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"O presidencialismo é uma usina de problemas ÉPOCA - ENTREVISTA - pág.: 58. Dom, 24 de Janeiro de 2016 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Espaço ocupado: 219 cm. Vinicius Gorczeski LUÍS ROBERTO BARROSO Um dos maiores entusiastas no Brasil do sistema de governo semipresidencialista é o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal ( STF). Desde 2006, quando ainda não integrava a mais alta corte de Justiça, Barroso prega as qualidades do sistema. Naquele ano, ele publicou uma proposta de reforma política para o Brasil que incluía a instituição do semipresidencialismo. Uma das passagens do estudo, no contexto da atual crise do governo Dilma Rousseff, é premonitória. "No presidencialismo, não existe a possibilidade de destituição legítima do presidente, e o governo acaba se prolongando até o final do mandato sem sustentação congressual e sem condições de implementar seu plano de ação. O país fica sujeito, então, a anos de paralisia e de indefinição política, o que pode gerar sérios problemas econômicos e sociais, ou pelo menos deixá-los sem solução imediata", escreveu Barroso, em 2006. Na semana passada, o ministro, cujo voto redefiniu no STF o rito do processo de impeachment, interrompeu as férias nos Estados Unidos para esta entrevista. ÉPOCA - Em 2006, o senhor escreveu um trabalho em defesa do semipresidencialismo. E, recentemente, voltou ao tema em conferências acadêmicas. Por qual razão? Luís Roberto Barroso - Essa proposta de reforma política para o Brasil foi um trabalho acadêmico, feito em equipe, sem encomenda de ninguém. Eram ideias para o Brasil. No referido estudo, apresentei três sugestões. A primeira delas dizia respeito ao sistema de governo, o semipresidencialismo. A segunda, ao sistema partidário, sobre voto distrital misto, e, finalmente, em relação à cláusula de barreira e ou a proibição de coligações em eleições proporcionais. Eu achava que essas três transformações produziriam um impacto institucional extremamente positivo para o país. ÉPOCA - O senhor imaginava, ao formular sua proposta, que dez anos depois estaríamos numa crise como a atual, em que o governo está sem apoio popular e parlamentar? Barroso - A história do presidencialismo na América Latina é a crônica de uma crise anunciada. Eu não era capaz de prever a data exata - minha bola de cristal estava meio embaçada -, mas não tinha dúvida de que esse dia chegaria. Basta olhar para trás, de Deodoro da Fonseca aos dias de hoje, e contemplar a dura realidade: autoritarismo, cooptação fisiológica ou ingovernabilidade. Assim é, porque sempre foi. ÉPOCA - Ainda conserva essas opiniões sobre o presidencialismo, especialmente agora nesta crise política? Barroso - Sim. Minha proposta foi escrita em 2006 para vigorar oito anos depois, de modo a não interferir com nenhum interesse político imediato. Ela teria entrado em vigor em 2014 e talvez nos tivesse poupado de alguns dissabores deste momento. Veja: eu não sou comentarista político. Eu antes era um acadêmico e agora sou ministro do STF. Minhas preocupações não estão ligadas à política conjuntural, mas à defesa e ao aprimoramento das instituições. Acho que precisamos combater as vicissitudes do modelo político brasileiro, que vão do excesso de poderes do Executivo ao descolamento entre a classe política e a sociedade civil. Esse era meu objetivo na época. Se esse é ou não o caminho para enfrentar a crise atual, não é meu papel dizer. ÉPOCA - Que vantagens vê no semipresidencialismo?

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL O presidencialismo …...Um dos maiores entusiastas no Brasil do sistema de governo semipresidencialista é o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal

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Page 1: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL O presidencialismo …...Um dos maiores entusiastas no Brasil do sistema de governo semipresidencialista é o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal

"O presidencialismo é uma usina deproblemas

ÉPOCA - ENTREVISTA - pág.: 58. Dom, 24 de Janeiro de 2016SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Espaço ocupado: 219 cm.

Vinicius Gorczeski

LUÍS ROBERTO BARROSO

Um dos maiores entusiastas no Brasil do sistema degoverno semipresidencialista é o ministro LuísRoberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal(STF). Desde 2006, quando ainda não integrava amais alta corte de Justiça, Barroso prega asqualidades do sistema. Naquele ano, ele publicou umaproposta de reforma política para o Brasil que incluía ainstituição do semipresidencialismo. Uma daspassagens do estudo, no contexto da atual crise dogoverno Dilma Rousseff, é premonitória. "Nopresidencialismo, não existe a possibilidade dedestituição legítima do presidente, e o governo acabase prolongando até o f inal do mandato semsustentação congressual e sem condições deimplementar seu plano de ação. O país fica sujeito,então, a anos de paralisia e de indefinição política, oque pode gerar sérios problemas econômicos esociais, ou pelo menos deixá-los sem soluçãoimediata", escreveu Barroso, em 2006. Na semanapassada, o ministro, cujo voto redefiniu no STF o ritodo processo de impeachment, interrompeu as fériasnos Estados Unidos para esta entrevista.

ÉPOCA - Em 2006, o senhor escreveu um trabalho emdefesa do semipresidencialismo. E, recentemente,voltou ao tema em conferências acadêmicas. Por qual

razão?

Luís Roberto Barroso - Essa proposta de reformapolítica para o Brasil foi um trabalho acadêmico, feitoem equipe, sem encomenda de ninguém. Eram ideiaspara o Brasil. No referido estudo, apresentei trêssugestões. A primeira delas dizia respeito ao sistemade governo, o semipresidencialismo. A segunda, aosistema partidário, sobre voto distrital misto, e,finalmente, em relação à cláusula de barreira e ou aproibição de coligações em eleições proporcionais. Euachava que essas três transformações produziriam umimpacto institucional extremamente positivo para opaís.

ÉPOCA - O senhor imaginava, ao formular suaproposta, que dez anos depois estaríamos numa crisecomo a atual, em que o governo está sem apoiopopular e parlamentar?

Barroso - A história do presidencialismo na AméricaLatina é a crônica de uma crise anunciada. Eu não eracapaz de prever a data exata - minha bola de cristalestava meio embaçada -, mas não tinha dúvida de queesse dia chegaria. Basta olhar para trás, de Deodoroda Fonseca aos dias de hoje, e contemplar a durarealidade: autoritarismo, cooptação fisiológica ouingovernabilidade. Assim é, porque sempre foi.

ÉPOCA - Ainda conserva essas opiniões sobre opresidencialismo, especialmente agora nesta crisepolítica?

Barroso - Sim. Minha proposta foi escrita em 2006para vigorar oito anos depois, de modo a não interferircom nenhum interesse político imediato. Ela teriaentrado em vigor em 2014 e talvez nos tivessepoupado de alguns dissabores deste momento. Veja:eu não sou comentarista político. Eu antes era umacadêmico e agora sou ministro do STF. Minhaspreocupações não estão ligadas à política conjuntural,mas à defesa e ao aprimoramento das instituições.Acho que precisamos combater as vicissitudes domodelo político brasileiro, que vão do excesso depoderes do Executivo ao descolamento entre a classepolítica e a sociedade civil. Esse era meu objetivo naépoca. Se esse é ou não o caminho para enfrentar acrise atual, não é meu papel dizer.

ÉPOCA - Que vantagens vê no semipresidencialismo?

Page 2: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL O presidencialismo …...Um dos maiores entusiastas no Brasil do sistema de governo semipresidencialista é o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal

ÉPOCA - ENTREVISTA - pág.: 58. Dom, 24 de Janeiro de 2016SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Espaço ocupado: 219 cm.

Barroso - O semipres idenc ia l ismo combinaca rac te r í s t i cas do p res i denc ia l i smo e doparlamentarismo. Mas não é uma criatura híbrida, semidentidade própria. Ele tem sido praticado comsucesso em diferentes países, inclusive França ePortugal. É uma fórmula bem melhor do que ohiperpresi-dencialismo latino-americano, que é umausina de problemas, que se estendem do autoritarismoà ingovernabilidade.

ÉPOCA - Por que acha que o semipresidencialismopoderia resolver os problemas de governabilidade doBrasil?

B a r r o s o - A p r i m e i r a r a z ã o é q u e osemipresidencial ismo permite a subst i tu içãoinstitucional e sem trauma de governos que perderamo lastro de sustentação política. O grande problema dopresidencialismo é que o presidente só pode serremovido legitimamente em caso de crime deresponsabilidade. Trata-se de um procedimentocomplexo e traumático, como bem sabemos. Nosemipresidencialismo, o governo pode ser destituídopor simples voto de desconfiança, se tiver perdidoapoio popular e parlamentar. No semipresidencialismo,o presidente, eleito por voto direto, funciona comoestadista e fiador das instituições. Seu papel, emboraimportante, é limitado, o que minimiza seu desgaste. Oprimeiro-ministro, por sua vez, fica no front maisinóspito da disputa política e das transformaçõessociais, sujeito a embates e turbulências.

Em caso de perda de sustentação, ele cai e ésubstituído por outro, com apoio da maioria. Umaválvula de segurança, quanto a isso, é que adestituição somente pode se dar se já houver umnome com suporte majoritário. Isso dá maior relevo aopapel do Legislativo, que não poderá se ocuparapenas da crítica, mas deverá participar também daconstrução do governo.

ÉPOCA - Considera viável uma mudança de sistemade governo, quando medidas simples para melhorar agovernabilidade - como a cláusula de barreira e o fimdas coligações proporcionais - não são aprovadas noCongresso?

Barroso - Em meados do ano passado, houve umaconferência na Universidade Harvard, nos EstadosUnidos, na qual se discutiram algumas das grandesq u e s t õ e s d o B r a s i l . E m u m a d e m i n h a sapresentações, eu tabulei as propostas de reformapolítica dos três principais partidos políticos nacionais,o PMDB, o PT e o PSDB. Os três são a favor do fimdas coligações em eleições proporcionais e da adoçãode cláusula de barreira ou de desempenho. Taisprovidências, por si só, já terão um alto impacto

virtuoso sobre o sistema. Portanto, uma agendaminimamente construtiva resolverá essa questão. Oproblema é que o país entrou em uma espiralnegativa. Precisamos sair dela. Tenho esperança deque esse debate volte à agenda do Congresso.

ÉPOCA - O parlamentarismo já foi rejeitado emplebiscitos anteriormente. Por que um sistema híbridoteria receptividade na sociedade?

B a r r o s o - U m a c a r a c t e r í s t i c a t í p i c a d oparlamentarismo é a não eleição do chefe de Estadopor voto direto. Ou são monarquias, como o ReinoUnido, a Dinamarca ou a Suécia. Ou são repúblicas,em que a escolha do presidente é por votação indireta,como Alemanha e Itália. O povo brasileiro não gostade nenhuma dessas fórmulas. Para nós, a eleiçãodireta do presidente da República se tornou umsímbolo da democracia e até uma cláusula pétrea.Não há como cog i t a r em mudar i s so . Osemipresidencialismo mantém a eleição direta, masatenua a concentração de poderes no presidente. Opovo brasileiro nunca se manifestou sobre isso. Aindaassim, caso viesse a ser aprovada a mudança domodelo, o tema deveria, sim, ser levado a consultapopular direta, para não haver dúvida quanto a sualegitimidade.

ÉPOCA - Na França, já houve a chamada"coabitação", em que presidente de esquerda éobrigado a conviver com um primeiro-ministro dedireita - e vice-versa - porque seu partido perdeu amaioria no Parlamento. Uma "coabitação" funcionariano Brasil?

Barroso - Quando as instituições são respeitadas, apolítica se amolda a elas. Não há qualquer problemainstitucional na coabitação. A regra na políticademocrática é que as maiorias governem. Nenhumsistema de governo é imune a instabilidades. O queminimiza o impacto das crises, tanto sobre as pessoasquanto sobre os mercados, é sua absorçãoinstitucional e em curto prazo, de acordo com regrasprefixadas. Não dá para comparar a repercussão daqueda de um primeiro-ministro com a de umpresidente.

ÉPOCA - Como avalia a situação institucional doBrasil, no momento em que se discute a possibilidadede um impeachment da presidente Dilma Rousseff?

Barroso - Atravessamos uma crise polít ica eeconômica de grandes proporções, mas sem abaloinstitucional. Superamos os ciclos do atraso, e asociedade brasileira já não aceita soluções que nãorespeitem a legalidade constitucional. Agora:instituições sempre podem ser aprimoradas. Ummodelo semipresidencialista, com voto distrital misto e

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ÉPOCA - ENTREVISTA - pág.: 58. Dom, 24 de Janeiro de 2016SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Espaço ocupado: 219 cm.cláusula de desempenho, propiciará um sistemapolítico melhor. O semipresidencialismo reduz o riscode autoritarismos e de crises. O voto distrital mistobarateia a eleição e aproxima o eleitor do eleito. E alimitação dos partidos impede o balcão de negóciospartidário. Precisamos de um modelo que volte afomentar o idealismo, o patriotismo e seja capaz deatrair novos valores para a política. O impeachment,agora, é uma questão política. O STF, por maioriaexpressiva, tomou a decisão de manter estritamenteas mesmas regras que valeram para o impeachmentdo presidente Collor. Regras claras, preestabelecidase constantes são garantia do estado democrático dedireito. Agora, tudo dependerá do Congresso.