Stephen King - A Imagem Do Segador

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Stephen King

Citation preview

A Imagem do Segador - Stephen KingA Imagem do SegadorStephen KingNs o transportamos o ano passado, foi uma operao e tanto -disse o Sr. Carlin,enquanto subiam a escada. A remoo teve que ser manual, claro. No havia outro jeito.Fizemos um seguro contra acidentes, no Lloyd's, antes mesmo de tir-lo de sua vitrine,na sala de visitas. Era a nica firma que o seguraria pela soma que tnhamos em mente.Spangler nada disse. O homem era um tolo. Johnson Spangler aprendera, havia muito emuito tempo, que a nica maneira de lidar com um tolo ignor-lo.- Foi segurado por um quarto de milho de dlares - prosseguiu o Sr. Carlin, quandochegaram ao patamar do segundo andar. Sua boca contorceu-se em uma linha meioamarga e meio humorstica. - Alis, o prmio nos custou um bom dinheiro...Era um homem de baixa estatura, no inteiramente gordo, com culos sem arcos e umacalva amorenada, que brilhava como uma bola de vlei envernizada. Uma armadura,guardando as sombras de mogno do corredor do segundo andar, fitou-osimpassivelmente.Era um longo corredor, e Spangler examinou as paredes e quadros com frio olho clnico.Samuel Claggert comprara em vastas quantidades porm no soubera comprar. Comotantos outros imperadores autodidatas da indstria de fins dos anos 80, no sculopassado, ele fora pouco mais do que um vasculhador de casas de penhores, mascarando-se em roupagens de colecionador, um connoisseur de monstruosidades em telas, decolees vulgares de poesia ou novelas em luxuosas encadernaes de couro, bem comode atrozes peas esculpidas, por ele consideradas como Arte.Naquelas paredes estavam pendurados - engrinaldados, seria o termo correto - imitaesde tapetes marroquinos, inmeras (e sem dvida annimas) madonas segurandoinmeros bebs com halos, enquanto inmeros anjos pairavam em todos os pontos do

A Imagem do Segador - Stephen Kingfundo, grotescos candelabros em arabescos e um lustre monstruoso, obscenamenteenfeitado e encimado por uma ninfeta sorrindo despudoradamente.Sem dvida, o velho pirata conseguira alguns artigos interessantes; a lei deproporcionalidade assim o exigia. E, se o Museu Particular Memorial Samuel Claggert(Visitas com Guia, por Hora - Entrada: 1 dlar para Adultos, 50 centavos para Crianas- repugnante) se constitua de lixo gritante em 98 por cento, sempre havia aqueles outrosdois por cento, coisas como o longo rifle Coombs acima do fogo, na cozinha, aestranha e pequena camera obscura na sala e, naturalmente, o...- O espelho Delver foi removido do andar debaixo aps um... um acidente algo infeliz -disse bruscamente o Sr. Carlin, aparentemente motivado pelo fantasmagrico e penetrante retrato de ningum em particular, na base do segundo lance deescadas. - Houve outros - declaraes rudes, comentrios maldosos - porm desta vez,foi realmente uma tentativa de destrrdr o espelho. A mulher, uma Srta. Sandra Bates,chegou com uma pedra no bolso. Por sorte, sua pontaria era ruim e ela s rachou umcanto da vitrine. O espelho ficou intato. Essa Srta. Bates tinha um irmo...- No preciso oferecer-me a visita de um dlar - disse Spangler em voz calma. - Estoua par da histria do espelho Delver.- Fascinante, no mesmo? - Carlin atirou-lhe um olhar curioso enviezado. - Houveaquela duquesa inglesa em 1709... e o mercador de tapetes da Pensilvnia, em 1746...para no mencionarmos...- Estou a par da histria - repetiu Spangler, na mesma voz tranqila. - O que meinteressa o acabamento artesanal. Alm disso, claro, existe a questo daautenticidade...- Autenticidade? - O Sr. Carlin deu uma risadinha sufocada, um som seco, como o deossos espreguiando-se em um armrio debaixo da escada. - Ele foi examinado porperitos, Sr. Spangler.- O Stradivarius Lemlier tambm.- verdade-disse o Sr. Carlin, com um suspiro- mas nenhum Stradivarius j possuiu o...o efeito perturbador do espelho Delver.- Sim, nunca -disse Spangler, em sua voz suavemente contida. Agora percebia que eraimpossvel calar Carlin; o velho possua uma mente perfeitamente sintonizada com aidade. - Nunca.Subiram o terceiro e quarto lance em silncio. medida que se aproximavam do teto dadesconexa edificao, ficava opressivamente quente nas escuras galerias superiores.Com o calor, chegava um insinuante odor que Spangler conhecia bem, pois passara todaa sua vida adulta trabalhando nele - o cheiro de mostras mortas h muito nos cantospenumbrosos, de decomposio mida e rastejantes parasitas de madeira por trs doestuque. O cheiro da idade. Era um cheiro comum apenas aos museus e mausolus. Ele

A Imagem do Segador - Stephen Kingimaginava que o mesmo cheiro podia provir da sepultura de uma jovem virginal,falecida quarenta anos antes.Aliem cima, as relquias eram empilhadas a torto e a direito, na profuso de umaverdadeira loja de quinquilharias; o Sr. Carlin conduziu Spangler atravs de umlabirinto de esculturas, telas com molduras estilhaadas, pomposas gaiolas de pssarosdourado-prateadas, o esqueleto desmembrado de uma antiga bicicleta tandem. Levou-oat a parede mais afastada, onde uma escada de mo fora colocada abaixo de umalapo no forro. Um cadeado enferrujado pendia do alapo.Mais para a esquerda, um Adnis de imitao os fitava impiedosamente com opacosolhos sem pupilas. Um brao estava estirado e, do pulso, pendia um carto amarelo,com os dizeres: ENTRADA ABSOLUTAMENTE PROIBIDA.O Sr. Carlin, tirou um molho de chaves do bolso do casaco, selecionou uma das chavese subiu na escada. Parou no terceiro degrau, a calva brilhando fracamente nas sombras.- No gosto desse espelho - comentou. - Alis, jamais gostei dele. No gosto de espiarnele. Tenho medo de, um dia, olhar e ver... o que o resto deles viu.- Eles nada viram alm de si mesmos - disse Spangler.O Sr. Carlin comeou a falar, parou, balanou a cabea e remexeu acima dele, dobrandoo pescoo para encaixar direito a chave na fechadura.- Devia ser trocada - murmurou. - Ele est... droga!A fechadura saltou de repente e o cadeado se soltou. O Sr. Carlin tentou apanh-lo no are quase caiu da escada. Spangler agarrou o cadeado, antes que batesse no cho, depoisergueu os olhos para o homem. O Sr. Carlin agarrava-se tremulamente ao alto daescada, o rosto branco, brilhando na penumbra.- Isso o deixa nervoso, no ? - perguntou Spangler, em um tom ligeiramenteinquisitivo.O Sr. Carlin no respondeu. Parecia paralisado.- Desa - disse Spangler. = Por favor. Antes que caia.Carlin desceu lentamente, agarrando-se a cada degrau, como um homem engatinhandoacima de um abismo sem fundo. Quando seus ps tocaram o cho, comeou a gaguejar,dando a impresso de que o piso era percorrido por alguma corrente e que esta o ligara,como uma lmpada eltrica.- Um quarto de milho - dizia ele. - Um quato de milho de dlares como seguro, paratrazer aquela... coisa l debaixo at aqui! Essa maldita coisa! Tiveram que montar umaforma especial e i-la com guincho at o espigo do depsito, l em cima. E euesperava - quase rezava - para que os dedos de algum ficassem escorregadios... que acorda no agentasse... que a coisa despencasse e se estilhaasse em mil pedaos...

A Imagem do Segador - Stephen King- Fatos -disse Spangler. - O que interessa so fatos, Carlin. Nada de novelas embrochuras baratas, de histrias baratas de tablides ou de filmes de terror igualmentebaratos. Fatos. Nmero um: John Delver foi um arteso ingls, de descendncianormanda, fabricante de espelhos no que chamamos de periodo elizabetano da histriada Inglaterra. Viveu e morreu obscuramente. Sem pentculos riscados no cho, para acriada apagar. sem documentos cheirando a enxofre, com uma mancha de sangue nalinha pontilhada. Nmero dois: Seus espelhos se tornaram peas de colecionadores,devido principalmente ao seu fino acabamento artesanal e ao fato de que uma forma decristal fosse usada com um leve efeito ampliador e distorcido para o olho de quem asegurasse - uma marca registrada bem distintiva. Nmero trs: que saibamos, restamapenas cinco Delver-dois deles na Amrica. Inestimveis, no tocante a preo. Nmeroquatro: Este Delver e um outro que foi destrudo na Blitz de Londres, adquiriram umareputao algo espria, devido principalmente falsidade, exagero e coincidncia...- Fato nmero cinco - disse o Sr. Carlin - voc um arrogante bastardo, no?Spangler fitou o Adnis cego, com leve irritao.- Eu fui o guia no tuor do qual fazia parte o irmo de Sandra Bates, quando ele viu seuprecioso espelho Delver, Spangler. 0 rapazinho teria uns dezesseisanos, estava com um grupo de ginsio. Eu ia relatar a histria do espelho e acabara dechegar parte que voc apreciaria - enaltecendo seu acabamento perfeito, a perfeio doespelho em si - quando o rapaz levantou a mo. "O que significa aquele borro preto nocanto superior esquerdo?" perguntou ele. "Parece que houve uma falha.---- Um amigo seu perguntou o que ele queria dizer. O rapaz Bates comeou a dizer,depois se calou. Olhou para o espelho com profunda ateno, chegando bem junto dacorda de veludo vermelho, em torno da vitrine que guardava o espelho ento olhou paratrs, como se o que houvesse visto fosse o reflexo de algum de algum vestido de preto-de p ao seu ombro. `Parecia um homem -disse ele, - mas no pude ver seu rosto.Agora, desapareceu.' E isso foi tudo.- Continue - disse Spangler. - Est ardendo de vontade de me dizer que era a Morte. OSegador - creio que esta a explicao comum, no? A de que ocasionais pessoasescolhidas vem a imagem do Segador no espelho? Ora, esquea, homem! O NationalEnquirer adoraria isso! Fale-me sobre as horrveis conseqncias e desafie-me aexplic-las. Ele foi atropelado por um carro, mais tarde? Atirou-se de uma janela? O quefoi?O Sr. Carlin deu uma risadinha incrdula.- Penso que devia saber melhor, Spangler. No me disse duas vezes que est... hum... apar da histria do espelho Delver? No houve conseqncias horrveis. Nunca temhavido. Dai por que o espelho Delver no aparece nos suplementos dominicais, como odiamante Koh-i-noor ou a maldio da tumba do Rei Tutankamon. Ele mundano,comparado ao resto. Acha que sou um tolo, no?

A Imagem do Segador - Stephen King- Exatamente - respondeu Spangler. - Podemos subir agora?- Claro - disse o Sr. Carlin, ardoroso.Subiu a escada e empurrou o alapo. Houve um rudo "clique-claque", quando ele foipuxado para as sombras por um contrapeso. O Sr. Carlin desapareceu na penumbra.Spangler o seguiu. O Adnis cego olhava cegamente para eles.O aposento do espigo era explosivamente quente, iluminado apenas por uma janela demuitos ngulos, coberta de teias de aranha, que filtrava a claridade crua do exterior,transformando-a em suja luminosidade leitosa. O espelho estava inclinado em umaesquina, de frente para a luz, captando a maioria da claridade e refletindo-a em umafaixa perolada, na parede oposta. Havia sido seguramente ajustado em uma molduta demadeira. O Sr. Carlin no olhava para ele. Deliberadamente, evitava fit-lo.- Nem ao menos o protegeu com um pano velho! -exclamou Spangler visivelmenteirritado pela primeira vez.- Eu penso nele como um olho - disse o Sr. Carlin. Sua voz continuava seca,absolutamente vazia. - Se for deixado aberto, sempre aberto, tavez acabe ficando cego.Spangler no lhe deu ateno. Tirou o casaco, dobrou cuidadosamente os botes paradentro e, com infinita delicadeza, limpou a poeira da superfcie convexa do espelho.Depois recuou e olhou para ele.Era legtimo. De fato, no havia dvidas quanto a isso, nunca houvera. Tratava-se de umperfeito exemplo do particular gnio de Delver. O recinto amontoado de quinquilhariasatrs dele, seu prprio reflexo, a imagem meio virada de Carlin -tudo surgia claro,ntido, quase tridimensional. O ligeiro efeito amplificador do espelho dava a tudo umaqualidade levemente encurvada, que acrescentava uma distoro quasequadridimencional. Ele era...Seu fio de pensamentos interrompeu-se e ele sentiu outra onda de raiva.- Carlin!Carlin nada disse.- Carlin, seu maldito tolo, pensei ouvi-lo dizer que a moa no danificara o espelho!Nenhuma resposta.Spangler dirigiu-lhe um olhar glido, atravs do espelho.- H um pedao de fita isolante no canto superior esquerdo. Ela o rachou? Pelo amor deDeus, homem, diga alguma coisa!- Voc est vendo o Segador-disse Carlin. Sua voz era inexpressiva e sem paixo. - Noh nenhuma fita isolante no espelho. Passe a mo sobre o lugar... oh, Deus!

A Imagem do Segador - Stephen KingSpangler enrolou cuidadosamente a parte superior da manga do casaco em torno damo, esticou o brao e fez uma leve presso contra o espelho.- Est vendo? No h nada de sobrenatural. Desapareceu. Minha mo cobriu o quehavia.- Cobriu? Pode sentir a fita? Por que no a arranca?Spangler afastou a mo cautelosamente e olhou para o espelho. Tudo nele parecia umpouco mais distorcido; os estranhos ngulos do aposento davam a impresso de bocejarloucamente, como se prestes a deslizarem para o mago de alguma eternidade invisvel.No havia nenhuma mancha escura no espelho. Estava imaculado. Spangler percebeuum medo sbido e doentio crescer dentro de si e desprezou-se por senti-lo.- Parecia ele, no? -perguntou o Sr. Carlin. Seu rosto estava muito plido e ele olhavadiretamente para o cho. Um msculo saltou espasmodicamente em seu pescoo. -Confesse, Spangler. No parecia uma figura encapuzada, em p s suas costas?- Parecia uma fita isolante, tapando uma pequena rachadura - respondeu Spangler, emvoz firme. - Nada mais, nada menos...- O rapaz Bates era muito robusto - disse Carlin rapidamente. Suas palavras pareciamcair na atmosfera quente e imvel, como pedras atiradas em gua escura. - Como umjogador de futebol. Usava um bluso com iniciais e calas verde-escuras. Estvamos ameio caminho para a exposio no andar de cima, quando...- Este calor me faz mal - disse Spangler, em voz pouco firme.Havia apanhado um leno e enxugava o pescoo. Seus olhos percrutaram a superfcieconvexa do espelho, em leves e abruptos movimentos.- Quando ele disse que queria um gole d'gua... um gole d'gua, pelo amor de Deus! -Carlin se virou e olhou desvairadamente para Spangler. - Como eu podia saber? Comoeu podia saber?- H algum lavatrio por aqui? Acho que vou...- O bluso dele... apenas tive um vislumbre de seu bluso, quando ele desceu a escada...e ento...- ... vomitar!Carlin abanou a cabea, como se quisesse areja-la, e tornou a fitar o cho.- Claro. Terceira porta sua esquerda, no segundo andar, tomando a direo da escada. -Ergueu os olhos, suplicante. - Como eu podia saber?Spangler, no entanto, j comeava a descer a escada. Ela balanou sob seu peso e, por

A Imagem do Segador - Stephen Kingum momento, Carlin pensou - esperou - que ele fosse cair. No caiu. Pela aberturaquadrada no piso, Carlin o viu descer, tapando levemente a boca com uma das mos.- Spangler...?Ele j se fora.Carlin ouviu as pisadas dissolvendo-se em ecos, depois cessando. Quando deixou deouvi-Ias, estremeceu violentamente. Tentou mover os ps para o alapo, mas estavamgelados. Apenas aquele ltimo e apressado vislumbre do bluso do rapaz... Cus!...Era como se enormes mos invisveis lhe puxassem a cabea, forando-a a erguer-se.No querendo espiar, assim mesmo Carlin olhou para as bruxuleantes profundezas doespelho Delver.Nada havia l.O aposento se refletia fielmente para ele, seus confins empoeirados transformados emdifuso infinito. Ocorreu-lhe um trecho quase esquecido de um poema de Tennyson, eele o recitou, em um murmrio:"'As sombras deixam-me algo indisposta, disse a Senhora de Shallott...' 'E, ainda assim, ele no conseguia desviar os olhos, imobilizado pela quieta atmosfera.Perto de um canto do espelho, uma cabea de bfalo roda de traas, espiava-o comchatos olhos obsidianos.O rapaz quisera gua e o bebedouro ficava no saguo do primeiro andar. Ele haviadescido a escada e...E nunca mais voltara.Nunca mais'.Em qualquer lugar.Como a duquesa, que fizera uma pausa aps arrumar-se para uma soire diante doespelho e voltara ao quarto de vestir para apanhar suas prolas. Como o mercador detapetes, que sara para um passeio de carruagem e deixara para trs apenas umacarruagem vazia e dois cavalos mudos.E o espelho Delver estivera em Nova York de 1897 a 1920, estivera l, quando o JuizCrater...Carlin olhava fixamente, como que hipnotizado, para as rasas profundezas do espelho.Mais abaixo, o Adnis cego continuava vigilante.Ele esperou por Spangler, da mesma forma como a famlia Bates devia ter esperadopelo filho, como o marido da duquesa devia ter esperado que sua esposa voltasse do

A Imagem do Segador - Stephen Kingquarto de vestir. Ficou olhando para o espelho e esperou.E esperou.E esperou.