Strauss C. Quatro Mitos Winnebago

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pado na mesma publicao. De um ponto de v1lsta estrutural, 08 quatro mitos apresentam uma unidade profunda, a despeito do fato de que, como Radln insiste na introduo e nas notas, um deles parece afastarse muito dos outros trs pelo contedo, estilo e estrutura. Tentarei, porm, destacar as relaes que prevalecem entre os quatro mitos e mostrar que se pode reun-Ios, no somente a titulo de documentos etnogrfIcos e lngstcos sobre uma determinada tribo, mas indo alm da inteno do Radin, pois que todos os quatro pertencem ao mesmo gnero e suas respectivas mensagens se completam. CAPtTULO X O primeiro mito tem como ttulo: "Os dois amgos que reencarnaram, ou a origem da vigfl1a das quatro noites". Ele conta como o rnno de um chefe e seu melhor amigo puseram em execuo seu projeto de farz:er o sacriflcio de suas vidas para o bem da comunidade. Depois de mortos, eles sofreram uma srie de provas no outro mundo e alcanaram finalmente a morada do criador (Earthmaker) que: por especial favor, lhes permitiu voltar para o mundo dos vivos, onde retomaram seus lugares no meio de seus parentes e companheiros. Como Radin explica no seu comentrio, (p. 41, 32), a narrativa se refere de maneira implcita a uma teoria indgena: cada pessoa tem direito a uma quota-parte determinada de anos de vida e de experincias terrestres; os parentes de um indivduo morto prematuramente podem, assim, pedir aos espritos que repartam entre eles a parcela de vca que o defunto no consumiu. Mas a teoria vai mais alm, pois se esta parcela de vida, qual o heri do mito renuncia se deixando matar pelos inimigos, deve aumentar o capital de vida constituda em benefcio do grupo, este ato de devotamento no inteiramente desprovido de vantaaens pessoais: tornando-se um heri, um indivduo faz uma escolha, troca uma vida inteira contra uma vida abreviada mas, enquanto que a parcela inteira nica, concedida uma vez por todas, a parcela reduzida aparece como a causa jurdica de uma espcie de contrato de arrendamento infinitamente renovvel. Em outras palavras, renunciando a uma vida completa, adquire-se o direito a uma srie llimitada de vidas abreviadas. E como os anos sacrificados pelo heri iro aumentar a esperana de vida dos indivduos comuns, todo mundo ganha na transao: os indivduos comuns, cuja esperana mdia de vida se prolongar lenta mas seguramente no decorrer das geraes, e os guerreiros, cuja durao de vida ser reduzida mas indefinidamente que saibam persistir em seu desejo de abnegao. renovvel, contanto

QUATRO

MITOS

WINNEBAGO

*

Entre todos os talentos que fazem dele um dos grandes etnolgoiJ de nosso tempo, Paul Radin possui um, raro na nossa profisso, que confere uma qual1dade singular sua obra: o que se chama faro, um dom de ordem esttica para ir dlretamente aos fatos, s observaes e aos documentos particularmente ricos de sentido. Algumas vezes dissimulado nos recnditos de seus livros, este sentido se desvela progressivamente quando se lhe consagra a necessria ateno. Mesmo quando o autor no se aplica em esmiuar o sentido dos documentos, a colheita do material real1zada por Paul Radin fornece um alimento substancial s geraes de pesquisadores. Jt por isso que gostaria de render homenagem sua obra apreciando os quatro mitos por ete publlcadcs sob o titulo: The cuuure 01 the Winne~ago: As Describe by Themselves (1949). Na introduo ele diz: "Ao publicar estes textos, meu nico propsito foi colocar disposio dos pesquisadores materiais autnticos que podero servir ao estudo da cultura dos Winnebago". Apesar desta modesta declarao, e ainda que os quatro mitos tenham sido obtidos de informantes diferentes, percebem-se as slidas razes de t-lcs agru Adaptado do original ingls: "Four Winnebago Mytbs, A Structural Sketch", Culture in tnstors. Essays in Honor 01 Paul Radm, ,Coh,lmbia University Press, New York, 1960, p. 351-362. Preparada sob a dreo do pror. Stanley Diamond em vida de Paul Radin, esta obra foi publicada depois de sua morte que se deu em 21 de fevereiro de 1959.

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207

No certo, entretanto, que Radin faa Justia a seu 1nformante quando quallf1ca de "Interpretao secundria" a Indicao segundo a qual os dois heris teriam iniciado sua expedio, em reconhecimento pelos beneficios recebidos de seus compatriotas (p. 37, 2). Da anlise que precede, parece resultar, ao contrrio, que este motivo de primordial importncia. Alis, o mito no fala de uma, mas de duas campanhas guerreiras. A primeira ocorre na poca da adolescncia des dois heris, por isso no so convocados. Ningum nem mesmo se preocupa em nrorm-Ios sobre esta guerra, eles tm conhecimento dela por ouvir-dizer ( 11-14) e a seguem por sua prpria conta. Em conseqncia, no so responsveis pela atividade em que se distinguem: outros a conceberam e dirigiram. E os heris tambm no so responsveis pela segunda campanha, na qual perecem, pois a iniciativa das operaes cabe desta vez aos inimigos, que as desencadearam em represlla guerra que lhes foi movida anteriormente. A idia inicial est, portanto, clara: os dois amigos fizeram bons casamentos e tiveram sucesso na vida social ( 66-70), e se sentem devedores em relao a seus compatriotas ( 72). O mito explica que eles partem procura de aventuras, com a inteno de se sacrificarem realizando alguma ao til, e ento que caem vitimas de uma emboscada preparada pelos inimigos que querem vingar-se de sua derrota precedente. Os dois heris procuraram, pois, a morte para o bem de seu povo, e esta morte os atingiu, ainda que fossem Inocentes quanto aca atos de hostilidade, que acarretaram suas mortes, mas cuja responsab1lldade recai sobre seus compatriotas. Contudo, estes compatriotas herdaro as quotas de vida s quas em seu beneficio os heris renunc.aram. Mas como os heris ressuscitaro e retomaro terra, sem dvida para se conduzirem da mesma forma, o ciclo das transferncias de vida recomear, e assim inintenuptamente. Indicaes dadas por Radin confirmam nossa interpretao: aps a morte, uma anci sobrenatural submete as almas a provas, no fim das quais ela as libera da lembrana da. vida terrestre. Ora, as almas somente podem vencer sob a condio de pensarem, no em sua prpria salvao, mas na de seus compatriotas ainda vivos. Na raiz do mito distingue-se portanto, como diriam os lingistas, uma dupla oposio. Inicialmente, entre destino comum e destino herico, o primeiro usufruindo o direito a uma vida plena e completa. mas no renovvel; o outro, arriscando este direito em benefcio do grupo. A segunda oposio se estabelece entre duas espcies de morte, uma definitiva e, digamos, uniforme, ainda que comporte uma promessa de

imortalidade no outro mundo; e a outra peridica, marca da pelaa idas e vindas entre este mundo e o outro. A imagem desta dualaade de destinos se encontra talvez no smbolo winnebago da escada do outro mundo, tal como a descreve o Medicine Rite. Um lado dela , dizem, "como uma pata de r: retorcda e salpicada (dappled) de luz e de vida (ltghtand-life). O outro lado como um cedro vermelho enegrecdo pelo uso, que se tornou polido e brilhante" (p. 71, I 91-93; et, Radln 1945,sobretudo os comentrios instrutivos das p. 63-65). Resumamos a mensagem do mito, tal como ressalta das anlises que precedem. Aquele que aspira a uma vida completa sofrer uma morte igualmente completa; mas aquele que de bom grado renuncia vida e procura a morte ganhar duas recompensas: de um lado, ele aumentar a durao da vida completa outorgada aos membros de sua tribo; de outro, ter acesso a uma condio caracterizada por uma alternnca indefinida de vidas parciais e de mortes parciais. Seja um sistema triangular: reencarnao (vida parcial, morte parcial)

v1da total

morte total

Intitulado "O homem que trouxe sua mulher do mundo dos esprtos",.o segundo mito prope uma variao sobre o mesmo tema, mas com uma diferena importante. Ai tambm, um heri - no caso o ma:idoest pronto a sacrificar a durao de vida que lhe resta; todavia, este sacrlflcio consentido no visa ao bem do grupo, como no primeiro mito, mas ao bem de uma nica pessoa: a esposa ternamente amada que acaba de ser arrebatada sua afeio. Na realidade, o heri no sabe, inicialmente, que procurando a morte, obter um novo contrato de vida, no somente para sua falecida esposa, mas tambm para ele. Se ele tivesse sabido - e isto vale tambm para os protagonistas do mito precedente _ o elemento de sacrttco, essencial ao desenvolvimento da intriga, estaria ausente da narrativa. Mas o resultado final permanece o mesmo aqui e l: aquele que perde a vida 'num grande impulso de altruismo a recupera para si prprio, assim como para a ou as pessoas em favor das quals se sacrificara inicialmente. O terceiro mito - "Viagem da alma ao mundo dos espritos, tal como narrada no Medicine RUe" - pertence, como Indica seu titulo, 209

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a uma confraria religiosa. Ele relata as provas que seus adeptos devem sofrer no outro mundo, a exemplo dos protagonistas dos outros mitos, e explica que. se eles triunfam, ganham o direito reencarnao. A primeira vista, a situao difere das precedentes, pois ningum faz aqui o sacrificio de sua vida. Sabe-se, contudo, que os membros do Medicine Rite praticavam regularmente um tipo de sacrifcio simblico. Como demonstrou Radin em The Road ot Lije and Death e em outros trabalhos, o ritual seguia um modelo corrente na Amrica do Norte, segundo o qual os adeptos se faziam alternadamente "matar" e "ressuscitar". O terceiro mito desvia-se, assim, dos dois primeiro apenas porque, em lugar de estarem prontos a morrer uma nica vez e realmente, seus heris - isto , os adeptos do rito - se exercitam regularmente para o mesmo sacrifcio que repetem vrias vezes no curso de sua existncia, mas de forma simblica. De certa rorma, eles se Imunizam, contra a verdadeira morte renunciando simbolicamente vida plena e completa; enquanto esta perdura, o ritual a substitui por uma sucesso de vidas parciais e de mortes parciais. Neste caso tambm, por conseguinte, os elementos constitutivos do mito permanecem os mesmos ainda que cada indivduo - e no um terceiro ou o grupo considerado em seu conjunto -1 seja o beneficirio do sacrificio consentido. Passemos agora ao quarto mito: "Como um rfo fez voltar vida a filha do chefe" que, aos olhos de Radin, suscita vrias dificuldades. Este mito, observa ele com efeito, no apenas diferente dos outros trs: ele ocupa um lugar parte na mitologia wnnebago, Na poca em que escrevia seu livro Method and Theory 01 Ethnology (p. 238-245). Radin considerava que podia tratar-se de uma verso alterada, a ponto de se tornar irreconhecivel, de um mito de fundao de aldeia cujo tipo ele havia, alis, identificado; mas, em The Culture 01 Winnebago (p. 74), explica o motivo de haver renunciado a esta interpretao. Sigamos de perto a argumentao de Radin. Ele comea por resumir a intriga - to simples, diz ele, que este cuidado pode parecer suprfluo: A filha de um chefe de tribo apaixona-se por um rfo, morre por amor e reconduzida vida pelo prprio rfo, que deve vencer diversas provas, no no mundo dos espritos, mas aqui, sobre a terra e na mesma cabana onde a moa faleceu (p. 74). Se a intriga "a prpria simplicidade", onde se encontram, pois, os pontos litigiosos? Radin enumera trs contra os quais protestaria, diz ele, qualquer Winnebago contemporneo: 1) o mito parece referir-se a 210

uma sociedade grandemente estratif1cada; 2) para que a intriga seja plausivel, seria necessrio admitir que, nessa sociedade, as mulheres ocupassem uma posio superior, e talvez mesmo que a ~egra de des~ cendncia fosse matrilinear; 3) provas cuja cena a mitologia winnebago situa, em geral, no outro mundo, aqui acontecem sobre a terra. Radin considera ento duas explicaes possveis, mas para afast-Ias imediatamente. Ele no cr que o mito possa resultar de um emprstimo ao folclore europeu, ou ser obra de algum pensador de esp1rito avanado (some Winnebago radical); ele antes o faria remontar a um periodo muito antigo da histria winnebago. Duas formas distintas de tradio literria Indgena, contos divinos de um lado, e de outro, contos humanos, se teriam fundido divinos de um lado, e de outro, contos humanos, se teriam fundido com elementos arcaicos, e o conjunto teria sido remanejado para harmonizar estes dados discordantes. No pensamos discutir esta elegante reconstruo, fundada sobre um conhecimento incomparvel da cultura, da lingua e da histria dos Winnebago. A anlise que segue no pretende substituir a de Radin, mas somente complet-Ia. Ela se situa, alis, num plano lgico, no histrico, e toma como contexto os trs mitos j comentados mais do que a cultura antiga ou recente de seus narradores. Pretendemos pesquisar se existem relaes estruturais entre os quatro mitos e, em caso afirmativo, explct-las. Comecemos lembrando um ponto de ordem terica. Desde que Boas publicou sua Tsimshian MytholoYlI, os etnlogos aceitaram freqentemente que uma correlao regular existe entre a cultura de uma sociedade e seus mitos. Mas o prprio BOas no parece ter ido to longe. A obra que acabamos de citar no afirma que os mitos refletem automaticamente a cultura, como, desde ento, alguns parecem postular. Mais modestamente, ele se interroga at que ponto e em que medida o espelho dos mitos reflete a Imagem da cultura, e mostra que alguma coisa da cultura passa efetivamente aos mitos. No quer dizer que cada vz que um mito mencione uma forma de vida social, esta deva corresponder a alguma realidade objetiva, que deveria ter existido no passado, se o estudo das condies presentes no consegue descobrir-Ia na atualidade. Uma correspondncia deve existir, e existe de fato, entre a mensagem inconsciente de um mito - o problema que ele procura resolver e o contedo consciente, em outras palavras, a intriga que ele elabora para chegar a este resultado. Mas esta correspondncia no necessariamente da natureza de uma reproduo literal, ela pode tambm tomar

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o aspecto de uma transformao lgica. Se um mito coloca seu problema de forma. direta, isto , nos termos em que a sociedade de onde ele provm o percebe e procura resolv-Io, a ntrga, contedo patente do mito, pode tomar emprestado seus motivos diretamente prpria vida social. Mas se o mito formula o problema ao inverso e procura resolv-lo pelo absurdo, pode-se esperar em conseqncia, que o contedo patente seja modificado, e oferea a imagem invertida da realidade social emprcamentc dada, tal como ela se apresenta conscincia dos membros ~a sociedade. Em tal eventualidade, a hiptese de Radin, segundo a qual as formas de vida social ilustradas pelo quarto mito remeteriam a um perodo antigo da histria winnebago, no seria de modo nenhum necessria. Pois estas formas poderiam oferecer a imagem de uma socedade sem existncia real, presente ou passada, ou mesmo contrria ao modelo winnebago tradicional, simplesmente porque a estrutura deste mito particular inverte a de outros mitos cujo contedo patente faz apelo ao modelo tradicional. Em outras palavras, admitindo-se uma correspondncia 'entre A. e B, substitui-se A por -A, ento necessrio que o_B substitua. B; mas isso no implica que, pelo simples fato de haver uma. correspondncia entre B e um objeto real, um outro objeto real, ao qua.l possa corresponder -B, deva existir em algum lugar: numa outra sociedade qual ele teria sido tomado de emprstimo; ou, a titulo de sobrevivncia, no passado da sociedade considerada em primeiro lugar, Evidentemente, o problema est. em saber porque temos trs mitos do tipo A. e um mito do tipo -A. Talvez porque o tipo -A seja mais antigo, mas talvez tambm porque -A pertena a A como uma. transformao A4 fazendo parte de um mesmo grupo, cujos trs prtmercs mitos AI' A2' Aa ilustram outros estados. J. se estabeleceu que este grupo de trs mitos repousa. sobre uma oposio fundamental entre, de um lado, a vida dos indivduos comuns que perecem de morte natural e cuja alma prossegue sua existncia banal numa das aldeias do outro mundo, e, de outro lado, a vida dos heris, voluntariamente diminuda, mas cuja parcela de vida no consumida vai aumentar a parcela atribuda aos outros membros do grupo e possibilita ao heri um novo contrato de vida. Os trs primeiros mitos considerados no levam em conta o primeiro termo da alternativa; eles retm exclusivamente o segundo. Mas, entre os trs, uma diferena subsidiria aparece, que permite, ainda assim, classfc-Ics em funo do fim particular, objeto do sacrifcio do ou dos heris: o bem do grupo

no primeiro mito, o bem de um outro indivduo (a esposa) no lIelrWldo, e no terceiro mito, o bem da prpra vtima. O que acontece com o quarto mito? Reconheceremos, como R4~. que ele apresenta traos "incomuns"; todavia, estas diferenas derivam' tanto ou talvez mais da lgica do que da sociologia ou da histria, pos. elas parecem referir-se ao fato de que uma nova oposio se introdua ao nivel da primeira dicotomia (entre vida comum e vida extraordin~ ria). Com efeito, um fenmeno pode ser qualificado como extraordinrio de dois modos: por excesso ou por falta, abundncia ou carncia. Ora, se os heris dos trs primeiros mitos possuem dons' que os colocam acima do normal, - quer se trate do devotamento causa pblica, do amor conjugal ou do fervor mistlco - os dois heris do quarto mito S,1l classificam abaixo da mdia, pelo menos sob um certo aspecto que no o mesmo para cada um. A filha do chefe ocupa um posto soelal elevado; tll.o elevado, na verdade, que est separada da massa do grupo e se encontra, de certa forma, paralisada pela incapacidade de exprimir seus sentimentos. Sua posio superior faz dela um ser humano diminudo, ao qual falta um atributo essencial da vida afetiva. O heri tambm diminudo, mas sob o aspecto social: pobre e rfo. Ser necessrio ento dizer que o mito reflete a imagem de uma sociedade estratlflcada? Seria desconhecer a notvel simetria que reina entre os dois heris, dos quais seria falso afirmar simplesmente que um est "no alto" e outro "em baIxo". Na verdade, cada um alto de um certo ponto de vista e baixo de outro; este par de estruturas simtricas e invertidas pertence ao domno das construes ideolgicas mais do que quele dos sistemas soctas empirlcamente observveis. Acabamos de constatar que a jovem o-upa uma posio social superior, mas que, como criatura viva, portanto sob a relao natural, ela se situa numa posio inferior. Quanto ao rapaz, ele se coloca Incontestavelmente muito baixo na escala social; mas, em compensao, um caador mlraculosamente dotado que entretm relaes privilegiadas com o mundo dos animais, Isto , o mundo natural, O mito volta constantemente a este tema ( 10-14, 17-18, 59-60, 77-90). Por conseguinte, a armadura de nosso mito se reduz a um sistema polar aproximando e opondo, ao mesmo tempo, dois indivduos, um masculino, o outro feminino, e ambos dignos de nota pois cada um excepcionalmente dotado sob uma relao (+), excepeclonalmente desprovido (-) sob uma outra:

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,r

Natureza Rapaz Moa

Cultura

++

Ao se desenvolver, a intriga leva este desequ1l1brioa seu ponto extremo: a jovem perece de morte natural, o rapaz fica completamente s e sofre assim uma morte social. E enquanto que, durante todo o tempo de sua vida comum, a moa estava ostensivamente em posio superior, o jovem em posio inferior, agora que esto separados (ela dos vivos, ele da sociedade) suas respectivas posies se invertem: abaixo (no tmulo) para uma, acima (sobre o solo da cabana) para o outro. Um detalhe que Intrigou Radin poderia ter como funo tornar manifesta esta inverso: "Sobre o tmulo, acumularam terra fofa (terre meuble ioose drt) de tal forma que nada pudesse passar atravs dela (seep through)" (p, 87, 52). Radin comenta: '~No compreendo porque o fato de amontoar terra sem comprimi-Ia (piling the dirt loosely) poderia tornar a tumba estanque (would prevent seepae); Deve haver 1101 alguma coisa que no indicaram" (p, 100, n. 40). Mas talvez se possa colocar este incidente em correlao com um outro, supostamente acontecido quando se construiu a cabana do rapaz: " ... sobre o solo tinha-se acumulado uma grande quantidade de terra para que, desta forma, o calor se conserve" (p. 87, 74). Poder-se-ia tratar aqui, no da evocao de usos recentes ou antigos, mas de um tentativa um pouco canhestra para sublinhar que, em relao superrce do solo, o rapaz est agora acima e a moa abaixo 1. Entretanto, este novo estado de equilbrio ser to precrio quanto o outro. Aquela que foi incapaz de viver no consegue morrer, e seu fantasma "retarda-se sobre a terra". Sob esta forma, ela obtm finalmente do rapaz que ele trave a luta contra os espritos do outro mundo, para traz-Ia de volta entre os vivos. Por um admirvel efeito de simetria, o jovem conhecer mais tarde um destino similar embora invertido: "Ainda no sou velho, dir ele jovem agora sua mulher, e, todavia, permaA interpretao , com efeito, plausvel neste contexto. Mas, tanto na ca do Norte quanto na Amrica do Sul. no faltam exemplos de ritos funerrios no curso dos quais amontoam-se pedras pesadas sobre o tmulo para que o fantasma perigoso do morto no=possa escapar, ou, ao contrrio, onde o solo fofo, para conservar a comunicao entre o morto e os vivos, A dificuldade se deve ao fato de que o segundo procedimento parece ser destinado aqui a obter o resultado que seria de esperar do primeiro.

1

Ami

341. Por conde viver. ,Esta gangorra poderia prosseguir indefinidamente, e a narrativa evoca pelo menos esta ,possibilidade dando ao heri um filho nico, como ele, em breve, rfo, e como ele, bom caador. MaS a intriga evotu para uma concluso diferente. Igualmente incapazes de viver e de morrer, os doia heris assumem uma condio intermediria, a de criaturas crepusculares que residem sob a terra mas que podem, ocasionalmente voltar 1\ superfcie: nem humanos nem divinos, mas transformados em lobos, isto , em espritos ambguos nos quais se combinam traos positivos e negativos. Tal o fim do mito. Se a anlise que precede est correta, dela resultam duas conseqncias. Em primeiro lugar, o mito forma um todo coerente, cujos mrumos detalhes se ajustam e se correspondem; em segundo lugar, os trs problemas levantados por Radin (supra, p. 210-211) remetem di! etamente estrutura do mito, e no necessrio, para encontrar-lhes uma soluo, recorrer a uma histria da sociedade wnnebago que, alis, s poderia ser conjetural. Tentemos, pois, resolver estes trs problemas limitando-nos acs terlIDOS de nossa anlise. 1) A sociedade evocado, pelo mito aparece estratificada somente porque os heris a so representados sob a forma de um par de oposio; mas sua oposio se manifesta ao mesmo tempo sob o lngulo da natureza e da cultura. Por conseguinte, a pretensa estratiflcao no constitui um vestgio histrico. Ela resulta da projeo, sobre uma. ordem social imaginria, de uma estrutura lgica cujos elementos so todos dados em correlao e oposio. 2) Pode-se resolver da mesma forma a segunda dificuldade, que se deve condio superior atribuda, parece, s mulheres. Com efeito, toda nossa argumentao significa que os quatro mitos aqui ccnsderados formulam trs proposies, a primeira de modo implcito, a segunda de maneira explcita nos mitos 1, 2, 3, e a terceira tambm de forma explcita, mas somente no mito 4. A saber: a. Os indivduos comuns vivem (uma vida. completa) e morrem (de forma definitiva). b. Os indivduos extraordinrios, em virtude de atributos positivos, morrem (mais jovens) e vivem (de novo). c. Os indivduos extraordinrios, em virtude de atributos negativos, so igualmente incapazes de viver e de morrer.

nec sobre a terra tanto tempo quanto poda ... " (p. 94, seguinte, aquele que consegue vencer " morte inc"paz

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E;t claro que a proposio c decorre a contrario das proposies (aqui um homem e uma mulher) ocupem no inicio posies invertidas, para que cada um possa assumir uma metade da demonstrao, simtrica com a outra metade que cabe a seu parceiro. Da resulta que uma Intriga, e cada um de seus elementos, no podem jamais ser interpretados em si mesmos nem em funo de dados exteriores ao dominlo do mito, mas a titulo de substituies que fazem parte integrante de um grupo de mitos e que so interpretveis apenas em relao a ele. 3) Pode-se agora voltar ao ltimo dos problemas levantados por Radin e que se refere ao quarto mito: por que a luta contra os fantasmas a se desenrola sobre a terra e no, como de regra, no outro mundo? Este problema exige o mesmo tipo de soluo que os outros~ pois precisamente porque os dois heris so subviventes ("sousvivants) (um sob a relao da natureza e o outro, da cultura) que os fantasmas, com os quas eles lutam, devem representar super-mortos ("super-morts") na narrativa. Lembremo-nos de que, efetivamente, toda a intriga do mito se situa e se extingue em um terreno equvoco onde os humanos se tornam animais ctonanos, e onde as almas no se decidem a abandonar a terra. O mito coloca em cena personagens que so,' desde o incio, metade vivos e metade mortos; ele se ope assim aos mitos precedentes onde a anttese entre a vida e a morte, vigorosamente marcada no incio, resolvida somente no final. Por conseguinte, esta a mensagem global dos quatro mitos tomados em conjunto: para que se possa ultraparsar a oposio entre a vida e a morte, necessrio Inicialmente reconhecIa como tal; seno, a ambigidade que se ter deixado introduzir entre os dois estados persistir ndendamente.a e b. Ela deve, pois, forjar uma intriga cujos protagonistas

1, 2 e 3 podem ser classificados em relao funo dlferenc:al que cadB. um consigna ao sacrifcio consentido pelo ou pelos heris. Os mitos se organizam, pois, em sistema dlcotOrnico em vrloa nveis, no interior dos quas prevalecem relaes de correlao e da oposio. Mas podemos ir um pouco mais adiante, e tentar orden-Ioe em uma escala comum levando em conta a curiosa gradao que se observa. de um mito a outro, quando se procura definir o gnero de provas u quais os espritos ou fantasmas submetem os heris. No mito 3, 08 espritos no impem nenhuma prova; eles se limitam ao papel de companheiros de jornada, testemunhas Indiferentes dos esforos do heri para superar os obstculos materiais que se erguem em seu caminho. No mito 1, os espritos no so mais indiferentes porm no so ainda hostis; muito ao contrrio, pois o heri deve resistir sua farnlartdade no cedendo nem aos convites dos espritos femininos, nem . alegria comunicativa dos espritos masculinos que, para melhor engan-lo, representam o papel de rapazes brincalhes. Assim, de companheiros no mito 3 os espritos dos mortos se transformam em sedutores no mito 1; eles agem ainda como humanos no mito 2, mas como aaressores que se entregam a todo tipo de brutalidades; carter que se afirma ainda mais claramente no mito 4, onde os espritos perdem toda aparncia humana, pois sabe-se no final que eram eles que perseguiam o heri sob a fonna. de insetos grulhantes. Observa-se, portanto, de um mito a outro uma dupla progresso: de uma conduta pacfica a uma conduta agressiva, e de um comportamento humano a um comportamento no humano. E no tudo, pois tambm podemos colocar esta dupla progresso em correlao com as relaes que o, ou os heris entretm com seu grupo social. O heri do mito 3 faz parte de uma confraria religiosa; no se pode duvidar de que ele assume seu destino privilegiado como membro deste grupo no Interior do qual age, e de acordo com ele. Quanto aos heris do mito I, se eles decidiram separar-se do grupo foi - o texto o assinala vrias vezes - a fim de encontrar uma ocasio para realizarem uma. ao meritria que pudesse beneficiar seus compatriotas; agem, pois, em favor do grupo, e para ele. Em compensao, somente o amor que sente por sua mulher Inspira o heri do mito' 2; o grupo social no est nunca em causa. O heri empreende sua ao como particular e unicamente para o bem de um outro particular. Enfim, no mito 4, os dois heris manifestam em relao ao grupo uma atitude francamente negatlva: a jovem morre por sua incapacidade de comunicar-se, prefere

E;pero ter demonstrado que os quatro mitos pertencem a um mesmo grupo de transformao, e que Radin possua melhores razes do que ele mesmo acreditava para reun-los em uma publicao. Em primeiro lugar, todos estes mitos tratam de destinos excepconas opostos a destinos vulgares. Sem dvida, estes ltimos no so expressamente evocados; no sistema formado pelos quatro mitos, eles constituem uma classe vazia, o que no significa que ela no possa ser preenchida em outra situao. Em segundo lugar, observa-se uma oposio entre dois tipos de destnos extraordinrios, alguns por excesso, outros por carncia. Esta segunda dicotomia permite distinguir o mito 4 dos mitos 1, 2, 3; ela equivale, pois, no plano lgico, mesma distino feita por &adin por razes psicolgicas, sociolgicas e histricas. Enfim, os mitos

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217

11,

I perecer a exprimir-se, e se exila, definitivamente, pensa ela, na morte. Ppr seu lado, o rapaz recusa seguir os aldeos quando estes decidem emigrar e abandonar o tmulo. Os dois protagonistas escolheram a segregao, e suas respectivas atividades se desenvolvem contra o grupo:

r--- -extraordinri

destino ~ comum

I

o

IpositivoI

InegativoI

(dlase "azia)

TSacrifcio

para o bem de:

si mesmo

ro grupo sedutores

I

I

CAPITULO XI

Toutrem agressores humanos

M.

o

SEXO DOS ASTROS

Espirlto

dOi mortollompanheiros

I

I

agressores no humanos

AJo cumprida

I

no grupo

para o grupo

fora do grupo

contra.grupo

I

I

II

liII

li

O diagrama acima resume toda a argumentao. Tenho conscincia de que, para ser plenamente convincente, ela no deveria limitar-se a quatro mitos, mas apresentar outros, dentre os documentos inestimveis que Radin nos deixou sobre a mitologia. wnnebago, ESpero, entretanto, que com a. integrao de materiais suplementares a estrutura de base aqui esboada se torne mais rica e mais complexa, mas no invalidada. Comentando um pequeno Uvro que seu autor considera provavelmente como uma obra menor, eu apenas quis sublinhar, atravs de um exemplo, a fecundidade do mtodo seguido por Radin, e o interesse durvel que se prende aos problemas por ele colocados.

Uma das primeiras conversas que me lembro ter tido com Roman Jakobson se referia maneira pela qual as lnguas e os mitos marcam a oposio entre a lua e o sol. Procurvamos achar contrastes no gnero das palavras que servem para desgn-los ou nas formas verbais que denotam o tamanho ou a luminosldade relativa dos dois astros. Rapidamente, tivemos de reconhecer que o problema no era simples, e que a oposio cuja natureza binria parece to evidente ao observador ocidental poderia, em culturas longnquas, exprimir-se de maneira singularmente diversa. Para celebrar o septuagsmo aniversrio de Roman Jakobson, que coincide mais ou menos com o vigsimo-quinto aniversrio de nosso encontro, proponho-me juntar algumas indicaes colhidas ao acaso de minhas leituras e em lembranas dessas discusses. Elas se referem .s culturas americanas, mas, apesar deste carter regional, incitaro talvez, pesquisadores a retomar, numa perspectiva mais ampla, o estudo de um problema que havia preocupado os mtlogos do fim do sculo XIX e do comeo do sculo XX, raas que, desde ento parece ter caldo no esquecimento.

I: II iII1 ;!

Traduo de 218

LUCIA

PESSA SILVEIl\A DA

To Honor birthday.

Roman

Jakobson.

Essays on the occasion

o/ his seventieth

Mouton, La Haye-Parls, 1967, p. 1163-1170. 219

:1