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JORNAL DO BRAsn. SÁBADO, TEATRO. Livro traz quatro comédias de Antônio José da Silva, o Judeu Um crítico que soube iluminar Portugal com o riso sarcástico REPRODUÇÃO Renata Soares Junquelra* "Filho de um tempo em que a loucura coletiva, açulada pelo fanatismo religioso, tomara contadaspessoas,~tônioJosé descobrira que oriso era ainda o único ato de sanidade," Esta é uma das certeiras observações que o leitor interessado no tea- tro de ~tônio José da Silva (1705:"1739)pode ler no livro As comédias de Antônio José, o Judeu, que há pouco saiu do pre- lo da Martins. O volume é com- posto por quatro das oito óperas cômicas do Judeu, seleciona- das, anotadas e comentadas pe- lo ensaísta e professor univer- sitário Paulo Roberto Pereira. As peças VidadograndeD. Qui- xote de Ia Mancha e do gordo Sancbo Pança, Esopaida eu vi- da de Esopo,Anfitrião ouJúPiter e Alcmena e Guerras do Alecrim e ManjeroM, que ~tônio José compôs e fez representar, no Teatro do Bairro Alto de Lis- boa, entre 1733 e 1737, vêm nessa edição precedidas pelos polêmicos escritos prefaciais - "Dedicatória à mui nobre se- nhora Pecúnia Argentina" e "Ao leitor desapaixonado" - que têm acompanhado as ópe- ras do Judeu nas suas mais im- portantes edições - todas por- tuguesas, convém notar. No Brasil, houve duas edições do ~ -teatr.o comp1etode-Ant&OO-Jg-,." da Silva: a primeira em 1910-1911, organizada pelo es- critor João Ribeiro, e depois a das Edições Cultura, de São Paulo, em 1944. É, pois, muito bem vinda a recente edição - até porque a modelar de José Pereira Tava- res, que era a última acessível do teatro completo do Judeu, já não se encontra à venda. É verdade que não se trata de uma edição do teatro com- pleto do Judeu, pois o volume traz .nas quatro das suas di- vertidas óperas. Mas são preci- samente essas as quatro peças que mais têm despertado o in- teresse dos estudiosos (ve- ja-se, a propósito, a bibliografia arrolada nas páginas 420 e 421) e que o organizador .considera as de melhor "qualidade literá- ria e cênica" e as que se desta- cam, no conjunto das óperas de ~tônio José da Silva, pela "atualidade dos temas". Se na primeira peça, Vida do grande D. Quixote..., o leitor de- para-se com uma sátira mordazà "justiça corrupta" quando San- cho Pança se transforma em ligo- vemadorda ilha dos Lagartos pa- ra julgar os abusos cometidos"; e Gravura reproduz tortura no tempo da Inquisição, da qual o Judeu foi vftimaem terras portuguesas na segunda, Esopaida, nota-se uma alfinetada no "atraso educa- cional do país [portugal absolu- tista], demonstrado na crítica ao ensino escolástico, sobretudo de Coimbra, que estava nas mãos dos jesuitas!1-na .ter-ceiIa,-Anfi- ,.. trião, e na quarta, Guerras do Ale- crim..., salienta-se uma (ainda atual) crítica dos costumes so- ciais no Portugal de domJoão V, onde grassavam a libertinagem- inclusive a do próprio Rei - o pa- rasitismo da nobreza, os casa- mentos encomendados, o des- prezo e arrogânciados fidalgos. Justifica-se satisfatoriamen- te, portanto, a escolha dessas quatro óperas, cujos textos aqui "aparecem em sua forma inte- gral de acordo com a primeira edição de 1744, confrontados com as melhores edições já pu- blicadas" , sobretudo com a de José Pereira Tavares (Lisboa: Livraria Sá da Costa). Ademais, as quatro óperas vêm acresci- das de oportunas notas de roda- pé e de um breve comentário que o organizadorfaz anteceder cada uma das peças. De resto, deve-se destacar que, no estudo introdutório in- . titulado "Dramaturgia e inqui- sição", a perspectiva da leitura de Paulo Roberto Pereirailumi- na as óperas do Judeu, apontan- do para a sua originalidade e sa- lientando o seu intuito de satiri- zar, sistematicamente, as insti- tuições do seu tempo. Segundo Pereira, "essa é a grafo ~tônio José da Silva te- liçãodo cômicona obra de~tô- nha passado "praticamente nio José: rindo dos poderosos, despercebido" pela inquisição ele rompe com as limitações e o de' Lisboa, que em 1739 o con- acanhamento de seu universo denou à morte sob a acusação cultural e se toma uma ponte de "reincidência no judaísmo" para-a-chegada"€lO'iluminismo-a' ".tão-somente;--sem-qtWnOS"pro- Portugal". cessosmovidoscontraele pelo . Revelam-se,assim,coeren- Tribunaldo Santo Oficiohou- temente revolucionárias as vesse qualquer menção rele- óperas do Judeu revistas pelo vanteà suaatividadeteatral. organizador, que vincula ao Ouosinquisidoresnãopres- exercício sistemático de uma taram atenção às suas óperas - ampla e hábil.crítica social tp- o que causa espanto em vista do dos os seus elementos consti- tremendo êxito que as peças al- tuintes - seja o seu surpreen- cançaram de 1733 a 1738 - ou dente hibridismo, feito da ab-, então o anonimato que marcou sorção de diversas tendências as primeiras edições de algu- do teatro setecentista, tanto do mas dessas óperas em 1736 e teatro popular cultivado em 1737 funcionou efetivamente . como estratégia para proteger o autor e garantir as licenças pa- ra impressão. O Judeu morria em outubro de 1739, mas deixava para a posteridade uma obra arrojada, que se propunha a minar, gra- ciosa e sorrateiramente, a base dos poderes (políticos, religio- sos, econômicos) constituídos no Portugal joanino e inquisito- rial. E assim se abriam já, antes mesmo de o Marquês de Pom- bal surgir na cena política, as portas da nação ao iluminismo burguêse progressista. . As ccmuWias de ADt&Dio José,oJudeu PA1JLOBoBImro PBIumu. (ORO.) Ma.rtins 432 páginas, R$ 45 Portugal pela escola vicentina quanto do teatro barroco espa- nhol, das comédias francesas e da ópera italiana; seja a sua es- pecífica linguagem teatral, que alia à prosa cômica a música, o, emprego de marionetes e a atuação fundamental do criado gracioso que, conduzindo sem- pre a ação, é o principal respon- sável pelo efeito de paródia que .essas comédias produzem. Admira-nos que o comedió- .Professora de literatura portuguesa na Universidade Estadual Paulista (Unesp). em Araraquara (SP). --

TEATRO. Livro traz quatro comédias de Antônio José da ...portal.fclar.unesp.br/centrosdeestudos/ojudeu/Resenha_Renata.pdf · modelar de José Pereira Tava- ... Segundo Pereira,

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JORNAL DO BRAsn. SÁBADO,

TEATRO. Livro traz quatro comédias de Antônio José da Silva, oJudeu

Um crítico que soube iluminarPortugal com o riso sarcásticoREPRODUÇÃO

Renata Soares Junquelra*

"Filho de um tempo em quea loucura coletiva, açulada pelofanatismo religioso, tomaracontadaspessoas,~tônioJosédescobrira que oriso era ainda oúnico ato de sanidade," Esta éuma das certeiras observaçõesque o leitor interessado no tea-tro de ~tônio José da Silva(1705:"1739)pode ler no livroAs comédias de Antônio José, oJudeu, que há pouco saiu dopre-lo da Martins. O volume é com-posto por quatro das oito óperascômicas do Judeu, seleciona-das, anotadas e comentadas pe-lo ensaísta e professor univer-sitário Paulo Roberto Pereira.As peças VidadograndeD. Qui-xote de Ia Mancha e do gordoSancbo Pança, Esopaida eu vi-da de Esopo,Anfitrião ouJúPitere Alcmena e Guerras do Alecrime ManjeroM, que ~tônio Josécompôs e fez representar, noTeatro do Bairro Alto de Lis-boa, entre 1733 e 1737, vêmnessa edição precedidas pelospolêmicos escritos prefaciais -"Dedicatória à mui nobre se-nhora Pecúnia Argentina" e"Ao leitor desapaixonado" -que têm acompanhado as ópe-ras do Judeu nas suas mais im-portantes edições - todas por-tuguesas, convém notar. NoBrasil, houve duas edições do

~ -teatr.o comp1etode-Ant&OO-Jg-,."sé da Silva: a primeira em1910-1911, organizada pelo es-critor João Ribeiro, e depois adas Edições Cultura, de SãoPaulo, em 1944.

É, pois, muito bem vinda arecente edição - até porque amodelar de José Pereira Tava-res, que era a última acessíveldo teatro completo doJudeu, jánão se encontra à venda.

É verdade que não se tratade uma edição do teatro com-pleto do Judeu, pois o volumetraz .nas quatro das suas di-vertidas óperas. Mas são preci-samente essas as quatro peçasque mais têm despertado o in-teresse dos estudiosos (ve-ja-se, a propósito, a bibliografiaarrolada nas páginas 420 e 421)e que o organizador .consideraas de melhor "qualidade literá-ria e cênica" e as que se desta-cam, no conjunto das óperas de~tônio José da Silva, pela"atualidade dos temas".

Se na primeira peça, Vida dograndeD. Quixote...,o leitor de-para-se comuma sátira mordazà"justiça corrupta" quando San-cho Pançase transforma em ligo-vemadorda ilhadosLagartospa-ra julgar osabusoscometidos"; e

Gravura reproduz tortura no tempo da Inquisição, da qual o Judeu foi vftimaem terras portuguesas

na segunda, Esopaida, nota-seuma alfinetada no "atraso educa-cional do país [portugal absolu-tista], demonstrado na crítica aoensino escolástico, sobretudo deCoimbra, que estava nas mãosdos jesuitas!1-na .ter-ceiIa,-Anfi- ,..trião, e na quarta, Guerras doAle-crim..., salienta-se uma (aindaatual) crítica dos costumes so-ciais no Portugal de domJoão V,ondegrassavama libertinagem-inclusive a do próprio Rei - o pa-rasitismo da nobreza, os casa-mentos encomendados, o des-prezo e arrogânciados fidalgos.

Justifica-se satisfatoriamen-te, portanto, a escolha dessasquatro óperas, cujos textos aqui"aparecem em sua forma inte-gral de acordo com a primeiraedição de 1744, confrontadoscom as melhores edições já pu-blicadas" , sobretudo com a deJosé Pereira Tavares (Lisboa:Livraria Sáda Costa). Ademais,as quatro óperas vêm acresci-das de oportunas notas de roda-pé e de um breve comentárioque oorganizadorfaz antecedercada uma das peças.

De resto, deve-se destacarque, no estudo introdutório in-

. titulado "Dramaturgia e inqui-sição", a perspectiva da leiturade Paulo Roberto Pereirailumi-na as óperas do Judeu, apontan-do para a sua originalidade e sa-lientando o seu intuito de satiri-zar, sistematicamente, as insti-tuições do seu tempo.

Segundo Pereira, "essa é a grafo ~tônio José da Silva te-liçãodo cômiconaobra de~tô- nha passado "praticamentenio José: rindo dos poderosos, despercebido" pela inquisiçãoele rompe com as limitações e o de'Lisboa, que em 1739 o con-acanhamento de seu universo denou à morte sob a acusaçãocultural e se toma uma ponte de "reincidência no judaísmo"para-a-chegada"€lO'iluminismo-a' ".tão-somente;--sem-qtWnOS"pro-Portugal". cessosmovidoscontraele pelo. Revelam-se,assim,coeren- Tribunaldo Santo Oficiohou-temente revolucionárias as vesse qualquer menção rele-óperas do Judeu revistas pelo vanteà suaatividadeteatral.organizador, que vincula ao Ouos inquisidoresnãopres-exercício sistemático de uma taram atenção às suas óperas -ampla e hábil.crítica social tp- oque causa espanto em vista dodos os seus elementos consti- tremendo êxito que as peças al-tuintes - seja o seu surpreen- cançaram de 1733 a 1738 - oudente hibridismo, feito da ab-, então o anonimato que marcousorção de diversas tendências as primeiras edições de algu-do teatro setecentista, tanto do mas dessas óperas em 1736 eteatro popular cultivado em 1737 funcionou efetivamente

. como estratégia para protegeroautor e garantir as licenças pa-ra impressão.

O Judeu morria em outubrode 1739, mas deixava para aposteridade uma obra arrojada,que se propunha a minar, gra-ciosa e sorrateiramente, a basedos poderes (políticos, religio-sos, econômicos) constituídosno Portugal joanino e inquisito-rial. E assim se abriam já, antesmesmo de o Marquês de Pom-bal surgir na cena política, asportas da nação ao iluminismoburguêse progressista. .

As ccmuWias de ADt&DioJosé,oJudeu

PA1JLOBoBImro PBIumu. (ORO.)Ma.rtins

432 páginas, R$ 45

Portugal pela escola vicentinaquanto do teatro barroco espa-nhol, das comédias francesas eda ópera italiana; seja a sua es-pecífica linguagem teatral, quealia à prosa cômica a música, o,emprego de marionetes e aatuação fundamental do criadogracioso que, conduzindo sem-pre a ação, é o principal respon-sável pelo efeito de paródia que.essas comédias produzem.

Admira-nos que o comedió-

.Professora de literaturaportuguesa na UniversidadeEstadual Paulista (Unesp). emAraraquara (SP).

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