TCC - A CONCEPÇÃO DE HOMEM NO PENSAMENTO EXISTENCIAL DE SOREN KIERKEGAARD

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JOO HENRIQUE DA SILVA

A CONCEPO DE HOMEM NO PENSAMENTO EXISTENCIAL DE SOREN KIERKEGAARD

FACULDADE CATLICA DE POUSO ALEGRE POUSO ALEGRE 2008

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JOO HENRIQUE DA SILVA

A CONCEPO DE HOMEM NO PENSAMENTO EXISTENCIAL DE SOREN KIERKEGAARD

Trabalho de Concluso de Curso apresentado como requisito parcial para obteno grau de Bacharel em Filosofia, Curso de Filosofia, Faculdade Catlica de Pouso Alegre. Orientador: Professor Mestre Padre Wilson Mrio de Morais.

POUSO ALEGRE 2008

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Dedico este trabalho a minha me Conceio Aparecida Silva, mulher de f, de paradoxo e discpula de Jesus Cristo. Ela exemplo paradoxal dos ensinamentos de Cristo e o sentido do meu existir.

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ELOGIO DE ABRAOSe o homem no possusse conscincia eterna, se um poder selvagem e efervescente produtor de tudo, grandioso ou ftil, no torvelinho das paixes obscuras, existisse s no fundo de todas as coisas; se sob elas se escondesse infinito vazio que nada pudesse encher, que seria da vida seno o desespero? Se assim fosse, se um vnculo sagrado no cingisse a humanidade; se as geraes se no renovassem como se renovam as folhas das florestas; se umas atrs das outras fossem extinguindo como o canto dos pssaros nos bosques, atravessando o mundo como a nave o oceano, ou o vento o deserto estril e cego; se o esquecimento eterno, sempre esfomeado, tivesse fora suficiente para lhe arrebatar a presa espiada, quo v e desoladora seria a vida! Mas tal no o caso. Do mesmo modo que formou o homem e a mulher tambm Deus formou o heri, o poeta ou orador (...). Nada ser perdido dos que foram grandes; cada um a seu modo e segundo a grandeza do objeto que amou. Porque aquele que se amou a si prprio foi grande pela sua pessoa; quem amou a outrem foi grande dando-se; mas o que amou a Deus foi o maior de todos. A histria celebrar os grandes homens, mas cada um foi grande pelo objeto de sua esperana: um engrandeceu na esperana de atingir o possvel; um outro na esperana das coisas eternas mas aquele que quis alcanar o impossvel foi, de todos, o maior. Os grandes homens ho-de sobreviver na memria dos vindouros, mas cada um deles foi grande pela importncia do que combateu. Porque aquele que lutou contra o mundo, foi grande triunfando do mundo, o que combateu consigo prprio foi grande pela vitria que alcanou sobre si mas aquele que lutou contra Deus foi o maior de todos. Tal a suma dos combates travados na Terra: homem contra homem, um contra mil; mas aquele que luta contra Deus o maior de todos. Tais so os combates deste mundo: um chega ao termo usando da fora, o outro desarma Deus pela sua fraqueza. Viu-se os que se apoiaram em si prprios de tudo triunfarem e os outros, fortes da sua fora, tudo sacrificarem mas o maior de todos foi o que acreditou em Deus. E houve grandes homens pela sua energia, sabedoria, esperana ou amor mas Abrao foi o maior de todos: grande pela energia cuja fora a fraqueza, grande pelo saber cujo segredo a loucura, pela esperana cuja forma demncia, pelo amor que dio a si prprio.Soren A. Kierkegaard

Temor e Tremor

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AGRADECIMENTOS

Agradeo, em especial, pessoa do Padre Adriano So Joo que me instigou e me apoiou na confeco deste trabalho monogrfico. Por meio dele, conheci o pensamento kierkegaardiano, o que me possibilitou amadurecer na f crist e crescer como pessoa. Com o seu apoio e sabedoria, ajudou-me a escrever esse trabalho. Tambm rendo graas minha famlia: minha amada me Conceio, meu querido pai Joo, minhas irms e amigas Flvia e Diana, meu irmo Gilberto. E meus cunhados Juliano, Regina e Hodielis. E tambm as minhas sobrinhas carinhosas: Larissa e Maria Eduarda. Vocs so presente de Deus em minha vida, por isso, recebam o meu carinho e amor. Agradeo igualmente aos meus amigos seminaristas que conviveram um bom tempo comigo no colegial: Adriano, Edpo, Fernando, Gerson, Marcos, Lessandro, Lucas, Samuel, Wellington, entre outros. Expresso meu reconhecimento e estima aos amigos: Ubiracy de Souza Braga, Meire, Lus Henrique, Vvian, Brbara, Letcia, Poliana, Mrcia, Bruna, Patrcia, Marli, Andressa, Patrcia, Gilson e os demais amigos da loja Papel e Cia. Eles fazem parte da histria da minha vida, nunca me esquecerei dos momentos que passei com vocs. No posso deixar de ser grato para com a pessoa maravilhosa que o Padre Wilson, que me ajudou muito durante o curso de filosofia e agora me ajudou a fazer esse trabalho. Expresso a minha estima tambm pelos padres, funcionrios da faculdade, amigos bom repousenses, professores da faculdade, colegas do colgio e conhecidos no decorrer da minha vida. Tambm expresso carinho aos meus amigos e colegas da minha turma de faculdade, que durante esses trs anos foram pacientes para com a minha pessoa. Cada um de vocs me proporcionou crescer em todas as dimenses humanas. Por fim, rendo graas e louvor ao Esprito do Amor, o Paradoxo Absoluto, Deus, que me fortaleceu e fortalece em todos os momentos da minha vida. Ele o paradigma e o caminho da minha vida.

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RESUMO Este trabalho analisa a concepo de homem no pensamento de Kierkegaard sob a perspectiva do homem religioso. O primeiro captulo retrata o contexto da poca e a vida de Kierkegaard. O segundo captulo o principal, trata do que o homem e os estdios existenciais: o estdio esttico, tico e religioso. Este ltimo acontece por uma relao absoluta do indivduo com o Absoluto atravs da f e do paradoxo. E, por fim, o ltimo captulo que fala sobre o legado de Kierkegaard para o sculo XIX e XX, e o que a ps-modernidade, o que torna-se cristo e a contribuio do seu pensamento para a atualidade. Portanto, esse trabalho apresenta o pensamento sobre o Homem em Kierkegaard, o que fundamental para refletir sobre o homem na ps-modernidade. Palavras-chave: Kierkegaard; Homem; Estdios existenciais; F; Legado Kierkegaardiano; O que Ps-modernidade.

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ABSTRACT This work analyses the conception of the man under the thought of Kierkegaard from the perspective of the religious man. The first chapter talks about the context of the time and Kierkegaards life. The second chapter is the most important, it deals with the man and the stages of existence: the aesthetic stage, ethical and religious stages. The last one happens through an absolute relationship between the individual and the Absolute through faith and paradox. Finally, the last chapter, talks about Kierkegaards legacy for the XIX, and XX centuries, it talks about what postmodernity is, what it is to become a Christian and the contribution of his thoughts for the present. Therefore, this work shows the thought of the Man in Kierkegaard, which is fundamental to reflect about the man in post-modernity. Key words: Kierkegaard; Man; Stages of existance; Faith; Kierkegaards Legacy; What is Postmodernity.

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SUMRIO

INTRODUO

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1 KIERKEGAARD: UM PENSADOR ESCUTA DO TEMPO 1.1 SCULO XIX, TEMPO DE TRANSFORMAES 1.1.1 Aspecto Histrico-Social 1.1.2 O Desenvolvimento das Cincias 1.1.1.3 A Filosofia 1.2 KIERKEGAARD: UM HOMEM-PROBLEMA PARA SI MESMO 1.2.1 A Vida de Kierkegaard 1.2.2 As Influncias Filosficas e Religiosas

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2 KIERKEGAARD: UM PENSADOR ESCUTA DO SER HUMANO 2.1 O MTODO 2.1.1 A Comunicao Indireta e Direta 2.2 A EXISTNCIA E O INDIVDUO 2.2.1 A Existncia como possibilidade 2.3 OS ESTDIOS NO CAMINHO DA VIDA 2.3.1 O Estdio Esttico 2.3.2 A Eleio e a Ironia 2.3.3 O Estdio tico 2.3.4 O Humor 2.3.5 O Estdio Religioso 2.4 O PARADOXO DA VIDA CRIST 2.4.1 A F e a Subjetividade 2.4.2 A F como Paradoxo 2.4.3 Abrao: O Cavalheiro da F

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3 KIERKEGAARD: UM PENSADOR PARA A ESCUTA DO TEMPO E DO HOMEM 3.1 O LEGADO KIERKEGAARDIANO 3.1.1 Kierkegaard: O Sentido dos seus Escritos 63 63 64

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3.1.2 Kierkegaard e seu Legado 3.1.2.1 A Recepo s Obras de Kierkegaard 3.1.2.2 A Filosofia da Existncia 3.1.2.2.1 O existencialismo de Kierkegaard 3.1.2.2.2 O que a Filosofia da Existncia? 3.2 A PS-MODERNIDADE 3.2.1 O Que a Ps-modernidade? 3.2.2 A Religio na Ps-modernidade 3.3 TORNAR-SE CRISTO 3.3.1 Migalhas Filosficas 3.3.2 Como tornar-se cristo? 3.3.3 O Amor Cristo 3.3.4 Crtica Cristandade 3.4 MOMENTO CRTICO

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CONCLUSO

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REFERNCIAS

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OBRAS CONSULTADAS

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INTRODUO

Ao longo da histria, a reflexo antropolgica sempre se fez presente. O homem sempre foi um problema para si mesmo. Desde os primrdios, em especial com Scrates, o homem constitui tema central de muitas investigaes. Hoje no diferente. A psmodernidade instiga a repens-lo e compreend-lo. Esse estmulo origina-se por causa da prpria situao do sculo XXI. O homem e o mundo esto em crise. A cincia e a razo no mais o satisfazem. Vive-se atualmente uma crise de valores. Dos tantos ismos que atingem o mundo contemporneo, o consumisno, o niilismo, o individualismo ocupam a primeira fileira. Levando-se em conta os diversos problemas pelos quais o mundo de hoje passa, s mesmo um pensamento radical e determinante sobre a existncia humana pode se constituir numa alternativa vivel a iluminar a vida do sculo XXI. Quem que pode oferecer ao mundo contemporneo uma reflexo slida e profunda sobre o ser humano seno ningum menos do que Soren A. Kierkegaard? Esse pensador dinamarqus experimentou, de forma profunda, a existncia. A sua vida a sua filosofia! O seu pensamento fundamenta-se no existir humano. Kierkegaard foi um crtico veraz. A sociedade, o homem, a razo e a religio foram alvos da sua crtica. Ele percebeu as contradies e as incoerncias existenciais. Tambm foi um profeta, percebeu o esquecimento do significado homem e de transcendncia, desembocando numa crise de sentido no sculo posterior. Dada a fora, o vigor e a atualidade do seu pensamento, este Trabalho de Concluso de Curso procura discorrer sobre a Concepo de Homem no pensamento existencial de Soren A. Kierkegaard. O homem o ponto chave e central para compreenso do pensamento de Kierkegaard. A reflexo sobre o homem em Kierkegaard permite responder diversos questionamentos que acompanham a histria da humanidade: O que o homem? Qual o sentido da sua vida? Como tornar-se humano e no objeto homem? Como viver bem a vida? O presente estudo sobre a viso antropolgica de Kierkegaard procura conhecer, de um modo mais profundo, a vida e o pensamento de Kierkegaard, bem como descobrir o

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quanto ainda ele pode falar ao homem ps-moderno. Para tanto, o trabalho divide-se em trs captulos. O primeiro captulo aborda o contexto histrico-social-filosfico em que se desenvolveu a filosofia de Kierkegaard. Tambm trata da sua biografia e das influncias culturais e filosficas recebidas. Na verdade, apresenta a formao do pensamento de Kierkegaard. O segundo captulo o cerne do trabalho. Trabalha a questo do significado de homem para Kierkegaard, refletindo sobre os estdios existenciais pelos quais o homem caminha: o esttico, o tico e o religioso. E em especial, discorre sobre o estdio religioso, que essencial para o pensador dinamarqus. A vida religiosa primordial para entender a concepo antropolgica kierkegaardiana. O homem religioso a luz para viver uma vida digna. uma vida de paradoxo, de tenso entre o juzo e graa, mas que possibilita viver a verdade. O estdio religioso inclusive marcado por uma relao estreita do indivduo com o Absoluto. Deus o ponto de convergncia e de desenvolvimento da personalidade. E, por ltimo, o terceiro captulo procura discorrer sobre o legado kierkegaardiano nos sculos XIX, XX e XXI, como seu deu a recepo de suas obras. Esta ltima parte do presente trabalho tambm apresenta uma reflexo sobre o que ps-modernidade e o que significa tornar-se cristo no mundo contemporneo. Tornar-se cristo uma tarefa alternativa para que o homem ps-moderno possa viver bem consigo mesmo, com Deus e com os outros. Ser cristo seguir os ensinamentos de Cristo. Os seus ensinamentos possibilitam uma melhor relao entre Deus, o homem e outros homens. Na verdade, este captulo quer refletir sobre a atualidade da filosofia e da teologia, em sentido acadmico, de Kierkegaard. A produo literria de Kierkegaard muito vasta, compreendendo uma srie de discursos, ensaios, cartas, anotaes, dirios, artigos, peridicos, livros etc. O presente trabalho valeu-se da coletnea de textos de Kierkegaard organizada por Ernani Reichmann, tendo como referncia para a compreenso da filosofia kierkegaardiana obras de autores como: Ricardo Q. Gouva, France Farago, Marcio G. Paula, lvaro L. M. Valls, Rgis Jolivet. Enfim, esse Trabalho de Concluso de Curso retrata a compreenso de homem no pensamento de Kierkegaard. Homem no uma idia, uma abstrao, mas um indivduo concreto, dotado de razo e f. A f o caminho para o encontro com transcendncia e a verdade, capaz de livr-lo das angstias e do desespero. Se o ser humano se fechar em si

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mesmo, no conseguir ter um relacionamento autntico consigo prprio, com Deus e com outros. Para Kierkegaard, Deus a perspectiva e o fundamento da vida humana.

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1 KIERKEGAARD: UM PENSADOR ESCUTA DO TEMPOA raa humana deixou de temer a Deus. Depois disso, veio o castigo: passou a temer a si mesma, a nsia pelo fantasmagrico, e agora treme diante dessa criatura de sua prpria imaginao. Soren Kierkegaard

A reflexo que se procura desenvolver neste primeiro captulo tem o objetivo de destacar o contexto histrico, social e filosfico em que viveu Kierkegaard, caracterizado sobretudo pelo ambiente revolucionrio e pela perda de alguns referenciais importantes para a existncia humana. Tal objetivo necessrio, tendo em vista a questo central deste trabalho: analisar a concepo que Kierkegaard tem de homem, descrito atravs dos estdios esttico, tico e religioso que, na sua viso, so caractersticos do desenvolvimento do ser humano. Esses trs estdios no se referem tanto a um desenvolvimento pessoal, mas a trs posturas distintas face vida. Diante das profundas transformaes por que passa o mundo contemporneo, regido principalmente pela lgica do indivduo, da sensao, da autonomia, do consumo, e at mesmo do desencanto em relao vida, o pensamento de Kierkegaard ganha fora e atualidade, sendo capaz de provocar no ser humano o desejo de voltar-se para dentro de si mesmo e desenvolver uma reflexo que lhe oferea respostas para as perguntas mais cruciais da vida: Quem sou eu? De onde venho e para onde vou? O que significa viver? Atravs de um poder literrio brilhante e criador, Kierkegaard colocou a sua vida a servio da crtica das idias que eram expresses que no tocavam a verdadeira seriedade da vida nem a deciso existencial necessria para o homem encontrar a si mesmo em seu valor eterno. Na verdade, o principal interesse do pensador dinamarqus foi o de descrever o que o cristianismo verdadeiro: Deste modo, toda (a minha) atividade como escritor trata disto: dentro do cristianismo ser um cristo. Kierkegaard no escreveu sobre o mundo, mas sobre a vida sobre como vivemos e como escolhemos viver (Strathern, 1999, p. 7). Percebendo a distoro do sentido da vida na sua poca, procurou combater dois adversrios fundamentais: a dissoluo do indivduo singular no gnero humano, na histria e na cultura, e a cristandade estabelecida, o cristianismo reduzido a sistema de vida, a mero componente da civilizao1. Kierkegaard, alm de ter sido consciente da impossibilidade do ser humano ser edificado em massa, assistiu ascenso da ideologia igualitria, niveladora, que reduz cada um medida comum do rebanho. Assistiu irrupo das massas e1

Estes dois problemas constituem o alvo das crticas do pensamento de Kierkegaard. A reduo do ser humano a uma mera abstrao, um ente perdido nas massas, levou o pensador dinamarqus a se posicionar criticamente em relao a Hegel; e o cristianismo tmido e acomodado da poca o fez enfrentar a Igreja Luterana da Dinamarca.

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percebeu o veneno que seria a imprensa cotidiana (Farago, 2006, p. 247). Tudo o que experimentou e viveu, levou-o a uma auto-reflexo sobre si mesmo, uma busca apaixonada por aquilo que ele acredita ser o homem: algum que no se deixa dissolver na massa, mas que no devir concreto, no instante em que vive, decide a sua existncia. As obras de Kierkegaard correspondem, portanto, tentativa de traduzir nas palavras rebeldes a experincia indizvel que ele teve, e d testemunho do fato de que a ordem do sentido sempre ultrapassa a ordem do discurso (Farago, 2006, p. 17). Kierkegaard no foi um homem do seu tempo, mas no deixou de escutar o tempo e a histria. Foi um cristo com exageros, sem tibieza no corao. No foi a toa que conseguiu chegar apenas aos quarenta e dois anos. Infelizmente, a sua influncia no foi grande durante sua vida. Suas idias eram por demais diferentes das principais de sua poca para serem acolhidas e utilizadas pela sociedade. Mas no sculo XX, os escritos kierkegaardianos tiveram uma aceitao incomum. De acordo com Gouva (2006, p. 19-20), Kierkegaard constitui uma das figuras mais importantes e fascinantes na histria das idias e um pensador-chave no desenvolvimento da teologia e da filosofia do sculo XX. O mesmo se pode dizer em relao ao sculo XXI.

1.1 SCULO XIX, TEMPO DE TRANSFORMAES

Conforme se afirmou acima, a Europa do incio do sculo XIX caracterizada pelo ambiente revolucionrio. Segundo Reale e Antiseri (2005, p. 3-4), o sculo XIX marcado por muitas mudanas radicais e claras nos aspectos histrico, social e filosfico. No aspecto histrico, o evento mais significativo a Revoluo Francesa (1789)2, que influenciou o mundo inteiro com o seu ideal de Libert, galit et Fraternit. No social, o governo napolenico influenciou a mudana do parmetro institucional, social e filosfico vigente. No que diz respeito ao aspecto filosfico, destaca-se o Romantismo como uma resposta ao Iluminismo, propondo uma descrena na razo. Inclusive o Idealismo de Hegel propiciou uma nova maneira de ver a histria do ser humano.

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Enquanto a revoluo na Frana garantiu a liberdade, a da Alemanha se ocupou somente com a idia de liberdade. Na Alemanha, as classes intelectuais viviam totalmente indiferentes questo da prxis. O mundo da cincia, da arte, da filosofia e da religio no s lhes oferecia satisfao, como tambm tornara-se, para elas, a verdadeira realidade, transcendentes s miserveis condies da sociedade. A cultura era, ento, essencialmente idealstica, ocupada com a idia [grifo do autor] das coisas, mais do que com as prprias coisas (Arantes, 1996, p. 6). Isso favoreceu que os filsofos desenvolvessem uma filosofia idealista, sendo Hegel o ltimo a expressar o idealismo cultural, o ltimo a fazer do pensamento um refgio da razo e da liberdade (Arantes, 1996, p. 6).

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1.1.1 O Aspecto Histrico-Social

Antes de se falar do sculo XIX, preciso lembrar que os seus ideais de revoluo e mudana so um legado do sculo XVIII, o sculo da Revoluo Francesa3, considerada como uma nova era na etapa histrica, influenciando o mundo e espalhando-se pela Europa, Amrica do Norte e a Latina. A Revoluo Francesa contribuiu para que a burguesia ocupasse o poder poltico e organizasse o Estado maneira que lhe convinha. Como arma em seu favor, a burguesia utilizou a insatisfao das camadas populares, procurando assim concretizar suas propostas liberais. (Tota; Assis Bastos, 1994, p. 91). Como afirma Tota, a Revoluo Francesa significou o fim do absolutismo na Frana e a ascenso da burguesia ao poder poltico, consolidando, no plano econmico, as relaes de produo capitalista (1994, p. 91). Na verdade, a Revoluo Francesa provocou a destruioem grande parte das estruturas polticas, sociais e econmicas do ancien rgime [grifo do autor] e lanou as bases de uma nova sociedade, que procurou pr em prtica, concretamente, os princpios e os ideais que lentamente foram sendo elaborados no sculo XVIII. Ao privilgio sucede a igualdade, e ao arbtrio ou autoridade absoluta do soberano seguem-se a soberania popular e a liberdade. (Martina, 1996, p. 32).

Na fase final da Revoluo Francesa, conhecida como o perodo do Diretrio, nos finais do sculo XVIII, a Frana viveu uma grande crise, gerando insatisfao na sociedade e medo na burguesia diante da possibilidade da mesma perder os seus privilgios. At mesmo os pases vizinhos, regidos pelo sistema monrquico e absolutista, passaram a pressionar a Frana defensora dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. (Tota; Assis Bastos, 1994, p. 98-99). Diante dessa crise, a burguesia necessitou de um lder eficiente para estabelecer um governo forte e estvel que possibilitasse a sua consolidao como classe dominante. A melhor alternativa foi Napoleo Bonaparte4, jovem general francs que se destacou pela sua atuao desde a poca da Conveno. Com ele, foi institudo, primeiramente, o Consulado, e depois o incio do

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No o propsito desse Trabalho de Concluso de Curso refletir, de forma profunda, a Revoluo Francesa, mas apenas apresentar noes gerais sobre a mesma. Desse modo, ficam algumas sugestes para uma leitura complementar: PAZZINATO, Alceu L.; SENISE, Maria H. V. Histria Moderna e Contempornea. 14 ed. So Paulo: tica, 2006. p. 123-129. TOTA, Antnio P.; ASSIS BASTOS, Pedro Ivo de. A grande Revoluo Francesa. In: NOVO MANUAL NOVA CULTURA. So Paulo: Nova Cultural, 1994. p. 91-96. Tambm: MARTINA, Giacomo. A Revoluo Francesa. In: _____. Histria da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do Liberalismo. So Paulo: Loyola, 1996. v. 3. p. 11- 49. 4 Tambm no objetivo desse Trabalho desenvolver um estudo minucioso sobre Napoleo. Ento, necessrio conferir os seguintes livros: PAZZINATO, Alceu L.; SENISE, Maria H. V. Histria Moderna e Contempornea. 14 ed. So Paulo: tica, 2006. p. 133-137. TOTA, Antnio P.; ASSIS BASTOS, Pedro Ivo de. Napoleo, a Europa e a Amrica Latina. In: NOVO MANUAL NOVA CULTURA. So Paulo: Nova Cultural, 1994. p. 97-101.

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perodo Napolenico da Revoluo (o seu governo), pelo qual consolidou o poder da burguesia. (Tota; Assis Bastos, 1994, p. 98-99). As guerras comandadas por ele procuraram conquistar bens, riquezas, atravs de pilhagens. A sua atuao possibilitou a formao de um grande imprio, chegando a derrotar a Rssia, a Prssia, a ustria, a Itlia, com exceo da Inglaterra, a sua maior e mais forte inimiga. Para derrot-la, elaborou uma estratgia econmica, conhecida como Bloqueio Continental (1806). No incio, o bloqueio suscitou alguns efeitos, porm, fracassou posteriormente, levando ao declnio (1812) de um imprio que conheceu grandes momentos de glria (Tota; Assis Bastos, 1994, p. 99-100). A partir da, Napoleo passou a experimentar derrotas e mais derrotas5, sendo deposto e exilado na Ilha de Elba. O seu mpeto de conquistador no conseguiu aprision-lo nessa ilha: fugiu de Elba para a Frana, tomando o governo por apenas 100 dias, sendo derrotado pelos ingleses e prussianos na Batalha de Warteloo, em junho de 1815. Com a destituio de Napoleo do governo, Lus XVIII voltou ao trono e, em novembro de 1815, foi selada a Paz de Paris, reparando, desse modo, os erros da expanso do territrio francs e alterando o mapa poltico da Europa e das colnias. Em 18306, os ideais da Revoluo Francesa foram retomados pelas foras de oposio, articulando-os aos princpios do liberalismo7 e do nacionalismo8 numa srie de revolues que se arrastaram pelos continentes. Resultado de todo esse movimento revolucionrio foi o surgimento do socialismo no sculo XIX9.

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As derrotas que Napoleo passou a sofrer foram sucessivas e drsticas: perdeu para a Rssia, no inverno de 1812; perdeu a Batalha de Leipzig, em 1813; foi derrotado, em 1814, por um grande exrcito formado pela Inglaterra, Rssia, ustria e Prssia. 6 Cf. TOTA, Antnio P.; ASSIS BASTOS, Pedro Ivo de. As Revolues Europias: 1830 a 1848. In: NOVO MANUAL NOVA CULTURA. So Paulo: Nova Cultural, 1994. p. 105 111. PAZZINATO, Alceu L.; SENISE, Maria H. V. As Revoltas Liberais de 1830 e 1848. In: _____. Histria Moderna e Contempornea. 14 ed. So Paulo: tica, 2006. p. 166 172. 7 O liberalismo foi uma ideologia essencialmente burguesa do sculo XIX. O principal fundamento do liberalismo a liberdade individual no campo poltico e econmico. As suas idias inspiraram as revolues das dcadas de 20, 30 e 40, do sculo XIX, transformando profundamente a sociedade europia. Todavia, os princpios que regem a sociedade liberal so: o dinheiro, a cultura e os interesses. (MOCELLIN, Renato. Sculo XIX: Liberalismo, Nacionalismo e Socialismo. In: LONGEN, Adilson et al. Positivo: Ensino Mdio. Curitiba: Posigraf, 2004. v. 2. srie 2. p. 6.). 8 O nacionalismo contribuiu para que os pases expressassem o seu amor pela ptria, um retorno ao passado (tradio) e o culto de seus particularismos. (MOCELLIN, Renato. Sculo XIX: Liberalismo, Nacionalismo e Socialismo. In: LONGEN, Adilson et al. Positivo: Ensino Mdio. Curitiba: Posigraf, 2004. v. 2. srie 2. p 7.). 9 O Socialismo oferece uma sustentao terica para interpretar a situao dos operrios e para orientar os embates por eles travados no sculo XIX. Em contraposio economia capitalista, surgem duas correntes socialistas: 1) o socialismo utpico, que tem como pensadores Saint-Simon, Charles Fourier e Robert Owen; 2) o socialismo cientfico, que tem como representante Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) que publicaram o Manifesto Comunista em 1848. (MOCELLIN, Renato. Sculo XIX: Liberalismo, Nacionalismo e Socialismo. In: LONGEN, Adilson et al. Positivo: Ensino Mdio. Curitiba: Posigraf, 2004. v. 2. srie 2. p 7-8.). Para maior esclarecimento leia-se: TOTA, Antnio P.; ASSIS BASTOS, Pedro Ivo de. Socialismo. In: NOVO MANUAL NOVA CULTURA. So Paulo: Nova Cultural, 1994. p. 114 - 117.

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1.1.2 O Desenvolvimento das Cincias

Do ponto de vista cientfico e cultural, o sculo XIX conhecido como o sculo do progresso das cincias, como a fsica10 e a qumica. Por meio de clculos precisos, exatos, a cincia se lanou na aventura de querer explicar a vida e desvendar os mistrios que a encerram. Era assim inaugurada uma nova era para a humanidade. A Era da Civilizao Cientfica (Arruda, 2005, p. 49). Essa era estimulou novos inventos que contriburam, por sua vez, com as pesquisas e descobertas, sendo que, em muitos casos, os prprios cientistas tornaram-se inventores. Nomes como os de Joseph-Louis de Lagrange, Monge, Pierre Simon Laplace ocupam, de forma eminente, as fileiras dos grandes matemticos da humanidade. O progresso cientfico tambm se estendeu ao campo da biologia. Esta cincia levantou problemas profundos e srios para a antropologia filosfica e para a religio. Um exemplo dessa situao11, segundo Reale e Antiseri (2005, p. 333), o Charles Robert Darwin que, com sua teoria evolutiva das espcies biolgicas, contribuiu para a crise da idia de homem que predominava h sculos. H tambm desenvolvimentos em outros campos cientficos12, tais como: a embriologia, a fisiologia, a bacteriologia, a imunologia, a anatomia patolgica, a farmacologia, a geologia, a cristalografia, a astronomia e as cincias histricas. Portanto, de acordo com Reale e Antiseri (2005, p.333), os avanos da cincia provocaram um confronto com a sociedade estabelecida. As pesquisas causaram uma mudana na idia de ser humano e nas questes filosficas, ticas, polticas e religiosas. Como observador atento das transformaes da sociedade europia, Kierkegaard no poupou esforos para criticar as incoerncias de um mundo que passou a ser regido pela cincia, relegando a segundo plano outros caminhos que podem ajudar o ser humano a encontrar respostas para a sua existncia.

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Os estudiosos da fsica so: Augustin-Jean Fresnel, Carnot, Alessandro Giuseppe Antonio Anastsio Volta, Andr-Marie Ampre e Michael Faraday. 11 Tambm h outros bilogos, como: Rudolph Virchow (1821-1902), Gregor Johann Mendel (1822-1884), H. De Vries, C. Correns, E. Tschermak, Needham, Spallanzani, Louis Pasteur e Flix Archimde Pouchet. 12 Cf. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. O desenvolvimento das Cincias no sculo XIX. In: _____. Histria da Filosofia: do Romantismo ao Empiriocriticismo. So Paulo: Paulus, 2005. v. 5. p. 333-357.

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1.1.3 A Filosofia

Durante o sculo XIX, surgiu um novo modo de ver a realidade, de compreend-la e explic-la: o Romantismo. Essa nova compreenso provocou e instigou Kierkegaard a perceber o fracasso em explicar a realidade de uma maneira abstrata e no concreta. Ele foi um crtico veraz de Hegel, denunciando a sua pretenso de procurar explicar a realidade de maneira dialtica, fechada e totalitria. Uma melhor exposio sobre a crtica de Kierkegaard a Hegel ser retomada mais adiante. Por enquanto, trata-se de explicar como surgiu o Romantismo, a sua definio, as suas conseqncias e os seus representantes mximos. O Romantismo nasceu de um movimento literrio na Alemanha, entre os anos 1770 e 1780, chamado de Sturm und Drang que, segundo Reale e Antiseri,foi comparado por alguns estudiosos a uma espcie de revoluo que antecipou verbalmente em terras germnicas aquilo que, pouco depois, seria a Revoluo Francesa no campo poltico. Por outros estudiosos (...) foi considerado com uma espcie de reao antecipada prpria Revoluo, enquanto se apresentou como reao contra o Iluminismo [grifo do autor], do qual a Revoluo Francesa foi a coroao (...). Trata-se da reao do esprito alemo depois de sculos de torpor, e do ressurgimento de algumas atitudes peculiares alma germnica. (2005, p. 6).

Essa reao ao Iluminismo13, considerado como esprito racionalista e frio (Maras, 1987, p. 322), propiciou o surgimento de uma nova literatura, Sturm und Drang (Tempestade e mpeto) (Reale; Antiseri, 2005, p. 4). Tal denominao originou-se do drama escrito em 1776, por um dos representantes do movimento, Friedrich Maximilian Klinger. As caractersticas centrais desse movimento14 so: a) a redescoberta da natureza, que exaltada como fora onipotente e vital; b) um estreito relacionamento com a natureza e o gnio, entendido como fora originria; c) o pantesmo; d) um sentimento ptrio que se expressa no dio ao tirano, na exaltao da liberdade e no desejo de violar convenes e leis externas; e) a apreciao de sentimentos fortes e as paixes calorosas e impetuosas. Esse movimento recebeu influncias15 de James Macpherson (1736-1796), de Willian Shakespeare, de Jean-Jacques Rousseau, de Gotthold Ephraim Lessing, de Friedrich Gottlieb13

Cf. MARTINA, Giacomo. O Iluminismo e as Reformas. In: _____. Histria da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do Absolutismo.2 ed. So Paulo: Loyola, 2003. v. 2. p. 261-268. 14 Cf. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Gnese e caractersticas essenciais do Romantismo. In: _____. Histria da Filosofia: do Romantismo ao Empiriocriticismo. So Paulo: Paulus, 2005. v. 5. p. 3-6. 15 Esses autores so importantes para a compreenso do fenmeno literato, mas no possvel adentrar-se muito no pensamento deles. Ento, leia-se: Cf. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. O Movimento Romntico e a

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Klopstock (1724-1803) e de Heinrich Lenz. Contudo, os que deram sentido e importncia ao movimento foram: Goethe, Schiller, Jacobi, Herder, entre outros. Em reao ao Sturm und Drang, surgiu na poca o Classicismo16 que, de acordo com Reale e Antiseri (2005, p. 7), teve grande crdito na formao do esprito naquela poca, impondo-se como antecedente, componente ou ainda como um dos plos dialticos do Romantismo. Mas, afinal, o que o Romantismo? Definir Romantismo no tarefa fcil, pois a prpria palavra tem uma longa e complexa histria. De acordo com Baugh, o termo aparece na Inglaterra, em meados do sculo XVII, significando o fabuloso, o extravagante, o fantstico e o irreal. Ele foi resgatado no sculo precedente para indicar cenas e situaes agradveis, tpicas da narrativa e poesia romntica. Aos poucos, o termo passou a significar o renascimento do instinto e da emoo. (Reale; Antiseri, 2005, p. 10). Mais do que linha de pensamento, doutrina ou idia filosfica, o Romantismo , um movimento, um fenmeno (Hargreaves, 1986, p. 29-30) que envolve no s a filosofia e a poesia, mas tambm a msica, as artes figurativas, a religio, a poltica, a economia. Existem tantos romantismos quantos romnticos. Em todos esses desdobramentos possvel encontrar oesforo desesperador da viso concreta diramos quase de uma viso sensorial das razes ltimas de tudo o que existe e mesmo de tudo o que (...). Movimento em cujo mbito as idias em seu conjunto, agitam-se soltas e muitas vezes em conflito uma com as outras (...). O objetivo visado pelo Romantismo prolongar o sensvel no supra-sensvel, guisa de novo mtodo de especular metafisicamente (...). O Romantismo prestou aprecivel servio a todas as atividades do esprito, pela atitude de reao legtima contra a hipertrofia do esquema, a rigidez lgica e o imperialismo das elaboraes especiosas dos sistemas. (1986, p. 31-33).

O denominador comum, o elemento capaz de integrar a complexidade do fenmeno chamado Romantismo diz respeito ao estado de esprito do homem romntico que sente um conflito interior, uma insatisfao, uma inquietao, isto , encontra-se no estado de Sehnsucht (ansiedade, anseio, desejo irrealizvel) (Reale; Antiseri, 2005, p. 11). Apesar de o Romantismo no se definir como um conjunto de conceitos ou doutrinas, possvel apresentar as idias fundamentais que regem o movimento17:

Formao do Idealismo. In: _____. Histria da Filosofia: do Romantismo ao Empiriocriticismo. So Paulo: Paulus, 2005. v. 5. p. 15 45. PUPI, Angelo. De Kant a Fichte. In: ROVIGHI, Sofia V. Histria da Filosofia Moderna. 2 ed. So Paulo: Loyola, 2000. p. 597-632. 16 O Classicismo aspirava a transformar a natureza em forma e a vida em arte, no repetindo, mas renovando o que os gregos haviam feito (Reale; Antiseri, 2005, p. 7). Para melhor compreender a relao entre Classicismo e Romantismo, leia-se: SALDANHA, Nelson. Classicismo e Romantismo. Revista Brasileira de Filosofia. So Paulo, v. 53, n. 217, p. 489 504, out./dez. 2004. 17 Essas caractersticas baseiamse em: REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. A complexidade do fenmeno romntico e suas caractersticas essenciais. In: _____. Histria da Filosofia: do Romantismo ao Empiriocriticismo. So Paulo: Paulus, 2005. v. 5. p. 9-14.

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a) a sede do infinito, um anseio insacivel pelo inefvel. Aqui a filosofia e a poesia se encontram: a filosofia capta e mostra a relao do infinito com o finito, enquanto a arte realiza a obra, manifestando o infinito no finito; b) o novo sentido de natureza, como vida que se origina eternamente, um grande organismo humano, um jogo mvel de foras que, operando intrinsecamente, gera todos os fenmenos e tambm o homem: a fora da natureza a prpria fora do divino; c) o sentido de pnico por causa da pertena ao uno-todo, um sentimento de ser um momento orgnico da totalidade. No ser humano, reflete-se de algum modo o todo, assim como o homem se reflete no todo; d) a funo do gnio e a criao artstica elevadas suprema expresso do verdadeiro e do absoluto; e) o anseio pela liberdade como um sentimento muito forte que expressa para muitos dos romnticos o prprio fundamento da realidade e apreciam-na em todas as suas manifestaes; f) a reavaliao da religio, resgatando o sentimento de relao do ser humano com o infinito e com o eterno. Desse modo, ela elevada, colocada bem acima do plano ao qual o Iluminismo a reduzira. Ela o momento mais elevado do prprio esprito, superado somente pela filosofia. Alis, a religio aqui considerada a crist, compreendida, porm, de vrios modos; g) a influncia do elemento clssico e de outros temas especficos. A grecidade revisitada com nova sensibilidade e amplamente idealizada; h) o destaque intuio e a fantasia pela qual a filosofia marcada, indo alm da fria razo pura finita. O Romantismo influenciou sobremaneira os sculos XIX e XX, sendo at mesmo denominado de mal do sculo. Denominar o movimento romntico de tal forma no deixa de ser legtimo e adequado:legtimo, porque a filosofia, concepo de vida, que decide o que vai ser o estilo o discurso da literatura, da msica, da pintura, da dana e at da poltica e da economia. E, mais profundamente, da prpria religiosidade, consequentemente, da moral de uma cultura e de uma civilizao. Adequado, porque a herana romntica atesta as caractersticas claras de um mal tanto metafsico como moral. Do ponto de vista metafsico, porque contaminou o ar, a atmosfera, o clima exigido pela respirao normal, serena, limpa, do pensamento, do ponto de vista moral, porque a conduziu ao paradoxo do suicdio sentimental, precisamente pelo paraxismo da exaltao do sentimento, que deveria passar a ser, conforme pretendia, fonte de conhecimento, em lugar da inteligncia e da razo. Mal do sculo, enfim porque a gerao, que leu o romantismo a receita da vida plena, padece e como padece! as conseqncias de ter lido um livro mal compreendido e mal escrito, sem ter adquirido at hoje a noo de que subproduto de uma mquina frtil em promessas e fecunda em fiascos. (Hargreaves, 1986, p. 42).

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Dada a complexidade extrema do Romantismo, no possvel contemplar aqui todas as figuras que participaram desse movimento espiritual. Porm, no se pode deixar de mencionar os seus principais representantes, no caso: Fichte18, Schelling19, Schlegel20, Hegel e Schleiermacher21. Esses filsofos so muito importantes para a compreenso filosfica do mundo (Hargreaves, 1986, p. 33). Dentre eles, merece destaque Hegel22, o filsofo que melhor apresenta um modelo de compreenso de mundo. Para ele, a filosofia apresenta como funo principal evidenciar o princpio que restauraria a perdida unidade e totalidade (...). Assim, a forma verdadeira da realidade (...) a razo, onde todas as contradies sujeito-objeto se integram, constituindo, desse modo, uma unidade e uma universalidade genunas (Arantes, 1996, p. 9) 23. Portanto, a idia como mero pensamento subjetivo ou como um mero ser por si (um ser que no idia), no se constitui como verdade (...). Isso significa que Hegel construiu uma filosofia que pretende se apresentar como a prpria expresso da realidade, eliminando a distino tradicional entre a idia e o real. Ambos seriam facetas de uma mesma coisa: o que real racional e o que racional real (...). (Arantes, 1996, p. 14).

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Johann Gottlieb Fichte nasceu em Rammenau, na Sacrnia, em 1762. Ele se matriculou no curso de teologia na Faculdade de Jena, em 1780. Entre 1788 a 1790, foi preceptor em Zurique, considerado como um dos perodos mais fecundos da sua vida. A sua obra mais significativa a Doutrina da Cincia, cuja preocupao central a difuso do criticismo kantiano e a descoberta do princpio base que unifica as trs Crticas de Kant em vista da sistematizao do saber. Ele tambm deduz a realidade por trs princpios que vo influenciar a sua reflexo sobre a lei, o Estado, o Direito e a tica. Alis, de acordo Rovighi, Fichte constri uma metafsica que abrir caminho aos sistemas de Schelling e Hegel. (2000, p. 633-656). 19 Friedrich Wilhelm Joseph Schelling nasceu em Leonberg, em Wrttemberg, aos 27 de janeiro de 1775. Estudou teologia, matemtica e cincias naturais. As suas obras fundamentais so: Sistema do Idealismo Transcendental (1800), Idias para uma filosofia da natureza (1797), Filosofia e Religio (1804), Pesquisas filosficas sobre a essncia da liberdade (1809), Filosofia da mitologia e Filosofia da Revelao (obras pstumas). Kierkegaard foi um ouvinte das suas palestras, uma vez que a filosofia positiva de Schelling tinha um aspecto existencialista limitado, provocando assim uma ateno em Soren para a existncia no-dedutvel da essncia. (Bausola, 2000, p. 657-690). 20 Friedrich Schlegel (1772-1829) tem como idia filosfica principal a concepo de infinito que se chega por meio da arte e pela filosofia. Outro conceito importante a ironia. (Reale; Antiseri, 2005, p. 16-17). 21 Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher nasceu em Breslvia, em 1768, falecendo-se em 1834. Estudou Teologia e Filosofia da Religio e lecionou na Universidade em Berlim, a partir de 1810. As suas obras mais importantes so: Discursos sobre a Religio (1799), Monlogos (1800), Doutrina da F (1822). Tambm foram publicadas postumamente as obras relacionadas s aulas dadas sobre a Dialtica, a tica, a Esttica e a Hermenutica (Pupi, 2000, p. 626-632). 22 Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em Stuttgart, no dia 27 de Agosto de 1770. Por ser de famlia protestante teve a oportunidade de estudar filosofia e teologia no seminrio protestante de Tbingem, na qual ficou amigo de Schelling e de Hlderlin. Trabalhou como preceptor na cidade de Berna, Frankfurt, Jena, Nuremberg (aonde atuou como Reitor do Liceu). Em 1818 lecionou na Universidade de Berlim, onde foi reitor em 1829. Aps dois anos, vem a falecer no dia 14 de Novembro. As suas obras mais importantes so: Diferena entre o sistema filosfico de Fichte e o de Schelling (1801), Fenomenologia do Esprito (1807), Cincia da Lgica (1812-1816), Enciclopdia das Cincias Filosficas (1818). Tambm so muito importantes os cursos dados por ele sobre: Filosofia do Direito, Filosofia da Histria, da esttica, Filosofia da Religio e Histria da Filosofia. 23 Cf. ARANTES, Paulo Eduardo. Vida e Obra. In: HEGEL, Georg W. F. Pensadores. So Paulo: Nova Cultural, 1996. v. 13. p. 5-19.

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Na verdade, a realidade a prpria razo que, por sua vez, a prpria realidade. H uma identidade necessria e total entre elas. Tudo o que existe um instante do absoluto, uma etapa da evoluo dialtica que possibilita compreender o fenmeno do esprito que se desenvolve por diversas fases ou etapas ao longo da histria e da vida do ser humano. Toda essa reflexo hegeliana encontra-se presente na obra Fenomenologia do Esprito24 (Reale; Antiseri, 2005, p. 110-129). Segundo Maras, Hegel foi o primeiro a fazer uma Histria da Filosofia (1987, p. 320). Com ele termina uma etapa da histria do pensamento ocidental que procurou explicar a realidade de forma sistemtica e complexa. A vitalidade do sistema hegeliano no deixou de influenciar a cultura e a sociedade da poca. Com relao filosofia, surgiram duas correntes que procuraram explorar o pensamento de Hegel, conhecidas como direita e esquerda hegelianas. Os da direita adotaram o contedo doutrinrio do hegelianismo, sobretudo a tese poltica de que o Estado a mais alta realizao do esprito absoluto. Os velhos hegelianos (...) desenvolveram-se em sentidos diversos, mas sempre partindo dos conceitos bsicos formulados por Hegel. (Arantes, 1996, p. 18). Os representantes principais dessa posio so: Karl Friedrich Gschel (1781-1861), Kasimir Conradi (1784-1849) e Georg Andras Gabler (1786-1853). J os da esquerda hegeliana assumiram o mtodo dialtico e o aplicaram analise dos problemas polticos, invertendo o contedo das doutrinas de Hegel e opondo-se ao regime dominante da Alemanha, regime esse que era apoiado pelos adeptos da orientao direitista. (Arantes, 1996, p. 18). Os seus representados: David Friedrich Strauss (18081874), Bruno Bauer (1809-1882), Max Stirner (1806-1856), Arnold Ruge (1802-1880), Ludwig Feuerbach (1804-1872), Karl Marx (1818-1883), Engels (1820-1895), Soren A. Kierkegaard, entre outros. Nesta altura da Histria da Filosofia, esgota-se uma fase e sobrevm a ela uma profunda, na qual quase desaparece.Isto no estranho, porque a Histria da Filosofia descontnua (...), mas no sculo XIX a Filosofia aparece, alm do mais formalmente negada, o que supe um peculiar fastio de filosofar, provocado, pelo menos parcialmente, pelo abuso dialctico em que cai o genial idealismo alemo. Surge ento a necessidade premente de se ater s coisas, prpria realidade, de afastar das construes mentais para se ajustar ao real tal como este . E a mente europeia [sic] de 1830 encontra nas cincias particulares o modelo que h-de transportar para a Filosofia. A Fsica, a Biologia, a Histria vo aparecer como os modos exemplares do conhecimento. Desta atitude nasce o positivismo [grifo do autor]. (Maras, 1987, p. 332).

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Segundo Hegel, a Fenomenologia do esprito [grifo do autor] descreve o caminho do conhecimento natural que se dirige para o verdadeiro saber, ou o caminho da alma que percorre a srie de suas figuras (Gestalten), quase etapas (Stationem) que sua natureza lhe prescreve, para purificar-se e tornar-se esprito, enquanto, por meio da experincia completa de si mesma, chega ao conhecimento do que ela em si . (1933, apud Rovighi, 2000, p. 716).

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Mesmo com o advento do Positivismo25, o ser humano no deixou de se ater s questes existenciais, no s no que diz respeito compreenso da realidade, mas tambm s formas e maneiras de transform-la em benefcio da existncia humana. num contexto como esse que se pode compreender o papel de um Karl Marx, Engels, Nietzsche26 (1844-1900), Schopenhauer27 (1788-1860) e principalmente Soren Kierkegaard (1813-1855). 1.2 KIERKEGAARD: UM HOMEM-PROBLEMA PARA SI MESMO

Soren Kierkegaard um homem que pensa a vida e a prpria vida, questiona-a e sente os desejos e os sofrimentos no recndito da sua alma. Falar dele no foi e nunca ser fcil. O seu pensamento tem sido interpretado de diversas formas28, por causa do seu estilo de escrever: escreve refletindo e reflete escrevendo. Porm, possvel perceber o tema que rege todo o seu pensamento:25

Segundo Reale e Antiseri, o positivismo o movimento de pensamento que dominou parte da cultura europia em suas expresses no s filosficas, mas tambm polticas, pedaggicas e literrias ( este o perodo do verismo e do naturalismo [grifo do autor]) desde cerca de 1840 at os incios da primeira guerra mundial. Os traos de fundo do ambiente sociocultural que o positivismo interpreta, exalta e favorece so: uma substancial estabilidade poltica, o processo da industrializao e desenvolvimentos por vezes portentosos da cincia e da tecnologia (...); (...) confiana na fora da cincia e do esprito cientifico, a seu ver mais que adequados a repor em seu lugar todo o corpo social (2005, p. 287). O representante mais importante Augusto Comte (17981857), que nasceu em Montpellier (Frana), formando-se em matemtica e cincia. A sua contribuio mais importante diz respeito Lei dos Trs Estados, na qual Comte afirma que o conhecimento passa por trs estgios: teolgico, metafsico e positivo. Cf. GIANNOTTI, Jos Arthur. Vida e Obra. In: COMTE, Augusto. Pensadores. So Paulo: Nova Cultural, 1996. v. 15. p. 5-14. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. O positivismo sociolgico e utilitarista. In: _____. Histria da Filosofia: do Romantismo ao Empiriocriticismo. So Paulo: Paulus, 2005. v. 5. p. 287 310. 26 Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) foi um influente filsofo alemo do sculo XIX e XX. Sua famlia era luterana. Estudou na Universidade de Leipzig. Para Maras, Nietzsche uma mentalidade muito complexa; tinha grandes dotes artsticos e um dos melhores escritores alemes modernos (...). O tema central de seu pensamento o homem, a vida humana, e todo ele est carregado de preocupao histrica e tica (...). O mais importante da filosofia nietzschiana a sua ideia da vida e a sua consciencia de que existem valores especificamente vitais [grifo do autor] (...) (1987, p. 352 354). As suas obras mais significativas so: Humano, muito humano (1879), A Gaia Cincia (1882), Assim falou Zaratustra (1883), Alm do bem e do mal (1886), A Genealogia da Moral (1887) e Ecce homo (1888), Anticristo (1888), entre outras obras. Cf. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Friedrich Nietzsche. In: _____. Histria da Filosofia: De Nietzsche Escola de Frankfurt. So Paulo: Paulus, 2006. v. 6. p. 3 19. 27 Arthur Schopenhauer nasceu em Dantzig (Prssia), aos 22 de fevereiro de 1788. Filho do Henrich Floris Schopenhauer e de Johanna Henriette Trosenier. Aps o falecimento de seu pai, iniciou seus estudos humansticos. Em 1807, matriculou-se no Liceu Weimar. Doutrinou-se pela Universidade de Berlim com a tese intitulada Sobre a Qudrupla Raiz do Princpio da Razo Suficiente (1816). Em 1820, passou a ministrar aulas na Universidade de Berlim. A sua obra mais importante O Mundo como Vontade e Representao (1819). Em 1831, mudou-se para Frankfurt, permanecendo nesta cidade at seu falecimento, que se deu aos 21 de setembro de 1860. Mesmo com os seus exageros, Schopenhauer tornou a nos ensinar a necessidade do gnio e o valor da arte. Ele viu que o bem supremo a beleza, e que o prazer supremo est na criao ou no caminho para com o belo (Durant, 1996, p. 327). Cf. DURANT, Will. Schopenhauer. In: _____. A Histria da Filosofia. Trad. Luiz Carlos do Nascimento Silva. Rio de Janeiro: Nova Cultura, 1996. p. 285 328. 28 Segundo os estudos elaborados por Jolivet, Farago, Gouva e Charles Le Blanc sobre Kierkegaard, existe, na verdade, uma nica leitura do pensamento de Soren. Ningum consegue esgotar o seu pensamento. Infelizmente, no Brasil, h poucas tradues de sua obra e poucos estudiosos, com exceo de: Ricardo Quadros Gouva, Mrcio G. de Paula, lvaro L. M. Valls, Juvenal S. Filho, Alexandre Carrasco, Franklin Leopoldo e Silva e Jonas Roos.

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a sua existncia, a sua personalidade concreta (Jolivet, 1957, p. 3). Ele falou de si mesmo como de um espio que, a servio de Deus, descobre o crime da cristandade: o crime de chamar-se cristo sem s-lo. Por isso, antes de estudar o tema central da sua filosofia, a sua concepo antropolgica, necessrio conhecer a sua vida.

1.2.1 A Vida de Kierkegaard

Soren Aabye Kierkegaard nasceu aos 5 de maio de 1813, em Copenhague (Dinamarca). Sua famlia de origem humilde. Seus pais, Michael Pedersen Kierkegaard (1756-1838) e Anne Soerensdatter Lund (1768-1834), so naturais da Jutlndia Ocidental (Norte da Dinamarca). O pai de Kierkegaard era pastor de ovelhas. Casou-se duas vezes: primeiro, com a Kirstine Royen, que faleceu em maro de 1796, e depois, em abril de 1797, com Anne S. Lund, empregada da famlia. Juntos tiveram sete filhos29, dentre os quais S. Kierkegaard. Kierkegaard recebeu uma educao rigorosa, marcada pela ortodoxia e pela moral luteranas. Ele mesmo relembra os momentos de tristeza e melancolia que viveu na infncia:No conhecia jamais a alegria de ser criana. Os suplcios horrveis que suportei perturbaram esta paz em que deve consistir a infncia, quando se pode pela aplicao, etc. dar alegria a seu pai. Minha inquietao interior fazia com que sempre, sempre me sentisse fora de mim (...). (Kierkegaard, 1971, p. 19).

O rigor da sua formao se expressava inclusive no modo formal de se vestir, causando nele profundo desconforto:Que melancolia! At a fazenda de minhas calas, das quais tanto se zombou, tem uma triste (quase simblica) conexo com a melancolia de minha vida (...). A infelicidade fundamental de minha vida, isto , que embora criana fosse tido por velho, podia-se ver inclusive por minhas roupas. Recordo-me muito bem de quanto me entristecia, quando criana, ao ter de usar tambm eu aquelas calas curtas (...). Depois, tornei-me estudante, mas no fui jamais um jovem (...). Em minha tristeza melanclica e em minha ironia exuberante, comprimi minha natureza nos sofrimentos de ter me tornado velho quando tinha apenas oito anos de idade e de no ter sido jamais um jovem (...). (Kierkegaard, 1971, p.19 20).

angustia de uma infncia mal vivida somou-se tambm a fragilidade fsica, compensada, porm, pela inteligncia brilhante.Franzino, raqutico e fraco para poder valer como um homem completo, quando comparado com outros, no ponto de vista das condies fsicas que me foram negadas, melanclico, submetido ao29

Os filhos do casal chamavam-se: Maren Kirstine (1797-1822), Nicoline Kristine (1799-1832), Petrea Severine (1801-1834), Peter Christian (1805-1888), Soren Michael (1807-1819), Niels Andreas (1809-1833), e S. Kierkegaard (1813-1955). Com exceo de Peter, todos os irmos de Kierkegaard morreram muito cedo. Enquanto Peter vai se dedicar vida eclesistica, Kierkegaard abraa a literria.

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sofrimento interior, profundamente ferido de muitas maneiras no ntimo da alma, a mim s uma coisa me foi concedida: uma inteligncia eminente, com certeza para que eu no ficasse inteiramente desarmado. (Kierkegaard, 1971, p. 20).

Os seus estudos humansticos se deram na Escola Borgerdyd (1821-1830), que significa A Escola da Virtude Cvica. Nessa instituio, Kierkegaard desenvolveu a sua perspiccia e natureza provocativas. (Gouva, 2006, p. 35-36). Aps a concluso dos estudos, inscreveu-se, em 1830, no curso de teologia da Universidade de Copenhague, interessando-se mais pela literatura e filosofia, especialmente a de Hegel, do que pela prpria teologia. Em 1833, inicia o seu Dirio de um Sedutor que, futuramente, vai se tornar um livro muito importante para a compreenso do seu pensamento (Gouva, 2006, p. 38). Um ano depois, morreu a sua me, provocando nele um inexorvel desmoronamento de sua f (Gouva, 2006, p. 39) e passando a viver de forma contrria educao recebida, entregando-se at aos prazeres da literatura, da msica, da pera, do teatro (Gouva, 2006, p. 40). Com o passar dos anos, o sofrimento, a angstia e a inquietao em sua alma tornaram-se mais dilacerantes: Isto de ser um homem so e forte que pudesse participar de tudo, que tivesse fora corporal e um esprito despreocupado: oh! quantas [sic] vezes no desejei tal coisa noutro tempo mais recuado! Na poca de minha adolescncia, meus tormentos eram horrveis (Kierkegaard, 1971, p. 19). Esse estilo bomio de vida terminou aos 19 de maio de 1838, quando Kierkegaard teve uma forte experincia espiritual, reconhecida por ele como um grande terremoto que contribuiu para se reconciliar com Deus e com seu pai, que nunca aceitou o estilo de vida que Kierkegaard abraou. Em 1838, depois de trs meses da converso de Kierkegaard, o seu pai faleceu.Meu pai morreu na quarta-feira (8), s duas da madrugada. Eu queria profundamente que ele vivesse ainda dois anos e vejo em sua morte o ltimo sacrifcio que seu amor fez por mim, porque no morreu para mim, mas por mim, para que eu possa, se ainda for possvel, fazer qualquer coisa. De tudo o que me deixou, sua lembrana, sua imagem transfigurada, no pela minha fantasia (esta no necessria para isso), mas por tantos traos particulares, das quais tenho conhecimento , para mim, a coisa mais preciosa, a que devo esconder do mundo com o maior cuidado: porque sinto claramente que neste momento s existe um (Emil Boesen) a que posso falar sinceramente de meu pai, como de um amigo fiel que ele foi (Kierkegaard, 1971, p. 17).

Das lembranas que permaneceram na alma do jovem Kierkegaard, a mais marcante diz respeito maldio que o seu pai recebeu de Deus por causa de um pecado cometido e que Soren relembra da seguinte forma: O horrvel que sucedeu quele homem que um dia, quando criana, ao guardar os carneiros nas plancies da Jutlndia, sofrendo com fome e frio, subiu a uma elevao e amaldioou a Deus a esse homem [sic] no podia esquecer este fato, embora tivesse oitenta e dois anos! (1971, p. 18). Por meio desse relato, o pensador dinamarqus percebeu que por trs da figura paterna h um homem pecador, frgil e, principalmente, temente a Deus, mas que no depositava

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confiana no perdo divino. Assim, a experincia paterna contribuiu para que Kierkegaard questionasse as verdades do cristianismo (Gouva, 2006, p. 42):Desde o comeo, eu devo tudo a meu pai. Era ele quem, melanclico como era, ao me ver melanclico, suplicava: Trata de amar verdadeiramente a Jesus Cristo! (...). E por amor a meu pai, empenhei-me em expor o cristianismo da maneira a mais verdadeira, contrastando assim como todo esse palavrrio que (na cristandade) se faz passar por cristianismo (...). (Kierkegaard, 1971, p. 19).

Na verdade, a melancolia e a angstia experimentadas por Kierkegaard se devem prpria figura paterna: verdadeiramente terrvel quando, em certos momentos, penso em todo esse fundo sombrio de minha vida, desde os primeiros anos. A angstia, com a qual meu pai me enchia a alma, sua terrvel melancolia, a multido de coisas que no posso sequer apontar. Essa mesma angstia me dominava diante do cristianismo e, no entanto, eu me sentia atrado por ele to intensamente. (Kierkegaard, 1971, p. 19).

Tal angstia e melancolia iro possibilitar a Soren uma reflexo profunda sobre si mesmo e sobre a existncia humana. Para ele, a melancolia tanto pode ser boa como m:Boa melancolia aquela que precede um parto do eterno que se v forado a realizar-se, que convida a escolher em sua vida pessoal o infinito que pode encerrar. M a melancolia que traduz o sentimento de estar perdido por no haver realizado a tarefa que nos fora designada no tempo, cuja irreversibilidade no perdoa as ocasies malbaratadas. (Farago, 2006, p. 48).

Em outras palavras, a melancolia boa a que permite ao ser humano se auto-conhecer e entrar em contato com o divino, ao passo que a m melancolia no contribui para que o homem no tenha um eu e no ser um eu. (Farago, 2006, p. 48). A melancolia e a angstia, com a qual o seu pai enchia-lhe a alma, dilaceravam a existncia de Kierkegaard, mas tambm lhe possibilitavam uma nova reorientao da vida. Da a razo da reverncia e do respeito para com o seu progenitor, apesar de todos os pesares: Amo este homem porque nele sinto o amor, mas o fato de ter-me tornado infeliz por alguma coisa, que no acreditava fazer seno pelo meu bem, desperta minha simpatia e eu o amo ainda uma vez e mais profundamente (Kierkegaard, 1971, p. 19). Em considerao ao pai, Kierkegaard concluiu o curso de teologia em 1840 (Kierkegaard, 1971, p. 18), apesar de nunca ter optado pela carreira eclesistica, como era desejo do seu pai. Em 1837, Kierkegaard conheceu Regina Olsen, filha de um conselheiro de Estado, por quem vai se apaixonar anos mais tarde: Tu, que s a rainha do meu corao (Regina), escondida no mais profundo recesso de minha alma, dos meus mais ricos pensamentos, eqidistante do cu e do inferno divindade desconhecida! (Kierkegaard, 1971, p. 20). Regina tambm se apaixonou pelo seu rico pretendente, cujo brilhantismo e graas sociais eram temperados por um toque de sedutora

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melancolia. (Strathern, 1999, o 27). Ficaram noivos aos 10 de setembro de 1840. Todavia, o estilo de vida de Kierkegaard o impediu de levar a frente tal noivado: ele tinha conscincia da incapacidade de levar uma vida como os outros, sentia-se inseguro e dificuldades para se entregar a um relacionamento srio: Quanto mais ela se mostrava envolvida e confiante, tanto mais sentia-se ele desamparado, despreparado. Longe de lhe serenar o tormento, o amor s fizera perturbar a sua conscincia angustiada. Imps-se o rompimento (Farago, 2006, p. 52). Quanto aos motivos da separao, possvel conjecturar que um Kierkegaard que tivesse conservado a lembrana do terremoto e do sacrifcio30 de seu pai se sentisse incomodado diante de seu prprio desejo e da angstia de fazer Regina entrar em seu mundo espiritual cheio de angstia (Blanc, 2003, p. 36). Por mais doloroso que possa ter representado a separao, esse fato no deixou de sera oportunidade para Kierkegaard aprofundar suas reflexes sobre a existncia e sobre seu destino, que se desdenhava como exceo [grifo do autor]. Na abertura indeterminada [grifo do autor] que a existncia diante de muitos possveis [grifo do autor], ele exerceu sua liberdade [grifo do autor] fazendo uma opo [grifo do autor] difcil, desconfortvel e penosa em termos de sentimentos, de juzo de si e de juzo dos outros. (2003, p 37).

A deciso de Kierkegaard ocorreu tambm para evitar que a senhorita Olsen entrasse no seu mundo de sofrimento:E quando me sinto to infeliz, meu nico consolo que ela no sofra comigo. duro saber, por experincia, que aquela que se ama no foi fiel, mas este sofrimento de todos os dias (...) se permanecesse junto dela seria preciso que me mostrasse contente e se ainda assim ela me visse sofrer (...) quando estou alegre, meu sofrimento constante que ela no posso participar de minha alegria (...). (Kierkegaard, 1971, p. 22).

Aps o cancelamento do noivado, Kierkegaard defendeu sua dissertao de mestrado sobre O Conceito de Ironia constantemente referido a Scrates, obtendo o grau de Magister Artium, aos 29 de outubro de 1841. Tal obra um ataque irnico ao Hegelianismo e ao Romantismo atravs de um estudo comparativo da prtica da ironia em Scrates e nos filsofos romnticos. (Gouva, 2006, p. 47). Como adversrio da filosofia romntica e de um cristianismo estatal, Kierkegaard estava descobrindo sua espetacular vocao, ou seja, ser um missionrio para a cristandade, ajudar as pessoas que se achavam crists a chegar a alguma compreenso do que significava o genuno cristianismo. (Gouva, 2006, p. 48).

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Por terremoto entende-se uma reviravolta que se imps na vida de Kierkegaard, quando ele percebeu que a idade avanada do seu pai no era uma bno divina, mas uma maldio; que os dons intelectuais da sua famlia s existiam para sua extirpao mtua. J por sacrifcio compreende-se uma concupiscncia e expiao por antecipao da concupiscncia pois Kierkegaard sofreu antes de ter pecado --, legado do pai, impedindo-o de viver um compromisso com os outros. Da mesma forma que o seu pai se sacrificou por ele, cabia-lhe tambm fechar o ciclo e sacrificar-se pelo cristianismo. (Blanc, 2003, p. 37).

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Depois de um curso em Berlim (1840), com Schelling, o pensador dinamarqus se decepcionou com a filosofia romntica, regressando para Copenhague e fechando-se numa solido estudiosa (Blanc, 2003, 39). Nesse perodo, escreveu muitas obras com pseudnimos, tais como: Ou (1843), Temor e Tremor (1843), A Repetio (1843), Migalhas Filosficas (1844), Estdios no Caminho da Vida (1845). J com a obra Post-Scriptum No-Cientfico Concludente (1846), Kierkegaard deu incio a uma nova forma de escrever, no mais fazendo recurso de pseudnimos. O seu desejo de ser um escritor religioso tornou-se mais claro e tambm a idia de que ser cristo implica em colocar-se numa atitude de oposio sociedade, a seus valores e sua concupiscncia. (Gouva, 2006, p. 49-50). O primeiro confronto pblico de Kierkegaard se deu em 1846 contra um jornal satrico muito popular e vulgar chamado de O Corsrio, jornal este que tinha o costume de criticar a alta burguesia de Copenhague em defesa de polticas mais liberais. (Blanc, 2003, p. 40). S Kierkegaard foi poupado dessas crticas. Contudo, o autor dinamarqus sentiu que era uma afronta participar desse empreendimento de irriso, desse esforo de massificao do pensamento (Blanc, 2003, p. 40). Preferia ser atacado e ridicularizado pelo jornal. Foi o que aconteceu aps escrever um artigo sobre o Corsrio. Com essa atitude, o jornal deu incio a um ataque incansvel e devastador a Kierkegaard (Gouva, 2006, p. 50), no poupando nem mesmo o seu modo de vestir:Trataram-me de um modo infame, abominvel, um crime nacional foi cometido contra mim, a traio de toda uma gerao. Mas, para mim, foi de um proveito indescritvel. Eu era melanclico, de uma melancolia sem fim: foi isso que me ajudou. Pois em minha melancolia eu ainda amava o mundo: eis-me, agora, desmamado. Com a ajuda de Deus, isso acabar por sair bem. (Kierkegaard, 1971, p. 33).

Apesar dessa perseguio dolorosa e prolongada, ela parece ter confirmado a Kierkegaard em seu papel de mrtir e reforado sua convico de que ele deveria sofrer a fim de expiar os pecados de seu pai e os seus (Blanc, 2003, p. 41). Soma-se a este fato o casamento de Regina com Fritz Schlegel em 1847. Durante essas tribulaes existenciais no deixou de exercer a sua carreira de escritor, produzindo as seguintes obras: Duas Eras- Uma resenha Literria (1846), Livro sobre Adler (1846), Discursos Construtivos em Variados Estados de Esprito (1847), Obras do Amor (1847), e Discursos Cristos (1848), A Doena Mortal (1849), A Prtica do Cristianismo (1850) e demais discursos de carter cristo. Segundo Gouva, os ltimos anos da vida de Kierkegaard foram repletos de veementes escritos polmicos contra os excessos da Igreja do Estado e o fracasso da cristandade em admitir suas grandes falhas como autoproclamada representante do cristianismo (2006, p. 52). Um dos representantes dessa Igreja foi o bispo Mynster, que no vivia seriamente o cristianismo: era mais um funcionrio do Estado do que cristo.

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Certamente o bispo Mynster foi grande! Sim, mas no de uma grandeza crist. No, na ordem esttica foi sua grandeza foi a de um falsrio. Nesse sentido, esteticamente, teve toda a minha admirao (...). Pois Mynster foi este mestre. Foi o banco de toda uma gerao. Quanto no gozaram desta vida estes homens que um dia, na eternidade, quando tiverem de ouvir com horror que isso no cristianismo, mostraro, se ouso dizer, um bilhete assinado por Mynster. Pois Mynster foi o banco. Igualmente, no mais profundo do silncio e da solido em que me entretenho comigo mesmo e minha cincia policial, eu tinha o hbito de chamar Mynster de: banco do estado (...). (Kierkegaard, 1971, p. 37).

Quando esse bispo morreu, Martensen assumiu o seu cargo, tecendo inclusive elogios ao seu antecessor, considerado como testemunha da verdade. Tal afirmao abalou sobremaneira a Kierkegaard, que tinha o costume de aplicar essa expresso aos verdadeiros cristos. Como protesto, Kierkegaard publicou um artigo sobre a aplicao feito pelo Martensen ao Mynster, no qual afirma que chamar Mynster daquela maneira um exagero, absurdo e uma falsificao (Gouva, 2006, p. 54). Os ataques Igreja Estatal foram escritos em diversos artigos compilados numa revista chamada O Momento. Porm, a batalha contra a Igreja levou Kierkegaard a se afastar ainda mais da sociedade. Devido a sua frgil sade, teve um colapso aos 2 de outubro de 1855. Em seu leito de morte, negouse a receber seu irmo, porque era membro da Igreja oficial que ele combateu. Nem sequer concordou em receber a comunho das mos de um membro daquela igreja. Faleceu aos 11 de novembro do mesmo ano. Ao longo da sua vida lutou pela verdade e pelo cristianismo paradoxal: que no constitui comunidade, que se afasta dos homens para se aproximar da Transcendncia (Blanc, 2003, p. 46). Como expresso de tudo o que viveu e escreveu, vale lembrar as palavras do Apocalipse que o seu sobrinho leu no momento em que seu atade era descido cova: Porque s tbio e no s quente nem frio, estou para vomitar-te da minha boca (3, 14-16) (Blanc, 2003, p. 46).

1.2.2 As Influncias Filosficas e Religiosas

No contexto do sculo XIX, o pensador S. Kierkegaard representa um marco singular, tanto nos rumos gerais do pensamento quanto na quebra da confiana na razo ilustrada. Mais do que ruminar sobre idias e trabalhos de outros pensadores, Kierkegaard trouxe algo realmente novo para a humanidade. A origem das suas reflexes se deve s suas experincias pessoais, espirituais e filosficas. De acordo com Gouva, Kierkegaard pertence tradio agostiniana, temperada por sua criao luterana e pietista31, e por sua clara compreenso das questes em jogo no seu prprio31

Segundo Blanc, o pietismo uma corrente religiosa proveniente do luteranismo que a princpio se arraigou na Alemanha do sculo XVII para irradiar-se em seguida para vrios pases, entre outros lugares a Dinamarca, colocava em primeiro plano a experincia religiosa pessoal e a reforma interior. Protestava contra uma espcie

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tempo (2006, p. 11). Isso no significa afirmar, de forma alguma, que Kierkegaard reproduziu sem mais as idias de Agostinho, do pietismo, da tradio luterana. O que ocorreu, na verdade, foi uma apropriao feita por ele de noes de diferentes escolas de pensamento, at mesmo de pensadores pagos, a fim de fazer emergir algo novo. Segundo Gouva32,Agostinho e Kierkegaard foram homens muito diferentes, vivendo em circunstancias muito diversas, mas lidaram com as mesmas angstias e enigmas filosficos. Ambos procuram trabalhar filosoficamente com os conceitos fundamentais da f crist, conceitos como f, verdade, amor e o conhecimento de Deus. Tanto Kierkegaard quanto Agostinho tiveram que lidar arduamente coma relao entre a f crist e a tradio filosfica ocidental. Agostinho, o bispo, tinha preocupaes prticas com a vida da igreja que queria manter unificada. Kierkegaard, por outro lado, foi o indivduo por excelncia, apologista da individualidade humana, eremita na multido, voz clamando no deserto meio a uma cristandade desvanecente e uma intelectualidade crista em franca crise desde o Iluminismo. (2007, p. 1).

Outro filsofo importante na formao filosfica de Kierkegaard foi Scrates33: figura marcante no decorrer de toda a obra kierkegaardiana, sendo seu acompanhante e interlocutor do primeiro ao ltimo momento (Paula, 2007, p. 62). De Scrates, Kierkegaard vai apropriar o mtodo da ironia, tornando-se assim um instrumento usado para combater um dos seus grandes adversrios: a dissoluo do indivduo na cultura e na histria34.Tanto ele como Scrates enfatizam o homem, enquanto indivduo, as questes ticas e criticam um sistema especulativo que oculta o ser humano e o divorcia da vida (...). Scrates no pensamento de kierkegaardiano o tema a estratgia crtica diante da cristandade e da especulao e o exemplo principal para uma melhor explicao da diferena entre a concepo grega e a concepo crist (...). Ambos almejam ser um corretivo [grifo do autor] para seu tempo, repleto de sofistas de toda a sorte (...). (Paula, 2007, p. 64).

Nem mesmo Hegel foi poupado das crticas do pensador dinamarqus. Recai sobre Hegel a acusao da perda do sentido de existncia. Kierkegaard acusou sobremaneira o sistema hegelianoburocratizao da Igreja e uma secularizao da prtica religiosa. Esse protesto encontra-se tambm em Kierkegaard. A principal reivindicao pietista de um cristianismo mais fervoroso (pietas) [grifo do autor], fundamentado em uma prtica religiosa e em uma moral pessoal mais austeras. O pietismo esperava, essencialmente, proporcionar uma vida nova e mais profunda ao luteranismo, e permitir ao crente adquirir uma f vivida e sentida pelo contato direto com Deus (idia da relao nua com o Absoluto, presente em Kierkegaard) (2003, p. 20). Sobre o pietismo, leia-se: TILLICH, Paul. Pietismo. In: _____. Histria do Pensamento Cristo. 2 ed. So Paulo: Aste, 2000. p 279 282. 32 Cf. Gouva, Ricardo Quadros. Kierkegaard lendo Agostinho: Introduo a um Dilogo Filosfico Teolgico. Disponvel em: < http://www.esnips.com/doc/2672a195-f267-4d65-b332-5702658da96b/RicardoGouva---Kierkegaard-lendo-Agostinho---introduo-a-um-dilogo-filosfico-teolgico-(pdf-artigo)> Acesso em: 08 de Agos. de 2007. 33 Scrates nasceu no ano de 470 ou 469 a. C., em Atenas. Era filho de um talhador de pedras e de uma parteira. Nunca fundou uma escola, pois realizava os seus ensinamentos em locais pblicos. Ele no escreveu nada: a sua mensagem era transmitida pelo dialogo e pela oralidade dialtica. O pensador ateniense veio a falecer em 399 a. C., acusado de corromper os jovens e contrariar as leis da cidade. O grande legado de Scrates a sua inaugurao da tica: os problemas da filosofia at seu perodo eram de ordem cosmolgica e sofistica, mas Scrates chamou ateno para a alma do homem e para o seu agir tico. Cf. BENOIT, Hector. Scrates: o nascimento da Razo Negativa. So Paulo: Moderna, 1996. 34 Vale lembrar que alm de combater os sistemas filosficos que reduziam o ser humano a uma mera abstrao, uma figura perdida nas massas, Kierkegaard tambm combateu a tibieza do cristianismo da sua poca.

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de querer explicar tudo e demonstrar todos os acontecimentos da histria e do mundo por meio da dialtica. Para Soren, nenhum sistema capaz de engaiolar a existncia (Reale; Antiseri, 2005, p.241): o ser humano possui um modo contingente e mutvel de viver a existncia, no podendo ser redutvel a nenhuma lgica. Segundo Blanc, h quatro elementos que indicam a oposio de Kierkegaard a Hegel:a transcendncia absoluta de Deus (versus imanncia da idia), transcendncia da f (versus imanncia da razo), abandono da mediao especulativa (versus sua manuteno), a necessidade da justificao pela graa (versus alcance da verdade unicamente pelas foras da razo). Sendo assim, a filosofia de Soren Kierkegaard no se construiu em oposio de Hegel: ela foi levada por posies prprias e autnomas a tomar um sentido oposto (...). Sua filosofia no uma filosofia de oposio, mas de posio: a do carter radical da mensagem crist [todos os grifos so do autor] (2003, p. 123).

Alm desses pensadores, outros tantos contriburam com a formao do pensamento kierkegaardiano, tais como: Tertuliano e outros Padres da Igreja, Santo Anselmo35, Gottfried Leibniz, Lessing36, Immanuel Kant37, Emil Boesen, Poul Martin Moeller e Ludwig Feuerbach38. A todos eles, sem dvida, Kierkegaard devedor, mas no se pode esquecer de que o pensador dinamarqus foi um homem, um escritor, um cristo que fez a diferena, tanto por sua coragem de enfrentar os poderes institudos da poca, quanto por ter resgatado o verdadeiro sentido da existncia.Minha misso: limpar o terreno No sou um apstolo que anuncia algo em nome de Deus e com autoridade. No, estou a servio de Deus, mas sem autoridade. Minha misso de limpar o terreno, para que Deus possa avanar ( margem: minha misso no a de limpar o terreno com os meios comuns, mas por meio do sofrimento). Deduz-se ento facilmente porque devo ser literalmente um homem sozinho e mantido em grande fraqueza e debilidade. Porque, se aquele que h de limpar o terreno avanasse frente de alguns batalhes claro que, no plano humano, este parece um mtodo magnfico e o mais seguro para consegui-lo. Mas existiria o perigo de que, em lugar de limpar, esse homem tomasse conta do lugar e de tal maneira que Deus acabaria por no poder agir verdadeiramente. Minha misso a de limpar o terreno. Sou um policial, se quiserem. Mas a polcia deste mundo procede com a fora e prende os outros ao contrrio, a polcia do alto procede por meio do sofrimento e exige antes de ser presa. (1971, p. 45 46).

O modo como desenvolveu essa misso, o mtodo usado nas suas reflexes e os temas que constituram objeto de sua reflexo sero temas do prximo captulo. Por ora basta dizer que o ponto de partida das reflexes de Kierkegaard foi sempre o homem singular, vivo, existencial, com a totalidade de seus afs e de seus problemas.35

Cf. VALLS, Alvaro L. M. Santo Anselmo de Copenhague. In: _____. Entre Scrates e Cristo: Ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 197 213. 36 Cf. VALLS, Alvaro L. M. O Problema das Migalhas. In: _____. Entre Scrates e Cristo: Ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 158 160. 37 Cf. VALLS, Alvaro L. M. Algumas comparaes com Kant. In: _____. Entre Scrates e Cristo: Ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 123 124. 38 Cf. VALLS, Alvaro L. M. As Migalhas Filosficas. In: _____. Entre Scrates e Cristo: Ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 155 158.

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2 KIERKEGAARD: UM PENSADOR ESCUTA DO SER HUMANOA superioridade do homem sobre o animal est pois em ser suscetvel de desesperar, a do cristo sobre o homem natural, em s-lo com conscincia, assim como a sua beatitude est em poder curar-se. Soren Kierkegaard

O sculo XIX foi um perodo da histria da humanidade marcado por grandes revolues tanto na cincia como na sociedade. Todas essas mudanas afetaram significativamente o ser humano, forando-o a repensar a sua situao no mundo. Todas as seguranas que o Iluminismo oferecia desapareceram. A rainha razo, que se vangloriava de ser a suprema forma de conhecimento e nica luz para a compreenso da vida, j no capaz de oferecer segurana e consistncia para a existncia humana. Mal-estar, desencanto com a vida, desnimo, incertezas, tibieza... so alguns sentimentos que se apoderaram do homem do sculo XIX. Depois de se analisar o contexto histrico, social e filosfico em que viveu Kierkegaard, necessrio continuar a investigao sobre o pensador dinamarqus, concentrando agora a ateno sobre a viso que ele tem de homem, especialmente do homem religioso. Como Nietzsche39, Kierkegaard percebeu os males da sua sociedade e procurou ajudar o ser humano a encontrar a si mesmo no devir concreto, no a, no instante concreto em que vive e decide a sua existncia. Tanto a desvalorizao da subjetividade como a forma do cristianismo reduzido a mero componente da sociedade incomodaram profundamente a inteligncia do pensador dinamarqus. O objetivo principal de Kierkegaard foi o de descrever o que o cristianismo verdadeiro. Para isso, necessrio deixar-se interpelar por Deus, j que todo ser humano est situado diante de Deus na concreo de seu prprio viver.

2.1 O MTODO

As obras que Kierkegaard escreveu entre 1843 a 1846 so classificadas como heteronmicas, ou seja, obras escritas por meio de pseudnimos, cuja comunicao se d de forma39

Nietzsche exerceu tambm o papel de um profeta, pois previu que a raiz de todos os males que atingem o homem contemporneo encontra-se no niilismo: Descrevo aquilo que vir: o advento do niilismo. Posso descrev-lo agora porque agora se produz algo necessrio e os sinais disso esto por toda a parte, para v-los faltam apenas os olhos (...). O homem moderno cr experimentalmente ora neste, ora naquele valor, para depois abandon-lo; o crculo de valores superados e abandonados est sempre se ampliando; cada vez mais possvel perceber o vazio e a pobreza de valores; (...). No fim, o homem ousa uma crtica dos valores em geral; reconhece sua origem; conhece o bastante para no acreditar mais em valor nenhum; eis o pathos [todos os grifos so do autor], o novo tremor... A histria que estou relatando a dos dois prximos sculos. (Nietzsche, 1971, p. 110, apud Reale, 1999, p. 18-19).

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indireta. Quase todas as obras mais famosas de Soren pertencem a esse perodo. Na verdade, os pseudnimos foram usados pelo autor para instigar o leitor, para extrair do sujeito a verdade, semelhante ao mtodo maiutico socrtico. Alm desse mtodo, Kierkegaard fez uso da comunicao direta, presente nas obras escrita de 1843 a 1855. Esta comunicao direta constitui as obras veronmicas, feitas de discursos edificantes.

2.1.1 A Comunicao Indireta e Direta Para escrever as obras pseudonmicas comunicao indireta -, Kierkegaard se inspira nas Cartas confidenciais sobre a Lucinda, de Scheleiermacher, e no romance filosfico Wilhelm Meister, de Goethe (Farago, 2006, p. 58). Essas obras do pensador dinamarqus so apresentadas por meio das mscaras de pseudnimos que permitem que os autores se expressem na primeira pessoa, com as suas prprias opes existenciais. Conseqentemente, os pseudnimos possibilitam mudanas interiores no leitor atravs de movimentos existenciais que s ele pode executar. Por isso, Kierkegaard iniciou a sua carreira literria escrevendo obras com pseudnimos. Essas obras so maiuticas. O mtodo maiutico o mtodo usado por Scrates. Tem o objetivo de descobrir a verdade40, descobrir as respostas para os dilemas existenciais da vida humana. A verdade que o ser humano deve descobrir possui um elemento subjetivo, de apropriao, ou seja, a verdade tem que ser verdadeira para mim (a verdade tem que se tornar viva em mim). (Gouva, 2006, p. 238-239). Os pseudnimos mais importantes que Kierkegaard usou nas suas obras heteronmicas ou estticas so os seguintes41: Algum que Ainda Vive, Victor Eremita, A, Johannes o Sedutor, Juiz Vilhelm (B), O Pastor de Jylland, Johannes de Silentio, Constantin Constantius, O Jovem, Johannes Climacus, Vigilius Haufniensis, Nicolaus Notabene, A.B.C.D.E.F.Godthaab, Hilarius Bogbinder, Willian Afham, O Modista, Frater Taciturnus, Quidam, Inter et Inter, Procul, Petrus Minor, H.H., Anti-Climacus. De fato, a comunicao indireta presente especialmente nas primeiras obras de Kierkegaard quer, na verdade, transmitir uma mensagem excepcional para os dinamarqueses oficialmente cristos, a fim de que percebam que eles no so de modo algum cristos. O objetivo do pensador dinamarqus instig-los, confundi-los e libert-los de um cristianismo falsrio,

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Kierkegaard e Scrates dizem que a verdade verdade para o sujeito. Somente o sujeito apropria-se a si mesmo a verdade. Todavia, contrapem-se no momento de explicar a relao do sujeito para com a verdade. Para Soren, o indivduo a no-verdade, ao passo que para Scrates basta o individuo recordar-se da verdade que j estava no seu interior. 41 Para aprofundar mais sobre eles: Cf. GOUVA, Ricardo Q. Os Heternimos de Kierkegaard. In: _____. Paixo pelo Paradoxo: Uma Introduo a Kierkegaard. So Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 309 315.

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acomodado, tbio. As suas obras estticas funcionam como espelhos, onde a sociedade dinamarquesa chamada a se olhar e a se ver42. (Gouva, 2006, p. 241). Os autores das obras estticas foram criados por Soren como autores-personagens que inclusive compartilhavam com Kierkegaard muitas das suas convices. H, porm, exceo, pois possvel encontrar em muitas das obras estticas idias que no condizem com algumas das convices de f professadas por Kierkegaard. Em outras palavras: os heternimos43, outros nomes de Kierkegaard, formulam e expressam idias diferentes em contedo (filosofia), em estilo, em compreenso e nas prticas de vida do pensador dinamarqus. (Gouva, 2006, p. 242):O que foi escrito , pois meu, mas somente na medida em que me coloco na boca da personalidade potica real, que produz sua concepo de vida tal como se percebe pelas rplicas, pois minha relao com a obra ainda mais exterior que aquela do poeta que cria personagens e, no entanto, ele mesmo o autor do prefcio. Sou, com efeito, impessoal ou pessoalmente um assoprador da terceira pessoa, que poeticamente criou autores, os quais so os autores de seus prefcios e mesmo de seus nomes. No h, pois, nos livros de pseudnimos uma s palavra que seja minha. No tenho nenhuma opinio a seu respeito a no ser a de um terceiro, nem conhecimento de sua importncia seno enquanto leitor, nem a menor relao privada com eles, pois seria impossvel ter uma relao com uma mensagem duplamente refletida44. (Kierkegaard, 1971, p. 47).

Neste caso, os heternimos funcionam como um grupo excntrico e curioso. So alteregos, personae de Kierkegaard. Apresentam pontos de vista, estilos, tons, vocabulrios diferentes de Kierkegaard, existindo at mesmo, entre eles, discordncia e contradio. (Gouva, 2006, p. 245). Porm, no se pode esquecer de que a heteronomia constitui um mtodo socrtico, cujo principal objetivo, como j se acenou, chamar as pessoas para um verdadeiro compromisso com o cristianismo e com a interioridade45.No obstante, como j disse, eu no tenho nada a fazer com o contedo da obra. Minha tese era que a subjetividade, a interioridade a verdade. Era ela a meus olhos o decisivo problema do cristianismo e foi nesse sentido que procurei seguir um esforo semelhante, encontrado nos livros pseudonmicos que, at o ultimo, abstiveram-se honestamente de ensinar e em particular devo tomar em considerao o ltimo [Post-Scriptum] porque ele apareceu aps minhas Migalhas,

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A aluso ao espelho encontra-se no epigrama de G. C. Litchtenberg, usado por Kierkegaard em: In Vino Veritas: Tais obras so espelhos: se um macaco a olhar, no pode ver-se um apstolo. (2005, p. 10). 43 De acordo com Gouva, melhor usar o termo heternimo porque essa palavra implica numa sntese de personae de elementos ficcionais e autobiogrficos. Ou seja, as palavras dos heternimos no so as palavras de Kierkegaard, mas so faladas por genunos alter-egos. Os heternimos so inclusive usados propositalmente para deixar os livros falarem por si mesmos, interpretados por seu prprio valor e no pelo autor. (Gouva, 2006, p. 243-245). 44 No final desse trecho, Gouva diz que Kierkegaard no teria problema em assumir as suas idias de modo indiretamente, mas as obras heteronmicas precisam ser interpretadas juntamente com as obras veronmicas, visto que a autoria de Kierkegaard no era um segredo, mas um modo de os leitores se identificarem com os autores dos livros, possibilitando assim uma reflexo interior. (Gouva, 2006, p. 249-250). 45 Alm dessa inteno, Blanc diz que a pseudonmia remete claramente a uma questo dolorosa, a da paternidade: segundo a carne (Michael Pedersen, o culpado), segundo o esprito (o bispo Mynster, o comprometido), segundo a condio particular (Soren, o eterno noivo de Regina), segundo a condio pblica (Kierkegaard, o autor), etc.. (2003, p. 112).

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lembra os precedentes recriando-os livremente e, atravs do humor, como zona-limite, define o estgio religioso. (Kierkegaard, 1971, p. 56).

Vale lembrar que Kierkegaard tinha o costume de chamar o mtodo da comunicao indireta de um processo de comunicao duplamente refletida: a primeira reflexo levaria a idia a ganhar sua expresso adequada na palavra; a segunda reflexo enfatizaria a relao intrnseca da comunicao com o comunicador. Isso significa que a comunicao qualificada pela reflexo, sendo, portanto, uma comunicao indireta. A insistncia de Kierkegaard na comunicao duplamente refletida o levou a abraar a heteronomia. (Gouva, 2006, p. 251). Portanto, comunicao indiretaimplica, no que h muitos significados possveis e legtimos para um texto, mas sim que o texto pode ser interpretado de muitas formas apesar de seu significado genuno que sempre est oculto, e o interprete revelar seu prprio corao e ser julgado pelo texto conforme torne evidente seu prprio modo de l-lo. (Gouva, 2006, p. 251-252).

No entanto, como o objetivo do mtodo de Kierkegaard provocar movimentos existenciais, alcanar a simplicidade, a comunicao deve tornar-se comunicao direta. Foi isso que Kierkegaard procurou provar: a verdadeira comunicao indireta acompanhada da comunicao direta (Gouva, 2006, p. 252). Mas quando foi que Kierkegaard colocou isso em prtica? O pensador colocou em prtica esse pensamento ao escrever a sua chamada obra veronmica paralela, composta de comunicao direta46.Kierkegaard insistiu que a comunicao direta estava presente desde o incio, pois o livro Dois Discursos Construtivos, de 1843, foram de fato simultneos com Ou. E para que se estabelecesse definidamente essa comunicao religiosa como contempornea, cada novo livro heteronmico era acompanhado quase simultaneamente por uma pequena coleo de Discursos Construtivos at o surgimento do Post-Scriptum Concludente, que fechou a questo sobre o problema da obra toda, ou seja, como tornar-se um cristo. A partir deste momento os discretos indcios de comunicao religiosa direta cessam e a comea a produo puramente religiosa: Discursos Construtivos em Variados Estados-de-Esprito, Obras do Amor, Discursos Cristos. (Gouva, 2006, p. 252).

Toda a genialidade literria de Kierkegaard teve apenas um objetivo: descrever o que o cristianismo. Por isso, antes de ser um poeta (o seu estilo de escrever e a estrutura das suas obras comprovam a sua veia potica), Soren foi um escritor religioso crtico:Esta pequena obra [Post-Scriptum] se prope, pois, dizer o que sou verdadeiramente como autor, que fui e sou um autor religioso, que toda minha atividade literria relaciona-se com o cristianismo, com o problema do tornar-se cristo, com objetivos polmicos diretos e indiretos contra esta

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Tal comunicao no totalmente direta, pois, se fosse, seria um conhecimento terico, ordinrio, cientifico e especulativo. Mas direta na medida em que Kierkegaard se responsabiliza por seus discursos, que so como testemunhos que caem sob a rubrica de comunicao indireta, uma vez que esses escritos tm uma funo prtica crist. (Gouva, 2006, p. 235-236).

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formidvel iluso que a cristandade ou a pretenso que todos os habitantes de um pas so, enquanto tais, cristos. (Kierkegaard, 1971, p. 57).

Acima de tudo, Kierkegaard foi um crtico veraz do sculo XIX. Seu poder literrio brilhante e criador foi colocado a servio da afirmao da singularidade do ser humano. Seu pensamento procura demonstrar o verdadeiro sentido da vida. Cada homem responsvel por buscar a si no na massa e nas instituies, mas no seu prprio interior, no contato com o transcendente.

2.2 A EXISTNCIA E O INDIVDUO

O homem um ser-no-mundo, encontra-se diante de muitas possibilidades. Para ele tudo possvel. Ele goza do poder de escolher, de determinar a sua vida, sendo, porm, responsvel pelas escolhas que faz. O ser humano no um pensamento especulativo ou uma entidade abstrata: um individuo concreto, dotado de razo e emoo. Ele a sntese do corpo, da alma e de esprito. A sua existncia o coloca sempre na situao de angstia e desespero, que s podem ser superados pelo auxilio divino.

2.2.1 A Existncia como possibilidade

Segundo Blanc, a pedra angular da construo filosfica de Kierkegaard o conceito de possibilidade (2003, p. 47). O pensador dinamarqus procurou reconduzir a compreenso de toda a existncia humana a essa categoria e demonstrar o carter negativo e paralisante da possibilidade como tal47 (Abbagnano, 1978, p. 10). A palavra possibilidade deriva da palavra possvel que, por sua vez, vem do latim posse potis esse que significa ter em seu poder , ser patro de. O possvel significa que o eu pode fazer e realizar algo na experincia concreta e vivida. Para Kierkegaard, o possvel caracterizar o existir do homem, uma existncia pela qual o homem entra em contato como o mundo e com os outros. Tambm preocupao com sua sobrevivncia, e antecipao e projeto, desenvolvimento de um programa que est se escrevendo, sada fora de si da vida (Blanc, 2003, p. 48). Neste caso, a existncia se torna uma contingncia absoluta: o homem tem diante de si uma multiplicidade de possibilidades pelas quais escolhe. O47

O aspecto do negativo da possibilidade significa que todas as possibilidades so possibilidades-de-sim e possibilidades-de-no, pois no seu projetar-se o homem se v diante do nada, angustia-se com o mundo. (Abbagnano, 1978, p. 12-14).

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mundo exige uma resposta, uma escolha de cada ser humano. A existncia no um objeto, mas aquilo a partir do qual cada um experimenta, pensa e age.Existir, para o homem, no o equivalente de ser (Vaeren) ou de ter a existncia, emprica, imediata, a existncia de fato (Tilvaerelse). O homem o nico existente, distinto dos outros entres que s tem uma existncia de fato e no sab