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Universidade de Brasília UnB Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos PPGDH CEAM Dissertação de Mestrado JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: PERDÃO OU DESCULPA EM NOME DO ESTADO BRASILEIRO? SUELI APARECIDA BELLATO Brasília 2014

SUELI APARECIDA BELLATO - repositorio.unb.brrepositorio.unb.br/bitstream/10482/17858/1/2014_SueliAparecida... · vítimas, a sociedade em favor da verdade, da justiça e da paz. A

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  • Universidade de Braslia UnB

    Programa de Ps-Graduao em Direitos Humanos PPGDH

    CEAM

    Dissertao de Mestrado

    JUSTIA DE TRANSIO: PERDO OU DESCULPA

    EM NOME DO ESTADO BRASILEIRO?

    SUELI APARECIDA BELLATO

    Braslia

    2014

  • SUELI APARECIDA BELLATO

    JUSTIA DE TRANSIO: PERDO OU DESCULPA

    EM NOME DO ESTADO BRASILEIRO?

    Dissertao apresentada como requisito para

    obteno do grau de Mestre no Programa de

    Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania,

    do Centro de Estudos Avanados

    Multidisciplinares CEAM, da Universidade

    de Braslia

    Orientador: Doutor Jos Geraldo de Sousa

    Junior

    Braslia

    2014

  • B436j Bellato, Sueli Aparecida Justia de Transio: Perdo ou Desculpa em nome do Estado brasileiro? -.Braslia: UnB, Centro de Estudos Avanados Multidisciplinares - CEAM, 2014. .... 155p. Orientador: Jos Geraldo de Souza Jnior. Dissertao (Mestrado) Universidade de Braslia Centro de Estudos Avanados Multidisciplinares CEAM, Programa de Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania, Braslia, 2014.

    1. Justia de Transio. 2. Perdo. 3. Direitos Humanos I. Titulo. CDD: 341.1219

  • UNIVERSIDADE DE BRASLIA

    CEAM

    PROGRAMA DE PS GRADUAO

    EM DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA/PPGDH

    DEFESA DA DISSERTAO

    MESTRANDA SUELI APARECIDA BELLATO

    JUSTIA DE TRANSIO: PERDO OU DESCULPA

    EM NOME DO ESTADO BRASILEIRO?

    BANCA EXAMINADORA:

    Prof. Jos Geraldo de Sousa Junior (FD/PPGDH-Orientador)

    Profa.Ela Wiecko Volkmer de Castilho (FD/UnB-Membro Externo)

    Prof. Menelick de Carvalho Netto (FD/PPGDH-Membro Interno)

    Prof. Alexandre Bernardino Costa (FD/PPGDH-Membro Interno-Suplente)

    Data:11/11/2014(tera-feira)

    Horrio:15 h

    Local:Faculdade de Direito Sala A1-04

  • DEDICATRIA

    Esta Dissertao quer ser uma homenagem aos

    que no se cansam de lutar por um

    mundo de amor, paz e de justia.

  • AGRADECIMENTOS

    minha famlia, aos meus pais e avs, de maneira especial, in memria, com quem

    aprendi o valor da partilha e da solidariedade.

    Aos Amigos e Professores do Programa de Ps-Graduao de Direitos Humanos da

    Universidade de Braslia que esto contribuindo na divulgao do conhecimento e da defesa

    dos direitos humanos.

    Ao meu orientador Professor Jos Geraldo de Sousa Junior que comigo vibrou diante da

    escolha do tema e que muito contribuiu para realizao deste trabalho.

    s minhas irms da Congregao de Nossa Senhora Cnegas de Santo Agostinho - com

    quem aprendi que o direito deve ser diferente para quem no igual.

    Aos colegas da Comisso de Anistia que dedicam seu tempo e compromisso para

    reconhecer os direitos dos protagonistas da luta por liberdade e democracia.

    A cada um e a cada uma que me apoiou na realizao deste projeto e aos que busquei nas

    suas histrias motivos para realizao deste trabalho: Alexandre Vannucchi Leme, Aurlio

    Peres, Darci Myako, Jos Fragoso, Jeronimo Alves, Mario Covas e Rose Nogueira.

    E, no comeo e no fim, a gratido a Deus que me permite experimentar que sozinha nada

    sou, nada fao e somente nele tudo posso, tudo sou.

  • RESUMO

    A Justia de Transio se vale dos instrumentos de reparao para encerrar o perodo de conflito

    e efetivar procedimentos que alcancem a paz duradoura. Compem o rol de procedimentos as

    reparaes morais e econmicas, o pedido de perdo, as medidas indenizatrias, o resgate da

    memria, a afirmao da verdade e a responsabilizao dos agentes causadores dos prejuzos

    decorrentes das perseguies polticas. As medidas reparatrias visam contribuir para

    superao dos sofrimentos causados aos vencidos. O grande triunfo da Justia de Transio

    pretender a construo de uma nova sociedade que tendo passado nas guas da reconciliao e

    da justia est apta a trilhar caminhos de no repetio dos erros praticados por regimes que

    produziram algozes e vtimas. A utopia da nova sociedade requer antes de tudo a nossa prpria

    transformao e o reconhecimento do outro como ns queremos ser reconhecidos. O presente

    trabalho pretende demonstrar que o Perdo a ponte do incio de uma travessia e no um

    ponto final. O Brasil realiza a reparao moral com o pedido de desculpas e uma das maiores

    polticas de reparao econmica. A prtica da auto anistia, a falta de responsabilizao e a

    negao de toda verdade devem ser superadas com vista a reconciliao e a paz duradoura.

    Afirmar a necessidade de responsabilizao no querer vingar-se, no revanche, Justia.

    simplesmente ler a pgina antes de vir-la. Isoladamente nenhum instrumento da Justia de

    Transio garante a Reconciliao e a No Repetio. Desculpas no Perdo!

    Palavras-chave: Perdo, Desculpas, Memria, Esquecimento, Anistia, Ditadura, Justia de

    Transio.

  • ABSTRACT

    Transitional Justice uses reparation tools to end periods of conflict and to promote endurance

    peace. Reparations can be moral and economic apologies compensatory pursuance of memory

    promotion of truth and individual accountability regarding those who cause damage while

    promoting political persecution. Reparatory measures aims to contribute with victims healing

    process. Transitional Justice greatest achievement is to build up a new society that crosses the

    river of reconciliation and justice been able to avoid repetition of wrongdoing that produces

    victims and perpetrators. New societys utopia demands above all our own transformation and

    the others recognition. This works aims to demonstrate that forgiveness is the initial bridge in

    the road to reconciliation: not the ending point rather where the journey starts. It isnt revenge

    nor rematch, but justice. Isolated none of the Transitional Justice tools assure reconciliation and

    none repetition. Apologies are not forgiveness. Forgiveness is a gift an exclusive prerogative

    of victims. The Amnesty Commission in the name of the State apologizes for the mistakes that

    were made in result of exclusive political persecution

    Keywords: Forgiveness. Apologies. Memory. Forgetness. Amnesty. Dictatorship. Transitional

    Justice.

  • SUMRIO

    INTRODUO..................................................................................................................9

    CAPITULO I 1 A JUSTIA DE TRANSIO E OS INSTRUMENTOS PARA

    RECONCILIAO.........................................................................................................17

    1.1 Genealogia e instrumentos da Justia de Transio...........................28

    1.2 Justia de Transio no Brasil ..................................................................................45

    CAPITULO II 2 PERDO OU DESCULPAS...........................................................54

    2.1 Experincias de Pedido de Perdo............................68

    CAPITULO III - 3 A EXPERIENCIA BRASILEIRA: A COMISSO DE

    ANISTIA...........................................................................................................................85

    CONSIDERAES FINAIS..............................95

    Tabela 1 ..........................................................................................................................105

    Tabela 2 .........................................................................................................................106

    REFERNCIAS BIBLIOGRAFICAS.................................................107

    LISTA DE ANEXOS......................................................................................................110

    ANEXO A........................................................................................................................111

    ANEXO B........................................................................................................................119

    ANEXO C........................................................123

    ANEXO D................................129

    ANEXO E........................................................................................................................148

    ANEXO F........................................................................................................................153

  • 9

    INTRODUO

    9. Ento Jav perguntou a Caim: "Onde est o seu irmo Abel?" Caim

    respondeu: "No sei. Por acaso eu sou o guarda do meu irmo?"

    10. Jav disse: "O que foi que voc fez? Ouo o sangue do seu irmo,

    clamando da terra para mim.

    11. Por isso voc amaldioado por essa terra que abriu a boca para receber

    de suas mos o sangue do seu irmo.

    12. Ainda que voc cultive o solo, ele no lhe dar mais o seu produto. Voc

    andar errante e perdido pelo mundo".

    13. Caim disse a Jav: "Minha culpa grave e me atormenta.

    14. Se hoje me expulsas do solo frtil, terei de esconder-me de ti, andando

    errante e perdido pelo mundo; o primeiro que me encontrar, me matar".

    15. Jav lhe respondeu: "Quem matar Caim ser vingado sete vezes". E Jav

    colocou um sinal sobre Caim, a fim de que ele no fosse morto por quem o

    encontrasse.

    16. Caim saiu da presena de Jav, e habitou na terra de Nod, a leste de den.

    Gnesis, Captulo 4,9-161

    Narra o texto bblico que aps matar e desaparecer com o corpo de seu irmo Caim foi

    chamado por Deus para prestar contas de seu ato. Condenado por Deus que o declarou maldito,

    Caim foi expulso da terra e recebeu uma marca. Caim temeu por sua vida pois quando

    reconhecido em razo da marca poderia sofrer alguma represlia. Mas Deus respondeu-lhe que

    aquele que matasse Caim seria punido sete vezes, o que representa na tradio bblica, um

    nmero infinito de punies. Se Caim fosse punido com a morte poderia representar que seu

    crime estivesse pago. E como diz Reys Mate2 o crime no admite pagamento, nem expiao e

    por isso Caim precisava viver.

    Para o citado autor a culpa se equipara responsabilizao e esta impagvel no se

    podendo saldar nunca. Caso se admitisse uma quantidade de castigos pela morte de Abel poder-

    se-ia crer que a falta de Abel estaria saldada. De outra parte algum poderia ter a tentao de

    querer vingar Abel matando Caim e desta forma a morte tambm quitaria a ao fraticida, j

    que teria pagado seu crime e lavado sua alma, isentando-o de toda sua responsabilidade.3

    1 Bblia Sagrada Edio Pastoral Paulus - 8. impresso agosto de 1997 Sociedade Bblica Catlica

    Intenacional e Paulus 1991 - So Paulo 2 MATE, Reys. Justicia de las Victimas Terrorismo, memoria, reconciliacion Fundacion Alternativas

    Anthropos, Espaa, 2008:62 3 VALDECANTOS, Antonio. Emociones responsables, Universidad Carlos III de Madrid - ISEGORA/25

    2001: 63-90

  • 10

    Caim poderia, na perspectiva da renncia do mal, ter adotado um dos dois caminhos: o

    que nasce do arrependimento ou o que nasce do remorso. O arrependimento uma forma de

    negociao: o perpetrador declara que agiu mal e em contrapartida a vtima lhe devolve o estado

    de inocncia. No segundo caminho, do remorso, o reconhecimento da irreparabilidade do crime

    inexpivel. S cabe assumir a culpa por toda a vida.

    E assim introduzo esta Dissertao com a esperana que ainda se manifeste o

    arrependimento de quem ceifou vidas e projetos e a promessa de no repetio dos erros. E que

    as vtimas, sejam reconhecidas para permanecerem sempre vivas nas prticas dos que seguem

    lutando por um pas livre da mentira, da violncia e de toda forma de dominao.

    Que juntos possamos favorecer o clima de confiana necessrio para os que se dispuserem

    a falar a verdade, denunciar a cadeia da tirania e pedir perdo pelos erros cometidos.

    No rescaldo dos regimes que atuaram contra os direitos humanos a Justia de Transio

    revela a violncia e os meios empreendidos durante o estado de exceo, desvela a verdade

    oculta e esquecida, visibiliza as vtimas, nicas autoridades que podem aceitar o pedido de

    perdo dos algozes e oferece as condies polticas para a reconciliao. Para tanto me apoiarei

    na linha de pensamento dos que afirmam que o perdo no sinnimo de amnesia,

    esquecimento, ou anistia. O perdo um dom, um acesso gratuito para reconciliao. ato

    exclusivo e gratuito das vtimas e um dever moral dos perpetradores e do Estado para com as

    vtimas, a sociedade em favor da verdade, da justia e da paz.

    A marca de Caim a culpa que no o abandonar por todo o sempre. o remorso de

    Judas Escariotes que entregou Jesus s autoridades que o tinham como inimigo. Contudo,

    tambm segundo os relatos bblicos no teria sido apenas Judas que traiu Jesus. Tambm o seu

    amado amigo, Pedro, quando reconhecido por testemunhas negou trs vezes que pertencesse ao

    grupo do prisioneiro. Condenado pelo poder poltico e religioso Jesus recebeu como Sentena

    a pena de morte na cruz, pena aplicada aos condenados nos crimes considerados gravssimos.

    Alcanados pelo remorso Pedro e Judas tiveram atitudes distintas. Enquanto Pedro

    arrependido engajou-se numa nova militncia Judas agiu com desesperana contra a prpria

    vida. O arrependimento o reconhecimento que o erro poderia ter sido evitado. O perdo o

    dom absolutamente gratuito das vtimas que perdoam at os erros inimaginveis.

  • 11

    Na Justia de Transio a confisso do erro, a reparao para as vtimas, e o compromisso

    de no repetio so promessas que invocam o propsito de no repetio da violncia com fins

    polticos e contra os direitos humanos. Enquanto o perdo no pressupe compensao ou

    recompensa, no pedido de desculpas o ofensor redime as suas culpas com a vtima e com a

    sociedade mediante a quitao dos compromissos de reparao e no repetio. O acerto dos

    erros e a promessa de no repetio esto visceralmente ligados ao resgate da memria e o

    conhecimento da verdade. Para o passado, a lembrana da vtima, para o presente, a recordao

    dos protagonistas da Histria e para o futuro, a Memria.

    O objetivo deste trabalho, desenvolvido em trs captulos , indicar a importncia do

    sinal do perdo. Emprego o termo perdo no sentido agostiniano que compreende um sinal

    como tudo aquilo que, alm de atuar por si em nossos sentidos, nos leva tambm ao

    conhecimento de outra coisa concomitante. 4 O que apresento a perspectiva do perdo

    horizonte que o Estado afirma para a sociedade o protagonismo das vtimas, revela os crimes

    perpetrados contra os direitos humanos e promete a no repetio e erradicao da violncia

    com o fim de lograr a reconciliao. Interpreto ao longo do trabalho que a reconciliao das

    naes, povos e grupos que estiveram envolvidos em graves violaes de direitos humanos e

    rupturas de relaes a condio para o estabelecimento de uma nova sociedade que efetiva a

    paz e a democracia com justia. A este propsito a Justia de Transio sacramentaliza com o

    pedido de desculpas e perdo, conceitos muitas vezes empregados um pelo outro. Apreendi das

    leituras, especialmente em Paul Ricoeur, que o perdo trata de forma equnime a vtima e o

    vitimrio, nada pede, enquanto que a desculpa pede e espera.

    O perdo meta e o horizonte da justia. Discorro tambm sobre o papel preponderante

    do perdo no refazimento de relaes pessoais e institucionais que foram rompidas pelo

    autoritarismo, em especial no caso do Brasil pelas violaes de direitos cometidas durante a

    ditadura militar. Por fim, nas Consideraes Finais reforo a busca de que amanh o perdo e

    a reconciliao concorrem para edificao de uma sociedade mais justa, fraterna e solidria.

    No Captulo 1 discorro sobre a justia retributiva e justia restaurativa, essa que visa a

    erradicao das violncias, a superao do esquecimento como garantia de no repetio e

    4 A Doutrina Crist, 2,1 http://www.veritatis.com.br/article/634 visitado em 16/12/2014

    http://www.veritatis.com.br/article/634

  • 12

    promessa de estabilidade democrtica. A justia restaurativa afirma o protagonismo da vtima

    e o reconhecimento dos erros praticados pelo perpetrador. Desse modo, evolui do estado de

    impunidade para a punio sem efeito prtico e volta-se para reparaes alternativas. O perdo

    aparece em ambas as formas de justias. Porm so diferentes. Enquanto na justia retributiva

    o perdo est inserido num contexto de punio, na justia restaurativa o perdo est vinculado

    ao protagonismo da vtima e o reconhecimento dos erros praticados pelo perpetrador. Mais que

    uma admoestao pessoal a justia restaurativa visa a responsabilizao social e institucional.

    No Captulo 2 invoco as reparaes na forma de desculpas e do perdo. A desculpa como

    ao indenizatria e o perdo como efetiva travessia do estado remanescente das rupturas, dos

    traumas, do apagamento de memria para resgate da memria e reconciliao. Inicialmente

    tratei o perdo como reparao moral praticada no mbito da Comisso de Anistia. No entanto,

    no decorrer dos estudos e pesquisas verifiquei que o perdo um dom sem contrapartidas ou

    condicionamentos, diferentes da desculpa cujo mrito maior o de poder levar ao perdo, sem,

    contudo, possuir a generosidade do perdo. Comisso de Anistia cabe realizar o pedido de

    desculpas em razo da incompletude dos requisitos necessrios para o pedido e a concesso do

    perdo. A autoridade legtima para conceder o Perdo a vtima e pressupe o reconhecimento

    do erro por quem deu causa. O perdo o ensaio de uma nova sociedade, reconciliada. Uma

    utopia a ser buscada incansavelmente na construo de relaes igualitrias, reconstituindo

    tecidos rompidos e almejando alcanar a cidade que efetivamente floresce fraternidade

    solidariedade e cidadania. A reconciliao o horizonte do perdo e esse o horizonte da

    memria. Est alm da reparao, depende do reconhecimento e do resgate da visibilidade das

    vtimas.

    O perdo recompe o estado anterior ao das rupturas decorrentes das violaes e da

    quebra dos pactos sociais. Preenchidas as condies para a concesso e o acolhimento do pedido

    de perdo caber exclusivamente s vtimas a ddiva de conced-lo.

    Uma nfase se faz imprescindvel: a Justia de Transio quer a instalao da paz e a

    erradicao da violncia, o reconhecimento no mais da vtima e sim do protagonista da histria

    do perdo poltico ainda que este encontre inspirao no perdo religioso.

  • 13

    Os crimes cometidos pelos regimes autoritrios geram prejuzos de ordem pessoal,

    psicolgico, individual e coletivo. Da o direito de reparao que cabe s vtimas, para que

    tenham possibilidades de recompor o estado anterior violao que lhes atingiu.

    No Captulo 3 desenvolvo a experincia restaurativa brasileira a partir da Comisso de

    Anistia. Tendo como ponto de partida o requerimento de quem relata a histria a partir do lugar

    da vtima o rgo colegiado da Comisso aprova o requerimento e o recomenda para deciso

    final do Ministro da Justia, a quem compete a deciso final.

    No desempenho da atribuio constitucional e infraconstitucional, a Comisso de Anistia,

    desde o incio de sua instalao, em 2001, no governo do ex-presidente Fernando Henrique

    Cardoso, guarda um ritual de solenidade que expressa a importncia do reconhecimento de

    direitos aos que foram atingidos, em decorrncia de perseguio exclusivamente poltica, por

    ato de exceo, institucional ou complementares e mantem a simplicidade e informalidade

    prpria dos processos administrativos.

    Num dos maiores programas de indenizao s vtimas que foram atingidas em

    decorrncia de ato de exceo, institucionais ou complementares j realizado no Brasil, a

    Comisso de Anistia no intuito de ampliar a pauta de reparao individual realiza o Projeto

    Marcas da Memria com significativa participao da sociedade civil e desenvolve um

    conjunto de aes voltadas para reflexo, aprendizagem coletivo de modo que aqueles

    vivenciaram e possuem conhecimento do tempo que o Estado negou sistematicamente os

    direitos humanos compartilhem suas leituras de mundo para que todos conheam a histria de

    um tempo que no pode ser esquecido.

    Dentre as aes realizadas pelo Projeto est inserida as das Caravanas da Anistia que tem

    percorrido o pas todo levando as sesses de julgamento para os lugares mais prximos de onde

    as vtimas sofreram as perseguies polticas. A Caravana cumpre duas partes: a primeira em

    que ocorre a Sesso de Homenagens e a segunda a Sesso de Julgamento. So nas Sesses de

    Julgamento que a Comisso se dirige aos requerentes para pedir-lhe desculpas em nome do

    Estado pelos prejuzos que o regime excepcional causou aos requerentes, seus familiares e

    toda sociedade.

  • 14

    A participao pblica contribui para efetivao do resgate da verdadeira histria dos que

    sofreram perseguio e que tambm acabaram sendo vtimas de verses falsas sobre os

    acontecimentos.

    A Comisso acredita que dever de todos e de cada um seguir lutando para o

    aperfeioamento da democracia e das instituies, convidando a cada cidado e cidad ser uma

    sentinela da democracia.

    Por que tratar do Perdo nesta dissertao? Na minha juventude estive envolvida com

    aes de solidariedade s vtimas da ditadura militar. Correspondia aos jovens da minha

    gerao, vinculados com a linha eclesial identificada com a Teologia da Libertao, entre outras

    tarefas, atender s aes de solidariedade aos familiares dos presos polticos, participar das

    atividades de massa ou apenas aguardar nas rodovirias e aeroportos o retorno dos exilados

    polticos. Cheguei a pensar que eu conhecia a dor dos que foram perseguidos na ditadura!

    No obstante a convivncia com muitos ex-presos polticos pude constatar que s obtive

    conhecimento dos cruis sofrimentos a que foram submetidos aqueles considerados subversivos

    pelo regime militar nas atribuies de conselheira e vice-presidente da Comisso de Anistia,

    seja pelos relatos escritos, seja pelos depoimentos prestados em sesses pblicas da Comisso.

    Exemplo da falta de conhecimento dos horrores praticados pelos agentes da represso

    ocorreu quando relatei o processo do metalrgico Jeronimo Alves, ex-empregado da fbrica

    Lorenzetti, de So Paulo. Homem negro, militante da Pastoral Operria e da Ao de Libertao

    Nacional ALN - Jeronimo foi preso diversas vezes e numa delas seu filho menor aprendiz

    tambm o foi e ambos foram torturados. Seus poucos bens dispostos numa modesta casa da

    periferia paulistana destrudos por mais de uma vez pela polcia. Como resultado das

    perseguies sua esposa sofreu um acidente vascular cerebral, o filho suicidou-se e Jeronimo

    nunca mais obteve emprego de metalrgico. Em 2007 Jeronimo veio Braslia para participar

    do aniversrio da lei de anistia. Passou no Ministrio da Justia para comemorar o

    reconhecimento que o Estado lhe fez5 e cumprimentar seus amigos. Estava elegantemente

    vestido para visitar as autoridades de Braslia. No entanto, no chegou assistir sesso especial

    pelo aniversrio da lei de Anistia promovida pela Comisso de Direitos Humanos e Minorias

    5 Processo 2001.01.05130 deferido em 04 de dezembro de 2003 e declarado anistiado poltico brasileiro.

  • 15

    da Cmara dos Deputados, passou mal e foi levado para o Hospital Regional da Asa Norte onde

    faleceu.

    Jernimo, como muitos ex-perseguidos, nunca falava dos seus sofrimentos. Silncio,

    solido, medo, vergonha, ameaas, discrio, sentimento de preservao dos familiares e

    amigos? Provavelmente tudo junto. Como aceitar o pedido de perdo quando a ferida continua

    aberta, no foi cicatrizada? Como se reconciliar com que no se arrependeu ou no chegou a

    manifestar que tudo poderia ter sido evitado? Jeronimo representa aqui todos e todas Jernimos.

    O pedido de perdo contm o sentimento de arrependimento. O resultado das pesquisas e

    das inquietaes pessoais me suscitou mais perguntas do que respostas. O Estado, ocupando o

    lugar dos que em seu nome praticaram graves violaes, pode pedir perdo s vtimas? A

    reparao econmica e moral substitui a manifestao de arrependimento e indicam a

    disposio de reforma nas instituies que serviram ao aparato repressor? Creio que no! E a

    sociedade que lugar ocupou, e, agora ocupa neste processo de restaurao de relaes?

    Consultei, a terminologia que aqui convm, alguns anistiados, sobre o que lhe significou ouvir

    o pedido de desculpas da Comisso de Anistia.

    Dentre eles Darci Myako, e Joo Fragoso e obtive algumas respostas que tratarei adiante.

    Tambm relembro a reao negativa que manifestou Gilka Rabello ao pedido de perdo que fiz

    em nome do Estado brasileiro. Sob forte emoo Gilka repetiu vrias vezes que no perdoava

    para que no voltassem a praticar os horrores que ela sofreu.

    A Comisso de Anistia, lugar que desenvolvo minha pesquisa e reflexo sobre o tema,

    realiza um pedido de soluo de culpa pelos erros que o Estado praticou contra os direitos

    humanos. Este pedido passou ser feito de forma sistemtica a partir da adoo dos princpios

    recomendados pela Justia de Transio, em 2007. A partir desta data a Comisso acrescentou

    declarao de Anistia o pedido de perdo pelos erros que foram causados s vtimas.

    O livro Caravanas da Anistia O Brasil pede Perdo6, publicado em 2012, retrata as

    duas modalidades de reparao concedida pela Comisso de Anistia, a de contedo moral e a

    6 Publicao apresentada no ano de 2010 1. Chamada Pblica do Projeto Marcas da Memria, da Comisso de

    Anistia, do Ministrio da Justia, e selecionado por Comit Independente para Fomento. Organizao Maria Jos

    H. Coelho, Vera Rotta Braslia DF -Ministrio da Justia; Florianpolis: Comunicao, Estudos e

    Consultoria, 2012

  • 16

    de contedo reparatrio econmico, e contm um conjunto de votos exemplares de todo o

    tempo da comisso desde sua instalao.

    O ttulo sugestivo indica as duas espcies de reparao: o resgate da verdade e o pedido

    de perdo. No entanto, o pedido de perdo tem sido modificado para pedido de desculpa, como

    desenvolverei no captulo 2.

    O Perdo ato gratuito, prprio das vtimas, ele capaz de permitir a travessia, a

    superao e alcanar a reconciliao. A Desculpa tem preo, negocivel, objetiva, no

    gratuita.

    Aproveito a oportunidade para registrar meu agradecimento ao Senhor Marcello

    Lavnere Machado, ex-presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados, por ter-me

    convidado em 2003, a compor o Conselho da Comisso de Anistia, onde permaneo e desde o

    ano de 2007 atuo como vice presidente deste respeitado rgo, a convite do atual presidente

    Senhor Paulo Abro Pires Junior, a quem tambm agradeo por ter-me permitido, ao seu lado

    e ao lado dos conselheiros, conselheiras, servidores e amigos da Comisso, empenhar as difceis

    travessias, certos que quando estamos juntos as dificuldades se tornam menores.

    Registro tambm meu agradecimento pela confiana a mim creditada pelo Ministro Jos

    Eduardo Cardoso na condio de sua assessora especial para servir na Comisso de Anistia.

    Meu profundo respeito s pessoas que se fazem pontes para permitir as travessias que

    favorecem os processos de cicatrizao e reconciliao.

    Minha admirao e agradecimento ao pintor Claude Monet que guiou a minha

    inspirao com a ponte do seu jardim.

  • 17

    1 A JUSTIA DE TRANSIO E OS INSTRUMENTOS PARA

    RECONCILIAO

    Figura 1- Jardins de Monet

    Fonte:http://www.conexaoparis.com.br/2007/06/27/giverny-a-casa-e-os-jardins-de-monet/7

    Desconhecido da maioria da populao, inclusive dos operadores do direito, h

    aproximadamente 20 anos o tema Justia de Transio tornou-se objeto de maior interesse,

    especialmente nas sociedades que estiveram envolvidas em situao de graves conflitos

    internos e internacionais.

    A novidade que se apresenta a aplicao do conceito de Justia de Transio baseado

    no direito internacional nos processos de transio, mas no somente nas situaes de ps

    7 Disponvel em: http://www.contornospesquisa.org/2012/08/como-referenciar-figuras-imagens-e.html, Acesso

    em 20 de outubro de 2014.

    http://www.contornospesquisa.org/2012/08/como-referenciar-figuras-imagens-e.htmlhttp://www.flickr.com/photos/16179051@N07/

  • 18

    conflitos e ou mudana de regime, como o caso da transio da ditadura para democracia.8

    Tambm certo que a Justia de Transio compreende situaes de processos de paz dentro

    de um conflito ascendente numa democracia formal.9

    A busca de superao dos legados tem se dado de formas diferentes, pela via judicial e

    ou no judicial, podendo ter nveis de participao diferenciada internacional ou mesmo sem a

    participao internacional. Vale dizer, que seja pela via retributiva, seja pela via restaurativa ou

    mesmo pelas duas vias, o resultado da Justia de Transio depende de vrios fatores, como o

    papel que a antiga elite manter pois tambm no dizer de ambas, as possibilidades da Justia de

    Transio aumentam na medida que diminui a influncia das antigas elites10.

    Outro fator a ser considerado na avaliao do xito da Justia de Transio sero as

    polticas e reformas polticas adotadas considerando o objetivo da reconstruo, da

    consolidao da democracia e da reconciliao.

    O psicanalista e escritor Srgio Telles fez circular no peridico Folha de So Paulo artigo

    intitulado Desconstruindo o amanh, no qual resenhou o livro De que amanh..., resultado

    de debate entre o filsofo Jacques Derrida e a psicanalista Elizabeth Roudinesco. Na articulao

    de seu texto, o resenhista, destaca que:

    A histria da humanidade uma tumultuada alternncia entre civilizao e barbrie,

    na qual tem sido necessrio uma permanente vigilncia para que a primeira no seja

    destruda pela segunda. Essa viso corrente necessita de correes, como mostrou

    Freud. A maior delas reconhecer que a oposio civilizao-barbrie no marca

    campos completamente heterogneos, pois a barbrie est inserida no prprio cerne

    da civilizao11.

    A conformao do que Telles chama de alternncia entre civilizao e barbrie que nos

    faz olhar com a acuidade necessria para o passado com perspectiva de afastar os germes

    remanescentes da barbrie.

    8 AMBOS,Kai. O Marco Juridico da Justia de Transio In Anistia, Justia e Impunidade Reflexes sobre a

    Justia de Transio no Brasil, Belo Horizonte, Editora Frum, 2010:27 9 Idem 2010:28 10 AMBOS, Kai. O Marco Juridico da Justia de Transio In Anistia, Justia e Impunidade Reflexes sobre a

    Justia de Transio no Brasil, Belo Horizonte, Editora Frum, 2010:27 11 Artigo publicado no suplemento MAIS! do jornal Folha de So Paulo em 07/03/04

  • 19

    Duas grandes guerras mundiais com milhares de mortos, genocdios, centenas de

    conflitos por disputas geogrficas, religiosas, tnicas, ditaduras, escravido, expuseram e

    seguem como que desafiando o ser humano s prticas que chegam a ser inarrveis, diablicas,

    no fossem humanas. A maior parte dos que praticaram crimes em nome de regimes autoritrios

    nunca foram responsabilizados pelos seus atos.12 Em meio a impunidade de crimes praticados

    contra os direitos humanos prevalece o sentimento de extenso da perseguio, da injustia.

    Para Hanna Arendt Os homens no so capazes de perdoar o que no podem punir, nem punir

    o imperdovel.13

    Esta afirmao faz pensar no nmero de situaes que no foram redimidas e impedem

    a reconstituio de relaes sociais e a paz permanente. O valor da justia de transio est em

    resgatar a memria e a verdade, firmar compromissos de efetivas aes que representem o

    arrependimento e a garantia de no repetio das violaes dos direitos humanos.

    Ao cabo da primeira Guerra Mundial foram contabilizados dez milhes de soldados

    mortos, 20 milhes de feridos e perdas civis incalculveis e na segunda Guerra Mundial um

    nmero ainda maior, quase 60 milhes de mortos. Quando se tornou conhecida a ocorrncia

    das gravssimas violaes dos direitos humanos cometidas pelo regime nazista, reacendeu na

    opinio pblica a discusso sobre a necessidade de responsabilizar os autores de guerra e de

    graves atentados aos direitos humanos, buscando, especialmente, afastar a guerra das relaes

    entre Estados.

    Assim a ideia de uma justia entre as naes e da criminalizao da violncia extrema da

    guerra no procede unicamente da mente de juristas e pacifistas, mas sobretudo de quem

    conheceu o horror da guerra.14

    Em 1919, os diplomatas que redigiram os acordos de paz fundaram uma Liga das Naes

    para manter a paz, com a finalidade de afastar os conflitos, supervisionar o desarmamento,

    12 Teitel, Ruti. Conceitos e Debates sobre Justia de Transio in Justia de Transio: Manual para a Amrica

    Latina 2011: 139-140 Organizador Flix Retegui ICTJ ABC PNUD Comisso de Anistia Braslia & Nova

    Iorque 13 ARENDT, Hanna. A Condio Humana 2010 Prefcio Celso Lafer Forense Universitria -10. edio/6.

    reimpresso 2007:509 Rio de Janeiro 14 Garapon Antoine. Uma Utopia do Ps Guerra-Fria, in Crimes que no se podem punir nem perdoar Para uma

    Justia Internacional Instituto Piaget 2002: 22

  • 20

    arbitrar as disputas entre as naes e garantir direitos para minorias nacionais, mulheres e

    crianas. Contudo, a Liga no teve xito. Assinado em 28 de junho de 1919 o referido Acordo

    no impediu o surgimento do nazismo na Alemanha, do fascismo na Itlia e mais a deflagrao

    da 2 Guerra Mundial com um nmero 06 vezes maior de vtimas em relao a Primeira Guerra

    Mundial, sendo a maioria de civis e seis milhes de judeus mortos pelo fato de serem judeus.

    Sua fragilidade deveu-se a falta de assinatura por quem deveria ter feito como ocorreu com os

    Estados Unidos cujo Senado Federal no ratificou o acordo.

    No final da 2 Guerra Mundial os pases aliados - em particular os Estado Unidos, a

    Unio Sovitica e a Gr Bretanha determinaram aperfeioar a Liga das Naes. Alm da

    estrutura, um novo corpo internacional previu o Conselho de Segurana, no dizer de Hunt,

    dominado pelas grandes potencias, uma Assembleia Geral com delegados de todos os pases e

    ainda providenciou a Corte Internacional de Justia, em Haia, nos Pases Baixos, para substituir

    a Liga das Naes. S aps muita presso de organizaes dos mais diversos tipos de

    organizao que os funcionrios da Liga cederam e concordaram em incluir os direitos

    humanos na Carta das Naes Unidas. preciso que se diga que em 1945 os compromissos

    com os direitos humanos no estavam nem um pouco assegurados15.

    A trgica realidade de duas guerras mundiais no mesmo sculo apontou para necessidade

    de uma vigilncia constante a favor da manuteno da paz e da democracia como preservao

    da prpria humanidade. Se considerarmos os modernos recursos blicos superiores aos de

    cinquenta anos atrs no hesitaremos em reafirmar o dilogo como recurso adequado para

    conquista e manuteno da paz.

    O nmero de mortos nos conflitos armados no o nico resultado negativo das guerras,

    conflitos e ditaduras. A tortura, o sequestro, os estupros, as humilhaes agudizam os

    sofrimentos causados pelos perpetradores, pois violam o corpo e a alma das vtimas, atingem o

    indivduo e o coletivo, transpassam os limites sociais e geracionais.

    Tornar as vtimas invisveis e mudas outra caracterstica dos regimes que negam o

    direito individualidade, divergncia e verdade. As leis internacionais, regra geral, so

    15 Hunt, Lynn. A inveno dos direitos humanos Uma histria Traduo Rosaura Eichenberg Companhia das

    Letras. So Paulo, 2009

  • 21

    ignoradas pelos estados de exceo16, descumprindo instrumentos pactuados em processos de

    promessas de manuteno da paz.

    Alm dos traumas individuais e coletivos o esgaramento das relaes sociais e a quebra

    de confiana nas instituies compem o cenrio de tratamento da justia transicional.

    Convm admitir que a realidade das atrocidades causadas nas guerras por inimigos

    externos muitas vezes no se diferencia dos crimes praticados em conflitos internos e ditaduras,

    quer tenham sido praticados por grupos rivais, quer pelo prprio Estado e por seus nacionais

    que disputam suas posies em campos tnicos, raciais e religiosos.

    Para tratar do legado do perodo autoritrio o governo democrtico necessitar de ponte

    para restabelecer o liame entre o passado e o futuro, restaurando as fendas, praticando

    procedimentos que possibilitem cicatrizaes e firmando compromissos que impeam o retorno

    do autoritarismo. Este tratamento do legado do passado foi chamado pelas Naes Unidas de

    Justia de Transio.

    O Centro Internacional para Justia Transicional ICTJ17 assim define o que a justia

    de transio ou transicional:

    A Justia Transicional refere-se ao conjunto de medidas judiciais e extrajudiciais que

    foram implementadas por diferentes pases, a fim de corrigir os legados de macias

    violaes dos direitos humanos. Estas medidas incluem processos criminais, as

    comisses de verdade, programas de reparao, e vrios tipos de reformas

    institucionais.

    A Justia Transicional no um tipo "especial" de justia, mas uma abordagem para

    alcanar a justia em tempos de transio de conflito e / ou represso do Estado. Ao

    tentar alcanar a responsabilidade e reparar as vtimas, a Justia de Transio

    proporciona o reconhecimento dos direitos das vtimas, promove a confiana cvica e

    fortalece o Estado democrtico de direito.

    tambm uma resposta a violaes sistemticas ou generalizadas dos direitos

    humanos Seu objetivo reconhecer a vtima e promover iniciativas de paz,

    reconciliao e democracia. A justia transicional no uma forma especial de justia,

    seno uma justia adaptada a sociedade que se transforma em si mesma depois de um

    perodo de violao generalizada dos direitos humanos. Em alguns casos, estas

    transformaes sucedem de um momento para o outro; em outros casos podem ter

    lugar depois de muitas dcadas. 18

    16 AGAMBEN, Giorgio o estado de exceo um espao anmico onde o que est em jogo uma fora de lei

    sem lei (que deveria, portanto, ser escrita: fora de lei) Estado de Exceo Boitempo Editorial, 2004:61 17 International Center for Transitional Justice www.ictj.org 18BICKFORD, Louis. What is transitional justice? Transitional justice, op., cit ICTJ.

  • 22

    A Justia de Transio no uma justia superior ou inferior. Ela uma justia que,

    diferente da justia retributiva, visa alm da correio e recomposio, especialmente uma

    mudana no conflito, na superao do prprio conflito e na reparao dos atos decorrentes do

    conflito.19

    Antoine Garapon assim distingue a justia retributiva e a justia reconstrutiva:

    Justia retributiva e justia reconstrutiva no partilham nem a mesma anlise da

    violncia criminosa nem a mesma concepo do tratamento que deve ser dado. Para

    a justia retributiva, o mal est no insulto feito lei. No surpreende constatar que

    aqueles que veem no crime contra a humanidade um atentado contra aquilo que h

    de humano no homem20 preferem uma soluo judicial e repressiva. O modelo

    retributivista, para o qual a pena no se justifica em si mesma, abstraindo-se de

    qualquer outra finalidade, como a de reinserir o delinquente ou proteger a sociedade

    constri-se em torno do postulado da universalidade da lei. Nessa perspectiva, o

    universal est do lado da lei natural, de uma natureza humana: por isso que a

    resposta aos crimes que transgridem essa lei deve-se de igual modo, ser a mais

    homognea possvel por todo o mundo. Esta posio pode conduzir a um imperialismo

    cultural, ao impor uma soluo nica processos do tipo Norumberga -, ou mesmo

    uma espcie de fundamentalismo judicirio defasado da situao concreta de cada

    pas.

    Ou seja, no entender de Garapon o crime contra a humanidade est menos para o crime

    contra o direito natural e mais para violao de uma relao, dando justia mais o sentido de

    reconstrutora dessa relao. Nesta definio a vergonha, resultado da ao, est para o direito

    restaurativo como a priso est para o direito retributivo.

    A justia reconstrutiva pretende a reabilitao da vtima, a revelao da verdade,

    valendo-se de uma cerimnia de linguagem e uma celebrao de consentimento, para reparar o

    grupo poltico no seu todo. Enquanto a justia retributiva visa punio, a justia restaurativa

    visa reconciliao.

    A adoo dos mecanismos da Justia de Transio depende de vrios fatores. A histria

    de cada Estado envolvido no conflito, da cultura, a durao do conflito, o contexto internacional

    no perodo de transio so fatores que interferem decisivamente na aplicao da justia de

    transio. Simone Rodrigues Pinto assim discorre:

    19 AMBOS, Kai Anistia. Justia e Impunidade Reflexes sobre a Justia de Transio no Brasil, Editora Frum,

    2010, Belo Horizonte 20 ARENDT, Hanna. Quest-ce que la politique? Op. cit. In Garapon Crimes que no se podem punir nem

    perdoar Para uma Justia Internacional, Instituto Piaget 2002:248

  • 23

    A durao e a gravidade dos crimes influenciam muito. Se a represso se deu em

    perodo curto, pode ser que instituies democrticas anteriores no tenham sido

    eliminadas totalmente e uma cultura de direitos humanos possa ser restaurada.

    Estatutos de limitao nesses casos so improvveis de ser adotados.

    O contexto internacional pode tambm influenciar as medidas adotadas nos pases que

    sofreram destituio de governos democrticos. No perodo de transio na Blgica,

    Holanda e Frana, por exemplo, as normas internacionais de direitos humanos ainda

    eram muito incipientes. J hoje, a censura internacional aos abusos aos direitos

    humanos muito maior, criando uma grande presso para que os violadores no

    fiquem impunes. Outros fatores tambm contribuem para a definio da poltica de

    transio como por exemplo, a memria coletiva, que determina a inclinao para

    esquecer e perdoar.21

    As experincias de aes que ultrapassam as fronteiras geogrficas dos pases so

    incentivadas pelas decises das cortes internacionais. A considerar que os direitos humanos tm

    o condo de serem bens da humanidade legtimo a defesa moral, jurdica e poltica dos direitos

    humanos independente do solo que tenha sido transgredido.

    A escolha da melhor poltica de mecanismos para tratar com o legado de grandes

    violncias praticadas no passado, para assegurar a responsabilizao, promover justia e obter

    a reconciliao um grande desafio para o governo de transio. A deciso do que fazer com

    crimes do passado passa por embates muitas vezes altamente polarizados e aparentemente

    imodificveis.

    De um lado esto os que se posicionam por virar a pgina sem olhar o passado, sem

    investigar os fatos, a pretexto de afastar-se de aes que possam ser identificadas como

    revanchistas e desestabilizadoras da nova ordem. De outro os que defendem a mais ampla

    revelao do que ocorreu no passado sob o argumento que no se pode virar a pgina do livro

    da histria sem antes t-la lido. Esses indicaro a exigncia de buscar meios de justia para

    iluminar os fatos e revelar os envolvidos. De toda forma, uma ou outra escolha poltica, destaca

    Simone Pinto ter que passar por duas questes chaves: Reconhecimento (reprovao moral) e

    Responsabilizao (punio). 22

    21PINTO, Simone Rodrigues: No reconhecer que houve crime e no responsabilizar os culpados representa um

    convite recorrncia do abuso alm de configurar um desprezo pelos sentimentos das vtimas, serve tambm

    para demonstrar o compromisso do novo Governo com os valores legais e democrticos Memria, verdade e

    responsabilidade, 2012:61-62

    2012:74 PINTO, Simone Rodrigues. Memria, verdade e responsabilidade Uma perspectiva restaurativa de

    justia transicional Editora Unb 22 PINTO, Simone Rodrigues. Memria, verdade e responsabilidade, , 2012:61

  • 24

    Dois pilares so vitais na superao do passado autoritrio: a justia e a transio. O que

    se pretende com a poltica transicional estabelecer tratamento adequado das violaes e que

    se cumpra o papel de ponte do locus anterior a violncia do passado e o locus do presente em

    vista das perspectivas democrticas.

    A construo da ponte firme para efetivar a passagem depender, sobremaneira, do

    debate poltico, no dizer de Simone Rodrigues Pinto, e da disposio dos personagens que

    atuaro no processo. 23

    Se por um lado trata-se de tarefa desafiadora desfilar os processos de rupturas desde a

    antiguidade, por outro lado no difcil acompanhar o pensamento de Jon Elster24 quanto a

    ideia de reconhecimento da busca de mecanismos para superar legados do passado, ainda que

    no se deva equiparar ao processo desenvolvido no sculo XX. Para ele a idia da justia de

    transio to antiga quanto a prpria democracia.

    O marco inicial seria a experincia ateniense, entre 411 e 403 a.C. quando a passagem da

    democracia para oligarquia, seguida da volta dos democratas ao poder, foi acompanhada de

    medidas punitivas, contra os oligarcas, e da promulgao de novas leis que visavam dissuadir

    futuras tentativas de tomadas de poder. Se no primeiro momento no foram atacadas as causas

    que levaram ao golpe oligrquico e o principal mecanismo adotado foi a punio em 403,

    buscando principalmente a reconciliao, os democratas que voltaram ao poder reagiram de

    forma diversa, aprovando mudanas constitucionais com o objetivo de eliminar determinados

    aspectos da legislao que teriam causado a interrupo do governo democrtico, o que vale

    dizer que a poltica de superao das prticas antidemocrticas feita a partir de experincias

    anteriores, ainda que se leve em conta as particularidades de cada realidade.

    Num primeiro momento a transio foi acompanhada de medidas punitivas contra os

    oligarcas e da promulgao de novas leis que visavam afastar futuras tentativas de tomada de

    poder. Esta poltica de punio fez com que as causas que levaram ao golpe oligrquico no

    fossem revisadas.

    23 Idem 2012 2012:61 24 ELSTER, Jon Closing. The Books Transitional Justice in Historical Perspective The press Syndicate of the

    University of Cambridge, september 6, 2004

  • 25

    J em 403, buscando principalmente a reconciliao, os democratas que voltavam ao

    poder reagiram de forma diversa, aprovando mudanas constitucionais com o objetivo de

    eliminar determinados aspectos da legislao que teriam causado a interrupo do governo

    democrtico.

    Para Elster, naquele momento surgiram as principais caractersticas do que s

    recentemente viria se tornar conhecido como Justia de Transio, com o reconhecimento de

    punio aos perpetradores e o direito de compensao s vtimas.

    O uso de mecanismos de Justia de Transio na restaurao de monarquias tambm teria

    ocorrido muitas vezes na histria da humanidade. Exemplifica o mesmo autor com o caso da

    Frana, sculo XIX, que durante a Segunda Restaurao, os Bourbons adotaram amplas

    medidas de punio e reparao, que incluram expurgo na burocracia e o pagamento de

    indenizaes. Porm, Elster acentua que no h registros importantes de justia de transio em

    novas democracias como as ocorridas em Atenas e a da metade do sculo XX.

    Assim verifica-se a proeminncia dos principais conceitos da Justia de Transio, mais

    especificamente a categoria de vitimrios ou criminosos, e a de vtimas, geralmente reparadas

    por intermdio de compensao. 25

    Para Teitel a Justia Transicional pode ser definida como a concepo de justia

    associada a perodos de mudana poltica caracterizados por respostas no mbito jurdico, que

    tem o objetivo de enfrentar os crimes cometidos por regimes opressores do passado26.

    25 ELSTER, Jon. Closingthe books: transitional justice in historical perspectiva, Nova York, Cambridge

    University Press, 2004, p. 3-4, 8, 21-22, 24, 45-47 26 TEITEL, Ruti. Genealogia da Justia Transional in Justia de Transio Manual para a Amrica Latina

    coordenao de Felix Retegui Brasilia ; Nova Iorque Centro Internacional para Justia de Transio

    2011:135

  • 26

    Enquanto para alguns autores a Justia de Transio o intervalo dado entre um regime

    poltico e outro27 para outros, a Justia de Transio o perodo que sucede ao fim do conflito.

    28

    Um elemento importante no resgate da verdade que se prope a justia de transio diz

    respeito histria registrada. Arendt faz meno a inmera quantidade de documentos que

    comeou aparecer em decorrncia do julgamento dos principais criminosos de guerra, em 1946,

    em Nuremberg aps a edio de seu livro Origens do Totalitarismo, em 1958, o que a provocou

    aditar e substituir sua obra. No obstante a importncia da revelao dos documentos reside

    muito mais na necessidade de uma gerao responder O que havia acontecido? Por que havia

    acontecido? Como pode ter acontecido?.

    Arendt ainda destaca a quantidade de informao que foi descoberta no quartel-general

    de Smolensk, quando de sua captura pelos norte-americanos, 200 mil pginas de documentos,

    praticamente intactas; no entanto sabido que o acervo muito maior pois os registros

    encontrados no contem a indicao do nmero de vtimas, dados estatsticos vitais e ainda

    sofrem a contradio de informaes.

    A deliberada omisso de fornecimento de documentos que contribuam para o

    esclarecimento dos fatos tem sido prtica dos regimes autoritrios. Oferecer um livro com

    pginas em branco obstaculizar o direito das vtimas e da sociedade de conhecer a Histria, a

    Verdade e a identidade de Nao.

    Experincias como as de frica do Sul, Serra Leoa, Alemanha e tantas mais revelam as

    escolhas que os pases que estiveram envolvidos em graves violaes muitas vezes tiveram que

    fazer para garantir uma transio sem volta, dada s suas instabilidades polticas. E assim que

    em lugar de responsabilizar os vencidos autores de graves violaes os Estados optam pela paz

    em lugar da responsabilizao e concedem anistia como forma de esquecimento e quitao de

    culpas.

    27Referencia a Guilhermo ODonnell e Philippe C. Scmitter, Transition Front Authoritarian Rule: Tentativa

    Conclusions About Uncertain Democracies 6 (1998) feita por RutiTeitel in Genalogia da Justia Transcional

    135:2011 28 ZYL, Paul van. Promovendo a Justia Transicional em sociedade ps conflito in Justia de Transio Manual

    para a Amrica Latina coordenao de Felix Retegui Brasilia ; Nova Iorque Centro Internacional para

    Justia de Transio 2011:47ss

  • 27

    Como ocorreu em El Salvador, pas arrasado por uma longa guerra que matou

    aproximadamente cem mil pessoas e outras tantas encontram-se desaparecidas quando o ex-

    presidente, Mauricio Funes, pediu perdo pela violncia contra crianas, mulheres e

    camponeses de Monzote que sofreram bombardeios sem que nada e ningum lhes pudesse

    proteger, dizimando quase toda a populao.

    Ocorre que os responsveis pelos ataques sequer demostraram arrependimento e os

    sobreviventes no contam com nenhuma poltica de reparao que alivie seus sofrimentos

    fsicos. o exemplo de pedido sem efeito, os vitimrios no declararam arrependimento e as

    vtimas no esto seguras que a violncia que lhes atingiu no poder se repetir.

    tambm com um caso de El Salvador que ilustro a dificuldade de conceder o perdo:

    Na segunda sesso do Tribunal de Justia Restaurativa de El Salvador, ocorrida em maro de

    2010, no Departamento do Suchitoto, Mario Zamora Filho foi ouvido como vtima e

    testemunha. O jovem salvadorenho contou aos membros do Tribunal que seu pai, Mario

    Zamora, Procurador da Repblica de El Salvador, amigo de Dom Oscar Romero, foi executado

    por grupos paramilitares.

    A Testemunha relatou que homens mascarados invadiram a residncia, renderam todos

    os presentes obrigando-os a permanecerem deitados no cho, e, em seguida, levaram o pai para

    um banheiro e o assassinaram com arma silenciosa.

    Contou ainda que sua me por acreditar que no entregando as chaves das portas

    impediria os criminosos de sequestrar o marido escondeu as chaves. Deitada no cho escondia

    as chaves e protegia o filho sob seu corpo o que a fez sofrer vrias agresses. A testemunha

    tinha poca por volta de 6 anos e lembra-se de ter sentido no seu corpo os golpes que a me

    sofreu. Com muita emoo Mario Zamora Filho, hoje com aproximadamente 40 anos de idade

    pergunta aos membros do Tribunal:

    Me pedem para perdoar, e, eu quero perdoar.

    A quem devo perdoar?

    Quem matou meu pai?

    Quem deu ordens para matar meu pai?

  • 28

    O Pedido de Desculpas tem rosto ao contrrio dos algozes de Mario Zamora que agiram

    de rosto encoberto. E assiste razo a Mario, s ele como vtima pode perdoar quem roubou da

    morte o desfecho da vida de seu pai, como referiu-se Hanna Arend.29

    1.1 Genealogia e instrumentos da Justia de Transio

    A considerar a importncia de todos os instrumentos da Justia de Transio, a saber, a

    reparao, a busca da verdade e a construo da memria, a regularizao da justia e o

    reestabelecimento da igualdade perante a lei e a reforma das instituies perpetradoras de

    violaes contra os direitos humanos30, permissvel afirmar que o conhecimento da verdade

    talvez seja o elemento mais sensvel que a Justia de Transio pode oferecer. O conhecimento

    da verdade o ncleo central da poltica transacional, o que d robustez a realizao dos demais

    instrumentos e que legitima o pedido de perdo. No se pode pedir perdo do que no se lembra,

    to pouco com esquecimentos, sonegaes e omisses histricas.

    A liturgia dos procedimentos de reparaes morais e econmicas devem compreender: (i)

    a reparao; (ii) a busca da verdade e o resgate da memria; (iii), a regularizao da justia e

    restabelecimento da igualdade perante a lei; (iv) a reforma das instituies perpetradoras das

    violaes contra os direitos humanos31. As medidas reparatrias visam atenuar os sofrimentos

    causados pelos vencidos e adoo de medidas que alcancem a paz duradoura.

    A Justia de Transio tem merecido em quase todo o mundo rica literatura de

    expressivos autores que publicaram as mais avanadas pesquisas e estudos. Ganha particular

    destaque o fato dos referidos autores e autoras serem, em sua maioria, ativistas das lutas pela

    superao do autoritarismo e sentinelas da preservao das democracias. Com pesquisas que

    29 ARENDT, Hanna. Origens do Totalitarismo, So Paulo, Companhia ds Letras, 2004:498 Trad. Roberto

    Raposo 30 TEITEL, Ruti. Transitional Justice. Oxford e Nova Iorque: Oxford University Press, 2000; bem como

    ZALAQUETT, Jos. La reconstruccin de la unidad nacional y el legado de violaciones de los derechos humanos.

    In: Revista Perspectivas, Facultad de Ciencias Fsicas y Matemticas, Universidad de Chile, Vol. 2, Nmero

    especial, 20 p.; e GENRO, Tarso. Teoria da Democracia e Justia de Transio. Belo Horizonte: EDUFMG,

    2009. 31 ABRO, Paulo e Genro, Tarso. Os Direitos da Transio e a Democracia no Brasil Estudos sobre Justia de

    Transio e Teoria da Democracia Editora Frum 2012:59

  • 29

    antecedem a 1. Guerra Mundial os autores partem de procedimentos adotados, ou no, de

    responsabilizao, para superao dos traumas e adoo de mecanismos para efetivao da

    transio.

    A Justia de Transio transcorre em contexto temporal, poltico, social e cultural. De

    acordo com essa Justia o perdo o resultado de um processo restaurativo. Com linguagem

    prpria, capaz de liberar a memria para o esquecimento consentido, para, enfim, promover a

    Reconciliao mediante a promessa de no repetio.

    As experincias de povos e grupos que adotaram polticas de justia restaurativa tm

    demonstrado importantes resultados na harmonizao e reconciliao nacional. o caso da

    frica do Sul que diante do reconhecimento dos erros praticados pelos perpetradores as vtimas

    puderam, na grande maioria, aceitar o pedido de perdo, libertando um e outro do pesado

    passado de graves violaes.

    Esta tem sido a misso da Justia de Transio: restabelecer pontes onde as violaes de

    direitos humanos ocorreram de forma sistemtica ou generalizada. Afirma o ICTJ:

    Elementos de una poltica de justicia transicional integral

    Los elementos que componen las polticas de justicia transicional no constituyen una

    lista azarosa, sino que estn interrelacionados prctica y conceptualmente. Los ms

    determinantes son:

    Las acciones penales, sobre todo contra los criminales considerados de mayor

    responsabilidad.

    Las reparaciones que los Gobiernos utilizan para reconocer los daos sufridos y tomar

    medidas para abordarlos. Esas iniciativas suelen tener un componente Material (como

    los pagos monetarios o los servicios sanitarios), as como aspectos simblicos (como

    las disculpas pblicas o los das del recuerdo).

    La reforma de instituciones pblicas implicadas en los abusos -como son las fuerzas

    armadas, la polica y los tribunales-, con el fin de desmantelar, con los procedimientos

    adecuados, la maquinaria estructural de los abusos y evitar tanto la repeticin de

    violaciones de derechos humanos graves como la impunidad.

    Las comisiones de la verdad u otras formas de investigacin y anlisis de pautas de

    abuso sistemticas, que recomiendan cambios y ayudan a comprender las causas

    subyacentes de las violaciones de derechos humanos graves.

    No estamos ante una lista cerrada. Cada pas va incorporando nuevas medidas. La

    memorializacin, por ejemplo, que se compone de diversas iniciativas destinadas a

    mantener viva la memoria de las vctimas mediante la creacin de museos y

    monumentos, y otras medidas simblicas como el cambio de nombre de los espacios

    pblicos, se ha convertido en parte importante de la justicia transicional en la mayora

    de los pases del mundo.

    A pesar de que las medidas de justicia transicional se asientan en slidos compromisos

    jurdicos y morales, los medios para satisfacerlos son muy diversos, de modo que no

    hay una frmula nica para todos los contextos.

    http://ictj.org/es/our-work/transitional-justice-issues/justicia-penalhttp://ictj.org/es/our-work/transitional-justice-issues/reparacioneshttp://ictj.org/es/our-work/transitional-justice-issues/reforma-institucionalhttp://ictj.org/es/our-work/transitional-justice-issues/verdad-y-memoria

  • 30

    La justicia transicional es el conjunto de medidas judiciales y polticas que diversos

    pases han utilizado como reparacin por las violaciones masivas de derechos

    humanos. Entre ellas figuran las acciones penales, las comisiones de la verdad, los

    programas de reparacin y diversas reformas institucionales32.Grifo nosso.

    Caracteriza-se a Justia de Transio como reconhecimento da vtima e promoo de

    iniciativas de paz, reconciliao e democracia. Compem a Justia de Transio procedimentos

    de reparaes morais e econmicas, o pedido de perdo, as medidas indenizatrias, o resgate

    da memria, a afirmao da verdade e a responsabilizao dos agentes causadores dos prejuzos

    decorrentes das perseguies polticas. As medidas reparatrias visam atenuar os sofrimentos

    causados pelos vencidos.

    Esta referncia reflete a realidade histrica que testemunha um grande nmero de

    guerras, conflitos internos que causaram grandes sofrimentos e at mesmo a erradicao de

    povos e culturas. As marcas das guerras ultrapassam fronteiras e atingem moralmente a

    humanidade. difcil precisar qual o conflito, qual a ditadura, que guerra foi mais avassaladora,

    pois qualquer violncia que atinja os indivduos fere a dignidade da humanidade.

    Este o cerne da questo: Como tratar o legado das guerras, das ditaduras, dos conflitos

    tnicos, religiosos na perspectiva da reconciliao? Bauman33 que pergunta o que teria feito

    com que milhares matassem e milhes assistissem os assassinatos sem protestar? E querendo

    aplicar o questionamento do socilogo polons para outras realidades me pergunto o que teria

    feito com que milhares de vidas fossem sacrificadas pelas ditaduras da Amrica Latina, da sia,

    pases do Leste europeu ou ainda nas guerras fraticidas da frica muitas vezes em meio a um

    silncio autorizativo de tais massacres?

    Nos espaos de falas que ocorrem nos fruns de resgate da verdade, nota-se que os

    algozes agiam com tamanha crueldade como se as vtimas no pertencessem universalidade

    albergada por direitos consagrados em constituies, pactos, convenes. Desde as investidas

    de disseminao de preconceitos, de segregao, s caadas como de animais violentos, s

    capturas, com todos os preenchimentos de atentados contra integridade fsica, moral e

    psicolgica, na maioria das vezes para obteno de informaes, verifica-se que os agressores

    agem sem reconhecimento, sem proximidade, sem sentimento de igualdade com a vtima.

    32 Disponvel em: Acesso em 20 de outubro de 2014). 33BAUMAN, Zygmann. Traduo Marcus Penchel, 97:1989, Modernidade e Holocausto, Jorge Zahar, Justia

    de Transio Editor Rio de Janeiro

    http://ictj.org/es/que-es-la-justicia-transicional

  • 31

    Para Bauman a proximidade significa responsabilidade e, responsabilidade

    proximidade, ou seja, uma depende da outra. Afirma o socilogo polons que a

    responsabilidade surge da proximidade com o outro e o tijolo constitutivo de todo o

    comportamento moral. a responsabilidade que me faz sujeito34.

    O fim da Justia de Transio resgatar a proximidade que foi rompida pelo arbtrio de

    aniquilamento do outro. O tema da responsabilizao ganha ainda maior relevncia pois uma

    nova sociedade pressupe o resgate da ideia de responsabilidade para no incorrer em repetio

    do passado.

    O cenrio de alternncia e fracasso dos compromissos a favor da paz confirmam a tese

    que pactos, convenes, estatutos no afastam a incerteza do propsito. Da a necessidade da

    vigilncia a favor da democracia e a consolidao dos instrumentos a favor dos direitos da

    humanidade.

    A Justia de Transio no uma forma especial de justia, mas sim a prpria justia

    que corresponde a necessidade de transformao da sociedade. Em alguns casos estas

    transformaes ocorrem imediatamente aps o cessamento do regime de exceo, em outros

    casos podem ocorrer em muitas dcadas.

    Para Aristteles a justia dar a cada um o que seu o que equivale em justia

    restaurativa resgatar a autoestima e a dignidade dos que a tiveram subtrada por atos

    autoritrios. Na justia restaurativa o resgate da dignidade das vtimas mais importante que a

    punio dos culpados.

    A pergunta que ecoa longe quanto tempo pode durar a transio? A transio tem data

    para comear? e qual a data para terminar?

    Wladimir Safatle, autor, colunista da Revista Carta Capital, in nmero 788, de 26 de

    fevereiro de 2014, assinou o artigo A eterna transio. No referido artigo o jornalista afirma

    que no Brasil vende-se a falsa verso de que o Brasil seria um pas de reconciliao fcil, capaz

    34 Idem 332.p.212.

  • 32

    de mobilizar todos os setores da sociedade para uma superao de traumas passados. No

    mesmo artigo o jornalista afirma que os traumas no so superados simplesmente por nunca

    serem nomeados pelo fato de no os enfrentarmos, como mostram as reflexes sobre os 50

    anos do golpe. Suas principais crticas dizem respeito matria veiculada e atribuda ao general

    Rmulo Beni Pereira35 que sem qualquer sentimento de constrangimento tratou da grandeza

    da Revoluo de 64 e do prprio veculo de comunicao que teve participao de apoio aos

    militares que deram o golpe.

    Por fim o articulista reclama a necessidade de se colocar claramente como objetos de

    repdio pblico aqueles que destruram no apenas 20 anos da histria brasileira e contriburam

    para um presente ainda assombrado pelos piores fantasmas. De fato, chama a ateno o fato

    de o regime autoritrio ter sido deposto e os ex-representantes continuarem com posturas

    ufanistas.

    A corrente majoritria faz coro com o articulista quando defende que a transio no tem

    data predeterminada. Enquanto subsistirem reminiscncias do passado autoritrio vigora a

    necessidade de ao de polticas que restabeleam as condies de convivncia democrtica e

    a transio segue inconclusa.

    A Justia de Transio diz respeito exigncia tica, moral, antropolgica para o

    conhecimento da verdade onde prevaleceu o obscurantismo e a mentira, para o resgate da

    memria onde o silncio autoritrio imps o esquecimento obsequioso, para a prtica da justia

    como condio da prevalncia da paz e para a concesso do perdo como gesto de repactuao

    com os que se arrependeram e assumem efetivos compromissos de no repetio.

    Os regimes de exceo decorrentes de guerra, conflitos raciais, tnicos, religiosos,

    ditaduras, causam prejuzos individuais e coletivos, violam os direitos individuais e

    desumanizam os perpetradores, agentes pblicos e outros indivduos envolvidos nas agresses.

    A Justia de Transio estabelece as regras democrticas de convivncia e de

    desenvolvimento coletivo e celebra uma nova legislao que visa a manuteno da paz e a no

    repetio dos erros do passado.

    35 General de Exrcito da RI (da Reserva) foi chefe de Estado-Maior da Defesa (2004)

  • 33

    A Justia de Transio mais ampla que a justia praticada pelos poderes constitudos.

    Isto decorre da necessidade que ela tem de contar com o especfico das instituies e se valer

    do melhor de todos para o resultado almejado. Da se poder afirmar que a Justia de Transio

    supera limites estritos dos poderes executivo, legislativo e judicirio para alcanar a justia no

    sentido amplo.

    As feridas, rupturas, prejuzos de ordem moral, econmica e psicolgica, individuais e

    coletivas decorrentes de violao macia dos direitos humanos, especialmente aquelas

    praticadas por agentes em nome de instituies governamentais, necessitam da profilaxia,

    realizada pelos governos democrticos. o que afirmou a presidente do Chile, Michele

    Bachelet (2006): somente as feridas lavadas podem ser curadas.36

    Para bem cumprir a passagem do autoritarismo para a democracia a Justia de Transio

    recomenda um conjunto de mecanismos para enfrentar o legado de violaes de direitos

    humanos, com vistas a contribuir para o resgate da memria e superar prticas advindas do

    modelo autoritrio.

    Cecilia MacDowell Santos37 em seu artigo Questes de Justia de Transio: a

    mobilizao dos direitos humanos e a memria da ditadura no Brasil, apresentado no

    Seminrio Internacional Represso e Memria Poltica no Contexto Luso-Brasileiro,

    promovido pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra em parceria com a

    Comisso de Anistia do Ministrio da Justia do Brasil, em 21 de abril de 2009, na cidade de

    Coimbra-Portugal,38 relembra que o termo transicional justice (Justia de Transio) foi

    cunhado pela professora Ruti Teitel, em 1991, referindo-se aos processos de transformao

    poltica e jurdica nos contextos de transies para as novas democracias na Amrica Latina

    e na Europa do Leste.

    Para Ruti Teitel Justia de Transio oferece um importante marco terico para se

    compreender as prticas jurdicas, sociais e polticas que envolvem o trabalho da

    memria poltica e da justia histrica, com limites analticos,

    (...)

    36 Disponvel em: S feridas limpas

    podem cicatrizar Michelle Bachelet, entrevista a Der Spiegel, 11/03/06. 37 Santos, Ceclia Macdowell. Professora Associada de Sociologia da University of San Francisco, EEUU. 38 A palestra da prof. Ceclia Macdowell Santos Questes de Justia de transio: a mobilizao dos direitos

    humanos e a memria da ditadura est publicada no livro Represso e Memria Poltica no Contexto Ibero-

    Brasileiro, publicado em 2010 pela Comisso de Anistia/MJ, PNUD, e entidades parceiras. 2012:129

    http://www.trela.com.br/arquivo/S-feridas-limpas-podem-cicatrizar

  • 34

    ... prope uma abordagem indutiva, construtivista e contextualizada da Justia de

    Transio. O Estado de direito adquire caractersticas excepcionais em momentos

    fundacionais como os de transio poltica em oposio a momentos de

    normalidade poltica: tanto prospectivo quanto retrospectivo, contnuo e

    descontnuo, e vai alm de suas funes habituais, interligando-se poltica em um

    esforo construtivo.

    Ainda citando Macdowell a funo do direito promover a construo da mudana

    poltica, manifestaes jurdicas transicionais so mais vivamente afetadas por valores polticos

    em regimes de transio do que em contextos onde o Estado de Direito encontra-se firmemente

    estabelecido por esta poltica. Em momentos de transio, diferentes ramos do direito

    contribuem para transformaes radicais da comunidade poltica, e o direito orienta-se para um

    novo paradigma. Argumenta a autora que, nos momentos de transio poltica, o direito tanto

    constitutivo da poltica de transio, como constitudo: a jurisprudncia de transio.

    Distinto do que se possa sugerir no existe um s modelo de Justia de Transio. A

    histria de cada povo, com sua cultura, a dominao sofrida, a condio poltica, sobretudo,

    determina os modelos adotados no perodo ps conflito.

    Simone Rodrigues Pinto,39 in Memria, verdade e responsabilidade, descreveu trs

    processos de pases envolvidos em graves violaes de direitos humanos e processos de Justia

    de Transio, Ruanda, frica do Sul e Serra Leoa: 40

    Primeiro caso: Ruanda. A autora tratou do genocdio ocorrido em 1994. Em Ruanda,

    afirma a autora, foram empregadas para dirimir as controvrsias e julgar centenas de acusados

    de agresso e morte de membros da etnia oponente, aproximadamente oitocentos mil pessoas,

    assassinadas num perodo de cem dias, modelos de justia adversativa e retributiva e tambm

    o Tribunal Internacional, sediado em Arusha para julgar os mentores do massacre, tribunais

    locais e alternativas domesticas. Contudo, este modelo encontrou grande dificuldade para

    contribuir com a reconciliao social daquele pas, no dizer da autora, rasgado pela rivalidade

    tnica41. Sem estrutura e com graves denncias de corrupo o Tribunal Internacional tem um

    grande gasto, um nmero pequeno de julgamentos e de condenao. Uma contradio existe

    entre o Tribunal Internacional e o Domstico, enquanto o Tribunal Internacional no aplica a

    39PINTO, Rodrigues Pinto. Memria, verdade e responsabilidade, Editora UNB,Universidade de Brasilia

    19:127ss2012 40 Idem 20:2012 41 Idem 20:2012

  • 35

    pena de morte o Tribunal Domestico a aplica. O Tribunal Domstico pautado de rigoroso

    formalismo de procedimentos judiciais, adepto da tradio germnica-romana e se vale da

    lngua francesa mesmo que esta no seja falada em algumas partes do pas. Nem o Tribunal

    Internacional nem o Domstico tem sido capazes de evitar as divises internas que se acirraram,

    perpetuando a oposio entre vtimas e perpetradores, tutsis e hutus. Simone Pinto considera

    que o afastamento da comunidade no processo seja negativo, dificultando o restabelecimento

    das relaes sociais prprias no processo de dilogo e da expresso dos sentimentos. Aps seis

    anos da priso dos acusados, Ruanda despertou para necessidade de experimentar uma nova

    frmula de justia, os chamados tribunais gacaca, formados pela prpria comunidade local, que

    aplicavam medidas de restaurao psicossocial das vtimas e de reintegrao dos perpetradores

    e que, diante da incapacidade dos meios formais de justia, buscavam uma resposta mais eficaz

    frente ao desafio do restabelecimento do convvio social e pacifico e solidrio.42

    O segundo caso cronologicamente anterior ao de Ruanda, tratou o processo de transio

    ps-apartheid na frica do Sul43. Nesse processo, em lugar de uma concepo de justia

    retributiva, o que se buscou com a Comisso da Verdade e Reconciliao foi uma nova viso

    de justia, centrada no perdo e na restaurao da dignidade das vtimas e dos acusados. A

    frica do Sul insere-se no grupo de pases envolvidos em conflitos que optou por valorar

    prioritariamente a busca da verdade e o reconhecimento dos prejuzos causados em lugar da

    punio. Com forte influncia religiosa a comisso da verdade e reconciliao foi presidida pelo

    bispo anglicano Desmond Tutu. Simone Rodrigues Pinto lembra que o bispo africano um dos

    maiores defensores das comisses da verdade e da justia restaurativa e que para ele esta forma

    de justia no est baseada apenas em ideias crists de perdo para aqueles que reconhecem

    seus erros mas tambm no conceito indgena africano de ubuntu44 . Ubuntu na tradio africana

    est ligada busca de harmonia social. Nas palavras de Tutu: Um ser humano s um ser

    humano atravs dos outros e se um deles humilhado ou diminudo o outro ser igualmente.

    E o terceiro caso o de Serra Leoa. Serra Leoa tambm procedente de uma histria de

    sujeio s colnias. Rica em minrios, especialmente diamantes, herdeira de um passado de

    escravido e disputas internas, aps 11 anos de guerra civil, sanguinria, com requintes de

    perversidade com prticas reiteradas de amputaes, o pas logrou em 1998 um acordo de paz

    42 Idem 20:2012 43 Idem 2012:167 44 PINTO, Simone Rodrigues. Memria, verdade e responsabilidade Uma perspectiva restaurativa de justia

    transicional Universidade de Braslia Editora UNB 2012:178

  • 36

    que consistia em anistia geral, desarmamento e desmobilizao das tropas e o estabelecimento

    de uma comisso da verdade e reconciliao45. Contudo o representante especial da ONU fez

    constar no Acordo que a anistia e o perdo no se aplicavam a crimes internacionais de

    genocdio, crimes contra humanidade, crimes de guerra e outras srias violaes do direito

    humanitrio internacional. Tempos depois essa ressalva se tornou o fundamento do

    estabelecimento da Corte Especial em Serra Leoa. Alm de outras medidas de carter poltico

    e administrativo as partes tambm concordaram com a criao de uma fora de paz neutra,

    formada por um contingente de pas diversos (RASHID, 2000). Em maro de 2002 foram

    realizadas eleies presidenciais e parlamentares com a participao das foras rebeldes da

    Frente Revolucionria Unida FRU - inaugurando perodo considerado exemplar para as

    Naes e grupos que vivem conflito.46

    Enquanto Ruanda representa a nfase nos modelos de justia retributiva e adversativa

    (com exceo dos tribunais gacaca) e a frica do Sul surge como exemplo de opo poltica

    pela justia restaurativa e dialgica, Serra Leoa tenta conjugar os dois modelos, por meio da

    Comisso da Verdade e Reconciliao e a Corte Especial ambas com a funo de promover a

    reconciliao nacional.47 A deciso do Conselho de Segurana da ONU, de agosto de 2009, foi

    pelo estabelecimento de um tribunal para os crimes de guerra e para as violaes dos direitos

    humanos, dotando um modelo diferente dos tribunais internacionais da Iugoslvia e de Ruanda.

    O principal objetivo do processo visava a reintegrao das mulheres que sofreram abusos

    sexuais e escravido e das crianas transtornadas pela guerra.

    Em junho de 2000, o ento presidente de Serra Leoa, Almad Tejam Kabbah, escreveu ao

    secretrio-geral da ONU requerendo a assistncia das Naes Unidas para estabelecer uma corte

    a fim de julgar pessoas que cometeram atrocidades no pas. Em 14 de agosto do mesmo ano, o

    Conselho de Segurana aprovou a resoluo que permitiu que a Corte Especial fosse

    estabelecida. A resoluo requeria ao secretrio-geral a negociao de um acordo com o

    governo de Serra Leoa para a construo da corte. O acordo de Lom, firmado entre o Governo

    de Serra Leoa e a Frente Revolucionria Unida FRU - garantiu liberdade e perdo absoluto

    45 Idem 2012:203 46 Idem 2012:193 47 Idem 2012:195

  • 37

    s pessoas que participaram da guerra em Serra Leoa, desde 1991, por qualquer ato durante o

    curso do conflito, antes da assinatura em 07 de julho de 1999.48

    Um dos graves crimes praticados em Serra Leoa foi contra crianas que foram recrutadas

    para guerra, com idade inferior a 15 anos. Sob efeito de drogas pesadas as crianas praticaram

    terrveis violaes contra os direitos humanos. Sua reabilitao e reinsero sociedade

    representa uma das maiores tarefas relativas reconstruo do pas.

    Se a idade poca atestava serem crianas, por outro lado muitas crianas tinham cargo

    de comando nas foras da Frente Revolucionria Unida FRU, o que impe medidas punitivas

    adequadas necessidade de proteo da infncia.

    A Corte Especial tomou caractersticas diferentes das anteriores, no tratou de ser uma

    Corte puramente internacional nem exclusivamente domstica de Serra Leoa. uma mistura

    de dois sistemas, com aplicao do direito internacional e a lei interna do pas.

    Teitel descreve as fases distintas da Justia de Transio e destaca que o Estado de Direito

    adquire caractersticas excepcionais em momentos fundamentais como os de transio

    poltica (em oposio a momentos de normalidade e poltica) tanto prospectivo quanto

    retrospectivo, contnuo e descontnuo, vai alm de suas funes habituais, interligando-se a um

    esforo construtivo. O estado de direito encontrado visa promover a construo da mudana

    poltica, manifestaes jurdicas transicionais so mais vivamente afetadas por valores polticos

    em regimes de transio do que em contextos onde o Estado de Direito encontra-se firmemente

    estabelecido. 49

    salutar que se reafirme que as origens da Justia de Transio moderna remontam

    Primeira Guerra Mundial. Contudo, a Justia de Transio comea a ser compreendida como

    extraordinria e internacional no perodo do ps-guerra, depois de 1945. Esta segunda fase se

    associa com a onda de transies at a democracia e modernizao que comeou em 1989. At

    48PINTO, Rodrigues Pinto. Memria, verdade e responsabilidade, Editora UNB,Universidade de Brasilia

    203:2012 49 TEITEL, Ruti in Justia de Transio Manual para a Amrica Latina Conceitos e Debates para Justia de

    transio Produto do Acordo de Cooperao Tcnica BRA/08/021 Cooperao para o intercmbio

    internacional, desenvolvimento e ampliao das Polticas de Justia de transio no Brasil, firmado entre a

    Comisso de Anistia do MJ, MRE e PNUD e desenvolvida pelo ICTJ Braslia 2011:215

  • 38

    o final do sculo XX a poltica mundial se caracterizou por uma acelerao em resoluo de

    conflitos e um persistente discurso por justia no mundo do direito e sociedade.

    Por fim a terceira fase, o estado estvel, na qual a Justia Transicional est associada com

    as condies contemporneas do conflito persistente que alcanam as bases para estabelecer

    como normal um direito de violncia.

    A Profa. Teitel, em artigos publicados in Harvard Human Rights Journal (2003),

    Transitional Justice Genealogy e Manual para a Amrica Latina, 2011, apresenta a Justia

    de Transio como concepo de justia associada com perodos de mudanas polticas

    caracterizados por respostas legais contra os perpetradores de crimes de regimes do passado.

    No estudo da evoluo do conceito de justia transicional durante os perodos de mudana

    poltica, a partir dos acontecimentos da segunda metade do sculo XX, Teitel fez importantes

    observaes e identificou trs fases no que chamou Genealogia da Justia Transicional. Teitel

    afirma que a genealogia da justia transicional demonstra, atravs do tempo, uma relao

    prxima entre o tipo de justia que se almeja e as restries politicas relevantes. Atualmente,

    aponta a especialista em Justia de Transio, que o discurso est voltado para preservar um

    Estado de Direito mnimo, identificado com a conservao da paz. No entanto, a autora deixa

    claro que no se trata de separaes acsticas que dividiam estas fases e que muito

    possivelmente existem superposies entre as trs fases propostas50.

    Assim se verifica que as origens da Justia Transicional moderna remontam ao tempo da

    Primeira Guerra Mundial. A primeira fase, que corresponde ao modelo de Justia de Transio

    posterior a Segunda Guerra Mundial, cujo objetivo central era o de delinear a guerra injusta e

    demarcar o parmetro de uma punio justificvel imposta pela comunidade internacional.

    Depreende-se nessa fase o alcance dos procedimentos internacionais, especialmente a propsito

    da soberania nacional e governabilidade internacional reconhecido por aqueles pases

    envolvidos.51

    50 TEITEL, Ruti in Justia de Transio Manual para a Amrica Latina Conceitos e Debates para Justia de

    transio Produto do Acordo de Cooperao Tcnica BRA/08/021 Cooperao para o intercmbio

    internacional, desenvolvimento e ampliao das Polticas de Justia de Transio no Brasil, firmado entre a

    Comisso de Anistia do MJ, MRE e PNUD e desenvolvida pelo ICTJ Braslia 2011:136 48 TEITEL, Ruti in Justia de Transio Manual para a Amrica Latina Conceitos e Debates para Justia de

    Transio 2011:139

  • 39

    Entretanto, a Justia Transicional comea a ser entendida como extraordinria e

    internacional no perodo ps-guerra de 1945. A Guerra Fria termina com o internacionalismo

    desta primeira fase, ou fase ps-guerra, da justia transicional. A autora admite que

    indubitavelmente, h exemplos anteriores no sculo, porm so respostas de pequena

    escala52.

    A segunda fase, ou fase do ps-Guerra Fria, est associada a um perodo de acelerada

    democratizao na Amrica Latina e tambm no Leste Europeu, frica e Amrica Central e foi

    caraterizada como terceira onda de transies. Na Amrica associa-se com as ondas das

    transies para a democracia e modernizao iniciadas em 1989. At o final do sculo XX, a

    poltica mundial se caracterizou por uma acelerao na resoluo de conflitos e um persistente

    discurso por justia no mundo do direito e na sociedade. A marca proeminente desta fase so

    os Tribunais de Nuremberg conduzidos pelos aliados.

    A importncia do significado do modelo de Nuremberg deve-se adoo, em termos

    universalizantes da definio do Estado de Direito. Enquanto a fase I simplesmente assumiu a

    legitimidade de punir os abusos aos direitos humanos, na fase II a tenso entre punio e anistia

    implicou maior desafio com a admisso e reconhecimento dos dilemas prprios aos perodos

    de mudanas polticas. Nesta fase a Justia de Transio indica que os valores relevantes no

    eram exatamente aqueles do Estado de Direito ideal cujo propsito era promover e consolidar

    a legitimidade, os princpios do pragmatismo guiaram a poltica de justia e o sentido de adeso

    ao Estado de Direito.

    Em contrapartida da jurisprudncia transicional se vinculou a uma concepo de justia

    imparcial e imperfeita e em decorrncia surgiram mltiplas concepes de justia na fase II.

    O propsito de fazer valer a responsabilidade dos fatos por meio do direito penal, com

    frequncia gerou dilemas prprios incluindo a retroatividade da lei, a alterao e manipulao

    indevida de leis existentes, um alto grau de seletividade na submisso de processos e um poder

    judicial sem suficiente autonomia.

    52 Idem 2011:137

  • 40

    Na terceira fase o estado estvel (steady-state) da justia transicional caracteriza-se pelo

    fenmeno de acelerao da justia transicional de fim de sculo, associada com a globalizao

    e tipificada por condies de marcada violncia e instabilidade poltica. A justia transicional

    altera-se de exceo da norma para converter-se em um paradigma do Estado de Direito. Nesta

    fase contempornea, a justia humanitria, construindo para o direito uma organicidade

    associada a conflitos universais, contribuiu assim para o estabelecimento das fundaes do

    emergente direito sobre terrorismo.53

    Durante o perodo compreendido entre uma e outra guerra, o objetivo central da justia

    transicional era delinear a guerra injusta e demarcar os parmetros de punio justificvel de

    acordo com a comunidade internacional. As perguntas formuladas inferiam se a Alemanha

    devia ser punida, e em caso positivo de que forma, com que castigo por sua agresso. Tambm,

    at que ponto e que com