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Nº 14 - 17 de Julho de 2014 Levi Martins A última encenação de Joaquim Benite no Festival de Edimburgo O documentário de Catarina Neves A última encenação de Joaquim Benite: não basta dizer “não”, foi seleccionado para o Festival de Edimburgo, e será apresen- tado no Espaço Summerhall no próximo dia 11 de Agosto. O crítico do semanário escocês Sunday Herald, Mark Brown, que escreveu em A fitting tribute to Joaquim Benite as linhas que seguem a propósito da sua estreia no ano passado, será o moderador da conversa com a documentarista que se seguirá à apresentação. O momento alto da minha bre- ve estada no Festival de Al- mada 2013 foi a projecção do documentário A última encenação de Joaquim Benite: não basta di- zer “não”, de Catarina Neves. Devo dizer que a Catarina e eu somos amigos. Seria absurdo, no entanto, não escrever uma crítica sobre o Programa do Festival de Almada 2013 sem fazer referên- cia a este filme, que foi aplaudido de pé quando foi apresentado na Sala Principal do Teatro Muni- cipal Joaquim Benite durante o Festival, e subsequentemente no prestigiado festival de cine- ma documental Doclisboa, onde ganhou o cobiçado Prémio do Público. Para além disso, sempre tomei como princípio fazer crítica sem misericórdia nem malícia”, e tenho a minha integridade profis- sional em demasiada estima para a manchar com outra que não a minha mais ponderada opinião do filme de Catarina Neves. Tendo isto em consideração, pos- so escrever com absoluta candu- ra que, como os espectadores de Almada e Lisboa, também eu vejo o documentário como um relato fascinante e, a tempos, profunda- mente tocante, do trabalho teatral de Benite e da sua vida. O filme inicia-se e acaba com excertos de entrevistas com os netos de Beni- te filmadas depois da sua morte. A maior parte do conteúdo, no entanto, é retirada do processo de ensaios da sua última encenação, Timão de Atenas, de Shakespeare (Benite faleceu dias antes da es- treia do espectáculo). Tendo conhecido bem Benite, tanto enquanto jornalista particu- lar interessada por teatro como enquanto amiga de longa data do Festival de Almada, Catarina Ne- ves obteve um acesso excepcio- nal à sala de ensaios. Aí observa- mos como o encenador, cingido a uma cadeira de rodas, era ele próprio apenas quando fazia te- atro. Criando a sua encenação mediante uma combinação de juízos estéticos e uma panóplia de observações políticas e filosó- ficas inspiradas pelo texto, não vemos acontecer na sala de en- saios de Benite o colectivismo da moda mas sim uma ditadura be- nevolente. Um homem prático de teatro, acima de tudo, Benite não poupa os seus actores, exigindo que o ego e mesmo os sentimen- tos devam ser postos de lado de maneira a rapidamente se debru- çarem sobre o problema estético que se lhes apresenta. O resulta- do é ocasionalmente uma tensão criativa, mas em última análise abona muito em favor de Benite e do seu elenco. O momento mais poderoso do fil- me chega com o anúncio da morte de Benite. Neves estava na sala de ensaios – onde Rodrigo Francisco tomava o lugar de Benite, que tinha sido levado para o hospital – no momento em que foi dada a notí- cia. Segue-se um momento de bri- lhante eficácia de realização. Após um breve e negro silêncio, vemos o Timão da encenação de Benite, nu, despojado da sua anterior ri- queza, do seu poder, mesmo das suas roupas; ele aparece-nos em toda a sua humana vulnerabilida- de, um homem comum que como todos nós se desloca do berço para a cova. Uma imagem consen- tânea com o momento emocional, uma bela e visualmente dramática metáfora. Um momento e um fil- me, os quais, certamente, Benite teria aprovado. Sem título O s mais corajosos (ou temerários) decidem enfrentar escarpas rochosas, montanhas que se perdem de vista nos céus, cordas esticadas entre prédios, circuitos de fórmula um, centenas de metros de profundidade, temperaturas que conge- lam os membros, gravi- dade zero, touros bravos. Mas só mesmo os mais corajosos (ou temerários) decidem enfrentar as ou- tras pessoas. Quando se trata dos elementos não há afecto que nos salve. É com absoluta indiferença que nos destroem. Abso- luta arbitrariedade. Não interessa a nossa histó- ria, o nosso nome, onde moramos, quanto ganha- mos. Nada. O que torna tudo bastante simples e mais ou menos linear. Sobrevive-se, morre-se, não há muitas opções. Já quando se trata da rela- ção com os outros, tudo é extraordinariamente complexo. Se dissermos a verdade – seja lá o que isso for, porque nunca parecemos concordar –, os efeitos podem ser tão diversos que trememos só de imaginar o número de possibilidades. Mas, no fundo, todas estas possibilidades acabam por partir de duas ou três ideias muito simples. Te- mos medo de entrar em conflito. Medo de cortar relações com os outros. De confiarmos e sermos traídos. A natureza não nos pode trair porque também não nos pode amar. E todos queremos ser amados. ESPECTÁCULO DE HONRA 2015: A VOTAÇÃO Amanhã o público poderá escolher o Espectáculo de Honra 2015: um boletim será entregue antes de As irmãs Macaluso, no Palco Grande da Escola D. António da Costa, e o resultado será anunciado no final do espectáculo. Do boletim constarão os seguintes espectáculos: Branca de Neve Canções i comentários Almada de Quarentena Um fio de jogo Círculo de transformação em espelho Impalpável Al Pantalone Macbeth segundo Shakespeare O tempo todo inteiro Ode marítima A verdade Fauna O regime da ração Suado Prisão de Ocaña Os negros e os deuses do Norte Libretto Arraial deluxe Alemanha Os Lusíadas

Sunday Herald, Mark Brown, que escreveu em Benite ... ESPLANADA PRATOS DO DIA – Salsichas – Peixe espada com açorda de tomate SOBREMESA – Mousse – Arroz doce – Semi-frio

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Page 1: Sunday Herald, Mark Brown, que escreveu em Benite ... ESPLANADA PRATOS DO DIA – Salsichas – Peixe espada com açorda de tomate SOBREMESA – Mousse – Arroz doce – Semi-frio

Nº 14 - 17 de Julho de 2014

Levi Martins

A última encenação de Joaquim Beniteno Festival de EdimburgoO documentário de Catarina Neves A última encenação de Joaquim Benite: não basta dizer “não”, foi seleccionado para o Festival de Edimburgo, e será apresen-tado no Espaço Summerhall no próximo dia 11 de Agosto. O crítico do semanário escocês Sunday Herald, Mark Brown, que escreveu em A fitting tribute to Joaquim Benite as linhas que seguem a propósito da sua estreia no ano passado, será o moderador da conversa com a documentarista que se seguirá à apresentação.

O momento alto da minha bre-ve estada no Festival de Al-mada 2013 foi a projecção do

documentário A última encenação de Joaquim Benite: não basta di-zer “não”, de Catarina Neves. Devo dizer que a Catarina e eu somos amigos. Seria absurdo, no entanto, não escrever uma crítica sobre o Programa do Festival de Almada 2013 sem fazer referên-cia a este filme, que foi aplaudido de pé quando foi apresentado na Sala Principal do Teatro Muni-cipal Joaquim Benite durante o Festival, e subsequentemente no prestigiado festival de cine-ma documental Doclisboa, onde ganhou o cobiçado Prémio do Público. Para além disso, sempre tomei como princípio fazer crítica “sem misericórdia nem malícia”, e tenho a minha integridade profis-sional em demasiada estima para a manchar com outra que não a minha mais ponderada opinião do filme de Catarina Neves.

Tendo isto em consideração, pos-so escrever com absoluta candu-ra que, como os espectadores de Almada e Lisboa, também eu vejo o documentário como um relato fascinante e, a tempos, profunda-mente tocante, do trabalho teatral de Benite e da sua vida. O filme inicia-se e acaba com excertos de entrevistas com os netos de Beni-

te filmadas depois da sua morte. A maior parte do conteúdo, no entanto, é retirada do processo de ensaios da sua última encenação, Timão de Atenas, de Shakespeare (Benite faleceu dias antes da es-treia do espectáculo).

Tendo conhecido bem Benite, tanto enquanto jornalista particu-lar interessada por teatro como enquanto amiga de longa data do Festival de Almada, Catarina Ne-ves obteve um acesso excepcio-nal à sala de ensaios. Aí observa-mos como o encenador, cingido a uma cadeira de rodas, era ele próprio apenas quando fazia te-atro. Criando a sua encenação mediante uma combinação de juízos estéticos e uma panóplia de observações políticas e filosó-ficas inspiradas pelo texto, não vemos acontecer na sala de en-

saios de Benite o colectivismo da moda mas sim uma ditadura be-nevolente. Um homem prático de teatro, acima de tudo, Benite não poupa os seus actores, exigindo que o ego e mesmo os sentimen-tos devam ser postos de lado de maneira a rapidamente se debru-çarem sobre o problema estético que se lhes apresenta. O resulta-do é ocasionalmente uma tensão criativa, mas em última análise abona muito em favor de Benite e do seu elenco.

O momento mais poderoso do fil-me chega com o anúncio da morte de Benite. Neves estava na sala de ensaios – onde Rodrigo Francisco tomava o lugar de Benite, que tinha sido levado para o hospital – no momento em que foi dada a notí-cia. Segue-se um momento de bri-lhante eficácia de realização. Após um breve e negro silêncio, vemos o Timão da encenação de Benite, nu, despojado da sua anterior ri-queza, do seu poder, mesmo das suas roupas; ele aparece-nos em toda a sua humana vulnerabilida-de, um homem comum que como todos nós se desloca do berço para a cova. Uma imagem consen-tânea com o momento emocional, uma bela e visualmente dramática metáfora. Um momento e um fil-me, os quais, certamente, Benite teria aprovado.

Sem título

O s mais corajosos (ou temerários) decidem enfrentar escarpas

rochosas, montanhas que se perdem de vista nos céus, cordas esticadas entre prédios, circuitos de fórmula um, centenas de metros de profundidade, temperaturas que conge-lam os membros, gravi-dade zero, touros bravos. Mas só mesmo os mais corajosos (ou temerários) decidem enfrentar as ou-tras pessoas. Quando se trata dos elementos não há afecto que nos salve. É com absoluta indiferença que nos destroem. Abso-luta arbitrariedade. Não interessa a nossa histó-ria, o nosso nome, onde moramos, quanto ganha-mos. Nada. O que torna tudo bastante simples e mais ou menos linear. Sobrevive-se, morre-se, não há muitas opções. Já quando se trata da rela-ção com os outros, tudo é extraordinariamente complexo. Se dissermos a verdade – seja lá o que isso for, porque nunca parecemos concordar –, os efeitos podem ser tão diversos que trememos só de imaginar o número de possibilidades. Mas, no fundo, todas estas possibilidades acabam por partir de duas ou três ideias muito simples. Te-mos medo de entrar em conflito. Medo de cortar relações com os outros. De confiarmos e sermos traídos. A natureza não nos pode trair porque também não nos pode amar. E todos queremos ser amados.

ESpEctáculO dE HONrA 2015: A vOtAçãOAmanhã o público poderá escolher o Espectáculo de Honra 2015: um boletim será entregue antes de As irmãs Macaluso, no Palco Grande da Escola D. António da Costa, e o resultado será anunciado no final do espectáculo. Do boletim constarão os seguintes espectáculos:

Branca de Neve • canções i comentários • Almada de Quarentena • um fio de jogocírculo de transformação em espelho • Impalpável • Al pantalone • Macbeth segundo Shakespeare

O tempo todo inteiro • Ode marítima • A verdade • Fauna • O regime da ração • Suadoprisão de Ocaña • Os negros e os deuses do Norte • libretto • Arraial deluxe • Alemanha • Os lusíadas

Page 2: Sunday Herald, Mark Brown, que escreveu em Benite ... ESPLANADA PRATOS DO DIA – Salsichas – Peixe espada com açorda de tomate SOBREMESA – Mousse – Arroz doce – Semi-frio

À mesa com Rosanna BocchieriRESTAURANTE DA ESPLANADA

PRATOS DO DIA

– Salsichas– Peixe espada

com açorda de tomate

SOBREMESA

– Mousse– Arroz doce– Semi-frio de iogurte– Fruta da época

Hoje

AmanhãPRATOS DO DIA

– Arroz de pato– Bacalhau à Gomes de Sá

SOBREMESA

– Mousse– Arroz doce– Semi-frio de iogurte– Fruta da época

A correspondente do diário Ragusa oggi e da revista teatral Sipario acedeu partilhar connosco, no Restaurante do Teatro, a sua última refeição no Festival. Na crítica que ontem escreveu ao espectáculo

Arraial deluxe, Rosanna Bocchieri falava da importância de haver no Fes-tival “um espectáculo de teatro-dança […] que ultrapassasse a barreira da língua”. Hoje, porque se vai embora, Rosanna está triste. “Há quase vinte anos que venho”, diz-nos, “é como uma família, e sinto sempre esta tristeza ao partir”. Hoje, porque não verá espectáculos, não haverá crítica. Mas há a promessa de voltar para o ano e a alegria de partilhar uma taça de morangos, num sorriso que não precisa de tradução.

AGENDA DE AMANHÃ

© L

uana

San

tos

PALHETA ILIMITADA

cresce a distância entre uns e outrosJoão Garcia Miguel, criador

de Os negros e os deuses do Norte, esteve ontem à con-

versa na Esplanada da Escola D. António da Costa. O espectáculo que veio estrear a Almada e que, nos últimos três dias, esgotou a Sala Experimental do TMJB, este-ve no centro da discussão.Nasceu como nascem quase to-dos os projectos do director do Teatro-Cine de Torres Vedras: a partir de uma “nebulosa de ideias e sensações mais ou menos indis-tintas” que, progressivamente, se impõem e ganham forma. Resul-ta do seu desejo de trabalhar “o feminino, o outro, a diferença, a sensação de estar sob um poder externo”, num solo pensado para a actriz Sara Ribeiro onde a mú-sica compete com a protagonista “que leva tudo ao superlativo do

excesso”, abrindo “uma brecha emocional que, juntamente com o texto, se desdobra e multiplica de modo infi nito”. “No teatro interes-sa-me sobretudo a intensifi cação da emoção, a experiência mais do que a narrativa”, explica JGM.

O lugar do Homo SacerEntretanto assomou no horizon-te a fi gura legal que, no Império Romano, remetia para “um certo tipo de indivíduos que, pela sua estranheza, não podiam ser sa-crifi cados em rituais religiosos e fi cavam à margem da sociedade”. Se este Homo Sacer permitiu ao fi lósofo italiano Giorgio Agamben refl ectir sobre a ideia de poder e o aparelho democrático que criá-mos e nos excluiu, fundamentou também a aproximação feita pelo encenador à fi gura “ao mesmo

tempo demoníaca e desejada” do artista, a que o poder recorre quando “precisa de palhaços”.

O não-lugar do MessiasIgualmente cara ao espectáculo – e à cultura portuguesa – é a questão messiânica. Uma questão que, no entender de JGM, nos “infantiliza”: “Estamos à espera que alguém ve-nha e resolva um problema que não

tem solução. Quanto mais espera-mos, mais amorfos nos tornamos”. É preciso combater a predisposi-ção para o mal que existe dentro de cada um de nós e a fi cção ca-pitalista que diz que apenas so-mos responsáveis pela nossa vida. “Somos responsáveis pela vida de uma maneira geral. E enquanto não percebermos isso, crescerá a dis-tância entre uns e outros”.

OS luSÍAdAS 10h00 | teatro Municipal Joaquim Benite

AS IrMãS MAcAluSO 22h00 | Escola d. António da costa

A IluSãO 19h00 | Fórum romeu correia

rOcÍO KEurOGHlANIAN 21h00 | Escola d. António da costa

Jp SIMÕESFesta de encerramento 23h00 | Escola d. António da costa

ArrE! 21h30 | praça da portela

Sabes o que é que um actor furioso pensa de um espectador que se esqueceu

de desligar o telemóvel?Não. Eu acho que sei. Mas não digo nada à minha mãe.

Levi Martins e João Garcia Miguel