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Para David e Ceán: vocês são muito, muito depravados.

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Eu não deixei de bater punhetas por não serboa. Eu deixei de bater punhetas por ser a melhor.

Durante três anos, bati as melhores punhetasda área de três Estados. O segredo é não pensardemais. Se uma pessoa se começa a preocuparcom a técnica, se começa a analisar o ritmo e apressão, perde a essência da natureza do ato. Temde se mentalizar antes, depois tem de parar depensar e confiar no próprio corpo para assumir ocontrolo.

Basicamente, é como uma tacada no golfe.Fiz homens virem-se seis dias por semana,

oito horas por dia, com uma pausa para almoçar, ea minha agenda estava sempre cheia. Tirava duassemanas de férias todos os anos e nunca trabalha-va nessa altura, porque punhetas de férias são umatristeza para toda a gente. Assim, em três anos, a

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minha estimativa é que tenha chegado a 23 546punhetas. Portanto, não liguem àquela cabra daShardelle quando diz que desisti porque não tinhatalento.

Desisti porque, quando se bate 23 546 pu-nhetas durante um período de três anos, a síndro-me do canal cárpico torna-se uma coisa muitoconcreta.

Cheguei a esta minha atividade de forma ho-nesta. Talvez «natural» seja um termo melhor.Nunca na vida fiz grande coisa honestamente. Fuicriada na cidade por uma mãe zarolha (a frase deabertura da minha autobiografia) e ela não erauma senhora simpática. Não tinha problemas comdrogas nem com álcool, mas tinha um problemacom o trabalho. Era a cabrona mais preguiçosaque eu já conheci. Duas vezes por semana, íamospara as ruas da baixa pedir. Mas como a minhamãe detestava estar de pé, queria ter uma estraté-gia para aquilo. Obter o máximo de dinheiro nomínimo tempo possível e depois ir para casa co-mer bolos zebra e ver reality shows de casos justiça,instalada no nosso colchão partido, entre as nó-doas. (É aquilo de que mais me lembro da minhainfância: nódoas. Não saberia dizer a cor dos olhosda minha mãe, mas posso dizer que a nódoa do

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tapete felpudo era de um castanho profundo, corde molho, e as nódoas do teto eram laranja quei-mado e as das paredes eram de um amarelo elétri-co, de mijo de ressaca.

Eu e a minha mãe vestíamo-nos para o papel.Ela tinha um lindo vestido de algodão desbotadoe coçado, mas todo ele gritando decência. A mimvestia-me qualquer coisa que tivesse deixado deme servir. Sentávamo-nos num banco a escolheras pessoas certas a quem pedir. É um esquemabastante simples. A primeira escolha é um autocar-ro de uma igreja de fora da cidade. As pessoas daigreja da cidade mandam-nos ir à igreja e pronto.As de fora geralmente têm de ajudar, especialmen-te uma senhora zarolha com uma miúda de caratristonha. A segunda escolha é um par de mulhe-res. (As mulheres sozinhas podem afastar-se dispa-radas muito depressa; a um grupo de mulheres émuito difícil sacar.) A terceira escolha é uma mu-lher sozinha que tenha aquele ar aberto. Sabemcomo é: a mesma mulher que paramos para per-guntar direções ou a hora, é a essa mulher que pe-dimos dinheiro. E também homens mais para onovo, com barba e guitarra. Não parem homens

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de fato: esse cliché é verdadeiro, são todos parvos.E deixem passar também os de anel no polegar.Não sei porquê, mas os homens de anel no pole-gar nunca ajudam.

Os que nós escolhíamos? Não lhes chamáva-mos alvos, nem presas, nem vítimas. Chamáva-mos-lhes Tonys, porque o nome do meu pai eraTony e ele nunca sabia dizer que não a ninguém(se bem que parta do princípio de que tenha ditonão à minha mãe pelo menos uma vez, quando elalhe pediu que ficasse).

Quando se para um Tony, percebe-se logoem dois segundos de que maneira pedir. Algunsquerem que aquilo acabe depressa, como num as-salto. Disparamos: «Precisamosdedinheiropraco-mertemunstrocos?» Outros querem deleitar-secom a nossa desgraça. Só dão dinheiro se lhes der-mos alguma coisa que os faça sentir-se melhor e,quanto mais triste a nossa história, melhor se sen-tem com a ideia de nos ajudar e mais dinheiro nosdão. Isto não é uma crítica. Vai-se ao teatro parase ter entretenimento.

A minha mãe tinha sido criada numa quintamais para sul do nosso Estado. A mãe dela mor-reu ao dar à luz; o pai cultivava soja e criava a filha

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quando não estava demasiado exausto. Mudou-separa aqui com o intuito de ir para a universidade,mas o pai ficou doente com cancro e a quinta foivendida, ela deixou de ter uma vida remediada efoi obrigada a desistir. Trabalhou como empregadade mesa durante três anos, mas apareceu a meni-na, e o pai da menina foi-se embora, e sem darpor isso... contava-se entre eles. Os necessitados.Não tinha orgulho nisso...

Estão a ver a ideia. Isto era só o começo dahistória. Pode-se continuar a partir daqui. Percebe--se muito depressa se a pessoa quer uma históriade fibra, de alguém que fez das tripas coração: nessecaso, eu tornava-me de imediato aluna de quadrode honra numa escola autónoma bastante longe(e era mesmo, mas a questão aqui não é a verdade)e a minha mãe só precisava de dinheiro para a ga-solina para me levar lá (na verdade, eu apanhavatrês autocarros sozinha). Ou se a pessoa quer umahistória «que se lixe o sistema»: então, eu sofriaimediatamente de uma doença rara (que recebia onome do parvalhão com quem ela andasse na altura— síndrome Todd-Tychon, doença de Gregory--Fisher) e os meus infortúnios de saúde tinham--nos deixado sem chavo.

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A minha mãe era astuta, mas preguiçosa. Euera muito mais ambiciosa. Tinha vitalidade aosmontes e zero de orgulho. Quando cheguei aostreze anos, já conseguia mais centenas de dólaresem esmolas por dia do que ela e, aos dezasseis, jáa tinha deixado, mais às nódoas e à televisão — e,sim, ao liceu — para pedir sozinha. Saía todas asmanhãs para a rua e pedia durante seis horas. Sa-bia quem devia abordar, por quanto tempo e exa-tamente o que dizer. Nunca tive vergonha. O queeu fazia era uma transação pura: faz-se com queuma pessoa se sinta bem e ela dá dinheiro em troca.

Portanto, podem ver que toda a história daspunhetas foi para mim como que uma progressãonatural na carreira.

Palmas Espirituais (a culpa não é minha, nãofui eu que lhe dei o nome) situava-se num bairroTony, a oeste da baixa. Cartas de tarô e bolas decristal à frente, sexo soft-core e ilegal nos fundos.Eu tinha respondido a um anúncio para rececio-nista. Acontece que «rececionista» significava «pu-ta». Viveca, a minha patroa, é uma antiga rececio-nista e atual quiromante bona fide. (Se bem queViveca não seja o nome bona fide dela, o seu nome

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bona fide é Jennifer, mas ninguém acredita que asJennifers saibam dizer o futuro; as Jennifers po-dem dizer quais são os sapatos giros que devemoscomprar ou a que mercado agrícola devemos ir,mas devem manter as mãos afastadas do futurodos outros.) A Viveca dá emprego a videntes naparte da frente e gere um quartinho muito asseadolá atrás. O quarto dos fundos parece o gabinete deum médico: tem rolos de papel, desinfetante euma marquesa. As raparigas conferem-lhe texturacom lenços colocados sobre as lâmpadas, potpourri ealmofadas com lantejoulas — todas essas coisas comque só raparigas muito femininas se podiam preo-cupar. Quer dizer, se eu fosse um gajo à procurade uma rapariga a quem pagar para me bater uma,não entrava no quarto a dizer: «Meu Deus, sintoum cheirinho a strudel acabado de fazer e noz--moscada... depressa, agarra-me na pila!» Eu entra-va no quarto e dizia muito pouco, que é o que amaior parte faz.

O homem que vem para as punhetas é único.(E nós aqui só batemos punhetas, ou pelo menoseu só bato punhetas — tenho registo de prisãopor uns quantos furtos menores, umas coisas estú-pidas que fiz aos dezoito, dezanove, vinte anos,que vão garantir que eu nunca, mas nunca consiga

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arranjar um trabalho decente e, portanto, não pre-ciso de colocar um busto sério de prostituta emcima disso.) Os tipos das punhetas são criaturasmuito diferentes dos que querem broches ou dosque querem sexo. É verdade que para alguns ho-mens uma punheta é uma mera antecâmara do atosexual. Mas eu tinha montes de clientes que volta-vam: eles nunca hão de querer mais do que umapunheta. Não a consideram uma traição. Ou entãotêm medo das doenças, ou nunca têm coragem depedir mais do que isso. A tendência é que sejamhomens casados tensos e nervosos, com trabalhosmedianos, sobretudo sem poder nenhum. Não es-tou a fazer juízos de valor, limito-me a dar o meuparecer. Querem que sejamos atraentes, mas nãoumas putéfias. Por exemplo, na minha vida realuso óculos, mas não os ponho quando estou láatrás porque são motivo de distração: ficam a pen-sar que vou representar o papel de BibliotecáriaSensual para eles, o que os deixa tensos, à esperados primeiros acordes de uma canção dos ZZTop, e depois não a ouvem e ficam envergonha-dos por terem pensado que eu ia fazer de Bibliote-cária Sensual e depois distraem-se e aquilo tudo levamais tempo do que seria desejável para qualquerdas partes.

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Querem que sejamos simpáticas e agradáveis,mas fracas não. Não se querem sentir predadores.Querem que isto seja uma transação. Orientadapara o serviço ao consumidor. De maneira que sefaz um bocadinho de conversa de cortesia sobre otempo e um clube de futebol de que eles gostem.Geralmente, tento arranjar uma piada privadaqualquer que possamos repetir em todas as visitas:uma piada privada é como um símbolo de amiza-de sem o trabalho que uma verdadeira amizade dá.Portanto, diz-se Vejo que os morangos estão maduros!ou Precisamos de um barquinho maior (estas piadas pri-vadas são reais), e depois quebra-se o gelo e elesnão se sentem uns montes de merda porque so-mos amigos, instala-se o clima certo e uma pessoapode atirar-se à tarefa.

Quando as pessoas me fazem aquela pergun-ta que toda a gente faz, «O que faz?», eu digo«Trabalho na área do serviço ao cliente», o que éverdade. Para mim, um bom dia de trabalho équando se faz muita gente sorrir. Eu sei que istoparece muito profissional, mas é verdade. Quer di-zer, eu preferia ser bibliotecária, mas preocupa-menão ser um trabalho estável. Os livros podem sertemporários; as pilas são para sempre.

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O problema é que o meu pulso estava a darcabo de mim. Ainda mal tinha chegado aos trintae já tinha o pulso de uma octogenária, com umaligadura de desporto nada sexy a condizer. Tirava-aantes do trabalho, mas aquele barulho do velcro adescolar deixava os homens um bocadinho nervo-sos. Um dia, a Viveca foi fazer-me uma visita aosfundos. É uma mulher pesada, parece um polvo— montes de contas e folhos e lenços a esvoaçarà volta dela, a par de um cheiro intenso a água-de--colónia. Tem o cabelo pintado da cor de ponchede fruta e insiste que é a cor natural. (Viveca: filhamais nova de uma família de classe baixa; indulgente comas pessoas de quem gosta; chora a ver anúncios; múltiplastentativas falhadas de se tornar vegetariana. É só umpalpite.)

— Tu és médium, Croma? — perguntou ela.Chamava-me Croma porque eu usava óculos,

lia livros e comia iogurte à hora de almoço. Nãosou mesmo croma, sou só aspirante. Devido àque-la história de ter desistido do liceu, sou autodidata.(Não é uma palavra obscena, vão ver ao dicioná-rio.) Estou constantemente a ler. Penso. Mas falta--me formação. Portanto, tenho a sensação de quesou mais esperta do que toda a gente à minha vol-ta, mas que, se alguma vez me aproximasse de

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pessoas realmente espertas — pessoas que anda-ram na universidade, que bebem vinho e falam la-tim —, elas morreriam de tédio comigo. É umamaneira solitária de se estar na vida. Portanto, usoo nome como se fosse uma medalha de honra.Que possa um dia não aborrecer completamentealgumas pessoas realmente muito espertas. A ques-tão é: como é que se encontram pessoas espertas?

— Médium? Não.— Vidente? Alguma vez tiveste visões?— Não.Achava que aquelas tretas todas de prever o

futuro eram fé di ver, como dizia a minha mãe. Elaera mesmo de uma quinta mais no sul do Estado,essa parte era verdade.

A Viveca parou de brincar com uma das suascontas.

— Croma, eu estou aqui a tentar ajudar-te.Percebi. Geralmente, não sou assim tão lenta,

mas tinha o pulso a latejar. Era aquele tipo de dorque distrai, em que a única coisa em que se conse-gue pensar é como acabar com ela. Além disso, eem minha defesa, a Viveca geralmente só faz per-guntas para poder falar, não quer saber das res-postas.