção II – Direcções de estudo -, torna-se bem evidente a historicidade do trabalho historiográfico em diversos campos. Como as primeiras aproximações à história económica remontam em Portugal aos finais do século XIX para já nos primeiros decénios da centúria seguinte surgirem os primeiros tentâmes de sistematização por parte de autores hoje quase esquecidos e uma obra tão significativa como a de João Lúcio de Azevedo. José Luís Cardoso destaca depois os contributos mais inovadores de Vitorino Magalhães Godinho e Jorge Borges de Macedo, a partir dos anos 50. No pós-guerra e nos 30 anos de boom de desenvolvimento, o ponto de vista da história económica assumia então nos países ocidentais grande relevância. Mais lenta foi em Portugal a definição conceptual de uma história social quando dominaram até tão tarde – como bem mostra Nuno Gonçalo Monteiro - interpretações doutrinárias marcadas por teorias da decadência e a definição de uma “história popular de Portugal”, que se podem rastrear no tempo longo, sedimentando-se depois nos séculos XIX e XX nas narrativas liberal, republicana e marxista. Destaque-se a este respeito a ideia de que teria sido o povo (categoria não raro abstracta e oscilante, é bom lembrar) a comandar os grandes momentos de transformação histórica, especialmente na resistência aos

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inimigos externos, enquanto os grupos dominantes se teriam bandeado com o estrangeiro. Noutro ângulo de leitura, percebe-se como a uma história das religiões que valorizava as instituições (caso da Igreja católica e os seus dignitários) tendeu mais recentemente a dar lugar a uma história religiosa que envolve o humano na sua complexidade social, mental, simbólica e nas suas dinâmicas próprias. Outro terreno? Não necessariamente: como esclarece António Matos Ferreira, espiritualidades e religiões, por si só, podem não ser suficientes para captar a “historicidade de muitas sociedades e culturas”. Compreende-se pois que a história religiosa seja indissociável da história social. E que o ponto de vista institucional seja insuficiente para conhecer em profundidade os problemas que dizem respeito às religiões num sentido amplo. Não menos recente é o interesse dos historiadores portugueses pelo estudo da temática das migrações, como mostra Jorge Fernandes Alves: com raras excepções como Herculano ou Oliveira Martins, ela remonta aos anos 70 (até aí mobilizava maior atenção de outras ciências humanas), quando os comportamentos demográficos despertavam o interesse dos historiadores em Portugal e no estrangeiro. Percorrendo os trabalhos que remontam à Academia das Ciências, nos finais do século XVIII é patente a mobilização de diferentes modos de designar o mesmo fenómeno: emigrantes, colonos, emigrar, expatriar-se, emigração, que evidentemente não têm todos os mesmos sentidos (note-se, a propósito, que em vários dos textos que se incluem neste livro é bem evidente a atenção conferida a uma conceptualização que permite por vezes captar totalidades unitárias: civilização, nação, raça, progresso, decadência). Outra temática – a do império e da colonização portuguesa -, foi ao invés da anterior, muito esquecida durante os decénios que se seguiram à revolução de 1974-75, ressurgindo desde finais do século passado, ultrapassada que foi uma certa má consciência do passado neste campo. Centrando-se nos anos 40, a partir de uma marcante reflexão crítica de Vitorino Magalhães Godinho – Comemorações e história, 1947 -, Diogo Ramada Curto, propõe-nos uma incursão sobre as fontes – periódicos, e colectâneas documentais publicadas nessa época -, considerando também algumas das instituições cujo estudo será indispensável para caracterizar a historiografia que se dedicou ao império. A encerrar esta secção, adoptando um conceito lato de historiografia e considerando diversas escalas, Maria Isabel João dá-nos um balanço crítico de um campo de estudos que,

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desde meados do século XIX (mas sem esquecer os seus antecedentes), foi sendo intensamente cultivado por amadores e eruditos locais e, mais recentemente, por historiadores profissionais: os tão variados estudos regionais e locais.

Tendo em conta o lugar central que tantas vezes tiveram os periódicos na afirmação dos historiadores, nos debates públicos, na divulgação científica e, não menos relevante, na construção da cidadania, a secção III - Periodismo e história - inclui uma reflexão geral sobre o tema assente no conhecimento da imprensa da primeira metade de Oitocentos, a cargo de José dos Santos Alves. Numa época em que se enriquece extraordinariamente o “mercado da comunicação e da informação”, abrindo-se a esfera pública a categorias sociais que ultrapassam meios mais restritos burgueses e aristocráticos, afirmava-se a autonomia de uma ética e de uma estética críticas em relação aos poderes. Nesse periodismo a história ocupa lugar proeminente ao serviço de múltiplos usos estratégicos, enquanto instrumento pedagógico, convocando acontecimentos passados, justificando situações políticas no presente, anunciando futuros.

Seguem-se diversos estudos monográficos sobre periódicos generalistas em que a história teve função cognitiva e formativa de grande relevância, a começar por uma análise das séries de publicações colectivas da Academia das Ciências de Lisboa sob as primeiras décadas do regime o liberal (1820-1851), da autoria de Daniel Estudante Protásio, que deixa clara a função decisiva que teve esta instituição, num tempo em que a disciplina de História não existia ainda de um modo autónomo na Universidade de Coimbra. Entre os mais marcantes periódicos portugueses que contribuíram para a renovação da paisagem editorial no Portugal de Oitocentos, O Panorama, a revista fundada por Herculano e ligada à Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, inspirada num modelo publicado em Inglaterra, viria a marcar vários outros periódicos portugueses - nota Ricardo Brito. Um século mais tarde, já em plena Guerra Mundial (1942), Vértice, como mostra José de Sousa, daria a conhecer novas propostas metodológicas e conceptuais – ao invés do que poderia supor-se nem sempre convergentes - de historiadores que eram também oposicionistas do Estado Novo. Já os Arquivos do Centro Cultural Português (1969-1993), uma publicação ligada à Fundação Calouste Gulbenkian e fundada por Joaquim Veríssimo Serrão, deram a conhecer estudos de historiadores

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portugueses e lusitanistas estrangeiros, contribuindo, desde os finais do Estado Novo para a internacionalização dos estudos sobre Portugal, com mostra Andreia da Silva Almeida. Last but not least, Joaquim Romero Magalhães revela como a história ocupou um lugar destacado nos primeiros tempos da Seara Nova (1921-1930) sobretudo em textos de António Sérgio e de Jaime Cortesão, o primeiro num registo ensaístico, o segundo dando já a conhecer os seus primeiros trabalhos de investigação no campo da história dos descobrimentos e sobre a “formação democrática de Portugal”.

*

A construção do Dicionário de Historiadores Portugueses (1779-1974) [http://dichp.bnportugal.pt/index.htm], publicado na página digital da BNP, projecto editorial que já conta mais de 150 entradas on line, levou-nos a tomar iniciativa conexa de, periodicamente, e no âmbito dos trabalhos do grupo de investigação Usos do Passado do Centro de História da Universidade de Lisboa, com a colaboração do CEMRI, organizar seminários internacionais em que se foram dando a conhecer estudos desenvolvidos nesta área: História, Memória e Historiografia (Janeiro de 2011), Faces de Mudança - Historiografia e Historiadores em Portugal no século XX (Abril de 2012), ambos na Universidade de Lisboa e, em colaboração com o Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade da Universidade Federal de Ouro Preto), Discurso histórico e política: perspectivas luso-brasileiras (Julho de 2015). E mais recentemente (Primavera de 2017), Passados próximos. Memória e História.

Na Biblioteca Nacional de Portugal, teve lugar o encontro Historiografia e Res publica - a escrita da história nos dois últimos séculos (Abril de 2014), em que se inscreveram os temas dos textos agora reunidos. Visou-se então aprofundar o conhecimento acerca das historiografias e dos historiadores dos séculos XIX e XX na sua relação com o espaço público e a cidadania, problematizar a sua função social e cultural, tendo em atenção os tempos e lugares em que produziram as suas obras; construir balanços críticos sectoriais sobre a historiografia e a cultura histórica portuguesas, dos problemas económicos à dimensão religiosa passando

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pela história social, a história do Império, do periodismo e opinião pública, etc. Tudo isto tendo em consideração as relações transnacionais, os modos de recepção de debates históricos além-fronteiras, os lugares e redes de historiadores e a forma como nas suas escritas, da revolução liberal à actualidade, se estruturaram olhares sobre Portugal na sua relação com outros povos. Também nos propusemos revisitar tópicos-chave que serviram de suporte à historiografia, tais como: nação, Império, povo, raça, revolução, decadência, atraso ou subdesenvolvimento - bem como os preconceitos que condicionaram o discurso sobre a transformação social. O estudo dos modos como no passado se fez história é da maior relevância para ponderar os caminhos possíveis da disciplina, no presente no futuro.

Neste tempo marcado pela pressão do imediato, pelo excesso de informação e desinformação, excesso de crise e de sentimento de crise, excesso de ruído, excesso de publicações de todo o tipo, um produtivismo que sobrevaloriza a quantidade em detrimento da qualidade, profusão de índices de curto prazo de desempenho económico e financeiro, com que somos confrontados no dia-a-dia, contaminação do vocabulário das ciências humanas pela língua de pau da política e dos negócios (empreendedorismo, excelência, alavancagem, competividade [sic], e tantos outros exemplos poderíamos dar), a dimensão histórica introduz um efeito de necessária e salutar distanciação e relativização. É certo que a história continuará (como sempre foi) a ser instrumentalizada para fins políticos e de propaganda, de um sinal ou outro. Mas o estudo da historiografia mostra-nos que sempre houve quem cultivasse uma história dotada de espessura crítica. Em última análise, a triagem entre os diversos registos historiográficos depende da qualificação dos seus leitores.

Agradecemos à Biblioteca Nacional de Portugal na pessoa da sua directora, Doutora Maria Inês Cordeiro, o apoio que sempre deu às nossas iniciativas, e aos comentadores de algumas das conferências apresentadas no referido seminário - os professores Jaime Reis, Fátima Sá e Melo Ferreira, José Damião Rodrigues, Tiago Pires Marques e Jorge Macaísta Malheiros – a valiosa colaboração crítica. E ao José Guedes de Sousa e ao Ricardo de Brito a valiosa ajuda.

Sérgio Campos MatosMaria Isabel João

Maio de 2016 – Fevereiro de 2017

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I - HISTÓRIA, TEMPO, CIDADANIA

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O H I S TO R I A D O R N A C I DA D E :H I S T Ó R I A E P O L Í T I CA*

Fernando Catroga

Universidade de Coimbra

O presente ensaio pretende sintetizar as relações da historiografia com a cidade, à luz das mudanças ocorridas na experiência do tempo, no campo das epistemes dominantes e no modo de entender a função social e cognitiva de narrativas sobre o passado que, a partir de Heródoto, passaram a ser designadas por “investigações” ou “histórias”.

* Este texto nasceu de uma intervenção não escrita, feita com intenções pedagógicas. Daí que aquela somente tenha pretendido sintetizar algumas ideias já desenvolvidas em trabalhos anteriores, particularmente em Os

Passos do Homem como Restolho do Tempo e no Ensaio Respublicano. Mas a insistência dos organizadores do curso convenceu-nos da utilidade da sua fixação por escrito.

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I

O homem como animal político e o papel da palavra

Antes de mais, não será descabido afirmar que foi (e é) narrando-se a si mesmas, através do uso do logos, isto é, da palavra e da disputa (H. Arendt), que as comunidades de origem e de destino “domesticaram” a sua etnicidade e se elevaram a sociedades politicamente organizadas. E basta ter presentes as caraterísticas estruturais do mito, bem como a conceção de tempo que este pressupunha, para se perceber que, também em termos sociais, só a memória do que teriam sido desde a sua archê lhes conferia identidade e sentido (recorde-se o papel dos mitos fundadores).

Este tipo de narrativa mítica foi, durante milénios, indissociável da cultura oral. Porém, se o avanço da escrita não o substituiu nem extinguiu de imediato, no longo percurso que vai do mito ao logos, o pensamento grego tomou consciência de que a escrita, inventada para fixar negócios políticos, económicos e religiosos, ao afirmar-se como um suporte mais duradouro de memória, também passou a ser fonte de amnésia e obstáculo ao exercício dialógico da procura da Verdade. Sublinhou-o Sócrates, no Teeteto, ao prevenir que, ao contrário do que se esperava, a escrita – medicamento (pharmakón) da memória – iria provocar o efeito perverso de tornar “os homens mais esquecidos, pois que, sabendo escrever, deixarão de exercitar a memória, confiando apenas nas escrituras, e só se lembrarão de um assunto por força de motivos exteriores, por meio de sinais, e não de assuntos em si mesmos”.

Sublinhe-se que, com Heródoto, a historiografia nasceu para combater a corruptibilidade do tempo. Assim, não será exagerado defender que, à sua maneira, ela surgiu como uma prótese da memória, uma ars memoriae, ou melhor, como uma technê, filha da era da escrita e cujo uso se foi propagando devido ao alargamento da racionalização do conhecimento geopolítico do “mundo”. Esta tendência foi secundarizando a crença no mito e fez aumentar a complexidade da vida política e comercial da polis, interna e externa, o que impulsionou a demarcação de identidades

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e de diferenças face ao “bárbaro”. Compreende-se, assim, que, no século V a.C., a par de um compromisso com a veracidade, Heródoto de Halicarnasso – que terá sido antecedido por Helânico de Lesbos e que será seguido por Tucídides, Xenofonte, Diodoro Sículo e outros – tenha revelado, nas suas Investigações (Histórias), uma nova sensibilidade geográfica e étnica, e que tenha elaborado a sua narrativa sob o imperativo da equidade e do dever de memória, ou, por palavras suas, “para que os feitos dos homens se não desvaneçam com o tempo, nem fiquem sem renome as grandes empresas, realizadas quer pelos Helenos quer pelos Bárbaros” (Heródoto, Histórias, Liv. 1.º, 1. 1).

Temos por certo que o parto do género historiográfico – que alguns colocam não só nas crónicas asiáticas, mas também nos poemas homéricos – não pode ser desligado da herança mítica (como se verifica nos logógrafos e em Hecateu de Mileto) e do processo de racionalização em que ele se inseria. Porém, no seio da hegemonia alcançada pelo florescimento de uma interpretação do mundo e da vida de teor metafísico, substancialista e holístico, o aparecimento das “investigações” denota uma maior abertura ao registo e à interpretação dos acontecimentos singulares, finitos e ocasionais, atravessados por temporalidades descontínuas e irreversíveis. Por outro lado, também não deixa de ser relevante o facto de este surto historiográfico ter acontecido numa época em que os efeitos amnésicos da utilização da escrita já estavam patentes no declínio da rememoração oral e da crença nos mitos. Com efeito, a oralidade foi perdendo o exclusivo da transmissão das metanarrativas dos processos cosmogónicos, modo de contar que assentava numa espécie de forma primitiva de historicismo (John Pocock) que sacraliza as origens. E a escrita estaria a desvitalizar o papel sociabilitário da memória e do rito, em boa parte por causa do impacto das mediações mais racionalizadas exigidas pelo escrever e pelo ler, atitudes mentais bem distintas das requeridas pela fala e pela audição.

Enquanto “arte da memória”, e tal como o seu signo fundador – a sepultura –, a historiografia também quis ser um protesto contra a condição mortal da finitude no seio da eternidade cíclica ou substancialista do cosmos. De onde estar implícita em Heródoto esta mítica certeza: como não possuem o poder de Mnemósine – a deusa da Memória –, os homens morrem, porque não são capazes de juntar o começo e o fim. E, sem o veículo da escrita, seria cada vez mais difícil vencer a

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inevitável degradação dos traços interiores deixados pelos acontecimentos, os quais, entregues exclusivamente ao testemunho de quem os viveu, ou a um “arquivo” facilmente degradável, teriam no esquecimento a sua nadificação epistemológica, isto é, a morte definitiva. Assim, poder-se-á afirmar que, numa ótica que já não pretendia confundir-se com o papel social das narrativas míticas, as “investigações” de Heródoto convocavam a necessidade da prova (começando pelo testemunho vivido do próprio historiador) e propunham-se respeitar a equidade no tratamento dos actantes que enredavam a sua escrita, como se quisessem dizer aos vindouros que, contra os abusos da retórica sofística, só a veracidade poderia garantir o uso público e eudemónico da história. De certo modo, sabia-se por experiência vivida que a amnésia desembocava na anomia, ou melhor, no caos, pelo que a preservação da memória, por meios que garantissem a sua transmissão objetiva, seria constituinte da reprodução da polis como (micro)cosmos, logo, como ordem.

Com isso, as “investigações” abriram brechas na representação do império determinista da physis. Ao privilegiarem o mundo fenoménico, tido como mera aparência da essência última das coisas, a ênfase que puseram na singularidade dos acontecimentos inquietou uma episteme que punha a metafísica como raiz de todos os ramos do saber. É certo que, neste horizonte, os feitos dos homens concretos, que pontualizavam o percurso linear, mas finito de cada vida (biós) e dos acontecimentos singulares, não podiam fugir, quer à nora do tempo que ritmava o movimento da natureza (physis), quer às exigências holísticas ditadas pela reprodução do género, no seio do qual cada indivíduo, encarado, não como animal político, mas como um biós, necessariamente estava integrado. Daí que somente a ação do homem enquanto praxis, ao acrescentar, pelo trabalho, pelas obras, mas sobretudo pela palavra (dita ou escrita), humanidade à natureza, pudesse ultrapassar a condição animal e mecânica da existência e vencer a precariedade inerente a tudo o que é particular (H. Arendt).

Acredita-se que, dentro da matriz grega que estamos a sintetizar, esta dimensão práxica foi fazendo do animal-homem um ser humano, de onde nasceu a possibilidade de as comunidades transitarem do seu estado etnológico (estado de natureza) para o de sociedades politicamente organizadas. E, se o desenvolvimento comunicativo e, principalmente, argumentativo, decorrente do uso da deliberação e da lei (costumeira ou escrita), foi a força motriz desse caminho, compreende-se que a

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consolidação da cidade tenha desencadeado, nos setores mais libertos do trabalho e, portanto, mais disponíveis para o ócio, o despertar do espanto que levou ao assomo da problematização filosófica, da política, da arte e de saberes mais “técnicos”, como a medicina (Hipócrates), ou a retórica nas suas várias modalidades. E foi este mundo cultural que deu luz às chamadas “histórias”, género logo comparado com a poesia e cuja avaliação epistémica não escapou ao crivo metafísico de Aristóteles.

A voz da singularidade no império da metafísica

Com efeito, na Poética (1451b, 1-11), o Estagirita salientou que o narrado nas obras dos logógrafos (visava Heródoto e, indiretamente, Tucídides) era epistemologicamente mais pobre do que a poesia, que qualificou como “mais filosófica” e “mais virtuosa que a história”, porque o poeta sabia iluminar as situações concretas com ideias gerais, enquanto o historiador se limitava a descrever singularidades impossíveis de generalização. Ora, este juízo tem de ser compreendido a partir da episteme que dominava a visão filosófica grega no século V a.C. E esta ensinava que, na taxinomia dos saberes, a metafísica, com a sua busca radical do Ser, era a primeira de todas as ciências. Só o geral, o fixo e o necessário (lá onde reina a anankê) seriam universalizáveis; ao nível fenoménico, onde tudo aparece como fruto do acaso, e “para quem trate de investigar o que é o contingente, resultará evidente que não haja uma ciência do contingente” (Aristóteles, Metafísica, XI, 8, 1064). Por isso, as narrativas que davam corpo textual às “investigações” eram logográficas e, por conseguinte, teriam um valor epistémico menor do que a poesia (Aristóteles, Poética,1451 a, 36; 1451 b, 10).

É sabido que a menorização aristotélica da obra de Heródoto tem sido retomada por aqueles que, nos nossos dias, tentam reduzir a historiografia, exclusivamente, a uma literatura, ou mesmo a uma ficção. No entanto, para se entender a expressão philosoph oteron (“mais filosófico”) como sinónimo de “mais científico”, tem de se correlacionar o citado passo da Poética com o que Aristóteles escreveu no Livro I da Metafísica (981a, 15-16) acerca da hierarquia dos saberes e dos elos entre teoria, technê e empiria. Por outro lado, a aceção de “ciência” aqui em

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causa pouco tem a ver com o seu significado moderno, e o Estagirita não negou a utilidade relativa, embora filosoficamente subordinada, dos conhecimentos sobre o mundo empírico, fossem eles doxográficos ou, como seria o caso da nova escrita da história, logográficos. Convém frisar ainda que, na Poética, ele polemizou, sobretudo, com o ataque que Platão, na República (Liv. X), tinha feito à poesia, definindo-a como uma arte, logo, como uma technê. E, dado que a filosofia remetia para a faculdade racional do homem para trazer coisas à existência, a ciência aristotélica, isto é, a metafísica, tinha a ver com os universais (kathólon) e com as coisas sujeitas ao reino da necessidade (anankê). De onde, em termos de dominância, o pensamento teorético grego ter estado mais obcecado com o imutável, o geral e o essencial do que com o mutável, o fenoménico, o singular e o casual.

Demais, e ao contrário do que uma leitura literal de Aristóteles sugere, a singularidade que caracterizaria o mundo histórico não impediu os grandes historiadores gregos de tecerem enredos que recorreram ao testemunho, à prova (tekmerion) e à correlação de acontecimentos entre si, embora daqui não fosse inferida qualquer totalização geral sobre o devir, como, mais tarde, virá a acontecer nas teologias providencialistas judaico-cristãs e nas filosofias teleológicas e imanentistas da Modernidade. Porém, isto não significa que, desde as grandes narrativas míticas, não houvesse uma consciência clara acerca das diferenças que existem entre o “antes” e o “depois”, ordem cronológica (espécie de historicismo ingénuo) sem a qual o enredo seria um mero somatório ou um mero “espelho” (Tucídides) da manifestação caótica dos acontecimentos, como se estes fossem exclusivos filhos da contingência (P. Ricoeur).

Pensando bem, para o autor da Poética, a debilidade da historiografia provinha da própria ontologia dos événements. E esta revelava, “não uma ação única, mas um tempo único, com todos os eventos que sucederam nesses períodos a uma e a várias personagens, cada um dos quais está para os outros numa relação meramente casual. Com efeito, a batalha naval de Salamina e a derrota dos Cartagineses na Sicília desenrolaram-se contemporaneamente, sem que estas ações tendessem para o mesmo resultado; e, por outro lado, às vezes acontece que em tempos sucessivos um facto venha após o outro, sem que de ambos resulte comum efeito. No entanto, a maioria dos poetas adota este

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procedimento” (Aristóteles, Poética, 1459). Dir-se-ia que, como a res gestae tem uma manifestação contingencial e é atravessada por temporalidades diferentes, embora cronologicamente contemporâneas (K. Koselleck), seria impossível construir nexos de causalidade passíveis de generalização. A historiografia parece limitar-se ao événementiel. Mas como é que se explica a capacidade que a argumentação histórica revelou para construir enredos, para recorrer à comparação e à analogia e para ser fonte da construção de exemplaridades?

Sabe-se que, para urdirem a sua trama, alguns dos novos historiadores explicitaram (comummente nos proémios dos seus escritos) as suas escolhas metodológicas respeitantes às fontes (escritas e sobretudo orais) e não esconderam o cariz tópico e seletivo do seu objeto. Daí que, nas suas respetivas escalas espaciotemporais, tivessem elaborado não só cronologias – Timeu (352-256 a.C.), com as suas célebres tábuas olímpicas, foi um bom exemplo da melhoria desta prática –, mas também micrototalizações explicativas. E, cientes de que estavam a afastar-se do mito, nos seus melhores exemplos, eles tiveram igualmente consciência da função social e cívica da sua escrita: esta devia fixar feitos comprovadamente verdadeiros para que não fossem rapidamente varridos da memória.

Também não pode ser diminuído o contributo que essa historiografia queria dar, em dialética ou independentemente das tendências holísticas e necessitaristas da cosmovisão dominante, à valorização do particular, do singular, da diferença e, até, do aleatório, facetas que a metafísica desvalorizava. E daqui resulta esta outra constatação: as objeções de Aristóteles ajudam a inteleção dos contornos do debate desencadeado pela novidade heroditiana – pelo menos no que tange aos nexos da história com a poesia e com a metafísica – e a refletir sobre a influência de outros saberes nas investigações históricas, mormente os ligados à technê, ou melhor, à medicina e à retórica.

Com efeito, e como tem sido justamente lembrado (Carlo Ginsburg e Joana Duarte Bernardes), existe uma longa tradição na cultura ocidental que coloca a historiografia como “serva” da retórica (ou da oratória). Todavia, nem sempre se frisa que Aristóteles falou em três géneros de retórica, definidos a partir da relação que cada um mantém com o tempo e com os efeitos performativos que visava. São eles: a retórica deliberativa, a retórica epidítica e a retórica judicial. A que delibera

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tende a enfatizar a dimensão futurante do tempo, “pois aconselha sobre eventos futuros” e age por exortação; na epidítica, “o tempo principal é o presente, visto que todos louvam ou censuram eventos atuais”, tentando convencer o auditório por dissuasão; e a terceira, como a sua tarefa é julgar, a escala temporal privilegiada é o que aconteceu, isto é, o passado, “pois é sempre sobre atos acontecidos que um acusa e outro defende”, o que impõe a necessidade do apelo ao testemunho (e à prova). Devido a tais caraterísticas, a retórica epidítica utiliza mais a amplificação, a deliberativa, os exempla – “é com base no passado que adivinhamos e julgamos o futuro” –, e a judicial, os entimemas, “pois o que passou, por ser obscuro, requer sobretudo causas e demonstrações” (Retórica).

Aqui radica a especificidade desta última. Tendo por finalidade desvendar a Justiça, ela necessita de “falar de factos anteriores”, pelo que, ao contrário dos outros géneros, é obrigada a recorrer a provas “técnicas”, a saber: às leis, a testemunhas, a contratos, a confissões sob tortura, a juramentos. Sem a reconstituição objetiva do que aconteceu, não haverá aplicação da Justiça, condição essencial para que a comunidade política possa evitar os efeitos caóticos da hybris, logo, do arbítrio, da anomia e, em termos políticos, da tirania, da oligarquia e da demagogia.

Logicamente, na prática, o retor podia misturar as características destes três tipos de retórica. Todavia, insinuar o futuro por exortação é atitude bem diferente da prática de dissuasão, e ambas pouco têm a ver com a busca de causas e demonstrações. Por isso, concordamos com aqueles que têm visto na retórica judiciária (em conjugação com o impacto do corpus hipocraticum) a tecnhê que mais influenciou a nova historiografia grega.

Historiador do “tempo presente” e etnogeógrafo, Heródoto, nas suas investigações (historei, apódexis), confessou que as fontes mais credíveis eram as que provinham das suas próprias observações diretas (ópsis). Nesta ótica, mostrou-se mais cauteloso perante as fontes escritas e as informações alheias, que deviam ser encaradas como meras notícias que o historiador-investigador não era obrigado a seguir. E esta atitude metódica era aconselhada pela própria semântica da palavra “investigação”, pois, como tem sido corretamente sublinhado por muitos estudiosos do tema, hístor significava, originariamente, testemunha ocular e, posteriormente, aquele que examina testemunhas e obtém a verdade através da indagação. Todavia, Heródoto não

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só procurou informações (historei), mas também conjeturou e deduziu (semánei) (François Hartog, 1996 e 2005). Isto é, a narrativa conjugava o que ele próprio viu (autopsia) e investigou com juízos mais gerais e engrandecedores (Heródoto, Histórias, 2.99). Não negava por inteiro valor informativo àquilo que tinha ouvido, mas o seu uso, assim como o das fontes escritas, era supletivo em relação aos dados recolhidos pela vista e requeria uma maior vigilância crítica. No privilégio conferido à visão – por esta estar mais próxima do cérebro? –, residia o poder que o hístor tinha para dirimir controvérsias, capacidade que o convidava a posicionar-se no papel de árbitro, ou melhor, e como acontecia no paradigma judiciário, de juiz (H. Arendt, 1968; G. Marramao, 1989; E. Benveniste, 1969).

Não por acaso, as raízes indo-europeias destes vocábulos não eram estranhas à família dos termos que nomeavam a atividade de juiz-testemunho e da justiça. Isto confirma o relevo dado às evidências da visão e ajuda a perceber por que é que, para os gregos, este tipo de “histórias” descrevia, dominantemente, o passado recente. Especialistas em procedimentos judiciais, os historiadores davam particular atenção à acribia (à justeza) da observação direta, ou, segundo o modelo hipocrático usado na arte médica (faceta que Joana Duarte Bernardes tem estudado), à semiótica do corpo e à depuração (dissecação) do testemunho (Tucídides), fonte histórica por excelência.

Um bom sinal do lugar e do Zeitzgeschichte de onde o historiador “falava” encontra-se na presença, no interior dos textos (normalmente nos proémios), de expressões que elevam o “eu vi” (ou o “eu digo”) a garante de veracidade. Diga-se que o empolamento da vista e das fontes orais teve traduções extremas, chegando mesmo a desencadear críticas, como aquelas que, no período helenístico, foram feitas ao historiador Timeu, acusado de usar fontes escritas em excesso. Também por isso esta historiografia é, de certo modo, uma “história do tempo presente”, embora, quando a retrospetiva faz incursões nos períodos mais antigos – e, portanto, não vistos –, ela acabe por dar guarida (como em Hecateu de Mileto e em Heródoto) a relatos míticos e tradicionais (François Châtelet, 1974), ou caia em conjeturas, debilidade que outros, começando por Tucídides, se esforçaram por superar.

De facto, Tucídides quis ir mais longe no cruzamento do que “ouviu” ou

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“viu” com aquilo que tinha sido visto ou ouvido por outros. Para isso, procurou fiabilizar o valor dos testemunhos em confronto com o que ele próprio tinha vivenciado, opção coerente com esta sua confissão: “quanto aos feitos que foram praticados na guerra, esforcei-me por escrever não sobre informações de alguém que porventura lá estivesse, nem como pessoalmente me parecia provável, mas recolhendo dentro do possível todos os factos nos quais estive presente ou que por outros me foram contados. Foi difícil descobrir os factos, uma vez que os que tinham estado presentes nos vários acontecimentos não davam a mesma versão, tendo eles próprios lá estado, mas de acordo com a sua simpatia, por um lado, ou pelo outro, ou segundo o que era a sua recordação”.

Seja como for, deve perguntar-se se esta novel historiografia rompeu, por inteiro, com a mitologia oral, discurso que apontava para a suscitação, no ouvinte, do espanto e do sublime. Ao contrário, com a escrita, o trabalho de convencimento do leitor, ou de quem ouvia ler, dava mais relevância a juízos argumentativos, por mais excecionais e exemplares que fossem os factos narrados. E não há dúvida de que, a partir dos séculos V e IV a.C., diminuiu a credibilidade do mito e aumentou a confiança nas capacidades da razão inquiridora, como, ao nível do filosofar, se verifica na sofística e, principalmente, no diálogo socrático. Portanto, será útil frisar que tanto Heródoto como Tucídides, valorando a observação (autopsia) e a comparação entre as versões que circulavam sobre os mesmos acontecimentos, seguiram, regra geral, o seu próprio testemunho (caso tivessem presenciado o que narraram), ou as versões que lhes pareciam mais prováveis.

Neste pano de fundo “presentista”, a diferença entre ambos estava, sobremaneira, na finalidade dos seus discursos: o do primeiro, ao abrir-se a digressões míticas, indicia uma escrita ainda estruturada para ser lida em voz alta, maneira de, através da mediação do texto, o autor, como os velhos aedos, chegar a um público mais largo e dominantemente analfabeto. Destarte, se as suas Histórias, certificadas por observações e investigações, queriam fixar o que o narrador ouviu e sobretudo viu, o certo é que elas também contêm derivas de cunho maravilhoso, principalmente quando remontam a períodos mais antigos do que as Guerras Médicas, o seu grande tema. Com isso, Heródoto fez coexistir o “antigo” com o “moderno”, numa combinatória em que os propósitos cognitivos coexistem com

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o intento de despertar prazer através de efeitos miméticos (Jorge Lozano).De qualquer modo, os seus objetivos queriam ir mais longe do que os

dos mitógrafos e de logógrafos como Helânico de Lesbos e Ferecides de Leros. Não obstante isso, Heródoto utilizou estes últimos como fontes e não desprezou os dizeres dos oráculos e as fontes literárias (desde a poesia antiga, a literatura contemporânea e as inscrições, até aos registos burocráticos). Mas tudo isto não basta para se concluir que a historiografia irrompeu, no seio das narrativas sobre o passado, como uma rutura radical, tanto mais que só em Tucídides a busca da acribia (a conformidade com os factos) quis excluir, com ênfase, os “dizeres” que não fossem passíveis de comprovação, ou, pelo menos, não tivessem grande probabilidade de serem verdadeiros. Consequentemente, e ao contrário de Heródoto, o ateniense não só não incorporou o maravilhoso na sua narração, como a causalidade que pôs em ação prescindia de qualquer força transcendente, característica que se reflete no tom mais seco e “secularizado” da sua escrita (lição que não teve seguimento, pois um quase-contemporâneo como Xenofonte voltou a reconhecer a influência dos deuses).

No entanto, quer Heródoto quer Tucídides acabaram por atribuir a mesma função social à escrita da história: o primeiro quis garantir a construção e a transmissibilidade de uma “memória justa”, porque objetiva; o segundo, apesar de lhe “faltar o fabuloso”, estava convicto de que a sua obra seria útil a todos aqueles que estivessem interessados em “ver com clareza o que aconteceu”, pois, se o fizessem, logo perceberiam que o autor investigou, não “para ganhar prémios ao ser ouvido de momento, mas como um legado para sempre”.

Na perspetiva metafísica dominante, os acontecimentos selecionados pelos historiadores quebravam “o movimento circular da vida diária, no mesmo sentido em que o biós retilinear dos mortais interrompe o movimento circular da vida biológica. O tema da história são essas interrupções – o extraordinário, em outras palavras”. Mas, se foi assim, poder-se-á aventar, sem mais, que os grandes feitos e obras de que são capazes os mortais, e que constituem o objeto da narrativa histórica, não podiam ser vistos como partes de um processo mais abrangente, porque “a ênfase recai sempre em situações únicas e rasgos isolados” (H. Arendt)? Se, com esta afirmação, se deseja frisar que os gregos, ao contrário da religião

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judaico-cristã e da Modernidade secularizada, não pressupunham a existência de qualquer logos que, imanente aos eventos humanos, se explicitaria num finalismo temporal indefinidamente progressivo e realizável no futuro histórico, a tese aceita-se. Contudo, as narrativas historiográficas não ousaram fazer correlações mais gerais?

Frise-se que, em alguns casos, a propensão da nova história para a comparação (e para a analogia) revelou a existência de mudanças qualitativas no devir, como, por exemplo, acontece em Tucídides quando, em contraste com a sua contemporaneidade, caracterizou o estado dos gregos antigos como “barbárie”. Contudo, daí não foram inferidas quaisquer sistematizações de cunho universalista, tanto mais que elas ocorreram num contexto em que era forte a crença no ritmo cíclico do tempo e o temor de que a sempre possível queda da ação humana na hybris acelerasse o regresso ao caos primitivo. É certo que nem todos compartilharam desta visão ou, pelo menos, nem todos a plasmaram nas suas narrativas. E deve salientar-se que, então, o ofício historiográfico estava voltado para o registo do acontecido no mundo fenomenológico, onde se objetivava a irreversibilidade linear do biós finito, erosão que só a praxis, geradora da fama, poderia vencer. De onde a tendência para se narrar situações-tipo e exemplares, prática seletiva que a ideia cíclica de tempo justificava.

No entanto, esta parece estar ausente do texto de Heródoto, conquanto não seja estranha à sucessão das tipologias políticas, ordenamento já sugerido por Homero e que, nos séculos V e IV a.C., se encontra em Platão e Aristóteles e, mais tarde, em Políbio. De facto, herdeiro da cultura histórica grega, este último narrou a grandeza do período original de Roma dentro de uma perspetiva modelada pela reversibilidade subjacente à visão cíclica do tempo. Esta maneira de pensar não foi exclusiva, embora tenha sido particularmente relevada nos períodos em que o estoicismo e o neoestoicismo foram muito influentes. Defende-se, assim, que, se a perfilhação de uma ideia de tempo cíclico em Tucídides é discutível (como salientou Momigliano), sem ela não se enraizaria tão fortemente a crença no magistério do acontecido (e do que sobre ele se escreveu), vocação que Cícero soube sintetizar na célebre divisa historia magistra vitae est.

A ser assim, ter-se-á de reconhecer que os “investigadores” não se

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limitaram a fazer descrições fragmentadas. Apesar das caraterísticas singulares e irrepetíveis dos factos, as narrativas mais relevantes elegeram temáticas gerais – como a da valorização das guerras decisivas e a dos momentos quentes em que ocorreram mudanças “constitucionais” – e aplicaram critérios de seleção e raciocínios comparativos, causais, sequenciais e analógicos, o que seria impossível caso a singularidade dos eventos impedisse generalizações, por mais limitadas que estas fossem. Na verdade, as “investigações” construíram conjuntos, embora limitados, de factos, mas para os conectar de um modo que não é exclusivamente aditivo e cronológico, porque a trama, mesmo quando descontínua, acaba por dar-lhes forma, ao integrá-los numa escrita de índole biográfica e centrada em grandes acontecimentos e em grandes homens, simultaneamente seus autores e vítimas. De onde esta outra questão: se, como alertava Aristóteles, a dimensão fenomenológica dos acontecimentos bloqueava, sincrónica e diacronicamente, a ascensão da historiografia à esfera das generalizações, a modéstia cognitiva das “investigações” não permitia apreender totalidades com princípio, meio e fim que acabam por dar sentido às singularidades e contingências que narram?

Os historiadores gregos (e romanos) perceberam que os factos não valiam só por si, porque a mediação da escrita ordenava a contingência e a singularidade das situações únicas e das ações individuais. Daí que a verdade do narrado não estivesse tanto na adequação dos enunciados à realidade atomizada, mas residisse, sobretudo, na correlação, mesmo quando implícita, entre os traços (remotos, ouvidos ou vistos) do acontecido e os pré-conceitos de quem os interpelava e contava. Deste modo, apesar do seu aparente cariz doxográfico, a nova historiografia aspirava à veracidade e queria cumprir um dever de memória que, nos seus melhores exemplos, não dispensava a certificação do narrado.

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O mister da história: entre o memorar e o conhecer

Estas preocupações anamnéticas da historiografia clássica também a aproximavam da retórica. É que, enquanto fixação escrita de feitos que não deviam ser esquecidos, ela podia ser lida como um repositório de exempla que servia bem as amplificações e exortações retóricas, como ocorria na retórica deliberativa e/ou epidítica. No entanto, esta utilização só era possível porque a trama que cerze a narração dos factos carreava ou consentia a idealização e a tipificação do fragmentado, contingente, irreversível e finito (de acordo com a metafísica dominante), maneira de a retrospetiva ganhar em eficácia social o que perdia em acurada vigilância crítica. No fundo, esta possibilidade generalizadora, por mais racionalizada que fosse, dava uma certa continuidade quer à visão mítica do tempo, quer, como se nota em Tucídides, a uma ideia a-histórica e, por conseguinte, omnipresente da natureza humana no transcurso do devir humano. A este propósito, recorde-se o que escreveu na sua História da Guerra do Peloponeso: “a ausência de fabuloso na minha narrativa pode parecer menos agradável aos ouvidos, mas todos aqueles que quiserem ter uma visão clara dos acontecimentos passados e dos que, um dia, dado o caráter humano, venham a acontecer de novo e de forma semelhante, julgá-la-á útil e isso basta”.

Em outros casos, a configuração cíclica do tempo cósmico foi diretamente convocada, com destaque no ordenamento da sucessão das formas de “constituição” ou de governo, onde a presença do princípio da anakyclosis foi muito comum. Cada uma delas, tarde ou cedo, geraria o seu antónimo, degradação que a praxis humana podia adiar, mas não definitivamente vencer. De onde a permanente ameaça de regresso a soluções “constitucionais” já experimentadas.

Mais concretamente, esta classificação (ideal) é inseparável do processo circular do tempo cósmico. Já esboçada por Homero, ela encontra-se em outros escritores gregos e romanos (Homero, Aristóteles, Heródoto, Tucídides, Políbio e Cícero), com intensidade e modalidades distintas, é verdade, assim como na anakyclosis teorizada por Platão. E, em termos de “tipos-ideais”, ela estava assim organizada: à monarquia (cuja expressão degenerada era a tirania), seguia-se a aristocracia (de onde podia resultar a oligarquia) e, a esta, a democracia, que tinha

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na oclocracia e na demagogia a sua face desmesurada. Como estas inversões, tarde ou cedo, aconteceriam, Cícero, no seu Tratado da República, ensinava que nenhuma tipologia era “perfeita” porque “de um rei desponta um senhor; dos optimates ‘aristocratas’ uma fação, do povo a turbamulta e a confusão”. Por isso, a máxima concretização possível da harmonia e, consequentemente, a máxima realização do bem comum exigia que se aproveitasse o melhor que cada uma delas continha. Em suma, o ritmo cíclico do cosmos, a raiz a-histórica da natureza humana, a fama e a glória – expectativas que conduziam a uma praxis civicamente mais virtuosa – são as traves-mestras que devem ser chamadas a terreiro para se entender o magistério da história, função exemplarmente sintetizada por Cícero nesta fórmula lapidar: “historia vero testis temporum, lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae, nuntia vetustatis, qua voce alia nisi oratoris immortalitati commendatur” (Cícero, De Oratore, II, c.9, 36 e c.12, 51).

Por ela, adjudicava-se à história a núncia missão de desvelar o passado sob a luz da verdade e de, com isso, oferecer exemplos (plena exemplorum est historia) (Reinhart Koselleck) que, ontem como hoje, ligassem o que foi ao que devia ser no presente e no futuro. Séculos depois de Heródoto, confirmava-se que a escrita da história (e não só a res gestae), para agir como ars memoriae, teria de ser lux veritatis. Só em nome desta, e não da mentira – dialética já equacionada por Heródoto –, ela seria, como relembrou Políbio, lição para uma “vida justa”. Portanto, se a narrativa historiográfica se propunha ser a memória da vida, esse papel exigia que ela também fosse a morada da vida da memória. E, sem a mediação escrita, a exemplaridade do passado, que só do presente podia ser evocada, sintetizada e tipificada, dificilmente podia fugir à cadeia degradadora e amnésica do tempo, ou à suposição da omnipresença de uma imutável natureza humana. Este tinha sido o testamento de Tucídides, significativamente retomado, mil anos depois, por um atento comentador das Décadas de Tito Lívio e defensor das clássicas tipologias “constitucionais”. Referimo-nos a Maquiavel e a esta sua advertência: “o resultado é que os que se dedicam a ler a história ficam limitados à satisfação de ver desfilar os acontecimentos sob os olhos sem procurar imitá-los, julgando tal imitação, mais do que difícil, impossível, como se a sua ordem, o seu rumo e o seu poder tivessem sido alterados”.

Mais especificamente, devido à permanente tensão – que se prolongará

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no pensamento ocidental até aos nossos dias – entre a mediação presentista das narrações sobre o passado, a singularidade ontológica dos eventos e a eleição de “grandes acontecimentos” (exemplo: a guerra do Peloponeso) ou de “grandes homens”, o uso social da história, no seio de uma experiência a-histórica ou mesmo cíclica do tempo, acabava por sugerir que, em termos globais, o futuro tinha no passado a previsão do que nele iria acontecer. Pode mesmo dizer-se que a construção de exempla era tipificada, o que enfraquecia a sua capacidade de comprovação e, em muitos casos, abria portas à continuidade dos ecos da velha narrativa mítica.

Significa isto que, se a historiografia da prova contribuiu para a erosão do mito, a sua tradução retórica tendeu a dar-lhe uma nova vida, ainda que de um modo cada vez mais degradado. E a hegemonia das visões cíclicas do cosmos – e da humanidade como género a ele umbilicalmente ligada – prolongou-a, mesmo depois do avanço da cristianização. Por outro lado, há séculos que se sabia que os efeitos sociais da depuração conducente à exemplaridade seriam mais proficientes se a diegese estivesse organizada à volta das ações e feitos dos “grandes homens” – sucessores e sucedâneos dos arquétipos cosmogónicos primordiais. De onde a narrativa historiográfica não ter dispensado o recurso à biografia, prática que, sintomaticamente, arrancou no século V a.C. e que, mais tarde, terá nas Vidas Paralelas, de Plutarco, e na obra Os Onze Césares (46 a.C.-120 d.C.), de Suetónio, as suas melhores concretizações. E, neste terreno – mais do que em qualquer outro –, a evocação tanto podia ser “luz da verdade”, como o facho obscuro da mentira.

De facto, o florescimento da historiografia ocorrido na Grécia do século V a.C. também se refletiu no género biográfico (Momigliano), maneira outra de dar expressão à singularidade dos acontecimentos e aos efeitos imprevisíveis da ação individual. Afinal, esta literatura acabava por insinuar que o homem, através da praxis, possuía uma pequena margem para fugir à inexorabilidade do destino. Daí que, nas novas narrativas historiográficas, a tikê nem sempre conduzisse ao fatalismo absoluto, e o fado só tivesse uma total capacidade destruidora quando o indivíduo caía na hybris, a grande porta por onde entrava o destino trágico da vida (Manuel Benavides Lucas).

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A circunstância de ser fonte de exempla não pode reduzir a nova historiografia à retórica. Frise-se que ela, enquanto “investigação”, em analogia com o proceder da retórica judiciária e do método hipocrático, não prescindia do testemunho e da prova a partir de traços. Por outro lado, o próprio Aristóteles não lhe negou valor como technê, ao defender que “é útil para a legislação não só saber, pela observação do passado, qual é a forma de governo conveniente”, como conhecer, comparativamente, “as dos outros países e que formas de governo se lhe ajustam. Por conseguinte, é claro que os relatos de viagens são úteis para a legislação, pois neles se podem aprender as leis dos povos, como o são para as deliberações políticas as investigações daqueles que”, como os historiadores, “escrevem sobre as ações humanas” (Aristóteles, Retórica, 1360a). E, séculos depois, Políbio, nas suas Histórias (I, c.35), defenderá que, como só a investigação historiográfica podia “fornecer uma declaração dos factos como estes de facto aconteceram”, praticá-la seria fundamental para pôr o governo da polis sob o signo da “vida justa”.

Da polis ao império

Sendo a historiografia uma das traduções mais racionalizadas da necessidade que o homem tem de contar histórias, devido à tensão, existencial e social, que existe entre memória e esquecimento (“era uma vez”), importa relembrar que o nexo intrínseco entre o historiador e a cidade se revela na linguagem, prova primordial de que ele não pode fugir à historicidade do seu discurso.

Em concreto, tem uma longa tradição a ideia segundo a qual, em Roma, com a crise da República e, depois, com a paulatina decadência do Império, o legado historiográfico grego (e helenístico) foi perdendo fulgor. Contudo, após os estudos de A. Momigliano, esta tese tem sido modificada, pois existem provas acerca da sobrevivência de um tipo de narrativa que remontava ao século V a.C. e que, de acordo com as contas feitas por Félix Jacoby, na sua obra Fragmente der griechischen Historiker (1841-1870), foi cultivado, entre aquele período e o século IV d.C., por 856 autores, ainda que, sobre muitos deles, somente se conheçam o nome ou fragmentos dos seus textos. De qualquer modo, há algum consenso

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no que concerne ao advento de um período de declínio a partir do século II, seja devido a um relativo esgotamento do género, seja à sequência do impacto da cristianização do Estado, seja, em função deste processo, por causa da gradual interiorização de uma ideia de mundo, de história e de pós-morte estranha a uma historiografia que se foi centrando na figura divinizada do Imperador e em temáticas que privilegiavam os momentos maiores da origem, ascensão e expansão da cidade-império então sacralizada.

Esta centralidade também se refletiu nos critérios de datação. Na linha dos gregos, que, entre outros, diferenciaram os anos pela associação de cada um ao governo de um arconte, os romanos chegaram a distingui-los de acordo com a sucessão de mandatos dos dois cônsules. Porém, na fase final da República, ganhou terreno a utilização de um ordenamento cronológico elaborada ab urbe condita, isto é, a partir da presumível origem de Roma, evento que, traduzido para a era cristã, teria ocorrido em 753 a.C. Como se vê, em qualquer dos casos, os padrões da calendarização eram políticos, e o último referenciava o próprio mito fundador da cidade, e não a criação do mundo, como acontecia na tradição judaica.

A par desta temporalização cronológica, foi-se expandindo uma experiência do tempo histórico não alheia ao crescimento de presságios e sentimentos acerca da decadência de uma cidade (e de um Império) que muitos pensavam ser eterna. Diga-se que a sobrevivência das conceções cíclicas ia pondo em causa esta convicção. Para alguns, o passado romano era visto como inferior ao seu presente – como acontece em Tito Lívio, para quem o final da República é descrito como uma época da máxima decadência, em contraste com a época de Augusto, representada como uma espécie de “século de Ouro”. Porém, para outros, como Políbio, esta estava na origem, sendo o tempo presente o da senescência. De onde a eclosão do debate – que chegou até hoje – acerca do defectus finis de Roma. Neste contexto, tem relevância simbólica o facto de Zózimo – comummente indicado como o último historiador do longo período iniciado em Heródoto e autor de uma História Nova, onde relatou as sucessões imperiais desde Augusto – ter apresentado como causa principal da crise romana a política religiosa de Constantino (285-337) e, depois, a sua confirmação, em 380, por Teodósio, orientações que, ao cristianizarem o Estado, expulsaram os deuses que protegiam a civitas dos presságios negativos.

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A nível historiográfico, no Império cristianizado, a nova religião condicionou o surgimento de uma visão linear, mas finita, do tempo, seja em termos metafísicos e psicológicos, seja na perspetiva cosmológica e cronológica. E esta última, no seguimento da sua matriz judaica, passou a ter como referência de datação, não a cidade, mas a criação transcendente e ex nihilo do mundo, início de um percurso que, na ótica cristocêntrica, tinha preparado o advento do Filho de Deus, o eixo de todos os eixos do drama do homem no tempo. O seu exemplo maior encontra-se na História da Igreja de Eusébio de Cesareia (260-339), obra de referência, depois continuada por figuras como Filostórgio, Sócrates Escolástico e Teodoreto de Ciro, onde é visível o propósito de legitimar o constantinismo religioso-político em afirmação.

Não obstante o paulatino domínio da nova religião, continuou a haver lugar para o cultivo de uma historiografia sensível à valorização romana do Direito. Esta vertente está bem objetivada no Codex Theodosianus (compilação das leis saídas entre 313 e 437) e na prossecução dos esforços imperiais de unificação política através da universalidade da lei – “um Estado, uma lei, uma Igreja”, tendência que terá no Corpus Juris Civilis, mandado elaborar por Justiniano (482-565), a sua monumental materialização. E a familiaridade de alguns historiadores cristãos com o Direito possibilitou o prolongamento dos deveres do investigador para com a prova e para com a busca da máxima objetividade possível. Entre outros, foi o caso de Sozomeno (400-c. 450), um jurista que, com os olhos postos nos exemplos de Eusébio e de Sócrates Escolástico, escreveu uma história da Igreja dedicada a Teodósio II, que vai de Constantino até quase ao seu tempo, com critérios hoje muito apreciados, sobretudo no que toca às informações que transmitiu sobre a ação missionária da nova religião.

Tudo se desenrolou na conjuntura em que se institucionalizou a cristianização do Império e em que eclodiram fortes querelas teológicas acerca das linhas que tinham de separar a mundividência pagã – na época, muito marcada pelo estoicismo e pelas suas visões cíclicas do cosmos – da visão da natureza, da vida e da morte assente na crença na existência de um Deus uno, transcende e criador – por um ato de vontade livre – do espaço e do tempo. Como se sabe, este transcendentismo desencadeou disputas imediatas no que diz respeito às diferenças e hierarquizações

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que deviam existir entre o poder espiritual e o poder temporal, em ordem a que a realização do bem comum no mundo fosse caminho para a consumação escatológica da bem-aventurança definitiva.

Para os defensores do cariz sacralizado e autossuficiente do Imperador, a negação cristã deste estatuto era sinal de ateísmo e responsável pela aceleração da decadência romana. Ao contrário, para os teólogos cristãos, o defectus finis de Roma era uma consequência dos efeitos corruptores que, tarde ou cedo, atingem tudo o que está sujeito ao tempo e à fugacidade da Cidade dos Homens. De onde terem errado todos aqueles que consideraram “Roma, cidade eterna”, denúncia que encontrou o seu teórico maior em Santo Agostinho (Cidade de Deus, 426 d.C.). Toda a realidade criada, incluindo a política, carecia de substancialidade, pelo que a eternidade só podia ser alcançada com a ascensão à Cidade de Deus. E, quanto à posteridade do debate, basta lembrar que o declínio romano virá a tornar-se, até aos nossos dias – passando, entre outros, por Vico, Montesquieu, Gibbon e, em Portugal, por Oliveira Martins –, num caso paradigmático nos estudos sobre os processos de degenerescência dos grandes impérios.

Como já ficou sublinhado, esta profunda revolução, que demorou alguns séculos a enraizar-se nas instituições, nas consciências, nas ideais, nos hábitos e nas atitudes, repercutiu-se tanto nas temáticas das “investigações” históricas e nas pré-compreensões que condicionaram as suas narrativas, como na função social e política que estas, em nome da eudaimonia, teriam de exercer: encaminhar a Cidade dos Homens – peregrinação ditada pelo pecado e pela culpa – para a salvação definitiva na Cidade de Deus. Questão fundamental, pois o cristianismo, e a sua base judaica, apelavam para a crença num Deus transcendente, mas que, através de acontecimentos únicos e irrepetíveis, se revelava “semioticamente” na história, elevando a fé no que estava escrito no Livro a fonte sobre o sentido da vida.

A esta nova luz, a humanidade passou a ser encarada como um cursus movido pela irreversibilidade de um tempo que teve um alfa e que terá um fim. Nele, o homem, criado à imagem e semelhança de Deus, e dotado, portanto, de livre-arbítrio, podia, quando banhado pela fé esperançosa propagada pela nova religião, fugir à anankê, única via capaz de resgatar a condenação da humanidade ao sofrimento causado pelo pecado. E foi esta condição de homo lapsus que o tornou

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homo dolens, peregrino no mundo, mas cuja possibilidade de salvação estava, não na história (como acontecerá no historicismo progressista da Modernidade), mas na pós-histórica Jerusalém Celeste.

A história pós-histórica no cristianismo

Num movimento que teve nos Padres da Igreja e em Santo Agostinho (séc. V) o seu primeiro grande “momento” teológico – ainda que enroupado na herança filosófica greco-romana que queriam combater –, a novidade do cristianismo impôs-se num contexto polémico em que um dos seus principais alvos foi a conceção cíclica do tempo. Simultaneamente, ao postular a diferença que existia entre o Deus criador ex nihilo e as criaturas, incluindo a do próprio tempo, anunciava a fé na salvação, fazendo de Cristo filho de Si Mesmo. Neste horizonte, a história, tanto à escala micro como na sua dimensão coletiva, estava marcada pela finitude ontológica do tempo, e a apreensão do seu sentido fazia do passado uma era ou idade de preparação, cuja consumatio ocorreria no final dos tempos, destino que, após a vinda de Cristo, poderia acontecer a qualquer momento.

O Livro era acreditado como sendo um livro histórico e de história, crença ancorada num pensamento teológico que defendia a autonomia (e superioridade) da fé sobre a razão e, consequentemente, da verdade revelada sobre a inquirida e que tinha, contra a anankê pagã, um entendimento providencialista do devir. Portanto, a transcendência de Deus como criador do homem, do tempo e do espaço não implicava, como mais tarde virá a ser defendido pelo deísmo moderno, indiferença face ao mundo criado.

Por tudo isto, a narração supunha uma causalidade que, dependente da vontade divina, escapava à razão humana, pelo que os acontecimentos deviam ser lidos como sinais que só a fé podia perscrutar. Assim, têm razão aqueles que defendem que o providencialismo justificou a prática de uma espécie de historiografia semiótica, porque a aceitação dos événements, mesmo quando ilógicos, ultrapassava o cânone das racionalizações causais e as explicações exclusivamente profanas. A cronologia foi sendo sobredeterminada pela teologia e pela inserção dos eventos

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na sucessão vetorial, sequencial e irreversível do tempo histórico, organizada à volta de acontecimentos fundamentais (a criação do mundo, a expulsão do paraíso, a luta entre Abel e Caim, a revelação da Lei, etc.) e, para o cristão, do acontecimento dos acontecimentos – a vida e a morte Cristo. A partir deste centro mediador, a sujeição individual e coletiva do ser humano à irreversibilidade do tempo (finito) passou a distinguir, qualitativamente, um antes e um depois de Cristo, como a gradual calendarização ocidental (com relevo, a partir do século VIII) não deixará de fixar. Com efeito, quer as formas pagãs de datação, quer a remissão judaica para a criação do mundo foram sendo abandonadas nas sociedades cristianizadas, dando lugar a uma cronosofia assente na divisão teológica a.C./d.C.

Como já salientámos em outra ocasião, tudo isto explica que os scriptores cristãos medievais, amiúde sem grande vigilância crítica, tenham incorporado, nas suas histórias, narrações transmitidas pela tradição e afiançadas por uma autoridade reconhecida (Igreja, Monarquia, Universi dade), ou pela santidade e posição social de quem as narrava, credulidade que, como sublinhou K. Pomian, os levava a “falar do passado, referido nesses relatos, como se eles próprios o tivessem vivido”. E daqui resultou esta outra consequência – a relevância do milagre e o tom apologético, providencialista e apocalíptico da escrita, onde, frequentemente, a prática autoral coabita com o anonimato e onde nem sempre se convoca a prova do que se escreve. Por isso, durante alguns séculos, o ofício do historiógrafo confundiu-se com o do cronógrafo, e, quanto aos géneros, os anais nem sempre foram separados das crónicas e das histórias propriamente ditas.

O modelo da Imitatio Christi

Chegados aqui, será útil recordar que a intelectualização da novidade da nova religião foi pensada a partir de problemáticas e conceitos oriundos da filosofia greco-romana, incluindo aqueles que foram usados por Santo Agostinho para conotar os sentimentos de pertença à Respublica Christiana. Nos inícios do século V, e um pouco à maneira platónica (mundo inteligível, mundo sensível), o bispo de Hipona teorizou a transcendência e a supremacia da Cidade de Deus sobre a

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Cidade dos Homens, acusando os panegiristas da virtude cívica pagã – inspirada na evocação dos exempla e no anelo da fama – de não terem percebido que, se tudo o que é humano está condenado à corrupção e, tarde ou cedo, ao esquecimento e à morte, só a eternidade, situada para além do tempo e da história, traria a definitiva bem-aventurança. Sendo vã e fugaz a fama terrena, os cristãos não deviam aspirar aos louvores que a história pagã tinha valorizado, porque os únicos sacrifícios dignos seriam os dedicados à transcendência. E a nova fé não pedia demasiado, já que, como salientámos no nosso Ensaio Respublicano, por causas bem menores – o exclusivo amor da glória e da cidade terrena –, os gregos e os romanos, apesar de estarem mergulhados no erro, deixaram edificantes exemplos de caritas para com a pátria e de sacrifício “testemunhal” (martys) na defesa do bem comum (Joana Duarte Bernardes). Por isso, a abnegação teria de ser ainda maior quando em causa estava o devotamento da vida ao Deus verdadeiro.

O cordão invisível que ligava o princípio historia magistra vitae às visões cíclicas do tempo foi sendo cortado pela (lenta) adesão à ótica vetorial da história em todos os graus da sua manifestação fenomenológica. Já foi afirmado, e com razão, que a religião judaico-cristã é uma “religião de historiadores”, porque o Livro foi acreditado e lido como uma narrativa de acontecimentos verdadeiros, incluindo a encarnação de Deus como Filho. Explica-se, assim, que a diferença essencial entre o cristianismo e as cosmovisões e religiões greco-romanas seja vista, por muitos, como potenciadora de secularização e de historicidade, horizonte que faltava às conceções cíclicas e, portanto, à antiga qualificação da história como “mestra da vida”.

É verdade que a procura de exempla também abria portas ao desenvolvimento da consciência histórica e ao cultivo da historiografia. Recorde-se, porém, que a exemplaridade, aspirando ao enaltecimento de ideais e valores gerais, congelava o devir inerente à irreversibilidade, singularidade e imprevisibilidade dos eventos que ela mesma queria referenciar. O que explica que, no seu uso educativo, ela agisse como se de um modelo trans-histórico se tratasse, pois incitava a fazer do presente e do futuro a repetição-tipo da lição cívica que os exempla exortavam. Retida a irreversibilidade dos factos na fixidez do arquétipo, o tempo da história seria, afinal, o não-tempo da identidade eleática.

De qualquer modo, o apotegma ciceroniano também foi cristianizado. E

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a eleição do acontecimento dos acontecimentos – a Encarnação – ordenou e pontualizou a linha vetorial do tempo histórico a partir de um centro à luz do qual o passado surgia como preparação, o presente, como anunciação, e o futuro, como expectativa transcendente de salvação. Por isso, na mundividência ocidental, a vida e a morte de Cristo passaram a ser o exemplo dos exemplos em função do qual tudo ganhava sentido.

Por sua vez, no campo historiográfico, sabemos que os scriptores eram, em boa parte, membros do clero e que tratavam de assuntos dominantemente religiosos, pelo que não surpreende o halo providencialista, milagreiro e catequético de muitas das suas narrativas (R. Collingwood). Em certa medida, pode mesmo defender-se que os objetivos ético-cívicos perseguidos pela mais relevante historiografia greco-romana foram transferidos para as representações (escritas e/ou iluminadas) de exemplaridades de cunho cristológico e hagiográfico, cuja rememoração estava ao serviço do aperfeiçoamento espiritual que daria acesso à Jerusalém Celeste. Em suma, a assunção da história só tinha sentido se fosse religiosamente vivida como um trânsito salvífico para o pós-histórico.

II

A fragmentação da República Cristã, a paulatina afirmação da autonomia do poder temporal da Majestade, o despertar de uma mundividência mais antropocêntrica e “conquistadora”, tanto da natureza como da história, foram condicionantes que levaram alguns dos protagonistas destas mudanças a pensar-se como “modernos”. Do ponto de vista epistémico, esta metamorfose provocou uma maior cesura entre a fé e a razão, assim como entre o homem e a natureza. E, se a afirmação do espírito crítico e metódico foi uma das consequências desta longa revolução cultural, o distanciamento face à metafísica e, sobretudo, à teologia abriu um caminho que, no contexto de controvérsias várias, conduzirá à chamada “revolução científica moderna”, processo que também se repercutiu na historiografia.

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O “momento” Lorenzo Valla e o método histórico-filológico

As novas realidades sociais e políticas de certas regiões da Europa, impulsionadas pelo crescimento de uma economia mais comercial e financeira, propiciaram, sobremaneira na região italiana, condições materiais que vieram a dar origem a novas preocupações que se objetivarão em correntes culturais como o Humanismo e o Renascimento. O primeiro momento (sendo o fenómeno anterior, o vocábulo que o nomeia foi criado por volta de 1530) idealizava a grandeza da Antiguidade para, qualitativamente, comparar o presente com o passado imediato – período que a Modernidade irá designar por media aetas. Para isso, intensificaram-se as práticas de mecenato em vários domínios culturais. Dir-se-ia que ressuscitar os clássicos passou a ser sinal de distinção e de aristocracia de espírito (raiz da génese das Academias), intento que chegou mesmo a pautar a ação de alguns papas (Nicolau V), mormente no domínio das artes plásticas e ao nível do apoio a traduções, para latim, de obras fundamentais escritas em grego, edições que a recente descoberta da tipografia móvel, por Gutenberg (década de 1430), ajudará a propagar. Concomitantemente, essa também foi a conjuntura em que ganhou força crítica o uso do método histórico-filológico, pedra de toque do futuro olhar historiográfico. E Lorenzo Valla costuma ser apresentado como o símbolo desta renovação.

Com efeito, no momento genético do Humanismo, e sob os auspícios de Nicolau V, Valla traduziu (entre 1448 e 1452) não só Tucídides, mas também Heródoto (por volta de 1450). Com isso, os dois principais pioneiros da investigação histórica começaram a entrar nas grandes bibliotecas em formação e nas disputas que essa receção provocou na emergente “República das Letras” (S. Gambino Longo). Mas esta revalorização das obras “pagãs” também indiciava o aparecimento de tendências secularizadoras e comparativistas, atitude que virá a desaguar, nos meados do século XVII, nesta pergunta crucial: serão os “modernos” culturalmente superiores aos “antigos”?

Recorde-se que Petrarca (1304-1374) já tinha recorrido à paleografia e denunciado os malefícios do uso do anacronismo. E uma atitude análoga se deteta na análise que Lorenzo Valla fez, em 1440, à chamada Doação de Constantino, manuscrito onde se mencionam a conversão do imperador e a doação de terras e prédios que,

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em 335, o Imperador terá feito ao papa Silvestre. O estudo histórico-filológico que o tradutor de Tucídides e Heródoto efetuou dos vocábulos usados no documento permitiu comprovar a sua origem apócrifa (D. R. Kelley, 1970).

Por sua vez, o alargamento da aplicação do método e a renovação das temáticas investigadas sinalizam o ressurgimento de uma preocupação mais secularizada pela história política da república, como aconteceu em Florença. Aqui, o chanceler da cidade, Leonardo Bruni, publicou a relevante obra intitulada Doze Livros da História Florentina (1415-1444), e Maquiavel (1469-1527) – o teriorizador da separação entre moral e política – deu a lume a sua História de Florença. Com estes estudos, os autores tornaram-se nos primeiros historiadores humanistas a darem nova vida ao modelo clássico do relato profano, racionalista e imanentista (Enrique Moradiellos, 2001). Por sua vez, Francesco Guicciardini (1483-1540) tentou libertar a historiografia das influências da retórica, realçando a experiência concreta e a dimensão contingencial dos efeitos decorrentes da ação humana. Amigo de Maquiavel, a sua obra – em particular, a sua História de Itália – virá a ser apreciada, entre outros, por Montesquieu e Jean Bodin (Josep Fontana, 2001).

De uma maneira gradual, ganhou curso a aplicação do método histórico--filológico, principalmente com o aumento das controvérsias ligadas às guerras religiosas na Europa, incluindo, a Sul, a perseguição dos judeus (séculos XVI e XVII). Daqui brotaram uma nova hermenêutica dos textos sagrados (Espinosa, Richard Simon) e uma nova história sacra, tanto de inspiração protestante (destaque-se a obra coletiva, dirigida por Flacius Illyricus, Centúrias de Magdeburgo, em treze volumes, com publicação iniciada em 1539), como católica (saliente-se os Annales Ecclesiastici, do cardeal Cesare Baronio, saídos entre 1588 e 1607). E foi dentro desta mesma valorização do passado religioso, mas já com motivações menos hagiográficas, que Jean Bolland e os seus discípulos editaram, em Antuérpia, as Acta Sanctorum (1643) e que os beneditinos de Saint-Maur (Baluze e outros) se lançaram no estudo da vida dos santos da sua ordem, seguindo uma prática que Jean Mabillon (1632-1707) sistematizará na sua De Re Diplomatica (1681), texto de referência para a futura fundamentação da historiografia-ciência (Marc Bloch virá a considerá-lo um dos marcos da cultura ocidental).

Sob o Iluminismo, o peso da erudição cresceu, mas não foi indiferente ao

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eco das lutas, internas e externas, que, no presente, Príncipes e Estados travavam entre si. Foi o caso da obra do filósofo empirista inglês David Hume, que escreveu uma História de Inglaterra (1711-1716); de William Roberston (1721-1793), com a sua História do Reinado do Imperador Carlos V; de Eduardo Gibbon (1759-1799), com o regresso à invocação do principal paradigma do fim das civilizações – a História da Decadência do Império Romano; e o do próprio Voltaire, com O Século de Luís XIV (1751).

A realidade política da Alemanha, então dividida em vários Estados, enfatizou, sobretudo, o estudo das suas especificidades jurídicas, numa linha que combinava a erudição com uma narrativa histórica estruturada pela combinatória de perspetivas cronológicas, racionalistas e imanentistas. A chamada escola de Göttingen (J. C. Gatterer, A. L. Schlözer, Arnold von Heeren) deu corpo a este movimento, apostado em produzir uma historiografia que fosse mais além das biografias de reis e das descrições de datas, guerras, batalhas, mudanças de governo, informações sobre alianças e revoluções (Enrique Moradiellos, 2001). Como alternativa, pugnou pelo estudo crítico das fontes e pela reunião de informações sobre a economia, a geografia, a demografia e a realidade social dos Estados alemães da época.

Em França, esta nova sensibilidade perante o concreto e seus condicionantes tocou intelectuais como Montesquieu, Rousseau e Voltaire. Por exemplo, este último, no seu Dicionário Filosófico (1764), defendeu que a historiografia teria de basear-se não só em factos comprovados, datas exatas, mas também, e na linha de La Popelinière e de Montesquieu, numa melhor compreensão dos usos, costumes e leis, comércio, fazenda, agricultura e população das sociedades concretas. Porém, foi sobretudo o historiador alemão Justus Möser quem, então, melhor respondeu a alguns dos excessos resultantes do universalismo iluminista. Com efeito, na sua História de Osnabrück (1768), Möser – que Alexandre Herculano virá a ler - estudou os costumes, as tradições e as instituições da cidade, equacionando esta última como um micro-organismo, em ordem a captar a sua unidade espiritual, algo a que, na mesma conjuntura, Herder chamará Volksgeist (Isaiah Berlin, 1976; Frederik Barnard, 1965).

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Um longo contencioso entre a historiografia e a metafísica

Por maiores que tenham sido as novidades trazidas pela historiografia contemporânea, será útil lembrar que as normas, as regras e os hábitos, que a distinguiram no conjunto dos saberes sobre os trabalhos e os dias dos homens no espaço e no tempo, foram sintetizadas no século XIX à volta de um ideal de história-ciência que, em última análise, reatualizava a herança do velho método histórico-filológico. E este percurso foi desenhado por duas intenções distintas: uma, pela atração exercida pelas ciências da natureza, enquanto modelo positivo a imitar, tanto quanto fosse possível; e uma outra, pela rejeição da hegemonia que as filosofias da história (expressão criada, em 1765, por Voltaire) tinham ganho nas representações sobre o sentido do devir humano.

Diga-se que a atração pelo paradigma moderno de ciência, facilitada por uma lenta secularização que foi autonomizando a razão da fé (sustentáculo comum ao racionalismo e ao empirismo moderno), dará força a um pensamento que porá entre parêntesis, ou mesmo depreciará, as problemáticas da metafísica e da teologia. Mais humildemente, progrediu um tipo de conhecimento que partirá de hipóteses passíveis de experimentação, tendo em vista encontrar leis explicativas de como os fenómenos se relacionam entre si. Já não se desejava praticar o saber pelo saber (Grécia), nem o saber para salvar (teologia medieval), mas queria-se somente alcançar conhecimentos que tivessem capacidade para prever e para prover (F. Bacon, A. Comte). De onde o crescimento das reflexões sobre a questão do método (Descartes) e do novo organon (R. Bacon, F. Bacon), assim como o desenvolvimento de um modo de pensar mais dubitativo, antidogmático e distanciado da vã procura de soluções para problemas indemonstráveis.

Também na historiografia a indagação da veracidade sofreu uma mudança paradigmática. Recorde-se que as investigações de Heródoto, para apelarem para o testemunho, não foram alheias ao exercício da retórica judicial e da medicina hipocrática. Por sua vez, na Modernidade, o avanço da história-ciência só aconteceu com relevância quando os efeitos mundividenciais resultantes da nova “revolução científica” começaram a enformar o pensamento das elites intelectuais, políticas e económicas dos principais países europeus. E esta tendência enraizou uma

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episteme mais secularizada e, portanto, menos teológico-metafísica, e, no domínio historiográfico, mais crítica e mais consciente da necessidade de se ter de comprovar, documentalmente, o que se escrevia acerca do passado.

Na verdade, ela remou contra a tradição dogmática que punha o Livro a ditar a verdade sobre os fenómenos mundanais, contrapondo-lhe a defesa da autonomia da razão e o entendimento da natureza como um livro cujos segredos podiam ser racionalmente decifrados, porque escritos em linguagem matemática (Galileu). Percebe-se, assim, por que é que também a luta pela aceitação da historiografia como um saber que aspirava à veracidade sempre se demarcou da metafísica e, sobretudo, da versão oferecida pelas grandes filosofias modernas da história. Estas começaram a ser sistematizadas (a partir das últimas décadas do século XVIII) por pensadores como Condorcet, Kant, Hegel, Marx e Comte. Ora, este tipo de metanarrativas, assentes numa motricidade teleológica e de dimensão totalizadora e universal, só podia medrar no seio de uma vivência do tempo que, epicamente, assumia a nova consciência do desfasamento que existiria entre o campo de experiência e o horizonte de expetativas. Com ela, deu-se a consolidação da ideia de irreversibilidade (mesmo ao nível do género e da espécie) e da crença segundo a qual a razão poderia revelar a racionalidade ínsita à história, mesmo quando, na perspetiva da singularidade, os acontecimentos pareciam ilógicos e irracionais (Hegel).

Ao contrário, para Ranke e seus seguidores, a condição histórico-concreta dos indivíduos e das sociedades impedia que a razão pudesse ter acesso a uma verdade absoluta, o que, em termos historiográficos, colocou sob suspeição as grandes sínteses dedutivas e panlogistas e incrementou a pesquisa das encarnações históricas da verdade “enquanto traços de uma verdade mais completa” (J. A. Barash, 2004). E isto também explica a ênfase que foi posta na valorização do papel erístico e hermenêutico do método histórico-filológico em posições contra Hegel, como a de Ranke, que davam importância ao particular e ao relativo – todos os povos são iguais perante Deus –, o que implicou, simultaneamente, a prática de uma investigação mais analítica e interessada na factualidade.

Encontra-se uma posição análoga em W. Humboldt, pensador que, em A Tarefa do Historiador (1821), considerou ser missão da escrita histórica “expor o que ocorreu”. Para cumprir esse desiderato, ter-se-ia de percorrer dois caminhos:

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o da investigação rigorosa e crítica do que aconteceu e o da síntese do campo explorado, mesmo que alcançada com a ajuda da intuição. Em qualquer dos casos, a objetividade obtida pelo uso do método histórico-filológico não seria incompatível com a compreensão, de acordo com outros pioneiros da hermenêutica histórica alemã (Droysen, Dilthey, Windelband, Rickert e Max Weber). Segundo esta corrente, o historiador cumpriria tanto melhor o seu papel quanto mais profundamente com-preendesse, ou melhor, quanto mais se prendesse ao sentido epocal da ação dos outros, pois, como havia ensinado Vico, verum et factum convertuntur.

A interpretação requeria a empática (e simpática) captação da intencionalidade que, consciente ou inconscientemente, se plasma nos traços deixados pelo passado, maneira de dizer que o romantismo histórico alemão se fez entre a factualidade e a interpretação, nexo onde os desejos de reconstituição (impossível) do que aconteceu coabitam com a suposição de pré-conceitos indemonstráveis (como, por exemplo, o Volksgeist herderiano), ou com princípios político-ideológicos que se projetam na hermenêutica dos factos. No apêndice à sua obra Zur Kritik neuerer Geschichschreiber, Ranke – contra os excessos do racionalismo das Luzes e do sistema hegeliano, e procurando o relativo e o específico – considerava falsas as teorias expressas através de construções conceptuais tipificadoras ou homogeneizadoras.

Assim, se o preceito “wie es eigentlich gewesen” parece convidar os historiadores a aterem-se à translucidez empírica da res gestae, importa frisar que esta historiografia também pôs em ação pré-compreensões e escolhas de escalas espaciotemporais que não dão pertinência à sua qualificação como “protopositivismo” (J. Lozano, 1994). Para Ranke e os seus discípulos, a verdadeira ciência da história, mesmo quando parecia estar submetida à atração do modelo das ciências da natureza, prolongou o velho método histórico-filológico (deu grande importância às fontes primárias) e, ao nível do ordenamento da sua escrita, não escapou à necessidade de usar conceitos e regras e de procurar compreender o sentido, ou melhor, a significação (relativa) dos acontecimentos. Daí a sua rejeição do teleologismo universalista das filosofias da história – defendeu o relativismo teorizado por Savigny contra o sistema hegeliano –, tendo em vista valorar o particular. É que, partindo deste, se podia chegar ao geral, mas, do geral, nunca se chegaria à especificidade do particular.

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A historiografia positivista que nunca o foi

Na cultura historiográfica francófona, o sonho da objetividade alcançará a sua plenitude com a crescente hegemonia do paradigma das ciências da natureza (que os vários positivismos e cientificismos teorizavam), numa conjuntura em que aumentaram as prevenções contra o modo de escrever história à Michelet. Este foi o programa de boa parte do grupo de La Revue Historique (1876), de Gabriel Monod, cujo “discurso do método” foi teorizado por Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos na obra Introduction aux Études Historiques (1898). Ora, na caraterização desta corrente – comummente designada por “história positivista” –, ter-se-á de distinguir o positivismo, enquanto conceção filosófica (Augusto Comte) e sociológica (Comte, Durkheim), do chamado positivismo historiográfico, porque este, na linha da lição rankeana, não aspirava à formulação de leis ou de juízos teleológicos universais (o positivismo de Comte é um finalismo, logo, uma “filosofia da história” que explorava o recente prestígio da ciência). A historiografia seria, tão-só, um discurso narrativo, em que os acontecimentos (tidos por sinónimos de “factos”) estavam ordenados de acordo com o princípio da causalidade eficiente.

Por conseguinte, será pouco avisado confundir-se o conceito de positividade – estudo de algo que “está aí” – com os projetos de cariz nomotético. Como os acontecimentos seriam evanescências de singularidades irreversíveis e, de certa maneira, contingentes, o saber historiográfico também cairia na metafísica se anelasse alcançar a universalidade que as leis científico-naturais possuiriam. Ora, para A. Comte, tal como para o seu grande mestre Aristóteles, só havia ciência do geral. Só que, agora, a ciência-modelo não era mais a metafísica, mas a própria filosofia (de Comte). Depois de ter demonstrado, à luz da lei dos três estados, a ultrapassagem da teologia e da metafísica, a filosofia teria como objeto definitivo fundamentar, histórica e racionalmente, o campo científico. Porém, esta totalização – afinal, uma nova metafísica – não entusiasmou o trabalho dos historiadores e, praticamente, só Louis Bourdeau (L’Histoire et les Historiens, Essai Critique de l’Histoire Considerée comme Une Science Critique, 1888) lhes lembrou que a historiografia, para ser científica, tinha de se inspirar, mais assumidamente, na Weltaschauung comteana.

O intento de evitar o equívoco entre positividade historiográfica e positivismo

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filosófico e de destacar o papel decisivo da crítica interna e externa dos documentos levou alguns autores (Guy Bourdé e Hervé Martin, 1983) a chamar à corrente em estudo “escola metódica”. A analogia com o trabalho de Descartes é óbvia, embora a comparação possa ser equívoca: o cartesianismo pressupunha uma ontologia dualista (separação entre a res cogitans e a res extensa) e baseava-se na dúvida metódica e em regras para se pensar bem através de ideias claras e distintas. Todavia, estas tinham uma génese apriorística, e o critério de verdade dos juízos residia na sua coerência interna, em consonância com um paradigma matemático-geométrico, ou melhor, com uma conceção racionalista do conhecimento.

Não obstante o seu discurso manifesto, a “história metódica” perfilhou, na prática, uma difusa filosofia empirista, cujas consequências mais visíveis podiam conduzir à confusão entre os conceitos de evento e de facto histórico e indicar a existência de uma similitude entre a leitura do documento, feita pelo historiador, e a observação dos fenómenos, realizada pelo cientista, sugerindo-se, assim, que a realidade da narração mimitizava a realidade narrada. No fundo, e seguindo Peter Burke, tudo isto pode ser resumido nesta fórmula: um sítio para cada facto, e um facto para cada sítio. Como recordou Braudel, acreditar-se-ia, sem mais, que a verdade estava na autenticidade documental, ou melhor, que “o fetichismo oitocentista dos factos vinha completado e justificado por um fetichismo dos documentos” (E. H. Carr, s.d.). É verdade que esta historiografia também se quis libertar da metafísica das filosofias da história, embora estivesse excessivamente atraída pelo prestígio das ciências da natureza. Por isso, pergunta-se: ela não acabou por veicular, objetivamente, uma ideia de história que, afinal, não quebrava com os quadros do teleologismo historicista? Pendemos a responder que sim.

Em primeiro lugar, estes historiadores estavam convencidos de que o corpus documental era esgotável, tal como aconteceria, com o decorrer do tempo, à respetiva análise. Em segundo lugar – mostra-o a história da historiografia –, por entre os interstícios da sua proclamada objetividade, emitiam-se juízos de valor filhos de uma ideia iluminista-republicana de história, pois, se ao nível da intenção perseguia a verdade, o historiador “metódico” também trabalhava – consciente ou inconscientemente, pouco importa – “d’une manière secrète et sûre à la grandeur de la Patrie en même temps qu’au progrès du genre humain” (Gabriel Monod,

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1876). Assim, indo para além do discurso manifesto desta corrente, consegue-se desconstruir a sua ilusão de “neutralidade” absoluta. Segundo Guy Bourdé e Hervé Martin, a historiografia “metódica” acaba, explícita ou implicitamente, por fazer a apologia de valores, sejam os de um regime (República), da Mãe-Pátria (França), do sonho de um império colonial (Argélia), ou de um universalismo republicano que, no entanto, era mediado por uma visão francocêntrica e eurocêntrica do mundo, esse pecado original das filosofias modernas da história.

Além do mais, as suas narrativas não deixaram de pôr em cena uma linguagem que é tributária da reflexão filosófica. Conceitos como método, acontecimento e documento eram instrumentos que os historiadores da primeira metade do século XIX já não dispensavam. A estes, juntaram um pequeno grupo de categorias (espaço, tempo, caos, processo), fatores que aconselham a que se defina com mais cautela o seu proclamado “positivismo” (J. C. Bermejo, 1987). Por outro lado, o relevo dado à factualidade neste tipo de historiografia não excluía o recurso à interpretação, nem à convocação de condicionantes sociais na explicação e compreensão dos factos. Explicitamente, fê-lo Seignobos, no seu ensaio La Méthode Historique Appliquée aux Sciences Sociales (1901), texto em que se distanciou das ilusões miméticas através desta posição teórica: “l’histoire est essentiellement une science de raisonnement”.

Diga-se que os cultores do chamado positivismo historiográfico sempre tiveram consciência dos limites da aplicação do método clássico das ciências da natureza ao estudo da realidade histórica. Mostram-no as suas distâncias no que concerne à indução de leis e à capacidade que a historiografia teria para a previsão de longo alcance. No fundo, não lhes faltou uma certa inquietação teórica, atitude que os seus críticos silenciaram para melhor celebrarem a sua historiografia como “nova”. Langlois e Seignobos (Introduction aux Études de l’Histoire, 1898) estariam a ser “positivistas” quando escreveram que “a história, sob pena de se perder na confusão dos seus materiais, tem de obedecer estritamente à necessidade de proceder sempre por questões, como as outras ciências”? Assim sendo, não estaremos perante a defesa da “história-problema”, apesar de a reflexão sobre esse intercâmbio com as ciências sociais não ter sido muito explicitada nesta conjuntura, em parte devido ao atraso das ciências do homem em relação às ciências da natureza? (Elena Hernández Sandoica, 1995). No entanto, e ao contrário do que algumas ideias feitas sustentam,

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estes historiadores “positivistas” estavam longe de confundirem a narrativa histórica com os factos narrados. Como explicitamente foi frisado por Seignobos, se o discurso historiográfico devia “représenter les choses”, ele também tinha de “comprendre leurs rapports” (Ch. Seignobos, 1906). De certo modo, muitas das verrinas lançadas contra o “documentalismo” e o cientificismo historiográfico talvez só sejam aplicáveis às teses do Fustel de Coulanges na sua primeira fase, quando defendeu o cariz dominantemente analítico da investigação histórica e incentivou o historiador a colocar-se perante os documentos como o químico estaria face às suas provetas (François Hartog, 1988), dado que “la vérité historique ne se trouve que dans les documents”.

Os melhores historiadores oitocentistas, pese a sua devoção à objetividade, reconheciam, ainda, a impossibilidade de controlarem a presença da subjetividade e da imaginação no seu próprio discurso. Por exemplo, Seignobos aceitava-a, ao defender que todas as ciências sociais trabalhariam, “não sobre objetos reais, mas sobre as representações que se fazem dos objetos” e, consequentemente, sobre as intenções sinalizadas por traços que a mediação do questionamento e da suspeição metódica da falsificabilidade eleva a documentos, “matéria-prima” da elaboração e certificação dos “factos históricos”. Destarte, e como o próprio Seignobos também frisou, estudar os factos exteriores, isto é, o positum, “sans connaître les états psychologiques qui les motivent, ce serait vouloir comprendre les mouvements d’un danseur sans entendre la musique sur laquelle il danse” (Seignobos, 1901). Isto significa que não poderá haver explicações objetivas sobre o passado sem se compreender por que é que as coisas aconteceram (Gadamer).

Em conclusão: nos finais do século XIX, mantinha-se o esforço para delimitar a historiografia da filosofia da história e para reivindicar o seu cariz científico, através de um método crítico – inspirada, em boa parte, no método histórico-filológico – que se pensava ser o mais adequado para comprovar a veracidade do narrado. E, se esta prática foi condicionada pela incidência paradigmática das ciências da natureza, o certo é que ela se foi deslocando para um maior diálogo com as novas ciências sociais emergentes (particularmente, com a economia, a geografia humana, a sociologia, a antropologia), ao mesmo tempo que, com a nova historiografia da primeira metade do século XX – de que a revista Annales (1929) virá a ser a melhor

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representante – e, pouco depois, com Braudel, cresceu o debate acerca do cariz inter e transdisciplinar que devia nortear a investigação, de molde a que a história pudesse ser o conhecimento federador de todas as ciências sociais.

Na segunda metade do século XX, descontado o entusiasmo que foi posto na universalização do uso de métodos quantitativos, o saber histórico tornou-se mais recetivo ao reconhecimento da sua faceta narrativa e hermenêutica, assim como dos contributos oriundos das outras ciências sociais. Estas mudanças alargaram o campo da interdisciplinaridade e corrigiram os exageros cientificistas (e economicistas) das décadas anteriores, ao mesmo tempo que renovaram as problemáticas e as escalas espaciotemporais de análise. Em suma, caminhou-se para a aceitação de uma menos canónica e mais humilde epistemologia da complexidade, em comsonância quer com a hora dos “regressos” (L. Stone) e dos múltiplos anúncios do novo do novo (nova História Política, nova História Militar, nova História da Cultura, nova História Económica, Biografia, etc.) e de uma mais consciente interrogação acerca dos efeitos cognitivos do lugar (institucional e sociopolítico) e dos tempos em que a “operação historiográfica” se processa. De onde esta outra consequência: o esforço de autonomização do métier historiográfico foi acompanhado pela necessidade de o próprio historiador agir como epistemólogo do seu próprio ofício.

O registo de todas estas metamorfoses, algumas proclamadas como rutura pelos seus protagonistas (exemplo: a atitude da primeira geração analista para com a “história positivista”), tem ainda de incluir o da continuidade da crítica dos historiadores às pretensões omniscientes e prognósticas das filosofias da história. Em Portugal, por exemplo, uma boa expressão deste distanciamento pode ser encontrada em Alexandre Herculano, quando, na década de 1870, lembrava ao jovem Oliveira Martins que, para se ser um grande historiador, ter-se-ia de frequentar mais os arquivos e ser-se menos recetivo à sereia da filosofia da história (Vico, Herder, Hegel, Proudhon), género que, para o solitário de Vale de Lobos, não passaria “romances”, onde a síntese já está antes da análise. Se esta prevenção, inspirada em Ranke, passou pela historiografia “positivista”, ela será prolongada pela “nova história” analista, conforme se pode constatar nas críticas que Lucien Febvre e Braudel fizeram a dois epígonos do género, Spengler e Toynbee, cujas obras – A Decadência do Ocidente (1922-1926) e, em 12 volumes, Um Estudo de História (1922-1926), respetivamente – tiveram grande

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sucesso entre guerras. Ora, para aqueles historiadores, eles mais não eram que “dois filósofos oportunistas da história”. Assim sendo, será limitado pensar que a crítica às grandes metanarrativas só teve uma expressão filosófica com Nietzsche e, no século XX, com o pensamento existencialista e, mais tarde, com o ideário pós-moderno. Sem pôr em causa a importância destes contributos, é nossa atenção sublinhar que, a partir dos alvores da Modernidade, a luta pela autonomização epistémica da historiografia também implicou um combate permanente contra o peso das retrospetivas teológicas e filosóficas.

Compreende-se. A par das (ilusórias) promessas de verdade absoluta e definitiva, as filosofias da história – sucedâneos secularizados e racionalizados das teologias da história –, tal como tinha acontecido com a metafísica grega, traziam consigo a desvalorização da análise historiográfica e, consequentemente, a depreciação ontológica do concreto, do particular e mesmo do contingente. Daí a sua vocação para justificar ideologias – termo de grande futuro, criado nos inícios de Oitocentos – de pretensões sistémicas. Elevando o modelo hegeliano a matriz, a pós-modernidade – inspirada na crítica ao historicismo (filosófico e historiográfico) feita por Nietzsche – tentou desconstruir o domínio mundividencial conquistado por este tipo de metanarrativa após o Iluminismo. E, no essencial, rejeitou-o por esta razão: ele queria ditar as normas de organização dos acontecimentos e das ações humanas, através de uma diegese que encobria a postulação apriorística da finalidade e de um fim que a res gestae estaria a cumprir. Neste horizonte, esta só podia ser qualificada como a manifestação fenomenológica de uma essência que, simultaneamente, estava antes e para além do presente histórico (Miguel Ángel Cabrera Acosta, 1995).

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O historiador na “República das Letras”

Na Europa, a progressão do ideal de história-ciência também não foi estranha ao processo de hegemonização epistémica do novo “paradigma de ciência moderna” e a uma maior secularização dos agentes e dos conteúdos culturais em curso desde o Humanismo. Quer isto dizer que ela também não foi alheia ao alargamento de redes de debate e de intercâmbio que, a par das inovações ocorridas no interior das Universidades em renovação e nas Academias entretanto fundadas (séculos XVII-XVIII), deram vida a uma espécie de “República das Letras”, onde a aristocracia de mérito era avocada como critério de eleição que se sobrepunha ao da aristocracia de sangue. E, mesmo que o apoio financeiro deste novo campo intelectual se devesse, em boa parte, ao mecenato régio, a sua atividade impôs-se em nome da liberdade de pensamento e da busca da verdade.

Devido à ausência quase completa de formação historiográfica específica (em alguns países, ela esteve cingida à diplomática), muitos daqueles que faziam “investigações” sobre o passado eram (e continuarão a ser) autodidatas ou somente possuíam habilitações escolares laterais ao ofício (direito, teologia). Todavia, muitos deles foram aderindo a formas sociabilitárias próprias. Prova-o o nascimento de Academias de História (a portuguesa foi fundada em 1722, logo, ainda antes da Academia das Ciências, em 1780) e, depois, a entrada do ensino e da pesquisa histórica nas Universidades europeias, particularmente na Universidade de Berlim, onde atingiu grande repercussão o magistério de Ranke (desde 1825 até 1871). É verdade que esta última vertente não teve uma expansão homogénea. Mas, em França, as incidências políticas nas disputas à volta do Collège de France (em 1851, Michelet foi dali expulso por ter recusado jurar Napoleão III), conjugadas com um melhor conhecimento do mundo universitário teutónico, após a derrota na guerra com a Alemanha (1871), reforçaram o papel do historiador como intelectual, estatuto que, no caso francês, foi bem encarnado pela personalidade e pela obra de Jules Michelet (1798-1874). E, em Portugal, por Herculano, sobretudo para os setores mais ligados à memória da revolução liberal e, depois, ao republicanismo.

No seio dos intelectuais dos países europeus (com destaque para os do Sul), o historiador, ou melhor, os “grandes historiadores” alcançaram relevância na

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“República das Letras” oitocentista, mormente aqueles que, ao seu prestígio moral e de ofício, acrescentavam a fama alcançada no domínio da literatura, como aconteceu com Herculano, não por acaso, logo panteonizado, nos Jerónimos, poucos anos depois da sua morte (1888). Assim, a par dos poetas e dos romancistas, os servidores de Clio começaram a ser vistos como clercs, isto é, como detentores de um saber que teria mais capacidade, em função dos ensinamentos do passado, não só para diagnosticar os males que, no presente, teriam levado a Pátria à decadência, mas também para prognosticar a sua regeneração. Por isso, eram ouvidos como oráculos dos destinos do mundo. Recorde-se que, em Portugal, nos inícios da década de 1870, alguns jovens intelectuais e outros admiradores iam consultar Herculano em Vale de Lobos, como os antigos gregos tinham ido a Delfos!

A busca da veracidade enquanto ato patriótico

Depois do que ficou escrito, será útil indagar como é que o crescente interesse dos Estados-nação pela história se compatibilizou com as exigências de objetividade que os mais significativos historiadores oitocentistas reivindicavam. Questão pertinente, porque a procura dessa conciliação esteve intimamente correlacionada com o trabalho de “nacionalização” das “almas”. E o liame entre os dois níveis encontra-se bem patente no lançamento, nos princípios de Oitocentos, de “Histórias Monumentais”. Com efeito, pensado em 1814 por Savigny e Stein, o primeiro volume da pioneira Monumenta Germaniae Historica só surgiu em 1826, dirigido por Pertz e sob este significativo lema: sanctus amor patriae dat animum. Com isso, a nova historiografia queria transmitir esta lição – a verdade sobre a origem das nações (culturais e políticas) teria de resultar, antes de qualquer síntese, da análise de documentos erística e hermeneuticamente certificados. E o modelo será seguido em Espanha, França e Itália. Um pouco mais tarde, o mesmo acontecerá em Portugal, fruto do trabalho beneditino de Herculano e do apoio da Academia Real das Ciências de Lisboa (a Academia Real da História tinha fechado portas em 1776). De facto, também aqui a inspiração foi alemã, conforme se prova pela importação da divisa escolhida para a Portugaliae Monumenta Historica (1856-1873):

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“Movido pelo amor da patria”.O entusiamo desencadeado pela crença na possibilidade de se atingir um

saber objetivo era explicitamente assumido. Recorrendo ainda a Herculano, poder-se-á concluir que, naquela época de desestruturação da sociedade de Antigo Regime, pugnar pela verdade histórica seria um ato patriótico (como ele mesmo fez em relação ao milagre de Ourique). Porém, não deixava de avisar que, se o patriotismo podia “aviventar o estilo” de quem escreve, ele também é um “péssimo conselheiro do historiador. Quantas vezes, levado de tão mau guia, ele vê os factos através do prisma das preocupações nacionais, e nem sequer suspeita que o mundo se rirá, não só dele, o que pouco importara, mas também da credulidade e ignorância do seu país, o qual desonrou, crendo exaltá-lo”. Como quem diz: o patriotismo nacional mal compreendido é um obstáculo à abertura do espírito à máxima objetividade possível.

Dir-se-ia que, na era da cientificação, o cultivo da atitude crítica seria bem mais patriótico do que a reprodução de ideias feitas e de mitos herdados da tradição, por mais que estes fossem alicerce das cada vez mais sacralizadas identidades nacionais. Só nesta ótica faria sentido acreditar que, na era da fé racionalista na irreversibilidade do tempo histórico, o apotegma historia magistra vitae incentivava a “corrigir e alumiar o presente pelas lições da história”. Daí a conclusão de Herculano: “a propagação das obras históricas dos fastos de uma nação em um povo pequeno pelo território e pelos recursos físicos e materiais é, em meu entender, ainda mais importante do que nas grandes nações. Nas pequenas é necessário que o amor da pátria supra a pequenez física, enquanto nas grandes nações o mesmo prestígio da sua força e grandeza as faz respeitar, mesmo nas épocas da sua decadência ou de dissolução civil pelas reações ou convulsões políticas”.

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III

Assim, entende-se por que é que a história-ciência também teve (e tem) de concorrer com a história-memória e por que é que a primeira não pôde ficar indiferente à refundação das memórias nacionais, no contexto quer da liquidação das referências simbólicas e afetivas sobreviventes do Antigo Regime, quer da reformulação de uma memória histórica empenhada no enraizamento da ideia de nação como comunidade política de origem e de destino. Esta, sobretudo na sua qualificação matricial como Pátria, tornou-se no principal actante das narrativas históricas de vocação didática, o que – como, em França, a trama do célebre Petit Lavisse bem demonstra – lhes imprimiu um finalismo ingénuo, ou melhor, uma espécie de destino manifesto onde, desde os seus primórdios, a nação já potenciaria aquilo que a res gestae foi objetivando no decurso dos séculos. Por isso, o seu estilo tinha de ser épico, e o seu enredo urdido por critérios em que o exaltado encobria o muito que se queria esquecer.

A nação e o esquecimento

Mesmo as sociedades políticas alicerçadas no pacto social e, portanto, mais reivindicadoras das ideias de rutura não prescindiram da invocação de memórias para se legitimarem, nem que fosse recalcando tudo o que podia fazer diminuir a sua autoestima. De onde o grande aviso que, em 1882, E. Renan (O que é Uma Nação?) nos deixou acerca da necessidade que as narrativas identitárias da nação moderna – um “plebiscito de todos os dias” – têm de silenciar a violência que sempre acompanha a sua génese, amnésia que explica a hostilidade com que, comummente, os mitólogos da nação olham para a história-investigada. Ouçamos Renan: “o esquecimento e mesmo o erro histórico são um fator essencial na criação de uma nação. E é por isso que, frequentemente, o progresso dos estudos históricos representa um perigo para a ideia de nação. De facto, a investigação histórica traz de volta, à luz, os atos de violência que ocorreram na origem de todas as formações,

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mesmo daquelas cujas consequências foram mais benéficas”. Daí que, também nesta matéria, o historiador deva ser um atento caçador de esqueletos escondidos no recôndito dos armários da memória.

A história da historiografia mostra que as políticas da memória postas em prática, desde a segunda metade do século XIX, pelos Estados-nação acentuaram as exaltações (e os recalcamentos). Um bom indicador da materialização desta nova “sociedade-memória” oitocentista encontra-se nos investimentos que passaram a ser feitos em inúmeras e calendarizadas ritualizações da história. E a estas teatralizações socializadoras ter-se-á de somar a socialização interna das narrativas nacionais realizada através da institucionalização de um ensino baseado nas manualizações oficiais (ou oficiosas) da história pátria, meio através do qual, epicamente, se contava a história de um povo como se de uma olímpica galeria panteónica se tratasse. E, independentemente dos seus propósitos, a chamada história-crítica acabou por ser posta ao serviço da credibilização da história-ensinada.

Na verdade, a historiografia, com as suas escolhas, valorizações e esquecimentos, gerou (e gera) a “fabricação” tanto de memórias como de silenciamentos (voluntários ou involuntários), pois, devido à sua cumplicidade, direta ou indireta, com o sistema educativo e, hoje, com a apropriação mediática das representificações do passado, ela contribuiu (e contribui) para a perda ou para a secundarização de memórias anteriores, assim como para a refundação, socialização e interiorização de novas memórias, particularmente nas suas configurações como memórias históricas e, dentro destas, como memórias nacionais O que se compreende. Bem vistas as coisas, o fim último da “operação historiográfica” (Michel de Certeau, Paul Ricoeur), sendo prioritariamente cognitivo, também visa produzir um conhecimento destinado a ser aprendido, rememorado e comemorado. Assim sendo, não admira que a história-investigada esteja atravessada por esta dupla realidade: por um lado, procura atingir a máxima veracidade possível; mas, por outro lado, tem de se defrontar, crítica e autocriticamente, com o carácter “misturado” e aporético do saber que produz (Jean-Clément Martin).

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O historiador na cidade; a cidade no historiador

A vigilância crítica (e autocrítica) inerente à prática do historiador-epistemólogo que todo o investigador deve ser ensinou-lhe a não se entusiasmar com as sereias cientificistas e a não se deixar seduzir com o anúncio do “regresso” da historiografia às “Belas-Letras”. E, em simultâneo, deu-lhe sensibilidade para estar atento à atual vertigem ficcionista do passado, como se o saber explicativo-compreensivista sobre o que já não é – inevitavelmente um “produto do raciocínio” – pudesse ser substituído pelo “fetiche da imagem”. Por outro lado, a pluralização de veículos e de modos de contar também patenteia esta outra realidade: hoje, o historiador não tem mais – aliás, nunca teve – o monopólio das representações do passado, circunstância que ele mesmo deve transformar em objeto de estudo.

No entanto, a especificidade da retrospetiva historiográfica exige um contrato de veridição, postulado sem o qual o seu modo de narrar conduz à confusão dos efeitos estéticos sem limites, como acontece na “imaginação estética”, com os efeitos cognitivos que a “imaginação histórica”, sempre sujeita ao imperativo da prova, tem de perseguir. Porém, a reflexão epistemológica também revela que a investigação ocorre sempre em tempo(s) e em lugar(es) determinados, incluindo os das intermediações institucionais e de “escola”. Estas mediações repercutem-se logo na “fantasia” (Joana Duarte Bernardes), atividade que desencadeia a inquirição que leva do traço ao documento, do documento à seleção e “construção” dos factos, e da concatenação destes às explicações e/ou compreensões do objeto, escalas percorridas sob o omnipresente “olhar epistémico” do “recetor”, erradamente suposto como instância que somente está fora e a jusante, e não, desde o início, dentro da “operação”.

Diz-se, pelo menos desde B. Croce, que as questões que interrogam os traços para os transformar em documentos fiáveis – qualquer que seja o seu suporte – são, em última análise, problemas do tempo do historiador. Mesmo a história antiga é “história contemporânea”, perspetiva que só não cairá no anacronismo se conseguir criar distanciamentos conducentes à apreensão de semelhanças e, sobretudo, de diferenças entre o passado-presente e o presente-futuro. E basta sopesar esta tensão para não se ter dúvidas de que, como as outras práticas científicas, a historiografia

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também é um saber socialmente condicionado. Porém, mais do que qualquer outro, ele tem de assumir esse estatuto, pois seria contraditório considerar que tudo o que, consciente ou inconscientemente, é vestígio da ação humana no tempo pode ser historiável e negar, para si, a aplicação deste ditame.

Neste quadro, será excessivo defender a existência de um dualismo entre o historiador e a cidade. Ao reivindicar um papel ativo na produção do conhecimento, ele sabe que não é um eu puro, transparente a si mesmo, mas um sujeito pré-ocupado, fruto da socialização. Por outro lado, também sabe que, independentemente de ter ou não recebido formação específica, só quem possui alguma cultura histórica pode colocar perguntas historiográficas, elo umbilical logo manifestado na e como linguagem, isto é, como escrita a ser lida por um público e, antes de tudo, pelos seus pares. Destarte, se o historiador está dentro da polis, a cidade também está dentro do historiador. A comunicação do investigado seria incompreensível e desumanizada se fosse expressa numa nomenclatura (como a química), ou por um novo tipo de esperanto. Não por acaso, Mnémosine, mãe de Clio, também foi a criadora da linguagem e das palavras. E a história só pode representificar o passado na linguagem da vida, produto social por excelência, porque só os vivos podem fazer falar e interpretar os traços que nos chegaram do que já foi. Portanto, o historiador, por mais conceptualista que seja, não pode deixar de provar o sabor conotativo das palavras.

Mnémosine, mãe de Clio

Um bom exemplo dos dilemas criados pela condicionalidade assinalada encontra-se no longo debate que, nas últimas décadas, tem discutido o problema das correlações existentes entre a memória e a historiografia. Entende-se. Bem vistas as coisas, ambas aspiram, pelo menos, ao verosímil. No entanto, se as narrativas da primeira são seletivas, socialmente diversificadas e imbuídas de sacralidade e de acriticismo, as da segunda foram-se impondo contra o mito, contra a memória e contra as metafísicas de vária índole, em nome de uma atitude metódica e racional que, por isso, foi secularizando a explicação do passado (M. Halbawchs, Lucien Febvre, Marrou). De onde, para muitos, a existência de uma separação, radical para

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uns e relativa para outros (P. Nora), entre as duas retrospetivas. Para nós, o nexo entre memória e historiografia é “indeciso” porque é feito

de semelhanças e de diferenças que merecem ser relevadas. Como o historiador não pode deixar de ser um sujeito pré-ocupado, a sua problematização já nasce no seio de interiorização de várias memórias (sociais, familiares, locais, regionais, nacionais, transnacionais, etc.), incluindo aquelas que, de um modo mais espontâneo ou mais específico, inoculam ideias, valores e representações caraterísticas da cultura histórica.

Significa isto que, se a memória está antes da história-investigada, esta também pode ser usada como artífice de memórias. Relembre-se que as “investigações” heroditianas foram redigidas para serem uma ars memoriae, e sabe-se que a pretensão cognitiva do texto historiográfico não pode impedir que a sua receção ultrapasse a intencionalidade autoral de quem o escreveu. Por outro lado, as suas conclusões também podem ser descontextualizadas e inseridas em narrativas que têm por função principal a socialização da mente, em particular através do sistema educativo. De facto, a manualização da história-ensinável foi um dos principais instrumentos das políticas de memória dos novos Estados-nação modernos. E, em algumas das suas melhores expressões – como, depois de 1884, aconteceu com as reedições de milhões de exemplares do já citado Petit Lavisse –, este trânsito foi feito por muitos historiadores, não obstante essa tarefa caber, sobretudo, a intelectuais intermediadores, situados entre a especialização da história-investigada e a história contada sob o imperativo do didatismo e de uma regulação política.

Os principais interessados na utilização “monumental” da história-investigada foram (e são) os “sujeitos coletivos” empenhados em “inventar” ou em “reescrever”, com intuitos de legitimação e de reconhecimento identitário, o seu próprio passado. Desde a dimensão auto e biográfica, passando pela família e respetivas linhagens, pelas instituições, pelos poderes (local, regional e nacional), pelos grupos socioprofissionais, pela Igreja, pelas organizações políticas e de classe, muitos foram (e são) os agentes (diretos e indiretos) da construção e reprodução de memórias. No entanto, não temos dúvidas de que, nos últimos dois séculos, todos eles foram sendo sobredeterminados pelas políticas de memória perseguidas, direta ou indiretamente, pelo Estado-nação, incluindo os de orientação mais liberal. Percebe-se. No Ocidente, as comunidades politicamente organizadas,

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para exercerem a sua soberania sobre um determinado território e sobre uma dada população, tiveram de reforçar a centralidade burocrático-racional da sua governância e, a partir dos meados dos séculos XVII-XVIII, investiram mais na demarcação das suas fronteiras e em políticas conducentes à interiorização de ideias, símbolos e ritos suscitadores de reconhecimentos identitários, de distinção e de sentido. Daí o crescente valor que, apesar das suas diversidades e dos seus conflitos internos, foi atribuído à chamada memória histórica e, sobretudo, à memória nacional na “fabricação” do consenso social.

Definimos a primeira como uma compartilha que enfatiza não só a sacralidade do território e da população (transformando-a em “povo”), mas, sobremaneira, o percurso temporal das comunidades políticas, revivificado pelas evocações positivas de “grandes homens” e de grandes acontecimentos, postas ao serviço da construção da autoestima e da assunção da nação como uma comunidade de destino. Porém, facilmente se aceita que o discurso historiográfico não deve ter essa função, pois esse é o papel das lendas, exemplaridades e exortações cantadas em prosa, em verso e/ou em imagens, sem qualquer exigência supletiva de comprovação. Daí, também, que a memória histórica seja mais antiga e mais extensa do que a memória nacional.

Esta ilação parece-nos óbvia, porque a própria ideia de nação é, para muitos, uma construção recente (século XVIII). Contudo, para outros, o seu uso será um pouco mais antigo, pelo menos enquanto referência a uma totalidade quase mística que exprime, mais do que vocábulos como “Estado”, uma pertença unificante e comunitária que se autorreconhece ou que aspira a ser reconhecida (a “nação cultural” pode existir antes de ser Estado) como uma sociedade politicamente autónoma. Seja na aceção alemã de “nação cultural” e de “nação orgânica” (Herder), seja na sua caraterização como “nação cívica e pactual” (Rousseau, Revolução Francesa, Revolução Americana), os factos mostram que a sua génese, mesmo quando justificada em termos contratualistas, também utilizou legitimações de inspiração histórica. E, no quadro da episteme e da experiência moderna do tempo, esta necessidade de enraizamento incentivou a investigação e a divulgação paidética da história, cabouco do consenso nacional.

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Do nacional ao pós-nacional

Na Europa, nunca como desde o século XIX até boa parte do século XX a historiografia foi tão utilizada como ars memoriae, por vários agentes, com relevo para os ligados à “educação nacional” (designação que surgiu em França, em 1763, criada por La Chalotais). Não se contesta a importância de se equacionar a compreensão do uso da memória no contexto das conflitualidades político-ideológicas que aumentaram com o desenvolvimento capitalista e com as suas incidências (externas e internas). Mas é um facto que o trabalho de nacionalização, liderado por um Estado cada vez mais pedagogo, também foi revelando poder para implantar consensos e para tornar transversais, à sucessão dos regimes políticos e das respetivas ideologias, os núcleos duros das mitologias nacionais. (Em Portugal, esta caraterística encontra-se bem expressa, desde o século XIX até hoje, no peso que, naquelas, tem a visão épica dos Descobrimentos). Não admira. O ensino da história passou a ser, explícita ou implicitamente, assunto de Estado, e não só nos regimes nacionalistas e ditatoriais, atenção que ainda hoje perdura. Recorde-se que os próprios Estados Unidos da América se interessam pela matéria – veja-se a doutrina expendida nos célebres National Standars for History – e que, a partir do Iluminismo, ela sempre foi uma constante preocupação francesa, realidade que, nas últimas três décadas do século XIX, a cultura política da III República, com a sua “revolução escolar”, prolongou até aos nossos dias.

Porém, a base científica da história-investigada não está livre de equívocos em relação à história-ensinada, pois os respetivos contextos narrativos são, ou devem ser, autónomos, tanto mais que as escolhas oficiais podem condicionar a produção científica, particularmente quando aparecem desfasamentos entre o que se investiga e a orientação política que condiciona a produção e socialização da memória nacional. E um bom exemplo deste embate encontra-se na intervenção que, em 31 de maio de 1983, o Presidente da República francesa, François Mitterrand, fez, em pleno Conselho de Ministros, ao declarar-se angustiado “perante as carências do ensino histórico que conduzem à perda de memória das novas gerações”.

O problema em causa não tinha só a ver com a carga horária da disciplina nos currículos do ensino secundário, mas também com os conteúdos da sua manualização.

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Estes, ao acolherem perspetivas oriundas da vanguarda da história-investigada – a história económico-social e estrutural da época –, estariam a afastar-se da tradição republicana, ao secundarizarem a trama e as suas encarnações personalizadas e civicamente exemplares. Modo de dizer que aquele tipo de fazer historiografia era um obstáculo à apropriação moderna do preceito historia magistra vitae (assente no empolamento linear da relação entre causas e efeitos, ou entre antecedentes e consequentes). A emergência de uma historiografia estrutural, aparentemente sem heróis e que punha em ação escalas temporais que consentiam imobilidades, mas também ruturas, colidiria com a evolução psicofísica dos alunos, pelo que manuais como o Petit Lavisse – o “évangile républicain”, escrito por um historiador que ganhou o estatuto de “instituteur national” (P. Nora) – seriam mais adequados à interiorização da memória nacional.

O consórcio entre historiografia e nação tinha crescido no decurso do século XIX, incrementado por políticas de memória (ensinadas e ritualizadas) de cunho identitário. Mas ele também se repercutiu nos problemas a investigar, com relevo para os de índole política. No entanto, a acelerada intercomunicabilidade, a todos os níveis da vida, entre os povos, bem como o impacto provocado por outras ciências sociais, foram igualmente patenteando a fragilidade epistémica das demarcações nacionais na investigação histórica, sobretudo quando as questões económicas, demográficas, sociais, étnico-culturais, de género se traduziram na escolha dos problemas, dos métodos, das fontes e das escalas temporais e espaciais a pesquisar. Dificilmente os “complexos histórico-geográficos” (Magalhães Godinho), muitos deles entificados (o Mediterrâneo, o Atlântico, o Pacífico, o Mar da China, etc.) e representados como “sujeitos coletivos” de dimensão transnacional, poderiam coincidir com os mapas desenhados pela geografia política. Não restam dúvidas de que as alterações de problemas, de escalas e de metodologias (mormente as de teor quantitativo) contribuíram para “desnacionalizar” e “despolitizar” o “questionário” historiográfico.

Claro que o avanço da globalização e o aumento do poderio político e económico de Estado-nação-continente (EUA, Rússia, China, etc.), assim como o surto da sociedade de informação e as modificações ocorridas na circulação de mercadorias, pessoas e ideias, são fatores que têm erodido a soberania dos Estados-nação clássicos, gerando desterritorializações várias e respostas de

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âmbito pós-nacional. Mas será interessante frisar que esta tendência é uma realidade de dupla direção: se, por um lado, ela coexiste com a construção de novas territorializações (reais ou imaginárias) ajustadas aos novos reordenamentos transnacionais (exemplo: os investimentos feitos à volta da socialização da ideia e identidade europeias), por outro lado, ela também está atravessada por contrarrespostas (regionalistas, nacionalistas) que pretendem reforçar, ou “restaurar”, identidades tidas por perdidas ou ameaçadas. (Algumas, mais recentes, estão empenhadas em dar força a uma alternativa neonacionalista, escudada numa conceção essencialista ou primordial-historicista da identidade nacional.) E, como é compreensível, tudo isto está a ter grande impacto quer no que se investiga, quer ao nível das inserções institucionais, das escalas e dos lugares de onde e para quem o historiador “fala”, bem como no âmbito dos conflitos de interpretação.

Neste contexto, os laços dos indivíduos com a cidade e com a cidadania tornaram-se mais complexos. Daí que, se há sinais de “regresso” de conceções fixistas e essencialistas, para muitos as identidades continuam a ser entendidas como um construto indissociável da permanente coabitação de memórias no eu de cada indivíduo. E, se o quadro nacional ainda sobrevive como referência, o desenvolvimento de sociedades mais complexas tem dado igualmente lugar à reinvenção do local, do regional, do multicultural e mesmo do transnacional, tópicos que se têm projetado no campo historiográfico e na tendência para a internacionalização dos projetos de investigação, mesmo no que toca às fontes de financiamento e de avaliação. De onde também estar a ocorrer, sob o efeito da aplicação de políticas que têm nas “ciências duras” a sua referência e prioridade, à gradual perda da mediação autoral da escrita da história, a favor da pesquisa grupal e em rede, como se aquela também não fosse conteúdo.

Não se afirma que o historiador deixou de ser um “autor”, ou um “intelectual”, mas insinua-se que esse estatuto, pelo menos em países como a França, a Alemanha, a Espanha e mesmo Portugal, mudou ou já foi mais forte. A hegemonia da cultura científico-técnica, o crescimento da sociedade informática e da consequente retração do impresso, a predominância da crença no poder prognóstico das explicações económicas, a mercantilização inerente à democratização de uma cultura de massas e de uma sociedade de espetáculo são alguns dos fatores que têm feito diminuir o

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reconhecimento do magistério do clerc enquanto consciência crítica e moral da cidade.Por sua vez, quer a perda do lugar quase exclusivo da escrita, a favor

do império da imagem, nas representações do passado, quer o aumento da profissionalização do ofício até aos inícios do século XXI enfraqueceram o estatuto do historiador como escritor e favoreceram, nos últimos tempos, o aparecimento do comunicador-divulgador – um novo tipo de “intelectual público”, que “habita” o não-território das televisões e das livrarias de aeroporto –, bem como o florescimento das ficcionalizações historicistas. E a presença no espaço público (cada vez mais virtual e desterritorializado) de intermediações massificadoras, por via da escrita ou do audiovisual, conjugada, no plano da história-investigada, com a do trabalho grupal e em rede, têm feito do historiador-autor um sobrevivente face a critérios de avaliação que tendem a formatar o perfil do investigador e, ainda que indiretamente, o conteúdo do que será conveniente investigar.

Pensando bem, hoje, o conhecimento historiográfico está numa atitude dominantemente defensiva, não só perante as chamadas ciências duras, mas também no que toca ao conjunto das ciências sociais e humanas. Devido aos modelos civilizacionais dominantes, as primeiras são prioritárias na planificação e orçamentação das políticas científicas dos Estados (e de muitas organizações internacionais), menorizando o apoio às segundas, o que dificulta a afirmação, sem complexos, do insubstituível valor destas últimas. Porém, conflitos análogos se detetam no interior do próprio campo das ciências humanas, lugar onde o combate pelo reconhecimento também surge subordinado aos “conhecimentos úteis”, exigência um pouco contraditória com a necessária procura “desinteressada” do saber e com as competências que a historiografia ajuda a exercitar.

Por outro lado, descredibilizado o valor cognitivo das teleologias sobre o devir humano, e incorporadas as lições oriundas das ciências físicas acerca da existência de contingências e de acasos nos fenómenos naturais, as mais avisadas teorias contemporâneas da historiografia têm sido cautelosas quanto ao poder prognóstico do conhecimento do passado, devido à índole complexa e irreversível das singularidades e da diacronia social. Daí que, à luz da experiência contemporânea do tempo, o preceito historia magistra vitae soe a muitos como uma falácia, sensação que se baseia num equívoco. De onde este paradoxo, hoje detetável em vários

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países: por um lado, nunca se falou tanto de história, de identidades e de património, mas, por outro lado, tanto a história-investigada, como a história-ensinada estão a ser vítimas de uma desvalia por parte dos poderes hegemónicos, como se as suas competências científicas fossem dispensáveis na vida da polis. Em certo sentido, parece que, quanto mais cresce a ilusão do presentismo – expetativa que se limita a pugnar pela permanente reprodução do presente tal como ele é e está –, mais se desvaloriza a aprendizagem do raciocínio histórico.

Percebe-se. Como Langlois já tinha reconhecido nos inícios do século XX, a historiografia também é “uma ciência de raciocínios”, porque, para construir abstrações, ela tem de “inventar” problemas e de ler os traços deixados pelo passado, mediante o exercício da analogia, da comparação e da relativização, tendo em vista encontrar explicações/compreensões que não confundam a sua escrutinada base objetiva com a sua inevitável pluralidade de interpretações. E, sem saudades de paradigmas não há muito perdidos, e aberta a uma epistemologia da complexidade, a sua prática incomoda porque desdogmatiza e desconstrói a hodierna ilusão ocidental de a-historicidade que enforma a mundividência da sociedade de consumo dos nossos dias.

A este propósito, convém recordar que nem sempre foram fáceis as relações dos historiadores com as respetivas polis, principalmente em tempos escuros de tirania e de fanatismo, como aqueles que, em 1851, expulsaram Guizot e Michelet do Collège de France e que, na II Guerra Mundial, levaram Marc Bloch ao fuzilamento pelos nazis (em 16 de junho de 1944). Mas esta tensão é antiga, embora as razões em causa não sejam uniformes. Por exemplo, os historiadores romanos do Império escreveram mais sobre e para os Césares do que para a civitas, enquanto os seus precursores gregos exerceram o seu mister de uma maneira mais autónoma e independente. Porém, muitos deles, e dos mais significativos, foram não só irrequietos viajantes, mas também vítimas de exílios, uns voluntários, outros ditados por poderes vários. Aconteceu, entre outros, com Heródoto, Tucídides, Xenofonte de Atenas e Teopomo de Quios, historiadores que estavam fora das respetivas cidades de origem quando escreveram as suas obras mais relevantes. F. Hartog comparou esta condição à dos velhos aedos. Como estes, as suas deambulações e distanciamentos forneceram-lhes informações desconhecidas e abriram-lhes

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horizontes mais amplos e comparativos, experiência de vida que os tornou mais sensíveis ao distanciamento cognitivo face à alteridade e à equanimidade possíveis. (A este propósito, recorde-se que Heródoto foi acusado de ser mentiroso e amigo dos “bárbaros” por historiadores como Éforo e, mais tarde, por Clésias). Em síntese, segundo Hartog, na Antiguidade, o historiador foi, antes de tudo, um caminhante e um exilado: Heródoto esteve exilado em Halicarnasso, Tucídides em Atenas, Políbio em Roma. Outros sofreram uma espécie de exílio interior, ou viveram como vencidos. Por tudo isto, nem todos escreveram a história dos vencedores.

Em síntese, como a finalidade da historiografia é narrar o verídico (a Verdade é uma impossibilidade transcendental), continua atual a sua velha aspiração à conquista de conhecimentos que, apesar de serem sempre inconclusos, adestrem a consciência crítica e formem o pensamento para tomadas de decisão, em particular as de teor político, que não se esqueçam de contextualizar, para melhor situarem os indivíduos e as sociedades no relativo relativismo do(s) espaço(s) e do(s) tempo(s). Só assim o uso da história não será a-histórico. Mas a historiografia também não pode ser confundida com o eruditismo e com o bric-à-brac, notas caraterizadoras da sabença. Ela tem de ser cultivada, apreendida e interiorizada como sabedoria, ou melhor, como sagesse. Isto é, tem de postular um contrato deontológico com a veracidade, compromisso cívico fundamental para se poder desmistificar a mentira e mostrar por que é que, mesmo aqueles que anunciam a entrada na era da pós-verdade, o fazem convictos de que (ainda) estão a ser verdadeiros.

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H I S T O I R E G L O B A L E ,H I S T O I R E N A T I O N A L E ?

C O M M E N T R É C O N C I L I E RR E C H E R C H E E T P É D A G O G I E

Christophe Charle

Professeur d’histoire contemporaine à l’Université Paris 1Membre honoraire de l’Institut Universitaire de France

L’histoire en tant que science humaine et sociale a toujours été partagée entre plusieurs options qui ont créé des traditions historiographiques de plus en plus divergentes.

La première est son ancrage dans des espaces et des périodes bien déli-mités dans un souci de mener des enquêtes exhaustives, collant au plus près des sources et des problématiques des différentes aires culturelles. Une large partie des découpages des postes universitaires, des classements de la production, des revues spécialisées obéit à cet impératif et est fortement soutenue par la demande sociale ou les impératifs mémoriels proposés par les Etats nations. La seconde,

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fort ancienne également, puisqu’on peut lui trouver comme précurseurs illustres, Voltaire (Essai sur les mœurs), Montesquieu (L’Esprit des lois) ou Guizot (Histoire de la civilisation en Europe), avant que « l’Ecole des Annales » ne la reprenne à son compte, vise, au contraire, à traverser les frontières temporelles et géographiques et à poser les fondements d’une sociologie historique, d’une économie historique, voire d’une histoire comparée ou transversale des cultures.

Selon les conjonctures historiographiques, la tension ou l’équilibre entre ces deux options est plus ou moins visible ou gérable. Les quarante dernières années ont vu ce conflit renaître et les deux options ont même parfois été successivement défendues par les mêmes historiens. Au sein de la deuxième option, qui renaît de-puis une quinzaine d’années, une nouvelle approche conteste l’ancienne perspective comparatiste au nom de nouveaux paradigmes comme l’histoire transnationale, l’histoire globale, ou encore croisée. Elle ajoute ainsi un conflit subsidiaire au sein d’un pôle historiographique déjà structurellement dominé dans l’espace univer-sitaire comme dans l’espace public. Celui-ci se heurte en outre aux politiques de recherche de plus en plus interventionnistes qui entendent dicter leurs priorités (le plus souvent présentistes et nationales) à l’agenda des chercheurs s’efforçant encore de sortir des sentiers battus.

A cette tension d’orientation fondamentale s’en ajoute une autre. L’histoire nationale depuis le XIXe siècle a été mise au service de la construction des iden-tités dans chaque pays, qu’il soit ancien ou récent. Mais en France, comme dans la plupart des pays européens voire d’autres continents (on peut penser au Québec, au Japon, à la Chine), il semble qu’on soit revenu à l’ère des polémiques à propos des fonctions de l’histoire nationale. Dans les décennies 1960-80, les historiens partisans d’approches non exclusivement nationales ont cru faire avancer leurs idées dans l’espace public et ont réussi à ouvrir certains niveaux d’enseignements aux approches moins conventionnelles que celles héritées du XIXe siècle ou du premier XXe siècle. En revanche l’air du temps politique, le bouleversement des équilibres mondiaux, les anxiétés face à un avenir dont les schémas anciens ne parviennent plus à rendre compte, les simplifications qu’autorisent les discours publics dans les médias instantanés, ont placé sur la défensive ce qu’on appelait naguère la « nouvelle histoire », ce qu’on appelle dans les sphères savantes les plus avancées « l’histoire

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globale » ou l’histoire transnationale.En France des arguments contre cette histoire avaient déjà été lancés lors de

la première querelle autour des programmes du second degré dans les années 1980. Hier comme aujourd’hui, les formes d’histoire déconnectées du « terreau national » sont rendues responsables de la dépolitisation des nouvelles générations, du manque de civisme, du délitement de la conscience d’appartenance à un espace plus vaste et du repli sur des espaces sociaux ou géographiques plus étroits. Ce débat a eu lieu à nouveau sous la présidence de Nicolas Sarkozy autour du projet de Maison de l’histoire de France où se sont affrontés historiens « enracinés » et « déracinés », tenants d’une histoire à finalité fonctionnelle et identitaire et partisans de l’ouverture aux grands espaces et aux nouveaux questionnaires.

Ces palinodies soulignent qu’en réalité ces oppositions apparemment incon-ciliables entre deux perspectives historiques reposent sur des instrumentalisations idéologiques de projets historiographiques beaucoup moins incompatibles que les tenants du retour à une tradition mythifiée ne l’affirment. Tous les travaux, qu’ils partent d’un point de vue national ou, à l’inverse, cherchent à y échapper finissent par être obligés de prendre en compte la perspective inverse et doivent tenir compte de l’interdépendance et l’interconnexion des histoires nationales (tout particulière-ment en Europe, mais pas seulement). Réciproquement, aucune approche globale, si déterritorialisée soit-elle, ne peut gommer les discontinuités historiques ou géo-graphiques, les relations de domination fondées sur des espaces privilégiés dispo-sant d’une autonomie relative (qu’il s’agisse d’une ville État, d’un Empire, d’une communauté linguistique, d’une aire culturelle ou religieuse, etc.). Après avoir rap-pelé les évolutions de l’histoire comparée et de l’histoire globale (I), je vais essayer de montrer pour l’approche nationale comme pour l’approche globale les réelles complémentarités existantes (II) avant d’essayer d’en tirer quelques conséquences historiographiques et pédagogiques (III).

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Histoire nationale, histoire comparée, histoire globale: rivalités et incertitudesDeux bilans (1995-2010)

Il y presque vingt ans, en 1995, à l’occasion du Congrès international des sciences historiques qui devait avoir lieu à Montréal en août, François Bédarida, à l’époque secrétaire général du Comité international des sciences historiques, avait dirigé un ouvrage où il avait proposé à un ensemble d’historiens de sensibilités et de spécialité différentes de dresser un bilan d’ensemble de la discipline couvrant la période de 50 ans depuis la guerre1. L’ouvrage comportait une section entière sur la méthodologie historique et les sciences sociales, avec des contributions sur la philosophie et l’histoire due à Roger Chartier, sur l’anthropologie historique d’André Burguière, sur l’approche régionale de Michel Denis et sur l’internationalisation de la recherche et de l’écriture de l’histoire par Maurice Aymard. Une section entière était consacrée à la situation de l’histoire dans la société avec quatre contributions et une autre à la logistique de la recherche en quatre chapitres également. Enfin une sixième partie demandait à des historiens d’autres pays (Russie, Grande-Bretagne, Allemagne, Inde et Italie) d’apprécier l’historiographie française. A l’occasion du Congrès des sciences historiques d’Amsterdam d’août 2010, un ouvrage analogue dirigé par Jean-François Sirinelli a tenté d’opérer un bilan analogue pour les quinze années suivantes2. Bien que l’on retrouve dans les tables des matières des deux livres bilans trois signatures communes, celles de Roger Chartier, Jean-Paul Demoule et Jean-François Sirinelli, ce qui frappe c’est à la fois le changement de génération, la légère féminisation des auteurs mais paradoxalement aussi la moindre ambition des thèmes abordés et des perspectives ouvertes.

L’histoire sociale analysée par Arlette Farge en 1995 a disparu corps et biens. L’histoire économique, évoquée alors par Alain Plessis, est désignée indirectement sous l’étiquette « Production, consommation, échange » par le médiéviste Mathieu Arnoux. La démographie historique qui bénéficiait encore d’une certaine aura il

1 BÉDARIDA François (dir.) - L’histoire et le métier d’historien en France 1945-1995. Paris: Editions de la MSH, 1995.2 SIRINELLI Jean-François, CAUCHY Pascal, GAUVARD Claude (dir.) - Les historiens français à l’œuvre. Paris: PUF, « Le nœud gordien », 2010.

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y a quinze ans ne figure plus comme branche de l’histoire. L’histoire militaire, traitée par le médiéviste Philippe Contamine, a laissé la place à un chapitre plus restreint sur la violence, confié à Stéphane Audoin-Rouzeau. Cinq découpages seulement restent intouchés entre les deux bilans : l’histoire politique (avec deux contributions), l’histoire religieuse, l’histoire des relations internationales, l’histoire culturelle et l’histoire des sciences et des techniques. L’histoire coloniale, pourtant en plein renouveau à travers l’histoire impériale et l’histoire post-coloniale3, est oubliée au profit d’un bref regard sur les historiens français et les mondialisations, rédigé de manière assez polémique par Olivier Pétré-Grenouilleau4. La seule innovation de l’historiographie qui manquait cruellement dans le bilan de 1995, l’histoire du genre, a droit à un chapitre confié à Christine Bard, ce qui conforte la part plus importante des femmes déjà notée dans la répartition plus équitable des rédacteurs entre les deux sexes5.

Au delà de cette comptabilité un peu réductrice, il apparaît que l’historiographie française, telle que les instances représentatives la présentent à l’échelle internationale, n’a guère bougé dans ces cadres thématiques ou, quand elle l’a fait, c’est sur les marges, de manière plutôt défensive ou en s’inspirant de courants étrangers. Stéphane Audoin-Rouzeau comme Christine Bard soulignent toute l’influence et l’attraction exercées par les recherches anglophones sur leurs deux thématiques nouvelles, la violence et le genre. Les fondamentaux de la discipline liés à l’histoire nationale, eux servent de môles fixes, et fournissent le gros des thèses, des manuels et des programmes d’enseignement à tous les niveaux : la politique, la religion, la culture, les rapports entre les Etats. Le dialogue avec les autres sciences sociales (la disparition de l’histoire sociale est significative), l’approche comparative (très rapidement mentionnée dans le chapitre sur l’histoire contemporaine6), l’anthropologie ou la réflexion sur la temporalité sont relégués sur les marges dans ce bilan comme dans la réalité des travaux tels que les recensent les bibliographies.

Cette première vue d’ensemble qui concerne pour l’essentiel les générations les plus anciennes d’historiens et d’historiennes est confirmée par d’autres

3 Voir COOPER Frederick - Le colonialisme en question. Théorie, connaissance, histoire. Paris: Payot, 2010.4 SIRINELLI Jean-François, CAUCHY Pascal, GAUVARD Claude (dir.) - op. cit., p. 287-300.5 On dénombre 37 historiens et 3 historiennes en 1995, 4 historiennes et 19 historiens en 2010.6 POIRRIER Philippe - « L’histoire contemporaine », in ibid., p. 83-84.

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indicateurs plus généraux permettant d’intégrer des populations plus larges de chercheurs en sciences historiques ou des types de travaux plus divers. L’étude des thématiques de recherche en sciences sociales réalisée par Charles Soulié à partir des thèses soutenues en 1993 et 1994 indique que, de toutes les sciences sociales, l’histoire est la plus gallocentrique (47,3% des thèses consacrées à tout ou partie de la France contre 38,9% pour l’ensemble des disciplines observées) et la plus européocentrique (24% contre 15,3%)7.

Dans les mêmes années, l’ouvrage collectif Passés recomposés, dirigé par Jean Boutier et Dominique Julia, publié en janvier 1995, ne trouva nul historien français pour réfléchir sur l’histoire comparée ou non nationale et confia cette tâche à l’historien social allemand Heinz-Gerhard Haupt dont le bilan soulignait la rareté de cette pratique historienne en France et sa limitation à des procédures standardisées (comparaisons nationales, modèles ou échelles de comparaison tirées de sciences sociales comme la démographie, l’économie, la sociologie, la science politique, orientation vers des couples binaires simplificateurs) alors même qu’en Allemagne de grands chantiers comparatistes étaient lancés à l’époque par ce qu’il est convenu d’appeler « l’école de Bielefeld ». Ces modes de comparaison, alors dominants, ont nourri de longue date les critiques des historiens hostiles à cette approche parce qu’ils les estiment réducteurs et simplificateurs8.

A peine ce plaidoyer allemand pour l’histoire comparée était-il publié et malgré la production d’un certain nombre de thèses ou de recherches de fond pratiquant la méthode à partir d’une comparaison avec la France (travaux de Frédéric Barbier, Laura Lee Downs, Nancy L. Green, Joël Michel, Gérard Noiriel, Jean-Louis Robert, Anne-Marie Thiesse ou de l’auteur de ces lignes9), une critique

7 SOULIÉ Charles - « Des déterminants sociaux des pratiques scientifiques : étude des sujets de recherches en sciences sociales en France au début des années 1990 », in Regards sociologiques, n°31, 2006, p. 91-105.

8 HAUPT Heinz-Gerhard - « La lente émergence d’une histoire comparée », in Passés recomposés, BOUTIER Jean et JULIA Dominique (dir.). Paris : Autrement, janvier 1995, p. 196-207.

9 BARBIER Frédéric - Livre, économie et société en Allemagne et en France au XIXe siècle, thèse d’Etat, Université de Paris IV, 1987, publié sous le titre L’Empire du livre. Paris : Cerf, 1996 ; BOLL Friedhelm, Prost Antoine, ROBERT Jean-Louis, (dir.) - L'invention des syndicalismes, Le syndicalisme en Europe occidentale à la fin du XIXe siècle. Paris : Publications de la Sorbonne, 1997 ; CHARLE Christophe - La République des universitaires (1870-1940). Paris : Le Seuil, 1994, Les intellectuels en Europe au XIXe siècle, essai d’histoire comparée. Paris : Le Seuil, 1996, La crise des sociétés impériales (1900-1940) essai d’histoire sociale comparée de l’Allemagne, de la France et de la Grande-Bretagne. Paris : Le Seuil, 2001 ; Théâtres en capitales, naissance de la société du spectacle à Paris, Berlin, Londres et Vienne, 1860-1914. Paris : Albin Michel 2008 ; LEE DOWNS Laura - L’Inégalité à la chaîne. La division sexuée du travail dans l’industrie métallurgique en France et en Angleterre. Paris : Albin Michel, 2002 (édition américaine 1995) ; GREEN Nancy L., « L'histoire comparative et le champ des études migratoires « , Annales ESC, n°6,

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générale était lancée non plus par les historiens mais par les spécialistes des transferts culturels, Michel Espagne et Michael Werner. Michel Espagne en particulier, dans un article de la revue Genèses, publié en septembre 1994, soulignait certaines faiblesses du comparatisme en histoire sociale et culturelle : renforcement des oppositions binaires, piège du cadre national, construction d’une grille d’interprétation arbitraire et abstraite ou à partir du point de vue privilégié de l’observateur10. En regard, il plaidait pour qu’on privilégie l’analyse des transferts culturels plus fructueuse et éclairante, selon lui, pour comprendre les relations entre les sociétés et les cultures voisines. Ses critiques, souvent justes, s’adressaient en réalité plutôt aux historiens allemands, souvent très influencés par une certaine sociologie américaine de la modernisation et adeptes, à l’instar de Charles Tilly ou Theda Skocpol, des comparaisons à grande échelle et peu attentifs, à l’époque, à l’imbrication des phénomènes sociaux et culturels. Dernier travers qu’on ne saurait reprocher à l’historiographie française qui n’a cessé, depuis les années 1990, d’accentuer son tournant culturaliste à la suite des travaux de Maurice Agulhon, Roger Chartier, Alain Corbin ou Daniel Roche.

Outre la réponse que je lui ai adressée dans un article de mars 1995 d’Actes de la recherche en sciences sociales11, à propos de l’histoire comparée des intellectuels et des professions, il faut insister sur l’apport du petit traité de défense et illustration de la méthode comparative d’Hartmut Kaelble, der historische Vergleich, mais malheureusement non traduit en français et donc non intégré dans le débat hexagonal12. Cette élégante synthèse prend largement en compte les objections de Michel Espagne, et démontre, en mobilisant de très nombreux exemples relevant de branches très diverses de l’histoire ou d’historiographies de différents pays,

nov. déc. 1990, p. 1335-1350 ; D°, Du Sentier à la 7è avenue. La confection et les immigrés Paris-New York, 1880-1980. Paris : Le Seuil, 1998 ; GUICHARD Éric et NOIRIEL Gérard (dir.) - Construction des nationalités et immigration dans la France contemporaine. Paris : Presses de l'École normale supérieure, 1997 ; MICHEL Joël - Le Mouvement ouvrier chez les mineurs d'Europe occidentale, Grande-Bretagne, Belgique, France, Allemagne : étude comparative des années à 1880 à 1914, Lille 3 : ANRT, 1989 ; THIESSE Anne-Marie, La création des identités nationales, Europe XVIIIe-XXe siècle. Paris : Le Seuil, 1999.

10 ESPAGNE Michel - « Sur les limites du comparatisme en histoire culturelle », in Genèses, 17, septembre 1994, pp. 112-121.

11 CHARLE Christophe - «Intellectuels, Bildungsbürgertum et professions au XIXe siècle. Essai de bilan historiographique comparé (France, Allemagne) », in Actes de la recherche en sciences sociales, 106-107, mars 1995, pp. 85-95.

12 On trouve une recension en anglais par LORENZ Chris dans l’International Review of Social History, vol. 46, 2001, p. 257-259.

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toute la richesse de la bibliothèque comparative en histoire contemporaine. Il met en valeur les multiples modalités de la comparaison historique, la nécessité de la combiner avec l’analyse des interrelations et des transferts, l’importance du choix des découpages, de l’analyse comparative des sources et de leur construction comme préalable à toute interprétation, l’inclusion dans le questionnaire des représentations réciproques des acteurs des diverses sociétés et cultures, ou encore la nécessaire variation des échelles d’analyse13.

Malgré cette progression de la réflexion et l’émergence d’une bibliographie française, souvent fondée sur des coopérations bi- ou multilatérale avec les historiens européens ou américains, l’impression contemporaine demeure que les formes alternatives d’histoire qui tentent d’échapper aux découpages traditionnels ou dominants restent mal aimées, controversées ou peu légitimes. Très rares sont les thèses nouveau régime qui, en France, se risquent à une approche comparative ou transnationale. On peut citer sans doute les livres de Florence Tamagne sur l’homosexualité en France, en Grande-Bretagne et en Allemagne14, de François Jarrige sur les briseurs de machines en France, en Angleterre et en Belgique15, d’Alice Primi sur les mouvements féministes en France et en Allemagne16 ou encore l’ouvrage issu d’une thèse de Pierre Boudrot sur les cultes rendus aux écrivains en Europe17, ou la thèse inédite de Benoit Agnès sur les pétitions en France et en Angleterre18. Les contraintes croissantes exercées sur les doctorants (limitation de plus en plus forte de la durée des préparations de thèse imposées par les écoles doctorales, diminution du nombre des allocations, charges d’enseignement croissantes dans l’enseignement supérieur comme dans l’enseignement secondaire, raréfaction des postes ouverts au CNRS, réduction des possibilités de postes ou bourses à l’étranger, etc.), les intitulés conformistes de poste à la sortie, et le

13 KAELBLE Hartmut - Der historische Vergleich. Eine Einführung zum 19. und 20. Jahrhundert, Francfort/Main, Campus, 1999, notamment p. 21 et s., sa réponse à Michel Espagne.

14 TAMAGNE Florence - Histoire de l’homosexualité en Europe (Berlin, Londres, Paris, 1919-1939). Paris: Le Seuil, 2000.15 JARRIGE François - Au temps des « tueuses de bras ». Les bris de machines à l’aube de l’ère industrielle (1780-1860).

Rennes : PUR, coll. « Carnot », 2009.16 PRIMI Alice - Femmes de progrès. Françaises et Allemandes engagées dans leur siècle, 1848-1870. Rennes : PUR, « Archives

du féminisme », 2010.17 BOUDROT Pierre - L’écrivain éponyme, clubs, sociétés et association prenant nom d’écrivain en Occident, de la Révolution

française. Paris : A. Colin, 2012 (issu d’une thèse soutenue en 2007 sous la direction de C. Charle).18 AGNÈS Benoît - L’appel au pouvoir, le pétitionnement auprès des Chambres législatives et électives en France et au Royaume-

Uni (1814-1848), thèse Université de Paris I-Panthéon-Sorbonne, 2009, sous la direction de C. Charle.

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localisme croissant des carrières ne poussent guère à l’innovation. S’y ajoute la crise de l’édition historique, prompte à enfourcher les découpages qui choquent le moins pour essayer de « vendre » à un public plus large qui préfère les visions nationales ou locales. Tout milite donc, malgré l’intérêt des nouvelles générations pour une vision moins étriquée de l’histoire que celle de leurs aînés, pour décourager les esprits curieux de pratiquer la méthode comparative ou une approche non nationale ou non locale de l’histoire.

La guerre des étiquettes

Au cours des années 2000, les critiques traditionnelles ou nouvelles contre les approches de type comparatiste ont fait place à un nouveau débat autour de nouvelles approches, le plus souvent pratiquées dans le monde anglophone ou dans la partie de l’historiographie germanophone très influencée par les modes venues d’Outre-Atlantique. C’est en histoire contemporaine que le décalage est le plus flagrant entre les historiographies. L’histoire médiévale et l’histoire moderne dont les pères fondateurs revendiqués (Marc Bloch et Fernand Braudel) avaient été à la pointe de ces visions larges de l’enquête historique, comptent des représentants français à l’écoute de ces courants transnationaux (histoire globale, histoire mondiale, histoire croisée, histoire mêlée ou métissée). On peut citer ici les noms de Serge Gruzinski19 ou de Patrick Boucheron20. Les contemporanéistes français brillent en revanche par leur absence quand on parcourt les sommaires des revues ou les recensions qui tentent des bilans de ces travaux. En janvier 2001, le numéro des Annales « Une histoire à l’échelle globale », comportait trois articles émanant tous de spécialistes des époques anciennes : Sanjay Subrahmanyam, Serge Gruzinski et R. Bin Wong. L’année suivante, le n° de janvier 2002 « l’exercice de la comparaison », édité par Lucette Valensi, plaidait pour une coopération, non plus avec les sociologues, mais avec les anthropologues, pour la comparaison à distance, pour une expérimentation de nouvelles manières de faire à partir des frontières, des

19 GRUZINSKI Serge - Les Quatre parties du monde. Histoire d'une mondialisation. Paris: Editions de la Martinière, 2004. 20 Directeur de l’Histoire du monde au XVe siècle. Paris: Fayard, 2009.

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limites incertaines et des interactions ou des échanges entre groupes et cultures, pour le refus de l’essentialisme et des typologies figées, soit, d’une certaine manière, le programme de l’histoire « connectée » et « partagée » ou celui de l’histoire des transferts, mais appliqué en priorité aux sociétés orientales ou méditerranéennes où coexistent des groupes hétérogènes linguistiquement ou religieusement.

Cinq ans plus tard, la Société d’histoire moderne essayait à son tour de sensibiliser la communauté ordinaire des historiens français à ces travaux venus d’ailleurs ou qui n’étaient pris en charge que par les spécialistes d’aires culturelles beaucoup plus internationalisés dans leurs pratiques et leurs lectures que les historiens et historiennes axés sur l’espace national. Là encore, les intervenants à la journée se recrutaient toujours dans les mêmes spécialités lointaines par rapport au centre de gravité de la discipline : Giorgio Riello, dix-huitiémiste de l’Université de Warwick, de nouveau Sanjay Subrahmanyam (UCLA) spécialiste des empires du monde indien, déjà rencontré dans le numéro cité des Annales, Jean-Paul Zuniga tenant de l’histoire atlantique à l’EHESS, Romain Bertrand, chercheur au CERI, spécialiste de l’Indonésie et des rencontres euro-asiatiques. Philippe Minard et Caroline Douki, les éditeurs du bulletin qui résumait cette rencontre, soulignaient le retard français sur ces approches21 : le premier numéro du Journal of World History datant de 1990, la World History Association de 1982 (1400 adhérents en 2002). Loin de se limiter aux universités américaines, cette nouvelle forme d’histoire touche depuis un certain temps déjà le Royaume-Uni avec le Journal of Global History publié par Cambridge University Press, l’Allemagne avec la revue Comparativ, Zeitschrift für Globalgeschichte und vergleichenden Gesellschaftsforschung, fondée à Leipzig en 1991 avec le sous-titre emprunté à Karl Lamprecht de Leipziger Beiträge zur Universalgeschichte et dont la maquette et le titre se sont élargis à partir de 2007 pour englober ces nouvelles approches. L’historiographie française apparaît donc bien isolée avec ces modestes numéros spéciaux et ses rares spécialistes dans des institutions spécialisées alors les espaces anglophones et germanophones disposent de réseaux de recherche, de centres et de revues dédiés qui sont liés à ces pôles.

Ces décalages n’ont donc rien que d’assez normal et renvoient à l’éclatement

21 DOUKI Caroline et MINARD Philippe (dir.) - « Histoire globale, histoires connectées, un changement d’échelle historiographique » Revue d’histoire moderne et contemporaine, n°54-4bis, 2007, en particulier p. 9-10.

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croissant des disciplines historiques entre logiques spatiales, chronologiques, empiriques, érudites ou politiques, qu’on retrouve de manière constante dans l’histoire de l’historiographie mais qui a pris un tour incontrôlable sous l’effet des transformations morphologiques nationales et internationales de ce qu’on a du mal à encore appeler la communauté internationale des historiens professionnels.

Cette autonomisation de tendances divergentes qui pourtant auraient tout à gagner à faire front commun contre l’orthodoxie historienne à base nationale nourrit donc une nouvelle « crise de l’histoire », bien différente de celle qu’avaient pu signaler il y a une vingtaine d’années Daniel Roche ou Gérard Noiriel. On peut à cet égard avoir deux diagnostics opposés. Pour les nostalgiques des débats binaires qui ont fondé quelques-unes des révolutions historiographiques antérieures, on peut interpréter cette multipolarité comme l’indice de l’entrée de l’histoire dans un nouvel âge, analogue à la situation des autres sciences sociales, en désaccord sur tout, sauf sur un point, celui qu’il y a désaccord et que c’est normal puisqu’il n’y a plus de paradigmes dominants ou englobants. C’est ce qu’on appelle rituellement, avec une tristesse feinte, la fin des grands récits dont les nouvelles approches doivent surtout annoncer qu’elles ne sont pas un nouvel avatar masqué.

Le second diagnostic, moins souvent avancé, mais qui me paraît plus juste et explicatif, est que ce nouvel état du champ historiographique est à l’image, d’une part, de l’évolution du monde universitaire et, d’autre part, de l’état de l’opinion intellectuelle qui fait un usage clandestin mais récurrent de l’histoire et de la comparaison, pour le meilleur et pour le pire.

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Histoire nationale et histoire globale, quelles complémentarités ?Nation parmi les nations

Pour montrer comment peut s’articuler histoire nationale et histoire globale, on peut partir du livre de l’historien américain Thomas Bender, A Nation among nations. America’s place in world history22. Son titre traduit bien sa tentative de trouver un chemin à l’alternative binaire réductrice histoire nationale/histoire globale. Il n’a pas manqué de susciter lui aussi des polémiques dans le contexte de la présidence de G. W. Bush et dans un pays où l’exceptionnalisme national et le patriotisme sont des valeurs très largement partagées, bien au delà de la mouvance conservatrice classique. Les Etats-Unis, comme la France, ont longtemps construit leur identité nationale par opposition et par différence notamment avec l’Europe en général et l’Angleterre en particulier dont ils ont fait dissidence. Contre cette vision isolationniste autocentrée, Bender démontre qu’on peut revisiter toute l’histoire américaine du XIXe siècle comme une chambre d’échos des combats et des transformations parallèles en Europe : construction des Etats nations sur des bases territoriales unifiées (par le parallèle dressé entre la guerre de Sécession et les processus d’unification allemand et italien), développement d’empires coloniaux d’un nouveau type (beaucoup plus précoce pour les Etats-Unis que ne le veut la vulgate habituelle), réformes sociales nécessaires dans une société devenue industrielle à l’ère du progressisme de la fin du XIXe siècle. Il ne s’agit pas seulement d’ailleurs d’échanges d’idées ou de thèmes politiques entre les élites des deux côtés de l’Atlantique, selon l’interprétation qu’avait privilégiée auparavant Daniel T. Rodgers dans Atlantic crossings23. Dans la mesure où la population des Etats-Unis en formation était issue d’un mélange continu de peuples originaires des différentes parties de l’Europe, elle était travaillée en permanence par les tensions ou les représentations dont ces migrants d’origine anglaise, écossaise, irlandaise, allemande, italienne, juive, russe, scandinave, etc., étaient porteurs. Si le livre s’arrête au moment du New Deal, on sait bien que le processus a continué avec l’arrivée

22 New York, Hill and Wang, 2006.23 RODGERS Daniel T. - Atlantic Crossings. Social Politics in a Progressive Age. Cambridge (Mass): Harvard

University Press, 1998.

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de nouvelles minorités ethniques, que d’anciennes populations d’origine étrangère apparemment intégrées restent à l’écoute de l’histoire des pays ou nations qu’ils ont quittés et subissent parfois indirectement les aléas des tensions entre leur pays d’accueil et leur pays d’origine (les Japonais pendant la Deuxième guerre mondiale, les originaires du Moyen et Proche Orient aujourd’hui). Dans le cas des Etats-Unis, pratiquer une histoire américanocentrée et vouloir la transmettre de génération en génération non seulement serait rendre impossible toute compréhension de la dynamique historique et des tensions sous-jacentes mais surtout serait inassimilable par les fractions de la population américaine oubliées par cette vision sélective datée ou stigmatisées par l’imposition de la vision « WASP » de la minorité blanche d’origine, seul vecteur de continuité transhistorique depuis les pères fondateurs.

Mutatis mutandis, la transposition de la démarche proposée par Thomas Bender me paraît valide pour l’espace national français (mais pour d’autres nations européennes aussi) notamment depuis la fin du XIXe siècle en raison du double facteur de l’immigration d’origine européenne (Belges, Italiens, Polonais) puis extra-européenne et des tensions internationales liées à la situation de la France comme épicentre de nombreux conflits européens et comme société impériale plus ou moins assumée depuis les années 183024. Plus largement, on peut invoquer aussi pour justifier cette vision nécessairement globale et transnationale de l’histoire de France des traits qu’on définit comme des facteurs d’exceptionnalité et qui sont tout autant des éléments qui attestent les interrelations de l’histoire de France avec l’histoire de l’Europe et des autres continents.

En premier lieu, le projet national français, tel que façonné par l’héritage de la Révolution, se voulait porteur de valeurs universelles et universalisables même s’il a été en partie trahi et dénaturé par la montée en puissance d’un nationalisme exclusif au cours du XIXe et du XXe siècle. Ce projet a inspiré positivement ou négativement la construction ou la reconfiguration d’autres Etats nations proches ou lointains qu’on pense à l’Espagne (avec la guerre d’indépendance contre Napoléon), à l’Allemagne, à l’Italie, à la Pologne, à la Tchécoslovaquie, ou même, comme l’a

24 Sur la notion de société impériale, voir C. Charle - La crise des sociétés impériales, op.cit. ; C. CHARLE et J. VINCENT (éd.) - La société civile : savoirs, enjeux, acteurs en France et en Grande Bretagne 1780-1914, Rennes : PUR, collection Carnot, 2011.

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montré Linda Colley, au Royaume Uni lui-même25. Il ne s’agit pas pour autant de faire renaître le mythe de la « grande nation », axe de l’histoire européenne, mais de montrer comment, en retour, ces effets européens du projet français de la Révolution ont aussi agi sur l’évolution française elle-même pour nourrir des illusions de grandeur (voir la politique de Napoléon III de revanche contre les humiliations imposées depuis la défaite de son oncle ou celle du « cordon sanitaire » autour de l’Allemagne dans l’entre-deux-guerres, réplique tardive au système bismarckien d’isolement de la France de 1871), des phénomènes de solidarité internationaux (e. g. le mouvement philhellénique), des processus d’attraction sur les communautés d’exilés (Polonais après l’échec des soulèvements de 1831 ou 1863, Allemands, Italiens, Espagnols libéraux ou révolutionnaires ou Latino-américains exclus de leur pays, diasporas des étudiants coloniaux au XIXe ou au XXe siècle), des images de longue durée pour la dynamique culturelle et politique française, etc.

En second lieu, à mesure que la France s’intègre dans l’Europe et doit accueillir des populations venues du monde entier, il faut insérer une telle perspective dans le récit national sous peine de retomber dans le nationalisme xénophobe d’extrême droite qui entend figer une identité nationale mythifiée, produite par la nostalgie d’un passé prestigieux ou la peur d’un avenir incertain. Sans la diffusion, au-delà des spécialistes, d’une telle relecture dynamique du passé comme interaction entre espaces proches et lointains, comme remise à l’épreuve des cadres régionaux et nationaux par les changements de composition de la population dans les différents pays, la construction européenne et, plus largement, ce qu’il est convenu d’appeler la « mondialisation » continuent et continueront de plus en plus d’être perçus spontanément comme des intrusions étrangères, des menaces, des fatalités, comme on ne le voit que trop dans les débats politiques les plus récents.

La vision d’histoire nationale traditionnelle ne peut que renforcer en permanence une approche exclusive en termes de rapports de force, de grandeur et de déclin, de victoires et de défaites, de héros et de traîtres, d’antagonismes sans fin et sans issue qui renforcent les tensions et contentieux pour la perception du présent et du passé. Elle contribue donc à ruiner au plan symbolique les valeurs universalistes

25 COLLEY Linda - Britons, Forging the Nation 1707-1837. New Haven: Yale U.P., 1992.

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sans lesquelles l’Europe demeurera éternellement une expression géographique sans consistance, un espace marchand sans valeurs politiques générales, un programme sans capacité de susciter aucune adhésion face aux appartenances locales, régionales ou nationales qui ont pour elles la force de l’évidence et des habitus façonnés par l’espace proche, la langue maternelle, la famille, les traditions scolaires.

En troisième lieu, à l’heure des Etats continents (Amérique du nord, Russie, Chine, Inde, Brésil), la France ne peut survivre et le projet européen avec elle qu’en proposant à travers ce projet national ouvert, universalisable à l’Europe, une histoire à la fois au sens spécifique enraciné dans l’histoire longue et une capacité de dialogue avec les autres civilisations ou espaces continentaux sans domination ni condescendance, mais sans complexe ni mortification rétrospective, prisonnière d’un passé qui ne pourrait jamais passer. Bien entendu, il serait contradictoire avec cette approche d’imposer tout dogmatisme ou tout catéchisme comme celui qu’on a pu fonder sur la vision nationale autocentrée et exclusiviste d’antan. Une telle approche est au contraire la seule qui peut ouvrir sur une démarche d’histoire critique et perpétuellement évolutive, relisant en permanence les sources ou cherchant d’autres sources pour explorer les angles obscurs que les approches traditionnelles trop liées à l’Etat central oublient ou négligent.

Ces propositions sont, à l’évidence, à contre-courant de toutes les formes d’histoire pratiquées par l’historiographie la plus plébiscitée par le public26, les émissions historiques les plus médiatisées, et par les pouvoirs publics quand ils veulent instrumentaliser les commémorations et les grands épisodes de l’histoire de France. La critique des présupposés sur lesquels repose ces formes d’histoire ne suffit pas à l’évidence à en supprimer l’attrait et la popularité et l’on se trouve devant une sorte de cercle vicieux. Comment sortir l’histoire globalisée de son ghetto savant et lui faire jouer sa fonction critique, si elle ne peut être diffusée avec la même efficacité vers de larges publics scolaires ou non?

26 Voir KNAPPEK Charles - « L’histoire coupée en deux », Livres hebdo, n°939, vendredi 1er février 2013, p. 65-76.

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Quelle histoire globalisée?

Le projet de nouvelle histoire de Fernand Braudel avait déjà tenté d’affronter la question : introduire une forme d’histoire globale inspirée de la thématique de la longue durée, de la comparaison des civilisations et des grands espaces dans les programmes scolaires à partir de 1962, du moins dans la classe de terminale. L’ancien président du jury d’agrégation donna même l’exemple pour diffuser la bonne parole en rédigeant un manuel scolaire ambitieux27 que l’auteur de ces lignes eut même à étudier lors de sa dernière année de lycée, malheureusement perturbée par ce qu’il est convenu d’appeler les « événements de mai-juin 1968 »28. Les historiens de l’enseignement de l’histoire dans la dernière partie du XXe siècle ont montré combien ces avancées vers une histoire non nationale et plus globale ont été très vite remises en question ou amoindries aussi bien d’ailleurs par les éducateurs eux-mêmes, conscients des difficultés pédagogiques qu’elle pose, que par les politiques ou les parents qui y trouvent des occasions de polémiques ou de récriminations faciles à faire passer dans un large public, formé autrement et conforté dans ses représentations par les usages traditionnels des formes vulgarisées ou médiatiques de la grande histoire évoquées plus haut. Suffit-il pourtant d’invoquer la force des routines, la connivence des conservatismes voire l’anti-intellectualisme qui progresse à mesure que la culture se massifie ou se médiatise ? Le projet d’histoire globale ne doit-il pas subir également (qu’il s’agisse de celui de Braudel ou de ses plus récentes formes) l’épreuve de la critique ? Pour qu’il ait une chance d’entrer en vigueur autrement que sur des sites internet, au sommaire de revues pour spécialistes et à travers des monographies consultables seulement en bibliothèque, il faut au préalable en interroger les fondements.

27 S. BAILLE, F. BRAUDEL, R. PHILIPPE - Le monde actuel : histoire et civilisations, classes terminales, propédeutique, classes préparatoires aux grandes écoles. Paris : Belin, 1963 ; la partie consacrée aux civilisations a été rééditée sous le titre Grammaire des civilisations, Paris, Flammarion, 1987, avec un avant-propos de Maurice AYMARD qui explicite les ambitions du projet pédagogique de Braudel très vite remis en cause par les programmes ultérieurs plus traditionnels (p. 9-16).

28 Sur toutes les fluctuations des programmes et les débats politiques qu’ils suscitent entre les années 1960 et nos jours, voir la mise au point de Laurent WIRTH - « Le pouvoir politique et l’enseignement de l’histoire. L’exemple des finalités civiques assignées à cet enseignement en France depuis Jules Ferry», Histoire@Politique. Politique, culture, société, n°2, septembre-octobre 2007 (téléchargeable sur le site de la revue); Qui écrit les programmes d’histoire?, Grenoble:PUG, 2014. Sociologie historique d’un instrument d’une politique éducative. Université de Paris 1, 2010, dirigée par Yves Déloye et Brigitte Gaïti.

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On définira provisoirement l’histoire globale comme une histoire sans frontière, sans territoire, sans chronologie, sans héros, qui révoque donc tous les fétiches bien connus de l’histoire traditionnelle, tous ces ressorts de la curiosité et du récit qui charment le lecteur de l’histoire nationale (ou locale d’ailleurs) et poursuivent sous d’autres formes les récits les plus populaires du conte, du mythe ou de la littérature (ne parle-t-on pas couramment maintenant de « roman national » ?). Comment fonder une pédagogie accessible à tous les niveaux sans ces ressorts si commodes ? La difficulté est redoublée par l’absence de tradition, le faible nombre de précurseurs et surtout par le risque de l’incommunicabilité puisqu’on sort en même temps d’un espace linguistique contrôlable et d’un espace institutionnel fixé. Les formes antérieures d’histoire qui ont renouvelé la discipline au XXe siècle étaient moins mal partagées que celle-ci. L’histoire sociale par exemple, à ses débuts, pouvait s’appuyer sur les réflexions de méthode des sociologues (pour les accepter ou les rejeter), de certains économistes notamment marxistes (pour les reprendre ou non), voire des juristes quant à la définition des groupes sociaux et de leurs conflits. Il existe bien des tentatives d’économie globale ou d’économie de la mondialisation, des propositions de sociologie de la mondialisation également, des débats en cours sur l’universalisation du droit. Mais du moins ces disciplines des sciences sociales qui se proposent des perspectives analogues à l’histoire globale peuvent saisir la mondialisation en cours dans chacun des domaines concernés grâce à des sources, de la documentation, des modèles théoriques tirés du contemporain et dont l’abondance et la diversité croissent avec la mondialisation. Il n’en va pas de même plus on remonte le cours du temps historique. Malgré les efforts de certains pour construire des schémas transhistoriques (première mondialisation, deuxième mondialisation, etc.), il n’est pas sûr que de telles projections rétrospectives n’exposent pas à l’anachronisme, aux rapprochements abusifs et aux contresens, voire aux apories, faute de sources adéquates pour valider les schémas d’analyse ou les hypothèses de travail29. Comment dès lors produire des schèmes d’interprétation transmissibles faute d’une stabilisation minimale des paradigmes débattus encore

29 Pour une tentative réussie en ce sens mais sur un espace plus « régional » que « global », en l’occurrence la « méditerranée chinoise », voir GIPOULOUX François - La Méditerranée asiatique, villes portuaires et réseaux marchands en Chine, au Japon, et en Asie du Sud-Est, XVIe-XXIe siècle. Paris : CNRS éditions, 2009.

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par les spécialistes ? Il en résulte d’ailleurs une « guerre des étiquettes » qui signale cette incertitude de fond comme dans tout champ disciplinaire émergent (mais s’agit-il d’un champ disciplinaire ?).

Si l’on dresse le bilan de ces débats, on constate au total un double contraste30. En premier lieu, le raffinement des dénominations et des propositions de méthode accroît la rupture entre l’historiographie française modale, indifférente à ces questions, qui n’intéressent pour l’essentiel que des spécialistes des espaces non français et des chercheurs situés presque tous hors université et donc sans grand pouvoir d’influence sur des publics étudiants ou de futurs chercheurs. En second lieu, car le point précédent n’a rien de nouveau, comme je l’ai déjà expliqué plus haut, ces guerres internes ou ces débats autour des titulatures contribuent à l’affaiblissement plus qu’au renforcement des propositions des historiens qui cherchent à sortir de l’histoire à dominante nationale ou locale. Quand on creuse un peu les points de divergence réels, on s’aperçoit qu’ils portent sur des différences d’accent, des terrains d’enquête spécifiques qui suggèrent des problématiques divergentes du fait même des sources et des méthodes à mobiliser, des dialogues privilégiés avec telle ou telle science sociale (anthropologie versus sociologie, approche culturelle versus approche structurale, etc.), des ambitions opposées d’intervention dans le débat public (option occidentaliste versus option sociétés non occidentales, rapports de domination, versus rapports d’échange), ou encore des préconisations plus ou moins adaptées selon les branches de l’historiographie privilégiée.

Si l’histoire nationale doit être revisitée selon la perspective esquissée précédemment, il n’en résulte pas automatiquement que la nouvelle approche globalisante soit facile à dessiner et surtout à transformer en un projet pédagogique et civique répondant aux attendus précédents tant qu’elle n’aura pas elle-même réfléchi à ses finalités et à son articulation avec les autres formules. Il convient à ce propos d’en finir avec la rhétorique fallacieuse des « révolutions scientifiques » dont on connaît la fortune mais qui n’est sans doute pas adaptée au régime d’évolution de l’historiographie dans ses différentes variantes et variétés. Approche globale et approche nationale ne sont ni des univers radicalement incompatibles, ni des

30 Caroline DOUKI et Philippe MINARD (dir.) - « Histoire globale, histoires connectées, un changement d’échelle historiographique », Revue d’histoire moderne et contemporaine, n°54-4bis, 2007, p. 7-21, en particulier p. 9-10.

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poupées gigognes qui s’emboîtent simplement et harmonieusement puisque chacune contribue à déstabiliser l’autre tout en l’obligeant à revoir ses présupposés implicites et donc à relancer perpétuellement la question de l’articulation des échelles et la diversité des thèmes à prendre en compte des plus particuliers aux plus généraux.

Pour rendre plus concrètes ces remarques très générales, on peut prendre l’exemple de l’évolution de l’histoire du livre. A des échelles différentes d’observation, l’histoire du livre et de l’imprimé première manière reproduisait tous les travers classiques de l’histoire historisante dénoncée par François Simiand dans son célèbre article de 190331 : enfermement monographique, frontières définies par des objets empiriques, usages de schémas d’interprétation personnalisés (l’auteur, l’éditeur, l’imprimeur, le libraire, les lecteurs). Après une évolution vers une vision plus nationale, structurale et sérielle, synthétisée dans les grandes histoires du livre publiées dans chaque pays dans les années 1986-200032, les historiens du livre se sont de plus en plus intéressés, à partir du début du XXIe siècle, aux passages de frontières, aux marchés internationaux, aux traductions, aux transferts culturels et politiques portés par leurs objets favoris. Ils ont alors raisonné en termes de modèles nationaux, continentaux, transatlantiques. Avec l’universalisation de l’instruction et l’émergence de conglomérats multimédias, ils ont essayé de réfléchir à une autre échelle, que ce soit dans le présent ou dans le passé. Mais les variations des législations sur l’imprimé, les décalages spatiaux et chronologiques dans les processus culturels et économiques du monde du livre obligent à passer du travail individuel aux groupes de travail collectifs pour se situer à la hauteur des enjeux de recherche, comme l’attestent les différents colloques internationaux comparatifs en cours de publication à l’initiative de Jean-Yves Mollier et de ses collègues d’autres continents33.

Ces rencontres obligent à trouver des vocabulaires communs, à réviser les

31 F. SIMIAND - « Méthode historique et sociologie », Revue de synthèse, 1903.32 CHARTIER Roger et MARTIN Henri-Jean, en collaboration avec Jean-Pierre VIVET (dir.) - Histoire de

l’édition française. Paris : Promodis, 1983-1986, 4 vol. ; The Cambridge History of the Book in Britain, dir. Donald F. MCKENZIE, David D. MACKITTERICK, Ian WILLISON and John BARNARD. Cambridge : Cambridge University Press, 7 vol., 1999-2013; JÄGER Georg, LANGEWIESCHE Dieter, SIEMANN Wolfram (hg.) - Geschichte des Deutschen Buchhandels im 19. und 20. Jahrhundert, Das Kaiserreich 1870-1918, Francfort/M, Buchhändler-Vereinigung, 2001 et MVB Marketing- und Verlagsservice des Buchhandels, 2003, 2 vol.

33 MICHON Jacques et MOLLIER Jean-Yves (dir.) - Les mutations du livre et de l'édition dans le monde du XVIIIe siècle à l'an 2000. Saint-Nicolas/Paris : Les Presses de l'Université Laval/L'Harmattan, 2001 ; LYONS Martyn, MOLLIER Jean-Yves et VALLOTTON François (dir.) - Histoire nationale ou histoire internationale du livre ?. Québec : Nota bene éd., 2012.

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schémas empruntés à un espace et souvent inadaptés à une autre aire et encore moins opérant dans les relations entre les espaces qui obéissent à des logiques sui generis (espaces coloniaux, espaces linguistiques fermés, espaces multilingues). Point de contact entre l’histoire économique, l’histoire sociale, l’histoire culturelle, l’histoire symbolique et l’histoire politique, l’histoire du livre et de l’imprimé, quand elle se déploie dans l’espace global, fait jouer des processus qui combinent ces différentes logiques. Notre regard est souvent déformé par les schémas contemporains de la production de masse autour des best-sellers ou du livre de grande consommation. On les retrouve souvent « naturellement » sous la plume même d’historiens qui travaillent sur le passé alors qu’ils oublient que les biens physiques qui circulent et les enjeux économiques ne sont pas à la même échelle qu’aujourd’hui et qu’une simple rétroprojection des schémas actuels a toute raison de nous faire faire fausse route. Un récent travail collectif sur les processus sociaux de la traduction à l’époque contemporaine dirigé par Gisèle Sapiro souligne d’ailleurs que, même aujourd’hui, à l’époque de la world fiction et des grandes foires du livre, les processus de circulation des livres, mesurés à travers les flux de traduction entre les grandes aires linguistiques, restent en partie indépendants des purs calculs économiques de la société de consommation et du marketing des produits grand public34. L’un des paradoxes de l’histoire globale est en effet qu’à cette échelle finalement on retrouve des petits groupes d’acteurs qui assurent les connexions entre espaces, assument les décisions ou prennent les initiatives, parce qu’ils se trouvent à des niveaux stratégiques pour les interconnexions au point que les processus de globalisation qu’ils ont suscités peuvent avoir des effets considérables parfois insoupçonnés par les intéressés eux-mêmes.

34 SAPIRO Gisèle (dir.) - Translatio, le marché de la traduction en France à l'heure de la mondialisation. Paris : CNRS éditions, 2008.

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Quelle pédagogie pour quelle histoire globale?

Au terme de cette double déconstruction critique d’une histoire nationale ouverte et d’une histoire globale qui doit s’enraciner dans des objets concrets, il reste à tirer quelques conclusions d’ordre plus pédagogique. Le dernier exemple peut fournir une piste de réflexion dans cette perspective. Les programmes scolaires rencontrent, de temps à autre, certains aspects de l’histoire du livre à propos de la Renaissance et de la Réforme, de la diffusion des Lumières, des progrès de la scolarisation ou de l’alphabétisation en tant que phénomènes nationaux, européens voire, au XXe siècle, mondiaux. Même à un niveau relativement simple et très concret, les enseignants peuvent tirer partie des élargissements du local à l’international, du national au global de cette branche de l’historiographie, expression des mutations matérielles de la forme livre, de son économie politique et symbolique, de ses modes d’appropriation, de la compétition entre les langues mortes et vivantes, nationales, locales et internationales, etc. Pour des générations d’élèves ou d’étudiants qui risquent d’avoir un rapport de plus en plus lointain à l’objet livre du fait du bain numérique dans lequel elles ont été élevées dès leur plus jeune âge, réinsérer une telle histoire dans toutes ces dimensions dans des programmes scolaires serait un moyen de diffuser une vision critique, donc citoyenne, du rapport aux technologies numériques et de redonner au livre comme mémoire et transmetteur de culture ou d’idées son rôle d’agent historique à part entière sur les moyen et long termes.

De la même manière, de nombreux travaux se sont attachés à réfléchir sur les périodisations et le rapport au temps historique selon les époques mais aussi selon les régions du monde. On reproche souvent aux histoires globales ou transnationales d’imposer un espace temps abstrait, déconnecté du vécu de la masse des acteurs. Dans les programmes récents, pour insérer le maximum de données historiques dans le minimum d’heures de cours, on a beaucoup recouru à ces parcours à grandes enjambées d’une histoire thématique. Elle conduit souvent au contraire même d’une histoire compréhensive et nuancée et renoue avec des philosophies de l’histoire diffusionniste, évolutionniste ou fonctionnaliste auxquelles les travaux historiques, notamment ceux inspirés par l’histoire comparée ou l’histoire globale, n’ont cessé d’adresser des correctifs ou des démentis pour souligner les décalages entre les parties

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du monde et les variantes dans les voies d’accès aux divers types de modernités.Si l’on prend le programme de terminale publié en 201035, le premier thème,

« croissance économique, mondialisation et mutations des sociétés depuis le milieu du XIXe siècle » ( à traiter en 9-10 heures !), repose, à l’évidence, sur les schémas les plus classiques d’une histoire économique et sociale des années 1960-70 où le passage à la modernité est un chemin direct lié à la croissance, à l’ouverture des frontières et à la mobilité sociale et où la voie unique est celle dessinée par l’Occident avec le sous-thème : « les économies mondes successives (britannique, américaine, multipolaire) ». Crises, sous-développement, exploitation de certaines zones par d’autres, débats internes à l’Europe et au monde sur le libre échange et le protectionnisme au XIXe comme au XXe siècle, tout cela est implicitement relégué dans l’ombre ou renvoyé aux voies de traverse, à l’expression de l’archaïsme et du retard par rapport à la voie royale définie par le pôle dominant du monde et qui ressemble étrangement aux préconisations de l’OCDE. Que cette vision soit économique en termes d’heures de cours, c’est l’évidence, qu’elle soit économiciste au mauvais sens du terme, c’est encore plus patent. Qu’elle soit une véritable histoire globale mettant en valeur les dynamiques contradictoires dans le temps et dans l’espace et surtout les réactions des différents pays ou groupes sociaux bousculés par ces processus, on peut fermement en douter. Quand il s’agit de faire de l’histoire sociale (deuxième sous-thème « mutations des sociétés »), c’est au contraire une vision descriptive et fonctionnaliste et de nouveau nationale qui est mise en œuvre (« la population active, reflet des bouleversements économiques et sociaux : l’exemple de la France depuis les années 1850 ») alors que, comme on l’a rappelé plus haut, une approche sociale comparative interne à l’Europe serait beaucoup plus éclairante et civique pour des élèves en âge de voter pour leur permettre de comprendre les sociétés des autres pays européens auxquels leur vie sera de plus en plus liée. Elle montrerait beaucoup mieux les spécificités françaises du french Sonderweg que ce retour à une histoire sociale autocentrée qui projette sur le passé les schémas des démographes contemporains ou des sociologues modernistes des « trente glorieuses ».

35 Bulletin officiel de l’Education nationale, spécial n°9, 30 septembre 2010.

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Il ne s’agit de jeter la pierre ni aux concepteurs des programmes ni aux professeurs chargés de les faire passer dans les classes. L’histoire enseignée est confrontée, plus encore à ces niveaux que celle que nous tâchons de transmettre dans les universités, à des injonctions contradictoires. Un foisonnement de travaux et de recherches que de multiples canaux permettent de faire circuler (via internet) dans de nouveaux groupes de curieux d’histoire (professeurs inclus) et, en même temps, une contrainte de temps d’apprentissage du fait des horaires réduits, de la concurrence des sciences humaines présentes aussi dans certaines sections de l’enseignement secondaire et de la dévalorisation de l’histoire comme discipline de formation face à d’autres aux coefficients plus élevés lors de l’examen final. Les profondes divisions qui traversent les historiens eux-mêmes, les difficultés de l’histoire globale autant que celles de l’histoire nationale rendent problématiques les messages que les Lavisse ou les Braudel d’aujourd’hui pourraient (ou devraient) adresser à leurs collègues des collèges et lycées. La seule conclusion qu’on peut tirer de ces tensions entre les échelles de l’espace et du temps historique dont nous avons vu les entrecroisements perpétuels, c’est justement que les nouvelles générations ne pourront s’y repérer que si les tenants des deux approches, au lieu de s’affronter et de s’exclure stérilement, se corrigent, se complètent et se critiquent pour se prémunir contre les fausses perspectives qu’induisent leurs points de fuite respectifs quand ils sont retenus dogmatiquement comme seuls possibles. L’histoire globale comme l’histoire comparative doivent aussi apprendre à se vulgariser et à pénétrer hors du cercle des spécialistes si elles veulent influer les conceptions de l’histoire de la masse des nouvelles générations hors des futurs étudiants ou professeurs d’histoire36. L’histoire nationale ne peut plus faire non plus mine d’ignorer les transformations de l’historiographie internationale, ni réinterpréter l’évolution historique avec ses schémas invariants ou ses objets limités : la perspective européenne, la perspective mondiale s’imposent tellement dans la vie des citoyens ordinaires qu’elle doit les intégrer sous peine de perdre toute pertinence. Bien entendu les échecs antérieurs de modernisation des conceptions, la très grande diversité des politiques menées

36 Des livres récents ont commencé à diffuser les idées émises ici: SINGARAVELOU, P. et VENAYRE S., dir., Histoire du monde au XIXe siècle, Paris: Fayard, 2017; BOUCHERON, P., dir., Histoire mondiale de la France, Paris: Seuil, 2017; OSTERHAMMEL, J., La transformation du monde, trad. française, Paris: Nouveau Monde, 2017.

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à cet égard dans le monde soulignent aussi que sans la mobilisation des historiens tous niveaux confondus et à une échelle internationale, les décisions politiques en matière éducative risquent d’aller au plus facile ou au plus conservateur. Nous avons donc une part de responsabilité à assumer en ce débat qui n’a rien d’académique37.

37 Voir les numéros du Débat consacrés à ces questions (n° 175 mai-août 2013, « difficile enseignement de l’histoire et n°177, « la culture du passé », novembre-décembre 2013).

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A S F O R M A S D O P R E S E N T EE N S A I O S O B R E O T E M P O

E A E S C R I T A D A H I S T Ó R I A *

Temístocles Cezar

Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – Brasil Directeur d’études invité – EHESS – Paris

Bolsista do CNPq

“Demain est déjà aujourd’hui.” François Hartog**

Nota introdutória

Escrever sobre o tempo, em especial sobre o presente, nunca foi tarefa fácil para os historiadores modernos. Falta-lhes o depois, aquela posteridade que afiança o que Walter Benjamin chamava de “um tempo saturado de agoras” que

* Este ensaio faz parte de um projeto mais amplo cujo objetivo é o de investigar as relações entre a escrita da história e a noção de tempo no Brasil desde o século XIX. Nele retomo e aprofundo temas analisados no artigo: “Tempo e escrita da história. Ensaio sobre apropriação historiográfica do presente”, publicado em FRANÇA, S. (org.) Questões que incomodam o historiador. São Paulo, Alameda, 2013, pp. 71-89.

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faz explodir o continuum da história.1 Partindo deste pressuposto, proponho uma breve viagem pelo tempo,

com todos os riscos inerentes a sua travessia e a suas reconfigurações pela escrita da história, que ora o torna apreensível como uma evidência, ora como uma ilusão. Não pretendo, no entanto, intentar uma introdução à história do tempo, mas tecer considerações em torno dele, mais descontínuas do que contínuas. Consequentemente, perdoem-me se, às vezes, a escrita parece trêmula como quando em mar revolto, ou excessiva como quando na calmaria de um porto seguro.

O tempo entre a evidência e a ilusão

O tempo, para os historiadores, é uma evidência: cronologia, periodização, épocas, séculos, anos, meses, semanas, dias, horas, funcionam como preceitos de inteligibilidade.2 Independentemente das formas de contabilizá-lo, o tempo jamais cessou de passar e as sociedades e os indivíduos nunca deixaram de perceber seu movimento: mais ou menos lento, um passado vivido como “quase imóvel”; mais ou menos rápido, uma aceleração que confere ao futuro expectativas; mais ou menos estagnado, como um presente contínuo. Sempre é, contudo, uma evidência.3

Mais próxima da filosofia e da retórica, a evidência é uma resposta a um dilema clássico do conhecimento histórico, ou seja, “como manter a diferença de princípio entre a imagem do ausente como irreal e a imagem do ausente como

Também retomo aqui questões discutidas em dois eventos acadêmicos: 1. No texto intitulado “Comemoração e manifestação no Brasil contemporâneo. Ensaio sobre usos do passado em um futuro próximo”, que foi apresentado no Seminário “Patrimonio histórico y conmemoraciones en una perspectiva secular. Entre la Historia y los usos públicos del pasado”, promovido pelo Programa de Investigaciones en Historiografia Argentina – Instituto de Historia Argentina y Americana Dr. Emilio Ravignani, Univesrsidad de Buenos Aires e Universidade San Martin, em 14 e 15 de novembro de 2013. Agradeço a François Hartog, Jacques Revel e Fernando Devoto as críticas e sugestões ao texto; 2. No comentário “Essai sur les usages politiques du passé. Commentaires et quelques notes depuis le Brésil à la confèrence de Christophe Charle”, apresentado no Seminário “Historiografia e Res publica – repensar a escrita da história nos dois últimos séculos”, promovido pelo Grupo de Investigação Historiografia e Cultura Política do CH - FLUL Universidade de Lisboa realizado na Biblioteca Nacional de Portugal em 29 e 30 de abril de 2014.

** HARTOG, François - Croire en l’histoire. Paris: Flammarion, 2013, p.102.1 BENJAMIN, Walter - “Sobre o conceito de história”. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985, pp. 229-230.2 BLOCH, Marc - Apologie pour l’histoire ou métier d’histoiren, Paris: Armand Colin, 1997, p. 52.3 HARTOG, François - “La temporalisation du temps: une longue marche”. ANDRÉ, J./DREYFUS-ASSÉO,

S./HARTOG, F. - Les récits du temps, Paris: PUF, 2010, pp. 9-29.

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anterior?”.4 A evidência, simultaneamente, resolve e dissimula a questão. Ela a resolve porque acreditamos na maior parte das vezes que o passado está lá, em algum lugar, da memória coletiva ou da individual, que o passado já foi presente e perceptível à visão de alguém, e hoje é a nossa anterioridade. Ela a dissimula porque a certeza de que o passado tenha sido é muitas vezes frágil, pois pode tanto não ter se realizado, como ser produto de uma ilusão, sem mencionar as possíveis falhas da memória. Entretanto, as lembranças e as ilusões, considerando suas potenciais precariedades, fazem parte do discurso da história. Desse modo, a evidência do tempo é uma variante de outro debate clássico do campo historiográfico: o da história com a ficção.5

No famoso Livro XI de suas Confissões, Agostinho pergunta-se: “que é, pois, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta já não sei”. O problema é que se nada passou não haveria passado e se não houvesse expectativa não haveria futuro, e se nada existisse neste instante não haveria tempo presente.6 Se o passado não existe mais e o futuro ainda não existe, o presente seria da ordem da eternidade, da qual, em Timeu, Platão já havia excluído o próprio tempo.7 Agostinho, por outro lado, também não parece ter refutado a tese aristotélica de que o “tempo é qualquer coisa do movimento”.8

O que Agostinho faz de diferente é vinculá-lo à alma, ou ao que poderíamos denominar, talvez abusivamente, de certa consciência interior do tempo.9 Um hino citado de cor é o exemplo dessa situação: “antes de principiar, a minha expectação estende-se a todo ele. Porém, logo que o começar, a minha memória dilata-se, colhendo tudo o que passa para o pretérito. A vida deste meu ato divide-se em memória, por causa do que já recitei, e em expectação, por causa do que hei de recitar. A minha atenção está presente e por ela passa o que era futuro para se tornar pretérito. Ora, o que acontece em todo o cântico, isso mesmo sucede em cada uma das partes, em cada uma das sílabas, em cada ação mais longa e em toda

4 RICŒUR, Paul - La mémoire, l’histoire, l’oubli, Paris: Éditions du Seuil, 2000, p. 306.5 HARTOG, François - Évidence de l’histoire. Ce que voient les historiens, Paris: Éd. EHESS, 2005, pp. 11-16.6 SAINT AUGUSTIN - Les Confessions, L. XI, C. XIV. Paris: Fammarion, 1964.7 PLATO - “Timaeus”, 37-d a 38-e. Complete Works. Cambridge: Hackett Publishing Company Inc. 8 ARISTOTE - Physique, Livre IV. Paris: Les Belles Lettres, 1952.9 Sobre o “debate” entre Agostinho e Aristóteles ver RICŒUR, Paul. Temps et récit, 3. Paris: Seuil, 1985, pp. 21-42.

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a vida do homem”.10 Para Paul Ricœur, todo o império do narrativo encontra-se aqui, nesse simples poema, virtualmente desdobrado, e é a essas extrapolações apenas sugeridas por Agostinho que sua obra, Temps et récit, é consagrada.11

Logo, se o tempo é uma evidência para a maior parte dos historiadores, ele não o é, necessariamente, para os filósofos nem para os literatos. Mesmo que a descoberta da subjetividade do tempo histórico seja, de acordo com Koselleck, um produto da modernidade, a sensação da inexistência do tempo ou de sua apreensão como irreal era e continua sendo um debate inconcluso.12 Em 1908, por exemplo, John E. McTaggart, em artigo que gerou polêmica no meio filosófico, afirma, por razões diferentes de Spinoza, Kant, Hegel e Schopenhauer, “acreditar que o tempo é irreal”.13 Quanto aos literatos, as análises de Ricœur acerca de Mrs. Dalloway de Virginia Woolf ou de La recherche du temps perdu de Marcel Proust, são excelentes indicadores, se não da irrealidade do tempo como para alguns filósofos, pelo menos de uma relação crítica com a dimensão temporal.14 Assim, um poeta como T.S. Elliot, escrevia, em 1919, que, para ele, “o sentido histórico é tão atemporal quanto temporal”.15 Além disso, se a relação com a memória é uma característica desses romances ou poesia, não se pode inferir que ela compareça sempre como acólito do tempo. Lembremo-nos, já em outro contexto, e entre tantos exemplos possíveis, da primeira frase de O Estrangeiro de Albert Camus, “Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem”.16 Tempo, presente ou passado, e memória são incertos, mas não parece fazer diferença.

Em todo caso, dos antigos aos modernos, o dilema sobre a realidade do tempo – visível ou invisível, real ou ficcional, para nos restringirmos a duas aporias clássicas – é um passo decisivo rumo à historicização do conceito.17 De fato, a

10 SAINT AUGUSTIN - L. XI, 28, 37-38.11 RICŒUR, Paul - Temps et récit, 1. Paris: Seuil, 1983, p. 49.12 KOSELLECK, Reinhart - “Time and History”. The practice of conceptual history. Timing history, spacing concepts.

Stanford: Stanford University Press, 2002, pp. 110-111.13 McTAGGART, John Ellis - “The unreality of time”. Mind. A Quarterly Review of Psychology and Pilosophy, 17,

1908, pp. 456-473. Michel Bentley ressalta a importância da análise de McTaggart em “Past and ‘presence’: revisiting historical ontology”, History and Theory, 45, 2006, pp. 349-361 (principalmente, pp. 351-352).

14 RICŒUR, Paul - Temps et récit, 3, op. cit., pp. 229-251.15 “This historical sense, which is a sense of the timeless as well as of the temporal and of the timeless”,

ELIOT, T.S. - “Tradition and the individual talent”. Selected essays. New York: Harcourt, Brace, 1950.16 CAMUS, Albert - L’étranger. Paris: Gallimard, 1942, p. 9. 17 Sobre Platão e Aristóteles, o tempo visível e o invisível, ver POMIAN, Krzystof - L’ordre du temps, Paris,

Gallimard, pp. 233-234. Sobre a discussão sobre a natureza do tempo, como real ou ficcional no medievo, ver SCHMUTZ, Jacob - “Juan Caramuel on the year 2000: time and possible worlds in early modern

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querela dos antigos e modernos foi fundamental na apropriação historiográfica do tempo. No entanto, não é o momento de se alongar sobre o assunto. Basta registrar que as diferentes querelas entre os partidários dos antigos e dos modernos (mais ou menos iniciada com Petrarca no século XIV e que se estende até o século XVIII, passando por nomes ilustres como Montaigne, Malebranche, La Bruyère, Perrault, Swift, Fénelon, Vico, Madame Dacier, chegando a Voltaire e a Winckelmann), nas quais os primeiros não viam se não a decadência nos segundos, enquanto esses ou proclamavam a igualdade das duas épocas ou tentavam fazer com que os modernos se beneficiassem do conhecimento acumulado, ou invocassem a idéia de um progresso qualitativo, são também manifestações e interrogações sobre a escrita da história e as experiências temporais, cujos embates, qüiproquós, recusam, negam ou instauram ordens do e no tempo.18

A tomada de consciência, a partir dos séculos XVII e XVIII, que se vivia um novo tempo, adquire consistência semântica com a introdução da expressão história contemporânea e com os novos significados atribuídos à revolução, ao progresso e a correlata aceleração do tempo que implicavam, além da descoberta de civilizações vivendo em graus distintos em um espaço contíguo, que são ordenados diacronicamente por uma comparação sincrônica (o progresso sendo o vetor que converte a experiência cotidiana da simultaneidade do não-simultâneo).19 A conseqüência foi a perda de estabilidade dos acontecimentos históricos, que passam a ser reinterpretados e reescritos, expurgando dessa forma os juízos históricos do reino da inexatidão: “a história é temporalizada, no sentido que, graças ao correr do tempo, a cada hoje, e com o crescente distanciamento, ela se modifica também no passado, ou melhor, se revela em sua verdade. Torna-se evidente que a história, precisamente como história universal, precisa ser reescrita”.20 Por fim, e paradoxalmente, com a maximização da aceleração do tempo no século XIX

scholasticism”, PORRO, Pasquale (edited by) - The medieval concept of time. The scholastic debate and its reception in early modern philosophy. Boston: Brill, 2001, pp. 402-407. Sobre a historicização do conceito ver: KOSELLECK, Reinhart - "’Modernidade’. Sobre a semântica dos conceitos de movimento na modernidade". O futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RJ, 2006, pp. 278-282.

18 Como bem demonstrou YILMAZ, Levent - Le temps moderne. Variations sur les Anciens et les contemporains. Paris : Gallimard, 2004.

19 KOSELLECK, R - “‘Modernidade’. Sobre a semântica dos conceitos de movimento na modernidade”. O futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RJ, 2006, pp. 284-285.

20 Idem, p. 287.

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a história do tempo presente perde crédito, mas não deixa de existir, o que será remediado ou colocado em questão com a emergência, no século seguinte, do regime de historicidade presentista.21

O regime de historicidade presentista

Admitamos que exista, em todas as sociedades, acontecimentos, transformação cultural e retomada do passado pelo presente. Contudo, como pergunta Claude Lefort, podemos dizer que a relação com os acontecimentos, com a transformação e a retomada do passado por uma apreensão hodierna tenha sempre a mesma significação?22 Partindo de uma crítica a Hegel, para quem os povos cujo desenvolvimento não foi concomitante ou posterior, as estruturas estatais não tinham história, sendo o Estado, ao mesmo tempo, sua condição e objeto23, a resposta de Lefort passa pela concepção de historicidade, condição que, da filosofia hegeliana a Heidegger, passando por Dilthey e Ricœur, é marcada pela reflexão sobre a experiência humana do e no tempo.

Se aliarmos a essa genealogia filosófica, a obra do antropólogo Marshall Sahlins, e sua Ilhas de história24, então chegaremos ao contexto intelectual que possibilitou a François Hartog desenvolver a noção de regimes de historicidade. Todavia, não é o momento de se discorrer detalhadamente sobre o tema. Parece-me suficiente reter a idéia de que o regime de historicidade é um artefato tipo-ideal, no molde weberiano, que valida sua capacidade heurística ao interrogar as modalidades de articulação das categorias do passado, do presente e do futuro, formulação que, embora não tributária da semântica histórica de Koselleck, estabelece com ela uma importante interlocução.25 Um dos pontos de contato

21 Idem, pp. 288-293.22 LEFORT, Claude - “Socitété ‘sans histoire’ et historicité”, Les formes de l’histoire. Paris: Gallimard, 1978, pp. 61-62. 23 HEGEL, Georg - A razão na história. São Paulo: Moraes, 1990, pp. 91, 108-114.24 SAHLINS, Marshall - Ilhas de história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.25 Sobre a noção de regime de historicidade, ver de Hartog: Régimes d'historicité, présentisme et expérience du temps.

Paris: Seuil, 2003 (ver também o novo prefácio para a edição de 2012); “Sur la notion de régime d’historicité. Entretien avec François Hartog”. In DELACROIX, C./DOSSE, F./GARCIA, P. - Historicités. Paris: La Découverte, 2009, pp. 133-149. Para um comentário acerca da obra de Hartog, especialmente, sobre o presentismo e os críticos da noção, ver NICOLAZZI, Fernando - “A história entre tempos: François Hartog e a conjuntura historiográfica contemporânea”. História: Questões & Debates, 53, jul-dez. 2010, pp. 229-257.

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entre ambos é a convicção de que as representações do tempo, linguisticamente estáveis ou instáveis, não são apenas expressões que indicam um estado de fato, mas um aporte fundamental à constituição da sua própria percepção.

Por conseguinte, em termos muito gerais, pode-se afirmar que o regime de historicidade antigo se caracteriza pela preponderância do passado, expressa no topos historia magistra vitae, enquanto o moderno carrega consigo a forte marca do futuro, momento em que as lições para a história provêm do porvir, como acontece em Tocqueville e Marx. No entanto, quando essa conjuntura apresenta sinais de desestabilização, como na nossa contemporaneidade, o novo regime que se instaura não reclama mais o passado ou o futuro como atributos hegemônicos, mas o próprio presente. Eis o presentismo, resumidamente, na acepção de Hartog.

Embora possa parecer, à primeira vista, uma sucessão linear de regimes, o próprio vocábulo regime(s), normalmente pluralizado, guarda em si uma carga semântica, que desde o mundo antigo (diaita em grego, regimen em latim) lhe garante não apenas um potencial de mixagem e de superposição, bem como de negação e de coexistência.26

Não chega a ser um segredo epistemológico, portanto, que o presente na história tem uma longa duração. Em Homero, por exemplo, no Canto IX da Odisséia, Ulisses, em meio aos lotófagos, perde a vontade de retornar para casa e aparenta perder suas ambições e projetos. Ele passa a habitar em um presente entorpecido, no qual passado e futuro parecem perder importância.27

Em Heródoto e Tucídides, o presente aparece ora como recurso metodológico, ora como princípio narrativo ou exigência do registro.28 Na idade média, a noção pode ser apreendida tanto do ponto de vista histórico, quanto filosófico, como na tradicional formulação do problema do tempo no já citado Livro XI das Confissões de Agostinho, no qual o presente se constitui em uma das categorias fundamentais de análise.29 Koselleck observa a incidência da expressão

26 HARTOG, François - “Historicité/régime d’historicité”, in DELACROIX, C./DOSSE, F./GARCIA, P./OFFENSTADT,N. - Historiographies, II. Concepts et débats, Paris: Gallimard, 2010, pp. 766-771.

27 HOMÈRE - L’Odyssée. Paris: La Découverte, 1982.28 MOMIGLIANO, Arnaldo - "Time in ancient history". History and theory, 6, 1966, pp. 1-23.29 Sobre o ponto de vista histórico ver GUÉNÉE, Bernard - "Temps de l'histoire et temps de la mémoire

au Moyen Âge", Annuaire-Bulletin de la Société de l'histoire de France. Paris: Klincksieck, 1978, pp. 25-35.

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história do presente, em língua alemã, desde o século XVII, e, é preciso repetir, sua progressiva perda de “dignidade” no século seguinte.30

No século XIX, momento em que certas perspectivas historiográficas procuram a identidade científica definindo a história como simplesmente conhecimento do passado (onde paradoxalmente Tucídides, historiador por excelência do tempo presente, era tido como mestre e modelo), encontram-se várias tentativas de se escrever sobre o presente. De forma que importantes filósofos importantes da primeira metade do século XX, como Robin Collingwood e Benedetto Croce, não se furtaram a teorizar sobre a natureza presentista da produção do conhecimento histórico.31

Nesse sentido, embora a expressão História do Tempo Presente, signo da cultura histórica contemporânea, tenha adquirido legitimidade no campo historiográfico, sobretudo a partir da fundação, em Paris, em 1978, do Institut d’histoire du temps présent, os principais historiadores dessa tendência não ignoram, ou não deveriam ignorar, que houve projetos e tentativas de escrita da história do tempo presente em movimentos historiográficos que lhes antecederam. Em sua configuração mais recente, à história do tempo presente foram associados temas como a identidade (nacional, étnica etc.), o dever de memória, o patrimônio e a figura da testemunha e do juiz, a responsabilidade do historiador, a questão do acesso aos arquivos e as comemorações, que se impuseram como objetos privilegiados da agenda presentista.32

Especificamente sobre Agostinho e o famoso capítulo XI, ver BETTETINI, Maria - "Measuring in accordance with Dimensiones certae: Augustine of hippo and the questiono f time, PORRO, Pasquale (edited by) - The medieval concept of time. The scholastic debate and its reception in early modern philosophy. Boston: Brill, 2001, pp. 33-53.

30 KOSELLECK, Reinhart - "Continuidad y cambio en toda historia del tiempo presente. Observaciones histórico-conceptuales". Los estratos del tiempo: estudios sobre la historia. Buenos Aires: Ediciones Paidós, 2001, pp. 119-120; "Ponto de vista, perspectiva e temporalidade. Contribuição à apreensão historiográfica da história". Futuro passado, op. cit., p. 174.

31 CROCE, Benedetto - Teoria e storia della storiografia (1917). Milano: Adelphi Edizioni, 1989; COLLINGWOOD, Robin - G. The idea of history (1946). Oxford: Clerendo Press, 1993.

32 Para uma visão genealógica sobre a história da história do tempo presente ver PASAMAR, Gonzalo - “Origins and forms of the ‘History of the Present’: an historical and theoretical approach”, Storia della storiografia, 58, 2010, pp. 83-103. Ver também: BÉDARIDA, François - "L´historien régisseur du temps? Savoir et responsabilité". Revue Historique. Paris: PUF, 1998. p. 3-24. BÉDARIDA, François - "La dialectique passé-présent et la pratique historienne". L'histoire et le métier d'historien en France 1945-1995, Paris : MSH, 1995; CHAUVEAU, A./TÉTART, P. - Questions à l'histoire des temps présents. Paris: Complexe, 1992; e a apresentação de ARÓSTEGUI, Júlio. em: "Historia y tiempo presente. Un nuevo horizonte de la historiografía contemporaneista". Cuadernos de Historia Contemporanea, n. 20, 1998, pp. 15-18. GARCIA, Patrick - "Histoire du temps présent". In DELACROIX, C./DOSSE, F./GARCIA, P./OFFENSTADT, N. - Historiographies, I. Concepts et débats. Paris: Gallimard, 2010, pp. 282-294. Ver também o dossier "L’histoire du temps présent, hier et aujourd’hui". Bulletin de l’IHTP, 75, 2000.

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Um exemplo, entre tantos possíveis, desta lógica presentista aplicada à história recente foram as manifestações ocorrida nos Brasil em junho de 2013.

Manifestações presentistas em um tempo desorientadoBrasil, 2013

Junho de 2013 foi para o Brasil um mês atípico. As ruas das principais cidades brasileiras foram tomadas de assalto por um conjunto de manifestações populares que tinham como objetivo inicial protestar contra o aumento das tarifas do transporte público e que logo se entendem a um conjunto heteróclito de demandas que variavam desde políticas assistenciais básicas a reivindicações memoriais. Em semanas o movimento adquire contornos antipartidários e, em seguida, uma forte coloração antipolítica.

Paralelamente, a presidenta da República, Dilma Roussef, vê sua popularidade desabar. De 70% de aprovação caiu para 30% em junho. Em pronunciamento à nação em 21 de junho, ela destaca que está atenta e inaugura oficialmente um primeiro recuo ao passado recente: “A minha geração lutou muito para que a voz das ruas fosse ouvida. Muitos foram perseguidos, torturados e morreram por isso. A voz das ruas precisa ser ouvida e respeitada”.33

Isso não significa que ela seja conivente com a violência e desordens praticadas por alguns manifestantes, explica. Pelo contrário, Dilma garante: “vamos manter a ordem”. O que poderia parecer uma atitude meramente repressiva é compensada por promessas: a elaboração de um Plano Nacional de Mobilidade Urbana; a destinação de cem por cento dos recursos do petróleo (os royalties provenientes da camada de pré-sal) para a educação; e, por fim, contratar milhares de médicos do exterior com objetivo de atender o Sistema Público de Saúde (o plano Mais médicos). Tais propostas, sobretudo a segunda e a terceira, foram aprovadas em um lapso de tempo surpreendente no Congresso Nacional, reforçando a concepção

33 UOL. Notícias. Leia a íntegra do pronunciamento da presidente Dilma. Brasília, 21-06-2013, [consult. 12-10-2015] Disponível na Internet. URL: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/06/21/leia-a-integra-do-pronunciamento-da-presidente-dilma.htm>

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de que estavam completamente despreparados para tratar com acontecimentos desta natureza. E, de certa forma, confirmando igualmente uma característica do regime de historicidade presentista, que nos termos de François Hartog: “cada vez mais estamos concentrados em respostas imediatas ao imediato. É necessário agir em tempo real, o que é levado até a caricatura entre os políticos.”34

Ouvir as ruas, finalmente, para Dilma significa que: “Precisamos - explica a presidenta no mesmo pronunciamento - de suas contribuições, reflexões e experiências, de sua energia e criatividade, de sua aposta no futuro e de sua capacidade de questionar erros do passado e do presente”. Mas de qual passado se trata? A qual presente ela se refere? Se considerarmos que alguns dias depois, o governo proporá um plebiscito para discutir a reforma política e mesmo uma Assembleia Constituinte, então notaremos que o passado é o passado recente, pós-Constituição de 1988, e o presente o tempo em que se admite erros e se autocorrige, mas destituído da ideia de futuro. Fazer uma nova constituição implica em um tempo político e social que o Brasil, ou sua elite dirigente, parece não dispor. Talvez este seja um dos motivos pelo qual a proposta foi simplesmente esquecida pelos políticos, mídia e manifestantes.

Em meados de julho, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva intervém no debate. Em matéria publicada no The New York Times, intitulada “The Message of Brazil’s Youth”, ele procura recuperar a dimensão política e partidária das manifestações. Autoelogiando seu governo e da sua sucessora, ele diz não perceber nos protestos uma rejeição à política, mas justamente o contrário: o aprofundamento da democracia brasileira.35 Participantes de uma era digital, enquanto os políticos viveriam em uma era ainda analógica, esses jovens que com “seus dedos rápidos tomaram as ruas do mundo” (“Young people, quick fingers on their cellphones, have taken to the streets around the world”), não viveram, salienta Lula, tal como Dilma já o fizera em seu pronunciamento, a ditadura civil-militar, nem a economia inflacionária dos anos 1980, e lembram-se pouco dos anos 1990, quando o desemprego deprimia o país. Em outras palavras, o ex-presidente dá a entender que eles não têm cultura histórica, nem memória; eles vivem apenas

34 HARTOG, François - Croire en l’histoire. op. cit., pp. 101-102.35 Luis Inácio Lula da Silva - “The Message of Brazil’s Youth”. The New York Times, july 16, 2013.

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em um presente com aparência de eternidade! Se, por um lado, para Lula e também para Dilma, buscar o passado em que

tiveram atuação política seria um remédio para esta amnésia social da juventude, por outro, no cotidiano das manifestações, ela age como veneno social, na medida em que possibilita a emergência de discursos comparativos que esvaziam mais uma vez o passado: 2013 passa a ser vivido, por grupos articulados ou desarticulados politicamente, como um preâmbulo golpista equivalente aos anos 1963-64, ou como um fantasma da ditadura, positivo ou negativo.

Assim, não é surpreendente que em julho ocorra uma manifestação em São Paulo, em plena Avenida Paulista, “contra a ditadura comunista” e pelo retorno dos militares ao poder.36 Ou que no Rio de Janeiro, a Associação dos Professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, uma das mais importantes do Brasil, divulgue pela cidade um outdoor com os seguintes dizeres: “Verdade, Memória e Justiça: Ditadura nunca mais!”. A história subtrai-se em nome da verdade, da memória e da justiça: a história que se repete, ou que estaria se repetindo, é representada nas imagens e nas datas. De certa forma, mais do que um alerta ciceroneano – historia magistra vitae – ela sinaliza para a invasão dos anos 1960 no presente, para a presentificação e o estabelecimento de um tempo homogêneo: 2013 é 1964!

As manifestações que ocorreram em 2013 no Brasil obviamente relacionam-se com o legado de seu passado recente. Mas também com uma história globalizada, cujo signo de reconhecimento é o www, que opera fortemente relacionada a temas locais: “os efeitos do global sobre o local, o glocal, e um certo efeito de retorno sobre o global desse glocal”.37 Não parece outra a razão para as manifestações, em certo momento, serem comparadas à chamada primavera árabe, que por sua vez mimetizava a primavera dos povos de 1848... Aqui parece aplicável a correção que Marx faz a lei hegeliana da repetição histórica com uma crítica irônica à imitação:

36 Último Segundo. Manifestação pela volta dos militares reúne menos de 100 pessoas na Paulista. São Paulo. 10-07-2013. [consult. 12-10-2015] Disponível na Internet. URL: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/sp/2013-07-10/manifestacao-pela-volta-dos-militares-reune-menos-de-100-pessoas-na-paulista.html>

37 HARTOG, François - “De l’histoire universelle à l’histoire globale? Expériences du temps”. Le Débat,.2009, 2, nº 154, pp. 53-66. Para uma abordagem diferente, mais vaticinador e de certa forma prescritivo ver CHRISTIAN, D. - “The return of universal history”. History and Theory, 49, 2010, p. 6-27.

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à tragédia sucede a farsa!38 Essa dicotomia, local e global, longe e perto nos termos de Lévi-Strauss,

tem levado muito historiadores à aporia e a ausência de compreensão histórica. O entendimento do caso brasileiro deve ainda considerar uma duração mais ampla: monarquia escravista isolada entre repúblicas até o final do século XIX, nos desenvolvemos com base em uma cultura política autoritária que atravessa o século XX, e que, embora o clima democrático em que vivemos desde 1988, insinua-se de modo ameaçador e ingênuo em meio às manifestações contemporâneas.

Por conseguinte, o problema do passado recente, destituído dessa historicidade, é que se, por um lado, ele é recente para a geração nascida depois dos anos 50, por outro lado, não o é para a dos jovens nascidos depois da redemocratização (1985). Assim, não é surpreendente o império da história do tempo presente em nossas universidades e mesmo nos livros didáticos do ensino fundamental e médio. Seria, no entanto, interessante pesquisar por que os jovens consideram que se vive em uma ditadura, ou por que muitos antigos a querem de volta? A história do tempo presente e seus mestres não deveriam dar conta dessas questões? Não deveriam ser capazes de explicar conceitualmente o que é uma ditadura, para ambos, jovens e adultos?

Inúmeras questões emergiram nestes últimos meses e seus efeitos ainda não são mensuráveis. Por exemplo, assim como a presidenta Dilma perdeu popularidade, ela a recuperou, e, hoje, ostenta, após a eleição de 2014, indicadores desfavoráveis. As manifestações se arrefeceram, mas a ideia de que tudo se repetiria em algum momento em 2014 foi um fantasma que assombrou políticos, empresários e a mídia. Além da Copa do Mundo, da eleição presidencial, em 2014 houve a “comemoração” dos 50 anos do Golpe Civil-Militar de 1964. 2013 acabou totalmente confundido com 2014: um só presente. Enfim, se para Hartog, o artífice da ideia contemporânea do presentismo, vivemos em um período saturado de presente e de parada do tempo no qual “amanhã já é hoje”, então, no Brasil, hoje já é amanhã.39

38 MARX, Karl - “O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852)”. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, v. I, s/d, p. 203.

39 HARTOG, François - Croire en l’histoire, p. 102.

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O tempo do historiador

O presente sempre foi a categoria do discurso histórico que mais me intrigou. Recordo-me da sensação que me causou, quando ainda era um jovem estudante, a leitura de A apologia do historiador de Marc Bloch, livro escrito em situação difícil, particularmente a pequena passagem repleta de reminiscências em que relata: “Eu acompanhava Henri Pirenne a Estocolmo. Mal havíamos chegado e ele me disse: ‘O que vamos ver primeiro? Parece que há uma prefeitura nova. Comecemos por ela’. Depois, como se quisesse prevenir um espanto, ele acrescentou: ‘Se eu fosse um antiquário, eu somente teria olhos para as coisas antigas. Mas eu sou um historiador. É por isso que amo a vida’. Essa faculdade de apreensão do vivo, eis bem, com efeito, a qualidade mestre do historiador. O erudito que não tem o gosto de olhar a seu redor nem os homens, nem as coisas, nem os acontecimentos, merecerá talvez, como dizia Pirenne, o nome de um útil antiquário. Sabiamente ele renunciará àquele de historiador.”40

Desde então o presente passado ou o futuro do presente permaneceu uma de minhas inquietações sobre a condição histórica. Tal preocupação veio ao encontro do estranhamento que me proporcionou, também ainda jovem, a leitura de A Náusea, e seu personagem principal, Antoine Roquentin, um historiador, que se dizia asfixiado pelo presente.41

Nessa paisagem intelectual seria importante refletirmos sobre a história na época digital: a divulgação das fontes, o problema do autor (hoje é mais importante ser lido do que ser reconhecido!), a questão da testemunha etc. Os historiadores têm falado pouco, em termos teóricos, acerca do nosso tempo, conquanto proliferem as histórias do tempo presente e do imediato. Entretanto, mais uma vez, eles foram antecipados pela arte, especialmente pela literatura e pelo cinema, em uma espécie de reatualização da máxima aristotélica do capítulo IX da Poética. Alguns exemplos apenas: o livro de Antônio Tabucchi, O tempo envelhece depressa, pleno de sinais de que a relação entre o tempo e a memória defrontam-se com um presente não apenas opressivo mas que reluta em passar, simplesmente envelhece; ou O homem em queda

40 BLOCH, M. - Apologie pour l'histoire ou métier d'historien, p. 63-64.41 SARTRE, J.-P. - La nausée (1938). Paris: Gallimard, 2001, p. 139-140.

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de Don Delillo, que conta a saga de personagens que de alguma maneira foram atingidos pelo 11 de setembro de 2001 e a nova perspectiva temporal que se abre a partir daí, ou o seu Cosmopólis no qual a relação capistalista com o tempo inverte-se, ele não é mais dinheiro, mas o “dinheiro faz o tempo” e a conclusão, de um de seus personagens, de que “a vida é contemporânea demais”; ou o apocalíptico A estrada de Cormac McCarthy, que narra a história de um futuro como utopia negativa instalado em nosso presente; ou ainda o Tigre de papel, de Olivier Rolin, no qual uma história oculta do maio francês conduz o narrador quase três décadas depois a constatar com certa melancolia que se “hoje parece existir somente o presente, naquela época (em 1968), o presente era bem mais modesto, era o passado e o futuro que tinham uma presença formidável”. Por fim, o último filme de Terrence Malick, A árvore da vida: uma história de família em que ilusões bíblicas e (in)certezas cotidianas, estabelecidas a partir de um jogo entre memória individual e coletiva, na qual o filho (Sean Penn) é mais velho que o pai (Brad Pitt) e que por meio de uma narrativa cansada e monótona produz, na minha opinião, física e psicologicamente, no espectador uma forte desaceleração do tempo com a qual ele não está mais acostumado. Se o tempo torna-se tempo humano somente se for articulado de maneira narrativa, como sustenta Ricœur, então estamos diante de outra dimensão temporal: a de um presente autoritário que não se deixa apreender facilmente, muito menos ser questionado.42

É difícil e, possivelmente, prematura qualquer avaliação dessa conjuntura (pós 11 de setembro?). Mas não podemos deixar de perceber a onipresença do presente e alguns de seus cômodos significantes. O desejo consciente ou inconsciente de ver e de ser visto, a necessidade de estar conectado, a ruína do anonimato. Um homem sem sossego! Não seria um bom título, no rastro de Robert Musil, para começarmos a pensar nossa contemporaneidade? A história do tempo presente com suas limitações, interdições e voluntarismo é uma espécie de resposta da comunidade historiadora a esta agenda imposta desde o exterior da disciplina. O historiador do tempo presente tem que reaprender a olhar (antigo primado

42 TABUCCHI, A. - O tempo envelhece depressa. São Paulo: Cosacnaify, 2010; DELILLO, D. Homem em queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, DELILLO, D. Cosmopólis. São Paulo: Companhia das Letras, 2003; McCARTHY, C. - A estrada. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007; ROLIN, O. Tigre en papier. Paris: Seuil, 2002, p. 29-30. MALICK, T. - A árvore da vida, filme, 2011.

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epistemológico que remonta a Heródoto e Tucídides), a escutar (a testemunha), a interpretar a partir de outra documentação, de fontes outrora desconsideradas.

O presente é o tempo do historiador.43 De qualquer historiador, de qualquer época ou lugar. Ele sempre parte de seu presente, de seu tempo. Logo, se o presentismo caracteriza o regime de historicidade contemporâneo, ele não é menos atuante em outras configurações historiográficas. A diferença é que, em outros momentos, ele não fechava o futuro, nem escapava do passado. O presente era um modo temporal, um período, uma etapa, uma sombra que se projetava para frente ou para trás, um espectro do homem ou da sociedade, não um agora que se insinua como eterno. Um tempo insolente e dominante cuja amplitude procura desestimular qualquer atentado a sua onipotência. Resta-nos a crítica intelectual a sua evidência. Esperemos que ela contribua para sua desestabilização.

43 HARTOG, F. - Le présent de l’historien. Le Débat, 2010/1, nº 158, pp. 18-31.

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C O N T I N U I DA D E S E R U P T U R A S H I S T O R I O G R Á F I C A S :

O C A S O P O R T U G U Ê S N U MC O N T E X T O P E N I N S U L A R

( C . 1 8 3 4 - C . 1 9 4 0 )

Sérgio Campos Matos

Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de História

Na modernidade difundiu-se na escrita da história uma exigência de distanciação crítica (que aliás não era nova) em relação às fontes e ao próprio objecto de estudo, quando não um corte entre presente e passado1. Mas o presente irrompe a cada passo no trabalho do historiador que sempre selecciona temas, problemas, balizas temporais, conceitos, interpretações - mesmo quando alimenta a ilusão de que, no seu trabalho, reconstitui ou ressuscita o passado tal como teria

1 CERTEAU, Michel de − L´écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 1975, p.58. Este texto constitui uma versão aprofundada de uma outra versão publicada em castelhano: FORCADELL, Carlos PEIRÓ, Ignacio e YUSTA, Mercedes (eds.), El pasado en construcción. Revisionismos históricos en la historiografía contemporánea. Zaragoza: Institución Fernando el Católico 2015, pp.249-274.

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sucedido. Neste sentido, quem investiga e escreve um trabalho historiográfico não pode evitar que também a sua prática se situe num tempo específico, tenha uma historicidade2. O historiador não está fora da história. Também não está no tempo a que se refere a sua narrativa, como poderiam sonhar alguns: tem por isso que lidar com a alteridade. E, naturalmente, todas as sociedades humanas, todos os indivíduos cultivam atitudes diferenciadas em relação ao passado. Centrando-me no caso português e estabelecendo nexos com outras culturas históricas europeias, pretendo neste texto 1. Caracterizar dois momentos em que, no campo historiográfico, se afirmaram intenções de ruptura com o passado próximo e em que se delinearam projectos de futuro, estabelecendo uma relação entre história e Res publica. Não esquecendo que as intenções de corte com o passado próximo exprimem por vezes vontade de regressar a um passado mais distante (caso do medievalismo dos historiadores românticos). 2. Situar as mudanças que se operaram nos dois últimos séculos na escrita da história numa escala transnacional, europeia mas sobretudo peninsular.

Nestes dois últimos séculos podem distinguir-se quatro momentos significativos na historiografia portuguesa que se traduziram em profundas transformações na escrita da história.

1. Os decénios de 1840-50, o momento Herculano, que corresponde aos primórdios da construção do estado liberal, um tempo de grande conflitualidade política não só entre liberais mas também entre estes e os adeptos da antiga sociedade portuguesa. Nele se difunde largamente a narrativa liberal, marcando bem a ruptura com o Antigo Regime político;

2. 1915-20, tempo coincidente com a tentativa modernizadora e crise da I República, caracterizado por grande instabilidade política, acentuada pela I Grande Guerra e em que, contra a narrativa liberal e republicana, se afirma a reacção tradicionalista do Integralismo Lusitano;

2 Para esta problemática veja-se FERNÁNDEZ SEBASTIÁN, Javier “Historia, historiografía, historicidad. Conciencia histórica y cambio conceptual”, en Europa del sur y América latina. Perspectivas historiográficas, Manuel Suárez Cortina, ed., Madrid: Biblioteca Nueva, 2014, pp. 35-64.

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3. Os decénios de 1940/50 quando, em contacto com a historiografia francesa – Annales e marxismo – se revela um pensamento crítico em relação ao historicismo nacionalista do Estado Novo; O Dicionário de História de Portugal (1963-71), dirigido por Joel Serrão, é o produto mais expressivo desta geração;

4. Os decénios de 1980-90 em que se alargam muito significativamente os cursos de história e se estreia uma nova geração de historiadores já formada depois de 1974; a partir de 1993, três novas histórias de Portugal sintetizam este movimento3. Considerarei neste estudo apenas os dois primeiros momentos. E deixarei para outra ocasião os seguintes.

Portugal et en Espanha : para uma comparação necessária

Importa notar que estes momentos de mudança encontram correspondência em Espanha. Na verdade, detecta-se não só um paralelismo entre as experiências históricas de Portugal e Espanha, mas também entre as historiografias portuguesa e espanhola. Em ambas as nações verificou-se, a partir das revoluções liberais, uma forte tendência para a secularização dos historiadores (a esmagadora maioria dos historiadores era já secular no seculo XIX); a historiografia tornou-se um ofício de não-especialidade, também em Espanha muitos historiadores eram jornalistas e políticos – poucos eclesiásticos. Mas, em comparação com a Alemanha e a França, nota-se na península um atraso na profissionalização dos historiadores. A história entrou para os planos de estudo universitários um pouco mais cedo na Espanha do que em Portugal e a população universitária espanhola (incluindo professores de História) cresceu num ritmo superior. Cadeiras de História no ensino superior foram introduzidas em 1859 quando se fundou em Lisboa o Curso Superior de Letras (o mesmo sucedera em França, em 1808, na era napoleónica, e em Espanha em 1849 et 1857 na Universidade de Madrid, e depois na Itália, no Reino da Sardenha e Piemonte, em 1862). Mas em 1928 só havia 14 professores de história

3 Coordenadas por José Mattoso, A.H.Oliveira Marques-Joel Serrão e João Medina.

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nas universidades portuguesas e 35 em Espanha4. O que mostra bem como em pleno século XX a historiografia continuava a ser produto de autodidactas. É claro que, pela sua maior diversidade regional, o caso da Espanha reveste-se de uma maior complexidade: os nacionalismos periféricos na Catalunha, no País Basco e na Galiza para tanto contribuíram desde meados do século XIX também na compreensão dos problemas, alimentando lealdades patrióticas “regionais”, a par do patriotismo hispânico.

Para além disso, houve uma quase coincidência temporal entre a divulgação das tendências historiográficas europeias em Espanha e Portugal, bem evidente nos dois momentos que vou considerar: os anos 40/50 do século XIX e os anos 20 e 30 do século XX. No entanto, houve também assincronias : por exemplo, o krausismo teve mais influência entre a elite espanhola. E o positivismo - especialmente na versão de Littré -, em Portugal, foi importado um pouco antes (a partir cerca de 18655, em Espanha, em 1875).

Em ambos os casos houve tradições providencialistas de fundação: Túbal, Santiago, Viriato e Pelaio. É certo que se notou um declínio das tradições lendárias no século XIX: o mito de Túbal e da sua descendência, a tradição de Ourique, a tradição das Cortes de Lamego. Mas persistiu a identificação de Portugueses e Lusitanos. Também em Espanha, Lafuente o mais influente historiador nacional descartou-as velhas tradições ainda em voga no séc. XVIII6. Por outro lado, o constitucionalismo histórico marcou as duas culturas políticas7 : o carácter historicista do liberalismo - a importância da antiga constituição, das cortes, concelhos e foros municipais. Também o mito da cruzada povoou numerosas narrativas históricas dos dois lados da fronteira. E diferentes teorias da decadência marcaram a memória das nações peninsulares: a teoria dos três séculos da decadência dos povos peninsulares 8,

4 PORCIANI, Ilaria e RAPHAEL, Lutz (Eds.) − Atlas of European Historiography. The making of a profession 1800-2005. Londres: Palgrave Macmillan/European Science Foundation, 2010.

5 Fernando Catroga, “Os inícios do Positivismo em Portugal- o seu significado político-social“, Revista de História das Ideias, Universidade de Coimbra, vol.I, 1977, pp. 287-394.

6 ALVAREZ JUNCO, José e FUENTE MONGE, Gregorio de la − “La evolución del relato histórico”, Las Historias de España. Visiones del pasado y construcción de identidad, História de España, J. FONTANA y R.VILLARES dirs., vol.12. Madrid: Crítica/Marcial Pons, 2013, p. 266.

7 MATOS, Sérgio Campos − “Uma legitimação histórica da política”. Tradição e modernidade, Tempo e história. Ideias políticas. Estudos para Fernando Catroga, coorden. TORGAL, Luís Reis et alia. Coimbra: Almedina-Fundação Eugénio de Almeida, 2015 e SUAREZ CARPEGNA, Joaquin La Doctrina de la Constitución Histórica de España, http://www.unioviedo.es/constitucional/.

8 QUENTAL, Antero − “Causas da decadência dos povos peninsulares”, Prosas socio-políticas, ed. de SERRÃO,

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invocando como causas o despotismo, o catolicismo da contra-reforma (Inquisição, expulsão dos judeus) e a expansão no ultramar. Por seu lado, Lafuente tem um ponto vista muito crítico em relação à Inquisição e à expulsão dos Judeus, mas apaga uma responsabilidade dos reis nas políticas adoptadas a este respeito. No campo do tradicionalismo português houve quem negasse a possibilidade de se provar que tivesse havido decadência. Fundamentalmente procurava negar-se que o século XVII fosse um tempo de decadência como sugeria a historiografia liberal e, já nos anos 20, o ensaísta António Sérgio9. O que implicava uma revisão da função do tribunal da Inquisição – agora visto muito positivamente como factor de unidade e de purificação nacional em relação a heresias – da Companhia de Jesus, da Igreja da Contra-Reforma e da acção dos monarcas que haviam expulsado os judeus e introduzido a Inquisição (os reis católicos e D. João III). No entanto, o século XVII era o tempo de afirmação do jusnaturalismo moderno, do neo-tomismo e da segunda escolástica, bem como da voga da teoria da origem popular do poder real e das restrições aos excessos do poder despótico da monarquia ibérica10. Do lado espanhol, para Menéndez Pelayo a grandeza da Espanha assentava na defesa da fé católica como essência da nação e da monarquia tradicional do Antigo Regime (dos Reis Católicos e dos Áustrias). O declínio teria resultado das derrotas militares, e sobretudo da acção daqueles que tinham quebrado a unidade cristã: anglicanos, protestantes, a França dos Bourbons 11. Para muitos autores tradicionalistas, o declínio da Espanha tinha começado no século XVIII, com a disseminação das ideias do Iluminismo e o despotismo esclarecido. Também para tradicionalistas portugueses como António Sardinha e os seus companheiros de A Nação Portuguesa assim fora, no respeitante a Portugal.

No que respeita a tópicos fundamentais como a explicação da formação dos

Joel. Lisboa: INCM, s.d., pp.255-296.9 SÉRGIO, António − “O Reino cadaversoso ou o problema da cultura em Portugal”, Ensaios II. Lisboa:

Sá da Costa, 1977 (texto datado de 1926), pp.27-57. Para tese tradicionalista, negando que tivesse havido decadência, veja-se MÚRIAS, Manuel − O Seiscentismo em Portugal, Lisboa: s.n., 1923, p.21. O que daria lugar a uma polémica entre o integralista Manuel Múrias e o racionalista António Sérgio. Anos depois, Mário de Albuquerque, na sua tese de doutoramento apresentada na Universidade de Lisboa também poria em causa o conceito de decadência, cf. O significado das navegações e outros ensaios. Lisboa, s.n., 1930.

10 Veja-se Pedro CALAFATE, Pedro e MANDADO, Ramón E. − “Introdução”, Escola Ibérica da Paz 1511-1694. Santander: Ed.Universidad Cantabria, 2013, pp.112-154.

11 ANDRÉS-GALLEGO, José − “El problema (y la posibilidad) de entender la Historia de España », Historia de la historiografia española. Madrid: Ed. Encuentro, 1999, p.303.

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estados e nações, a teoria da decadência ou os conceitos de tradição e progresso, as narrativas liberais e as narrativas tradicionalistas e conservadoras configuraram em larga medida visões antagónicas do passado. E se as primeiras dominaram largamente no século XIX, a partir dos finais deste século, nacionalismos étnicos então muito em voga estimularam usos historicistas e retrospectivos de conceitos como pátria, nação, raça, progresso, degenerescência (entre outros) que, embora não fossem novos, se usavam agora no quadro de discursos políticos antiliberais, antidemocráticos e antiparlamentares. Poder-se-á dizer que houve leituras revisionistas, ou tão-só de revisões do passado?

A noção de revisionismo foi importada do vocabulário político e convém, neste contexto, exprimir prevenções críticas a seu respeito. Segundo Enzo Traverso, perante os abusos de algumas das suas ocorrências deve precisar-se o seu significado tendo em conta os contextos específicos em que é empregue. Na verdade, há um juízo de valor nesta palavra que é um anátema. Quando se alude a revisionismo não raro pressupõe-se uma “história oficial”. Como sugere Traverso, falar de revisionismo remete para uma história de “teologizada”. É por isso que este historiador considera a noção de revisionismo “altamente problemática e, muitas vezes nefasta”12. Compreende-se pois que diversos historiadores tenham o cuidado de diferenciar revisionismo de revisão do passado13. Revisão é re-análise das fontes para o estudo do passado, à medida que novas investigações a isso vão obrigando, o que obriga a uma releitura historiográfica, eventualmente com nova informação, por vezes também numa diferente perspectiva teórica. Revisionismo é releitura ou reinterpretação do passado, comandada por negacionismos - ou seja negando acontecimentos como o Holocausto ou a primeira viagem do homem à lua, geralmente no âmbito de ideologias sectárias, exclusivistas e dogmáticas. Se é certo que o estudo do campo historiográfico não pode reduzir-se a categorias políticas que diferenciam diferentes sectores políticos e ideológicos14, convém então

12 TRAVERSO, Enzo − Le passé, modes d’emploi. Histoire, mémoire, politique. Paris : Ed. La Fabrique, 2005, p. 109 e 119. Uma outre perspectiva: HUGHES-WARRINGTON, Marnie Revisionist histories, New York-Abingdon: Routledge, 2013.

13 Por exemplo, TUCKER, Aviezer − “Revisión historiografica y revisionismo. Divergencias en la consideración de la evidencia”, FORCADELL, Carlos PEIRÓ, Ignacio y YUSTA, Mercedes (eds.) − El pasado en construcción...,p. 31 e RUIZ TORRES, Pedro − “La controversia de los historiadores sobre la memoria histórica en España”, Idem, p. 94.

14 Na verdade, em história da historiografia esta problemática da relação entre campo historiográfico e campo

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perguntar que aplicação pode ter a noção de revisão do passado ao século que medeia entre os decénios de 1840/50 e os anos 40 do século XX – entre o momento Herculano e o momento do Integralismo Lusitano?

O momento Herculano

As condições da escrita da história sofreram profundas transformações, na passagem da sociedade do Ancien Régime para a modernidade: a revolução liberal introduziu uma consciência de ruptura, de descontinuidade. Afirmou-se a percepção de que esse tempo de viragem, que coincide com a era das revoluções (dos finais do séc. XVIII às primeiras décadas do século XIX), correspondeu a uma aceleração da velocidade das mudanças15. Karl Jaspers referiu-se a um novo tipo de consciência histórica a partir da época da Revolução Francesa: a do tempo presente, por oposição a outros tempos, anteriores à revolução. Em França e noutros países, os historiadores assumiram a função social de ideólogos da consciência nacional16. E poder-se-á dizer que houve épocas de continuidade e ruptura com o passado: retomo aqui uma pertinente distinção que Ortega y Gasset estabeleceu nos modos como diferentes gerações se relacionam com o passado, os modos como se

político tem sido por vezes mal entendida. Alguns historiadores limitaram-se a classificar os seus antecessores (e os seus contemporâneos) mediante categorias políticas. Como se as narrativas históricas pudessem subsumir-se à categoria de grandes opções políticas. Difundiram-se categorias como “historiografia liberal”, “historiografia republicana”, “historiografia tradicionalista”, “historiografia católica conservadora”, “historiografia do Estado Novo”. Grosso modo, poder-se-á estabelecer este tipo de classificações, eu próprio a elas tenho recorrido. O que se afigura redutor é limitar o estudo do pensamento histórico e da historiografia a tipologias políticas. É que, de facto, elas podem ser equívocas, sobretudo se nos centrarmos no terreno das teorias e práticas historiográficas. Houve tradicionalistas em termos políticos que foram inovadores: lembrem-se os casos de Lúcio de Azevedo – que deu um contributo relevante para renovação da história económica (por exemplo, no que respeita aos conceitos de monarquia agrária e de ciclo) e Abúndio da Silva (A história através da história, 1903), que introduziu em Portugal os conceitos de memória orgânica (no povo, ao nível do instinto) e memória consciência (no escol social). Em Espanha, o tradicionalista Menéndez Pelayo é unanimemente considerado um grande historiador, autor de uma obra marcante a diversos títulos. E, voltando a Portugal, em 1970, inesperadamente, um historiador de formação marxista, António Borges Coelho, desenvolveu uma crítica a Vitorino Magalhães Godinho que incide no alegado “economismo” de alguns ensaios deste último historiador. Os rótulos é o que menos interessa em história da historiografia (veja-se Questionar a História, vol.I, Lisboa: Ed.Caminho, 1983, pp. [texto originalmente na Seara Nova, nº1494, Abril de 1970] e a resposta de Magalhães GODINHO em “Prefácio”, Ensaios III, Lisboa: Sá da Costa, 1971, pp.XI-XXXII).

15 Sobre esta profunda mutação, veja-se FERNÁNDEZ SEBASTIÁN, Javier “Cabalgando el corcel del diablo. Conceptos políticos y aceleración histórica en las revoluciones hispánicas”, Conceptos políticos, tiempo e historia: nuevos enfoques en historia conceptual, coord. por FERNÁNDEZ SEBASTIÁN e CAPELLÁN DE MIGUEL, G. Santander: McGraw Hillm – Universidad de Cantabria, 2013, pp.423-462

16 NORA, Pierre − Présent, nation, mémoire. Paris : Gallimard, 2011, p. 377.

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relaciona a herança do passado com aquilo que é próprio de uma geração. Nesta perspectiva, Ortega diferencia “épocas cumulativas” (de continuidade) e “épocas eliminatórias ou polémicas” (de ruptura) – gerações de combate17. São tendências gerais que, evidentemente, não abrangem todos os autores. Todavia, a distinção é útil na identificação de duas conjunturas em que determinados autores intentaram instaurar um corte com a consciência histórica dominante: o momento Herculano e o momento do Integralismo Lusitano.

Nessa primeira conjuntura (decénios de 1840-50), a influência de outras historiografias europeias é bem patente, especialmente da historiografia francesa cuja influência foi dominante na Penísnsula Ibérica (Augustin Thierry, Guizot), mas também da historiografia alemã (Moeser, Humboldt, Niebhur, Savigny, Ranke), sem esquecer todavia a marca do romance histórico britânico. Note-se que por essa época, após a primeira guerra civil em Espanha e Portugal, tentava construir-se na península estados centralizados e unitários, de inspiração francesa. Em Portugal, alguns historiadores mostravam-se muito críticos em relação a este modelo, adeptos do municipalismo, da descentralização (Herculano, Pinheiro Chagas) e valorizando a experiência dos municípios medievais como o antecessora da democracia moderna. Mas não em Espanha Modesto Lafuente, que era um seguidor de um estado centralizado. O momento liberal do século XIX, numa primeira etapa, para os anos de 1840-50, os estados peninsulares saídos de sangrentas guerras civis entre liberais e absolutistas, estavam envolvidos em processos de construção da nação-estado, envolvendo projetos de modernização. Herculano argumentava em prol da necessidade de uma história crítica, com base em documentos, longe das tradições míticas que tinham dominado no antigo regime. Embora os historiadores continuassem a ser autodidactas, sem formação específica, o seu trabalho já se legitimava usando requisitos heurísticos e hermenêuticos que diferenciavam claramente a história da literatura e da retórica. Neste contexto compreende-se a rejeição dos antigos mitos de fundação (tradições de Ourique, Túbal, e Lusitanos)

17 ORTEGA Y GASSETT − El tema de nuestro tiempo. Madrid: Calpe, 1923, pp.24-26. Evidentemente, a perspectiva de Ortega é discutível, sobretudo quando identifica estas épocas, respectivamente, com “senetude” e “juventude” - ressonâncias de um entranhado organicismo. E, como é sabido, a sua teorização do conceito de geração, que erigiu em “método histórico” (que tanto marcou o jovem Fidelino de Figueiredo), foi submetida a uma pertinente revisão crítica em que se destacam contribuições tão diversas como as de Julian Marias ou Manuel Tuñon de Lara.

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que enformavam uma “história fabulosa”. A ruptura política com o passado envolvia uma ruptura com a sua memória feita, em larga medida, de tradições míticas e de um sentido de excepcionalidade pátria que passava pelo jusdivinismo e pelo providencialismo.

Numa mudança de paradigma em que a história se autonomizou como disciplina comandada por um método crítico, Herculano assumiu um papel liderante. Tinha começado a sua actividade como romancista, poeta e jornalista. Só num segundo tempo se tornou historiador – acabara de ler Thierry e Guizot, e os historiadores alemães. E com ele afirmavam-se grandes características da historiografia liberal: uma intenção nacionalizadora relacionada com surgimento de uma nova ordem – a do estado liberal – uma racionalidade secular baseada nos conceitos de pátria, nação e o progresso, e, acima de tudo, um sentido de autonomia do autor-historiador em relação aos poderes instituídos, bem evidente na consciência crítica que o historiador cultivou em relação ao seu tempo. Na explicação da independência de Portugal operava uma rotação de grande significado: uma legitimidade racional – a vontade política da elite que acompanhava D. Afonso Henriques - substituía uma legitimidade tradicional, dinástica. Herculano interrompe a sua História de Portugal no final do século XIII para dedicar-se à Historia da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal (3 vols., 1854-59)18. Esta última era uma obra de intencionalidade pragmática e política, em que queria identificar as causas e as consequências da acção do Tribunal sobre a sociedade portuguesa do século XVI. Não houve em Portugal, no século XIX, nenhuma alternativa a este trabalho - nenhuma versão apologética e desenvolvida da Inquisição proveniente do campo católico e conservador. Nem houve nenhum historiador católico tradicionalista da estatura de Balmes, Donosco Cortés ou de um Menéndez Pelayo em Espanha. O que, como bem observou Eduardo Lourenço, não deixaria de ter consequências para o futuro 19.

Em nome de uma história da nação e das grandes tendências do seu desenvolvimento, Herculano, bem como Lafuente, tinha a intenção de deixar a

18 Veja-se MACEDO, Jorge Borges de − “A tentativa histórica ‘Da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal’ eas insitências polémicas”, Historia da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal, t.1. Lisboa: Bertrand, 1975, pp.XL-XLII.

19 LOURENÇO, Eduardo, Cultura e política na época marcelista. Entrevista de Mário Mesquita, Lisboa: Cosmos, 1996 [1972], pp.43-44.

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dimensão individual e factual20 para entender as grandes transformações históricas. Todavia nem sempre o conseguiu ou quis: veja-se por exemplo a sua explicação acerca da separação política de Portugal, centrada na vontade da elite que rodeava o primeiro rei português. Ou o modo como valoriza historicamente o papel de alguns dos monarcas da primeira dinastia. De qualquer modo, o autor da História de Portugal exprime assim uma intenção de ruptura com a historiografia anterior que fundamentava o Antigo Regime político21. Mas não deixa de continuar os esforços de historiadores ligados à Academia Real das Ciências como João Pedro Ribeiro e António Caetano do Amaral22. Num sentido restrito, de Herculano não ficaram discípulos. Mas a sua interpretação do percurso histórico nacional marcou um conjunto de divulgadores que escreveram outras histórias de Portugal, romances históricos e curtas narrativas que foram adoptadas no ensino público: refiram-se, entre outros, Rebelo da Silva, Pinheiro Chagas, António Enes Vilhena Barbosa e Silveira da Mota23. Por outro lado, o método crítico do grande historiador deixou marcas significativas na afirmação de uma história ciência cultivada por historiadores arquivistas, tecnólogos, arqueólogos – uma elite cultural preocupada em cultivar a memória da nação. Com eles se difundiu a ideia de que a história, quando fundada numa base documental, pode ser objectiva e imparcial, mas também a ilusão de que a prática da história faz reviver o passado e as virtudes de um tempo forte, anterior ao declínio. Com os finais do século, duros combates ideológicos faziam emergir a categoria dos intelectuais enquanto grupo: em França com o affaire Dreyfus, em Espanha com a geração de 98 e toda uma reflexão da nação como problema. A emergência das massas no espaço público, o desgaste das instituições herdadas dos estados liberais da primeira metade do século, a distanciação crítica em relação ao liberalismo clássico e a afirmação de nacionalismos étnicos e conservadores, bem como de modelos de representação orgânica dos interesses

20 A parte narrativa da sua História de Portugal (1845-1856) permanece centrada nas acções individuais, com destaque para a acção dos monarcas.

21 António Sérgio e Joaquim Barradas de Carvalho acentuaram esta ruputra na própria obra herculaniana. Vd., respectivamente, Sobre história e historiografia (da "História de Portugal e dos "Opúsculos"), Lisboa, Tip. da "Seara Nova", 1937 e Da história-crónica à história ciência, Lisboa: Livros Horizonte, 1972.

22 Jorge Borges de Macedo notou bem os seus antecedentes na historiografia ligada Academia das Ciências. Cf. Alexandre Herculano, polémica e mensagem, Lisboa: Livraria Bertrand, 1980.

23 A este respeito, veja-se o meu estudo Historiografia e memória nacional no Portugal do século XIX (1846-1898). Lisboa: Colibri, 1998.

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sociais constituíam instantes desafios. Ante as pressões do presente, podia a história alcançar a objectividade e manter-se neutra? Com os historiadores eruditos dos finais do século e princípios do século seguinte (caso de Braamcamp Freire, Esteves Pereira, ou até mesmo Leite de Vasconcelos) aparentemente, podia. Essa era uma das preocupações que presidia aos seus trabalhos. Mas na prática não. É certo que, para eles, assumir um ponto de vista de história nacional e nacionalista era absolutamente natural - não punha consequentemente em causa a imparcialidade e a objectividade que reivindicavam para si. Não para nós, historiadores dos finais do século XX e princípios do século XXI. Primeiro porque os temas que estudavam com base em fontes documentais resultavam de determinadas escolhas. Além disso, porque uma ideologia nacional – ou até nacionalista – consciente ou inconscientemente presidia a essas escolhas. Finalmente porque pode haver modos subjectivos – muito pessoais até - de fundamentar uma intenção de objectividade. Neste sentido, a subjectividade poderá constituir um fundamento de uma intenção de alcançar uma história objectiva24. Significativa a este respeito é a posição dos mentores da Revue Historique Gabriel Monod em 1876, em defesa de uma história positiva que não abdicava contudo de assumir uma função instrumental no uso da história nacional. Ou de um Alfredo Pimenta que sustentava uma intenção de objectividade no quadro de uma extrema parcialidade.

O momento do Integralismo

O tempo da primeira República Portuguesa, fundada em Outubro de 1910, concitou contra si vários sectores políticos, do clero católico a sectores de trabalhadores influenciados pelo anarco-sindicalismo, passando por monárquicos e tradicionalistas, jovens intelectuais formados na Universidade de Coimbra. Entre estes, António Sardinha, que começou como republicano, rapidamente se tornou um dos mais destacados críticos do novo regime. Marco significativo na afirmação pública do seu ideário foi a publicação da revista portuguesa integralista Nação

24 ASSIS, Arthur Alfaix, A objetividade histórica no século 19: teorias e práticas [ texto policopiado], Brasília: s.n., 2016, p.5

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Portuguesa (1914-1938). Sardinha, mestre do Integralismo Lusitano, não era em rigor um historiador, mas teve um papel decisivo na formação intelectual de um conjunto de jovens do seu tempo e na construção da narrativa histórica conservadora. Tratava-se de, nas suas palavras, restituir aos portugueses a “integridade da sua consciência histórica”, ou seja retomar o fio da tradição e uma essência pátria permanente que se teria obnibulado com a desnacionalização dos portugueses. Os integralistas eram realistas, tradicionalistas e defensores de um estado descentralizado. Como Jacques Maritain, consideravam-se “antimodernos” e “ultra-modernos” 25.

Sardinha foi um contundente crítico da democracia e de um individualismo que considerava dissolvente. Responsabilizava o sistema liberal e, em especial, a narrativa histórica liberal pela crise, decadência e estado de desnacionalização da sociedade portuguesa 26 (note-se que expunha as suas ideias no tempo da I República, herdeira do paradigma liberal e que promulgara a separação o Estado da Igreja). Qualificava esta narrativa de “falsificada” e “sectária, toda feita de mentiras e dos sofismas da mentalidade liberalista”, situando-a na linha da pombalina Dedução cronológica e analítica27. Para António Sardinha e para os seus amigos integralistas, rever e corrigir a escrita da história mediante a elaboração de “erratas” – ou seja, correcções de erros - era uma prioridade estratégica. Isto porque a revolução liberal oitocentista e o Constitucionalismo teriam desnacionalizado os portugueses. O internacionalismo revolucionário levara ao desenraizamento. Ora a pátria e realeza tradicionais tinham uma origem natural e histórica, medieval: filiavam-se na tradição cristã. Ao invés, a Renascença estaria associada ao espírito revolucionário romano; e o absolutismo teria preparado terreno para a afirmação do espírito democrático.

No plano teórico, Sardinha distanciava-se de duas concepções de história frequentes em Portugal, a aristocrática e a democrática: a que a determinava a partir da acção de “uma minoria restrita (reis, nobres, sacerdotes) e a que a torna o produto espontâneo duma instintiva massa acéfala”. É que a seu ver, estas ordens constituiam um “bloco homogéneo” dotado de uma mesma alma – uma grei, termo que os integralistas particularmente apreciavam. Assim, contra narrativas que, a

25 SARDINHA, António − Ao ritmo da ampulheta. Lisboa: ‘Lvmen’, 1925, p.XII.26 Id., “A prol do comum...”. Doutrina e história. Lisboa: Livararia Ferin, 1934,p.142.27 Id., “A teoria das cortes gerais” in SANTARÉM, Visconde de − Memórias e alguns documentos para a História e

teoria das cortes gerais”. Lisboa: Imp. de Portugal e Brasil, s.d. [1924], p.VI.

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seu ver, dividiam a sociedade portuguesa em opressores e oprimidos, adoptava uma concepção holística um ideia de história de Portugal “filha de todos”28. Isto no plano teórico.

Mas, na verdade, há dois aspectos que convém notar na teoria da história de Sardinha. Em primeiro lugar a valorização da acção dos monarcas, que teriam sido os grandes agentes de continuidade histórica. A monarquia, de origem divina, seria o produto de um “largo movimento populacional”, teria emanado da nação, mas não estaria dependente do pactum subjectiones - ou seja, não tinha origem popular nem estava dependente da soberania popular (embora admirador dos teóricos jesuítas neo-tomistas, Sardinha não aderia ao seu contratualismo). Assim, Portugal teria origem em dois elementos: a raça (elemento dinâmico) e a monarquia (elemento estático). Sardinha afastava-se pois da teoria popular que dominava a narrativa liberal e republicana. Exemplo maior desta última era a obra de Teófilo Braga.

Em segundo lugar, Sardinha acentuava a alegada prioridade de Portugal na história europeia: ao invés da Espanha, da França ou da Alemanha, a formação da nação teria sido anterior à constituição do Estado. Mais, Portugal seria a nação mais antiga da Europa. E retomando uma ideia oitocentista que já se encontra no Visconde de Santarém, afirmava igualmente o pioneirismo do caso português no que respeita à representação do elemento popular em cortes, relativamente a outras nações europeias (Inglaterra, França, Alemanha)29. Sendo a antiguidade considerada um critério de nobreza e virtude30, compreende-se a preocupação de Sardinha em sublinhar este alegado pioneirismo nacional.

O mentor do Integralismo Lusitano encarou a sua geração como uma geração de «redenção» e erigia-se em líder do grupo31. Compreende-se assim a sua crítica frontal a duas associações que concorriam com os integralistas na República das Letras: a Liga de Acção Nacional e a Renascença Portuguesa. Tratava-se de disputar a hegemonia intelectual a estes grupos, especialmente ao último, entre as elites nacionais. Embora muito diversas na sua composição e intencionalidade, ambas estas sociedades visavam, no campo político republicano, o ressurgimento

28 Id., “Os Gamas”, Da hera nas colunas, Lisboa: “Atlântida” Liv. Editora, 1929, pp.304-314.29 Id., Idem, pp. XXXI-XXXII e pp. LIV-LXIX.30 CARO-BAROJA, Julio − El mito del caracter nacional. Meditaciones a contrapelo. Madrid: Seminarios y Ediciones, 1970.31 SARDINHA, A. − “A prol do comum...”. Doutrina e história. Lisboa: Livararia Ferin, 1934, pp.3-20.

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nacional por meio da acção cultural e da intervenção política. Ora Sardinha via nelas “um vício grave de origem, a sua inteira subalternização ao preconceito inadmissível do regimen” [referia-se à I República]32. Mas se profundas divergências políticas separavam o Integralismo Lusitano destes grupos, num ponto estariam de acordo: na necessidade de preparar elites. Já no que respeita à interpretação do passado nacional e aos caminhos futuros, as divergências acentuavam-se.

Sardinha alimentava um juízo muito negativo sobre o século XIX, dominado pelo individualismo liberal e pelo parlamentarismo. Partia da ideia de que houve uma quebra na tradição com o Marquês de Pombal e especialmente com a revolução liberal de 1820 (mas esta ideia de ruptura com o passado em relação ao período que começa com o estabelecimento do regime liberal, após a guerra civil em 1834, encontrava-se já em Herculano e em Oliveira Martins). Não surpreende que tenha dedicado atenção especial à reabilitação de reis da dinastia de Bragança como D. João IV, D. João V e D. João VI - os dois últimos especialmente amaldiçoados pela historiografia liberal. Donde, a insistência na necessidade de um programa sistematicamente doutrinário da revisão da história nacional:

“Um necessário trabalho de revisão se impõe simultaneamente – espécie de

breviário de correcções ou erratas, em que se instrua o processo das diversas lendas-negras

que deprimem a face augusta do nosso Passado. Com o objectivo de mostrar Portugal,

sobretudo, como uma personalidade moral, prolongando-se no espaço e no tempo, uno e contínuo,

essa História, a fazer-se, sem cair no detalhe excessivo, não deve também esquecer

a revisão correspondente dos juízos e conceitos pré-concebidos...”33.

Em nome desta intenção de rever e “depurar” uma narrativa que considerava corrompida pelos preconceitos do liberalismo, Sardinha chamava a si a autoridade de Fustel de Coulanges (também muito invocado par Charles Maurras e pela Action Française). Fustel, adepto de uma história ciência, tinha sido um crítico dos historiadores liberais Thierry e Guizot. Sardinha citava-o extensamente para desqualificar a historiografia partidária do século XIX:

32 Id., “Testemunho duma geração”, Idem, p.6.33 SARDINHA, A. − “Questões de história”, Nação Portuguesa, II série, nº5, 1922, p.234. Sublinhados nossos.

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“Écrire l’histoire était une façon de travailler pour un parti et de combattre

un adversaire. L’histoire est ainsi devenue chez nous une sorte de guerre civile en permanence.

Ce qu’elle nous a appris, c’est surtout a nous haire les uns et les autres. Quoi qu’elle

fut, elle attaquait toujours la France par quelque côté »34.

Mas ao invés do que poderia supor-se, António Sardinha dialogou e conviveu com a diferença. É bem conhecida a revista Homens Livres, que resultou da colaboração entre seareiros e integralistas, em 192335. A convivência ultrapassou mesmo esse periódico. Historiadores e ensaístas liberais e republicanos como Joaquim de Carvalho, António Sérgio e Raúl Proença convidaram-no a colaborar em publicações a que dirigiam ou estavam ligados. Para além das profundas divergências políticas e ideológicas que os separavam, estes intelectuais tinham consideração por ele e é de admitir que também Sardinha os admirasse. No campo político, os seus ideários eram bem distintos. E no plano da história, divergiam totalmente na apreciação dos séculos XVII e XIX (neste caso, sobretudo do liberalismo oitocentista). Joaquim de Carvalho pretendia “europeizar” as “nossas coisas” por meio da colaboração de estrangeiros. Entre outros, gostaria de contar com o historiador Antonio Ballesteros, um dos amigos espanhóis de Sardinha. E convidou-o a colaborar nas edições da Universidade de Coimbra e na revista Arquivo de História e Bibliografia 36. Por seu lado, António Sérgio convidava-o com insistência para que colaborasse na Lusitânia, sobre contribuições de autores espanhóis para a história de Portugal na primeira dinastia (ou em alternativa, uma recensão de qualquer livro espanhol saído nesse ano de 1923)37. E Raúl Proença solicitava a sua colaboração no Guia de Portugal38. A República das Letras funcionava independentemente das diferentes orientações ideológicas. Mas, é claro, ninguém prescindia das suas ideias.

34 COULANGES, Fustel − “De la manière d’écrire l’histoire en France et en Allemagne depuis cinquante ans », F. HARTOG − Le XIXe siècle et l’histoire. Le cas de Fustel de Coulanges, Paris: PUF, 1988, pp.384-385. Citado por A. SARDINHA em “Questões de história”, Nação Portuguesa, II série, nº5, 1922, p. 233.

35 Veja-se MEDINA, João − O Pelicano e a Seara. A Revista Homens Livres. Lisboa: Ed. A Ramos, 1978.36 Biblioteca João Paulo II [BJPII] − Espólio de António Sardinha. Joaquim de Carvalho, carta a António

Sardinha de 4-07-1923, carta nº1. Rcentemente reproduzida em Cartas de Joaquim de Carvalho a Alfredo Pimenta 1922-36 (Ed.e Paulo Archer de Carvalho), Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, pp.267-269

37 BJPII, Espólio de António Sardinha, carta de António Sérgio, s.d., com carimbo de 13-08-1923.38 BJPII, Espólio de A. Sardinha, Envelope. 263, dois bilhetes de Raúl Proença, s.d.

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Sardinha - e outros tradicionalistas como Alfredo Pimenta – argumentava com a necessidade de imparcialidade da história e do passado na sua diferença específica, como forma de legitimar a sua intenção de rever a história (argumento retórico que fora aliás muito comum entre os historiadores oitocentistas). Além disso, defendia uma história sintética, despojada de excessos de erudição, em contraste com a História de Portugal (1922) de Fortunato de Almeida – de que teceu uma crítica muito negativa – que, como é sabido também escrevera a História da Igreja em Portugal. Para Sardinha, um exemplo a seguir seria a “esplêndida” Historia de España do seu amigo Antonio Ballesteros. Esta última é um vasto trabalho publicado a partir de 1919, marcado por uma leitura conservadora e essencialista da história espanhola, numa orientação castelhanista, abertamente distante do “liberalismo progressista.” Mas o próprio Ballesteros achou excessivamente dura a crítica de Sardinha à obra de Fortunato de Almeida39.

Note-se que o diagnóstico crítico da sociedade portuguesa, como ‘desnacionalizada’ não era específico do tradicionalismo monárquico. Na verdade, no campo republicano vários intelectuais, na época, tinham visto nesta situação um problema a erradicar. É o caso dos colaboradores da associação cultural Renascença Portuguesa Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão e Augusto Casimiro. Mas esse diagnóstico justificava diferentes programas doutrinários em ordem ao ressurgimento nacional. No caso de Sardinha e dos seus amigos distanciava-se, claro está, da interpretação liberal e laica da história nacional.

Em princípios de 1923, Sardinha vangloriava-se a si mesmo e aos integralistas de ter restituído Portugal à “integridade de sua consciência histórica, ao sentimento adormecido da sua realidade eterna como pátria” (note-se de passagem, o uso deste conceito de consciência histórica, então não muito habitual na cultura portuguesa) 40. Sabemos que pouco tempo antes de falecer, o mestre do Integralismo Lusitano tinha a intenção de escrever uma história de Portugal alternativa, tendo deixado esboçado um plano sumário que a revista publicou já depois da sua morte41. Significativo é que

39 BJPII, Espólio de António Sardinha, Envelope. 108, carta de Antonio Ballesteros a António Sardinha de 10-05-1923 [2]. Embora dando alguma razão ao amigo “em muchos puntos, Ballesteros valorizava a História da Igreja de Fortunato de Almeida, considerando-a “un paso valioso en estes estudios”.

40 SARDINHA A. − Ao ritmo da ampulheta... 1925, p.XIII.41 Id., “Questões de história”, Nação Portuguesa, II série, nº5, 1922, p. 233.

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nesse plano constasse um capítulo dedicado ao “terramoto” pombalino e outro ao “mal gaulês”42 .Talvez a posterior obra do seu amigo e admirador João Ameal43 seja a que mais se aproxima do seu projecto nunca concretizado. Mas Sardinha morreu precocemente no início de 1925, no ano anterior à instauração da ditadura. E a obra de João Ameal só viria à luz em 1940, aquando das comemorações do duplo centenário da fundação (1140) e da restauração da independência (1640).

A intenção de rever o passado não era exclusiva dos integralistas. Também os católicos conservadores a afirmaram. Refira-se, por exemplo, Manuel Gonçalves Cerejeira, professor da Universidade de Coimbra e futuro cardeal patriarca (1929-71) que, em 1924, defendeu essa “revisão crítica do passado”, visando “um futuro melhor, pela reacção contra os princípios anárquicos da Revolução”44. A crer na sebenta das suas aulas de História de Portugal na Universidade de Coimbra45, no que respeita à explicação da independência de Portugal, Cerejeira daria especial atenção à revisão da tese “estrangeirista” de António Sérgio e à teoria do acaso de Oliveira Martins (com destaque para o conceito de nação deste último), contrapondo-lhes a sua interpretação segundo a qual a nação seria produto da acção dos reis – no que coincidia aliás com Fortunato de Almeida46. Já em 1932 – três anos após a morte de Fortunato de Almeida - , um integralista como Caetano Beirão veio reconhecer o valor da História de Portugal deste autor católico, pelo facto de ter vindo “preencher uma lacuna vergonhosa” – referia-se evidentemente à ausência de uma narrativa tradicionalista, alternativa à historiografia liberal. Considerava-a “trabalho consciencioso, calmo, objectivo, documentado (...) investiu contra muitos preconceitos generalizados e conseguiu restabelecer a verdade de muitos factos quase todos eles intencionalmente deturpados”. Mas retomava uma crítica que António Sardinha tinha dirigido à obra de Fortunato – “por vezes excessivamente superficial” - e sobretudo divergia em termos contundentes da interpretação que este tecia do reinado de D. Miguel, pois Caetano Beirão era um apologista

42 Nação Portuguesa, vol.V, t.I, 1918, pp.101-105.43 AMEAL, João − História de Portugal. Lisboa: Livr. Tavares Martins, 1962 [1940],44 CEREJEIRA, Gonçalves − A Igreja e o pensamento contemporâneo I, 3ª ed. Coimbra: Coimbra Ed., 1930 (1924),

apud CHORÃO, Luís Bigotte − A crise da República e a Ditadura Militar. Lisboa: Sextante Ed., 2009, pp.54-55.45 Organizada pelo seu aluno MACHADO, Fernando Falcão − História de Portugal. Súmula de lições magistrias de

História de Portugal (1º ano) pelo Ex.mo Professor... Coimbra: Gráfica Conimbricense, 1928.46 MACHADO, Fernando Falcão, Idem, p.62 e ALMEIDA, Fortunato de − História de Portugal, t.I. Coimbra: Ed.

do Autor, 1927, pp.XVI-XVII.

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deste monarca contra D. Pedro47. No campo tradicionalista não havia pois total unanimidade em relação ao passado recente: a legitimidade ou não de D. Miguel (monarca absolutista em 1828) ou de D. Pedro (monarca liberal) continuava a dividir os monárquicos portugueses.

Pelo meio, há que ter em conta que em 1932 o Estado Novo de Salazar (ministro das Finanças desde 1928) tinha adoptado um cânone da história da nação, aplicado à escola secundária, um estreito controlo da memória histórica a cultivar entre a população liceal. Tratava-se de um conceito normativo que havia de moldar planos de estudo, livros escolares e até mesmo práticas de ensino. Tornava-se imperativo louvar todos os feitos, todas as façanhas, expressando “a autoridade dos valores da família, a fé, a firmeza do governo, a respeito da hierarquia e da cultura literária e científica e esforço da nação”. Pelo contrário, tudo o que representasse “dissolução nacional” e “enfraquecimento da confiança no futuro” deveria ser censurado48. No entanto, no final do mesmo ano, em entrevista a António Ferro, Salazar distanciava-se do excesso de passado no presente:

“Por mim, atrevo-me a dizer que estamos demasiado presos à memória dos nossos

heróis – nunca aliás, querida e venerada em excesso – demasiado escravizados a um ideal

colectivo que gira sempre à roda de glórias passadas e inigualáveis heroísmos. O nosso passado

heróico pesa demais no nosso presente. A querermos agarrar-nos às concepções

dos tempos heróicos, corremos o risco de aparecermos como braços desocupados

num mundo novo que não nos entende”49 [sublinhados nossos].

Pode a uma primeira leitura surpreender o contraste entre esta posição crítica em relação a um historicismo nacionalista e as determinações do acima referido decreto relativo ao ensino da história nacional. Aliás, noutras ocasiões, Salazar frisaria a necessidade de não sermos “só porque fomos”, de não vivermos “só por termos vivido”, isto é a necessidade de viver no presente, com fé no futuro

47 BEIRÃO, Caetano − “O problema da sucessão do rei D.João VI na História de Portugal do Sr. Fortunato de Almeida”, Nação Portuguesa, vol.VII, fasc. II, 1932, pp.81 e ss.

48 Decreto nº 21 103, Diário do Governo, nº89, 15-04-1932, p.625.49 Prefácio de Oliveira SALAZAR a FERRO, António - Salazar. Lisboa: 1933, pp. IX-XLI. A entrevista foi

originalmente publicada no Diário de Notícias, de 9 a 23 de Dezembro de 1932.

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50. Dir-se-ia que Salazar aprendeu com as Considerações Intempestivas de Nietzsche. É possível. Mas é necessário lembrar que Salazar fazia estas declarações enquanto líder político e homem de acção (esta para ser eficaz impõe sempre distanciação em relação ao passado), num tempo em que o sistema de ensino do Estado Novo não estava ainda estruturado (em 1932) e consolidado. Seja como for, torna-se claro que, no limite, não é incompatível a advertência preventiva em relação ao risco de o peso de o passado paralisar a acção no presente e a ideia de que o culto dos heróis é sempre necessário.

O programa de controlo do passado em oposição à historiografia liberal e, em especial à de Oliveira Martins51, promulgado em Abril de 1932, foi apoiado pelos integralistas na revista Nação Portuguesa. Nesse mesmo ano, que foi o da ascensão de Salazar a presidente do conselho, um inspirador católico e tradicionalista do Estado Novo, Quirino de Jesus, valorizou o lugar da história na construção do consenso nacional e na fundamentação do “nacionalismo português” da Ditadura como sistema que garantisse a “marcha da civilização romano-cristã”: seria conveniente a apropriação de “tudo o que é harmonicamente aproveitável na história, no campo da política e na razão progressiva para uma coordenação de forças que represente a Nação unida na acção imposta pelo seu destino”52. Este cânone seria cumprido pelos historiadores que apoiaram a ditadura do Estado Novo, com destaque para Alfredo Pimenta, Caetano Beirão e o já referido João Ameal. Em Espanha, en 1912, o jesuíta Garcia Villada prescrevera: « nada de negaciones de nuestro passado, que en el fondo, son un crimen contra la madre patria ». Era conhecido e citado em Portugal por Alfredo Pimenta53. Ainda que considerasse como primeira causa de tudo o “facto historico Dios”, Garcia Villada reclamava-se da imparcialidade e era um adepto do sistema de seminário na Universidade54. E em 1920, o professor e

50 SALAZAR, Oliveira − Discursos, vol. III, 1938-1943, 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1959, p.259.51 Ao invés de António Sardinha, Alfredo Pimenta fazia de Oliveira Martins o seu principal opositor (e todavia

Martins morrera 40 anos antes), fundamentalmente por duas razões: 1) considerava a sua obra histórica negativista, derrotista e panfletária, falsificando e enganando os portugueses 2) empolgara os seus leitores em múltiplas edições, tornando-se o mais influente “mestre” da memória nacional. Martins teria pois empreendido uma obra de destruição da nação.

52 JESUS, Quirino de - Nacionalismo português, Porto: Empresa Ind. Gráfica do Porto, 1932, p.62.53 PIMENTA, Alfredo − Subsídios para a História de Portugal (textos & juízos críticos). Lisboa: Ed. Europa, 1937, p.297.54 GARCIA VILLADA Como se aprende a trabajar cientificamente. Barcelona: Tip.Católica, 1912. G.Villada

criticava um dos maiores historiador do seu tempo – o liberal e republicano Rafael Altamira -, cuja teoria do insconsciente e da evolução considerava “destructora del orden social y divino” (p.41). Mas apontava a susceptibilidade dos espanhóis como uma das razões do seu isolamento e atraso nas ciências historicas” (Id.,

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historiador católico e jesuíta Enrique Herrera Oria, preocupado com o problema da formação religiosa dos jovens, considerava que “no todo lo que es verdad debe saberse”, os factos que pudessem ameaçar as verdades “substanciais da religião”55 .

Em 1935, Alfredo Pimenta adoptaria uma posição ideológica coincidente com esta: “em história de Portugal, é verdadeiro tudo quanto glorifique a Nação portuguesa; é falso tudo quanto a deprima, a diminua, a enerve, a enxovalhe”56. Por outras palavras, só era legítima a verdade nacionalista. Como se justificava esta atitude manifestamente parcial? Pressente-se por detrás das prescrições de Pimenta a posição de Charles Maurras. Maurras fora um dos primeiros a denunciar “l’ouevre pernicieuse de l’école libérale” e a considerar a qualificar a ciência de nacionalista e o nacionalismo de científico57.

Pimenta declarava-se adepto do processo objectivo (por contraste com o processo subjectivo, que associava à história-romance). Mas ao invés de Maurras, não admitia que a história fosse uma ciência, pois estava convicto de que “a verdade fora da Revelação não existe”. Donde, a verdade não podia deixar de ser meramente relativa. E sendo assim, perfilhava “a verdade que serve a minha Pátria e não a que pode prejudicá-la ou diminui-la”58. De uma posição de relativismo histórico retirava pois a necessidade de uma história apologética que não colidia com a sua retórica de objectividade.

Compreende-se assim que reconhecesse o valor instrumental de tradições de fundação providencialistas e patrióticas como o milagre de Ourique ou as Cortes Lamego. Mas Pimenta ia mais longe: só o seduzia a história medieval até aos finais do século XIV (primeira dinastia portuguesa). Daí em diante, a seu ver, a história cada vez mais deixaria de o ser para se tornar jornalismo, uma tese que esteve muito difundida no tempo da ditadura de Salazar em Portugal.

Alfredo Pimenta põe em causa a posição de Herculano (que esquecera o milagre de Ourique, o que lhe valeria o ataque dos católicos tradicionalistas e uma

229).55 BOYD, Carolin “Los textos escolares”, Historia de España (dir.FONTANA, J. e VILLARES, R.), vol.12.

Madrid: Crítica/Marcial Pons, 2013, p.492.56 PIMENTA, Alfredo − Novos estudos filosóficos e críticos, Coimbra: IU, 1935, p.107. Pimenta estava assumidamente

em sintonia com as directivas para o ensino da História de 1932: cf. “Prefação”, Elementos de História de Portugal, 2ª ed. Lisboa, Empresa Nac. de Publicidade, 1935, p.VII.

57 HARTOG, F. − Le XIX eme siècle et l’histoire. Le cas de Fustel de Coulanges, pp.170-171.58 PIMENTA, Alfredo − Novos estudos..., p.106.

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prolongada polémica). Pimenta chega a afirmar:

“Hoje, ninguém, de senso, põe em dúvida a existência dos milagres. O

milagre – intervenção excepcional de Deus nas coisas da natureza, de modo a

produzir certos efeitos que não são, em nada, obra da mesma natureza – o milagre é

um fenómeno cientificamente averiguado. O milagre de Ourique, isto é, o aparecimento de

Cristo a Afonso Henriques foi possível? Absolutamente. Há provas históricas do facto?

Não há, até agora. Mas de não haver provas históricas do facto, não se conclui que

este seja uma ilusão (...) Onde Herculano errou, foi em chamar-lhe fábula, tradição

absurda. Fábula – porquê, se não está demonstrado, historicamente, que fábula fora?

(...) A verdade é que Herculano não demonstra que o milagre de Ourique não existiu,

com o chamar-lhe nomes, os nomes que lhe chama no decorrer da polémica célebre.

A única posição lícita para um homem de ciência é a confissão da sua ignorância”

(sublinhado nosso)59.

Readmitindo a possibilidade do milagre de Ourique revertia-se assim a um tempo e a uma relação com as tradições míticas não só anterior à História de Portugal de Herculano mas anterior a João Pedro Ribeiro – que ainda nos princípios do séc. XIX a pusera em causa. A revisão tradicionalista da história levava assim a uma posição céptica e solipsista de abstenção relativamente ao reconhecimento da verdade ou não verdade em história 60.

Por essa época, contra a desnacionalização liberal e martiniana, contra a deformação, o “veneno”, o “crime”; contra os historiadores “desnacionalizados” e “corrompidos” um professor nacionalista propunha a reabilitação da história nacional61. Tratava-se de retomar a tradição, retomar o fio da história. Outra expressão desta tendência foi João Ameal, um dos mais representativos historiadores oficiais do Estado Novo, que adopta um critério linear de periodização centrado em dinastias e reinados e considera que “historiar é julgar (...) em nome das verdades

59 Id., Estudos filosóficos e críticos. Coimbra: IU, 1930, 194-195.60 Em Espanha, um autor de livros didáticos católicos como Merry y Colón (Professor da Universidade de

Sevilla, autor de um Compendio de la Historia de España) incluia também na sua narrativa histórica heróis míticos: Cid, Túbal, Santiago, a aparição da Virem del Pilar. Veja-se BOYD, C. Op.cit., pp. 492-493.

61 Américo Pires de Lima − Assim era ensinada a História... Sep. de Ocidente, vol.X, Lisboa: Ed. Império, 1940

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universais e eternas de que os portugueses souberam ser apóstolos insuperáveis” 62. E manifesta-se contra a falsificação e da corrupção do passado nacional. Ameal referia-se, claro está, à narrativa liberal e, sobretudo, à leitura martiniana da história de Portugal :

“com uma espécie de sadismo negativista e demolidor” (...) “desfez-se a história

de Portugal”, “Repudiaram-se ou contestaram-se as fundas razões da nossa jornada

de Povo crente e guerreiro. A obra de apostolado foi convertida em obra de cobiça e

rapina. As figuras dos reis foram amesquinhadas com rancorosa sanha. A vida de uma

Nação que deveria explicar-se à luz dos Evangelhos, dos Roteiros e das Crónicas – foi escrita à

luz da Declaração dos Direitos do Homem ou da teoria do materialismo histórico”63.

Para Ameal, tal como para Rodrigues Cavalheiro ou Alfredo Pimenta (mas

não tanto para António Sardinha), Oliveira Martins fora a expressão suprema da negação e deformação da nação e da sua história. Em alternativa, João Ameal constrói uma versão épica do passado nacional centrada na acção dos monarcas e de heróis mais destacados, sempre identificados com o povo que não é mais do que um cenário de fundo. E que, de algum modo, readmite a plausibilidade de mitos anteriores à revolução liberal: a identificação entre Portugueses e Lusitanos ou a tradição mítica de Ourique. A aceitação da ascendência lusitana é entendida como ideia-força adoptada desde o século XV que, ao mesmo tempo, seria “um sintoma – uma espécie de plebiscito nacional”64 (Ameal retoma a ideia de Ernest Renan mas descontextualiza-a, aplicando-a ao factor étnico). Também em relação à tradição providencialista de Ourique, sem negar a autenticidade da aparição, Ameal deixa em aberto a sua possibilidade65. Como de resto – e vimos acima - procedera Alfredo Pimenta, referindo-se à impossibilidade de encontrar provas que negassem a veracidade do milagre de Ourique, isto num manual escolar de larga difusão nos primeiros anos do Estado Novo66. Note-se aliás que o factor religioso está não raro

62 AMEAL, João − História de Portugal, 2ª ed. Porto: Liv. Tavares Martins, 1962 (1ª ed., 1940), p.X.63 Id., Idem, pp.XI-XII.64 Id., Idem, p.14. 65 Id., Idem, pp.60-6166 PIMENTA, Alfredo − Elementos de História de Portugal, p.21, nota 2.

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presente para explicar momentos significativos da história de Portugal – caso dos descobrimentos e da expansão ultramarina67. Outro aspecto que vale a pena notar na estratégia narrativa tradicionalista é a qualificação dos muçulmanos de Tânger, em 1438 (aquando da tentativa de conquista da cidade), como selvagens68.

Esta estratégia narrativa nacionalista e exclusivista não recolheria contudo a unanimidade dos pedagogos ligados ao Estado Novo. Exemplo disso foi, já em 1945, A.Martins Afonso, um autor de livros escolares aprovados pelo regime que se distanciava de uma história sistematicamente apologética: a seu ver tanto se podia aprender coma glórias nacionais como com fraquezas e vícios. O patriotismo não deveria ser incompatível com a verdade histórica. Esta posição crítica dirigida a um dos autores mais em voga na literatura escolar da época – António Mattoso – suscitaria uma dura polémica e a proibição do manual da autoria do crítico69. O que mostra bem que, no próprio campo ideológico do regime, havia divergências nas estratégias de consciência histórica a adoptar em relação à juventude.

Uma consciência histórica tradicionalista?

No transcurso de um século, entre o momento Herculano, de afirmação de uma consciência liberal do percurso histórico nacional, e o momento do Integralismo Lusitano, verificou-se uma evidente descontinuidade. Além da revolução liberal que se desenvolveu em diversos momentos de corte com o passado de sentido diverso, mas todos eles comandados por um ideal de progresso (1820, 1836, 1851), a revolução republicana de 1910 também se reclamou desse ideal e de uma genealogia liberal. E todavia, os integralistas não deixaram de construir uma genealogia em que se reclamam das grandes figuras do pensamento oitocentista: Garrett, Herculano, Oliveira Martins, e até Eça de Queiroz, considerados “desiludidos” e, de algum modo, ligados à tradição70. No caso de Herculano, os integralistas apropriaram-se do seu

67 Idem, p.122.68 AMEAL, João − Op. cit., p.208.69 Veja-se o meu estudo História, mitologia, imaginário nacional. A História no curso dos liceus (1895-1939). Lisboa,

Livros Horizonte, 1990, pp.128-131.70 SARDINHA, António − “A teoria das cortes gerais”, p.CCX.

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pensamento sobretudo no que respeita ao tópico da crítica em relação ao modelo centralista que dominou no constitucionalismo oiotcentitsta e ao ideal municipalista.

A consciência histórica integralista apresenta as seguintes características:

1. Uma consciência muito voltada para o passado, sem no entanto esquecer a necessidade de acção no presente com vista numa expectativa de futuro. Como sugere Paulo Archer de Carvalho, o Integralismo Lusitano afirmou uma “utopia regressiva”71. Evidentemente não um passado próximo, o dos anos de vigência da República, nem os 80 anos da monarquia constitucional, liberal, que se impunha rever. Nem tão pouco o passado do despotismo esclarecido do pombalismo. A vera tradição nacional encontrava-se na monarquia “pura”, medieval. Os tradicionalistas viveram uma consciência de crise que coincide com a I República, crise que Sardinha classificou, sobretudo, como crise de governo. Participaram em tentativas de derrube do regime republicano, por exemplo em 1919. E alguns – caso de Sardinha - exilaram-se em Espanha. A essa experiência de exílio não será alheia a teorização de Sardinha sobre o hispanismo e o peninsularismo, um horizonte de expectativa que também se enraizava na nostalgia dos impérios português e espanhol de Quinhentos. Foi afinal essa vivência em Madrid que abriu horizontes novos ao mentor do Integralismo, no sentido do pan-hispanismo – bem contrastantes com a geografia mais restrita de Salazar. Como observou Luís da Almeida Braga, “A tradição não é um castelo cerrado, não é um ponto imóvel na história. É uma criação constante. O passado é força que nos arrasta, não é cadeia que nos prende”72.

2. O trabalho dos Integralistas representou um corte na consciência histórica nacional que se forjara desde a revolução liberal. Que consequências teve este corte? Uma outra noção de tempo? Sem dúvida. En 1921, Raúl Proença interpretou a visão retrospectiva dos integralistas: “... os homens de hoje (...) querem ficar eternamente a olhar para trás, e é para trás que se movem também os seus

71 CARVALHO,Paulo Archer de Nação e nacionalismo. Mitemas do Integralismo Lusitano. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1993 e Id., “Ao princípio era o verbo: o eterno retorno e os mitos da historiografia integralista”, Revista de História das Ideias, vol. 18, Coimbra, 1996, pp. 231-244.

72 BRAGA, Luís de Almeida - Posição de António Sardinha. Lisboa: Ed.Gama, s,d., p.108.

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remos meio quebrados nas suas mãos meio mortas”73. Como que para compensar uma descontinuidade temporal instalada pelas revoluções modernas, os integralistas procuravam no passado uma outra idade de ouro. “Os povos vivem do Passado. Negar o Passado é um suicídio”, dirá em 1935 Alfredo Pimenta, substantivando o passado com maiúscula74. O passado como substância eterna. Os tradicionalistas reificavam o Passado em sim mesmo – aderindo à ideia maurrasiana de uma ciência nacionalista. E deploravam a perda: para além da degradação causada pela revolução liberal, deploravam a perda do Passado, a perda da sociedade tradicional. Também o principal fim do franquismo não era tanto o de criar uma nova Espanha mas de preservar a antiga (Carolyn Boyd). Ao invés, um ensaista que cultivou a história como António Sérgio – um idealista racionalista, herdeiro do iluminismo – desenvolveu uma consciência histórica voltada para o presente e o futuro. Pretendia ver-se livre das amarras do passado, nos seus atavismos.

Os tradicionalistas não pensavam o futuro em termos de um progresso linear e constante – coincidindo também, neste ponto, com Charles Maurras. Pelo contrário, já nos anos 60, João Ameal continuou a inventariar os mesmos males ameaçadores: o liberalismo, a plutocracia e o comunismo. Num tom apocalíptico, via então pesadas ameaças no horizonte: o alargamento da influência comunista no mundo, a descolonização, o pan-eslavismo, o tecnicismo e o “racismo negro, índio ou amarelo”75. Só a fidelidade a um passado revisto – e comandado entre outros pelo tópico da cruzada - poderia garantir a tranquilidade do futuro.

3. Pode falar-se de dois ‘programas’ de revisão histórica para estes dois tempos históricos separados por cerca de um século – o momento Alexandre Herculano e o momento do Integralismo Lusitano? No primeiro momento, o verbo rever nunca é utilizado pelos historiadores empenhados na construção de uma nova narrativa liberal – o que talvez se explique pelo próprio declínio

73 PROENÇA, Raúl − “Ao futuro”, Páginas de Política. Lisboa: Seara Nova, 1972 (texto datado de 1921), p.25.74 PIMENTA, Alfredo − Novos estudos..., p.120.75 AMEAL, João − Op.cit., p.736.

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das tradições míticas e pelo carácter não sistemático da historiografia dita liberal. Na verdade, dificilmente poderá falar-se de uma master narrative ou de uma narrativa canónica liberal – melhor será considerar uma estratégia narrativa liberal com múltiplas variantes. Um exemplo só: se Herculano rejeita as tradições míticas dos Lusitanos, de Ourique e das Cortes de Lamego para o passado, outros historiadores herdeiros da tradição liberal aceitam essas tradições e o seu valor instrumental: Luz Soriano ou José de Arriaga. Donde, não será adequado falar-se de um ‘programa’ de revisão historiográfica. Quando muito, tratou-se de uma intenção de reinterpretar o passado no sentido de uma estratégia narrativa liberal.

Já no que respeita ao segundo momento, no século XX, em que se afirma a narrativa tradicionalista, tratava-se sobretudo de romper a hegemonia da interpretação liberal e laica, dominante desde a revolução liberal. A historiografia tradicionalista definiu-se por oposição à historiografia liberal e republicana e sobretudo por oposição aquela que era considerada a expressão mais acabada e influente de pessimismo em relação ao passado: a narrativa de Oliveira Martins (que, aliás, sendo um crítico da narrativa liberal, coincide com ela, no essencial da sua teoria da decadência). Não surpreende pois que os tradicionalistas abusassem de verbos como rever e reabilitar para combater erros, falsificações, a negação e destruição. Poder-se-á conceber uma narrativa canónica tradicionalista? Poder-se-á falar de uma história oficial do Estado Novo? A resposta é evidentemente afirmativa. Essa história oficial foi adoptada por um programa sistemático de endoutrinação a partir do Estado que não se reduziu ao campo da instrução, antes mobilizou artes plásticas, comemorações históricas, exposições, monumentos públicos, toponímia, museus, cinema, teatro, música, etc. Mas não deve esquecer-se que no seio desta narrativa houve variantes significativas. Dois exemplos: 1) sobre a verdade histórica que convinha à nação 2) sobre a definição do rei legítimo em 1826, aquando da morte de D. João VI: D. Pedro IV ou D. Miguel?

Ao invés do que se passou em Espanha, onde no século XIX o integrismo católico ganhou influência significativa como reacção à cultura liberal – e fazendo a apologia da Inquisição no campo da história – em Portugal a narrativa liberal do

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passado foi indiscutivelmente hegemónica até aos anos 20. E a narrativa católica foi, no campo historiográfico, residual. Muito escassas são as obras históricas oitocentistas que abarcam o conjunto do passado nacional na perspectiva tradicionalista e católica. Como explicar isto? Decerto por uma conjugação de factores, entre os quais importa destacar: 1. secularização da história, dos professores, dos programas, dos livros escolares; 2. prestígio e influência de três historiadores que também foram políticos: Herculano, Oliveira Martins e Teófilo Braga (este último o primeiro chefe de governo da República, em 1910); 3. ausência de uma contra-narrativa católica que fosse apelativa; 4. o facto de o tradicionalismo não se justificar tanto com recurso à história (a memória tradicional era inerente à sua doutrina), antes invocando argumentos éticos - o que também sucedeu em Espanha76.

No tempo das ditaduras, se no caso da Espanha poderá ter sucedido um “holocausto cultural” 77 - uma verdadeira hora zero no campo historiográfico - no caso do salazarismo, a censura e a clara hegemonia da narrativa tradicionalista e católica - dominante no discurso oficial e nos diversos graus do sistema de ensino – não impediram contudo que se exprimisse, marginalmente embora, e muito pressionada pela censura, a corrente liberal e republicana. E se é verdade que vários historiadores que eram professores universitários foram perseguidos, expulsos da Universidade (sobretudo em 1935 e em 1947)78 e obrigados a exilar-se, também é um facto que outros se mantiveram na Universidade portuguesa, obrigados (ou auto obrigando-se) a um pacto de silêncio em relação à Respublica.

Como notou Alvarez Junco, há uma sequência narrativa nas histórias nacionais em Espanha que é paraíso-queda-redenção79. O mesmo poderá aplicar-se ao caso português. Este modelo cristão está presente nas duas estratégias narrativas, a liberal e laica e na tradicionalista. Todavia, no quadro destas narrativas há avaliações muito diferentes dos séculos XVII, XVIII e XIX – ou seja da modernidade. Há uma evidente descontinuidade entre a consciência histórica de 1840 a 1920/30,

76 GARCIA CARCEL, Ricardo − La herancia del pasado. Las memorias históricas de España, 3ª ed. Barcelona: Galaxia Gutenberg/Circulo de Lectores, 2013, p.392.

77 PEIRÓ MARTÍN, I. − Historiadores en España. Historia de la Historia y memoria de la profesión. Zaragoza: Prensas de la Universidad de Zaragoza, 2013, p.195.

78 Veja-se ROSAS, Fernando e SIZIFREDO, Cristina − A Perseguição aos Professores: Estado Novo e Universidade. Lisboa : Tinta-da-China, 2013.

79 ALVARÉZ JUNCO, Jose − Mater Dolorosa, La idea de España en el siglo XIX. Madrid: Taurus, 2001, p. 214.

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entre uma interpretação liberal e democrática do passado das nações peninsulares e a interpretação tradicionalista e conservadora que se afirma sobretudo a partir dos anos 20. Trata-se de duas leituras opostas da modernidade. Mas não apenas da modernidade das luzes (séc. XVIII) e do século XIX (para uns tempo de todas as dissoluções, para outros tempo de progresso e redenção). Trata-se afinal de dois modos memoriais de conviver com a perda, com a decadência. Uma mais virada para o futuro – a liberal e republicana - outra mais virada para o passado – a tradicionalista. No entanto, esta última não deixou de se projectar num devir que poderia ser promissor se retomasse o fio de uma vera tradição. E se (caso de António Sardinha), se voltasse para o mundo hispânico.

Se é um facto que muitos dos historiadores que produzem as suas obras no século que vai de 1840 a 1940 foram intelectuais engagés, comprometidos com a res publica, também é verdade que outros, sobretudo a partir dos finais do século XIX, cultivaram um tipo de história documental entendida como ciência-pura, supostamente imune às pressões do espaço público do seu tempo presente. Digo supostamente pois mesmo estes, geralmente centrados no referente nação ou no referente local, não deixaram de ser sensíveis aos valores patrióticos, num registo apologético. Como se fosse possível o historiador, desligado do seu tempo, trabalhar apenas dentro dos parâmetros do passado - preferencialmente de um passado distante, medieval ou moderno, mas evitando o passado próximo -, num trabalho asséptico, imune a teorias e ideologias.

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II - DIRECÇÕES DE ESTUDO

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M O D E R N I Z AÇ Ã O E B L O Q U E I O S :P R O B L E M A S D O D E S E N V O LV I M E N T O

E C O N Ó M I C O N A M E M Ó R I A H I S T Ó R I C A

José Luís Cardoso

Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa

Introdução

O título desta contribuição sugere um problema essencial a discutir: o lugar dos problemas do desenvolvimento económico na historiografia portuguesa dos séculos XIX e XX. E indica que esses problemas remetem para uma análise que não dispensa a consideração da existência de processos de modernização e de bloqueio.

Para que o alcance da abordagem possa ser fielmente traduzido em título, recorre-se à expressão “memória histórica” para se evocarem, em simultâneo, dois domínios historiográficos que se complementam, que algumas vezes surgem erradamente sobrepostos e que não menos vezes procuram tornar-se autónomos: a história económica e a história do pensamento económico.

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Ao longo do período aqui considerado (anterior a 1974) são também outras as palavras trazidas pela memória histórica, quando se discutem os problemas da modernização da economia e sociedade portuguesas. Assim, no léxico de conceitos usados para se expressar algum movimento dinâmico das estruturas que sustentam e projectam em novos horizontes o devir colectivo, é frequente o recurso a palavras como melhoramentos, adiantamentos, regeneração, fomento e progresso. Ou seja, palavras que transmitem a noção de que as coisas mudam mesmo, ainda que tudo pareça permanecer igual ao que já era.

E são igualmente frequentes outras formas de expressão para se identificarem os bloqueios que impedem ou dificultam as mudanças e os processos de modernização, podendo-se traduzir tal reflexão nomeando as causas físicas e morais (ou seja, as circunstâncias e factores de carácter natural e político) do atraso económico, ou simplesmente falando das razões explicativas da decadência.

Nota-se alguma persistência e continuidade no uso destes conceitos e formas de expressão ao longo do período em estudo, por se reconhecerem como úteis instrumentos de diagnóstico e também como testemunho de orientações estratégicas a prosseguir no futuro. Desde os escritos produzidos no âmbito da actuação da Academia das Ciências de Lisboa nos finais do século XVIII sobre os melhoramentos a promover nos diferentes sectores da vida económica, até aos escritos desenvolvimentistas da década de 1960 que apelavam à ruptura com o modelo de crescimento mitigado característico do Estado Novo, notamos alguma permanência na utilização de expressões que revelaram virtudes e potencialidades para se abrir o inquérito sobre os factores e condições que favorecem o desenvolvimento.

A reflexão sobre melhoramentos e bloqueios, fomento e atraso, expansão e decadência, esteve sempre presente na literatura económica produzida em Portugal, desde os alvores da era mercantilista, mediante a consideração de duas abordagens distintas (ainda que não se reivindicasse um estatuto de autonomia disciplinar). Por um lado, autores e textos que buscam a descrição de factos e circunstâncias que, para um dado período, ou para uma sucessão de períodos em análise, se relacionam com o funcionamento e dinâmica da realidade económica (população, produção, consumo, moeda, crédito, impostos, etc.), procurando a partir de tais factos

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estabelecer tendências de evolução. Por outro lado, autores e textos que buscam as formas analíticas (princípios e leis) e os enquadramentos doutrinais e programáticos (visões e ideologias) que conferem sentido explicativo às regularidades e mudanças na ocorrência de factos ou fenómenos económicos.

São estes dois tipos de abordagem que nos remetem, respectivamente, para os campos historiográficos da história económica e da história da ciência e ideias económicas (ou, mais abreviadamente, da história do pensamento económico), que hoje possuem linhagens e sequências historiográficas bem identificadas.

Todavia, uma vez que este duplo campo disciplinar surge inicialmente amalgamado – dada a dificuldade de se separar a história dos factos da história da interpretação desses factos durante o período em análise (a historiografia coberta pelo Dicionário de Historiadores Portugueses, 1779-1974) – não faz sentido uma separação rígida entre campos historiográficos próximos e complementares, até porque os autores que protagonizam avanços de conhecimento nos dois domínios que agora consideramos autónomos são, muitas vezes, os mesmos. Exemplos dessa ambivalência são proporcionados por autores como José Frederico Laranjo, António Sérgio, Moses Amzalak, Armando Castro, Vitorino Magalhães Godinho e Jorge Borges de Macedo. Ou seja, autores que aliaram a dupla faceta de historiadores de factos económicos e de ideias económicas.

Primeiros passos de aproximação à história económica

Em qualquer súmula historiográfica portuguesa não é difícil discernir motivos que nos levam a recordar o exemplo ou a contribuição pioneira de Alexandre Herculano. No caso da historiografia económica, não será tanto pela ambição heurística de desbravar sistematicamente o território onde se erguem e desfilam factos e temas económicos e financeiros que o seu nome se impõe. Valeu-nos sobretudo o seu contributo pelo modo como usou e adaptou as influências do historicismo alemão em busca de uma história sobre a “índole das sociedades”, e não uma história construída a partir de feitos e sombras de heróis. A possibilidade de se analisar e avaliar o peso e importância de instituições, estruturas e problemas

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económicos foi proporcionada aos leitores das suas obras, em especial através de alguns dos seus Opúsculos em que reflectiu sobre a servidão e o feudalismo em Portugal, o regime de vínculos, os bens da coroa e os forais, ou sobre caixas económicas e socorros mútuos1.

Mais especificamente centradas na abordagem de problemas económicos e financeiros foram as incursões históricas de Oliveira Martins, não só numa perspectiva que valorizou o enquadramento analítico do estudo da realidade económica2, mas também numa óptica de curto prazo e de alcance conjuntural, ensaiando respostas e buscando soluções para problemas concretos que não podia ignorar, fosse pela sua veia interveniente e publicista, ou pela ânsia de assumir responsabilidade política reformista3. Com efeito, os seus atributos de homem público obrigaram-no a lidar com especial cuidado com as matérias de carácter económico e financeiro.

No plano teórico, Oliveira Martins foi particularmente influenciado e receptivo às contribuições das correntes de pensamento do “socialismo de cátedra” e da escola histórica alemã, das quais herdou o sentido crítico em relação à suposta universalidade das leis abstractas da economia política que, em seu entender, poderiam conduzir à adopção de concepções de desenvolvimento económico que não valorizavam condignamente o esforço de criação de condições para o aproveitamento pleno dos recursos nacionais. No plano político, estas mesmas influências acentuavam a necessidade de estratégias nacionais de desenvolvimento adaptadas às especificidades históricas e geográficas da realidade que era objecto de estudo e se transformava em projecto de mudança.

Na perspectiva de Oliveira Martins, a história aplicada ao estudo de realidades económicas era motivo de aprendizagem tendo em vista a actuação sobre o tempo presente, possibilitando a construção de interpretações sobre as razões do atraso do país em relação ao ritmo de progresso das nações mais desenvolvidas e permitindo o desenho de propostas de melhoramento, regeneração e fomento dos diversos

1 HERCULANO, Alexandre – Opúsculos. Lisboa: Viúva Bertrand, 1873.2 MARTINS, J. P. Oliveira – Teoria do Socialismo. Evolução Política e Económica das Sociedades da Europa. Lisboa:

Guimarães Editores, 1872; MARTINS, J. P. Oliveira – O Regime das Riquezas (Elementos de Crematística). Lisboa: Livraria Bertrand, 1883.

3 MARTINS, J. P. Oliveira – Política e Economia Nacional. Lisboa: Guimarães Editores, 1885.

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sectores de actividade económica, especialmente do sector agrícola. A reflexão (ou tão-só a exemplificação) histórica sobre temas económicos era entendida como forma de intervenção política e cívica, no pressuposto de que esse era um imperativo crucial para devolver ao país a vontade de superar um longo ciclo de decadência. Esta visão, nem sempre apoiada em comprovativos ou fundamentos históricos irrefutáveis, viria a ter repercussão posterior na obra historiográfica de autores muito influenciados por Oliveira Martins, como foram Jaime Cortesão e António Sérgio. E, de um modo geral, conferiu um estímulo forte à consolidação de um ideário de tradição pessimista sobre as reais capacidades do país, o qual tem perdurado no imaginário público de forma perene.

Entre os políticos e historiadores contemporâneos de Oliveira Martins que nas últimas décadas do século XIX e primeiros anos do século XX deram contributos relevantes para a formação de um cânon historiográfico sobre temáticas económicas, merecem destaque os nomes de João Manuel Esteves Pereira, pelos seus estudos sobre história da indústria portuguesa publicados na revista Ocidente em 1897 e 19004 e de Basílio Teles, pelos ensaios de âmbito histórico sobre organização do trabalho, agricultura, sistemas de crédito e de tributação5.

Também justificam uma chamada de atenção os compêndios de ensino de economia política na Universidade de Coimbra publicados por José Frederico Laranjo e, sobretudo, por Marnoco e Sousa, os quais procedem a incursões ligeiras na história económica, sempre pela via da influência das escolas históricas da economia política e da preocupação em contextualizar a aplicação de leis e princípios supostamente válidos para qualquer país e em qualquer época6. Nas obras destes autores incluem-se também reflexões laterais sobre o processo evolutivo das ideias económicas, protagonizando a emergência de estudos autónomos no domínio da história do pensamento económico7.

Uma referência muito especial é devida a Alberto Sampaio pelo modo conciso como interpretou a importância de exercícios históricos caracterizados

4 Reunidos em PEREIRA, João Manuel Esteves – A Indústria Portuguesa: Subsídios para a sua História, 1897 e 1900. (ed. Carlos da Fonseca). Lisboa: Guimarães Editores, 1979.

5 TELES, Basílio – Estudos Históricos e Económicos. Porto: Livraria Chardron, 1901.6 LARANJO, José Frederico – Princípios de Economia Política. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1891; e

SOUSA, J. F. Marnoco – Ciência Económica. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1910.7 LARANJO, José Frederico – Economistas Portugueses, O Instituto. Coimbra, 1881-1884.

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por um nível elevado de abstracção. Os seus estudos monográficos sobre os hábitos e costumes económicos das populações no Norte de Portugal são reveladores da acuidade metodológica do seu pensamento:

É supérfluo encarecer a importância das questões que se ventilam neste

trabalho; o autor crê todavia que a poucos leitores agradará uma história sem

personagens, faltando-lhe o atractivo que nasce do drama das paixões e do jogo

dos interesses; ele porém dar-se-á por satisfeito, se os entendidos a julgarem de

algum valor, pequeno que seja, para o conhecimento das origens; se dos elementos

que coligiu resultar um esboço, embora rude, do estabelecimento da propriedade e

sistema cultural do norte do país; e se enfim conseguir por esta maneira alargar um

pouco o nosso horizonte histórico8.

Sem dúvida que esta reflexão, apesar de sintética, confere a Alberto Sampaio um papel precursor na identificação dos padrões de referência a que a história económica deveria ambicionar.

Em busca da sistematização de uma disciplina nova

Durante as três primeiras décadas do século XX, o panorama editorial português vai conhecer a publicação das primeiras obras que reclamam, no próprio título com que saem à estampa, a identificação de uma nova disciplina de âmbito histórico: a história económica.

Tal foi o caso do volumoso compêndio de Adriano Antero, com longas digressões sobre a história da vida económica na Grécia e Roma antigas, no qual anuncia a sua visão ultra-descritivista, ultra-factual e semi-geográfica desta nova disciplina:

A história económica estuda a influência que os factores económicos exercem

8 SAMPAIO, Alberto – Estudos Históricos e Económicos. Porto: Livraria Chardron, 1899, 5-6.

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ou têm exercido ou sobre a sociedade, em geral, ou sobre qualquer país ou região,

em particular. E os factores económicos principais são – a situação, a superfície, o

aspecto, o clima, a população, os produtos, as indústrias e as comunicações9.

De forma diferente pensava Carneiro de Moura, para quem o exercício da história económica exigia outro tipo de requisitos, nomeadamente o conhecimento disponibilizado por documentação estatística relevante que, em seu entender, não estava suficientemente amadurecido no nosso país. Por isso argumentava em favor de uma renovação metodológica a que não era alheia a influência das orientações da escola histórica alemã:

A história, baseada na causalidade social que se explica pelo meio e pelos

factores sociais, esclarece o mundo moderno à luz dos dados que a ciência analisa e

depura. (…) A história económica de Portugal é a documentação viva e notável das

leis que regem todas as sociedades humanas na conquista da riqueza, e se não entra

no nosso plano a detalhada exposição teórica daquelas leis, não deixaremos de, por

elas, explicar e verificar os factos narrados (…).

A escola económica histórica despreza as concepções apriorísticas e vai

observando os fenómenos económicos por uma cuidadosa análise histórica.

Infelizmente, sobretudo entre nós, faltam-nos dados estatísticos e outros elementos

de análise para formular com precisão as leis económicas10.

Numa visão que denota indiscutível modernidade e alinhamento com contribuições internacionais contemporâneas, Carneiro de Moura apresenta a história económica como uma história baseada no conhecimento da evolução dos factores de produção:

E outras leis se induzem da nossa história económica. Por elas se verifica,

como veremos, que a evolução dos três factores de produção – terra, capital e

homem, ou natureza, capital e trabalho – começa primeiro pelo predomínio da

9 ANTERO, Adriano – História Económica. Porto: Tipografia A. J. Silva Teixeira, 1905, I,v.10 MOURA, Carneiro – História Económica de Portugal. Lisboa: Tipografia do Anuário Comercial, 1913, 8-19.

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natureza, depois do trabalho, depois do capital, para a solução solidária da economia

mundial, que volta a estabelecer organismos comunais, mas então numa organização

perfeita e consciente das funções especificadas, para se conseguir uma humanidade

menos imperfeita11.

Alguns anos mais tarde, João Lúcio de Azevedo viria a produzir uma das obras mais marcantes da historiografia económica portuguesa, iniciando um modelo de interpretação baseado na noção de ciclos associados ao predomínio momentâneo de determinados produtos (pimenta, ouro, açúcar, ouro e diamantes). Independentemente da validade ou coerência das Épocas delimitadas por Lúcio de Azevedo, a lucidez da sua abordagem não sofre impugnação. A história económica procede a uma espécie de balanço de custos e benefícios que o país vai conhecendo, ciclicamente, entre a prosperidade e a decadência:

Os estudos de que se compõe este volume obedecem ao conceito materialista,

não único, mas certamente indispensável para a compreensão da história. As nações

não vivem só de heroísmos, assunto predilecto dela. Para cada povo existe, como

para os indivíduos, uma conta de Deve e Haver, que nos dá o quilate das suas

prosperidades, e por onde, cedo, até para os maiores impérios, os pródromos da

decadência se denunciam.

Com respeito a Portugal. Não será sem interesse indagar por que preço

pagou as suas glórias, e quais os efeitos delas nas condições gerais do país. A isso

visam estas páginas, onde se tentam esboçar as correntes económicas que dominam

a nossa história12.

A completar este conjunto de autores que inovaram metodologicamente em busca de uma disciplina que desse resposta e explicação consistentes para os prolemas da modernização e dos bloqueios, dos melhoramentos e atrasos, assinale-se a obra de Francisco António Correia. É no seu livro que encontramos uma sistematização mais completa de uma História Económica de Portugal que nos oferece

11 MOURA, Carneiro – História Económica de Portugal. Lisboa: Tipografia do Anuário Comercial, 1913, 19.12 AZEVEDO, João Lúcio – Épocas de Portugal Económico. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1928, 7.

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uma sucessão de movimentos cíclicos em que não se perde a noção de continuidade e de dependência em relação a estados iniciais ou anteriores de evolução.

Para compreendermos bem a economia nacional do nosso tempo torna-

se indispensável o estudo da sua evolução, de todos os movimentos de avanço e

retrocesso, das causas que influíram no aproveitamento dos recursos naturais.

A organização económica do nosso país, como de resto toda a nossa

organização social, pode reflectir o espírito das reformas levadas a efeito no sentido

de a melhorar, mas a sua estrutura corresponde de facto a uma transição lenta de

modalidades anteriores, que se ligam a outras mais antigas, existindo, entre todas

elas uma íntima relação13.

Em conclusão: não obstante a ausência de trabalho original no manuseamento de fontes e tratamento de dados, importa reter nestes autores uma clara visão sobre as orientações metodológicas que a história económica deveria seguir para se construir como domínio historiográfico próprio. Uma história económica que não esquece a preocupação central em compreender razões de atraso e factores de progresso, complemento académico de um propósito cívico alimentado numa esfera pública mais alargada, como demonstram as reflexões provenientes de círculos académicos e jornalísticos, de que a geração da Seara Nova é exemplo ímpar.14

13 CORREIA, Francisco António – História Económica de Portugal. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1929, v.14 Fica deliberadamente de lado a análise das obras de Jaime Cortesão e António Sérgio, que serão objecto de

abordagem autónoma noutras contribuições incluídas neste volume. Cf. também MAGALHÃES, Joaquim Romero – “Oração de sapiência proferida na abertura solene do ano lectivo”, Notas Económicas. Coimbra, Dez. 2009.

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Contribuições da história das ideias

Conforme referido anteriormente, nem sempre é fácil ou possível autonomizar de forma clara as contribuições provenientes de motivações cognitivas classificáveis no âmbito da história do pensamento económico. Para além das já assinaladas contribuições de J. Frederico Laranjo e de Marnoco e Sousa, importa salientar o muito significativo número de notas de leitura, esboços bio-bibliográficos, transcrições de excertos, novas edições de obras esgotadas e edições de obras inéditas, contribuições múltiplas que constituem o imenso espólio legado por Moses B. Amzalak. A este autor se fica a dever um levantamento exaustivo de fontes impressas e manuscritas de grande relevância para o estudo da história do pensamento económico português. Apesar de não brilhar pela pertinência do comentário analítico, nem pelo fulgor da apreciação crítica, Amzalak superou a expectativa dos seus leitores pela chamada de atenção que soube fazer em relação ao modo como economistas portugueses de diversas gerações contribuíram para uma reflexão original, ou adaptaram reflexões de autores estrangeiros, sobre problemas económicos, nos planos teórico, doutrinal e político.

O seu estilo balanceou entre a apologia ou glorificação da originalidade de autores portugueses ou de origem portuguesa15, e a organização de informação bio-bibliográfica sintética sobre autores lidos, transcritos e editados16. Em qualquer das opções, Amzalak revelou não possuir a preocupação de distanciamento perante personagens e textos divulgados, porventura apenas entusiasmado pelas novidades que trazia aos seus leitores. Todavia, independentemente das limitações no plano hermenêutico, não há dúvida que contribuiu para naturalizar e estabilizar um modo de registo da evolução do pensamento económico que ficou ao alcance e disponível para o ofício mais exigente de historiadores que posteriormente seguiram os seus passos pioneiros.

Outra contribuição importante para o estudo do pensamento económico português foi dada por António Sérgio. Na sua abordagem aos autores mais

15 AMZALAK, Moses B. – Trois Précurseurs Portugais. Paris: Sirey, 1934, entre muitos outros títulos.16 AMZALAK, Moses B. – Do Estudo e da Evolução das Doutrinas Económicas em Portugal. Lisboa: Oficinas do

Museu Comercial, 1928, para citar apenas a colectânea mais significativa dos seus escritos.

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representativos do século XVII, António Sérgio faz uso dos escritos de Luís Mendes de Vasconcelos, Manuel Severim de Faria e de Duarte Ribeiro de Macedo para a construção de uma estratégia argumentativa em torno dos grandes desígnios nacionais, das grandes opções que se impunham ao país, não apenas no ano de publicação do seu livro17. Para Sérgio, Portugal debatia-se em permanência com a escolha de políticas de fixação ou de transporte, perante ameaças de decadência e vontade de “ressurgimento”, perante a inevitabilidade da “crise de inteligência” e a necessidade do “corregimento de mentalidades”. Esta era uma outra forma de olhar para os factores de progresso e motivos de atraso, num quadro que configurava a herança pessimista muito inspirada no legado de Oliveira Martins.

Num registo bem distinto, e referente a um período que abrange a literatura económica da era medieval e mercantilista, José Calvet de Magalhães viria mais tarde a dar sequência interpretativa a muitas das figuras sumariamente abordadas por Amzalak e António Sérgio, enriquecendo com abordagens comparativas internacionais a discussão do alcance dos escritos de autores portugueses18.

A consolidação de um campo disciplinar

Outro autor que em fase mais tardia da sua carreira viria a prestar atenção sistemática à história das doutrinas e teorias económicas em Portugal foi Armando Castro.19 A ele se deve a fixação de um modelo interpretativo coerente, de inspiração metodológica marxista, sobre a função legitimadora, no plano social e político, das construções conceptuais e elaborações doutrinais associadas ao desenvolvimento da base material da economia capitalista.

A mesma orientação programática está presente na abordagem que Armando Castro produziu sobre o modo de interpretação da história económica portuguesa,

17 SÉRGIO, António – Antologia de Economistas Portugueses. Séc XVII. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1924.18 MAGALHÃES, José Calvet – História do Pensamento Económico Português, da Idade Média ao Mercantilismo.

Coimbra: Imprensa da Universidade, 1967.19 Atendendo ao âmbito cronológico aqui considerado, não se discutem esses textos de Armando Castro

publicados depois de 1974. Para uma apreciação desses e de outros contributos posteriores da mais recente historiografia do pensamento económico português, cf. CARDOSO, José Luís – “A recente historiografia do pensamento económico”, Ler História. Lisboa, nº 21 (1991), 146-153.

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conforme o seguinte excerto bem expressa:

Pensamos ser preferível abordar a nossa história económica de forma a

compreenderem-se facilmente as leis económicas e a evolução das relações sociais

de produção nos seus aspectos fundamentais. São deste género os estudos histórico-

económicos que apresentam verdadeiro interesse científico e cultural, visto que a

simples compilação de dados retrospectivos, sendo de interesse para quem estuda

estas questões, não fornece a explicação causal dos factos; para atingir este escopo

é necessário conhecer as classes sociais em acção, o tipo de relações existente entre

elas e examinar as repercussões do desenvolvimento das forças produtivas materiais

sobre as relações sociais de produção20.

A fidelidade a um modelo de interpretação coerente, mas com resultados de pesquisa empírica bem mais frutíferos, foi também cultivada por Vitorino Magalhães Godinho, sem dúvida um dos autores que mais e melhor contribuiu para o desenvolvimento de um cânon interpretativo da história económica e social portuguesa.21

Sem nunca perder a paixão pelo arquivo, o respeito pela fonte, a ânsia de bem cuidar do documento, a história praticada por Vitorino Magalhães Godinho na linha da ecola francesa dos Annales é especialmente exigente no que se refere ao processo de construção teórica, ao esforço de elaboração de conceitos que permitem melhor entender a sucessão de acontecimentos. Magalhães Godinho nunca fez cedências ao positivismo acrítico de muitos historiadores da sua geração, conforme deixa claro na seguinte passagem:

Está quase tudo por desbravar nestes problemas da vida material e dos

laços sociais, conquanto pululem as memórias eruditas sobre os avós de qualquer

descobridor e não mais se calem as discussões acaloradas sobre o exacto local do

20 CASTRO, Armando – Introdução ao Estudo da Economia Portuguesa (fim do século XVIII a princípios do século XIX). Lisboa: Edições Cosmos, 1947, 9-10.

21 Para uma abordagem mais pormenorizada das suas contribuições inovadoras neste domínio, cf. CARDOSO, José Luís – “Vitorino Magalhães Godinho and the Annales School: history as a way of thinking”, e-journal of Portuguese History, vol. 9:2, 2011.

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nascimento de qualquer navegante alcandorado à navegabilidade.

Impõe-se, portanto, pôr os problemas da criação da

a) história económico-social dos continentes não europeus até à expansão

europeia;

b) história económico-social desta expansão e das transformações

originárias de tal contacto, do duplo ponto de vista dos europeus e dos indígenas22.

Para Godinho, a história económica e social não pode reduzir-se a uma sequência narrativa de factos positivamente avaliados e encadeados sem nexo explicativo causal. Os acontecimentos minuciosamente relatados e reproduzidos de fontes seguras e insuspeitas têm que ser perspectivados em longa duração e, acima de tudo, mediante um esforço de interpretação que recorre à capacidade de entendimento racional assente na construção de tipos-ideais (na melhor tradição weberiana) ou na formulação de problemas que exigem do historiador explicação e solução. Dois exemplos retirados da sua obra ajudam a compreender o seu posicionamento nesta matéria.

O primeiro exemplo refere-se ao conceito de “complexo histórico-geográfico”, através do qual procurou discernir o encadeamento de estruturas espaciais ou territórios localizados no espaço mas definidos num tempo que tem ritmos e cadências que possibilitam a captação de curtas e longas durações (ou seja: espaços que variam ao ritmo da história). Um complexo onde se estabelecem fluxos e relações económicas, sociais e políticas em escalas espaciais diversas (local, regional, nacional, mundial), onde interagem actores e instituições com sentidos próprios e dinâmicas articuladas, onde se definem práticas culturais e rituais que conferem especificidade às realidades históricas analisadas23. O estudo das redes e frotas comerciais no Índico e Atlântico Sul, numa perspectiva ampla de estudo dos mercados à escala do mundo, permitiu a Vitorino Magalhães Godinho exercitar a validade heurística deste conceito onde se enlaçam as relações e tensões dialécticas entre espaço e tempo, conjuntura e estrutura, curta e longa duração, micro e macro análise. Trata-se, por conseguinte,

22 GODINHO, Vitorino Magalhães – História Económica e Social da Expansão Portuguesa. Lisboa: 1947, 11.23 GODINHO, Vitorino Magalhães – “Complexo histórico-geográfico”. In Joel Serrão (org.), Dicionário de

História de Portugal. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1966.

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de um conceito que lhe permitiu explorar os caminhos que melhor conduzem à compreensão histórica de fenómenos sociais complexos.

O segundo exemplo diz respeito ao conceito de Portugal como “sociedade bloqueada” que Magalhães Godinho desenvolveu num dos seus mais notáveis (e também um dos mais polémicos) exercícios ensaísticos24. Serviu-lhe esta noção para explorar de modo coerente vicissitudes de bloqueio em diferentes momentos da história portuguesa, os quais ilustram ou constituem pretexto para abordagem dos problemas do atraso, da dependência e da decadência, do desperdício ou mau aproveitamento de recursos, de mentalidades e culturas pouco propícias à inovação e avanço do conhecimento. Trata-se de um reencontro com Oliveira Martins e António Sérgio, uma demonstração inequívoca do peso desta tradição de pensamento na historiografia económica portuguesa.

Numa perspectiva menos apegada à necessidade de operar mudanças paradigmáticas no campo da historiografia económica, cumpre destacar as contribuições de Virgínia Rau que, ao longo das décadas de 1940, 1950 e 1960, dedicou diversos estudos e ensaios a temas de história económica e social do antigo regime25. Os seus trabalhos sobre mercadores portugueses e estrangeiros, feitores e feitorias, banqueiros, construção naval, relações comerciais externas, assim como sobre o pensamento económico da era mercantilista, revelam um extremo cuidado na análise de fontes e na explicação da sua pertinência exemplificativa de problemas históricos relevantes. E revelam também uma preocupação fundamental no enquadramento de factos e personagens, na percepção dos fluxos de mercadorias, capitais e moedas, e também na análise de condições técnicas, regimes contratuais, relações de trabalho e de poder.

Um último autor a merecer atenção neste breve balanço da historiografia económica portuguesa anterior a 1974 é o de Jorge Borges de Macedo.26 Os seus trabalhos são sobretudo animados pela necessidade de contrariar as interpretações

24 GODINHO, Vitorino Magalhães – A Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa. Lisboa: Arcádia, 1971.25 Reunidos em RAU, Virgínia - Estudos sobre a História Económica e Social do Antigo Regime. Lisboa: Editorial

Presença, 1984.26 Para uma visão de conjunto das suas contribuições para a renovação da história económica e da história do

pensamento económico, cf. CARDOSO, José Luís – “Jorge Borges de Macedo: Problems of the History of Portuguese Economic and Political Thought in the Eighteenth-Century”, e-journal of Portuguese History, vol 11:2, 2013.

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que acentuavam o carácter subalterno das ideias e práticas económicas originadas em autores portugueses representativos de uma elite ou escol nacional. Procurando traçar novos caminhos para a compreensão dos processos de modernização e de bloqueio da economia portuguesa, Macedo valorizou a importância das conjunturas políticas e diplomáticas e os contextos de concorrência externa que afectavam a capacidade de desenvolvimento dos sectores de actividade económica, sobretudo do sector industrial. Produziu estudos inovadores, nos quais demonstra manuseamento hábil e problematização de fontes arquivísticas até então pouco ou nada trabalhadas e que contribuíram de forma decisiva para renovar os legados de interpretação da situação económica no tempo de Pombal, da história da indústria no século XVIII, do Tratado de Methuen, ou do bloqueio continental. Porém o seu mais sólido contributo para a compreensão dos problemas do desenvolvimento português foi a interpretação que nos deixou sobre a história dos equipamentos industriais, das actividades bancárias e portuárias, assim como sobre as estratégias económicas e políticas definidas por decisores soberanos no século XVIII, perante um quadro contingencial de relações internacionais complexas27.

Epílogo

No final do período aqui considerado emergiu uma corrente de pensamento associada à reflexão desenvolvimentista protagonizada por economistas e sociólogos com fortes ligações à escola estruturalista latino-americana que animou as suas sugestivas contribuições através dos trabalhos da Comissão Especial das Nações Unidas para a América Latina (CEPAL). Os escritos e programas de acção de Raúl Prebisch e de Celso Furtado tiveram os seus seguidores em Portugal, quer no ambiente renovado do ensino da economia no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF), quer no círculo mais recatado de cientistas sociais colaboradores do Gabinete de Investigações Sociais (GIS) e da revista Análise Social. Tratava-se, afinal, de uma corrente de pensamento económico que tinha em

27 MACEDO, Jorge Borges – Problemas de História da Indústria Portuguesa no Século XVIII. Lisboa: Associação Industrial Portuguesa, 1963.

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atenção a importância da história para a compreensão dos bloqueios e das condições favoráveis à modernização e ao desenvolvimento, que reivindicava dos políticos a iniciativa de favorecerem as condições indispensáveis ao rompimento de laços de dependência e das relações assimétricas existentes no país28.

Esta tendência interpretativa manter-se-ia activa muito além do final do período aqui considerado, não obstante as orientações cliométricas de uma nova história económica mais empenhada em proporcionar hipóteses e ensaios de quantificação de dados relevantes sobre o funcionamento da economia portuguesa do que em reactivar o espectro do atraso e da decadência. Mas esses foram já outros tempos de conjunturas críticas que ditaram processos de renovação historiográfica que ultrapassam o âmbito cronológico em que este contributo se esgota.

28 Cf. NUNES, Adérito Sedas – Sociologia e Ideologia do Desenvolvimento. Estudos e Ensaios. Lisboa: Moraes Editores, 1968.

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A H I S T Ó R I A S O C I A L E M P O R T U GA L ( 1 7 7 9 - 1 9 7 4 )

E S B O Ç O D E U M I T I N E R Á R I OD E P E S Q U I S A

Nuno Gonçalo Monteiro

Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa

Convidado a escrever sobre A história social em Portugal da fundação da Academia Real das Ciências ao final do Estado Novo (1779-1974), gostaria de começar por salientar que, mais do que apresentar resultados de uma pesquisa sistemática, considero esta uma oportunidade para discutir as formas de tratar o tema proposto.

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O que foi a «História Social»? A primeira questão, naturalmente, é a de saber o que se pode entender por

“História Social”. Trata-se, com efeito, de uma taxonomia internacional, que terá tido o seu momento de maior difusão semântica há algumas décadas, mas que não deixa, apesar disso, de ser usada para autodefinição por uma ampla parcela dos praticantes do ofício de historiador.

Em termos globais, nunca deixaram de existir ambiguidades na designação e nos territórios que lhe correspondiam. Pelo menos desde meados do século XX que “História Social” podia querer dizer duas coisas distintas: uma forma de fazer a história de qualquer assunto, que partia do postulado de que as explicações para as matérias analisadas, quaisquer que elas fossem, deviam ser sociais, quer dizer, não decorriam dos indivíduos e estavam conectadas com o mundo social no seu conjunto (pressupondo, portanto, uma forte influência de teorias que fornecessem esses vínculos, fossem elas o marxismo ou outras); e, por outro lado, uma definição muito mais restrita, que identificava a história social com os temas que, mais ou menos sumariamente, eram deixados de lado pela história política, pela história intelectual e pela história económica, embora mantivesse relações preferenciais com esta (temas como a demografia, a família, a criminalidade, etc.). Ainda hoje, subsiste esse duplo sentido da expressão: uma forma particular de fazer todo tipo de história ou o estudo de certos temas específicos (embora nem sempre bem determinados).

Foi no mundo de cultura anglo-saxónica que a utilização da denominação no primeiro dos sentidos referidos mais de difundiu, adquirindo um estatuto análogo (mas não exactamente coincidente) com o da história económica e social na cultura historiográfica francesa dos anos 60 a meados de 70.

Importa referir brevemente a evolução das práticas da história social no mundo de cultura anglo-saxónica, até porque foi mais influente em geral do que quaisquer outras tradições nacionais que usam essa designação (a qual, apesar de todas as crises, mantém um enorme prestígio e uma grande utilização). Podemos considerar como ponto de partida, a celebérrima definição difundida pelo livro de G. M. Trevelyan, The Social History of England, publicado pela primeira vez no início

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dos anos quarenta: «the history of the people with politics left out»1. Foi contra uma leitura linear desta definição que se gerou o primeiro grande impulso e a primeira identidade forte da história social inglesa do período contemporâneo, porque, apesar dos trabalhos decisivos de Lawrence Stone e Peter Laslett2, entre muitos outros, o período contemporâneo constituiu o terreno de eleição da história social anglo-saxónica. As obras mais marcantes foram os trabalhos de E. P. Thompson, Eric Hobsbawm e John Foster3. O terreno de eleição era, pois, a história da classe operária e do movimento operário, o que fez com que a política nunca fosse tão acentuadamente abandonada como na história dos Annales. Nos anos 70, a história social anglo-saxónica sofreu uma mutação comparável mas não confundível com a sofrida pela historiografia francesa, com a decorrente pulverização dos tópicos e dos temas de análise. E, partir da última década do século XX, a referência global à história social enfraqueceu, após os debates pós-modernos e a explosão dos chamados «cultural studies».

Que dizer sobre Portugal, entre finais do século XVIII e 1974, conforme proposto?

Em primeiro lugar, parece certo que se deve distinguir cuidadosamente entre os usos da expressão «História Social» e as produções intelectuais que, de uma ou outra forma, se poderiam incluir nesse território académico. Antes mesmo de finais de setecentos, diversos são os escritos que se poderiam enquadrar na categoria de «ensaio de história social». Não oferece dúvidas, por exemplo, de que nos escritos dos «arbitristas» do século XVII4 mas, sobretudo, naqueles que foram produzidos por alguns dos chamados «estrangeirados», com destaque especial para D. Luís da Cunha e para António Ribeiro Sanches, se podem encontrar referências fundamentais sobre a matéria5. De facto, algumas das mais enraizadas

1 English Social History: A Survey of Six Centuries: Chaucer to Queen Victoria. Londres, 1942. 2 Cf., em particular, STONE, Lawrence - The Crisis of the Aristocracy, 1558-1641. 1ª ed. Oxford University Press,

1965; The Causes of the English Revolution, 1529-1642. 1ª ed. New York: Harper Torchbooks, 1972 e The Family, Sex and Marriage in England, 1500-1800. 1ª ed. New York: Harper & Row, 1977; LASLETT, Peter - The World We Have Lost: England Before the Industrial Age. 1ª ed. 1965 e Household and Family in Past Time. 1ª ed. Cambridge University Press, 1972.

3 THOMPSON, E.P. - The making of the English working class. 1963; HOBSBAWM, Eric - Labouring man. 1964; e FOSTER, John - Class struggle and the industrial revolution. 1974.

4 Cf. António Sérgio - Antologia dos economistas portugueses (sel., pref. e notas António Sérgio). Lisboa: Biblioteca Nacional, 1924.

5 Cf. CUNHA, D. Luís da - Instruções (...) a Marco António de Azevedo Coutinho (pref. de A. Baiäo). Coimbra, 1930 e Testamento politico. Lisboa, 1820; SANCHES, Francisco Ribeiro - Cartas sobre a educação da mocidade (1757).

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ideias sobre a história social de Portugal, depois retomadas por tantos vultos destacados da cultura contemporânea, tiveram por base ideias, designadamente, sobre a influência excessiva e nefasta da Igreja, sobre cristãos-novos e comércio, e sobre o «puritanismo» aristocrático que aparecem nos escritos de meados do século XVIII e virão a ter, sob a forma de manuscritos primeiro e só muito depois como impressos, uma ampla difusão. Combinando-se, de acordo com um geometria variável, com a crítica ao impacto do império e do ouro e à influência inglesa, constituem o alimento da mais difundida visão de conjunto da história portuguesa, frequentemente designada por «teoria da decadência»6. Na verdade, é preciso ter em conta que estes escritos se destinavam a propor reformas, por vezes, com um cunho sistemático.

Embora por norma mais consistentes no plano empírico, as numerosas publicações da Academia Real das Ciências, com especial destaque para as respectivas Memórias Económicas (1789-1815)7, têm geralmente um objecto mais circunscrito. No entanto, alguns trabalhos, publicados ou não na época, constituem ensaios com um âmbito mais global e amplo eco futuro. É o caso da Memória sobre as causas da diferente população de Portugal em diversos tempos da monarquia, de Joaquim Soares de Barros, entre outros8.

A «História Social» em Portugal

No entanto, se os textos antes referidos legaram imagens fortes sobre temas da história social de Portugal, a verdade é que a referida expressão deles não consta, salvo prova em contrário. De resto, conforme indica o primeiro dicionário da língua portuguesa, «social» quereria dizer, «cousa concernente à sociedade, amizade, união de várias pessoas». Não era uma palavra de uso frequente, ao contrário de «sociedade» e dos seus múltiplos usos e significados9.

Coimbra, 1932. 6 Cf. o que adiante se refere sobre o assunto.7 Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, 1789-1815 (introd. de José Luís Cardoso). Lisboa,

1990, 5 tomos. 8 Ob. cit., pp. 99-117.9 BLUTEAU, Raphael - Vocabulário Portuguez & Latino. Coimbra: Colégio das Artes / Off. Pascoal Silva, 1712-

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Pelo contrário, no primeiro liberalismo (1821-1823), a palavra «social» adquire um uso múltiplo e extremamente frequente. Percorrendo os debates parlamentares, expressões como «pacto social», «edifício social», «ordem social» ou «organização social» passam a ser muito usadas10. Não é difícil descobrir, na base dessa explosão, o contratualismo político que inspirava tantos parlamentares. No entanto, a década de 1820 e as culturas políticas do primeiro e do segundo liberalismo (1826-1828) vão adoptar com alguma recorrência um vocabulário social, com diversa inspiração, porventura já com influência nos doutrinários franceses. Em Abril de 1822, o deputado José Vitorino Barreto Feio tem uma das primeiras intervenções nas quais se destaca o conceito de «classe média»: «A nação portuguesa, assim como todas aquelas, que passaram da escravidão à liberdade, acha-se dividida em três classes, nobres, povo, e vadios. Se nós, com justa causa, temos excluído os vadios, porque não tem interesse algum na sociedade, por isso mesmo que não tem um certo; com muito mais razão deveríamos excluir de votar nas eleições a classe dos nobres, porque tem interesses opostos aos do povo, e aspiram sempre a escraviza-lo, e somente deveríamos admitir a classe média, porque é no meio, onde consiste a virtude»11. No segundo triénio (aliás, biénio) liberal (1826-1828), a identificação do liberalismo com a «classe média» dos «negociantes e proprietários» tornar-se recorrente. Um exemplo paradigmático deste discurso é Silva Maia, negociante luso-brasileiro, publicista e autor de umas memórias postumamente editadas sobre a revolta liberal de 1828. Nos seus escritos ao sabor dos acontecimentos, como nas ulteriores memórias, assume com transparente clareza que os partidários do «sistema representativo» se recrutavam na «classe média», «aonde se acham actualmente reencontradas as luzes, as riquezas, e as artes; é a aristocracia da capacidade»; os partidários do absolutismo, ao invés, recrutar-se-iam, em primeira mão, na «aristocracia de nascimento», que conseguira mobilizar, «os plebeus, isto é, a grande massa do povo rude, que só sente, e quase não pensa»12.

1728, 10 vols.10 Cf. Diário das Cortes Geraes e Extraordinárias da Nação Portugueza - 1821-1822… Disponível na Internet: URL:

http://debates.parlamento.pt/.11 Diário das Cortes Geraes e Extraordinárias da Nação Portugueza - 1821-1822…, 19-04-1822, p. 879. Disponível na Internet: URL: http://debates.parlamento.pt/.12 MAIA, Joaquim José da Silva - Memorias historicas, politicas e filosoficas da revolução do Porto em Maio de 1828. Rio

de Janeiro, 1841.

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No entanto, a expressão «história social» tardará a ser utilizada e ficará geralmente restrita a um uso muito contextual. Nos debates parlamentares, por exemplo, só parece tornar-se menos rara na década de 188013, aparecendo então por vezes com um cunho claramente democrático e pós liberal, associada à «questão social».

Assim, apesar das influências dos doutrinários franceses, desde logo no discurso político e depois em obras marcantes como a de Alexandre Herculano, da recepção da novelista francesa (com a sua incontornável incursão nos temas «sociais»), da ulterior difusão da problemática da «questão social», e de toda a semântica com ela conectada, não parece que a expressão «história social» seja recorrente na cultura liberal e republicana portuguesa. É verdade que, quando se quer sublinhar a relevância de uma matéria, é a sua dimensão social que se invoca. Será certamente redundante, invocar muitas referências de Herculano, sustentando que «as biografias das famílias ou dos indivíduos nunca pode caracterizar qualquer época; antes pelo contrário, a história dos costumes, das instituições, das ideias, é que há-de caracterizar os indivíduos»14, ou «la revolution de Mouzinho sera pas seulement economique, elle fut aussi politique et social»15. Às vezes, há alusões explícitas surpreendentes, como numa das primeiras incursões pseudo naturalistas de Camilo Castelo Branco, em Eusébio Macário de 1879, que leva como subtítulo, «História natural e social de uma família no tempo dos Cabrais»16…

Significativamente, o termo difunde-se mais no início do século XX. Jaime Cortesão escreverá em 1928, nos Factores Democráticos na Formação de Portugal, com uma explícita referência a Durkeheim: «o método geográfico, a interpretação económica, e o ponto de vista sociológico remodelaram nos últimos anos profundamente a História; e historiador algum, ‘contemporâneo do seu tempo’, poderá escusar-se de os utilizar. A História Social domina hoje a História»17.

Pela mesma altura, em 1930, numa colectânea em honra de Carolina

13 Pesquisa em: URL: http://debates.parlamento.pt/.14 HERCULANO, Alexandre - “Cartas sobre a História de Portugal”, in Opúsculos (org., introd. e notas de Jorge

Custódio e José Manuel Garcia). 4ª ed., vol. V, carta V, p. 105, 1982-1983.15 HERCULANO, Alexandre - “Mouzinho da Silveira ou la Révolution Portugaise”, in Opúsculos (org., introd.

e notas de Jorge Custódio e José Manuel Garcia). 4ª ed., vol. I, 1982-1987.16 A partir da edição de 1879.17 CORTESÃO, Jaime - Os Factores Democráticos na Formação de Portugal (com um sugestivo prefácio de Vitorino

Magalhães Godinho). Lisboa, 1964, p. 219.

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Michaelis, João Lúcio de Azevedo publica «algumas notas relativas a pontos de história social». A ideia central é de que o povo é o depositário do sentimento nacional. O período de eleição é a Idade Média e 1383/1385, embora com incursões na organização dos mesteirais da Época Moderna18. Enfim, um texto que se situa claramente na genealogia da «história popular de Portugal», que adiante se discutirá.

No entanto, a referência mais surpreendente é, certamente, o primeiro livro que usa expressamente no título a expressão. Trata-se da Histoire sociale du Portugal, postumamente publicada em 1949, em Paris, com uma fotografia de Salazar ao lado da folha de rosto, da autoria do sociólogo, discípulo de Frederick Le Play e professor por quatro anos em Coimbra (1930-34), Paul Descamps (1873-1946). Destacando que «quoique le genre soit en train de se créer», faz uma detalhada incursão geográfica e histórica destinada a completar Le Portugal Inconnu de Leon Poisard19. De forma transparente, o livro é uma apologia pouco subtil do Estado Novo: quando uma ruptura profunda se produz, são precisos anos para estabelecer novas tradições: «Il faut donc prendre parti et créer un Estado Novo. C´est une ouvre d´éducation bien plus que d’organisation»20. O impacto de Le Play em Portugal vinha muito de trás e tinha conduzido em 1918, no Porto, à fundação da Sociedade Portuguesa de Ciência Social, tendo como director Bento Carqueja21.

Em síntese, as plurais e por vezes surpreendentes referências à «História Social» não alimentaram um campo particular de pesquisa, antes constituíam uma alusão ocasional em obras dos mais diversos cunhos. Pondo de lado a historiografia medieval, pode sugerir-se que este panorama só começaria a ser parcialmente modificado a partir de meados do século XX.

18 AZEVEDO, J. Lúcio de - «Algumas notas relativas a pontos de história social», in Miscelânea de estudos em honra de D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1930.

19 Sobre o tema cf. MEDEIROS, Fernando - “Grupos domésticos e habitat rural no Norte de Portugal – o contributo da escola de Le Play, 1908-1934”, Análise Social. Lisboa, nº 95 (1987), pp. 97-116.

20 DESCAMPS, Paul - Histoire sociale du Portugal. Paris, 1949.21 Cf. Boletim da Sociedade Portugueza de Sciência Social, n.os 1/2 e 3/4, 1918.

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A «teoria da decadência»

De facto, durante grande parte da Época Contemporânea pode dizer-se que, excepção feita ao período medieval e ao incontornável legado de Alexandre Herculano, primeiro, e depois de Henrique da Gama Barros22, Costa Lobo23 e Alberto Sampaio24, o que se escreveu sobre temas qualificáveis de «História Social» durante a maior parte do século XX repousou em investigações até muito tarde bem parcelares e fragmentárias, em muitos casos confundidas com o ensaísmo político, com um cunho de oposição à ditadura, pois a pesquisa histórica, em geral, teve uma limitada institucionalização durante o Estado Novo e, sobretudo, privilegiou até ao final dos anos sessenta, a Idade Média e os Descobrimentos. Com algumas excepções, excluiu-se a pesquisa sobre a história portuguesa posterior a 1820.

A renovação do publicismo histórico de finais dos anos 50, apesar da edição de obras como o Dicionário de História de Portugal (1963-71), sob a direcção de Joel Serrão, e da sua matriz essencial ser em boa medida a combinação de pesquisadores ligados ao Estado Novo com notórios nomes da historiografia oposicionista, mantém e amplia essas dimensões. A escrita sobre história é, em muitos casos, um lugar de oposição e, agora mais marcadamente (teses no estrangeiro), de exílio, sobretudo quando se estende ao século XIX, ao movimento operário e à República25.

Essa escrita, porém, tirando em parte as obras sobre períodos mais recentes, era balizada por duas referências centrais: a chamada «teoria da decadência» e aquilo que poderemos chamar «história popular de Portugal», ou seja, dos momentos políticos em que o povo se fazia actor e determinava os destinos nacionais.

Não se pretendendo aqui resolver as ambivalências e oferecer uma definição fechada do que foi a «História Social» em Portugal, pelo contrário, assumiremos como tal as obras que assim se definiram, mesmo quando se referem a uma temática compartida. Existindo outros textos sobre o período medieval e sobre o império, valorizar-se-á neste as outras dimensões não cobertas por essas temáticas,

22 História da administração pública em Portugal nos séculos XII a XV, 5 vols. Lisboa: Imprensa Nacional, 1885-1934.23 LOBO, António da Costa - História da sociedade em Portugal no século XVI. Lisboa: Imprensa Nacional, 1903.24 SAMPAIO, Alberto - Estudos historicos e económicos (pref. de Luiz de Magalhães), 2 vols. Porto: Livraria

Chardron de Lelo Irmäo, 1923.25 Cf. MONTEIRO, N. G. - “L'historiographie de la révolution libéral au Portugal: perspectives recentes”, in

La recherche en histoire du Portugal - Bulletin du Centre d'Études Portugaises, nº 1, 1989, pp. 57-65.

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deixando-se de lado matérias como as origens da expansão, por exemplo. E as imagens de conjunto que interpelaram a história social.

A primeira referência incontornável nesse domínio é a chamada «teoria da decadência». Como já antes se assinalou, os seus pontos de partida são textos, sobretudo setecentistas, com ampla circulação manuscrita e mais tarde impressa, como os de Alexandre Gusmão e D. Luís da Cunha (os chamados estrangeirados26), e que foram retomadas no vintismo e no primeiro liberalismo, e em geral no discurso sobre o Antigo Regime. Por seu turno, esses pensadores críticos setecentistas faziam suas, em larga medida, as imagens que os viajantes do Norte da Europa difundiam sobre a Península Ibérica católica e inquisitorial. Através deles foi-se difundindo uma certa imagem da história de Portugal. Depois, essa imagem seria retomada pelos pensadores críticos do liberalismo triunfante, designadamente, pela chamada geração de 70. Podem invocar-se diversos escritos de Oliveira Martins, mas o texto mais marcante da imagem antitradicionalista do período, destinado a influenciar sucessivas gerações futuras, é certamente a célebre conferência, pronunciada em 1871 por Antero de Quental, e intitulada Causas da decadência dos povos peninsulares. Nela, Antero de Quental traça um balanço implacável: «A Península durante os séculos XVII, XVIII e XIX, apresenta-nos um quadro de abatimento e insignificância, tanto mais sensível quanto contrasta dolorosamente com a grandeza, a importância e a originalidade do papel que desempenhámos no primeiro período da renascença, durante toda a idade média, e ainda nos últimos séculos da Antiguidade». O retrato proposto estendia-se, explicitamente, ao conjunto peninsular. Mas sublinhava muitos traços especificamente portugueses. Desde logo, «a influência inglesa, que, por meio de cavilosos tratados, faz de nós uma espécie de colónia britânica». Mas também a influência do ouro - o ouro do Oriente e depois do Brasil -, «não se fabrica não se cria, basta o ouro...». O ouro que alimentava a monarquia centralizadora e a aristocracia cortesã que, «como um embaraço na circulação do corpo social, impede a elevação natural de um elemento novo, elemento essencialmente moderno, a classe média». Por fim, a

26 Não cabe aqui discutir o conceito utilizado com peculiar ênfase, entre outros, por Jaime Cortesão, ob. cit., e enfaticamente criticado por Jorge Borges de Macedo em O pensamento económico do Cardeal da Mota, Lisboa, 1960, e depois em Estrangeirados um conceito a rever, Lisboa, s.d. [1974].

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causa fundamental da decadência moral é comum ao conjunto ibérico: reside no catolicismo, no espírito tridentino e na inquisição que conta entre as suas culpas maiores «a perseguição dos cristãos novos (que) faz desaparecer os capitais»27.

Este retrato produzido no último terço do século XIX sobre o Portugal dos séculos anteriores exerceu, como se disse, uma persistente sedução sobre os historiadores e publicistas que no século XX se debruçaram sobre a Época Moderna. De algum modo, a cultura histórica portuguesa no século XX ainda se dividiu em função dessa fronteira. As correntes intelectuais tradicionalistas (em especial o Integralismo Lusitano) procuraram reabilitar o Portugal barroco (associado à data emblemática de 1640), e foram em muitos casos, como se disse, anti-pombalinas. Pelo contrário, as correntes culturais antitradicionalistas retomaram a imagem de Antero de Quental sobre o Portugal moderno e foram, fundamentalmente, defensoras do legado pombalino28.

Foi sob o legado desta dupla herança cultural e política que no século XX se realizaram diversos ensaios e pesquisas históricas. E pode afirmar-se que a «teoria da decadência» balizou, em larga medida, o pensamento de autores como António Sérgio, Jaime Cortesão, António José Saraiva ou Vitorino Magalhães Godinho. Ao mesmo tempo, é possível salientar alguns grandes tópicos da reflexão e discussão até à grande viragem representada pelo alargamento e institucionalização de todos os terrenos da investigação histórica decorrente do 25 de Abril de 1974 (que se reflectiu sobretudo nos finais da década de setenta e nos anos oitenta). Parte desses temas são comuns a todo o período moderno: estão neste caso, em primeiro lugar, a Inquisição portuguesa, os cristãos-novos e a «classe média» ou «burguesia», questões conexas, de resto. Outros assuntos são mais específicos dos séculos XVII e XVIII. Entre eles salientam-se alguns tópicos marcadamente políticos como a Restauração, o Absolutismo, ou a questão pombalina, e um amplo leque de questões que giram em torno do que se pode designar de origens do atraso económico português (incluindo nessa denominação assuntos como o Brasil colonial, o ouro e o seu impacto sobre a economia portuguesa, o tratado de Methuen e as relações com a

27 QUENTAL, Antero de - Causas da decadência dos povos peninsulares, [1ª ed. Porto, 1871]. Lisboa, 1979, pp.14, 22-23, 24 e 42, respectivamente.

28 Cf. TORGAL, L. Reis - História e ideologia. Coimbra, 1989, pp. 69-93.

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Inglaterra). Embora sejam de assinalar relevantes contribuições de estrangeiros29, importa destacar que uma marca da produção desse período foi a combinação da investigação mais ou menos académica com o ensaísmo histórico-político, favorecida pelas condições de produção intelectual prevalecentes e pelas imediatas conotações políticas de temas como a Inquisição.

De facto, mesmo se somente uma parcela dos estudos em questão se refere a temas de história social em sentido restrito, a verdade é que a discussão em relação às matrizes fundamentais da «teoria da decadência» marca, de forma incontornável, muito do que se escreveu no século XX em matéria historiográfica económica e social. Assim, por exemplo, um livro tão inovador como o Prix et monnaies au Portugal (1750-1850), de Vitorino Magalhães Godinho, publicado em Paris em 1955, com prefácio de Lucien Fébvre tem, certamente, múltiplos planos de leitura30. Mas um dos mais evidentes é a ideia de que os surtos industriais durante o período referido só se teriam dado em conjunturas de crise do comércio e das receitas coloniais. Uma forma de confirmar, afinal, os efeitos negativos do império sobre a sociedade portuguesa31.

No polo oposto, mas com a mesma incontornável referência, pode afirmar-se, sem reservas, que uma grande parte da obra de Jorge Borges de Macedo foi um esforço para refutar aspectos fundamentais da «teoria da decadência». Essa dimensão é patente, não apenas no que escreveu sobre os «estrangeirados» ou sobre o pombalismo32, mas em particular na sua dissertação de doutoramento Problemas de História da Indústria Portuguesa no século XVIII, publicada pela primeira vez em 1963. Apoiado num colossal levantamento de fontes, incluindo diversas até então inéditas em matéria de história social, o objectivo essencial da obra é provar que existiu indústria e diversos surtos industrias em Portugal, apesar do Tratado de Methuem, do peso comercial da Inglaterra e do ouro do Brasil33. O mesmo, de resto, se pode sugerir sobre aspectos centrais do seu trabalho ulterior, designadamente, sobre a

29 Cf., no plano da história das relações económicas internacionais duas obras, depois traduzidas para português: SIDERI, Sandro - Comércio e poder. Colonialismo informal nas relações anglo-portuguesas. Lisboa, 1978; e FICHER, H.E.S. - De Methuen a Pombal. O Comércio Anglo-potuguês de 1700 a 1770. Lisboa, 1984. Num plano mais geral e da história agrária: SILBERT, Albert - Le Portugal Méditerranéen à la fin de 1'Ancien Régime XVIII debut du XIX siècle contribution à l'histoire agraire comparée. 2 vols. Paris, 1966, adiante discutido.

30 GODINHO, Vitorino Magalhães - Prix et monnaies au Portugal, 1750–1850. Paris: Armand Colin, 1955.31 Cf. RAMOS, Rui - Tristes Conquistas. A Expansão Ultramarina na Historiografia Contemporânea (c. 1840 - c.1970).

Lisboa: ICS, 1997 [dissertação não publicada].32 MACEDO, Jorge Borges - ob. cit., nota 26; e Situação Económica no tempo de Pombal, Lisboa, 1951.33 Problemas de História da Indústria Portuguesa no século XVIII. Lisboa, 1963..

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história diplomática34. Deixaremos mais para diante a expressão destas polarizações em terrenos

mais estritamente conotáveis com a história social. Mas registamos, por hora, que será difícil exagerar a relevância das clivagens em torno dos temas da «teoria da decadência».

A «história popular de Portugal»

Mas a aceitação ou rejeição da chamada «teoria da decadência» coexistia com um outro referencial persistente: aquilo que podemos designar por «história popular de Portugal» ou seja, a ideia que nos momentos fundamentais, designadamente, quando a independência esteve em causa, foi a intervenção do povo que preservou a nação, muitas vezes contra as elites. Ao assimilar o povo35 ao depositário da identidade nacional36, esta concepção parece, muito naturalmente, associável ao nacionalismo e ao democratismo da propaganda republicana.

Com efeito, poder-se-ia invocar, por exemplo, José Arriaga, que anunciava em 1882 a «história revolucionária» das nações, destacando que «a moderna história portuguesa tem sido escrita retendo-se menos o verdadeiro procedimento do povo do que os actos dos príncipes e dos poderosos»37. O que propunha era o estudo das revoluções que descobria em 1820, 1836, 1846 e 1852, mas depois essa cronologia seria ampliada por outros, partindo sempre de 1383, a 1580 (como fracasso da resistência popular à invasão estrangeira) e 1640. Nesse mesmo contexto, o grande doutrinador republicano Teófilo Braga, entre muitas outras incursões em temas conexos, designadamente no território da cultura popular, enraizava nas cortes de 1641 uma tradição “democrática” de restrições ao poder real38 (teoria contratualista da origem popular do poder).

34 MACEDO, Jorge Borges de - História diplomática portuguesa. Constantes e linhas de força. Estudo de geopolítica. Lisboa, s.d.

35 Cf. sobre a taxonomia em períodos mais recuados, SÁ, Fátima - “Povo-Povos”, Ler História, nº 55, 2008, pp. 141-154.

36 Sobre este tópico em geral, cf. MATOS, Sérgio Campos - Consciência histórica e nacionalismo. Portugal séculos XIX e XX. Lisboa: Livros Horizonte, 2008.

37 ARRIAGA, José - História da Revolução Portuguesa de 1820. Vol. 1, 1888, p. *38 BRAGA, Teófilo - História das ideias republicanas em Portugal, 1880.

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Com efeito, o tema é bem anterior ao auge da propaganda republicana. A mais sólida descrição era, sem dúvida, a da História de Portugal de Oliveira Martins, publicada em 187939, e já com citações da Crónica de D. João I, de Fernão Lopes, seguramente, o texto referencial sobre a matéria.

A grande narrativa popular sobre 1383-1385, a Crónica de D. João I de Fernão Lopes, modelo repetido e inigualado, foi impressa pela primeira vez em 164440. É difícil estabelecer uma genealogia textual e intelectual clara. Registe-se apenas que nos debates entre miguelistas, sobre a convocação de cortes em 1828, se discutem os momentos históricos de participação do povo na vida política, tema que se poderia presumir pertencer ao campo político contrário41.

Em todo o caso, fica claro que em diversos contextos se invoca uma «história popular» de Portugal que terá um amplo futuro no século XX, aliás, em diversos quadrantes ideológicos. Assim, podemos encontrar no já antes citado texto de Lúcio de Azevedo sobre a história social de 1930, uma explanação exemplar. Aí se afirma: «quando a ideia de pátria perdida na unidade romana acordou novamente na Península, o povo foi entre nós o depositário da identidade nacional, que faltou na classe dominante. Assim, quando perigava a independência, em 1383, em 1580, em 1808, as camadas populares, de raízes profundas no solo, seguiram as partes do Mestre de Aviz, ou do Prior do Crato, ou se levantaram contra os franceses, enquanto a nobreza não repugnava bandear-se com o estrangeiro»42. De facto, a teoria popular da história de Portugal foi adoptada por autores das mais díspares formações políticas e de bem diversas orientações historiográficas, nestes se incluindo, por exemplo, Jaime Cortesão.

As sequências identificáveis deste tópico, com aquelas ou outras datas (alteradas ou acrescentadas no que à última se refere), podem encontrar-se num número infindável de textos. Por exemplo, no texto referencial de Vitorino

39 MARTINS, J. P. Oliveira - História de Portugal. Lisboa, 1879.40 Cf. BUESCU, Ana Isabel - “Cultura impressa e cultura manuscrita em Portugal na Época Moderna: uma

sondagem“, Penélope: revista de história e ciências sociais, n º 21, 1999, pp. 11-32.41 Cf., entre outros, SANTOS, Clemente José dos - Documentos para a História das Cortes Gerais da Nação Portuguesa.

Vol. 4. Lisboa: Imprensa Nacional, 1885, e LOUSADA, Maria Alexandre, O miguelismo (1828-1834). O discurso político e o apoio da nobreza titulada, provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1987.

42 AZEVEDO, J. Lúcio de - ob. cit., pp. 48-49.

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Magalhães Godinho sobre a “Restauração”, no Dicionário de História de Portugal43. Só que essa invocação do «povo» pouco ou nada se cruzava com a pesquisa sobre a sua conformação social.

A «História Social», 1950-1974

O período do pós-guerra trouxe algumas mudanças à publicação histórica de matérias ligadas à história social. Em todo o caso, mais pela edição de ensaios e pelo debate sobre certos temas, do que pela consistência da pesquisa sobre os mesmos.

Importa, em primeiro lugar, dar conta dos temas que decorrem directamente das grandes sequências narrativas antes referidas. A história popular, tal como a «teoria da decadência», teve alguns desdobramentos marcantes no terreno da história social, embora quase sempre num plano ensaístico.

Um dos registos a salientar foi, sem dúvida, o debate sobre 1383-85. Nele participaram, entre outros, Joel Serrão, com O Carácter Social da Revolução de 1383, publicado pela primeira vez em 194644, Álvaro Cunhal45 e António Borges Coelho46. Uma discussão apoiada na exegese de textos publicados (Fernão Lopes, sobretudo) e onde a invocação de categorias do marxismo se fazia em larga medida à margem da historiografia marxista internacional da altura e com inspiração num discurso com uma genealogia liberal e guizotiana sobre a «burguesia» medieval.

O mesmo tema da «classe média» que marcava, também, uma parte da discussão em torno da teoria da decadência, como se viu.

Uma boa ilustração desta pode encontrar-se no conhecido livro de Jaime Cortesão, dedicado a Alexandre de Gusmão, e publicado no Brasil a partir de 1952. A obra não se consagrou essencialmente à história social, mas deixou das mais taxativas páginas sobre a sociedade barroca do reinado de D. João V (1706-1750), que a posteridade registara como um tempo de ouro da nobreza portuguesa.

43 Cf., em particular, GODINHO, V. M. – “Restauração”, in SERRÃO, Joel (dir.), Dicionário de História de Portugal. 4 vols. Lisboa, 1961-9.

44 SERRÃO, Joel - O carácter social da revolução de 1383. Lisboa: Seara Nova, 1946.45 CUNHAL, Álvaro - As lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média (tradução do original francês). Lisboa:

Estampa, 1975.46 COELHO, António Borges - A revolução de 1383: tentativa de caracterização. Lisboa: Portugália, 1965.

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Escreveu ele então: «a nobreza evoluíra de classe para casta (…) os grandes fidalgos eram de uma arrogância inexcedível (…) entre eles a endogamia era a regra; (…) o próprio Rei erguia entre as classes divisões estanques»47. E acrescentava, «Portugal era então (…) o país mais tipicamente barroco da Europa (…) em nenhuma outra nação da Europa se encontravam as condições optima para a excelência daquele estilo: acima do povo submetido, a aristocracia dominando sem partilha, transformada em casta»48. Jaime Cortesão destacava que «a velha burguesia de armadores, exportadores, grandes comerciantes e a nova dos industriais, definharam em proveito da nobreza e do alto clero (…) uma reduzida classe média de letrados, funcionários e lojistas não vincava qualquer traço na fisionomia da grei»49.

É de notar que, no polo oposto, existiam concepções diametralmente divergentes sobre estes mesmos tópicos. Nessa matéria, é particularmente sugestivo um longo artigo publicado em 1928 na revista do Integralismo Lusitano. Significativamente intitulado «Ensaio sobre a nobreza portuguesa», o texto de Carlos da Silva Lopes tinha objectivos claros: «de todas as instituições do velho Portugal monárquico e cristão, a nobreza é a que mais mal compreendida se encontra, já por preconceito democrático, já pela confusão que ordinariamente se faz entre a nobreza portuguesa e a nobreza francesa, que de comum não tiveram, pode dizer-se, outra coisa mais do que o nome»50. Não existiria, assim, «a menor analogia» entre a França anterior à Revolução e Portugal anterior a 1834. Ao contrário de França, em Portugal não existiria feudalismo, nem forte espírito familiar, «a ordem da nobreza é (…) mais vasta (…) que a francesa» e «não há dentro dela uma diferenciação pratica entre várias categorias»51. Tal processo seria facilitado pela partilha dos mesmos apelidos entre grandes e humildes e, de forma muito especial, pelo facto de na antiga sociedade existir, a par da fidalguia «herdada dos antepassados», «a simples nobreza, a nobreza inerente aos cargos e profissões»52. Em resumo, o principal argumento do texto, no qual nunca se fala de títulos nobiliárquicos ou de

47 CORTESÃO, Jaime - Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid [1ªed. 1952-1956]. 2ª ed., tomo I. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, p. 93.

48 CORTESÃO, Jaime - Op. cit. (nº 12), p. 101.49 CORTESÃO, Jaime - Op. cit. (nº 12), p. 93.50 LOPES, Carlos Silva - “Ensaio sôbre a nobreza portuguesa”, (sep. da Nação Portuguesa, série V). Lisboa, 1929, p. 6.51 LOPES, op. cit. (nº 7), p. 12.52 LOPES, op. cit., p.15.

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morgadio, é que «ao lado da fidalguia, temos assim uma segunda nobreza adquirida pelo desempenho de uma função pública ou pelo exercício duma profissão liberal» e, para se entender «a sociedade portuguesa anterior a 34», é preciso «conhecer a dinâmica da velha família portuguesa, que, partindo das camadas mais humildes, se guindava às mais elevadas, fortificando-as, renovando-as e sobretudo impedindo-as de formar uma aristocracia fechada»53. Destaque-se que estas imagens divergentes também se refletiam exemplarmente no tópico da «classe média». Para Silva Lopes, «a classe média (…) considera-se como pertencendo à nobreza»54. Outros textos se publicaram em sentido análogo55. Dos cristãos-novos não se fala.

Ora uma das expressões paradigmáticas da «teoria da decadência» revelar-se-ia nos trabalhos que encaravam a Inquisição como uma arma contra a «classe média» ou «burguesia», identificada com os referidos cristãos-novos, conforme sugerido desde há muito por Antero. Apoiando-se sobretudo em pesquisas de António Baião e de Lúcio de Azevedo56 serão estas as ideias difundidas com grande fôlego ensaístico em diversas publicações por António José Saraiva. A sua obra mais sistemática sobre a matéria e que terá grande impacto será o livro Inquisição e cristãos novos, que no contexto político português de 1969 terá 4 edições57.

Outros textos se poderiam certamente invocar. Mas estes estão seguramente entre os mais significativos. Em resumo, a produção essencialmente ensaística sobre o tema da nobreza e da classe média portuguesa ao longo da Época Moderna, escrita durante o século XX, foi escassa, mas dividiu-se por duas imagens totalmente contrapostas e divergentes. Uma destacando a fluidez e abertura do grupo nobiliárquico, outra qualificando-o de «casta» endogâmica e fechada. Os textos de outros autores destacados, como Jorge Borges de Macedo, não contribuíram para desvanecer a opacidade do tema58, até por não nem sempre terem um fio condutor claro. Apenas no cenário posterior à ruptura democrática e à ampliação académica de 1974 se alterariam as condições de produção de escritos sobre o tema.

53 LOPES, op. cit., p.16.54 LOPES, op. cit. (nº 7), p.12.55 Cf., em particular, múltiplas referências em trabalhos de João Lúcio de Azevedo. 56 Cf., em particular, AZEVEDO, J. Lúcio de - História dos Cristãos-Novos Portugueses. Lisboa: Livraria Clássica, 1921.57 SARAIVA, António José - Inquisição e cristãos novos. Porto: Inova, 1969.58 Cf. MACEDO, Jorge Borges de - “Burguesia-Época Moderna” e “Nobreza-Época Moderna”, in SERRÃO,

Joel (dir.), Dicionário de História de Portugal. 4 vols. Lisboa, 1961-9.

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Entretanto, os anos cinquenta e sessenta ficarão ainda marcados por duas outras novidades. Uma será a emergência, em torno de Virgínia Rau e da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, do que se pode chamada um núcleo de história económica e social de matriz empirista. Os seus produtos mais notáveis serão, sem dúvida, os estudos sobre o período medieval e, em particular, os trabalhos de A. H. de Oliveira Marques, designadamente, a Sociedade Medieval Portuguesa59. No entanto, parece justo salientar que é desse grupo que parte a introdução de alguns novos temas e técnicas de pesquisa, como a demografia histórica60. Porém, o seu envolvimento nos debates antes referidos era apenas residual.

Pelo contrário, foi dominantemente à margem da universidade portuguesa e com forte cunho político que se dá, no mesmo período, a explosão do publicismo, com forte cunho ensaístico, sobre temas da história contemporânea. Primeiro, o século XIX, depois, a Primeira República e o Movimento Operário. O Estado Novo era ainda um interdito. Neste terreno pontificarão autores como Joel Serrão, José Tengarrinha, Vitor de Sá, César Oliveira e, mais para o final, Miriam Halpern Pereira, Manuel Villaverde Cabral ou o próprio Oliveira Marques, entre outros. Embora marcado por debates, incluindo o que mudou ou não mudou com o liberalismo, e utilizando categorias sociais como vetores analíticos com profusão, não se podem considerar a maior parte destes trabalhos, estudos aprofundados sobre história social no sentido mais restrito apontado no início. De resto, é no contexto da afirmação destes novos temas que o texto antes citado de Jaime Cortesão seria retomado por Vitorino Magalhães Godinho no seu livro Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa, publicado em 1971, que nele se inspiraria para a formulação do conceito de «ordem nobiliárquico-eclesiástica»61. A ideia forte era a da cristalização de uma ordem social que vinha do Antigo Regime e se prolongaria pelo século XX. Contra a ideia de rupturas sociais no século XIX apontadas por outros (com antecedente notório em Alexandre Herculano e até em Oliveira Martins), o que se pretende realçar neste

59 A sociedade medieval portuguesa: aspectos de vida quotidiana. Lisboa: Sá da Costa, 1964.60 Cf., COUVANEIRO, João e DORES, Hugo - “Os estudos históricos". In MATOS, Sérgio Campos e Ó,

Jorge Ramos do (coordenadores) - A Universidade de Lisboa nos Séculos XIX e XX. Lisboa: Tinta da China, 2013, pp. 933-935. Para Coimbra, cf. NUNES, João Paulo Avelãs - A História económica e social na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 1911-1974. Lisboa, 1995.

61 GODINHO, Vitorino Magalhães - A estrutura da antiga sociedade portuguesa. Lisboa: Arcádia, 1971, p. 64.

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ensaio é a «irrealizada sociedade burguesa»62, sugerindo-se presuntivamente que o Antigo Regime se prolongaria no Estado Novo...

No entanto, no que à história social diz respeito, a pesquisa deste período sobre as Épocas Moderna e Contemporânea sofria de inexoráveis limitações, designadamente, relativamente às condições institucionais para a pesquisa sistemática. Desse ponto de vista, os trabalhos do historiador francês Albert Silbert ocupam um lugar único63. Não obstante o seu entrelaçar preferencial com a história agrária, tem uma sólida fundamentação documental, espelham a problemática internacional da história social até então prevalecente e constituíram-se em paradigma para trabalhos futuros.

Neste cenário, 1974 e o seu impacto a médio prazo representou uma efectiva viragem. A liberdade intelectual e de pesquisa, em primeiro lugar. A abertura ou alargamento da Universidade, em segundo lugar, a qual, embora se tenha iniciado antes do 25 de Abril, se acentuou de seguida, permitiu o aumento notório do número de pessoas que faziam investigação, mas também a cres cente institucionalização académica da mesma. A maior parte da produção histórica passa a estar integrada em exigências de graus académicos ou de carreiras. Um outro factor decisivo foi, sem sombra de dúvida, a crise dos grandes paradigmas historiográficos dominantes nos anos 60. Contrariando uma tradição ensaística antes dominante, os historiadores portugueses das últimas décadas, com poucas excepções, têm evitado as grandes interpretações de conjunto sobre a história e a sociedade portuguesa. São outras páginas as que desde então se abriram64.

62 Ob cit., p. 123.63 Cf. SILBERT, Albert - Le Portugal Méditerranéen à la fin de 1’Ancien Régime, XVIIIe - début du XIXe siècle.

Contribution à l'histoire agraire comparée. 2 vols. Paris; ver também, SILBERT, Albert - Le problème agraire portugais au temps des premières Cortes Libérales (1821-1823). Paris, 1968.

64 A revisão deste texto contou com um pequeno apoio financeiro do projeto estratégico UID/SOC/50013/2013 do ICS e com a inestimável colaboração de Carla Araújo.

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E S P I R I T U A L I DA D E S E R E L I G I Õ E S :U N I V E R S O S D E M O T I VA Ç Ã O

E D E C R E N Ç A *

António Matos Ferreira

Faculdade de Teologia da Universidade Católica PortuguesaDepartamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa

A atualidade coloca qualquer observador diante de situações e conjunturas onde, de uma forma ou de outra, o religioso e a sua evocação surgem como referência e estrutura de formas de recomposição, mais ou menos conflituosas, à escala regional e planetária. Constituem-se, assim, zonas de fratura entre sunitas e xiitas, entre hinduístas e muçulmanos ou cristãos, entre cristãos intransigentes e aqueles ditos «liberais», entre correntes budistas e estas em afrontamento com etnias cuja identidade se modela pelo Islão, pelo hinduísmo ou por outras

* Este texto corresponde à comunicação realizada no âmbito do Seminário «Historiografia e Res Publica: a escrita da História nos dois últimos séculos» que teve lugar em Lisboa, na Biblioteca Nacional de Portugal, nos dias 29 e 30 de Abril de 2014. Foi comentador desta intervenção Tiago Pires Marques (CES-Coimbra).

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minorias desde o animismo às comunidades estruturadas do cristianismo. Todas estas situações não se reduzem, por mais mediatizados que sejam a determinados conflitos, às manifestações de atrocidades militarizadas, antes encontram-se em formas de violência e de descriminação quotidiana, muitas vezes de forma continuada e persistente.

Mesmo a história do Ocidente deixou de ser percetível pela simples apreciação da evolução do cristianismo na sua diversidade, nos seus antagonismos e nas suas dinâmicas de cissiparidade. O espaço do religioso, com o acentuar da sua porosidade e da sua circulação, encontra-se relativizado por memórias divergentes sobre o lugar da religião na sociedade e pela natureza das correntes de espiritualidade em confronto com o desenvolvimento material e mental das sociedades1.

A correlação entre espiritualidades e religiões, admitindo a existência de uma possível fronteira e delimitação, não é evidente e tão-pouco se verifica de uma forma uniforme como produto de um encadeamento estruturado. A par das instituições consignadas ao religioso e ao espiritual as pulsões individuais e societárias alargaram a galáxia do terreno que, mesmo socialmente controlado, impõe uma vigilância acrescida dos poderes que se veem confrontados pela necessidade de princípios, por convicções de pertença, pela fragmentação e pelo caos identitários. Esta constatação obriga o estudioso a considerar estas dimensões – a da espiritualidade e a da religião – como realidades plurais, multiformes, involucrando o conjunto da vida individual e em conjunto, onde se joga a diversidade de conveniências – pessoais ou de grupo – com incidências, culturais, políticas e económicas.

1 Cf. o estudo de Olivier Roy (La saint ignorance: le temps de la religion sans culture. Paris: Éditions du Seuil, 2008) traça o percurso multifacetado desta evolução, enquanto processo religioso e cultural do cristianismo no Ocidente.

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A «possível» valorização historiográfica

Na história ocidental, predominantemente nos países marcados pelo catolicismo tridentino, verificaram-se situações que, no confronto com o desenvolvimento das sociedades, adquiriram a designação de «questão religiosa». Todavia, em sentido amplo e antropológico, com matizes variados, todas as sociedades transportam «questões religiosas». Mas, a dissociação entre espiritualidades e religiões tem um pendor que respeita a dicotomia aberta pela constituição e a afirmação dos Estados, onde a confessionalidade pode ser ou não relevante, sendo contudo a liberdade e o controlo os tópicos determinantes da concorrência e da disputa societárias. Contudo, o eixo definidor desta problemática é a relação entre consciência e instituição.

As religiões e as espiritualidades não são propriamente uma declinação evolutiva, antes encontram-se entrelaçadas no âmago de cada uma delas, interagindo, estabelecendo percursos e delineando mutações, sendo que umas respeitam mais sistemas de crenças, de princípios e de símbolos com expressão externa e social enquanto as outras articuladas com o discernimento crítico individual pretendem fazer o transito entre as implicações interiores e projetar-se socialmente pela ação ética.

Tomando o conjunto destas considerações, atendendo à sua pertinência e ao seu alcance, como pode ser equacionada enquanto objeto do estudo historiográfico a problemática das espiritualidades e das religiões?

A questão não se encontra somente se o trabalho é realizado a partir ou não do interior dessas realidades do domínio das crenças e das suas práticas, tão pouco se esses estudos possíveis assumem um carácter académico ou científico, como se estas referências bastassem para garantir a assertividade dessas análises.

Nesta abordagem o que conta não é a história das religiões ou das espiritualidades enquanto tal, mas compreender a História da humanidade na sua complexidade partindo e tendo em conta as vivências do religioso e do espiritual, na interação com os demais elementos constitutivos da discursividade que, em

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cada época, formam o sentido do existir coletivo2. No que respeita ao trabalho historiográfico, os principais desafios são idênticos aos restantes domínios da sua produção, isto é, se o que predomina é a justificação ou a compreensibilidade da realidade (das coisas e dos acontecimentos); no caso da segunda, a marca do espiritual e do religioso alarga a interrogação e o trabalho hermenêutico sobre os processos societários nos seus distintos planos de realização.

Desde sempre que, para o historiador, a experiência humana se depara com experiências de elaboração ou reelaboração de sentido e com a criação de laços singulares de coesão, transportando o que, correntemente, se designa por religião ou por dimensão do religioso. Isto é, processos vinculativos que fornecem significado e horizontes de realização, fundados em discursividades, mais ou menos retóricas, ou simbólicas. Trata-se de uma relevância constitutiva dessa experiência da humanidade, da sua existência, apresentando-se como património identitário e material que exprime a vida das comunidades, das sociedades. Associada à sobrevivência, as suas evoluções conduzem a dois patamares interligados: os vínculos que criam e o respetivo sentido dessas relações. Neste processo tende a ganhar pertinência e autonomia o que se designa por espiritualidade (espiritualidades), na qual se inscreve o que alguns autores reivindicam como «espiritualidade laica»3.

Tomadas de forma global e ampla, as espiritualidades e as religiões, mais do que especializações historiográficas, constituiem «terrenos» da construção da reflexão da historiografia, como análise e como crítica, enquanto forma de conhecimento, tomadas como «instâncias» de abordagem das dinâmicas sociais e dos percursos, mais ou menos individualizados, espelhando os vetores da estruturação social e dos processos componentes dos acontecimentos e respetivas conjunturas. Constituem-se como variações da composição do próprio objeto historiográfico enquanto narrativa sobre a realidade onde o passado emerge como terreno de (re)

2 Cf. Hesna Cailliau – L’esprit des religions: conn~itre les religions pour mieux comprend les hommes. Cahors: Éditions Milan, 2003; ou ainda, Philippe Capelle, ed. – Expérience philosophique et expérience mysthique. Paris : Éditions du Cerf, 2005. Nestas duas obras são apresentadas, em termos de longa duração, conexões entre os elementos marcantes de distintas correntes religiosas como diferenciação cultural e, também, referências que permitem compreender percursos de individualização espiritual.

3 Como exemplos pode-se assinalar três distintos e significativos contributos sobre esta problemática: André Comte-Sponville – L’esprit de l’athéisme: Introduction à une spiritualité sans Dieu. Paris: Albin Michel, 2006; Vito Mancuso – De l`âme et de son destin. Paris : Albin Michel, 2009, a primeira edição italiana é de 2007; Luc Ferry – A Revolução do Amor: para uma espiritualidade laica: Lisboa: Temas e Debates – Circulo de Leitores, 2011, a primeira edição em francês é de 2010.

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descoberta e de (re)interpretação sobre o existir das comunidades humanas. A espiritualidade e as religiões não são realidades que adjetivam mas que substantivam.

Contudo, nesta perspetiva, a primeira dificuldade respeita à delimitação do objeto em causa (o que é que se está verdadeiramente a tomar em conta e o que se pretende analisar?) e a partir de que lugar se estabelece e realiza a observação pretendida: a espiritualidade (ou espiritualidades) e a religião (ou religiões). No singular abordam-se conceitos essencialmente antropológicos ou de ordem psicossocial, enquanto que no plural é-se remetido fundamentalmente para a dimensão institucional.

Tendencialmente considera-se que a espiritualidade aponta para a vertente (a elaboração) mais individual, no domínio da vivência e da interioridade enquanto marcador do grau de apuramento da consciência. Isto é, considera-se que a iniciativa humana se encontra associada ao ato de acreditar (da crença, de dar crédito, de gerar ou perder confiança, esta entendida como capacidade de criar laços), como elemento estruturador da vontade e como horizonte adequado de realização. A crença surge e manifesta-se como um dispositivo discursivo no qual se penetra e se assume, ao mesmo tempo que funciona como fator essencial de integração, fornecendo firmeza ou dúvida no agir.

A ação é constituída por práticas onde a espiritualidade – como dimensão existencial, psíquica e espiritual, desde as suas expressões mais racionais às mais irracionais (silenciosas, histriónicas, ordenadas ou consideradas desordenadas) – se encontra enunciada por distintas fórmulas (palavras) como sejam caminho, via, viagem, peregrinação, desvio, renúncia, transe, possessão, etc. Estas expressões remetem para procedimentos como «artes de viver», onde se realiza um determinado percurso como trajeto existencial, mais ou menos inserido socialmente. Esta polissemia de motivação e, também, de expressão vivencial encontra-se presente na realidade analisada no âmbito historiográfico quer quando se atende às relações entre indivíduos ou grupos, quer quando se manifestam em determinadas conjunturas.

A utilização da expressão espiritualidade no plural remete para particularismos diferenciadores de uma concorrência a qual, pelo menos em algum momento, se não se expressa como conflito, pelo menos, evidencia antagonismos de elevado grau de anulação que podem gerar dinâmicas de simbiose e de composição sincrética. Isto

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é, não existe nenhum terreno espiritual «puro».A noção de religiões indicia e acentua a pluralidade constitutiva das sociedades

que se apresentam como sistemas, mais ou menos complexos, convergentes mas diferenciados, de processos relacionais, de ordem vinculativa, geradores de sentido que, através de distintas elaborações, se constituem em modelações de poder e se estruturam em funções socialmente operativas. Poder-se-ia refletir também sobre religião, como expressão singular. O campo do religioso não só é vasto como múltiplo na discursividade, na narrativa dos indivíduos, dos grupos e das comunidades (sociedades).

Em qualquer circunstância, importa também atender que esses dois domínios – espiritualidades e religiões –, por si só, não são necessariamente válidos ou pertinentes para se captar a historicidade de muitas sociedades e culturas. Em muitas delas, as expressões de espiritualidade e de religião não só não existem como tal, como os domínios por eles evocados ou sugeridos tem uma ampla, muitas vezes ambígua semiótica, tendencialmente apresentados no seu formalismo ritual e doutrinal que, na prática, não correspondem a um funcionamento autónomo e são inseparáveis do quotidiano. Isto é, a manifestação do sentido e da interioridade emerge da ritualização e do valor reconhecido nesse mesmo viver comum, desempenhando funções civis que são religiosas e vice-versa, por vezes mesmo formas de poder não necessariamente teocráticas mas onde o poder se exerce simbolicamente associado à proteção e à cura, não acessível a todos mas perfilando funções.

Muitas destas funções projetam-se como antídoto social da angústia (àquilo que falta, ao que não se alcança, a experiência de expectativas não atingidas), apresentando-se como «reagente» (catalisador) da dimensão espiritual – «do vento que soprando modela»). Nesta observação incorpora-se o que muitas vezes se designa por «carisma», não sem se manifestar com graus de antagonismo ao que se considera ser o institucional.

Todavia, ainda que por similitude, pode compreender-se a realidade espiritual e a das religiões enquanto «escrita» de níveis de estruturação e de legitimação da existência e, consequentemente, níveis mais ou menos institucionalizados de

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poder. Este é vário, multifacetado e complexo4. A predominância da ótica política na análise historiográfica sobre o poder compreende-se enquanto análise dos processos de organização das sociedades nas suas permanências e mudanças, mas esta perspetiva não esgota a própria estruturação do ambiente político, pois outros fatores interferem e condicionam o agir e a ética. Por esta fundamentação se percebe que as religiões e as espiritualidades interferem sempre no domínio do político.

As religiões e as espiritualidades se são vivências onde se pode destacar a emergência e o lugar do indivíduo, são necessariamente parte da história social, donde não bastar a historiografia institucional das religiões ou do religioso para perceber que a realidade histórica das sociedades está preenchida por formulações e expirações de ordem espiritual que impulsionam correntes de pensamento e de ação.

No quotidiano, analisado como possibilidade ou na longa duração das narrativas instauradoras de memória comum, o religioso corresponde ao conjunto de elementos que fornece uma determinada interpretação e integração do conflito na assunção de uma geografia (representação de um habitat e do seu sentido) e de uma existência enquanto tempo performatizador do encadeamento, remetido para a sucessão ou a rutura enquanto horizonte de compreensão dos acontecimentos do passado, do presente e do futuro.

Neste contexto reflexivo, pode considerar-se existir como que dois filões principais: um, centrado na memória específica de cada denominação religiosa e outro na inserção do que se considera «religioso» na dinâmica política, económica, social, cultural ou das mentalidades.

A instância do religioso tem a ver com duas dimensões importantes: a da economia vida-morte, nomeadamente associada ao «culto» (ao valor) concedido aos antepassados, o que implica a delimitação de espaços e tempos; a das vinculações, isto é, a criação, o desenvolvimento e a sustentação de relações que ligam e desligam os indivíduos entre si e que, de um modo ou de outro, tecem a existência de uma determinada comunidade e conferem vetores de articulação com a complexidade da sociedade.

Habitualmente recorre-se, pela tradição historiográfica ocidental, aos

4 Cf. Luciano Canfora – La nature du pouvoir. Paris : Les Belles Lettres, 2010, sendo a edição italiana de 2009.

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exemplos associados às diversas formas de cristianismo, mas o que se acaba de enunciar é experienciado em terrenos tão diversos como o xintoísmo ou em várias tradições do budismo, só para evocar estas que na sua funcionalidade social aparecem (aparentemente) bem diferenciadas.

Conhecer a história humana e socialatravés do religioso e do espiritual

A história de muitas religiões e de muitas sociedades contém, e de forma inseparável, o desenvolvimento dos traços caraterísticos, por épocas e por enfases adquiridas, do desenhar dos contornos da institucionalização do religioso, incluindo quando se pretende, aparentemente, secundarizar o aspeto do poder para se sublinhar a individualização e a liberdade em torno de formas de espiritualidade. Mas, estas formas são sempre reações que visam preencher o sentido dos laços que tecem as representações que se assumem como formas de viver.

A crença, a adesão e a motivação constituem três elementos que se articulam no desenhar do religioso como acontecimento histórico, convergindo com distintas intensidades para a manifestação e para a afirmação da realidade, mais ou menos unificadora, de origem e de legitimação do poder que se alarga e é reconhecido socialmente, expresso numa determinada entidade ou referência que induz à elaboração simbólica da convivência social, pela justificação, pela sublimação ou pela transfiguração da violência (ou destruição) suscetível de contrapor ao viver comum. Donde, haver sempre um traço essencialmente societário da realidade religiosa.

Três patamares podem ser referidos como objetivação desse domínio do religioso: figurações; práticas e comportamentos; e, instituições. A descrição dos universos religiosos, incluindo no plano historiográfico, lida e desdobra estas três instâncias, sendo que a «historiografia institucional», indiscutivelmente relevante ao privilegiar as instituições e as dinâmicas de poder, tem deixado de lado muito aspetos significativos e determinantes da relevância das religiões. Por exemplo, descura-se repetidamente as divisões e os conflitos conceptuais no seio das religiões, introduzindo de forma muito reduzida esses aspetos nos comportamentos dos

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protagonistas de acontecimentos ou de uma época, sustentando dicotomias que por vezes são demasiado simplistas e incoerentes, como por exemplo: ortodoxias, heresias ou, mesmo, heterodoxias. Em muitas circunstâncias o labor historiográfico é um vetor legitimador de uma determinada ordem e não a instância crítica da complexidade do conflito e da sua relevância social e antropológica. Realidade que a secundarização da problemática religiosa no trabalho historiográfico tende a reforçar.

Na abordagem historiográfica, a circunscrição ao domínio dos sistemas institucionalizados do espiritual e do religioso muitas vezes torna estes domínios excessivamente rígidos e fixos, deixando de lado a perceção das potencialidades de maleabilidade e da incorporação que o religioso possibilita ou dificulta nas sociedades, nomeadamente na emergência de outros patamares da vivência espiritual. Isto pode verificar-se quando se dão, em termos societários, passagens significativas no domínio da tecnologia, nas condições do quotidiano, nas experiências limite (violência, guerra, matanças, genocídios), no desenvolvimento das imagéticas que geram acomodação ou receios (medos). O objeto da análise historiográfica não pode prescindir destes polos de composição dos acontecimentos e das conjunturas marcantes das comunidades e dos indivíduos.

Atendendo somente à estrutura primeira da linguagem do português, assinale-se que o discurso historiográfico tendencialmente tem apresentado dois principais vetores: o institucional subordinado ao político e o identitário onde se procura sublinhar a persistência de tendências confessionais e culturais que corresponderiam a «elementos do ethos da comunidade nacional». Estas tendências não se inscrevem num só filão de reflexão historiográfica mas, certamente, resultam das limitações sobre a complexidade dos problemas em análise. Os factos encontram-se as mais das vezes desconectados da respetiva inserção doutrinal – não como realidade estática mas dinâmica – enquanto práticas que estão dentro de um determinada contextualização e sujeitas às vicissitudes conjunturais.

O domínio do espiritual remete-nos, em primeiro lugar, não para a interioridade mas para o disciplinamento, e consequentemente através deste para aquele. É por esta via que, de maneira formal ou mística, se induz ao desenvolvimento de um processo psíquico e biológico que partindo das ordenações5

5 O que remete para introdução de ritmo e de organização do tempo. A vertente litúrgica do religioso ou

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religiosas incute modos de vida, de compreensão e de lidar uns com os outros e consigo mesmo. Assim, mesmo se nem todo o espiritual remete para o terreno confessional (delimitado) do religioso, este produz sempre determinadas formas e dinâmicas de vivência espiritual.

Na produção historiográfica – que é o que nos ocupa neste debate – são estes e outros elementos que podem ser trazidos à colação e trabalhados nas fontes utilizadas para discernir não só o facto do religioso mas a densidade da narrativa crítica sobre os acontecimentos e a produção da memória. Não é, portanto, secundário no labor historiográfico ou, menos ainda despiciendo, o modo como se lida com a dimensão da espiritualidade e das religiões: pois, ambos os itens falam da profundidade, mesmo reconditamente escondida e recalcada, do conflito e das modalidades da sua resolução que as sociedades e os indivíduos transportam.

O conhecimento histórico a partir da duplaespiritualidade – religião

Não se trata da realização de uma história das religiões mas de uma elaboração historiográfica donde emerge a pertinência da componente do religioso e do espiritual: não como um fragmento mais mas como uma componente estruturante, alargando a própria compreensão da fenomenologia do religioso e do espiritual6.

Verifica-se existir uma história política que valoriza ou desvaloriza a dimensão das religiões historicamente delineadas, predominantemente nas suas dimensões institucionais, «oficiais»; convém sublinhar também que mesmo nas abordagens mais secularizadoras, quando não laicistas, a problemática da religião acaba por estar presente como referencial, mesmo quando esta inscrição se manifesta como ausência ou como rejeição. Todavia, para além dos tradicionais estudos sobre a religião, existe hoje uma maior sensibilidade à dimensão material do religioso e da

determinadas formas de piedade e de oração são relevantes societariamente na medida em que oferecem elementos de integração e de relação com outros, mesmo em situações de fronteira entre a normal e o desvio.

6 Este trabalho historiográfico tem-se designado por História religiosa em contraponto a uma história das religiões ou a uma história de natureza confessional. Todavia, importa não olvidar que essa história religiosa lida também com dois elementos fundamentais as instituições e a teologia enquanto produção intelectual e ideológica.

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vivência espiritual, não como mero resultado mas também como fator configurador da realidade social.

Um exemplo relevante do que se tem exposto pode ser examinado, fora do marco mais corrente de referências ao cristianismo, em torno do discutido santuário de Yasukuni (Japão), edificado em 1869, celebrando a unificação e a legitimação do poder imperial como afirmação do poderio nipónico7. Sobrevivendo à derrota política e militar do Japão imperial na Segunda Grande Guerra, manteve-se e aprofundou a sua natureza simultaneamente como memorial e como expressão nacionalista de resistência, alimentado por formas de devoção e atos de piedade para com os espíritos dos soldados que morreram dando a vida pelo «espírito coletivo».

Este exemplo pode ser reportado a outros sítios de memória coletiva. Esses locais funcionam, como no caso do santuário atrás referido, enquanto lugar de elaboração simbólica, de recomposição de sacralidade do próprio poder político, onde se reelabora uma reminiscência sacrificial coletiva, com capacidade de atrair pessoas e bens, onde se venera o espírito ou os espíritos que se consideram sustentar a comunidade nacional8. Assim, este local apresenta-se efetivamente como bandeira de uma identidade que, podendo dividir, também une. Entre muitos outros exemplos possíveis, neste caso torna-se bem evidente a dimensão imprescindível do religioso mas também a sua ambiguidade.

Esta estrutura do funcionamento do religioso entrelaça-se com o espiritual enquanto vivência que acrescenta densidade e sentido. O rito, não esgotando a latitude do religioso, é essencialmente «religioso» porque delimita e abre o tempo, porque organiza e reconfigura o espaço e porque torna presente a memória como realidade ativa e vivencial. Assim, este processo de materialização do acontecer histórico como experiência e memória, pode ser articulado com a ritualização do «depósito» (por exemplo, evocativo do depósito eucarístico)9, como ocorreu

7 No ano de 1869 inicia-se a restauração moderna do Japão pela unificação do poder político com a dinastia Meiji, que objetivou nessa modernização da sociedade e do Estado no combate contra os particularismos senhoriais (fim do shogunato e do poder assente em vínculos pessoais de senhorio) e que, encarnado no imperador, conferia um desígnio universalista ao poder nipónico.

8 No caso do xintoísmo o culto dos antepassados e do seu espírito permite a sua assunção como religião nacional.

9 Na tradição católica, a existência nas igrejas de um sacrário onde estão depositadas as hóstias consagradas não é só resultado de uma funcionalidade pois desenvolveu-se como local de devoção que simbolicamente se instaura como «coração» da realidade. Esta hermenêutica espiritual acompanhou também a devoção ao Sagrado Coração de Jesus.

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com a inumação do «soldado desconhecido» – dos soldados desconhecidos – no mosteiro da Batalha que, em 1921, se tornou ocasião e mediação de pacificação entre o Estado e a Igreja Católica irmanados num desiderato comum que, como por exemplo através da Cruzada Nacional de D. Nuno Álvares Pereira, fora alimentada entre sectores das elites portuguesas10.

Tomemos outro exemplo ainda: a destrinça entre a matriz castrista e chavista no plano da discursividade mobilizadora, associadas à terminologia das ideologias «revolucionárias». Numa encontramos a construção «católica», uma parenética de exaltação assente numa argumentação demonstrativa da linha correta (da ortodoxia) enquanto na segunda apresenta-se o impacto da discursividade e de formas comunicacionais próprias de um certo «tele-evangelismo». De modo distinto, em ambas o discurso que se tipifica visa sublinhar duas lógicas, tendo em comum o elemento sacrificial e martirológico, e correspondem a construções distintas quer da discursividade teológico-política, quer da reprodução e de transmissão eficiente que visa uma eficácia de convencimento e de adesão. Compreender estas distinções não só permite decifrar melhor a teologia política latente como perceber as virtualidades do enquadramento coletivo do agir, nomeadamente os meios e a sofisticação dos elementos de controlo ou de repressão; os graus de legitimidade, ou melhor, de legitimação do poder político associam-se à questão do «carisma político».

Ainda como um elemento proposto de reflexão, importa considerar, também, a funcionalidade terapêutica11 da espiritualidade e dos sistemas religiosos que, oferecendo elementos de sobrevivência, estabelece fronteiras entre o «bem» («estar bem», ter saúde), e o «mal» («estar mal», estar doente). Esta articulação não se circunscreve ao desenvolvimento de instituições (hospitais, asilos, etc.) mas estende-se ao reconhecimento da eficácia de funções sociais e das suas valências quer pela manifestação do domínio da magia12, quer pela especialização de campos de intervenção. Muitas formas religiosas recompõem-se socialmente

10 Cf. Ernesto Castro Leal – Nação e nacionalismo: A Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira e as origens do Estado Novo (1918-1938). Lisboa: Edições Cosmos, 1999.

11 A raiz grega da palavra terapeuta remete para o servidor (serviçal), indicando particularmente aquele a quem está incumbido a manutenção da limpeza do templo.

12 A noção de magia comporta uma forte ambiguidade pois remete, sobretudo, para técnicas da manipulação. Cf. Marc Augé – Magia. In Enciclopédia Einaudi. Volume 30: Religião – Rito. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994, p. 11-27-

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nos interstícios desta necessidade de cura latente nas distintas comunidades humanas, com particular incidência em processos de maior individualização. As peregrinações aos santuários ou a certas personalidades marcadas pela «santidade» revelam esta componente fundamental da vivência espiritual e das elaborações das religiões, com indiscutíveis impactos na integração e na coesão sociais ou nas suas disfuncionalidades, nomeadamente em formas de resistência ou de contestação.

Ao enunciar-se a abrangência problematizadora resultante da consideração das espiritualidades e das religiões enquanto objeto historiográfico tornam-se patentes os limites dessa reflexão em meio cultural português que se apresenta com lacunas a preencher pelo reforço da dimensão exigida ao labor de memória crítica que supere perspetivas de natureza justificativa dos processos e contextos marcantes da realidade comum.

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A S M I G R AÇ Õ E S N A H I S T O R I O G R A F I A P O R T U G U E S A

( 1 7 7 9 - 1 9 7 4 )

Jorge Fernandes Alves

Faculdade de Letras da Universidade do PortoCentro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória»

Na linha do que aconteceu em outros países europeus, podemos afirmar que a historiografia das migrações em Portugal se tem vindo a desenvolver desde apenas algumas décadas, mais propriamente desde os anos 70, emergindo em sintonia com a história económica e social (e muito como seu subdomínio) e num leve diálogo com o marxismo, ou seja, na relação com o estudo da força de trabalho e com a preocupação de uma história a explorar “a partir de baixo”. Desenrolou-se, assim, uma discussão mais lata do que a breve referência à quantificação demográfica do fenómeno migratório e/ou a discussão das políticas migratórias, apontando para novas abordagens interdisciplinares, tentando captar e compreender um fenómeno que ganhava significado no então presente (com o simbólico ano de 1966 a revelar

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um saldo migratório superior em 22454 indivíduos ao saldo fisiológico, como sublinhava Vitorino Magalhães Godinho1). Na verdade, pode dizer-se que até aí os emigrantes faziam parte dos excluídos da história, submersos em referências fugidias a vagas, fluxos, marés migratórias, empurrados para fora do campo da observação tradicional de uma historiografia essencialmente política, limitada ao estudo da comunidade nacional e do Estado.

Os sinais dessa emergência historiográfica em Portugal, acompanhando as tendências da renovação historiográfica essencialmente francesa, assentam, a meu ver, em alguns nomes, que importa registar nas suas afirmações mais visíveis:

- Joel Serrão, com o artigo “Conspecto Histórico da Emigração Portuguesa” (Análise Social, nº 32, 1970), a que se seguiria o volume A Emigração Portuguesa (1972), sem esquecermos o sugestivo monumento historiográfico que dirigiu, o Dicionário de História de Portugal, com volumes publicados entre 1963-1971;

- Vitorino Magalhães Godinho, com a Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa (1971), incluindo um capítulo dedicado à emigração (II – A Constante Fuga das Gentes), a que se seguiria o artigo incontornável “L’emigration portugaise – histoire d’une constante structurale” (Clermont-Ferrand, 1973), depois publicado no primeiro número da Revista de História Económica e Social;

- Miriam Halpern Pereira, cuja tese apresentada em Paris, em 1969 (versão em português: Livre-câmbio e desenvolvimento económico), incluía já uma abordagem à emigração oitocentista, com um artigo publicado, nesse mesmo ano, na Seara Nova, dando corpo a uma linha de pesquisa que teria múltiplos trabalhos e, sobretudo, o livro A Política Portuguesa de Emigração 1850-1930 (Lisboa: A Regra do Jogo, 1981).

1 GODINHO, Vitorino Magalhães - Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa. 2ª Edição. Lisboa: Arcádia, 1975: p.75.

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Importa ainda sublinhar a influência de trabalhos de investigação de sociologia, psicologia e antropologia sobre o terreno, em França, desenvolvidos por investigadores bolseiros ou exilados, que se multiplicaram gradualmente nos anos 1960/70 em função da expressividade do fenómeno migratório e seu contexto político. A revista Análise Social acolheu textos dessas investigações, publicando, antes de 1974, estudos de José Carlos Ferreira de Almeida, Carlos Castro Almeida, António Barreto, António Teixeira de Sousa, M. L. Marinho Antunes, que constituem hoje textos fundamentais para os historiadores das migrações. É ainda possível encontrar textos nas áreas de história e geografia anteriores a 1974 relativos a migrações em revistas como Seara Nova, Finisterra, Economia e Sociologia, com textos de Miriam Halpern Pereira, Eduardo Mayone Dias, Carminda Cavaco, Armando Nogueira. Com edições diversas, sublinhe-se o papel de Beatriz Rocha-Trindade, com a sua tese de doutoramento em Paris, em 1970, e, entre outros, a publicação do texto Immigrés Portugais (Lisboa, ICSPU, 1973), iniciando uma longa estudos na área das ciências sociais, muitos deles cruzando com a história. Há textos para os anos 1960/70 de outras proveniências disciplinares e editoriais sobre migrações, nomeadamente das instituições católicas de ligação aos emigrantes ou de investigadores como Sousa Franco, Óscar Soares Barata ou Alberto de Alarcão. Remetendo para outros nomes aqui não citados e que se podem encontrar na Bibliografia da Emigração Portuguesa, de Maria Beatriz Rocha-Trindade e Jorge Arroteia, editado em 1984, sublinhe-se ainda o facto de a emigração portuguesa se tornar nessa altura objeto de estudo por parte de investigadores estrangeiros, evidenciando a sua importância e novas formas de abordagem2, a que os historiadores emergentes após 1974 seriam sensíveis, reconhecendo-se que a historiografia das migrações deveria implicar um olhar além do patamar nacional e de natureza interdisciplinar.

2 No campo da História, Ann Marie Pescatello (Boths Ends of Journey – an historical study of migration and change in Brazil and Portugal, Los Angeles, 1970). Noutras áreas, Michel Poinard, Grace Anderson.

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Construindo o campo conceptual da emigração

Cingindo-nos, porém, à cronologia referente ao Dicionário dos Historiadores Portugueses (1779-1974) proposta para esta comunicação, poderemos então dizer que a data do limite final corresponde ao início do desenvolvimento de uma historiografia das migrações: lembremos que o manual de História de Portugal, de A. H. de Oliveira Marques, editada em 1973, é o primeiro a dar um relevo mínimo mas significativo à emigração nos três períodos da História Contemporânea: Monarquia Constitucional, República e Estado Novo, com cerca de uma página sobre emigração em cada período.

Mas as migrações, internas, intra-peninsulares, para as “conquistas” existem há séculos e estão historicamente referenciadas em múltiplos textos, embora, na sua maioria, esses textos sejam exteriores à historiografia e provenientes de outras abordagens: a) utilizando textos literários e cronistas, Joel Serrão, nos seus Testemunhos sobre a Emigração Portuguesa aprofunda a questão até ao século XV, com Gomes Eanes de Zurara e a sua Crónica da Guiné, passando por muitos outros3; b) problematizando as saídas, António Sérgio, na sua Antologia dos Economistas Portugueses, trouxe-nos três autores do século XVII (Luís Mendes de Vasconcelos, Manuel Severim de Faria, Duarte Ribeiro de Macedo) que ponderavam sobre as partidas do Reino e suas causas e consequências. “Partidas para as conquistas”, “saídas”, “ausências”, “falta de gente” são algumas das expressões usadas, não se esquecendo que D. Luís da Cunha falava de “sangria” da população no mesmo sentido, expressões que apontam para uma leitura mercantilista, de cariz populacionista, e da necessidade da introdução das artes para a fixação das gentes, pois, como dizia, Duarte Ribeiro de Macedo, “não sai da sua pátria para viver nas alheias quem tem subsistência certa na própria”4.

Entretanto, a data inicial da cronologia referida remete para o ano da fundação da Academia Real das Ciências de Lisboa, importando registar a coincidência, meramente simbólica, de ser no primeiro volume das Memórias Económicas, publicadas

3 SERRÃO, Joel, e outros – Testemunhos sobre a Emigração Portuguesa – Antologia. Lisboa: Livros Horizonte, 1976.4 SÉRGIO, António – Antologia dos Economistas Portugueses (século XVIII). Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1974. p. 218.

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em 1789 pela Academia,5 que se utilizam de forma generalizada as palavras emigração e emigrantes no sentido de saídas do Reino, ainda que indistintamente para as “outras províncias”, para as “conquistas” (ou seja, territórios coloniais) ou para o estrangeiro. Isso acontece em três textos: com António Henriques da Silveira, no Racional Discurso sobre a Agricultura, e População da Província de Alem-Tejo; com José Joaquim Soares de Barros, na Memoria sobre as cauzas da differente população de Portugal em diversos tempos da Monarquia; e com Domingos Vandelli, na Memoria sobre a preferência que em Portugal se deve dar á agricultura sobre as Fabricas.

No citado volume, António Henriques da Silveira, falando da Província do Minho, para a colocar em contraste com a do Alentejo, afirmava: “não só sustenta o crescido número de seus habitadores, mas ainda emigrão para outras Províncias”; e regista a “emigração anual de muitos milhares de homens, que sahem desta Província para se estabelecerem nas outras do Reino, ou nas suas Conquistas”, saídas que considerava compensadas pela elevada nupcialidade6. E mais à frente, num registo tipicamente populacionista, que coloca os interesses da Pátria acima dos interesses individuais, aponta um estigma a quem parte para outros reinos:

Nenhuma couza he tão prejudicial á Republica, como a emigração dos povos;

porque com ella se enfraquecem os Estados, e se augmentam a força dos seus

inimigos. Ou estes emigrantes tomem as armas contra o Estado, em que nascerão,

ou se empreguem na cultura do paiz inimigo; sempre são prejudiciais á sua Patria.

Os primeiros a ofendem directamente, empregando contra ella as forças, das quaes

se devião servir para a sua defensa. Os segundos indiretamente a ofendem, porque

ocupando-se na cultura do campo dos inimigos, facilitão a estes as recrutas do seu

exercito, as quaes serião menos numerosas, se eles não tivessem quem substituísse

a falta de cultores. Esta he a cauza porque os Príncipes mais sábios tem acautelado

estas emigrações, oferecendo estabelecimento aos póvos, que não cabendo no paiz

em que nascerão, querem buscar a subsistência no país alheio. […] Milhares de

Minhotos passão anualmente ao Brazil, e outras Províncias do Reino, sem levarem

5 Memórias Económicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa para o Adiantamento da Agricultura, das Artes e da Industria em Portugal e suas conquistas. Lisboa: Officina da Academia Real das Siciencias, 1789.

6 Memórias Económicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa… I volume, p.51.

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bens alguns, que lhes possão segurar huma boa fortuna. Aquelles que são mais

amantes do ninho em que nascerão, permanecendo nelle, passão huma vida pobre,

e miserável. […] Desta Provincia tão abundante de gente se podem tirar os cazaes

necessários para as povoações de que fallamos, sendo crível, que qualquer destes

anteponha hum commodo certo na provincia de Alem-Tejo á mizeria em que vivem

no seu paiz. Deste modo se evitará que a continuada emigração daquele povo seja

prejudicial ao Reino.7

A clareza conceptual ainda não ganhara o espaço devido. Também José Joaquim Soares de Barros, na memória citada, usa repetidamente o vocábulo “emigração”. Evocando diferentes épocas para a diferença de população, refere o tempo filipino, de ruína na população interna, mas “fóra do Reino porém se achava mui grandemente augmentada aquella, que, por emigração forçada, ou voluntaria tinha passado às Colónias do Brazil”8. Calcula que todos os anos, o “dispêndio” de gente “monta acima de 3000 homens com pouca diferença”9, sublinhando, porém, que a transferência populacional para o Brasil deveria ser vista como uma vantagem:

Em fim a navegação do Brazil, a emigração de tanta gente para aquelle

dilatado paiz, bem longe de ter causado a Portugal perdas notáveis, como geralmente

se pensa, estão sustentando as uteis correspondências da nação por meio de huma

preciosa Agricultura; estão todos os dias restituindo á Pátria hum grande numero

de indivíduos com fortunas avultadas, e conservado fora della mais dous milhões

de portuguezes, que há muito annos se acharião extinctos, se eles não estiveram, ou

não deixassem a sua posteridade naqueles espaçosos lugares, em estabelecimentos

de famílias.10

Por sua vez, Domingos Vandelli, para além das suas referências à fuga para as cidades, do Algarve dar muitos marinheiros a estrangeiros e das fábricas atraírem muitas pessoas, aponta ainda a emigração como uma das causas da diminuição de

7 Memórias Económicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa… I volume, p.57-58.8 Memórias Económicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa… I volume, p 134.9 Memórias Económicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa… I volume, p.143.10 Memórias Económicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa… I volume, p.148.

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cultivadores, num sentido já ajustado, com expatriação a corresponder a emigração: “expatrião-se muitos cada anno por varias causas, entre as quais he a falta de subsistência: facilitando-se estas emigrações com terras gratuitas para cultivar, e auxílios, que achão fora deste Reino”11.

Outros memorialistas da Academia usam nos tomos seguintes termos da mesma família de emigração no sentido de deslocação. O mais curioso será Constantino Botelho de Lacerda Lobo que nos seus artigos sobre pescarias aponta emigrações de pescadores e migrações de determinados tipos de peixe.

Note-se que o termo “emigração” era originário do direito romano, surgindo pelo menos já nos inícios do século XVII em obras do direito germânico, constituindo-se hoje como objeto de estudo jurídico em si mesmo, a que alguns autores prestam atenção12. Pelos finais do século XVIII, o termo estava em voga, sendo utilizado no contexto a “emigração” da aristocracia francesa, designação dada à expatriação durante a Revolução, no sentido de refugiados ou exilados.

A referência a emigrações surge ainda na legislação portuguesa em 1810, a propósito de deslocações internas de refugiados no contexto das invasões francesas, que pretendiam alcançar a margem norte do Tejo (edital de 10 de outubro de 1810: “Os Juizes de Fóra, e Ordinários das Terras do Sul do Téjo estabelecerão com as Camaras os Acordãos necessários, para que com o pretexto desta emigração se não vendão por excessivos preços os géneros necessários para a subsistência das familias, que a necessidade obriga a procurar hum asylo contra a tyrannia do inimigo)”.

Depois, os diplomas constitucionais das revoluções liberais, distinguindo mais claramente entre nacionais e estrangeiros, ajudariam a concentrar o sentido do termo i/emigrante no sentido específico atual, dado o facto de o imigrante cumular em si o atributo de estrangeiro mas também o de proletário, distinto por isso de outros estrangeiros, nomeadamente os refugiados políticos, atendendo a que os emigrantes se moviam no âmbito dos novos direitos de liberdade de circulação.13

11 Memórias Económicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa… I volume, p.246. 12 MUÑOZ-ARRACO, J. M. Pérez-Prendes Y – El marco Legal de la emigración española en el constitucionalismo.

Colombres: Archivo de Indianos, 1993. 13 Philippe Rygiel - L'historiographie des migrations. Mémoires publiés par la fédération des sociétés historiques et

archéologiques de Paris et de l'Ile de France, tome 61, 2010, p.7-17.

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Nas Cortes Constituintes de 1821-1822 surge já um uso vulgar dos termos “emigração” e “emigrar”, em várias situações, nomeadamente invocando a “emigração da família real para o Brasil”, mas também da emigração de colonos alemães para o Brasil ou da emigração de pescadores de Vila Real de S. António para Espanha. E, a propósito destes, afirmou-se: “muitas vezes se tem querido obviar esta fatal emigração, porem nunca se poderá vedar ao homem o ir buscar o sustento onde se pode encontrar”.14

E será no âmbito da discussão sobre o articulado constitucional dos direitos de cidadania, quando uma proposta sugeria a retirado do direito de cidadão a quem se ausentasse do País por mais de cinco anos sem autorização, lembrando leis coercivas anteriores, que se acabou por decidir em função de uma afirmação que se revelou consensual, do deputado Castelo Branco:

O cidadão deve ter a liberdade de ir para onde elle quizer. Se o Governo vê,

que a emigração he grande, e tem chegado a ponto de ser prejudicial á sociedade,

tome então medidas, evite a emigração, por meios indirectos; porem nunca por

meios violentos. O homem he livre de ir aonde quer.15

Esta afirmação encerrava em si toda a doutrina liberal sobre a emigração no sentido de deslocação com mudança de domicílio para território estrangeiro e será seguida à letra nos períodos constitucionais, não deixando os sucessivos governos liberais de tentarem medidas indiretas de sentido restritivo ou condicionante em função de problemas que surgiram ao longo do tempo.

Já após a independência do Brasil, surge a referência a “emigrados do Brazil” que regressavam e queriam conservar consigo os escravos que lá detinham (edital de 27 de julho de 1825)16. Em sentido diverso, no discurso político muito se falaria nos “portugueses emigrados”, na década de 1820 e 1830, a propósito dos expatriados liberais por via do confronto com os absolutistas17. Estando em vigor

14 Diário das Cortes Geraes e Extraordinárias da Nação Portugueza, sessão de 2.4.1822.15 Diário das Cortes Geraes e Extraordinárias da Nação Portugueza, sessão de 31.5.1822.16 Pesquisando na base em linha da Legislação Régia, encontramos a palavra “emigrado” para um diploma de

1641 e outros posteriores, mas no índice dos organizadores oitocentistas e não no corpo do texto dos diplomas em causa.

17 Por exemplo: Noções particulares para a História da Emigração Portugueza; ou politica, administração e diplomacia dos

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a Carta Constitucional, em sessão de 12.2.1828, reafirmava-se o princípio liberal na Câmara dos Deputados, por Morais Sarmento: “O direito de emigrar (que o Artigo favorece) he sem dúvida um direito natural; qualquer individuo pode ser membro da familia, que lhe aprouver, e só um Governo despótico pode obrigar o Cidadão a que pertença a esta, ou áquella Sociedade”18.

No pós-1834

Entretanto, no jogo dialético dos fatores de mobilidade entre lugares de partida e de destino, o vocabulário preferido no Brasil para entradas de estrangeiros desenvolvia-se na família do termo “colono”, tanto antes como depois da independência. As ameaças de abolição de escravatura e as revoltas de africanos levavam as instituições brasileiras a insistirem na colonização por europeus, iniciada ainda no tempo de D. João VI, mas intensificada na década de 1830. Assim, num interessante opúsculo publicado em 1835, que parece condensar a opinião de uma parte das elites dirigentes do Brasil, o marquês de Abrantes propunha para a Baía a organização de uma companhia colonizadora, para introduzir “braços livres e prestadios”, a que uma “última insurreição dos Africanos” vinha dar maior acuidade, com o “interesse nacional” a mandar “abrir nossas portas e braços a todo o homem civilizado e útil”. No Rio de Janeiro essa introdução já se fazia por meio de empresas particulares para se promover a colonização de gente livre, tendo acabado de chegar ali dois navios, um deles proveniente dos Açores. Também na Baía acabara de chegar a escuna Faialense com colonos: “o empenho com que tantos cidadãos concorreram a contratá-los para o serviço da lavoura, Indústria e Servidão Doméstica, provam, que também na Baía já se vai apreciando as vantagens do serviço feito por mãos livres”. Segundo o autor, chegara portanto a hora da colonização por europeus, com os portugueses em primeiro lugar, e, ainda que Portugal preferisse povoar as suas possessões ultramarinas, a “irmandade” existente entre os dois territórios (de religião, leis, governo, costumes e também a certeza do

principaes agentes dos negócios de Portugal a favor do Imperador do Brazil. Londres, 1830. 18 Diário da Câmara dos Senhores Deputados da Nação Portuguesa, sessão de 12.2.1828.

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encontro com amigos, conhecidos e conterrâneos) funcionaria como um “íman irresistível” que convidaria os “emigrados de origem portuguesa” a preferirem o Brasil a qualquer outra região.19

Foi precisamente neste contexto de assédio brasileiro às populações insulares que, em 1835, a legislação portuguesa voltou a usar os termos que então se generalizavam aplicados a deslocações de trabalho agora para um país estrangeiro. Isso acontece com a Portaria de 16 de maio de 1835, emitida por Agostinho José Freire a lembrar a fiscalização a desenvolver pelos Prefeitos dos Açores sobre a angariação de colonos nessas ilhas, fazendo cumprir as leis, lembrando aos incautos “as desgraças a que os vai sujeitar a emigração” e, ao mesmo tempo, pedir às autoridades para atenuarem as “causas impulsivas da emigração”. Nova Portaria de 7 de outubro de 1835, apoiava o papel assumido pelo Governador Vigário Capitular de obstar à “precipitada emigração” na Madeira promovida por especuladores estrangeiros. E, em 1836, tomam-se medidas para com os espanhóis que fugiam ao recrutamento e “emigravam” para Portugal. O termo “emigração” e seus derivados generaliza-se, por esta altura, com publicações periódicas a usarem-no e, finalmente, um historiador a abordá-lo.

Com efeito, foi precisamente nesta conjuntura de corrida aos colonos ilhéus e de nova legislação brasileira, que reconhecia os abusos sobre os colonos e pretendia introduzir algumas medidas de controlo, que Alexandre Herculano escreveu o seu primeiro texto sobre “A Emigração para o Brasil”, publicado no Diário do Governo, de 13 de janeiro de 1838. Mas não o faz enquanto historiador: trata-se de um pequeno texto de denúncia dos termos da Lei brasileira de 11 de outubro de 1837, da inerente propaganda aliciadora de colonos e dos sofismas inerentes aos contratos de locação de serviços, cuja estratégia condena, mas afirma não recorrer ao “argumento sofístico de generalizar” de “escravatura branca” para combater a emigração; reconhece a maior disponibilidade e adequação dos portugueses para a colonização brasileira, mas procura ver também o lado de Portugal e os motivos indutores dessa emigração, sugerindo os melhoramentos materiais, sobretudo meios de comunicação e aproveitamento de baldios, para fixar o camponês à terra, como

19 ALMEIDA, Miguel Calmon du Pin e - Memória sobre o Estabelecimento de uma companhia de colonização nesta Província. Bahia: Typ do Diário de G. J. Bezerra, 1835.

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forma de contrariar as partidas. Texto interessante, que replica em parte e amplia as propostas das Memórias da Academia das Ciências acima referidas para a reforma da economia e que se fixa no processo de emigração e não no indivíduo, que trata também por colono.

O crescimento migratório e a diversificaçãodos problemas e abordagens

Com o fim das guerras liberais e a normalização administrativa, a emigração para o Brasil voltou a incrementar-se, surgindo sucessivos problemas com o transporte de colonos, a aliciação de rurais e notícias de alguns escândalos e revoltas no Brasil. A publicação de textos ocorre em consonância com a evolução do número de partidas e com o efeito dos vários tipos de notícias negativas, acrescendo, a partir dos nos anos 50 a fuga ao serviço militar, os clandestinos, as questões consulares, entre outras. Textos de abordagem aos problemas da emigração encontram-se em jornais e revistas a partir desta altura e nas décadas seguintes, subindo o tema à Câmara dos Deputados por várias vezes. Jornais diários como o Jornal do Comércio, O Comércio do Porto, a Revista Universal Lisbonense, a Correspondência de Portugal e, com bastante desenvolvimento, a revista A América (1868-1870), com textos de Mendes Leal, tocam e glosam esses problemas, entre outras publicações. De um modo geral, faziam-se declarações sobre o alastramento do fenómeno emigratório, denúncias sobre comportamentos parasitários em torno das partidas por agentes e transportadores, alvitravam-se eventuais soluções restritivas compatíveis com a liberdade de circulação que a Carta Constitucional garantia, o que se revelou sempre difícil. Quase sempre se acabava por considerar a emigração como uma inevitabilidade perante a qual não se podia coartar a liberdade individual, mas defendendo-se um discurso paternalista de esclarecimento e dissuasão dos incautos que se deixariam enredar nas malhas tecidos pelos agentes de emigração. Debatem-se os efeitos positivos e negativos da emigração para Portugal. Em livro, surge Rodrigues de Freitas a publicar em Notice Sur le Portugal (1867) duas páginas com dados estatísticos e algumas anotações, sendo um autor que, ao longo da sua carreira

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de economista e jornalista, multiplicaria depois as abordagens ao tema, incluindo as questões financeiras inerentes às remessas dos emigrantes (em 1893, mostrava-se preocupado com a crescente inferioridade do emigrante português no Brasil perante a concorrência dos originários de outros países).

Foi no dealbar dos anos 70, após a Guerra da Secessão nos Estados Unidos, quando as políticas de angariação estrangeiras se tornavam mais incisivas, incluindo novos destinos (Luisiana, Hawai), que a temática de emigração ganhou mais relevo na discussão pública e vários autores se debruçaram sobre o tema, aprofundando as suas abordagens. Note-se que, por esta altura, a emigração ganhou uma visibilidade política que nunca antes lhe fora atribuída, o que vai dar origem ao designado Primeiro Inquérito Parlamentar da Emigração Portuguesa, em 1873, que resulta num volumoso dossiê de depoimentos e informações de várias origens e duas coleções de documentos apresentados às Cortes pelo ministro dos Estrangeiros (1873 e 1874).

Por esta altura, Eça de Queirós redigia o seu relatório consular sobre o tema, muito mais tarde publicado sob o título Emigração como força civilizadora (1979). Os problemas com as velhas formas de emigração contratada, os novos destinos deste tipo de emigração, os escândalos com viagens e passagens e o problema do recrutamento militar suscitaram a intervenção de muitos, incluindo as cartas pastorais dirigidas aos párocos para dissuadirem os seus paroquianos de emigrarem (não esquecendo que os párocos representavam também órgãos da administração, pois eram os presidentes natos das juntas de paróquia). É também um período em que, no Brasil, se publicam textos tocando o problema da imigração, face ao horizonte da abolição da escravatura, que focam aspetos com interesse para o estudo da emigração portuguesa.

Por seu turno, Alexandre Herculano voltava de novo ao tema, entre 1873-1875, publicando sucessivos textos sobre a emigração, sob a forma de cartas dirigidas a Carlos Bento da Silva, que presidia à comissão parlamentar do referido Inquérito, publicadas na Revista Agrícola e no Jornal do Comércio, depois recolhidas no volume II dos seus Opúsculos20. Herculano continuava a defender os postulados liberais, sustentados numa visão mais alargada e num quadro de reformismo agrário

20 HERCULANO, Alexandre – Opúsculos II, Lisboa: Ed. Presença, 1983.

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para a sua diminuição: liberdade de emigração contra a ideia de contenção suscitada por alguns em nome da baixa de salários para a agricultura; deplora a tirania de miséria e reconhece o direito à esperança e ambição do emigrante, apontando que a emigração de miséria “é sempre o resultado de um defeito ou de uma perturbação nos órgãos da sociedade”; valoriza o refluxo da emigração e o valor das remessas recebidas, reconhecendo que “a nossa melhor colónia é o Brasil, depois que deixou de ser colónia nossa”; sugere várias reformas na agricultura e comércio para indiretamente se diminuir a emigração. A posição liberal de Herculano foi objeto de polémica suscitada de imediato por Paulo de Morais e mereceria ainda a contradita de José Rodrigues de Mattos, que o acusava de só encarar a “emigração pelo prisma das grandezas”, apontando a elevada mortalidade dos emigrantes à chegada ao Brasil, e por Domingos Percheiro, que, na mesma linha, defendia a inadequação do destino brasileiro ao português e, logo, de restrições às partidas. Por esta altura, multiplicaram-se artigos nos jornais e brochuras, dado o balanço suscitado pelo Inquérito, em que muitos queriam participar21.

Foi esse contexto de discussão que levou Frederico Laranjo escolher a emigração para tema da dissertação de doutoramento em Direito na Universidade de Coimbra: “acabava de se discutir no país a questão da emigração […] comovera-se a opinião pública e inclinava-se para uma derivação da nossa emigração para as colónias”. Desafio que tentou desenvolver cientificamente, segundo o método de Comte, ou seja, “proceder do geral para o particular”, deduzindo, mas também observando: “para tratar uma questão relativa a um tempo e um lugar, é necessário estudar também essa questão na generalidade dos tempos e lugares”, não se confinando o problema da emigração ao “estudo dum curto recinto duma nação pequena e no percurso estreito de alguns anos”: propunha assim uma “teoria geral da emigração, que servisse depois de guia e de intérprete dos factos da emigração portuguesa”. Percorreu para o efeito os vários autores (economistas e geógrafos), de Adam Smith a Marx, de livre-cambistas a protecionistas, procurando equacionar as leis naturais da população, os meios de subsistência e meios de existência, com os mecanismos da economia e com a história. Apresenta-nos a emigração como

21 PERCHEIRO, Domingos António Gomes – Portugal e Brazil, Emigração e Colonisação. Lisboa: 1878.

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“condição de vida” e “condição de civilização”, segue o evolucionismo social afirmando que o progresso é a passagem da não individualidade à individualidade, defendendo por isso a diversidade económica e a combinação de indústrias para diminuir a emigração, recorrendo a medidas protecionistas, diversidade que se deveria estender a outros domínios (religião, política), concluindo que “a fórmula geral dos remédios contra a emigração é a diferenciação harmónica da sociedade pela combinação íntima e próxima de todos os elementos sociais”22. E, por isso, mostra-se cauteloso sobre a eventual derivação da corrente migratória para as colónias, reconhecendo que, individualmente, o emigrante poderia ser “mais feliz numa nação estrangeira já adulta do que numa colónia pátria nascente”, reconhecendo que o interesse individual e o interesse nacional podem estar em divergência.

Pela mesma altura, em 1878, Gerard Pery, na sua Statistique du Portugal et de ses colonies, caraterizava, de forma muito breve, o quantitativo desembarcado no Rio de Janeiro entre 1870-1874, sublinha a elevada mortalidade, o enriquecimento de alguns que retornavam e alinhava alguns dados sobre a presença de portugueses nas principais províncias brasileiras e nos Estados Unidos.

Num sentido pragmático, sobre as questões administrativas, incluindo definição legal do emigrante e problemáticas ligadas a passaportes, contratos regulamentos, navios, passagens e viagens, sublinhe-se o Relatório e projeto de regulamento, de Luciano Cordeiro, publicado em 1883, procurando ultrapassar a anterior legislação dividida em emigrantes livres e colonos.

No quadro doutrinal, a questão da emigração tornou-se um tema recorrente para Oliveira Martins na década de 1880. Note-se que Oliveira Martins publicava, em 1873, o livro Portugal e o Socialismo, texto em que o relatório do Inquérito pela comissão parlamentar era analisado em tons irónicos, cerca de dez páginas num capítulo sobre “A Revolução e a Propriedade”, concluindo pela sua parte: “Convém que o povo emigre? Não. Como evitar que emigre? Dando-lhe de comer. De comer o quê? Terra.”23. Esta será a sua visão para o problema nas restantes publicações. Destas, destaque-se a publicação, em 1880, de O Brasil e as Colónias

22 LARANJO, José Frederico – Theoria Geral da Emigração e sua aplicação a Portugal. Coimbra: Imprensa Literária, 1878, p. 243.

23 MARTINS, Oliveira – Portugal e o Socialismo: Lisboa: s/e, 1873, p. 208.

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Portuguesas, livro no qual dá a sua versão da história das colónias africanas e no Brasil, a evolução da escravatura, da imigração europeia no Brasil e o papel das colónias portuguesas, numa leitura eivada pelo estigma racial, tocando também a questão da emigração europeia: “colonizar o Reino em vez do Brasil, mas não trocar por forma alguma o Brasil pela África – eis aí o nosso modo de ver sobre o destino da emigração portuguesa”. Enquanto deputado pelo Porto pelo Partido Progressista, Oliveira Martins apresentava na Câmara dos Deputados, em 27 de abril de 1887, o ambicioso Projeto de Lei de Fomento Rural, para estabelecer o equilíbrio demográfico e económico entre o Norte e o Sul, ou seja, para “realizar dentro das fronteiras do reino um movimento de translação que hoje se faz, mas para fora do país”. Exploração dos incultos agrícolas criando colónias internas, racionalização da propriedade, hidráulica, floresta, caça e pesca, crédito rural eram os aspetos que visavam essa “restauração económica”. O projeto não teve consequências, como outros. Os artigos que acompanham o texto do projeto no livro Fomento Rural e Emigração mostram o interesse meticuloso que a dimensão histórica da emigração lhe mereceu, com as estatísticas disponíveis para as diversas dimensões e destinos, bem como a sua opinião nesse debate sobre o desvio da emigração para a colonização ultramarina. Neste último aspeto comungava das ideias de Herculano, sendo mais expressivo: “o agravamento progressivo da emigração nacional exprime a desordem sempre crescente da economia social portuguesa”, como se via pelo crescimento da emigração de famílias; “o que aos portugueses cumpre é explorar, e não colonizar a África”, pois, “não se colonizam regiões onde a população abunda”; “desviar para África a corrente da emigração proletária que para além vai, seria um erro económico sem alcance nem vantagem política”. No seu registo romântico, dramatizará metaforicamente o fenómeno da emigração (“de todas as nossas exportações, […] a mais importante é a de gado humano para o Brasil”), para concluir: “não tratamos, pois, dos meios de corrigir a emigração pela reforma dos costumes e instituições económicas: falta-nos energia para tamanha empresa. Mas não tratemos então igualmente de impedir a saída a quem se não encontra a gosto na terra sáfara de Portugal”24.

24 MARTINS, Oliveira - Fomento Rural e Emigração. Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1956, p. 258.

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O agravamento finissecular dos fluxos e as abordagens mais teóricas e comparadas

Na transição dos séculos XIX-XX o fluxo migratório ganhava um volume crescente, englobando mais mulheres e crianças. O problema da baixa de câmbio do Brasil, os impostos nas transferências de dinheiro e as novas condições políticas aterravam o quadro tradicional. A emigração ganhava novas configurações sociais e económicas, ajudando a dramatizar ainda mais os problemas da sociedade de origem, a ponto de o filósofo e político Sampaio Bruno exclamar: “Hoje vai tudo, marcha a família inteira”.25

Com objetivos de produzir uma “economia nacional e comparada”, surge Anselmo de Andrade. No seu volume, A Terra (1898, ampliado depois para Portugal Económico, 1902), perante os que viam um amolecimento na febre de emigrar por se propalarem piores condições de receção no Brasil, assinalava:

(…) assinalam-se os registos da novíssima emigração para o Brasil por

um facto de singular gravidade. É o êxodo de famílias completas. Antigamente o

trabalhador ou o aventureiro emigravam, mas a família ficava. Era uma garantia para

o regresso do emigrante e para a vinda de capitais. O emigrado mandava para cá uma

parte das suas economias e dos seus ganhos. Mais tarde, se a fortuna o ajudava, era

certa a repatriação. Voltava trazendo os seus capitais, e quando os não liquidava no

seu regresso do Brasil, recebia aqui pelo menos os rendimentos, que gastava, que

repartia e que capitalizava em terras, em prédios ou em títulos. Agora pode mais

facilmente deixar de ser assim. Do emigrante, que leva consigo a família, não há

a esperar as remessas de dinheiro, que até aqui representavam alguns milhares de

contos em cada ano, não sendo mesmo certo que ele volte depois da fortuna feita,

porque a pátria não é só a terra onde se nasce. É principalmente a família, e quando

esta se leva consigo, os laços, que ficam prendendo o emigrante à sua pátria ficam

mais frouxos. Um emigrante, que parte sozinho, volta logo que puder. Uma família

inteira, que emigra, fixa-se facilmente no lugar onde encontrou a fortuna, que a

25 BRUNO, Sampaio – O Brazil Menthal. Porto: Livraria Chardron, 1898, p. 411.

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terra da pátria lhe não deu. Tem o seu lar em toda a parte para onde vai. Assim, a

emigração, que é sempre um mal, torna-se um mal muito maior”26.

Para Anselmo de Andrade era uma “verdadeira expatriação”. E acrescia um facto, na perceção do capital humano: cada emigrante, por mais pobre que fosse, representava uma “capitalização”, pois “todo o homem adulto tem um valor”, o que equivalia a retiradas significativas do País. Daí registar a crescente opção de desviar a emigração para as colónias, mas que considerava uma mera “aspiração teórica” dadas as condições do Tesouro, uma “fantasia” que às vezes subia ao poder político. Na sua opinião, o “melhor instrumento de colonização não era o emigrante, mas o capital que pudesse levar consigo. Não o havendo, poderia o Estado adiantá-lo? Enquanto não se verificassem condições para a exploração colonial, Anselmo pendia também para o Brasil como a melhor solução, como um “bem relativo”, mas subscrevendo a opinião de Oliveira Martins de que o melhor seria a colonização interna. Como solução, a procura da “fórmula economista” inspirada em Arséne Dumont (Dépopulation et Civilisation): “A fórmula economista de uma nação deverá ser a que melhor estabeleça uma justa proporcionalidade entre a terra, o capital e o número de trabalhadores, de modo que cada um destes elementos de produção receba o seu máximo desenvolvimento, e não esteja ocioso nenhum desses três fatores de riqueza”27.

Um contributo curioso é o de Basílio Teles, no quadro da republicana “Biblioteca de Estudos Sociais”. Na obra Carestia de Vida nos Campos (1903), coloca em causa o papel das remessas dos “brasileiros” na dinamização da economia, pois só as vê em duas aplicações: capitalização em propriedades rústicas, casas, ações, obrigações e títulos de dívida pública; consumos caros, por importações do estrangeiro. Com o seu dinheiro a distribuir-se entre o exportador estrangeiro e o importador nacional, o seu capital, salvo pequenas exceções, não aproveita aos trabalhadores, ajudando antes, com as suas aplicações, as “tribos depredatórias da Finança e da Política”, isto é, ajudando a manter o sistema instalado28.

26 ANDRADE, Anselmo de – A Terra. Lisboa: s/e, 1898, p. 274-275. 27 ANDRADE, Anselmo de – A Terra. Lisboa: s/e, 1898, p. 250. 28 TELLES, Basílio – Carestia de Vida nos Campos. Porto: Edição Lello & Irmão, 1903, p.218-219.

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Nas vésperas da República, Marnoco e Sousa fez imprimir as suas preleções na Universidade de Coimbra, com a edição de Sciencia económica (1910). A problemática das migrações é apresentada no quadro geral da população, tocando as posições mais recentes, tais como o neomalthusianismo e a eugenia, incluindo a tendencial quebra da natalidade e da mortalidade, na configuração que hoje denominamos de transição demográfica, enquadradas em leis da população. As migrações derivariam desse mecanismo, tendo a economia como causa principal no desencadear do processo, “quando se rompe o equilíbrio entre a população e as facilidades de satisfazer as necessidades da vida”. Do ponto de vista geral, para Marnoco e Sousa, “a emigração tem contribuído poderosamente para a expansão e progresso da vida social, como instrumento da dispersão da raça branca sobre todos os continentes e ilhas do globo, e como meio da conquista destas para a civilização-tipo dos indo-europeus. Sem a emigração, ainda a maior parte do mundo se encontraria no estado de barbárie”. Um dos pontos mais interessantes é a sua discussão sobre os efeitos da emigração na população, convocando vários autores: perda numérica e alteração da estrutura; excitante do desenvolvimento da população pela crença numa maior extensão de subsistência, incentivadora do casamento e da natalidade; ou, segundo Bordier, “a separação de um certo número de indivíduos do tronco da pátria parece ser para ela tão útil como a poda o é para uma árvore; a seiva circula melhor e esta espécie de sangria que certos países se aplicam anualmente aumenta na realidade o número dos seus habitantes”29. O autor alinha, ainda algumas considerações sobre o caso português, mostrando a sua preocupação com a partida de famílias inteiras; pondera o valor económico dos emigrantes; valoriza o destino brasileiro e as remessas na contabilidade internacional, com os 18 mil contos anuais: “são os pobres minhotos que de aqui foram rotos e famintos, que pagam de lá as custas do desgoverno do Estado que os enjeitou”; “Portugal, país agrícola, com um terço do seu território inculto […] ser exportador de gente é uma das suas maiores riquezas”30. Mas a sua posição afirmativa pode ser a seguinte:

A emigração, qualquer que seja o juízo que se forma a seu respeito, constitui

29 SOUSA, Marnoco e – Sciencia Económica. Coimbra: F. França Amado, 1910, p. 299.30 SOUSA, Marnoco e – Sciencia Económica. Coimbra: F. França Amado, 1910, p. 311.

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uma perda de forças para o seu país. […] Quanto mais progride uma civilização

tanto mais precisa de inteligências e de braços, não tendo sido nunca forte um país

de uma população estagnada e disseminada. Só quando estas forças não podem ser

convenientemente aproveitadas, em virtude das condições económicas do país, é

que a emigração se pode considerar benéfica31.

Tributário dos autores anteriores (Laranjo, Anselmo de Andrade, Marnoco e Sousa) e de alguns autores italianos, surge em 1911 O Problema da Emigração, de Afonso Costa. Trabalho sintético, para efeito de provas na Escola Politécnica de Lisboa, quando o autor era ministro da justiça do Governo Provisório da I República, apresenta como objetivo a compreensão global do fenómeno em perspetiva comparada com outros países, a fundamentação estatística e a procura de ajustamento jurídico na intervenção do Estado a uma realidade fugidia. Na emigração via Afonso Costa uma função de “atenuar quotidianamente as diferenças de condição entre os povos da terra”, considerando o movimento dos últimos anos em Portugal como um sinal de destruição. Apontava acordos bilaterais como o meio para lhe retirar o seu “aspeto doloroso, patológico” e lhe conferir os carateres de um fenómeno “normal e profícuo”, ligado à vida da nação. Subscrevia também a tese de não desvio para as colónias, defendendo as reformas internas, pelo que, a emigração “devia ser a pedra de toque dos novos governos na sua obra de ressurreição da pátria”. Distinguia dois tipos de emigração: a normal e a patológica, defendendo estas ideias em conjuntura cruel para os republicanos, com a emigração a tornar-se hemorrágica de 1911 a 1913 (dos 39515 do ano de 1910 sobre aos 88929 de 1912, aos 77645 em 1913, sem contar com o acréscimo da emigração clandestina).

Por esta altura, multiplicam-se os escritos e os autores, bem como os estudos em revistas, com relevo para o Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa. Em todo o caso, merecem realce alguns outros autores, nomeadamente Ezequiel de Campos, que, em A Conservação da Riqueza Nacional (1913), procura enquadrar a emigração no quadro da “evolução demológica”, anotando o desequilíbrio Norte-Sul, bem como as suas causas, que o levam também ao questionamento do regime de propriedade

31 SOUSA, Marnoco e – Sciencia Económica. Coimbra: F. França Amado, 1910, p. 301.

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e à questão dos incultos, sobre os quais apresentará projetos como deputado e, mais tarde, como ministro da Agricultura. E Bento Carqueja que, no estudo O Povo Português (1916), equaciona o papel do emigrante e da emigração no quadro da demografia e de uma antropologia física da “raça”, questionando-se sobre uma eventual degenerescência, preocupando-se com a qualificação e organização dos emigrantes portugueses.

A ambição teórica mais exigente volta com Fernando Emídio da Silva, através da sua obra Emigração Portuguesa (1917). O autor revela uma preocupação de sistematização: classificar, teorizar, aplicar. Assim, passa em revista e discute os conceitos mais usados, as causas da emigração atendendo aos novos fatores, os seus efeitos segundo os autores mais recentes, as formas de intervenção do Estado, as condições de colonização. Mas das 380 páginas, 300 são dedicadas ao caso português: a emigração na balança económica, na balança demográfica, a comparação com outras, os destinos, a cultura, intervenção do Estado. E as soluções, sob a forma interrogativa da síntese triangular relativamente à emigração: 1) deve manter-se o status quo, com predominância do destino brasileiro? 2) deve neutralizar-se o êxodo pela fixação na metrópole? 3) desvia-se para África o contingente emigratório? Respostas que lhe exigiram longas digressões sobre a história dessas possibilidades, para terminar em resposta mista: todos os destinos seriam de manter e se África era o mais discutível, dado o peso dos autores anteriores, Fernando Emídio da Silva inclinava-se para a existência de vários planaltos em Angola que seriam acessíveis para instalação dos portugueses, com base em estudos de reconhecimento já publicados.

Curiosamente, Fernando Emídio da Silva diz-nos, em nota final, que as primeiras 340 páginas já estavam impressas em 1915, sendo as restantes impressas em 1916, isto é, o livro foi escrito na fase inicial da Grande Guerra, parte já depois da declaração de guerra por parte da Alemanha a Portugal. Nesta altura, as negociações com França e Inglaterra apontavam um novo destino para os trabalhadores portugueses, ainda que limitado à altura, para ajudarem a assegurar o funcionamento da retaguarda, aspeto que o autor não considerou ainda dadas a conjuntura de guerra, mas a verdade é que o destino intraeuropeu passou a inscrever-se no mapa da emigração, precedendo a dos anos 60.

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O quadro restritivo nos países de acolhimentono pós-Grande Guerra

O recuo na emigração no pós-Grande Guerra e a rarefação de obras sobre o tema fizeram com que os estudos tocantes à emigração rareassem. Nos anos 20 os fenómenos de restrição e contingentação vão reduzir drasticamente a emigração. Nos anos 30 vamos receber a devolução de milhares de emigrantes do Brasil e dos Estados Unidos na conjuntura depressiva então vivida. Os olhares portugueses da emigração viram-se cada vez para a questão colonial, na tendência autárcica que restava.

Mas os textos sobre o destino brasileiro e americano continuavam, derivados de conferências e outras intervenções. Em 1920, C. de Sampaio Garrido publica Emigração Portuguesa, uma conferência na Câmara Portuguesa de Comércio de S. Paulo, enfatizando a importância do destino brasileiro face a outros destinos.

Em 1934, Nuno Simões publica O Brasil e a Emigração Portuguesa, já sob a influência das medidas nacionalistas decorrentes da revolução de 1930 que conduziu Getúlio Vargas ao poder, apontando as medidas que iam diminuindo o campo de ação dos imigrantes. E os volumes do Primeiro Congresso da História da Expansão Portuguesa no Mundo, realizado em 1937, trazem uma leitura algo nacionalista da diáspora portuguesa, não deixando de carrear informações interessantes para a história das migrações. Ainda na mesma linha se insere a História da expansão portuguesa no mundo, obra editada em 1939, dirigida por António Baião, Hernâni Cidade e Manuel Múrias, mas com colaboração ideologicamente diversificada (Jaime Cortesão colabora com “Relações entre a Geografia e a História do Brasil” e “Expansão territorial e povoamento do Brasil”).

No seu exílio brasileiro, um historiador como Jaime Cortesão continua a abordar, como poucos, na sua imensa bibliografia a questão da colonização do Brasil mas também a presença de portugueses no mundo: sublinhe-se, para fase bandeirante, o seu Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid (RJ: Instituto Rio Branco, 1950) ou os Portugueses no Descobrimento dos Estados Unidos (Seara Nova, 1949) e ainda A Expansão dos Portugueses na História da Civilização (1930). Outros autores falarão mais dos portugueses bem-sucedidos, com monografias sobre empresários

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e empresas, como Armando de Aguiar, com Portugueses no Brasil, 1945. Por sua vez, Raimundo Belo aborda por diversas vezes a Emigração Açoreana para o Brasil. A questão da i/emigração diluía-se. Os dois países estavam sob dois regimes parecidos, com a mesma designação: Estado Novo.

O recrudescer da emigração nos anos 1950-74

Nos anos 50, o crescimento económico do Brasil assegurou ainda uma retoma da emigração portuguesa para esse destino. No contexto de falta de liberdade de expressão, os textos sobre a patologia da emigração passam a ter um carácter muito técnico, despido de opiniões políticas, vindos de quadros do interior do regime. Veja-se, como exemplo, o texto de António Manuel Baptista, “Emigração”, publicado no Boletim de Assistência Social (1952). O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa continua a inserir trabalhos sobre as migrações e as comunidades portuguesas no estrangeiro.

Entretanto, surgem investigadores profissionais a tratar as diversas dimensões das migrações. A revista Análise Social, a partir de 1963, representa a edição sistemática de estudos qualificados em que as migrações têm um lugar importante, textos hoje disponíveis on-line. A nova geografia trouxe-nos autores como Orlando Ribeiro, em que as migrações, embora deem escassos títulos às suas obras, são uma referência persistente nas suas observações de geografia humana. Assinale-se Raquel Soeiro de Brito, que publicaria, já em 1960, um interessante estudo, intitulado Agricultores e Pescadores Portugueses na cidade do Rio de Janeiro (Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar). E Alberto de Alarcão, um investigador de formação agronómica, mas de cujos estudos se destacam títulos como Mobilidade Geográfica da População de Portugal (Continente e Ilhas Adjacentes), Migrações Internas, 1921-1960 (FCG/CEEA, 1966) e Migrações Externas da População Metropolitana (Lisboa: Rumo, 1966). Carminda Cavaco já em 1971 publicava Migrações Internacionais dos Trabalhadores do Sotavento do Algarve (Finisterra, vol. VI, n.11, p. 41-83).

Com a avalanche da década de 60 para França, os estudos e as reflexões teriam de voltar, como já registámos no início deste artigo, em novos contextos,

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abordando os novos destinos, com um papel fundamental para os autores expatriados ou deslocados no terreno. António Barreto, com Capitalismo e Emigração em Portugal (Lisboa: Prelo, 1970) e outros textos sobre o tema é um dos exemplos dos novos autores que então proliferam no âmbito das várias ciências sociais e humanas. Para a enunciação autoral e bibliográfica, impossível de desenvolver aqui dadas as limitações de texto, remetemos de novo para Beatriz Rocha-Trindade e Jorge Arroteia e a referida Bibliografia da Emigração Portuguesa.

Conclusões

A historiografia, particularmente até 1974, teve uma presença discreta no estudo das migrações: se procurarmos nos manuais e obras de autor, as referências são quase nulas ou apontam apenas algumas linhas de dados estatísticos. Embora com contributos de alguns historiadores oitocentistas, os contributos mais significativos vieram de outras áreas das ciências sociais, nomeadamente do direito, da economia, da sociologia, da antropologia e da geografia, não esquecendo outros contributos das áreas das línguas e culturas. Centrada no Estado e no seu processo de afirmação, a história ignorou, de forma duradoura, os ausentes, ainda que presentes pelos direitos, pelos laços afetivos e muitos com ligações económicas determinantes. Centrando-se a ação do Estado essencialmente no controlo das partidas, podia-se aplicar a este contexto historiográfico das migrações (tão contrastante com a história da expansão) uma frase do projeto atrás referenciado de Luciano Cordeiro, como que explicando esse esquecimento da emigração: “Saindo do território nacional, eles deixam de prestar ao Estado a quota-parte da sua atividade, da sua força produtiva, dos seus serviços”. E, por isso, foram, em grande medida e com honrosas exceções, colocados fora do campo do historiador durante muito tempo.

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O I M P É R I O E A S S U A S M E T A M O R F O S E S N A H I S T O R I O G R A F I A

Diogo Ramada Curto

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

Em 1947, a propósito das comemorações dos 500 anos do descobrimento da Guiné, Vitorino Magalhães Godinho levantou, pelo menos, três questões. Primeiro, considerou que as pesquisas mais inovadoras da história da náutica e das navegações tinham lugar fora da universidade, tendo como seus principais autores Jaime Cortesão, Armando Cortesão e Veiga Simões. Estes, tal como outros pensadores e cientistas que a universidade desprezava, eram conotados com a oposição ao Estado Novo, vivendo no exílio ou a caminho dele, ou tinham sido expulsos da função pública. Porque não integrava a universidade os mais capazes e inovadores? - perguntava Godinho. Ao que respondeu, porque as faculdades viviam “fossilizadas na sebenta e na rotina, dormindo à sombra da falta de fiscalização, incapazes de criarem ciência e de formarem gerações, comprazendo-se na adulação e na mediocridade sossegada”, e os que podiam romper com uma tal situação e

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inovar eram pura e simplesmente marginalizados1. Este ataque à universidade, com as suas faculdades fossilizadas, tinha paralelo com o desprezo com que tratava outras instituições ligadas ao regime e, por isso mesmo, de entrada condicionada. No seu entender, a seguinte “calinada [era] tão monumental que chegaria para a abrir ao autor [referia-se a Avelino Teixeira da Mota] as portas de qualquer academia”2. E que “calinada” era essa que Godinho não podia suportar? Tratava-se da afirmação de Teixeira da Mota, segundo a qual “A preocupação da historiografia com fundo sociológico leva muitas vezes a generalizações cómodas mas erradas”3. Ao que Godinho retorquia: “Que são generalizações cómodas mas erradas? Em que é que uma historiografia com fundo sociológico leva mais do que outra sem ‘fundo’ a tais generalizações? Em que é que a historiografia com tal ‘fundo’ tem o privilégio de não assentar nas fontes?”4

Em segundo lugar, Godinho reagiu a mais uma comemoração feita em nome da glorificação dos heróis nacionais. O ciclo de tais comemorações remontava ao século XIX, mas intensificara-se desde a Exposição colonial de Paris, em 1931. Nesta última, como notou com perspicácia Lucien Febvre, Portugal exibira as suas glórias do passado. Seguiram-se, depois, as duas grandes exposições de 1934 no Porto e, seis anos depois, a do “Mundo português”, em Lisboa. Embora com dimensões mais reduzidas, era agora a vez de celebrar mais um aniversário: o da descoberta da Guiné. A este respeito, Godinho mais parecia pregar no deserto, mas sabia bem do que falava, quando defendia que “os aniversários e centenários só podem ser úteis se constituírem ensejo para estudar problemas, meditar directrizes, criticar certezas dogmáticas; caso contrário, mumificam os vivos, sem ressuscitar os mortos”5. Escrevendo num dos cadernos da Seara Nova, mostrava com toda a clareza a sua oposição ao Estado Novo que pretendia comemorar, mas procedendo apenas à glorificação de uma visão tradicional da história. Ora, nas suas palavras, “tal tradicionalismo, apresentando-se como defesa das glórias do pretérito, mutila-as, decepa a tradição, porque dela apaga 1383-5, 1439-40, 1820, a Patuleia,

1 Vitorino Magalhães Godinho − Comemorações e história (A Descoberta da Guiné).Lisboa: Cadernos da Seara Nova, 1947, p. 13.

2 Idem, idem, p. 50.3 Cit. em ibidem.4 Ibidem.5 Idem, idem, p. 14.

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Herculano, Antero e Oliveira Martins, o cinco de Outubro e a intervenção de Portugal na Grande Guerra de 1914-18”6. Traduzindo para uma outra linguagem, as comemorações só retinham do passado uma visão tradicional de defesa das glórias do passado, não tinham em conta o outro lado, do qual faziam parte os movimentos cívicos e populares, bem como os intelectuais, que tinham procurado tratar, no seu conjunto e não com visões parciais, o passado da Pátria.

Conforme escreveu Godinho, a respeito de acusações que lhe teriam sido feitas nessa mesma ocasião: “Passamos à acusação de que não veneramos as glórias nacionais, mesquinhamos os nossos marinheiros e exploradores, afrontando a honra dos nossos antepassados. Eu não admito a Teixeira da Mota, nem seja a quem for, lições de amor à pátria. Por isso mesmo recuso-me a comungar num patriotismo que faz da pátria feudo de um grupo e considera estrangeiros os que não acatam servilmente o grupo. Por isso mesmo recuso-me a comungar num patriotismo que do passado selecciona o que convém aos seus interesses de grupo e oculta a riqueza das tradições com que antipatiza. Por isso mesmo recuso-me a fazer da história mutilação da verdade, a mistificação que só ilumina os aspectos “convencionados” gloriosos e não tem coragem para encarar os erros do pretérito”7.

Em terceiro lugar, Godinho foi mais longe na denúncia do modo deturpado e parcial como era tratado o passado, na altura das comemorações da descoberta da Guiné. A este propósito, escreveu uma das suas primeiras denúncias acerca do modo como era tratada a questão da escravatura. Neste processo, Avelino Teixeira da Mota, oficial de marinha mais jovem dois anos do que Godinho, não foi poupado. Para aquele, era evidente “o provado bom trato que recebiam em Portugal tais escravos”, sendo que Zurara deixara da sua primeira repartição um quadro “bem repassado de bondosa humanidade e compreensão”8. A este quadro benigno e deturpado, Godinho opôs, num estilo onde não está ausente uma nota de jocosa e frontal irritação, uma partida dos escravos que foi “repassada de maldosa desumanidade e incompreensão, e a ela assistiu, impávido e sereno, o Infante D. Henrique, todo preocupado em não ser defraudado no seu quinhão. E que treta

6 Idem, idem, p. 15.7 Idem, idem, p. 498 Citado em Idem, idem, p. 44.

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é essa do bom tratamento dos escravos!”9. E as provas encontravam-se tanto na leitura de Zurara, que já tinha proposto no primeiro capítulo do volume III dos Documentos sobre a expansão portuguesa (que só veio a ser publicado em 1956), bem como no facto de existir prova documental que em Lisboa, em 1552, os correctores de escravos eram também os correctores de escravos, conforme indicara já Lúcio de Azevedo. Também se encontravam provas da falta de humanidade no tratamento de escravos, noutras interpretações do século XVI, nomeadamente no tratado da Arte da guerra no mar (1555) do P. Fernando de Oliveira. Por último, ainda a respeito da escravatura, Godinho insinua através da formulação de uma questão: “nas plantações de açúcar dos arquipélagos atlânticos também seria idílica a vida dos escravos?”10

Este longo arrazoado acerca de três denúncias de Magalhães Godinho, na altura das comemorações do descobrimento da Guiné, não tem em vista contradizer o seu espírito crítico e transformar-se num exercício celebratório da sua visão, do seu carácter pioneiro enquanto historiador e intelectual do século XX. Não posso deixar de dizer que, às vezes, bem me apetecia. Sobretudo, quando constato na minha própria universidade, de que ele foi mentor e sobre a qual acalentou projectos de interdisciplinaridade e de uma história sociológica, pela qual já se batia na década de 1940, antes de partir para França, a pouca atenção a que a sua obra é votada. No fundo, é em algumas teses de mestrado e de doutoramento sobre os descobrimentos e a expansão que encontro apenas ecos de um azedume, de uma espécie de desprezo patológico, porque extremamente inseguro, da sua obra, por parte de uma espécie de cães de guarda de visões mais ou menos bafientas acerca da história do império português, nas suas diferentes configurações. As tretas luso-tropicais, feitas de quadros históricos e biográficos agora requentados, mas sempre repassados por uma “bondosa humanidade e compreensão” não me entusiasmam. Mas não é por aí que pretendo ir.

O meu objectivo, por ora, é apenas o de utilizar as denúncias e a oposição em relação à historiografia tradicionalista e oficial de Godinho para isolar uma série de laboratórios, a partir dos quais será possível caracterizar o modo como era tratado o

9 Ibidem.10 Idem, idem, p. 48

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império pela historiografia da época. Aproveito, também, para corrigir alguns erros e imprecisões em que incorri numa análise anterior, em que fui levado a esquematizar demasiado os contributos de diferentes grupos de historiadores durante o Estado Novo, dos que trabalhavam sobre questão da náutica em ligação com a Marinha, frente aos trabalhos de natureza histórica de missionários e eclesiásticos11. Os três laboratórios sugeridos pelas críticas de Godinho são compostos, respectivamente, (i) pelas instituições de investigação e de ensino patrocinadas pelo Estado Novo; (ii) pelas utilizações do passado, favorecidas por programas políticos de propaganda, exacerbadas na altura de comemorações e mantendo uma relação directa de apoio a justificações e ideologias coloniais; (iii) e, finalmente, pela extrema sensibilidade política a alguns temas e problemas, a começar pelo da escravatura e do trabalho forçado, mas que era extensiva a outros de natureza só aparentemente mais inócua, tais como a dimensão biográfica com os seus modelos de vida, o lugar da economia e do comércio enquanto factores de explicação em história, das relações raciais, do modo de conceber as dimensões representativas, locais e camarárias no interior de sistemas políticos, dos métodos utilizados na conversão, sobretudo quando envolviam o recurso à força, etc.

A partir de uma análise sumária dos já referidos três laboratórios, a hipótese que pretendo colocar é a seguinte: à evidente oposição manifestada por Godinho – que se irá de novo manifestar na altura das comemorações henriquinas, uma oposição que envolveu progressivamente historiadores e intelectuais de mérito, alguns deles forçados a partir para o exílio –, as instituições e programas de pesquisa sobre a história do império patrocinados pelo Estado Novo ou promovidos pelos seus apoiantes foram sempre feitos, não só, com intenções modernizadoras mas, também, com o intuito de gerar consensos. Tal como em muitos outros aspectos, um regime ditatorial como o do Estado Novo não virava as costas à modernidade, pelo contrário, sabia bem que as lógicas da integração e do consenso eram sempre preferíveis em comparação com as da repressão. Por todas estas razões, a bem de uma leitura distanciada e orientada para uma objectivação das mudanças nos modos de fazer a história do império, talvez valha a pena não reproduzir, hoje, como se de

11 Diogo Ramada Curto − “O atraso historiográfico português”, in Charles Boxer, Opera minora, vol. III. Lisboa: Fundação Oriente, 2002.

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uma análise séria se tratasse a visão pejada de dicotomias e militante de Godinho. De igual modo, longe de qualquer tipo de propósito revisionista, será necessário pôr em perspectiva o trabalho conduzido a partir das agências, instituições e apoiantes próximos do Estado Novo ou que falavam em seu nome. O que implica não reduzir os seus vários sentidos às perspectivas dos seus opositores.

Do trabalho promovido pelas instituições, as revistas surgem como um dos indicadores mais fáceis de identificar. Na década de 1940, pelo menos meia dúzia de publicações periódicas manifestam a sua vitalidade e mostram-se receptivas à publicação de investigações históricas. As mais antigas eram o Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa e os Anais do Club Militar Naval, revistas iniciadas no século XIX, da responsabilidade de organizações que tinham, no mínimo, um carácter oficioso. Com o desaparecimento do Boletim Geral das Colónias (1925-1931), a Agência Geral das Colónias e o Secretariado de Propaganda Nacional, dirigido por António Ferro, lançaram uma revista com grafismo moderno, começada a publicar no ano da Exposição Colonial do Porto, a qual se intitulava O Mundo Português: Revista de cultura e propaganda arte e literatura coloniais (1934-1947), dirigida por Augusto Cunha, cunhado de Ferro. Um ano depois do desaparecimento desta última publicação, com uma orientação menos culturalista e sem o mesmo aparato gráfico, surgiram os Estudos Coloniais: Revista da Escola Superior Colonial (1948-1954), com direcção de António Mendes Corrêa, Lopo Vaz de Sampaio e Melo e António de Almeida, 1948-1954. Por sua vez, a esta última sucedeu, em 1955, uma outra intitulada Estudos Ultramarinos: Revista do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, com direcção quase idêntica à anterior, tendo P. Silva Rêgo substituído Vaz de Sampaio. A este inventário de publicações associadas a instituições tais como a Agência Geral das Colónias e a Escola Colonial, acrescentam-se mais duas revistas, publicadas fora da capital. A primeira é reveladora do modo como a Universidade de Coimbra, através do seu Instituto de Estudos Brasileiros, procurou ganhar uma especificidade própria tomando como seu principal objecto o Brasil, e publicando um largo depositório de estudos e documentos na revista Brasilia (1942-1968). Por último, a partir de 1946, com a nomeação de Sarmento Rodrigues para governador da Guiné, organizou-se o Centro de Estudos da Guiné e lançou-se o Boletim cultural da Guiné (1946-1973).

Sem sair do domínio das publicações em série, será de reparar no trabalho

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de edições de fontes, a começar pelas grandes colectâneas documentais, em vários volumes, começadas a publicar na década de 1940. Silva Marques, com os Descobrimentos portugueses, a partir de 1944; o P. Silva Rego com a sua Documentação para a história das missões do Padroado Português no Oriente: Índia, que começa a sair em 1947; e o P. António Brásio, com a Momumenta missionaria africana: África Ocidental, a partir de 1952.

Este inventário de publicações periódicas e em série, apesar de não ter carácter exaustivo, sugere um conjunto de linhas de força que são bem reveladoras do trabalho das referidas instituições. Começo por apontar uma primeira dimensão, que, de tão evidente, mais parece uma banalidade: existe em todas estas publicações a atribuição de um valor positivo à informação documental. Constatação que vale para o documento histórico, posto em relação com as políticas arquivísticas de autonomização da documentação colonial então em curso, mas que é extensiva a outras formas de recolha e sistematização de informação: linguística, demográfica e estatística, etnográfica, fundada na viagem, na missão de estudos, na presença no terreno, etc. Uma segunda constatação, com certeza menos evidente que a anterior mas porventura mais importante para compreender os quadros a partir dos quais se vai moldando o pensamento colonial, é a capacidade atractiva do Brasil. Trata-se, por ora, da enunciação de uma linha de força, não ainda da sua análise.

Neste momento, é ainda difícil de perceber se é como regime político, representado pela ditadura de Getúlio, se é como resultado social da colonização portuguesa e, por isso, mesmo transformado em modelo para outras colonizações, ou se é pelo exemplo dos seus intelectuais e do acolhimento que dispensaram aos portugueses que o Brasil assume um valor central. Terceira e última linha de força, existem diferentes formas de interdisciplinaridade, um interesse pela comparação e um conhecimento das novas correntes da historiografia que contradiz simples dicotomias, maniqueístas, tais como as que opõem instituições oficiais, baseadas numa reprodução de ideias tradicionais, a intelectuais e historiadores da oposição que monopolizavam as novas ideias.

Este elenco de linhas de força, aqui apresentado sem o desenvolvimento analítico que lhe corresponde, por sua vez diferentes tipos de problemas. Por exemplo, numa das suas formas mais inovadoras, elas estiveram presentes, com

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uma vitalidade muito própria no Centro de Estudos da Guiné, criado em 1946. Foi, aliás, neste quadro institucional que Teixeira da Mota começou a trabalhar e escreveu sobre a descoberta da Guiné. A sua responsabilidade, bem visível nas páginas do Boletim Cultural da Guiné, necessita de ser comparada com o espaço atribuído aos intelectuais locais, sobretudo cabo-verdianos, a começar pelo respeito que desde muito cedo mereceu António Carreira, cujas capacidades linguísticas eram notórias, mas cujo labor interdisciplinar não pode ser descurado. Os trabalhos de natureza histórica, de etno-linguística e etno-musicologia de Edmundo Correia Lopes – discípulo de Carolina Michaëlis e que descobriu no Brasil a importância do estudo das culturas africanas – também se encontram associados ao mesmo contexto guineense.

Depois, há que considerar que existem, provavelmente, mais formas de consenso ou, pelo menos, pontos de contacto entre intelectuais com posições políticas diferentes, do que diferenças tão radicais como as que são sugeridas no pequeno livro de Vitorino Magalhães Godinho que serviu de ponto de partida. E a confluência, o consenso, fazia-se sentir precisamente nas linhas de força enunciadas: (i) Godinho, tal como uns anos depois Jaime Cortesão, logo que conseguiu as condições para levar a cabo tais iniciativas morosas, confluía com as instituições do Estado Novo, no interesse pela organização de colectâneas documentais, a ponto de poder ser considerado um dos historiadores portugueses do século XX que mais responsabilidades tiveram na publicação de documentos; (ii) António Sérgio e Maria Archer, esta nas páginas da Seara Nova, mostraram o seu entusiasmo pela obra de Gilberto Freyre, já no final da década de 1930; Mendes Correia, claro está, mostrava-se mais inclinado à valorização do pensamento racista de Oliveira Viana; mas José Osório de Oliveira, profundamente ligado à Agência Geral das Colónias e irmão de um fascista confesso, manteve, não só, correspondência precoce com Freyre (desde 1931), mas muito contribuiu para a divulgação em Portugal dos seus trabalhos, ao lado dos de outros ensaístas, incluindo Sérgio Buarque de Holanda; (iii) mesmo que seja sempre difícil tomar os programas e as intenções pela sua efectiva concretização, um dos exemplos de maior atenção aos novos ventos da história, escrito na mesma altura em que também Braudel glorificava a obra de Freyre, encontra-se precisamente num trecho de Osório de Oliveira, bem atento

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às estruturas económicas, sociais e culturais, onde não está ausente um interesse pelo estudo da escravatura:

Onde estudar esse estilo de vida próprio do Brasil? Não será, com certeza,

na história política, que só se preocupa com os nomes dos heróis ou dos estadistas,

e com as batalhas ou as mudanças de regime governativo. Pode sê-lo, porém, na

história social e cultural, que se interessa pelas formas de organização social, pelos

sistemas de exploração da terra, pelos consequentes modos d vida, que se reflectem

na época contemporânea, servindo de explicação à geografia humana. Faz-se essa

história, não como auxílio dos documentos escritos, não com os vestígios oficiais

do Passado, mas com a etnografia, por exemplo, ou, particularmente, com o

folclore. Com livros de receitas de doces caseiros, tradicionais, pôde Gilberto Freyre

reconstituir, por assim dizer, as vidas das casas-grandes dos engenhos de açúcar

e toda a sociedade patriarcal dos tempos do trabalho escravo e da monocultura

latifundiária de Pernambuco. Escrevendo com o espantoso Macunaíma, uma rapsódia

do folclore variado e heterogéneo do imenso Brasil, Mário de Andrade pôde, não

só dar à literatura brasileira a sua obra mais original, como fornecer o retrato moral

mais exacto do povo a que pertence, porque o folclore lhe mostrou o caos de ideias

e de sentimentos em que vive esse povo, tal como o seu herói sem nenhum carácter.

[...] Duvido, porém, que a grande maioria dos portugueses possua outros

conhecimentos da história desse país que não sejam sobre o descobrimento, sobre a

catequização dos índios pelos jesuítas, talvez sobre as lutas contra os franceses e os

holandeses, sobre a mudança da Corte para o Rio de Janeiro, sobre a proclamação da

independência, sobre a guerra com o Paraguay e sobre a implantação da República.

Como fazer compreender, assim, a importância do descobrimento das minas, da

importação do escravo negro, da introdução da planta do café ou da afluência de

imigrantes europeus? E, no entanto, foi a pesquisa do oiro e dos diamantes, que

levou a civilização ao interior do Brasil; foi a descoberta das minas que ocasionou o

primeiro choque entre a autoridade do Reino e os que, na Colónia, se consideravam

já brasileiros, com direitos sobre o destina da sua terra; foi a escravatura que tornou

possível o desenvolvimento económico e social do Nordeste, formando ali uma

sociedade já brasileira; foi o cultivo do café que deu às Províncias do Rio e de São

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Paulo a importância económica e social que adquiriram no Segundo Império, e por

sua vez, com a abolição do trabalho escravo, tornou os fazendeiros inimigos do

regime monárquico; foi a afluência de imigrantes europeus, principalmente italianos,

que permitiu o extraordinário desenvolvimento industrial de São Paulo e dos grandes

centros urbanos12.

Haverá, com certeza, exagero ao atribuir excessiva modernidade ou modernismo às instituições e aos agentes do Estado Novo. Trata-se, aliás, de um juízo que implica instrumentos de mensuração que não são fáceis de apurar. O mesmo se diga do espaço que as instituições do regime, da Agência Geral das Colónias à Escola Colonial ou ao Centro de Estudos da Guiné, deixavam livre para a dissensão. Sendo fácil alinhar uma série de casos onde a dissensão dentro das próprias instituições ou entre agentes ligados ao Estado Novo é bem visível, é arriscado fazer generalizações acerca do seu sentido, transformando-as em espelho de tolerância ou de liberdade. Por exemplo, é por demais evidente que se assiste a uma polarização em torno da obra de Freyre e das suas ideias acerca de uma cultura fundada na miscigenação. Ao contrário de Osório de Oliveira e de outros que tomaram Freyre como se de uma cartilha se tratasse, Mendes Correia, como já foi referido, insistiu nas interpretações do Brasil de Oliveira Viana e nas suas visões racistas, proclamando a superioridade não da raça ariana, que se afigura impossível, mas da raça branca, portuguesa propriamente dita13. Outro caso: será necessário analisar com paciência os trabalhos de Carreira, intelectual cabo-verdiano de formação sofisticada, mas autodidata, como criando progressivamente um espaço

12 José Osório de Oliveira − Enquanto é possível (Ensaios e outros escritos). Lisboa: Edições “Universo”, 1942), pp. 32-34. 13 Oliveira Viana, ao mesmo tempo que denunciou o anti-germanismo da obra de Eugène Pittard, Les Races

et l’histoire (1924), publicada na série dirigida por H. Berr, “L’Évolution de l’Humanité”, tal como o livro de Febvre, La Terre et l’évolution humaine (1922), como padecendo de um tom “dubitativo, por esta inclinação ao cepticismo”, chamou a atenção para os “métodos modernos de investigação antropológica e de análise étnica” praticados no Porto, no âmbito da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia, por António Mendes Correia. Veja-se de Oliveira Viana, Raça e assimilação, 2.ª ed. (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1934; 1.ª ed., 1932), pp. 183-201, maxime pp. 186, 192. Acerca das relações estreitas entre os dois autores favoráveis às teorias racistas alemãs, aos métodos da antropologia física e ao ideal da “progressiva arianização (no sentido de predomínio crescente do elemento europóide) da gente brasileira”, cf. Mendes Correia, Cariocas e Paulistas. Impressões do Brasil (Porto: Fernando Machado & C.ª, 1935), pp. 128-130; Idem, As tendências bio-étnicas do Brasil contemporâneo (Porto: Instituto de Antropologia d Universidade do Porto, 1944), p. 7. É, também, à luz destas lutas e antagonismos que podemos compreender o acolhimento de que foi alvo a obra de Freyre em França, primeiro, como já referimos, da parte de Braudel e, depois, na tradução prefaciada por Lucien Febvre (Les maîtres et les esclaves, Paris: Gallimard, 1952).

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próprio pouco conforme com as agendas oficiais de celebração e de visitas. Dos estudos sobre os censos, os movimentos das populações e a etnografia à história da escravatura, a sua obra começada a construir desde a década de 1930 representa um modo de subversão, vindo de dentro das instituições ligadas ao Estado Novo e às suas políticas coloniais. Último exemplo: apesar dos seus ecos terem sido fracos, há um debate no final da década de 1930 e nos anos 1940 sobre a história da escravatura em Portugal. Pelo menos, um dos intelectuais mais criativos da altura, que soube articular nas suas investigações perspectivas etnográficas dos grupos africanos com uma história quantitativa da escravatura, Edmundo Correia Lopes, entrou em rota de colisão com os trabalhos de Mendes Correia sobre a escravatura.

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A H I S T O R I O G R A F I A N O Â M B I T O D O S E S T U D O S R E G I O N A I S

Maria Isabel João

Universidade Aberta, Centro de Estudo das Migrações e das Relações Interculturais

Introdução

A reflexão que vou apresentar sobre os estudos regionais e a historiografia surge no contexto da preparação de uma entrada para o Dicionário de Historiadores Portugueses, a qual deve abranger o período que medeia entre a fundação da Academia das Ciências e o final do Estado Novo (1779-1974).

Sobre a questão dos estudos regionais e da história local há abordagens mais gerais e introdutórias sobre os problemas metodológicos, como a de Luís Reis Torgal (1987), J. Amado Mendes (1990, alargado em 2000), Jorge Borges de Macedo (1993), de António Oliveira (1995 e 2000) e José Viriato Capela (1995), mas os trabalhos que pretendem fazer uma história da história são poucos e, em geral, de âmbito também regional ou abrangendo um período cronológico mais limitado.

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Compreende-se: o levantamento de fontes e a sua análise é um trabalho vastíssimo e requer a constituição de uma equipa que utilize os recursos informáticos para se poder realizar um estudo abrangente que nos permita estabelecer: (i) uma tipologia e um quadro diacrónico das transformações e mudanças verificadas no período considerado; (ii) as condições de produção e de publicação dos textos (artigos ou obras de maior vulto); (iii) a caracterização sociológica dos produtores das histórias regionais e locais; (iv) as relações entre estas abordagens de escala espacial mais reduzida e a história nacional ou mesmo transnacional. Esse será um desafio para o futuro.

Hoje a nossa ambição é mais limitada e procuraremos analisar como é que nesse domínio da produção historiográfica, num período de quase 200 anos (1779-1974), a história foi ganhando uma dimensão própria, com o recurso às fontes primárias e aos métodos críticos, sem deixar de dialogar com as outras ciências sociais, em particular a geografia humana e a etnografia/antropologia. Em causa vão estar os problemas da delimitação espacial e do desenvolvimento deste ramo da história que tem tido as suas dinâmicas próprias, sem deixar de reflectir o que se passa no contexto mais geral.

Conceitos e escalas espaciais

Na abordagem do tema em apreço, não se pode deixar de operar com um conceito amplo de historiografia, entendido como a arte de narrar o passado e de construir a memória dos grupos humanos que são o sujeito dele. Neste caso, é da história e da memória relativa a espaços infranacionais que se trata. O espaço mais amplo é a região (do latim, regio) e refere-se a uma área delimitada segundo critérios que podem ser muito variáveis. Os debates sobre a divisão regional são infindáveis e envolvem os especialistas, mormente geógrafos e economistas, mas sobretudo mobilizam fortes interesses políticos no centro do poder e nas periferias. No que à história regional diz respeito, geralmente a antiga divisão provincial é aquela que se revela mais conforme com este tipo de estudos. Nos Subsídios para a bibliografia da história local portuguesa (1933), o arquivista da Biblioteca Nacional, A.

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Mesquita de Figueiredo, organiza a apresentação das publicações por seis províncias: Entre-Douro-e-Minho, Trás-os-Montes, Beiras, Estremadura, Alentejo e Algarve. Os arquipélagos dos Açores e da Madeira não foram incluídos no plano da obra. Dentro de cada província, apresenta as “monografias locais” por ordem alfabética das povoações.

Não é por acaso que esta obra está assim organizada. A congénere anterior, escrita por Brito Aranha para a exposição de Paris de 1900, faz uma apresentação mais descritiva, tomando como referência as cidades, as vilas e lugares, os monumentos, as instituições, os usos e costumes, etc. Nesse contexto, algumas publicações que se referem a determinadas províncias são indicadas, sobressaindo de imediato o Algarve e o Alentejo. A província não é esquecida, mas não estrutura a apresentação da obra. A mudança que se verificou, entretanto, foi a emergência do regionalismo no debate político e cultural, sobretudo nos anos 20 e 30. De tal modo que na Constituição de 1933 as províncias ganham o estatuto de autarquias, o que lhes viria a ser retirado na revisão de 19591. A província não sobrevive no aspeto político-administrativo e, de um ponto de vista da produção historiográfica, apesar de estarem presentes nas bibliografias indicadas, o grosso da produção dos estudiosos é do foro mais local do que regional.

Como refere L. Fernández Prieto, “o espazo de análise histórica é sempre um território para a lexitimación: local, comarcal, rexional, nacional, estatal, europeo…”2. Ora, as províncias pelo facto de não serem entidades com uma expressão político-administrativa que se tivesse enraizado no território português não conseguiram suscitar a atenção que foi transferida para os concelhos e para o municipalismo. Uma tradição que remonta ao próprio A. Herculano, como é sobejamente conhecido. Nos arquipélagos, foi a ilha que mais mobilizou o interesse dos estudiosos, apesar dos concelhos e das outras circunscrições administrativas não serem esquecidas. Por sua vez, o distrito também não concitava o entusiasmo dos investigadores, tratando-se de uma unidade administrativa geralmente considerada

1 F. Catroga, «Geografia e política. A querela da divisão provincial na I República e no Estado Novo», In Fernando Taveira da Fonseca – O poder local em tempo de globalização. Uma história e um futuro. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2005, p. 205 e 236.

2 L. Fernández Prieto, «Historia local, nacional e transnacional» In Maia. História Regional e local. I. Actas do Congresso. Maia: Câmara Municipal da Maia, 1999, p. 102.

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artificial, mais um braço do poder central nas regiões do que uma realidade com significado para a identificação das populações. Finalmente, na base da escala espacial estão os territórios mais diminutos, as paróquias, posteriormente designadas freguesias, as cidades e vilas, os lugares. O local refere-se a uma parte delimitada de um território mais vasto que tem de ser construído enquanto objecto de estudo. O mesmo se pode dizer de outras escalas de análise espacial, cujo significado histórico-cultural depende, naturalmente, de factores emocionais, de laços afectivos que se tecem através da relação com esse território e com a sua gente.

A demonstração do que acabamos de afirmar pode verificar-se através de uma pesquisa simples na base de dados da bibliografia nacional (Porbase). Constata-se o reduzido número de registos de história das províncias portuguesas, apreendidas na sua globalidade como unidades territoriais e humanas com características diferenciadas. Neste quadro geral destacam-se o Algarve, os Açores e a Madeira, por razões históricas, com um número mais significativo de títulos, na ordem das centenas. No caso dos arquipélagos atlânticos foi determinante o facto de se terem tornado regiões autónomas, em 1976, e de ter havido um investimento dos governos regionais, por via das secretarias e direcções dos assuntos culturais, na publicação de obras com interesse para as regiões, nomeadamente de um ponto de vista da construção da memória e da identidade. No contexto nacional, excepto no curto período em que vigoraram as Juntas Provinciais, sempre houve escasso apoio a este tipo de edições e a inexistência de arquivos de âmbito provincial também não facilita o trabalho dos investigadores, o que os conduz para escalas de análise de menor dimensão. Contudo, apesar de existência dos arquivos distritais, uma parte deles criados no período da I República, ainda nas primeiras décadas do século XX, uma pesquisa com as palavras-chave história e distrito no título só retorna meia centena de registos, enquanto é cinco vezes superior para o concelho. É claro que o seu número também é muito superior e que nem todos os concelhos têm uma monografia que narre os principais acontecimentos da sua história. Seria necessário proceder a um levantamento exaustivo para se perceber a cobertura do país em termos de estudos históricos locais e regionais, sendo certo que ela é muito desigual, com as principais sedes de distritos e de concelhos do litoral português e das ilhas a concentrar a maior atenção dos estudiosos. Na base da escala das circunscrições

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administrativas, as juntas de freguesia não se destacam pelo número de publicações registadas na Porbase, apesar do seu número ser superior a três milhares antes da última reorganização do respectivo mapa. A maior parte dos registos é posterior a 1974 e é frequente que o editor seja a própria Junta de Freguesia. Tal realidade evidencia a importância dos poderes locais como factor de estímulo e de apoio a este género de estudos e publicações.

Outras áreas que aparecem nos estudos locais são as circunscrições eclesiásticas, desde logo a paróquia que foi objecto de inquéritos no século XIX e é hoje central nos estudos demográficos, mas também a diocese e a abadia. As comarcas também dão lugar a alguns trabalhos, mas a sua importância no caso português não se compara com o que assume nos estudos locais em Espanha e, nomeadamente, na Galiza, onde “hay decenas de monografias históricas sobre comarcas y las parroquias y ninguna, hasta uma época bien reciente, sobre los municipios”3. Ramón Barreiros enfatiza na definição de história local duas componentes: a territorialidade e a comunidade integrada no território. Neste sentido, não se trata somente de considerar uma circunscrição administrativa ou uma área geográfica determinada, mas de ter em atenção que o local é um “elemento orgánico de sociabilidad”4.

Em suma, para se perceber a forma como a história regional e local tem sido feita, como se vai distinguindo da massa dos estudos sobre as áreas espaciais infranacionais e se constitui como um pilar importante das construções identitárias das diferentes comunidades territoriais é necessário operar com um conceito lato de historiografia, situando-se numa zona de fronteira entre a história e a memória. Além disso, de um ponto de vista espacial, são várias as escalas que enformam os estudos, mas a maior parte deles refere-se a espaços vividos, espaços de sociabilidade e de proximidade entre as populações que têm neles as suas raízes e vivências. Por isso, neste género historiográfico tiveram sempre um papel muito importante curiosos, amadores e figuras das elites cultas locais que se distinguiam na vida pública das suas regiões.

3 Xosé Ramón Barreiros. «Historiografia de la historia local gallega». In Joseba Agirreazkuenega, Mikel Urquijo (ed.) - Perspectivas de historia local: Galicia y Portugal. Bilbao: Servicio Editorial Universidad del Pais Vasco, 1996, p. 53.

4 Idem, ibidem.

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Linhas de desenvolvimento no século XIX

Podemos remontar os estudos regionais e o interesse pela história local ao século XVI. Basta recordar as Saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso, a Descrição da cidade de Lisboa, de Damião de Góis, ou a História da Antiguidade da cidade de Évora, de mestre André de Resende. Contudo, foi no século XVIII que, sob o influxo do desenvolvimento das academias, a atenção ao estudo das regiões e localidades se começou a desenvolver. Na base desse interesse estiveram factores políticos e culturais. Os primeiros prendiam-se com o conhecimento do território e das suas gentes que era fundamental para o Estado moderno poder constituir-se e operar sobre todo o país, o que propiciou o desenvolvimento das corografias, das topografias, da “estadística”, de descrições e memórias que permitiam ir conhecendo o reino5. Os segundos relacionavam-se com o contexto cultural do humanismo e do iluminismo que desencadeou um interesse novo pelo desenvolvimento do conhecimento nos vários ramos do saber e, em particular, em tudo que se referia à vida das nações e das suas várias partes, ao passado e às próprias origens. Deste modo, a Academia Real de História (1720) patrocinou várias topografias e pelo menos uma Historia de Santarem, de Ignacio da Piedade e Vasconcelos (1740, 2 tomos). A Academia Real das Ciências (1779) não deixou de contemplar nas várias memórias que foram publicadas – económicas, da agricultura e históricas – diferentes regiões e terras de Portugal.

Nas primeiras décadas do século XIX, num contexto particularmente adverso devido às invasões francesas e às guerras civis, a abordagem corográfica, estatística e topográfica mantém grande importância no quadro dos estudos regionais, o que se irá prolongar ao longo da centúria. Podemos referir como exemplo desse tipo de estudos a publicação a Memoria estadistica sobre o concelho de Lafões, de Joaquim Baptista (1823) ou a Corografia ou memoria economica, estadistica, e topografica do reino do Algarve, João Baptista da Silva Lopes (1841). Contudo, a história e a geografia vão permeando mais esses estudos e enriquecendo-os com novos elementos. Um bom exemplo disso é a obra de Henriques Seco, professor da Universidade de

5 J. Romero Magalhães e Manuel Lopes de Almeida - As descrições geográficas de Portugal: 1500-1650: esboço de problemas. Separata da Revista de História Económica e Social, 1980.

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Coimbra, Memoria historico-chorographica dos diversos concelhos do districto administrativo de Coimbra (1853). Algumas dessas obras assumem a forma de dicionário, seguindo o exemplo do padre Luís Cardoso, Diccionario geografico, ou noticia historica de todas as cidades, villas, lugares, e aldeas, rios, ribeiras, e serras dos Reynos de Portugal, e Algarve, com todas as cousas raras, que nelles se encontraõ, assim antigas, como modernas (1747-1751). Entre todas podemos referir o Portugal antigo e moderno: diccionario geographico, estatistico, chorographico, heraldico, archeologico, historico, biographico e etymologico de todas as cidades, villas e freguezias de Portugal e de grande numero de aldeias, de Augusto Soares d’Azevedo Barbosa de Pinho Leal (1873-1890). Nos Açores, Gabriel de Almeida publicou, já para o final do século, o Diccionario historico-geographico dos Açores (1893).

Além das descrições mais ou menos minuciosas do território de tipo corográfico e geográfico, com apontamentos históricos, um género que teve uma extraordinária fortuna e que podemos dizer que domina o panorama das publicações sobre as regiões e as localidades são os relatos de pendor literário que tiveram nas Viagens na minha terra, de Almeida Garrett, uma fonte de inspiração (1846). O olhar para a diversidade das paisagens e da gente, o pitoresco e os edifícios e monumentos pontuam essas narrativas, por vezes bastante ligeiras, que não descuram também a nota sobre as antiguidades locais e o registo histórico. Este tipo de obras desenvolveu-se com o progresso dos transportes e comunicações, sobretudo com o caminho-de-ferro, e com o turismo, dando origem aos guias e roteiros de Portugal e das diversas regiões. Alguns exemplares sugestivos: Cintra pinturesca, ou memoria descriptiva da Villa de Cintra, Collares, e seus arredores.... , do visconde de Juromenha (1838); O Minho pittoresco, de José Augusto Vieira (1886); a coleção Portugal Pittoresco e Illustrado, de Alfredo Mesquita, onde se destaca Lisboa, com quatrocentas gravuras (1903); os vários trabalhos de Alberto Pimentel, nomeadamente o guia do viajante na cidade do Porto e seus arrabaldes (1877) e O Porto por fora e por dentro (1878). Em 1924, a Biblioteca Nacional publicou o Guia de Portugal, dirigido por Raul Proença, posteriormente prosseguido pela Fundação Calouste Gulbenkian, que é um monumento do género histórico-geográfico e descritivo do país6.

6 Guia de Portugal – Lisboa: Oficinas Gráficas da Biblioteca Nacional de Lisboa e outras. 1924-1970. 5 vols em 8 tomos. Edição abundantemente ilustrada com mapas, plantas e gravuras e com a colaboração por alguns dos mais relevantes nomes da literatura portuguesa: Miguel Torga, Jorge Dias, Aquilino Ribeiro, Jaime Cortesão, Reynaldo dos Santos, Diogo de Macedo, Teixeira de Pascoais, Vitorino Nemésio, Raul Brandão, Amorim

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Outro tipo de estudos assume um carácter mais histórico e de repositório de factos relevantes para as memórias locais, compilando informação de diversa índole sobre os sucessos, as figuras, o património, em especial os monumentos artísticos e religiosos, a que se juntavam lendas e narrativas diversas. Numa primeira fase, a base documental desses escritos é rudimentar e baseiam-se muito nas observações e nos testemunhos, em registos que a memória de alguns notáveis locais e as populações foram conservando ao longo de gerações. Os arquivos públicos eram raros, mal apetrechados e ainda pior organizados. Além disso, as ferramentas metodológicas e críticas dos estudiosos revelam-se parcas e a penetração de ideias que valorizavam as fontes e o trabalho arquivístico aturado, minucioso, defendidas com veemência por A. Herculano e por outros autores eruditos antes dele, não encontravam condições para se expandir entre os cultores da história local. De certo modo representativas desse tipo de história são as obras do olissipógrafo Júlio de Castilho (1840-1919) sobre Lisboa Antiga (Bairro Alto – 1879; Bairros Orientais – 1884-1890).

Porém, o caminho vai sendo feito no sentido de uma história mais objetiva e a publicação dos Portugaliae Monumenta Historica (1º vol., 1856) não só traz documentos com interesse para a história local, mas também dá um bom exemplo neste tipo de publicações. A obra dirigida por A. Herculano vem na linha de trabalhos de académicos eruditos que pugnaram pela salvaguarda e divulgação dos documentos, como Bernardino J. de Sena Freitas que tinha publicado uma Collecção de memorias e documentos para a historia do Algarve (1846) e foi depois incumbido pela Academia Real das Ciências de organizar os arquivos nas ilhas de S. Miguel e Terceira. Na sequência desse trabalho deu à estampa uma Memoria Historica sobre o Intentado Descobrimento de uma Suposta Ilha ao Norte da Terceira nos anos de 1649 e 1770, com muitas notas illustrativas e documentos ineditos (1845). A valorização dos documentos aprofundou-se ainda com a divulgação em Portugal das correntes historiográficas da chamada “escola metódica” ou “positiva” e, por isso, no último quartel do século XIX surgiram valiosas colectâneas documentais e histórias locais com preocupação crítica e de objectividade.

Girão, Ferreira de Castro, Egas Moniz, Aarão de Lacerda, José Rodrigues Miguéis, Montalvão Machado, Afonso Lopes Vieira, António Sérgio entre outros.

A coleção tem a seguinte organização: 1º volume — Lisboa e Arredores; 2º volume — Estremadura, Alentejo e Algarve; 3º volume — Beira Litoral, Beira Baixa e Beira Alta (2 tomos); 4º volume — Entre Douro e Minho (2 tomos); 5º volume — Trás-os-Montes e Alto Douro (2 tomos). Os três primeiros volumes foram publicados pela Biblioteca Nacional e os restantes pela Fundação Calouste Gulbenkian.

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Entre as publicações documentais refira-se o Archivo dos Açores (12 vol, 1878-1892), dirigido por Ernesto do Canto e publicado em fascículos, os Documentos historicos da cidade de Évora (1885-1891), organizados pelo arquivista Gabriel Pereira, e os Elementos para a história do município de Lisboa (15 vol., 1882-1911), efectuados por Eduardo Freire de Oliveira que também desempenhava o mesmo ofício na Câmara Municipal. No domínio dos estudos pode destacar-se: Viana do Castelo: Esboço histórico (1878), de Luís de Figueiredo da Guerra, onde combina o conhecimento de autores clássicos, com o conhecimento de crónicas e tratados medievais e modernos e o domínio de documentos epigráficos, arqueológicos e documentais, existentes em cartórios e arquivos públicos e privados7. No ano anterior, Alberto Pimentel publicara a Memoria sobre a historia e administração do Municipio de Setúbal (1877), que reúne variadíssima informação sobre a cidade e o concelho, com um valioso suporte documental. Também exemplar deste tipo de trabalhos mais eruditos e fundados nas fontes históricas são os Estudos Eborenses, de Gabriel Pereira, publicados em fascículos temáticos entre 1884-1894.

O século XIX distingue-se, por conseguinte, pela expansão dos estudos históricos e, no caso em apreço, pela valorização da história regional e local. Diversos autores, entre os quais dois nomes cimeiros da cultura oitocentista, A. Herculano e Oliveira Martins, tinham defendido em momentos distintos que o desenvolvimento da história local era fundamental para se poder fazer a história nacional. O último escreveu no prefácio a uma obra sobre Oliveira do Hospital8:

“Considerei sempre que um dos subsídios principaes para a historia geral do

paiz consiste nas monographias locaes, onde se estuda a arqueologia e a historia, as

biografias e as tradições, com os documentos á vista e á mão dos archivos municipaes

e particulares.”

Refere a propósito a portaria de 8 de novembro de 18479 que tinha instado

7 Armando da Silva – O Minho nas Monografias (sécs. XIX-XX). Notas para uma revisão sistemática dos estudos locais. Bracara Augusta. Revista Cultural de Regionalismo e História da Câmara Municipal de Braga, nº. 94-95, 1991/92, p. 30.

8 Adelino de Abreu - Oliveira do Hospital: traços histórico-criticos. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1893. 9 Vide portaria em Armando da Silva – O Minho nas Monografias (sécs. XIX-XX). Notas para uma revisão

sistemática dos estudos locais. Bracara Augusta. Revista Cultural de Regionalismo e História da Câmara Municipal de

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as Câmaras Municipais a manter um registo anual dos principais acontecimentos da vida do concelho, “cuja memoria seja digna de conservar-se”, devendo para o efeito nomear uma comissão composta por vereadores ou vogais do Conselho Municipal mais aptos. Em tempos de elevados níveis de analfabetismo, os resultados foram modestos e o abade de Tagilde refere que somente conhece onze concelhos onde alguns trabalhos se fizeram na sequência dessa providência governamental10. Nos Açores, a obra Anais do Município das Lajes das Flores, iniciada por João Augusto da Silveira e continuada pelo neto homónimo, é um exemplo desse tipo de trabalhos11. O próprio Oliveira Martins, no prefácio referido, citou a propósito a obra do padre António de Macedo e Silva, Annaes do municipio de Sanct-Yago de Cassem desde remotas eras até ao anno de 1853 (1866), como exemplo de uma publicação produzida na sequência dessa medida do governo.

Também na Universidade de Coimbra o professor José Frederico Laranjo propunha aos seus alunos que fizessem a história dos concelhos, segundo um esquema que contemplava capítulos sobre as origens e o desenvolvimento, a população, as indústrias, a Misericórdia, confrarias e estabelecimentos de beneficência, as associações e as instituições de crédito12. Daí resultaram pelo menos duas monografias publicadas, uma sobre o concelho de Serpa (José Maria da Graça Afreixo, 1884) e outra sobre Mesão-Frio (Álvaro Maria de Fornelos, 1886). Tudo se foi conjugando para uma ideia de monografia local que tipicamente devia englobar os múltiplos aspetos topográficos, geográficos, históricos, arqueológicos, económicos, artísticos e culturais que permitiam traçar um panorama do território e da vida da sua gente. Armando Malheiro da Silva fala de “monografia de tipo-contemporâneo”, caracterizada pela diversidade das abordagens em foco, mas também pelo “amor da terra e a apologia das suas virtudes”13. As obras mais bem conseguidas não dispensavam, naturalmente, a consulta de arquivos e a recolha de

Braga, nº. 94-95, 1991/92, p. 60.10 Cit. Augusto Santos Silva – Os lugares vistos de dentro: estudos e estudiosos locais do século XIX português.

Revista Lusitana (Nova série). 13-14, 1995, p. 70. 11 Maria Isabel João - Região, Nação e Historiografia Local: O caso dos Açores. Sérgio Campos Matos e Maria

Isabel João (orgs.), Historiografia e memórias (Séculos XIX e XXI). Lisboa: Centro de História da FLUL/CEMRI da UAb, 2012, p. 81.

12 Cit. P. M. Laranjo Coelho – Vantagens do estudo das monografias locais para o conhecimento da história geral portuguesa. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1926, p. 15.

13 Armando da Silva – O Minho nas Monografias (sécs. XIX-XX)…, p. 30.

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documentos para fundar as suas narrativas, no que à história dizia respeito. Neste âmbito dos estudos regionais oitocentistas e do seu progresso nas

últimas décadas do século, não se pode esquecer os trabalhos de carácter etnográfico que então tiveram uma considerável expansão e vieram a interligar-se estreitamente com a história. Podemos remontar ao interesse romântico pelo estudo das tradições e costumes dos povos que foram, posteriormente, desenvolvidos no âmbito das concepções sociológicas positivistas, com destaque para a obra de Teófilo Braga (1843-1924) sobre O povo português nos seus costumes, crenças e tradições (2 vols., 1885). No domínio da história da literatura foram publicadas recolhas e estudos sobre o cancioneiro popular e os contos tradicionais portugueses que resultavam de pesquisas feitas em diversas regiões do país. Em Lisboa, esta linha de investigação etnográfica viria a ter um grande desenvolvimento com Adolfo Coelho (1847-1919) e, sobretudo, J. Leite de Vasconcelos (1858-1941), e no norte do país com o grupo que se reuniu em torno da publicação de Portugalia: materiaes para o estudo do povo portuguez, Ricardo Severo, (1869-1940), Rocha Peixoto (1866-1909) e Artur da Fonseca Cardoso (1865-1912), entre outros.

A referência aos aspectos etnográficos não era uma absoluta novidade nos estudos regionais e locais, mas ganhou um renovado interesse e profundidade no final do século XIX. O efeito conjugado do desenvolvimento destas áreas do saber e das tendências culturais da época, neo-românticas e nacionalistas, conjugou-se para que as gerações finisseculares viessem enriquecer os estudos em domínios como a etnografia, a antropologia, a filologia, a arqueologia e a história. Os frutos brotaram já no século XX. Não são também alheios, é claro, ao desenvolvimento sociocultural do país, com o lento crescimento das classes médias, o progresso da educação, a expansão da imprensa regional e local e dos meios materiais susceptíveis de contribuir para que fosse possível produzir e publicar os trabalhos realizados.

Os estudiosos locais eram muitas vezes padres, alguns bacharéis e autodidactas locais, professores, advogados, médicos, funcionários públicos, que faziam parte do restrito círculo dos notáveis das terras. Nalgumas cidades tinha sido possível criar associações e sociedades culturais com publicações periódicas, onde iam dando à estampa os estudos (Instituto de Coimbra, 1852; Sociedade Martins Sarmento, Guimarães, 1881). As suas motivações são evidentes: o amor

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da terra, isto é, um patriotismo local bem arreigado que os desafia a escrever a sua história e memórias; a reivindicação da importância e valor da região ou localidade no contexto nacional, valorizando-se, inclusive, a forma como participaram nos grandes acontecimentos da vida da nação ─ a restauração, a luta contra as invasões francesas, a revolução liberal, etc.; o lamento em relação à incúria dos governos e dos serviços públicos e a reclamação de melhoramentos indispensáveis para a terra, o que não deixa de aparecer em introduções e prefácios ou, na imprensa, a propósito da apresentação das obras. Os estudos regionais e locais contribuem, deste modo, para a construção de imaginários e identidades, mas também para legitimar reivindicações, propostas políticas e poderes de âmbito infranacional.

Continuidade e mudanças no século XX

A expansão dos estudos regionais e locais no século XIX justificou a elaboração de bibliografias sobre o tema. Assim, em 1900, para a exposição universal de Paris, Brito Aranha publica a primeira bibliografia das obras portuguesas que podem servir para o estudo das cidades, vilas, monumentos, instituições, tradições e costumes, etc., de Portugal Continental, das Ilhas dos Açores e da Madeira e das Possessões Ultramarinas. Eduardo da Rocha Dias continuou esse trabalho em anos posteriores (1903-06, 1908) e o funcionário da Biblioteca Nacional, António Mesquita de Figueiredo, fez um trabalho mais completo, em 1933. Contudo, ambos se circunscreveram ao território do continente português na Europa. Ao nível local, distinga-se a Bibliotheca Açoriana, publicada pelo incansável Ernesto do Canto, em 1890, onde se incluíam obras nacionais e estrangeiras concernentes às ilhas dos Açores.

Por outro lado, surgem também as primeiras reflexões em torno das metodologias e da organização, mais sistemática, dos estudos regionais e locais. Manuel da Silva, em 1913, na Revista de História, apresenta o Schema d’historia local, numa linha de abordagem que contempla variados aspectos: a geologia, a antropologia física e o estudo das populações, a arqueologia, a etnografia, a legislação e a administração local, a estatística, a filologia, a literatura tradicional, as memórias

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e notícias locais, os documentos e arquivos, e por fim os monumentos e a arte. O ideal que se persegue é de estudos muito abrangentes que poderíamos classificar de globais, não fora o facto de se tratar na verdade de estudos fragmentários, onde se coligem materiais de diversa índole sem um quadro teórico que permita a sua integração em termos compreensivos.

Mais de uma década passada, em 1925, P. M. Laranjo Coelho apresenta num congresso luso-espanhol a sua análise sobre as Vantagens do estudo das monografias locais para o conhecimento da história geral portuguesa e incentiva os estudiosos a desenvolverem este tipo de investigação. A propósito traça um roteiro breve do desenvolvimento desse género de trabalhos em Portugal e propõe o seu próprio plano que deve abranger “os factos essenciais para o estudo de uma localidade nos seus aspectos geo-físico, histórico, económico e social.”14. Encontramos nele a mesma ambição global, agora com uma sistematização e um desenvolvimento mais elaborado. A geografia, a demografia, a etnografia, a arqueologia e a história, nas suas várias dimensões económica, político-administrativa, artística e cultural, combinam-se para traçar um quadro geral das regiões e localidades. Em 1934, numas lições proferidas na Academia das Ciências, voltaria ao mesmo assunto, mostrando inclusive estar a par do que em França se fazia neste domínio15.

A preocupação com a recolha de informação para o conhecimento mais aprofundado da realidade do país tinha levado o ministro das obras públicas, comércio e indústria, António Alfredo Barjona de Freitas, a lançar um concurso anual de monografias das freguesias rurais, em 1909. O relatório em que o apresenta é explícito quanto aos objetivos que o orientam. Trata-se, afinal, de iniciar o tão necessário inquérito à vida económica e social da nação portuguesa a partir da unidade administrativa mais pequena e homogénea, com uma larga tradição histórica, que é a freguesia rural. No mesmo ano, a universidade de Coimbra convidou o sociólogo Léon Poinsard para proferir conferências sobre os métodos de estudos das pequenas comunidades então usados no âmbito da ciência social em França. Daí resultaria uma publicação de divulgação do chamado “método monográfico” e uma obra de L. Poinsard, Le Portugal Inconnu, editada no boletim da sociedade

14 Ob. Cit., p. 17-20.15 Monografias Locais na Literatura Histórica Portuguesa. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1935.

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internacional de ciência social, em 191016. Seria publicada a tradução portuguesa em 191217. A descrição económica e a estatística demográfica já tinham, desde a segunda metade do século XIX, importância nos estudos regionais e locais, mas a abordagem sociológica e, através dela, os primeiros passos de uma história social, só no início do novo século começaram a ser seriamente considerados neste âmbito.

Na óptica da valorização dos estudos regionais e locais, das primeiras décadas do século XX, deve ainda referir-se Fidelino Figueiredo que foi um dos fundadores da Sociedade Portuguesa de Estudos Históricos (1914). Apesar de não ser um historiador e os seus interesses serem polimorfos, salientou a importância dos estudos históricos locais, chamando a atenção para a necessidade de serem publicados “volumes de documentos dos archivos publicos e particulares, elaborados todos de acordo com um plano previamente estabelecido, quanto à maneira de extractar, de grupar e de classificar, de fazer os índices, etc.”18. Ao mesmo tempo, opina que quando houvesse suficientes estudos locais seria possível incluir nos programas do ensino primário a história da região ou da cidade ou vila da naturalidade em que a maioria da população acaba por passar a sua vida. Fidelino Figueiredo fazia parte de uma geração em que o nacionalismo se compaginava com valores regionalistas e municipalistas. Não eram vistos como opostos ou conflituantes, mas como parte do processo de construção de uma ideia da nação que não podia excluir, naturalmente, as suas várias componentes.

Ainda no campo da teoria e da metodologia é importante destacar a proposta que o professor Marcello Caetano fez aos seus estudantes da cadeira de Direito Administrativo para realizarem Monografias sobre os Concelhos Portugueses (Lisboa: 1935). Claramente dominado pela preocupação didática apresenta instruções precisas sobre o modo como deveriam ser elaborados os trabalhos para terem valor académico, destacando “o método e clareza da exposição; a probidade das afirmações; o escrúpulo na documentação.” (o itálico é do próprio autor)19. O plano pormenorizado que

16 Sep. Bulletin de la Soc. Int. de Science Sociale, 74-75. Paris: Bureaux de la Science Sociale, 1910; 1º v.: Paysans, marins et mineurs; 2º v.: L'industrie, le commerce et la vie publique.

17 Portugal ignorado: estudo social, economico e político seguido de um appendice relativo aos ultimos acontecimentos. Porto: Magalhães & Moniz 1912.

18 Cit. Armando da Silva – O Minho nas Monografias (sécs. XIX-XX)…, p. 34.19 Marcello Caetano. Monografias sobre os concelhos portugueses. Lisboa: Universidade de Lisboa, Faculdade de

Direito, 1935, p. 3.

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propõe desdobra-se em diversas perguntas, as quais, através de uma criteriosa consulta da documentação e dos arquivos, permitiriam gizar uma história geral do concelho e um quadro da sua vida administrativa. Não dispensa, no final, a bibliografia com a indicação dos estudos e das coleções de documentos impressos pelas Câmaras Municipais.

As bibliografias e as propostas metodológicas em relação ao estudo do local evidenciam que era sentida a necessidade de aprofundar em quantidade e em qualidade a produção deste tipo de investigações. De algum modo esse caminho foi sendo trilhado, se bem que de forma hesitante e com considerável atraso em relação ao que se passava noutros países europeus. Diversos fatores podem explicar esse facto, mas a ele não é alheio o contexto político-ideológico da ditadura e do Estado Novo. Assim sendo, de modo geral, pode dizer-se que é maior a continuidade com o tipo de estudos que se faziam no período oitocentista do que a inovação durante a primeira metade do século XX.

As publicações histórico-corográficas continuaram a merecer o interesse dos estudiosos e foi coligida mais informação proveitosa. Logo no início da centúria, assinale-se o Novo Diccionario Corographico de Portugal Continental e Insular: continuação da lista alfabetica das freguesias do continente do reino e ilhas adjacentes (1902), de Francisco Cardoso de Azevedo, depois aperfeiçoado e reeditado. De maior envergadura foi a publicação de Esteves Pereira e Guilherme Rodrigues, Portugal: diccionario historico, chorographico, heraldico, biographico, bibliographico, numismatico e artistico (1904-1915, 7 vols.), com muita informação útil para a história local. Alguns anos mais tarde ainda é pulicado o Diccionario chorographico de Portugal Continental e Insular: hydrografico, historico, orographico, biographico, archeologico, heraldico, etymologico (1929-1949, 10 vols.), de Américo Costa.

No campo das memórias eruditas, com recurso abundante aos arquivos e fontes documentais, saliente-se a obra de Francisco Manuel Alves, mais conhecido como Abade de Baçal: Memórias arqueológico-históricas do distrito de Bragança (11 vols., 1909-1932). A lenta organização dos arquivos, o aperfeiçoamento dos métodos de investigação sob os auspícios da já referida “escola metódica” ou “positiva”

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que, durante várias décadas, vai dominar os meios universitários portugueses20 possibilitou um certo desenvolvimento de estudos de maior erudição. Contudo, continuou a faltar a publicação sistemática de fontes primárias para o conjunto das regiões do país e dos concelhos.

Nesse aspeto, distinguiram-se o Gabinete de História da Cidade do Porto, criado em 1936, com a edição regular de Documentos e memórias para a história do Porto e o Gabinete de Estudos Olissiponenses, fundado em 1954, que iria desempenhar idêntico papel em Lisboa. Entre os investigadores que foram publicando fontes primárias para a história local podemos referir a título de exemplo: Artur de Magalhães Basto, no caso do Porto; Maria Teresa Campos Rodrigues, para Lisboa; António Baião, em relação às fontes para a história do Algarve; António Gomes da Rocha Madaíl, a propósito das informações paroquiais setecentistas sobre Coimbra21 e da documentação da cidade e do concelho de Aveiro; Manuel Monteiro Velho Arruda sobre os documentos relativos ao descobrimento dos Açores. Na verdade, trata-se de um trabalho indispensável para poder ser feita a história22, apesar de o trabalho do historiador não se esgotar nisso, como referiu V. Magalhães Godinho23.

As monografias ao modo tradicional do século XIX continuaram a ser comuns. Um exemplo sugestivo é os Anais do município da Horta (1943), de Marcelino Lima (1868?-1961). Funcionário público, autodidata com formação liceal e fazendo parte de um conjunto de intelectuais que enriqueceram o panorama cultural da ilha do Faial no final de oitocentos, veio a interessar-se pela história local e genealógica24. Nos anais, ele faz uma história total do concelho da Horta, no contexto da ilha do Faial. Naturalmente, começa pelo descobrimento da ilha e o povoamento. Refere-se,

20 Cf. Luís Reis Torgal - Ob. Cit., p. 258.21 Novas pontes da história local portuguesa - as informações paroquiais da Diocese de Coimbra precedidas pela Academia Real

de História em 1721. Coimbra: Arq. e Museu de Arte, 1934. 22 No caso português, ainda em 1987, Luís Reis Torgal salientava a necessidade da recolha e publicação

criteriosa de fontes, por processos científicos - “História… Que História? Algumas reflexões introdutórias à temática da história regional e local.” Revista da História das Ideias, 9. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1987, p. 863.

23 O autor defende que, no seu entender, a história deveria “assentar predominantemente em fontes publicadas e o ideal seria que assentasse exclusivamente, para que todos pudessem verificar as interpretações (o carácter universal da verificabilidade é imprescindível na ciência). O trabalho do historiador não termina com a leitura e transcrição da fonte, começa então (o que modo algum significa que o trabalho de ler e transcrever seja menos meritório”. Ensaios II. Sobre a História de Portugal. 2º ed. correta e ampliada. Lisboa: Sá da Costa, 1978, p. 92.

24 J. G. Reis Leite – “Lima, Marcelino de Almeida”. Enciclopédia Açoriana [em linha] Governo dos Açores. Direção Regional da Cultura. Atual. 2011 [consult. 26-10-2014]. Disponível na Internet: URL < http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/Default.aspx?id=8054>.

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de seguida, à “governança” no período moderno, referindo os donatários, capitães-mor, juízes de fora e corregedores. Depois, relata o estabelecimento do concelho e todos os aspetos relevantes da vida municipal, das finanças, administração, regulamentos e posturas, aos edifícios e múltiplas facetas da organização municipal. A cidade da Horta também merece um extenso capítulo, bem como as questões militares e políticas, destacando as figuras de maior relevo localmente. Não esquece a vida económica e social numa visão realmente abrangente e que toca uma multiplicidade de assuntos. Termina com um relato das “horas trágicas”, onde inclui incursões militares, cataclismos naturais e um levantamento popular de 1862. Neste extenso trabalho utiliza as crónicas, os estudos, os relatos da imprensa e as fontes impressas, em particular o Arquivo dos Açores, mas também fontes inéditas do Tombo da Câmara da Horta. De forma significativa, outro campo em que se distingue é o da genealogia, com a obra sobre Famílias faialenses: subsídios para a história da ilha do Faial (1922).

Um caso paradigmático de estudioso local é o micaelense Urbano de Mendonça Dias (1878-1951). Formou-se em Direito em Coimbra e desempenhou diversos cargos públicos na sua ilha25. De feição monárquica e regionalista, o seu amor pela terra e pela atividade literária conduziu-o para a história, a ficção e o teatro. No terreno que nos ocupa, a sua vasta obra tem um pendor histórico-etnológico, bem patente em A Vida de nossos avós (1944-49, 9 vols.), mas não descura a consulta dos arquivos e as fontes primárias para construir as narrativas. A diversidade de assuntos que focou nos seus trabalhos e a preciosa informação que conseguiu coligir tornam-no realmente importante para história dos Açores e da ilha de S. Miguel26. Marcelino Lima e Mendonça Dias são, afinal, representativos de um tipo de estudioso da história local que vem na continuidade da linha historiográfica

25 Margarida Vaz do Rego - “Urbano de Mendonça Dias”. Enciclopédia Açoriana [em linha] Governo dos Açores. Direção Regional da Cultura. Atual. 2011 [consult. 26-10-2014]. Disponível na Internet: URL < http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/Default.aspx?id=10471>.

26 A talhe de foice pode-se indicar: A Vila: Publicação Histórica de Vila Franca do Campo (6 vols., 1915-1927); História da Instrução nos Açores (1928); História do Vale das Furnas (1936); A Assistência Pública no Distrito de Ponta Delgada: Estudo sobre as Casas de Beneficência das Ilhas de São Miguel e Santa Maria desde a sua Colonização (1940); Instituições Vinculares: os Morgados das Ilhas (1941); Ponta Delgada: Descrição de quando foi lugar e vila e da Cidade: escorço histórico (1946); Madre Teresa d’Anunciada: a Freira do S. S. Cristo dos Milagres (1947); História das Igrejas, Conventos e Ermidas Micaelenses (3 vols., 1949); A Vida de Nossos Avós (9 vols., 1944-1949); Literatos dos Açores: Estudo Histórico sobre os Escritores Açorianos (1931), entre outros. A História dos Açores (2 vols., 1928) fazia a síntese possível, depois das coletâneas documentais que as gerações anteriores tinham deixado como herança.

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tradicional, herdada do século XIX: os temas seleccionados, as formas de tratamento do material coligido, o interesse pelas genealogias e as figuras, o pendor etnográfico de alguns textos, a preocupação com o uso de documentos e o estilo narrativo evidenciam essa filiação na história liberal e romântica, temperada pela preocupação mais erudita pela consulta dos arquivos.

Numa linha inovadora destacou-se o estudo de Alberto Sampaio (1841-1908), As “villas” do norte de Portugal, que foi publicado ao longo de vários fascículos na revista Portugalia: materiaes para o estudo do povo portuguez, dirigida por Ricardo Severo, no Porto27. Profundo conhecedor do mundo dos campos minhotos, desenvolveu um estudo de história económica e social para compreender as origens da forma de ocupação do solo própria daquela região do país, da organização da sociedade e do modo de vida das populações rurais. Para o efeito, remonta ao período romano e às transformações da alta idade média que, na sua interpretação, moldaram as caraterísticas fundamentais da região. Publicada no início do século XX, a obra permaneceria largo tempo como um exemplo isolado no contexto da produção historiográfica regional e local pelo pendor histórico-sociológico da abordagem e pela forma como integra ainda a geografia e a etnologia no quadro explicativo que vai tecendo sobre o povoamento e a organização do espaço rural do norte do país.

Em dois outros campos científicos, os estudos regionais foram inovadores e muito produtivos, no período em apreço: o campo da etnografia e da geografia humana. Em ambos se nota, nas melhores obras e autores, uma preocupação com a origem e as transformações históricas das realidades observadas no presente. A referência histórica aparece nos trabalhos do antropólogo Jorge Dias (1907-1973) sobre o comunitarismo agrário e os instrumentos agrícolas, mas é essencial nos estudos do geógrafo Orlando Ribeiro (1911-1997), cujo exemplo frutificou numa linha de investigação sobre “Geografia Histórica, Regional e Local” no âmbito do Centro de Estudos Geográficos, da Facultade de Letras da Universidade de Lisboa, fundado por ele no início dos anos 4028. Refira-se a propósito os trabalhos

27 As "villas" do norte de Portugal : estudo sobre as origens e estabelecimento da propriedade. Sep. de Portugalia: materiais para o estudo do povo português, Tomo I. Porto: Imprensa Moderna, 1903. Sobre a obra ver: Manuela Martins - "As vilas do norte de Portugal" de Alberto Sampaio. Importância da obra no estudo do povoamento antigo. Revista de Guimarães, n.º 102, 1992, pp. 389-409.

28 José Tengarrinha – “Historiografia dos estudos históricos locais”. In Perspectivas de historia local: Galicia y Portugal. Joseba Agirreazkuenaga, Mikel Urquijo (eds.). Bilbao: Universidad del País Vasco, 1996, p. 38

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de Raquel Soeiro de Brito, de António de Brum Ferreira e de Carlos Alberto Medeiros, dedicados a várias ilhas dos Açores29. No que ao continente diz respeito pode citar-se o trabalho de Carminda Cavaco sobre a área oriental do Algarve e o de Maria Alfreda Cruz sobre a margam sul do estuário do Tejo30. Na mesma linha interdisciplinar e histórico-geográfica prosseguiu Jorge Gaspar, nomeadamente no seu estudo sobre “Os portos fluviais do Tejo”31.

Nos anos 60, foram surgindo em Portugal sinais de uma renovação dos estudos históricos regionais e locais sob o influxo dos trabalhos mais especializados realizados no âmbito académico. O melhor exemplo veio de fora com o trabalho inovador de Albert Silbert sobre a história agrária das regiões da Beira Baixa e do Alentejo, apresentado na Sorbonne, em 1963, nas provas de doutoramento32. No trabalho de pesquisa o historiador francês contou com o apoio de estudiosos locais, nomeadamente de José Ribeiro Cardoso que tinha dirigido a obra Subsídios para a história regional da Beira Baixa, patrocinada pela Junta Provincial da Beira Baixa, e integrada no vasto acervo de publicações do Duplo Centenário33. A história agrária e rural conheceria posteriormente, no final da década de 70 e nas décadas seguintes do século XX, um importante surto34. Mas não só ela, a história em geral e, em especial, aquela que se dedica ao âmbito infranacional expandiu-se de uma forma extraordinária depois de 1974, em resultado da mudança política para a democracia e, sobretudo, fruto do desenvolvimento do ensino superior ao nível da atribuição dos graus de mestrado e de doutoramento35. Não foi também alheia ao fenómeno a evolução política das autarquias locais e dos regimes autonómicos nas ilhas atlânticas

29 A ilha de S. Miguel. Estudo geográfico (1955), A ilha da Graciosa (1968), A ilha do Corvo (1967), respetivamente. 30 O Algarve oriental. As vilas, o campo e o mar (1976) e A margem sul do estuário do Tejo. Factores e formas de organização

do espaço (1973), respetivamente. 31 Finisterra, vols. 5-6, Lisboa: Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, Instituto Nacional de

Investigação Científica, 1970, p. 153-204. 32 Le Portugal méditerranéen à la fin de ‘’Ancien Régime”. XVIIIe – Début du XIXe siècle. Contribution à l’histoire agraire

comparée. Paris: SEVPEN, 1966, 2 vols. 33 Castelo Branco: Junta Provincial da Beira-Baixa, 1940. Cf. Margarida Sobral Neto - “Percursos da história

local portuguesa”. In Memória e História Local. Colóquio Internacional realizado em Idanha-a-Nova, João Marinho dos Santos e António Silveira Catana (coord.), Coimbra: Palimage, 2010, p. 60 e 62.

34 Ver: Maria Helena da Cruz Coelho, “Balanço sobre a história rural produzida em Portugal nas últimas décadas”. In A Cidade e o Campo. Colectânea de Estudos. Coimbra: Centro de História da Sociedade e da Cultura, 2000, p. 23-40.

35 Ver: Manuel C. Teixeira - “A História Urbana em Portugal. Desenvolvimentos recentes”. Análise Social, vol. XXVIII (121), 1993 (2º), p. 371-390; Isabel M. R. Mendes Drummond Braga – “Poder local e historiografia universitária sobre temáticas regionais (1974-2000)”. In O poder local em tempo de globalização uma história e um futuro. Fernando Taveira (coord.). Viseu: Palimage, 2005, p. 171- 192.

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272 historiografia e res publica

que disponibilizaram recursos que favoreceram a investigação e a publicação sobre a história regional e local.

Em suma, a historiografia nacional fez um caminho lento no sentido da renovação e da introdução de novas metodologias e problemáticas, sobretudo fora dos meios universitários que permaneciam avessos a mudanças. Porém, a história regional e local manteve-se muito agarrada a fórmulas tradicionais e, dadas as condições da sua produção maioritariamente por amadores e eruditos locais, só com a expansão do ensino superior e, sobretudo, com os trabalhos académicos de pós-graduação viria a beneficiar de uma significativa expansão e atualização. Importa referir que, já na década de 60, a história local tinha sido valorizada nos trabalhos finais das licenciaturas apresentados nas Faculdades de Letras, o que viria a constituir um incentivo para os licenciados, muitos dos quais professores do ensino secundário e técnicos de organismos regionais e locais, prosseguirem os estudos. A grande renovação da história regional e local viria, por conseguinte, a verificar-se nas últimas décadas do século XX, num contexto político mais favorável e no quadro da expansão do ensino superior que possibilitou a realização de provas académicas e de trabalhos com mais rigor e com ferramentas metodológicas e conceptuais mais modernas.

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273lisbon historical studies | historiographica

B I B L I O G R A F I APARA A HISTÓRIA DA HISTORIOGRAFIA REGIONAL E LOCAL

Repertórios de história regional e local

ARANHA, P.W. Brito - Bibliographie des ouvrages portugais, pour servir a l’étude des villes, des villages,

des monuments, des institutions, des moeura et coutumes, etc., du Portugal, Acores, Madère et

possessions d’outremer. Lisbonne: Imprimerie Nationale, 1900.

CANTO, Ernesto do - Bibliotheca Açoriana: noticia bibliographica das obras impressas e manuscriptas

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DIAS, Eduardo da Rocha - Monographias e outras obras referentes a varias localidades e monumentos

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LIMA, Durval Pires de – Bibliografia corográfica de Portugal. (A-L e M-V), 2 tomos. Lisboa:

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LOUREIRO, José Pinto – Bibliografia Coimbrã. Coimbra: Câmara Municipal 1964.

PEREIRA, Benjamim Enes – Bibliografia analítica de etnografia. Lisboa: Instituto de Alta

Cultura, Centro de Estudos de Etnologia Peninsular, 1965

REPERTÓRIO BIBLIOGRÁFICO DA HISTORIOFGRAFIA PORTUGUESA (1974-

1994). Coimbra: Fac. de Letras de Coimbra, 1995.

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274 historiografia e res publica

Metodologias, problemas e análises críticas

ALARCÂO, Jorge de - Introdução ao estudo da história e do património locais. Coimbra: Instituto

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CASTILHO, Júlio de - Lisboa Antiga. Lisboa: Livr. de A. M. Pereira, 1879-1890

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historico, orographico, biographico, archeologico, heraldico, etymologico. Porto : Civilização,

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LEAL, Augusto Soares d’Azevedo Barbosa de Pinho - Portugal antigo e moderno: diccionario

geographico, estatistico, chorographico, heraldico, archeologico, historico, biographico e etymologico

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LOPES, João Baptista da Silva - Corografia ou memoria economica, estadistica, e topografica do reino

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MESQUITA, Alfredo (compilação e estudo) – Lisboa. Coleção Portugal Pittoresco e Illustrado.

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PIMENTEL, Alberto - Guia do viajante na cidade do Porto e seus arrabaldes. Porto: Livr. Central

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CANTO, Ernesto do - Arquivo dos Açores. Reprodução fac similada da edição original,

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1878-1892).

DOCUMENTOS E MEMÓRIAS PARA A HISTÓRIA DO PORTO. “Vereaçoens”: anos de 1390-1395: o mais antigo dos livros de Vereações do Município do Porto existentes no seu arquivo. Coment. e notas A. de Magalhães Basto. Porto : Câmara Municipal, [1937].

FREITAS, Bernardino José de Senna - Collecção de memorias e documentos para a historia do Algarve. Faro: Typ. de F.S. da Paz Furtado, 1846.

FREITAS, Bernardino José de Senna - Memoria Historica sobre o Intentado Descobrimento de uma Suposta Ilha ao Norte da Terceira nos anos de 1649 e 1770, com muitas notas illustrativas e documentos inéditos. Lisboa: Imprensa Nacional, 1845.

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281lisbon historical studies | historiographica

PEREIRA, Gabriel - Documentos historicos da cidade de Évora. Évora: Typ. da Casa Pia, 1885-1891.

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III - PERIODISMO E HISTÓRIA

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HISTÓRIA, OPINIÃO PÚBLICA E PERIODISMO

José Augusto dos Santos Alves

CHAM - Centro de Humanidades, Universidade Nova de Lisboa

Introdução

Antes de mais, o meu texto tem como matriz a imprensa da primeira metade do século XIX, numa conjuntura de desenvolvimento do espaço público liberal/burguês. Tentar associá-lo mais além pode levar à perda de toda a pertinência, sobretudo a partir da segunda metade de oitocentos, quando o capital financeiro se apossou da produção de periódicos.

Cruzar periódicos é cruzar saberes, certamente um dos actos mais profícuos deste tipo de investigação. Para teorizar o cruzamento de saberes labirínticos, liberais, conservadores, ultramontanos e republicanos dos periódicos desta época, é necessário estar atento ao descriptar do texto, noticioso ou editorializado, ao discurso opaco ou transparente, embalsamado de verdades, infiltradas pela mentira, à escrituralidade substantivada pela imaginação criadora dos fomentadores da

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286 historiografia e res publica

grande política e à prédica plena de aproximações e banalidades, em que, não raras vezes, sob a miséria da incompetência e da intolerância, se veiculam formulários, desígnios e considerandos sem substância, uma constatação que se projecta nos dias de hoje.

As transformações acontecidas no modo de produção do periodismo, ainda que longe de superar todos os obstáculos e inércias, não impedem o periodista e o periodismo portugueses de atingir os padrões da Europa, o que desde logo tem repercussão nas questões do desenvolvimento na criação de periódicos e de interiorização das liberdades, sobretudo depois da deriva despótica miguelista. Apesar das diferenças ideológicas entre periódicos, são, contudo, partilháveis, e da mesma natureza, os modos de escriturar encontrados a esse nível na imprensa da formação social portuguesa, nesta primeira metade do século XIX. Desde logo, o cruzamento de saberes periodísticos é um facto ocorrente sempre que “submergimos” na sua investigação, interpretação ou análise dos periódicos de referência, liberais ou conservadores. Existe uma evidência na progressão da produção espiritual, intelectual e tecnológica dos periódicos, em clara aceleração na terceira e quarta décadas do século XIX, que vai produzindo crescente influência na própria configuração dos periódicos e da formação social portuguesa em todos os níveis – sociopolítico, económico e cultural –, como resultado da dialógica e da intercompreensão resultantes do cruzamento de saberes periodísticos. São distinções tão fortes, que tendem a deixar na sombra a poderosa dinâmica de que estão imbricados e que só é inteligível a prazo e na articulação panorâmica dos periódicos envolvidos neste processo de encruzilhada de saberes, em muitos casos sem a consciência do que está a acontecer.

Tirar do esquecimento esta excelente fonte de informação, comunicação e memória, que explica a dramática das sociedades humanas e o seu futuro – a que se chama actualmente história –, a par desse efeito de criação e de atravessamento e destruição de saberes, leva a pensar que a formação social portuguesa se começa a pensar mais a si própria e aos seus problemas, ao mesmo tempo que alarga o “círculo de leitura”, estimulando-o a fazer uso da capacidade de utilizar a razão e a dinamizar a opinião pública, numa época em que o homem ou a mulher modernos tinham necessidade de aprender a argumentar para convencer o seu interlocutor ou

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o seu público. O acto de convencer, distinto do de explicar ou do de informar, tem o poder de fazer evoluir a opinião e poder mudar as coisas, tendo sempre presente a retórica imbricada com duas preocupações indissociáveis, a da eficácia e a da ética. A retórica, ainda se mantinha, em grande parte, à distância das técnicas de manipulação, apesar da vacuidade retórica manipuladora começar a estar presente na esfera comunicacional1. A eficácia podia perfeitamente caminhar a par com o respeito pelo Outro e por si mesmo, eficácia, naturalmente, potenciada pelo cruzamento de saberes periodísticos.

Este processo, em particular a sua extensão a mais leitores, auditores e espectadores, outrora afastados da leitura de periódicos e dos saberes mais elementares da política, por estes veiculados, acaba por envolver o alargamento da reflexividade social, condição de cidadania, num período em que a passagem de súbdito a cidadão era do passado recente. O grande impacto do novo modo de produção do periodismo, que potencia a comunicação e a informação, articula-se sobretudo com o atravessamento dos saberes veiculados pelos periódicos, num sistema em que o senso comum é progressivamente mais elucidado, diminuindo assim a dependência das antigualhas góticas que contaminavam o espírito que alimentava o Antigo Regime. Deste modo, pode afirmar-se que o cruzamento de saberes, na panorâmica do periodismo, na sua função também de transmissão de saberes – superando, deste modo, a carência endémica de aprendizagem básica, importante para a aquisição de conhecimentos e técnicas necessárias para o desempenho de qualquer actividade – tem consequências ao nível da função de

1 A este propósito, leia-se citação de A Vedeta da Liberdade: “Quanto não são perigosos na sociedade aqueles escritores, que, não deixando jamais de desvairar a opinião dos povos, e desviá-los da vereda que devem seguir, emitem continuadamente nos seus escritos ideias subversivas, a fim de transtornarem e alterarem o bem dos mesmos povos! Por ventura, aqueles escritores, que assim pintam os males com as cores de bens, e estes com as de males, para satisfazerem tão-somente à vontade e gosto daqueles, de quem, assalariados por um vil interesse, se tornam escravos das suas paixões, serão escritores de boa-fé? Certamente que não. Portanto, é claro que são escritores de má-fé, aqueles que tão pertinazmente têm defendido o ministério dos abusos e os seus despóticos actos […]. Lemos no Independente, nº 165, uma extensíssima correspondência que ocupa quase todas as colunas daquele grande periódico. O seu autor mostra nele um excessivo rancor e azedume ao nosso actual sistema e, ao mesmo tempo, as mais ternas saudades da sua favorita Carta. Mas [dando-lhe] isso de barato (…), podia fazer isso de modo que não desse uma tão grande maçada aos leitores […]. Os devoristas estão no mesmo caso dos ismaelitas, quando saíram do Egipto, que suspiravam por cebolas que lá tinham comido, quando as coisas não corriam como eles queriam” (A Vedeta da Liberdade. (1835-1839). Porto: Imprensa de Coutinho, 1835-1839), N.º 243 (14 de Outubro – 1836), p. [1]). A manipulação, suposta, começa a estar presente já neste período, aceitando, como segura, a reflexão do redactor de A Vedeta da Liberdade, que, curiosamente, nada refere em relação ao facto de tal missiva ser acolhida pelo Independente (“grande periódico”, como afirma).

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adquirir ferramentas e adquirir capacidades intelectuais, estimulando, na medida do possível, a curiosidade (que conduz além das fronteiras do conhecimento), a criatividade e a capacidade de inovação, das quais os periódicos vão fornecendo exemplos. Estas questões, pelo viés dos periódicos, começam, na pesquisa, a surgir à superfície pouco a pouco, primeiro sem ruído, depois com estrépito, sendo impossível, a quem investiga os conteúdos da memória periodística, fugir a esta teia que se vai tecendo e entretecendo entre os periódicos e com os periodistas.

Comunicação, Periodismo e Público

Neste enquadramento, cabe reafirmar que a comunicação não é uma simples transmissão de informação. Ela não se limita a uma sequência que começa na codificação pelo emissor para acabar na descodificação pelo receptor. Isto por duas razões postas em evidência por Grice2. A primeira é que pela comunicação o locutor visa obter outros efeitos junto do destinatário e não a simples descodificação de informação. A segunda é que a informação transmitida é geralmente insuficiente para que o destinatário consiga determinar o efeito desejado pelo locutor. É preciso que ele utilize o contexto da enunciação para reconstituir o sentido do que lhe é comunicado. É necessário que se ponham em marcha processos interpretativos que não se limitem a uma simples descodificação e que possam mesmo ir ao arrepio do sentido literal da mensagem. Isto não significa que se esteja entregue a uma indeterminação total.

Dito isto, se a imprensa é um lugar de construção da identidade nacional, esta não pode forjar-se senão em relação à alteridade, na medida em que a matriz nacional, ela própria, tem um fundamento intercultural. Nesta acepção, o facto histórico (o evento e o momento), como ingrediente de comunicação, de doutrinação, de catequização, a opinião pública, o “círculo de leitura”3 e a imprensa

2 Cf. GRICE, H. Paul – “Meaning”. The Philosophical Review. N.º LXVI (1957), pp. 377-378, apud LIVET, Pierre – La communauté virtuelle: Action et communication. Combas: L’Éclat, 1994, pp. 21 e pp. 279-280).

3 Pode dizer-se que o “círculo de leitura” é o “miolo” do espaço público, no seio do qual o intelectual politiza o popular, o popular “acarinha” a política e estimula o político, que populariza a política, universalizando assim um desejo de libertação por via de práticas eternizadas, encantatórias e vertiginosas, da discursividade, um modo indiscernível, na ordem da persuasão e da argumentação, de relação com o “Outro”.

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são os media privilegiados, utilizados pelo periodista, que não abdica do recurso à memória e ao tribunal da história, para atingir os seus objectivos. Não no sentido de fazer história, ainda que a imprensa construa a sua própria história, mas dar à história o lugar que merece. Vem a este propósito o momento/acontecimento que deve ter uma utilização pedagógica com vista ao presente e ao futuro. Não se trata de minimizar ou hipertrofiar o acontecimento, mas dar-lhe a autêntica dimensão no quadro do desenvolvimento da formação social portuguesa em que o periodismo escreve e se inscreve.

A imprensa racionaliza o confronto entre história, política e opinião pública no interior de um fenómeno mais vasto, mais universal que é a comunicação, o “círculo de leitura”, o leitor, o auditor, o observador, o alfabetizado, o analfabeto, a elite e as franjas. Falar do Marquês de Pombal, para incentivar a virtude do exercício do poder; falar das Cortes de Lamego, para fazer ver quão antiga é a Lusitana Antiga Liberdade; falar do fenómeno esclavagista (escravatura), para abrir caminho à cidadania activa, na qual a alavanca é a emancipação do sujeito após a transmutação do servo em cidadão; abordar a primeira dinastia como exemplo de etocracia, para os Braganças reinantes; chamar à colação a batalha de Ourique, para reafirmar a soberania, passada, presente e futura, através de um acto imaginário mítico/religioso; falar de descobrimentos, como recorrência histórica, legitimadora de sentido prospectivo e retrospectivo, ou de idades de ouro, são ingredientes que caminham no mesmo sentido: recorrer à história como jurisdição de apelo para justificar uma imagética que serve conservadores, liberais e democratas, ainda que o documento apócrifo esteja, muitas vezes, na sustentação do argumento, para, depois de passada a conjuntura, ocorrerem fenómenos de mitofagia.

Em primeira ou derradeira instância, a história surge como ingrediente da opinião pública e do periodismo, num período em que a fusão da esfera literária com a esfera política está na origem dos fenómenos de opinião. E quando falo de História é no duplo sentido, instrumento e ingrediente: instrumento ideológico, ingrediente de construção do laço social na formação social em que se inscreve. O acontecimento histórico é um evento periodístico, que deixa ver a importância da narrativa no seio da formação social, enquanto formador, construtor do laço social, uma função do periodismo que desde sempre é assumida.

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Neste quadro, tem toda a legitimidade falar da história da apropriação4, porque ancorada na fusão conflitual entre o universo do texto e o mundo do “círculo de leitura”, no perceber e no receber, na estética e na ética, que se imbrica com a “retórica da leitura”5, a história dos sentimentos ou a dos afectos, a dos estereótipos ou a dos lugares-comuns. Na mesma perspectiva deve se olhada a “estética da recepção”, que envolve todos os actores, cuja acção recíproca é necessária para que haja criação e transformação no domínio literário e periodístico, ou invenção de novas normas na prática social que não deixem passar em silêncio

4 A apropriação visa aqui “uma história social dos usos e das interpretações, em relação com as suas determinações fundamentais e inscritos nas práticas específicas que os produzem”, transformando as formas de sociabilidade, autorizando novos pensamentos que reverberam nas relações com o poder (cf. CHARTIER, Roger – “Le monde comme représentation”. Annales (E.S.C.). Nº 4 (Novembre/Décembre – 1989), Paris: Armand Colin, 1989, pp. 1510-1511), tendo ainda em vista que o enunciado, nas suas variantes, ultrapassa largamente os sujeitos individuais ou plurais da enunciação, pois em cada período, na imanência histórica, ele forma-se sobre novas aplicações (cf. BOUREAU, Alain – “Propositions pour une histoire restreinte des mentalités”. Annales (E.S.C.). Nº 4 (Novembre/Décembre – 1989), Paris: Armand Colin, 1989, p. 1502). Sobre as estratégias da apropriação e da “mètis” enquanto princípio de economia, a essa estratégia inerente, ao mesmo tempo, uma estética, um saber, uma “memória” e a sua “mobilidade” coteje-se CERTEAU, Michel de – L'invention du quotidien: Arts de faire. Paris, Union Générale d'Éditions, 1980, pp. 151-165; leia-se ainda do mesmo autor: “Compreende-se então as alternâncias e cumplicidades, as homologias de procedimentos e as imbricações sociais que articulam as «arts de dire» com as «arts de faire»: as mesmas práticas produziram-se tanto no campo verbal como no campo gestual; elas passaram de um ao outro, igualmente tácticas e subtis aqui e ali” (Idem, ibidem, p. 151). Acerca da “mètis”, como forma de inteligência sempre “imersa numa prática”, em que se combinam “o instinto, a sagacidade, a previsão, a flexibilidade de espírito, a simulação, a esperteza, a atenção vigilante, o sentido de oportunidade, as habilidades diversas, uma experiência longamente adquirida”, veja-se DÉTIENNE, Marcel; VERNANT, Jean-Pierre – Les Ruses de l'intelligence: La mètis des Grecs. Paris: Flammarion, 1974, pp. 9-10. Sob a mesma óptica, em que novos leitores conduzem a “novos textos”, considere-se também McKENZIE, D. F. – Bibliography and the Sociology of Texts : The Panizzi Lectures,1985. London, The British Library, 1986, pp. 19-20; em âmbito próximo, e sobre as “variações imaginativas” produzidas por fábulas, coteje-se RICOEUR, Paul – Temps et récit: 3. Le temps raconté. Paris: Seuil, 1985, pp. 229-230. Ainda na linha da história das apropriações, a propósito de uma nova distribuição da linguagem que, herança do século XVII, se acentua nos finais do século XVIII e no século XIX, facilitando as trocas, o progresso do saber e o exercício do poder, e o enobrecimento da linguagem vulgar, que se banalizou neste período, tornando-a capaz da plena eloquência, veja-se FUMAROLI, Marc – L'Age de l'éloquence: Rhétorique et “res literária” de la Renaissance au seuil de l'époque classique. Genève: Droz, 1980, p. 29.

5 Cf. CHARLES, Michel – Rhétorique de la lecture. Paris: Seuil, 1977. “A leitura é uma experiência e encontra-se, enquanto tal, submetida a um conjunto de variáveis que não podem a priori relevar da teoria da literatura. No grande jogo das interpretações, as forças do desejo e das tensões da ideologia têm um papel decisivo. Resta que este jogo só é possível na medida em que os textos o permitem. Isto significa que um texto não permite qualquer leitura, mas que ele é marcado por uma «precariedade» essencial, que tem nela própria o jogo […]. A leitura […] é um objecto construído (a construir)”, ou seja, a leitura é movimento e absorção (cf. CHARLES, Michel – Rhétorique..., pp. 9-16), que cai no âmbito do jogo e do “risco” em que se apela ao relacionamento com outros livros e ao convite feito ao leitor para “reescrever” o livro (cf. Idem, ibidem..., pp. 38-86). “A literatura não é um espaço homogéneo. Ela vive da sua heterogeneidade, das suas rupturas, das suas faltas […]; ela obriga a um ponto de vista de onde se possa construir uma unidade, mas também deixa lugar a diversas relações possíveis entre os seus fragmentos, entre os diferentes discursos que ela utiliza […]. Uma «retórica do efeito» deve ter por função descrever estes constrangimentos – incluindo a «obrigação-liberdade», esta sobretudo – de aí mostrar a ancoragem histórica (as referências e os códigos), de assinalar os lugares onde se podem construir as significações […], que verificam e provam o texto, quer dizer que o constituem como tal «a cada instante»” (Idem, ibidem..., p. 288). Com efeito, face ao problema de uma “retórica da leitura”, de uma “eficácia do discurso”, devem colocar-se questões como as do título, do sentido literal ou das mensagens subliminares, das metáforas ou das alegorias, das transposições ou das transições, das leituras diagonalizadas ou transversas, do travesti político e ideológico, etc., que se constituem num espaço abrangente de utilizações e instrumentalizações, em que se insere o vasto problema da apropriação, da recepção e da leitura, do impresso, do periódico, dos autor(es), dos redactor(es) e dos leitores.

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o “terceiro estado”, o leitor, o auditor ou o espectador contemplativo6.O carácter de toda esta formulação, presente no espaço público no final

do século XVIII e princípios do século XIX, é também tributário do pensamento kantiano especialmente na sua referência ao que se poderá chamar o contrato social-comunicação universal (um cogito plural, assente na liberdade de pensar, pedra de toque da verdade em si – quer dizer na sua própria razão7), cuja essência reside no guiar mais do que no imitar8 como via para a exemplaridade e o consenso aberto,

6 Cf. STAROBINSKI, Jean – “Préface”, in JAUSS, Hans Robert – Pour une esthétique de la réception. Paris: Gallimard, 1978, p. 11. “Se não quisermos mais definir a natureza histórica de uma obra, separada dos efeitos que ela produz, e se não quisermos mais considerar que a história de uma arte existe na sua totalidade na sucessão das obras, separadamente do acolhimento que elas receberam, então é necessário fundar a estética tradicional da produção e da representação sobre uma estética da recepção […]; exactamente porque ela pode contribuir para fazer compreender a relação dialéctica (Interaktion) entre a arte e a sociedade – por outros termos: a relação entre produção, consumo e comunicação no interior da praxis histórica global da qual eles são os elementos”. (JAUSS, Hans Robert – Pour une esthétique..., pp. 244-245). Para Jauss, na linha de Gadamer (cf. GADAMER, Hans George – Vérité et méthode: Les grandes lignes d’une herméneutique philosophique. Traduit par Étienne Sacre et Paul Ricoeur. Paris: Seuil, 1976, p. 147), a recepção das obras é uma apropriação activa, que lhes modifica o valor e o sentido no decurso das gerações, até ao momento presente em que nos encontramos, face a estas obras, no nosso próprio horizonte, em situação de leitores ou historiadores (cf. Idem, ibidem, p. 51). Trata-se de uma tentativa de uma nova mediação entre a história literária e a pesquisa sociológica facilitada pelo conceito de “horizonte de expectativa” que se distingue do da praxis histórica da vida, na medida em que não conserva apenas o traço das experiências feitas, mas antecipa ainda as possibilidades das não realizadas, alargando os limites do comportamento social, suscitando aspirações, exigências e novos objectivos, e abrindo assim vias à experiência a vir (cf. JAUSS, Hans Robert – Pour une esthétique..., p. 75). Neste sentido, a “estética da recepção” tem em vista que o prazer da fruição (a experiência estética) não se opõe, em qualquer circunstância, por natureza, ao conhecimento nem à acção. A função cognitiva por natureza está implicada na fruição estética: ao mesmo tempo, o sujeito é libertado pelo “imaginário” de tudo o que faz a realidade constrangedora da sua vida quotidiana por via de três conceitos-chave da tradição estética: poiesis, aisthesis e catharsis que desaguam nos conceitos de exemplaridade, de comunicação simpática e de apelo conativo, em processos de “identificação associativa”, de “identificação admirativa”, de “identificação por simpatia” e de “admiração catártica” que têm por denominador comum a “identificação irónica” que obriga a reflectir e a desenvolver uma actividade estética autónoma. É a este nível sobretudo que a função de ruptura com a norma é actualizada. Assim, a experiência estética distingue-se de outras formas de actividade não apenas como “produção pela liberdade”, mas também como “recepção na liberdade” (cf. Idem, ibidem, pp. 125-155). Este facto conduz Jauss a estabelecer uma distinção entre o “efeito” – que é determinado pela obra, e por isso guarda laços com o passado em que a obra nasceu – e a “recepção” que depende do destinatário activo e livre que, julgando segundo as normas estéticas do seu tempo, modifica pela sua existência presente os termos do diálogo (cf. Idem, ibidem, pp. 246 e 259). Veja-se também JAUSS, Hans Robert – Pour une herméneutique littéraire. Paris: Gallimard, 1988, p. 43. Sobre a “interacção comunicacional”, o poema que “não é uma chegada, mas um ponto de partida” e a relação entre o texto e o leitor, atente-se ainda em RIFFATERRE, M. – “Le poème comme représentation: une lecture de Hugo”. La production du texte, Paris, Seuil, 1979, pp. 175-198; Essais de stylistique structurale. Paris: Flammarion, 1971, sobretudo parte primeira, pp. 27-158.

7 Cf. KANT, Immanuel – Qu'est-ce que s'orienter dans la pensée. Paris: J. Vrin, 1959, p. 88.8 Cf. KANT, Immanuel – Critique du Jugement. Trad. J. Gibelin, Paris: 1946, §32 apud JAUSS, Hans Robert –

Pour une esthétique..., p.155. Kant “estabeleceu uma analogia, que, se bem que notada incidentemente, merece ser retida, entre este interesse empírico pelo belo e o contrato social de Rousseau: «Do mesmo modo cada um espera e exige do outro que ele tenha em conta esta comunicação universal, em virtude de um contrato originário ditado pela própria humanidade»” (KANT, Immanuel, Critique…, § 41). “O julgamento estético pode exigir de cada um que ele «tenha em conta esta comunicação universal» e ele responde de facto a um interesse de nível mais elevado, aquele que suscita a realização de um contrato social «originário»: este argumento de Kant pode seguramente fornecer nos nossos dias uma apologia da experiência estética, mais e melhor que uma bela conclusão retórica […]. É por isso que se pode pensar que em caso de discussão sobre uma norma que se trata de estabelecer ou precisar, a experiência estética permitirá talvez estabelecer um consenso com mais facilidade que a lógica propedêutica, cujo modelo de argumentação lógico-dialéctico

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“sem imposição de uma pseudo-comunicação”9, encarados no contexto próprio do final do Antigo Regime e na fase posterior de consolidação do espaço público liberal e burguês, um processo que, a meu ver, envolve a ética e a estética da política e a sua experiência numa perspectiva de “estratégia de vitória”.

A despeito de o escritor/publicista/periodista poder continuar a difundir na escola, na universidade, nas academias, nos salões, nas diversas profissões, e condições da elite, um sentido exigente da forma de expressão, uma arte de “bem dizer” e de “bem escrever”, é a um conjunto de actores10, marcados pela impossibilidade de se exprimirem por meio da escrita ou do impresso, que se torna imprescindível restituir a “voz”, não apenas para preservar as condições de vitalidade e de universalidade da cultura, mas sobretudo por ser a pedra angular do diálogo social e do compromisso que lhe está implícito.

O periodismo, importa dizê-lo, não é um poder entre outros. O seu poder reside no papel de alicerce, que fornece uma base à identidade e à acção individual e colectiva. Sem um jornal, que garante a existência de laços fortes e sólidos, não se pode unir uma comunidade. Apenas o periódico pode apresentar, no mesmo instante, a um conjunto, mais ou menos amplo, de leitores, a mesma mensagem, a mesma causa. Por outro lado, o periodismo não pode viver sem a presença de um pensamento do seu próprio desenvolvimento na construção do movimento histórico. Nesta acepção, explica-se aqui como instrumento de passagem de uma civilização da oralidade a uma civilização do texto, do qual o periodismo é a primeira garantia. Sobre este processo, seja-me permitida uma breve revisitação.

Na ausência de sondagens ou inquéritos de opinião, apenas podemos fazer fé no que os periódicos vão transmitindo. Sabemos, a partir dos livros da Intendência Geral de Polícia, desde o final do século XVIII, que os públicos são variados, públicos que entendo no conceito de “círculo de leitura”, em que integro, repetindo-

visando o consenso incontestado é mais próprio a impor o reconhecimento de verdades pré-estabelecidas – assim como suficiente para revelar a sua terminologia evocando o ataque, a defesa e a «estratégia de vitória»”. (JAUSS, Hans Robert – Pour une esthétique..., pp. 155-156).

9 HABERMAS, Jürgen – “Der Universalitatsanspruch der Hermeneutik” [A ambição da universalidade hermenêutica]. Hermeneutik und Ideologiekritik: Theorie-Diskussion. Francfort: 1971, pp. 153 e ss. apud JAUSS, Hans Robert – Pour une esthétique..., p. 252.

10 No agir comunicacional, o actor é fortemente considerado como o “«produto» das tradições, nas quais se encontra, dos grupos aos quais pertence e dos processos de socialização nos quais cresceu” (HABERMAS, Jürgen – Morale et Communication. Traduction de Christian Bouchindhomme. Paris: CERF, 1986, p. 150).

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me, o leitor, o auditor e o espectador, o observador, o alfabetizado, o analfabeto, a elite e as franjas.

Neste sentido, tem toda a pertinência perguntar: Que público para os periódicos da primeira metade do século XIX?

No periodismo ocidental do século XIX, tal como o conhecemos, a noção de público começa com a viragem do espaço público representativo para o espaço público liberal/burguês, que tende a considerar o público como um elemento fundamental em relação à função do periodista e à sua capacidade de comunicar e informar, independentemente da sua autonomia. O público, com efeito, aparece, é percebido, enquanto tal, no quadro do mercado da informação e dos consumidores. Neste sentido, o periodismo não pode ser percebido, senão através do aparecimento de um público susceptível de o fazer existir. Pode ver-se, assim, a importância, para o periodismo e o periodista, de uma boa apreensão do público dos jornais, graças aos instrumentos fornecidos pelos publicistas, que enriquecem as reflexões mais tradicionais da política, da filosofia e da fenomenologia. Neste contexto cultural/periodístico, os periódicos têm duas categorias de consumidores no “círculo de leitura”: o círculo estrito dos leitores e o “árbitro de artes”11, e o público alargado das franjas sociais, que acompanham os primeiros, os auditores e os espectadores. Com o acesso ao jornal, antes restrito aos salões dos aristocratas, burgueses do cume da hierarquia e burguesia de toga, o público constitui-se pela primeira vez numa forma de relação com a política, inteiramente destacada de toda a posse de saber académico. O que distingue o espaço privado, dos altos burgueses e aristocratas, do espaço público é que a leitura tem uma ressonância alargada. Se o periódico se produz para ser comprado, na verdade ele tem uma outra depurada e superior função – ser lido por um maior número, ouvido e observado por um número ainda superior. A deleitação deste aspecto, que não descarta a dimensão comercial, está intimamente ligada, posteriormente, à avaliação crítica do “árbitro de artes”, que permite formar e emitir uma opinião. Em derradeira instância, o jornal não existe

11 O “árbitro de artes” define-se, cada vez mais, como porta-voz do grande público, senão mesmo como preceptor encarregado de formar o seu julgamento e de o representar. Como afirma Habermas o “árbitro de artes” é ao mesmo tempo o representante do público e o seu pedagogo e podem conceber-se como porta-vozes do público porque não reconhecem outra autoridade que a dos argumentos e sentem-se solidários com aqueles que estes argumentos possam convencer (cf. HABERMAS, Jürgen – L’Espace Public — Archéologie de la Publicité comme dimension constitutive de la société bourgeoise. Paris: Payot, 1978, pp. 51-52).

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para ser comprado (em todo o caso a venda é imediata), mas para exibir um saber escrever com o tempo e no tempo, e um saber pensar do público. Esta é uma etapa importante porque marca, ao mesmo tempo, uma certa autonomização do vínculo produção-leitura, em relação aos saberes tutelares da Igreja e do Estado, uma verdadeira institucionalização da ética e da estética da crítica da política, ou outras, como uma faculdade independente dos poderes/saberes oficiais, possuindo em si uma finalidade própria, mas interessada na marcha do mundo. É assim que surgem os chamados “estrategas de café”, intermediários especializados na avaliação e conhecimento dos periódicos e que conhecerão grande sucesso ao longo do século XIX, com o desenvolvimento da imprensa, da edição e das universidades. Dito de outro modo, nas fronteiras do comércio e da erudição, os periodistas surgem, ao mesmo tempo, como causa e efeito do extraordinário enriquecimento do mercado da comunicação e da informação, característico da modernidade. É com efeito no século XIX que o público dos periódicos se abre a categorias mais amplas, que não seja o dos espaços privados, altos burgueses e aristocratas.

Mas, se o consumo do periodismo e, na generalidade, de todo o produto da escrituralidade, ganham uma dimensão massiva através de uma superior frequentação do “círculo de leitura” e integração na rede psicopolítica12, isto deve-se tanto à extensão do público, como também ao aumento do número de periódicos: por um lado, graças à Revolução vintista e episódios subsequentes até ao final do século XIX, que institucionaliza o periodismo, fazendo já parte do património público, como arma de revolucionários e conservadores, e, por outro, graças à

12 Entendo por rede psicopolítica um conjunto de espaços-lugar, de situações objectivas de informação e comunicação, em que esta não pode ser definida apenas como uma transmissão de informações sobre o estado e o processo de desenvolvimento dos saberes (do político ao artístico). Com efeito, nesta rede comunica-se também para estabelecer relações, partilhar emoções e dividir sentimentos, para agir sobre o próximo, para confortar e confrontar a nossa identidade (da política à artística) e a dos outros, integrados no espaço público. No fundo, trata-se de um espaço público que, acolhendo variantes e formas de actuação alternativas, se conjuga com a rede psicopolítica, constituída na base do círculo político, tertúlias, gabinetes de leitura (aluguer de livros), cafés, teatros, botequins, salões, academias, bibliotecas públicas e privadas, passeio público e outros locais estratégicos em que convergem a palavra pública, a semi-pública, a privada ou a oficiosa, com as tipografias, os livreiros, os “novelistas”, os vendedores ambulantes e os circuitos de comercialização do impresso (livro, folheto, panfleto ou periódico) e do manuscrito (livro, folha-à-mão, etc.). Motivados pelo progresso estrutural, pela inovação, pela realização pessoal, pela igualitarização, pela mutação em sincronia com as necessidades de evasão ao autoritarismo imemorial, os actores sociais (“solistas” ou “figurantes”, que alternadamente actuam “atrás-do-pano” ou à “boca-de-cena”) desta rede comunicacional, aos quais podemos chamar sujeito sociopolítico, sentem-se atraídos pelo progresso intelectual e material, pela liberdade intrínseca, pela descoberta de novas quotidianeidades e mundaneidades, por uma diferente sociabilidade e por uma também modificada conflitualidade, reflexiva e raciocinada.

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organização, cada vez mais frequente, de redes de assinaturas, locais de venda e distribuição. Trata-se de um fenómeno de consumo, em que coabitam a fruição e a erudição, com a frequentação de espaços culturais de divulgação e informação, no quadro das práticas da fruição do lazer, da conversação, da leitura e da comunicação, que circula entre o café, a bebida, mais ou menos alcoólica, e o bilhar. Derradeira etapa deste alargamento qualitativo e quantitativo dos modos de acesso à informação periódica: a invenção, depois a multiplicação, dos meios técnicos de reprodução e das vias para atingir o público, mais distanciado ou indiferente. Este acesso desenvolve-se, sobretudo, pela melhoria dos meios de comunicação infra-estruturais, mas ainda através da oralidade, da rede de “noveleiros”, apesar da concorrência, mas em decadência, que fazem configurar uma nova relação com a produção de periódicos, infinitamente mais livre, mesmo que perca na intensidade o que ganha em extensividade. A aura do periodismo do século XIX, que assume uma valorização quase fetichista, deve-se sobretudo ao modo de produção da escrituralidade dos seus redactores, que o tornam mais acessível e directo, na medida em que se dirige ao quotidiano dos cidadãos (leitores, auditores e espectadores), que sofrem os fluxos e os refluxos do exercício do poder político ou outro.

Vê-se, portanto, que a questão do público dos periódicos está longe de reduzir-se a uma simples contabilização das assinaturas e das vendas, nem mesmo a uma sociologia da leitura, que ignora esta dimensão fundamental que é a percepção dos conteúdos da escrituralidade e a construção de um quadro conceptual adaptado ao universo do periodismo. Por que se o redactor é o autor da discursividade, o público é bem o operador da sua produção, como obra de cultura, que estabelece a dialógica fusional entre jornal e leitor, através da qual posteriormente se irão verificar os verdadeiros resultados do que foi escrito. Certamente, a tendência romântica para venerar o “árbitro de artes”, que tende a idealizar e magnificar este, isolando-o no seu corpo-a-corpo inspirado, com a sua própria criação, não autoriza menos o ter em conta o papel constitutivo do público e da recepção do periódico. E é da ilustração de tal aspecto, exemplo de uma introjecção do público no periódico, que pode equacionar-se o jornal como objecto, enunciado e obra, encontrando o seu acabamento no momento em que este, que é lido, constrói o que lê. mutatis mutandi o mesmo para a obra de arte.

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Por isso, torna-se imprescindível deitar um olhar sobre a rede psicopolítica em que o público se inscreve (no contexto socio-político-económico-cultural de finais de setecentos e primórdios de oitocentos e no fenómeno do urbanismo que lhe é inerente em que a informação não é mais monopólio dos que administram, julgam ou dirigem a cidade e as almas13), não como objecto informe e negligenciado, mas como sujeito carregado de atributos e acessível, por via de uma figura mediática a que poderemos chamar uma espécie de divulgadores, às personagens marcantes da sua época, aquelas que mais facilmente acedem à cultura e à propriedade, condições para mais espontaneamente integrar o espaço público liberal.

São estes divulgadores que, a meu ver, promovem o equilíbrio, no caso da comunicação social, entre forma e conteúdo, comunicação e informação, instrumento e mensagem, no sentido da condução e não da manipulação, da orientação e da reflexão política. Estes elementos tornam-se, no interior da rede psicopolítica, vitais para a comunicação e informação14, em virtude de produzirem as articulações entre os círculos do saber, a sua aspiração ao conhecimento e as orientações a seguir junto de outros estratos interessados na mudança e na inovação.

13 O mundo citadino europeu tornou-se consumidor de informação e de livros. Outras formas de impresso solicitadas, como o periódico, põem em causa pretensas desigualdades na difusão das ideias em categorias onde a tradição livresca poderia levantar dúvidas. A circulação de saberes torna-se mais rápida no conjunto das populações urbanas, bem para além dos privilegiados cultos e ricos, feita pela leitura, pela canção ou pela imagem, acentuando assim as possibilidades de aculturação urbana: “Todo um sistema de pensamento e de acção se aperfeiçoam [em] modos de estar que confrontam o crente e o cura, o trabalhador e o empregador, o consumidor e o fornecedor, o contribuinte e o empregado do fisco, o frondeur potencial e o guarda da alfândega, o homem vulgar e o polícia […]. O acto de ler é substituído num conjunto em que intervêm outras maneiras de leitura, um espectáculo cultural onde se banham, pouco ou muito, todos os citadinos e que abre a via às leituras habituais do livro. Mas o impresso não tem a mesma função para toda a gente, e as formas mistas entre o oral e o lido, o visual e a comunicação multiplicada pela tipografia, continuam a ser muito numerosas” (ROCHE, Daniel – “Les pratiques de l’écrit dans les villes françaises du XVIIIe siècle”. Pratiques de la lecture. Sous la direction de Roger Chartier. Paris: Payot et Rivages, 1993, pp. 213 e 217-218; cf. ainda pp. 219 e ss.).

14 No sentido que lhe dá Pierre Livet, ou seja, a comunicação não é uma simples transmissão de informação. Ela não se limita a uma sequência que começa na codificação pelo emissor para acabar na descodificação pelo receptor. Isto por duas razões postas em evidência por Grice. A primeira é que pela comunicação o locutor visa obter outros efeitos junto do destinatário e não a simples descodificação de informação. A segunda é que a informação transmitida é geralmente insuficiente para que o destinatário consiga determinar o efeito desejado pelo locutor. É preciso que ele utilize o contexto da enunciação para reconstituir o sentido do que lhe é comunicado. É necessário que ponha em marcha processos interpretativos que não se limitem a uma simples descodificação e que possam mesmo ir ao arrepio do sentido literal da mensagem. Isto não significa que se esteja entregue a uma indeterminação total. O território do não-decidível tem a sua estrutura própria. E pode-se utilizar os graus do não-decidível, como o dos pontos de referência na pesquisa, se não como uma interpretação assegurada, pelo menos como uma estabilidade interpretativa, que é suficiente para o sucesso da comunicação. É justamente este estatuto virtual que dá a sua especificidade ao colectivo em relação às nossas construções individuais, os princípios da tolerância mútua, que nos permite admitir os erros e os comportamentos marginais, sem supor por isso a acção colectiva interrompida (cf. GRICE, H.P. – “Meaning”. The Philosophical Review. Nº LXVI (1957), pp. 377-378, apud LIVET, Pierre – La communauté virtuelle: Action et communication. Combas: L’Éclat, 1994, pp. 21 e ainda LIVET, Pierre – Ibidem, pp. 279-280).

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È da ilustração destes aspectos, exemplos da introjecção do público no periódico, que pode equacionar-se o jornal como objecto, enunciado e obra, encontrando o seu acabamento no momento em que este, que é lido, constrói o que lê.

História, Memória e Linguagem

Na discursividade periodística, não é possível fazer história sem opinião pública e sem memória, nem estas sem aquelas. A história do periodismo é um processo de memória política e social, em que a história ocupa lugar proeminente, sempre num sentido pedagógico, profiláctico do temor. A pedagogia da história, que com os seus degraus mais elementares, ampara, não apenas os heróis ou acontecimentos de antanho, mas justifica ainda o processo revolucionário de represália sobre o inimigo interno ou externo, é transversal à discursividade periodística. No discurso que é, em muitos momentos, desenvolvimento de um mito nacionalista, de um recitativo sobre as origens da nacionalidade, se vemos, por um lado, a infiltração de um imaginário, por outro, parece claro que o periodista não consegue escapar ao imaginário da época em que vive, sistematizando uma nova forma de mitologia sem que, contudo, esqueçamos a função liberalizadora da memória15, e que a busca de um futuro liberto passa através do esforço para nos tornarmos donos do passado. A lembrança é o inimigo da dominação, ainda que possa existir uma memória ao serviço de uma certa dominação. Seja como for, a restauração da memória nos seus direitos, enquanto veículo de libertação, é um dos papéis mais nobres do pensamento. O processo de emancipação é, em parte, concebido como desenvolvimento da consciência de si e ressurreição do passado. A história é concebida constituindo-se em memória colectiva da humanidade, que possibilitaria tanto o aproveitamento de todas as conquistas do passado, como inferência de lições morais para não incorrer nos erros que tinham provocado em diversas épocas a blocagem da sociedade.

Da história do periodismo fala-se pouco em Portugal e o estudo dos

15 Cf. HABERMAS, Jürgen – Connaissance et Intérêt. Paris: Gallimard, 1976, capítulos sobre psicanálise.

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periódicos desta época, ou de outras, permite-nos ter acesso a um universo que é fundamental para conseguirmos entender o que foi o período do Vintismo e a antecâmara do Setembrismo. As referências, as incompletudes, enfim os paradoxos de um mundo cativante e multifacetado, em que se interpenetram, incorporam e intercompreendem vários conhecimentos, fenómenos, experiências e potencialidades, alimentam uma metodologia de aproximação a um mundo de cultura e mentalidade modernas. Por outro lado, deixam ver a sua interacção com o público, permitindo reflectir, sobre o estado do país e sobre a situação da conjuntura europeia, em que a fronteira é cada vez mais ténue, embora ainda estejamos longe do fenómeno da globalização, como o entendemos hoje.

Objecto da História, a verdade da memória é, aqui, afirmação coerente das permanências que colocam o presente como condição do desejo de reflexão multímoda, interpretação do presente com poder de transformação, inovação e resposta. Ao situar-se como uma resolução teórica para problemas, soluções escatológicas ou políticas, conatas de diferentes mundos de vida, numa antecipação estética de uma utopia do concreto, o discurso recorrente penetra um domínio que se torna visível para melhor se apresentar como liberdade.

O imaginário é, no periodismo, uma diagonal da memória, uma diagonal onto-antropológica, que é ainda transversal da liberdade, um modo de actualizar o passado no presente, que se imagina como movimento de liberdade que se mundaniza. É um acto que, no recorrer da história e na linguagem criadora, emerge como função demiúrgica16 que se articula (na herança e sequência do espectáculo público do exercício do poder barroco, da pompa e circunstância barrocas) com a necessidade do recurso à arte da palavra, ao mesmo tempo “alquimia” da palavra, isto é, as diversas passagens de grau, no sublime ou no belo, em que o poder demiúrgico do publicista é matriz do que se quer comunicar.

Trata-se do poder ontológico da linguagem, de uma acção que não se inscreve na ordem dos corpos, não é nem substância nem acidente; produz-se como efeito

16 Conferindo à linguagem uma função crucial “como se tratasse de um aparelho, à semelhança de máquinas maravilhosas”, de “fabricação”, de intervenção directa sobre a materialidade significante das palavras (cf. FOUCAULT, Michel – Raymond Roussel. Présentation de Pierre Macherey. Paris: Gallimard, 1992, p. XXIII-XXIV; veja-se ainda pp. 203-210).

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de e numa dispersão material, é da ordem do materialismo “incorpóreo”17, que se adequa à prioridade absoluta do presente em que a modernidade é uma invariante “permanência”, que não está, nem aquém, nem além do instante presente, existe nele, é condição presencial18. A entronização do presente é, no fundo, a leitura de um desejo de liberdade que se articula e adequa como resposta às exigências societais, ainda que por via da ficção realizada e institucionalizada na materialidade do discurso. O presente é neste caso uma aspiração de modernidade e a sua actualidade é um modo de ser da modernidade19.

Neste contexto, as ideias e as formas são expressamente nomeadas e a sua relação é expressamente definida, as figuras simbólicas não apresentam qualquer sentido equívoco. Apresentam-se ao público que, perante os homens e os actos, não ignora a mitologia e os atributos que carrega. Se quisermos, é um “deus” conhecido, do qual conhece a mitologia: à liberdade e à razão que a suporta é inerente a interiorização da virtude (todas as formas de virtude) para aí aceder. A dialógica no seio da qual se articulam todos estes pressupostos e se joga a liberdade, faz com que esta sofra sucessivas transfigurações, fornecendo-lhe um carácter proteiforme.

Quer isto dizer também que a memória, enquanto matéria nobre, conduz ao desenho de íntimas e voluntárias confidências dos autores e o corpo da escrituralidade não escapa aos incontornáveis desejos de arranjos das memórias do passado através da omissão, da voluntária ignorância ou da afirmação. Trata-se afinal de celebrar as grandes ocasiões “rememorativas”.

Independentemente dos objectivos, retrospectivos ou prospectivos (e a escolha do momento referencial e recorrencial é aqui fundamental em função dos objectivos a atingir), que assistem ao uso estratégico da memória, este é um facto

17 Cf. FOUCAULT, Michel – L'ordre du discours, Paris, Gallimard, 1971, pp. 59-60.18 Cf. FOUCAULT, Michel – Was ist Aufklärung (“Qu'est-ce que les Lumières?”). Magazine Littéraire. Nº 207

(Mai-1984), Paris: Magazine Littéraire, 1984, pp. 35-39, acerca do texto de KANT, Immanuel – “Resposta à pergunta: o que são as Luzes?”. Sobre este tema veja-se ainda PEREIRA, José Esteves – “Kant e a «Resposta à pergunta: o que são as Luzes»” e KANT, Immanuel – “Resposta à pergunta: o que são as Luzes?”. Cultura. História e Filosofia. Apresentação, tradução e notas de José Esteves Pereira. Vol. III (1984). Lisboa: INIC; Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa, pp. 153-168.

19 “Mas existe […] um outro modo de interrogação crítica: aquela que se vê nascer justamente na questão da Aufklärung ou no texto sobre a Revolução; esta tradição crítica coloca a questão: o que é a nossa actualidade? Qual é a campo actual das experiências possíveis? Não se trata de uma analítica da verdade, trata-se do que se poderia chamar uma ontologia do presente, uma ontologia de nós próprios […] uma ontologia da actualidade...” (FOUCAULT, Michel – Was ist Aufklärung (“Qu'est-ce que les Lumières?”). Magazine Littéraire. Nº 207 (Mai-1984), Paris: Magazine Littéraire, 1984, p. 39).

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que em circunstância alguma pode ser ignorado para uma melhor compreensão do exercício matizado do poder ficcional que penetra a materialidade perecível do discurso ou o efémero da arguição.

Neste sentido, a comemoração estimula uma parte da memória, em que o passado é, muitas vezes, a imagem do presente, numa dialéctica entre a memória da lembrança que é dada e a da história autorizada. Nas sucessivas re-escritas da história, os momentos escolhidos têm o carácter de viragem, na medida em que a parte da herança e a da inovação são reivindicadas pelo presente, que, ao inscrever-se nas filiações precedentes, legitima assim a sua prática, do mesmo modo que, ao fazer tábua rasa de um certo passado, assume a originalidade de um novo caminhar que é também dar a sua presença ao futuro. É o uso estratégico da memória.

Pode isto significar o aproveitamento histórico através de recorrências fraudulentas, com propósitos menos claros ou menos justos, que se inscrevem na instrumentalização da memória? Na verdade, a tentativa ideológica de fazer coincidir a justeza do presente com a justiça do passado, ou a injustiça do presente com a justeza do passado ou o inverso, conduz a “entorses” e perversões que outras “ortopedias” do social vão sucessivamente recompondo, tratando-se, em derradeira análise, de pensar a memória e a história como nova narrativa de um semelhante ou diferente “mundo de vida”. Na tentativa de produção de voluntários e idealizáveis consensos, em conformidade com os projectos de poder, seleccionar as epifanias e as temáticas recorrentes em que os diversos grupos sociais se projectem e se avigorem, é um vector fundamental para o exercício do poder.

Sobrevalorizar ou subvalorizar um passado histórico, agasalhar intimamente as “marcas” e os “sinais”, validar por via da emoção o que se torna acolhedor, em que o prazer da memória é o lugar da história (as “permanências” invariantes), prazentear as reminiscências e presentear a narrativa, alimentar e parasitar a lembrança, afrontá-la como reverberação narcisista e forma de auto-avaliação e de auto-representação, é, primordialmente, a arte da memória e a eficaz metodologia para fecundar o mito e regenerar a sociedade mesmo que, por vezes, com efeitos perversos.

A genealogia ideológica, ou outras, têm aqui uma função primordial. A progenitura do liberalismo, ou do autoritarismo, radica numa tradição genealógica de categorias operatórias imagético-simbólicas. As legitimidades referenciais são

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o “sangue do vampiro” do Poder que, para se legitimar, reinventa a tradição e “vampiriza” o passado, seja no sentido de alimento de novas heterodoxias e do rejuvenescimento, seja no da reprodução cíclica de velhas ortodoxias. As representações/encenações do Poder, nos seus sentidos mais abrangentes – monarquia, república, liberalismo, absolutismo –, têm a ver com o desejo de produção do consenso em relação aos projectos de Poder20 e de quem sabe que quem perde o domínio da potencialidade e da virtualidade da palavra, os seus sinergismos de acção, não controla a violência, não limita a riqueza e esvazia-se do saber, ou seja, do poder. A escolha desacertada, ou não atempadamente iniciada, pode conduzir, em função do bloqueio comunicacional, à perda do domínio da palavra como fonte última do poder21.

Opinião pública, um conceito operatório capital

É nesta actividade recorrente que deve inscrever-se, em minha opinião, uma parte da acção dos publicistas, dos divulgadores no seio do espaço público, onde ecoa a importância da sua mensagem, quando dialecticamente fazem apelo a uma prática maximizadora do discurso e a uma virtude, como poder de bem agir, o juste milieu da qualidade da vida política, no exercício do poder.

Prática maximizadora, como acção do discurso ou como discurso em acção, a palavra que circula e assiste o diálogo, no qual todos têm o poder de dizer e não se limitam à função de compreender e transmitir, actores com iniciativa que se confrontam com situações inéditas, é uma prática que se torna incomportável para a monarquia absoluta. Enquanto parte integrante do “espaçamento” do espaço

20 Cf., a propósito da memória, FENTRESS, James; WICKHAM, Chris – Memória social: Novas perspectivas sobre o passado. Tradução Telma Costa. Lisboa: Teorema, D.L. 1994, pp. 39 e ss.; CONNERTON, Paul – How Societies Remember. Cambridge, Cambridge University Press, 1989.

21 Sobre o “poder semiológico”, cf. THOM, René – Apologie du logos. Paris: Hachette, 1990, pp. 436-437 e ECO, Umberto – La recherche de la langue parfaite. Paris, Seuil, 1994, pp. 18 e 397. No centro desta pesquisa, que atravessa diversos campos disciplinares, colocam-se algumas ideias fundamentais: 1) que a escrita é um instrumento específico de poder público; 2) que a escrita de aparato constitui, ao mesmo tempo, uma espécie de imagem e o espelho do poder; 3) que o uso social da escrita é uma conquista; 4) que na margem da produção oficial do material solene escrito, sobrevive, do modo mais imprevisível, aquilo que Petrucci define como “Filoni devianti”, que se poderá traduzir por filões desviacionistas (cf. PETRUCCI, Armando – La Scrittura: Ideologia e rappresentazione. Torino: Einaudi, 1986).

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público, enquanto espaço de uma prática (acção) sem a qual não se pode falar de transformações estruturais, é uma acção teórico-prática que de modo intersticial tece a malha do espaço público liberal.

Aliás, o próprio acto de tornar públicas as normas políticas e culturais, um acto intrínseco ao novo espaço público, é a via para “muscular” o cidadão, o caminho para uma cidadania (qualidade do sujeito activo e autónomo), vista enquanto sufrágio assente na inteligência imbricada com o sentimento, olhada enquanto liberdade, instrumento de combate político e antítese do abuso do poder.

Penso não ser ocioso afirmar que se hoje se procura a “fabricação” do consenso, no período em estudo esse é um processo natural saído da intercompreensão e da proximidade dos periódicos e do público no seio do espaço público liberal. Do mesmo modo, e em contexto semelhante, face à pretensão de considerar a publicidade no século XX-XXI como uma garantia de democracia, é necessário sublinhar a oposição radical entre esta publicidade e a publicidade crítica que funda o espaço público liberal do século XVIII-XIX. Com efeito, a publicidade no nosso século privilegia a sedução à custa da verdade, enquanto o imperativo da publicidade crítica, caro aos filósofos das Luzes, substitui a autoridade pela verdade22.

Assim sendo, todos os actores são importantes. Do texto personificado ao panfleto anónimo importa sobretudo demonstrar uma unidade que conduz à acção da opinião pública. Nesta conjuntura, à “boca de cena”, no “proscénio”, o elemento mais lúcido da burguesia, desde há muito umbilical e uterinamente relacionada com a intelligentia coeva, desenvolve a sua actuação. O seu exercício encontra-se na interpenetração Sociedade/Estado e na mimetização do modelo para o desenvolvimento vindo do exterior. A sociedade é vista como uma estrutura limitada que interessa “desterritorializar” para em seguida “reterritorializar”; propõe-se uma actividade de ruptura e de reconstrução da sociedade ancorada nos valores fundiários e originais, fecundados pela modernidade, numa manifestação com carácter “messiânico” na qual as soluções perseguidas deixaram de ser escatológicas para se transmudarem em políticas e sociais, sem que, eventualmente, se excluam.

22 Cf. BOUGNOUX, Daniel - La communication par la bande. Paris: La Découverte, 1991.

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Nesta óptica, talvez possa afirmar-se que, se antes do início do século XIX não existe uma clara consciência assumida do espaço público liberal, contudo ela surge de modo subliminar, mostrando aqui e ali os atributos políticos de que se quer rodear. Deste modo, valores como liberdade, igualdade, progresso, civilização, humanidade e outros são ingredientes de comunicação de um projecto que se vai construindo nas práticas discursivas ou não discursivas, singulares ou colectivas, transversais ou lineares, que estão na origem do compromisso.

Com efeito, se podemos considerar o processo da opinião pública como um epifenómeno inevitável no dealbar do processo liberal, reflectindo o desejo de uma recentramento do poder que autorize uma partilha diferente dos centros de força institucional, isso só é possível devido aos diversos patamares de consciência psicológica, em que se incluem os conhecimentos científicos, a um novo estado de consciência do homem, que significa liberdade para aderir a um ideal, mesmo que a realidade não permita, eventualmente, pô-lo em prática.

Considerações finais

Por aqui se vê a importância desta articulação de questões, deste “caldo de cultura”, carregado de atributos, para a dialógica entre história, opinião pública e periodismo, entre forma e conteúdo, comunicação e informação, instrumento e mensagem, orientação, manipulação, e reflexão. Por um lado, o Periodismo (no seu fundamento sistémico, ético e estético), queiramos ou não, entra no domínio da utopia23, ou da distopia, permanecendo como um recurso de significação; por outro, a Opinião Pública, que, enquanto ficção institucional do Estado de Direito, na relação/oposição Sociedade/Estado, enquanto democracia em acção, exibe uma operatividade, para a qual convergem todos os princípios do regime liberal:

23 “Alavanca poderosa do estabelecimento dos novos direitos das sociedades, ao mesmo tempo que é a propulsora gigante dos desenvolvimentos materiais do século, a imprensa é principalmente isto e são estes os seus abençoados frutos, pelo que ela tem merecido em todos os países o respeito e a consideração das sociedades modernas […]. Ponha-se de parte o que a paixão nela introduz de vicioso […], a soma destes pequenos males, inerentes a todas as produções humanas, é nula diante do bem geral, dos altos benefícios, da elevação moral que o nosso povo tem sentido, depois que, nas horas de vagar de cada cidadão, o jornalismo levou a sua propaganda civilizadora” (O Algarve. Orgão do Partido Progressista nas Provincias do Sul. N.º 1 (21 Setembro – 1878). Portimão: Typ. Lealdade, 1878-1879, p. [1]).

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participação do povo, o voto, a liberdade de expressão; e, por outro ainda, a História, que, como reserva de sentido e como vector transversal, cimenta a construção da formação social em que se integra, fornecendo ao mesmo tempo a imagem do mundo no seu caos, fascinante e medonho, incontrolável como o sonho, dando um espelho aos nossos desejos mais secretos, e dando uma carne, um rosto e uma realidade aos nossos sonhos mais íntimos.

As afinidades sistémicas entre estes vectores tornam-se, no interior da rede psicopolítica, vitais para a comunicação e a informação pretendidas. Vale dizer, o Periodismo dá à História o lugar que merece no seio da Opinião Pública.

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B I B L I O G R A F I A

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RIFFATERRE, M. – “Le poème comme représentation: une lecture de Hugo”. La production

du texte. Paris: Seuil, 1979.

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RIFFATERRE, M. – Essais de stylistique structurale. Présentation et traductions par Daniel

Delas. Paris: Flammarion, 1971.

STAROBINSKI, Jean – “Préface”, in JAUSS, Hans Robert – Pour une esthétique de la réception.

Paris: Gallimard, 1978.

THOM, René – Apologie du logos. Paris: Hachette, 1990.

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DIVULGAR O CONHECIMENTO HISTÓRICOA S P U B L I CAÇ Õ E S C O L E C T I VA S

DA ACA D E M I A DA S C I Ê N C I A S D E L I S B OA S O B O L I B E R A L I S M O ( 1 8 2 0 - 1 8 5 1 )

Daniel Estudante Protásio

Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de HistóriaCEIS20, Universidade de Coimbra

Introdução

De um modo geral, é possível afirmar que a Academia das Ciências de Lisboa desempenhou um papel central na estruturação, renovação, estímulo e divulgação do conhecimento histórico português e em Portugal, no período de 1790 em diante e durante todo o século XIX. Como também é do conhecimento comum, as suas publicações colectivas, sobretudo do final do século XVIII até meados de Oitocentos, podem ser caracterizadas como colectâneas de comunicações orais ou de textos eruditos, em diversas áreas temáticas, entre elas, a da história. É importante

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distinguir as suas publicações colectivas, de natureza académica e erudita, como diferentes das da imprensa generalista, cultural e científica, casos dos Anais das Ciências, das Artes e das Letras, dos textos jornalísticos de um José Liberato Freire de Carvalho ou da imprensa de divulgação cultural e histórica de O Panorama ou da Revista Universal Lisbonense. Pelo contrário, as publicações colectivas da Academia das Ciências a que me vou referir não devem, em minha opinião, ser confundidas com imprensa científica ou periódicos culturais, devido à periodicidade irregular (anual, de dois ou de três em três anos, etc.), pelo valor científico desigual e pelo carácter relativamente monolítico e repetitivo de autores e de temas. Todavia, há nelas uma tentativa de sistematização e organização em série de trabalhos resultantes de investigação científica, com uma intencionalidade divulgativa, sobretudo dirigida à comunidade académica.

Nesse sentido, as publicações colectivas da Academia de 1820 a 1851 devem mais ao espírito do que foi publicado internamente entre 1790 e 1819 do que, em regimes liberais portugueses, foi assumido como uma missão de renovação cultural e mental, pela vulgarização de temas e textos históricos por entre população com limitadas possibilidades de acesso às colectâneas da Academia.

Por outro lado, convém também frisar que o período referido, do triénio vintista à Regeneração, abarca, sob o título genérico de Sob o Liberalismo, um período histórico que sabemos não ter sido liberal: o da regência e realeza de D. Miguel. Não me parece correcto ignorar o que foi a vida e quais as publicações colectivas da Academia das Ciências de Lisboa nesses anos de 1828 a 1834, por isso incluí os dois títulos de obras colectivas publicados em 1830 e 31.

Em termos quantitativos, o período de 1789 a 1821, pré-liberal e de início do triénio vintista, foi bastante produtivo, com 31 volumes em 33 anos, apesar de na prática em 12 desses 33 anos (nomeadamente, em 1800-1805, 1807-1811 e 1813) não se ter publicado qualquer título, alcançando-se assim uma média notável de 31 volumes em 21 anos. Muitos deles incluindo textos de qualidade díspar: basta pensar que todos já ouvimos falar dos trabalhos clássicos das Memórias de Literatura e Memórias Económicas, mas o mesmo não sucede necessariamente com os volumes da colecção História e Memórias, iniciada em 1797.

O período seguinte, de 1823 a 1851, conta com 19 volumes em 29 anos, na

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prática, 19 volumes em 17 anos, pois em 1828-29, 1832-34, 1838, 1840, 1842, 1845-47 e 1849 (todos eles períodos de agitação política e/ou guerra civil), a Academia das Ciências de Lisboa não publicou títulos colectivos. Teríamos, assim, as seguintes médias para os dois períodos:

Quadro 1:Comparação entre médias de títulos de colecções colectivas da Academia das Ciências no período em estudo e em período anterior.

Períodocronológico

Média anual de títulos publicados dentro do intervalo cronológico

considerado

Média anual efectiva de títulos publicados

1789-1821 0,94 1,48

1823-1851 0,66 (-29.79%) 1,17 (-20.95%)

Quais as razões para essa disparidade quantitativa, quando os períodos sem publicação de títulos são mais prolongados até 1821 do que posteriormente (quadro 2)?

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Quadro 2:Períodos cronológicos sem publicação de títulos colectivos da Academia das Ciências, 1800-1849.

Sequência de anos sem publicação de volumes

Períodos cronológicos considerados

Número máximo de anos sem publicação de volumes

Primeiro período 1800-1805 6 anos

Segundo período 1807-1811 5 anos

Terceiro período 1828-1829 2 anos

Quarto período 1832-1834 3 anos

Quinto período 1845-1847 3 anos

Anos isolados 1838, 1840, 1849 1 ano

É possível que as instituições culturais, como os regimes políticos, apresentem maior produtividade na fase de início de vida e que necessitem regularmente de refundações ou regenerações revitalizantes. Também não deve ser esquecido que, apesar de uma periodicidade irregular na impressão das suas obras de natureza generalista, histórica e/ou relacionada com a memória histórica, a sobrevivência da instituição não parece ter estado em causa, no período de 1789 a 1850. Que algo teria de ser mudado provam-no as alterações estatutárias de 1834, 1840 e 1852. Mas de que quantidade de volumes falamos, publicados pela Academia entre 1789 e 1850? Em 50, integrados em 6 colecções, a saber:

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Quadro 3:Resumo de informação sobre seis colecções colectivas da Academia das Ciências consideradas, 1789-1850.

Título de publicação Abreviatura Número de volumes Período de publicação

Natureza da publicação

Memórias Económicas ME 6 1789-1815 Colectânea de estudos individuais

Memórias de Literatura ML 8 1790-1814 Colectânea de estudos individuais

Colecção de Livros Inéditos CLI 5 1790-1824Compilação de

fontes inéditas ou esgotadas

História e Memórias, 1ª série HM1 20 (I a XII, 8 deles

divididos em duas partes) 1797-1839 Colectânea de estudos individuais

História e Memórias, 2ª série HM2 5 (I a III, 2 deles

divididos em duas partes) 1843-1850 Colectânea de estudos individuais

Colecção de Notícias Históricas e Geográficas

das Nações UltramarinasCNHGNU 6 (I a V e VII) 1812-1841

Compilação de fontes inéditas ou

esgotadas

Refiro especificamente obras de duas naturezas diferentes: compilação de fontes inéditas ou esgotadas, algumas precedidas de introduções ao respectivo volume ou fonte: CLI e CNHGNU (11 volumes), 1790-1841; colectâneas de estudos individuais, ME, ML e HM 1 e 2 (39 volumes), 1789-1851.

Natureza e funções

A própria natureza e função da Academia das Ciências de Lisboa parecem não ter sido colocadas em causa pelo poder político português antes do Vintismo, quando ocorreu o célebre debate parlamentar de 9 de Janeiro de 1823. Nessa ocasião, Manuel Borges Carneiro afirmou considerar dispensável a existência de

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uma academia de sábios arregimentados ao Antigo Regime, que promovia prémios científicos num mundo onde a descoberta e a inovação poderiam ser trazidas para Portugal e num reino onde a maioria da população não sabia ler nem escrever. Este episódio isolado não deixa de ser significativo, por estar relacionado com o debate do orçamento a atribuir à Academia das Ciências; e por José Francisco Correia da Serra informar então o Soberano Congresso de que não podia dar conta da utilização da dotação em período anterior, dado aquela não ser entregue há vários anos1. Uma das explicações para os hiatos de publicação colectiva, por parte da Academia das Ciências, pode ter consistido em problemas de financiamento da impressão, em épocas de crise económica e/ou orçamental2. Só um estudo aprofundado da questão a poderá esclarecer com a devida e necessária atenção.

O próprio facto de que as sociedades e nações necessitarem de estabilidade, coesão e paz internas pode explicar o contraste entre a qualidade superior dos textos incluídos em colectâneas como as Memórias de Literatura e as Memórias Económicas, por um lado e a qualidade mediana das duas séries de História e Memórias e das publicações puramente documentais da CNHGNU e da CLI, por outro. Se em 1779, 1790 ou 1806, é impensável a ocorrência de uma revolução política, de uma guerra civil ou da necessidade de exílio colectivo de intelectuais – salvo situações individuais de perseguições pela Inquisição – o mesmo não pode ser dito nas décadas de 1810 (aquando da Setembrizada) a 1840. Os conceitos de história, de divulgação cultural e de educação popular ou cívica que José Liberato Freire de Carvalho, Almeida Garrett, Alexandre Herculano e até o visconde de Santarém desenvolveram não pode ser cabalmente entendido sem as experiências de exílio pelas quais passaram. Um país em guerra civil pode produzir historiografia de qualidade e estimular um interesse inovador e metodologicamente renovador em estrangeiros, como sucedeu com Heinrich Schaefer, Ferdinand Denis e Francisco Adolfo de Varnhagen. Porém, revelou-se impossível que estes sete historiadores ou divulgadores, quatro

1 TORGAL, Luís Reis e VARGUES, Isabel Nobre - A revolução de 1820 e a Instrução Pública. Porto: Paisagem Editora, 1984, pp. 219 e ss.

2 Porém, o que Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato escreve nas suas Memórias… (MORATO, 1933, pp. 166-167, citado por LOUSADA, 1995, I, p. 334 e n. 12 e por SILVA, 2010, p. 103, n. 3), parece indicar que internamente a Academia conseguiu assegurar o pagamento da quantia que as Cortes deixaram de subsidiar. À falta de conhecimento de elementos orçamentais sistematizados, há que lidar cautelosamente com esta matéria.

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portugueses e três não-portugueses, integrassem e dinamizassem a Academia das Ciências de Lisboa ao ponto de serem símbolos e arautos da instituição, como o foram João Pedro Ribeiro, José Francisco Correia da Serra, António Ribeiro dos Santos e António Caetano do Amaral. Os conflitos internos portugueses também impediram que, à imagem dos seus antecessores, José Liberato, Garrett e Herculano ocupassem cargos e recebessem comendas e rendimentos como sucedera no Antigo Regime, na Academia Real da História e nas primeiras décadas da Academia das Ciências, quando muitos dos seus sócios financiavam desse modo os seus estudos históricos e as suas demandas documentais. Pelo contrário, dos sete historiadores e divulgadores acima referidos, com obras publicadas de 1820 a 1851, um deles não chegou a ser sócio da Academia (Schaefer), outros dois não eram então sócios (Garrett e Denis) e a esmagadora maioria dos textos que os restantes produziram não foram publicados individual ou colectivamente pela tipografia da instituição, mas sim sobretudo por editores particulares portugueses e estrangeiros, em Portugal, França e Alemanha. Há também que não esquecer que, com a excepção do Cardeal Saraiva antes de 1851 e de Herculano (já depois de 1851), os sócios efectivos da classe de literatura e de belas-letras, no final da década de 1840, não eram os historiadores que hoje podemos considerar como mais representativos da época em Portugal, antes figuras de eruditos e polemistas como Joaquim José da Costa de Macedo, João da Cunha Neves Portugal e Francisco Recreio. Muitos deles tinham já idades avançadas – Costa de Macedo com mais de 70 anos em Novembro de 1848 e José Liberato, director da classe nesse ano, com mais de 75. Nessa altura, inclusive, apenas quatro dos oito lugares de sócios efectivos estão ocupados3. Por outro lado, à veterania e experiência de vida daqueles sócios não andam associadas a juventude e energia de um Herculano ou de um Varnhagen, por exemplo, que tanto poderiam contribuir para a renovação temática das publicações colectivas da Academia das Ciências de Lisboa.

3 HISTÓRIA E MEMÓRIAS da Academia Real das Ciências de Lisboa. Tipografia da mesma Academia. 1848, pp. LXX-LXII.

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Temática e autoria textuais

Por contraste, veja-se agora qual a temática e a autoria dos textos publicados pela Academia das Ciências em 1820-51, para tentar perceber se existiu desvirtuamento dos objectivos iniciais com que as colecções colectivas foram pensadas e estruturadas. Comparem-se, aleatoriamente, as memórias publicadas em quatro volumes da colecção História e Memórias, uma por década, tanto na primeira como na segunda das séries dessa publicação.

Quadro 4:Cinco textos da colecção História e Memórias publicados em 1823 e objecto de análise.

Série, tomo e parte

Ano de publicação Autor Título Páginas

1ª, VIII, 1ª 1823 D. Francisco Alexandre Lobo

Memória histórica e crítica acerca de Frei Luís de Sousa…

Memórias dos sócios, pp. 1-101

1ª, VIII, 1ª 1823 Francisco Nunes Franklin

Memória breve de D. Jorge da Costa, Cardeal de

Alpedrinha…Memórias dos

sócios, pp. 151-166

1ª, VIII, 1ª 1823 Sebastião Francisco de Mendo Trigoso

Exame crítico das cinco primeiras edições dos Lusíadas

Memórias dos sócios, pp. 167-212

1ª, VIII, 1ª 1823Francisco Manuel Trigoso de Aragão

MoratoMemória sobre a lei das

sesmariasMemórias dos

sócios, pp. 223-234

1ª, VIII, 1ª 1823 Frei Fortunato de São Boaventura

Memória do começo, progresso e decadência da literatura grega

em Portugal

Memórias dos correspondentes,

pp. 1-54

Das oito memórias publicadas em 1823, cinco diziam respeito a temas de literatura, língua ou história. Frei Luís de Sousa, o Cardeal de Alpedrinha, as cinco primeiras edições dos Lusíadas e a literatura grega em Portugal, bem como as leis

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das sesmarias, destacavam-se como produções de pendor classicizante, de autores de ideologias tão diferentes quanto o bispo de Viseu e Frei Fortunato de São Boaventura, por um lado e Sebastião de Mendo Trigoso e Francisco Trigoso de Aragão Morato, por outro4.

Quadro 5:Três textos da colecção História e Memórias publicados em 1831 e objecto de análise.

Série, tomo e parte

Ano de publicação Autor Título Páginas

1ª, XI, 1ª 1831 José Maria Dantas Pereira

Elogio do Padre Teodoro de Almeida

História, pp.XIII-XXIII

1ª, XI, 1ª 1831 António de AlmeidaExame comparativo de crónicas portuguesas, relativamente ao Governo do Senhor Conde D.

Henrique

Memória dos sócios, pp. 45-126

1ª, XI, 1ª 1831 António de AlmeidaMemória polémica acerca da verdade da jornada de Egas

Moniz a ToledoMemória dos

sócios, pp. 127-190

Meros oito anos depois, o volume referente a 1831, em pleno reinado de D. Miguel, contém seis memórias e um elogio académico. Destes sete textos, apenas três estão de alguma forma relacionados com temas literários ou históricos: o elogio de Teodoro de Almeida por Dantas Pereira e dois trabalhos do erudito António de Almeida, a propósito de acontecimentos relativos à época do governo do conde D. Henrique e a Egas Moniz5.

4 História e Memórias…, 1823.5 História e Memórias…, 1831.

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Quadro 6:Três textos da colecção História e Memórias publicados em 1835 e objecto de análise.

Série, tomo e parte

Ano de publicação Autor Título Páginas

1ª, XI, 2ª 1835 António de Almeida Exame comparativo de crónicas portuguesas…, 2ª parte pp. 1-168

1ª, XI, 2ª 1835Francisco Manuel Trigoso de Aragão

Morato

Observações sobre a verdadeira significação da palavra privado, de que usam os nossos mais antigos documentos

e escritorespp. 169-176

1ª, XI, 2ª 1835 Joaquim José da Costa de Macedo

Aditamentos à primeira parte da Memória sobre as verdadeiras épocas em que principiam as nossas navegações e descobrimentos no oceano Atlântico

pp. 177-231

Em 1835, em pleno regime liberal, são publicadas cinco memórias, já sem as habituais divisões entre memórias de sócios e memórias de correspondentes. Dois autores voltam a assinar textos – Francisco Manuel Trigoso e António de Almeida – e o novo secretário perpétuo, Costa de Macedo, um terceiro. É de notar que esses textos de cariz histórico são a maioria entre os cinco textos então publicados. Um quarto texto, com o título «Descrição histórica e económica da vila e termo de Torres Vedras», debruça-se sobre a questão económica, tal como explica o autor, Manuel Agostinho Madeira Torres. A componente, tão significativa, de valorização da história local com uma intenção utilitária, ficara concluída em época anterior e noutro título de uma colecção colectiva da Academia das Ciências, pelo que não é aqui considerada6.

6 História e Memórias…, 1835, p. 231.

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Quadro 7:

Sete textos da colecção História e Memórias publicados em 1843 e objecto de análise.

Série, tomo e parte

Ano de publicação Autor Título Páginas

2ª, I, 2ª 1843 Manuel José Maria da Costa e Sá

Elogio histórico do Ilustríssimo e Excelentíssimo Sr. Cipriano

Ribeiro FreireHistória da

Academia, pp. I-XX

2ª, I, 2ª 1843 D. Francisco de São Luís

Memória em que se ajuntam as notícias que nos restam do Doutor João das Regras e se tocam algumas

espécies acerca da Lei Mental

Classe de Ciências Morais e Belas Letras, pp. 1-26

2ª, I, 2ª 1843Francisco Manuel Trigoso de Aragão

Morato

Memória sobre os secretários de Estado dos reis e regentes de Portugal desde os tempos antigos da monarquia até à aclamação de

El-Rei D. João IV

Classe de Ciências Morais e Belas

Letras, pp. 27-79

2ª, I, 2ª 1843 D. António da Visitação Freire

Observações sobre a divindade que os Lusitanos conheceram sob a

designação de Endovélico

Classe de Ciências Morais e Belas

Letras, pp. 81-98

2ª, I, 2ª 1843 D. Francisco de São Luís

Memórias cronológicas e históricas do governo da rainha D. Teresa

Classe de Ciências Morais e Belas

Letras, pp. 99-132

2ª, I, 2ª 1843 Francisco Freire de Carvalho

Memória que tem por objecto reivindicar para a nação portuguesa a glória da invenção das máquinas

aerostáticas

Classe de Ciências Morais e Belas

Letras, pp. 133-156

2ª, I, 2ª 1843 D. Francisco Alexandre Lobo

Breves reflexões sobre a vida de Luís de Camões escrita por Mr. Charles Magnin, Membro do Instituto, no princípio da sua

tradução dos Lusíadas

Classe de Ciências Morais e Belas

Letras, pp. 157-162

Em 1843, quando a publicação História e Memórias ia já na segunda série, a classe de Ciências Morais e Belas-Letras – nova designação da classe de Literatura e Belas-Letras – parecia querer demonstrar um esforço de renovação, com um elogio histórico e seis memórias, da autoria do futuro Cardeal Saraiva (duas), novamente de Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato, dos dois irmãos de José Liberato – D.

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António da Visitação Freire e Francisco Freire de Carvalho – e mesmo do bispo de Viseu, exilado em França por causa do seu passado miguelista7.

Por fim, em 1850, aparentemente, a classe nada produziu de relevante, pois o volume publicado nesse ano não parece conter qualquer trabalho relativo à história, à língua e à literatura8.

Quadro 8:Resumo de textos da colecção História e Memórias, nos cinco volumes considerados (1823-1850). Excluem-se discursos de circunstância e listas de empregados da instituição.

Série, tomo e parte

Ano de publicação

Total de textos publicados com relevância para o

presente estudo

Total de textos publicados de carácter histórico, literário ou linguístico

1ª, VIII, 1ª 1823 8 5

1ª, XI, 1ª 1831 7 3

1ª, XI, 2ª 1835 5 3

2ª, I, 2ª 1843 10 7

2ª II, 2ª 1850 3 0

Total: 5 tomos 1823-1850 33 (média de 6.6) 18 (média de 3.6)

Quando comparamos o número de memórias dedicadas à história, literatura e língua – 18 em 5 tomos – ou o número de memórias dedicadas a esses e outros temas – 33 – com os que José Luís Cardoso contabiliza nos cinco volumes das Memórias Económicas – 84 memórias, quase 17 por volume – o contraste é brutal e a quantidade de trabalhos produzidos e impressos em 1823-1850 modesta9. Como explicar tal discrepância? Nas já citadas Memórias… de Morato, são apontadas duas

7 História e Memórias…, 1843.8 História e Memórias…, 1850.9 CARDOSO, José Luís. Introdução e Direcção de Memórias da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento da

agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas conquistas (1789-1815). Lisboa: Banco de Portugal, 1990, p. XXIV.

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possíveis causas para a suposta decadência da Academia a partir de 1820: uma relacionada com a saída ou morte de alguns dos principais dirigentes da instituição, outra de natureza orçamental. Esta última parece não explicar cabalmente a diferença da quantidade de trabalhos especializados na Academia, como se viu atrás. A primeira, porém, nomeadamente com a saída de José Bonifácio de Andrada como secretário, o ingresso de Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato nas cortes vintistas e a morte do seu irmão, Sebastião Francisco Mendo Trigoso, em 1821, ambos vice-secretários e nessa condição auxiliares de Andrada, pode, até certo ponto, fundamentar como a alteração das dinâmicas internas de estimulação e publicação de estudos documentais e históricos, por parte de figuras-chave, contribuído, porventura, para abrandar o ritmo de publicação de textos daquela natureza10. Por fim, Maria Alexandre Lousada11 menciona como o facto de a Academia deixar de constituir uma espécie de órgão consultivo do governo, em termos histórico-políticos a partir de 1820, poder significar a secundarização da instituição: «Mas a Academia ainda esteve activa, designadamente no campo político, logo a seguir à revolução. Foi talvez mesmo o período final da sua influência», isto a propósito da necessidade de reflectir sobre a forma de organização interna das próprias Cortes liberais.

Vejamos agora o número de artigos e de páginas, bem como as temáticas abordadas e a idade de publicação do primeiro artigo nos cinco volumes considerados:

10 MORATO, Francisco Manuel Trigoso de Aragão, Memórias de …: começadas a escrever por ele mesmo em princípios de Janeiro de 1824/revistas e coordenadas por Ernesto de Campos de Andrada. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1933, pp. 65-66 e 166-167.

11 LOUSADA, Maria Alexandre, Espaços de sociabilidade em Lisboa finais do século XVIII a 1834, tese de doutoramento em Geografia Humana [Texto policopiado]. Lisboa: Universidade de Lisboa, 1995, I, p. 336.

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Quadro 9:Informação sobre autores, número de textos, número de páginas, natureza dos textos e idade aquando do primeiro texto publicado considerado.

AutoresNúmero

de artigos publicados

Número de páginas publicadas

Temáticas abordadas

Idade de publicação do primeiro artigo

consideradoFrancisco Manuel Trigoso de Aragão

Morato3 (1823, 1835,

1843) 83 (12 + 8 + 62)História

institucional e económica

46 anos

António de Almeida 3 (1831, 1835) 324 (82 + 74 + 168) Fontes cronísticas Desconhecida

D. Francisco Alexandre Lobo 2 (1823, 1843) 107 (101 + 6)

Biografia documental, Literatura

portuguesa60 anos

D. Francisco de São Luís 2 (1843) 60 (26 + 34)

História institucional e

jurídica70 anos

Francisco Nunes Franklin 1 (1823) 16 Biografia

documental 46 anos

Sebastião Francisco de Mendo Trigoso 1 (1823) 46 Literatura

portuguesa50 anos

(já falecido)Frei Fortunato de São Boaventura 1 (1823) 54 Literatura

antiga 45 anos

José Maria Dantas Pereira 1 (1831) 12 Elogio

académico 59 anos

Joaquim José da Costa de Macedo 1 (1835) 55 História dos

descobrimentos 46 anos

Manuel José Maria da Costa e Sá 1 (1843) 20 Elogio

académico 52 anos

D. António da Visitação Freire 1 (1843) 18 Arqueologia 73 anos

(já falecido)Francisco Freire de

Carvalho 1 (1843) 24 História da ciência 64 anos

Médias 18 textos 818 pp. (45.4 pp. de média por texto)

Idade média aquando de

publicação: 55 anos

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323lisbon historical studies | historiographica

Quanto ao tipo de textos publicados, os mesmos podem ser resumidos segundo as seguintes categorias:

Quadro 10:Principais géneros e temas abordados nos 18 textos considerados, por ordem decrescente de importância, 1823-1850.

Grandes géneros ou temas abordados

Categorias/conceitos utilizados para classificar os textos

Número de textos

considerados

Número de páginas dentro desse género

Literatura e cronística Literatura antiga, literatura portuguesa, fontes cronísticas 6 424 pp.

Biografia Biografia documental, elogio académico 4 155 pp.

Instituições, ordenamento jurídico História institucional e jurídica 5 142 pp.

Vários História dos descobrimentos, arqueologia, história da ciência 3 97 pp.

Total: 18 textos 818 pp.

Ou seja, em 1823-1850, a temática mantém-se aparentemente próxima da que entre 1790 e 1814 caracterizou as Memórias de Literatura. O que significa que a História e Memórias, a única publicação que sobrevive da abundância de colecções de décadas anteriores, editada de forma irregular e com contribuições de sócios bastante antigos na instituição, não pode de maneira nenhuma corresponder aos gostos de um público que, de 1834 a 1851, cultiva um interesse pela divulgação literária e histórica cada vez mais pronunciado e exigente. Progressivamente, o debate público por novos modelos políticos e sociais para o reino português e para o seu ultramar alimenta uma imprensa periódica na qual grupos de jovens autores se congregam informalmente, fundando publicações como os Anais Marítimos

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e Coloniais, O Panorama e a Revista Universal Lisbonense, efectivamente capazes de divulgar e estimular o conhecimento e a produção de textos sobre a cultura e a história de Portugal. Já em meados da década de 30, um autor como o visconde de Santarém, então com mais de quarenta e cinco anos, ficava escandalizado com a contínua rarefacção das publicações colectivas da Academia das Ciências de Lisboa, quando, por exemplo, em França, se desenvolvia um verdadeiro furor de publicações documentais e de trabalhos históricos de cunho científico12. A imprensa periódica de cunho científico também não poderia deixar de florescer em Portugal, fora da Academia das Ciências. Esta acabaria por ser gradualmente renovada por uma nova geração de historiadores, cultores das ciências e políticos, a partir de 1852, à cabeça dos quais se colocou Alexandre Herculano13. Assim se consumava uma espécie de reconciliação entre as velhas tradições de inovação metodológica e temática da instituição e a necessidade de que novos historiadores encontrassem um enquadramento formal para os debates e trabalhos colectivos que queriam introduzir nos estudos históricos em Portugal.

Principais conceitos dominantes

Num estudo desta natureza, não poderia faltar uma análise – necessariamente breve – dos principais conceitos dominantes numa amostra dos textos considerados com temáticas relevantes.

Em termos teóricos, a análise conceptual e a história conceptual são respectivamente uma ferramenta histórica e uma área da história solidamente fundamentadas e utilizadas na actualidade. Reinhardt Koselleck é um dos autores que ao longo de décadas se serviram da história conceptual. Tendo em conta a informação disponibilizada no quadro 9, realizei uma leitura integral de 8 dos 18 textos aí indicados, escritos pelos três autores que mais páginas publicaram entre

12 SANTARÉM, Visconde de. Inéditos (miscelânea), coligidos, coordenados e anotados por Jordão de Freitas… Lisboa: Imprensa Libânio da Silva, 1914, pp. 109-110, 111-112, 162 e 246.

13 Entre outros, constituída por António de Serpa Pimentel, António de Oliveira Marreca e Daniel Augusto da Silva (1852), Luís Augusto Rebelo da Silva (1854), José da Silva Mendes Leal (1855), visconde de Seabra e Vicente Ferrer Neto de Paiva (1857).

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1823 e 1843: António de Almeida, Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato e D. Francisco Alexandre Lobo. Foram responsáveis por um total de 524 das 818 páginas consideradas (64%).

A ordem de leitura foi propositadamente invertida, começando pelo autor que dos três considerados teve menos textos (2) e páginas (83) impressos, D. Francisco Alexandre Lobo; passando para Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato, com 3 textos e 107 páginas publicadas; e terminando em António de Almeida, com 3 textos e nada menos de 324 páginas publicadas (só por si responsável por 39.6% do total de páginas, em duas décadas de textos considerados relevantes).

Essa inversão foi imtencional pela seguinte ordem de razões: confirmar ou infirmar se dos três autores, o primeiro teria maior riqueza e diversidade conceptuais do que os demais, face a alguns conceitos dominantes na historiografia e divulgação histórica da época – história, raça, nação, decadência, progresso, entre outras14 – e se a análise dos principais conceitos dominantes seria útil para melhor entender as preocupações metodológicas e as características da cosmovisão histórica e cultural dos autores em questão. Serviria também para perceber até que ponto os principais pontos de vista aqui presentes seriam confirmados pela análise textual. E testar algumas ferramentas analíticas pensadas em função de outros trabalhos de maior dimensão, a propósito da Academia das Ciências de Lisboa nos seus primeiros oitenta anos de vida (1779-1859).

Começando então por D. Francisco Alexandre Lobo, das 83 páginas lidas, o número de conceitos recorrentemente detectáveis é consideravelmente reduzido, quando comparado com o que os outros dois autores manifestam. O texto mais antigo, escrito em 1819-1820, refere-se com frequência ao conceito de historiador e de obra histórica; deste último podem exemplificar-se «Escritos», «corpo de história», «crónica», «história enquanto obra», «escritos históricos», «história (…) mestra da vida»15. A propósito de Frei Luís de Sousa, o então bispo de Viseu preocupa-se em interessar o leitor com pormenores quer biográficos, quer literários,

14 MATOS, Sérgio Campos. Historiografia e Memória Nacional (1846-1898). Lisboa: Edições Colibri, 1998, pp. 350-377 e passim.

15 LOBO, D. Francisco Alexandre. «Memória histórica e crítica acerca de Frei Luís de Sousa…». História e Memórias da Academia Real das Ciências de Lisboa. Lisboa: na Tipografia da mesma Academia. 1ª série, t. VIII, parte 1ª, Memória dos sócios, 1823, pp. 63, 64, 69, 70, 82 e 85.

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que denotam um conhecimento profundo e um gosto acentuado pela história e pela literatura clássicas e nacionais. Revela claras dicotomias entre maneiras e métodos históricos diferentes, contrastantes, defendendo uma determinada maneira de escrever e analisar a história: «sizuda diligência» e «atrevido no contar», «verdade» e «paixão», comedida conjectura», «conjecturas (…) [e] ilações violentas e torcidas», «memória histórica» e «elogio», «erros de crítica» dos «cronistas monacais», «mui cega paixão nacional» e «verosimilhança»16.

Tanto no seu texto de 1823 sobre Frei Luís de Sousa quanto na resposta, vinte anos depois, a acusações de parcialidade sobre Luís de Camões, o bispo de Viseu revela uma notável constância na utilização dos vocábulos «pátria», «patriotismo» e «patriota»17. Conceitos como «nação» e «cidadão» estão presentes exclusivamente no primeiro texto, numa época que foi a da primeira experiência liberal portuguesa. Isto, num autor mais tarde conotado com a contra-revolução e que serviu política e culturalmente D. Miguel – como tal, de duvidosa adesão a tais conceitos e ao quadro mental e social que lhe andava associado18. E que, em contexto de história de literatura e história das letras nacionais, fala em declínio da produção literária no século XVII e nos acontecimentos históricos posteriores a Alcácer Quibir, não em decadência da pátria como esta era entendida no século XIX: «a nossa literatura declinou» em Seiscentos. Compara o cultivo das letras e das armas em Roma e em Portugal até 1578; refere-se à «ruína da pátria», «lutos e desemparos da sua nação», «degeneração e cobardia» em 1580, «desgraças da Pátria», mas não estende a sua análise ao passado mais recente nem à sua própria contemporaneidade19. Tendo sido um homem com uma intervenção pública, tanto política quanto religiosa, de relevo20, não parece deixar que tais experiências de alguma forma contaminem o seu discurso histórico, pelo menos no caso destes dois textos.

Outro homem público do momento foi Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato, que exerceu uma longa influência tanto a nível parlamentar (em ambas as câmaras do parlamento e em várias experiências liberais) quanto político, lente

16 Idem, Op. Cit. pp. 8, 76, 85, 91 e 94.17 Idem, Op. Cit., pp. 43, 68, 72; e Idem, 1843, pp. 157-159 e 162.18 Idem, 1823, pp. 27, 32, 39 e 100, n. b.19 Idem, Op. Cit., pp. 2, 14-15, 27 e 33 e 1843, p. 159.20 CASTRO, Zília Osório de, Dir. Dicionário do Vintismo e do primeiro Cartismo (1821-1823 e 1826-1828). S.l.:

Assembleia da República/Edições Afrontamento, 2001, I, pp. 818-823.

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universitário e académico (chegando a vice-presidente da Academia das Ciências). Enquanto Secretário de Estado do Reino, em 1834 e autor de textos sobre história institucional, económica e Ilinguística, parece ter vivido uma dupla realidade, política e cultural, cada uma influenciando-se e contaminando-se mutuamente. Em aparência, Morato parece ter olhado a realidade do passado com os olhos do presente, ele que utiliza vocábulos de um tradicionalismo ideológico próprio de quem compilou legislação dos anos de 872 a 1838 e aconselhou modelos de regime desde 1820 a 3821. Em textos publicados de 1823 a 1843, mas cujas datas de comunicação académica vão de 1822 a 38 (ano da sua morte), este autor emprega conceitos e conjuntos de conceitos como «instituições», «costumes», «costume», «estado público da Nação», «sistema da legislação portuguesa», «negócios do Estado», «expediente dos negócios», «secretário do expediente universal dos reis», «despacho ordinário dos negócios» e «membros do governo da regência», quando se refere à realidade portuguesa dos séculos XII a XVII22. O significado historiográfico e político do uso destes e de outros conceitos semelhantes prende-se, em minha opinião, com a procura da construção de uma determinada leitura do passado histórico que legitimasse as experiências institucionais dos vários modelos liberais por que Portugal passou em 1820-1823 e de 1834 em diante, em cuja vida pública este autor participou activamente. Tratou-se de uma tentativa de vislumbrar no passado, por vezes longínquo, as raízes profundas de regimes actuais que se auto-intitulavam recuperadores das antigas tradições de liberdade e de participação colectiva nas decisões do reino, numa mescla de tradicionalismo e de historicismo bastante comum nas décadas de 1820 a 1840.

Também este autor fala livremente em funções e cargos oficiais, objectos dos seus estudos, de um modo que parece compará-los com os que no seu tempo estavam em vigor: escrivães da puridade como ministros (ordinários) do expediente, validos como ministros do despacho (do expediente), secretário de embaixada, ministro, ministério; afirma que «quase se podia chamar o primeiro-ministro do reino», menciona «ministro do despacho» em 1578, ele que historiou o início da

21 Idem, Op. Cit., II, pp. 269-271.22 MORATO, Francisco Manuel Trigoso de Aragão (1823). «Memória sobre a lei das sesmarias». História e

Memórias da Academia Real das Ciências de Lisboa. Lisboa: na Tipografia da mesma Academia, 1823, pp. 223, 227, 230 e 232; Idem, 1835, p. 174; Idem, 1843, pp. 43-44, 48 e 52.

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utilização de designações como Secretários de Estado. Refira-se ainda que, para Morato, funções e cargos como historiadores, publicistas, amadores, nobiliaristas, «genealógicos», cronista e escritores são usados sem definição precisa do que cada um significa. Numa equivalência por vezes desconcertante em um autor preocupado com a precisa datação e significação do emprego de determinados conceitos em contextos históricos concretos, pelo menos a julgar pelos títulos das suas comunicações e textos23. Tal indiferenciação é tanto mais importante quanto constitui um sinal evidente de que a função do historiador e do campo historiográfico ainda não estavam autonomizados, em que ambos subsistia um claro amadorismo de erudito ou antiquário e que ainda vinha longe a época da profissionalização do historiador e do seu ofício.

Por fim, é interessante verificar como, tendo pertencido à Comissão de forais e de melhoramentos da agricultura24, na sua «Memória sobre a lei das sesmarias», lida em sessão pública da Academia das Ciências de 24 de Junho de 1822, Morato refira o conceito de decadência da agricultura pela não-aplicação daquela legislação, já no reinado de D. Fernando I, mas também durante o período dos descobrimentos. Fala em «reino empobrecido e deserto» com as conquistas da Índia, faz equivaler as conquistas militares ultramarinas portuguesas ao «luxo dos nossos maiores» e afirma-as causa para «esquecer a simplicidade dos antigos costumes portugueses» e para desprezar a importância da agricultura, «dom o mais precioso que a Providência entregou aos homens»25.

O terceiro autor em questão é António de Almeida, que Inocêncio Francisco da Silva qualificou como «homem estudioso e investigador» nas áreas da medicina e «ramos da história, arqueologia e filologia portuguesas», além de «um dos mais prestantes sócios» da Academia26. Notabilizou-se ainda pela extensão dos textos impressos em publicações colectivas da agremiação, entre outras, na História e Memórias. Numa linha de erudição documental próxima da de João Pedro Ribeiro

23 Idem, 1835, pp. 169, 170, 171, 172, 175 e 176; Idem, 1843, pp. 27, 29, 30, 31, 35, 39, 40, 42, 44, 47, 53, 58-60 e 65-66.24 CASTRO, Zília Osório de, Dir. Dicionário do Vintismo e do primeiro Cartismo (1821-1823 e 1826-1828). S.l.:

Assembleia da República/Edições Afrontamento, 2001, II p. 268.25 MORATO, Francisco Manuel Trigoso de Aragão. «Memória sobre a lei das sesmarias». História e Memórias

da Academia Real das Ciências de Lisboa. Lisboa: na Tipografia da mesma Academia, 1823, pp. 224, 225, 227, 231-232 e 234.

26 SILVA, Francisco Inocêncio da. Dicionário Bibliográfico Português. Estudos de… aplicáveis a Portugal e ao Brasil, vol. I. Lisboa: na Imprensa Nacional., 1858, I, pp. 81-82.

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(que aliás cita com frequência, tendo ambos morrido no mesmo ano de 1839, Almeida «de idade mui provecta»), parece ter estado exclusivamente preocupado com questões históricas da primeira dinastia, não sendo visível qualquer referência a assuntos da sua própria época ou a polémicas culturais/ideológicas do seu tempo. Nos textos publicados em 1831 (dois) e 1835 (um), António de Almeida apresenta-se sobretudo concentrado em definir um conceito de método histórico incompatível com falsificações e baseado sobretudo em buscas documentais em arquivos e bibliografia antiga e recente, tanto de cronistas como de investigadores – como o supracitado João Pedro Ribeiro. António de Almeida dedica nada menos de duzentas e cinquenta páginas ao «Exame comparativo de crónicas portuguesas, relativamente ao Governo do Senhor Conde D. Henrique», em duas partes, extractando grande quantidade de documentos e transcrevendo consideráveis extensões de passagens. A que junta notas críticas da sua autoria e quadro sinópticos dos principais erros cronológicos e históricos dos cronistas nacionais analisados (até ao século XVII). No caso da «Memória polémica acerca da verdade da jornada de Egas Moniz a Toledo», escrita em 1830 e impressa em 1831, Almeida analisa a veracidade da narrativa da viagem do aio de D. Afonso Henriques à corte do imperador Afonso VII, afirmando que «confirma-se a tradição pelo testemunho dos escritores» e que no caso desse relato, «tradição e túmulos prestam-se mútuo auxílio». Ou seja, a observação in loco do túmulo atribuído a Egas Moniz complementa e enriquece a análise da tradição histórica e da narração cronística27.

António de Almeida parece assim prosseguir aquela lenta, penosa e pacientíssima tradição historiográfica dos primeiros sócios da Academia das Ciências de Lisboa: joeirar documentos, arquivos e relatos cronísticos em busca de factos cronológicos e históricos, separando-os do joio fabulatório, como no caso de Frei Bernardo de Brito28. Estabelecendo o primado da «crítica histórica» herdada de outros séculos e com ela construindo bases sólidas mas modestas para um edifício historiográfico nacional que, de uma forma geral, nas décadas de 1830 e 1840, antes de Alexandre Herculano (em 1846), poucos se aventurariam

27 ALMEIDA, António de, «Memória polémica acerca da verdade da jornada de Egas Moniz a Toledo». História e Memórias da Academia Real das Ciências de Lisboa. Lisboa: na Tipografia da mesma Academia. 1ª série, t. XI, parte 1ª, Memória dos sócios, 1831, pp. 146 e 147.

28 Idem, 1835, pp. 18, 20, 21, 22, 23, 29, 30, 32, 36, 37, 70 e 71.

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a pronunciar como previsível de ser estabelecido enquanto síntese. Não antes de uma lenta acumulação de monografias analíticas ou de uma colecção de estudos complementares colectivos, cuja recolha documental inicial chegou a ser tentada em 1788-1794, numa busca de «síntese de sínteses» a concretizar numa História de Portugal29.

Parece, assim, poder concluir-se (melhor, confirmar-se) que de facto a preocupação destes e de outros autores da História e Memórias, nos textos impressos de 1823 a 1843, andava um tanto arredada da missão que literatos, historiadores e jovens aspirantes a essas funções chamavam a si fora da Academia das Ciências, como sucedia com Schaefer, Denis, Santarém, Varnhagen e Herculano. Isto é, divulgar, vulgarizar e estimular o conhecimento histórico enquanto factor de mudança e de progresso social e civilizacional. Curando as feridas da desunião nacional e de sucessivas crises governamentais, guerras civis e intervenções militares estrangeiras, de 1807 a 1851. Apesar da dimensão erudita estar presente nos autores tanto dentro quanto fora da Academia, esta não sentia como sua uma intenção e uma necessidade de divulgação que se liga a um conceito moderno de nação política e de cidadania30. Autores como D. Francisco Alexandre Lobo e António de Almeida pertenciam, pois, mais a um Antigo Regime político, cultural e mental do que a projectos regenerativos através da divulgação periódica, como sucedeu fora da Academia no período considerado de 1820 a 1851. O mesmo aconteceu com outros escritores não considerados no presente estudo, como Frei Fortunato de São Boaventura e José Maria Dantas Pereira, também ligados ao movimento miguelista.

29 MATOS, Sérgio Campos, «Los 98 Ibéricos y el mar». Madrid: Comisaría General de España/Expo Lisboa ’98, 1998, p. 56.

30 MATOS, Sérgio Campos. Historiografia e Memória Nacional (1846-1898). Lisboa: Edições Colibri, 1998, pp. 15 e ss e 36 e ss.

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331lisbon historical studies | historiographica

F O N T E S E B I B L I O G R A F I A

ALMEIDA, António de - «Exame comparativo de crónicas portuguesas, relativamente ao

Governo do Senhor Conde D. Henrique, 1ª parte». História e Memórias da Academia

Real das Ciências de Lisboa. Lisboa: na Tipografia da mesma Academia. 1ª série, t. XI,

parte 1ª, Memória dos sócios, 1831, pp. 45-126.

ALMEIDA, António de - «Memória polémica acerca da verdade da jornada de Egas Moniz a

Toledo». História e Memórias da Academia Real das Ciências de Lisboa. Lisboa: na Tipografia

da mesma Academia. 1ª série, t. XI, parte 1ª, Memória dos sócios, 1831, pp. 127-190.

ALMEIDA, António de - «Exame comparativo de crónicas portuguesas…, 2ª parte».

História e Memórias da Academia Real das Ciências de Lisboa. Lisboa: na Tipografia da

mesma Academia. 1ª série, t. XI, parte 2ª, 1835, pp. 1-168.

CARDOSO, José Luís - Introdução e Direcção de Memórias da Academia Real das Ciências

de Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em Portugal, e suas

conquistas (1789-1815), Lisboa: Banco de Portugal, 1990.

CASTRO, Zília Osório de, Dir. - Dicionário do Vintismo e do primeiro Cartismo (1821-1823 e

18286-1828). S.l.: Assembleia da República/Edições Afrontamento, 2001, 2 vols.

LOBO, D. Francisco Alexandre - «Memórias histórica e crítica acerca de Frei Luís de

Sousa…». História e Memórias da Academia Real das Ciências de Lisboa. Lisboa: na

Tipografia da mesma Academia. 1ª série, t. VIII, parte 1ª, Memória dos sócios,

1823, pp. 1-101.

LOBO, D. Francisco Alexandre - «Breves reflexões sobre a vida de Luís de Camões escrita

por Mr. Charles Magnin, Membro do Instituto, no princípio da sua tradução dos

Lusíadas». História e Memórias da Academia Real das Ciências de Lisboa. Lisboa: na

Tipografia da mesma Academia. 2ª série, t. I, parte 2ª, Classe de Ciências Morais e

Belas Letras, 1843, pp. 157-162.

LOUSADA, Maria Alexandre - Espaços de sociabilidade em Lisboa: finais do século XVIII a

1834. Tese de doutoramento em Geografia Humana [Texto policopiado]. Lisboa:

Universidade de Lisboa, 1995, 2 vols. (1 de anexos).

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332 historiografia e res publica

MATOS, Sérgio Campos - Historiografia e Memória Nacional (1846-1898). Lisboa: Edições

Colibri, 1998.

MATOS, Sérgio Campos - «Los 98 Ibéricos y el mar». Madrid: Comisaría General de

España/Expo Lisboa ’98, 1998.

MORATO, Francisco Manuel Trigoso de Aragão - «Memória sobre a lei das sesmarias».

História e Memórias da Academia Real das Ciências de Lisboa. Lisboa: na Tipografia da

mesma Academia. 1ª série, t. VIII, parte 1ª, memórias dos sócios, 1823, pp. 223-234.

MORATO, Francisco Manuel Trigoso de Aragão - «Observações sobre a verdadeira

significação da palavra privado, de que usam os nossos mais antigos documentos e

escritores». História e Memórias da Academia das Ciências de Lisboa. Lisboa: na Tipografia

da mesma Academia. 1ª série, t. XI, parte 2ª, 1835, pp. 169-176.

MORATO, Francisco Manuel Trigoso de Aragão - «Memória sobre os secretários de

Estado dos reis e regentes de Portugal desde os tempos antigos da monarquia até à

Aclamação de El-Rei D. João IV». História e Memórias da Academia Real das Ciências de

Lisboa. Lisboa: na Tipografia da mesma Academia. 2ª série, t. I, parte 2ª, Classe de

Ciências Morais e Belas Letras, 1843, pp. 27-80.

Memórias de …: começadas a escrever por ele mesmo em princípios de Janeiro de 1824/revistas e coordenadas

por Ernesto de Campos de Andrada. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1933.

SANTARÉM, Visconde de - Inéditos (miscelânea), coligidos, coordenados e anotados por Jordão de

Freitas… Lisboa: Imprensa Libânio da Silva, 1914.

SILVA, Francisco Inocêncio da - Dicionário Bibliográfico Português. Estudos de… aplicáveis a

Portugal e ao Brasil, vol. I. Lisboa: na Imprensa Nacional, 1858.

SILVA, Taíse Tatiana Quadros da - Maquinações da Razão Discreta: operação historiográfica e

experiência do tempo na Classe de Literatura Portuguesa da Academia Real das Ciências de

Lisboa (1779-1814). Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em História Social (texto policopiado). Rio de Janeiro: Instituto de Filosofia e

Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010, 314 pp.

TORGAL, Luís Reis e VARGUES, Isabel Nobre - A revolução de 1820 e a Instrução Pública.

Porto: Paisagem Editora, 1984.

HISTÓRIA E MEMÓRIAS da Academia Real das Ciências de Lisboa. Tipografia da mesma

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333lisbon historical studies | historiographica

Academia. 1ª série, t. VIII, parte 1ª, 1823; t. XI, parte 1ª, 1831; t. XI, parte 2ª, 1835;

2ª série, t. I, parte 2ª, 1843, t. II, parte 1ª, 1848, t. II, parte 2ª, 1850.

A N E X O

Listagem dos dezoito textos considerados no presente trabalho, 1823-1843.

Série, tomo e parte

Ano de publicação Autor Título Páginas

1ª, VIII, 1ª 1823 D. Francisco Alexandre Lobo

Memória histórica e crítica acerca de Frei Luís de Sousa…

Memórias dos sócios, pp. 1-101

1ª, VIII, 1ª 1823 Francisco Nunes Franklin

Memória breve de D. Jorge da Costa, Cardeal de

Alpedrinha…Memórias dos

sócios, pp. 151-166

1ª, VIII, 1ª 1823 Sebastião Francisco de Mendo Trigoso

Exame crítico das cinco primeiras edições dos Lusíadas

Memórias dos sócios, pp. 167-212

1ª, VIII, 1ª 1823Francisco Manuel Trigoso de Aragão

MoratoMemória sobre a lei das

sesmariasMemórias dos

sócios, pp. 223-234

1ª, VIII, 1ª 1823 Frei Fortunato de São Boaventura

Memória do começo, progresso e decadência da literatura grega em

Portugal

Memórias dos correspondentes,

pp. 1-54

1ª, XI, 1ª 1831 José MariaDantas Pereira

Elogio do Padre Teodoro de Almeida

História, pp. XIII--XXIII

1ª, XI, 1ª 1831 António de AlmeidaExame comparativo de crónicas portuguesas, relativamente ao Governo do Senhor Conde D.

Henrique, 1ª parte

Memória dos sócios, pp. 45-126

1ª, XI, 1ª 1831 António de AlmeidaMemória polémica acerca da verdade da jornada de Egas

Moniz a ToledoMemória dos sócios,

pp. 127-190

1ª, XI, 2ª 1835 António de Almeida Exame comparativo de crónicas portuguesas…, 2ª parte pp. 1-168

1ª, XI, 2ª 1835Francisco Manuel Trigoso de Aragão

Morato

Observações sobre a verdadeira significação da palavra privado,

de que usam os nossos mais antigos documentos e escritores

pp. 169-176

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334 historiografia e res publica

1ª, XI, 2ª 1835 Joaquim José da Costa de Macedo

Aditamentos à primeira parte da Memória sobre as verdadeiras épocas em que

principiam as nossas navegações e descobrimentos no oceano

Atlântico

pp. 177-231

2ª, I, 2ª 1843 Manuel José Maria da Costa e Sá

Elogio histórico do Ilustríssimo e Excelentíssimo Sr. Cipriano

Ribeiro FreireHistória da

Academia, pp. I-XX

2ª, I, 2ª 1843 D. Francisco deSão Luís

Memória em que se ajuntam as notícias que nos restam do Doutor João das Regras e se

tocam algumas espécies acerca da Lei Mental

Classe de Ciências Morais e Belas Letras, pp. 1-26

2ª, I, 2ª 1843Francisco Manuel Trigoso de Aragão

Morato

Memória sobre os secretários de Estado dos reis e regentes de Portugal desde os tempos antigos da monarquia até à Aclamação

de El-Rei D. João IV

Classe de Ciências Morais e Belas

Letras, pp. 27-80

2ª, I, 2ª 1843 D. António da Visitação Freire

Observações sobre a divindade que os Lusitanos conheceram sob

a designação de Endovélico

Classe de Ciências Morais e Belas

Letras, pp. 81-98

2ª, I, 2ª 1843 D. Francisco deSão Luís

Memórias cronológicas e históricas do governo da rainha

D. Teresa

Classe de Ciências Morais e Belas

Letras, pp. 99-132

2ª, I, 2ª 1843 Francisco Freirede Carvalho

Memória que tem por objecto reivindicar para a nação

portuguesa a glória da invenção das máquinas aerostáticas

Classe de Ciências Morais e Belas

Letras, pp. 133-156

2ª, I, 2ª 1843 D. Francisco Alexandre Lobo

Breves reflexões sobre a vida de Luís de Camões escrita por Mr. Charles Magnin, Membro do Instituto, no princípio da sua

tradução dos Lusíadas

Classe de Ciências Morais e Belas

Letras, pp. 157-162

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O CONTRIBUTO D’O PANORAMANA DIVULGAÇÃO HIST ÓRICA EM

P ORTUGAL NO SÉCULO XIX (1837 -68)*

Ricardo de BritoCentro de História, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa

O regime monárquico constitucional estabeleceu-se, de forma definitiva, após a guerra civil que colocou em confronto liberais e absolutistas (1832-34). A possível estabilidade política, contudo, só veio apenas em meados do século, período em que se consumou a forma final do regime liberal como resultado último das disputas entre as diferentes famílias liberais (setembristas e cartistas). Não obstante o período de instabilidade política que em grande medida caracterizou a primeira metade de oitocentos, observamos o emergir - ou a tentativa de - de um novo modelo político, social e económico (com raízes no Vintismo1) que, paulatinamente, veio a mudar a sociedade portuguesa.

* Este artigo teve por base o verbete publicado no Dicionário de Historiadores Portugueses. Mantendo, tendencialmente, a mesma estrutura, alargou-se e aprofundou-se alguns pontos.

1 Isabel Nobre Vargues - A aprendizagem da cidadania em Portugal (1820-1823). Coimbra: Minerva, 1997.

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Estas mudanças podem ser observadas sobre vários prismas, mas para o nosso caso interessam-nos, em particular, dois aspectos: o movimento associativo com fortes raízes no século XVIII, mas com um crescimento notório a partir de 1834 (sociedades patrióticas, científicas, culturais e industriais), e a imprensa periódica, que vinha a desenvolver-se de forma significativa e com diferentes matizes desde a primeira década de oitocentos, com melhoramentos técnicos, e, mais importante, com o surgimento da lógica de um espaço público de discussão. Estes dois eixos assumem particular destaque, quer pela sua expansão considerável mas também pelos seus intuitos. Desenvolvimentos que, conjugados ou como fruto de uma nova e dinâmica cultura política, estabeleceram novas necessidades de divulgação da memória histórica2. É pois num contexto de mudanças políticas, sociais, culturais e técnicas que temos de compreender O Panorama, periódico de grande influência em Portugal durante uma boa parte do século XIX.

Criação, programa e evolução

Apesar da longevidade não constituir a norma nas publicações periódicas da altura, a história d´O Panorama estende-se por várias décadas. Mesmo com algumas interrupções e mudanças de proprietário, foi publicado entre 1837 e 1868, perfazendo cinco séries variáveis em extensão: 1837-41, 1842-44, 1846-56, 1857-58 e 1866-68. Em Fevereiro de 1837, deu-se a conhecer ao público que ainda naquele ano apareceria um novo jornal, sendo a notícia acompanhada de alguns pontos que deixavam a antever as principais linhas orientadoras: “alguns cidadãos portugueses, amigos da verdadeira ilustração, conceberam o projecto de derramar, por meio de uma publicação semanal, a maior cópia possível de conhecimentos úteis, procurando para esse fim aproveitar os vastos subsídios que lhes fornecem as obras periódicas dos outros países”3. Como referimos, Portugal encontrava-se num período de instabilidade e luta política (a Revolução setembrista em 1836 e

2 Sérgio Campos Matos - Historiografia e memória nacional no Portugal do século XIX : 1846-1898. Lisboa: Colibri, 1998, p. 131.

3 Diário do Governo, nº 44, p. 284,1837, Cit. Jacinto Baptista - Alexandre Herculano Jornalista. Amadora: Bertrand, 1977, p. 21.

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o contra golpe cartista ainda nesse mesmo ano, a Belenzada), o que influenciou os promotores da iniciativa a excluírem das páginas do jornal o debate político ou partidário, “As discussões políticas exaltam os espíritos mais moderados, e assumem, mais dia menos dia, um carácter particular e pessoal que não quadra nos periódicos literários”4. O Panorama seria, assim, um periódico estritamente instrutivo, tendencialmente independente, apolítico e cingindo-se à divulgação de conhecimentos.

Em Maio de 1837, saiu o primeiro número d´O Panorama como órgão da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis5. Formada por acções, funcionando, assim, numa lógica de lucro, contando com um capital inicial de 10 contos de reis, divididos em 2000 acções6, a Sociedade contou entre os seus accionistas iniciais a Rainha D. Maria II7. O nome da sociedade revelava desde logo influência estrangeira: quer o seu nome como o jornal em si, encontravam a sua matriz inspiradora no contexto britânico, com a Society for the Diffusion of Useful Knowledge (fundada em 1826) e o jornal The Penny Magazine (1832-45). Facto, aliás, assumido pelos redactores8. Também em Espanha o modelo deste jornal londrino fora adoptado pelo Semanario Pintoresco Español (1836-1857)9, possivelmente o melhor ponto comparativo com o jornal português no cenário ibérico, quer em termos de extensão como de conteúdos10. Adoptou-se, inicialmente, a mesma estrutura do jornal londrino: duas colunas, tendencialmente com oito páginas cuja numeração seria contínua nos números posteriores (modelo em fascículo para fazer colecção). Com um custo de $25 avulso, mas com a possibilidade de assinaturas anuais, semestrais ou trimestrais, os promotores da Sociedade mantinham o custo de aquisição baixo, de forma a chegar ao maior público possível - entenda-se, as classes mais baixas. No 1º número encontramos os intuitos programáticos,

4 Idem, ibidem. 5 Estatutos da Sociedade Propagadora de Conhecimentos Úteis. Lisboa: Imprensa Nacional/Sociedade Propagadora de

Conhecimentos Úteis, 1837.6 Relação dos Cem Maiores Accionistas, de que Será Composta a Próxima Assembleia-Geral da Sociedade Propagadora

de Conhecimentos Úteis na Conformidade do Artigo 37 dos Estatutos. Lisboa: Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis (impresso na Imprensa Nacional) 1837.

7 Veja-se o Índice ao primeiro volume (1837).8 O Panorama, nº 36,1837, p. 19 Juan Francisco Fuentes, Javier Fernández Sebastián - Historia del periodismo Español, Prensa, Política y Opinion

pública en la España Contemporánea. Madrid: Editorial Síntesis, 1997, p. 65. 10 De facto, os dois jornais são muito parecidos. O periódico espanhol encontra-se disponível na Hemeroteca

Digital Hispânica: http://hemerotecadigital.bne.es/details.vm?lang=es&q=id:0003096384.

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agora mais desenvolvidos, numa “Introdução” escrita pelo primeiro redactor d´O Panorama, Alexandre Herculano11 (sobre forma de anonimato, opção adoptada pelos promotores para os redactores):

Neste estado, pois, da ilustração e do progresso, o que mais importa é o

dilatar por todas as nações, e introduzir em todas as classes da sociedade o amor

da instrução, porque este é o espirito do nosso tempo, e porque esta tendência é

generosa e útil.” (...) “A nação portuguesa, cumpre confessa-lo, é uma das que menos

tem seguido este movimento progressivo da humanidade. No nosso povo ignora

imensas coisas que muito lhe importava conhecer, e esta falta de instrução sente-se

até nas classes, que, pela sua posição social, deviam ser ilustradas. Entre os mesmos

homens dados às letras, se acha falharem repetidas vezes, as noções elementares

de tudo o que não é objecto do seu especial estudo, e a ciência em Portugal está

ainda longe de ter aquele caracter de unidade, que ganha diariamente no meio de

outras nações” (...) “Assim a Sociedade Propagadora dos conhecimentos uteis julgou

dever seguir o exemplo dos países mais ilustrados, fazendo publicar um jornal que

derramasse uma instrução variada, e que pudesse aproveitar a todas as classes de

cidadãos, acomodando-o ao estado de atraso, em que ainda nos achamos. Esta nobre

empresa será por certo louvada e protegida por todos aqueles, que amam deveras

a civilização da sua pátria12

Reforçada a premissa de uns meses antes, a ideia era utilizar o jornal como veículo para compensação das carências escolares dos estratos sociais mais baixos da população portuguesa (daí o seu custo reduzido) e duma formação superior aparentemente deficitária, revelando um carácter interclassista. Estávamos perante a ideia de que seria o jornal, e não o livro, a ser utilizado como instrumento para exercer uma função regeneradora, de evolução da sociedade e, em última instância, do progresso do país13. De forma a conseguir esse progresso, cumpria

11 António Feliciano de Castilho tinha sido a primeira escolha para redactor principal, contudo, declinou o convite sugerindo para essa função Alexandre Herculano. Este, que no ano anterior tinha sido o bibliotecário da Biblioteca Pública do Porto, acumulou no Panorama as funções de director, chefe de redacção e de paginador.

12 O Panorama, "Introdução", nº 1, 1837, p. 2. 13 Maria Lourdes dos Santos, Intelectuais Portugueses na Primeira Metade de Oitocentos, Lisboa, Presença, 1988, p. 165.

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a disseminação de diferentes “conhecimentos úteis”, de “instrução variada”, empregando as palavras de Herculano. Os temas encontravam-se explanados nos próprios estatutos da sociedade (art. 47º): história nacional e estrangeira, biografias (de militares, eclesiásticos, entre outros), geografia, literatura, direito, economia, comércio, desenvolvimentos técnicos quer a nível industrial como na agricultura, fauna e flora, algumas noções de higiene, entre outros. Sem dúvida que pela abrangência de matérias o nome do jornal caracterizava a síntese pretendida. Convém, não obstante, recordar que O Panorama herdou parte da tradição iluminista do enciclopedismo, característica aliás visível em outros periódicos da altura, como o Arquivo Popular (1837), Arquivo Pitoresco (1857) ou o Arquivo Universal (1859).

A qualidade do jornal, quer em termos técnicos14 como de conteúdos, talvez explique o sucesso que aparentou ter numa fase inicial. Ainda no primeiro ano deu-se a notícia de que o quinto número do jornal tinha atingido o significativo número de 5000 exemplares, “caso único em a história das publicações periódicas em Portugal”15. Convém no entanto referir que comparativamente com a sua inspiração britânica, O Panorama era consideravelmente menor em tiragem, na medida em que o The Penny Magazine, em 1837, tinha atingido os 300.000 exemplares16. Estávamos desta forma perante contextos populacionais e públicos diferentes, o que fez com que, passado um ano em circulação, os redactores d´O Panorama tivessem de adoptar uma nova estrutura. Num balanço anual, e após compreender a recepção por parte do público, Herculano estabelecia um novo formato, não sem antes traçar um «diagnóstico» do público leitor português destes tipos de jornais “populares”, dividindo-o em três classes:

a primeira é a dos que pertendem [sic] só instrução, sem lhes importar a

forma (...) são estes poucos; a segunda classe, que é a mais numerosa, consta daqueles

que gostam de instruir-se recreando-se; a terceira enfim, é formada pelos que só na

leitura buscam passatempo para matar o tempo (...) doentia é a compleição moral

destes, difícil a sua cura; mas por isso mesmo nãos os devemos abandonar: com o

14 Uma forte aposta em gravuras de boa qualidade. 15 O Panorama, "Galicismos", nº 7, 1837, pp. 52-53.16 Jacinto Baptista, op. cit., p. 26.

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uso de ler, porventura adquirirão o amor dos conhecimentos mais solidos, ou pelo

menos tomarão a leitura por habito, e na falta de coisas superficiais, alguma vez

recorrerão a escritos mais instrutivos e profundos.17

A dimensão e o interesse dos diferentes públicos, sintomaticamente aqui expostos, revelavam as limitações da época. Não é por isso de admirar que outras iniciativas editoriais da mesma altura não tivessem longevidade, embora encontremos alguns exemplos de periódicos que conseguiram, mesmo assim, uma vida relativamente longa, casos do Arquivo Popular, Biblioteca Familiar e Recreativa (1835-42), O Recreio (1835-41) e O Ramalhete (1837-44)18. Para que O Panorama continuasse a ter sucesso perante o público, e após o diagnóstico feito por Herculano, foi então projectado um novo formato. A opção tomada foi relativamente simples: dividir cada número em duas partes relativamente distintas; ou seja, manteria a estrutura prévia, mas reformulando-a. A primeira incluiria artigos mais extensos, com temáticas mais profundamente analisadas e subordinadas às áreas das ciências naturais, temas históricos, geografia, topografia, monumentos, economia, literatura, entre outros. A segunda incluiria artigos mais breves, com linguagem mais acessível e sobre temas que pudessem, oportunamente, interessar a um público mais vasto. A «ciência» não estaria ausente destes breves textos, mas seria vocacionada para, julgamos nós, preocupações mais prementes. Começamos a encontrar igualmente curiosidades e também anedotas. Mantendo esta estrutura inalterada até à extinção do jornal, O Panorama aparentou ter tido sucesso fora dos centros urbanos (tradicionalmente com públicos menos propensos à leitura deste tipo de imprensa), sendo lido em assembleia nas povoações rurais19. Chegou, inclusivamente, a atravessar o Atlântico sendo lido nos Açores, Madeira e Brasil, contando com figuras deste último como colaboradores, como por exemplo Francisco Adolfo de Varnhagen20.

A publicação decorreu com relativa normalidade até 1839, ano em que Alexandre Herculano fez publicar o último número enquanto redactor principal21,

17 O Panorama, "Aos assinantes", nº 36, 1837, p. 1. 18 Maria Lourdes Santos, op. cit., p. 167. 19 O Panorama, "Introdução", nº 192,1841, p. 2.20 O Panorama, "Aos leitores", nº 1,1842, p. 1. 21 Despediu-se dos leitores numa pequena nota, O Panorama, nº 115, 1839, p. 221.

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saindo para ir ocupar o cargo de Director das Bibliotecas Reais da Ajuda e Necessidades, após nomeação do rei D. Fernando. Terminada a passagem de Herculano pelo jornal (consta-se que contribui, ainda que episodicamente, com algumas colunas), foi, curiosamente, Feliciano de Castilho a assumir o cargo de redactor até 1841, altura em que saiu para dirigir um outro periódico, a Revista Universal Lisbonense, entre 1841-45. Depois de Castilho, seria António de Oliveira Marreca a ficar à frente da 2ª série até 1843. Em 1844, terminavam as séries d´O Panorama associadas à Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, por extinção desta, fruto do decréscimo do pagamento das assinaturas que possivelmente colocou em causa a sustentabilidade financeira da Sociedade. A falta de pagamento das assinaturas esteve recorrentemente citada nas páginas do jornal22.

Voltamos a ver O Panorama disponível ao público passados dois anos, em 1846, pela iniciativa do tipógrafo-editor António José Fernandes Lopes (que também viria a lançar a Ilustração Luso-Brasileira. Jornal universal, entre 1856-59). A ideia era apenas a de relançar o jornal, sem grandes alterações, “Este jornal compor-se-á, como d´antes, de tudo que se julgar de préstimo em descobrimentos científicos, em aperfeiçoamentos de indústria, e nos inventos em arte, a par das novidades notáveis. Sem ser rigorosamente noticiador acompanhara o andamento do século em todos os seus aspectos”23. Tinha-se como objectivo lançar cerca de 52 números anuais, contudo, vindo a lume em Setembro, sofreu frustrações inerentes ao novo conflito em marcha, a Guerra da Patuleia. Só em 1852 é que alcançaria os números anuais pretendidos, publicando regular e sistematicamente desde então. Em 1858, seria suspensa a publicação. Esta suspensão durou até 1866, altura em que O Panorama foi novamente ressuscitado (pelo mesmo tipógrafo em colaboração com a Tipografia Franco-Portuguesa), publicando-se até 1868, ano da extinção definitiva do jornal.

A persistência de publicação que permitiu a longevidade do jornal mostra a reputação da publicação. De facto, já em meados do século, são reveladoras as palavras de Rebelo da Silva (um dos mais destacados discípulos de Herculano) e de Lopes de Mendonça, numa “Introdução” aos Anais das Ciências e Letras, de 1857, “O mais admirável instrumento de iniciação intelectual, no atraso relativo

22 Por exemplo, O Panorama, nº 28, 1837, p. 224. 23 O Panorama, "Introdução", nº 1, 3ª série, 1846, p. 2.

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em que existíamos, manifestou os seus efeitos desde logo, e, redigido por algumas das capacidades mais distintas deste país, que hoje temos a honra de contar no nosso número de sócios, aperfeiçoou a língua, desenvolveu o gosto pelas letras, fez reviver as nossas tradições na imaginação popular, e por ele se deu voo e impulso a essas vocações novas que vemos gradualmente hoje sobressaindo em todas as esferas da actividade social”24. Não obstante, parece ter existido a coeva noção de que O Panorama, após as primeiras séries, perdera alguma qualidade. Tal ideia é expressa por José Silvestre Ribeiro, quando refere que “Em 1857, quando ainda se publicava o Panorama da 3ª série, se disse: Este periódico... é hoje apenas um eco do que foi, e, se vive, é à sombra dos títulos de estima pública e créditos intelectuais que soube granjear e firma em padrão, que a lembrança dos homens lidos respeitará ainda por muito tempo”25. É verdade que o jornal já não contava com as contribuições sistemáticas de Alexandre Herculano, Feliciano Castilho, José Félix Henrique Nogueira ou de Rafael Bordalo Pinheiro, mas entre as suas colunas encontraremos nomes como Luís Augusto Rebelo da Silva, Inácio Vilhena Barbosa, Francisco Gomes de Amorim, António Pedro Lopes de Mendonça, o próprio Silvestre Ribeiro, Camilo Castelo Branco, Manuel Pinheiro Chagas, daí que julgamos discutível a coeva ideia de que O Panorama perdera, de facto, qualidade. A resposta poderá ser outra, intimamente ligada com as mudanças que começavam a operar na sociedade e no mercado literário.

Numa análise sobre a imprensa periódica, Alexandre Herculano, já em 1838, destacou a Revista Literária do Porto, primeiro exemplo dum género que começava a surgir. Em sua opinião, tendo como base a evolução da imprensa deste género no resto da Europa, vislumbrava que o modelo d´O Panorama, de jornal popular, após cumprida a sua missão de função social, extinguir-se-ia ou, pelo menos, evoluiria para o modelo de revista. É que se o modelo de jornal popular era o oposto ao das revistas científicas e literárias em voga no século XVIII (mas mantendo algumas características), as revistas literárias oitocentistas conseguiriam conjugar os dois modelos, reflectindo assim a mudança operada (ou esperada) na sociedade

24 Apud, Maria Lourdes dos Santos, op. cit., p. 169. 25 José Silvestre Ribeiro - História dos Estabelecimentos Científicos, Literários e Artísticos de Portugal. Tomo VIII, 1881, p. 26.

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portuguesa26. Poder-se-ia, porventura, discutir se o modelo de jornal filiado n´O Panorama se extinguiu de facto ou se se modificou27, mas o mercado literário nacional, com diferentes preocupações e com uma renovação geracional a partir da década de 1860, veio a privilegiar novos formatos, como por exemplo as revistas ilustradas em que se destacava a imagem (O Ocidente, 1878-1914), dando maior ênfase à vertente lúdica e recreativa28.

Conteúdos

Feita a revista dos intuitos programáticos e, de forma sintética, da história d´O Panorama, foquemo-nos agora nos seus conteúdos, parte substancial do jornal. Como deixamos a antever, ao longo dos anos chegaram às páginas deste periódico diferentes contributos, tematicamente diversificados. A premissa central, exposta nos intuitos programáticos, foi a da instrução ou, nas palavras dos promotores, o seu “derramamento” - em particular, uma instrução com uma vertente popular. Várias vezes apontada, sob diferentes primas é certo29, esta linha editorial reflectiu a orientação de um movimento cultural que começava a consolidar-se em Portugal: o romantismo30. O intelectual romântico, em especial numa primeira fase deste movimento, assumiu-se como educador - em grande medida fruto das suas experiências no exterior - fazendo, assim, parte da sua acção social a promoção da educação como instrumento para um novo modelo de progresso e construção de uma nova sociedade31. Seria porventura ocioso, pois não é o objecto deste trabalho, referirmos que o debate em torno educação seria posteriormente recuperado, embora com outros moldes, em especial a partir de 1870. Constituindo um dos seus eixos principais, a educação proposta pelo intelectual romântico, apesar de abrangente, concedia particular relevo à divulgação histórica, servindo esta

26 O Panorama, "Revista Literária", nº 76, 1838, p. 326. 27 Jacinto Baptista, op. cit., p. 64. 28 Sérgio Campos Matos, op. cit., pp. 146-147. 29 Por exemplo, "Instrução popular", nº 5, 1837, p. 36; "Da educação intelectual", nº 27, 1837, p. 214.; "Da

educação em todas as idades", nº 122 , 1839, pp. 278-79 ou "O ensino público", 2ª série, nº10, 1842, pp. 78-7930 José Augusto França - O Romantismo em Portugal, estudo de factos socio-culturais. Lisboa: Livros Horizonte, 1983. 31 Fernando Catroga - «Romantismo, literatura e história», in História de Portugal (coord. Luís Reis Torgal e João

Lourenço Roque), vol. V. Lisboa: Circulo de Leitores, 1993 p. 545.

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evocação do passado para dar forma a uma nova identidade nacional, numa altura de formação do Estado-Nação32. Não é pois por acaso que Oliveira Martins dedique a este jornal algumas linhas na sua obra Portugal Contemporâneo, precisamente num sub-capítulo intitulado “Renascimento”:

Agora, em Lisboa, o renovador dos estudos, chefe da nova escola, criava a

«sociedade propagadora dos conhecimentos úteis», cujo órgão, o Panorama, adquiria

uma circulação extraordinária. Não havia outra coisa que ler, e ler começava a ser

moda ma sociedade das luzes, como diziam, em ironia e despeito, os antigos. O

Panorama trazia bonecos e receitas, além de trazer os estudos iniciadores da tradição

nova, assinados «A.H.»33

De facto, e demonstrativo de que O Panorama foi, possivelmente, um dos primeiros e mais exemplificativos jornais românticos34, observamos que a divulgação histórica constituiu parte central nos seus conteúdos, em particular do período medievo35. Apesar da diversidade temática, vemos que entre 1837 e 1844, os temas gerais que mereceram maior divulgação foram: História (destacado), Geografia e Literatura; num segundo plano, os campos ligados à Técnica, Agricultura, Conselhos úteis e, não tão espantoso, Anedotas36 (muito possivelmente uma forma de cativação de público, embora algumas exigissem uma certa cultura). Não tendo propriamente dados quantificáveis, podemos considerar pela leitura das seguintes séries que esta tendência manteve-se até à extinção do jornal. A divulgação histórica assumiu, porém, diferentes formas, pois na leitura dos diferentes artigos que de alguma forma apresentaram uma base histórica registamos diferentes vias. Por um lado, pelo menos numa fase inicial e pela pena de Alexandre Herculano, observamos um esforço por parte do colaborador de reflectir, ou problematizar, o papel das diferentes ciências históricas. Não deixa de ser interessante notar que um jornal que se propunha ser de

32 Fernando Catroga - «Alexandre Herculano e o historicismo romântico». In História da História em Portugal, p. 39. 33 Oliveira Martins - Portugal Contemporâneo, vol. II. Lisboa: Guimarães & C. a Editores, 1979 [1881], p. 112. 34 José Tengarrinha - Nova história da imprensa em Portugal. Lisboa: Temas e Debates - Círculo de Leitores, 2013 p. 558.35 Eurico Gomes Dias - A construção da História Medieval na Imprensa Periódica Portuguesa de Oitocentos. Lisboa:

INCM, 2011.36 A. M. Ribeiro - Periodismo cientifico e literário Romântico: O Panorama. Separata da revista Munda, n.º 29. Coimbra,

1995, pp. 69-72.

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vulgarização apresente este esforço, embora, a bem da verdade, bastante reduzido no cômputo geral dos artigos. Convém no entanto recordar que a historiografia moderna, a caminho de uma certa cientificidade, começava a dar os primeiros passos. Possivelmente, Herculano utilizou este periódico para mostrar alguns aspectos metodológicos que utilizaria mais tarde em obras de maior fôlego. É por isso que, logo em 1838, dedique alguns artigos à questão do Tempo, à sua ordenação, isto é, às Cronologias. Refere que é “ciência, sem a qual não haveria método na história, visto que tracta dos factos que se passaram no tempo que foi ou que é [...] distinguir a sucessão dos tempos [...] É esta a cronologia da história, que sem ela, logo degenera em fábula, e por consequência deixa de ser história”37.

São vários os exemplos de divulgação histórica: vemos assinaladas efemérides; curiosidades; evocações de lugares históricos com o intuito de tentar fornecer uma visão dos costumes e, ao mesmo tempo, satisfazer a curiosidade dos leitores aí residentes38; descrição histórica de alguns monumentos nacionais e até biografias de personagens ilustres. Embora com predomínio do período medieval, como já se referiu, O Panorama assumiu a sua componente jornalística, dando conhecimento de acontecimentos relativamente coevos e relevantes, quer nacionais como estrangeiros39. As referências históricas tinham, muitas vezes, bases muito pragmáticas, como a defesa do património contra o seu abandono, significativamente expostos por Herculano40 e contra o vandalismo, “O vandalismo é cortesão, civil e afável. Que não veja um monumento, e será o ente mais pacifico deste mundo”41. Ainda neste último artigo, Alexandre Herculano referia que a defesa destes monumentos teria uma vertente produtiva, não só pela riqueza simbólica e identitária, mas sendo utilizados no que poderíamos chamar hoje de turismo42.

Esta memória histórica mobilizada pelos colaboradores não continha um fundo meramente expositivo. São exemplificadoras as palavras de António de Oliveira Marreca,

37 O Panorama, "Chronologia I", nº 43, 1838, pp. 58-59. Tem outro artigo sobre o tema, no número 67 do mesmo ano.

38 Eurico Dias, op., cit., p. 58. 39 Por exemplo, O Panorama, "A inveja que tenho ao que visitam a Exposição Universal de Paris", nº 22, 5ª série,

1867, pp. 174-175 40 O Panorama, "A Arquitectura Gótica", nº 1, 1837, p. 2 41 O Panorama, "Monumentos II", nº 70, 1838, p. 275.42 Idem, p. 277.

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348 historiografia e res publica

(…) foi ele [O Panorama] o primeiro que a par da difusão das ideias de utilidade

material, trabalhou para que renascesse o sentimento da antiga energia e glória

nacional, sentimento amortecido e quase gasto por dilatadas anos de desventura

e desalento, e sem cuja renascença não há regeneração possível, por que se não

começa pela regenereção do homem e do cidadão [...] O Panorama tem procurado

incorporar os desejos e esperanças do futuro com as saudades e tradições do belo e

grandioso que enobreceu esta nossa boa terra em eras remotas. Temos a convicção

de que pelo lado moral é este o máximo serviço que a imprensa popular pode fazer

à nação, e de que O Panorama o tem feito.43

Uma parte substancial da memória histórica mobilizada pelos liberais foi, num certo sentido, integradora. Assegurava, apesar do corte com o absolutismo, uma continuidade entre passado-presente-futuro, o que era importante numa altura politicamente instável, com revoluções e guerra civil. É pois neste sentido que a concepção de história patente n´O Panorama era instrumental. A história não foi utilizada apenas na vertente lúdica, de divulgação, fazendo uso da literatura e de outras artes com sentido pragmático - e programático -, isto é, voltada para a formação cultural do cidadão. Tendo como pano de fundo uma memória histórica (construída) é advogado o seu uso, os seus exemplos melhor dizendo, numa crença evolutiva do povo português, cumprindo, desta forma, o propósito do jornal.

Vemos reflectidas outras tendências que iriam ser uma marca no mercado literário e que consubstanciavam a dimensão literária do jornal44: o romance histórico. Tendo por base factos ou figuras históricas, o romance histórico, uma pedra de toque do ideal romântico, para além do carácter lúdico ou recreativo, representava, segundo Herculano, também um importante papel de divulgação histórica, “Nós procuramos desentranhar do esquecimento a poesia nacional dos nossos maiores”45. De facto, em muito se deveu a introdução deste género em Portugal a Alexandre Herculano, em particular com a sua acção neste jornal46. Não confundia, contudo, a história com a novela, embora apresentasse um modelo misto,

43 O Panorama, "Introdução", nº 106, 1844, pp. 1-2. 44 O nome completo do jornal era O Panorama, Jornal Literário e Instrutivo da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis.45 O Panorama, nota, nº 126, 1839, p. 306. 46 Fernando Catroga - «Alexandre Herculano e o historicismo romântico», op. cit., pp. 42-43.

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“nisto demos a crónica; no vestuário com que o enfeitámos, demos o romance”.Vários foram os exemplos de romances-folhetins (género por vezes criticado por uma parte duma elite intelectual, exigentes por um certo tipo de qualidade) nas páginas d´O Panorama, tendo Alexandre Herculano dado um importante contributo com, por exemplo,”Arras por foro de Espanha”, que começaria a ser divulgado no jornal47, e que, mais tarde, em 1851, constaria em Lendas e Narrativas48. No entanto, a apresentação de pequenos romances, trechos de textos maiores e partes de peças de teatro, era sem dúvida uma estratégia utilizada pelos directores dos jornais como forma de cativar público, como inclusivamente servia para perceber a receptividade deste, de forma a saber se valeria avançar para a publicação posterior do livro49.

A crítica serviu o mesmo propósito - como mediadora do mercado livreiro -, não podendo ser descurado que os jornais se apresentavam como um meio importantíssimo para a sua expressão. Neste sentido, a crítica a trabalhos de vária índole, romance, historiográfico, entre outros, não se encontrou ausente d´O Panorama50. Pelo contrário, são vários os exemplos, como Alexandre Herculano em torno da obra Castilho, Quadros históricos de Portugal (1838)51. A crítica ou recensão expandiu-se - de forma não só noticiosa - ao mercado periódico, dando nota de outras publicações, inclusivamente concorrenciais, como a anteriormente referida Revista Universal Lisbonense, e que na cuidada escrita se referia que “e se a tanto nos podemos atrever considerá-lo-emos como complemento do nosso”52.

47 O Panorama, "Arras por foro de Espanha", nº 236, 1841, p. 356-360.48 Para uma visão global da obra literária de Alexandre Herculano, veja-se o texto de Fernando Catroga, acima

citado, pp. 44-45. 49 Maria Lurdes dos Santos - «A elite intelectual e a difusão do livro nos meados do século XIX». Análise Social,

vol. XXVII, 1992, p. 544.50 Sérgio Campos Matos, op. cit, pp. 147-150.51 O Panorama, nº 68, 1838, p. 263.52 O Panorama, "Bibliographia", nº 23, 1842, p. 184.

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Considerações finais

É visível que O Panorama reflectiu uma estratégia cultural, sendo flagrante que a História constituiu uma pedra de toque na nova opinião pública que começava a emergir, resultado da consolidação do liberalismo e da sensibilidade romântica. Sem dúvida, neste ponto, O Panorama representou um importante mecanismo de divulgação. A ideia de “conhecimentos úteis” ia, assim, para além de conhecimentos técnicos que fizeram parte das páginas do jornal - sobre agricultura, técnica, entre outros. Estava, pois, em perspectiva a formação possível de um modelo de cidadão em que a História, ou melhor dizendo o conhecimento do passado, seria um alicerce fundamental. Não confundamos: nas páginas d´O Panorama não vemos uma via “saudosista” do passado, ou uma mera enumeração deste, mas sim um propósito de exemplos que, possivelmente, serviriam como guião a seguir no tempo presente (com as devidas distâncias).

No universo da imprensa periódica, O Panorama foi exemplo paradigmático da união entre texto e imagem, fórmula, aliás, reconhecida como tendo muito proveito para a cativação de público, principalmente das classes mais baixas. Marcou um tempo e constituiu um modelo que veio a ser seguido por outros jornais da altura. O impacto que O Panorama teve foi tão expressivo que este seria recordado, anos após a sua extinção, por outras figuras da cultura portuguesa. Como bem notou António Manuel Ribeiro, o jornal popular da década de 1830 foi visto com admiração e respeito por Ramalho Ortigão, Joaquim de Araújo, Teófilo Braga, Sampaio Bruno e Oliveira Martins. Inclusivamente, O Panorama teve a honra de ser mencionado na ficção oitocentista, como em Eusébio Macário de Camilo Castelo Branco ou na obra de Eça de Queiroz, A Ilustre casa de Ramires53.

53 António Manuel Ribeiro, op. cit., pp. 74-75.

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F O N T E S E B I B L I O G R A F I A

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* Este artigo tem por base o verbete publicado no Dicionário de historiadores portugueses (http://dichp.bnportugal.pt/periodicos/periodicos_vertice6.htm). Embora se tenha mantido a sua estrutura, foram aprofundadas algumas ideias e acrescentadas outras informações e referências bibliográficas.

DIFERENTES CONCEPÇÕESDE HISTÓRIA NA VÉRTICE

DURANTE O ESTADO NOVO (1942-1974)*

José Sousa

Bolseiro de doutoramento FCT, ICS-ULisboaUniversidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de História

Com publicação ininterrupta entre 1942 e 1986 (a nova série só foi retomada dois anos depois, prolongando-se até ao presente), a Vértice ocupou um lugar de relevo na cultura portuguesa do século XX. Para além da longevidade assinalável para uma revista com as suas características, talvez só comparável à Seara Nova, essa relevância justifica-se também por se ter afirmado como um dos principais espaços de oposição cultural ao Estado Novo e onde se desenvolveram trajectos, por vezes diversos e conflituosos, que exprimiram sobretudo mundividências de inspiração

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marxista e de um geral ímpeto renovador no campo cultural. A sua importância reside ainda nos diferentes domínios do saber que contemplou nas suas páginas: literatura, crítica cinematográfica e teatral, artes plásticas, música, economia, história, entre outros assuntos glosados por alguns dos mais destacados intelectuais da época.

Os primeiros anos da revista coimbrã não deixavam antever a longevidade e importância que veio a ter. Entre 1942 e 1944 foram apenas publicados três números num contexto de extremas dificuldades financeiras e de indefinição face ao futuro imediato da publicação. E se é verdade que essas dificuldades se mantiveram ao longo da sua existência, a partir de 1945 a Vértice seguiu um novo rumo. Foi nesse ano adquirida por um conjunto de jovens intelectuais ligados ao neo-realismo (Arquimedes Silva Santos, Carlos de Oliveira, João José Cochofel, Rui Feijó e Joaquim Namorado) que lhe imprimiram uma nova vitalidade, desde logo evidente nos primeiros editoriais que definiam também as novas directrizes programáticas1. Se em 1942 foi possível a publicação de um artigo sobre a cultura alemã do lusitanista Albin Eduard Beau – apologético do nazismo e com referências a Hitler e ao espaço vital alemão2 – no pós-guerra a Vértice assumiu um programa cultural e político explícito, notório logo no apoio às reivindicações do MUD para a realização de eleições livres3. Assim, a opção de adquirir uma revista já existente, com a manutenção do título e do anterior director, visou sobretudo iludir as instituições censórias. Após a suspensão de várias revistas culturais com significativa presença do ideário marxista no início dos anos quarenta, a iniciativa deste grupo dava resposta às preocupações do sector intelectual do PCP de Coimbra que notava a ausência de uma tribuna onde pudessem transmitir as suas ideias4.

Com o final da II Guerra Mundial, a Vértice assumiu um projecto de renovação cultural que tinha como principal objectivo o estudo e combate aos principais problemas nacionais, fossem eles económicos, sociais ou educativos. Mais do que uma “revista de cultura e arte”, designação que surgia no cabeçalho da revista, a Vértice pretendia contribuir para a criação de uma “cultura útil”, na qual a teoria se

1 Daniel Pires - “Vértice”, Dicionário da imprensa periódica literária portuguesa do século XX (1941-1974), vol. II, 2º. Tomo. Lisboa : 2000, p. 594-599.

2 Albin Eduard Beau - “Na Alemanha. Tendências fundamentais da cultura alemã”. Vértice, n.º1, Maio 1942, pp. 56-59.

3 “O país e as eleições”, Vértice, n.os 17-21, Novembro 1945, pp. 1-4.4 Luís Andrade - Intelectuais, utopia e comunismo. A inscrição do marxismo na cultura portuguesa. Lisboa, 2010, pp. 160-1.

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deveria aliar à prática e o estudo dos problemas nacionais à acção para a resolução dos mesmos5. Daí que, a par da divulgação desta concepção de cultura, os principais esforços iniciais da Vértice fossem os de definição da função social daqueles que iriam desenvolver esse projecto, os intelectuais, e a crítica ao alheamento e resignação destes perante os problemas de grande parte dos portugueses6.

Um dos principais usos da história na Vértice, evidente sobretudo nos primeiros anos, foi o de legitimar esta função atribuída aos intelectuais. Luís de Albuquerque, então muito interessado na história da educação em Portugal, escreveu em 1947 artigos sobre Luís António Verney e José Anastácio da Cunha, dois exemplos de resistência cultural e de modernidade científica e filosófica no contexto português do século XVIII, dominado pelo conservadorismo e pelas ideias retrógradas nas suas instituições de ensino. Embora sem o referir, a analogia com os anos 40 do século XX está implícita. Bem como a ideia de que Verney teria defendido uma aproximação ao realismo na sua crítica literária e artística e que se tinha batido pela democratização do ensino7. Porventura mais explícita das dimensões heroica, patriótica, progressiva e popular que se queria atribuir aos intelectuais é o artigo que Armando Bacelar, sob o pseudónimo de Inês Gouveia, dedicou a Leonor da Fonseca Pimentel. Nascida em Roma mas sem nunca perder “o interesse pelas coisas da sua pátria de origem”, tinha frequentado a corte de Nápoles e fora uma acérrima defensora da necessidade de apostar na educação popular. Apanhada na conturbada situação política desse reino no final do século XVIII, tinha sido condenada à forca por traição à monarquia bourbónica. Antes de morrer, “a sua última saudação foi para o povo”8.

Esta legitimação pela história do papel a desempenhar pelos intelectuais na sociedade inseriu-se numa mais ampla leitura do passado, assente na imagem de um Portugal fracturado por uma contradição fundamental entre o progresso e o obscurantismo ou entre a modernidade e a contra-modernidade9. A estas duas

5 “Missão de uma revista de cultura”, Vértice, n.os 17-21, Novembro 1945, pp. 60-71.6 “Cultura e acção”, n.os 27-30, Vértice, Março 1946, pp. 3-6.7 Luís de Albuquerque - “Verdadeiro Método de Estudar e Luís António Verney”, Vértice, n.º 45, Abril 1947,

pp. 358-362.8 Armando Bacelar - “Leonor da Fonseca Pimentel. Uma portuguesa mártir no reino de Nápoles”, Vértice, n.º

141, Junho 1955, 348-52.9 José Neves - “Marxismo”, in Sérgio Campos Matos (coord.), Dicionário de historiadores portugueses. Da Academia

Real das Ciências ao Estado Novo [em linha]. s/d. [consult. 5 Nov. 2014]. Disponível na internet: http://dichp.

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tradições não estavam apenas associadas determinadas personalidades da história portuguesa mas também diferentes tempos históricos. Readaptava-se a teoria da decadência esboçada já no século XIX, segundo a qual, após o tempo áureo dos Descobrimentos e expansão ultramarina, Portugal tinha entrado num longo período de obscurantismo a partir da segunda metade do século XVI, só contrariado pela recuperação na “fase heroica do liberalismo”. Ainda no século XIX, tinha-se instalado um novo ciclo de estagnação, que nem a República conseguira alterar10.

Esta não era, contudo, uma visão fatalista da história nacional. Para além da legitimação histórica da intervenção intelectual segundo os princípios já referidos, outra das mais relevantes missões que a Vértice atribuiu aos seus colaboradores foi a de “ressuscitar” essa tradição progressiva tal como enunciava Fernando Piteira Santos nas suas páginas: “nós, que descobrimos a pátria na sua autenticidade histórica e popular, temos o dever de ressuscitar as nobres e progressivas tradições da grei”11.

Sobretudo a partir dos anos 40, os historiadores com ligações aos movimentos oposicionistas de inspiração republicana e/ou marxista assumiram como uma das prioridades da sua intervenção na imprensa periódica a definição de uma memória colectiva entendida como resposta à influência que, nesse domínio, o Estado Novo exercia, sobretudo através do comemorativismo histórico que era frequentemente utilizado a favor da sua própria celebração. Coartadas outras formas de oposição ao regime, as disputas pela apropriação do passado nacional assumiram uma dimensão relevante no processo de diferenciação e identificação de projectos político-ideológicos alternativos na sociedade portuguesa. A interpretação do passado nacional sob a dialéctica progresso/obscurantismo não deixa de dar conta da forma como a direcção da Vértice percepcionava a situação política presente. Também Jorge Borges de Macedo, a propósito do centenário da revolução de 1848 em França, reflectia sobre a construção da memória colectiva nas sociedades contemporâneas. Num texto que recorria a alguns dos conceitos operatórios e pressupostos teóricos característicos do marxismo, Borges de Macedo dava conta da existência de uma multiplicidade de heranças históricas que variavam consoante

bnportugal.pt/tematicas/tematicas_marxismo.htm.10 “Cultura portuguesa”, Vértice, n.os 30-35, Maio 1946, pp. 81-85. 11 Fernando Piteira Santos - “Um nacionalismo popular”, Vértice, n.os 56-57, Abril – Maio 1948, p. 372.

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a “zona social” ou os “sectores sociais” presentes. Desse modo, “é na atmosfera de um certo «presente» que se escolhe um certo «passado» para comemorar”, concluindo que não havia uma só tradição, “o passado não é igual para todos, como o não é o presente” 12.

A construção de uma memória colectiva alternativa na Vértice privilegiou certos momentos-chave do passado nacional – 1383-85, 1580, 1640, invasões napoleónicas, entre outros – onde a resistência do povo, a libertação da dominação estrangeira e a traição das classes privilegiadas se afiguravam como centrais na narrativa nacionalista e popular que pretendiam difundir. Era sobretudo ao “português anónimo”, e não apenas a um conjunto restrito de homens eminentes, a quem cabia a construção da consciência nacional13. Tinha sido o povo quem, nas grandes crises nacionais, tinha manifestado maior consciência nacional14. A nação e a sua independência eram apresentadas como obra do povo português, ao mesmo tempo que à nobreza e ao clero era frequentemente apontada a traição da consciência e independência nacionais em prol dos seus próprios interesses de classe, perspectiva enfatizada por vários colaboradores da Vértice, entre os quais Fernando Pinto Loureiro e Joaquim Namorado15.

A evocação de destacadas figuras da história da cultura nacional que, como se viu, visou sobretudo legitimar o perfil intelectual que a Vértice vinha difundido através dos seus editoriais, não implicava que a elas se atribuísse especial destaque na transformação histórica. Contudo, se um dos principais combates da historiografia marxista (mas não só) era dirigido à teoria dos grandes homens enquanto agentes de mudança, tal não implicou necessariamente o abandono de ideias voluntaristas no devir histórico. Para além do materialismo histórico e do papel da luta de classes, a assunção do povo enquanto herói colectivo responsável pelo progresso e pela

12 Utiliza, entre outros, os conceitos de “lei de produção” e “regime económico feudal”. Afirma ainda nesse artigo que “será segundo as vias marcadas pelas novas forças mecânicas de produção que a evolução política, social, económica e ideológica se irá desenvolver” (J. Borges de Macedo, “A revolução de 1848 em Portugal”, Vértice, n.os 56-57, Abr. – Mai. 1948, p. 337). Este artigo esteve na origem de uma carta enviada por Luís de Albuquerque e na qual lhe chamava a atenção para a necessidade de “camuflar a pilula”, numa alusão clara à possibilidade de o artigo vir a ser censurado (ANTT/PIDE/DGS processo n.º 1151/47-SR NT 2605 Jorge Borges de Macedo).

13 “O país e as eleições”, Vértice, n.os 17-21, Novembro 1945, pp. 1-4.14 “Povo e cultura”, Vértice, n.os 22-26, Fevereiro 1946, pp. 1-3.15 Fernando Pinto Loureiro - “A «deputação portuguesa» a Baiona e o que pediu a Napoleão”, Vértice, n.º 47,

Junho 1947, pp. 135-153; Joaquim Namorado - “No alvorecer da Restauração. A rebelião do «Manuelinho de Évora»”, n.º 76, Dezembro 1949, pp. 313-317.

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construção da nação está presente em vários artigos da Vértice. Rui Feijó, um dos mais activos colaboradores da revista, defendia mesmo que “o herói faz a história”, ou seja, imprime um cunho específico a determinado momento histórico desde que a sua acção não “contrarie as forças colectivas onde se insere”. Todavia, na sua opinião, a história era sobretudo o resultado do “esforço colectivo do homem em marcha”16. Também Mário Braga, ao procurar compreender os diferentes desfechos em 1383 e 1580, centrava a sua explicação no papel do povo nesses dois momentos, desvalorizando um conjunto de causas explicativas que incluíam a ideia de nacionalidade, o papel da nobreza, factores económicos ou mesmo a diferente relação de forças militares em 1383 e 1580: “apenas uma análise da actuação do povo, num e noutro dos momentos, nos habilitará a formular uma resposta”17.

Os exemplos até aqui referidos inserem-se numa concepção de história sobretudo com intuitos pedagógicos (de exemplos morais a seguir ou a rejeitar) e cívicos e inscrevem-se igualmente nos processos de edificação, divulgação e fundamentação dos projectos culturais marxistas em Portugal. Não obstante, a Vértice foi também um espaço privilegiado para o desenvolvimento de outro entendimento da história que, embora relacionado com o anteriormente referido, centrava-se sobretudo num conjunto de reflexões epistemológicas, abordagens metodológicas e práticas historiográficas que se assumiam como científicas e que se associavam às ideias de rigor, verdade e objectividade no estudo do passado. Não raras vezes, essa reivindicação da cientificidade da história adquiriu um cariz exclusivista, reservando aos historiadores “científicos” a missão de denunciar uma historiografia “metafísica” ou “idealista”, tida como ideológica. Neste sentido, o carácter científico da história esteve muitas vezes associado à adopção de uma teoria global que enfatizava o papel condicionante dos factores económicos e dos fenómenos “infraestruturais” sobre os fenómenos “superestruturais”, metodologia essa que incorporava igualmente o conceito de “leis económicas” e consequentes “nexos adequados entre causas e efeitos”18. Esta associação entre história científica e materialismo histórico levaria a uma releitura da tradição historiográfica nacional,

16 Rui Feijó - “A nação faz-se todos os dias”, Vértice, n.º 67, Março 1949, p. 167.17 Mário Braga - “O povo e as crises nacionais”, Vértice, n.º 80, Abril 1950, pp. 197-20518 Victor de Sá - “Economia e história”, Vértice, n.os 214-215, Julho – Agosto 1961, pp. 455-460.

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enaltecendo-se os historiadores – que iam de Fernão Lopes até Lúcio de Azevedo – que haviam atentado nos factores económicos e na história dos agrupamentos sociais. Também a historiografia contemporânea foi interpretada à luz desta concepção científica da história. Flausino Torres, por exemplo, considerava Armando Castro “o primeiro historiador científico português”19.

Ao contrário do que foi até aqui destacado, com a adopção do materialismo histórico a dimensão voluntarista que explicava as mudanças no passado tendeu a ser relativizada ou, numa perspectiva mais determinista, suprimida nas interpretações historiográficas. Ao longo dos anos 40 e 50 destaca-se o caso de António José Saraiva que, numa crítica ao idealismo de António Sérgio, punha definitivamente em causa qualquer ideia voluntarista no estudo do passado: “O sujeito determina-se na medida em que conhecemos o objecto. Tudo se reduz portanto a conhecer o objecto”. A ênfase no cariz materialista do devir histórico pretendia aproximar a história dos métodos e objectivos científicos: desde que se retirasse da construção historiográfica a “nossa consciência subjectiva”, poder-se-ia atribuir ao homem “um comportamento previsível, redutível à estatística”20. Curiosamente, apesar da defesa acérrima destas ideias, António José Saraiva nunca privilegiou a investigação nos domínios da história económica, partindo, ao invés, da análise de fenómenos culturais para compreender a realidade segundo o modelo teórico por ele perfilhado21. Tal como confidenciou Eric Hobsbawm sobre o seu próprio percurso inicial, mais do que a questão da transição dos modos de produção, interessava-lhe sobretudo compreender como um aspecto específico dos fenómenos superestruturais se ligava aos mecanismos fundamentais que estavam na base da sociedade22. Neste período, António José Saraiva afirmou-se também como uma das principais referências no domínio da reflexão e difusão teórica do marxismo. Noutro artigo, significativamente intitulado “Determinismo e história”, aprofundava essa sua noção científica da história ao defender que “explicar os

19 Flausino Torres - “A propósito da história do povo português”, Vértice, n.os 250-251, Julho – Agosto 1964, pp. 412-425.

20 António José Saraiva - “Sobre a 2ª edição dos Ensaios de António Sérgio”, Vértice, n.º 81, Maio 1950, pp. 279-288.

21 Ver, por exemplo, “A obra de Júlio Diniz e a sua época”, Vértice, n.º 67, Março 1949, pp.137-151.22 Eric Hobsbawm - Interesting times. A twentieth-century life. Londres, 2010, p. 97.

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fenómenos sociais, introduzir neles o pressuposto da previsibilidade, é afinal reduzi-la às leis do determinismo da matéria”. Nesse sentido, o conhecimento histórico não possibilitava apenas a identificação diacrónica dos problemas estruturais das sociedades mas igualmente a sua transformação futura, mediante a capacidade dos historiadores desvendarem as “leis” que condicionavam a acção humana, constituindo, por isso, “um instrumento de aceleração do progresso”23.

Nem todos assumiram ortodoxamente o materialismo histórico divulgado pelas teses de inspiração marxista-leninista. Fernando Piteira Santos, por exemplo, saindo em defesa das críticas à “retórica do concreto”, de que se falará mais adiante, afirmava que “as ideias dos homens são também uma força”, questionando, ironicamente, se “será necessário que um materialista estreito venha lembrar à grei, discretissimamente, esse valor concreto das ideias”24. Também Borges de Macedo pôs em causa a necessidade de “expurgar” os preconceitos ideológicos de uma historiografia “idealista”. É que se a história era uma ciência, também era testemunho, na medida em que o historiador transportava para a historiografia a sua condição presente, os seus problemas e o ambiente do seu tempo. Embora esta ideia fosse comummente aceite, Borges de Macedo não considerava que essa presença do historiador fosse um obstáculo à obtenção da “verdade histórica”. Para além da psicologia histórica que agiria como “elemento corrector”, a verdade era antes o resultado das “parcialidades objectivas” e da acumulação de interpretações historiográficas que dariam uma ideia mais ampla da experiência humana25.

Estas diversas reflexões teóricas não foram o único meio para afirmar o valor científico da história. A Vértice foi também um espaço onde se exerceram práticas historiográficas características do processo de profissionalização e seus correspondentes métodos que a aproximavam do intuito científico que lhe está associado. Não era raro serem publicados na Vértice documentos inéditos da história portuguesa, sobretudo correspondência de escritores do século XIX; textos de aparato erudito, com recurso a notas de rodapé, alguns dos quais eram traduções

23 António José Saraiva - “Determinismo e história”, Vértice, n.os 99-101, Novembro-Janeiro 1951-2, pp. 572-3.24 Fernando Piteira Santos - “A retórica do concreto e outras retóricas…”, Vértice, n.º 55, Março 1948, p. 237.25 Jorge Borges de Macedo - “Parcialidade e objectividade em história”, Vértice, n.º 123, Novembro-Dezembro

1953, pp. 655-7.

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de artigos publicados em revistas de história – caso, por exemplo, de um artigo de Vitorino Magalhães Godinho, publicado originalmente nos Annales26; recensões a revistas especializadas de história, sobretudo dos Annales e da Revista de História de São Paulo, realizadas ao longo de vários números por Rui Feijó; recensões a congressos científicos; publicação de excertos de capítulos de livros e de teses universitárias.

Uma das práticas historiográficas privilegiadas foi a realização de críticas bibliográficas. Estas assumiam-se muitas vezes como instrumento de aproximação da teoria à prática historiográfica, como exercício ordenador do discurso. Esse intuito esteve presente em duas recensões que António José Saraiva fez a livros do seu amigo Óscar Lopes, ao lamentar uma certa propensão para a interpretação psicológica que destoava da perspectiva sociológica, dando assim um “ecletismo incongruente” a um desses livros27. Noutro sentido, na análise que Augusto da Costa Dias fez à Inquisição Portuguesa de António José Saraiva, enaltecia-se essa total conformidade entre a teoria e a prática, ao ponto de se afirmar que o conhecimento exacto das “leis do desenvolvimento social” conferia um carácter definitivo a essa história que posteriores aprofundamentos “mais não fará que confirmá-la e enriquece-la em pormenor”28.

As recensões foram igualmente um instrumento de demarcação relativamente a outras formas de escrever história, nomeadamente da história erudita – um “bom arquivo de factos”, como Alberto Ferreira caracterizava uma obra do pe. Mário Martins (n.º 172, Jan. 1958, 64) – ou dos “amadores de Clio” que não cumpriam uma série de requisitos prévios que caracterizavam a “profissão de historiador”, como lamentava Joel Serrão numa dessas recensões (n.º 95, Jul. 1951, 383-4). Dessa demarcação resultava a criação de uma noção, mais ou menos precisa, de identidade historiográfica, de uma “comunidade científica” de historiadores. De facto, muitas das recensões críticas na Vértice foram realizadas sobre obras de outros

26 Vitorino Magalhães Godinho - “Criação e dinamismo económico do mundo atlântico (1420-1670)”, Vértice, n.º 92, Abril 1951, pp. 149-154.

27 António José Saraiva, [recensões críticas a “Oliveira Martins e as contradições da geração de 70” e “Realistas e parnasianos”], Vértice, n.º 48, Julho 1947, p. 235.

28 Augusto da Costa Dias, [recensão crítica à “Inquisição Portuguesa” de António José Saraiva], Vértice, n.º 151, Abril 1956, pp. 169-73.

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colaboradores. Numa recensão de Armando Castro à Situação Económica no Tempo de Pombal de Borges de Macedo – obra também analisada na Vértice por Joel Serrão – é-nos transmitida a ideia de “uma escassa meia dúzia de autores” que, “sem o apoio de academias ou universidades”, ia trabalhando no sentido de reduzir o abismo que separava as realizações concretas do “reconhecimento da verdadeira orientação científica” (n.º 107, Jul. 1952, 378).

Ao contrário da Seara Nova, foram muito poucas as polémicas que versaram sobre problemas de história na Vértice. Ainda assim, destaque-se a que ocorreu no início dos anos 50 entre Joel Serrão e Fernando Piteira Santos a propósito de Antero de Quental, dando, aliás, continuidade às polémicas iniciadas na Seara e que envolveram diversos colaboradores. De certa forma, esta polémica entre Piteira Santos e Joel Serrão opunha as duas concepções históricas acima referidas, uma com intuitos mais cívicos e pedagógicos e outra de orientação científica.

Em relação ao problema central aí levantado, a divergência encontrava-se latente desde 1947, muito embora se tivesse o cuidado de não referir especificamente os nomes que sustentavam as diferentes opiniões. Essa cautela deixa de fazer sentido alguns anos depois, já num contexto de aberta polémica entre colaboradores da Vértice, nomeadamente aquela que opôs sobretudo João José Cochofel e António José Saraiva na primeira metade da década de 50, conhecida como a polémica interna do neo-realismo29.

Em 1947, alguns artigos vinham denunciando o espírito retórico que se encontrava presente nos jovens intelectuais progressistas. Rui Feijó, apoiando as ideias de um artigo publicado na Seara Nova por Rui Grácio, criticava essa “retórica do concreto”, que repetia “a necessidade do estudo concreto, mas só falando dele como necessidade sem, concretamente, lhe darem realização” (n.º 43, Jan. 1947, 230). No mesmo sentido, alguns meses depois, também Joel Serrão manifestava a mesma preocupação quando questionava: “vamos, de facto, estudar os nossos problemas? Ou julgaremos, antes, que a realidade nacional se transformará ao toque mágico da varinha de condão da nossa boa ou má retórica?”30. Na resposta a estas posições,

29 João Madeira - “Os novos remexedores da história”, David Santos coord., Batalha pelo conteúdo. Exposição documental. Movimento neo-realista português. Vila Franca de Xira, 2007, pp. 304-331.

30 Joel Serrão - “Sobre a necessidade da investigação”, Vértice, n.º 50, Setembro 1947, pp. 353-5.

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num artigo intitulado precisamente “A retórica do concreto e outras retóricas”, Piteira Santos valorizava “a atitude como atitude”, ou seja, mesmo que as ideias não se concretizassem num conhecimento mais profundo e numa reforma efectiva da sociedade, nem por isso deixavam de ser reais e consequentes: “as ideias dos homens ganham homens para as ideias”31.

Esta divergência ganha uma dimensão historiográfica na polémica de 1951-1952. Num artigo publicado na Seara Nova sobre “a compreensão de Antero”, Joel Serrão dava continuidade ao seu projecto de investigação sobre o oitocentismo português, muito marcado pela história das mentalidades dos Annales, que defendiam, sobretudo Lucien Febvre, a necessidade de encarar determinada época como uma totalidade em si mesma, possuidora de uma mentalidade própria, diferente da do tempo presente. Joel Serrão pretendia aplicar esse princípio ao estudo da época contemporânea portuguesa, precavendo com frequência os seus leitores dos perigos do anacronismo, especialmente sobre uma época tão próxima do presente. Alertava para o risco de se considerar Antero “nosso contemporâneo”, menosprezando-se todo o estudo cientificamente conduzido da mentalidade do homem de oitocentos, diferente, sob diversos aspectos, da mentalidade dos homens de 195032. Embora sem o referir, Joel Serrão teria visado, segundo a interpretação de Piteira Santos, algumas interpretações feitas por si e por Manuel Mendes. Na sua mordaz resposta, Piteira Santos rejeitava qualquer acusação de anacronismo na sua interpretação, pois “a noção de seriedade, a noção de coerência, a noção de honra, não eram sensìvelmente diferentes das do nosso tempo. E já então era costume, e dever, honrar os compromissos políticos”33. Pretendia, “sem violentarmos a História-ciência”, demarcar-se da perspectiva “cientificamente conduzida” de Joel Serrão. Ao invés, era o exemplo e a validade actual de Antero que lhe interessava, acusando Joel Serrão de não ter compreendido “o verdadeiro sentido do debate em que, por mero dever cívico, andamos empenhados”. Esse dever cívico passava, como se viu, pela afirmação do modelo de intelectual interventivo, como a seguinte condenação do exemplo de duas das mais proeminentes figuras da cultura portuguesa do século

31 Fernando Piteira Santos - “A retórica do concreto e outras retóricas”, Vértice, n.º 55, Março 1948, 236-7.32 Joel Serrão - “Para a compreensão de Antero”, Seara Nova, n.os 1226-7, 1951, pp. 533-35 e 547.33 Fernando Piteira Santos - “Carta melancólica”, Vértice, n.º 98, Outubro 1951, p. 516.

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XIX deixa transparecer: “nem azeiteiros em Vale de Lobos, nem suicidas numa ilha de bruma: nem fugitivos nem derrotados; as cousas e os homens desta terra lusitana merecem mais alguma coisa”. Neste aspecto, Piteira Santos era um herdeiro dos iniciais propósitos seareiros. Não por acaso, recuperava as mesmas imagens de Alexandre Herculano e de Antero de Quental já utilizadas por Raúl Proença para notar a ausência na história contemporânea portuguesa de um “grande mestre da acção moral”, de um “herói até ao fim” que “salvasse” a pátria34.

Esta divergência entre Joel Serrão e Piteira Santos pode ser interpretada à luz das dificuldades de institucionalização de uma historiografia que pretendia conciliar a investigação com actividades cívicas e políticas de oposição ao Estado Novo. Na sua maioria excluídos, de forma voluntária ou forçada, das instituições superiores de investigação e ensino, estes historiadores não deixaram de procurar uma dedicação profissional ao ofício onde se tinham formado. Num tempo, sobretudo após a II Guerra Mundial, de expansão do processo de institucionalização profissional da história, associado também ao processo de democratização do ensino35, ser historiador começou a implicar fazer parte de um círculo de sociabilidades académicas que incluíam centros de investigação, revistas especializadas e encontros científicos subsidiados pelo estado. Nos anos 30 e 40, ainda que timidamente, começou-se a reforçar em Portugal este processo de institucionalização, do qual as criações da Academia Portuguesa da História e da Revista Portuguesa de História são exemplos paradigmáticos. Através da leitura de alguma correspondência destes historiadores alheados destas instituições subsidiadas pelo estado, é notória a preocupação pela abertura de bolsas de investigação, pela integração num centro de investigação estrangeiro, pela colaboração em revistas especializadas e por um lugar na docência universitária. Porém, para além daqueles que conseguiram ou optaram por prosseguir uma carreira académica no estrangeiro, essa institucionalização assumiu em Portugal traços de enorme precariedade para os historiadores acima referidos. Sistematicamente excluídos dos concursos para docentes universitários, poucos conseguiram obter as escassas bolsas promovidas pelo Instituto de Alta

34 Joel Serrão - “Aproximação do pensamento de Raul Proença”, Seara Nova, n.º 1512, Outubro 1971, pp. 23-28.35 Lutz Raphael - La ciencia histórica en la era de los extremos. Teorías, métodos y tendencias desde 1900 hasta a actualidade.

Saragoça, 2012, p. 40.

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Cultura e, mais tarde, pela Fundação Calouste Gulbenkian. Desempenhando outras ocupações profissionais (professorado, advocacia, jornalismo, tradução, etc.), integraram as poucas iniciativas de institucionalização historiográfica que ficaram à margem do apoio estatal. Refiram-se as efémeras Sociedade Portuguesa de História da Civilização e o Centro de Estudos do Século XIX36; alguns projectos editoriais (promovidos pelos Livros Horizonte, Cosmos, Portugália Editora, entre outras) e revistas culturais que contemplavam a história nas suas páginas. Neste contexto, a Vértice desempenhou um importante papel na divulgação de correntes historiográficas que normalmente estavam ausentes das universidades, centros de investigação e outros projectos patrocinados pelo estado. Porém, tratando-se de uma revista ecléctica, promoveu concepções de história nem sempre conciliáveis. A polémica entre Piteira Santos e Joel Serrão pode ser interpretada neste contexto.

De qualquer forma, esta separação entre as vertentes cívica e científica não deve ser sobrevalorizada. Nas páginas da Vértice, Piteira Santos também associava ao seu tempo a emergência da história-ciência, superando a história artística e ética do passado37. Já nos anos 90, num artigo publicado no Jornal de Letras (nº. 524, 21-27 Junho 1992, 6-7) em resposta a um artigo no qual Borges de Macedo criticava a historiografia marxista, punha sobretudo em relevo, sem negar o comprometimento ideológico, a tarefa de “construir uma história de rigor científico”. Também Joel Serrão insistentemente viria a lembrar a condição cívica do historiador, a sua irredutível condição de homens do tempo presente38. Unia-os também uma mesma experiência do tempo, de cariz prospectivo, e no qual o presente e futuro se assumiam com centrais na construção histórica. Daí que ambos se tenham também distanciado de um eruditismo sem interpretação nem problematização que o ligasse ao presente, bem como de um revisionismo que lhes parecia a restauração do passado no presente.

Esta polémica enquadra-se, como se referiu, num período de graves polémicas e cisões entre alguns colaboradores da Vértice. Ao longo das décadas de 50 e 60,

36 José Neves - Comunismo e nacionalismo em Portugal (política, cultura e história no século XX). Lisboa, 2010, pp. 309-12; José-Augusto França - Memórias para o ano 2000. 2ª ed. Lisboa, 2001, pp. 214-5.

37 Fernando Piteira Santos - “Sobre uma frase de Marc Bloch”, Vértice, n.º 50, Setembro 1947, pp. 356-66.38 Joel Serrão - “Brevíssima reflexão preambular sobre historiografia, ideologia e tempo”, in A Emigração

Portuguesa. Sondagem histórica. 4ª. ed. Lisboa, 1982, pp. 9-23.

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alguns dos mais destacados colaboradores da revista suspendem ou diminuem significativamente a sua presença, muitas vezes em ruptura com o ideário marxista-leninista. Entre os historiadores, destacam-se os casos de Borges de Macedo (abandona a sua colaboração em 1955), Joel Serrão e Piteira Santos (ambos em 1957, só regressando esporadicamente muitos anos depois) e António José Saraiva (em 1965). Ainda assim, outros mantiveram a sua colaboração, mais ou menos frequente, casos de Armando Castro, Óscar Lopes e Luís de Albuquerque. A colaboração deste último deve ser realçada pela dedicação à Vértice, publicando aí várias dezenas de artigos, não só sobre história da educação e dos Descobrimentos mas também sobre outros assuntos onde mostrava a amplitude dos seus interesses científicos, culturais e cívicos. Entre 1948 e 1953, desempenhou o cargo de secretário de redacção da revista, contribuindo, sob diversos pseudónimos, para o funcionamento regular da publicação. É sobretudo a partir desta última data que começa a manifestar um especial interesse pela história dos Descobrimentos e expansão ultramarina39, vindo a publicar na Vértice, entre 1957 e 1958, a sua Introdução à história dos descobrimentos, posteriomente reunido em livro. O seu caso é relevante e excepcional uma vez que conciliou a sua activa colaboração na Vértice com a integração, a partir dos anos 1960, em alguns dos principais projectos de investigação no âmbito da história ultramarina: foi colaborador do Centro de Estudos de Cartografia Antiga, vogal do Centro de Estudos Ultramarinos da Junta de Investigações do Ultramar e participou no Congresso Internacional de História dos Descobrimentos em 196040, do qual fez alguns comentários num artigo publicado na Vértice41.

A saída dos historiadores acima referidos foi sendo colmatada com a entrada de novos colaboradores. Esta mudança saldou-se numa maior atenção à história portuguesa do século XIX, sobretudo através dos artigos publicados por Flausino Torres e Victor de Sá. Dando continuidade ao interesse pelo oitocentismo português que vinha dos anos 40, começava-se a constituir um conjunto relevante de estudiosos que, segundo Flausino Torres, deveriam reunir-se para a constituição de uma

39 Luís de Albuquerque - “Apontamentos sobre os antecedentes da expansão quatrocentista portuguesa”, Vértice, n.º 121, Setembro 1953, pp. 509-513.

40 Alfredo Pinheiro Marques - “Luís de Albuquerque, historiador”, Isabel Pereira, Alfredo Pinheiro Marques e Ana Paula Cardoso (coords.) Luís de Albuquerque. O homem e a obra. Figueira da Foz, 1993, pp. 177-210.

41 Luís de Albuquerque - “Sobre alguns problemas mal esclarecidos da história dos descobrimentos”, Vértice, n.º 209, Fevereiro 1961, pp. 91-100.

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indispensável grande obra colectiva sobre o período contemporâneo português42. Este interesse renovado pela história contemporânea ocorria num contexto de alterações significativas na sociedade portuguesa, facto que não era omitido por Victor de Sá que o via à luz do “imperativo derivado da crise de consciência cívica de que estamos a dar-nos conta”43. Importava, por isso, o conhecimento da estrutura social na qual os intelectuais comunistas pretendiam intervir44.

Em conclusão, deve-se destacar a importância historiográfica da Vértice num contexto em que os historiadores ligados à oposição ao Estado Novo se encontraram, por regra, afastados das instituições estatais de ensino e investigação. A par de outras revistas e projectos editoriais, a Vértice constituiu-se como um dos espaços privilegiados para a apresentação das ideias e trabalhos de muitos desses historiadores que contribuíram para o aparecimento e consolidação de novas propostas teóricas, metodológicas e conceptuais, muitas delas posteriormente rejeitadas, por vezes pelos próprios. Ainda assim, não deixa de ser significativo que muitos dos historiadores que colaboraram na Vértice viessem a assumir, sobretudo a seguir ao 25 de Abril, lugares de docência no ensino superior da história – casos de Joel Serrão, António José Saraiva, Borges de Macedo, Luís de Albuquerque, Victor de Sá, João Medina, António Hespanha, entre outros.

De realçar também que a análise dos textos de história na Vértice permite questionar o uso, por vezes acrítico ou não explicitado, da categoria analítica “historiografia marxista”. Se é verdade que existem algumas ideias comuns que conferem pertinência ao seu uso, ele não se pode fundamentar apenas na perfilhação político-partidária dos historiadores visados nem tão-pouco nesse conjunto de ideias gerais que adoptavam. Ainda do ponto de vista historiográfico, podem-se assinalar diferenças quanto à interpretação de certos momentos-chave da história de Portugal e também das concepções e usos da história, como se viu. E se as polémicas e debates historiográficos não foram um meio privilegiado para discutir essas diferenças, elas não deixaram de estar presentes, por vezes de forma implícita.

42 Flausino Torres - “A propósito do ‘Amorim Viana e Proudhon’ de Victor de Sá”, Vértice, n.º 209, Fevereiro 1961, p. 110.

43 Victor de Sá -“O neo-realismo no surto actual da ensaística portuguesa”, Vértice, n.os 234-6, Março-Maio 1963, p. 238.

44 José Neves - Comunismo e nacionalismo…, p. 329.

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Tal como pode ser constatado no debate sobre diferentes concepções artísticas dos intelectuais que se opuseram ao Estado Novo, também na historiografia não houve uma unanimidade teórica e interpretativa.

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B I B L I O G R A F I A

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1900 hasta a actualidade. Apresentação de Mique Marín Gelabert e tradução de Toni

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O S A R Q U I V O S D O C E N T R O C U LT U R A L P O R T U G U Ê S ( 1 9 6 9 - 1 9 9 3 ) :

U M A “ C O L E C T Â N E A E R U D I T A ”A O S E R V I Ç O D A H I S T Ó R I A

Andreia da Silva Almeida

Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de História

Atendendo ao disposto no testamento de Calouste Sarkis Gulbenkian, no qual se especificava que a acção da Fundação por si instituída exercer-se-ia em Portugal e noutros países onde se julgasse conveniente, seria gerado pela Fundação, em 1963, um serviço internacional. Dois anos depois, em Março de 1965, seria criado o Centro Cultural de Paris. Este organismo visava a promoção da cultura portuguesa em França, privilegiando a cooperação com várias universidades daquele país. O seu primeiro director foi Joaquim Veríssimo Serrão, que observou a actividade daquele pólo como uma “embaixada cultural em França”, berço de uma imagem projectada da vida intelectual portuguesa1.

1 Cf. SERRÃO, Joaquim Veríssimo – “O Centro Cultural Português de Paris: O Meu Testemunho a Vinte e Quatro Anos de Distância”, Arquivos do Centro Cultural Português: 25 Anos do Centro Cultural Português. Lisboa/

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No seio deste Centro surgiu, contudo, a necessidade da criação de um órgão doutrinal que servisse de união entre docentes, investigadores, estudiosos franceses, portugueses e lusófilos espalhados pelo mundo. A ideia, nascida na mente de Joaquim Veríssimo Serrão, foi transmitida a José de Azeredo Perdigão, em 1967. Este último concordou com a prossecução do projecto de uma revista que visava reunir temas de literatura, de história e de arte, de âmbito erudito. A escolha do título não foi fácil, sendo a decisão tomada pelo presidente da Fundação, que apadrinhou o projecto2. Em 1969, ano do centenário do patrono, Calouste Gulbenkian, seria lançado o primeiro número. Esta publicação surgia em plena “primavera” marcelista, altura em se começava a observar uma maior abertura do país ao capitalismo internacional e um aumento do peso do factor cultural na sociedade portuguesa3. O presente artigo pretende ser uma análise centrada na fase inicial desta publicação, desde a sua fundação, em 1969, até 1993, ano a partir do qual a revista alteraria a sua titulatura, passando a designar-se Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian.

Os principais objectivos desta publicação são expressos nas páginas iniciais de vários volumes, da autoria dos diversos directores que a revista conheceu ao longo dos anos. Ainda no primeiro volume, datado de 1969, tendo como director Joaquim Veríssimo Serrão, esta publicação apresentava-se como “um órgão doutrinal e informativo que pretende elevar os valores da Cultura portuguesa”4. Um dos seus objectivos fundava-se, pois, na satisfação das aspirações de um grande número de entusiastas da cultura lusa, constituindo instrumento ideal para uma análise da problemática cultural do seu tempo.

Desde a sua fundação, mimetizando os objectivos do Centro de Paris da Fundação Calouste Gulbenkian, esta revista pretendeu complementar as suas actividades, impondo a presença junto das universidades, academias, bibliotecas e outras instituições de carácter literário ou científico. A revista pretendia constituir um veículo de divulgação, desejando “servir, o melhor possível, a política de aproximação

Paris: F.C.G., Vol. XVII (1990), p. 16. 2 IDEM, ibidem, p. 18.3 RIBEIRO, António Sousa – “O Povo e o Público. Reflexões sobre a Cultura em Portugal no Pós-25 de

Abril”, Revista Crítica de Ciências Sociais. Coimbra, nº. 18-20, (Fevereiro, 1986), p. 16.4 Cf. SERRÃO, Joaquim Veríssimo – “Apresentação”, Arquivos do Centro Cultural Português. Lisboa/Paris, vol. I

(1969), pp. 9-10.

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luso-francesa no campo da arte, da ciência e da educação”5. Uma divulgação centrada numa mensagem inscrita num pensamento cultural, “desenvolvendo o ambiente da lusofilia, estimulando as suas correntes mais expressivas”, de forma a tornar mais amada e mais conhecida a cultura portuguesa6.

Joaquim Veríssimo Serrão afirmava, ainda, ser objectivo desta publicação, o estudo e a investigação de temas portugueses ou luso-franceses, aspirando constituir um corpo documental que prestigiasse a cultura dos dois países, um “repositório de saber”, um instrumento de trabalho e um “traço de união entre os Mestres, os Amigos e os estudiosos da Cultura portuguesa”7, valorizando a aproximação entre os países lusófonos. Para tal, a publicação dispunha-se a divulgar estudos de comprovado valor científico e a revelar documentos de interesse histórico e literário.

José de Pina Martins, em 1979, após suceder a Veríssimo Serrão na direcção da publicação, afirmaria mesmo que aquela existia para difundir a cultura portuguesa em França. Ab initio, a publicação propunha-se publicar estudos de história, de literatura e de arte, “na sua feição autónoma e comparada”8, tendo como exclusivo domínio as ciências humanas.

Como uma “colectânea erudita”, nas palavras do director e fundador da revista, Joaquim Veríssimo Serrão, logo no primeiro volume encontramos, nas páginas de apresentação, a tipificação do público a quem se destinava: “um cada vez maior número de lusófilos”9. Como tal, tratava-se de uma publicação dirigida a investigadores de formação superior com interesse ao nível das ciências humanas. Esta revista surgia, pois, num período em que se observava, em Portugal, um surto de revistas de história, publicadas essencialmente no âmbito de universidades e centros de investigação, geralmente suportadas por investigadores, facto que sublinharia a redução do conceito e do acesso à cultura a uma elite restrita. Sendo uma publicação singularizada, de cultura, interdisciplinar, operava em circuito fechado.

A necessidade da existência de um órgão doutrinal e erudito de aproximação luso-francesa tornou-se, contudo, realidade algumas décadas antes da publicação

5 SERRÃO, Joaquim Veríssimo - “Apresentação”, p.10.6 IDEM, ibidem, p. 10.7 IDEM, ibidem, p. 10.8 IDEM, ibidem, p. 10.9 IDEM, ibidem, p. 10.

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dos Arquivos do Centro Cultural Português. Percursora, nesta área, terá sido a publicação intitulada Bulletin des Études Portugaises, editada a partir de 1931 por uma parceria entre a Universidade de Coimbra, responsável pela sua coordenação, e o Institut Français en Portugal, responsável pela sua redacção. Na sua fase inicial, esta revista era editada três vezes por ano, em Janeiro, Maio e Novembro, compilando artigos originais e inéditos, redigidos em língua francesa, traduções de artigos portugueses dificilmente acessíveis a investigadores estrangeiros e recensões críticas de obras recentes com importância para a cultura portuguesa.

Estrutura da Publicação

Ao longo dos vinte e quatro anos de publicação, a revista foi dirigida pelos quatro directores do Centro Cultural Português durante aquele período de tempo. O primeiro director e fundador da revista foi Joaquim Veríssimo Serrão, assinalando o seu contributo entre 1969 e 1972, correspondente à primeira série da publicação. José de Pina Martins sucedeu a Veríssimo Serrão, permanecendo no cargo durante dez anos, entre 1973 e 1983, correlacionados com a segunda e terceira séries da publicação. Entre 1983 e 1988, José Augusto França dirigiu este periódico, num período relativo aos volumes da quarta série. Por fim, entre 1989 e 1993, a direcção desta revista coube a Maria de Lourdes Belchior, num período correspondente à sexta e sétima série. Os quatro directores do Centro Cultural Português partilhavam a sua formação de base entre as ciências histórico-filosóficas e a filologia românica, bem como a actividade de leitores e investigadores em universidades francesas.

Apesar de se tratar de uma revista de periodicidade anual, em alguns anos específicos observou-se a edição de dois volumes relativos quer a números comemorativos, quer à publicação de índices. Em 1972, publicaram-se dois números aproveitando, segundo o director, os variados contributos dos seus colaboradores. Datados de 1978 existem, da mesma forma, dois volumes, sendo um deles uma compilação de índices dos cinco volumes anteriores, apenas publicada em 1981. O mesmo sucederia relativamente ao ano de 1984, 1988 e 1991. Durante o ano de 1990, observou-se a publicação de dois volumes, sendo um deles um número

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comemorativo dos vinte e cinco anos do Centro Cultural Português. A publicação seria composta por trinta e dois volumes, divididos em seis

séries. A primeira série compreendia os volumes I a V (1969-1972), a segunda série compreendia os volumes VII a XI (1973-1977), a terceira série abrangia os volumes XIII a XVII (1978-1982), a quarta série abarcava os volumes XIX a XXIII (1983-1987), a sexta série continha os volumes XXV a XXIX (1988-1991), a sétima série compreendia os volumes XXXI e XXXII (1992-1993). Não se observaria uma quinta série, passando-se imediatamente da quarta série para a sexta série. Na verdade, o conjunto dos volumes segue uma sequência de numeração ininterrupta, correspondendo as séries a etapas da publicação norteadas pelo perfil dos directores. Quanto à tiragem, sabe-se apenas que durante a primeira série, terá sido de oitocentos a oitocentos e cinquenta exemplares. A publicação iniciar-se-ia com uma média de seiscentas a oitocentas páginas, aumentando nos anos seguintes a sua envergadura atingindo, em 1982, mais de mil páginas.

Inicialmente, os Arquivos eram constituídos por três partes distintas, que constituíam a sua organização-chave. Um primeiro segmento reunia os artigos de fundo dos colaboradores, da autoria de mestres universitários e tomava o nome de “Parte Doutrinal”. Uma segunda parte, de carácter informativo e divulgador, tomava o título de “Vária”, reunindo notas e documentos de comprovado interesse histórico. Por último, observava-se uma parte bibliográfica dedicada a recensões críticas de obras publicadas em Portugal e no estrangeiro com interesse para a história da cultura portuguesa. Outra importante secção, que se manteve inalterada ao longo dos anos, constituía a parte final de cada volume e era intitulada “Actividades do Centro Cultural Português”. Esta secção reunia o resumo das actividades do Centro em cada ano, ao nível de concertos, exposições, conferências, publicações e até o movimento da biblioteca. Ao longo dos vários números, a revista apresentaria ilustrações, muitas vezes coloridas, e fotografias. Contudo, com o decorrer dos anos notou-se uma perda de preponderância da imagem no grafismo deste periódico.

Em 1973, sob a direcção de José Pina Martins, duas secções alteravam a sua titulatura, mantendo, contudo, o conteúdo. Assim, a “Parte Doutrinal” passaria a designar-se “Estudos Doutrinais”, enquanto a “Vária” ganharia a designação de

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“Notas e Documentos”. No delinear do volume correspondente ao ano de 1973 apareceria uma nova secção, intitulada “A Cultura Portuguesa no Mundo”, que reunia dois artigos de homenagem aos professores I. S. Révah e Edward Glaser, dois dos maiores estudiosos da cultura portuguesa no século XX. No ano seguinte, em 1974, desaparecia esta secção, para surgir uma outra, intitulada “A Cultura Portuguesa em França”, onde se arquivava uma resenha sobre a produção dos meios universitários franceses em prol da língua e literaturas portuguesas. Contudo, no ano seguinte, esta última desapareceria e surgiria novamente a secção “A Cultura Portuguesa no Mundo”, embora com novo conteúdo. Desta feita, reunia dois trabalhos de Adrien Roig e Paul Teyssier, sobre a provável autoria da tragédia “A Castro”, atribuída a António Ferreira. No ano seguinte, esta secção manteve-se, reunindo artigos de outros autores sobre a mesma temática, nomeadamente Roger Bismut e Aníbal Pinto de Castro. No volume XII, datado de 1978, observamos pela última vez o aparecimento desta secção, reunindo três artigos, dois da autoria do director da publicação e outro de Alfredo Margarido, um sobre o tema do humanismo português debatido num colóquio na Universidade de Tours e duas resenhas em memória de Vitorino Nemésio e de Jorge de Sena, falecidos naquele ano.

A partir de 1983, sob a direcção de José Augusto França, a secção intitulada “Estudos Doutrinais” passaria a designar-se “Estudos e Ensaios” mantendo, contudo, o mesmo conteúdo. Após um estudo intensivo das duas secções mais significativas desta publicação, “Parte Doutrinal/Estudos Doutrinais/Estudos e Ensaios” e “Vária/Notas e Documentos”, concluímos que o peso de ambas foi variável ao longo do tempo. Até 1971, a “Parte Doutrinal” teve um peso mais significativo, perdendo posteriormente a preponderância até 1984. Durante esse período, que concerne à direcção de José de Pina Martins, as “Notas e Documentos” obtiveram uma maior relevância no que era relativo ao número de artigos publicados. No ano de 1983, a partir do qual se daria uma viragem, esta secção reunia o dobro do número de artigos patentes nos “Estudos Doutrinais”. Contudo, a partir de 1984, os “Estudos Doutrinais” ganhariam novo fôlego, ultrapassando a secção informativa, regressando ao formato original de 1969, que se manteria até 1993.

Em 1985, no volume XXI, seria inaugurada uma nova secção, “Homenagens e Comemorações”, que passaria a constituir a primeira parte da publicação, reunindo

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textos laudatórios a personagens, factos e efemérides da cultura portuguesa. Os principais homenageados seriam Camilo Castelo Branco, Aquilino Ribeiro, Fernando Pessoa, Victor Hugo, Cesário Verde, António Pedro, Jorge de Sena, Candido Portinari, Baltasar Lopes…. Esta secção não foi constante em todos os números que se seguiriam, registando-se pontualmente, quando a ocasião o permitia.

No que era relativo à secção das recensões críticas observámos uma evolução irregular. Nos dois primeiros anos da publicação registou-se um elevado número de recensões (dezoito), que não mais voltaria a ser atingido. A partir do III volume, notamos um declínio desta secção, chegando pontualmente a desaparecer em anos como 1975, 1980, 1981, extinta na totalidade a partir de 1990, sob a direcção de Maria de Lourdes Belchior. Considerada pelos vários directores como a secção mais pobre, as razões para este desaparecimento após uma sublinhada decadência, parecem centrar-se numa colaboração limitada por parte dos autores, avessos à crítica dos seus pares, evitando atrasos de publicação, bem como numa falta de espaço em mercê da elevada extensão das restantes rubricas. Contudo, o interesse cultural desta secção seria exaustivamente sublinhado, pelo seu ponto de vista crítico e pela importância dos seus aspectos temáticos.

Gráfico 1:Evolução do total de recensões críticas (1969-1993).

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Numa análise mais aprofundada, observamos que, sob a direcção de Joaquim Veríssimo Serrão, as recensões foram mais frequentes e, na sua maioria reportavam-se a obras de autores portugueses dissecadas por uma maioria de críticos lusos, embora existissem, em número residual, analistas franceses e de outras nacionalidades. Entre 1973 e 1983, sob a direcção de José de Pina Martins, esta secção perderia preponderância e ganharia lacunas. As obras analisadas continuavam, na generalidade, a ser obras de autores portugueses, ganhando, contudo, terreno as obras de autores franceses e de outras nacionalidades. Os críticos estrangeiros passavam a ser a maioria, observando-se um alargamento e uma internacionalização de autores e censores. Sob a direcção de José Augusto França, apenas num único número se observou esta secção, relativo ao ano de 1984, programado pelo anterior director. Em 1990, sob a direcção de Maria de Lourdes Belchior, os Arquivos voltariam a conhecer, pela última vez esta secção, partindo para uma análise partilhada de obras de autores franceses e portugueses, efectuada por críticos de várias nacionalidades.

Gráfico 2:Total de obras submetidas a recensão por autores portugueses, franceses ou de outras nacionalidades (1969-1993).

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Gráfico 3:Nacionalidade dos críticos responsáveis pelas recensões (1969-1993).

Durante o seu período de publicação, os Arquivos conheceram vários números especiais, com uma organização por vezes díspar da atrás descrita. Há que mencionar, em primeiro lugar, os vários volumes que constituíram índices de artigos dos números precedentes. O volume VI, datado de 1973, foi o primeiro destes números, cuja necessidade se impunha pela sua utilidade, tratando-se de um instrumento de pesquisa e de consulta. Mais volumes desta natureza observaram-se nos anos de 1978, 1984, 1988 e 1992, repletos de um conjunto de índices plasmados nos existentes na Bibliothèque d’Humanisme et Renaissance de Genebra.

Foi durante a direcção de José de Pina Martins que se iniciou a publicação de números de homenagem a diversas personalidades da vida cultural luso-francesa. O primeiro desses números foi o volume IX, correspondente ao ano de 1975, dedicado a Marcel Bataillon, por altura do seu octogésimo aniversário. Em 1981, observámos a publicação de um número monográfico dedicado a Camões, no rescaldo do centenário Camoniano e do Colóquio Internacional “Camões e a Civilização do Renascimento”, organizado pelo Centro Cultural Português em Outubro de 1980. O volume XVII, datado de 1982, marcaria uma homenagem a Léon Bourdon, celebrando os seus oitenta e dois anos e o cinquentenário da

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publicação de um dos seus primeiros estudos sobre a cultura portuguesa, “Notes sur les sources portugaises de Montaigne (Osório e Castanheda)”.

Em 1983, já sob a direcção de José Augusto França, mas recolhendo textos escolhidos pelo antigo director, registou-se um número de homenagem a Raymond Cantel, na comemoração da sua jubilação. O volume XXIII, datado de 1984, trata-se de uma homenagem a Paul Teyssier, organizado por José da Silva Terra, retomando uma tradição que permitiu elogiar outros lusitanistas que se haviam jubilado. Em 1990, já sob a direcção de Maria de Lourdes Belchior, seria publicado um número comemorativo dos vinte e cinco anos do Centro Cultural Português, reunindo resenhas biográficas sobre Calouste Gulbenkian e José de Azeredo Perdigão e um conjunto de testemunhos e artigos de personalidades ilustres da cultura luso-francesa. O último volume laudatório é o volume XXXI, uma homenagem ao Professor Adrien Roig, da Universidade de Montpellier, coordenado por Claude Maffre.

Temáticas Abordadas

Lembre-se que, como objectivo inicial desta revista, constava a publicação de estudos de história, de literatura e de arte, “na sua feição autónoma e comparada”, tendo como exclusivo domínio as ciências humanas. Nesse sentido, após a análise atenta desta colectânea, observamos que, relativamente a esta tríade de principais temas-problemas objectivados, a arte foi aquele que ficou mais aquém. Em termos de periodização, podemos salientar que o período histórico com maior representatividade seria a época moderna, em mercê dos variados estudos concernentes à cultura, à história e à literatura renascentista portuguesa. Contudo, para além destes, identificam-se, nesta obra, artigos de história medieval e contemporânea. No início da sua direcção, José de Pina Martins confessa algumas reticências relativamente aos temas contemporâneos. No seu entender, os Arquivos, como revista científica, deveria ter “muita cautela” no tratamento desses temas “porque faltando-nos uma suficiente distância ou perspectiva, não possuímos o

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bastante recuo para uma visão exacta, tanto quanto possível objectiva, da matéria”10. Na sua opinião, a revista não deveria tratar simples contributos jornalísticos, impedindo que se tornasse “um repositório de ensaísmo superficial”.

Podemos observar, no que é relativo à parte doutrinal desta colectânea, que até 1977 se observou uma grande diversificação dos temas abordados. Apesar de a literatura ter sido sempre um tema fulcral desta revista, durante este período registou-se a publicação de artigos na área da história do livro, da história ultramarina, da história religiosa, da história das ideias, da história da música, da história da arte. Do ponto de vista cronológico, observou-se um maior pendor para estudos de história moderna, embora se reconheçam apontamentos de história contemporânea. Contudo, a partir de 1978 até praticamente ao último número, salvo raras excepções, o tema literário lideraria, ocupando, em certos volumes, um peso muito superior a 50% da obra, o que suscitaria, consequentemente, uma menor diversidade ao nível dos temas históricos abordados.

Lembre-se que um dos objectivos propostos por esta obra foi uma aproximação histórica de temas luso-franceses. No que seria respeitante à parte doutrinal desta obra, observamos que os temas abordados, na sua grande maioria, referiam-se unicamente à história de Portugal. Contudo, uma pequena percentagem dos artigos abordaria uma dinâmica luso-francesa, muitas vezes comparativista. Essa dinâmica foi facilmente observável entre 1969 e 1976, sendo quase esquecida entre 1977 e 1983, reaparecendo, a partir dessa data, de uma forma pontual.

10 MARTINS, José de Pina – “Introdução”, Arquivos do Centro Cultural Português. Lisboa/Paris, vol. VII (1973), p. 9.

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Gráfico 4:Distribuição temática dos artigos da secção doutrinal (1969-1993).

Gráfico 5:Distribuição do total de artigos concernentes à história comparada entre Portugal e França e à História de Portugal (1969-1993).

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No que é respeitante à secção informativa desta obra, de estudos e documentos, observamos que, nos números iniciais, registou-se um cuidado em dosear com semelhante peso a publicação de notas e fontes relacionadas com a história comparada entre Portugal e França e com a história portuguesa. Anote-se que no primeiro número, datado de 1969, a grande maioria das análises de fontes publicadas seriam relacionadas com esta dinâmica comparativa, como seria o caso, a título de exemplo, do artigo de Joaquim Veríssimo Serrão intitulado Alguns documentos de Bordéus referentes a Portugal. Contudo, esta situação não mais se observaria, passando esta secção a ser essencialmente preenchida pela publicação de notas e fontes portuguesas, reaparecendo esporadicamente alusões a notas e fontes luso-francesas, perdendo-se assim, uma certa feição comparante. Tal pendor parece apenas ressurgir na década de 1990, sob a direcção de Maria de Lourdes Belchior.

Os Colaboradores

Em termos globais, durante o período em estudo, cerca de 44% do total de colaboradores desta revista seriam portugueses, seguidos pelos franceses, na ordem dos 35%. Esta diversificação foi tornada clara desde 1979, quando o então director da publicação, José de Pina Martins, explicava esta escolha, de um maior número de colaboradores portugueses, seguido por um número bastante considerável de investigadores franceses, pelo facto de esta ser uma revista portuguesa e ter a sua sede em França. Se a grande maioria dos colaboradores desta revista possuíam nacionalidade portuguesa e francesa, observaram-se, contudo, colaborações de autores de várias nacionalidades, estudiosos da cultura portuguesa no mundo. Registou-se significativamente a colaboração de autores de nacionalidade brasileira, espanhola, inglesa, americana e italiana. Inscreveram-se, da mesma forma, colaborações pontuais de autores argelinos, arménios, turcos, polacos, belgas, chineses, israelitas, ingleses, holandeses, romenos e alemães.

Relativamente aos colaboradores portugueses, na sua grande maioria eram autores radicados em Portugal. Contudo, cerca de 25% destes laboravam no estrangeiro. Sendo uma revista aberta a contribuições de académicos e a outros

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investigadores não filiados em universidades, os colaboradores portugueses eram, na sua maioria (64%), académicos. Como José Pina Martins afirmou, “a qualificação universitária dos colaboradores tem interesse, mas não é indispensável”11. Nesse sentido, as instituições mais representadas eram a Universidade de Lisboa, através da sua Faculdade de Letras (com 30% das ocorrências), a Universidade do Porto (14%) e a Universidade Nova de Lisboa (12%).

Gráfico 6:Distribuição percentual dos colaboradores por nacionalidades (1966-1993).

11 MARTINS, José de Pina, op. cit, p. 10.

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José de Pina Martins foi, indubitavelmente, o autor português mais profícuo presente nesta publicação, no que respeitante ao número de artigos produzidos (35), ao número de páginas escritas (818) e ao número de volumes em que participou (16). Contudo, outros nomes são de assinalar: Joaquim Veríssimo Serrão, autor de vinte e oito artigos em seis volumes; Fernando Castelo Branco, autor de vinte e um artigos em nove volumes; Eduardo Lourenço, recorrente colaborador, em nove volumes; José Fernandes da Silva Terra, produtor de duzentas e cinquenta e três páginas coligidas em cinco artigos; Alfredo Margarido, autor de duzentas e quarenta e quatro páginas dispersas por sete artigos; José Augusto França, colaborador em oito volumes desta publicação.

No que diz respeito aos colaboradores franceses, 76% eram académicos, provenientes de várias universidades espalhadas por todo o território francês. As universidades francesas mais representadas nesta publicação seriam a Universidade de Paris (24%), a Universidade de Montpellier (13%), a Universidade de Toulouse (7%), a Universidade de Bordéus (7%) e a Universidade de Aix-en-Provence (6%). É de assinalar a colaboração de vários autores franceses nesta publicação, nomeadamente de Claude-Henri Frèches e Adrien Roig, autores de onze artigos, Jean Aubin, autor de oito artigos, Marie Heléne Piwnick, a mais profícua autora no que respeitante ao número de páginas produzidas, ou ainda Yvonne David Peyre, produtora de duzentas e oito páginas distribuídas por dez volumes.

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Gráfico 7:Distribuição dos colaboradores franceses por universidades, em números absolutos.

No que era respeitante aos restantes contribuintes desta revista, das mais variadas nacionalidades, torna-se necessário assinalar a participação do investigador belga, Roger Bismut, profícuo colaborador em treze volumes desta publicação, autor de quinze artigos e redactor de trezentas e onze páginas. Significativa foi, também, a participação de vários autores brasileiros, que perfez 6% da totalidade de colaborações presentes nesta publicação. Nesse sentido, apesar de se registar a presença de investigadores dispersos por todo o território brasileiro, observou-se uma maior representação de académicos da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade de São Paulo.

Os colaboradores italianos, cuja contribuição perfez 2% da totalidade de colaborações registadas nesta obra, foram essencialmente representados pela Universidade de Roma. De entre estes, há a destacar os nomes de Aurelio

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Roncaglia12 e de Luciana Stegagno Picchio13, os autores italianos mais prevalentes. Não será de menosprezar a importância da colaboração de investigadores

espanhóis, com um peso de 4% na totalidade da obra. Essencialmente representados pela Universidade de Salamanca (36%) e pela Universidade de Santiago de Compostela (22%), é possível destacar os nomes de Angel Marcos de Dios14 e de Eugénio Ansensio15, como os maiores contribuintes espanhóis nesta publicação.

12 Aurelio Roncàglia (1917-2001): filólogo e crítico italiano. Professor de Filologia Românica na Universidade de Pavia (1954) e na Universidade de Roma (1956), foi membro de prestigiadas instituições culturais estrangeiras, director da revista Cultura neolatina. Foi titular da cátedra de Filologia Românica na Universidade de Roma entre 1956 e 1987. Foi sócio da Academia de Lincei (1984), vice presidente da União Académica Internacional (1986-1988 / 1991-1993), presidente da Sociedade de Linguística Romana (1983-1986) e da Academia de Ciências de Lisboa, entre outras organizações. Cf. TAVANI, Giuseppe – Aurelio Roncàglia. Enciclopedia Italiana – V Appendice [Em linha] (1994). [Consult. 8 Janeiro 2016]. Disponível na Internet: <URL: http://www.treccani.it/enciclopedia/aurelio-roncaglia_(Enciclopedia-Italiana)/>.

13 Luciana Stegagno Picchio (1920-2008): filóloga iberista, medievalista, brasilianista, historiadora do teatro e da literatura, foi considerada a mais importante luso-brasileirista da Europa. Desempenhou o cargo de Professora Emérita da Universidade de Roma «La Sapienza», depois de ter nela leccionado, como Professora Catedrática, entre 1969 e 1996. Licenciada em Arqueologia Grega pela Universidade de Roma, é considerada uma das principais referências de crítica e do estudo aprofundado das culturas e literaturas portuguesa, brasileira e italiana, um dos nomes mais sonantes do panorama crítico e literário europeu. Cf. Luciana Stegagno Picchio. Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora (2003-2016). [Consult. 8 Janeiro 2016]. Disponível na Internet: <URL: http://www.infopedia.pt/$luciana-stegagno-picchio>.

14 Angel Marcos de Dios: professor catedrático da Universidade de Salamanca, do departamento de Filologia Moderna, especializado em Filologia galega e portuguesa. É especialista em cultura portuguesa, nas relações entre Unamuno e Portugal e entre Camões e a Literatura Espanhola. Cf. Marcos de Dios, Angel. Universidad de Salamanca [Em Linha] (2009). [Consult. 8 Janeiro 2016]. Disponível na Internet: <URL: http://www.usal.es/webusal/pt/node/17513>.

15 Eugenio Asensio (1902-1996): filólogo e historiador espanhol. Reconhecido especialista em literatura peninsular medieval, estudou na Universidade de Madrid, tendo ampliado os seus conhecimentos em Paris e Berlim. Merece especial atenção o seu estudo sobre as cantigas de amigo galaico-portuguesas e os seus Estudos Portugueses. Cf. Eugenio Asensio. Biografias y Vidas: La Enciclopedia Biográfica en Línea [Em Linha] (2014-2016). [Consult. 8 Janeiro 2016]. Disponível na Internet: <URL: http://www.biografiasyvidas.com/biografia/a/asensio.htm >

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Gráfico 8:Distribuição dos colaboradores espanhóis por instituição de ensino (1969-1993).

Há, ainda, a salientar, a participação de investigadores anglo-saxónicos, cerca de 4% do total de colaboradores nesta obra, participação mais preponderante, contudo, a partir de meados da década de 1980. Regista-se, contudo, uma maior contribuição de investigadores de várias universidades norte-americanas, sendo as mais representadas a Universidade da Califórnia e a Universidade do Texas, somando ambas 30% do total de estabelecimentos de ensino norte-americanos representados. De entre estes investigadores, há que nomear Frederick Williams16 e Tomas Hart17 como os principais colaboradores norte-americanos nesta publicação.

16 Frederic G. Williams (1940): professor de Estudos Luso-Afro-Brasileiros. Durante 27 anos foi professor da Universidade da Califórnia. Em 1999 foi convidado para a Brigham Young University, onde ainda lecciona. Na California desenvolveu primeiramente as suas actividades académicas, tendo sido o primeiro director do Centro de Estudos Portugueses Jorge de Sena. As suas linhas de investigação centram-se no estudo das literaturas e culturas luso-afro-brasileiras, tradução poética, e o poeta português Jorge de Sena. Também publicou uma monografia sobre Luís Vaz de Camões. Cf. BRIGHAM YOUNG UNIVERSITY. Frederick Granger Williams-Professor. Department of Spanish & Portuguese Directory Entry [Em Linha] (2010). [Consult. 8 Janeiro 2016]. Disponível na Internet: <URL: http://spanport.byu.edu/directory/fgw5/>

17 Thomas R. Hart (1925-2010): professor emérito da Universidade do Oregon, especialista em Literatura Hispânica. O seu estudo mais importante foi uma comparação entre Cervantes e Ariosto através das suas obras magnas, D. Quixote e Orlando Furioso. Cf. RIVERS, Elias – Thomas R. Hart (1925-2010). Cervantes: Bulletin of Cervantes Society of America [Em Linha]. Vol. 30, nº.1, Spring (2010). [Consult. 8 Janeiro

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A colaboração de autores ingleses foi muito discreta, sendo de assinalar, contudo, o trabalho de Harold Livermore18, de maior fôlego em relação aos restantes.

Gráfico 9:Distribuição dos colaboradores norte-americanos por universidades (1969-1993).

Resumidamente, podemos concluir que, durante o período da revista dirigido por Joaquim Veríssimo Serrão e José de Pina Martins, entre 1969 e 1981,

2016]. Disponível na Internet: <URL: https://www.questia.com/library/journal/1G1-227796635/thomas-r-hart-1925-2010>

18 Harold Livermore (1914-2010): o maior historiador britânico especializado em história da Ibéria. Em 1947 publicou a sua História de Portugal, sendo o primeiro britânico a encetar um estudo desta natureza, pelo qual foi agraciado com o Prémio Camões. Formado pela Universidade de Cambridge, entre 1941 e 1942, leccionaria na St. Julian’s School, em Carcavelos. Regressado ao Reino Unido, escreveria, em 1958, a História de Espanha, sendo também o primeiro autor anglófono a publicar uma obra desta natureza. Foi professor de Estudos Hispânicos na Universidade de British Columbia até 1976, quando passaria a tutor de Estudos Portugueses nas Universidades de Cambridge e Westminster. Foi membro da Academia das Ciências, da Academia Portuguesa da História, havendo sido condecorado com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. Cf. WILLIS, Clive – Professor Harold Livermore: Historian of Iberia who wrote the prize-wining ‘A History of Portugal’. Independent. [Em Linha] (2010). [Consult. 8 Janeiro 2016]. Disponível na Internet: <URL: http://www.independent.co.uk/news/obituaries/professor-harold-livermore-historian-of-iberia-who-wrote-the-prize-winning-a-history-of-portugal-1916406.html>

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observou-se uma clara maioria de colaboradores portugueses. Contudo, a partir de 1982, registou-se um predomínio de colaboradores franceses. É evidente que tais cambiantes tiveram repercussões ao nível da língua em que os Arquivos se encontram escritos. Aceitando artigos em várias línguas (português, francês, inglês, italiano), as línguas portuguesa e francesa foram, contudo, as mais representadas. Desde o início da publicação, considerou-se pertinente a existência de um certo equilíbrio entre as línguas, como admitia José de Pina Martins em 1973. A verdade é que, até 1975, predominou a língua portuguesa. Contudo, a partir desta data, à excepção dos anos de 1978 e 1981, preponderou sempre a língua francesa.

Gráfico 10:Evolução comparada do total de colaboradores franceses e portugueses (1969-1993).

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Gráfico 11:Evolução comparada do total de artigos em língua francesa e em língua portuguesa (1969-1993).

Estilos e Influências Historiográficas

Como já verificámos, uma considerável parte dos colaboradores desta publicação eram lusitanistas, na sua maioria franceses, espalhados um pouco por todo o mundo. Não será, pois, de estranhar que a generalidade dos temas abordados por esta publicação se resuma à história da literatura e à literatura, uma zona privilegiada destes estudiosos da cultura portuguesa, resultando em muito dos diversos leitorados espalhados por universidades estrangeiras, direccionados para uma visão predominantemente literária da história.

Podemos considerar que a principal linha de investigação dos autores de nacionalidade francesa foi, como não poderia deixar de ser, a história da literatura, demonstrando especial interesse pela época renascentista, sobretudo pela obra de Camões. Contudo, outros temas foram objecto de investigação por parte destes, muitas vezes centrados na época contemporânea e na história da arte.

Como já destacámos, existiu também uma forte colaboração, nesta publicação, de autores brasileiros e espanhóis. De facto, não era novo o forte

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contributo de investigadores brasileiros, observando-se um intercâmbio cultural nomeadamente ao nível da história literária e da história ultramarina desde o século XIX. No que diz respeito a esta publicação, os autores brasileiros nela incluídos interessaram-se sobretudo por história da literatura, mas também demonstraram interesse por temas de história contemporânea e história da língua portuguesa.

Se uma forte colaboração brasileira, nesta publicação, não foi surpreendente, o mesmo não se poderá considerar da colaboração espanhola. De facto, no país vizinho, os lusófilos e lusitanistas nunca foram de grande relevo e os existentes sempre se posicionaram no âmbito da língua e da literatura. Nesta obra, contudo, a sua presença é deveras assinalável, observando-se uma clara propensão destes para temas da história da língua, história literária e, no seio desta, a época renascentista e os trabalhos de Camões, mas também um interesse diversificado sobre temas de história contemporânea, da União Ibérica e da Inquisição. Pode ser esta, possivelmente, mais uma prova de uma nova dimensão do lusitanismo em Espanha a partir, sobretudo, da década de 1980.

Não podemos deixar ainda de assinalar a colaboração de autores anglo-saxónicos e italianos. Se os contributos italianos se debruçaram sobre temas literários, a colaboração anglo-saxónica demonstrou um grande dinamismo. Existe a ideia de que os historiadores ingleses e americanos possuem uma grande propensão para o estudo da época dos Descobrimentos e da Expansão. Contudo, no seio desta obra, embora a maioria destes autores se interessassem por história da literatura, observou-se uma diversidade de temas abordados, como o interesse pela história da arte, pela historiografia portuguesa ou pela presença dos portugueses no Oriente.

Numa primeira análise, observamos, no seio desta publicação, uma clara aproximação entre história e literatura, que se torna mais consistente a partir de meados da década de 1970. Esta aproximação é observável a vários níveis, num interesse pela biografia dos grandes cronistas, pela história do teatro, pela história da literatura luso-francesa, pela divulgação de edições desconhecidas de textos literários, pelas análises bibliográficas de autores e algumas descobertas neste campo. Muitas vezes, as obras literárias são percepcionadas, nesta publicação, enquanto fontes históricas. A literatura transparece como expressão de uma cultura nacional.

A literatura mergulha na história à sombra das comemorações do passado.

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Presente nesta publicação, nota-se uma clara expressão ritualista de evocar o passado, principalmente através do recurso a tributos e homenagens a grandes escritores desaparecidos, desenvolvida numa secção própria, observável a partir de 1985. Contudo, assinala-se também uma homenagem aos organismos vivos, quer se tratem de pessoas ou instituições, como comprovam os diversos números especiais de homenagem a lusitanistas por ocasião da sua jubilação, ou o número comemorativo dos vinte e cinco anos do Centro Cultural Português.

Poderemos, da mesma forma, questionar a importância que as recensões críticas assumem no seio desta publicação. Considerada pelos vários directores como o segmento mais pobre, acabaria por desaparecer após uma sublinhada perda de preponderância no seio da obra. A razão dessa ausência parecia centrar-se numa colaboração limitada por parte dos autores, avessos à redacção deste tipo de artigos, e numa falta de espaço em mercê da elevada extensão das restantes rubricas, o que revelaria uma clara opção pela sua exclusão.

Esta análise, contudo, não conclui por uma ausência de debate crítico no seio deste periódico. Pelo contrário, ele verifica-se na grande maioria dos artigos publicados, observando-se, por vezes, uma crítica impregnada de certezas, como a patente em Roger Bismut ou Aníbal Pinto de Castro, no debate historiográfico sobre a autenticidade da tragédia A Castro, da autoria de António Ferreira.

É interessante observar uma diferenciação de estilos no seio desta publicação. Na sua fase inicial, sob direcção de Joaquim Veríssimo Serrão, ainda durante o Estado Novo, observamos uma linha focada numa história crítica, produzida em grande parte por investigadores portugueses, em língua portuguesa, dedicada a uma diversidade de temas, em que a literatura está presente, mas de uma forma diluída em relação a outras temáticas. Nos primeiros volumes encontra-se uma variedade de temas históricos, observando-se uma preocupação no desenvolvimento de temáticas, fontes e notas luso-francesas, numa perspectiva comparativista. É ainda uma revista com pouca abertura internacional, mas cultiva uma historiografia problematizante e crítica, valorizando, não obstante, os temas lusos.

Com o advento do período democrático, a partir de 1974, e a direcção de José de Pina Martins, observaram-se algumas alterações a este modelo. À medida que a revista se abria em termos de colaborações internacionais, a análise crítica e

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aprofundada patente na parte doutrinal seria ultrapassada, em termos de número de artigos e de importância, pela superficialidade da secção divulgativa de notas e de fontes, numa maior importância dada à heurística do que à hermenêutica. Consolidando esta visão, observamos o progressivo decréscimo do número de recensões críticas, abertas a obras e a críticos estrangeiros, ao passo que se notava um ganho de envergadura da publicação. O número de colaboradores franceses igualava o número de colaboradores portugueses e a língua francesa ganhava peso, muitas vezes ultrapassando a língua portuguesa. A imbricação entre história e literatura tornava-se mais forte, diminuindo a diversidade de temas abordados. José de Pina Martins admitia um certo distanciamento da história contemporânea, em virtude de uma possível perda da qualidade do discurso historiográfico, diluído em superficialidade. Da mesma forma, paulatinamente, afasta-se do comparativismo luso-francês. Os Arquivos tornam-se numa revista de cariz internacional, aberta ao mundo. Inauguram-se os números de homenagem a lusitanistas e a grandes vultos das Letras portuguesas, como Camões, instalando-se as ritualizações do passado.

Sob a direcção de José Augusto França, observamos uma intensa aproximação entre história e literatura e história e linguística. A literatura passa a ser o principal tema desta publicação, sendo pouca a abertura a outras temáticas. As recensões críticas desaparecem quase por completo. Contudo, a secção doutrinal fortalece-se em relação à secção informativa, ganhando maior profundidade. Instalam-se as ritualizações memorialistas, nomeadamente a partir de 1985, quando se funda uma secção, primordial, intitulada “Homenagens e Comemorações”. A maioria dos colaboradores seriam de nacionalidade francesa e a revista passava a ser, na generalidade, constituída por artigos escritos na língua de Flaubert. Entre 1989 e 1993, com Maria de Lourdes Belchior na direcção do Centro e da revista poucas alterações a este panorama seriam observáveis.

Nesta obra, a história parece resumir-se a uma disciplina literária, muitas vezes fundindo-se com ela. Observa-se uma transição entre uma história tradicional, de tendência erudita, onde o primado das fontes documentais tradicionais e literárias era uma realidade, e uma história que se renova, cultora de um forte sentido crítico. Contudo, no período estudado, é interessante verificar que, mesmo com a presença de um forte número de colaboradores estrangeiros, nomeadamente franceses, não

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se observaria a penetração das grandes correntes historiográficas em voga. Tal poderá explicar-se, possivelmente, por uma maior ligação dos colaboradores à literatura do que à história.

A partir de 1994, os Arquivos do Centro Cultural Português alterariam a sua titulatura, passando a denominar-se Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, em mercê da alteração da designação do respectivo centro de investigação. Contudo, apesar da mudança de denominação, nos anos posteriores, a publicação manteve as características abordadas. Maria de Lourdes Belchior continuou a dirigir a publicação até 1997, pouco antes do seu falecimento. Os números de homenagem mantiveram-se até 1998. Em 1995, a revista homenageou Fréderic Mauro, num número coordenado por Guy Martinière e, em 1998, foi a vez de homenagear a mulher que dirigiu o Centro de Paris da Fundação Calouste Gulbenkian durante oito anos, Maria de Lourdes Belchior, no momento do seu afastamento.

Em 1999, a direcção da revista passou para as mãos de Francisco Bethencourt. Na entrada do novo milénio, a publicação alterou por completo a sua organização, passando a compor-se por volumes temáticos, redigidos hegemonicamente na língua francesa. Os temas abordados extrapolariam, como sempre o fizeram, a temática histórica, valorizando o tema político, literário, sociológico, artístico, cultural, antropológico... Os colaboradores portugueses perderiam preponderância em benefício dos colaboradores franceses e de outras nacionalidades. Se os novos tempos de mudança do Portugal contemporâneo passaram incólumes nesta publicação, o virar do século, contudo, imprimiu um processo de consolidação e uma renovação que se impunha.

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F O N T E S E B I B L I O G R A F I A

Arquivos do Centro Cultural Português. Lisboa/Paris: F.C.G., vols. I-XXXII, (1969-1993).

Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian. Lisboa/Paris: F.C.G., vols. XXXIII-L, (1994-2005).

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BARRETO, António [coord.] - Fundação Calouste Gulbenkian: Cinquenta Anos (1956-2006).

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BRIGHAM YOUNG UNIVERSITY. Frederick Granger Williams-Professor. Department

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RIBEIRO, António Sousa - “O Povo e o Público. Reflexões sobre a Cultura em Portugal

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1986), pp. 11-33.

RIVERS, Elias – Thomas R. Hart (1925-2010). Cervantes: Bulletin of Cervantes

Society of America [Em Linha]. Vol. 30, nº.1, Spring (2010). [Consult. 8 Janeiro

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SERRÃO, Joaquim Veríssimo - “Apresentação”, Arquivos do Centro Cultural Português. Lisboa/

Paris: F.C.G., Vol. I, (1969), pp. 9-14;

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SERRÃO, Joaquim Veríssimo - “O Centro Cultural Português de Paris: O Meu Testemunho

a Vinte e Quatro Anos de Distância”, Arquivos do Centro Cultural Português: 25 Anos do

Centro Cultural Português. Lisboa/Paris: F.C.G., Vol. XVII, (1990), pp. 3-27;

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TORGAL, Luís Reis et al. - História da História em Portugal: Séculos XIX-XX. [s.l.]: Temas e

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WILLIS, Clive – Professor Harold Livermore: Historian of Iberia who wrote the prize-

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winning-a-history-of-portugal-1916406.html>

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A H I S T Ó R I A D E P O R T U GA LN A S E A R A N OVA :

A B U S C A N O T E M P O PA S S A D OPA R A A C O N S T R U Ç Ã O D EU M P R E T E N D I D O F U T U R O

Joaquim Romero Magalhães

Universidade de Coimbra

Não sendo a Seara Nova uma publicação destinada a revelar colaborações de teor histórico, não sendo a História enquanto saber específico preocupação dos que na revista militam e escrevem, no entanto quer na publicação quer no pensamento de alguns dos seareiros a História ocupa lugar destacado. Porque a História não pode ser arredada nem menos atentamente considerada quando se pretende uma visão interpretativa da sociedade no seu conjunto e, sobretudo, quando essa visão se constrói para desencadear uma intervenção pública reformadora. Por isso, querendo perscrutar a realidade do tempo presente para lhe moldar o futuro, não pode ignorar o passado que produz e condiciona a vida colectiva de hoje. Pelo que

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aos seareiros competirá reler e reinventar as explicações necessárias. Logo em 1923 Jaime Cortesão mostrava a necessidade da história:

“A crise nacional é imensa e vem de longe. Portugal, que foi outrora uma

das nações mais gloriosas do mundo, vive hoje no maior descrédito do estrangeiro.

Permite-nos o estado actual dos estudos da história portuguesa afirmar que as bases

desse esplendor passado foram a organização das classes pelo trabalho, uma fórte

disciplina social e a posse de uma numerosa élite de políticos, de sábios, artistas e

homens de acção educados na escola da dura experiencia e do sacrificio. Mas desde

a II metade do seculo XVI, que no país se acentuou, com a desorganização das

classes, o abandono da terra, a exaustão causada pela faina gigantesca do ultramar

e a dissolução moral, que veio a dar no parasitismo, uma crise de caracter moral,

que não pode ser dominada nem pela Restauração de 1640, nem pelos esforços

de Castelo Melhor e de Pombal, nem pelos pensadores da II metade do seculo

XVIII, nem pelos melhores estadistas do constitucionalismo. Tal, na sua essencia, a

dolorosa historia dos nossos ultimos três seculos, apesar de se terem dado durante

esse período factos que afirmaram a soberania e a vitalidade nacional, como as

campanhas da Restauração, a lenta criação de uma das maiores nações do mundo – o

Brasil – a resistência ao poderio napoleónico, o novo movimento colonial da Africa

portuguesa, esboçado na II metade do seculo XIX e por fim a nossa participação

na Grande Guerra.”1

Amplo leque de questões e dificuldades do presente com raízes no tempo passado. Que seria preciso fundamentar para as ultrapassar.

A interpretação da História de Portugal que dominava entre os intelectuais portugueses quando se inicia a publicação da revista, em Outubro de 1921, apoiava-se ainda em Oliveira Martins (com raízes em Herculano), tanto na História de Portugal (1879) como no Portugal Contemporâneo (1881) e em outras das suas muito bem informadas obras. O que implicava uma visão da Pátria como vítima de um Estado em decadência, decadência que se ia acumulando e agravando ao

1 Jaime Cortesão - “Intuitos da União Cívica”, in União Cívica. Conferências de Propaganda. Sociedade de Geografia de Lisboa em 4 de Março de 1923. Porto: Comissão Directiva do Norte da União Cívica, 1923, pp. 5-6.

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longo dos séculos, depois de fechado o período áureo dos séculos XV e primeira metade do século XVI. O que se conformava com a apreciação da realidade que os reformistas seareiros percepcionam na sociedade portuguesa sua contemporânea. Visão que queriam devidamente apurada para a eficácia do que empreendessem com finalidade reformadora. Como muitas vezes se lerá em ensaios de António Sérgio, (e sempre com referência para Goethe), “escrever história é uma maneira de nos libertarmos do passado.” Só assim poderíamos alijar o peso a que o pretérito nos condenava. Porque para Sérgio, a história portuguesa mostrava em todo o seu percurso o domínio do “parasitismo”: “pela caça ao infiel mouro se formou a nacionalidade, a caça ao infiel negro incitou às descobertas, a caça ao infiel selvagem foi a nossa profissão no Brasil.” Mais: “Há mortos que é preciso matar — o Portugal histórico é dessa espécie.”

Porém, ao propósito de reformação social e política, e sobretudo cultural que já juntara os intelectuais na “Renascença Portuguesa” a partir de 1912 (como depois os seareiros depois de 1921) não se segue uma única visão do passado por parte desses protagonistas-intérpretes. Pelo que Jaime Cortesão responderá, continuando a negar o pessimismo que lhe parecia ensombrecer a visão do passado: “nós fomos grandes pelo trabalho e pela honradez, grandes pelo pensamento e pelo valor, grandes, enfim, pela originalidade e lustre do nosso génio. Hoje não o somos por desnacionalização.”2 Palavras de 1913, aparentemente de sentido oposto a Sérgio, quando ainda pouco sabiam de história, quer o futuro historiador, quer o aprendiz de ensaísta... Porque o que ainda inspirava o poeta Jaime Cortesão de antes da guerra era sobretudo o pensamento expresso por Teixeira de Pascoaes, nos seus escritos programáticos fundamentando a pretendida e indispensável renascença portuguesa: O Espírito Lusitano ou o Saudosismo, de 1912, e A Arte de Ser Português, de 1915. Escritos de uma para-história imaginária, carreados por uma argumentação fantástica. No entanto, o seu companheiro Jaime Cortesão já ia preferindo virar-se para a etnografia e para os rigores com que a estavam tratando Leite de Vasconcelos, Tomaz Pires, Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Theophilo Braga e outros e que a Revista Lusitana ia difundindo. De que resulta construir o seu Cancioneiro Popular –

2 Jaime Cortesão - “O parasitismo e o anti-historismo. Carta a António Sérgio”, in Paulo Samuel, A Renascença Portuguesa. Um perfil documental. Porto: Fundação António de Almeida, 1990, p.151.

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-Antologia precedida de um estudo crítico (editada pela Renascença Portuguesa em 1914). Muito embora com uma certa inflexão, a saudade – a “deliquescente saudade” acintosa e provocadoramente escrevia Sérgio3 – ainda surge instalada em lugar central da construção teórica daquilo que quer que seja o espírito português, nessa obra que pretende revelar “toda a alma do Povo.” Com intentos explícitos, pois que procura atingir o “conhecimento das energias latentes no fundo da Alma Popular.”4

Depois da guerra (1914-1918) e dos muitos percalços da política portuguesa e ainda dos acidentes das vidas quer de Sérgio quer de Cortesão, a convergência de ideias de ambos vai tornar-se notória: “No túmulo cheio de velhos miasmas, que é a Nação, devem entrar lufadas de ar distante e renovador.” Necessidade expressa por Cortesão, o mesmo que inicialmente quisera ir buscar aos heróis do passado a energia criadora que faltava aos Portugueses e criticara a abertura cosmopolita ao exterior. De que agora se esquecia, embora continuasse a interpretar o passado como algo de exemplar pelo que a sociedade alcançara de novo e inovador com raízes na nacionalidade nascente e com o esforço popular. O confronto agreste entre Cortesão e Sérgio nos tempos da Águia e anteriores à Guerra atenua-se até quase desaparecer.5 Mas em ambos que se pode encontrar o papel reservado ao conhecimento histórico na fundamentação da actividade reformadora da Seara Nova. Que resulta muito menos visível em Raul Proença, embora não ignorada – basta referir como atenta e acolhe a argumentação de Sérgio no ensaio sobre a tomada de Ceuta.6

Para além de diferenças de interpretação e de acentuação de características que se querem distintas, os seareiros convêm ao considerar imperioso travar a decadência em que se marasmava. E do passado pátrio invocam os defeitos graves que avultam e podem dizer-se estruturantes: “a educação guerreira da aristocracia, a falta de actividade produtora (agricultura, fabricação) e o isolamento sistemático.”7

3 António Sérgio, Correspondência para Raul Proença. Org. José Carlos González, com um estudo de Fernando Piteira Santos. Lisboa: Dom Quixote / Biblioteca Nacional, 1987, p. 33.

4 Jaime Cortesão - Cancioneiro Popular. Antologia precedida dum estudo crítico. Porto: Renascença Portuguesa, 1914, p. 9. 5 Principais textos em Paulo Samuel, A Renascença Portuguesa. Um perfil documental. Porto: Fundação António de

Almeida, 1990. 6 António Rafael Amaro - A Seara Nova nos anos vinte e trinta (1921-1939). Memória, Cultura e Poder. Viseu:

Universidade Católica Portuguesa, 1995, p. 65. 7 António Sérgio - O problema da cultura e o isolamento dos povos peninsulares. Porto: Renascença Portuguesa, 1914,

pp. 14 e 16-17.

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Havia que tentar a renovação das elites nacionais, não pelo regresso ao passado (por mais paradisíaco que pudesse ser imaginado por Pascoaes), mas pela abertura crítica e estudiosa ao Mundo. Algumas frustrações mais tarde, a interpretação do passado ir-se-á tornando mais complexa e procurando ser mais explicativa.

Para Sérgio como para o grupo dos seareiros (em que o ensaísta se incorporará em 1923), a concepção do passado da nacionalidade passa, sempre, por uma visão crítica da estrutura do Estado e em especial por sublinhar o papel negativo que os grupos sociais dominantes têm exercido sobre a grei. Mesmo do triunfo da burguesia em 1383 vai resultar contraditoriamente que se incremente e se torne predominante a classe dos letrados, “a um tempo um efeito e uma causa do parasitismo social.” E conclui sobre este segundo período:

“A nação, portanto, não chegou a educar-se na disciplina do trabalho,

precocemente absorvida na especialidade mercantil das especulações de entreposto,

intimamente ligada à obra da Cavalaria; este facto, a ruína da nobreza antiga, o

agravamento da miséria agrícola, e o correlativo parasitismo bacharelesco e

burocrático, são os caracteres maiorais do novo regime inaugurado pela revolução

social de 1383-1385.”8

A expansão ultramarina faria com que crescessem os tratos dos escravos, dos produtos das ilhas (açúcar da Madeira) e africanos, em especial o ouro, o que permitia ao soberano gastar os seus fartos rendimentos. E depois da viagem do Gama, com o estabelecimento da Rota do Cabo, serão a pimenta e as riquezas orientais a ser trazidas para Lisboa. Com benefícios para outras sociedades, pois não havia produtos fabricados em Portugal com que pagar as mercadorias entradas: “faltava-nos a actividade produtora (agricultura, fabricação), verdadeira riqueza, estabilidade da economia e força educativa por excelência.”9

Assim, mesmo a epopeia asiática devia ser relida com outros olhos, apreciada com outros sentimentos. “A nossa história indiana é do primeiro acto ao último um

8 António Sérgio - Considerações Histórico-Pedagogicas. Antepostas a um manual de instrução agrícola na escola primária. Porto: Renascença Portuguesa, 1915, pp. 16, 18 e 19-20.

9 António Sérgio - O problema da cultura e o isolamento dos povos peninsulares, pp. 16, 18 e 19-20.

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saque infame e horroroso, uma anarquia de pandemónio […]: matávamos a galinha dos ovos de oiro naquela estúpida ferocidade com que tratávamos o indígena.” Muito mais tarde, e sempre no mesmo tom, será a vez do ouro do Brasil permitir que com ele se adquiram “os produtos da indústria alheia.” Até quando duraria este sistema? Até que o Brasil se perdesse. “O Brasil perdeu-se, com efeito; — e então a sociedade, a morrer de fome, careceu de um abalo catastrófico que se não viesse desferido pela ditadura de Mousinho (1832) viria mais hoje mais amanhã de qualquer maneira semelhante.” Mas não se seguiu um outro caminho: com os empréstimos externos da Regeneração, o mesmo vício afinal continuava. Mais uma vez o Estado tomava conta de tudo:

“Este estadismo, ou costume de recorrer ao Estado para ele tratar da nossa

vida, transformando-o em papá e alimentador de todos nós; este bacharelismo, ou

educação pela palavra e pelo livro, que cultiva a memória e o palavrório, e não a

iniciativa, o método, a perseverança, o domínio de nós mesmos e o dos instrumentos

de trabalho; este burocratismo, ou fome universal do emprego público e correlativa

incapacidade de ganhar a vida independente, que reduz os partidos a quadrilhas de

assaltantes do Orçamento: estes três vícios nacionais são três aspectos do mesmo

vício – o comunismo de Estado – desenvolvido por uma péssima educação de

séculos resultante de uma corrupta educação económica. Da sua análise deve partir

o educador na nossa terra.” Visão da sociedade indispensável, porque como o Estado

não se confunde com a Nação, “nenhuma reforma valerá senão a reforma do espírito

público, saudavelmente orientado.”10

Por isso a acentuação que na reforma educativa põem os homens da Seara Nova. Educação que não será apenas instrução mas educação cívica que não se cansarão de propor. A elite que queriam promover e – se possível – recriar teria de ser assim o contrário do que fora até então o grupo dominante.

Depois, descartada a aristocracia, incapaz de conduzir o povo para actividades produtivas e para a disciplina do trabalho que fundamentasse a riqueza; criticado o

10 Ibid., p. 30.

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parasitismo das classes dominantes e a falta de sentido de solidariedade e a manifesta inapetência para aprender com os outros países que já tinham avançado para novas actividades económicas, a reforma geral da sociedade impunha-se. Mas isso só virá a ser tentado no século XIX por Mouzinho, que nem a anterior tentativa actualizadora do Marquês de Pombal se salvou por inconsequente e, sobretudo, tiranicida.

Propondo-se desencadear um processo de “reorganização geral” do País, os seareiros não podem ignorar que aquilo que pretendem reformar tem uma razão histórica. E procurar lições no passado, passado que também tem momentos gloriosos. “Permite-nos o estado actual dos estudos da história portuguesa afirmar que as bases desse esplendor passado foram a organização das classes pelo trabalho, uma forte disciplina social e a posse de uma numerosa elite de políticos, de sábios, artistas e homens de acção educados na escola da dura experiência e do sacrifício.” Assim se exprimia Jaime Cortesão em 1923, para continuar afirmando que desde o século XVI a “dissolução moral” veio a dar no parasitismo. Nenhuma das tentativas feitas nos últimos três séculos tinha resolvido a grave distorção em que os portugueses se encontravam enredados.

Caberá a Sérgio redigir um resumo que pudesse servir os intentos programáticos do grupo e de introdução histórica ao Guia de Portugal, dirigido por Raul Proença (no quadro dos trabalhos empreendidos na Biblioteca Nacional de Lisboa dirigida por Jaime Cortesão)11. Publicação que faz parte dessa necessidade patriótica de mostrar o País aos Portugueses. A terra e os homens como uma visão do que o tempo ia deixando em marcas, tomada de consciência que iria contribuindo para a reforma das mentalidades – e da política – que a Seara Nova se propunha. Produziu então António Sérgio um estimulante Bosquejo de História de Portugal que ficará como o primeiro marco interpretativo que pode ser dito próprio da Seara Nova – ou que pelos seareiros teria podido ser adoptado.12

Logo na 1ª época da história portuguesa, que designa como “Incorporação e organização do território” se começa a impor uma realidade geográfico-económica determinando a formação e a caracterização dos grupos sociais e desencadeando

11 Guia de Portugal. I vol. Lisboa: Biblioteca Nacional de Lisboa, 1924.12 António Sérgio, Bosquejo da História de Portugal. Lisboa: Biblioteca Nacional de Lisboa, 1923. Com 2ª edição

do mesmo ano.

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alguns acontecimentos políticos. Aí avança Sérgio com uma ideia que lhe é cara: “a situação dos nossos portos foi o mais ponderoso factor geográfico na independência de Portugal.” Os estrangeiros que a eles concorriam contribuíam para que se evitasse a incorporação do território em Castela. Da série notável dos monarcas da primeira dinastia, destaca-se como rei-modelo D. Dinis. O fomento do território, em especial a protecção à agricultura, assim o revelava. Sem continuidade posterior, vindo a dinastia e o período a terminar com a crise de 1383-1385 e a solução consequente à revolta social que ocorreu. E aí emerge a consideração de que à burguesia dos mercadores do litoral se opunha a aristocracia proprietária do “hinterland”. A uns o apoio revolucionário a D. João, mestre de Avis, aos senhores rurais sustentar a herdeira de D. Fernando. “Aljubarrota, pois, consagra a independência de Portugal, a nova orientação da sociedade, a queda da maior parte da antiga aristocracia, substituída por gente nova.”13

Abre-se assim uma nova perspectiva para a 2ª época, a da “Expansão ultramarina”. Será esse o tempo de grande fulgor da história de Portugal. A começar pelo escol que se reúne na corte do novo soberano, continuando pelos seus filhos a “ínclita geração, altos infantes” de que falará Camões. E logo destaca os factores económicos, e muito em especial a vinda de “muito oiro e escravos, que começaram a substituir os brancos nos misteres, pela metade meridional do país, com grave prejuízo da estabilidade da Grei.” O grande ensejo de passar do Atlântico ao Índico vai concretizar-se com Bartolomeu Dias para depois Vasco da Gama chegar a Calecute. Abria-se a expansão pelo Oriente.

Porém as coisas não vão ser como se poderia esperar:

“Em terras longínquas, muito fora do alcance do monarca, calcula-se quanto

os abusos seriam fáceis. Breve se lançaram, o Estado e os particulares, nas maiores

perversões da via económica e moral. Comprávamos as mercadorias orientais com

oiro e produtos da indústria alheia (da Itália, França, Alemanha, etc, etc.); simples

intermediários, estiolava-se-nos assim a capacidade produtora, vivia de empréstimo

a juros altos […]. Não tínhamos actividades industriais que pudessem desenvolver-

13 Ibid., p. 13.

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se com esse comércio do Oriente.” E a conclusão impunha-se: “Espalhámo-nos

assim por toda a Ásia, até às Molucas, numa prodigiosa e anárquica manifestação

de energia.”14

Pelo contrário, merece-lhe boa referência a actividade colonizadora baseada na agricultura da cana e na produção de açúcar do Brasil. Brasil que depois no século XVIII, pelo ouro que, contraditoriamente, vai ser “a sorte grande”, o que “tornou desnecessária a reformação.” E, mais uma vez, se persiste no mesmo, com o parasitismo a dominar. Virá a destacar-se depois a tentativa de Pombal, “muitíssimo enérgico, mas tiranicíssimo, homem que se propôs realizar, mas deturpando-o, o pensamento reformador da elite portuguesa do seu tempo.”15

Para encerrar, virá a 3ª época: “Tentativas de remodelação interna”. Que se deveria seguir à independência do Brasil, forçosamente. Porém as reformas de Mouzinho da Silveira, que isso pretendiam, ficaram inconclusas, e sobre elas se veio a derramar a política fontista dos empréstimos externos, que bloquearam as necessárias transformações internas. A República também não atacou nem “resolveu profundamente o problema básico da nacionalidade: abrir, na metrópole, empregos criados à actividade dos cidadãos pela modificação do regime agrário, pelo aproveitamento das forças hidráulicas, pela modernização dos métodos de trabalho, pela importação do trabalho científico, pelo estabelecimento de uma pedagogia nova, essencialmente activa e produtora.”16

Em simultâneo, havia que combater o romantismo delirante que se instalara em Portugal, com a incapacidade criadora que o acompanhava – ou causava. “Esse romantismo, tornando-nos incapazes de modificar o presente e preparar o futuro, impede-nos igualmente de apreciar inteligentemente o passado.” Assim se pronunciava pelo seu lado Raul Proença, acrescentando: “Vemos nas empresas dos nossos avós, em D. Henrique, em Nuno Álvares, nos infantes de Ceuta, simples aventuras do sensibilismo triunfante, do misticismo desgarrado, de intuições bergsonianas, vozes da Raça, purezas esfíngicas, poços artesianos de sensibilidade

14 Ibid., pp. 33-34.15 Ibid., p. 36. 16 Ibid., p. 50 e 59-60.

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criadora.” Mas, contrapõe o seareiro, “todas essas empresas foram obras de organização meditada e metódica, dum elevado espírito prático, realizadas com todos os escrúpulos, todas as minúcias e todas as circunspecções da inteligência realista.”17 Era esta a posição da Seara Nova sobre a História, afastando-se e combatendo vácuos arroubos líricos e invocações passadistas – mesmo quando embalados em belezas poéticas saudosistas ao jeito de Teixeira de Pascoaes, como tinham ficado plasmados em A Águia. Porque para os seareiros havia que regressar ao espírito do 5 de Outubro, mas “regressar avançando”, como no manifesto da revista se lê.

Pelo que as fantasias romanticizadas com apoio na história deveriam ser combatidas. É o objectivo de António Sérgio atacando o irracionalismo e o sentimentalismo patriótico a pretexto da Exortação à Mocidade de Carlos Malheiro Dias, em 1924. Ataque e polémica que culmina em primorosa Tréplica.18 Polémica que se destinava, como tantas outras posições da Seara Nova, a proporcionar uma “lenta obra de educação colectiva.” Ao arrebatamento romântico contra-propõe-se a reflexão, as disciplinas racionais, “o esforço sobre si próprio, do sentimento da medida, da visão clara, da modéstia e do senso crítico.”19

Será esta uma notável pugna, não sobre o D. Sebastião histórico mas sobre o sentimentalismo inconsequente que se estava a instalar na sociedade, em grande parte gerado pelas filosofias anti-racionalistas, mas também pelos saudosismos políticos de importação, nomeadamente os integralistas. Findava assim a polémica, sem que Sérgio depois respondesse a outros ataques com que os integralistas e quejandos continuaram a alvejá-lo. De “insigne trapalhão” o qualificará mesmo Manuel Múrias. Do livrinho sobre Camões e D. Sebastião escreve que não passava de “um enxovedo de dispautérios, com refinada má fé acolchetados a textos nem sempre trasladados fielmente.” Para além de “afirmações descabidas”, havia que

17 Raul Proença - Páginas de política. vol. IV. Lisboa: Seara Nova, 1975, p????18 António Sérgio - O Desejado. Depoimentos de contemporâneos de D. Sebastião sobre êste mesmo rei e sua jornada de África.

Precedidos de uma Carta-Prefácio a Carlos Malheiro Dias. Paris – Lisboa: Livrarias Aillaud e Bertrand, 1924; Carlos Malheiro Dias - Exortação à Mocidade. Nova Edição, precedida de uma resposta à carta-prefácio do sr. António Sérgio no seu livro “O Desejado”. Lisboa: Portugal – Brasil, 1925; António Sérgio - Camões e D. Sebastião. Rudimentar organização de documentos para o estudo de um problema curioso. Paris – Lisboa: Livrarias Aillaud e Bertrand, 1925; António Sérgio - Tréplica a Carlos Malheiro Dias sobre a questão do Desejado. Lisboa: Edição da “Seara Nova”, 1925.

19 Câmara Reys - Raul Proença. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1985, p. 17.

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contar com a sua “ignorância habitual” e com o seu “desvairamento crítico”.20 Era assim a linguagem de ataque dos monárquicos integralistas. Os partidários do regresso ao absolutismo, não perdoavam a quantos entendiam caminhar para a Democracia. Essa a questão. Tudo o que pusesse em causa reis e príncipes naturalmente para eles era condenável e devia ser combatido.

Mais próximo de uma polémica com um tema histórico é a que Sérgio travou sobre o Seiscentismo. Embora esta tivesse ficado interrompida pela morte de António Sardinha, o outro dos contendores.21 Polémicas laterais ao objectivo central, que era o de provocar a sociedade para que se fizessem as reformas indispensáveis: na economia e na educação. “Reformas económicas e pedagógicas, concatenadas, entrelaçadas entre si como fios de um tecido único.” E isto sempre “subordinando aos valores eternos da liberdade e da moral todos os problemas, desde os grandes casos de consciência individual ou colectiva aos mais ténues incidentes da vida social.”

Sairia em 1929, em tradução castelhana, a Historia de Portugal na Editora Labor, de Barcelona. Cujo texto já tinha sido em 1928 traduzido para Inglês,22 ficando o original português a aguardar por 1972 para ser impresso.23 Será como que o ponto de chegada destes anos primeiros de um labor permanente em prol das reformas em Portugal. Em que a história ocupa uma posição central, como instrumento intelectual de actuação sobre a sociedade. História porém – para Sérgio – sem investigação de arquivo – mera reflexão sobre assuntos que à história investigativa depreciativamente ficavam entregues. E muitas vezes dita apenas de erudição arquivística. Pelo contrário, o que Sérgio propunha era, em palavras de Jaime Cortesão trinta anos mais tarde, “um balanço crítico, do passado, uma regra moral para o futuro.”24 E essa seria afinal, a utilidade – e necessidade – que os seareiros atribuíam à História de Portugal. De servir como mostrador de uma visão crítica do passado e de estabelecer uma norma reguladora dos comportamentos

20 Manuel Múrias - A política de África de El-Rei D. Sebastião. Lisboa: Nação Portuguesa, 1926, pp. 63, 64 e 68. 21 Manuel Múrias - O Seiscentismo em Portugal. Lisboa: [s. n.],1923; António Sardinha, “O Século XVII”, in Lusitânia.

Revista de Estudos Portugueses. Lisboa: vol. II, fasc. I, Setembro de 1924; António Sérgio, O Seiscentismo. Reprodução do Artigo em que, segundo dizem os que me odeiam, insultei um morto e falsifiquei textos. Lisboa: Seara Nova, 1926.

22 António Sérgio - Historia de Portugal. Trad.. Barcelona/Buenos Aires: Labor, 1929; Id., A Sketch of the History of Portugal. Trad. de Constantino dos Santos. Lisboa: Seara Nova, 1928.

23 António Sérgio - Breve interpretação da História de Portugal. Lisboa, Sá da Costa, 1972. 24 António Sérgio, Naufrágios e combates no mar. Lisboa: Edição do Autor, 1959, vol. II, 281.

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morais da sociedade no futuro. Para além das interpretações ensaísticas de António Sérgio, um outro tipo de

história, investigativa, também faz a sua entrada na Seara Nova: o que se vai dever à descoberta da pesquisa histórica por Jaime Cortesão, que a começa a praticar apenas nos primeiros anos Vinte.25 Não, em primeiro lugar, para sustentar a sua actuação cívica e política, mas logo como historiador que se lança numa empenhada carreira. Em que pretende ver resolvidos alguns problemas fulcrais da historiografia, nomeadamente a crítica das fontes. A viragem dar-se-á por 1922 quando colabora na História da Colonização Portuguesa do Brasil dirigida por Carlos Malheiro Dias, de que sairá em volume A expedição de Pedro Álvares Cabral e o Descobrimento do Brasil. Estruturando o seu pensamento na investigação histórica, sai na Lusitania. Revista de Estudos Portugueses um artigo que ficará a marcar a sua posição quanto às fontes e seu tratamento: “Do sigilo nacional sobre os descobrimentos”. A Seara Nova – a cuja direcção Cortesão pertencia – estará atenta a este novo rumo e logo em 1922 lhe publicará uma comunicação à Academia das Ciências em que os princípios seareiros se destacam na interpretação histórica. Em especial o carácter cosmopolita dos descobrimentos, que aparece em reforço da tese do isolamento peninsular como sendo um dos motivos que provocavam os males portugueses. Cosmopolitismo a que era preciso voltar, na luta pela modernização do País. Que sem essa abertura ao exterior não seria possível. Em que Cortesão significativamente cita Sérgio – que ainda não pertencia ao grupo seareiro. “O valor, pois, do trabalho de António Sérgio principalmente consiste em trazer um novo e fortíssimo argumento à tese, hoje em pleno triunfo, de que os descobrimentos portugueses foram realizados por uma elite de pensamento e acção, na consciência do seu interesse cosmopolita, servida não apenas pela criadora audácia, mas pelas indispensáveis qualidades de método e organização.”26 Que a tese tivesse tido uma aceitação geral era mais um desejo que uma constatação da realidade. Que ia bem no sentido da doutrinação que os directores da Seara Nova empreendiam.

Depois do seu trabalho sobre a expedição comandada por Pedro Álvares

25 Joaquim Romero Magalhães -“No trilho de uma ambição: o poeta-historiador Jaime Cortesão (1910-1927). In Cidadania e História. Em homenagem a Jaime Cortesão. Lisboa: Sá da Costa, Cadernos da Revista de História Económica e Social, nºs 6-7, 1985

26 Jaime Cortesão - A expedição de Pedro Álvares Cabral e o Descobrimento do Brasil. Lisboa: Aillaud e Bertrand, 1922.

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Cabral de que resultou o achamento do Brasil, interna-se Jaime Cortesão na problemática histórica, como vinha a ser repensada nos meios académicos mais avançados da Europa, nomeadamente em França. A influência de Henri Pirenne que vai provocar uma notável revisão da matéria histórica, mas muito em especial pelo que respeita à interpretação cruzada da história com a geografia. Logo em 1925 Cortesão profere em Lisboa, na Universidade Livre, uma conferência (de que não se conhece texto escrito) mas que se intitulava significativamente As relações entre a geografia e a história de Portugal. O conhecimento do espaço (e a sua importância para o estudo das sociedades no tempo) fica como um contributo essencial de Jaime Cortesão para a História de Portugal – e daí também a procura da compreensão da arte de navegar e dos instrumentos que para a conseguir foram sendo construídos. Como que completando o legado de Sérgio, que ficava sobretudo apontado para a economia e a sociologia. Mas em Cortesão acentuar-se-á mais a compreensão geográfica. A interacção do homem com o meio toca mais o médico que fora do que a qualquer outro historiador português desse período. Do mesmo ano de 1925 é “A tomada e ocupação de Ceuta”.27 Aí dá o merecido relevo à hipótese levantada por Sérgio e discutida por David Lopes, embora chamando à colação outras investigações, as de Pedro de Azevedo e Teixeira de Sampaio. Com bastante demora e excelentes apoios bibliográficos se compraz Cortesão a destacar a situação de Portugal no grande comércio, entre o Mar do Norte e sobretudo o Mar Mediterrâneo, o Mar por onde transitavam as valiosas mercadorias trazidas da Ásia, em especial as especiarias. Que o grande comércio estava em crise e que a tomada de Ceuta podia resolvê-la, credita a Sérgio; que a cidade era um importante porto marítimo com interesse estratégico para combate à pirataria cabe a Lopes. Com Pedro de Azevedo concordará, ao assinalar que os interesses da “classe mercadora” e os da fidalguia se conjugavam afinal na empresa de Ceuta. Mas Cortesão, como sempre, será bem mais ousado e consegue vislumbrar na tomada da praça africana os primórdios de um “plano de descobrimentos, e por conseguinte de expansão mais vasta.” Mais, já nisso antevê como “objectivo remoto,

27 Jaime Cortesão - “Do sigilo nacional sobre os descobrimentos”, Lusitânia. Revista de Estudos Portugueses, fasc. I, Janeiro de 1924 e “A tomada e ocupação de Ceuta”, Boletim da Agência Geral das Colónias. Lisboa: Novembro de 1925. Na revista Seara Nova surgem mais dois artigos com a epígrafe geral de “África Nostra”.

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a Índia e o seu comércio.” Exaltadamente conclui que assim se executa “um acto de salvação nacional.”28

Aproximavam-se posições, não obstante que ainda em Cortesão as personagens históricas se destaquem enquanto em Sérgio já são os grupos sociais os verdadeiros protagonistas dos processos históricos. Posições que também espelham o que se passa na Seara Nova, que analisa a sociedade e quer uma actuação das personalidades no desenvolvimento de uma diferente mentalidade governante em Portugal.

Ainda em 1926 sairá um opúsculo seu na Biblioteca Nacional sobre o Tratado de Tordesilhas (Le Traité de Tordesillas et la découverte de l’Amérique) e de antes de 1930 é também a apresentação de Portugal na Exposição Internacional de Antuérpia, texto de síntese intitulado L’Expansion des Portugais dans l’Histoire de la Civilisation. Aí abrirá para novos desenvolvimentos nos capítulos de história da expansão com que por então colaborava na História de Portugal de Barcelos. Deste mesmo ano será o escrito que é o culminar desta primeira fase da obra de Cortesão, “uma das suas obras-primas e um dos momentos cimeiros da historiografia portuguesa” do século XX, “Os Factores Democráticos na Formação de Portugal”.29 Assunto sobre que trabalharia algum tempo antes, pelo menos desde 1928, e sobre que publicou algumas reflexões na Seara Nova, que prenunciam o texto final: artigos datados de Paris, de 20 de outubro de 1928 (“A formação democrática de Portugal”) e de fevereiro de 1930 (“O problema das relações entre a Geografia e a autonomia política de Portugal”).30

Cortesão vai procurar no percurso da ocupação do território com a articulação dos modos de vida da população das várias regiões a emergência da nacionalidade. A comunidade constituía-se a partir dessa junção de proveniências sociais diversas. Contando ainda com alguma colonização estrangeira. E, como sempre fará, procurando também na Sociologia teorias que servissem o seu propósito. Buscando nos geógrafos e nos sociólogos e um pouco nos economistas (embora

28 Jaime Cortesão - “A tomada e ocupação de Ceuta”, pp. 26-27. 29 Vitorino Magalhães Godinho - “Presença de Jaime Cortesão na historiografia portuguesa”. In Os Factores

Democráticos na Formação de Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 1974, p. XIII. 30 Publicados com Os Factores democráticos na edição das Obras Completas. Vd. sempre Neves Águas - Bibliografia de

Jaime Cortesão. Contribuições para um inventário completo. I Parte. Portugal. Lisboa: Editora Arcádia, 1962, pp. 112-113.

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apenas quase só pelo que toca ao comércio) apoios para encontrar as razões que permitissem explicar a génese da Nação. Deixam de se procurar motivos mais ou menos intemporais e imaginários – e sempre com impossibilidade de se provar a sua adequação – para se avançar no conhecimento da administração do território.

Ponto central para explicar a afirmação nacional, no século XIV, a “profunda renovação económica do País.” Era a resposta à procura externa de vinhos e sal, de azeite e de frutas. Assinalava-se ainda a exportação de mel, cera, coiros, peles e lã. E a junção da economia do interior com a do litoral vai efectuar-se. “No interior a faina agrícola e pastoril; na costa a exploração do sal e a pesca que se estendia do nosso litoral ao estrangeiro.” Estava assim “criado o novo género de vida nacional: o comércio marítimo a distância, com base na agricultura.”

“Em Portugal é do próprio movimento das comunas que vai nascer o

conceito supremo da Nação; e apenas desaparecidas as causas que entravaram aqui,

mais ainda do que no resto da Europa o desenvolvimento das classes populares,

os princípios democráticos vão retomar a sua marcha até o advento da República.”

Procurava assim aquilo que se poderia designar por “concepção democrática da

história portuguesa?” É possível. “Mas em qualquer ciência o que importa é que

as suas concepções sejam...científicas.” Relevo especial será dado à revolução de

1383: “Portugal entra na maioridade; na sua política interior dominam as tendências

laicistas e civilistas, condição essencial para a dignificação e liberdade dos povos; e o

Estado atinge a forma de organização que lhe permite resolver o grande problema

da expansão da Europa e do conhecimento do planeta.”31

Surgido em 1921 o grupo dos seareiros depressa abriu caminho como movimento de ideias, influenciando uma que outra vez o poder político. Empenhou-se continuadamente na manutenção do regime republicano e das liberdades públicas. Por isso se afastou de golpes militares, e combateu a situação criada pelo 28 de Maio, sobretudo pela pena de Raul Proença. Depois, parte dos seus membros irão conspirar e intervir de armas na mão na revolução do 3/7 de

31 Jaime Cortesão - Os Factores Democráticos na Formação de Portugal, pp. 14-15, 89-91 e 157.

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Fevereiro de 1927 – contra a ditadura militar – e foi o caso de Cortesão. Alguns ter-se-ão exilado em data próxima do pronunciamento militar – acontecerá com Sérgio – que parte ao ser prevenido de que estava para ser preso. Outros serão demitidos e perseguidos pelos tropas, pelos monárquicos e pelos clericais que a eles se juntaram. Como bem se evidencia nos Panfletos redigidos por Raul Proença, ainda em 1926. Uns rumam ao exílio, outros são presos. Cortesão passará a França e a Espanha e em 1940 será mesmo banido da Pátria quando a ela regressar. A Seara Nova não manterá as mesmas preocupações reformadoras nos anos que se seguem: no centro da sua doutrinação passará a estar a resistência possível ao Estado Novo. Que Sérgio viverá no exílio interior – a partir do regresso em 1933 –, Cortesão no Brasil (depois de 1940). E assim a história seareira ficaria, como talvez escrevesse José Rodrigues Miguéis, como uma das “capelas imperfeitas” do grupo. Embora com algumas realizações.

Percursos e pontos de chegada de cada um dos dois autores centrais fixam-se em 1929/1930 na Historia de Portugal de António Sérgio32 e em “Os Factores Democráticos na Formação de Portugal” de Jaime Cortesão – título que é todo um programa e não por acaso explanado na História do Regímen Republicano em Portugal.33 Concepção necessária para fundamentar as propostas políticas que o grupo defendia, essa busca no tempo passado para a sólida construção de um pretendido futuro. Pontos de chegada — ao mesmo tempo que ambicionavam ser pontos de partida. Quer Sérgio quer Cortesão vêem na história um meio de aplicação das suas ideias à interpretação da realidade social do País e um modo de pensar servindo para fundamentar a actuação reformadora do Portugal do seu tempo. Porém, enquanto Sérgio procura encontrar alavancas para uma indispensável reforma nacional, começando pela produção e distribuição da riqueza, Cortesão sobretudo busca os fundamentos da soberania popular e as suas manifestações no passado. Duas abordagens diferentes com o mesmo objectivo de promover a emergência de outra mentalidade: para Sérgio havia sobretudo que encontrar a elite que guiasse as reformas, para Cortesão havia ainda que bem perceber os mecanismos que conduziam às manifestações populares e às conquistas democráticas que

32 António Sérgio - Historia de Portugal. Trad.. Barcelona – Buenos Aires: Labor, 1929. 33 Na História do Regímen Republicano em Portugal, dir.. por Luís de Montalvor. Lisboa: Ática, 1930-1932.

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sustentavam a expressão da Nação e o seu alargamento pelo Mundo. Duas posições que não são divergentes à partida e que o exílio vai aproximar ainda mais. Embora Cortesão vindo da militância republicana e Sérgio proveniente do liberalismo monárquico, desde cedo tenham convergido na defesa do regime democrático. Porque a Seara Nova, em que um certo aristocratismo de gente bem-pensante parece evidente, se inscreve na corrente que procura desenvolver uma crítica racional ao que está, racionalidade que até na política deveria imperar. Porque desenvolver as elites intelectuais como veículos da transformação das mentalidades (e por aí a melhoria na governação) é o propósito seareiro. Nemo nos conducit (ninguém nos conduz), era a desculpa para que tudo funcionasse mal. A que Sérgio contrapunha que com profundas reformas, em todos os aspectos (e não só na educação), se conseguiria transformar a negativa em afirmativa: Ducit (conduz).34 Era essa a intenção propagandeada pela Seara Nova para que Portugal pudesse avançar num novo rumo. Encontrando e preparando competentes timoneiros.

O que Sérgio propõe, pode resumir-se, nas suas próprias palavras, na “modificação do regime agrário, pelo aproveitamento das forças hidráulicas, pela modernização dos métodos de trabalho, pela importação do trabalho científico, pelo estabelecimento de uma pedagogia nova, essencialmente activa e produtora.” Por outras palavras, e como Cortesão já em 1912 escrevera, era preciso que se criasse em Portugal “uma élite consciente e uma opinião pública esclarecida.” Elite que influenciasse e assumisse posições convergentes e consonantes com a opinião pública. Que lhe competia esclarecer e orientar. E nisso estariam conformes o ensaísta Sérgio e o historiador Cortesão. Para por efeito de um trabalho intelectual aturado, conseguir que o país se modificasse e que os que nele habitavam gozassem de uma outra abundância gerada no trabalho produtor de riqueza e alicerçada na liberdade. Era, afinal, a tal “revolução espiritual e construtiva” em que os seareiros se empenhavam.35 Arredando os fantasmas do passado, que se procurava conhecer e interpretar, para melhor deles se afastarem. Sem querer a eles voltar. Porque, confessará Cortesão, “nação alguma pode viver perpétua e exclusivamente sobre as tradições próprias.” Havia que partir de uma interpretação histórica fundamentada

34 António Sérgio - “As duas politicas nacionais”. In Ensaios, II. Lisboa: Seara Nova, 1928. 35 António Sérgio - Correspondência para Raul Proença, p. 38.

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“para que não se caísse num tradicionalismo basbaque de imbecis.”36 Assim foi tentado. Havia que combater o “nacionalismo” que Raul Proença classifica de “retrospectivo e sensibilista, vivendo dos mortos e da memória dos mortos, como uma espécie de necrolatria, que nos levava à constante memoração e comemoração das glórias passadas.”37 Pelo contrário para os seareiros a história impunha uma visão crítica e incitava a uma prospectiva clarificadora e reformadora da sociedade. Propósitos e trajectória que a ditadura impiedosamente interrompeu.

36 Portucale, Suplemento nº 1 à 3ª série. Porto, 1962, pp. 5-6.37 Raul Proença - Páginas de política. Lisboa: Seara Nova, 1975, vol. IV, p. 17.

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B I B L I O G R A F I A

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H I S T O R I O G R A F I A E R E S P U B L I C A

Em contacto com as suas congéneres europeias e muito marcada pela herança clássica e cristã, a historiografia portuguesa foi até meados do século XX um campo privilegiado de expressão de concepções organicistas, centradas na dicotomia progresso e outros pré-conceitos que têm permeado os discursos sobre a transformação social. Historiadores liberais e positivistas de diversos matizes contribuíram para acentuar estes enfoques. Foram-se entretanto afirmando visões críticas do evolucionismo, assinalando-se continuidades mas também rupturas, diferentes expressões de resistência ao positivismo, mediante um debate transdisciplinar que envolveu abertura a outras ciências humanas e múltiplas orientações teóricas: Annales, interpretações marxistas, estruturalismo, linguistic-turn.

Pretende-se nesta obra alargar o conhecimento acerca das historiografias e dos historiadores dos séculos XIX e XX - sem esquecer os seus antecedentes e tendências recentes como a história global - nas suas relações com o espaço público e a cidadania, problematizar a sua função social e cultural, tendo em atenção as relações transnacionais e os contextos em que produziram as suas obras. A partir de tópicos-chave, tecem-se balanços críticos sectoriais sobre a historiografia portuguesa, os modos de recepção de debates históricos internacionais, o lugar dos historiadores e a forma como nas suas escritas, da Revolução liberal à actualidade, se estruturaram olhares sobre Portugal na sua relação com outros povos. Em que medida presente e futuro condicionaram a construção social do passado? Qual o horizonte diferencial que os historiadores reconheceram ao passado? Como lidaram com a aceleração das experiências do tempo?

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A colecção Historiographica dá a conhecer estudos sobre historiografias e historiadores, a construção de memórias sociais e individuais e usos instrumentais do passado - a sempre complexa relação entre presente, passado e futuro, nas suas relações contextuais com problemas sociais e políticos. Abrange múltiplos tempos e geografias e incentiva a aproximação entre diversas ciências sociais e humanas.

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Direcção deSérgio Campos Matos & Covadonga Valdaliso

Historiografia e Res Publica

Sérgio Campos Matos e Maria Isabel João (orgs.)

2017

Historiografia, Cultura e PolítiCa

na ÉPoCa do VisConde de santarÉm

Daniel Estudante Protásio (coord.)

2018

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