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O texto trata da importância da ética na formação do cidadão.
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Cidadãos esclarecidos vs. cordeirinhos morais1
Stephen Law
Tradução de Flavio Williges (Departamento de Filosofia/UFSM)
Como sou o autor de vários livros populares de filosofia, incluindo três livros de filosofia
para crianças, e também o editor da revista Think, do Royal Institute of Philosophy, que visa
alcançar o público em geral, penso que devo falar um pouco das razões que me levam a crer que
envolver jovens com a filosofia pode ser interessante.
Duas das organizações de filosofia para crianças mais conhecidas da Inglaterra são chamadas de
Saper e Aude. Não é uma coincidência que ‘Sapere Aude’ –Ouse saber!- seja o lema do
Esclarecimento (Iluminismo). Mas como o Esclarecimento e a filosofia para crianças estão
vinculados?
Os representantes do Iluminismo, Diderot e d’Alembert, definiram o pensador iluminista como
alguém que,
Passa por cima dos preconceitos, da tradição, do convencionalismo universal, da
autoridade, em uma palavra, de tudo aquilo que escraviza a maioria das mentes,
encorajando-nos a pensar por nós mesmos.
Kant, em um pequeno artigo chamado ‘O que é o esclarecimento?’ diz que Esclarecimento é:
É a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A
menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de
outro indíviduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela
não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de
servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer
uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento.
Para Kant, cidadãos esclarecidos não são somente intelectualmente capazes de pensar por conta
própria; eles também têm a coragem de fazê-lo. O contraste é com os indivíduos que, embora
intelectualmente capazes, são, ao mesmo tempo, intelectualmente submissos: temerosos de
questionar aquilo que a autoridade e a tradição ditam.
Muitos defensores da filosofia nas escolas são a favor de promover cidadãos que sejam, no
sentido de Kant, esclarecidos. Permitir que jovens envolvam-se com filosofia é uma forma óbvia de
deixá-los pensar de maneira crítica e independente sobre algumas das crenças mais fundamentais
que trazem consigo para a sala de aula, incluindo suas crenças religiosas e morais.
1 Esse texto é a fala do Prof. Stephen Law na British Academy em Londres, em 15 de fevereiro de 2015. Ele foi um dos seis painelistas e o evento tinha como título 'Qual a relevância da filosofia?'. Disponível em http://www.centerforinquiry.net/blogs/entry/enlightened_citizens_vs._moral_sheepAcesso em: 23 de fevereiro de 2015.
Porém, por que pode ser uma coisa boa promover pensadores críticos e autônomos,
preparados para confiar em seus próprios intelectos, em vez da autoridade e da tradição?
De fato, de forma alguma todos pensam que é uma boa idéia. Não há nenhum consenso
quanto a devermos criar cidadãos esclarecidos. Alguns temem que haverá conseqüências terríveis.
Eles argumentam que se as pessoas são encorajadas a confiar em seus próprios intelectos, em vez de
seguir a bússola moral confiável que a autoridade religiosa tem tradicionalmente fornecido, elas
terminarão ficando desorientados moralmente, sujeitas a qualquer capricho ou influência maligna
que soprar seu caminho. Eles serão provavelmente levados à catástrofe moral.
Eu não quero me envolver agora, pois não há tempo, com essas e outras críticas. Em vez
disso, irei esboçar rapidamente três razões, em virtude das quais penso que visar o desenvolvimento
de cidadãos esclarecidos é, feitas as contas, uma coisa boa.
A primeira razão é que, gostando ou não, nós já somos, cada um de nós, inevitavelmente
responsáveis por fazer nossos próprios juízos morais. Se uma autoridade em química me instrui a
misturar alguns elementos químicos e a explosão resultante mata várias pessoas, eu posso me
desculpar dizendo que estava apenas seguindo instruções. Mas se uma autoridade religiosa me diz
para sair e matar alguns descrentes, e o faço, eu não posso me desculpar do mesmo jeito. Eu tenho
uma responsabilidade inevitável ao fazer meus próprios juízos morais, uma responsabilidade que
não posso abrir mão em nome de supostos especialistas, do mesmo modo que posso razoavelmente
abrir mão da minha responsabilidade de fazer juízos relativos à química, física ou hidráulica. Dado
que cada um de nós tem essa responsabilidade inevitável por fazer nossos próprios juízos, o nosso
sistema educacional não deveria tanto nos instigar a fazê-lo, quanto assegurar que tenhamos a
maturidade intelectual e emocional necessária para cumprir essa tarefa adequadamente? Isso, penso
eu, é algo que a filosofia, quando bem conduzida, é capaz de fazer bem.
Uma segunda razão para encorajar as gerações futuras a voltarem atrás e perguntarem o que
temos defendido moralmente, percebendo, talvez, conseqüências previamente não-reconhecidas de
nossas crenças mais fundamentais é que é por meio de tal tipo de raciocínio que o progresso moral
acontece. Grandes avanços morais em nossas atitudes em relação às mulheres, aos gays e outras
raças aconteceram no último século e até mesmo antes disso, em função de estarmos preparados
para questionar as opiniões morais recebidas, exatamente como a filosofia requer.
E aqui vai uma terceira sugestão pela qual pode ser uma coisa boa criar cidadãos esclarecidos. A
abordagem tradicional, a abordagem baseada na autoridade da educação moral e religiosa, a qual
encoraja atitudes de submissão e de aceitação mais ou menos acrítica, tende a produzir cordeirinhos
morais. Cordeirinhos morais podem fazer a coisa certa, mas somente se isso for o que seu rebanho
estiver fazendo.
Uma sociedade de cordeirinhos morais pode ser muito satisfatória. Enquanto o rebanho
segue uma autoridade benigna, crimes poderão não existir e as ruas estarão limpas. Mas uma
sociedade de cordeirinhos é uma coisa perigosa. Quando alguma figura de autoridade nova, talvez
mais carismática e menos benevolente, surgir, nosso rebanho a seguirá, talvez até mesmo
enfurnando-se com algum aliado perigoso.
Como podemos nos precaver disso?
O Professor Jonathan Glover, Diretor do Centro de Medicina Legal e de Ética do King’s College
em Londres, conduziu uma pesquisa em torno das origens daqueles que foram mais ávidos em se
juntar a assassinatos em lugares como a Alemanha nazista, Ruanda e Bósnia, e também que
daqueles que trabalharam para salvar vidas, às vezes colocando-se em grande risco. Como Glover
explicou numa entrevista no The Guardian, (cito-o aqui)
Se você observar as pessoas que abrigaram judeus durante o nazismo, você
descobrirá uma série de coisas sobre elas. Uma dessas coisas é que elas tendiam a
ter uma tipo diferente de educação em relação a maioria das pessoas; elas foram
educadas de um modo não autoritário, cresceram tendo empatia com outras pessoas
e discutindo coisas, em vez de só fazer o que lhes era dito.
Glover acrescenta, ‘eu creio que ensinar a pensar racional e criticamente realmente pode
contribuir para diminuir a susceptibilidade das pessoas às falsas ideologias’.
Em seu livro A personalidade altruísta: resgatadores de Judeus na Europa Nazista, os
analistas também relataram que uma das diferenças mais significativas entre os pais
daqueles que resgataram e daqueles que não resgataram estava na ênfase que eles davam ao
raciocínio.Cito:
[P]ais de resgatores usavam significativamente menos punição física e
significativamente mais raciocínio.
Os pais de resgatores diferiam dos não-resgatadores em sua confiança no raciocínio,
nas explicações, nas sugestões de modos de reparar danos feitos, na persuasão e
conselhos.
Os analistas acrescentaram que ‘o raciocínio comunica uma mensagem de respeito e
confiança às crianças que lhes permite experimentar um sentimento de eficácia pessoal e
amabilidade em relação aos outros.’ Em oposição, os não-resgatadores tendiam a se sentir
‘meros joguetes, sujeitos ao poder de autoridades externas’.
Incidentalmente, os analistas perceberam que a ‘religiosidade foi só minimamente associada
com a preocupação em ajudar’.
CONCLUSÃO
Alguns acreditam que se quisermos imunizar as gerações futuras de uma contaminação pelo tipo de
catástrofe moral que marca o século XX, nossa melhor aposta é a religião. Eu sugiro que a melhor
aposta é a filosofia.
Se você quiser, você pode criar suas crianças de acordo com uma confissão religiosa
determinada. Mas eu recomendo que nenhuma criança seja educada numa escola que desencoraja a
independência de pensamento, que torne certas crenças religiosas intelectualmente indiscutíveis ou
que encoraje as crianças a suporem que seja qual for a crença religiosa que elas forem ter, não será
uma questão da sua livre escolha.
Certamente todos nós todos queremos influenciar o que nossas crianças acreditam e, em particular,
o que as próximas gerações irão acreditar. Eu não quero que a próxima geração de cidadãos cresça
racista ou sexista. Eu certamente não quero vê-las deixarem-se levar por aqueles que lhes inculcam
ideologias violentas e extremistas.
Minha sugestão é que se quisermos proteger jovens de serem doutrinados por tais sistemas
de crenças perigosas, nossa melhor defesa é não deixar nossa própria doutrinação vir primeiro,
mas dar-lhes algum tipo de imunização contra esse tipo de doutrinação.
Elas precisarão essa habilidade para reconhecer quando elas estiverem sendo
emocionalmente manipuladas, quando lhes estiver sendo vendido algum veneno de cobra intelectual
e assim por diante.
Certamente há um risco associado em criar indivíduos que tenham esse tipo de habilidade e
a coragem de aplicá-las. Eles podem terminar usando suas habilidades intelectuais recém-adquiridas
para racionalizar seus próprios preconceitos ou preparar justificações para qualquer coisa que eles
gostariam que fosse verdade. Isso é um risco. Mas creio que um risco maior virá de criar uma
geração de cordeirinhos morais.