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1 STUART HALL A PARTIR DO BRASIL 1 STUART HALL AS SEEN FROM BRAZIL Liv Sovik 2 Resumo: Este trabalho empreende duas tarefas: responder a algumas críticas ao trabalho de Stuart Hall, uma que o vê como exemplar de intelectual desarraigado das circunstâncias em que se possa “fazer uma diferença”, para usar suas palavras, e outra que o lê como t eórico ultrapassado e pouco sensível ao momento atual da cultura e da política. A segunda parte do trabalho se distancia dessas críticas e procura na obra de Hall, ao contrário, o que tenha sido motivo de sua boa recepção no Brasil. O texto é tentativo e provisório, ainda, e procura abrir uma discussão em que se possa avaliar ao mesmo tempo a rejeição e a integração. Palavras-Chave: Stuart Hall. Teoria da Comuicação. Estudos Culturais. Abstract: This article takes on two tasks: to respond to critiques of Stuart Hall’s work, one that sees him as an intellectual uprooted from the circumstances in which he could “make a difference”, to use his own words, and another that reads him as old-fashionied and insensitive to the current moment of culture and politics. The second part of the article takes a distance from these critiques and seeks to identify, in Hall’s work, what has led to his positive reception in Brazil. The text is tentative and provisional and aims to open a discussion in which it is possible to evaluate at the same time his rejection and integration. Keywords: Stuart Hall. Communication theory. Cultural Studies. 1. Preâmbulos e pretextos O fluxo de mensagens em listas de discussão, posts em blogs e no Facebook, depoimentos e matérias de imprensa sobre Stuart Hall, na semana de sua morte aos 82 anos, impressionou pelo seu volume. No dia em que morreu, 10 de fevereiro de 2014, a nota de óbito elaborada por seus dois ex-alunos, hoje professores de Comunicação, David Morley e Bill Schwarz, foi a matéria mais acessada no site do The Guardian. O tom de tristeza e admiração trouxe à memória coletiva não só a obra mas o homem que a produziu. As mensagens continuaram aparecendo na lista da International Association of Mass Communication Researchers (IAMCR) durante dias, escritas por quem parecia querer dizer, 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Epistemologia da Comunicação do XXIII Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal do Pará, Belém, de 27 a 30 de maio de 2014. 2 Professora Associada, Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutora em Ciências da Comunicação pela USP (1994). [email protected].

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STUART HALL A PARTIR DO BRASIL 1 STUART HALL AS SEEN FROM BRAZIL

Liv Sovik2

Resumo: Este trabalho empreende duas tarefas: responder a algumas críticas ao trabalho de

Stuart Hall, uma que o vê como exemplar de intelectual desarraigado das circunstâncias em que

se possa “fazer uma diferença”, para usar suas palavras, e outra que o lê como teórico

ultrapassado e pouco sensível ao momento atual da cultura e da política. A segunda parte do

trabalho se distancia dessas críticas e procura na obra de Hall, ao contrário, o que tenha sido

motivo de sua boa recepção no Brasil. O texto é tentativo e provisório, ainda, e procura abrir

uma discussão em que se possa avaliar ao mesmo tempo a rejeição e a integração.

Palavras-Chave: Stuart Hall. Teoria da Comuicação. Estudos Culturais.

Abstract: This article takes on two tasks: to respond to critiques of Stuart Hall’s

work, one that sees him as an intellectual uprooted from the circumstances in which

he could “make a difference”, to use his own words, and another that reads him as

old-fashionied and insensitive to the current moment of culture and politics. The

second part of the article takes a distance from these critiques and seeks to identify,

in Hall’s work, what has led to his positive reception in Brazil. The text is tentative

and provisional and aims to open a discussion in which it is possible to evaluate at

the same time his rejection and integration.

Keywords: Stuart Hall. Communication theory. Cultural Studies.

1. Preâmbulos e pretextos

O fluxo de mensagens em listas de discussão, posts em blogs e no Facebook,

depoimentos e matérias de imprensa sobre Stuart Hall, na semana de sua morte aos 82 anos,

impressionou pelo seu volume. No dia em que morreu, 10 de fevereiro de 2014, a nota de

óbito elaborada por seus dois ex-alunos, hoje professores de Comunicação, David Morley e

Bill Schwarz, foi a matéria mais acessada no site do The Guardian. O tom de tristeza e

admiração trouxe à memória coletiva não só a obra mas o homem que a produziu. As

mensagens continuaram aparecendo na lista da International Association of Mass

Communication Researchers (IAMCR) durante dias, escritas por quem parecia querer dizer,

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Epistemologia da Comunicação do XXIII Encontro Anual da

Compós, na Universidade Federal do Pará, Belém, de 27 a 30 de maio de 2014. 2 Professora Associada, Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutora em Ciências

da Comunicação pela USP (1994). [email protected].

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“Ele me marcou”. É preciso colocar as cartas na mesa: este texto é movido pelo mesmo

ímpeto que gerou o rio de homenagens: este texto, precário ainda, é a expressão da vontade

de marcar a passagem de Hall. Ao mesmo tempo, tenho consciência que o ambiente

científico em que será discutido, caso seja aceito, tradicionalmente coloca sob suspeita a

motivação afetiva, pois costuma separar afeto de raciocínio. Por outro lado, o texto também é

fruto de um desejo antigo. Há muito cogito responder a críticas dirigidas ao pensamento de

Hall, principalmente as de Vera Follain e Ciro Marcondes Filho.

2. Em defesa de Stuart Hall

Vera Follain de Figueiredo (2004) contextualiza a figura do intelectual na perda de

valência do discurso universalista no pós-guerra e depois do stalinismo. Para ela, esse

processo desacreditou o intelectual como portavoz dos valores universais, por seu

envolvimento com o poder autoritário. Os sucedâneos desse intelectual universalista são,

primeiro, o intelectual apresentado por Michel Foucault e Gilles Deleuze na famosa

entrevista, “Os intelectuais e o poder” (FOUCAULT, 1979). Este corre o risco, segundo

Vera Follain, não “do dogmatismo das visões totalizantes, mas o do descompromisso das

classes cultas com o conjunto da sociedade: é o de uma ação sempre auto-referenciada que

poderia resultar numa espécie de egoísmo de grupo, isto é, num certo distanciamento ‘diante

da dor dos outros’.” (FIGUEIREDO, 2004, p.136) A segunda é o intelectual diaspórico que

vai viver nos “grandes centros hegemônicos” (p.136). Ele não só trava a “luta contra o

universalismo etnocêntrico” mas alcança notoriedade por traduzir “em termos de distância

espacial aquela distância necessária à objetividade, que antes se via como apanágio da razão

crítica universalista. O desenraizamento reforça a imagem do intelectual como aquele que

mantém a devida distancia de tudo”. (p.137)

Deslocando a crítica para o nível mais material e institucional, é possível adotar a

crítica: o alto poder de negociação no mundo acadêmico anglófono de alguns acadêmicos que

se identificam como de Esquerda ou críticos pós-coloniais. O “passe” de intelectuais

diaspóricos do antigo império britânico frequentemente é comprado por universidades norte-

americanos. Assim, a diáspora ancestral – da dominação colonial e muitas vezes do tráfico

de escravos e semi-escravos – é sucedida pela ida ao antigo centro metropolitano (Londres,

Paris) e – em um passo final de desconexão do lugar “de origem” – para o rico mercado de

trabalho acadêmico nos Estados Unidos. A alegação de vantagem epistemológica dessa

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perspectiva foi feita – quem sabe reificada - por Homi Bhabha ao discutir o papel das vozes

dissonantes nas culturas nacionais antes consideradas unas: “the truest eye may now belong to

the migrant’s double vision”, afirmou (BHABHA, 1994, p.5). Para Vera, ao contrário: “O

preço da maior visibilidade de sua produção é do afastamento do foco, a palavra cosmopolita,

apartada de uma ação política local.” (FIGUEIREDO, 2004, p.137). Para ela, vale o nacional

e, portanto, o exilado antes do diaspórico. Para ela, Stuart Hall é o exemplo desse intelectual

afastado da realidade. Vale dizer que Hall não reivindica para si vantagens epistemológicas a

partir de seu estatuto in-between de não se sentir completamente em casa, seja em Jamaica ou

na Inglaterra. Mais modesto, afirma que as pessoas terem histórias de origem cada vez mais

complexas é um fenômeno cada vez mais comum e que, para sua surpresa, a identidade do

jovem negro era paradigmática da cultura urbana londrina nos anos 80 (HALL, 1993).

Outra crítica do texto é que o pensamento de Hall que passa pela metáfora antes de ser

baseado em fatos políticos mais concretos. Sua visão da Jamaica é marcada pela idéia de

resistência cultural através de uma África imaginária e metafórica, filtrada pela experiência

colonial do caribe, que Vera contrasta com a construção de um projeto nacional e popular

pós-independência, culminando na eleição do socialista democrático e não alinhado Michael

Manley, que foi primeiro ministro de 1972 a 1980 e de novo, com menos êxito, de 1989 a

1992. Vera contrasta Hall com Frantz Fanon, que “rejeita a idéia de que a reivindicação

nacional é, em função da globalização, uma reivindicação ultrapassada” (FIGUEIREDO,

2004, p.140). Para Fanon, intelectuais colonizados podem “romper as últimas amarras com

seu povo”, correndo o risco de

mutilações psico-afetivas extremamente graves. Individuos sem fronteiras, sem

limite, sem cor, apátridas, desenraizos, anjos. Também não causará espanto ouvir

certos colonizados declararem: ‘É como senegalês e francês... É como argelino e

francês... que eu falo’. Topando na necessidade, se quer ser autêntico de assumir

duas nacionalidades, o intelectual árabe e francês, o intelectual nigeriano e inglês

escolhe a negaçao de uma dessas determinações. Ordinariamente, não querendo ou

não podendo escolher, esses intelectuais reúnem todas as determinações históricas

que os condicionaram e colocam-se radicalmente numa perspectiva universal.

(FANON apud FIGUEIREDO, 2004, p.14-141)

Assim, o psiquiatra martiniquenho que se formou na França e se aliou aos revolucionários

argelinos articula a necessidade de um nacionalismo de referência, para pessoas como ele, um

nacionalismo que pode ter caráter ficcional, metafórico, mas é sentido como uma opção pelo

povo. A posição de Hall a favor do acúmulo de identidades (negro e britânico, é o exemplo

que ele mais cita e pelo qual é citado aqui) não é identificada como um discurso britânico

mas ainda globalizado, desterritorializado, que “parece ter envelhecido” (p.141) por causa do

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ressurgimento do nacionalismo depois do 11 de setembro de 2001. Quanto a Hall sobre a

condição subjetiva do diaspórico, eis o que disse em um seminário em sua homenagem, em

2003:

Até o momento em que deixei Jamaica em 1951, não entendia qual era a fonte desse

deslocamento. [...] Só muito depois descobri que esse era um sentimento de

deslocamento experimentada por toda uma geração de intelectuais caribenhos no

fim do Império. [...] Todos estavam tentando a mesmo tipo de fuga da sociedade

colonial [...] não para outro lugar, direto para o coração do próprio deslocamento,

para o que lhe havia, à distância, des-locado, tirado de casa [unhomed]. E quando

digo “deslocado, estou falando de coisas sérias. Estou falando de nunca sentir

ligado às expectativas que minha família tinham a meu respeito; o tipo de pessoa

que deveria me torna, o que deveria fazer com minha vida. E um delocamento do

povo – da massa dos jamaicanos. (HALL, 2007, p.276)

O texto de Vera Follain foi escrito para um seminário sobre o papel do intelectual,

realizado em novembro de 2003. Para os organizadores do seminário e do livro que o

registrou, esse intelectual é definido, historicamente (desde o caso Dreyfus, de 1898), por

fazer parte das “classes cultas” e ao mesmo tempo uma “autoridade e uma influência nos

debates públicos” (p.7-8). Segundo os organizadores do livro homônimo, a proposta era

revisitar o intelectual modernista latino-americano, para compreender melhor os

paradoxos de seus posicionamentos, divididos que estavam entre a politização

cosmopolita e internacionalizada da vida intelectual e um tipo de militância que

reforçava o seu lugar como consciência representante dos interesses de seu país.

(MARGATO e GOMES, 2004, p.10)

Poderíamos imaginar que Stuart Hall seria exemplo dessa dupla afiliação: professor até se

aposentar em 1997, uma das suas intervenções mais marcantes foi uma coluna na revista

Marxism Today, durante os anos Thatcher, e continuou escrevendo e falando sobre os rumos

da sociedade britânica e da cultura global até morrer.

Se Vera Follain acha falta de uma realidade mais concreta, na atuação de intelectual de

Hall, para Ciro Marcondes Filho, no texto base do seminário em comemoração dos 10 anos

da FiloCom em 2010, a verdade dos Estudos Culturais é uma aposta excessiva na consciência

dos oprimidos, como o é o pensamento de Paulo Freire:

Freire quer que os “sujeitos” interlocutores busquem uma “significação do

significado”, em última análise, uma decodificação ideológica, ao estilo das

propostas de contra-informação italiana dos anos 70 e das práticas atuais dos

estudos culturais, onde os oprimidos tomam consciência do mundo através da

análise das significações sociais de temas e palavras. (MARCONDES FILHO,

2010, p.23)

O problema, continua, é que “O ranço conspiratório e maniqueísta faz com que Paulo Freire

polarize de forma simplista os discursos pedagógicos e perca, com isso, a visão da relação

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com o outro como campo de acesso ao infinito”. Em outro texto, “Stuart Hall, cultural

studies e a nostalgia da dominação hegemônica”, Ciro faz uma análise mais teórica do

trabalho de Stuart Hall (MARCONDES FILHO, 2008).

Em um preâmbulo destinado a embasar sua crítica a Hall, Ciro centra suas atenções

no debate sobre a sociolinguística, a relação entre a linguagem e as relações sociais,

localizando Hall como alguém que vai em “busca dos estudos de linguagem mais

entrelaçados com questões sociais maiores” (p.26). A seção que se segue foca o “giro

lingüístico”, pelo qual, nos anos 70, já na direção do Centre for Contemporary Cultural

Studies, na University of Birmingham, Hall passou a usar Bakhtin/Volochínov para entender

as relações entre os discursos “dominantes” ou “em dominância” e seus públicos. Hall

explica esse uso como solução a um problema, ligado à discussão dos efeitos da mídia.

Empenhava-se em soltar a teoria da comunicação das amarras – quase atávicas – da bullet

theory e do reflexo de pensar esses efeitos em termos de causa e efeito. Marxismo e a

filosofia da linguagem, de Volochínov/Bakhtin, foi acionado, então, para extrair o debate, na

Grã Bretanha, do emaranhado empírico-positivista do pensamento dominante, da University

of Leicester (HALL, 2006, p.333). Ainda sob o impacto das transformações da cultura

política inglesa no pós-guerra, em que as divisões culturais de classe foram se abalando e a

cultura de massa se instalando como “de todos”, o ponto de partida do CCCS era uma

indagação sobre a atualidade das divisões de classe – explicável de diversas perspectivas,

desde a presença de Richard Hoggart, autor de importante obra sobre os hábitos de leitura da

classe operária, e da própria história cultural britânica, de grande estratificação social que

sofreu um enorme abalo com a Segunda Guerra Mundial.

Para Ciro Marxismo e a filosofia da linguagem fala de como as normas intervém nos

discursos. Hall “acreditava que esse livro permitia perceber claramente que o que a ideologia

‘faz’”, ou seja, “intervir na fluidez ideológica da linguagem, definir limites e a ordem

reguladora de uma ‘formação discursiva’, visando fixar, a seu bel-prazer, o fluxo da

linguagem” (MARCONDES FILHO, 2008, p.27). Vejamos, em contraste: Hall usou essa

mesma idéia de intervenção, limite ou clausura ao definir os Estudos Culturais como uma

formação discursiva, antes de uma “área de regulamentação disciplinar”. Afirma se

interessar neles porque

recusa-se a ser uma grande narrativa ou um meta-discurso de qualquer espécie. Sim,

consiste num projeto aberto ao desconhecido, ao que não se consegue ainda nomear.

Todavia, demonstra vontade em conectar-se; têm interesse em suas escolhas. [...]

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Não que uma dada política se encontre inscrita, a priori, nos estudos culturais. No

entanto, algo está em jogo nos estudos culturais de uma forma que, acho e espero,

não é exatamente o caso em muitas outras importantes práticas críticas e

intelectuais. Registra-se aqui uma tensão entre a recusa de se fechar o campo, de

policiá-lo e, ao mesmo tempo, uma determinação de se definirem posicionamentos a

favor de certos interesses e de defendê-los. [...] Se bem que não acredite no

fechamento do conhecimento, considero que a política não é possível sem o que

denominei de “clausura arbitrária”; sem o que Homi Bhabha chamou de agência

social como clausura arbitrária. Em outras palavras, não entendo uma prática que

tenta fazer uma diferença no mundo que não tenha alguns pontos de diferença ou

distinção a definir e defender. (HALL, 2006, p.189)

Temos aí uma leitura dos discursos dos Estudos Culturais em que o social se faz

presente a partir de posicionamentos políticos: a fixação não é ao bel-prazer dos que os

articulam, mas resultado de um posiconamento político que é conjuntural e provisório. A

clausura é uma solução temporária a uma tensão que, Hall afirma citando Edward Said,

provém do Estudos Culturais serem estudos de textos (Hall usa “texto” como metáfora da

cultura) “nas suas afiliações com ‘instituições, gabinetes, agências, classes, academias,

corporações, grupos, partidos ideologicamente definidos, profissões, nações, raças e

gêneros’” (p.190). Hall traduziu Bakhtin/Volochínov para uma consciência não somente do

fluxo da linguagem com suas normas e constrangimentos, mas também para as relações

institucionais e as suas políticas.

Outro aspecto do que Hall afirma que me parece difícil traduzir para os costumes acadêmicos

do Brasil é o princípio metodológico de Hall: lê os autores que mais lhe interessam que não

os adote. A dialética de Marx, por exemplo, pela qual o capitalismo expande por relações de

conflito, contradição e superação, é descartado a favor de uma leitura que valoriza sua análise

da expansão do mercado mundial – isso, em função da percepção do caribenho Hall que o

capitalismo não tomou conta de sua região de origem por esse processo dialético mas chegou

com um projeto de dominação, sim. Quanto a Althusser, Hall o valoriza por tê-lo convencido

que

a idéia de inferir as contradições sociais nos distintos níveis da prática social

simplesmente em termos de um princípio governante de organização social e

econômica (nos termos clássicos de Marx, o ‘modo de produção’), ou de interpretar

os diferentes níveis de uma formação social como uma correspondência especular

entre práticas, em nada contribui nem tampouco constitui a forma pela qual Marx,

afinal, concebeu a totalidade social. Evidentemente, uma formação social não

apresenta uma estrutura complexa simplesmente porque nela tudo interage com

tudo – essa é a abordagem tradicional, sociológica e multi-fatorial. [...]

Outra contribuição geral de Althusser foi que ele me possibilitou viver na

diferença e com ela. Sua ruptura com a concepção monística do marxismo

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demandou a teorização da diferença – o reconhecimento de que há distintas

contradições sociais cujas origens são também diversas; que as contradições que

impulsionam os processos históricos nem sempre surgem no mesmo lugar, nem

causam os mesmos efeitos históricos. Devemos pensar sobre a articulação entre as

diversas contradições, sobre as distintas especificidades e durações pelas quais elas

operam, sobre as diferentes modalidades nas quais funcionam. Creio que Althusser

está correto ao apontar o hábito inflexivelmente monístico da prática de muitos dos

mais eminentes marxistas que se dispõem, a bem da complexidade, a jogar com a

diferença, contanto que haja a garantia de uma unidade mais adiante. (HALL,

2006, p.151-152)

Cotejemos o Althusser de Hall com o de Ciro:

O paradigma estruturalista, em moda nos anos 60 e 70 do século passado,

especialmente com Louis Althusser, diz que a experiência é efeito de estruturas

sociais que não podem ser reduzidas a materiais da experiência. A diferença básica

é que o estruturalismo, partido de um esquema antes hegeliano, trabalha com

totalidades, tudo remete a tudo (apesar das ‘correções’ de Althusser a esse todo) e,

no caso deles, a uma totalidade abstrata, inconsciente, acima da intervenção dos

sujeitos. (MARCONDES FILHO, 2008, p.28-29)

O desejo de entrar na luta sóciocultural do ativista Hall teria determinado, segundo Ciro, o

abandono do “austero Althusser para ficar com o light Gramsci” (p.29).

De fato, para Hall a vontade de teorizar passa pela preocupação em identificar

“estratégias culturais capazes de fazer diferença”. Acredita, mesmo, que esse estratégias

culturais podem ser “capazes de efetuar diferenças e de deslocar as disposições do poder”

(HALL, 2006, p.321) Para Ciro, esse tipo de preocupação distorce a apreensão teórica do

social e contém “ecos de uma educação política no estilo partidário e ‘condutor’ das massas,

que pode pôr em risco a própria capacitação para o pensamento autônomo, aquele [que] as

habilitaria a dispensar os líderes” (MARCONDES FILHO, 2008, p.30). Entende-se por que

Ciro faz essa leitura de Hall, mas é incompleta, ao meu ver: Hall está interessado na

totalidade marxista, via Althusser, como forma de conceber as ligações ou articulações que

conectam as diversas instâncias analíticas da sociedade – o econômico, o político, o

ideológico, o social - mas que raramente entram em crise em conjunto, ou seja, de forma

estrutural, daí não parecem com um “caminhão com seu reboque”, conforme a ironia de Ciro

(p.30). Não quer desconectar completamente essas estruturas da formação social, mas não

está alinhado com um marxismo “com garantias”, conforme vimos acima, nem acredita na

“unidade mais adiante”, o horizonte da emancipação generalizada ou setorial ou o mito da

redenção na sua forma étnico-racial ou outra.

A terceira seção do texto de Ciro leva mais adiante uma leitura que, na medida em que

lê Hall como um teórico que produz conceitos, o lê a contrapelo. Assim, no início da seção,

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faz uma leitura do texto de Hall em que elogia o livro de Peter Stallybrass e Allon White, por

ter identificado no carnaval bakhtiniano, uma “metáfora de transformação social”, ou seja

uma forma de pensá-la que teria tomado o espaço da de revolução e de ocupação coletiva de

espaços do poder, com uma visão que permite ver (citando os autores de The Politics and

Poetics of Transgression (1984), “’a natureza contraditória das hierarquias simbólicas’”

(HALL, 2006, p.212). Em seguida, Ciro lê John Fiske, na coletânea de textos centrada em

Hall (MORLEY e CHEN, 1996), sobre “o embaralhamento do individual e do social”, que

estaria presente nesse conceito de carnaval. Ciro vê em Fiske “uma renovação e um

arejamento maior no pensamento da esquerda nos Estudos Culturais”. Implicitamente,

estamos de volta à crítica ao “maniqueismo” dos Estudos Culturais, presente no texto-base do

seminário da FiloCom, pois o alvo, em ambos os casos, é a “teoria totalizante”

(MARCONDES FILHO, 2008, p.31). Uma outra avaliação marcaria uma diferença entre

uma teoria totalizante que entende que “tudo interage com tudo” (ver citação de Hall mais

acima) ou a teoria dos blocos antagônicos que implica em uma “conspiração das elites” e

“autenticidade proletária a ser resgatada” (MARCONDES FILHO, 2008, p.31) e os

“conceitos, ideias e pensamentos” que Hall quer usar para “invadir [break into] a série de

aparências congeladas e opacas” (HALL, 2007, p.277). A distinção passa por uma visão da

própria teoria como algo provisória: Hall entende que seu envolvimento com a sociedade

passa pelas condições e determinações institucionais de uma dada conjuntura, um dado lugar.

Conceitos, ele disse uma vez, são o que lhe permite dormir à noite: são soluções provisórias a

problemas políticos, que ele lança porque vê a vida pelo prisma de uma vida intelectual. É

nesse sentido que ele escreveu, em artigo com esse título, que “o problema da ideologia” é

um “problema geral – um problema teórico, por ser também um problema político e

estratégico” (HALL, 2006, p.248-249).

Assim chegamos ao problema maior que Ciro identifica: o uso anacrônico por Hall do

termo “ideologia”, que implicaria na conspiração das elites e a autenticidade proletária a ser

resgatada. Em 1985, em um momento em que sua combatividade conjuntural talvez tenha

superado seu cuidado com a precisão, Hall fez as críticas citadas por Ciro a Jean Baudrillard

e Jean-François Lyotard, acusando-os de serem acríticos diante das “tendências

profundamente contraditórias na cultura moderna para as quais a teoria pósmoderna

corretamente nos chama atenção” (HALL, 1996, p.131) e de serem eurocêntricos por

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conceberem a modernidade como única e não múltipla (p.133). Os comentários de Hall

foram apressados, pois Baudrillard teve uma repercussão no Brasil que resultava de sua

afinidade com as dinâmicas culturais no país. Vale dizer que Ciro não menciona que Hall

contextualiza os dois franceses no debate com Habermas sobre a Ilustração e os compara com

Marshall McLuhan, que a partir de certo momento abandonou a crítica a favor da

“celebração” dos meios elétricos. Mas formula um problema recorrente: o problema da

ideologia em Hall é que o termo tem como sentido predominante a ideia de uma instância na

sociedade que a recobre e controla as massas. Como antídoto a isso, vejamos:

A predominância das ideias dominantes não é garantida pelo fato de estas estarem

atreladas às classes dominantes. O processo de luta ideológica procura antes

alcançar a efetiva ligação das ideias dominantes ao bloco histórico que detém o

poder hegemônico em um dado período. Esse processo é o objeto do exercício, não

a encenação de um roteiro já escrito ou concluído. (HALL, 2006, p.272)

Aqui temos uma visão de indeterminação que geralmente não combina com o uso do termo

“ideologia”: para Hall não dá para prever o resultado dos processos, não só porque não têm

fim mas porque o jogo do poder está em aberto. O ideológico, em uma definição mais

recente de Hall (o texto citado acima é de 1983), passa pelos conceitos de Bakhtin:

a língua – ou seja, a cultura – torna-se ‘ideológica’ – isto é, aproveitada por

[harnessed to] posições particulares de poder – quando o poder intervém na língua,

numa tentativa de fechar o sentido, fixar e limitar o jogo de sentido, interromper a

infinita semiose de sua heteroglossia e retirar a língua das “pressões da luta social.”

(HALL, 2000, p.10)

É difícil ver, daqui, uma aposta na autenticidade popular ou a conspiração das elites.

Mas a autenticidade popular talvez não precise de seu oposto para vingar. É essa

visão, no fundo, que Ciro cobra em Hall, quando diz:

Hall gosta de citar a minoria rastafári. O grupo apanha um texto bíblico, inverte-lhe

o significado, representando, apenas esta operação, um processo que mexe com a

identidade do próprio grupo: eles reconstroem-se a si mesmos como negros do novo

mundo, tornando-se “o que eles são”. (MARCONDES FILHO, 2008, p.33)

“O que eles são” salta aos olhos como ingenuidade ou simplismo. Mas a contextualização

dessa frase (na edição da revista Communicare, não é possível ver de onde foi tirada) nas

observações de Hall cria um certo alívio. Escreveu em “Pensando a diáspora” (HALL, 2006)

que a “África”, uma África imaginária, como vimos acima, teve um impacto enorme sobre

formas de subjetividade negras no Caribe (e na Bahia, podemos acrescentar) entre os anos 70

e 80. Será que um olhar simpático sobre esse fenômeno não revelaria releituras por negros

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baianos parecidas com as dos rastafári jamaicanos? E uma expansão de seu trânsito no

espaço urbano?

Contestar as críticas ao pensamento de Stuart Hall, ficar na defensiva, é uma maneira

insatisfatória de lidar com o que podemos ganhar com ele. Em outro espaço, refleti com

maior profundidade sobre a relação de Hall com a atividade intelectual na forma de análises

de conjunturas, em que procurava identificar as forças em jogo, seja na “política da teoria”,

na cultura ou na política tout court. Aqui, no intuíto de reabrir a discussão de seu trabalho,

coloco algumas visões possíveis da contribuição de seu trabalho ao debate brasileiro,

supondo, como ponto de partida, que com a discussão acima podemos suspender o jogo da

verdade acadêmica fruto da exegese, e passar a englobar as impressões o que se entendeu da

pessoa e do pensador.

3. O que se ganha com Stuart Hall

Retomo o início, então, lembrando a nota de óbito de David Morley e Bill Schwarz,

seus amigos e ex-alunos. A matéria termina assim:

Quando apareceu no programa de rádio Desert Island Discs, Hall

falou de sua paixão duradoura por Miles Davis. Explicou que a

música representou para ele o som do que não pode ser, ‘the sound of

what cannot be’. O que era sua vida intelectual, senão o esforço,

contra todos os obstáculos, para fazer ‘o que não pode ser’ viver na

imaginação? (MORLEY e SCHWARZ, 2014)

Em “Que ‘negro’ é esse na cultura negra?”, Hall escreveu que “o povo da diáspora negra tem,

em oposição a tudo isso [a cultura logocêntrica, da escrita], encontrado a forma profunda, a

estrutura profunda de sua vida cultural na música”. Hall era duplamente diaspórico,

descendente de povos deslocados pela história da colonização e da escravidão e migrante da

Jamaica à Inglaterra. Ele se pronunciou em textos, imagino, como se fosse Miles Davis:

tocava e colaborava com seus parceiros, livremente solando em sintonia e contradição com

seu contexto, em um som complexo, difícil de ouvir na primeira vez mas de uma liberdade

admirável a cada nova audição. Hall elaborava suas ideias através da construção de tensões –

na apresentação da coletânea de Hall, Da diáspora, descrevi esse processo.

Em “Que ‘negro’...?” disse, “a pergunta sobre identidade negra a que se refere o

título do artigo reverte para a consideração crítica da etnicidade dominante; a

identidade negra é atravessada por outras identidades, inclusive de gênero e

orientação sexual. A política identitária essencialista aponta para algo pelo qual

vale lutar, mas não resulta simplesmente em libertação da dominação. Nesse

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contexto complexo, as políticas culturais e a luta que incorporam se trava em muitas

frentes e em todos os níveis da cultura, inclusive a vida cotidiana, a cultura popular

e a cultura de massa. Hall ainda acrescenta um complicador, no final do texto: o

meio mercantilizado e estreotipado da cultura de massa se constitui de

representações e figuras de um grande drama mítico com o qual as audiências se

identificam, é mais uma experiência de fantasia do que de auto-reconhecimento” (in

HALL, 2006, p.12).

Difícil seria reduzir o caminho desse pensamento à dialética ou ao lógico-dedutivo. Ao

invés, podemos pensar que a maneira de Hall elaborar ideias tem uma estrutura musical, em

que tema e variação podem ser interrompidos por improvisações, onde o solo se destaca de

um coro de vozes trazidas de uma bibliografia entendida como fonte de forças a serem

adaptadas e utilizadas para entender os objetos – ao contrário do hábito acadêmico de criticar

negativamente os antecessores sob pena de parecer submisso a eles ou inconsciente de suas

falhas. Talvez seja por sua maneira de sentir e elaborar ideias a partir de uma estrutura

profunda musical, referência cultural que também diz respeito à vida cultural brasileira, que

Stuart Hall teve tanta ressonância aqui, pois somos muitos a procurar novas relações com o

problema da evidência e da verdade acadêmicas e teóricas.

Sua chegada em Salvador em julho de 2000, a convite da diretoria da Associação

Brasileira de Literatura Comparada, teve por trás uma preocupação em destacá-lo como

intelectual negro de impacto internacional na cidade negra, de cultura negra, marcada pela

opressão racista, em um momento em que havia certa romantização da Bahia como berço da

cultura negra brasileira. Hall não deixou por menos: fez uma conferência em que concebeu a

colonização não como um efeito da hegemonia europeia, mas acontecimento histórico

mundial, envolvendo “expansão, exploração, conquista, colonização, escravidão exploração

econômica e hegemonia imperial”, através do qual a Europa “se refez” a partir de 1492

(HALL, 2000, p.8). Essa concepção tem os efeitos de deslocar o foco histórico da Europa

moderna para as periferias globais; deixar de celebrar a diversidade cultural da periferia como

fruto profícuo da globalização e entendê-la como produto da recusa e persistência de povos

distantes da metrópole; e identificar a modernidade ocidental não com o “Reino Universal da

Razão”, mas com a dimensão vinculante de seu poder e capacidade, em consequência, de

gerar diferenças. Em segundo lugar, identificou no racismo (e nos discursos sobre gênero e

sexualidade) a exceção à regra da compreensão da diversidade como algo visivelmente

criada, inventada: esses discursos têm mais êxito em naturalizar as diferenças.

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A coletânea de textos de autoria de Hall, Da diáspora: identidades e mediações

culturais, foi um desdobramento do congresso. Desde que saiu em 2003, se tornou um

bestseller acadêmico. Retomo a afirmação anterior como refrão: talvez seja porque as

temáticas que Hall trabalhava a partir de meados dos anos 80 dizem respeito à vida cultural

brasileira que Stuart Hall teve tanta ressonância aqui, pois a partir dessa época ele se

preocupou explicitamente com questões identitárias negras. Para ele, em “Pensando a

diáspora”, afirmar o valor de uma “África” diaspórica, a identidade negra diaspórica,

resumida na palavra “África”, foi importante como fator de “descolonização” das “mentes de

Brixton e Kingston”, tanto para jovens negros ingleses como jamaicanos. Essa “África”

tornou pronunciável o “segredo culposo da raça [...] o trauma indizível do Caribe”, e marcou

todos os movimentos sociais e ações criativas do século 20 no Caribe. Ao mesmo tempo,

Hall era um crítico implacável do fundo supostamente biológico das diferenças de – citou

W.E.B. DuBois– “cor, cabelo e osso”. Para ele, o corpo é lido como se fosse um texto, e sua

“racialidade” pode significar coisas diferentes dependendo das circunstâncias. Essas

perspectivas significaram que, em diversas áreas disciplinares, o debate em torno das relações

raciais mudou: em lugar da volta à singularidade brasileira, cuja tradição remonta aos estudos

da UNESCO nos anos 50, elas começaram a ser concebidas como constitutivas de um tipo de

sociedade – marcada pela diáspora negra.

Um igualitarismo utópico marcava a percepção de seus próprios outros: pessoas de

outras identidades raciais, mulheres, homossexuais, estudantes, jovens colaboradores nas

instituições que dirigia, organizadoras de livros. Nunca deixou de lembrar as analogias entre

a ideia que a identidade racial se baseia em diferenças genéticas e a de que os papeis sociais

subalternos das mulheres são determinadas biologicamente. Vivia o feminismo e as

identidades raciais em família e estava aberto a questões que não lhe afetavam diretamente.

Uma vez, como eu poderia ter a resposta, me perguntaram se Hall era gay: no Brasil em que a

crítica à discriminação tantas vezes se faz somente por suas vítimas, era impossível imaginar

um apreciador sem rodeios da perspectiva queer, como ele demonstrou ser em diversos

textos, a começar por “The Spectacle of the ‘Other’”, que não fosse gay. Os motivos da

valorização da estética gay estão explicados aqui: http://vimeo.com/51527926 e dizem

respeito à permanente consciência do preconceito racial.

Conversar com ele era entrar em um mundo em que fazer reflexões que tivessem

alguma repercussão política era o objeto, o problema, o jogo a ser jogado. Para Hall, que não

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queria discípulos, a vida intelectual se vivia pelo combate mano a mano com os textos e

figuras, não pelo pertencimento aos coortes de um teórico ou outro. Acolhia todas as pessoas

disposta a entrar nesse jogo, de pensar, tentar entender, projetar algo. O bom humor e o afeto

- e também o tom combativo de um discurso da tradição oral, em que o interlocutor está

sempre presente, mesmo que implicitamente -, transparecem nos seus textos e talvez eles

também digam respeito à vida cultural brasileira e sejam mais um motivo pelo qual Stuart

Hall teve tanta ressonância no Brasil.

Em meio a tantas homenagens a Hall, é possível que a melhor seja não entrar em

consensos apressados a respeito de seu pensamento – por exemplo, entendendo de forma

banal, como convivência pacífica, o multiculturalismo do qual, se diz, ele é pai. Quando

alguém lhe perguntou, em um simpósio sobre cultura, globalização e o sistema-mundo

realizado no estado de Nova York em 1989, se existia algo que pudesse ser chamado de

“humanidade”, ele respondeu que não. Quando se fala em humanidade ou no ser humano

que “todo mundo é, no fundo”, o que está acontecendo na prática, disse, é um apagamento

das diferenças em nome de uma inclusão hierárquica, que interessa a alguns. A esperança,

disse, é que nesse momento, de naturalização da hierarquia social feita em nome da

humanidade universal, algo escape. A esperança de Hall que o Outro escape de sua redução

ao Mesmo e ao nome que o sistema de poder lhe dá, assim como a tradução dessa esperança

em um respeito pelas pessoas, diferentes entre si: tudo isso fez parte de seu carisma, de sua

capacidade de gerar sentimentos de amizade e, certamente, de sua contribuição com imagens

do que (não) pode ser. Arauto da possibilidade em aberto - sempre insistia que os resultados

de processos históricos não eram determinados de antemão -, seu pensamento era tão

complexo quanto o som de Miles Davis. Esse pensamento, motivado pela vontade de um

futuro menos cruel, justo, diz respeito à vida social e cultural brasileira: talvez por isso

também Stuart Hall teve tanta ressonância aqui.

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