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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA LÍVIA SUDARE DE OLIVEIRA REVISÃO PRELIMINAR DA LITERATURA CIGANOS: DO DEGREDO À BUSCA POR DIREITOS SOCIAIS

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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINALVIA SUDARE DE OLIVEIRA

REVISO PRELIMINAR DA LITERATURACIGANOS: DO DEGREDO BUSCA POR DIREITOS SOCIAIS

Florianpolis (SC) 2013

LVIA SUDARE DE OLIVEIRA

REVISO PRELIMINAR DA LITERATURACIGANOS: DO DEGREDO BUSCA POR DIREITOS SOCIAIS

Trabalho apresentado disciplina de TCC I do Curso de Direito da Unisul como requisito parcial para a concluso e aprovao na disciplina.

Prof .: Maria Lucia Pacheco Ferreira Marques, Dr.

Florianpolis (SC)2013

1 Reviso preliminar da literatura:

A construo deste trabalho est fixada na interface de reas diversas de conhecimento, desta forma a sua base bibliogrfica abrange temas como polticas pblicas, antropologia, histria e direito. Este cruzamento de reas de conhecimento se faz necessrio no s por conta da pouca produo de informao a cerca do povo cigano que tem se dado no Brasil, mas tambm pela complexidade da minoria tnica em questo. Ento alguns conceitos pontuais precisaro ser discutidos, tais como identidade, etnicidade, anticiganismo, invisibilidade social, resistncia cultural e polticas pblicas voltadas para minorias tnicas. preciso entender que a comunidade cigana no pas um verdadeiro caleidoscpio cultural, formada por diversos grupos, Calon, Sinthi e Rom. So um povo que carrega uma bagagem de anos e anos de perseguies, disporas e preconceitos advindos de polticas anticiganas. E talvez seja esta bagagem que lhes d fora para resistir. Segundo Dimitri Fazito: A habilidade em responder s dificuldades e presses externas, a capacidade de assimilar os padres culturais alheios ao invs de ser assimilada por eles, a maleabilidade da organizao social dos grupos e a flexibilidade na organizao da experincia cotidiana permitem classificar a cultura cigana como uma cultura da resistncia. (2000, p.57)

A identidade pode ser vista como a maneira que os seres humanos caracterizam e conceituam-se a si prprios e queles que entendem como membros de outro grupo. Denys Cuche define identidade como uma construo que se elabora em uma relao que ope um grupo a outros grupos com os quais est em contato (Cuche, 2002, p.182). Isabela Albuquerque Dias afirma que: As identidades no so de forma alguma essenciais ou pr-existentes em um grupo, mas cunhadas, podendo ser revistas ou adaptadas (2012, p. 43). A identidade dos ciganos se constituiria ento em oposio a identidade no cigana.O conceito de identidade acaba conduzindo ao de etnicidade, que acaba tambm levantando a questo da origem. Frederik Barth aponta que a identidade tnica imporia papis e esteretipos, para que os indivduos assumam determinados comportamentos, a fim de essas categorias do grupo fossem assimiladas objetivamente (Barth apud Dias, 2012, p.44). E os ciganos hoje vivem um dilema, como bem ressalta Ana Paula Castelo Soria: Os rma de hoje, embora resistam a aceitar mudanas, encontram-se aturdidos em um mundo onde enfrentam um duplo desafio: sobreviver como etnia, mantendo os valores tradicionais para a identidade e, por outro lado, promover os ajustes necessrios convivncia com a sociedade. (2008, p.76)

A sociedade por seu lado ainda no sabe lidar com a questo cigana da maneira como deveria. Talvez fosse considerado exagero afirmar que as polticas pblicas voltadas para os ciganos no Brasil so marcadas pelo anticiganismo, mas, pode-se pontuar ao menos que os ciganos at pouco tempo os ciganos foram relegados invisibilidade, visto que sequer so citados na Constituio Federal, que incerto o nmero de cidados ciganos existem no pas e que no existem adaptaes nos projetos sociais do governo para a causa cigana. Logo possvel dizer que os ajustes para a convivncia com a sociedade tambm deveriam vir do lado da prpria sociedade. Soria afirma que para as minorias o desafio da convivncia

se agrava em funo de que so maiorias as que geralmente possuem as ferramentas para efetivar as condies de uma convivncia mais harmnica. E as sociedades majoritrias, envoltas na insegurana e no medo prprios da modernidade lquida, esto mais interessadas em protegerem-se e levantarem barreiras fronteirias com a finalidade de manter distncia todo e qualquer outsider, sem exceo. (2008, p.76)

Pode-se dizer que para o caso cigano aplicado o que Mariana Bonomo (2010, p.160) de dinmica do esquecimento ou invisibilidade social das minorias tnicas. O desconhecimento sobre os grupos ciganos causa complicaes para a criao de polticas pblicas. Um grupo cigano que vive acampado e tem hbitos nmades tem um tipo de necessidade diferente de um grupo de cigano que vive na cidade e sedentrio. Em conversa com uma pedagoga cigana[footnoteRef:2] do cl Kalderash[footnoteRef:3] foi possvel perceber que naquele caso especfico a sua necessidade no era material, mas sim de poder falar abertamente sobre sua identidade sem sofrer os preconceitos sofridos pelo seu povo. [2: - Tatyana Gauglitz disse em entrevista via facebook: O preconceito imenso, mesmo para mim que tenho casa prpria, profisso e uma aparncia dentro dos padres estabelecidos pela sociedade. ] [3: - Os Kalderash so um sub grupo dos Rom, oriundos da Hungria.]

O anticiganismo ainda se faz presente, mesmo que em nveis menos agressivos como no passado e se configura como toda prtica de discriminao, preconceito ou esteretipo para com cidados ciganos por conta de sua origem. Franz Moonen afirma que Combater o anticiganismo exige, portanto, combater os esteretipos, os preconceitos e as discriminaes anticiganas (2012, p.169). No Brasil como os estudos referente aos ciganos ainda so poucos, a imagem deste povo ainda est envolta em nvoas de suposies e, muitas vezes, de preconceito. Os estudos sobre os ciganos no Brasil esto em fase embrionria se comparados s pesquisas sobre outros grupos tnicos do pas, mas em um ponto convergem: a necessidade de respeitar os ciganos enquanto uma minoria tnica. No por uma simples questo de ttulo, mas sim para tir-los da invisibilidade social qual foram relegados e comear a construo de polticas pblicas voltadas aos seus interesses.A Constituio de 1988 em seu artigo 232 atribui ao Ministrio Pblico Federal, a defesa dos direitos e interesses indgenas, funo antes exercida exclusivamente pela Fundao Nacional do ndio. Assim criou-se a Coordenadoria de Defesa dos Direitos e Interesses das Populaes Indgenas /CDDIPI. Alguns anos depois a ao do Ministrio Pblico foi ampliada para a proteo dos interesses no s das comunidades indgenas, mas tambm das minorias tnicas, graas Lei Complementar 75 de 20 de Maio de 1993 (art. 6, VII, c). Tal Lei, no entanto, no especificou quais seriam essas minorias tnicas. A CDDIPI foi substituda, em 1994, pela 6 Cmara de Coordenao e Reviso dos Direitos das Comunidades Indgenas e Comunidades Tradicionais. Os ciganos, os ribeirinhos, os quilombolas e as comunidades extrativistas seriam considerados partes das comunidades tradicionais.No que concerne a Constituio Franz Moonen alega:A Constituio Federal garante aos brasileiros ciganos os mesmos direitos de qualquer cidado no-cigano. Pelo menos em teoria. Na prtica, muitos destes direitos so constantemente violados, o que se manifesta na existncia de esteretipos negativos, preconceitos e vrias formas de discriminao das minorias ciganas pela populao nacional. Porm, os ciganos, por constituirem minorias tnicas, tambm tm direitos especiais, citados em vrios documentos internacionais, aprovados e promulgados tambm pelo Governo Brasileiro. Desnecessrio dizer que tambm estes direitos especiais so constantemente ignorados e violados. (2012, p.156)

neste sentido que um Estatuto dos Direitos do Povo Cigano se faz fundamental, visto que as peculiaridades do povo cigano no so compreendidas apenas pelos direitos assegurados a qualquer cidado no-cigano. estudando a histria deste povo que se faz entender a real necessidade de polticas pblicas que garantam a preservao de seu patrimnio cultural, seu acesso a direitos sociais e a lenta/porm gradual mudana no imaginrio no-cigano a cerca deste povo.

1.1 Introduo

Os povos Rom, Sinti e Calon chamados ciganos no so citados na Constituio Federal de 1988, tendo sido assim ignorados enquanto minoria tnica, no dispondo ento de direitos especficos despendidos grupos classificados como minorias tnicas. Enquanto os ndios (minoria tnica oficializada pela Constituio) possuem legislao especfica e rgo federal que cuida de seus interesses, os ciganos tm seus interesses debatidos atravs de decretos e portarias[footnoteRef:4] ou de aes tomadas por rgos como a Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial [footnoteRef:5]. Ou seja, os interesses dos ciganos ainda so relegados para segundo plano, no que tange elaborao de leis ou criao de rgos que tratem das especificidades desta minoria, de forma a garantir-lhes melhor acesso a direitos que na teoria so garantidos a todos os brasileiros pela Constituio Federal. [4: - Que tratam da questo das minorias em geral, ignorando assim as especificidades de cada uma, no sendo nenhuma voltada especificamente para os ciganos.] [5: - O principal objetivo desta Secretaria, como elencado em seu site, : Promover a igualdade e a proteo dos direitos de indivduos e grupos raciais e tnicos afetados pela discriminao e demais formas de intolerncia, com nfase na populao negra.]

Em 12 de dezembro de 2012 o ento presidente da Comisso dos Direitos Humanos e Legislao Participativa senador Paulo Paim (PT-RS) anunciou para 2013 a elaborao de um possvel Estatuto dos Ciganos. Na mesma reunio ficou acertado que em 2013 seriam realizadas diversas audincias pblicas pelo pas nas quais se espera ouvir dos prprios ciganos quais so suas necessidades e assim o que deveria constar no estatuto. Este trabalho pretende tratar do acesso a direitos sociais como: educao, sade, cultura, habitao, segurana e justia, que tem sido negligenciados aos grupos ciganos, em especial aos nmades e seminmades, e como uma legislao especfica pode contribuir para a mudana deste quadro. O fato de os ciganos terem suas particularidades culturais ignoradas pela legislao, privados do acesso a direitos sociais bsicos poderia ser entendido como preconceito? Seria possvel associar este fato uma poltica do esquecimento? Poderia um Estatuto cobrir essas falhas? Que peculiaridades esta minoria tnica possui que faz com que ela precise de um Estatuto para assegurar a garantia de seus direitos?

1.2 Desenvolvimento

Cristina da Costa Pereira aponta na introduo de sua obra Os ciganos ainda esto na estrada que muitos estudiosos consideram pretenso falar de ciganos como povo, pois eles no tm unidade poltica ou leis escritas (2012). A autora traz ainda, que alguns pesquisadores alegam que por conta da disperso geogrfica a suposta unidade tnica dos ciganos no existe de fato. Logo os grupos calon, sinthi e rom, embora possuam uma estrutura lingstica semelhante, no poderiam formar o ideal romantizado de cigano criado pela sociedade ocidental, visto que no seriam um s grupo[footnoteRef:6], mas vrios e com costumes, dialetos e culturas diferentes. [6: Dentro destes grupos constam subgrupos como os kalderash, macwaia (matchuaia), lovara, xoraxan (horaran), etc.]

No formam o ideal romantizado, mas certamente formam um povo, uma vez que a ONU no dia 28 de Fevereiro de 1979 reconheceu a Unio Romani Internacional, segundo Franz Moonen uma organizao no-governamental, hoje com estatuto consultativo na Organizao das Naes Unidas (2012, p. 128), atestando assim a etnicidade deste povo e de acordo com Cristina da Costa Pereira garantindo-lhes o status de nao (2012). Uma nao dentro de outras naes. Uma nao formada por um povo com caractersticas multiculturais espalhado pelo mundo inteiro. Valria Sanchez Silva lembra que:Apesar da diversidade que os constitui, so perfeitamente reconhecveis entre si. Pertencem a mesma raa, ao mesmo povo, mesma famlia tnico-cultural. Podemos dizer que eles compem um mosaico unitrio, em meio diversidade de suas tribos, kumpanias e famlias. Agregam, trazem e propagam caractersticas multiculturais que recebem e emprestam dos pases por onde passam, aliadas s suas prprias. Esta diversidade aliada a um forte sentimento de pertencimento raa [...]. (2006, p.73)

Sobre os ciganos Nicole Martinez afirma: Um povo de origem nica, disperso por vontade prpria entre naes (1989, p.42). Apesar de a afirmao estar de acordo com o ideal cigano de liberdade, tal assertiva vai contra os anos de perseguio sofrida por este povo, que se viu levado a cruzar fronteiras geogrficas muitas vezes por imposies legais e no apenas por nomadismo. Pouco depois da chegada dos primeiros trtaros do Egito[footnoteRef:7] Europa Ocidental em 1417, diversos pases puseram-se a criar leis para restringir aos ciganos a permanncia em suas terras, constituindo assim o que Franz Moonen (2012) chama de poltica anticigana. [7: - Segundo Franz Moonen (2012, p.17) os ciganos receberam muitas denominaes ao chegar a Europa Ocidental, dentre elas esto: gitanos, tsiganes, gypsies, zigeuners, zingri, zaniger, Cingari, Cigawnar,Gens Ziganorum. A origem trtaros do Egito est relacionada a origem que muitos ciganos davam para si. Normalmente os chefes ciganos diziam terem sidos expulsos dos Blcs pelos Turcos e que antes de chegarem aos Blcs tinham partido do Pequeno Egito. O Pequeno Egito de acordo com Moonen (2012, p.7) era uma regio da Grcia, mas que pelos europeus da poca foi confundida com o Egito, na frica. Por causa desta suposta origem egpcia passaram a ser chamados egpcios ou egitanos, ou gypsy (ingls), egyptier (holands), gitan (francs), gitano (espanhol), etc. Mas sabemos que alguns grupos se apresentaram tambm como gregos e atsinganos, pelo que tambm ficaram conhecidos como grecianos (espanhol antigo), tsiganes (francs), ciganos (portugus), zingaros (italiano). ]

Em 1530[footnoteRef:8], por exemplo, foi promulgado na Inglaterra o Egyptian Acts, decreto de lei que proibia a entrada de ciganos no pas e demandava que todos os que ali estavam deixassem o territrio ingls no prazo de dezesseis dias, em caso de descumprimento os ciganos seriam presos, deportados e teriam seus bens confiscados. Moonen afirma que metade destes bens seriam para quem prendesse os ciganos. Ou seja, caar e prender ciganos se tornou altamente lucrativo (2012, p.29). Na Espanha, entre 1499 e 1534, diversos decretos so expedidos com basicamente o mesmo contedo: proibindo-lhes de viajar juntos e ordenando-lhes que arranjassem profisso ou patro, caso contrrio, seriam punidos com cem aoites e banimento. No mesmo pas, a partir de 1560, ficou proibido que mais de dois ciganos andassem juntos na rua, bem como que usassem seus trajes tradicionais. [8: - Esta no foi o primeiro decreto anti-cigano expedido na Inglaterra. Elucida, no entanto, de forma clara a funo de tais decretos, que por sinal na Inglaterra foram muitos.]

Convm ressaltar que havia leis semelhantes em diversos pases e que o crime sobre o qual versavam era ser cigano.[footnoteRef:9] Portugal no teve postura diferente. Ps-se a criar leis para regulamentar o comportamento dos ciganos, o que significava na verdade por um fim ao modo de vida cigana, banindo peas de vesturio, viagens em grupo, manifestaes culturais, encaixando-os assim nos parmetros ditos normais do comportamento do bom cidado. Para tanto se criou as penas degredo e de sentenciamento s gals. [9: - Elisa Maria Lopes da Costa (1998, p.37) afirma que surgem como crimes o fato de os ciganos serem nmades, de deslocarem-se em grupos, praticarem pequenos furtos, de esmolarem sem uma autorizao especfica, fingirem saber feitiarias, usarem trajes de ciganos, as mulheres fazerem a "buena-dicha" (leitura da sina, ou seja, do futuro), ou to-s o serem ciganos. O homicdio surge com bastante raridade. A situao de marginalidade em que se encontravam os grupos ciganos, sempre perseguidos pelo simples fato de ser o que explica a razo para pequenos furtos, visto que parece um tanto improvvel que os ciganos nesta situao tivessem acesso a empregos.]

Conforme apontam os registros histricos, os primeiros ciganos chegaram ao Brasil em 1574, quando Joo de Torres, sua esposa Angelina e filhos aqui aportaram. Conforme narra Franz Moonen (2012, p.12) Joo havia sido condenado s gals e sua esposa recebera a pena de exlio apenas pelo simples fato de serem ciganos. O cigano alegou, no entanto, que era fraco e quebrado, e no era para servir em coisa de mar e muito pobre, que no tinha nada de seu, (Coelho apud Moonen, 2012, p.79). Acabou ento Joo das Torres pedindo para ser degredado junto com sua esposa para o Brasil, pedido que acabou sendo deferido, vindo a pena a ser mudada para cinco anos de degredo em terras coloniais. Joo foi apenas o primeiro dos muitos ciganos degredados para pas, pois como bem afirma Charles Boxer:O Brasil, como todas as colnias europias, era usado, ento, como depsito de lixo para indesejveis, e como lugar de degredo para os que feriam a lei na ptria me. Esses fatores, complicados pela peridica deportao em massa de ciganos de Portugal para o Brasil, apresentava s autoridades da Bahia e dos demais lugares um problema que lhes causava constantes preocupaes. (2002, p.164)

Elisa Maria Lopes da Costa aponta que apesar dos esforos das autoridades portuguesas em esfacelar a identidade cigana dos cidados degredados, as medidas punitivas pouco conseguiram mudar e, apesar de chegados s novas terras as atitudes e prticas mantinham-se, a coeso familiar e social reforava-se at (1998, p.42). Ao recusarem abrir mo de sua identidade os ciganos alimentaram estigmas que lhes eram impostos pela legislao vigente. E conforme Coelho ressalta, na viso do poder vigente, quer se tratasse de homens degredados ou livres, tinham de ser controlados, pelo que tudo isto lhes iria ficar vedado e, mais do que isso, impunha-se que os jovens fossem entregues a mestres para aprender um ofcio, ao passo que os adultos, homens deveriam assentar praa ou trabalhar nas obras pblicas, pagando-se-lhes um justo salrio e, as mulheres deveriam viver recolhidas, ocupando-se nos trabalhos que as restantes faziam. (Coelho apud Costa, 1998, p. 43)

Ou seja, os ciganos tinham de se encaixar ao padro de comportamento pr-estabelecido, caso contrrio seriam novamente punidos. Em caso de reincidncia a pena era o degredo para a ilha de S. Tom ou do Prncipe. A historiografia tradicional pouca coisa trs sobre os ciganos e quando o faz, faz pautado em pginas policiais de jornais antigos ou em relatos de processos judiciais. Portanto, a histria tradicional que se construiu sobre os ciganos no Brasil aquele criada em cima de pequenos furtos e leituras do futuro. O anticiganismo no , portanto, uma questo com razes rasas fincadas na contemporaneidade. O anticiganismo acompanha os ciganos desde que este povo iniciou a sua migrao. Obviamente que em anos de histria alguns episdios de extrema averso aos ciganos saltam aos olhos, como, por exemplo, o Porrajmos[footnoteRef:10], o chamado Holocausto esquecido, quando cerca de 250 a 500 mil ciganos foram massacrados pelo regime nazista. Impulsionados pelas teorias de higiene racial e pelo j histrico rano pelos ciganos, os alemes nazistas criaram o Servio Central de Combate Praga Cigana, rgo que segundo Moonen (2012, p.52) s foi fechado em 1947, tendo sido recriado sob outro nome em 1953 e finalmente extinto em 1970. Como os ciganos alemes eram recenseados, quando o regime nazista entrou no poder encontr-los no foi um problema. [10: - Tambm grafado Poraimos.]

No sculo XX, a maioria das polticas anticiganas de diversos pases se pautava na assimilao dos ciganos. Ou seja, era baseada na criao de leis que coibissem o exerccio dos costumes ciganos. O nomadismo era um dos primeiros hbitos a ser proibido. Em alguns pases como a Bulgria os ciganos deixaram de ser vistos como minoria nacional pela constituio de 1971 e passaram a ser vistos como minoria no Blgara. Na Europa como um todo eram, e continuam a ser perseguidos pelos SkinHeads. E como em todo momento de crise os ciganos foram/so sempre considerados os responsveis pelos problemas e em tempos de problemas econmicos a situao dos ciganos piora drasticamente. No Brasil so perseguidos por um problema de raiz mais profunda: a invisibilidade. incerto quantos ciganos existem atualmente no pas. De acordo com uma reportagem maio de 2002 da revista Super Interessante[footnoteRef:11] cerca de um milho de ciganos vivem no Brasil. Caso esta informao se verificasse correta, o Brasil seria o pas com maior nmero de habitantes de etnia cigana do mundo. No entanto, segundo Assde Paiva: [11: Disponvel em: http://super.abril.com.br/historia/ciganos-se-unissem-fundassem-pais 442926.shtml?utm_source=redesabril_super&utm_medium=facebook&utm_campaign=redesabril_jovem]

Os ciganos jamais foram recenseados, mesmo porque so arredios a este tipo de levantamento, tendo em vista que quase sempre estas questes so feitas para persegui-los. Veja o horror nazista que meticulosamente exterminou mais de 500.000 ciganos, a ttulo de que era uma raa perniciosa, embora fossem arianos. (2012,p.12)

No apenas por conta do medo justificado da exposio que os ciganos no so recenseados. tambm uma questo metodolgica, visto que no h no formulrio do recenseamento pergunta sobre origem cigana. Moonen afirma queat hoje, nem o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), responsvel pelos censos demogrficos oficiais, nem qualquer outra instituio de pesquisa demogrfica, nem qualquer organizao no-governamental, nem cientista algum tem feito um levantamento sistemtico e confivel da populao cigana. E nem poderia fazer, porque muitos ciganos escondem a sua ciganidade. (Moonen. 2012, p.90)

Enquanto um recenseamento oficial no acontece, os nmeros que aparecem so os mais variveis. Segundo o site do Ministrio da Cultura o nmero de ciganos no pas em 2006 era de aproximadamente 670 mil. De acordo com a Ananke, uma associao cultural cigana de Guarulhos que trabalha em busca da cidadania para os ciganos Calon, existe atualmente no Brasil 250 mil ciganos; no ficou claro na informao se so 250 mil ciganos Calon ou 250 mil ciganos de todos os grupos. A falta de registro de origem cigana relega esta populao a uma invisibilidade prejudicial, pois se supostamente os protege do preconceito dos gadjs (no ciganos), tambm os deixa privados de acesso a polticas pblicas mais especficas e efetivas. Muitos ciganos no tm registro civil, o que dificulta o atendimento em hospitais pblicos. A falta de endereo fixo, no caso de grupos nmades e seminmades, muitas vezes impede o acesso educao. Claudio Ivanovich presidente da Associao de Preservao da Cultura Cigana de Curitiba apontou em um debate realizado no dia 12 de Dezembro de 2012 na Comisso de Direitos Humanos e Legislao Participativa que o O Estado esquece que a criana que nasce debaixo da tenda , antes de tudo, um cidado brasileiro, s depois vindo sua origem cigana[footnoteRef:12]. [12: Disponvel em: http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2012/12/12/desconhecimento-esta-na-raiz-do-preconceito-contra-ciganos]

1.3 Concluses preliminares

Dia 24 de Maio comemorado o Dia Nacional do Cigano no Brasil. Este ano, o dia foi celebrado com uma semana inteira de discusses sobre polticas pblicas no evento Brasil Cigano I Semana Nacional dos Povos Ciganos, realizado entre os dias 20 e 24 de maio, na Granja do Torto no Distrito Federal e promovido pela Secretaria de Polticas de Promoo da Igualdade Racial (SEPPIR) e parceiros. Estima-se que trezentas pessoas de mais de dezenove estados e Distrito Federal tenham comparecido ao evento.Alm de dar visibilidade a essa cultura, o encontro teve como objetivo ampliar a interlocuo das lideranas ciganas com o Estado brasileiro, por meio da apresentao e discusso de polticas pblicas voltadas aos povos e comunidades tradicionais. Na programao constou a Plenria Nacional dos Povos Ciganos, a Conferncia Livre da Cultura e oficinas de acesso s polticas pblicas e prestao de servios. Entre eles, a emisso de carto SUS, de certido de nascimento e carteira de identidade e servios de sade. Durante o evento houve apresentaes de teatro, dana, msica e exposio fotogrfica[footnoteRef:13]. [13: http://www.mds.gov.br/saladeimprensa/noticias/2013/05/i-semana-nacional-dos-povos-ciganos-debate-busca-ativa-e-inclusao-de-povos-tradicionais-no-cadastro-unico]

Na plenria do evento uma a Conselheira Brbara Piemonte, da etnia Calon, criticou a postura dos governos municipais que, de acordo com ela, so os que mais resistem presena dos ciganos nas cidades. No somos nmades por opo, mas por imposio. Ns encontramos muitas dificuldades para permanecer nos lugares e, assim como nossos companheiros quilombolas, tambm temos interesse em permanecer em um territrio[footnoteRef:14]. Esta crtica demonstra que o nomadismo dos ciganos nem sempre uma opo, mas sim a nica alternativa que lhes resta, visto que muitas vezes so expulsos das cidades pelas autoridades locais, quando no, pela prpria populao. [14: http://www.seppir.gov.br/iii-conapir/noticias/2013/05/plenaria-nacional-dos-povos-ciganos-discute-propostas-para-o-segmento]

No painel Democracia e Desenvolvimento sem racismo: por um Brasil afirmativo - Povos Ciganos e a poltica de igualdade racial, realizado pelo professor Rodrigo Correa Teixeira, da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais (PUC-MG), foi feito um breve panorama da histria dos ciganos no Brasil, desde sua chegada no pas at os dias atuais. Temos um histrico de preconceito total dos governos desde a poca colonial. Depois de quase 500 anos de polticas contra os ciganos, essa a primeira vez na histria que o Estado reconhece os ciganos como parte integrante da sociedade brasileira, o que vem acontecendo apenas nos ltimos dez anos, afirmou[footnoteRef:15]. [15: http://www.seppir.gov.br/iii-conapir/noticias/2013/05/plenaria-nacional-dos-povos-ciganos-discute-propostas-para-o-segmento]

So tempos de mudana e o evento serviu tambm para a eleio de representantes para a 3 conferncia Nacional de Politica de Igualdade Racial, que acontecer novembro em Braslia. Os depoimentos de violao de direitos humanos so diversos. Os relatos de preconceitos e discriminaes sofridas demonstram que ainda h muito caminho a ser percorrido para garantir aos ciganos a cidadania que eles tanto merecem. A falta de acesso polticas pblicas tambm uma reclamao constante.O desconhecimento a cerca da histria deste povo, que se funde com a nossa histria tambm motivo de insatisfao. O senhor Jos Ruiter, da etnia Rom, de Tanque DArca (AL) denuncia que h cidades na sua regio que foram fundadas por ciganos, mas, esse fato no contado na histria oficial. As pessoas no contam a verdadeira histria da contribuio do povo cigano na construo das cidades que foram fundadas por ns. Isto comprova que os ciganos se sentem parte deste pas e querem ser vistos como parte da sociedade brasileira, como quaisquer outros cidados.Mas percebe-se que no bastou o degredo como prtica punitiva. A sociedade brasileira continua a tentar apagar de nossa histria a presena cigana e novamente pelo mesmo motivo pelo qual os ciganos foram degredados para c: pelo simples fato de serem ciganos. O desconhecimento, o preconceito, a discriminao tenta manter distante um povo que tanto tem para agregar, e j agrega, nossa histria, ao nosso patrimnio cultural e a nossas prticas sociais no geral.A luta deste povo em busca de sua cidadania mostra que ao contrrio do que muitos autores apontam, eles esto unidos e conscientes de sua importncia na sociedade e de seus direitos. Logo, o Estatuto dos Ciganos, ao contrrio do que Nicolas Ramanush[footnoteRef:16]cr, no ir beneficiar somente os ciganos Calon, mas beneficiar a todos os ciganos, tirando-os da invisibilidade social e ajudando a acabar com o preconceito e a discriminao. [16: Em entrevista ao programa Provocaes do canal TV Cultura do dia 16/04/2013 Nicolas Ramanush, cigano Sinti, auto intitulado embaixador dos ciganos do Brasil, posicionou-se contra um Estatuto dos Ciganos por crer que a Constituio j traz proteo suficiente para os ciganos. Em entrevista feita por mim via email, uma semana depois, Ramanush manteve-se firme contra o projeto, afirmando que os nicos ciganos que precisam de polticas pblicas so os Calon.]

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Legislao

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