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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: JOGOS OLÍMPICOS DE 2016 · Marcia Carla Pereira Ribeiro e Giovani Ribeiro Rodrigues Alves 09 ... O estado democrático de direito e a prosperidade econômica

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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS

JOGOS OLÍMPICOS DE 2016

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Coordenadores

Antenor Demeterco neto roDrigo Pironti Aguirre De cAstro

Organizadores

eDuArDo rAmos cAron tesserolli

Victor Hugo Domingues Vinicius Klein

2013 Curitiba

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Editora Responsável: Verônica GottgtroyProdução Editorial: Editora ClássicaCapa: Editora Clássica

Equipe Editorial

EDITORA CLÁSSICA

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Conselho Editorial

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

L784

Neto, Antenor Demeterco – Coordenador.Castro, Rodrigo Pironte Aguirre – Coordenador. Temas de direito econômico : A copa do mundo de 2014 eOs jogos olímpicos de 2016.Título independente.Curitiba : 1ª. ed. Clássica Editora, 2013.

ISBN 978-85-99651-80-3

1. Direito econômico – risco.2. Meio ambiente - sustentabilidade. I. Título.

CDD 340

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Sumário

ARTIGO 1DO PARTICULARISMO NORMATIVO EM MATÉRIA DE PROPRIEDADE IMATERIAL: LEGISLAR PARA QUÊ(M)?Marcia Carla Pereira Ribeiro e Giovani Ribeiro Rodrigues Alves 09

ARTIGO 2COPA DO MUNDO DE 2014 E DESENVOLVIMENTORodrigo Pironti A. de Castro e André Luis A. Machado Martins .. 29

ARTIGO 3O PAPEL DO ESTADO BRASILEIRO NA ORDEM ECONÔMICA E SOCIAL: O FOMENTO SOCIOAMBIENTAL POR MEIO DA PROMOÇÃO DE LICITAÇÕESINCLUSIVAS E SUSTENTÁVEIS PARA OS GRANDES EVENTOSDaniel Ferreira e Fernando Paulo da Silva Maciel Filho ................. 51

ARTIGO 4A PARCERIA PÚBLICO-PRIVADA COMO MODELO DE CONTRATAÇÃO PÚ-BLICA PARA CONSTRUÇÃO OU REFORMA DE EQUIPAMENTOS PARAOS GRANDES EVENTOS ESPORTIVOS DE 2014 E 2016Antenor Demeterco Neto ............................................................................. 79

ARTIGO 5COPA DO MUNDO E INFRAESTRUTURA: NOTAS SOBRE O FINANCIAMENTO E A MITIGAÇÃO DE RISCOS EM CONTRATOS PÚBLICOSFernando Menegat e Iggor Gomes Rocha ................................................ 91

ARTIGO 6NOTAS SOBRE A INFRAESTRUTURA AEROPORTUÁRIA ESTATAL NO BRASIL: PASSADO, PRESENTE E FUTURO E SUA RELAÇÃO COM O REGIME DIFE-RENCIADO DE CONTRATAÇÕESDaniel Müller Martins e Eduardo Ramos Caron Tesserolli ........... 123

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ARTIGO 7AS GRANDES OBRAS PARA A COPA DO MUNDO DE 2014: ASPECTOS DAS DESAPROPRIAÇÕES E O ESTÁDIO JOAQUIM AMÉRICO GUIMARÃESJosé Rodrigo Sade ............................................................................................ 151

ARTIGO 8O POTENCIAL CONSTRUTIVO E O CASE “ARENA DOS PARANAENSES”: AL-GUNS APONTAMENTOS JURÍDICOS E ECONÔMICOSVictor Hugo Domingues................................................................................. 161

ARTIGO 9O DIREITO DA CONCORRÊNCIA E A EXCLUSIVIDADE NOS CONTRATOS DE TRANSMISSÃO DE GRANDES EVENTOS ESPORTIVOSVinícius Klein e Caroline Sampaio de Almeida ...................................... 177

ARTIGO 10OS EVENTOS ESPORTIVOS DE 2014 E 2016 E O COMBATE AOS CARTÉIS EM LICITAÇÕES NO BRASILGustavo Flausino Coelho e Ricardo Villela Mafra A. da Silva ...... 193

ARTIGO 11A PERSONALIDADE JURÍDICA E A CAPACIDADE PROCESSUAL DO CO-MITÊ OLÍMPICO INTERNACIONALMartinho Martins Botelho ......................................................................... 213

ARTIGO 12COOPERAÇÃO INTERGOVERNAMENTAL E PREPARAÇÃO PARA OS JO-GOS OLÍMPICOS E PARAOLÍMPICOS DE 2016: O PAPEL DE MEDIA DORA DA AUTORIDADE PÚBLICA OLÍMPICARicardo Silveira Ribeiro ................................................................................ 233

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O convite feito pelo Presidente da Comissão de Direito Econômico da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Paraná, Antenor Demeterco Neto, para prefaciar esta obra, deve ser entendido como um prestígio àqueles que dirigem e dirigiram os destinos da OAB-PR, aumentado diante da existência de tantos nomes qualificados na advocacia paranaense. É ainda uma homenagem a todas as comissões temáticas acolhidas no seio da OAB-PR, incentivadas pelas sucessivas gestões, no interesse de proporcionar o debate e a difusão de conhecimentos.

Os eventos capitaneados pelo Brasil, nomeadamente a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, revelam a confiança internacional que alcançamos, notadamente com a estabilidade do regime democrático e uma economia em franco desenvolvimento. O estado democrático de direito e a prosperidade econômica andam lado a lado. Para que o progresso econômico seja afiançado pela sociedade brasileira, é necessário cultivar um ambiente jurídico de segurança e respeito à lei. Essa é a lição a ser compreendida mediante os estudos de Direito Econômico que compõem a presente obra, abordando uma perspectiva sobre os grandes eventos que aportarão no Brasil nos próximos anos.

Em relação ao conjunto dos artigos que compõem este livro, fruto do esforço individual e coletivo dos membros da Comissão de Direito Econômico da OAB-PR, sua leitura levará à reafirmação do reconhecimento de seus autores, que se dedicaram ao estudo dos impactos jurídicos e econômicos dos eventos esportivos em nosso país, com a acuidade que o tema exige.

As modificações legislativas, demandadas pelas exigências que decorrem da candidatura brasileira a tão importantes eventos esportivos, resultaram no que se convencionou denominar de Lei Geral da Copa sancionada pela Presidente da República em 06 de junho de 2012, impõe a reflexão sobre as garantias fornecidas pelo Governo Brasileiro à Federação Internacional de Futebol (FIFA) para a realização da Copa das Confederações, em 2013, e do Mundial de 2014.

Neste cenário, há que se examinar o objetivo das alterações legislativas, diante das políticas do Estado, inseridas num contexto de limitação da atividade administrativa. Esta, por sua vez, não pode se afastar dos princípios regentes da Administração Pública. Logo, o desenvolvimento econômico que se espera alcançar, incentivando as obras públicas a serem realizadas para receber os eventos esportivos, nesta obra é analisado diante da perspectiva do desenvolvimento socioeconômico, levando em consideração os instrumentos colocados à disposição do Estado para compor a infraestrutura dos eventos.

prefácio

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Esse estudo é feito sob a ótica administrativa, econômica e jurídica, enfocando institutos como as parcerias público-privadas (PPPs).

Da mesma forma, regimes de contratação pública de natureza sui generis, como o recém criado Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), merecem o necessário enfoque multidisciplinar, para que a sua utilização não revele um casuísmo, refratário às regras constitucionais inerentes à atividade da Administração Pública.

As cidades que sediarão as competições e aquelas afetadas pela grandiosidade que as envolvem, recebem recursos através de planos e financiamentos. Nesta obra são estudados os seus riscos, pois embora constituam pontos indispensáveis para a concretização da Copa do Mundo e das Olimpíadas, não se deve perder de vista a cautela que recomenda o ordenamento jurídico quanto aos contratos públicos.

A matéria ambiental, frente à questão econômica, é também preocupação dos autores. É fundamental o respeito ao meio ambiente, e o desenvolvimento sustentável, contemplados mediante o mecanismo de fomento socioambiental, o que se concretiza por meio da promoção de licitações inclusivas e sustentáveis. A propósito, outro valor fundamental a ser observado quando se toca o acervo dos direitos inclusivos, diz respeito aos portadores de necessidades especiais. Em tais temas, o legado deixado pela realização das Olimpíadas no Rio de Janeiro merece ampla abordagem neste trabalho.

Por fim, o peso de ter sido escolhida como uma das cidades-sede da Copa do Mundo desvela na cidade de Curitiba, capital do Estado do Paraná, questões atinentes ao campo de atuação do Direito Econômico, especialmente quanto ao modelo de intervenção econômica baseado nos mecanismos de modificação do espaço urbano e planejamento da cidade.

Esta obra acentua o estudo interdisciplinar, que no jurista se expressa ao avaliar os fenômenos da intervenção do Estado no domínio privado. A obra lançada pela Comissão de Direito Econômico da OAB-PR tem o grande mérito de contribuir para o estudo do impacto e o reflexo das grandes obras esportivas no Brasil.

Ao concluir, parabenizo os participantes desta obra e a todos os integrantes da Comissão de Direito Econômico da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Paraná. O faço nas pessoas de seu Presidente Antenor Demeterco Neto e de seu Vice Presidente Rodrigo Pironti Aguirre de Castro, que atuaram com dedicação e competência para atingir o resultado final.

Boa leitura.

Curitiba, outono de 2013José Lucio GLomb

Presidente da OAB-PR 2010-2012

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ARTIGO 1DO PARTICULARISMO NORMATIVO EM MATÉRIA DE PROPRIEDADE

IMATERIAL: LEGISLAR PARA QUÊ(M)?

marcia carLa Pereira ribeiro1

Giovani ribeiro rodriGues aLves2

SUMÁRIO: Introdução. 1. Por que existe a propriedade? 2. A quem interessa a proteção da marca? Por que protegê-la? Alguns exercícios de abstração. 3. A Lei Geral da Copa: casuísmos x necessidades. 4. Conclusões. Referências bibliográficas.

INTRODUÇÃO

Este artigo busca apresentar um panorama sobre o significado de propriedade e as transformações ocorridas no transcurso da história, de forma a demonstrar que garantir ou não a propriedade (material e imaterial) é tema recorrente e controverso no Direito, possuindo peculiaridades conforme a modalidade de bem a ser protegido.

Especialmente a modalidade imaterial da propriedade submete-se a um regime jurídico ainda em construção e do qual depende, em parte, o grau de inovação das economias dos países.

Dentre as modalidades de propriedade industrial, destacam-se as patentes de invenção e de modelo de utilidade e o registro das marcas. Muito embora a legislação reconheça as marcas de produto e de serviço, marcas coletivas e de certificação, além da marca notoriamente conhecida, este artigo abordará, para atingir aos seus fins, apenas as marcas de produto e de serviço.

Conforme a linha de raciocínio que será exposta neste artigo, é possível que se associe o reconhecimento de uma marca de produto ou de serviço ou a vedação ao seu registro a dois diferentes objetivos: assegurar ao titular a exploração exclusiva do sinal escolhido como referência de um produto ou serviço ou impossibilitar que qualquer agente possa tomar como de uso próprio e exclusivo um sinal visualmente perceptível tornado legalmente indisponível.

O trabalho parte da análise do significado da propriedade intelectual, focando especialmente nas razões de se atribuir a alguém o privilégio sobre a marca (que não possui em si a característica de rivalidade, como se reforçará

1 Professora Titular de Direito Societário da PUCPR. Professora Associada de Direito Empresarial da UFPR. Pós-doutora pela FGVSP (2006) e pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2012). Pesquisadora Convidada da Université de Montréal - CA (2007). Advogada e Procuradora do Estado do Paraná. Consultora da Comissão de Direito Econômico da OAB-PR.2 Advogado. Professor de Direito Comercial e de Direito Constitucional. Mestrando em Direito das Relações Sociais pela UFPR.

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a seguir). Na sequência, propõe-se a análise de produtos do intelecto que não são passíveis de registro como marca pela Lei de Propriedade Industrial (Lei 9279/96 - LPI), para buscar aquilatar os potenciais efeitos das exceções previstas no parágrafo único do art. 3° da Lei n° 12.663/2012 (Lei Geral da Copa - LGC), em favor da FIFA (Fédération Internationale de Football Association), durante a Copa das Confederações de 2013 e a Copa do Mundo de Futebol de 2014, que buscam assegurar a proteção de símbolos que, pela Lei de Propriedade Industrial, são tidos como, em princípio, não registráveis na categoria marca.

Permeia o artigo, a percepção de que a FIFA será a única habilitada a titular como marca nome, prêmio ou símbolo de evento esportivo no país (especificamente no que se refere à Copa do Mundo de Futebol e à Copa das Confederações), por ato ex oficio, com os direitos reconhecidos em todos os ramos de atividades, independente do pagamento das taxas normalmente envolvidas.

Esta constatação permite que se avance para algumas considerações sobre as potencialidades de se atribuir regime de exceção, mediante particularismos legislativos.

1. POR QUE EXISTE A PROPRIEDADE?

Variadas são as discussões envolvendo a propriedade e, em especial, o direito de propriedade. Discute-se a origem, a natureza, as obrigações, os deveres e as funções. De Aristóteles a Bentham ou de Hobbes a Marx, a propriedade foi alvo de acaloradas discussões, sempre envolvendo, direta ou indiretamente, a figura do ente Estatal, já que não é possível ter direitos de propriedade sem lei, e não há lei sem Estado3. Na Economia, o tema também é alvo de estudos, buscando-se, primordialmente, prever os efeitos das formas alternativas de propriedade sobre a eficiência e a distribuição4.

No século XXI, pouca dúvida permanece no que tange a importância do direito de propriedade. O fracasso dos modelos socialistas abalou os pilares de um conjunto de Estados que pretendia, em ultima ratio, a abolição da propriedade privada5 e se deu concomitantemente à consagração do paradigma capitalista que a tem como um de seus marcos centrais.

No decorrer da história, o direito de propriedade foi alvo de diferentes interpretações, ora ampliando seu significado, ora o delimitando. Somente a

3 PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, Economia e Mercados. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p.101.4 COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Direito e Economia. Tradução de Luis Marcos Sander e Francisco Araújo da Costa. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2010, p. 90.5 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/manifestocomunista.pdf, acesso em 07/10/2012.

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título ilustrativo, na análise dos dois últimos séculos, observe-se que de uma concepção individualista de propriedade, consagrada pela modernidade e seus ideais burgueses/iluministas na redação do art. 544 do Código Civil Francês de 1804, passou-se a uma visão pluralística da mesma, não mais limitando o campo de análise à figura do proprietário e de seu respectivo bem, mas vislumbrando que a propriedade além de garantir direitos, também obriga seu proprietário a praticar determinadas condutas, consoante o disposto no célebre art. 153 da Constituição de Weimar.

Perguntas comuns relativas ao direito de propriedade, cujas respostas, já se adianta, podem ser as mais variadas possíveis, dizem respeito às razões para se proteger a propriedade e os motivos de se entender um bem como passível de ser apropriado ou não.

Em relação ao primeiro questionamento, as razões de se proteger a propriedade remetem a motivações no mínimo similares às justificadoras da existência e necessidade do Estado e do Direito. Tutela-se a propriedade para que os indivíduos convivam em harmonia, sabedores da esfera e dos bens que podem livremente usar, gozar, fruir e dispor. Por outro lado, a percepção já consolidada da importância da definição dos direitos de propriedade também decorre da potencialidade de minimização dos custos de monitoramento em relação ao bem titulado. Assim como o estado de natureza não contribui para o manejo de uma sociedade apta a abarcar espaços para o desenvolvimento geral do bem estar de seus integrantes, também os sistemas caracterizados por direitos de propriedade fracos são pouco eficientes na geração de riquezas a partir da negociação.

Individualmente tomados, os agentes são limitadamente racionais, agem na busca da autossatisfação, valendo-se de condutas maximizadoras individuais que não são aptas, a custos razoáveis, a delimitar o âmbito de atuação de cada agente sobre cada recurso. Desta impossibilidade emerge a necessidade de um ente fiscalizador e organizador (Estado) que ao mesmo tempo é regido e é a fonte da qual emanam as regras de comportamento (Direito).

Do Estado, especialmente a partir da competência normativa, depende o estabelecimento de um sistema suficientemente simples e claro, de forma a favorecer a compreensão e a confirmação do direito de propriedade. Porém, é deste mesmo ordenamento que provêm as delimitações não apenas em relação a outros proprietários, como também por intermédio da consagração da funcionalização do direito de propriedade.

Quanto ao segundo questionamento (razões pelas quais determinados bens são apropriáveis e outros não), o foco da análise tradicional está na rivalidade ou não rivalidade do bem, isto é, se a utilização de um bem por um determinado sujeito inviabiliza ou não o mesmo uso (ou ao menos similar) por

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outrem. O elemento ar, por exemplo, não pode ser apropriado já que o fato do sujeito respirá-lo não impedirá o vizinho ou o eremita mais isolado do planeta de também agir deste modo.

Outro prisma de análise se dá por intermédio da escassez e das estratégias de maximização social dos recursos. Neste canal, torna-se possível pensar a importância da proteção da propriedade e de atribuição do direito de exclusividade em comparação ao reconhecimento de recursos sem titularidade exclusiva, contemplada na passagem conhecida como Tragédia dos Comuns.

Os Comuns eram pedaços de terra (pasto) em que pastores criavam seus respectivos rebanhos. Qualquer pastor poderia ter acesso, livremente, a esse pedaço de terra, já que esta não era propriedade de ninguém. Nesta esteira, cada um deles, visando a maximizar o proveito e a obter o maior benefício pessoal possível - o que é inato à própria natureza humana - começou a inserir mais um animal ao seu rebanho.

Ocorre que, como todos os pastores chegaram à mesma conclusão (de aumentar o rebanho para obter um proveito pessoal maior), o pasto passou a ser insuficiente para alimentar os rebanhos, o que ocasionou não só a ruína dos rebanhos, como também redundou na tragédia dos comuns (terra)6- o exaurimento do recurso comum.

Agustinho7 sintetiza o significado da Tragédia dos Comuns, ao apontar que:Todo ser humano busca individualmente a maximização da sua utilidade

de forma infinita em um mundo cujos bens são finitos. Desse modo, o exercício dessa liberdade, ao invés de representar o resultado positivo racionalmente esperado por cada um isoladamente, conduz à sobre utilização e ao esgotamento dos recursos naturais.

À luz da vertente econômica, no mesmo sentido da conclusão que se extrai da Tragédia dos Comuns, Cooter e Ulen explicam as razões de haver bens públicos e bens privados: “a eficiência exige que bens que implicam rivalidade e exclusão sejam controlados por indivíduos (...), ao passo que bens que não implicam rivalidade ou exclusão sejam controlados por um grupo grande de pessoas, como o Estado8.”

As necessidades de proteção da propriedade e do reconhecimento de que pertencem a alguém estão, portanto, diretamente relacionadas à maximização racional de seu proveito e à impossibilidade de todos utilizarem os mesmos bens. Reproduz-se a clássica assertiva: recursos são finitos, mas as necessidades humanas são infinitas, ou seja, a escassez.

6 AGUSTINHO, Eduardo. As tragédias dos comuns e dos anticomuns. In: RIBEIRO, Marcia Carla Pereira; KLEIN, Vinicius (coords.). O que é análise econômica do direito: uma introdução. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 52.7 AGUSTINHO, op.cit., p. 52.8 COOTER; ULEN, op. cit., p. 120.

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Há como se concluir que a definição da propriedade privada exclusiva dos bens materiais tem como fundamentos primordiais a minimização dos custos de monitoramento e a adoção de uma estratégia compatível com medidas de maximização do proveito (individual e social) do bem.

No entanto, o direito de propriedade, em um primeiro momento, tinha por objeto apenas os bens materiais. Contudo, aos poucos, a partir do paulatino reconhecimento da importância dos bens imateriais para a sociedade, novas formas de titularidade se apresentaram ao Direito, brotando do mundo dos fatos como consequência das novidades tecnológicas, e, porque não dizer, do mundo das ideias.

O Direito deparou-se com a necessidade de premiar o criador de obra ou invenção como forma de reconhecimento e retribuição pelos gastos que foram necessários para se chegar ao resultado/produto, e, concomitantemente, servir como estímulo para que outros fizessem o mesmo.

Depois de há muito tempo consolidado o conceito de propriedade dos bens corpóreo, passa a integrar a pauta de reflexões a tutela de propriedades incorpóreas.O Direito, portanto, ao tutelar bens incorpóreos respondeu a uma necessidade tanto no campo da inovação e da oferta de novos produtos, como no âmbito de incentivo à produção.

O ramo do Direito que estuda a propriedade imaterial é o Direito Intelectual, visto como gênero, cujas espécies são Direito Autoral e Propriedade Industrial. A diferença entre as espécies está centrada na aplicação empresarial dos bens objetos de análise pelo Direito Industrial9. No presente estudo, a análise se restringe aos assuntos ligados à Propriedade Industrial e, mais especificamente, em um de seus objetos: a marca.

A proteção dos bens intelectuais era até o século XVII, dependente, única e exclusivamente, da graça dos soberanos, não havendo leis que regessem a matéria de maneira objetiva10. As autoridades simplesmente emitiam cartas-patentes que autorizavam uma determinada pessoa a utilizar-se de sua obra intelectual de modo exclusivo, geralmente em troca de favores particulares11.

O artificialismo da proteção então conferida por meio de privilégios outorgados é resultado da natureza do bem que se pretende proteger. Se a propriedade dos bens corpóreos, uma vez definida, é facilmente identificável pelos sentidos humanos, assim como naturalmente dotada de exclusividade, o mesmo não ocorre com relação aos bens incorpóreos. O uso de uma patente

9 BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Curso Avançado de Direito Comercial. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 109.10 DI BLASI, Gabriel; GARCIA, Marcio S.; MENDES, Paulo P. M. A Propriedade Industrial: os sistemas de marcas, patentes e desenhos industriais analisados a partir da Lei 9.279, de 14 de maio de 1996. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 04.11 POSNER faz interessante abordagem sobre o assunto. POSNER, Richard A. Para Além do Direito. Tradução de Evandro Ferreira e Silva. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, fls. 42-51.

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de invenção, de uma marca ou insígnia não excluiu automaticamente o uso da parte de outro agente, pois são bens cujo uso potencial é ilimitado. Assim, forja-se a exclusividade, num primeiro estágio, pela concessão de privilégios, emanados do governante.

Esse modelo de proteção da propriedade foi alvo de severas críticas, em especial na Inglaterra, em razão de sua arbitrariedade, vindo a culminar na promulgação pelo Parlamento Inglês, no século XVII, do Statute of Monopolies, que, além de estipular requisitos legais para concessão de privilégio ao inventor/criador, determinava prazo de duração para o exercício dos benefícios a eles concedidos12.

Saliente-se que a benesse concedida pelo Estado a um particular não foi alterada pelo Statute of Monopolies, tendo sido somente objetivados os critérios para a concessão do benefício, já que, uma vez preenchidos os requisitos, era o ente Estatal quem conferia o privilégio ao particular.

Observe-se desde já que a noção de tutela de bens imateriais está ligada ao reconhecimento pelo ente estatal de que o sujeito foi o criador/inventor de um determinado bem e de que, como prêmio, disporá do direito de exclusividade do uso de seu invento/criação por um determinado tempo, e/ou determinadas condições. Terceiros somente poderão utilizar do bem mediante a concessões, contratadas normalmente mediante pagamento de royalties ao criador. Findo o prazo de exclusividade, no caso da patente de invenção e do modelo de utilidade, a criação se torna de domínio público, acessível a todos independentemente de concessões. Para a marca e outras formas registrais, há a possibilidade, no regime brasileiro, de renovação do registro, atendidos os requisitos estabelecidos na Lei de Propriedade Industrial. Se desatendidos, o seu criador perde o direito antes protegido.

Como mencionado, a proteção à propriedade intelectual é um mecanismo de duplo viés: (a) por um lado estimula novas criações conferindo royalties ao criador, que teve de desenvolver esforço intelectual e financeiro para chegar ao resultado criativo. Por outro lado, (b) ela limita o uso da criação, já que a partir do momento em que se tem de pagar royalties para o criador ou que se garante a ele a exclusividade, um número menor de pessoas poderá utilizar o produto fruto da criatividade de um ou mais indivíduos.

Em face deste duplo viés é que, desde o Statute of Monopolies, se fixa um tempo determinado para a exclusividade do indivíduo sobre sua criação, sem possibilidade de prorrogação no que tange àquelas que impactam no estado de técnica, qual seja, no que se refere à invenção e ao modelo de utilidade, e com possibilidade de sucessivas prorrogações com relação à marca e outros elementos indicativos de produtos e serviços.

12 DI BLASI; GARCIA; MENDES, op. cit., p.04.

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Para a invenção e o modelo de utilidade, após o tempo (que deve ser mensurado a fim de que compense o investimento e ao mesmo tempo não se impeça o desenvolvimento), o acesso às fórmulas e esquemas é liberado para a sociedade que, por sua vez, tendo acesso a eles pode aprimorá-los, contribuindo para o desenvolvimento social e econômico, independentemente de pagamento de retribuição ao seu inventor.

Nada obstante, a lógica acima narrada (prazo determinado e benesse estatal) prevalece apenas parcialmente no que tange à proteção do bem imaterial denominado marca. Esta pode ser tomada como o conjunto de sinais visualmente perceptíveis13 que distingue determinados produtos ou serviços profissionais, ou, em outras palavras, o sinal nominal ou figurativo aplicado a determinados bens14.

A lógica subsiste no que diz respeito ao necessário reconhecimento estatal para que haja a atribuição dos privilégios ao seu criador. Entretanto, conforme comentário anterior, diferentemente do que ocorre com a invenção e o modelo de utilidade, as marcas podem ser renovadas – permanecendo de uso, fruição, gozo e disposição exclusivos do seu proprietário – por quanto tempo desejar o agente que a criou, atendidos os requisitos estabelecidos pela legislação para fins de renovação do registro.

As razões para essas diferenciações de tratamento são de simples constatação: (i) a marca é um elemento que distingue um determinado produto ou serviço de outro, sendo fundamental para o reconhecimento feito pelo consumidor acerca do que está sendo ofertado, e; (ii) a marca não tem um caráter de inovação que possa auxiliar em futuras inovações como ocorre com a invenção e o modelo de utilidade, estando um pouco mais afastada, portanto, da noção de desenvolvimento social e econômico.

A respeito do assunto, Blasi, Garcia e Mendes15 elucidam que:Ao estudar a patente, vimos que o seu principal propósito é dinamizar

o desenvolvimento dos países. A função da marca, no entanto, é diferente. Ela atua, em essência, no plano comercial: do ponto de vista público, na defesa do consumidor, evitando confusão; e do ponto de vista privado, auxiliando o titular no combate à concorrência desleal.

Este brevíssimo panorama delineado auxilia, de início, a observar que o significado de propriedade foi sofrendo transformações no transcurso da história e que garantir ou não a propriedade (material e imaterial) é tema recorrente e controverso no Direito, possuindo peculiaridades conforme a modalidade de bem a ser protegido.

13 BERTOLDI; RIBEIRO, op. cit., p. 112.14 DI BLASI; GARCIA; MENDES, op. cit., p. 161.15 DI BLASI; GARCIA; MENDES, op. cit., p. 162.

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O presente trabalho nos próximos tópicos analisará o significado da propriedade intelectual no Brasil, focando especialmente (i) nas razões de se atribuir a alguém o privilégio sobre a marca (que não possui em si a característica de rivalidade, como se reforçará a seguir), (ii) na análise de produtos do intelecto que não são passíveis de registro como marca pela Lei de Propriedade Industrial (Lei 9279/96) e (iii) nos potenciais efeitos das exceções previstas no parágrafo único do art. 3° da Lei n° 12.663/2012 (Lei Geral da Copa), em favor da FIFA (Fédération Internationale de Football Association), durante a Copa das Confederações de 2013 e a Copa do Mundo de Futebol de 2014, que buscam assegurar a proteção de símbolos que, pela Lei de Propriedade Industrial, são tidos como não registráveis na categoria marca.

2. A QUEM INTERESSA A PROTEÇÃO DA MARCA? POR QUE PROTEGÊ-LA? ALGUNS EXERCÍCIOS DE ABSTRAÇÃO

Conforme narrado acima, a atribuição da propriedade a alguém pode ser explicada a partir da impossibilidade das pessoas fazerem uso dos mesmos bens, de maneira igual. Fenômeno que a economia chama de rivalidade.

Ao se ter em conta os bens materiais, esta lógica faz completo sentido, vez que não é possível a utilização do lápis de seu colega, ao mesmo tempo em que ele o utiliza, sem corromper a sua integridade, ou, não se pode beber os mesmos 350 mililitros da sua lata de refrigerante, se ele o estiver tomando.

Entretanto, no que se refere aos bens imateriais, este raciocínio não é plenamente válido. Para utilizar-se o exemplo da marca: o fato de um terceiro utilizá-la, não inviabilizará o criador dela de fazer o mesmo uso. Em vista deste aparente conflito, a doutrina por muito tempo discutiu se realmente seria condizente atribuir a qualidade de propriedade aos bens imateriais16, como a marca.

Quando se fala em proteção da marca, as razões para sua proteção são diferenciadas, bem como a sua tutela é distinta das outras espécies de propriedade intelectual. Não se poderia invocar o argumento de que a marca contribui para novas invenções, que, por sua vez, contribuiriam para o desenvolvimento tecnológico da sociedade. Conforme explanado, essas são justificativas para a proteção das outras espécies protegidas pela propriedade industrial, mas não da marca.

Protege-se, pois, a marca, não em proveito do desenvolvimento de uma nova tecnologia ou seu aperfeiçoamento, mas, para garantir a propriedade exclusiva a um sinal visualmente perceptível, relacionado a determinada qualidades do produto ou do serviço, ou de forma inversa, para inviabilizar o uso de determinados sinais na condição de marca.

16 A respeito do assunto ver: CERQUEIRA, João Gama.Tratado da Propriedade Industrial, vol. 1, parte I. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1946, p. 148 e CORREIA, Miguel J. A. Pupo. Direito Comercial, 6 ed. Lisboa: Ediforum, 1999, p. 291.

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A marca, ao menos em princípio, a partir de seu potencial associativo, permite que, rapidamente, o adquirente do produto ou do serviço leve em conta a qualidade do que lhe é ofertado, suas características relativas, por exemplo, ao material utilizado, durabilidade, expectativas para com a aquisição.

Neste diapasão, o produtor deve atentar para que a credibilidade da marca se sustente no mercado, já que, em princípio, é ela que conduz à aceitação e reconhecimento da marca, influenciando de forma fundamental na escolha por contratar especificamente aquele produto ou serviço.

Por evidente, na sociedade contemporânea, em que o marketing e o seu poder persuasório devem ser levados em consideração, mais importante do que a realidade das características presumida pela simples projeção de uma marca, é a percepção que o público tem destes caracteres como elementos fundamentais. Percepção essa, muitas vezes forjada por dispendiosas campanhas de marketing, que, ao associar os valores cuidadosamente selecionados pelos publicitários como representativos para o público alvo, conseguem criar necessidades ou fazer acreditar que determinada marca tem o poder da realização pessoal, ou de elevar o status daquele que ostenta determinado produto ou serviço.

De toda forma, quer seja pelas características reais, seja pela percepção das pessoas e dos grupos sociais, o uso de determinadas marcas é elemento de alavancagem dos negócios, o que dota o bem imaterial marca de valor próprio, para fins de transferência ou autorizações de uso, assim como valoriza o bem no qual é reproduzida.

Portanto, a partir do reconhecimento atribuído a determinadas marcas, lembre-se que na origem trata-se apenas de um sinal visualmente perceptível, cria-se riqueza, quer seja relativamente a ela mesma (modalidade de propriedade industrial), quer seja em relação aos bens ou serviços identificados pela marca.

Porém, para que o valor de uma marca se consolide num determinado mercado, é preciso que exista uma distinção entre a generalidade dos produtos ou serviços e aqueles associados à marca. Vale dizer, que se estabeleça uma clara distinção entre estes e as demais ofertas. É assim que, por exemplo, uma água engarrafada sob determinada marca de produto, ao ser distinguida de uma água retirada da torneira, incorpora atributos de mais valia que só se sustentam porque a água é apresentada numa garrafa sob determinada marca, ao invés de ser simplesmente extraída de uma torneira ou filtro.

Nada obstante, nem todos os símbolos e emblemas frutos do intelecto humano são passíveis de serem registrados como marca. Não é possível, por exemplo, que se registre a simples letra “A” como marca, vez que se fosse viável, qualquer pessoa que fosse utilizar a referida letra teria de pagar royalties ao proprietário da marca. Há vedação para que bens de uso comum possam ser utilizados como fonte de riqueza de um sujeito determinado.

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A respeito das vedações, é útil destacar-se três incisos, apenas a título de demonstração e posterior análise, constantes de incisos do art. 124 da Lei de Propriedade Industrial (Lei 9279/96), a seguir transcritos:

Art. 124. Não são registráveis como marca:I - brasão, armas, medalha, bandeira, emblema, distintivo e monumento

oficiais, públicos, nacionais, estrangeiros ou internacionais, bem como a res-pectiva designação, figura ou imitação;

II - letra, algarismo e data, isoladamente, salvo quando revestidos de suficiente forma distintiva;

(...)XIII - nome, prêmio ou símbolo de evento esportivo, artístico, cultural,

social, político, econômico ou técnico, oficial ou oficialmente reconhecido, bem como a imitação suscetível de criar confusão, salvo quando autorizados pela autoridade competente ou entidade promotora do evento.

Cada vedação possui um significado e uma justificativa, vez que se trata de uma verdadeira opção expressa do legislador no sentido de impossibilitar o registro de determinados elementos que poderiam ser visualmente distinguíveis como marca.

Existem dois enfoques a serem considerados: (i) a inviabilidade do reconhecimento de titularidade e uso exclusivo – cujo compartilhamento pressuporia o pagamento de remuneração ao titular -; (ii) o impedimento de uso do elemento visual de forma a caracterizar um específico produto ou serviço.

Em um exercício de abstração, poder-se-ia supor que em relação ao inciso I, por exemplo, veda-se o registro da bandeira nacional como marca para impedir que um patrimônio de todos os brasileiros, ou nacional, seja fonte de riqueza de particulares, na postura de proprietários de um símbolo pátrio. Seria impensável o pagamento de royalties por aquele que quisesse se utilizar de um bem cívico. Por outro lado, também inconcebível em nosso sistema que a bandeira nacional perca o status de elemento cívico para tornar-se uma fonte de reconhecimento de atributos de produtos e serviços.

Da mesma forma, quanto ao inciso II, pode-se argumentar que se veda o registro de letra, algarismo e data como marca, para impedir que determinado sujeito possa se apropriar de algo que, necessariamente, será utilizado por todos os cidadãos. Novamente, assim como a bandeira, trata-se de bem de uso comum, cujo registro como marca configuraria manifesto contrassenso.

No que diz respeito ao objeto do presente estudo, destaque-se a análise do contido no inciso XIII do art. 124, reproduzido acima, que afirma não ser possível registrar como marca “nome, prêmio ou símbolo de evento esportivo (...), salvo quando autorizados pela autoridade competente ou entidade promotora do evento”. Pergunta-se, em primeiro plano, qual é a vedação existente?

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Conforme a linha de raciocínio já exposta neste artigo, é possível que se associe, quer seja o reconhecimento de uma marca ou a vedação ao seu registro a dois diferentes objetivos: assegurar ao titular a exploração exclusiva do sinal escolhido como referência de um produto ou serviço ou impossibilitar que qualquer agente possa tomar como de uso próprio e exclusivo um sinal visualmente perceptível tornado indisponível para este fim em decorrência do disposto no art. 124.

Para fins de compreensão do teor do inciso XIII da referida norma, pode-se novamente utilizar como recurso o exercício de abstração. Em relação ao âmbito de incidência da vedação, veja-se que, diferentemente, dos demais incisos citados, não se está a proibir de forma genérica o registro de determinado sinal como marca. Busca-se vedar que um terceiro tome a marca como sua, de forma a se aproveitar dos benefícios gerados pela garantia de exclusividade e seu subsequente potencial de ser comercializada, sem uma autorização emanada da autoridade competente ou entidade promotora do evento, a fim de promover o registro de nome, prêmio ou símbolo de evento esportivo.

O propósito da norma parece ter sido conferir uma proteção para a autoridade competente ou entidade promotora do evento esportivo em face de algum indivíduo que buscasse aproveitar, sem qualquer contribuição criativa ou de anterioridade, a notoriedade de determinado espetáculo esportivo para obter lucro para si.

Exemplificando: se não houvesse a vedação, Paulo e José, sabedores do quão representativos e chamativos são os elementos visuais distinguíveis caracterizadores do Campeonato Brasileiro de Futebol, poderiam, na visão do legislador, registrá-los como marca e todos que desejassem fazer uso dos elementos, seriam obrigados a pagar royalties a Paulo e José. Sob este ponto de vista, parece justificada a vedação expressa na Lei.

Em que pese a existência da referida norma específica relacionada a evento desportivo, na qual se enquadraria perfeitamente a Copa do Mundo de 2014, para fins de regulamentação do consagrado evento que será realizado – agora pela segunda vez – no Brasil, disciplinou-se o tema do registro de marca de forma específica pela chamada Lei Geral da Copa.

3. A LEI GERAL DA COPA: CASUÍSMOS X NECESSIDADES

Sintetizadas as determinações normativas quanto à registrabilidade de marcas, torna-se interessante comparar o regime previsto na LPI e aquele disposto na LGC, no art. 3° e no seu respectivo parágrafo único:

Art. 3o O Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) promoverá a anotação em seus cadastros do alto renome das marcas que consistam nos

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seguintes Símbolos Oficiais de titularidade da FIFA, nos termos e para os fins da proteção especial de que trata o art. 125 da Lei n.º 9.279, de 14 de maio de 1996:

I - emblema FIFA;II - emblemas da Copa das Confederações FIFA 2013 e da Copa do

Mundo FIFA 2014;III - mascotes oficiais da Copa das Confederações FIFA 2013 e da Copa

do Mundo FIFA 2014; eIV - outros Símbolos Oficiais de titularidade da FIFA, indicados pela

referida entidade em lista a ser protocolada no INPI, que poderá ser atualizada a qualquer tempo.

Parágrafo único. Não se aplica à proteção prevista neste artigo a vedação de que trata o inciso XIII do art. 124 da Lei n.º 9.279, de 14 de maio de 1996.

De plano, observa-se que o legislador imputou dever de fazer ao INPI, no sentido de que este promova a anotação em seus cadastros das marcas de titularidade da FIFA, dentre elas, “emblemas da Copa das Confederações FIFA 2013 e da Copa do Mundo FIFA 2014”, na qualidade de marca de alto renome.

Alguns aspectos já podem ser destacados na referida previsão: (i) as marcas associadas à Copa das Confederações FIFA 213 e Copa do Mundo FIFA 2014 serão tomadas como marcas de alto renome. Vale dizer, serão enquadradas na categoria prevista no art. 125 da LPI, qual seja lhes será assegurada proteção especial, em todos os ramos de atividade; (ii) o registro das referidas marcas será feito “de ofício” de parte do Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI.

Quanto ao alto renome, trata-se de um regime especial em relação ao regime geral assegurado pelo LPI. Neste, se reconhece o direito do agente sobre marca cuja originalidade e direito de exclusividade se refere a um específico ramo de atividade – e não a todos os ramos de atividade. Esta extensão só é reconhecida na Lei justamente à marca de alto renome, cuja afirmação depende de expresso registro e reconhecimento perante o INPI.

O alto renome de uma dada marca e a garantia de uso exclusivo para além de ramo de atividade podem encontrar sua justificativa na proteção dos consumidores, assim como para evitar a prática conhecida como freerider, ou caronistas que são aqueles que mesmo sem ter contribuído para o sucesso de um determinado empreendimento, se aproveitam do sucesso dele para obter êxito para si (na carona)17. Além do risco do efeito de carona, quanto aos consumidores, o uso de uma marca muito forte em outro ramo de atividade que não aquele em que a marca se consolidou, poderia induzi-los a acreditar que se trata de produto ou serviço correlato, a que possa atribuir características associadas ao produto ou serviço pertencente ao original. Assim, a depender da força da marca no mercado geral, justifica-se o seu registro como de alto

17 COOTER; ULEN, op. cit., p. 120-121.

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renome, o que impedirá que o mesmo sinal distintivo seja utilizado para qualquer outra atividade, além daquela originária da marca, como forma de se evitar o aproveitamento econômico daquele que pretende se beneficiar da posição de uma marca no mercado sem ter participado das estratégias que conduziram a esta posição. Trata-se também de estratégia de proteção do consumidor, evitando-se confusões quanto às características dos produtos e serviços ofertados sob uma determinada marca, que muito embora garantida num determinado ramo de atividade, acaba por produzir efeitos em qualquer outro ramo.

Portanto, admitir-se que um agente se valesse do reconhecimento já firmado num dado mercado relativamente a um produto ou serviço integrante de outro mercado, seria desprestigiar o direito de propriedade intelectual conferido a outro agente como decorrência de um processo econômico que envolve investimentos relacionados à atividade criativa, e, sobretudo, às estratégias de consolidação no mercado, o que significa o dispêndio de tempo e recursos. Se antes se falou da potencialidade de geração de riqueza a partir da consagração de uma marca –lembre-se aqui da marca como elemento diferenciador de produto ou serviço, o que outorga ao seu titular a possibilidade de fixação de preço do bem ou serviço, com relativa independência em relação aos seus concorrentes diretos, assim como sua condição de bem valorável em si mesmo, passível de negociação seja pela via da cessão definitiva ou de uso- deve-se agora concluir que a aceitação da figura do caronista neste campo serviria como desestímulo a que empreendedores investissem para a criação e manutenção de sua reputação, diante da observação do favorecimento de terceiros de forma gratuita (sem a partilha dos custos de entrada). E, na mesma linha de pensamento, este desestímulo afastaria o potencial de geração de riqueza, incompatibilizando-se com ideais de crescimento econômico.

Por outro lado, a LGC também determina de forma atípica e indesejável que o INPI, de ofício, anote o registro de diversas formas de propriedade intelectual ligadas aos eventos esportivos. Esta determinação implicitamente afasta algumas das determinações da LPI relacionadas a quem pode pedir o depósito de marca e quais os requisitos que deve ostentar.

A LPI determina em seu art. 128 que podem requerer registro de marca as pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou de direito privado. Estabelece no § 1º “que as pessoas de direito privado só podem requerer registro de marca relativo à atividade que exerçam efetiva e licitamente, de modo direto ou através de empresas que controlem direta ou indiretamente, declarando, no próprio requerimento, esta condição, sob as penas da lei”.

A Lei prevê a necessidade de um requerimento apresentado por pessoa física ou jurídica, ao passo que a LGC determina a anotação de marca de alto renome. A LPI condiciona a que os pedidos apresentados por pessoas jurídicas

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de direito privado refiram-se a produtos e serviço decorrentes de atividade que exerçam efetivamente – observe-se aqui que a FIFA é uma pessoa jurídica de direito privado registrada na Suíça. Conclui-se, portanto, que o interessado, seja ele pessoa física ou jurídica é quem deve apresentar o pedido de registro enquanto titular do direito.

Pela LGC, o legislativo obriga uma autarquia federal vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (órgão do executivo) a fazer algo, de modo particularizado, para beneficiar uma entidade (neste caso com o agravante de ser estrangeira e de natureza privada), notadamente para tornar mais célere e abrangente o registro de sinais visualmente distinguíveis remetentes à FIFA.

E a forma registral prevista é diretamente na categoria de marca de alto renome, para fins de produção de efeitos relativamente a todos os ramos de atividades. Aqui se opera mais uma derrogação da LPI. A Lei trata do “registro” de marca, inclusive na categoria de alto renome. A LGC menciona uma “anotação” realizada de ofício pelo INPI. No entanto, a LPI prevê em seu art. 136, tendo como destinatárias as marcas, que as anotações se restringem aos atos:

I - da cessão, fazendo constar a qualificação completa do cessionário;II - de qualquer limitação ou ônus que recaia sobre o pedido ou registro; eIII - das alterações de nome, sede ou endereço do depositante ou titular.Com base no disposto na LPI, haveria uma impropriedade na determinação

contida na LGC quando esta prevê uma hipótese de anotação que, na verdade, seria de pedido de registro- com as consequenciais formais daí decorrentes.

Não há como se interpretar como apenas a “anotação” de notoriedade de marca, como mencionado na LGC, quando se trata de registro da marca. Registro este de sinais que, em algumas de suas modalidades, são constituídos após a definição do país no qual será realizado o próximo evento, e, normalmente, mediante alguma forma de concurso, o que demanda tempo até que seja definitivamente elaborada e registrada.

Por outro lado, como o dever de anotação é imposto ao INPI, há de se concluir que o titular dos bens intelectuais estará isento das despesas normalmente associadas ao pedido de registro, caracterizando-se mais um privilégio para a FIFA.

Há uma questão de técnica legislativa que também merece ser considerada. Pela redação do parágrafo único do art. 3° da LGC (que se repete no parágrafo único do art. 4° da mesma lei), “não se aplica à proteção prevista neste artigo a vedação de que trata o inciso XIII do art. 124 da Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996”.

A mencionada vedação é assim redigida: “Art. 124. Não são registráveis como marca: (...) XIII - nome, prêmio ou símbolo de evento esportivo, artístico, cultural, social, político, econômico ou técnico, oficial ou oficialmente

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reconhecido, bem como a imitação suscetível de criar confusão, salvo quando autorizados pela autoridade competente ou entidade promotora do evento”.

Depreende-se do dispositivo do inciso XIII do art. 124 do LPI que é vedado a terceiros fazer o registro de nome, prêmio ou símbolo de competição esportiva, sem que tenha autorização da entidade promotora do evento ou competente para tanto.

Assim, num simples exercício lógico, tem-se que pela interpretação literal do parágrafo único do art. 3º da LGC, se está a retirar a vedação, ou seja, permite-se que qualquer pessoa possa registrar como marca, independentemente de autorização da entidade promotora do evento, os elementos visualmente distinguíveis relativos a prêmio, nome ou símbolo de evento esportivo.

Por certo que não foi esse o objetivo do legislador, até mesmo por conta da interpretação sistêmica da LGC, que deixa clara a intenção dos legisladores de conceder todo tipo de benefícios e vantagens à FIFA, organizadora da Copa do Mundo de Futebol, em prol das supostas (e desejáveis) vantagens que devem resultar do fato de nosso país ter sido escolhido como sede dos eventos esportivos, especialmente a COPA de 2014.

Desse modo, indubitavelmente, a única interpretação cabível passa a ser de que a FIFA será a única habilitada a titular como marca nome, prêmio ou símbolo de evento esportivo no país (especificamente no que se refere à Copa do Mundo de Futebol e à Copa das Confederações), por ato ex oficio, direitos reconhecidos em todos os ramos de atividades, independente do pagamento das taxas normalmente envolvidas18.

Há de se questionar e considerar que, indiretamente, outras normas procedimentais da LPI também foram afastadas pela LGC, ao determinar a anotação de notoriedade das marcas da FIFA. O procedimento legalmente estabelecido para registro de marca pressupõe o pedido de registro (depósito), análise preliminar do pedido, abertura de prazo para oposição, concluindo-se o processo com a decisão que irá deferir ou não o pedido de registro.

Há prazos e procedimentos estabelecidos na Lei porque os técnicos do INPI e outros interessados devem ter a oportunidade de analisar a originalidade do material apresentado, sua pertinência em relação à condição do solicitante, se o pedido não esbarra em algum impeditivo legal, dentre outros aspectos. Fugindo de forma contundente do regime geral, a LGC inclusive possibilita à FIFA aditar novos elementos para anotação mediante aditamento à listagem.

Vale dizer: houve uma edição normativa especial para evento esportivo de natureza especial, que, em atenção às exigências da FIFA, derrogou

18 De acordo com o site do INPI, a marca FIFA é registrada desde 1994, mas sem ser de alto renome.Inclusive, no rol de marcas de alto renome não consta a da FIFA. Veja-se que a norma comentada neste artigo da LGC inclui as marcas relacionadas à Copa do Mundo de 2014 e Copa das Confederações. Disponível em: http://www.inpi.gov.br, acesso em 03 de novembro de 2012.

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parcialmente a normativa vigente em vários temas, e, no que foi objeto deste estudo, no regime jurídico reconhecido às marcas em nosso país.

Afastou-se legitimidade, custos, procedimentos e foram revogadas temporariamente normas vigentes, sem que se discutisse se houve ou não algum atentado à soberania nacional (criando-se regime de exceção) ou perda de receitas para o Estado (que, em última análise, poderia ser o titular, até mesmo por meio de entidade criada para isso) de direitos sobre algumas destas marcas, sem se falar na imposição da anotação de ofício do INPI e independente do pagamento de emolumentos.

Talvez os fins justifiquem os meios, talvez não haja interesse em se questionar as imposições da FIFA, diante de uma população maravilhada pela possibilidade de sediar a Copa do Mundo. Mas a ideia de particularismo conflita com aquela de estado de direito, que se pressupõe estabelecido sobre bases gerais e estáveis, não sobre particularismos justificadores do reconhecimento de privilégios que conflitam com as dificuldades que enfrentam os demais profissionais interessados em fazer uso do registro de patentes, modelos de utilidade e marcas. Profissionais estes que normalmente enfrentam um sistema considerado moroso que demanda no mínimo dois anos para a obtenção de um registro. A justificativa para o prazo recai sobre a alegação de insuficiência dos quadros técnicos.19

Há quem invoque os benefícios que acompanharão a realização da Copa no Brasil, as almejadas melhorias de infraestrutura geral e voltada para os esportes. Mas o que se pode dizer das melhorias que poderiam decorrer do aperfeiçoamento do regime registral no Brasil, de forma que as nossas mentes criadoras tivessem maior agilidade no registro de patentes, assim como se o próprio regime definidor da titularidade sobre a propriedade industrial pudesse atingir um estágio de desenvolvimento que nos permitisse sair da incômoda 58ª posição no ranking mundial de inovações da Organização Mundial de Propriedade Intelectual, publicado em 2012, atrás de países muito menores e com economias menos fortes como Brunei, Montenegro, Croácia, Chile, Estônia, entre outros20.

19 De acordo com sites especializados, o tempo médio para obtenção do registro de uma marca no INPI é de 4 a 5 anos. Disponível em: http://www.fec.uff.br/index.php?option=com_content&view=article&id=528. Acesso em 03 de novembro de 2012; http://www.riccipi.com.br/paginas/servicos03.htm; e http://jus.com.br/revista/texto/13852/o-processo-administrativo-para-obtencao-de-registro-de-marca.20 Ranking completo disponível em: http://www.wipo.int/export/sites/www/freepublications/en/economics/gii/gii_2012.pdf.

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4. CONCLUSÕES

A modalidade de bens incorpóreos titulada como propriedade intelectual teve seu reconhecimento na história dependente da outorga de privilégios de parte dos governantes, de forma a garantir a exclusividade do titular, e, no que se refere à propriedade industrial, a possibilidade de negociação dos direitos mediante cessões onerosas de uso ou cessão da própria titularidade.

A outorga de privilégios, no entanto, conflita com a necessidade de estabelecimento de critérios objetivos aptos a transmitir a mensagem de que vale a pena investir na criação destes bens incorpóreos, sob a garantia da titularidade exclusiva a ser comprovada pelo cotejo com tais critérios. Esta foi a motivação para que os ordenamentos jurídicos passassem do regime de privilégio governamental para o regime registral, criando-se mecanismos de controle das propostas de registro e assecuratórios de direitos mínimos aos legítimos titulares.

A titularidade dos bens imateriais precisa ser assegurada pela Lei de forma eficiente, para ao mesmo tempo minimizar os custo de litígio sobre os bens, desestimular o uso abusivo da propriedade imaterial e garantir aos agentes econômicos o reconhecimento da exclusividade sobre tais bens de forma que possam se ressarcir e remunerar de forma adequada, criando-se um ambiente de inovação.

O Brasil ostenta uma posição muito tímida no ranking de destaque por inovação. O regime atual de registro de marcas e patentes ainda está longe de ser suficiente para mudar esta situação. Observe-se ainda, que a própria definição de titularidade, no caso das patentes, é um regime em construção (veja-se, por exemplo a Lei de Inovação Federal e as Estaduais que vem sendo editadas).

A estrutura do INPI tem sido tomada como insatisfatória e o prazo de registro, excessivamente longo.

Porém, a breve exposição trazida neste artigo demonstra que, no que se refere às marcas associadas à Copa do Mundo, modificou-se legislativamente a disciplina geral prevista na LPI, em diversos aspectos: (i) ao se determinar a anotação de alto renome – sem menção ao registro da marca; (ii) ao prever o dever do INPI proceder à anotação (sem a previsão de como os custos do processo serão ressarcidos ao órgão registral); (iii) ao afastar os requisitos que são impostos a quaisquer outros interessados. Para além destes aspectos pontuais a que se poderia acrescentar vários outros, são estabelecidos privilégios e facilidades que não encontram semelhança no tratamento dado a qualquer outro empreendedor nacional ou estrangeiro.

Esta situação permite que se reflita: (i) por que conferir a benesse, exclusivamente, para uma entidade estrangeira, para dois eventos esportivos específicos, rompendo com o preceito de que as normas devem ser gerais e

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abstratas?; (ii) em última análise, quais os efeitos dessa interpretação expansiva dos direitos conferidos, em regime de exceção, à FIFA? Há perdas para o país?

É desnecessário fazer uma análise pormenorizada do princípio da isonomia e da gravidade de exceções particularistas que assim se apresentem ao sistema jurídico. Em apertada síntese, bastaria dizer que estar-se-ia bastante próximo do regime do período anterior à promulgação do Statute of Monopolies, em que as cartas de patente eram atribuídas somente aos amigos do rei, na base de troca de favores. Mais do que isso: aceitar ofensas ao princípio da isonomia pode ocasionar um perigoso precedente para futuras relativizações de outros direitos e garantias fundamentais.

Desrespeitar as regras do jogo, criando particularizações por intermédio de leis especiais e contingenciais pode ser atentatório à democracia. Não se está discutindo os potenciais benefícios trazidos por um evento esportivo no país, mas, sim, a necessidade de se compreender que o particularismo legislativo, ainda que na atual situação pudesse ter a melhor das intenções (turismo, renda, desenvolvimento social e econômico, etc.), pode macular os preceitos básicos de uma sociedade que se pretende justa e igualitária. Se há algo a ser aperfeiçoado em nossas instituições, que o seja mediante modificações normativas de caráter geral e que resultem em aperfeiçoamentos de que se possam beneficiar todos os empreendedores brasileiros e estrangeiros interessados em investir no Brasil.

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REFERÊNCIAS

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ARTIGO 2 COPA DO MUNDO DE 2014 E DESENVOLVIMENTO

rodriGo Pironti aGuirre de castro21

andré Luis aGner machado martins22

SUMÁRIO: Introdução. 1. A compreensão do desenvolvimento. 1.1 O Estado contem-porâneo e a concepção do desenvolvimento. 1.2 Crescimento econômico versus desenvol-vimento. 1.3 O desenvolvimento na ordem jurídica brasileira e seu reconhecimento como direito fundamental. 2. O evento copa do mundo visto como medida do desenvolvimento socioeconômico nacional. 2.1 O desenvolvimento e infraestrutura. 2.2 O aspecto social envolvido no evento. 2.3 Os riscos do evento e a contramão do desenvolvimento. 3. Con-clusão. Referências bibliográficas.

INTRODUÇÃO

Não há como negar o fato de que escolha do Brasil para sediar um evento de importância mundial como a Copa do Mundo proporcionará inúmeros bene-fícios ao país e aos brasileiros.

Um evento desse porte exige a estabilidade e organização administrativa do país sede, a qual passará a ocupar uma posição de cobrança tanto de seus cidadãos, como da comunidade internacional, incluindo a entidade FIFA23, que

21 Doutorando e  Mestre em Direito Econômico e Social pela PUCPR. Especialista em Direito Administrativo pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Especialista em Direito Empresarial pela PUCPR. Presidente da Comissão de Direito de Infraestrutura e Estudo das Concessões Públicas da OAB/PR. Conselheiro Estadual da OAB-PR. Vice-Presidente da Comissão de Direito Econômico da OAB-PR. Professor convidado da Universidade de La Plata – ARGENTINA, da Universidade de San Nicolas de Hidalgo e da Universidade Tecnológica de Monterrey – MÉXICO,  da Escola de Gestão Pública Gallega e da Universidade Complutense de Madrid – ESPANHA,  do Centro Studi Giuridici Latinoamericani - ITÁLIA. Professor da graduação e pós-graduação da Universidade Positivo. Autor das Obras: “Processo Administrativo e Controle da Atividade Regulatória” (Ed. Fórum) e “Sistema de Controle Interno: uma perspectiva do modelo de gestão pública gerencial” (Ed. Fórum).22 Advogado. Formado pela Faculdade de Direito de Curitiba. Mestre em Direito Econômico e Socioambiental (PUCPR). Especialista em Direito Administrativo (Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar). Membro da Comissão de Direito Econômico da OAB-PR. Sócio da Lee, Martins & Pavoni Sociedade de Advogados.23 A Federação Internacional de Futebol Associado (do francês: Fédération Internationale de Football Association). Trata-se da instituição internacional que dirige as associações de futsal, futebol de praia (português europeu) ou futebol de areia (português brasileiro) e futebol associado, o esporte coletivo mais popular do mundo. Filiada ao COI, a FIFA foi fundada em Paris em 21 de maio de 1904 e tem sua sede em Zurique na Suíça. Para maiores informações, sugerimos: http://

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determina inúmeras exigências às premissas do atendimento e infraestrutura (como estádios, mobilidade urbana, segurança, hotelaria, etc.).

No caso brasileiro, doze cidades foram escolhidas para recepcionar os jogos da Copa, são elas: Curitiba, Porto Alegre, Belo Horizonte, Natal, Rio de Janeiro, Recife, Salvador, Brasília, Manaus, São Paulo, Cuiabá e Fortaleza.

Os investimentos vão além das obras de melhoria nos estádios das refe-ridas cidades. O Poder Público em parceria com o setor privado, de fato con-centrou grande parte dos investimentos nas cidades-sede: porém o que vem ocorrendo, é uma aplicação considerável de recursos em todo o país, no que diz respeito à mobilidade urbana e à infraestrutura. Ampliam-se deste modo, as condições de bem receber turistas, acomodá-los, oferecer-lhes segurança ade-quada e ampla, o que por sua vez, ocasiona impactos não apenas na macroeco-nomia nacional, mas também nas questões sociais, como obras de melhorias em aeroportos, portos e rodovias, transportes públicos bem como no que se refere às questões ambientais e microeconômicas.

Um destes impactos positivos mais relevantes é a geração de empregos. O cenário nacional já reporta um grande avanço na economia formal do país e refle-te o significativo desenvolvimento social que se projeta para o período. De acordo com um estudo realizado e divulgado pelo Ministério do Esporte24, é prevista a criação de 710 mil empregos, sendo que desse total, quase a metade serão postos permanentes. O estudo aponta ainda, que tal fato gerará um incremento de R$ 5 bilhões de reais no consumo das famílias brasileiras entre 2010 e 2014.

Diante de tamanho investimento em diferentes setores, a visão estraté-gica pretendida pelo país é de ter maior visibilidade no cenário internacional, demonstrando capacidade para organizar um evento desse porte e consagrando--se como país em franco desenvolvimento.

Tais investimentos trarão efeitos positivos não apenas durante a realiza-ção do evento, perpetuarão em razão da exposição de produtos e serviços nacio-nais para toda a comunidade internacional, o que permite alavancar a economia nacional de forma expressiva.

Os efeitos e investimento não estão adstritos às cidades que recepciona-rão os jogos, mas várias outras que possuem apelo turístico internacional. Nesse sentido é possível identificar investimentos em Foz do Iguaçu25 e cidades que estão recebendo obras de melhoria em seus aeroportos ou portos como é o caso de Campinas e Santos26 respectivamente.

pt.fifa.com/.24 Disponível em: http://portal.esporte.gov.br/arquivos/assessoriaespecialfutebol/copa2014/.25 Disponível em: http://www.turismo.gov.br/turismo/noticias/todas_noticias/20120601-3.html.26 Disponível em: http://www.copa2014.gov.br/sites/default/files/publicas/05232012_iii_balan-co_0.pdf.

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Ainda, não se pode deixar de mencionar os investimentos que deverão ser efetuados por donos de hotéis, restaurantes e demais estabelecimentos, prin-cipalmente na capacitação de seus funcionários, visando o bom atendimento, eficiente comunicação e interação com turistas estrangeiros. Tal investimento ampliará a capacidade profissional de diversos funcionários o que, obviamente, não cessará com o fim da Copa do Mundo.

Para que esses efeitos positivos sejam efetivamente concretizados, além de considerado o custo-benefício dos investimentos realizados, é necessário que se faça uma boa gestão desses recursos públicos e que se coordene de for-ma juridicamente responsável as relações do Estado com a iniciativa privada.

O presente artigo pretende conduzir ao raciocínio de que, a ocorrência destes processos responsáveis de gestão dos investimentos são instrumentos hábeis a consagração do desenvolvimento. Para tanto, mantém alheio às discus-sões ideológicas, pautando apenas a verificação do conteúdo jurídico normativo sobre a realização do evento esportivo e seu viés como ação governamental voltada à consagração do desenvolvimento.

1. A COMPREENSÃO DO DESENVOLVIMENTO

Da narrativa acima descrita, possível compreender que a Copa do Mundo de 2014 importará na realização de um evento grandioso, realizado mediante esforços de preparação prévia (como infraestrutura) e complexas operações durante sua execução27, sendo os seus reflexos (diretos ou indiretos, temporários ou duradouros) percebidos em diversos setores da economia e da sociedade.

Impossível negar que, com o preparo adequado, serão inúmeras as oportunidades de desenvolvimento socioeconômico decorrentes deste fluxo de bem-estar junto à sociedade nas mais variadas funções e setores.

Mas de que forma pode-se verificar tal evento internacional como uma medida de desenvolvimento? Para responder tal questão, os próximos tópicos trarão uma análise conceitual sobre o desenvolvimento e a sua compreensão.

1.1 O ESTADO CONTEMPORÂNEO E A CONCEPÇÃO DO DESENVOLVIMENTO

Do processo de inversão cíclica (ou pendular28), com a percepção de desalinhamento do chamado Estado Liberal em relação às carências

27 Destas operações, destacamos o desenvolvimento de mecanismos de gestão administrativa na condução dos investimentos que tenham origem em verba pública ou atividades de fomento, além dos mecanismos de transparência e controle destes valores. 28 Esta questão do movimento pendular poderá ser compreendida pela leitura de: BOBBIO, Norberto. Estado, Governo e sociedade: para uma teoria geral da política. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

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sociais29, a figura do Estado adotou postura diametralmente oposta, a qual estaria caracterizada justamente pelo forte intervencionismo junto às relações econômicas, modelo conhecido como Estado de Bem-Estar Social. O foco deste modelo intervencionista estava consubstanciado na provisão do desenvolvimento econômico e social da população30.

Tal como o Estado Liberal, o modelo provedor esgotou-se e ruiu diante de inúmeras crises31 e, de sua falência emergiu, nas últimas décadas do século XX, uma série de discussões que trabalham com a amplitude e o papel do Estado junto à economia e sociedade.

Estas discussões ocorrem num cenário marcado por uma onda neoliberalizante, por efeitos econômicos da globalização e pela universalização do capitalismo. Destes elementos, abre-se espaço para um modelo o qual, ainda que revisitado o teor liberal do século XIX, passa a agregar novos elementos aos contornos assumidos pelo Estado.

As recentes discussões acerca da regulação econômica evitam a consideração da hegemonia e culto extremo ao mercado, entendido como agente produtor do desenvolvimento.

Em virtude deste constante processo de adaptação que deve promover e ao qual deve se submeter, e a partir da noção de que o Estado contemporâneo há de assumir concomitantemente a posição de agente transformador e de paciente transformado, revela-se extremamente difícil identificar um modelo estatal específico e unificador de todas as organizações políticas desse início de século. De todo modo há indícios suficientes no sentido de que a tarefa principal do Estado contemporâneo não é a de realizar diretamente ações tendentes à satisfação das necessidades coletivas. Ao menos não de modo monopolístico e universal.32

29 “(...) o Estado liberal do século XIX, se peculiarizava por uma concepção omissiva. A função do Estado era a garantia da manutenção das condições de liberdade, para propiciar aos agentes sociais a realização de seus objetivos e finalidades”. JUSTEN FILHO. Marçal. O Direito Regulatório. In: GUIMARÃES, Edgar (Coord.). Cenários do Direito Administrativo. Estudos em Homenagem ao Professor Romeu Felipe Bacellar Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 351.30 Marçal Justen Filho esclarece que: “ao longo do século XX, a ideologia do Estado de Bem-Estar significou a assunção pelo Estado de funções de modelação da vida social. O Estado transformou-se num prestador de serviços e empresário. Invadiu searas antes reputadas próprias da iniciativa privada, desbravou nossos setores comerciais e industriais, remodelou o mercado e comandou a renovação das estruturas sociais e econômicas.” In: O Direito das Agências Reguladoras Independentes. São Paulo: 2002. p. 17.31 Marçal Justen Filho prossegue no sentido de que “a multiplicação da população e a redução da eficiência das atividades desempenhadas diretamente pelo Estado contribuíram decisivamente para o fenômeno denominado de “crise fiscal”. A expressão passou a ser utilizada para indicar uma situação de insolvência governamental (...).” In: Idem. p. 19.32 OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de. Direito ao Desenvolvimento na Constituição

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São as mais variadas teorias sobre este novo papel do Estado, e deste conjunto teórico de análises, conceitos e reflexões de difícil consenso, percebe-se a emergência da figura contemporânea do Estado Regulador, desenvolvida a partir da noção da existência de um núcleo mínimo de atividades essenciais do Estado33, sendo uma destas funções típicas a regulação.

De certa forma, esta concepção regulatória de esvaziamento da figura do Estado deve ser tratada com maior atenção. Atente-se ao fato de que não se pode admitir a repetição de um modelo liberal que já demonstrou falibilidade. A chamada “auto-regulação” do mercado é capaz de proporcionar um “custo-social”, já que a dinâmica do mercado está marcada por leis de eficiência, sendo ignorada a necessidade de reequilíbrio espontâneo do mercado, que sempre tenderá ao lado mais “forte”. A ausência deste equilíbrio, ou mesmo a demora na sua realização, causaria um “sofrimento dramático de parcelas enormes da população.”34

Este é o ponto crucial, ou seja, a atual função regulatória, não estará consubstanciada puramente na regulação da economia, mas abarcaria ainda a chamada “regulação social”. Outros serão os segmentos que compõem o universo da sociedade que, embora não puramente econômicos, deverão ser protegidos. O meio ambiente natural, a educação, a previsão e defesa dos direitos de minorias, por exemplo, são elementos que a racionalidade pura econômica poderia induzir em práticas reprováveis.

Trata-se da regulação social, que assume outras propostas. Constatou-se que o mercado, ainda que em funcionamento perfeito, pode conduzir à não realização de certos fins de interesse comum. A tais questões já eram sensíveis mesmo os enfoques mais tradicionais, que reputavam cabível a intervenção estatal orientada a assegurar a redistribuição de rendas e a produzir consumo obrigatório de serviços (educação, por exemplo)35.

Assim, a atuação do Estado tende a visar, não apenas à regulação pura econômica, mas também privilegia o chamado desenvolvimento humano e comunitário. Existe uma expectativa de que a atuação estatal esteja consolidada

Brasileira de 1988. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico (REDAE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n.º 16, novembro/dezembro/janeiro, 2009. p. 4.33 Norberto BOBBIO apresenta este entendimento de feixe mínimo, definindo como atribuições típicas de Estado: (i) o poder coercitivo (monopólio da força), (ii) o poder de impor tributos e (iii) o poder jurisdicional (poder de julgar e decidir a razão e a sem razão, o justo e o injusto). Outras atribuições não seriam características de Estado, mas de certos Estados (BOBBIO, Norberto. O Dever de Sermos Pessismistas. In: _____. As ideologias e o Poder em Crise. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. p. 177-181. p. 178). 34 JUSTEN FILHO, Marçal Justen Filho. “O Direito das Agências Reguladoras Independentes”. São Paulo: Dialética, 2002. p. 38.35 Idem, p. 38.

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na condição de agente financiador e fomentador de atividades que tenham por fim gerar a transformação social36.

Este breve passeio sobre a evolução da figura do Estado, em especial as reflexões do Estado contemporâneo, tem como objetivo concluir pela função desenvolvimentista, ou seja, ao longo do tempo, a própria concepção de desenvolvimento contemplou variações sempre relacionadas ao posicionamento que o Estado adquiriu.

Durante o período liberal, a compreensão do desenvolvimento possuía reflexos puramente econômicos, analisados de forma macroscópica, seguindo critérios matemáticos que pudessem auferir a riqueza de uma nação37. Compreendia-se que o próprio crescimento econômico seria capaz de promover o bem-estar de uma sociedade.

Quando do período que concebia o Estado de Bem-Estar Social, a questão do desenvolvimento seria contemplada em razão da prestação direta dos serviços considerados essenciais. Justamente a ineficiência na prestação destes serviços, causada até mesmo pelo agigantamento da figura e atribuições do Estado, maculou a real satisfação do desenvolvimento.

Talvez a figura do Estado Regulador e a denominada regulação social, revele uma preocupação em garantir o equilíbrio e a prestação de carências sociais, ainda que sem a prestação direta.

A nova e discutida concepção regulatória notadamente apresenta algumas construções teóricas preocupadas com a transformação social.

Dentre essas construções, é pertinente apresentar o chamado Estado do Investimento Social, liderado em especial por Anthony GIDDENS. Essa é uma construção marcada pela denominada “terceira via” e sua proposta seria a estrutura de pensamento e prática política disposta a adaptar a social-democracia para um mundo que se transformou fundamentalmente ao longo das duas últimas décadas. Desta forma, propõe uma denominada economia mista, através da qual se busca a sinergia entre os setores público e privado, com o dinamismo do mercado, no entanto sem perder o foco de fundo do interesse público38.

Outra destas novas construções é a chamada concepção desenvolvimentista de Estado, formulada por Amartya SEN, e que tem como concepção a ideia de que o desenvolvimento “é um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam”39:

36 OLIVEIRA, Op. cit., p. 7.37 FUSFELD, Daniel R. A Era do Economista. Trad. Fábio D. Waltenberg. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 262-265.38 GIDDENS, Anthony. A TERCEIRA VIA: Reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da social-democracia. Rio de Janeiro: Recordo, 2000. p. 36.39 SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. 7. reimp. São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 17.

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(...) um dos aspectos mais consideráveis do Estado desenvolvimentista é que, embora SEN aponte que o Estado e sociedade têm ambos o papel de fortalecimento das habilidades, capacidades e competências humanas, resta claro tratar-se de função estatal a harmonização da perspectiva do crescimento econômico com o desenvolvimento humano e comunitário.40

Desta onda desenvolvimentista, surge um contexto de função estatal: promover a garantia de um crescimento econômico aliado à satisfação das liberdades políticas, das oportunidades sociais, da transparência e equilíbrio entre o econômico e o “não-econômico” na vida em sociedade.

Portanto, a atual concepção de Estado contemporâneo revela a necessidade de atuação na garantia de mais uma medida de direito fundamental: o direito ao desenvolvimento.

1.2 CRESCIMENTO ECONÔMICO VERSUS DESENVOLVIMENTO

A discussão teórica acerca do desenvolvimento é tarefa de profundo interesse, mas igualmente exaustiva. Exaustiva porque busca refletir um conceito que se encontra em constante mudança e não consensual, já que contem inúmeras vertentes e reflexões.

Indiferente a ausência deste consenso, torna-se imprescindível compreender que ganha espaço aqueles entendimentos que procuram dissociar a histórica ideia de desenvolvimento como fruto de crescimento econômico.

Desde a formação dos Estados Modernos, a medição de suas riquezas passou a ser sinônimo de poderio econômico. Os mesmos critérios de medição de riqueza, percebidos através de mecanismos mais complexos, ainda interpretam este “poderio” através do chamado Produto Interno Bruto - PIB, representando a soma de todos os bens e serviços produzidos em um determinado país, durante um determinado período de tempo.

É evidente que este critério de “desenvolvimento” não proporcionou o chamado bem-estar intentado pelo Estado provedor, uma vez que o mero somatório matemático do conjunto de bens e serviços não necessariamente confere e representa a satisfação e bem-estar de uma sociedade41.

40 OLIVEIRA, Op. Cit., p. 9.41 Esta noção vinculada entre desenvolvimento e crescimento econômico começa a dissociar-se quando, em 1961, a ONU institui o chamado 1º Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o qual visava acelerar o progresso no intuito de um crescimento auto-sustentado das nações. A iniciativa parte da constatação de que o problema do subdesenvolvimento adquiriu caráter global, devendo ser discutido e solucionado da mesma forma. Em 1990 o PNUD divulga o chamado IDH – Índice de Desenvolvimento Humano, calculado partindo-se de premissas de ordem econômica e social. Com a sua criação, foi possível dissociar definitivamente o calculo do crescimento econômico do desenvolvimento. O método reforça a compreensão defendida

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A discussão é muito bem tratada por José Eli da VEIGA, que, ao criticar a metodologia atual de medição da riqueza (o PIB), aponta, dentre outras falhas, a ausência da consideração da depreciação dos ativos, tal como os ambientais. O autor prossegue sua obra com a intenção de descolar a ideia de desenvolvimento com a de crescimento econômico e, para isso, registra que, mesmo com um crescimento econômico inferior, o Brasil progrediu de 1980 para cá em outros indicadores de desenvolvimento, como o IDH da ONU e outros relativos aos critérios de sustentabilidade42.

A análise de tantas considerações projeta uma noção atual de que o desenvolvimento e o crescimento econômico possuem forte vínculo, sendo este quantitativo e aquele qualitativo. Qualitativo no sentido de priorizar a melhoria da condição de vida da população, daí que o Índice de Desenvolvimento Humano - IDH passa a ser um melhor indicador do desenvolvimento nacional.

[S]e o desenvolvimento econômico não trouxer consigo modificações de caráter social e político; se o desenvolvimento social e político não for a um tempo o resultado e a causa de transformações econômicas, será porque de fato não tivemos desenvolvimento43.

Sobre o assunto, Eros Roberto Grau discorre no sentido de que:(...) a ideia de desenvolvimento supõe dinâmicas mutações e importa em que

se esteja a realizar, na sociedade por ela abrangida, um processo de mobilidade social continuo e intermitente. O processo de desenvolvimento deve levar a um salto, de uma estrutura social para outra, acompanhando da elevação do nível econômico e no nível cultural-intelectual comunitário. Daí porque, importando e consumação de mudanças de ordem não apenas quantitativa, mas também qualitativa, não pode o desenvolvimento ser confundido com a ideia de crescimento44.

1.3 O DESENVOLVIMENTO NA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA E SEU RECONHE-CIMENTO COMO DIREITO FUNDAMENTAL

Apresentada a evolução teórica acerca da concepção de desenvolvimento e registrada a sua importância como função de Estado, fundamental verificar a forma como a ordem jurídica brasileira recepciona o desenvolvimento.

por JOSÉ AFONSO DA SILVA, para quem o desenvolvimento deve ser considerado um evento relacionado ao aspecto econômico, social, cultural e político cujo objetivo será o bem-estar de toda a população e numa distribuição justa do seu resultado (in Comentário Contextual à Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006). 42 As críticas ao método proposto pelo PIB estão presentes em todo o primeiro capítulo da obra A Emergência Socioambiental (São Paulo: SENAC, 2007). 43 BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Desenvolvimento e a Crise no Brasil: história, economia e política de Getúlio Vargas a Lula. São Paulo: Ed. 34, 2003.44 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. p. 216.

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Não se encontrará uma grande quantidade e referências à expressão desenvolvimento junto ao corpo documental constitucional, fato que de forma alguma diminui a sua importância em contexto normativo e prático. Contrariamente, as poucas remissões permitem afirmar e delinear o principio do desenvolvimento além da existência do princípio do empreendedorismo, público e privado, e a sustentabilidade45.

A primeira das previsões expressas está localizada no próprio preâmbulo da Constituição:

PREÂMBULO - Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Assim, promulgada a constituição, a diretriz do desenvolvimento passou a ser tratada como um dos objetivos fundamentais da República:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;II - garantir o desenvolvimento nacional.O desenvolvimento proposto conta ainda com o artigo 174, o qual prevê

que a norma infraconstitucional estabeleça diretriz e base de planejamento para o desenvolvimento nacional equilibrado, compatibilizando os planos nacionais e regionais de desenvolvimento:

Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

§ 1º - A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento.

O corpo Constitucional, ao trazer consigo a previsão de desenvolvimento nacional e regional como um preceito fundamental de eficácia vertical sobre

45 Uma análise das aparições do termo “desenvolvimento” na Constituição de 1988 foi realizada por Luiz Alberto BLANCHET no artigo “Infraestrutura Nacional e Desenvolvimento Sustentável” in DOTTA, Alexandre Godoy; HACHEM, Daniel Wunder, REIS, Luciano Elias. (Organizadores). Anais do I Seminário Ítalo-Brasileiro em Inovações Regulatórias em Direitos fundamentais, Desenvolvimento e Sustentabilidade e VI Evento de Iniciação Científica UniBrasil 2001 / Alexandre Godoy Dotta; Daniel Wunder Hachem; Luciano Elias Reis – Curitiba: Negócios Públicos, 2011.

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as três esferas de Poder, trouxe ao ordenamento jurídico a obrigação de que se busquem mecanismos para sua consagração.

Sendo este um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, caberá à lei estabelecer diretrizes e bases de planejamento de um desenvolvimento econômico equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento (§1º do art. 174)46.

Decorre, ainda, do artigo 23 a obrigação de que o legislador infraconstitucional fixe normas para a cooperação entre a União, Estados, Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.

Três aspectos sobressaem, portanto: a) o sujeito, o titular dos interesses não é o Estado, nem o Governo e tampouco os governantes, mas o povo; b) o desenvolvimento não é apenas um anseio ideológico, e muito menos ideológico-partidário, mas um dever do Estado; c) a Constituição define o desenvolvimento como princípio, aponta os meios para sua busca e elege a União como competente para cumprimento de tal tarefa47.

Mas ainda que exista a previsão interna e constitucional das necessárias medidas de desenvolvimento como função típica do Estado moderno e a sua aceitação como princípio, é possível conceber a existência de um direito humano individual fundamental ao desenvolvimento? A questão deve ser apreciada através da análise dos direitos fundamentais decorrentes, conforme prevê o artigo 5º da ordem constitucional brasileira:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Assim, dada a concepção do desenvolvimento como função típica da atuação estatal, prevista no ordenamento interno, é de se ressaltar que a ordem internacional também reflete sua observância.

Trabalhando com a localização junto à ordem internacional recepcionada, destaca-se a chamada Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, produzido pela Organização das Nações Unidas, a ONU, estabelece em seu artigo 2º, item 1, que “a pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento e deveria ser participante ativo e beneficiário do direito ao desenvolvimento”. Prossegue em seu item 3: “Os Estados têm o direito e o dever de formular

46 OLIVEIRA. Op. cit. p. 16.47 BLANCHET, Op. cit., p. 33.

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políticas nacionais adequadas para o desenvolvimento, que visem o constante aprimoramento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos, com base em sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na distribuição equitativa dos benefícios daí resultantes”.

Daí a notória responsabilidade do Estado como agente principal na efetivação deste direito humano ao desenvolvimento, inalienável, dotado de aspecto individual e coletivo, caracterizado como direito fundamental de terceira geração48.

A Constituição Federal busca alterar a estrutura social vigente no país, que revela um modo social de produção. E busca fazê-lo mediante a definição de um conjunto de políticas públicas que determinarão novas formas histórico-sociais, econômicas e políticas que estão em constante modificação. Ao reconhecer as contradições da realidade brasileira, a Constituição Federal gerou um sistema capaz de rompê-las, dando as bases para a realização de seus princípios. Portanto, uma teoria do desenvolvimento, aplicada à definição de diretrizes que cumpram ou venham a cumprir o comando constitucional, deve se caracterizar pelo conjunto de iniciativas que rompam com o modelo de subdesenvolvimento em vigor, promovendo outra correlação de fluxo de renda, de modo a permitir ao Estado e à população, o estabelecimento de níveis superiores de qualidade de vida, mais as bases produtivas nacionais necessárias para a promoção do desenvolvimento de políticas de pesquisa e desenvolvimento tecnológico. Uma teoria de desenvolvimento, digna deste nome, deve garantir a vigência dos cinco pilares sustentáculos da democracia, a saber: liberdade, igualdade, solidariedade, diversidade e participação49.

2. O EVENTO COPA DO MUNDO VISTO COMO MEDIDA DO DESENVOLVIMEN-TO SOCIOECONÔMICO NACIONAL

O Brasil, no ano de 2003, apresentou sua intenção de candidatar-se a pais sede da Copa do Mundo de Futebol de 2014 através de representação pela Confederação Sul-Americana de Futebol - CONMEBOL. O resultado desta candidatura e da concorrência internacional encerrou-se em 2007, quando a Federação Internacional de Futebol Associado – FIFA elegeu o Brasil.

Deste prolongado processo, é possível reconhecer a ação do Poder Público (em especial do Poder Executivo) a qual é justificada, juridicamente,

48 Manoel Gonçalves FERREIRA FILHO conceitua “a primeira geração seria a dos direitos de liberdade, a segunda, dos direitos de igualdade, a terceira, assim, completaria o lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade” (Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 57). 49 SILVA, Guilherme Amorim Campos. Direito ao desenvolvimento. São Paulo: Método, 2004. p. 94-95.

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no exercício da função desenvolvimentista. A análise de alguns expedientes publicados pelo Poder Executivo Federal tem retratado esta natureza:

Ainda faltam quase três anos, mas desde que houve a definição do país sede, em 20 de outubro de 2007, iniciou-se um abrangente esforço nacional. Não se trata simplesmente de cumprir as exigências da organização e fazer um bom papel aos olhos do mundo. Desde maio de 2007, quando houve a ratificação das 12 cidades-sede, um trabalho de planejamento e execução de empreendimentos estratégicos desencadeou um processo de desenvolvimento que transcende qualquer parâmetro esportivo50.

É evidente que a medida proposta pelo Poder Executivo passaria agora a necessitar o apoio de toda a estrutura pública administrativa, bem como iniciativa privada, para a consolidação de resultados almejados.

Desta forma, a estrutura de governança do evento começa a ser definida com a publicação, em 14 de janeiro de 2010, do decreto presidencial de criação do chamado Comitê Gestor da Copa – CGCOPA. Em 26 de julho de 2011, o novo decreto presidencial incluiu outros agentes nesta estrutura de governança.

Ambos os Comitês tem como principal objetivo definir, aprovar e supervisionar ações previstas no Plano Estratégico do Governo Brasileiro para a realização da Copa do Mundo da FIFA 2014 e contam com uma composição mista.

Definidos os Comitês de criação deste Plano Estratégico, formalizou-se a chamada “Matriz de Responsabilidades” dos agentes envolvidos (públicos e privados). Esse documento define cronogramas e responsabilidades em relação às obras de infraestrutura e outras prestações.

A fiscalização da execução dessa matriz está sob a tutela dos Comitês (interna), além da própria FIFA. Para acompanhamento e controle externo, foi criado pela Controladoria-Geral da União, o Portal da Transparência51. Outras formas de divulgação de números e cronogramas não oficiais estão disponíveis52.

Dessa estrutura de governança, atente-se à responsabilidade de gestão financeira envolvida, já que serão vultosos os valores previstos para investimentos, decorrentes desde linhas de crédito do BNDES, até verbas do governo federal destinadas ao PAC53.

Políticas públicas específicas, ações governamentais, isenções fiscais e outras formas de indução e fomento passarão a compor o ambiente regulatório

50 Disponível em: http://www.copa2014.gov.br/pt-br/sobre-a-copa/copa-de-2014.51 Disponível em: http://www.transparencia.gov.br/copa2014/.52 Disponível em: http://www.portal2014.org.br/.53 Os investimentos em infraestrutura estão estimados na ordem de R$ 22 bilhões. Parte deste valor será disponibilizado pelo BNDES, através de linhas de crédito. A primeira linha já anunciada foi de R$ 4,8 bilhões. Outros valores são disponibilizados pelo Governo Federal, tal como R$ 9 bilhões do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), para obras de transporte, e recursos do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC.

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do país. Algumas das medidas já publicadas foram o chamado “Regime Diferenciado de Contratações” (Lei nº 12.462, de 5 de agosto de 2011) a chamada “Lei de Isenção” (Lei nº 12.350, de 20 de dezembro de 2010) que dispõe sobre medidas tributárias referentes à realização da Copa das Confederações FIFA 2013 e da Copa do Mundo FIFA 2014 no Brasil) e a “Lei Geral da Copa” (Lei nº 12.663 de 5 de junho de 2012), que tem por objetivo regulamentar todas as questões previstas nas Garantias Governamentais, acordadas com a FIFA para a realização da Copa 2014, exceto as que se referem à matéria tributária.

Toda esta mobilidade da máquina administrativa pretende, num primeiro momento, atender às exigências impostas ao país-sede, mas num segundo plano, referem-se a intensos investimentos permanentes em favor da sociedade.

No que diz respeito aos valores investidos e aos impactos socioeconômicos, o estudo recente “Brasil Sustentável: Impactos Socioeconômicos da Copa do Mundo de 2014”, desenvolvido pela empresa de auditoria Ernest & Young Terco em parceira com a FGV54 apontou que os gastos estimados do megaevento serão aproximadamente R$ 29,6 bilhões. Destes, R$ 12,5 bilhões virão do setor público (o que representa 42%) e R$ 17,16 bilhões serão provenientes do setor privado (representando 58% do total).

Já em relação aos benefícios derivados da realização da Copa do Mundo de 2014, através de um estudo realizado pelo Ministério do Esporte55, estima-se que os impactos econômicos decorrentes da realização do evento no Brasil podem chegar a R$ 183,2 bilhões, sendo que desse valor, 26% dos impactos são diretos (aqueles que estão diretamente relacionados ao evento, que dizem respeito a infraestrutura, turismo, criação de emprego, consumo e tributos) e 74% indiretos (aqueles que são contabilizados pelo estímulo às atividades econômicas induzidos pelos efeitos diretos, comumente conhecido como “recirculação” do dinheiro na economia)56.

Os benefícios econômicos diretos foram assim apontados pelo estudo supramencionado (sendo que foram contabilizadas em cada uma das variáveis de cálculo do PIB, e já considerando os efeitos de importação):

•investimentos em infraestrutura: beneficiará em R$ 33 bilhões;•turismo incremental: benefício de R$ 9,4 bilhões;•geração de empregos: 330 mil permanentes e 380 mil temporários;

54 Disponível em: http://www.ey.com/Publication/vwLUAssets/Brasil_Sustentavel_Copa2014_novamarca/.55 Disponível em: http://portal.esporte.gov.br/arquivos/assessoriaEspecialFutebol/copa2014/.56 Já o estudo promovido pela Ernest&YoungTerco em parceria com a FGV concluem que a competição deverá injetar, adicionalmente, mais R$ 112,79 bilhões na economia brasileira, com a produção em cadeia de efeitos indiretos e induzidos. O estudo prevê a possibilidade de que o país movimente R$ 142,39 bilhões adicionais no período de 2010 – 2014, gerando 3,63 milhões de novos empregos-ano e R$ 63,48 bilhões de renda para a população.

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•aumento no consumo das famílias: R$ 5 bilhões;•arrecadação de tributos: R$ 16,8 bilhões.Ainda, segundo dados fornecidos pelo Portal da Copa, site do governo

federal brasileiro, estima-se que a Copa do Mundo da FIFA 2014 agregará 183 bilhões de reais ao PIB do Brasil.57

Desse modo, conclui-se que o investimento total a ser aplicado para a realização da copa corresponde a 16% dos benefícios que atingirão o Brasil e sua população.

2.1 O DESENVOLVIMENTO E INFRAESTRUTURA

A discussão sobre infraestrutura revela a ausência de unanimidade conceitual, seja na ciência jurídica ou econômica. Ainda que diversos os setores econômicos que aproximam a regulação estatal da infraestrutura, não foram muitos trabalhos que procuraram conceituá-la.

É de conhecimento notório na literatura econômica que os investimentos alocados nos setores de transporte, saneamento, energia e outros setores da infraestrutura, revertem em aumento do nível de emprego, melhoria da renda da população e consequente favorecimento na distribuição da renda, aumento do consumo, arrecadação tributária além de todas as reflexas transações correntes.

Dessa forma, quando tratamos do tema desenvolvimento, a questão da infraestrutura está intimamente relacionada.

Em que pese a escassez desse princípio no corpo da Constituição, pode-se compreender infraestrutura, em linhas gerais como “o conjunto de estruturas, equipamentos e instalações que constituem a base sobre a qual é produzida a prestação de serviços considerados essenciais para a vida e/ ou para o desenvolvimento de fins produtivos”58.

É de se reparar que a Constituição Federal, entretanto, destinou expressamente o termo “infraestrutura” para apenas dois momentos, dos quais destacamos o artigo 2159, quando o texto constitucional define como competência material da União a implementação e a exploração da infra-estrutura nacional, especialmente nas

57 Disponível em: http://www.copa2014.gov.br/pt-br/sobre-a-copa/copa-de-2014.58 ROZAS, Patrício; SÁNCHES, Ricardo. Desarollo de Infraestructura y Crecimiento Econômico: revisión conceptual. Santiago de Chile, CEPAL, 2004. p. 5 (Serie Recursos Naturales e Infraestructura, n. 75). 59 Outra previsão está localizada no artigo 177, o qual determina atividades de monopólio da União, quando prevê que “A lei que instituir contribuição de intervenção no domínio econômico relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível deverá atender aos seguintes requisitos: (...) II - os recursos arrecadados serão destinados: (...) c) ao financiamento de programas de infra-estrutura de transportes.”

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áreas de telecomunicações (inciso XI), de energia elétrica (inciso XII, alínea ‟a”), de navegação aérea, aeroespacial e de infra-estrutura aeroportuária (inciso XII, alínea “b”), de transporte ferroviário, aquaviário e rodoviário (inciso XII, alíneas “c” e “d”), e de desenvolvimento urbano (inciso XX).

Ainda que de aparição escassa, fundamental esclarecer que a sua compreensão decorre ainda de outros elementos expressos e intrínsecos.

Luiz Alberto BLANCHET esclarece que a infraestrutura, como o pressuposto físico do desenvolvimento, revela em seu processo de normatização pelo legislador constituinte, um sincronismo com a continuidade, sustentabilidade e o próprio desenvolvimento60.

Dessa forma, é de competência do Estado o aprovisionamento deste pressuposto estático e físico do desenvolvimento, devendo ainda preocupar-se com o pressuposto dinâmico de sua operação e funcionamento, qual seja: a logística.

Além disso, o Preâmbulo e o art. 3º, inciso II, que elegem, nesta mesma ordem, o desenvolvimento como finalidade do Estado e como objetivo fundamental da República, obviamente pressupõem, além das demais, também uma infra-estrutura de transportes e uma logística adequadas à necessidade de constante desenvolvimento61.

Ainda que de responsabilidade (competência) exclusiva do Estado, a infraestrutura, quando precária ou inexistente, impossibilita os serviços públicos e as atividades privadas, agride a dignidade, a saúde, o bem-estar e a própria vida das pessoas.

A inexistência ou precariedade da infraestrutura concebida pelo Estado compromete e até inviabiliza a vida em sociedade e, especialmente, o exercício de direitos fundamentais, o que imprime ao problema alta relevância. Este gravame impende a atuação do Estado como agente condutor do desenvolvimento e prejudica imensuravelmente a inovação e a produção operada pela iniciativa privada, a qual deixa de fluir naturalmente.

A bem da realidade, em território nacional, contrariamente ao desenvolvimento, a ausência de investimentos em infraestrutura tem provocado efeitos no sentido contrário. Ao longo das últimas décadas, o país perdeu investimentos em virtude da precariedade de setores básicos e contabilizou cifras impressionantes de prejuízos decorrentes de gargalos logísticos.

Para a Copa do Mundo, o setor de infraestrutura de transporte foi contemplado por um planejamento caracterizado pelas concessões em sua exploração (rodovias, portos e aeroportos), além de investimentos públicos diretos no valor aproximado de R$ 1,21 bilhões para a expansão da capacidade aeroportuária e R$ 1,44 bilhões direcionados a obras de reconstrução, manutenção e ampliação das rodovias.

60 BLANCHET, Ob. cit., p. 32.61 Idem, p. 33

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Em relação à construção e reforma dos estádios esportivos, trata-se do principal custo isolado do evento, levando em consideração que algumas cidades-sedes não dispõem de estádios em condições para sediar partidas de competições internacionais. Nesse sentido, a FIFA exige requisitos de conforto, acessibilidade, iluminação e segurança para a realização dos jogos, desse modo, em algumas cidades-sedes, como Cuiabá, Natal, Recife e São Paulo, serão construídos estádios novos, e, nas demais, haverá obras de reconstrução, ampliação e reforma.62

2.2 O ASPECTO SOCIAL ENVOLVIDO NO EVENTO

As previsões constitucionais apresentadas, aliadas à compreensão do direito ao desenvolvimento como um direito humano fundamental, se adéquam a uma concepção de desenvolvimento não adstrito unicamente ao critério econômico63. Elas conferem preocupação qualitativa à questão da satisfação de necessidades essenciais da sociedade.

Essa preocupação com o desenvolvimento no campo social assume outras vestes quando aplicada ao contexto jurídico de países subdesenvolvidos:

Característica comum a quase todos os países subdesenvolvidos é a extrema concentração de poder econômico. Esta concentração de poder limita a expressão das preferências e a habilidade da sociedade para mudar e crescer. Limita a mudança pois esta não é possível sem o conhecimento dos problemas e dos objetivos que a sociedade como um todo deseja perseguir. Limita o crescimento porque, como visto, a existência de centros propulsores de desenvolvimento baseados na demanda (consumidores) não é compatível com a concentração do conhecimento econômico64.

Sobre a Copa do Mundo de 2014, a primeira evidência de satisfação relaciona-se ao bem-estar que o evento certamente trará à população brasileira. É inegável que sediar um evento mundial e tornar-se o foco desta realização é um fenômeno capaz de conferir sensação de bem-estar à população65. Este

62 Disponível em: http://www.portaltransparencia.gov.br/copa2014/matriz/.63 A já citada “Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento”, produzida pela Organização das Nações Unidas, a ONU, estabelece em suas considerações inaugurais: “Reconhecendo que o desenvolvimento é um processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa o constante incremento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos com base em sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na distribuição justa dos benefícios daí resultantes”.64 SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito como instrumento de transformação social e econômica. Revista de Direito Público da Economia, Belo Horizonte, a. 1, n. 1, p. 15-44, jan./mar. 2003. p. 25-26.65 Um grupo de economistas e cientistas liderado por Joseph Stiglitz, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2001, acreditam que o Produto Interno Bruto (PIB) é uma ferramenta limitada

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bem-estar é considerado por muitos um elemento de análise do nível de desenvolvimento de uma nação66.

Aliado ao aspecto do bem-estar psicológico, a grande soma de investimentos acima descritos trará reflexos imediatos aos mais diversos setores da sociedade, responsáveis pela prestação de serviços essenciais.

No que concerne à expansão e adequação do parque hoteleiro, a maior parte das cidades sede não comporta a demanda do fluxo turístico causado pela Copa, sendo que a capacidade está muito aquém da desejada. O déficit total projetado, segundo o estudo da Ernest & Young e da Fundação Getúlio Vargas, corresponde a 62.397 unidades. Assim, é nítida a necessidade de expansão do setor. O investimento apontado corresponde à R$ 3,16 bilhões, os quais somarão 19.493 novas unidades hoteleiras às cidades-sede.

Os investimentos em mídia e publicidade estão estimados em R$ 6,51 bilhões e serão efetuados principalmente pelo setor privado e concentrados majoritariamente no ano de 2014.

para medir o progresso das sociedades, uma vez que não consegue mensurar, com eficácia, o bem-estar social de uma nação por meio dos resultados desejados em todas as suas políticas implementadas para tal fim.66 O presidente da França, Nicolas Sarkozy, aderiu ao novo paradigma. Em 2008, ele organizou uma comissão liderada pelos prêmios Nobel em Economia, os economistas Joseph Stiglitz e Amartya Sem, cujo objetivo é dar maior foco em indicadores como saúde, coesão familiar e tempo de lazer em vez da ênfase atual no PIB – medir a riqueza de forma parcial (bens e serviços) - O estudo final denominado “Report of the commission on the measurement of economic performance et social progress “, encontra-se disponível em http://www.stiglitz-sen-fitoussi.fr/en/index.htm: “The Commission on the measurement of economic performance and social progress has been created at the beginning of 2008 on French government’s initiative. Increasing concerns have been raised since a long time about the adequacy of current measures of economic performance, in particular those based on GDP figures. Moreover, there are broader concerns about the relevance of these figures as measures of societal well-being, as well as measures of economic, environmental, and social sustainability. Reflecting these concerns, President Sarkozy has decided to create this Commission, to look at the entire range of issues. Its aim was to identify the limits of GDP as an indicator of economic performance and social progress, to consider additional information required for the production of a more relevant picture, to discuss how to present this information in the most appropriate way, and to check the feasibility of measurement tools proposed by the Commission. Commission’s work is not focused on France, nor on developed countries. The output of the Commission has been made public, providing a template for every interested country or group of countries. The Commission was chaired by Professor Joseph E. Stiglitz, Columbia University. Professor Amartya Sen, Harvard University, was Chair Adviser. Professor Jean-Paul Fitoussi, Institut d’Etudes Politiques de Paris, President of the Observatoire Français des Conjonctures Economiques (OFCE), was Coordinator of the Commission. Members of the Commission are renowned experts from universities, governmental and intergovernmental organisations, in several countries (USA, France, United Kingdom, India). Rapporteurs and secretariat have been provided by the French national statistical institute (Insee), OFCE, and OECD. The Commission held its first plenary meeting on 22 - 23 April 2008 in Paris. Its final report has been made public on 14 September 2009.

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Em relação aos investimentos em tecnologia da informação, estimam-se necessários R$ 309 milhões para acomodar o grande fluxo de dados e capacidade de processamento.

Os recursos destinados à implantação de centros de mídia e transmissão de dados IMCs (International Media Centers) e IBC (International Broadcast Center) também são vultosos. Apenas para a implantação do IBC, que centralizará as informações enviadas aos outros países, os investimentos estimados são de R$ 184 milhões.

Outro destes investimentos em segmentos promotores de melhorias nas condições de vida é a reurbanização das cidades, revitalização de áreas turísticas (379km2), entornos dos aeroportos (132km2) e dos estádios (0,6 km2). Esta revitalização compreende iluminação pública, pavimentação de calçadas, readequação de espaço e outras as quais possuem investimento estimado em R$ 2,84 bilhões67.

Para garantir de forma efetiva a segurança pública, serão investidos R$ 1,70 bilhões em infraestrutura de segurança, que engloba veículos e aeronaves, sistemas de comunicação e tecnologia, treinamento de pessoal e armamentos.

Está prevista a instalação dos chamados Fan Parks, parques ou áreas ao ar livre transformados em espaços de lazer para o público, bem como para sua integração. Serão instalados em todas as cidades-sede, terão entrada gratuita e contarão com diversas atividades de entretenimento para o público, inclusive com telões que irão transmitir os jogos. Para isso, serão investidos R$ 204 milhões.

Além desses investimentos, ainda existem os gastos operacionais que dizem respeito a segurança e energia, que serão de R$ 327 milhões e R$ 280 milhões respectivamente.

Some-se a esses elementos a política de sustentabilidade que, desde o evento realizado na Alemanha em 2006, é pregado pelos Comitês de Organização. Assim, são previstos, para a realização do evento medidas de conservação de energia, minimização do uso de água, gestão integrada de resíduos, mobilidade planejada, edificações “verdes”, sempre prezando pelas certificações de entidades internacionais (Leed, Acqua, Breeam, etc.).

Dessa forma, além dos benefícios econômicos da realização da Copa do Mundo no Brasil, temos ainda os efeitos sociais derivados das ações efetivadas pela realização do evento, que já foram brevemente apontados e podem ser aqui resumidos como a exposição positiva do Brasil na comunidade internacional, o que deverá alavancar o desenvolvimento social do país, por meio do turismo, dos impactos do programa de voluntariado sobre a escolaridade e renda da

67 A finalidade da norma que se extrai do art. 182 da Constituição, relativa à política de desenvolvimento urbano, é manifestamente clara: “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.

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população, dos benefícios sociais resultantes dos investimentos em infraestrutura (que poderiam demorar muito mais tempo para serem efetivados); da potencial redução da violência e criminalidade em decorrência dos investimentos em segurança e, ainda, dos impactos microeconômicos advindos da construção e melhoria dos estádios e a existência de um novo ambiente de oportunidades que se cria tendo em vista a ocorrência de um evento desse porte.

2.3 OS RISCOS DO EVENTO E A CONTRAMÃO DO DESENVOLVIMENTO

É evidente que toda a argumentação acima proposta no sentido de determinar a realização da Copa do Mundo como uma medida de consagração do desenvolvimento socioeconômico nacional, direito fundamental e garantia constitucional (art. 3º da CF/88) dependerá do sucesso desta gestão, planejamento e cumprimento dos cronogramas e metas propostos.

Na realidade, a indicação e definição do Brasil como país sede pode ser considerada uma via de mão dupla. Se por um lado é capaz de alavancar uma economia e promover profundas medidas de desenvolvimento social, por outro, poderá registrar um fracasso capaz de causar profundos prejuízos.

Tal situação ocorreria diante de uma ineficiência econômica marcada por orçamentos deficientes ou equivocados, ausência de tempo para readequações junto aos projetos iniciais, custos extras devido ao não atendimento dos cronogramas, distorções de ordem macroeconômica, cambial ou regulatória, etc.

A ineficiência poderá ser na deficitária qualidade e atendimento aos visitantes, perdas econômicas, desordem, fluxo negativo de visitantes, imagem negativa. É notória a carência de um sistema energético confiável, fluxo adequado do transporte arterial, estádios adequados ao padrão internacional, incapacidade do sistema hoteleiro e ineficiência da segurança pública, fatores que agregam profundo desfio de gestão pública para reversão e concretização dos impactos socioeconômicos positivos previstos.

3. CONCLUSÃO

O presente artigo teve com especial fundamento a aproximação de eventos internacionais os quais, por tornarem o cenário nacional extremamente atraente para investimentos estrangeiros, bem como, por exigirem um alto grau de organização administrativa e infraestrutura, proporcionam cenário hábil à promoção de ações governamentais em busca da consagração do desenvolvimento nacional.

A despeito da existência do evento, bem como da assimilação de que sua ocorrência efetiva medidas desenvolvimentistas, é fundamental registrar que

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tais medidas não podem ser promovidas exclusivamente em decorrência destas condições (país anfitrião de eventos internacionais).

A realidade aponta ao fato de que a prestação de serviços estatal, em especial junto ao cenário aeroportuário e portuário, já há tempos demonstram uma profunda inadequação com o ritmo de crescimento e desenvolvimento de atividades particulares (empreendedores). Na realidade, esta necessária infraestrutura e logística já constituem um verdadeiro gargalo ao desenvolvimento.

A questão apenas ressalta que a gestão pública (atual e passadas) destes serviços está absolutamente desconectas daquelas exigências constitucionais que preservam a adequação, continuidade e sustentabilidade.

É esta conjuntura que acaba por frustrar o desenvolvimento nacional. O direito ao desenvolvimento, conforme foi exaustivamente descrito ao longo deste artigo, se trata de um direito fundamental, representado não apenas pela esfera econômica, mas também social (bem-estar).

Sendo uma diretriz a ser promovida neste momento, ainda que imediatamente busque o atendimento das exigências internacionais, o desenvolvimento, enquanto fundamento da república federativa do Brasil presente na Constituição Federal, deverá ser almejado e perseguido a todo o tempo.

A questão revela íntima ligação ao preceito de sustentabilidade68. E nem poderia ser diferente, uma vez que a busca pelo desenvolvimento nacional, na condição de fundamento da República Federativa, é contínuo69. A solução e a promoção de medidas de desenvolvimento não devem ser adotadas apenas diante de um motivo determinado, mas devem contemplar as necessidades da presente e de futuras gerações.

68 Juarez FREITAS ressalta que “A sustentabilidade é multidimensional (ou seja, é ética, jurídica-política, social, econômica e ambiental), o que pressupõe, antes de tudo, uma reviravolta hermenêutica habilitada a produzir o descarte de pré-compreensões espúrias, com libertação de tudo que impede a convivência produtiva e solidária, sob o influxo da sustentabilidade como princípio constitucional-síntese.” (in: Sustentabilidade – Direito ao future. 1ª edição. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011, p. 337).69 Neste sentido, Luiz Alberto BLANCHET ressalta que: “O desenvolvimento não é um ponto a ser atingido, mas um estilo e meio, um movimento e não um estado.” Op.cit., p. 34.

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ARTIGO 3O PAPEL DO ESTADO BRASILEIRO NA ORDEM ECONÔMICA E SOCIAL: O

FOMENTO SOCIOAMBIENTAL POR MEIO DA PROMOÇÃO DE LICITAÇÕES INCLUSIVAS E SUSTENTÁVEIS PARA OS GRANDES EVENTOS

danieL Ferreira70

Fernando PauLo da siLva macieL FiLho71

SUMÁRIO: Introdução. 1. Do desenvolvimento (sustentável). 2. O desenvolvimento (sustentável) na Constituição brasileira. 3. A atividade administrativa de fomento. 4. A fun-cionalização da licitação pública e dos contratos com vistas à promoção do desenvolvimen-to nacional sustentável. 5. Conclusões. Referências bibliográficas.

INTRODUÇÃO

Já há certo tempo, discute-se no Brasil a possibilidade de as licitações e contratos administrativos assumirem uma “função social”, ou seja, prestarem-se à realização de outros interesses públicos que não à mera satisfação da necessidade ou da utilidade administrativa ou coletiva que se vislumbra no objeto licitado e contratado. 72

70 Advogado. Doutor e Mestre em Direito do Estado pela PUCSP. Professor Titular de Direito Administrativo da Faculdade de Direito de Curitiba e do Corpo Docente Permanente do Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA, junto ao qual lidera o Grupo de Pesquisa “Atividade Empresarial e Administração Pública”.71 Advogado. Mestrando em Direito Empresarial e Cidadania pelo Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Especialista em Direito Administrativo pelo Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Membro da Comissão de Direito Econômico da OAB-PR. Membro do Grupo de Pesquisa “Atividade Empresaria e Administração Pública” (UNICURITIBA). Bolsita FUNADESP (Fundação Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior Particular).72 Nesse sentido, o que se busca é “[...] reconhecer outra potencial ou compulsória finalidade para o certame e que não se confunde com a satisfação da necessidade próxima, premente – de certa parcela da coletividade ou da própria Administração Pública, reprise-se – a ser obtida mediante regular execução do objeto contratado. Melhor dizendo, busca-se constatar a admissão pelo Direito em vigor de adicional fim para ela – remoto: singular ou plúrimo (conforme o caso) –, de modo que não se possibilite a satisfação de apenas um interesse público com sua exitosa realização, encapsulado como primário (de uma particularizada coletividade) ou secundário (do aparato administrativo), porém vários interesses públicos, num viés primário-primário (coletivo-coletivo) ou secundário-primário (administrativo-coletivo). Como exemplo assuma-se, desde logo, uma licitação que estipule, por força de lei, um critério ficto de empate entre propostas com vistas a incentivar a formalização da atividade microempresária e facilitar seu acesso às contratações públicas. Ou, ainda, a delimitação do objeto da licitação, por força de decreto hierárquico, a bens e serviços ambientalmente sustentáveis. E nisso reside a cogitada ‘função social da licitação pública’ apresentar-se, sempre que possível e cumulativamente, como um instrumento para

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O que antes parecia uma possibilidade, lastreada na Carta da República e em outras leis e regulamentos esparsos, hoje se vê transformado em dever legal geral, porque a Lei Geral de Licitações se viu ontologicamente alterada pela Medida Provisória n.º 495/2010, posteriormente convertida na Lei Federal nº 12.349/2010.

Dita alteração consistiu em inserir, no caput do art. 3º da Lei nº 8.666/93, um terceiro fim para os certames, qual seja a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, o que dá nova roupagem aos certames concorrenciais, sensíveis a uma patente realidade: a capacidade do “poder de compra” estatal fazer voluntariamente mudar comportamentos empresariais tidos por coletivamente desejáveis e numa perspectiva transcendente dos simples (sic) deveres legais com o meio ambiente e com os colaboradores, dentre outros.

É com base nisso que o presente artigo busca a perquirir – por meio da revisão bibliográfica e da análise das regras jurídicas vigentes – se e em que medida é juridicamente possível incrementar a responsabilidade ecossocioambiental empresarial a partir de políticas públicas no âmbito das licitações e das contratações governamentais. Tudo isso, ademais, sem colidir com os outros dois princípios-fim das licitações, os da competitividade e da isonomia.

Da mesma forma, objetiva discutir e, eventualmente, demonstrar que o fomento estatal não se mostra apenas útil, porém necessário para fins de se incrementar a solidariedade no seio da sociedade, auxiliar na erradicação da pobreza e da marginalização, e na minimização das desigualdades sociais, objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

Afinal, ao contrário do que se propunha outrora, a tese do Estado Mínimo, quase indiferente, não vingou. Com efeito, em que pese o notável desenvolvimento tecnológico e organizacional verificado no setor privado, em grande parte decorrente do predomínio do modelo econômico capitalista (de economia de mercado), a cada dia se torna mais indispensável a influência estatal na vida e na organização da sociedade – global, tecnológica, desigual e de riscos (sociedade “pós-moderna”, “supermoderna”, “ultramoderna”, “hipermoderna”) – destacadamente daqueles que de alguma forma se relacionam com o Estado.

Assim, as linhas que seguem visam a averiguar em até que medida o Estado (e a Administração Pública) estão autorizados a intervir na busca de concretização do desenvolvimento nacional sustentável (objetivo e direito fundamental), não mais se atendo ao papel de controle e fiscalização como até então se privilegiava.

a concretização dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, bem como dos demais valores, anseios e direitos nela encartados, sem prejuízo de outros, assim reconhecidos por lei ou até mesmo por uma política de governo” (FERREIRA, Daniel. Função Social da licitação pública: o desenvolvimento nacional sustentável (no e do Brasil, antes e depois da MP 495/2010). Fórum de contratação e gestão pública – FCGP. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 52-53).

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A escolha do tema se deve ao fato de que com o advento da Carta de 1988 e, portanto, mediante a expressa assunção de certos anseios, valores e direitos como marcos caracterizadores do Estado Brasileiro, aparentemente se criou um “conflito” entre alguns postulados clássicos (e ditos autoexcludentes). Por exemplo, entre o do Estado Social e o da Livre Iniciativa (necessariamente atrelado ao da Livre Concorrência), mas que não brigam entre si. E, ao contrário, que reclamam interação.

Portanto, investigar a possibilidade ou mesmo o dever de funcionalização das licitações e dos contratos administrativos, objetivando a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, se mostra providência necessária, além de oportuna e conveniente, mormente quando esse direito fundamental se vê reprisado como nova finalidade legal dos processos licitatórios.

1. DO DESENVOLVIMENTO (SUSTENTÁVEL)

Para o trato do desenvolvimento faz-se necessária a fixação de duas premissas absolutamente fundamentais, que nada mais são do que a prova do caráter multidisciplinar do tema.

A primeira é não confundi-lo com crescimento, já que não são sinônimos. De acordo com Luis Carlos Bresser Pereira, “o desenvolvimento é um processo de transformação econômica, política e social, através da qual o crescimento do padrão de vida da população tende a tornar-se automático e autônomo”.73 Logo, não se pode falar apenas desenvolvimento econômico, ou social, ou político etc., de modo que é sempre indispensável aliar todos os aspectos da realidade enfocada, e no contexto de uma determinada comunidade ou nação.74

Neste sentido, Bresser esclarece que “quando falamos em desenvol-vimento, temos sempre como objeto um sistema social determinado, o qual se localizará geograficamente em uma região, um país, um continente. Será sempre, porém, um sistema social. Suas partes, portanto, serão interdepen-dentes. Quando houver modificações reais na estrutura econômica, estas repercutirão na estrutura política e social, e vice-versa”.75 Nessa toada, o verdadeiro desenvolvimento origina mudanças na estrutura econômica, mas também deverá, simultaneamente, surtir repercussões na esfera ambiental, política, cultural e social.

73 PEREIRA, Luiz C. Bresser. Desenvolvimento e crise no Brasil. 7. ed. Brasília: Editora Brasiliense, 1977, p. 21.74 Não é outra a lição encontrada na doutrina mais atenta. Vide: NUSDEO, Fábio. Desenvolvimento econômico – um retrospecto e algumas perspectivas. In: SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 11-24, p. 17-18; RISTER, Carla Abrantkoski. Direito ao desenvolvimento: antecedentes, significados e conseqüências. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 01-03.75 PEREIRA, Luiz C. Bresser. Ibidem, p. 22.

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Melhor dizendo, essa transformação é posta em relevo por Ignacy Sachs, quando assinala que:

[...] a noção de desenvolvimento é central nas preocupações da ONU. Ao longo dos últimos 50 anos, ela se enriqueceu consideravelmente. A idéia simplista de que o crescimento econômico, por si só, bastaria para assegurar o desenvolvimento foi rapidamente abandonada em proveito de uma caracterização mais complexa do conceito, expressa pelas adições sucessivas de epítetos: econômico, social, cultural, naturalmente político, depois viável [susteinable], enfim, último e recente acréscimo, humano, significando ter como objetivo o desenvolvimento dos homens e das mulheres em lugar da multiplicação de coisas.76

Assim, a segunda premissa é a de não tratar o desenvolvimento de forma singularizante, tal como se propunha no discurso (neo)liberal. Veja-se que a atual sociedade, globalizada e de riscos, faz prova por si de que a definição singularizante de desenvolvimento (econômico) verificada nas últimas décadas produziu nítidos reflexos – nem sempre bons e desejados – na realidade social, cultural, ambiental e política da sociedade. Com efeito, a história da humanidade não esconde que o aspecto econômico foi preponderante para o desenvolvimento que até agora se seguiu, sendo que as demais transformações e conseqüências (como, por exemplo, o desenvolvimento social) são reflexos e conformados por ele.77

Mas como alerta Carla Abrantkoski Rister, o crescimento se expressa mediante mudanças quantitativas, e que não redundam necessariamente em melhorias na qualidade de vida da população. O desenvolvimento – repita-se – “[...] consiste num processo de mudança estrutural e qualitativa da realidade socioeconômica, pressupondo alterações de fundo que irão conferir a tal processo a característica da sustentabilidade, entendida esta como a capacidade de manutenção das condições de melhoria econômica e social e de continuidade do processo”.78

Demais disso, Amartya Sen chama atenção para o fato de que: [...] os fins e os meios do desenvolvimento requerem análise e exame

minuciosos para uma compreensão mais plena do processo de desenvolvimento; é sem dúvida inadequado adotar como nosso objetivo básico apenas a maximização da renda ou da riqueza, que é, como observou Aristóteles “meramente útil em proveito de alguma outra coisa.” Pela mesma razão, o

76 SACHS, Ignacy. Rumo à ecossocioeconomia: teoria e prática do desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2007. p. 351-352. 77 PEREIRA, Luiz C. Bresser. Op. cit., p. 21-22. 78 RISTER, Carla Abrantkoski. Direito ao desenvolvimento: antecedentes, significados e conseqüências. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 36.

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crescimento econômico não pode sensatamente ser considerado um fim em si mesmo. O desenvolvimento tem de estar relacionado sobretudo com a melhora da vida que levamos e das liberdades que desfrutamos. Expandir as liberdades que temos razão para valorizar não só torna nossa vida mais rica e mais desimpedida, mas também permite que sejamos seres sociais mais completos, pondo em prática nossas volições, interagindo com o mundo em que vivemos e influenciando esse mundo.79

Ainda hoje, contudo, a definição de desenvolvimento sustentável mais di-fundida na doutrina é a prevista no Relatório Brundtland:80 “o desenvolvimento sustentável é aquele que atende as necessidades do presente sem comprometer as possibilidades de as gerações futuras atenderem suas próprias necessidades”. Ou seja, esse documento alertou para a necessidade:

[...] urgente de encontrar formas de desenvolvimento econômico que se sustentassem, sem a redução dramática dos recursos naturais nem com danos ao meio ambiente. Definiu também, três princípios essenciais a serem cumpridos: desenvolvimento econômico, proteção ambiental e equidade social, sendo que para cumprir estas condições, seriam indispensáveis mudanças tecnológicas e sociais.81

Do contrário, a opção pelo crescimento econômico “isolado” poderá gerar uma riqueza efêmera, incapaz de repercutir sobre a sociedade e, em muitos casos, deixará o Estado em sua condição precária, típica de países subdesenvolvidos, ou atualmente denominados “países em desenvolvimento”.82

Mas desenvolvimento requer ainda constância, viabilidade para o futuro – sustentabilidade, enfim – sob pena de não passar de um arremedo de cresci-mento econômico ainda que atrelado a vantagens ambientais e sociais; “pensar em desenvolvimento é, antes de qualquer coisa, pensar em distribuição de ren-da, saúde, educação, meio ambiente, liberdade, lazer, dentre outras variáveis que podem afetar a qualidade de vida da sociedade”.83 Dessa forma, tem-se que:

79 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 28-29. 80 Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/12906958/Relatorio-Brundtland-Nosso-Futuro-Comum-Em-Portugues>. Acesso em: 28 agosto 2012.81 GONÇALVES, Daniel Bertoli. Desenvolvimento sustentável: o desafio da presente geração. Revista Espaço Acadêmico, n. 51, ago/2005. Disponível em: <http://www.espacoacademico.com.br/051/51goncalves.htm>. Acesso em 28. ago. 2012.82 “Designa-se por subdesenvolvimento o estado das sociedades cujas economias não atingiram o estágio de crescimento auto-sustentado ou, dito de outra forma, que não realizaram ainda sua ‘decolagem’ ou evolução industrial e, dada a dificuldade de aferir com exatidão tal passagem a economias desenvolvidas, caracteriza-se habitualmente o fenômeno do subdesenvolvimento por uma série de indicadores econômicos e sociais, dentre eles, o mais corrente é o rendimento nacional per capita.” (RISTER, Carla Abrantkoski. Op cit., p. 21).83 OLIVEIRA, Gilson Batista de. Uma discussão sobre o conceito de desenvolvimento. In: Revista FAE, Curitiba, v.5, n.2, mai/ago, 2002, p. 38.

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O objetivo da sustentabilidade social é melhorar os níveis de distribuição de renda, com a finalidade de diminuir a exclusão social e a distância (econômica) que separa as classes sociais. A sustentabilidade econômica diz respeito a au-mentos na eficiência do sistema, seja na alocação de recursos ou na sua gestão. Sustentabilidade ecológica concerne à preservação do meio ambiente, sem, contudo, comprometer a oferta dos recursos naturais necessários à sobrevivên-cia do ser humano.84

Em síntese, o desenvolvimento, para ser assim reconhecido, reclama sustentabilidade e, além disso, consideração da sua natureza pluridimensional.

2. O DESENVOLVIMENTO (SUSTENTÁVEL) NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA

Mas é preciso considerar, ainda, que No Brasil o direito ao desenvolvimento socioeconômico se encontra

assentado na raiz do Direito, na Lei das leis, e configura um dos objetivos perseguidos pela República (art. 3º, inciso II), ao qual se agrega direta e imediatamente a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (inciso III), de sorte a se construir uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I) e na qual se promove o bem de todos, sem quaisquer preconceitos ou outras formas de discriminação (inciso IV). Mas não só. Vem ele assegurado, com alarde, no seu próprio preâmbulo e para o qual se invocou, inclusive, a proteção de Deus.85

Ou seja, ele não se apresenta como uma simples expectativa e nem, muito menos, como ato de bondade. Configura, isto sim, um direito fundamental, constitucionalmente garantido.

Manoel Messias Peixinho e Suzani Andrade Ferraro sustentam, ainda, que o: [...] direito ao desenvolvimento nacional é norma jurídica constitucional

de caráter fundamental, provida de eficácia imediata e impositiva sobre todos os poderes do Estado e, nesta direção, não pode se furtar a agir de acordo com as respectivas esferas de competência, sempre na busca da implementação de ações e medidas de ordem política, jurídica ou irradiadora que almejam a consecução daquele objetivo fundamental.86

84 OLIVEIRA, Gilson Batista de. Ibidem, p. 42.85 FERREIRA, Daniel; GIUSTI, Anna Flávia Camilli Oliveira. A licitação pública como instrumento de concretização do direito fundamental ao desenvolvimento nacional sustentável. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 12, n. 48, abr./jun. 2012. Disponível em: <http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=79914>. Acesso em: 29 agosto 2012 – destacamos.86 PEIXINHO, Manoel Messias; FERRARO, Suzani Andrade. Direito ao desenvolvimento como direito fundamental. In: XVI Congresso Nacional do CONPEDI, 2007, Belo Horizonte: Fundação Boiteux, 2007. p. 6963. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/

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Antes mesmo, porém, ele é assim reconhecido internacionalmente, notadamente a partir da “Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento” (adotada na Resolução n.º 41/128 da Assembléia Geral das Nações Unidas), de 1986.

Ele tem de se mostrar, ainda, ambientalmente sustentável, como assim assumido por José Eli da Veiga,87 de forma a propiciar a todos usufruir o “direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”, donde se impôs “ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, conforme imposto no art. 225 da Constituição da República.

Assim sendo, o desenvolvimento entendido como ambientalmente viável, além de satisfazer as necessidades imediatas de uma sociedade e de seu crescimento, associa esta intenção com o não comprometimento da qualidade de vida das gerações futuras.

Todavia, a preocupação do constituinte foi muito além, porque evidenciou preocupações com o desenvolvimento tecnológico e econômico (art. 5º, XXIX), econômico e social (art. 21, IX), urbano (art. 21, XX), do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde (art. 43, VII, “e”; art. 35, III), geoeconômico e social (art.43, caput), sócio-econômico equilibrado entre as diferentes regiões do Brasil (art. 151, I), alicerçado em planos regionais (art. 159, I, “c”), regional (art. 163, VII), social e econômico por meio do turismo (art. 180, caput), das funções sociais da cidade (art. 182, caput), equilibrado do País (art. 192), científico e tecnológico na área da saúde (art. 200, V), cultural do País (art. 215, § 3º), científico (art. 218), cultural e sócio-econômico (por meio do mercado interno, art. 219), e, afinal, econômico (com recursos do PIS, art. 239, § 1º).

Por conseguinte, o desenvolvimento nacional, no Brasil e do Brasil, deverá cumprir as diretrizes traçadas, bem como proporcionar uma relação equilibrada entre bem-estar e crescimento em todos os matizes.

Destarte, é de se concluir que, a um só tempo, a nossa Carta Política encampou o desenvolvimento nacional na sua mínima e tríplice feição (ecossocioeconômica), à qual atrelou, ainda, cuidados com a cultura, com a tecnologia, com a cidade, além de tutelar a liberdade e a solidariedade,88

anais/bh/manoel_messias_peixinho.pdf> Acesso: 25. ago. 2012.87 VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. p. 190-191.88 Melina Girardi Fachin, por sua vez, esmiúça as obrigações decorrentes da assunção do desenvolvimento como direito, nos seguintes termos: “As obrigações que nascem ao Estado, a partir da assunção desse direito como fundamental, são de ordem positiva e negativa. Não se circunscreve apenas à abscisão de empecilhos ao desenvolvimento, mas também ações concretas de promoção progressiva e crescente do desenvolvimento com o máximo de recursos disponíveis. Existem, destarte, face ao direito ao desenvolvimento, deveres positivos e negativos do estado e da comunidade na qual este direito está inserido, com fundamento na solidariedade constitucional.”

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complementando e justapondo o ideário de Ignacy Sachs e de Amartya Sen. O direito ao desenvolvimento no Brasil constitui, assim, um direito de

terceira geração, um direito de solidariedade.89 E direitos dessa ordem, segundo Paulo Bonavides, não se destinam a pro-

teger o interesse de um só indivíduo, grupo ou Estado; eles “têm por primeiro destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirma-ção como valor supremo em termos de existencialidade concreta”.90

É justamente esse patente reconhecimento que impõe a todos os atores sociais, em especial à Administração Pública, a tomada de medidas efetivas no sentido de concretização do direito fundamental ora tratado, eis que:

[...] o problema para o desenvolvimento está na falta de efetividade das normas, quer por falta de interesse político e da insuficiente iniciativa da sociedade civil no controle dos atos públicos. No entanto, existem instrumentos jurídicos que podem direcionar a atuação estatal rumo ao desenvolvimento, a exemplo da adoção de políticas públicas aliadas à transparência na gestão pública e ao controle do Judiciário que podem ser o elo entre a positivação constitucional e a efetivação do direito ao desenvolvimento.91/ 92

É nesse espaço, portanto, que as políticas públicas e, em especial, a ativi-dade administrativa de fomento ganham renovado valor, especialmente porque:

[...] as determinações constitucionais não se dirigem à efetivação (direta e imediata) do desenvolvimento nacional pelo Estado, apenas. Em várias oportunidades a Constituição indica deveres atribuídos aos legisladores e aos gestores públicos no sentido de estimular o desenvolvimento nacional.

Fica claro portanto, que o desenvolvimento do Brasil, no ideário do Constituinte, revela-se como um processo compartilhado pela sociedade com o

(FACHIN, Melina Girardi. Direito fundamental ao desenvolvimento – uma possível ressignificação entre a Constituição Brasileira e o sistema internacional de proteção dos direitos humanos. In: PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Virgínia Prado (Coords.). Direito ao desenvolvimento. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 195-196).89 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 60.90 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 569.91 PEIXINHO, Manoel Messias; FERRARO, Suzani Andrade. Direito ao desenvolvimento como direito fundamental. In: XVI Congresso Nacional do CONPEDI, 2007, Belo Horizonte: Fundação Boiteux, 2007. p. 6971. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/manoel_messias_peixinho.pdf>. Acesso: 29 agosto 2012.92 O mesmo entendimento é sustentado por Ana Luiza Chalusnhak, ao afirmar que referido direito fundamental (ao desenvolvimento nacional sustentável) encontra no fomento estatal um mecanismo idôneo para garantir a sua eficácia. (CHALUSNHAK, Ana Luiza. O fomento como forma de instrumento concretizador do direito fundamental ao desenvolvimento nacional sustentável. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, p. 89, 01/06/2011 [Internet]. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9569>. Acesso: 20. agos. 2012).

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Estado, e que a este incumbe, por diversas formas, fomentar as ações privadas afirmativas desse desiderato, tendo destacado algumas desde logo. Todavia, a revelação das situações valoradas na Lei das leis não descarta que outras (leis) venham a exprimir equivalentes atribuições, aliás, como a hodiernamente imposta pela Lei nº 8.666/93, atualizada pela lei nº 12.349/2010.93

3. A ATIVIDADE ADMINISTRATIVA DE FOMENTO

Demais disso tudo, a Constituição da República Federativa de 1988 estabeleceu, no caput do art. 174, a função do Estado de agente normativo regulador da atividade econômica.94

Nesse cenário, é certo que tais constatações produzem importantes reflexos na forma de atuação estatal, passando a reclamar por uma atuação estimuladora responsável e consciente do papel das empresas e dos indivíduos na sociedade.

No dizer de Célia Cunha Mello, “o Estado, na condição de agente normativo e regulador da atividade econômica, exerce as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, limitando ou estimulando a ação dos sujeitos econômicos.”95

Para Marçal Justen Filho:[...] é possível afirmar que o Estado de Bem-Estar Social evoluiu para

transformar-se num Estado Regulador. Os poderes regulatórios externam não apenas mera circunstância da existência do Estado como instituição política, mas lhe asseguram natureza própria e inconfundível.

O modelo regulatório propõe a extensão ao setor dos serviços públicos de concepções desenvolvidas na atividade econômica privada. Somente incum-be ao Estado desempenhar atividades diretas nos setores em que a atuação da iniciativa privada, orientada à acumulação egoística de riqueza, colocar em ris-co valores coletivos ou for insuficiente para propiciar sua plena realização. O Estado deve manter a participação no âmbito da segurança, da educação e da seguridade social, evitando a mercantilização de valores fundamentais.96

É tarefa do Estado, portanto, na condição de agente regulador, identificar no

93 FERREIRA, Daniel. A licitação pública no Brasil e sua nova finalidade legal: a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 63-64.94 “Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”.95 MELLO, Célia Cunha. O fomento da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 12.96 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 7. ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 551.

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mercado as externalidades e controlá-las por meio das políticas governamentais, impulsionando-as quando positivas e internalizando-as quando negativas.97

De outra banda, a regulação estatal não tem como objetivo apenas a eliminação os defeitos do mercado, sendo admitido ao Estado (e à Administração) ir além, desde que esteja baseado em valores fundamentais. Tal é o caso do desenvolvimento nacional sustentável:

Tradicionalmente, supunha-se que a intervenção estatal no domínio econômico destinava-se a dar suporte ao mecanismo de mercado e a eliminar eventuais desvios ou inconveniências. Já o modelo regulatório admite a possi-bilidade de intervenção destinada a propiciar a realização de certos valores de natureza política ou social. O mercado não estabelece todos os fins a serem rea-lizados pela atividade econômica. Isso se torna especialmente evidente quando o mecanismo de mercado passa a disciplinar a prestação de serviços públicos. A relevância de interesses coletivos envolvidos impede a prevalência da pura e simples busca do lucro.98

Diogo Figueiredo Moreira Neto afirma, no contexto, que a atividade ad-ministrativa de fomento revela um “direcionamento não coercitivo do Estado à sociedade, em estímulo das atividades privadas de interesse público. É uma atividade que se sistematiza e ganha consistência acoplada ao planejamento dispositivo”.99 Para ele, é “inegável que o fomento público, conduzido com liberdade de opção, tem elevado alcance pedagógico e integrador, podendo ser considerado, para um futuro ainda longínquo, a atividade mais importante e mais nobre do Estado”.100

De forma similar, Carlos Ari Sundfeld mostra-se explicitamente favo-rável à Administração Fomentadora, à qual competiria “a função de induzir, mediante estímulos e incentivos – prescindindo, portanto, de instrumentos im-perativos, cogentes – os particulares a adotarem certos comportamentos”.101

97 “As externalidades correspondem, pois, a custos ou benefícios circulando externamente ao mercado, vale dizer, que se quedam incompensados, pois, para eles, o mercado, por limitações institucionais, não consegue imputar um preço. E assim o nome externalidade ou efeito externo não quer significar fatos ocorridos fora das unidades econômicas, mas sim fatos ou efeitos ocorridos fora do mercado, externos ou paralelos a ele, podendo ser vistos como efeitos parasitas” (NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. 6. ed. São Paulo: RT, 2010. p.153). Assim que um veículo movido a álcool gera uma externalidade positiva, realizando um interesse geral, porque polui menos que o movido a gasolina. 98 JUSTEN FILHO, Marçal. Ibidem, p. 551.99 MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 45.100 MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Ibidem, p. 45.101 SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo Ordenador. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 16. Em sentido análogo, Célia Cunha de Mello conceitua a administração fomentadora “como um complexo de atividades concretas e indiretas que o Estado desempenha despido do poder de

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Mas em que consiste essa atividade administrativa de fomento? Silvio Luis Ferreira da Rocha circunscreve-a como uma atividade teleológica, voltada à satisfação das necessidades coletivas. Afinal, define-a de maneira descritiva e excludente, a partir da consideração de que a Administração deixa de atuar de modo direto e imediato e passa a agir de modo indireto e mediato. Isto é, assim permitindo que as atividades sejam prestadas pelos particulares, as quais foram, afinal, incentivadas pela Administração e servem igualmente para alcançar as necessidades coletivas.102

Entretanto, como não poderia deixar de ser, há limites para incentivos dessa ordem. Como alerta José Pimenta de Oliveira, o interesse público primá-rio é a mola propulsora do fomento, sendo que o excesso às custas de recursos públicos escoima a sua validade.103

De todo modo, a atividade administrativa de fomento possui algumas ca-racterísticas: (i) é uma atividade administrativa que visa à satisfação das necessi-dades coletivas e à obtenção dos fins do Estado; (ii) não procura alcançar imediata e diretamente tais fins, e sim objetiva que estes sejam alcançados pelas atividades dos particulares mediante à proteção e à promoção dessas atividades, excluída qualquer forma de intervenção coativa; (iii) a determinação concreta das ativida-des particulares a serem fomentadas caracteriza-se como uma questão política de conveniência e política, escapando ao campo estritamente jurídico e; (iv) a parti-cipação é voluntária, ou seja, depende da vontade dos particulares.104

E para sua exteriorização, Celso Antônio Bandeira de Mello destaca a ati-vidade de fomento como modalidade de intervenção estatal na ordem econômica caracterizada pelos incentivos fiscais e financiamentos; na ordem social a vis-lumbra por meio da prestação de serviços públicos de natureza social e mediante trespasse de recursos aos particulares a serem aplicados em fins sociais.105

Logo, os atos de fomento não se cingem “a conferir aos particulares pos-sibilidades de autuações que estes já não tenham” e sim “consiste em prestações

autoridade, cujo labor se limita a promover e/ou incentivar atividades e regiões, visando melhorar os níveis de vida da sociedade” (MELLO, Célia Cunha. O fomento da administração pública. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 38). 102 ROCHA, Silvio Luis Ferreira da. Terceiro Setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 23.103 OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 527.104 ROCHA, Silvio Luis Ferreira da. Ibidem, p. 26. Célia Cunha Mello define a atividade de fomento pela existência de quatro caracteres fundamentais, quais sejam: exercício de função administrativa; proteção e/ou promoção de seu objeto; ausência de compulsoriedade e; satisfação indireta das necessidades públicas. Compete destacar que a satisfação é indireta das necessidades públicas em razão de não ser realizada diretamente pela Administração fomentadora, e sim pelo agente fomentado (MELLO, Célia Cunha. Ibidem. 26-27, 31).105 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 799-803.

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produzidas pela Administração – sejam positivas (ajuda financeira a cientistas, créditos subsidiados a empresas estratégicas) ou negativas (isenção de impos-tos) – para tornar mais fáceis ou eficazes atividades que, não obstante, os indi-víduos são livres para explorar.”106

Entretanto, é preciso ficar devidamente aclarado que “a atividade de fo-mento não pode mais ser compreendida como benevolência do Estado, dei-xando de ser considerada mera liberalidade, favor ou graça, para se apresentar como poderoso mecanismo de apoio, promoção e auxílio das iniciativas social-mente significantes, voltada à efetividade do direito fundamental ao desenvol-vimento socioeconômico”.107

E o novo marco legal das licitações dá prova bastante disso.

4. A FUNCIONALIZAÇÃO DA LICITAÇÃO PÚBLICA E DOS CONTRATOS ADMI-NISTRATIVOS COM VISTAS À PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL SUSTENTÁVEL

Como visto nas linhas anteriores, o Estado Brasileiro deve, por deter-minação constitucional, atuar como agente normativo e regulador da ordem econômica, o que não lhe retira, contudo, a condição de consumidor de bens, serviços e obras. Estima-se que pelo menos 10% do Produto Interno Bruto bra-sileiro possa ser imputado às contratações públicas. Já na Europa, o “poder de compra” estatal atinge os consideráveis 15% do PIB do bloco econômico.108

Tais dados propiciam o deliberado uso do poder de compra do Estado, no sentido de promover licitações e contratações públicas dirigidas ao desen-volvimento nacional sustentável, tanto no que diz respeito a um “consumo consciente” quanto a incentivar a maximização da responsabilidade ecosso-cioambiental empresarial.

Na seara do chamado Direito Público, mais precisamente no entorno das licitações públicas e das contratações administrativas, verificou-se nos últimos anos o aparecimento de relevantes inovações legislativas que têm refletido e repercutido na idéia de se agregar um novo fim aos processos e às contratações da Administração no sentido de materializá-las como coletivamente úteis.

A primeira a alvoroçar o imaginário dos especialistas foi o Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte (LC 123/2006) que, em capítulo

106 SUNDFELD, Carlos Ari. Op. cit. p. 25.107 MELLO, Célia Cunha. Op. cit. p. 36.108 BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Governos Locais pela Sustentabilidade – ICLEI. Guia de compras públicas sustentáveis para Administração Federal, p.10. Disponível em: <http://cpsustentaveis.planejamento.gov.br/wp-content/uploads/2010/06/Cartilha.pdf>. Acesso em: 28.ago. 2012.

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específico, tratou de conferir acesso facilitado às licitações e contratações públicas, inclusive por meio de preferência em situações de empate ficto (art. 44), reserva de mercado (licitações exclusivas – art. 48, I) e subcontratação compulsória (art. 48, II), dentre outras vantagens, assim criando:

[...] uma mudança conceitual da função da licitação para fins da Administração Pública brasileira. Trata-se de propiciar o desempenho de uma função não econômica para a licitação. Em outras palavras, significa conferir à licitação uma função que eu diria social, uma função indireta [...].109

Nessa mesma toada, em 29 de dezembro de 2009 foi instituída pela Lei Federal nº 12.187 a Política Nacional de Mudanças Climáticas em conformi-dade com os compromissos assumidos pelo Brasil na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima110 e no Protocolo de Quioto.

A citada lei expressamente legitimou o fomento público em prol do de-senvolvimento sustentável por meio das licitações e contratações públicas, uma vez que determinou o estabelecimento de critérios de preferência nas licitações e concorrências públicas para as propostas que propiciem maior economia de ener-gia, água e outros recursos naturais, bem como a redução da emissão de gases de efeito estufa e de resíduos. É o que se extrai da disposição contida no seu art. 6º.111

Sobre a norma, Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira consigna que:[...] o entendimento de que a preferência nas licitações decorrentes desse

texto legal, acima transcrito, não se limita às propostas com reflexos restritos à questão climática – e isto nem seria possível em termos de ciências ambientais –, pois o legislador, além de relacionar produtos que propiciem “maior econo-

109 JUSTEN FILHO. A LC n. 123 e os benefícios para pequenas empresas nas licitações públicas. In: BACELLAR FILHO; SILVA. (Org.) Direito administrativo e integração regional: Anais do V Congresso da Associação de Direito Público do Mercosul e X Congresso Paranaense de Direito Administrativo, p. 159.110 Como resultado da ECO-92 merecem destaque, para este trabalho, a assinatura, pelo Brasil, da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, da Convenção sobre a Diversidade Biológica, da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e da Agenda 21. A Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima versa sobre medidas que visam à redução da emissão de gases responsáveis pela elevação da temperatura da Terra, os chamados gases de efeito estufa. Com base nessas medidas, a partir de 1992, os Estados passaram a tratar sobre o assunto da mudança climática nas Conferências das Partes (COP). In: SOARES, Guido Fernando Silva. Curso de Direito Internacional Público, v.1., 2. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 32.111 “Art. 6o São instrumentos da Política Nacional sobre Mudança do Clima: [...] XII - as medidas existentes, ou a serem criadas, que estimulem o desenvolvimento de processos e tecnologias, que contribuam para a redução de emissões e remoções de gases de efeito estufa, bem como para a adaptação, dentre as quais o estabelecimento de critérios de preferência nas licitações e concorrências públicas, compreendidas aí as parcerias público-privadas e a autorização, permissão, outorga e concessão para exploração de serviços públicos e recursos naturais, para as propostas que propiciem maior economia de energia, água e outros recursos naturais e redução da emissão de gases de efeito estufa e de resíduos.”

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mia de energia, água”, após acrescentou “e outros recursos naturais”, para em seguida dizer da redução de gases de efeito estufa e ampliar para “redução de emissões de resíduos”, de modo bastante amplo.112

Seguindo o entendimento da autora, é possível estabelecer com base nes-te dispositivo legal, tratamento diferenciado para as propostas que propiciem maior economia de quaisquer recursos naturais. Até porque, como acima visto, o meio ambiente é um sistema e, por conseguinte, está totalmente interligado (inclusive com os demais subsistemas), logo as ações de preservação dos recur-sos naturais sempre irão contribuir para a questão climática.

Posteriormente, em 02 de agosto de 2010 a Lei Federal nº 12.305 ins-tituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, a qual estabeleceu como um de seus objetivos o tratamento diferenciado nas contratações públicas em prol da aquisição de “produtos reciclados e recicláveis; bens, serviços e obras que considerem critérios compatíveis com padrões de consumo social e ambiental-mente sustentáveis” (ex vi do art. 7º da Lei Federal n.º 12.305/2010).113

E mais, ela frisou a responsabilidade poder público pela efetividade das ações voltadas para assegurar a observância da Política (art. 25). Tal responsa-bilidade engloba, inclusive, a questão do ciclo de vida dos produtos, uma vez que o poder público também é consumidor de produtos.114

Merece destaque que a condição do Estado de agente normativo e regu-lador da ordem econômica fica absolutamente evidente na redação do art. 42

112 FERREIRA, Maria Augusta Soares de Oliveira. As licitações públicas e as novas Leis de mudança climática e de resíduos sólidos. In: SANTOS, Murillo Giordan; BARKI, Teresa Villac Pinheiro (Coord.). Licitações e contratações públicas sustentáveis. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 119.113 “Art. 7o São objetivos da Política Nacional de Resíduos Sólidos:  [...] XI - prioridade, nas aquisições e contratações governamentais, para:  a) produtos reciclados e recicláveis; b) bens, serviços e obras que considerem critérios compatíveis com padrões de consumo social e ambientalmente sustentáveis.”114 Nesse sentido, observem-se as disposições encontradas no art. 30 da Lei Federal n.º 12.305/20120: “Art. 30. É instituída a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos, a ser implementada de forma individualizada e encadeada, abrangendo os fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, os consumidores e os titulares dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos, consoante as atribuições e procedimentos previstos nesta Seção. Parágrafo único. A responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos tem por objetivo: I - compatibilizar interesses entre os agentes econômicos e sociais e os processos de gestão empresarial e mercadológica com os de gestão ambiental, desenvolvendo estratégias sustentáveis; II - promover o aproveitamento de resíduos sólidos, direcionando-os para a sua cadeia produtiva ou para outras cadeias produtivas; III - reduzir a geração de resíduos sólidos, o desperdício de materiais, a poluição e os danos ambientais; IV - incentivar a utilização de insumos de menor agressividade ao meio ambiente e de maior sustentabilidade; V - estimular o desenvolvimento de mercado, a produção e o consumo de produtos derivados de materiais reciclados e recicláveis; VI - propiciar que as atividades produtivas alcancem eficiência e sustentabilidade; VII - incentivar as boas práticas de responsabilidade socioambiental.”

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da Lei em comento, o que legitima as ações de fomento público às iniciativas ali indicadas115.

Assim, as licitações e as contratações públicas estão aptas a servir como instrumento de fomento público, especialmente para instituir as medidas men-cionadas no dispositivo acima citado. Aliás, não é outro o comando encontrado no art. 80 do Decreto Federal nº 7.404, de 23 de dezembro de 2010, que estabe-lece normas para execução da Política Nacional de Resíduos Sólidos.116

Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira, compartilha este entendimen-to, e apresenta a seguinte análise sobre a questão do fomento público por meio das licitações sustentáveis:

Ora, as iniciativas previstas no art. 42 são justamente aquelas que irão estimular a adoção, na cadeia produtiva e de consumo nacional, da coleta seletiva, reciclagem, logística reversa, gestão ambiental, além de outras medidas que darão suporte à sistemática inaugurada pela nova lei. Trata-se, então, mais uma vez do reconhecimento da capacidade de a Administração Pública estimular essas práticas usando o seu poder de compra, pela aquisição de produtos que as respeitem, ou seja, através das licitações sustentáveis.

[...]Em conclusão, vale ressaltar que cabe à Administração Pública, para

seus novos contratos, a partir da entrada em vigor desta Lei, dar o exemplo, de modo organizado e bem gerenciado, no sentido do cumprimento desta lei, até com mais vigor do que outros entes privados, por missão constitucional e legal, visto que as licitações sustentáveis terão um papel de fomentadora da eficácia da nova Lei de Resíduos Sólidos.117

115 “Art. 42. O poder público poderá instituir medidas indutoras e linhas de financiamento para atender, prioritariamente, às iniciativas de: I - prevenção e redução da geração de resíduos sólidos no processo produtivo; II - desenvolvimento de produtos com menores impactos à saúde humana e à qualidade ambiental em seu ciclo de vida; III - implantação de infraestrutura física e aquisição de equipamentos para cooperativas ou outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis formadas por pessoas físicas de baixa renda; IV - desenvolvimento de projetos de gestão dos resíduos sólidos de caráter intermunicipal ou, nos termos do inciso I do caput do art. 11, regional; V - estruturação de sistemas de coleta seletiva e de logística reversa; VI - descontaminação de áreas contaminadas, incluindo as áreas órfãs; VII - desenvolvimento de pesquisas voltadas para tecnologias limpas aplicáveis aos resíduos sólidos; VIII - desenvolvimento de sistemas de gestão ambiental e empresarial voltados para a melhoria dos processos produtivos e ao reaproveitamento dos resíduos”.116 “Art. 80. As iniciativas previstas no art. 42 da Lei nº 12.305, de 2010, serão fomentadas por meio das seguintes medidas indutoras: [...] V - fixação de critérios, metas, e outros dispositivos complementares de sustentabilidade ambiental para as aquisições e contratações públicas. Parágrafo único.  O Poder Público poderá estabelecer outras medidas indutoras além das previstas no caput.”117 FERREIRA, Maria Augusta Soares de Oliveira. Op. cit., p. 128 – destacamos.

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Esse contexto normativo, a Lei nº 8.666/93 também veio a ser objeto de alteração. Em 15 de dezembro de 2010, a Medida Provisória nº 495/2010 foi convertida na Lei nº 12.349, consagrando o entendimento defendido no pre-sente artigo, qual seja o de que as contratações públicas são instrumento de fomento público ao desenvolvimento nacional sustentável.

A partir desta data, o art. 3º da Lei de Licitações formalizou a promoção do desenvolvimento nacional sustentável como nova finalidade da licitação.118 Assim, é dever do gestor público, além de garantir a isonomia e visar à obtenção de proposta vantajosa para a Administração Pública, estabelecer critérios capa-zes de promover o desenvolvimento nacional sustentável. Para tanto, servirão de norte para o gestor público para as políticas públicas implementadas pelo governo, bem como a agenda política respectiva.

Ainda em 2010, o Congresso Nacional publicou a Lei Federal nº 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial)119, sendo que o mesmo contém um capítulo (V) específico sobre a imperiosidade de se fomentar o acesso da po-pulação negra ao mercado de trabalho. Vale destacar que o seu regulamento (Decreto nº 4.228/2002) também tratou de disciplinar uma série de ações afir-mativas a serem tomadas pelo Poder Público.

118 “Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos” (destacamos).119 “Art. 38.  A implementação de políticas voltadas para a inclusão da população negra no mercado de trabalho será de responsabilidade do poder público, observando-se: I - o instituído neste Estatuto; II - os compromissos assumidos pelo Brasil ao ratificar a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965; III - os compromissos assumidos pelo Brasil ao ratificar a Convenção no 111, de 1958, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata da discriminação no emprego e na profissão; IV - os demais compromissos formalmente assumidos pelo Brasil perante a comunidade internacional.” “Art. 39.  O poder público promoverá ações que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população negra, inclusive mediante a implementação de medidas visando à promoção da igualdade nas contratações do setor público e o incentivo à adoção de medidas similares nas empresas e organizações privadas. § 1o A igualdade de oportunidades será lograda mediante a adoção de políticas e programas de formação profissional, de emprego e de geração de renda voltados para a população negra. § 2o As ações visando a promover a igualdade de oportunidades na esfera da administração pública far-se-ão por meio de normas estabelecidas ou a serem estabelecidas em legislação específica e em seus regulamentos.§ 3o O poder público estimulará, por meio de incentivos, a adoção de iguais medidas pelo setor privado(...)” (destacamos). “Art. 42.  O Poder Executivo federal poderá implementar critérios para provimento de cargos em comissão e funções de confiança destinados a ampliar a participação de negros, buscando reproduzir a estrutura da distribuição étnica nacional ou, quando for o caso, estadual, observados os dados demográficos oficiais.”

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Mais recentemente, no dia 05 de agosto de 2011, houve a conversão da Medida Provisória nº 527/2011 na Lei nº 12.462, instituindo o Regime Diferen-ciado de Contratações Públicas – RDC, a ser aplicado exclusivamente nas lici-tações e contratos para a realização da Copa das Confederações da Federação Internacional de Futebol Associação - Fifa 2013, Copa do Mundo Fifa 2014, Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016. Nesse caso, a opção pelo regime diferenciado deverá constar expressamente do ato convocatório (§ 2º do art. 1º), uma vez que afastará, como regra, a aplicação da Lei nº 8.666/93

O Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC, também tem por objetivo o fomento público à inovação tecnológica (inc. III do § 1º do art. 1º) e ao desenvolvimento nacional sustentável (art. 3º). Até porque, na forma aludida, qualquer disposição em sentido contrário seria absolutamente incons-titucional, tal como visto nos tópicos anteriores.

Foi prevista, inclusive, a possibilidade de solicitar certificação ambiental nas licitações para aquisição de bens (inciso III do art. 7º). Inclusive, o inciso II do parágrafo único do artigo 14 permitiu a exigência como requisito de habili-tação – condição pessoal da licitante – requisitos de sustentabilidade ambiental.

E não é só, o artigo 10 do RDC indicou que poderá ser estabelecida re-muneração variável, na contratação de obras e serviços, de engenharia ou não, vinculada, inclusive, a critérios de sustentabilidade.

Feitas estas considerações sobre a evolução verificada no ordenamento jurídico brasileiro, cabe, ainda, ressaltar mais uma “atualização” verificada na Lei nº 8.666/93. Com efeito, a Lei Federal nº 8.666/93 sofreu nova modificação, ao se inserir, por meio da Lei nº 12.440/2011, de 07 de julho de 2011, um novo requisito de habilitação para os licitantes, qual seja a exigência de regularidade trabalhista ao lado da regularidade fiscal120.

Vale mencionar que a referida inovação já é objeto de questionamento judicial junto ao Supremo Tribunal Federal (ADIN n.º 4716), por provocação da CNI (Confederação Nacional das Indústrias), o que certamente não será capaz de abalar a sua funcionalidade em prol do desenvolvimento nacional sustentável

Diante do cenário exposto, verifica-se que cada dia mais os critérios de sustentabilidade vinculam a Administração Pública na sua atividade de contra-tação, seja enquanto consumidora, seja enquanto fomentadora.

Isso tudo, por evidente, leva à conclusão de que as licitações públicas não mais podem ser assumidas como um processo administrativo pautado pela

120 Art.  27.  Para a habilitação nas licitações exigir-se-á dos interessados, exclusivamente, documentação relativa a: (...) IV – regularidade fiscal e trabalhista; (...). Art. 29.  A documentação relativa à regularidade fiscal e trabalhista, conforme o caso, consistirá em:  (...) V – prova de inexistência de débitos inadimplidos perante a Justiça do Trabalho, mediante a apresentação de certidão negativa, nos termos do Título VII-A da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1o de maio de 1943.

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isonomia e que tem viés puramente econômico, fazendo-se mister examiná-las, bem como aos contratos administrativos, como um instrumento para a promoção do desenvolvimento nacional sustentável.

Ademais, nesta especial seara, quando se fala em desenvolvimento nacional sustentável quer-se dizer que os certames deverão valorar, também, os aspectos ambientais, sociais, políticos, culturais e econômicos relacionados à definição dos objetos, das regras de habilitação, das condições de aceitabilidade das propostas e, afinal, das condições de execução do objeto.

Quando se aborda este caráter do desenvolvimento nacional sustentável em matéria de licitações e contratos, pode-se pensar que este raciocínio é inovador e decorre diretamente da Lei n.º 12.349/2010, que alterou a redação do caput do art. 3º da Lei Federal n.º 8.666/1993121.

Todavia, a prescrição normativa do novo artigo 3º, caput, da Lei n. 8.666/93, após alteração advinda da Lei Federal n.º 12.349/2010, simplesmente internalizou os direitos e as obrigações acerca do desenvolvimento em suas variadas dimensões como já existentes na própria Constituição da República Federativa de 1988 e de outras legislações esparsas nacionais.

Perceba-se, então, e a partir de todas essas novidades legislativas que as finalidades legais da licitação não se confundem com a simples finalidade material de satisfação de uma necessidade administrativa ou coletiva que se resolve com a aquisição de certo bem ou com a contratação de certo serviço. Ou seja, a própria Lei nº 8.666/93, em sua atual redação e em parceria com as demais, traz outro fim objetivado pelo procedimento licitatório, exatamente aquele que requer a promoção do desenvolvimento nacional sustentável.

Frise-se que as finalidades devem ser aspiradas em conjunto, ou seja, não basta atingir apenas uma delas; é fundamental que todas sejam efetivadas para que a licitação cumpra com seus objetivos legais e, com isso, seja válida sob o ponto de vista jurídico.

De forma breve, quanto à garantia da isonomia, verifica-se que a licitação deve ser realizada com o desígnio de equilibrar as condições dos futuros proponentes para que, na apresentação de suas propostas, não sejam configurados casos de concorrência desleal, por exemplo. Isso se dá no sentido de arredar as assimetrias do mercado, continuamente em busca da melhor proposta. Comumente, essa equalização se dá por meio de atribuição de tratamentos

121 “Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.”

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diferenciados àqueles que se encontram em condições desequilibradas, o que não representa uma violação a essa garantia.

No tocante à finalidade da seleção da proposta mais vantajosa, tem-se que a referência se dá sobre todo o conjunto que envolve a questão, do qual emerge a necessidade de ponderar diversos elementos, entre eles a observância aos princípios correlatos, a qualidade do bem/serviço, o preço, o interesse público e, mais recentemente, a vinculações decorrentes da busca pelo desenvolvimento nacional sustentável. Desse modo, a licitação deve ser apreendida como uma manifestação do princípio da República, na medida em que agrega todos esses elementos em favor da proposta e do contratante que apresentem a melhor condição de atender o interesse coletivo.

Como acima visto, não é possível, hoje, tratar da vantajosidade apenas sob o aspecto econômico, principalmente devido a inserção do desenvolvimento nacional sustentável às finalidades licitatórias. Isso porque a licitação, no respeito aos princípios da Administração Pública, deve primar, entre eles, pelo princípio da eficiência. Ora, caso uma compra pública ocorra com base apenas no melhor preço, olvidando os outros aspectos relevantes destacados há pouco, poderá incorrer em diversas incongruências com os objetivos legais. Ou seja, não se verificam vantagens, legalmente balizadas, em adquirir-se um bem ou serviço com altos índices de poluição, com pouca durabilidade, desatualizado, entre outros aspectos depreciativos, apenas por considerar a proposta econômica de menor valor.

Portanto, o desenvolvimento sustentável como escopo da licitação possui fundamentos pretéritos à sua inclusão na Lei de Licitações, haja vista que esse procedimento é um meio pelo qual o Poder Público cumpre com diversos de seus deveres constitucionais. Não é outra a lição extraída da obra de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, na qual o autor observa que:

[...] os atos do Estado ou seus delegados estimulam ou incentivam, direta, imediata e concretamente, a iniciativa dos administrados ou de outras entidades, públicas e privadas, para que estas desempenhem ou estimulem, por seu turno, as atividades que a lei haja considerado de interesse público para o desenvolvimento integral e harmonioso da sociedade.122

Em suma, o que vem à tona é a necessidade de funcionalização (socioambiental) das licitações e dos contratos administrativos, de forma que continuem a servir para o desenvolvimento nacional equilibrado (sustentável), mas que também passem a servir como instrumentos para o controle do equilíbrio social e ambiental na sociedade brasileira. Nada mais relevante e indispensável123.

122 MOREIRA NETO. Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Forense, Rio de Janeiro, 2002, p. 524.123 Segundo a reflexão de Amartya Sen, “a necessidade de um exame crítico dos preconceitos

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É diante desse cenário que se identifica a função social da licitação, “como um instrumento para a concretização dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, bem como dos demais valores, anseios e direitos nela encartados, sem prejuízo de outros, reconhecidos por lei ou até mesmo uma política de governo”.124

As compras realizadas pelo Poder Público devem ser vistas como um eficiente instrumento de efetivação de políticas públicas, o que, por consequência, corrobora, novamente, com a sua utilização em favor do desenvolvimento nacional sustentável. Destarte, o poder de compra estatal reflete sua força na medida em que sua magnitude representa grande parte da economia do país, cujos reflexos se dão em diversos outros âmbitos (social, cultural, ambiental etc.).125

Assim é que a responsabilização socioambiental não deve ser implementada de forma isolada, mas sim, de forma conjunta e integrada, através de conformações que viabilizem segurança, lucratividade e satisfação nas relações entre os particulares e a Administração Pública, sendo as licitações e os contratos administrativos instrumentos propícios para este tipo de relação consensual. Eis a idéia de parceria e solidariedade que gera uma nova perspectiva sobre os impactos das decisões e ações de todos os agentes sociais para a busca de uma sociedade justa, fraterna e solidária.

Neste novo viés, o Poder Público se revela como sendo verdadeiro fomentador para a efetivação da responsabilidade socioambiental das empresas, o que o faz através de exigências promocionais (fomento) a partir das licitações públicas, contratos administrativos ou por intermédio de parcerias. Segundo Patrícia Almeida Ashley:

É preciso descentralizar o debate sobre responsabilidade social, que hoje tem a empresa como centro e origem de toda responsabilidade, passando-se a adotar novas premissas:

e atitudes político-econômicas tradicionais nunca foi tão grande. Os preconceitos de hoje (em favor dos mecanismos de mercado puro) decerto precisam ser cuidadosamente investigados e, a meu ver, parcialmente rejeitados” (SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das letras, 2010. p. 150-151).124 FERREIRA, Daniel. Ob. cit., p. 6.125 Exemplo disso é encontrado na Lei Federal n.º 12.187/2009, que dispõe sobre a Política Nacional sobre Mudança do Clima - PNMC, em seu artigo 6º, cujo teor explicita a possibilidade de utilização das licitações destinadas à promoção do interesse público, in verbis: “Art. 6º São instrumentos da Política Nacional sobre Mudança do Clima: (…) XII – as medidas existentes, ou a serem criadas, que estimulem o desenvolvimento de processos e tecnologias, que contribuam para a redução de emissões e remoções de gases de efeito estufa, bem como para a adaptação, dentre as quais o estabelecimento de critérios de preferência nas licitações e concorrências públicas, compreendidas aí as parcerias público-privadas e a autorização, permissão, outorga e concessão para exploração de serviços públicos e recursos naturais, para as propostas que propiciem maior economia de energia, água e outros recursos naturais e redução da emissão de gases de efeito estufa e de resíduos”.

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- buscar a responsabilidade social de todos os indivíduos, organizações e instituições em suas decisões a ações na sociedade – para isso o núcleo familiar e sua comunidade local precisam ter seu tempo e seu espaço resgatados com políticas de proteção social e defesa de valores humanistas e solidários, a fim de poder melhor educar suas novas gerações;

- considerar o poder de compra e consumo dos indivíduos, das organizações privadas e públicas como fomentador de um mercado responsável, ou sejam criar uma nova lógica de mercada que privilegie o fornecimento por empresas que concebem seus produtos de forma socialmente responsável – o que é distinto de empresas que reduzem o conceito de responsabilidade social empresarial a apenas praticar benevolência ou assistencialismo empresarial, dissociados de mudanças na essência do negócio em que opera;

- formação profissional de nível técnico e superior para uma sociedade sustentável, proporcionando a consciência de vivermos em uma rede de complexidade com múltiplos e simultâneos fatores antecedentes e resultantes.126 (destaquei).

Como visto acima, a licitação tem plena aptidão para servir como instrumento nessa imperiosa (re)estruturação de uma nova teoria sobre a relação entre o Estado e a atividade empresarial, retirando do Estado o seu tradicional papel de contenção e fiscalização e alçando-o como fator determinante ao direcionamento de políticas públicas de fomento, sustentabilidade e inclusão social.

Assim, tanto o legislador como o administrador público estão incumbidos de certas atribuições, dentre as quais a de potencializar certos comportamentos, pessoais e coletivos, a partir de “vantagens”,127 o que invariavelmente já está a repercutir na seara privada.

A responsabilidade socioambiental não é alcançada tão somente por intermédio das licitações sustentáveis a partir da aquisição de produtos ecológica e socialmente corretos, mas também deve a Administração Pública investigar cientifica e tecnologicamente os mecanismos mais adequados para alcançar o propósito do desenvolvimento nacional sustentável.

E no caso de desrespeito por parte dos órgãos e instituições incumbidos de realizar licitações, tais ilegalidades devem ser apuradas, “não apenas pelos interessados, pelas Cortes de Contas e pelo Ministério Público, porém pela

126 . ASHLEY, Patrícia Almeida. A mudança histórica do conceito de responsabilidade social empresarial. In: ASHLEY, Patrícia Almeida (coord.). Ética e Responsabilidade social nos negócios. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 58.127 Confira: KOLADICZ, Aline Cristina. A atividade empresarial socioambientalmente responsável e sustentável pela via do fomento estatal. Curitiba. 2009. Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania – UNICURITIBA. Disponível em: <http://tede.unicuritiba.edu.br/dissertacoes/AlineKoladicz.pdf>. Acesso em 28.ago.2012.

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sociedade civil em geral, de forma a se responsabilizar pessoalmente os desidiosos com o trato dos referidos interesses públicos, sem prejuízo da eventual e cumulativa anulação da licitação, no âmbito administrativo ou judicial”.128

Pelo exposto, a promoção do desenvolvimento nacional sustentável como nova finalidade das licitações deve ser considerada em todas as suas esferas (social, ambiental e econômica, ao menos), não podendo tê-la como mera faculdade do administrador. Nesse sentido, todas as medidas possíveis e necessárias à sua promoção devem ser realizadas, sob pena de caracterização de infração disciplinar e de ato de improbidade, no mínimo.

5. CONCLUSÕES

Pelo exposto, constata-se uma grande necessidade de revisitar a função das licitações públicas e dos contratos administrativos, devendo repassar de uma função puramente econômica para aglutinar-se com uma função social (leia-se: dever legal) que deve se preocupar com a efetivação da responsabilidade socioambiental dos envolvidos nos processos de compra pela Administração.

Neste ideário, visualiza-se que diversas legislações recentes enfatizam as licitações sustentáveis sob o aspecto socioambiental, as quais são molas propulsoras para o fortalecimento do Estado Brasileiro enquanto verdadeira Ordem Social e Democrática de Direito, e que tem como objetivo fundamental a promoção do desenvolvimento nacional, respeitando a sua forma pluridimensional.

O que se pretendeu evidenciar através do presente ensaio, portanto, é que além de configurar um direito - fundamental e constitucionalmente assegurado -, o desenvolvimento vincula os Poderes Públicos. Assim, impõe-se uma imediata reestruturação da relação entre o Estado e a atividade empresarial, retirando do Estado o seu tradicional papel de contenção e fiscalização e alçando-o como fator determinante ao direcionamento de políticas públicas de fomento, sustentabilidade e inclusão social, pois dessa forma não apenas se estará realizando uma atividade precípua do Estado, mas – principalmente – exaltando-se direitos fundamentais e interesses públicos dos destinatários do agir estatal.

E se estamos a falar de atividade administrativa, é absolutamente certo que todas as medidas delas decorrentes somente podem estar atreladas à efetivação do bem comum e à concretização de interesses públicos129, os quais

128 FERREIRA, Daniel. Op. cit, p. 17.129 Segundo a doutrina mais atenta (Sabino Cassese, Marçal Justen Filho, dentre outros), não há como prevalecer a noção de existência de somente um interesse público, mas sim de vários interesses públicos “e que somente no caso concreto é que se mostrará sobranceiro, a aponto de preponderar, um sobre o outro” (FERREIRA, Daniel. Função social da licitação pública: o desenvolvimento nacional sustentável (no e do Brasil, antes e depois da MP nº 495/2010). Fórum de Contratação e Gestão Pública- FCGP. V. 9, n. 107, nov. 2010. Belo Horizonte; Fórum, 2010, p. 2).

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não podem se esquivar do grande ideal de promover uma sociedade mais justa, fraterna, solidária e feliz130, tal qual manifestado no preâmbulo131 e no texto132 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

A própria dimensão econômica e socioambiental da atividade empresarial também vem colocando em cheque os modelos tradicionais de gestão dos agentes econômicos e as formas convencionais de distribuição de obrigações – defendidos pelo até então prevalente discurso neoliberal; eis que a idéia de função social e de responsabilidade socioambiental vem convocando as empresas, os indivíduos e a Administração Pública a atuarem num cenário muito mais abrangente e complexo, qual seja, o do socioambientalismo solidário, do qual decorrem uma série de imposições absolutamente vinculantes, inclusive no que tange aos processos de contratação de serviços e compra de produtos pela Administração Pública (“poder de compra”).

Sob este raciocínio, a recente alteração legislativa, que adaptou a redação do art. 3º da Lei Federal 8.666/93 e, via de consequência, o próprio conceito de licitação, evidencia uma inovação legislativa que incrementa a responsabilidade socioambiental das empresas a fim de participarem junto com o Estado na construção de uma sociedade justa, equilibrada, e solidária. No atual modelo de Estado Socioambiental de Direito, toda a atividade estatal deve ter como finalidade a concretização dos objetivos da República Federativa do Brasil, expressamente indicados na Constituição. Por isso, enquanto atividade estatal, as licitações e contratações públicas também devem ter como finalidade o alcance desses objetivos, notadamente no que se refere à sua nova finalidade legal (o desenvolvimento nacional sustentável).

Assim, reconhecido o poder de compra e o impacto das aquisições gover-namentais no mercado, não há mais como se admitir a neutralidade dos atores sociais, sobretudo do Estado (e da Administração Pública), no que diz com a

130 É de se anotar que o direito à felicidade já é tido como direito fundamental em algumas Constituições democráticas, tal como previsto na Constituição da Itália. O Poder Legislativo brasileiro já se mobilizou para seguir a orientação da ONU que reconhece a busca da felicidade como “um objetivo humano fundamental”. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 19, que tramita no, pretende acrescentar a felicidade na lista dos direitos sociais previstos no Artigo 6º da Constituição. O texto já foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e está pronto para ser votado no plenário do Senado Federal.131 “(...) para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida (....).”132 “Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

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promoção do desenvolvimento sustentável por via das licitações e das contra-tações administrativas.

Pelo contrário, reconhecendo-se o desenvolvimento como um objetivo da República, um direito fundamental e, mais recentemente, um dever legal expresso (Lei Federal n.º 8.666/93) resta absolutamente legitimado ao Estado regular a ordem econômica com vistas a fomentar a sustentabilidade e a inclu-são social por meio das suas licitações e das contratações públicas.

Conclui-se, assim, que as licitações e os contratos administrativos podem e devem se prestar a tanto, propiciando o incremento da responsabilidade socioambiental das empresas que já se mostram parceiras da Administração Pública ou que assim almejam em breve tempo, o que certamente produzirá reflexos em todo o meio social.

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ARTIGO 4A PARCERIA PÚBLICO-PRIVADA COMO MODELO DE CONTRATAÇÃO

PÚBLICA PARA CONSTRUÇÃO OU REFORMA DE EQUIPAMENTOS PARA OS GRANDES EVENTOS ESPORTIVOS DE 2014 E 2016

antenor demeterco neto133

SUMÁRIO: Introdução. 1. A parceria público-privada. 1.1 Definição. 1.2 Concessões patrocinada e administrativa. 1.3 Alguns apontamentos sobre PPP no Reino Unido. 1.4 Project finance. 1.5 Value for money. 1.6 A alocação eficiente dos riscos. 2. A utilização de PPP para construção ou reforma de equipamentos esportivos. 2.1 A PPP da Arena Esportiva Fonte Nova. 2.2 A PPP do Estádio Magalhães Pinto (Mineirão). 3. Conclusões. Referências bibliográficas.

INTRODUÇÃO

No Brasil, as discussões acerca da parceria público-privada (PPP) surgiram embrionariamente na década de 1990 motivadas por experiências positivas advindas do Reino Unido e pelos programas governamentais de desestatização da economia nacional.

No entanto, somente a partir do ano de 2003 com as edições das Leis Estaduais de n.os 14.868/2003 em Minas Gerais e 11.688/2004 em São Paulo o tema passou a ser uma realidade e iniciou-se então o processo que culminaria na edição da Lei Federal de n.º 11.079/2004, conhecida como a Lei das PPPs.

A partir daí a PPP vem adquirindo cada vez mais importância como alternativa de angariação de investidores e de viabilização financeira de projetos de infraestrutura.

Se confrontada com outras formas mais comuns de custeio da Administração Pública, como tributos e empréstimos, a PPP apresenta consideráveis vantagens.

E o principal benefício possivelmente advenha da própria essência da PPP, qual seja, no seu financiamento em geral assumido pela iniciativa privada,

133 Advogado militante nas áreas do Direito Empresarial Público e do Direito Eleitoral e Partidário. Doutorando em “Direito Econômico e Socioambiental” pela PUC-PR. Mestre em “Organizações e Desenvolvimento” pela UNIFAE – Centro Universitário. MBA em “Direito da Economia e da Empresa” pela Fundação Getúlio Vargas. Pós-graduado em “Direito Tributário Contemporâneo” pela Faculdade de Direito de Curitiba. Sócio da De Figueiredo Demeterco Sociedade de Advogados. Assessor jurídico do CETRAN-PR. Presidente da Comissão de Direito Econômico da OAB-PR. Membro da Academia Paranaense de Direito e Economia – ADEPAR.

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o que exige uma avaliação criteriosa dos gastos e etapas da execução da obra, bem como da possibilidade dos custos serem arcados, direta ou indiretamente, pelos que desfrutarão do empreendimento.

O presente artigo tem o objetivo de fazer uma análise da utilização da PPP para a construção ou reforma dos equipamentos esportivos que servirão de infraestrutura para a Copa do Mundo de Futebol de 2014 e para os Jogos Olímpicos de 2016.

Para tanto, inicialmente far-se-á uma exposição teórica acerca do instituto da PPP e, na seqüência, serão examinadas as peculiaridades dos casos da Arena Esportiva Fonte Nova em Salvador e do Estádio Magalhães Pinto (Mineirão) em Belo Horizonte.

1. A PARCERIA PÚBLICO-PRIVADA (PPP)

1.1 DEFINIÇÃO

No ordenamento jurídico brasileiro, o termo parceria público-privada (PPP) pode ser empregado nos sentidos amplo e estrito.

A PPP em sentido amplo pode ser definida como:(...) os múltiplos vínculos negociais de trato continuado estabelecidos entre

a Administração Pública e particulares para viabilizar o desenvolvimento, sob a responsabilidade destes, de atividades com algum coeficiente de interesse geral.134

De acordo com essa definição, verifica-se que sob o termo PPP está açambarcada uma gama de formas de interação entre a Administração Pública e a iniciativa privada, inclusive a concessão comum prevista na Lei de n.º 8.987/1995.

Já em sentido estrito, a PPP pode ser vista como:(...) um contrato organizacional, de longo prazo de duração, por meio do

qual se atribui a um sujeito privado o dever de executar obra pública e (ou) prestar serviço público, com ou sem direito à remuneração, por meio da exploração da infra-estrutura, mas mediante uma garantia especial e reforçada prestada pelo Poder Público, utilizável para a obtenção de recursos no mercado financeiro.135

Na realidade, a Lei de n.º 11.079/2004, conhecida como a Lei das PPPs, ao conceituar PPP no seu artigo 2º, limitou-se em mencionar a sua natureza contratual e a citar duas de suas espécies: a concessão patrocinada e a concessão administrativa.

Portanto, é possível ainda conceituar PPP em sentido estrito como:(...) uma modalidade de contratação entre o poder público e entidades

privadas com vistas à realização de obras de grande porte e à prestação de

134 Sundfeld, 2005, p. 18.135 Justen Filho, 2005, p. 549.

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serviços públicos, através de concessões patrocinadas ou administrativas, em que se verificam o compartilhamento dos riscos do empreendimento entre as partes envolvidas, bem como o financiamento predominantemente privado.136

Para finalizar, é interessante citar o conceito desenvolvido por Fernão Justen de Oliveira que traz características e personagens que em tese não são obrigatórios em uma PPP, mas que na prática são quase que indispensáveis para a viabilidade econômica do projeto. Segundo esse autor:

(...) serão espécies de parceria público-privada todas as iniciativas conjugadas de cooperação financeira e organizacional, destinadas a satisfazer um interesse da coletividade e sustentar o seu desenvolvimento, qualificadas pela distribuição calibrada dos riscos e por um vínculo associativo entre as partes, consolidado por contrato cuja celebração se justifica pela apuração do Value for Money e estruturada sobre um project finance – o que remete à participação de um terceiro agente formal na parceria público-privada: a instituição financeira que aprovará o project finance e, nele amparada, financiará a parceria público-privada.137

1.2 CONCESSÕES PATROCINADA E ADMINISTRATIVA

De maneira implícita, como bem destacou Luiz Alberto Blanchet, a Lei de n.º 11.079/2004 classificou concessão em três espécies: a) comum; b) patrocinada; e c) administrativa.138

A concessão comum é aquela que vem definida na já conhecida Lei de n.º 8.987/1995 que regulamenta a concessão e permissão da prestação de serviços públicos.

E a concessão patrocinada, da mesma forma que a concessão comum, é uma espécie do gênero concessão de serviço público, com a diferença de que a forma de remuneração na primeira deve englobar tanto uma tarifa a ser paga pelo usuário como uma contraprestação pecuniária da Administração Pública.139

Já a concessão administrativa pode ser dividida em dois tipos: a) concessão administrativa de serviços públicos, também uma espécie do gênero concessão de serviço público, na qual o serviço é prestado diretamente ao administrado mediante uma contraprestação pecuniária paga pela Administração Pública, sem qualquer cobrança de tarifa do usuário direto; e b) concessão administrativa de serviços ao Estado, uma espécie do gênero contrato administrativo de serviços ao Estado, que se caracteriza pela oferta de utilidades à própria Administração Pública mediante uma remuneração paga por esta, ou seja, neste caso o Estado é o usuário direto do serviço.140

136 Galvão, 2005, p. 9.137 Oliveira, 2007, p. 92-93.138 Blanchet, 2010, p. 22.139 Sundfeld, 2005, p. 28.140 Sundfeld, 2005, p. 29-31.

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1.3 ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE PPP NO REINO UNIDO

O objetivo do presente artigo não é examinar a experiência do Reino Unido com PPP, mas faz-se necessário apontar alguns aspectos que de certo modo vieram a influenciar a adoção do instituto no Brasil.

Ainda que o termo seja utilizado de maneira flexível, a legislação do Reino Unido define PPP como aquele projeto:

(...) (a) cujos recursos são fornecidos parcialmente por um ou mais órgãos públicos e parcialmente por uma ou mais entidades privadas e (b) que é projetado no todo ou em parte para auxiliar um órgão público no desempenho de suas funções.141

A fixação de um foco único de responsabilidade é uma das principais vantagens da PPP no Reino Unido, uma vez que não possibilita à iniciativa privada justificar imperfeições na execução do projeto.

E é justamente esse deslocamento do risco da Administração Pública para a iniciativa privada uma particularidade primordial da PPP no Reino Unido, sendo geralmente o motivo mais importante para justificar o seu financiamento.

Porém, o risco avocado pela iniciativa privada poderá ser radicalmente alterado de acordo com a maneira com que a receita do projeto será gerada. Se, por exemplo, a Administração Pública arcar com uma porção significativa de receita apenas para ter a possibilidade de fruição do empreendimento, a iniciativa privada será claramente beneficiada, já que o risco de mercado será consideravelmente menor.142

Deve-se destacar também que algumas experiências de PPP no Reino Unido não implicaram em custeio privado. Foi o caso da construção de centros de detenção para imigrantes que tinha como objetivo receber pessoas que tiveram asilo negado ou que seriam deportadas. Como o governo do Reino Unido atribuiu prioridade política à edificação desses centros, para assegurar a sua rápida realização decidiu-se pelo custeio público do empreendimento.143

É importante ressaltar ainda com relação à PPP no Reino Unido, que do ponto de vista do investidor, um traço comum dos projetos, é o atrelamento do fluxo de caixa do próprio empreendimento ao custeio dos respectivos desembolsos, sendo limitado o acesso aos bens dos financiadores, principalmente após a conclusão da obra.144

141 McCormick, 2005, p. 15.142 McCormick, 2005, p. 16-17.143 McCormick, 2005, p. 16.144 McCormick, 2005, p. 16.

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1.4 PROJECT FINANCE

De acordo com o clássico conceito de John D. Finnerty:(...) o project finance pode ser definido como a captação de recursos para

financiar um projeto de investimento de capital economicamente separável, no qual os provedores de recursos vêem o fluxo de caixa vindo do projeto como fonte primária de recursos para atender ao serviço de seus empréstimos e fornecer o retorno sobre seu capital investido no projeto. Os prazos de vencimento da dívida e dos títulos patrimoniais são projetados sob medida para as características do fluxo de caixa do projeto. Para sua garantia, os títulos de dívida do projeto dependem, ao menos parcialmente, da lucratividade do mesmo e do valor dos seus ativos.145

É fácil reconhecer certa harmonia entre PPP e project finance, ainda que sejam institutos com conceitos e objetivos distintos. A PPP é uma forma de cooperação entre a Administração Pública e a iniciativa privada, enquanto que o project finance é um instrumento de obtenção de investimentos com restrições de responsabilidades e distribuição de riscos.146

O project finance foi concebido como uma maneira de financiamento onde os desembolsos são arcados pelo próprio fluxo de caixa do empreendimento e garantidos pelos ativos e recebíveis do mesmo.

Ou seja, as operações de project finance: (...) podem ser entendidas como um conjunto de soluções financeiras, fiscais,

jurídicas, securitárias e outras que, embora preexistentes e já testadas individualmente, devem conjugar-se de forma harmônica, permitindo o financiamento de determinado empreendimento mediante seu próprio fluxo de recebíveis.147

Os projetos compatíveis com a estrutura de project finance tradicionalmente envolvem valores e riscos significativos, o que se justifica justamente pelas próprias particularidades do instituto, que o diferencia das formas mais comuns de financiamento ao possibilitar a obtenção de recursos e a distribuição de riscos.

E a PPP intenta justamente diminuir os riscos de mercado e de demanda, os quais são total ou parcialmente assumidos pela Administração Pública para possibilitar economicamente o empreendimento e, conseqüentemente, a sua execução e financiamento por meio de project finance.

Outra particularidade essencial do project finance, identificada também na PPP, é a criação de uma personalidade jurídica independente para o empreendimento, de forma que seus ativos, obrigações jurídicas e fluxo de

145 Finnerty, 1999, p. 2.146 Marins e Oliveira, 2011, p. 33.147 Marins e Oliveira, 2011, p. 33.

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caixa, não se confundam com os bens dos acionistas. Para tanto, é criada uma empresa autônoma denominada sociedade de propósito específico (SPE).

Como se pode ver, são inúmeros os aspectos do project finance que se identificam com a PPP. Inclusive, a filosofia do project finance pode ser facilmente constatada na Lei Federal de n.º 11.079/2004, como por exemplo: a) nos artigos 4º, inciso VII, e 6º, que se preocupam em garantir um fluxo mínimo de recursos; b) no artigo 9º, que, como já dito, exige a criação de uma SPE; c) nos artigos 4º, inciso VI, 5º, incisos III e IX, e 6º, parágrafo único, que se referem à utilização de instrumentos contratuais de distribuição de riscos; d) no artigo 5º, parágrafo 2º, inciso I, que estabelece mecanismos de garantia característicos de project finance; e) na importância conferida ao contrato de PPP; f) na linguagem utilizada pela lei, comum à iniciativa privada e ao mercado financeiro; e g) no estímulo à utilização da arbitragem.148

1.5 VALUE FOR MONEY

Outra característica das operações que envolvem PPP estruturadas por project finance é a apuração do value for money, expressão que não possui uma tradução literal para o português, mas cujo significado pode ser entendido como o de “custo-benefício”. É a verificação do value for money que justifica a contratação.

Como bem destacam Marins e Oliveira:(...) a análise VFM compara as vantagens socioeconômicas para a

sociedade (benefícios tangíveis e intangíveis) obtidas por meio da execução de determinado serviço por um parceiro privado, em determinada qualidade, com os custos (tangíveis e intangíveis) e receitas da prestação desse mesmo serviço diretamente pelo Estado.149

E, como se tem visto, a apuração do value for money tem justamente mostrado ser mais eficiente a transferência da responsabilidade pela realização da obra e prestação do serviço à iniciativa privada.

A análise do value for money por meio da avaliação do fluxo de caixa possibilita uma radiografia do procedimento financeiro, com o esclarecimento das distinções entre os valores despendidos com o projeto em determinado período e apresentação do produto final em montante líquido presente com a incidência do abatimento de um percentual adequado de juros, para, dessa forma, oportunizar o confronto dos resultados e permitir a contratação da modalidade mais benéfica.150

148 Marins e Oliveira, 2011, p. 33-34.149 Marins e Oliveira, 2011, p. 40.150 Marins e Oliveira, 2011, p. 40.

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1.6 A ALOCAÇÃO EFICIENTE DOS RISCOS

Como visto anteriormente, uma das principais características da PPP é a repartição objetiva de riscos entre as partes. Em outras palavras, isso significa destinar os riscos do projeto aos que melhor possam suportá-los em benefício de todos os envolvidos.

De forma geral, pode-se dizer que um projeto de PPP está sujeito aos seguintes riscos: a) de construção: que o financiador externo geralmente mitiga ao condicionar a concessão do crédito à sua transferência a quem tem mais condição de suportá-lo; b) de suprimento de matéria-prima: que quase sempre é transferido para o fornecedor por meio de um contrato de longo prazo com contraprestação já pré-determinada; c) de operação: que normalmente é diminuído por meio de um contrato de longo prazo com uma operadora de renome e apta a exercer o trabalho até que os investimentos sejam quitados ou até que a entidade financiada seja capaz de operar o empreendimento; d) de força maior ou caso fortuito: os quais não podem ser simplesmente transferidos, o que obriga a entidade financiada a coberturas securitárias mais amplas possíveis; e) de desapropriação ou encampação: que pode ser mitigado por meio de normas legais ou de contratos de concessão que prevejam objetivamente os critérios de indenização e seus valores, bem como cláusulas penais para os casos de descumprimento; f) de governo: que pode ser reduzido com garantias prestadas pela Administração Pública, como o Fundo Garantidor de Parcerias Público-Privadas - FGP previsto nos artigos 16 e seguintes da Lei de n.º 11.079/2004, ou, ainda, com coberturas securitárias; e, g) o institucional: que pode ser diminuído com o incentivo à cultura da arbitragem, haja vista a morosidade do Judiciário brasileiro, e, como entendem alguns investidores, também pelo financiamento dos projetos por organismos multilaterais como o Banco Mundial.

2. A UTILIZAÇÃO DE PPP PARA CONSTRUÇÃO OU REFORMA DE EQUIPA-MENTOS ESPORTIVOS

Tradicionalmente a PPP sempre foi um mecanismo utilizado para viabilizar projetos de serviços públicos de infraestrutura como telefonia, energia, transportes, entre outros.

No entanto, a escolha do Brasil para sediar a Copa do Mundo de Futebol de 2014 e do Rio de Janeiro para ser sede dos Jogos Olímpicos de 2016 acarretará numa demanda de investimentos superiores a R$ 6 bilhões e acabou por exigir a utilização da PPP em segmentos não acostumados a essa forma de contratação.

A seguir será examinado como o mecanismo da PPP foi utilizado para viabilizar os projetos da Arena Esportiva Fonte Nova em Salvador e do Estádio Magalhães Pinto (Mineirão) em Belo Horizonte.

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2.1 A PPP DA ARENA ESPORTIVA FONTE NOVA

A PPP da Arena Esportiva Fonte Nova é um projeto do Governo da Bahia com o consórcio Fonte Nova Negócios e Participações formado pelas empresas Odebrecht Participações e Investimentos e OAS.

Para a construção da obra a Fonte Nova Negócios e Participações contratou o consórcio Arena Salvador, constituído pela Odebrecht Infraestrutura e pela Construtora OAS.

O prazo previsto para concessão foi de 35 anos e o custo da obra de aproximadamente R$ 597 milhões. Em março de 2013 as obras foram finalizadas e o estádio entregue ao Governo da Bahia.

A principal dificuldade encontrada quando da estruturação da PPP da Arena Esportiva Fonte Nova foi a baixa expectativa de renda que o empreendimento gerava. Porém, a alocação eficiente dos riscos foi a solução encontrada pelos envolvidos para suplantar essa dificuldade e viabilizar o projeto. Para tanto, o Governo da Bahia fez um cálculo antecipado da demanda e ficou determinado pelas partes que em caso de variação dessa demanda acima de 100%, as rendas líquidas obtidas seriam divididas em partes iguais entre os envolvidos. E o mesmo ocorreria em caso de variação da demanda abaixo de 100%, situação em que os prejuízos seriam igualmente partilhados, não possibilitando assim a revisão do equilíbrio econômico-financeiro do contrato.151

O financiamento para a construção da obra foi assumido pelo parceiro privado com taxas de juros subsidiadas junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e à Agência Baiana de Fomento (Desenbahia), respectivamente nos valores de R$ 591 milhões e R$ 50 milhões, e com a garantia de liquidez do Governo da Bahia.

A modalidade de PPP escolhida para a Arena Esportiva Fonte Nova foi a de concessão administrativa prevista no artigo 2º, parágrafo 2º da Lei de n.º 11.079/2004, na qual a Administração Pública é a usuária direta ou indireta da prestação dos serviços.

No caso, como a Administração Pública será a usuária do serviço, após o término da obra o Governo da Bahia deverá pagar uma contraprestação mensal ao parceiro privado, cujo total ao final dos 35 anos de concessão será de mais ou menos R$ 592 milhões.

No entanto, deve-se destacar que a operação da PPP da Arena Esportiva Fonte Nova está muito suscetível a quantificações equivocadas.

Como bem afirmam Paulo Sérgio Souza Andrade e Sandro Cabral, o desempenho do contrato pode ser incrementado pela atuação positiva do clube de futebol local nas competições que vier a participar. Da mesma forma elementos

151 Andrade e Cabral, 2011, p. 5.

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externos podem ser prejudiciais, como, por exemplo, receitas menores que as previstas em razão da utilização indevida da meia-entrada pelos torcedores.152

Porém, as receitas do empreendimento não serão provenientes apenas a contraprestação mensal a ser paga pelo Governo da Bahia e da bilheteria dos jogos. Ao negócio principal está associada uma série de atividades adicionais, como a exploração de marketing, patrocínios, locação do estádio, eventos, entretenimento, entre muitas outras, que se bem exploradas constituirão em significativas fontes de renda ao parceiro privado.

Por último, lembram Paulo Sérgio Souza Andrade e Sandro Cabral que no caso da PPP da Arena Esportiva Fonte Nova o parceiro privado terá toda liberdade para definir a sua estratégia empresarial, assumindo conseqüentemente todos os seus riscos. O que é importante porque os eventuais prejuízos advindos da imprevisível variação da demanda não poderão ser transferidos ao Governo da Bahia.153

2.2 A PPP DO ESTÁDIO MAGALHÃES PINTO (MINEIRÃO)

A PPP do Estádio Magalhães Pinto (Mineirão) é um projeto do Governo de Minas Gerais com o consórcio Minas Arena formado pelas empresas Construcap, Egesa e Hap Engenharia, responsável pela execução da reforma e posterior operação do equipamento.

O prazo previsto para concessão foi de 25 anos e o custo da obra de aproximadamente R$ 695 milhões. No final de dezembro de 2012, as obras foram finalizadas e o estádio reinaugurado.

No caso do Estádio Magalhães Pinto (Mineirão), a modalidade de PPP escolhida também foi a de concessão administrativa prevista no artigo 2º, parágrafo 2º da Lei de n.º 11.079/2004, na qual a Administração Pública é a usuária direta ou indireta da prestação dos serviços.

Quanto aos riscos, a PPP do Estádio Magalhães Pinto (Mineirão) determinou muito bem a sua distribuição entre os envolvidos. Por exemplo, nos riscos relacionados à construção, envolvendo o cumprimento de prazos e orçamento, o contrato estabeleceu marcos intermediários com a aplicação de multas em casos de descumprimento. O contrato estabeleceu também incentivos para o cumprimento dos prazos, já que parte do pagamento do parceiro privado nos dois primeiros anos depende do término da obra dentro do previsto. E com relação ao orçamento, o risco de extrapolação do valor inicialmente previsto é exclusivo do parceiro privado.154

152 Andrade e Cabral, 2011, p. 6.153 Andrade e Cabral, 2011, p. 6.154 Marins e Oliveira, 2011, p. 53.

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Da mesma forma que no caso da Arena Esportiva Fonte Nova, o risco de demanda também foi uma das principais dificuldades para a estruturação da PPP do Estádio Magalhães Pinto (Mineirão).

Os grandes clubes de futebol de Belo Horizonte exercem forte influência sobre a demanda. Por isso, o Governo de Minas Gerais garantiu, em caso de desacordo entre os clubes de futebol e o parceiro privado, a utilização de 66 datas do complexo para realização de partidas, estabelecendo-se dessa forma uma fonte mínima de receita.

A PPP do Estádio Magalhães Pinto (Mineirão) estabeleceu ainda metas mínimas de criação de receitas pelo parceiro privado como forma de diminuição do risco financeiro e operacional da Administração Pública. Caso essas metas não sejam alcançadas, além de afetar negativamente o saldo financeiro do parceiro privado, incidirão multas em casos de recaimento.155

3. CONCLUSÕES

Como se pode verificar, a PPP foi a solução encontrada para viabilizar os projetos da Arena Esportiva Fonte Nova em Salvador e do Estádio Magalhães Pinto (Mineirão) em Belo Horizonte.

Ferramentas como a análise do value for money, a repartição objetiva de riscos entre as partes, a exigência de resultados, e o cumprimento de metas contratuais como condicionante para a liberação de pagamentos, foram fundamentais para possibilitar as contratações desses empreendimentos.

E, no caso dos Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro, fórmula semelhante foi utilizada para a PPP do Parque Olímpico, cujo risco de demanda será ainda maior após a realização do evento.

Enfim, a PPP é um instrumento interessante para empreendimentos de grande complexidade e, espera-se, que seja também utilizada de fato para resolver o gargalo da infraestrutura brasileira.

155 Marins e Oliveira, 2011, p. 54.

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ARTIGO 5 COPA DO MUNDO E INFRAESTRUTURA: NOTAS SOBRE O

FINANCIAMENTO E A MITIGAÇÃO DE RISCOS EM CONTRATOS PÚBLICOS

Fernando Menegat156

Iggor Gomes Rocha157

SUMÁRIO: Introdução. 1. Serviços públicos de infraestrutura e modelagem concessória. 1.1 A evolução histórica da prestação de serviços públicos. 1.2 Infraestrutura e modelagem concessória: evolução das concessões liberais às “novas concessões”. 2. Financiamento e mitigação de riscos nas concessões em infraestrutura. 2.1 Financiamento, remuneração e garantias. 2.2 PPP, project finance e mitigação de riscos. 3. Infraestrutura e copa do mundo: entre a “fuga para o direito privado” e a modernização da gestão pública de bens e serviços. Referências bibliográficas.

INTRODUÇÃO

O Brasil vive tempos de euforia. Anunciado como sede da Copa do Mundo de Futebol FIFA 2014, generalizou-se o sentimento de entusiasmo da parte daqueles que sonhavam em ver a competição voltar, depois de ter completado bodas de ouro, ao “país do futebol”. De outra parte, no entanto, não foram poucas as vozes levantadas contra o evento e – principalmente – contra as maléficas consequências que poderia acarretar. A despeito disso, o presente artigo não tem como finalidade demarcar uma tomada de posição pelos autores contrária ou favoravelmente à Copa do Mundo no Brasil. Em última análise, tal discussão acaba sendo invariavelmente reconduzida ao campo dos gostos, tons e sabores ideológicos de cada um – o que retira a (pretensa) cientificidade da análise que se intenta desenvolver.

Partindo dessa singela premissa, o trabalho que ora se apresenta é resultado de uma reflexão analítica realizada sobre alguns aspectos das atividades de cunho infraestrutural que, em decorrência do evento em 2014, deverão ser instauradas ou desenvolvidas a contento pelo Estado brasileiro – inclusive por imposição da própria entidade que organiza o evento, a FIFA.

156 Mestrando em Direito na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Direito Administrativo. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Advogado em Curitiba-PR.157 Mestrando em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Especialista em Direito Administrativo. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Advogado em Curitiba-PR.

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O trabalho se desenvolve em três momentos distintos. Primeiramente, serão tecidas considerações acerca da evolução histórica na prestação de serviços públicos, com enfoque na situação brasileira – que é a que aqui nos interessa –, tratando do conteúdo dos “serviços públicos infraestruturais” e da passagem das “concessões clássicas” às “novas concessões”. Num segundo momento, serão verticalizadas as concessões em infraestrutura enquanto métodos de financiamento de projetos em infraestrutura, com foco no aspecto de mitigação de riscos envolvidos. Por fim, conclui-se o texto com a apresentação de algumas reflexões envolvendo os principais modelos contratuais passíveis de utilização pela Administração Pública para promover a instauração e operação de infraestruturas e a prestação de serviços (públicos) infraestruturais.

Desenvolver artigo em área de tamanha discussão é certamente um grande desafio, que deve ser enfrentado tendo em mente que:

[...] quando nos debruçamos sobre temas novos ou no mínimo controvertidos, é sempre bom fazer a ressalva de que se está construindo um arcabouço teórico, para nós novo, a partir de dados da realidade econômica e jurídica pouco consolidados. E quem se dedica a esta tarefa sempre deve se despir de seus preconceitos, resistir à análise que se mostrar mais óbvia e tentar buscar a totalidade dos aspectos envolvidos, tentando, se possível, apreender o núcleo do que se discute.158

Enfim, as ideias adiante trazidas são feitas a título de contribuição, e também de análise crítica, a este cenário dual que o país vive: de oportunidade de desenvolvimento, modernização e investimentos, mas também de responsabilidade em sediar uma Copa do Mundo, em razão da projeção política que os sucessos e insucessos dessa empreitada podem gerar.

1. SERVIÇOS PÚBLICOS DE INFRAESTRUTURA E MODELAGEM CONCESSÓRIA

Falar do exercício de atividades de cunho infraestrutural em países com forte herança da tradição jus-administrativista francesa – como é o caso do Brasil, ao menos em parte –, é praticamente impossível sem se tecer um paralelo com a noção 159 de serviço público. Pelo fato de as atividades ligadas às

158 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Universalização de Serviços Públicos e Competição: o caso da distribuição de gás natural. Revista de Direito Administrativo, v. 223. p. 134.159 Frise-se a pertinência de se falar em “noção”, e não propriamente num “conceito” de serviço público. Isso porque, como afirmou Dinorá Grotti, não há propriamente uma entidade que possa ser chamada de “serviço público”, assim caracterizado apenas por sua natureza ou por sua essência (GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O Serviço Público e a Constituição Brasileira de 1988. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 88). O serviço público é uma noção, e não um dado, um objeto – encará-lo de tal forma seria atribuir traços por demais positivistas à análise do instituto. O que é verificável, de certo modo, é a existência de uma vocação da atividade para ser serviço público, de sorte que o

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infraestruturas pressuporem a instalação de “redes” (e, portanto, exigirem pesados investimentos), acaba havendo forte tendência de seu exercício em regime de monopólio (exclusividade), colocando-se o problema da titularidade de tais atividades que, em grande parte da Europa e no Brasil, foi solucionado mediante sua assunção, pelo Estado, enquanto “tarefas de serviço público” (até mesmo porque os bens que lhe dão suporte – as infraestruturas – são bens públicos).160

Daí porque parece ser de crucial importância tecer inicialmente um breve cenário da evolução na prestação de serviços públicos pelo Estado, o que acaba invariavelmente enfocando, como se verá, a prestação de serviços de cunho infraestrutural.

1.1 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS

Como parece intuitivo, a noção de serviço público não nasceu pronta, acabada, definida em todos os seus contornos desde os primórdios. Na realidade, como notou Dinorá GROTTI, “é possível detectar-se um fio histórico que conduz desde o seu conceito político até sua posterior funcionalidade jurídica”.161

Adotando como marco inicial o Estado Absolutista, dotado de uma administração pública do tipo patrimonialista,162 é certo dizer que este não tinha como intenção repartir bens econômicos e riquezas, tanto menos promover o bem comum dos cidadãos (então encarados meramente como súditos reais).163 Evidente que, num Estado com tal formatação, não há que se falar em prestação de serviços públicos pela Administração Pública, conforme notou Gaspar Ariño ORTIZ ao afirmar que o serviço público “é uma técnica institucional, finalista, não puramente instrumental, impensável fora do contexto político-social e de uma certa ideia de Estado que provém da Revolução”.164

Com o advento do Estado Liberal, deflagrado após as Revoluções Burguesas, o cenário da prestação estatal de serviços públicos muda sensivelmente. Isso porque, a despeito de o Estado de matriz liberal ser dotado,

serviço público aparece, assim, como uma qualificação especial atribuída a uma atividade por suas características e pelo especial regime jurídico a que deve estar submetida, do mesmo modo que, por exemplo, o título de OSCIP é uma qualificação para entidades do terceiro setor. 160 GONÇALVES, Pedro; MARTINS, Licínio Lopes. Os Serviços Públicos Econômicos e a Concessão no Estado Regulador. In: MOREIRA, Vital (org.). Estudos de Regulação Pública, vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 175-176. 161 GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O Serviço Público e a Constituição Brasileira de 1988. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 19. 162 BRESSER PEREIRA. Do Estado Patrimonial ao Gerencial. In: PINHEIRO, WILHEIM e SACHS (orgs.). Brasil: Um Século de Transformações. São Paulo: Cia das Letras, 2001. P. 222-259. 163 ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.164 ORTIZ, Gaspar Ariño. La Regulación Económica: Teoría y prática de la regulación para la competencia. Buenos Aires: Ábaco, 1996, p. 51.

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por sua própria definição, de forte conotação abstencionista, tal caráter não impediu o surgimento de um “semblante inicial” do serviço público, por duas razões principais.

De um lado, por conta das necessidades decorrentes da Revolução Industrial, o Estado Liberal viu-se na necessidade de instalar as infraestruturas essenciais ao desenvolvimento da economia, à época inexistentes ou em elevado grau de precariedade. Destarte, para alavancar o Capitalismo industrial, teve o Estado de assumir a responsabilidade de criar ou desenvolver165 as infraestruturas econômicas necessárias ao bom andamento das etapas da cadeia econômica, em destaque as redes de transporte ferroviário, de gás e de eletricidade. De outra banda, não era conveniente à ideologia do Estado Liberal permitir que entes intermédios permanecessem fortalecidos – dentre eles a Igreja Católica, dotada de extraordinário poder no medievo. Daí porque o novel modelo estatal teve também de assumir a prestação de serviços em substituição àqueles prestados sobretudo pela Igreja.

Foi assim, então, que surgiram, ainda no Estado Liberal, as primeiras atividades qualificáveis como “serviços públicos”,166 de responsabilidade do Estado: os serviços infraestruturais - ferrovias, eletricidade, gás - para alavancar o Capitalismo, e os serviços sociais para suplantar a Igreja Católica – notadamente educação e saúde.

No século XX, a eclosão de duas grandes guerras mundiais consecutivas e a forte crise econômica representada pelo crack da bolsa de Nova Iorque de 1929 trouxeram novas alterações na atuação estatal. A destruição provocada pelas guerras e a situação de penúria da população fez com que o paradigma liberal de Estado fosse duramente combatido. De mero guardião das liberdades, passou a ser considerado responsável pela reconstrução econômica e social da Nação, garantidor de novos direitos aos cidadãos e, principalmente, necessário prestador de serviços de cariz econômico e social.167

O Estado agigantou-se e, com ele, a Administração Pública passou a ter de funcionar cada vez mais eficazmente na persecução de seus resultados. Logo se notou que o Estado Liberal de premissa abstencionista não daria conta do pesado fardo da reestruturação econômica e social. Economicamente, via-se ne-cessário promover a intervenção estatal direta, de modo a equilibrar as finanças nacionais prejudicadas pelos gastos com as guerras; socialmente, era imperioso

165 Responsabilidade esta que certamente não se confunde com o dever de prestar diretamente tais atividades, conforme se verá a seguir. 166 Ainda que, logo quando de seu surgimento, não detivessem tal definição, que foi adquirida somente após as teorizações da Escola do Serviço Público francesa, capitaneada por Duguit e Jèze, em fins do séc. XIX e início do séc. XX.167 Sobre o tema, cf. BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. São Paulo: Malheiros, 2004.

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permitir a intervenção estatal para garantir a promoção do bem-estar a uma população assolada pelas batalhas. O estado de alta degradação econômica e social tornou fundamental a superação da doutrina liberal, rumo a um Estado que equilibrasse a equação econômica e prestasse os serviços necessários à po-pulação carente.168

Surge, assim, o Estado do Bem-Estar Social, consagrado nas Cartas Constitucionais do pós-guerra, interventor na economia e garantidor de direitos à população, necessário prestador de serviços públicos os quais passaram a ser encarados como dever seu. No campo social, é o apogeu da noção de Serviço Público preconizada por Leon Duguit;169 no campo econômico, foi a prova dos pressentimentos e soluções que anos antes haviam sido expostos por John Keynes. 170 No novo Estado Social, várias atividades foram incluídas no “catálogo dos serviços públicos”, porquanto se alterou a própria finalidade da sua prestação: o Estado Social presta serviços públicos para garantir direitos fundamentais a seus cidadãos. A intervenção estatal na economia não parou de se alargar até a década de 80 do séc. XX, formando um imenso setor público social (a que correspondem os serviços públicos sociais) e econômico (a que correspondem os serviços públicos econômicos). É por isso que alguns designam o Estado desse período por Estado de Serviço Público.171

Mais recentemente, nas décadas de 80 e 90 do séc. XX, houve novas – e profundas – alterações no quadro evolutivo do Estado, sobretudo por força do processo de liberalização dos serviços públicos. O Estado Social entra em crise por vários fatores (aumento do déficit público, ineficiência da gestão, etc.). Na Comunidade Europeia (CE), a política de liberalização da CE implicou o desmantelamento de monopólios públicos e a adoção de medidas para eliminação de todo e qualquer condicionamento administrativo que impedisse ou dificultasse a livre iniciativa e concorrência.172 A privatização estendeu-se para vários setores básicos, antes explorados monopolisticamente pelo

168 Excelente histórico evolutivo da intervenção estatal na economia pode ser extraído de LAUBADÈRE, André de. Direito Público Económico. Coimbra: Almedina, 1985, p. 35 e seguintes. 169 Para aprofundamentos, vide: JUSTEN, Monica Spezia. A noção de serviço público no direito europeu. São Paulo: Dialética, 2003, p. 17-76. 170 KEYNES, John Maynard. The end of Laissez-Faire. Londres: Hogarth Press, 1926. 171 GONÇALVES, Pedro; MARTINS, Licínio Lopes. Os Serviços Públicos Econômicos e a Concessão no Estado Regulador. In: MOREIRA, Vital (org.). Estudos de Regulação Pública, vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 180.172 Tratou-se, portanto, não apenas de uma privatização de gestão ou de forma organizatória da Administração, mas sim de uma verdadeira privatização de atividades públicas, que foram deslocadas do Estado para o Mercado (privatização material). Aprofundar em: OTERO, Paulo. Coordenadas Jurídicas da Privatização da Administração Pública. In Os Caminhos da Privatização da Administração Pública. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 31-57.

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Estado. A partir de então, iniciou-se em diversos países um amplo processo de desestatização, descentralização e desconcentração, de modo a retirar do Estado tantos fardos quantos fossem possíveis, a fim de manter sob sua responsabilidade somente as atividades realmente essenciais.

O novo formato estatal, denominado Estado Subsidiário ou Estado Regulador,173 espalha-se pelo mundo a partir da década de 90 do século passado, quando vários países tentam implementá-lo para superar suas crises internas. Considerando, sobretudo, que as tarefas privatizadas continuam a ser necessidades básicas essenciais aos cidadãos, exige-se uma disciplina jurídica pública dessas atividades, uma regulação pública específica a ser feita pelo Estado, que assume então, não mais uma responsabilidade de prestação ou de execução direta, e sim uma nova responsabilidade, a “responsabilidade de regulação”, direcionada a disciplinar o modo como os agentes privados vão prestar os serviços. Pedro GONÇALVES afirma, nesse senso, que “[...] do mesmo modo que, ao longo de todo o século XX e por toda a Europa, a dependência da rede explicou e justificou o monopólio público, agora aquela mesma circunstância explica, justifica e reclama uma regulação pública; regulação que visa a garantia da abertura da rede a terceiros”.174

A regulação traduz, assim, a “pedra de toque do novo modelo de inter-venção pública”,175 sendo o método de atuação principal desse “novo Estado”, que deixa de prestar diretamente serviços públicos à população, mantendo-se na posição de regulador e fiscalizador da prestação cometida aos particulares. Esse novo modelo, de Estado Regulador, não representa assim a renúncia do Estado face às atividades correspondentes aos serviços públicos, agora privadas por força da privatização; ao contrário: a lógica do mercado é temperada pela presença do Estado na posição de supervisor e fiscalizador do cumprimento

173 Para aprofundar, vide: MOREIRA, Vital. Auto-Regulação Profissional e Administração Pública. Coimbra: Almedina, 1997; GONÇALVES, Pedro. Regulação, Electricidade e Telecomunicações: estudos de Direito Administrativo da Regulação. Coimbra: Coimbra Editora, 2008; SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da Atividade Econômica: princípios e fundamentos jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2008; POSNER, Richard. A. Theories of economic regulation. In: The Bell Journal of economics and management science, v. 5, n. 2, 1974; LESSA MATTOS, Paulo Todescan. O Novo Estado Regulador no Brasil: eficiência e legitimidade. São Paulo: Singular, 2006. 174 GONÇALVES, Pedro. As concessões no sector elétrico. Temas de Direito da Energia, Coimbra, n. 3, 2008, p. 191. 175 GONÇALVES, Pedro. Regulação, Electricidade e Telecomunicações: estudos de Direito Administrativo da Regulação. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 12. Prossegue o autor, adiante na mesma obra: “Em traços gerais, essa intervenção consiste, por um lado, na definição das condições (normativas) de funcionamento das actividades reguladas, no cumprimento de uma função de ‘orientação de sistema’, e, por outro lado, no controlo da aplicação e observância de tais condições e na punição das infracções não criminais dos regulados” (Ibidem, p. 15).

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de requisitos, garantidor inclusive do cumprimento, pelo próprio mercado, de fins de natureza social.176 Pode-se dizer, com Caio TÁCITO, que o “pêndulo do serviço público”177 entrou, a partir da década de 70 do séc. XX, numa queda vertiginosa à procura de outro “hemisfério”.178

1.2 INFRAESTRUTURA E MODELAGEM CONCESSÓRIA: EVOLUÇÃO DAS CON-CESSÕES LIBERAIS ÀS “NOVAS CONCESSÕES”

Antes de mais nada, deve-se delimitar um importante conceito reiterada-mente utilizado no presente trabalho, a partir do qual se qualificam as atividades econômicas (bens e serviços) que são alvo de análise: o conceito de infraestrutura.

Para os fins aqui pretendidos, seria inútil a adoção de um conceito econô-mico de infraestrutura, posto que por demais amplo. Perfilando os ensinamen-tos de Egon Bockmann MOREIRA, entende-se razoável definir juridicamente infraestrutura como:

[...] a base física sobre a qual os diversos setores econômicos irão se de-senvolver e se relacionar entre si. A todo processo de crescimento econômico

176 A regulação social é, no regime europeu, alcançada mediante imposição de obrigações de serviço público e de serviço universal. Nesse sentido, vide: GONÇALVES, Pedro; MARTINS, Licínio Lopes. Os Serviços Públicos Econômicos e a Concessão no Estado Regulador. In: MOREIRA, Vital (org.). Estudos de Regulação Pública, vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 197-224.177 TÁCITO, Caio. O retorno do pêndulo: serviço público e empresa privada. In: TÁCITO, Caio. Temas de Direito Público, v. 1. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 721-733. 178 De acordo com Pedro GONÇALVES, a atual crise do serviço público é, sobretudo, uma crise do serviço público em sentido subjetivo, enquanto tarefa ou atividade econômica de responsabilidade direta do Estado. A despeito disso, permanece a ideia de que certas atividades econômicas, por sua importância aos cidadãos, devem ser sujeitas a um regime jurídico especial (“leis do serviço público”): a liberalização pode então ser considerada um ataque à noção subjetiva de serviço público, mas não à sua noção material e nem formal, também configuradoras do conceito clássico do instituto (GONÇALVES, Pedro; MARTINS, Licínio Lopes. Os Serviços Públicos Econômicos e a Concessão no Estado Regulador. In: MOREIRA, Vital (org.). Estudos de Regulação Pública, vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 186). É justamente essa permanência que leva alguns a afirmarem que o conceito de serviço público sobrevive, não mais para identificar tarefas públicas, mas sim atividades econômicas de interesse público que, exercidas pelo Estado ou privados, devem sujeitar-se a um regime específico em razão de sua importância para a coletividade (trata-se de um relevo quase exclusivo à dimensão funcional do conceito, portanto). Nesse passo, Dinorá Grotti reflete que o processo de liberalização e privatização dos serviços públicos implicou uma nova semântica ao conceito clássico do instituto, assinalando sua dimensão material e formal, sendo que foram cruciais nesse desenvolvimento a inserção das noções de serviço de interesse geral, serviço de interesse econômico geral, de serviço universal e de obrigações de serviço público, no ordenamento europeu. Daí a autora afirmar que o serviço universal se apresenta como a opção atualizada e objetiva do tradicional serviço público, evitando a ligação automática do serviço ao poder público em prol da liberdade de iniciativa, e mantendo o critério objetivo/material (GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O Serviço Público e a Constituição Brasileira de 1988. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 80-81).

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subjaz um conjunto de bens e serviços de base, o qual permite que os operado-res promovam as suas atividades e possam atingir os respectivos objetivos. É, enfim, o suporte indispensável à fluidez dos demais setores econômicos.179

De sua parte, Thiago MARRARA prefere falar em infraestruturas, no plural, dentre as quais mereceriam destaque a infraestrutura energética, infraestrutura ambiental, infraestrutura logística e infraestrutura social, sendo que essas duas últimas – mais afetadas ao tema Copa do Mundo - compreendem, respectivamente, o aparato destinado à prestação dos serviços de transporte (rodovias, mobilidade, aeroportos, etc.) e serviços públicos sociais ou de interesse público (como serviços culturais, de lazer, etc.). Para o autor, todavia, “toda e qualquer grande infraestrutura sempre assume inegável papel social, uma vez que, por seus efeitos diretos ou indiretos, condiciona o exercício de direitos fundamentais básicos pelos cidadãos.”180

Destarte, entende-se por infraestrutura o conjunto de bens e instalações físicas que propiciam o desenvolvimento de atividades econômicas e/ou a pres-tação de atividades qualificadas como serviços públicos.

Consoante acima visto, a necessidade de instalação de infraestruturas para alavancar o Capitalismo Industrial foi um marco crucial para a modifica-ção da atuação do próprio Estado Liberal, de matriz absenteísta. Na segunda metade do séc. XIX, por conta da revolução industrial e das crescentes exi-gências e necessidades que pressupunham uma intervenção pública diversa da mera “polícia”, e considerando que a construção e manutenção das grandes infraestruturas pressupõem uma planificação econômica nacional, o Estado – ainda que imbuído numa filosofia liberal – passou a ter de intervir na economia, assumindo responsabilidades em atividades de natureza econômica (sobretudo as grandes indústrias – transporte, eletricidade, gás, telefonia, etc.).

A bem da verdade é lícito afirmar que o setor das infraestruturas (compo-nente dos assim chamados “serviços públicos econômicos”) é o terreno por ex-celência da aplicação do conjunto de técnicas de gestão pública que constituem o cerne do presente artigo: as concessões.

Seguindo os ensinamentos de Pedro GONÇALVES e Licínio LOPES, adotaremos para os fins aqui pretendidos a definição genérica de concessão ad-ministrativa, vista como “ato ou negócio jurídico (ato ou contrato administrati-vo) através do qual uma entidade pública transfere para outra entidade o direito à exploração de atividades públicas ou procede à criação, na esfera jurídica de

179 MOREIRA, Egon Bockmann. A experiência das licitações para obras de infraestrutura e anova lei das parcerias público-privadas. In: MOREIRA, Egon Bockmann; CUÉLLAR, Leila. Estudos de Direito Econômico, volume 2. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 53. 180 MARRARA, Thiago. Regulação sustentável de infraestruturas. Revista Brasileira de Infraestrutura - RBINF, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, p. 95-120, jan./jun. 2012. p. 96-98.

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outra entidade, de direitos relativos à utilização de bens públicos”.181 Nessa aproximação, portanto, a concessão pode atribuir tanto o direito de exercer uma atividade pública (que, de acordo com Vernalha GUIMARÃES e Vera MON-TEIRO, pode constituir um serviço público ou não)182 como de utilizar um bem público, de sorte que a clássica concessão de serviço público é apenas uma dentre as modalidades concessórias.

Como se passa a expor em breves linhas, as concessões são classicamen-te indissociáveis da prestação de serviços públicos – notadamente no campo das atividades de infraestrutura.

A despeito de alguns remontarem à Grécia Antiga a origem do desem-penho de funções públicas por particulares,183 o marco inicial da história das concessões de serviço público – enquanto técnica, não enquanto gênero contra-tual184 – é o liberalismo de meados do séc. XIX, porquanto “até o final do séc. XVIII, [...] a concessão relacionava-se estritamente a conceitos de privilégio”, sendo nada mais que uma “via de proteção do soberano a seus apaniguados”.185

Viu-se acima que, no liberalismo, a despeito da postura absenteísta que em regra caracterizava a atuação estatal, os ventos da Revolução Industrial exigiram do Estado certa inserção na economia, ao ponto em que o obrigou a instalar as infraestruturas essenciais ao desenvolvimento do capitalismo em ascensão. Tal responsabilidade, no entanto, não pode ser confundida com o dever de execução/prestação direta das obras e atividades infraestruturais. Nesse diapasão, a figura da concessão surgiu como instrumento de destaque, estratégica quer sob o ponto de vista político-ideológico (conservação do princípio da abstenção estatal), quer econômico-financeiro (construção de grandes infraestruturas e serviços sem violentar as regras do mercado e sem custos para o Erário).186 Lançando mão das concessões, ao mesmo tempo o Estado satisfazia as necessidades econômicas criadas pela Revolução Industrial

181 GONÇALVES, Pedro; MARTINS, Licínio Lopes. Os Serviços Públicos Econômicos e a Concessão no Estado Regulador. In: MOREIRA, Vital (org.). Estudos de Regulação Pública, vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 226. A noção de concessão enquanto “gênero” é adotada, em solo nacional, dentre outros, por: GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Concessão de Serviço Público. São Paulo: Saraiva, 2012; MONTEIRO, Vera. Concessão. São Paulo: Malheiros, 2010. 182 GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Concessão de Serviço Público. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 135-138; MONTEIRO, Vera. Concessão. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 156-158. 183 Cf.: GONÇALVES, Pedro. A Concessão de Serviços Públicos. Coimbra: Almedina, 1999, p. 45. 184 MONTEIRO, Vera. Concessão. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 17.185 JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 51. Igual orientação pode ser extraída de: MONTEIRO, Vera. Concessão. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 18. 186 GROTTI, Dinorá A. Musetti. A experiência brasileira nas concessões de serviço público. In: SUNDFELD, Carlos Ari (coord.). Parcerias Público-Privadas. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 184.

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e preservava a autonomia do mercado.187 Daí porque o Estado Liberal lança mão amplamente da figura da concessão.188

Nas concessões do liberalismo (chamadas de “concessões clássicas”), todas as responsabilidades corriam a cargo do concessionário, que agia em nome próprio, por sua conta e risco, assumindo totalmente os ganhos e os riscos de perda da concessão: o concessionário no liberalismo era remunerado única e exclusivamente pelas tarifas cobradas dos usuários como contrapartida direta do serviço prestado, não havendo qualquer forma de solidariedade por parte do poder concedente – daí porque somente as atividades de cunho uti singuli (ou seja, que proporcionassem utilidades individuais) podiam ser objeto de concessão, eis que somente estas permitem uma quantificação tarifária individual.189

Como também já se analisou, no pós-guerra a situação de alta degradação econômica e social fez com que o Estado – agora de Bem-Estar Social e não mais Liberal – passasse a assumir uma intervenção direta nas atividades econômicas e sociais: há uma profunda transformação no seu papel, na medida em que o Estado não é apenas titular das tarefas, é também seu executor/prestador direto. Guiado por essa filosofia, o Estado lançou mão de amplos programas de nacionalização dos setores básicos (infraestrututais) da economia, criando-se um enorme “setor empresarial público” (no Brasil, com as autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista) para absorver atividades e empresas privadas.190 Essa reserva pública sobre certas atividades econômicas fez com que os privados somente pudessem nelas atuar com base em concessão administrativa; a despeito disso, a utilização da concessão para privados no período entra em franco declínio, preferindo o Estado gerir diretamente os serviços públicos (quer pela Administração Direta, quer principalmente pela Indireta, com destaque para as Empresas Públicas, a quem o Estado concedia a exploração/gestão – normalmente monopolística – das atividades econômicas e serviços públicos).

Essa novel formatação estatal certamente trouxe alterações à concepção clássica liberal de concessão. A nacionalização de empresas e atividades transformou o Estado em produtor de bens e serviços, mas nem por isso houve um abandono das concessões; pelo contrário: elas foram convertidas em instrumento essencial de organização e gestão dos serviços infraestruturais (diversas empresas públicas, prestadoras por excelência dos serviços públicos

187 Bom resumo do período pode ser encontrado em: GONÇALVES, Pedro; MARTINS, Licínio Lopes. Os Serviços Públicos Econômicos e a Concessão no Estado Regulador. In: MOREIRA, Vital (org.). Estudos de Regulação Pública, vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 234-240.188 GONÇALVES, Pedro. A Concessão de Serviços Públicos. Coimbra: Almedina, 1999, p. 102.189 GONÇALVES, Pedro. A Concessão de Serviços Públicos. Coimbra: Almedina, 1999. 190 MONTEIRO, Vera. Concessão. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 24.

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infraestruturais nesse novo Estado, não eram senão concessionárias191 – ainda que impróprias).192 A maleabilidade das concessões no Estado Social não para por aí: a técnica concessória foi estendida para a exploração e gestão de atividades que não proporcionam utilidades individualizadas (uti universii), o que fez alterar radicalmente o modo tradicional de remuneração do concessionário e surgirem modos de remuneração variados – em alguns casos estabelecendo-se um sistema baseado na solidariedade econômico-financeira entre concedente e concessionário (compartilhamento de riscos).193

Deste breve escorço parece ter ficado claro que a técnica concessória foi historicamente indissociável da construção e gestão das grandes infraestruturas públicas.194 Ora, as primeiras concessões liberais tiveram por objeto justamente a construção de obras públicas de grande vulto (ferrovias,195 redes de gás, sistemas de iluminação pública).196 Ao longo do séc. XIX e no início do séc. XX, como o Estado não possuía estrutura administrativa, capitais, nem conhecimento técnico, a solução voltou-se para o recurso aos particulares, que construíam a obra, montavam o serviço (transportes, eletricidade, gás, etc.) e o exploravam, tudo com capitais próprios e “por sua conta e risco”. A técnica concessória foi inicialmente utilizada, então, na modalidade de concessão de obra pública: o concessionário tinha de investir nas obras necessárias à instalação das infraestruturas, ainda inexistentes, e à montagem do serviço a partir delas.

No entanto, obviamente tinha de haver uma contrapartida remuneratória ao concessionário para amortização do capital investido: daí a outorga ao concessionário também do direito de explorar as obras durante um período, o que envolvia a gestão da própria infraestrutura recém-construída e do serviço

191 A exemplo das clássicas distribuidoras locais de energia elétrica e de água (no Paraná, COPEL e SANEPAR). 192 Sobre as concessões impróprias, cf.: JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Dialética, 2003, p. 117-129.193 GONÇALVES, Pedro; MARTINS, Licínio Lopes. Os Serviços Públicos Econômicos e a Concessão no Estado Regulador. In: MOREIRA, Vital (org.). Estudos de Regulação Pública, vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 237. 194 A afirmação foi extraída de: GONÇALVES, Pedro; MARTINS, Licínio Lopes. Os Serviços Públicos Econômicos e a Concessão no Estado Regulador. In: MOREIRA, Vital (org.). Estudos de Regulação Pública, vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 238.195 Jorge Luis Salomoni destaca a posição de destaque ocupada pelo transporte ferroviário na evolução jurisprudencial argentina acerca da compreensão da noção de serviço público – e, por consequência, da concessão (SALOMONI, Jorge L. Teoria General de los Servicios Públicos. Buenos Aires: Ad-hoc, 1999, p. 125-193). 196 Não foi diferente no Brasil, como bem notou Caio Tácito: “a criação e expansão da rede de estradas de ferro, de portos, de energia elétrica, de serviços de transporte coletivo se realizaram satisfatoriamente mediante a concessão destes serviços” (TÁCITO, Caio. Temas de Direito Público, v. 1. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 754). No mesmo passo: JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 52.

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a partir dela prestado. Historicamente, foi a autonomização da prestação do serviço com relação à construção da infraestrutura que tornou possível o surgimento das concessões de serviços públicos, pura e simplesmente.197

No final do séc. XX, com a retirada do Estado da prestação direta dos serviços públicos, promoveu-se consequentemente a derrocada dos clássicos monopólios estatais, principalmente nos setores infraestruturais (exceto nos segmentos onde não há monopólio natural, por óbvio), e a política regulató-ria estatal passou a privilegiar a abertura setorial à concorrência privada,198 regulando-a de modo a garantir a observância do regime jurídico mais ade-quado para a prestação das atividades – notadamente aquelas então qualifica-

197 A conclusão é lógica: como no início inexistiam as infraestruturas básicas para prestação dos serviços (estradas de ferro, postes de iluminação, etc.), a solução de recorrer aos privados mediante concessão obrigava-os a, primeiro, construir a infraestrutura (concessão de obra pública) para, a partir daí, instalar e prestar o serviço em questão (transporte rodoviário, manutenção dos lampiões). Após um tempo, amortizado esse capital inicialmente investido, o Estado (titular da infraestrutura e do serviço), poderia optar entre manter pessoalmente a infraestrutura e prestar o serviço, ou concedê-los a privados. Nesta última hipótese, como a infraestrutura (base física) e o serviço a partir dela prestado são dissociáveis, o Estado pode conceder a exploração dos bens públicos (infraestrutura) a um privado, e conceder a prestação do serviço a outro. Daí porque se afirmou que a autonomização da construção da obra pública com relação ao serviço a partir dela prestado é que permitiu o surgimento das concessões de serviço público, pura e simplesmente. Note-se, então, que há três momentos autônomos no processo: a construção e instalação das infraestruturas (concessão de obra pública), a sua gestão (concessão de exploração do domínio público) e a gestão do serviço prestado a partir delas (concessão de serviço público). Originariamente, tais momentos estavam funcional e juridicamente unidos numa só concessão (a concessão de obra pública), mas com o tempo houve autonomização. Nesse sentido, cf.: GONÇALVES, Pedro; MARTINS, Licínio Lopes. Os Serviços Públicos Econômicos e a Concessão no Estado Regulador. In: MOREIRA, Vital (org.). Estudos de Regulação Pública, vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 238-240. No mesmo sentido, aduz Vera Monteiro: “A obra pública, no curso do século XIX, era o objeto predominante nos contratos de concessão. Ela aparecia associada à construção de grandes infraestruturas públicas [...]. E é a partir da concessão de obra pública que surge a concessão de serviço público (MONTEIRO, Vera. Concessão. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 21). 198 Nesse caminho, afirma Dinorá Grotti: “O desenvolvimento tecnológico produziu inovações no âmbito econômico, em especial no tocante à teoria do monopólio natural, e antigos limites naturais à ampla concorrência foram sendo superados” (GROTTI, Dinorá A. Musetti. A experiência brasileira nas concessões de serviço público. In: SUNDFELD, Carlos Ari (coord.). Parcerias Público-Privadas. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 191). No mesmo passo, confira-se a monografia específica sobre a regulação dos setores infraestruturais: FRÓES, Fernando. Infra-Estrutura e Serviços Públicos: princípios da regulação geral e econômica. In: CARDOZO, José Eduardo Martins; et. al. (orgs.). Direito Administrativo Econômico, v. I. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 509-640. De igual sorte, cf., sobre o tema: MARQUES NETO, Floriano P. de Azevedo. A Nova Regulação dos Serviços Públicos. Revista de Direito Administrativo, n. 228, Rio de Janeiro, abr./mai./jun. 2002. p. 13-29; ARAGÃO, Alexandre Santos de. Serviços Públicos e Concorrência. Revista de Direito Público da Economia, Belo Horizonte, ano 1, n. 2, abr./jun. 2003, p. 59-123.

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das como serviços públicos, que, portanto, denotam amplo interesse público em sua satisfação. Nesse amplo processo de privatizações e liberalizações dos tradicionais serviços públicos infraestruturais, a concessão de serviço público cedeu certo espaço para o surgimento de novos tipos de ajuste decorrentes do consenso,199 bem como de novas figuras habilitantes do exercício, por pri-vados, de atividades relacionadas ao setor de infraestrutura: em destaque, a (polêmica) figura da autorização.200

Com a autonomização entre (a) exploração/gestão da infraestrutura de suporte do serviço (a rede) e (b) exploração dos serviços por ela suportados, e diante da nova lógica de livre acesso às redes,201 aceita-se a existência de exclusividade apenas onde não for viável sua multiplicação (monopólio natural) e, por conseguinte, o objeto primordial de concessão no novo cenário é a gestão da rede (monopólio), mas não a gestão do serviço por ela proporcionado – daí o deslocamento da concessão, antes de serviço público, para a gestão de infraestruturas (redes), na modalidade de concessão de exploração do domínio público. De resto, no que concerne ao serviço prestado a partir da rede, via de regra no Brasil a concessão se presta apenas a habilitar apenas um dos prestadores do serviço (o “prestador histórico”), sendo que os demais operam no setor por meio de autorizações.202

A concessão de serviço público subsiste nos casos em que se associar o serviço à prévia instalação da infraestrutura necessária para prestá-lo (concessão de serviço público precedida de obra pública), tal como ocorria nas concessões liberais clássicas – com a diferença de que hoje, com a autonomização das fases,

199 GROTTI, Dinorá A. Musetti. A experiência brasileira nas concessões de serviço público. In: SUNDFELD, Carlos Ari (coord.). Parcerias Público-Privadas. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 187.200 Sobre a configuração atual das autorizações, vide: MOREIRA, Egon Bockmann. Direito das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 58-70; JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Dialética, 2003, p. 44-47 e 129-131; SILVA, Almiro do Couto e. Privatização no Brasil e o novo exercício de funções públicas por particulares: serviço público “à brasileira”? Revista de Direito Administrativo 230, p. 45-74; MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações nos Serviços Públicos. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, n.° 1, fevereiro de 2005. Disponível em: <www.direitodoestado.com.br.>. Acesso em: 4 de novembro de 2012; GONÇALVES, Pedro; MARTINS, Licínio Lopes. Os Serviços Públicos Econômicos e a Concessão no Estado Regulador. In: MOREIRA, Vital (org.). Estudos de Regulação Pública, vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 303-313; GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O Serviço Público e a Constituição Brasileira de 1988. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 116-129 e 162-168; MONTEIRO, Vera. Concessão. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 78-97. 201 Para a qual contribuiu em muito a afamada teoria das Essential Facilities. Para aprofundar: NESTER, Alexandre Wagner. Regulação e Concorrência: Compartilhamento de infra-estruturas e redes. São Paulo: Dialética, 2006. 202 O exemplo típico, no Brasil, é o do setor de telecomunicações. Aprofundar em: FARACO, Alexandre Ditzel. Regulação e Direito Concorrencial: as Telecomunicações. São Paulo: Paulista, 2003.

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a Administração Pública pode optar entre atribuir ambas as concessões a um mesmo concessionário ou a concessionários diversos. Além das concessões em âmbito infraestrutural, das “indústrias de rede”, também a concessão de obras públicas tem relevada importância para os fins do presente artigo, na medida em que, graças ao modelo de financiamento que lhe está associado – o project finance – tem permitido à Administração Pública brasileira travar parcerias com privados em diversas áreas de interesse para a viabilização da Copa do Mundo.

Essa brutal mudança da formatação estatal ocorrida nas últimas décadas, numa espécie de “retorno do pêndulo” propiciada pelos processos de liberalização e privatização, certamente redimensionou a figura das concessões. O contexto jurídico, tecnológico e econômico contemporâneo clamam por uma nova modelagem das técnicas concessórias, que não mais podem corresponder nem às concessões liberais clássicas, nem às concessões impróprias do welfare state. Como bem notou Marçal JUSTEN FILHO, “não é cabível estender para o presente e o futuro inúmeros pressupostos jurídicos que deram identidade à concessão no passado”, motivo pelo qual “a alusão a um ‘novo’ serviço público conduz, de modo inevitável, também a novidades no âmbito do instituto da concessão”.203 Ainda que o instituto da concessão seja “velho”, seu ressurgimento mais recentemente como o objetivo de privatizar a gestão de bens e serviços públicos traduz novos caracteres.204

Daí porque diversos autores contemporâneos vêm desconstruindo as características “típicas” ou “clássicas” das concessões (notadamente as concessões de serviço público) em busca de um novo modelo, que contemple as hodiernas feições que o instituto vem assumindo.205 A seguir, enfocaremos algumas das notas mais evidentes que caracterizam as atuais concessões, a estrutura do financiamento e a mitigação de riscos, tendo como base a modelagem concessória que talvez exprima com mais pertinência a atual fase do instituto: as Parcerias Público-Privadas, inauguradas no Brasil com a Lei n.º 11.079/2004.

203 JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 57. 204 Dinorá Grotti destaca a ampla tendência à prestação dos serviços públicos em regime concorrencial, ao contrário das concessões liberais (concedidas com exclusividade aos privados) e das concessões do Estado Social (em que vigoravam os monopólios públicos). GROTTI, Dinorá A. Musetti. A experiência brasileira nas concessões de serviço público. In: SUNDFELD, Carlos Ari (coord.). Parcerias Público-Privadas. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 189-190. 205 Para aprofundamentos, ver: JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 57 e seguintes; MONTEIRO, Vera. Concessão. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 152 e seguintes; GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Concessão de Serviço Público. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 17 e seguintes.

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2. FINANCIAMENTO E MITIGAÇÃO DE RISCOS NAS CONCESSÕES EM INFRAES-TRUTURA

2.1 FINANCIAMENTO, REMUNERAÇÃO E GARANTIAS

Pode-se dizer, de uma maneira geral, que dentre as possíveis contribuições da utilização das PPPs para o Brasil, especificamente no que pertine à Copa do Mundo, estão a própria viabilidade do desenvolvimento da infraestrutura, rapidez, eficiência e entrega efetiva do projeto no período acordado; a transferência e gerência do risco do projeto; a construção e infraestrutura da área pública com financiamento, operação, e manutenção; a transferência de habilidades do setor público e privado, de conhecimento e de perícia; a eficiência do projeto e da construção integrando infraestrutura pública com financiamento privado, operação e manutenção; a geração de importantes recursos para propiciar a implementação de importantes projetos com na entrega tempestiva; a competitividade entre empresas e setores, gerando maior capacidade de construir grandes projetos (incluindo divisão dos riscos); o planejamento para a provisão e a entrega de serviços públicos de qualidade com o regime do desempenho satisfatório; a inovação e diversidade na provisão dos serviços públicos; e a utilização efetiva dos recursos estatais em benefício dos usuários de serviços públicos.

Vale ressaltar que a parceria público-privada tende a gerar, ao parceiro público, uma melhoria na qualidade do serviço prestado à coletividade, e ao parceiro privado um lucro que proporciona o “engajamento dos capitais investidos, às suas competências, e à sua tomada de risco”. Por outro lado, um fracasso da parceria tende a gerar para o parceiro público uma degradação na qualidade o serviço e eventualmente custos caso tenha de (re)assumir o serviço, e para o parceiro privado uma baixa remuneração ou mesmo a própria perda dos capitais investidos.206

Fala-se, assim, em três conceitos diferentes: financiamento, garantias e remuneração. Em primeiro lugar, Rafael VALIM reforça a diferenciação entre o financiamento propriamente dito e a remuneração oriunda do objeto concedido. Segundo ele, em que pese se tratarem de realidades intimamente ligadas, a diferença entre as duas figuras é crucial para a compreensão de ambas: o financiamento é, por um lado, a provisão do capital necessário à realização de algum empreendimento, é a própria obtenção de recursos para

206 AOUST, Jean-Marie; BENNET, Craig; FISZELSON, Roger. A análise e a divisão dos riscos, chave para o êxito de uma PPP. In: Financiamento das Infraestruturas e dos Serviços Coletivos: o recurso à parceria público-privada. Os exemplos da experiência francesa no mundo. São Paulo: DAEI (Direção dos Assuntos Econômicos e Internacionais), 2001. p. 61- 128.

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a execução das obras necessárias ao desenvolvimento de uma concessão (seja comum, administrativa ou patrocinada). De outra banda está a remuneração, não menos importante por óbvio, mas que se traduz no conjunto de todas as receitas emergentes daquela concessão, oriundas do Estado, dos usuários ou de atividades paralelas ao objeto da concessão.207

Aliás, como lembra Maria Adelaide de Campos FRANÇA, a forma de remuneração do parceiro privado deve servir propriamente como critério de escolha da modalidade de concessão a ser contratada, já que na hipótese de o projeto revelar-se economicamente autossustentável, independentemente de remuneração direta ou subsidiada pelo Estado, deve-se adotar o regime de concessão comum, e não de parceria público-privada.208

Por fim, vale dizer que o investimento do parceiro privado, necessário à execução da parceria público-privada, em geral, terá como fonte de capitação inicial de recursos os contratos de financiamento com instituições financeiras e fundos de pensão, porém tais contratos, além de passíveis de garantias prestadas pelo parceiro privado, permitem o oferecimento de garantias prestadas pelo próprio parceiro público (vinculação de receitas; instituição ou utilização de fundos especiais previstos em lei; a contratação de seguro-garantia com as companhias seguradoras que não sejam controladas pelo Poder Público; a garantia prestada por organismos internacionais ou instituições financeiras, garantias prestadas por fundo garantidor ou empresa estatal criada para essa finalidade).

As garantias, nesse sentido são dadas aos financiadores do empreendimento, e atuam precipuamente como mecanismo de mitigação de riscos inerentes ao projeto. Visam, conforme sintetiza a autora supracitada, imprimir eficiência, economicidade, e qualidade na prestação de serviços públicos e na execução de obras de infraestrutura; atuar como fator de atração do setor privado à contratação sob o regime de parceria público-privada; e atuar como fator de atração de diversos agentes financeiros e investidores, tanto do setor privado como do setor público, com vistas a garantir o cumprimento das obrigações assumidas pelas partes.209

Por outro lado, como alertam Luiz BRANDÃO e Eduardo SARAIVA, a concessão indiscriminada de garantias contratuais pode onerar em demasia o Estado, pois ao oferecer essas garantias o governo está criando um passivo e

207 VALIM, Rafael. Notas sobre o financiamento e a remuneração de concessões comuns e de parcerias público-privadas. Revista Brasileira de Infraestrutura - RBINF, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, p. 121-134, jan./jun. 2012. p. 122-123.208 FRANÇA, Maria Adelaide de Campos. Parcerias público-privadas: repartição objetiva de riscos. Tese (Doutorado) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011, p. 37.209 FRANÇA, Maria Adelaide de Campos . Parcerias público-privadas: repartição objetiva de riscos. Tese (Doutorado) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011, p. 39.

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uma responsabilidade potencial para o futuro. Embora não produza impacto no caixa do governo no momento presente, esse compromisso pode significar um pesado ônus para as gerações futuras.210

Claro que cada projeto, e a respectiva potencial parceria, deve ser analisada em separado, com suas peculiaridades. Ou seja, a viabilidade e os riscos envolvidos tornam cada projeto distinto do outro: cada qual com sua forma própria de financiamento, com suas garantias e indicadores de desempenho peculiares, e forma própria de remuneração.

2.2 PPP, PROJECT FINANCE E MITIGAÇÃO DE RISCOS

Como se sabe, com o advento da regulamentação das parcerias público-privadas no direito brasileiro, surge uma nova possibilidade de engenharia contratual: a alocação dos riscos feita de maneira prévia, no próprio contrato administrativo. Por certo, não há como se prever todos os riscos aos quais se sujeitarão os contratantes; todavia, aqueles que podem ser previstos devem ser bem analisados e então previamente repartidos, como ocorre, por exemplo, nas chamadas matrizes de riscos, anexadas a alguns contratos.

Enfim, a mitigação de riscos ante o sistema de garantias previsto na Lei das PPPs é um “acréscimo ao que já se tinha de avanço ao modelo francês em termos de seu compartilhamento na modalidade tradicional de concessões públicas.”211

Por outro lado, em que pese o presente trabalho se voltar com maior atenção às parcerias público-privadas, o questionamento há como se aplicar, às concessões comuns (aos contratos administrativos de uma maneira geral) a lógica da repartição objetiva de riscos inaugurada pela Lei de PPPs? pa-rece ter duas respostas aceitáveis. Em primeiro lugar, pode-se responder afir-mativamente. De fato, há espaço no ordenamento jurídico pátrio para que a partilha contratual de riscos seja realizada também no âmbito das concessões comuns. Esse espaço para autorregulação em matéria de alocação de riscos, ordinário e extraordinário, não encontra óbice nem no texto constitucional, nem na legislação infraconstitucional.212 Em segundo lugar, e uma resposta que se dá com muito mais segurança, deixa-se de lado o debate sobre a aplicação da regra explícita de repartição contratual de riscos (art. 4º, VI e art. 5º, III da Lei

210 BRANDAO, Luiz; SARAIVA, Eduardo. Risco privado em infra-estrutura pública: uma análise quantitativa de risco como ferramenta de modelagem de contratos. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 41, n. 6, p. 1035-1067, dez./2007, p. 1044. 211 CALDAS, Roberto. Parcerias público-privadas e suas garantias inovadoras nos contratos administrativos e concessões de serviços públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 240-241.212 GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Concessão de serviço público. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 255-256.

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nº 11.079/04) às concessões comuns, para se afirmar que hão de ser buscados critérios que possam ser utilizados pela Administração para que se tenha uma alocação e uma gestão eficiente dos riscos.

Feitas essas brevíssimas considerações conceituais, retoma-se o tema do financiamento dos empreendimentos em infraestrutura, como proposto no início do trabalho. Em tese, o financiamento de uma concessão regida pela Lei nº 11.079/04 pode ser operacionalizado a partir de contratos de mútuo, emissão de debêntures pela sociedade de propósito específico, ou até mesmo mediante a aquisição de quotas da própria SPE.213 Todavia, uma figura específica merece atenção redobrada.

Ao lado dessas possibilidades, ganha força a utilização do instrumento do project finance, uma espécie de financiamento de uma unidade econômica com fim específico em que o investidor tem acesso aos fluxos de caixa do empreendimento e em que os ganhos dessa unidade econômica geram fontes de recursos para repagamento de seus empréstimos. Uma ideia que soa complexa, haja vista ser um conjunto de técnicas, conforme explica Egon Bockmann MOREIRA:

Por meio da combinação estratégica de técnicas contratuais e de engenharia financeira, que contemplam a criação de pessoa específica (Sociedade de Propósito Específico – SPE) simultaneamente à implementação de projeto de investimento cuja receita assegurará o pagamento do débito, quem recebe a provisão do capital não é o controlador ou o concessionário, mas o empreendimento ele mesmo. A empresa concessionária é unicamente criada em vista da sua função: presta-se a servir de instrumento ao aporte de recursos que permitirá a gestão do projeto e a obtenção dos lucros. De usual, os direitos emergentes dos contratos e os créditos operacionais futuros são dados em garantia de operações de mútuo. Essa complexa operação envolve tanto empréstimos de longo prazo e investimento de longa maturação com futuras receitas próprias (e a avaliação de sua rentabilidade) como a criação de múltiplas pessoas jurídicas (e a respectiva divisão de funções) e o aporte de capitais por parte de um grupo de instituições financeiras.214

Ou seja, sustenta o autor se tratar de uma forma de financiamento mais adequada para projetos de longo prazo que exijam maior volume de capital e tenham fluxo de caixa passível de avaliação quanto à sua previsibilidade e consistência. Como a sua garantia é a receita interna ao projeto, não provoca

213 VALIM, Rafael. Notas sobre o financiamento e a remuneração de concessões comuns e de parcerias público-privadas. Revista Brasileira de Infraestrutura - RBINF, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, p. 121-134, jan./jun. 2012, p. 131-132.214 MOREIRA, Egon Bockmann. Concessões de Serviços Públicos e Project Finance. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico (REDAE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº. 23, agosto/setembro/outubro, 2010, p. 2. Disponível na Internet: <http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-23-AGOSTO-2010-EGON-MOREIRA.pdf>. Acesso em: 4 nov. 2012.

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repercussão imediata no balanço dos acionistas da sociedade, caracterizando-se, em suma, pelo fato de ser próprio para projetos segregados, quando há necessidade de uma SPE (assim como nas PPP’s) – o que normalmente se dá em projetos novos – que nasce prévia ou simultaneamente a eles. Caracteriza-se também por exigir investimento de elevado porte com alto índice de débitos em face do respectivo patrimônio líquido, e, sobretudo, por não haver garantias pessoais dos investidores, contando os financiadores com o fluxo de caixa a ser gerado pelo projeto para o pagamento do débito.215

O project finance (ou financiamento de projetos, como simploriamente traduzido por vezes), traduz-se então como estrutura econômica e financeira que não se confunde com as modelagens ordinárias de financiamento, como tentativa de minimizar elementos tidos como inibidores ao investimento privado. Com o seu uso, objetiva-se restringir a responsabilidade dos acionistas empreendedores, ao passo em que se maximiza o seu eventual retorno, a partir da segregação do risco da empreitada entre os acionistas patrocinadores, os financiadores externos, eventuais provedores de serviços terceirizados e fornecedores e, até mesmo, o Estado.

Por essa razão, trata-se de instrumento crucial para a consecução de fins ligados à eficiência de investimentos em infraestrutura, sobretudo em matéria de incremento da atratividade desses projetos. Aliás, no que diz respeito à repartição objetiva de riscos entre as partes, à sustentabilidade financeira e às vantagens socioeconômicas dos projetos de parceria público-privada, deve-se ressaltar que tais diretrizes podem ser concretizadas por intermédio do instrumento denominado project finance.

A atratividade do projeto é, sem dúvida, crucial para se cogitar resultados eficientes. Nesse sentido, a opção por uma parceria público-privada para grandes projetos de infraestrutura, tal como no caso dos participantes de um project finance, interessa a toda uma gama de agentes, entre os quais se destacam as empreiteiras, passando por consultoras, bancos e seguradoras. Entre os credores também podem ser listados os fundos de pensão de patrocinadores públicos ou privados e os fundos de investimento.216

Em verdade, pode-se até identificar em termos gerais certa semelhança entre a estruturação financeira de uma PPP e de um project finance, sobretudo

215 MOREIRA, Egon Bockmann. Concessões de Serviços Públicos e Project Finance. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico (REDAE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº. 23, agosto/setembro/outubro, 2010, p. 3. Disponível na Internet: <http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-23-AGOSTO-2010-EGON-MOREIRA.pdf>. Acesso em: 4 nov. 2012.216 BORGES, Luiz Ferreira Xavier; NEVES, Cesar das. PPP- Parceria Público-Privada: riscos e mitigações em operações estruturadas de investimentos de infraestrutura. Revista do BNDES, v.12, n. 23, p.73-118, 2005, p. 82.

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no que tange ao comprometimento das partes em agir em conjunto e estarem dispostas a montar sofisticadas estruturas para a obtenção das metas pretendidas. São elementos comuns a segregação através de SPEs, a securitização da receita futura em títulos que possam ser negociados, o foco em infraestrutura com as regras das concessões e as técnicas de gestão eficiente e mitigação de risco. Ademais, Luiz Ferreira Xavier BORGES e Cesar das NEVES sustentam que a PPP deve caminhar para formas mais próximas a um project finance, na medida em que a lei permite a divisão com o Estado dos ganhos na repactuação futura de empréstimos e no incremento de receitas próprias do projeto.217

Partindo da premissa que o project finance é a estrutura financeira de um projeto, considerando a aptidão e tolerância do capital em assumir parcela de risco compatível com o retorno desejável, é através dele que serão delimitados parâmetros acerca da sustentabilidade econômica e técnica ao projeto de parceria público-privada. De qualquer sorte, ressalte-se que o art. 4º da Lei 11.074/04 prevê a (auto)sustentabilidade, vez que os recursos gerados pelo empreendimento (oriundos da cobrança de tarifas conjugadas ou não, conforme a modalidade de contrato de PPP, com a contraprestação do parceiro público) deverão ser suficientes para garantir o cumprimento de todas as obrigações contratuais.

Várias são as dificuldades, claro. Luiz Ferreira Xavier BORGES lembra que em grandes investimentos de infraestrutura, os ativos dos projetos sequer servem como garantia pela impossibilidade de se executar represas, linhas de transmissão, leitos rodoviários, ferroviários ou instalações portuárias ou de transporte fluvial. Por isso mesmo, “o setor ressente-se, ainda, dos altos volumes de recursos exigidos para o investimento de construção e pelo comprometimento contábil da assunção de dívidas de longo prazo.”218

Experiência concreta no que pertine ao uso de novas modelagens contratuais nesse contexto de realização da Copa do Mundo é o projeto de modernização do Estádio Magalhães Pinto, o “Mineirão”, localizado em Belo Horizonte. Em estudo específico sobre tal empreendimento, Vinicius MARINS e Rodrigo Reis de OLIVEIRA trazem apontamentos que evidenciam a concretização das tendências anteriormente narradas.

Para os autores, a forma clássica de financiamento de empreendimentos tem sido, em certo modo, abandonada, de modo que os critérios tradicionais para a concessão de crédito, baseados na situação financeira dos acionistas

217 BORGES, Luiz Ferreira Xavier; NEVES, Cesar das. PPP- Parceria Público-Privada: riscos e mitigações em operações estruturadas de investimentos de infraestrutura. Revista do BNDES, v.12, n. 23, p.73-118, 2005, p. 85-87.218 BORGES, Luiz Ferreira Xavier. Mitigação de Risco nas Operações de Project Finance e de Parceria Público-Privada Envolvendo Instituições Financeiras Públicas. Revista MundoPM - Project Management, Rio de Janeiro, v. 7, p. 22-27, 2006, p. 24.

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do projeto e na constituição de garantias reais e pessoais, deixam de ser adotados, em razão do crescente uso do project finance. Dessa maneira, com a compreensão dessa nova “filosofia contratual”, o fluxo de caixa e os ativos do projeto passam a ser considerados fontes primárias de recursos destinada ao pagamento do financiamento, garantindo aos financiadores um retorno adequado sobre o capital investido.219

Especificamente da análise do contrato que concretiza o “Complexo do Mineirão”, extrai-se que o Poder Concedente optou, por exemplo, por determinar que a concessionária grande parte riscos inerentes à atividade às seguradoras, compartilhando os demais a partir das premissas da eficiência alocativa e da busca por melhor resultados. E a correta (leia-se: eficiente) alocação dos riscos eficiente dos riscos tende a se traduzir em incentivo econômico a ambos os parceiros, estimulando a prevenção e a mitigação dos riscos e coibindo “condutas oportunísticas geradas pelo desalinhamento de interesses”. Todavia, frisam os autores:

Os desafios da implantação do modelo de gestão compartilhada vinculam-se, contudo, a uma internalização da cultura pelo Poder Público, o que se relaciona à ideia de distribuição parcimoniosa de riscos e bônus aos agentes envolvidos. É somente a partir de tal premissa que as propaladas vantagens econômicas dos projetos de parceria poderão revelar um benefício efetivo para os cidadãos, propósito último da ação do Poder Público.220

Ora, as PPPs assim como sustentado até o momento - como opção para os modelos tradicionais de contratação da iniciativa privada pelo Poder Público - dirigem-se à mitigação dos riscos envolvidos, de forma a conferir viabilidade e sustentabilidade econômica ao projeto e torná-lo propício a sua execução e financiamento com uso do project finance. E no contexto da Copa do Mundo, o desenvolvimento de projetos demanda um incremento na complexidade da estruturação financeira dos contratos públicos, bem como implica na necessidade de compartilhamento eficiente dos riscos envolvidos. Com isso, a estrutura de riscos e mitigantes a ser desenhada contratualmente servirá de suporte ao financiamento, de modo que seja eficaz para todas as partes envolvidas, o que é obviamente fundamental para o sucesso dos projetos.

Portanto, há razões concretas para se crer que o modelo de financiamento project finance, como instrumento da gestão eficiente de riscos encontrados,

219 MARINS, Vinícius; OLIVEIRA, Rodrigo Reis de. As parcerias público-privadas e o problema da alocação de riscos: uma análise do caso da modernização do estádio “Mineirão” para a Copa do Mundo de 2014. Fórum de Contratação e Gestão Pública, Belo Horizonte, v. 10, n. 111, mar. 2011, p. 1. Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/39100>. Acesso em: 28 abr. 2011.220 MARINS, Vinícius; OLIVEIRA, Rodrigo Reis de. As parcerias público-privadas e o problema da alocação de riscos: uma análise do caso da modernização do estádio “Mineirão” para a Copa do Mundo de 2014. Fórum de Contratação e Gestão Pública, Belo Horizonte, v. 10, n. 111, mar. 2011, p. 12. Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/39100>. Acesso em: 28 abr. 2011.

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possa ser utilizado de com entusiasmo por investidores, de modo a proporcionar condições de desenvolvimento da infraestrutura nacional, viabilizando a construção de estádios, estradas, portos, aeroportos, etc., que são, grosso modo, o legado que a Copa do Mundo há de deixar.

Ou seja, a discussão sobre a parceria público-privada reside praticamente sempre, em maior ou menor medida, nos requisitos para sua viabilização. MOREIRA e CARNEIRO apontam duas condições básicas para sua efetivação: a) o consenso de que novos investimentos em infraestrutura não podem ser mantidos apenas pelo governo ou apenas pelo setor privado; b) a definição pelo Estado dos setores de infraestrutura em que é desejável maior interação com o setor privado.221

Inicia-se no Brasil um processo de reconhecimento das PPPs como umas das soluções para a retomada dos investimentos em infraestrutura, e a Copa do Mundo é um ponto importante desse panorama. Insiste deixar claro que, conforme o faz Bruno Vitali BELLO, que estas parcerias não são simplesmente a terceirização de um serviço, com ou sem a utilização do project finance. São projetos estruturados via contratos complexos, nos quais a provisão dos serviços está diretamente relacionada ao fornecimento dos ativos necessários e ao financiamento do projeto pelo parceiro privado. E mais: não se confundem com a privatização do serviço público uma vez que o Estado continua a exercer um papel primordial na definição e fiscalização dos serviços privados. Adicionalmente, as PFI são direcionadas a projetos que não sejam economicamente viáveis e, portanto, dependam, no todo ou em parte, de remuneração pública para subsistir.222

3. INFRAESTRUTURA E COPA DO MUNDO: ENTRE A “FUGA PARA O DIREITO PRIVADO” E A MODERNIZAÇÃO DA GESTÃO PÚBLICA DE BENS E SERVIÇOS

Não se pode negar que grandes eventos internacionais, como a Copa do Mundo, traduzem-se em uma oportunidade para catalisar investimentos que tenham por objetivo aperfeiçoar a infraestrutura de um país, dentre outros benefícios à sociedade. Trata-se de um período (que não se confunde com apenas os dias do evento) de grande estímulo ao crescimento econômico em razão dos investimentos que mobiliza e dos efeitos nas diversas cadeias produtivas das cidades-sede. E, ao menos em tese, se bem projetadas, as parcerias público-privadas se colocam como uma das mais notáveis fontes alternativas

221 MOREIRA, Terezinha; CARNEIRO, Maria. A parceria público-privada na infra-estrutura econômica. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 1, no 2, p.27-46, dez. 1994.222 BELLO, Bruno Vitali. Modelagem de garantias governamentais em Project Finance e parcerias público-privadas através da aplicação da teoria de opções reais. Dissertação (Mestrado em Administração). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009, p. 35.

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de financiamentos freqüentemente discutidas para o desenvolvimento de projetos de infraestruturas e a provisão de serviços à sociedade, ampliando e/ou resgatando os níveis de investimentos. Grosso modo, já que não há espaço para maiores aprofundamentos teóricos sobre o modelo, pode-se dizer que mediante esta parceria, o setor público “compra” serviços infraestruturais ao invés de implantá-los diretamente, e o setor privado assume as tarefas de conceber, implantar, manter e operar as infraestruturas e os diversos riscos daí decorrentes.223

O que se pretendia com as breves notas aqui tomadas foi problematizar como a opção por PPPs (e o possível uso do project finance) no país pode ser traduzida como uma nova concepção em relação à tradicional política nacional de investimentos, especialmente neste cenário de grandes eventos internacionais (Copa do Mundo), a partir de um novo modelo, uma nova disciplina legislativa, que alteram sensivelmente a forma de atuação do Estado em setores estratégicos e a engenharia financeira dos contratos públicos. Enfim, a defesa de projetos desenvolvidos por PPP tem em seu cerne a demanda por investimentos em infraestrutura e a ausência de recursos públicos disponíveis, que requerem formas alternativas de financiamento, celebradas pela assunção e repartição de riscos pelo setor privado.224 José Virgílio Lopes ENEI sintetiza da seguinte forma:

A PPP, como alternativa aos modelos tradicionais de contratação da iniciativa privada pela administração publica, propõe-se a mitigar os riscos de mercado e de demanda, que são total ou parcialmente assumidos pelo Poder Público, de forma a conferir viabilidade econômica ao projeto e a torná-lo propício à sua execução e financiamento em regime de financiamento de projetos. De outra ótica, pode-se dizer que a PPP nada mais é do que a aplicação das técnicas e filosofia do financiamento de projetos à interação do setor público com o setor privado no âmbito dos projetos de infra-estrutura.225

Não há espaço nesse breve apanhado para se propor o aperfeiçoamento dos marcos regulatórios em relação a contratos públicos e investimentos em infraestrutura. Diante das possibilidades que a legislação brasileira oferece, sem se pretender propor uma solução para o gargalo infraestrutural que o país possui,

223 OLIVEIRA, Selma Regina Martins Oliveira; CAZARINI, Edson Walmir. Avaliação de riscos em projetos de parcerias público-privadas. In: XIII SIMPOI - Simpósio de Administração Logistica e Operações Internacionais, 2010, São Paulo. Redes de Operações Globais: Oportunidades e Desafios, 2010. v. Vol1., p. 1.224 SAVI, Erika Monteiro de Souza; SAVI, Antonio Francisco. A inserção das parcerias público-privadas (PPPS) como alternativa para a retomada do desenvolvimento da infra-estrutura no Brasil. In: XIII Simpósio de Engenharia de Produção, 2006, Bauru. XII SIMPEP 2006, p. 7.225 ENEI, José Virgílio Lopes. Project finance: financiamento com foco em empreendimentos (parcerias público-privadas, leveraged buy-outs e outras figuras afins). São Paulo: Saraiva, 2007, p. 412.

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sustenta-se que PPPs podem alavancar investimentos privados para setores que, sem elas, dependeriam de investimentos públicos vultuosos. Permitem que o Estado utilize seus recursos, que são escassos, em outras áreas. Nessa esteira, os riscos não podem ser analisados de forma dissociada da adequada prestação dos serviços, principalmente no que diz respeito à regularidade, à continuidade e à modicidade das tarifas, alguns dos fatores que impactam os resultados dos negócios. Em última instância, qualquer proposição deve ser capaz de conferir atratividade ao projeto, garantir a remuneração do capital investido, proporcionar segurança a investidores e financiadores e, principalmente, assegurar a melhoria da qualidade dos serviços ofertados aos usuários.226

Numa espécie de “quadro-geral”, há hodiernamente várias aplicações possíveis para a concessão administrativa que podem ser utilizadas pela Administração Pública brasileira para dar cabo à “missão” de sediar a Copa do Mundo de Futebol, em 2014:

(i) concessão de obras públicas, uma espécie de contrato administrativo de empreitada de obras públicas que tem como contrapartida o direito de exploração da obra: essa concessão tem por objeto simultaneamente a execução e a exploração de obras públicas, tratando-se a rigor de uma “dupla concessão” (da construção e da exploração), pelo menos até que haja amortização dos custos – trata-se, conforme aduz Egon Bockmann MOREIRA, de uma “técnica de financiamento de obras estatais por pessoas privadas”;227

(ii) concessão de exploração do domínio público, em que a Administração confere a um particular o direito de exploração ou gestão econômica de um bem público (concessão típica em sede de recursos naturais e, em relevo, das infraestruturas, possível após a autonomização jurídica da gestão e exploração das redes já existentes em relação à prestação do serviço por elas suportado);

(iii) a concessão comum de serviços públicos, regida pela Lei n. 8.989/1995, resultante, também, da autonomização da construção das grandes obras de infraestrutura com relação ao serviço (público) que a partir delas pode ser prestado, pode ser definida como a atribuição/outorga, a um particular, do direito de prestar determinada atividade de titularidade estatal qualificada como serviço público;

(iv) concessão de serviços públicos precedida de obras públicas, sendo em verdade uma união das três modalidades concessórias anteriores: o concessionário constrói a obra pública (infraestrutura), explora a rede e presta o serviço a partir dela;

(v) em destaque absoluto, as parcerias público-privadas, regidas pela lei 11.079/2004, que abarcam todas as modalidades concessórias acima

226 CARNEIRO, Maria Christina Fontainha. Investimentos em Projetos de Infra-Estrutura: Desafios Permanentes. Revista Do BNDES, Rio De Janeiro, v. 13, n. 26, p. 15-34, dez. 2006.227 MOREIRA, Egon Bockmann. Direito das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 25.

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relacionadas, enfeixando-as numa sistemática própria pensada a partir da modernização das técnicas de financiamento de contratos de grande vulto e repercussão econômica (em verdade, como bem notou Egon Bockmann MOREIRA, “as PPPs não são mais uma opção a ser livremente escolhida; são, caso a caso, a opção que comprovadamente deve ser implementada em face dos pressupostos fático normativos”).228

Não são poucos aqueles que, em solo nacional, levantam vozes contrariamente à celebração desse tipo de parceria entre Poder Público e entidades privadas, alegando, dentre outras coisas, a inconstitucionalidade da “fuga para o direito privado”229 que tais ajustes implicam, o que seria inaceitável do ponto de vista da necessária atuação estatal em áreas “sensíveis”.

Quer-nos parecer, todavia, que as técnicas concessórias desenhadas em linhas rudimentares no presente ensaio não se prestam a tanto. Face à realidade concreta vivida nos dias atuais, constata-se que a via concessória é muitas vezes, senão a única, ao menos a via mais adequada para promover a construção e gestão de obras e serviços públicos infraestruturais, sobretudo no que se refere à Copa do Mundo: o Estado brasileiro não tem (e nem precisa) os recursos financeiros e as técnicas necessárias para o desenvolvimento, em tão curto prazo, de atividades de tamanha complexidade.

Nesse cenário, o recurso aos privados, tal como ocorreu no nosso período imperial, finda por ser essencial ao Estado brasileiro para que desempenhe a contento as atividades de sua responsabilidade, atendendo, assim, às “missões sócio-econômicas” que lhe são imputadas pela Constituição. Não devemos nos esquecer, nessa aproximação, que a concessão é “um instrumento de implementação de certas políticas públicas. Não é, pura e simplesmente, uma manifestação da atividade administrativa contratual do Estado. Muito mais do que isso, é uma alternativa para realização de valores constitucionais fundamentais”.230

Como em meados do séc. XIX disse um dos maiores “concessionários” da história do Brasil, Irineu Evangelista de Sousa – o Barão de Mauá: “Desgraçadamente entre nós entende-se que empresários devem perder, para

228 MOREIRA, Egon Bockmann. A experiência das licitações para obras de infraestrutura e anova lei das parcerias público-privadas. In: MOREIRA, Egon Bockmann; CUÉLLAR, Leila. Estudos de Direito Econômico, volume 2. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 51. 229 A expressão é tomada emprestado de Fritz Fleiner, consagrada na pena de Maria João Estorninho (FLEINER, Fritz. Instituciones de Derecho Administrativo. Trad. Sabino Gendin. Barcelona: Labor, 1933; ESTORNINHO, Maria João. A fuga para o direito privado. Coimbra: Almedina, 2009). 230 JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 58.

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que o negócio seja bom para o Estado, quando é justamente o contrário”.231

E novamente, como diz o velho brocardo, “a história se repete”, ainda que com novos personagens e em novos cenários. Que não se repita, no entanto, o resultado da última Copa do Mundo de Futebol sediada no Brasil, em 1950.

231 Apud CALDEIRA, Jorge. Mauá: empresário do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 31.

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ARTIGO 6NOTAS SOBRE A INFRAESTRUTURA AEROPORTUÁRIA ESTATAL NO BRASIL: PASSADO, PRESENTE E FUTURO E SUA RELAÇÃO COM O

REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÕES

danieL müLLer martins232

eduardo ramos caron tesseroLLi233

SUMÁRIO: Introdução. 1. Algumas considerações no plano do passado. 2. Do passado ao presente: algumas alternativas possíveis. 3. Do presente ao futuro: perspectivas, defi-nições e indefinições. 4. O RDC e a infraestrutura aeroportuária. 4.1 O que é o RDC? 4.2 Infraestrutura aeroportuária e RDC. 5. Conclusão. Referências bibliográficas.

INTRODUÇÃO

A infraestrutura aeroportuária de um país ou região está relacionada à satisfação de necessidades essenciais do Estado e dos cidadãos. Mas, inegavelmente, é também um fator de competitividade econômica.

A análise da infraestrutura aeroportuária estatal no Brasil, sob a égide do marco constitucional inaugurado em 1988, remete, em sua essência, ao campo de uma atividade definida como serviço público e vinculada à promoção do desenvolvimento social econômico.

Primeiro, em razão da opção da Constituição da República, em seu art. 21, XII, c234. Segundo, e indispensavelmente, já que a primeira razão seria insuficiente, em si, para definir o serviço público, porque caracterizado o substrato material, formal e subjetivo daquilo que serve a qualificá-lo em sua essência, inclusive com expressa opção pelo Legislador infraconstitucional235.

232 Advogado e Consultor em Direito Público. Mestre em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Professor em cursos de Pós-Graduação em Direito Administrativo. Professor Convidado da Escola Superior da Advocacia e Secretário da Comissão de Direito da Infraestrutura e Estudo das Concessões Públicas da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Paraná.233 Advogado. Especialista em Direito Administrativo pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Professor de Direito Administrativo da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP. Secretário da Comissão de Direito Econômico e Vice-Presidente da Comissão de Direito da Infraestrutura e Estudo das Concessões Públicas da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Paraná. Associado à ADEPAR – Associação Paranaense de Direito e Economia.234 Art. 21. Compete à União: (...) XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: (...) c) a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária (...).235 Confira-se, por todos, a posição de Marçal Justen Filho, para quem “(...) as atividades referidas nos diversos incisos do art. 21 da CF/88 poderão ou não ser qualificados como serviços públicos,

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Evidentemente não se está aqui a afirmar que todas as atividades relacionadas à exploração da infraestrutura aeroportuária no Brasil se subsumem ao regime jurídico do serviço público, indistintamente.

Com o passar dos anos, o crescimento da demanda e a evolução tecnológica passaram a exigir novos contornos da infraestrutura aeroportuária, agregando-se indispensavelmente à estrutura essencial - terminais (cargas e passageiros), pátios, pistas e integração entre modais de transportes - a disponibilização de bens e serviços de natureza acessória e comercial, a exemplo de restaurantes, hotéis, lojas, espaços de convenções, centros de negócios, entre outros.

De qualquer modo, é inegável que a realidade correlata à exploração e ao regime jurídico da infraestrutura aeroportuária estatal236 no Brasil,

de acordo com as circunstâncias e segundo a estruturação que se verificar como necessária. (...) Defende-se a tese de que a Constituição determinou que certas atividades se configuram como serviço público se estiverem presentes certos pressupostos. Logo, sempre que ausentes ditos requisitos, não haverá serviço público. Ou seja, se não houver ofertas de utilidades destinadas à satisfação de necessidades direta e imediatamente relacionadas com a dignidade da pessoa humana ou a finalidades políticas essenciais, será vedado submeter as atividades referidas ao regime de direito público. Existirá apenas atividade econômica em sentido restrito, ainda que subordinada ao regime de autorização. Em contrapartida, estando presentes os pressupostos referidos, será obrigatória a configuração de um serviço público” (Teoria Geral das Concessões de Serviço Público, Dialética, 2003, p. 44-46). Em sentido próximo, é indispensável referir também a síntese crítica de Fernando Vernalha Guimarães sobre o tema. Em especial, quando afirma que “(...) os grupos das atividades inscritas no art. 21, incs. X a XII, foram presumidos pela Constituição como sendo serviços públicos, ainda que se trate de uma presunção relativa, passível de ser afastada pela constatação de que tais não atendem a um núcleo de materialidade inerente à noção constitucional do serviço público. (...) De todo modo, parece conclusivo que a inscrição dessas atividades nos incs. do art. 21 importa presumi-las como aptas a receber a qualificação de serviço público. Mas essa definição ficará a cargo do legislador infraconstitucional, que decidirá acerca da conveniência política em tomar dada atividade por serviço público ou por atividade econômica em sentido estrito (demarcando daí o seu regime quanto a aspectos como a reserva de prestação e a gradação do controle estatal). (...) Logo, o serviço público será a atividade econômica assim definida por lei, presumidamente essencial e relevante para a coletividade e que revele (materialmente) a necessidade de reserva à titularidade estatal (Concessão de Serviço Público, Saraiva, 2012, p. 73 e seguintes). 236 A delimitação desta exposição à infraestrutura aeroportuária estatal é necessária e não revela qualquer obviedade. De acordo com o Código Brasileiro de Aeronáutica - CBA (Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986), define-se aeródromo como toda área destinada a pouso, decolagem e movimentação de aeronaves. Os aeródromos podem ser classificados em civis (quando destinados ao uso de aeronaves civis) e militares (quando destinados ao uso de aeronaves militares). Os aeródromos civis podem ser públicos ou privados. Vale dizer, o regime jurídico da infraestrutura aeroportuária no Brasil contempla aeródromos privados, cuja exploração comercial é vedada e somente podem ser utilizados mediante permissão de seu proprietário. Nestes, a abertura ao tráfego dá-se mediante processo de registro perante a autoridade de Aviação Civil, podendo ser fechados a qualquer tempo pelo proprietário ou pela própria autoridade competente. Nas definições legais do CBA, aeroportos são os aeródromos públicos dotados de instalações e

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passada e presente,traduz-se em flagrante incapacidade gerencial do Poder Público em prestar adequadamente as atividades correlatas, seja no plano quantitativo ou qualitativo.

No que diz respeito à sua essência, tratando-se a exploração da infraestrutura aeroportuária como uma atividade econômica definida como serviço público, a titularidade desse serviço será sempre estatal237. A sua exploração, porém, pode ocorrer diretamente pelo Estado, por seus entes descentralizados ou mediante delegação - concessão ou permissão - à iniciativa privada.

No caso brasileiro, até recentemente prevaleceu a opção política de exploração da infraestrutura aeroportuária de forma direta pela Administração central e por seus entes descentralizados estatais.

No entanto, a marcha do tempo e as correlatas exigências de modernização não foram acompanhadas pela opção política inicial. O crescimento populacional e o progresso econômico implicaram um aumento sensível da demanda, o que não foi acompanhado pelos necessários investimentos em melhora quantitativa e qualitativa da infraestrutura aeroportuária estatal.

Paralelamente, o desenvolvimento tecnológico passou a exigir uma atuação rápida, segura e eficiente na exploração dessa infraestrutura, o que não se fez possível acompanhar adequadamente no modelo inicialmente concebido e adotado.

A ineficiência do modelo refletiu-se - e ainda reflete-se - em clara situação de estrangulamento do sistema, acompanhada da perda crescente de qualidade e eficiência dos serviços disponibilizados aos cidadãos, impondo-se uma mudança de rumos.

Sob estas premissas, o presente ensaio pretende expor em breves notas essenciais essa evolução do regime jurídico da exploração da infraestrutura aeroportuária estatal no Brasil, em pleno curso, com os olhos voltados ao que passou, ao que hoje se experimentae também àquilo que se espera em futuro próximo.

Nesta esteira, analisar-se-á a recente edição do Estatuto do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), o qual trouxe novas regras para as licitações e os contratos necessários à realização “de obras de infraestrutura e de contratação de serviços para os aeroportos das capitais dos Estados da Federação distantes até 350 km (trezentos e cinquenta quilômetros) das cidades sedes”, nos

facilidades para apoio de operações de aeronaves e de embarque e desembarque de pessoas e cargas. Helipontos são os aeródromos destinados exclusivamente a helicópteros. Heliportos são os helipontos públicos, dotados de instalações e facilidades para apoio de operações de helicópteros e de embarque e desembarque de pessoas e cargas.237 Embora todo serviço público seja titularizado pelo Estado - e aqui não se quer afirmar reserva de exclusividade do Estado, pois a análise do tema dependeria da amplitude do conceito de serviço público, é preciso sublinhar que nem todas as atividades estatais são caracterizadas como serviço público. Confira-se, a respeito, Fernando Vernalha Guimarães (Concessão..., cit., p. 82-86).

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termos do artigo 1º, inc. III, da Lei Federal nº 12.462, de 5 de agosto de 2012.238

O RDC tem o condão de direcionar os investimentos em infraestrutura demandados para a perfeita execução dos grandes eventos desportivos que se realizarão no Brasil em 2013 – Copa das Confederações da Federação Internacional de Futebol Associação (FIFA) 2013 -, 2014 – Copa do Mundo FIFA 2014 – e 2016 – Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016.239

Desse modo, pretende-se concluir que o estudo do regime jurídico da exploração da infraestrutura aeroportuária estatal é salutar dada a realização de eventos desportivos de grande magnitude no cenário nacional, como se mostrará adiante.

1. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES NO PLANO DO PASSADO

No Governo de Emílio G. Médici, em 12 de dezembro de 1972, editou-se a Lei nº 5.862, com a qual o Poder Executivo foi autorizado a constituir uma empresa pública sob a denominação de Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária - INFRAERO, vinculada ao Ministério da Aeronáutica.

Nos termos dessa legislação, na sua redação original, a INFRAERO foi constituída com a finalidade de implantar, administrar, operar e explorar

238 Segundo a súmula esta lei “Institui o Regime Diferenciado de Contratações Públicas - RDC; altera a Lei no 10.683, de 28 de maio de 2003, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, a legislação da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e a legislação da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero); cria a Secretaria de Aviação Civil, cargos de Ministro de Estado, cargos em comissão e cargos de Controlador de Tráfego Aéreo; autoriza a contratação de controladores de tráfego aéreo temporários; altera as Leis nos 11.182, de 27 de setembro de 2005, 5.862, de 12 de dezembro de 1972, 8.399, de 7 de janeiro de 1992, 11.526, de 4 de outubro de 2007, 11.458, de 19 de março de 2007, e 12.350, de 20 de dezembro de 2010, e a Medida Provisória no 2.185-35, de 24 de agosto de 2001; e revoga dispositivos da Lei no 9.649, de 27 de maio de 1998”. Destaques nossos.239 Assim dispõe o artigo 1º da Lei do RDC: Art. 1o  É instituído o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), aplicável exclusivamente às licitações e contratos necessários à realização: I - dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, constantes da Carteira de Projetos Olímpicos a ser definida pela Autoridade Pública Olímpica (APO); e II - da Copa das Confederações da Federação Internacional de Futebol Associação - Fifa 2013 e da Copa do Mundo Fifa 2014, definidos pelo Grupo Executivo - Gecopa 2014 do Comitê Gestor instituído para definir, aprovar e supervisionar as ações previstas no Plano Estratégico das Ações do Governo Brasileiro para a realização da Copa do Mundo Fifa 2014 - CGCOPA 2014, restringindo-se, no caso de obras públicas, às constantes da matriz de responsabilidades celebrada entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios; III - de obras de infraestrutura e de contratação de serviços para os aeroportos das capitais dos Estados da Federação distantes até 350 km (trezentos e cinquenta quilômetros) das cidades sedes dos mundiais referidos nos incisos I e II; IV - das ações integrantes do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC); V - das obras e serviços de engenharia no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS.

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industrial e comercialmente a infraestrutura aeroportuária até então sob responsabilidade do Ministério da Aeronáutica.

A constituição da INFRAERO deu-se justamente no período em que se vislumbrava a construção de novos terminais de passageiros, bem como a reforma de algumas bases aéreas até então existentes, vinculadas à Força Aérea Brasileira. Vale dizer, num momento histórico de notável mudança no plano da infraestrutura aeroportuária240.

Desde a criação da INFRAERO, portanto, a opção política revelou-se no sentido de concentrar as competências de implantação, administração, operação e exploração da infraestrutura aeroportuária estatal, notadamente em relação aos aeródromos públicos dotados de instalações e facilidades para apoio de operações de aeronaves e de embarque e desembarque de pessoas e cargas.

Em 1986, com a edição do Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 7.565, de 19 de dezembro), definiu-se o sistema aeroportuário como elemento integrante da infraestrutura aeronáutica, sendo constituído pelo conjunto de aeródromos brasileiros, com todas as pistas de pouso, pistas de táxi, pátio de estacionamento de aeronave, terminal de carga aérea, terminal de passageiros e as respectivas facilidades (art. 26, caput).

É importante sublinhar que a edição desses diplomas legais se deu sob a égide da Constituição de 1967, com a Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, que em seu art. 8º, XV, c, dispunha competir à União explorar, diretamente ou mediante autorização ou concessão, a navegação aérea, e, em seu art. 163 disciplinava ser facultada a intervenção no domínio econômico e o monopólio de determinada indústria ou atividade, mediante lei federal, quando indispensável por motivo de segurança nacional ou para organizar setor que não possa ser desenvolvido com eficácia no regime de competição e de liberdade de iniciativa, assegurados os direitos e garantias individuais.

240 A título de ilustração, veja-se que o Aeroporto do Galeão, hoje denominado Antonio Carlos Jobim, tem sua história iniciada como base de antiga aviação naval, em 1924, com a instalação da escola de aviação, sendo o terminal de onde saíram os primeiros Correios Aéreos Navais, em 1935. A partir de 1945, passou a ser oficialmente um Aeroporto Internacional, uma vez que os antigos Hidroaviões da Pan American e da Condor, além de outras companhias, foram pouco a pouco substituídos nas rotas internacionais por aviões maiores, dotados de rodas, que precisavam de pistas em terra para pouso e decolagem. Tratava-se, porém, de instalação manifestamente precária. Em 1950, o local para embarque e desembarque transferiu-se para onde hoje funcionam escritórios de companhias cargueiras. Esse terminal, com diversas ampliações ao longo dos anos, foi substituído pelo atual Terminal Número 1, que agregou o que de mais atual havia na época de sua inauguração, em 20 de janeiro de 1977. O Aeroporto de Guarulhos, hoje denominado André Franco Montoro, foi inaugurado em 1985, ou seja, pouco mais de uma década após a criação da INFRAERO (informações disponíveis no sítio da INFRAERO, acessível em www.infraero.gov.br/index.php/br/aeroportos.html. Acesso em 09 de novembro de 2012).

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Nesse sentido, à época, tinha-se que os aeródromos públicos seriam construídos, mantidos e explorados diretamente pela União ou por empresas especializadas da Administração Federal Indireta ou suas subsidiárias, vinculadas ao Ministério da Aeronáutica, ou mediante convênio com os Estados ou Municípios, ou ainda por concessão ou autorização (Lei nº 7.565/86, art. 36, I a IV), estabelecendo o próprio Código Brasileiro de Aeronáutica - CBA, em seu art. 39, §2º, que a atividade de operação e exploração de aeroportos e heliportos, bem como dos seus serviços auxiliares, estava caracterizada como monopólio da União, em todo o Território Nacional, ou das entidades da Administração Federal Indireta referidas no art. 36.

Importante referir, também, que o CBA definia que os aeroportos deveriam compreender as áreas destinadas à sua própria administração, ao pouso, decolagem, manobra e estacionamento de aeronaves, ao atendimento e movimentação de passageiros, bagagens e cargas, aos concessionários ou permissionários dos serviços aéreos, ao terminal de carga aérea, aos órgãos públicos que, por disposição legal, devam funcionar nos aeroportos internacionais, ao público usuário e estacionamento de seus veículos, aos serviços auxiliares do aeroporto ou do público usuário e ao comércio apropriado.

Com a Constituição de 1988, alterou-se a previsão constitucional para outorgar à União não apenas a competência sobre a navegação aérea, mas também, expressamente, sobre a infraestrutura aeroportuária (art. 21, XII, c). Manteve-se, porém, a possibilidade da sua exploração de forma direta ou mediante concessão, permissão ou autorização.

A Lei de constituição da INFRAERO foi recepcionada pela nova Carta da República, bem como restou parcialmente recepcionado o Código Brasileiro de Aeronáutica.

O passar do tempo, no entanto, trouxe consigo um aumento quantitativo e qualitativo das atividades enquadradas na moldura da competência legal outorgada à INFRAERO, o que não foi acompanhado do indispensável planejamento estratégico e dos necessários investimentos em pessoal, tecnologia e infraestrutura.

É relevante observar que com o passar dos anos a INFRAERO manteve sob sua competência apenas os principais aeroportos do país, culminando por administrar, operar e explorar 66 aeroportos (aeródromos públicos) no país, os quais, é verdade, representam aproximadamente 97% do movimento nacional.

No entanto, segundo informações oficiais da própria INFRAERO, há atualmente 720 (setecentos e vinte) aeródromos públicos no Brasil, além de 1.939 aeródromos particulares. Todos esses aeródromos públicos que não estão sob gestão da INFRAERO são administrados e operados por Estado e Municípios, através de convênios firmados com a União, através do Comando da Aeronáutica.

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Em 2005, com a Lei nº 11.182, de 27 de setembro, houve a criação da Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC, entidade integrante da Administração Pública Federal indireta, submetida a regime autárquico especial, vinculada ao Ministério da Defesa, com prazo de duração indeterminado, atribuindo-se-lhe competências de regulação e fiscalização das atividades de aviação civil e de infraestrutura aeronáutica e aeroportuária.

Entre as competências legalmente outorgadas, atribuiu-se à ANAC o dever de observar e implementar as orientações, diretrizes e políticas estabelecidas pelo Governo federal, especialmente no que se refere ao estabelecimento do modelo de concessão de infraestrutura aeroportuária, a ser submetido ao Presidente da República, bem como conceder ou autorizar a exploração da infraestrutura aeroportuária, no todo ou em parte, e estabelecer o regime tarifário da exploração da infraestrutura aeroportuária, no todo ou em parte.

Vale dizer, a própria criação do ente regulador veio acompanhada de um comando normativo intrínseco sobre a orientação a ser adotada na revisão do modelo de gestão da infraestrutura aeroportuária até então vigente, definindo-se a autarquia especial como poder concedente241.

Essa revisão de modelo fazia-se imperativa. A ineficiência do modelo concebido à luz da concentração das competências de administração, operação e exploração na INFRAERO está traduzida em alguns números que falam por si.

Entre 2003 e 2010, o Brasil apresentou um crescimento médio anual no número de passageiros de 10,2%. Se considerarmos apenas o biênio 2009/2010, o crescimento foi de 20,4%. Em 2009, o país registrou 128 milhões de passageiros e, em 2010, esse fluxo passou para 154 milhões242.

241 Entende-se, particularmente, que a escolha da autarquia reguladora para funcionar como poder concedente não é a melhor opção legislativa, pois há flagrante risco de desnaturar o exercício da função regulatória sob as indispensáveis marcas da independência e equidistância em relação ao serviço concedido.242 Campos Neto, Carlos Alvares da Silva e De Souza, Frederico Hartmann. Nota Técnica: Aeroportos no Brasil: investimentos recentes, perspectivas e preocupações. IPEA - Diretoria de Estudo Setoriais. Abril/2011. Os números são confirmados pelo estudo realizado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, disponível em http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/empresa/pesquisa/chamada3/capitulo3.pdf. Acesso em 09 de novembro de 2012. De acordo com o Anuário Estatístico Operacional da INFRAERO, exercício 2011, o movimento em 2010 foi de 155.363.964 passageiros, o que também se aproxima do estudo aqui utilizado como parâmetro (disponível em http://www.infraero.gov.br/images/stories/Estatistica/anuario/ anuario_2011_2.pdf. Acesso em 09 de novembro de 2012).

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O aumento do número de aeronaves e passageiros, igualmente acompanhado pelo incremento do transporte de carga aérea (com exceção da redução sazonal ocorrida entre 2007 e 2009 devido à crise econômica mundial), em si não representa um problema. A questão está no acompanhamento quantitativo e qualitativo proporcional da infraestrutura aeroportuária.

Neste ponto, impõe-se recorrer à taxa de ocupação dos aeroportos do país, número que se obtém com a divisão da quantidade de passageiros movimentados pela capacidade operacional nominal de cada aeroporto.

À luz de critérios técnicos mundialmente reconhecidos243, considera-se que o limite de eficiência operacional de um aeroporto equivale à taxa de ocupação igual a 80% (0,8). A partir deste conceito, é possível separar os aeroportos em três grupos situacionais:

·Situação Adequada: taxa de ocupação ≥80%·Situação Preocupante: taxa de ocupação >80%, mas ≤100%·Situação Crítica: apresentam taxa de ocupação > 100%Valendo-se dessas premissas, o já referido estudo técnico do IPEA -

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, fundação pública federal vinculada à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, analisou a taxa de ocupação dos 20 principais aeroportos brasileiros para o biênio 2009-2010.

As conclusões são alarmantes. Veja-se a tabela a seguir, extraída do referido estudo:

243 Graham, Anne. Managing airports: an international perspective. London: Routledge, 2011.

ANO AVIÕES PASSAGEIROS2003 1,77 71,222004 1,79 82,712005 1,84 96,082006 1,92 102,192007 2,04 110,572008 2,13 113,262009 2,29 128,142010 2,65 154,32

Movimento de aviões e de passageiros nos aeroportos brasileiros

(em milhões de unidades)

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Os números são ainda mais preocupantes porque o estudo identifica que a taxa média de ocupação em cada categoria, entre 2009 e 2010, apresentou sensível aumento, aproximando-se cada categoria daquela imediatamente superior. Veja-se:

SITUAÇÃO ADEQUADA (4) SITUAÇÃO ADEQUADA (3)

Galeão - RJSalvador - BA

Recife - PESantos Dumont - RJ

Galeão - RJSalvador - BA

Recife - PE

SITUAÇÃO PREOCUPANTE (5) SITUAÇÃO PREOCUPANTE (5)

Curitiba - PRManaus - AM

Belém - PANatal - RN

Maceió - AL

Curitiba - PRBelém - PA

Santos Dumont - RJ

SITUAÇÃO CRÍTICA (11) SITUAÇÃO CRÍTICA (14)

Guarulhos - SPCongonhas - SP

Brasília - DFConfins - MG

Porto Alegre - RSFortaleza - CEViracopos - SP

Vitória - ESFlorianópolis -SC

Goiânia - GOCuiabá - MT

Guarulhos - SPCongonhas - SP

Brasília - DFConfins - MG

Porto Alegre - RSFortaleza - CEViracopos - SPManaus - AM

Florianópolis -SCVitória - ESNatal - RN

Goiânia - GOCuiabá - MTMaceió - AL

Situação dos 20 principais aeroportos brasileiros, conforme taxa de ocupação (2009-2010)

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Desse modo, uma simples análise superficial dos dados estatísticos do passado da infraestrutura aeroportuária, aliada à percepção individual que cada passageiro é capaz de apresentar quando faz uso do sistema vigente, conduz à conclusão de que urge a construção de um novo modelo institucional que equacione o aprimoramento da infraestrutura com uma sensível melhoria no serviço de navegação aérea, de modo a garantir um ambiente favorável aos usuários e aos prestadores do serviço.

2. DO PASSADO AO PRESENTE: ALGUMAS ALTERNATIVAS POSSÍVEIS

Em face das premissas de enquadramento constitucional do serviço em questão, algumas possibilidades se apresentavam, e ainda se apresentam ao Governo brasileiro, com intuito de solucionar adequadamente os problemas inerentes à administração, operação e exploração da infraestrutura aeroportuária.

A primeira delas seria uma verdadeira reconstrução quantitativa e qualitativa da INFRAERO, com vultosos investimentos públicos, contratação de pessoal e aprimoramento dos mecanismos de gestão pública aeroportuária, refletidos na gestão empresarial da empresa pública, valendo-se da prerrogativa estatal de exploração direta da infraestrutura aeroportuária.

Veja-se, todavia, que embora a INFRAERO tenha um plano de investimentos de R$1,4 bilhão ao ano para o período de 2011 a 2014, contemplando-se os 13 maiores aeroportos brasileiros e com os olhos voltados para a Copa do Mundo de 2014, e mesmo que isso represente mais que o triplo da média anual investida entre 2003 e 2010 pela empresa (R$430 milhões/ano), tem-se como inegável a baixíssima eficiência na execução dos programas de investimentos (aproximadamente 44% dos recursos previstos)244.

244 Confira-se, a respeito, o estudo contido na Nota Técnica do IPEA antes referido.

2009 2010SITUAÇÃO

DOAEROPORTO

TAXA MÉDIADE

OCUPAÇÃO

NÚMEROSDE

AEROPORTOS

TAXA MÉDIADE

OCUPAÇÃO

NÚMEROSDE

AEROPORTOS

AdequadaPreocupante

Crítica

64,63%89,46%

164,26%

45

11

71,30%94,40%

187,15%

33

14TOTAL 20 20

Fonte: Infraero / Elaboração: Ipea

Taxas de ocupação dos 20 principais aeroportos brasileiros

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Além disso, é importante observar que o movimento global anual em 2011 foi registrado em 179.949.252 passageiros, segundo a própria INFRAERO245. Para administrar, operar e explorar aeroportos com tal movimento, a INFRAERO possui 13.621 empregados detentores de cargo efetivo em agosto de 2011 e 14.275 em agosto de 2012. Adicionalmente, a empresa pública apresentava 33 empregados contratados exclusivamente para exercer cargo em comissão em agosto de 2011 e 28 em agosto de 2012246.

Paralelamente aos empregados efetivos e comissionados, a INFRAERO mantém terceirização de diversos serviços que lhe cabe prestar, mediante contratos que totalizam 27.200 empregados terceirizados247.

A INFRAERO conta, pois, aproximadamente com 2 empregados terceirizados para cada empregado efetivo ou comissionado, com uma média aproximada de 1 empregado para cada 4.340 passageiros movimentados.

Ilustrativamente, veja-se que o aeroporto de Frankfurt, Alemanha, administrado pela empresa FRAPORT AG e reconhecido como exemplo de eficiência no âmbito da infraestrutura aeroportuária mundial, figura como o 9º na lista global dos aeroportos mais movimentados com aproximadamente 53 milhões de passageiros no ano de 2010248.

A referida empresa, FRAPORT AG, contou com 19.792 empregados efetivos no ano de 2010, do que resulta a média aproximada de 1 empregado para cada 2.678 passageiros movimentados249.

Também a título ilustrativo, veja-se que entre os três aeroportos com maior movimento na Grã-Bretanha - Heathrow (Londres), Gatwick (Londres) e Manchester - a média de empregados diretos por passageiro é de 1/1.016, 1/755 e 1/847, respectivamente250.

Outro ponto que demonstra manifesta ineficiência da INFRAERO no desempenho das competências que lhe foram outorgadas diz respeito à exploração das receitas não-tarifárias, ou seja, a exploração comercial dos aeroportos sob sua administração. Nos exercícios de 2010 e 2011, essas receitas

245 Confira-se o Anuário Estatístico Anual 2011, disponível em http://www.infraero.gov.br/ images/stories/Estatistica/anuario/anuario_2011_2.pdf. Acesso em 09 de novembro de 2012. 246 Informação disponível em http://www.infraero.gov.br/index.php/br/empregados/quadro-de-pessoal.html. Acesso em 09 de novembro de 2012.247 Informação disponível em http://www.infraero.gov.br/index.php/br/institucional/a-infraero.html. Acesso em 09 de novembro de 2012. 248 Confira-se os números disponíveis em http://www.aci.aero/aci/aci/file/Press%20Releases/ 2011/PR_01082011_2010_WATR.pdf. Acesso em 09 de novembro de 2012.249 Informação disponível em http://www.frankfurt-airport.com/content/frankfurt_airport/en/misc/container/facts-and-figures-011/jcr:content.file/facts%20and%20figures%202011.pdf. Acesso em 09 de novembro de 2012.250 Graham, Anne. Managing airports: an international perspective. Routledge, p. 278.

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comerciais representaram valor não superior a 18% sobre a receita total da INFRAERO, o que está muito aquém do potencial de exploração da atividade251.

Não se pode deixar de mencionar, ainda, as distorções decorrentes da destinação de recursos auferidos pela INFRAERO ao Tesouro Nacional e ao Comando da Aeronáutica, impedindo-se, com isto, a destinação adequada dos recursos arrecadados para a finalidade correlata.

A transferência dos recursos ao Tesouro Nacional e ao Comando da Aeronáutica não seria um problema se eles retornassem ao setor aeroportuário, por meio de investimentos públicos na infraestrutura aeroportuária. Mas não é isso que acontece. O Tesouro Nacional faz aportes de capital na INFRAERO e dela recebe tanto dividendos quanto a transferência das receitas que são destinadas ao Comando da Aeronáutica ou à amortização da dívida pública.

Somando os dividendos com as transferências ao Tesouro Nacional e à Aeronáutica, verifica-se que a INFRAERO repassou ao Governo Federal, no período entre 2002 e 2010, aproximadamente R$11,5 bilhões. Deduzindo os aportes de capital feitos na empresa, o volume líquido transferido ao Governo foi de R$ 10,3 bilhões.

Os recursos repassados ao Tesouro Nacional são destinados à amortização da dívida pública federal, nos termos das Leis no 9.825/1999 e 10.744/2003. Os recursos repassados ao Comando da Aeronáutica, nos termos do art. 1º, §1º, da Lei nº 7.920/89, são destinados à “aplicação em melhoramentos, reaparelhamento, reforma, expansão e depreciação de instalações aeroportuárias e da rede de telecomunicações e auxílio à navegação aérea”.

Se o dinheiro transferido ao Comando da Aeronáutica tivesse sido efetivamente investido nessas finalidades, teríamos o significativo valor de R$ 7,3 bilhões adicionais com destinação específica para investimentos em infraestrutura aeroportuária, o que não se verifica dos números oficiais divulgados a título de investimentos realizados.

Evidencia-se, portanto, que a INFRAERO serve à realização do superávit primário do Governo Federal, não havendo planejamento com objetivo central no aprimoramento quantitativo e qualitativo da infraestrutura aeroportuária.

A estrutura tarifária e demais receitas auferidas garante recursos vultosos ao setor aeroportuário, mas o atual sistema de partilha não permite a destinação desses valores em volume suficiente à finalidade específica de aprimorar a respectiva infraestrutura.

A realidade e as necessidades evidenciadas apontaram, e ainda apontam, para outros rumos.

251 Informações financeiras e contábeis disponíveis em http://www.infraero.gov.br/images/ stories/Infraero/Contas/Processos/2011/2_relatorio_gestao_infraero_2011_298_445.pdf. Acesso em 09 de novembro de 2012.

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Entre as demais soluções possíveis252, a opção política de Governo caminhou no sentido da utilização do instituto jurídico-administrativo da concessão para atribuir à iniciativa privada a gestão e o aprimoramento quantitativo e qualitativo dos aeroportos até hoje sob controle da INFRAERO.

Pois bem. Esse caminho teve seus primeiros passos ao aeroporto de com o aeroporto de São Gonçalo do Amarante/RN, próximo a Natal, incluído no Plano Nacional de Desestatização (PND) pelo Decreto nº 6.373, de 14 de fevereiro de 2008253, tendo sido designada a Agência Nacional de Aviação

252 À luz do Direito brasileiro, poder-se-ia cogitar da privatização da INFRAERO, da abertura do seu capital ao mercado ou da transferência do serviço à iniciativa privada. Neste último caso, seja através de concessão comum, seja através das modalidades de parceria público-privada previstas na Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004. No Direito estrangeiro, a situação não é muito distinta, embora dependa da leitura individualizada de cada ordenamento jurídico. Anne Graham, em obra específica sobre o tema, descreve a situação enfrentada pela mudança de paradigma em aeroportos ao redor do mundo, identificando as espécies de solução possíveis para a “privatização” em sentido lato da infraestrutura aeroportuária: “Airports are generally seen as attractive organizations to investors, for a number of reasons. Many of the airports, particularly the major ones, face limited competition, both from other airports and other modes of transport. There are very high barriers to entry within the industry due to the large capital investment needed and the difficulties in finding appropriate, convenient locations where airport development is allowed. However risks clearly exist as well, such as political interference in the form of airport regulation and control over airport development and the changing nature of the airline industry with developments such as desregulation and greater collaboration through alliances. Airport privatization can occur in different ways (Carney and Mew, 2003). The types of privatization models broadly fall into five categories: 1. Share flotation. 2. Trade sale. 3. Concession. 4. Project finance privatization. 5. Management contract. The selection of the most appropriate type of privatization involves a complex decision-making process which will ultimately depend on the government’s objectives in seeking privatization. For example, is the type of privatization required lo lessen the burden on public sector finances, generate funds from the airport sale, increase share-ownership or encourage greater efficiency, competition or management expertise within the airport sector? In reaching a decision, factors such as the extent of control which the government wishes to maintain; the quality and expertise of the current airport operators; further investment requirements and the financial robustness of the airports under consideration all have to be taken into account” (Managing airports..., cit., p. 25).253 O Decreto nº 6.373/2008 foi editado com fundamento na Lei nº 9.491/1997, a qual disciplinou o Programa Nacional de Desestatização – PND com os seguintes objetivos fundamentais: I - reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público; II  -   contribuir para a reestruturação econômica do setor público, especialmente através da melhoria do perfil e da redução da dívida pública líquida; III - permitir a retomada de investimentos nas empresas e atividades que vierem a ser transferidas à iniciativa privada; IV - contribuir para a reestruturação econômica do setor privado, especialmente para a modernização da infra-estrutura e do parque industrial do País, ampliando sua competitividade e reforçando a capacidade empresarial nos diversos setores da economia, inclusive através da concessão de crédito; V - permitir que a Administração Pública concentre seus esforços nas atividades em que a presença do Estado seja fundamental para a consecução das prioridades nacionais; VI - contribuir para o fortalecimento do mercado de capitais, através

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Civil - ANAC como responsável pela execução e acompanhamento do processo de desestatização da infraestrutura.

Esse aeroporto teve seus estudos de viabilidade elaborados entre fins de 2008 e julho de 2010, estabelecendo-se o modelo de concessão pelo Decreto nº 7.205, de 10 de junho de 2010.

Explica-se o caso do aeroporto de São Gonçalo do Amarante/RN - ASGA, primeiro paradigma dos novos rumos adotados pelo Governo federal.

Tendo em vista o estrangulamento do aeroporto Augusto Severo, em Natal/RN, e a intenção do Ministério da Defesa em transformá-lo em Base Aérea Militar, após 12 anos de altos investimentos iniciais da INFRAERO na construção de um aeroporto alternativo àquele primeiro, editou-se o referido Decreto nº 6.373/2008.

Pelo Decreto nº 7.205/2010, estabeleceu-se que o modelo de concessão aplicável à exploração do ASGA seria aquele delineado no art. 8º, inciso XXIV, da Lei nº 11.182, de 27 de setembro de 2005, nas disposições aplicáveis da Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986, e da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995. Ou seja, concessão comum, sendo a ANAC indicada para atuar como poder concedente.

Procedeu-se, então, à elaboração de edital de concessão do ASGA, o qual, submetido à apreciação do Tribunal de Contas da União em processo de acompanhamento nº 034.023/2010-0), sob a relatoria do Ministro Valmir Campelo, restou aprovado pelo Plenário em sessão ocorrida em 13 de abril de 2011, com pequenas ressalvas, estando a decisão estampada no Acórdão 939/2011, DOU 20.04.2011.

E como funciona este modelo?No caso, por se tratar de aeroporto que já teve investimentos iniciais

da INFRAERO, o objeto da concessão é a construção parcial, manutenção e exploração do ASGA.

Pelo modelo aprovado, a concessão da infraestrutura aeroportuária deveria dar-se por licitação pública na modalidade de leilão, tendo por critério de julgamento o maior valor da outorga a ser oferecido pelo proponente ao poder concedente.

O modelo contemplou a realização do leilão com a inversão de fases. Ou seja, primeiro a abertura e classificação das propostas econômicas, incluindo-se fase de lances sucessivos efetuados de viva-voz (diferença de até 15% ou 3 melhores classificados). Posteriormente, a fase de habilitação.

Poderiam participar do leilão pessoas jurídicas brasileiras ou estrangeiras, entidades de previdência complementar e fundos de investimentos, isoladamente

do acréscimo da oferta de valores mobiliários e da democratização da propriedade do capital das empresas que integrarem o Programa.

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ou em consórcio, sempre com compromisso de constituição se sociedade de propósito específico – SPE.

Restou vedada a participação de empresas aéreas, suas controladoras, controladas e coligadas isoladamente, podendo participar em consórcio desde que limitada a 10% e sem participação na administração da SPE.

O valor previsto dos investimentos corresponde a R$ 650.290.000,00 durante todo o contrato e o prazo da concessão é de 28 anos, prevista a prorrogação apenas em hipótese de necessidade de reequilíbrio econômico-financeiro.

A remuneração do concessionário se dará por receitas tarifárias (tarifas aeroportuárias com valores máximos fixados pelo poder concedente e revisão ordinária a cada 5 anos) e receitas alternativas (receitas complementares ou acessórias decorrentes da exploração comercial do aeroporto).

É preciso observar que já nesse primeiro modelo a intervenção do TCU se mostrou de fundamental importância. Entre outros tantos aspectos técnicos corrigidos e recomendados pelo TCU, veja-se que a Corte de Contas elevou os valores mínimos de outorga de R$ 3 milhões inicialmente definidos pelos órgãos e entidades técnicos do Governo Federal para R$ 51 milhões - correção de 1700%, ou seja, 17 vezes. E no leilão, realizado em agosto de 2011, o consórcio vencedor ofereceu R$ 170 milhões.

O contrato de concessão foi assinado em novembro de 2011.

3. DO PRESENTE AO FUTURO: PERSPECTIVAS, DEFINIÇÕES E INDEFINIÇÕES

Para analisar o caminho que agora se inicia a trilhar com os olhos voltados ao futuro, é preciso identificar e compreender as estruturas administrativas que atualmente detêm competências de gestão sobre a navegação aérea e a infraestrutura aeroportuária.

No plano da Administração Direta, tem-se em primeira linha o Ministério da Defesa, como resultado de desconcentração hierárquica e material. No entanto, através da Medida Provisória nº 527, de 18 de março de 2011, posteriormente convertida na Lei nº 12.462, de 04 de agosto de 2011 (Lei que instituiu o Regime Diferenciado de Contratações - RDC), houve a transferência das competências referentes à aviação civil e infraestrutura aeroportuária para uma reestruturada Secretaria de Aviação Civil, órgão subordinado à Presidência da República254.

254 As competências fundamentais da Secretaria de Aviação Civil estão assim delineadas: I - formular, coordenar e supervisionar as políticas para o desenvolvimento do setor de aviação civil e das infraestruturas aeroportuária e aeronáutica civil, em articulação, no que couber, com o Ministério da Defesa;II - elaborar estudos e projeções relativos aos assuntos de aviação civil e de infraestruturas aeroportuária e aeronáutica civil e sobre a logística do transporte aéreo e

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No âmbito da Administração Indireta, tem-se a INFRAERO – Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária, empresa pública federal atualmente vinculada à Secretaria de Aviação Civil, e não mais ao Ministério da Aeronáutica como antigamente, a quem compete hoje implantar, administrar, operar e explorar industrial e comercialmente a infraestrutura aeroportuária que lhe for atribuída pela Secretaria de Aviação Civil da Presidência da República, nos termos do art. 2º da Lei nº 5.862, de 12 de dezembro de 1972 (Lei de autorização da constituição da empresa).

Também na Administração Indireta, não se pode olvidar do relevante papel desempenhado pela ANAC – Agência Nacional da Aviação Civil, entidade de regulação e fiscalização das atividades de aviação civil e de infraestrutura aeronáutica e aeroportuária, agora também vinculada à Secretaria da Aviação Civil, conforme redação do Decreto nº 7.453, de 18 de março de 2011.

Atualmente, portanto, não obstante as competências legalmente outorgadas à INFRAERO e à ANAC, percebe-se uma evidente concentração de competências na reestruturada Secretaria da Aviação Civil, órgão subordinado à Presidência da República, ao qual está vinculado o recém criado Fundo Nacional de Aviação Civil (FNAC), consoante previsto no art. 63 da Lei nº 12.462/2011, composto pelo adicional tarifário previsto no art. 1º da Lei nº 7.920, de 12 de dezembro de 1989, pelos recursos referidos no art. 1º da Lei nº 9.825, de 23 de agosto de 1999, pelos valores devidos como contrapartida à União em razão das outorgas de infraestrutura aeroportuária, pelos rendimentos de suas aplicações financeiras e por outros que lhe forem atribuídos.

Por expressa previsão legal, os recursos do FNAC devem ser aplicados exclusivamente no desenvolvimento e fomento do setor de aviação civil e das infraestruturas aeroportuária e aeronáutica civil, sendo possível a sua aplicação no desenvolvimento, na ampliação e na reestruturação de aeroportos concedidos, desde que tais ações não constituam obrigação dos concessionários, conforme estabelecido no contrato de concessão.

do transporte intermodal e multimodal, ao longo de eixos e fluxos de produção em articulação com os demais órgãos governamentais competentes, com atenção às exigências de mobilidade urbana e acessibilidade;III - formular e implementar o planejamento estratégico do setor, definindo prioridades dos programas de investimentos;IV - elaborar e aprovar os planos de outorgas para exploração da infraestrutura aeroportuária, ouvida a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC);V - propor ao Presidente da República a declaração de utilidade pública, para fins de desapropriação ou instituição de servidão administrativa, dos bens necessários à construção, manutenção e expansão da infraestrutura aeronáutica e aeroportuária;VI - administrar recursos e programas de desenvolvimento da infraestrutura de aviação civil;VII - coordenar os órgãos e entidades do sistema de aviação civil, em articulação com o Ministério da Defesa, no que couber; eVIII - transferir para Estados, Distrito Federal e Municípios a implantação, administração, operação, manutenção e exploração de aeródromos públicos, direta ou indiretamente.

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Nesse quadro de reestruturação administrativa e remanejamento de competências, após a implantação do primeiro modelo de concessão aeroportuária no aeroporto de São Gonçalo do Amarante/RN, o Governo Federal editou o Decreto nº 7.531, de 21 de julho de 2011, com o qual foram incluídos no Programa Nacional de Desestatização - PND, para os fins da Lei nº 9.491, de 9 de setembro de 1997, o Aeroporto Internacional Governador André Franco Montoro, localizado no Município de Guarulhos/SP, o Aeroporto Internacional de Viracopos, localizado no Município de Campinas/SP, e o Aeroporto Internacional Presidente Juscelino Kubitschek, localizado em Brasília, Distrito Federal.

Pelo mesmo Decreto, a ANAC foi declarada responsável por executar e acompanhar o processo de desestatização dos serviços públicos, observada a supervisão da Secretaria de Aviação Civil da Presidência da República.

O novo modelo adotado sofreu ajustes em relação àquele adotado inicialmente no ASGA.

Esses três aeroportos operam atualmente 30% dos passageiros, 57% das cargas e 19% das aeronaves do tráfego aéreo brasileiro. Neles, o Governo Federal definiu que as concessões deveriam ser feitas por meio de Sociedades de Propósito Específico (SPEs), constituídas por investidores privados, com participação obrigatória de até 49% da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária - INFRAERO. Cada SPE, empresa privada, ficará responsável por novos investimentos e pela gestão desses aeroportos (ampliação, manutenção e exploração). Como acionista relevante das SPEs, a INFRAERO participará das principais decisões da companhia, havendo a obrigação da celebração de acordo de acionistas.

De acordo com as regras definidas, seria vencedor no leilão quem desse o maior valor de contribuição ao sistema. O leilão dos três aeroportos ocorreu de forma simultânea na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa). Um mesmo grupo econômico, isoladamente ou em consórcio, somente poderia ser vencedor de um único aeroporto. Além disso, uma empresa não poderia participar de mais de um consórcio licitante. A proposta era estimular a concorrência e permitir, posteriormente, a comparação de padrões operacionais entre aeroportos, melhorando a prestação de serviço aos usuários.

As definições feitas pelo Governo Federal foram objeto de apreciação pelo Tribunal de Contas da União em dezembro de 2011, através dos Acórdãos nº 3232/11, 3233/11 e 3234/11 - Plenário255.

Nesses julgamentos, a Corte de Contas aprovou com ressalvas o primeiro estágio de fiscalização da outorga de concessão, estabelecendo condicionantes

255 Íntegra dos acórdãos disponíveis em http://portal2.tcu.gov.br/portal/page/portal/ TCU/jurisprudencia. Acesso em 09 de novembro de 2012.

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à publicação dos editais.Entre eles, a adequação dos valores mínimos estabelecidos para a outorga.

O papel do TCU mostrou-se relevantíssimo e, ademais, revelou a incompetência dos entes governamentais envolvidos no planejamento do processo de concessão.

De fato. No caso do aeroporto de Guarulhos/SP, o TCU determinou a elevação do valor mínimo para a concessão de R$ 2,3 bilhões para R$ 3,8 bilhões, estabelecida pelo prazo de 20 anos, o que decorreu da reavaliação da (super) estimativa dos investimentos alocados para a futura concessionária.

O TCU determinou mudanças ainda maiores nos outros dois aeroportos. Em Viracopos/SP, cuja concessão foi licitada com prazo de 30 anos, o valor mínimo passou de R$ 521 milhões para R$ 1,7 bilhão (acréscimo de 234%). Em Brasília/DF, cuja concessão foi licitada com prazo de 25 anos, a elevação do valor mínimo foi de 907%, de R$ 75 milhões para R$ 761 milhões.

A soma dos valores mínimos de outorga das três concessões passou de R$ 2,9 bilhões para R$ 6,2 bilhões, um aumento de mais de 100%.

São inadmissíveis estas diferenças e não se pode creditá-las a meras incorreções ou equívocos. Errar em bilhões é algo que não se coaduna com os mínimos padrões de planejamento que se exige da Administração Pública.

O leilão desses aeroportos ocorreu em 06 de fevereiro de 2012 e arrecadou 24,5 bilhões, com ágio de 348% sobre o valor mínimo das outorgas. Esses valores correspondem ao valor presente estimado das receitas tarifárias e não-tarifárias estimadas para todo o prazo da concessão. Além disso, a concessionária deverá pagar ao poder concedente (ANAC) uma contribuição fixa anual definida em contrato e outra contribuição variável incidente sobre excedente de faturamento bruto anual.

Os contratos de concessão foram firmados em 14 de junho de 2012, todos eles com cláusula compromissória que elege a arbitragem, em Brasília/DF, como modo de resolução de eventuais conflitos.

Com essas concessões, a INFRAERO remanesce com a responsabilidade pela administração, operação e exploração de 63 aeroportos (aeródromos públicos) que contemplam aproximadamente 67% do movimento global de passageiros.

A partir daí, no plano das concessões aeroportuárias, o enfoque no futuro se desdobra na análise de questões que surgirão dos contratos já celebrados, bem como na análise de alterações que deverão ser feitas pelo Governo Federal no modelo que será adotado em novas concessões que estão sob planejamento.

Nas duas situações de análise, entende-se que há uma situação comum que deve ser objeto de altíssima preocupação. Trata-se da participação da INFRAERO nas SPEs e as correlatas consequências de ordem prática e jurídica.

É importante observar que em todas as avaliações feitas pelo TCU em relação aos modelos adotados, é reiterada a preocupação da Corte de Contas e

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a recomendação de que por ocasião de futuras delegações seja examinada a real necessidade de participação da INFRAERO.

A recomendação é oportuna e o modelo deve ser revisto. Não há justificativa plausível para manter a INFRAERO com a participação definida nos modelos já definidos e implantados, notadamente se os resultados auferidos pela empresa pública, na condição de sócia das SPEs, estiverem submetidos ao sistema de partilha de recursos que beneficia o Tesouro Nacional e o Comando da Aeronáutica, sem destinação específica à infraestrutura aeroportuária dos demais aeroportos brasileiros.

Além disso, uma visão do futuro, mas com os olhos atentos ao passado, recomenda que a atuação do TCU seja contínua, não apenas em relação às novas concessões, mas também sobre os contratos já celebrados, pois os exemplos vivenciados demonstram que a ausência da intervenção daquela Corte seria catastrófica na implementação dos modelos adotados.

Em relação aos contratos já celebrados, especialmente aqueles que dizem respeito aos três maiores aeroportos em funcionamento, as principais controvérsias decorrem de uma confusão de regimes jurídicos que se vislumbra em diversas situações definidas contratualmente.

Vejam-se alguns exemplos.Os três contratos firmados para concessão dos aeroportos de Guarulhos/

SP, Viracopos/SP e Brasília/DF definem um plano de transferência operacional (PTO), incluindo plano de transição da gestão do aeroporto, plano de transição dos recursos humanos e plano de comunicação e informação ao público.

Entre os estágios desse plano de transição, há um período de preparação (10 dias + 20 dias após assinatura do contrato) seguido por um período de operação assistida, no qual a INFRAERO mantém operação assistida pela concessionária que deverá validar decisões gerenciais (período de 3 meses). Na sequência, estipula-se uma fase de transição em que a concessionária assumirá a operação com apoio da INFRAERO.

Surgem, então, questões controvertidas quanto à transferência dos empregados da INFRAERO à concessionária. Na fase de operação assistida, os empregados permanecem vinculados e remunerados pela INFRAERO, mas na fase seguinte – operação de transição - os empregados da INFRAERO serão cedidos à concessionária, mediante reembolso de todos os custos e encargos trabalhistas e previdenciários e sub-rogação em contratos de cessão de espaço físico (custos e ônus da extinção antecipada do contrato sub-rogado devem ser arcadas pela concessionária, sem reembolso pela INFRAERO).

Não há, porém, uma definição precisa sobre o regime jurídico aplicável nessas situações.

Outro ponto controvertido e polêmico diz respeito às obras cuja responsabilidade é do Poder Público, definidas em anexos aos contratos de

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concessão. Nessas obras, a responsabilidade é atribuída à INFRAERO, cabendo-lhe promover todos os atos necessários à contratação e completa execução dos respectivos contratos.

Ocorre que eventuais atrasos na celebração ou execução desses contratos não desobrigam a concessionária de seu dever de cumprir o contrato. Vale dizer, caso a INFRAERO não celebre os contratos sob sua responsabilidade no prazo fixado, a concessionária poderá – ou deverá - contratar a obra ou serviço, observadas as disposições da Lei de Licitações, com posterior reembolso pela INFRAERO.

A situação revela uma insegurança quanto ao regime jurídico aplicável e um agravamento desproporcional dos riscos atribuídos ao concessionário, o que por certo está refletido nos custos de transação da equação econômico-financeira firmada quando da celebração do contrato.

No que diz respeito ao novo modelo, ou então aos novos modelos que serão adotados pelo Governo federal, persistem as indefinições. Há divulgação extraoficial de que os próximos aeroportos que serão concedidos à iniciativa privada serão aqueles do Rio de Janeiro/RJ (Galeão – Antonio Carlos Jobim) e de Belo Horizonte/MG (Confins).

Para além de haver incertezas quanto ao regime jurídico que será aplicado, o que ocasiona insegurança aos investidores interessados, percebe-se das notícias veiculadas pela imprensa que parece haver uma confusão de competências com a nova Empresa de Planejamento e Logística – EPL, criada pela Medida Provisória nº 576, de 15 de agosto de 2012, pois o principal interlocutor sobre o novo modelo a ser adotado tem sido o responsável por essa nova empresa estatal256.

Embora a nova EPL tenha entre seus objetos a prestação serviços na área de estudos e pesquisas destinados a subsidiar o planejamento do setor de transportes no País (art. 3º, II, da Lei nº 12.404/11), verifica-se clara superposição de competências em relação à Secretaria de Aviação Civil, à ANAC e à própria INFRAERO, através de medida provisória que teve sua vigência prorrogada até dezembro de 2012, com conversão em Lei ainda incerta, o que causa manifesta insegurança quanto ao marco regulatório que será adotado nas novas concessões.

4. O RDC E A INFRAESTRUTURA AEROPORTUÁRIA

A realização da Copa do Mundo FIFA 2014 e das Olimpíadas 2016 no Brasil acarretou a necessidade de o governo brasileiro abrir o armário e iniciar uma arrumação sobre tudo o que foi guardado bem no fundo, para ser resolvido em momento oportuno.

256 Confira-se reportagem publicada em 18 de outubro de 2012, disponível em http://economia.estadao.com.br/noticias/economia+negocios,novas-concessoes-de-aeroportos-nao-devem-ter-mudancas-radicais-epl,131293,0.htm. Acesso em 09 de novembro de 2012.

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O investimento em infraestrutura aeroportuária é um bom exemplo.Desde o anúncio de que o Brasil sediará a Copa das Confederações FIFA

2013, a Copa do Mundo FIFA 2014 e os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos 2016, uma mudança de paradigma ocorreu. Antes, a infraestrutura brasileira recebia pouca ou nenhuma atenção. A partir do referido anúncio, a infraestrutura entrou na pauta do governo brasileiro.257

Deste modo, diante da enormidade de problemas infraestruturais enfrentados pelo país, iniciou-se um movimento para alterar as leis, no sentido de viabilizar a execução a tempo de todas as obras, dentre estas, as demandas pelos aeroportos brasileiros.

Em 21 de julho de 2011, foi publicado o Decreto nº 7.531, o qual dispõe sobre a inclusão do Aeroporto Internacional Governador André Franco Montoro, localizado no Município de Guarulhos, o Aeroporto Internacional de Viracopos, localizado no Município de Campinas, ambos no Estado de São Paulo, e o Aeroporto Internacional Presidente Juscelino Kubitschek, localizado em Brasília, Distrito Federal no Programa Nacional de Desestatização (PND).

Criado, originariamente, pela Lei n° 8.031, de 12 de abril de 1990, a qual foi revogada pela Lei nº 9.491, de 9 de setembro de 1997, o PND prevê procedimentos para a desestatização de algumas atividades econômicas (em sentido amplo)258, visando promover o desenvolvimento nacional frente ao cenário internacional.

257 Ainda que se argumente a edição do Programa de Aceleração do Crescimento anterior ao anúncio supramencionado, não se deve esquecer que a recepção da Copa do Mundo no Brasil é sonho antigo do governo. Por isso, pode-se afirmar que a criação do PAC e a realização da Copa 2014 no Brasil foram pensados juntos.258 Eros Roberto GRAU leciona que a distinção entre atividade econômica e serviço público, na perspectiva da Constituição da República, é “inquestionável”. No entanto, antes de se iniciar a distinção, necessária se faz a discriminação de intervenção estatal e de atuação estatal. Segundo o autor, intervenção estatal indica, “em sentido forte”, atuação do Estado em campo de titularidade da iniciativa privada; por outro lado, atuação estatal é a atuação do Estado tanto no campo de titularidade própria quanto privada. “Em outros termos, teremos que intervenção conota atuação estatal no campo da atividade econômica em sentido estrito; atuação estatal, ação do Estado no campo da atividade econômica em sentido amplo”. A partir desta diferenciação é que se está autorizado, sob a luz da teoria de Eros Roberto GRAU, a passar a análise da distinção entre atividade econômica e serviço público. A teoria do autor é bastante direta: afirma que a prestação de serviço público está voltada a satisfação de necessidades, utilizando-se de bens e serviços, recursos, esses, escassos. Portanto, conclui que serviço público, atividade econômica desenvolvida primordialmente pelo setor público, é espécie (tipo) de atividade econômica, erigida à categoria gênero; verifica-se, então, que o gênero – atividade econômica – contém duas espécies: o serviço público e a atividade econômica. Diante do fato de que denomina da mesma forma gênero e espécie, propõe o autor a seguinte convenção: “atividade econômica em sentido amplo conota gênero; atividade econômica em sentido estrito, a espécie”. In: GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica da constituição de 1988. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 102-104.

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Entretanto, as concessões dos três aeroportos incluídos no PND por meio do Decreto nº 7.531/11 foram licitadas segundo o processo determinado pela Lei nº 8.666/93 e não conforme o RDC.

4.1 O que é o RDC?O Regime Diferenciado de Contratações Públicas é uma nova modalidade

licitatória,259 entendimento ao qual a Infraero aderiu integralmente, como se extrai da intitulação do edital “RDC Presencial nº 001/ADNE/SBJP/2011.260

A Lei Federal nº 12.462, de 5 de agosto de 2011, foi resultado da conversão da Medida Provisória nº 527. Inicialmente, como adverte André Guskow CARDOSO, “Ele [o RDC] foi introduzido no texto da medida provisória [527] por meio de emenda parlamentar”.261

A Lei nº 12.462/11 é divida em dois capítulos, sendo que o primeiro trata do RDC. A seção I dispõe sobre os aspectos gerais do RDC. Destaque-se que a opção por este regime diferenciado implicará em afastamento das normas contidas na Lei nº 8.666/93, nos termos do seu artigo 1º, § 2º (Lei do RDC).

O RCD tem por objetivos: “I - ampliar a eficiência nas contratações públicas e a competitividade entre os licitantes; II - promover a troca de experiências e tecnologias em busca da melhor relação entre custos e benefícios para o setor público; III - incentivar a inovação tecnológica; e IV - assegurar tratamento isonômico entre os licitantes e a seleção da proposta mais vantajosa para a administração pública”, nos termos do § 1º do artigo 1º.

Esta Lei ora em comento incluiu no seio da licitação a noção de sustentabilidade, tornando expresso o dever de a Administração Pública licitar os objetos respeitando (artigo 4º, § 1º):

I - disposição final ambientalmente adequada dos resíduos sólidos gerados pelas obras contratadas;

II - mitigação por condicionantes e compensação ambiental, que serão

259 Confira-se tal posicionamento nos seguintes estudos: ZYMLER, Benjamin; CANABARRO DIOS, Laureano. O Regime Diferenciado de Contratação (RDC) aplicável às contratações necessárias à realização da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 11, n. 125, maio 2012. Disponível em: http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=79102. Acesso em: 31 de maio 2012; ANDRADE, Ricardo Barretto de; VELOSO, Vitor Lanza. Uma visão geral sobre o Regime Diferenciado de Contratações Públicas: objeto, objetivos, definições, princípios e diretrizes. In: JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA, Cesar A. Guimarães. O Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC): comentários à lei nº 12.462 e ao decreto nº 7.581. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 27.260 O referido edital está disponível em: http://licitacao.infraero.gov.br/arquivos_licitacao/2011/SRNE/001_ADNE_SBJP_2011_RDC/Edital_RDC_Projeto.pdf. Acesso em: 21 jan. 2013.261 CARDOSO, André Guskow. O Regime Diferenciado de Contratações Públicas: a questão da publicidade do orçamento estimado. In: JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA, Cesar A. Guimarães Pereira. O Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC): comentários à lei nº 12.462 e ao decreto nº 7.581. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 73.

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definidas no procedimento de licenciamento ambiental;III - utilização de produtos, equipamentos e serviços que,

comprovadamente, reduzam o consumo de energia e recursos naturais;IV - avaliação de impactos de vizinhança, na forma da legislação

urbanística;V - proteção do patrimônio cultural, histórico, arqueológico e imaterial,

inclusive por meio da avaliação do impacto direto ou indireto causado pelas obras contratadas; e

VI - acessibilidade para o uso por pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida.

Trata-se de uma revolução na licitação. Significa que a Administração Pública deverá, quando licitar os objetos em consonância com o artigo 1º da Lei do RDC, observar as normas de Direito Ambiental para agir de maneira sustentável. São as chamadas “licitações sustentáveis”.

Na Seção II, a Lei trata das “Regras Aplicáveis às Licitações no âmbito do RDC” e é composta dos artigos 5º ao 38. No entanto, destacamos algumas das inovações, conforme destaques a seguir.

A) Orçamento sigiloso. O artigo 6º estipula a possibilidade de a Administração Pública omitir o orçamento estimado e, portanto, o preço máximo que a Administração Pública se propõe a pagar.

Essa é uma inovação do RDC em relação à Lei nº 8.666/93, a qual determina, no inciso II do § 2º do artigo 40, que o “orçamento estimado em planilhas de quantitativos e preços unitários”. Esse dispositivo serve para atender ao princípio da publicidade e, também, demonstrar para os cidadãos que o preço dos bens adquiridos, dos serviços contratados ou das obras licitadas será correspondente ao praticado no mercado, respeitando-se, ainda, o princípio da economicidade e da contratação mais vantajosa para a Administração Pública.

O caput do artigo 6º da lei do RDC prevê que a adoção da regra do sigilo do orçamento estimado ocorrerá “sem prejuízo da divulgação do detalhamento dos quantitativos e das demais informações necessárias para a elaboração das propostas”, nos termos da segunda parte do caput do mesmo dispositivo.262

B) Indicação de marca. O artigo 7º, inciso I, da Lei do RDC prevê que no caso de licitação para aquisição de bens poderá ser indicada marca ou modelo do produto, desde que fundamentado o ato, conforme as hipóteses previstas nas alíneas a a c do inciso I:

a) em decorrência da necessidade de padronização do objeto;b) quando determinada marca ou modelo comercializado por mais de um

262 Sobre o tema, cf. MOTTA, Carlos Pinto Coelho; BICALHO, Alécia Paolucci Nogueira. RDC: contratações para as copas e jogos olímpicos: Lei nº 12.462/2011, Decreto nº 7.581/2011. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 95-114.

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fornecedor for a única capaz de atender às necessidades da entidade contratante; ouc) quando a descrição do objeto a ser licitado puder ser melhor

compreendida pela identificação de determinada marca ou modelo aptos a servir como referência, situação em que será obrigatório o acréscimo da expressão “ou similar ou de melhor qualidade”.

C) Apresentação de amostra. No artigo 7º, inciso II, está preceituada a faculdade da Administração para exigir que sejam apresentadas amostras antes mesmo da sua habilitação no certame (inversão de fases). Entretanto, o ato que exigir a apresentação de amostras deverá fundamentar a necessidade da exibição. Segundo esse inciso, as amostras poderão ser exigidas no procedimento auxiliar de pré-qualificação, na fase de julgamento das propostas ou na fase de lances, apenas.

D) Contratação integrada. Inspirada no item 1.9 do “Regulamento do Procedimento Licitatório Simplificado da Petrobrás S.A.”, a contratação integrada obriga o contratado a elaborar o projeto básico e executivo, além de executar o contrato. A Lei do RDC dispõe sobre a contratação integrada no artigo 9º e §§.

Esse regime de execução de obras e serviços de engenharia, nos termos do artigo 9º, § 2º, incisos I, II e III, da Lei do RDC, quando for adotado, deverá estar expresso na convocação e “I - o instrumento convocatório deverá conter anteprojeto de engenharia que contemple os documentos técnicos destinados a possibilitar a caracterização da obra ou serviço, incluindo: a) a demonstração e a justificativa do programa de necessidades, a visão global dos investimentos e as definições quanto ao nível de serviço desejado; b) as condições de solidez, segurança, durabilidade e prazo de entrega, observado o disposto no caput e no § 1o do art. 6o desta Lei; c) a estética do projeto arquitetônico; e d) os parâmetros de adequação ao interesse público, à economia na utilização, à facilidade na execução, aos impactos ambientais e à acessibilidade; II - o valor estimado da contratação será calculado com base nos valores praticados pelo mercado, nos valores pagos pela administração pública em serviços e obras similares ou na avaliação do custo global da obra, aferida mediante orçamento sintético ou metodologia expedita ou paramétrica; e III - será adotado o critério de julgamento de técnica e preço.”

O disposto no artigo 9º excepciona a previsão do artigo 7º, § 2º, incisos I e II, da Lei nº 8.666/93, o qual prevê que as obras e os serviços somente poderão ser licitados quando “I - houver projeto básico aprovado pela autoridade competente e disponível para exame dos interessados em participar do processo licitatório; II - existir orçamento detalhado em planilhas que expressem a composição de todos os seus custos unitários”. Ainda, o artigo 9º do RDC confronta o artigo 40, § 2º, incisos I e II, Lei nº Lei 8.666/93, deverão constar como anexos do edital o projeto básico e/ ou executivo e orçamento estimado em planilhas de quantitativos e preços unitários.

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E) Inversão de fases. A Lei do RDC adotou a sistemática do Pregão e definiu que a fase de julgamento das propostas de preço será antes da fase de habilitação.

4.2 INFRAESTRUTURA AEROPORTUÁRIA E RDC

As obras em aeroportos poderão ser licitadas por meio do RDC em três hipóteses: por meio da aplicação do inc. II, do art. 1º, da Lei do RDC263, desde que as obras estejam inseridas no Plano Estratégico de Ações do Governo Brasileiro do Comitê Gestor para realização da Copa do Mundo FIFA 2014; por meio da aplicação do inciso III, do art. 1º, da Lei do RDC264; e, por fim, se a obra estiver prevista nas ações do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), nos termos do inc. IV, do art. 1º, da Lei do RDC265.

Há diversas obras previstas na Matriz de Responsabilidades em andamento. Nos termos do Anexo II da Resolução GECOPA nº 22/12266, há uma versão atualizada da referida Matriz. Percebe-se, de seu “Anexo C – Aeroportos”, há investimentos efetuados nos aeroportos localizados em Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, Manaus, Natal, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo (Guarulhos) e São Paulo (Vira-copos).

Deste modo, pode-se concluir que os aeroportos que se localizam a uma distância superior a 350km das cidades sedes das competições descritas no art. 1º poderão ter suas obras de melhorias licitadas pelo RDC, desde que incluídas previamente na Matriz de Responsabilidades editada pelo GECOPA – Grupo Executivo do Comitê Gestor da Copa do Mundo FIFA 2014.

263 Art. 1o  É instituído o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), aplicável exclusivamente às licitações e contratos necessários à realização: (...); II - da Copa das Confederações da Federação Internacional de Futebol Associação - Fifa 2013 e da Copa do Mundo Fifa 2014, definidos pelo Grupo Executivo - Gecopa 2014 do Comitê Gestor instituído para definir, aprovar e supervisionar as ações previstas no Plano Estratégico das Ações do Governo Brasileiro para a realização da Copa do Mundo Fifa 2014 - CGCOPA 2014, restringindo-se, no caso de obras públicas, às constantes da matriz de responsabilidades celebrada entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios.264 Art. 1o  É instituído o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), aplicável exclusivamente às licitações e contratos necessários à realização: (...); III - de obras de infraestrutura e de contratação de serviços para os aeroportos das capitais dos Estados da Federação distantes até 350 km (trezentos e cinquenta quilômetros) das cidades sedes dos mundiais referidos nos incisos I e II.265 Art. 1o  É instituído o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), aplicável exclusivamente às licitações e contratos necessários à realização: (...); IV - das ações integrantes do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).266 Disponível em: http://www.copa2014.gov.br/pt-br/sobre-a-copa/resolucoes-do-gecopa. Acesso em: 13.02.2013.

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5. CONCLUSÃO

Parece evidente que solucionar os gargalos de infraestrutura aeroportuária não constitui um problema trivial. Cuida-se de atividade que demanda um planejamento série e competente, acompanhado de investimentos de alto vulto.

As mudanças experimentadas nos últimos anos, com a opção política do Governo federal pela concessão de alguns aeroportos à iniciativa privada veio acompanhada de claros subterfúgios, quais sejam, a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.

Afirmar que as modificações nos marcos normativos e regulatórios da infraestrutura aeroportuária no Brasil revelam uma necessidade vinculada aos eventos esportivos de 2014 e 2016 é um auto-engano. E como afirma Eduardo Gianetti, “mentir para si mesmo e acreditar na mentira requer talento”.

Há situações, porém, em que o subterfúgio é indispensável e vem para o bem. Ainda nas palavras de Eduardo Gianetti, o Brasil vive a “hipnose da boa causa”, algo que produz nos indivíduos uma espécie de cegueira protetora. É indisputável que as necessidades públicas relacionadas às deficiências da infraestrutura aeroportuária brasileira existiam, existem e continuarão a existir independentemente dos eventos esportivos de 2014 e 2016.

Mas se o Governo federal precisava de uma boa causa para justificar suas ações e essa boa causa reside na Copa das Confederações de 2013, Copa do Mundo de 2014 e nos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, eventos expressamente referidos como fundamento do regime diferenciado de contratações públicas instituído pela Lei nº 12.462, de 04 de agosto de 2011, por exemplo, evidencia-se que esse auto-engano veio para o bem.

As inovações trazidas pelo RDC, tratadas neste estudo, apontam que há vontade política para a realização dos grandes eventos desportivos descritos no art. 1º da Lei nº 12.462/11 no prazo estipulado e, por isso, a realização das referidas obras de infraestrutura por meio da modalidade RDC servirá para que a função administrativa seja realizada eficientemente e, com isso, seja atendido o interesse público envolvido na realização das Copas e dos Jogos Olímpicos.

Ilustrativamente, veja-se que o movimento de passageiros estimado para 2014, apenas nos 13 (treze) principais aeroportos do país, de acordo com o plano de investimento da INFRAERO, é de 152 milhões de passageiros.

No período entre 2011 e 2014, não obstante a desaceleração da economia, estima-se um crescimento total de 46,4% na demanda por transporte aéreo e, portanto, conclui-se por um movimento global previsto para 2014 em torno de 225,9 milhões de passageiros.

É evidente que esse crescimento da demanda é independente dos eventos esportivos, mesmo porque a estimativa de turistas estrangeiros durante a Copa

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do Mundo de 2014 está em torno de 500/600 mil pessoas, com movimento interno de turistas domésticos de aproximadamente 3 milhões de passageiros.

Ocorre que apenas a adoção de novos marcos normativos não é suficiente. É preciso haver planejamento e eficiência na aplicação desse conjunto normativo e dos institutos que lhe são correlatos, sob pena de enfrentarmos seríssimos problemas em curto prazo, mesmo com vultosos investimentos nos próximos anos.

O planejamento do Governo federal no âmbito da infraestrutura aeroportuária não pode ficar limitado aos eventos esportivos vindouros. As necessidades públicas vão muito além.

São indispensáveis ações emergenciais para solucionar os problemas que reclamam solução em curtíssimo prazo, bem como deve-se adotar medidas estruturantes de médio e longo prazo, sempre sob planejamento estratégico marcado por balizas seguras, capazes de atrair a iniciativa privada enquanto parceiro relevante na consecução dessa atividade de titularidade estatal.

Certamente, a realização das obras de infraestrutura aeroportuária por meio do Regime Diferenciado de Contratações atenderá à demanda do incremento da infraestrutura aeroportuária brasileira, por enquanto. O que sucederá após o fim dos eventos desportivos é que demandará atenção do legislador ordinário acerca da vigência da nova modalidade criada pela Lei nº 12.462/11.

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REFERÊNCIAS

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CAMPOS NETO, Carlos Alvares da Silva e DE SOUZA, Frederico Hartmann. Nota Técnica: Aeroportos no Brasil: investimentos recentes, perspectivas e preocupações. IPEA - Diretoria de Estudo Setoriais. Abril/2011.

CARDOSO, André Guskow. O Regime Diferenciado de Contratações Públicas: a questão da publicidade do orçamento estimado. In: JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA, Cesar A. Guimarães Pereira. O Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC): comentários à lei nº 12.462 e ao decreto nº 7.581. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

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MOTTA, Carlos Pinto Coelho; BICALHO, Alécia Paolucci Nogueira. RDC: contratações para as copas e jogos olímpicos: Lei nº 12.462/2011, Decreto nº 7.581/2011. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

ZYMLER, Benjamin; CANABARRO DIOS, Laureano. O Regime Diferenciado de Contratação (RDC) aplicável às contratações necessárias à realização da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 11, n. 125, maio 2012. Disponível em: http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=79102. Acesso em: 31 de maio 2012.

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ARTIGO 7 AS GRANDES OBRAS PARA A COPA DO MUNDO DE 2014: ASPECTOS

DAS DESAPROPRIAÇÕES E O ESTÁDIO JOAQUIM AMÉRICO GUIMARÃES

José rodriGo sade 267

SUMÁRIO: Introdução. 1. A Copa do Mundo de 2014 em Curitiba. 2. Das desapropria-ções. 3. Questões de urgência. 4. O caso concreto do estádio Joaquim Américo Guimarães. 5. Conclusão. Referências bibliográficas.

INTRODUÇÃO

Os estádios de futebol onde serão disputadas as partidas da Copa do Mundo de 2014 são os principais equipamentos urbanos necessários à competição, sem os quais simplesmente não haveria tais jogos.

Mas o nível de exigência imposto pela FIFA para esse espetáculo impõe que haja intervenção estatal não apenas nos estádios e em seu entorno, como também na questão da mobilidade urbana e aeroportos. Serão obras de trens, metrôs e corredores de ônibus, e também ampliação e melhoria dos aeroportos.

Assim, os investimentos necessários serão altos, e em sua grande maioria de recursos públicos, daí porque todo o cuidado na correta aplicação dos mesmos é indispensável.

A construção e reforma dos estádios, a ampliação de aeroportos e a instalação de novas vias de rodagem, acarretarão em conseqüências à propriedade particular, e o presente artigo tratará justamente de algumas nuances do procedimento de desapropriação.

Em qualquer das várias cidades ao redor do Mundo que já receberam jogos, a Copa do Mundo sempre exigiu a participação na condição de protagonistas dos diversos entes estatais envolvidos. Tal evento não se realizaria se não houvesse a intervenção do Estado no domínio econômico, e umas dessas formas de atuação é justamente por meio da desapropriação.

O mundial de futebol de 2014 irá durar 30 dias, mas os benefícios dele advindos, desde que haja correção na execução das obras, certamente serão permanentes.

São 12 (doze) as cidades que receberão a Copa do Mundo de 2014: Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, Manaus, Natal, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.

267 Advogado atuante no Direito Empresarial. Pós-Graduado pela Universidade Federal do Paraná. Cursando Legal Law Master pelo IBEMEC. Membro da Comissão de Direito Econômico da OAB-PR.

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Considerando que em todas, em menor o maior grau, haverá intervenção nos estádios e também obras de mobilidade urbana, estima-se um gasto na ordem de pelo menos R$ 25 bilhões.

1. A COPA DO MUNDO DE 2014 EM CURITIBA

Em 20 de setembro de 2010 foi celebrado convênio entre o ESTADO DO PARANÁ, o MUNICÍPIO DE CURITIBA e o CLUBE ATLÉTICO PARA-NAENSE, com a interveniência do INSTITUTO DE PESQUISA E PLANE-JAMENTO URBANO DE CURITIBA – IPPUC, para a realização da Copa do Mundo de 2014.

A adequação do estádio Joaquim Américo Guimarães e do centro de imprensa foi exigência da FIFA para a realização de quatro jogos.

Nos termos do referido convênio, atualizado por aditivos, o valor estimado dessa obra será de até 184 milhões. Ao ESTADO caberá o repasse ao MUNICÍPIO do valor de cerca de R$ 60 milhões. Ao MUNICÍPIO caberá a concessão de até R$ 123 milhões em incentivo construtivo e, por fim, ao CLUBE caberá arcar com até R$ 61 milhões referente aos projetos, obras e serviços.

No plano da mobilidade urbana, que está incluído no chamado PAC da Copa do GOVERNO FEDERAL, o MUNICÍPIO será responsável (i) pela reforma completa da rodoferroviária e entorno, (ii) pela revitalização da Avenida Cândido de Abreu, (iii) pela realização da Linha Verde Sul, (iv) pela reforma do Terminal Santa Cândida, (v) pela revitalização da Avenida Marechal Floriano Peixoto, (vi) pela implantação do Sistema de Mobilidade Urbana, (vii) pela implantação do metrô e (viii) pela implantação do Corredor Aeroporto/Rodoferroviária, tudo resultando em investimentos da ordem de pelo menos R$ 222 milhões.

São essas obras, enfim, que justificam a realização do evento, porque visivelmente trarão melhoras significativas e permanentes à cidade-sede.

Ademais, desde quando anunciada a escolha de Curitiba como uma das sedes, é certo que sua exposição na mídia só fez aumentar, o que contribui para o incremento do turismo.

Esses investimentos produzem impactos na economia, sejam eles diretos, como por exemplo com o aumento na produção das empreiteiras, que para tanto necessitarão de mais mão de obra; e também indiretos, relacionados ao fornecimento de insumos para tantas obras e, por fim, o impacto induzido produzido a partir do consumo das famílias que será incrementado com novos empregos, ganhos de salários, etc.

Estima-se que serão gerados algo em torno de vinte e dois mil novos postos de trabalho diretos e outros nove mil indiretos, o que representa um incremento de 38,47%. E tudo isso somado deve gerar como consequência a

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expansão do PIB da Região Metropolitana de Curitiba em R$ 168,85 milhões, segundos estudos feitos pelo IPARDES, de autoria de RICARDO KURESKI, em artigo publicado no site da entidade.

Junto com as obras de responsabilidade do setor público, também a iniciativa privada precisa se preparar bem para enfrentar a Copa do Mundo. Serão necessárias mais vagas de hotel, mais restaurantes, mais serviços privados de transporte (vans e táxis), guias, etc., tudo contribuindo para o aumento do emprego, circulação de dinheiro e recolhimento de tributos.

É nesse ganho indireto que os defensores da Copa também se apegam para a defesa da grande oportunidade que o evento encerra.

2. DAS DESAPROPRIAÇÕES

Como já se disse acima, as obras que serão realizadas sob o incentivo da Copa do Mundo de 2014 exigirão pesados investimentos e não prescindirão da expropriação de propriedades particulares.

Os imóveis particulares se apresentam indispensáveis para a ampliação de estádios, para construção ou reforma de ruas, para instalação de metrôs, e existe legislação específica que disciplina o processo pelo qual o Poder Público se torna proprietário de um bem que até então era propriedade particular.

É de índole constitucional a garantia do direito de propriedade (art. 5º, inciso XXII), sendo que somente por processo de desapropriação, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, o particular será expropriado:

A lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e previa indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição.

Há destaque na Constituição Federal para imóveis urbanos, para os quais a regra foi repetida no § 3º, do artigo 182: “As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro.”

A despeito da vigência da Lei nº 12462/2012, que trata do chamado RDC - REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÕES PÚBLICAS, cujo diploma trouxe importantes alterações no processo licitatório de obras públicas destinadas aos jogos olímpicos, paraolímpicos, Copa das Confederações 2013 e Copa do Mundo FIFA 2014, o procedimento das desapropriações permanece sendo regulado pelo mesmo Decreto-Lei nº 3365/1941.

Nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello:(...) desapropriação se define como o procedimento através do qual o

Poder Público, fundado em necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, compulsoriamente despoja alguém de um bem certo, normalmente adquirindo-o para si, em caráter originário, mediante indenização prévia, justa

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e pagável em dinheiro, salvo no caso de certos imóveis urbanos ou rurais, em que, por estarem em desacordo com a função social legalmente caracterizada para eles, a indenização far-se-á em títulos da dívida pública, resgatáveis em parcelas anuais e sucessivas, preservado seu valor real.268

Além das situações de necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, também o pagamento da indenização prévia em dinheiro encerram os pressupostos para a realização da desapropriação.

Para as obras da Copa do Mundo de 2014 as desapropriações serão por utilidade pública, porquanto a utilização das propriedades foi considerada vantajosa para o Poder Público, inclusive na intervenção do estádio Joaquim Américo Guimarães.

O procedimento de desapropriação desafia duas fases, a primeira, declaratória, na qual o Poder Público, através de Decreto, atinge determinada propriedade privada e a declara de utilidade pública ou interesse social, enquanto que a segunda, chamada de executória, é a realização no plano concreto de todas as providências para a transferência da propriedade da esfera particular para o domínio público. Essa segunda fase, conforme o caso, pode ainda desdobrar-se em outras duas, uma administrativa, quando as partes conseguem resolver todos os detalhes amigavelmente, e outra judicial, para os casos em que apenas com a intervenção do Poder Judiciário ocorre a finalização do ato.

3. QUESTÕES DE URGÊNCIA

Não é errada a impressão que temos no sentido de que algumas coisas no Brasil são deixadas sempre para última hora.

Desde quando o Brasil foi escolhido como sede da Copa do Mundo de 2014, sabe-se que diversas seriam as obras necessárias e que nenhuma dessas obras ficaria pronta do dia para noite. Será preciso planejamento, cronogramas físico-financeiros e, mais do que tudo, estrito respeito à legislação nacional.

A Administração Pública está obrigada a somente atuar na forma prevista em lei (princípio da legalidade) e não deve haver espaços para manobras e improvisos. Mesmo assim, nosso convencimento foi forjado ao longo dos tempos a acreditar que os gestores públicos acabam deixando tudo para última hora, e uma das consequências dessa estratégia é justamente o aumento dos custos das obras e serviços.

No aspecto da licitação, é sabida a possibilidade de dispensa de licitação nos casos de emergência, conforme previsão contida no art. 24, da Lei nº 8666/1993.

268 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 13 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2001.

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O resultado é sabido por todos e o caso dos Jogos Pan-Americanos de 2007 é ilustrativo. De um orçamento inicial de R$ 410 milhões, chegou-se ao final a um custo de R$ 3,7 bilhões, grande parte executado sem licitação, representando uma elevação de quase 800%.

As desapropriações também podem ser palco do mesmo problema. O Poder Público, olvidando da importância da fase administrativa do procedimento de desapropriação, não entra em contato com o expropriado (particular), e dá inicio aos seus projetos e planos, anotando na rubrica de despesas um valor quase sempre menor do que o mercado pratica.

Assim, determinada propriedade, exemplificativamente, tem seu valor de mercado em R$ 1.000,00 o metro quadrado, mas o ente estatal no processo judicial de desapropriação, alegando urgência, pede autorização para depositar um valor que corresponde a apenas R$ 300,00 o metro quadrado.

O artigo 15, do Decreto-Lei nº 3365/1941, autoriza que o Poder Judiciário conceda a imissão provisória na posse, desde que haja o depósito judicial do valor da indenização e via de regra esse o pedido liminar de imissão de posse é concedido. Ocorre que no decorrer do processo apura-se o correto valor da indenização, quando então a conta sofrerá sensível aumento, dado que passarão a incidir juros desde a imissão antecipada, correção e, sobretudo, o valor apontado pelo perito judicial.

Com esse proceder, não é difícil encontrarmos processos de desapropriação que se iniciam com valores singelos e que ao final ficam consideravelmente grandes, tudo por conta da ausência de planejamento prévio do administrador público.

Se por um lado essa prática pode contribuir para o rombo de orçamentos administrativos, felizmente, por outro, o exercício da advocacia especializada tem encontrado resposta para a defesa dos interesses do particular prejudicado por essa inaceitável situação, que apenas não é mais grave do que a desapropriação indireta, verdadeiro caso de esbulho possessório praticado pela Administração Pública.

Utilizando-se do artigo 15, § 1º, do Decreto-Lei nº 3365/1941, o Poder Público obtém a imissão provisória na posse, mas o que a prática demonstra é que o depósito da importância apurada pelo próprio ente expropriante, via de regra, é consideravelmente menor ao valor de mercado do bem.

Depois de realizado o depósito, é autorizado ao expropriado o levantamento de 80% desse montante, desde que apresente certidões negativas de dívidas fiscais (federal, estadual e municipal), nos termos dos artigos 33, § 2º e 34, ambos do decreto de regência.

Em contrapartida, vem ganhando força o entendimento de que, em respeito ao princípio constitucional da justa e prévia indenização em dinheiro e em razão

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da notória irrisoriedade dos valores praticados pela Administração Pública, deve-se fazer uma perícia judicial prévia a fim de se apurar judicialmente o valor de mercado do imóvel objeto da desapropriação, e com isso oferecer ao expropriado condições de adquirir outro bem em igualdade de condições.

Com efeito, além da contestação, que nos termos do artigo 20 do referido Decreto-Lei, somente poderá versar sobre vício do processo judicial ou impugnação do preço, é possível requerer a suspensão da imissão provisória de posse concedida ao expropriante, e que a mesma somente recobre vigência após o depósito da importância apontada em pericia judicial prévia. O pedido deverá ser instruído com os documentos de praxe e, especialmente, com mais de um laudo de avaliação particular, apontando a discrepância do valor do depósito frente ao valor de mercado do bem atingido.

O Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial de nº 330.179-PR de relatoria do Ministro Humberto Gomes de Barros, reformando decisão do egrégio Tribunal de Justiça do Paraná, determinou a suspensão da imissão provisória da posse até que houvesse o depósito da importância apurada em perícia judicial prévia:

RECURSO ESPECIAL. DESAPROPRIAÇÃO. IMISSÃO NA POSSE. IMÓVEL URBANO. DECRETO Nº 3.365/41, ART. 15. I - A imissão provisória em imóvel expropriando, somente é possível mediante prévio depósito de valor apurado em avaliação judicial provisória. II - Neste caso, tendo-se consumado a imissão provisória na posse, sem o cumprimento do pressuposto da avaliação judicial prévia, corrige-se a falha, em nome do princípio constitucional da justa indenização, mediante laudo elaborado por perito judicial do juízo, não importando que se realize em época posterior à imissão na posse, já realizada.

Se é restrita a matéria de contestação, compete ao expropriado defender com empenho e criatividade o seu direito.

4. O CASO CONCRETO DO ESTÁDIO JOAQUIM AMÉRICO GUIMARÃES

O estádio Joaquim Américo Guimarães é dos poucos de propriedade particular e, por isso, é importante reconhecer que, para adequação do mesmo ao padrão FIFA, recursos públicos serão injetados em propriedade privada.

Vige no ESTADO DO PARANÁ a Lei nº 15608/2007, que estabelece normas sobre licitações, contratos e convênios no âmbito dos Poderes constituídos do Estado.

E conforme o Convênio celebrado em 20 de setembro 2010, em sua cláusula quarta, com redação dada por aditivos, caberá ao MUNICÍPIO “promover as desapropriações dos imóveis no entorno do Estádio já definidos pelo projeto aprovado pela FIFA.”

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Por exigência do artigo 134, da citada lei estadual, foi necessário a elaboração de um PLANO DE TRABALHO, cujo instrumento deveria conter, no mínimo, as seguintes informações:

I – identificação do objeto a ser executado; II – metas a serem atingidas; III – etapas ou fases de execução; IV – plano de aplicação dos recursos financeiros; V – cronograma de desembolso; VI – previsão de início e fim da execução do objeto, bem assim da

conclusão das etapas ou fases programadas; VII – comprovação de que os recursos próprios para complementar a

execução do objeto estão devidamente assegurados, se o ajuste compreender obra ou serviço de engenharia, salvo se o custo total do empreendimento recair sobre a entidade ou órgão descentralizador.

Desse documento, é possível aferir que o ESTADO DO PARANÁ deverá aportar um montante total de R$ 61 milhões junto ao MUNICÍPIO, para a implementação das medidas, programas e projetos necessários para a realização dos jogos da Copa do Mundo, dentre os quais interessa ao presente artigo os serviços e obras no entorno do estádio Joaquim Américo Guimarães, incluindo-se as várias desapropriações que serão necessárias.

Com a edição pelo MUNICÍPIO do Decreto nº 1957, publicado no Diário Oficial do Município nº 97 de 22 de dezembro de 2011, foi possível saber que ao todo serão 16 imóveis atingidos, englobando uma área aproximada de 6.500 mil metros quadrados.

A somatória dos valores indicados pelo MUNICÍPIO atinge o total de R$ 12 milhões.

As mais recentes informações oficiais dão conta que desses 16 imóveis, pelos menos 5 casos já estão sendo discutidos judicialmente e outros 4 tiveram suas negociações encerradas sem acordo de valor, indicando que os respectivos proprietários devem fatalmente buscar amparo judicial para suas pretensões. Nos demais, proprietários e MUNICÍPIO chegaram a um acordo de valores e assim foram lavradas escrituras públicas e realizado o pagamento do valor ajustado.

As desapropriações em questão se enquadram nas situações de “melhoramento de centros de população” (art. 5º, alínea “e”, do Decreto-Lei n.º 3365/1941), “melhoramento de vias ou logradouros públicos” ou “execução de planos de urbanização” (alínea “i”).

A existência de, quem sabe, 9 ou 10 ações judiciais, representam algum risco ao bom andamento das obras, porque, como se viu acima, o processo judicial de desapropriação pode se desdobrar em algumas burocráticas fases processuais, máxime se o expropriado se dispuser obter decisão judicial no

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sentido de realização de uma perícia judicial prévia, para apuração do valor do depósito inicial.

A porta do quarto que se abre com a realização de uma perícia não permite saber o que se encontrará dentro dele e nem por quanto tempo as partes lá ficarão.

Sem falar que são comuns as discussões quanto a quem será o perito, quanto ao valor dos seus honorários, quanto à pertinência ou não de determinados quesitos e, por fim, quanto ao próprio valor indenizatório encontrado.

A edição de 23 de abril de 2012, do jornal GAZETA DO POVO, trouxe um panorama preocupante sob dois diferentes aspectos.

Primeiro, que a pouco mais de dois anos do início do evento, ainda restam pelo menos cinco imóveis com desapropriações pendentes, sem os quais não se pode falar em prosseguimento e conclusão das obras.

Segundo, a reportagem informa a extrapolação do orçamento preparado pelo MUNICÍPIO. Em um dos imóveis, a avaliação foi de R$ 730 mil, mas no Poder Judiciário a avaliação judicial prévia apontou para R$ 1,35 milhão. De acordo com o jornal “dos cinco imóveis ainda pendentes – dois na Avenida Getúlio Vargas e outros três na Buenos Aires –, dois estão com certificado de posse emitido, dois aguardam essa autorização e um com o oficial de Justiça notificando os condôminos da necessidade de desocupação do imóvel. Em três, o Judiciário considerou a avaliação da prefeitura baixa e determinou um novo valor. Elevação que, em um dos casos, chega a 85%.”

Outro ponto relevante no aspecto das desapropriações é justamente como se dará a transferência, posteriormente, dos bens desapropriados com recursos públicos ao CLUBE ATLÉTICO PARANAENSE.

Inicialmente, os convênios celebrados não continham cláusula específica disciplinando a contrapartida que o CLUBE deveria dar ao MUNICÍPIO por receber os imóveis desapropriados.

Falava-se apenas na criação de um espaço comunitário no estádio, bem como a instalação de algum determinado órgão público que poderia organizar visitas de escolas, eventos esportivos, etc.

A simplicidade com que esse importante aspecto estava sendo conduzido não passou despercebida.

Em maio de 2012 o TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DO PARANÁ determinou a suspensão dos repasses públicos ao estádio Joaquim Américo Guimarães, até que fosse realizado e publicado aditivo ao contrato firmado entre o ESTADO, o MUNICÍPIO e o CLUBE:

Em relação às desapropriações contempladas no convênio, restam algumas questões a serem explicitadas: a destinação pública dos imóveis desapropriados, após a realização da Copa; o motivo do aumento no número dos imóveis que serão desapropriados; o valor de cada uma das desapropriações; e os valores correspondentes à contrapartida do CAP.

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A permuta deverá se dar com base em critérios técnicos, mediante a avaliação das áreas de propriedade do CLUBE e que serão transferidas ao MUNICÍPIO, para que atinjam valores compatíveis com os gastos realizados com dinheiro público, sendo que tais áreas poderão após ser utilizadas para benefício da população.

Uma vez concluído o procedimento de desapropriação, a propriedade atingida passa a incorporar o domínio do MUNICÍPIO, tornando-se bem público e como tal indisponível.

Dessa forma, para que haja a regular transferência desse bem público ao ente particular (CLUBE), revela-se indispensável a edição de lei autorizando o Chefe do Poder Público Municipal a tomar tal medida, pois vige para a Administração Pública o princípio da legalidade previsto no artigo 37, caput, da Constituição Federal.

Também a Lei nº 8666/1993, em seu artigo 17, inciso I, estabelece a necessidade de “autorização legislativa para órgãos da administração direta”, tal qual o MUNICÍPIO DE CURITIBA, aliene seus bens.

Além da Corte de Contas e demais órgãos públicos envolvidos, é certo que a sociedade deve-se encontrar alerta. Os meios de comunicação e sociedade civil organizada serão fundamentais para que Curitiba seja referência no uso correto e eficiente dos recursos públicos para a realização da Copa do Mundo de 2014, divulgando positivamente a cidade para o resto do mundo.

5. CONCLUSÃO

Por envolver na grande maioria dos casos a intervenção do Poder Judiciário, que não se movimenta sem a presença de operadores do direito, acredita-se que no aspecto das desapropriações não haverá grandes tumultos ou surpresas.

De qualquer forma, sabendo-se que infelizmente a morosidade na entrega da prestação jurisdicional é uma realidade, cuja maior parcela de responsabilidade pode ser atribuída à carência de estrutura, recomenda-se cuidado redobrado dos gestores públicos.

Estão eles há anos empenhados e engajados nesse importante evento, sabedores de que devem respeitar os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, daí porque não lhes será lícito argumentar com falta de tempo para seus planejamentos.

Ainda que antiga, a legislação de regência vem cumprindo o seu papel, como se pode verificar na jurisprudência mais recente.

Por outro lado, tal como já se disse acima, o acompanhamento que a sociedade civil vem fazendo sobre os diversos aspectos que envolvem a realização da Copa do Mundo de 2014 em Curitiba será decisivo para o sucesso do evento em todas as suas dimensões.

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REFERÊNCIAS

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 330.179–PR. Relator Ministro Humberto Gomes de Barros.

_____. Tribunal de Contas do Estado do Paraná. Disponível em: <http://www1.tce.pr.gov.br/noticias/pleno-determina-suspensao-de-repasses-publicos-para-obras-no-estadio-da-copa/26/N>.

GAZETA DO POVO. Prefeitura quer finalizar desapropriações da Arena em um mês. Edição de 23 de abril de 2013. Disponível em: <http://www.gazeta-dopovo.com.br/copa2014/arena/conteudo.phtml?id=1365776&tit=Prefeitura--quer-finalizar-desapropriacoes-da-Arena-em-um-mes>.

KURESKI, Ricardo. Obras de mobilidade urbana para a Copa do Mundo 2014: impactos econômicos na região metropolitana de Curitiba e no Estado do Paraná. Disponível em: <www.ipardes.gov.br/ojs/indexphp/cadernoipardes/article/download/472/530>. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 13 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2001.

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ARTIGO 8O POTENCIAL CONSTRUTIVO E O CASE “ARENA DOS PARANAENSES”:

ALGUNS APONTAMENTOS JURÍDICOS E ECONÔMICOS

victor huGo dominGues269

SUMÁRIO: Introdução. 1. Apontamentos sobre o direito de construir: de onde vem (?) e por onde seguir (?). 1.1 Três institutos diferentes: (i) outorga onerosa do direito de construir, (ii) transferência de potencial construtivo e (iii) programas políticos urbanos de incentivos específicos. 1.2 O incentivo construtivo especial como instrumento de política urbana. 2. O potencial construído e sua dação em garantia: um problema jurídico. 3. Notas sobre os ati-vos imobiliários: alguns apontamentos de natureza econômica. 4. Conclusões articuladas. Referências bibliográficas.

INTRODUÇÃO

À vista da realização dos grandes eventos esportivos que aportam no Brasil em 2014 e 2016, nomeadamente Copa do Mundo e Olimpíadas, a expansão do investimento em infraestrutura traz a tona uma infinidade de controvérsias, especialmente quando está em causa a relação entre o Poder Público e a iniciativa privada. Por tal razão a Economia e o Direito são invariavelmente convocados para dar cabo destas discussões, ou, ao menos elucidar alguns pontos sobre os quais existem mais dúvidas do que certezas.

Neste terreno nebuloso em que se situa a questão do incentivo econômico estatal, a manipulação do direito de construir como mecanismo de financiamento, ou mesmo a concessão pública de garantias para a construção de arenas esportivas, pontifica apenas um dos inúmeros problemas jurídicos e econômicos que tangeciam a relação entre público e privado.

Como pano de fundo e case prático, será cotejado o repasse de dinheiro efetuado pelas entidades financiadoras à Sociedade de Propósito Específico CAP S/A Arena dos Paranaenses270, criada pelo Clube Atlético Paranaense para

269 Bacharelado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2005). Especialização em Sociologia Política pela Universidade Federal do Paraná (2006). Mestre em Ciências Jurídico-Ambientais na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2008/2012). Área de pesquisa docente em Direito Econômico do Ambiente e Análise Econômica do Direito, Direito e Economia Comportamental, Sociologia e Comportamento. Professor das Faculdades da Indústria do Paraná (Sistema FIEP) da graduação e pós-graduação. Membro da Comissão de Direito Econômico da OAB-PR, do Instituto dos Advogados do Paraná, da Associação Paranaense de Direito e Economia e da Associação Brasileira de Direito e Economia.270 Sobre a constituição da CAP/AS Arena dos Paranaenses consultar: http://www.arenacap.com.

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receber o dinheiro repassado ao Estado do Paraná – advindo do BNDES – para fins da dar atendimento ao Programa Especial da Copa do Mundo FIFA 2014.

Referida operação, cunhada pela mídia como “engenharia financeira”, consiste num convênio entabulado em 20 de setembro de 2010 entre o Estado do Paraná, o Município de Curitiba e o Clube Atlético Paranaense, onde o Estado do Paraná tomaria o empréstimo junto ao BNDES por via de sua Agência de fomento, e concederia como caução as cotas de potencial construtivo transferidas pelo Município de Curitiba ao Clube Atlético Paranaense.

Como se pode notar, existe uma série de questões paralelas que, de uma forma ou outra, suscitam controvérsias sobre a legalidade da referida operação, ou mesmo sobre sua viabilidade econômica, em razão do que opta-se por abordar alguns pontos que estão à orbita do referido convênio, a saber: (i) natureza jurídica e limites do potencial construtivo, (ii) o potencial construtivo como garantia e (iii) contingenciamento de riscos em empreendimentos imobiliários. É o que se passa a fazer nas linhas que seguem.

1. APONTAMENTOS SOBRE O DIREITO DE CONSTRUIR: DE ONDE VEM (?) E POR ONDE SEGUIR (?)

É de notório conhecimento da doutrina jurídica que a ordenação do território urbano tem matriz constitucional, e sua natureza jurídica está assentada nas regras do direito administrativo urbanístico, portanto, uma vez conhecido o estatuto legislativo donde exsurge a outorga onerosa do direito de construir ou a transferência de potencial construtivo, revela-se mais restrita a “margem de manobra” para a utilização do direito de construir como mecanismo de financiamento e garantia em operações financeiras, justamente porque submetido ao regime de direito público. Tanto assim, que a operação que viabilizou o repasse de aproximadamente R$ 130.000.000,00 (cento e trinta milhões de reais) à Sociedade de Propósito Específico CAP S/A Arena dos Paranaenses, ganhou a o pejorativo de “engenharia financeira”.

Não obstante, tendo origem no artigo 182 e 183 da Constituição Federal, a Lei Federal que regulamentou as diretrizes acerca do Estatuto da Cidade271 fixa os limites e objetivos dos Planos Diretores a serem elaborados pelos Municípios, portanto, o “solo criado”, representado pelo instituto da transferência de potencial construtivo e da outorga onerosa do direito de construir, deve observar os preceitos do regime de direito público.

Daí a necessidade de estabelecer a diferença entre três institutos que, muito embora submetidos ao regime de direito público, são completamente

br/?page_id=8.271 Lei Federal de caráter nacional n° 10.257/2001.

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diferentes em sua natureza, quais sejam: (i) outorga onerosa do direito de construir, (ii) transferência de potencial construtivo e (iii) programas políticos urbanos de incentivos específicos.

Como se sabe, a Lei nº 10.257/2001, que deu formas gerais ao Estatuto das Cidades, desvela as características de uma lei geral de direito urbanístico na medida em que institui princípios, cria institutos jurídicos e manipula instrumentos a serem utilizados na ordenação dos espaços urbanos. Logicamente, um dos instrumentos contemplados no Estatuto das cidades são as ações específicas de incentivo, como sói ocorrer em casos de especial necessidade – a Copa do Mundo e as Olimpíadas são os exemplos mais significativos nesse sentido.

À época da elaboração das leis de natureza urbanística, não se cogitava que num curto espaço de cinco anos o Brasil albergaria as duas maiores competições esportivas do mundo, o que demanda admitir alterações estruturais na organização da urbe em seus mais variados aspectos, como mobilidade, segurança, ambientabilidade etc. Portanto, é preciso analisar o financiamento de obras para os eventos esportivos pelo prisma da excepcionalidade, em vista do que é necessário dotar a Administração Pública de mecanismos dinâmicos, que se adaptam às situações reais conforme as exigências dos programas políticos especiais. Neste sentido cabe mencionar as lições Odete Medauar sobre o tema:

Como já se disse no início do capítulo, nas últimas décadas vem florescendo atuações administrativas instrumentalizadas por técnicas contratuais, decorrentes de consenso, acordo, cooperação, parceria entre Administração e particulares ou entre órgãos e entidades estatais. Diante desse modo de atuar, novos tipos de ajuste foram surgindo, com moldes que não se enquadram no padrão clássico de contrato administrativo, nem no padrão teórico de contrato vigente no século XIX.272

Neste plano, é evidente que existem caminhos a serem seguidos que não estão previstos no sistema de regras da Administração Pública, o que também nos leva a considerar se a legalidade estrita273, no sentido de que a Administração Pública pode/deve executar somente o que está previsto em lei, pode vir a se submeter ao regime de autonomia contratual em contratos administrativos, sem, no entanto, perder a coerência interna do sistema.

272 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 15ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 243.273 De acordo com Odete Medauer: “Esse significado do princípio da legalidade não predomina na maioria das atividades administrativas, embora no exercício do poder vinculado possa haver decisões similares a atos concretizadores de hipóteses administrativas.” Direito ..., cit., p. 395. No mesmo sentido Mauro Roberto Gomes de Matos arremata que o princípio da legalidade não determina todos os atos da administração, todavia estes devem pautar toda e qualquer discricionariedade no espírito traçado pela lei. In O Contrato Administrativo. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, p. 88.

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Contrario sensu, a higidez típica do regime de direito público poderia interromper o curso das opções tomadas pelos agentes públicos, ao invés de facilitar a realização do programa político. Veja-se que a tese doravante apresentada não insiste na flexibilização da estrita legalidade administrativa, mas sim na adequação do financiamento público para obras esportivas ao regime dos contratos administrativos atípicos, que por sua vez nada mais são senão instrumentos vinculativos por força de lei, assente sobre duas ou mais declarações de vontade, “contrapostas mas perfeitamente harmonizáveis entre si, que vise criar, modificar ou extinguir relações jurídicas”.274

Ocorre porém, que o caso ora usado como exemplo faz uso de um mix de instrumentos jurídicos para dar forma a operação financeira que possibilitou a adequação do Estádio Joaquim Américo, de propriedade do Clube Atlético Paranaense, aos padrões da FIFA, o que viabilizou por sua vez a escolha da cidade de Curitiba como uma das sedes para a Copa de 2014. A par disso, torna-se necessário dar clareza aos mecanismos então utilizados para verificar se, ao passo que pertencem à diversos ramos do direito público, se compatibilizam com os critérios de legalidade e finalidade inerentes aos atos praticados pela Administração Pública.

Neste contexto, a operação financeira que envolve o direito de construir, ou o “solo criado”, na acepção dos urbanistas, poderia se materializar em três formatos diferentes: (i) outorga onerosa do direito de construir, (ii) transferência de potencial construtivo e (iii) programas políticos urbanos de incentivos específicos, cada qual com sua especificidade jurídica.

1.1 Três institutos diferentes: (i) outorga onerosa do direito de construir, (ii) transferência de potencial construtivo e (iii) programas políticos urbanos de incentivos específicos

No case “Arena dos Paranaenses” o empréstimo financeiro realizado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento – BNDES ao Estado do Paraná via Agência de Fomento do Paraná, e posteriormente repassado à Sociedade de Propósito Específico CAP S/A para adequação do Estádio Joaquim Américo às exigências da FIFA para o mundial de 2014, foi viabilizado mediante a concessão de garantia por parte do Clube Atlético Paranaense de seu Centro de Treinamentos e também de cotas de potencial construtivo, estas últimas recebidas da Prefeitura Municipal de Curitiba mediante convênio. A dúvida que se objetou acerca da concessão de cotas para negociação reside justamente na natureza dessa concessão, uma vez que sua origem tem morada num ato da administração pública municipal que cria e concede ao Clube Atlético Paranaense um ativo de valor mobiliário, advindo da transferência e alienação do direito de construir.

274 CAETANO. Marcelo. Manual de Direito Administrativo, volume I, 10ª ed. Coimbra: Almedina, 2010, p. 574.

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A despeito das limitações ao direito de propriedade, especificamente ao direito de edificar em solo urbano, a lei que definiu as diretrizes da organização urbana ganhou o nome de Estatuto das Cidades, e trouxe em seu bojo dois instrumentos jurídicos e econômicos que são fundamentais para dar eficiência ao mercado imobiliário e a ordenação das cidades, (i) a outorga onerosa do direito de construir e a (ii) transferência de potencial construtivo.275

A (i) outorga onerosa do direito de construir consiste na possibilidade albergada ao proprietário do imóvel de adquirir junto à municipalidade, por meio de aquisição de cotas, o direito de edificar acima do coeficiente de aproveitamento básico estabelecido no Plano Diretor.

Nos termos do artigo 28 do Estatuto das Cidades, a municipalidade definirá a fórmula do cálculo para cobrança, e também os casos passíveis de isenção do pagamento da outorga, bem como a contrapartida do beneficiário particular. Como se pode notar, a outorga onerosa do direito de construir não se adequa à hipótese da cessão de cotas de transferência de potencial construtivo ao Clube Atlético Paranaense, especialmente porque não se busca ampliar o Estádio Joaquim Américo para além da permissão prevista no ordenamento da cidade de Curitiba. O Clube Atlético Paranaense não está adquirindo o direito de ampliar sua área edificada acima do coeficiente de aproveitamento básico estatuído pela municipalidade.

Não obstante, poder-se-ia argumentar que a concessão das cotas do direito de construir constitui legítimo fundo “financeiro de destinação” típica da outorga onerosa do direito de construir, porquanto a negociação de cotas depreende um “produto de receitas especificadas que por lei se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços”, configurando em verdade uma receita vinculada decorrente da alienação de ativos da Administração.276

De qualquer maneira, não parece plausível admitir que as receitas advindas da negociação do potencial construtivo sejam encaradas como outorga onerosa do direito de construir com criação de receita vinculada, justamente pelo que já foi dito acima: não se busca ampliar a área edificante para além da permissão prevista para a zona urbana do empreendimento.

275 Para Adilson Abreu Dallari a outorga onerosa do direito de construir e não tem a natureza de limitação administrativa, mas assemelha-se, entretanto, ao concurso voluntário do particular que suporta a contrapartida de construir além do permitido, conforme o encargo suportado pelo loteador como condição para aprovação do projeto de loteamento urbano in Solo Criado: constitucionalidade da outorga onerosa do direito de potencial construtivo. Direito Urbanistico e Ambiental (coord. Adilson de Abreu Dallari e Daniela Campor Libório Di Sarno. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 43.276 Artigo 71, da Lei Federal nº 4.320, de 1964. Na mesma Lei, o artigo 74 define: “A lei que instituir fundo especial poderá determinar normas peculiares de controle, prestação e tomada de contas, sem de qualquer modo, elidir a competência específica do Tribunal de Contas ou órgão equivalente.”

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Da mesma forma, a (ii) transferência de potencial construtivo na cidade de Curitiba, ou seja, a compensação por parte do poder público, advinda da redução involuntária do direito de construir inerente ao imóvel depreciado, está disciplinada pela Lei Municipal 11.266 de 16 de dezembro de 2004, que adequou o Plano Diretor da cidade à Lei Federal do Estatuto da Cidade, e regulamentou a partir do artigo 65 a transferência e alienação do potencial construtivo.

Conforme instituído pelo Estatuto das Cidades, a transferência do direito de construir só autoriza o proprietário de imóvel urbano a aliená-lo quando o imóvel de sua titularidade for considerado necessário para os fins de implementação de equipamentos urbanos e comunitários; preservação para fins de interesse histórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural; regularização fundiária para comunidades de baixa renda; e doação do referido imóvel ao Poder Público277.

Neste sentido, o aproveitamento do instituto da transferência do potencial construtivo, conforme descrito no Plano Diretor de Curitiba, só se realizará nas seguintes hipóteses: (i) promoção, proteção e preservação do patrimônio histórico cultural, natural e ambiental; (ii) programas de regularização fundiária, urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda e habitação de interesse social; (iii) implantação de equipamentos urbanos e comunitários, e espaços de uso público; (iv) melhoramentos do sistema viário básico; (v) proteção e preservação dos mananciais da Região Metropolitana de Curitiba mediante convênio ou consórcio entre os municípios envolvidos.278

Como visto, em nenhuma dessas hipóteses se enquadra o convênio firmado entre Município, Estado e a Sociedade de Propósito Específico CAP S/A, porquanto a transferência do direito de construir é numerus clausus. Aliás, é preciso que haja um amesquinhamento da propriedade do eventual beneficiário das cotas de potencial construtivo. Sobre a natureza jurídica da transferência do potencial construtivo bem rematam Yara Darci Police Monteiro e Egle Monteiro da Silveira:

Resta claro, portanto, que a transferência do direito de construir constitui instrumento jurídico de natureza urbanística, destinado a compensar o proprietário de imóvel afetado ao cumprimento de uma função de interesse público ou social, dele desincorporando o direito de construir, segundo o coeficiente de aproveitamento previsto no plano diretor, para ser exercitado em outro local ou alienado a terceiros.279

277 Lei 10.257/2010, artigo 35 e incisos.278 Artigo 65 e incisos da Lei de Adequação do Plano Diretor de Curitiba ao Estatuto das Cidades, n.º 11.266/2004.279 MONTEIRO, Yara Darci Police; SILVEIRA, Egle Monteiro da. Transferência do Direito de Construir. In Estatuto da Cidade (coord. Adilson de Abreu Dallari e Sérgio Ferraz. São Paulo:

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Como se vê, o imóvel ora em questão – Estádio Joaquim Américo – não está sofrendo a diminuição do seu direito de propriedade, ao contrário, o que se busca é justamente ampliar as condições físicas da arena para que receba os jogos da Copa do Mundo de 2014.

Diante da impossibilidade de enquadrar a legalidade da concessão de cotas do direito de construir nas regras urbanísticas de transferência do potencial construtivo, seja pela ótica do Estatuto da Cidade, seja nos termos do Plano Diretor da Cidade de Curitiba, resta então enquadrar a referida concessão de cotas na modalidade de programa político atípico, a ser disciplinado por meio de disposições contratuais administrativas, sob demanda do Programa Especial da Copa do Mundo FIFA 2014. Aliás, é perfeitamente admissível celebrar contratos atípicos entre entidades públicas e privadas, porquanto inerentes à autonomia e a liberdade de contratar da Administração Pública.

Como bem ponderou Marçal Justen Filho, a questão sobre o regime jurídico do contrato administrativo implica reconhecer a incidência de inúmeros ramos do Direito, sobremaneira porque “a expressão regime jurídico é utilizada para indicar um feixe de noras dentro do conjunto total do ordenamento jurídico (...),” e no mesmo sentido complementa: “Assim, o regime da contratação administrativa envolve normas de direito civil, de direito comercial, de direito penal etc.”280

Nesses termos, sem a possibilidade de subsumir o contrato que concedeu cotas de potencial construtivo à Sociedade de Propósito Específico CAP/S.A. nas modalidades de “solo criado” como se demonstrou acima, resta analisar a referida operação jurídica sobre o prisma de figura inédita no âmbito da legislação municipal, o Incentivo Construtivo Especial como Instrumento de Política Urbana.

1.2 O INCENTIVO CONSTRUTIVO ESPECIAL COMO INSTRUMENTO DE POLÍTICA URBANA

A possibilidade de concessão de potencial construtivo para a finalização e adequação do Estádio Joaquim Américo foi instituída pela Lei Municipal 13.620/2010 que, num primeiro momento fixou a emissão de cotas no teto de R$ 90.000,00 (noventa milhões de reais) e, posteriormente ampliou o valor máximo da concessão para R$ 123.066.666,67 (cento e vinte e três milhões, sessenta e seis mil, seiscentos e sessenta e seis reais e sessenta e sete centavos, o que se deu por meio da Lei Municipal n.º 1419/2012.

Malheiros, p. 297.280 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 8ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 109.

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Conforme o artigo 1º da referida Lei, a concessão do potencial construtivo se deu com vistas à realização do Programa Especial da Copa do Mundo FIFA 2014 e, no entendimento da Prefeitura Municipal de Curitiba a instrumentalização do direito de construir – como mecanismo de financiamento e garantia – não tem relação direta com a técnica de transferência de potencial construtivo, tampouco com o manejo da outorga onerosa do direito de construir, mas revela a utilização de um instrumento de política urbana criado com fundamento na Lei Municipal nº 9801/2000 que, dentre outras coisas estabelece critérios para aplicação dos Instrumentos de Política Urbana inéditos, o que se daria nos termos do artigo 30 e 182 da Constituição Federal, bem como nos artigos 145 a 154 da Lei Orgânica do Município de Curitiba. Para dar cabo dessa nova figura administrativa, está previsto na Lei Municipal nº 9801/2000 que o Município de Curitiba pode admitir a transferência de potencial construtivo mediante Convênio281, e que será permitida também a aplicação dos Instrumentos de Política Urbana não previstos na Legislação de Zoneamento e Uso do Solo, mediante contrapartida do setor privado, especialmente na alocação de recursos financeiros.282

A propósito, uma vez admitida a transferência de potencial construtivo não prevista na legislação de Legislação de Zoneamento e Uso do Solo, resta ao beneficiário do setor privado o ônus de definir as contrapartidas a serem aproveitadas pela sociedade em geral, tendo em vista o aproveitamento dos incentivos concedidos pela administração.

Outra não foi a recomendação do Tribunal de Contas do Estado do Paraná que, mediante a expedição do Ofício nº 54/2012 requereu à Secretaria Municipal da COPA 2014 a indicação precisa da devida compensação e contrapartidas sociais ao Município de Curitiba pelo Clube Atlético Paranaense, na condição de beneficiário da concessão dos créditos do potencial construtivo conforme previsto no artigo 7º, da Lei nº 13.620/10.

Portanto, uma vez contextualizada a legalidade da referida cessão de cotas de potencial construtivo como incentivo construtivo especial, dando origem a um novo instrumento de política urbana, resta então definir os limites de utilização das referidas cotas, o que exige adentrar nas questões que tratam do contrato de empréstimo realizado pelo Estado do Paraná junto ao BNDES, que recebeu como garantia as mesmas cotas de potencial construtivo outrora repassadas pelo Município de Curitiba à Sociedade de Propósito Específico CAP S/A.

Neste cenário, é necessário anotar brevemente dois planos distintos acerca da autonomia e da liberdade de contratar da Administração Pública. O primeiro plano diz respeitos à liberdade quanto a opção de contratar, e o segundo plano relaciona-se com a gestão própria do conteúdo do contrato e a possibilidade de estipular suas cláusulas.

281 Lei Municipal 9801/2000, artigo 3º, parágrafo 2º.282 Lei Municipal 9801/2000, artigo 4º, inciso V.

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Em ambos os planos o princípio da legalidade é farol que deve orientar a materialização da vontade da Administração Pública, por evidente. Firme neste propósito, tendo em vista que a definição genérica de contrato resume-se a uma atribuição bilateral de vontades livres e autônomas, necessário admitir que mesmo submetido ao regime de Direito Público o contrato celebrado, atípico diga-se, sofre restrições do regime de direito público na mesma medida em que é influenciado pelo gênero contratual mais amplo, assente na disciplina do Direito das Obrigações. Neste sentido pontifica a doutrina que:

Os contratos administrativos atípicos com objeto possível de contrato privado, estão, evidentemente, sujeitos à precedência de lei. Como não têm por base a estatuição de um regime específico no Ordenamento Jurídico-administrativo, não se põe quanto a eles a questão da determinação da natureza injuntiva ou supletiva das normas que lhes são próprias. Esse problema poderá contudo levantar-se – embora com menor acuidade – quando se trate de contrato correspondente a um modelo típico de direito privado ao qual as partes hajam acrescentando clausulas em que se estipulem poderes, obrigações ou sujeições acessórias próprias do regime geral dos contratos administrativos. Em tal hipótese, a questão consistirá em saber qual a medida em que as partes poderão afastar a aplicação das normas que integram o regime do modelo privado do contrato privado correspondente. 283

Aliás, os contratos híbridos, ou seja, aqueles que embora regidos pelo direito público tem forte ascendência do direito privado, são uma subespécie dos contratos administrativos, onde o regime de direito privado é parcialmente derrogado pelo direito público.284 Mesmo nessas hipóteses, uma vez definido que o princípio da legalidade deve reger mesmo a liberdade do ente público quanto a liberdade de contratar, em especial à escolha do parceiro privado a ser beneficiado mediante convênio e contrato, é assaz pertinente a critica sobre a igualdade de tratamento que deve nortear os atos da Administração em relação a escolha do parceiro privado. Nos dizeres de José Manuel Sérvulo de Correia:

Quanto menor é o enquadramento normativo da conduta contratual da Administração – por fluidez na indicação do fim, por abertura na enunciação de pressupostos ou pelo silencia sobre estes, por ausência parcial ou total de especificação de feitos – tanto mais imperiosa a verificação de uma linha de conduta estável, que se não compagine com as diferenças de soluções em situações concretas idênticas.285

283 SÉRVULO CORREIA, José Manuel. Legalidade e Autonomia Contratual nos contratos administrativo. Coimbra: Almedina, 1987, p. 631.284 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2011, p. 259.285 SÉRVULO CORREIA, José Manuel. Legalidade e Autonomia Contratual nos contratos administrativo. Coimbra: Almedina, 1987, p. 674.

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Nesses termos, o princípio do tratamento isonômico, corolário do princípio da igualdade, traz a tona alguns questionamentos acerca do método de escolha utilizado pelo Estado do Paraná e a municipalidade, para outorgar ao Clube Atlético Paranaense o benefício de concessão de cotas de potencial construtivo, haja vista que o processo de escolha dos estádios que sediarão os jogos do Programa Especial da Copa do Mundo FIFA 2014 foi um critério, além de totalmente discricionário, afeto somente à Fédération Internationale de Football Association (FIFA).

Não parece razoável dotar um ente privado de benefícios estranhos a qualquer outro particular que exerce a mesma atividade, neste específico caso clubes de futebol. A escolha do Clube Atlético Paranaense para receber cotas de potencial construtivo da Prefeitura de Curitiba, e depois dá-las em garantia de financiamento para adequar seu estádio às exigências da FIFA, avança contra o princípio do tratamento isonômico, e por consequência afeta também o princípio da igualdade que deve nortear os atos da Administração, porquanto até o presente momento, os motivos da escolha do parceiro privado não foram suficientemente motivados, quiçá vinculados ao interesse público do Município.

No plano de gestão das cláusulas contratuais, desta feita em relação ao contrato de empréstimo relativo ao BNDES, uma das objeções que se podem levantar diz respeito à dação em garantia de cotas cedidas pelo Município de Curitiba, que para todos os efeitos são patrimônio público.

Conforme se verá adiante, resta ausente de justificação válida formal o ato administrativo que permitiu a dação em garantia de cotas de potencial construtivo ao BNDES, ante o empréstimo realizado pelo Estado do Paraná mediante a Agência de Fomento.

2. O POTENCIAL CONSTRUTIVO E SUA DAÇÃO EM GARANTIA: UM PRO-BLEMA JURÍDICO

Uma vez definida a natureza pública do crédito a ser instituído mediante a concessão de cotas de potencial construtivo, tanto sua criação como a sua dação como garantia de financiamento, podem vir a ser inquinadas pela ilegalidade, ora porque não se pautam pela determinação legislativa formal, ora porque não se enquadram nos limites materiais das disposições administrativas, especialmente porque os critérios de razoabilidade e proporcionalidade que conferem materialidade à vontade da Administração, colha-se o magistério de José Roberto Pimenta Oliveira:

A razoabilidade/proporcionalidade exerce, em sede contratual, uma função primordial de conciliação entre os interesses subjacentes ao vínculo, de natureza pública e privada. Impõe que cada decisão administrativa, em vista

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da respectiva abertura engendrada pela disciplina normativa e contratual, deva buscar a solução mais respeitosa a todos os interesses envolvidos.286

Assim, considerando que o potencial construtivo concedido ao Clube Atlético Paranaense é um recurso público produto de receita vinculada, destinado a finalidades específicas, mostra-se necessário estabelecer os limites de sua utilização em instrumentos contratuais, especialmente quando figuram como caução de obrigação pecuniária, esta última dada como garantia do empréstimo tomado pelo Estado do Paraná (Agência de Fomento) junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento – BNDES.

A disciplina das garantias dadas por entidades públicas está disciplinada em dois momentos distintos pela Constituição Federal. Num primeiro momento, o artigo 22, inciso XXVII da Constituição Federal, assevera a competência privativa da União para legislar sobre normas gerais de contratação administrativa, logo, sendo a garantia uma obrigação de meio, podemos considerá-la uma subespécie do contrato287, portanto expressão de um regime contratual288. Caberia então ao Município elaborar somente legislação suplementar ao regime geral de contratação administrativa, conforme permite o artigo 24, § 2º, da Constituição Federal.

Todavia, mesmo considerando a possibilidade de utilizar as cotas de potencial construtivo como garantia acessória do empréstimo realizado junto ao BNDES, com fins exclusivos para atender o Programa Especial da Copa do Mundo FIFA 2014, não há como se considerar a Lei Municipal n.º 13.620/2010 – que concedeu cotas de potencial construtivo – uma regra suplementar às normas gerais de contratação administrativa, haja vista que a sua alienação está vinculada às normas do Plano Diretor Municipal289, e não ao peculiar regime geral de contratação administrativa. É o que se observa no artigo 2º, § 2º, da referida lei:

§ 2º A concessão do potencial construtivo fica condicionada à apresentação e aprovação do Projeto Executivo e o seu respectivo orçamento, acompanhado de estudos e análises de impactos sociais, econômicos e ambientais, conforme prevê o Plano Diretor Municipal.

286 OLIVEIRA. José Roberto Pimenta. Razoabilidade e Contrato Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 395.287 p. 57. Venosa 8 ed., 2008.288 VERNALHA, Fernando. Parceria Pública-Privada. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 360.289 Lei 13.620/2010. Art. 2º  O Programa autoriza a concessão de potencial construtivo de, no máximo, R$ 123.066.666,67, referente ao valor previsto para execução das obras exigidas para adequação do Estádio selecionado para sediar a Copa do Mundo - FIFA 2014 (Redação dada pela Lei nº  14219/2012). § 1º O valor do potencial construtivo referido no caput deste artigo, será vinculado à variação do CUB - Custo Unitário Básico de Construção. § 2º A concessão do potencial construtivo fica condicionada à apresentação e aprovação do Projeto Executivo e o seu respectivo orçamento, acompanhado de estudos e análises de impactos sociais, econômicos e ambientais, conforme prevê o Plano Diretor Municipal.

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Caberia sim ao Município, ou mesmo ao Governo do Estado do Paraná, a iniciativa de provocar os respectivos poderes legislativos a fim de elaborar norma suplementar às regras gerais do regime de contratação administrativa, e não ao Plano Direito do Município. Somente uma norma correlata ao regime geral de contratação administrativa, inerente ao artigo 22, inciso XXVII da Constituição Federal, poderia albergar a possibilidade de dação em garantia das cotas de potencial construtivo cedidas à entidade privada em regime de convênio. Daí advém a confusão conceitual da qual não se pode agora escapar, pois ao utilizar o instituto do potencial construtivo como mecanismo de garantia, a Administração Pública busca a liberdade que não tem, porquanto o regime de garantias em contratos públicos não é correlato aos instrumentos de política urbana, como fazem crer as leis municipais que cederam cotas ao Clube Atlético Paranaense.

3. NOTAS SOBRE OS ATIVOS IMOBILIÁRIOS: ALGUNS APONTAMENTOS DE NATUREZA ECONÔMICA

Atualmente existem inúmeros meios de investir no mercado mobiliário. Os Fundos Imobiliários, regulados pela Lei 8.668/1993, onde a capacitação de recursos financeiros se realiza pelo Sistema de Distribuição de Valores Mobiliários, se assemelha à uma empresa de capital aberto, todavia sem personalidade jurídica e obrigatoriamente sob a forma de condomínio fechado. Os Fundos se organizam de modo a investir em negócios imobiliários de toda natureza, como direitos reais sobre imóveis, ações, debêntures, recibos de subscrição, cotas de outros fundos, letras hipotecárias etc.290

Os Fundos de Investimento Imobiliário - FII, como sói ocorrer em qualquer investimento adstrito ao Sistema de Distribuição de Valores Mobiliários, estão submetidos à volatilidade dos mercados. Isso significa dizer que o ativo imobiliário depende, logicamente, da confiança dos agentes econômicos no sucesso da administração dos FFI, ou seja, se há confiança e rentabilidade, o investimento é realizado. Se, ao contrário, não existe o retorno esperado, o agente privado, ou o cotista do Fundo, é o único a absorver o prejuízo da escolha infortuna.

No caso das cotas de transferência de potencial administrativo, ou mesmo na outorga onerosa do direito de construir, o regime público de concessão e gestão das referidas cotas subsume-se a prerrogativas típicas da Administração Pública, o que significa dizer que há uma manipulação coordenada verticalmente

290 A regulação dos Fundos de Investimentos em Mercados Imobiliária – FII, está disciplinada pela Instrução CVM Nº 472, 31 de outubro de 2008, e os ativos negociáveis estão listados no artigo 45 e incisos da mesma instrução.

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do preço e da quantidade de cotas emitidas, o que se realiza de acordo com os desígnios do administrador do momento.

Normalmente, o mercado imobiliário não costuma convergir com a realização do programa político de ocasião, em especial quando os problemas decorrentes do processo de urbanização291 não seguem propriamente uma lógica previdente.

Para dar vazão à negociação de cotas do potencial construtivo concedido à Sociedade de Propósito Específico CAP S/A, o Decreto Municipal nº 826, de 05/06/2012, autorizou a transferência de 60.000 cotas de 1 m2 cada uma ao Programa Especial da Copa do Mundo FIFA 2014 (artigo 2º), no valor unitário de R$ 500,00 (quinhentos reais) o que somaria total de R$ 30.000.000,00 (trinta milhões de reais). Em 28 de dezembro de 2012, ao final da legislatura e no “apagar das luzes”, a Lei Ordinária n.º 14.219/2012 alterou os dispositivos da Lei 13.620/2010 – que instituiu potencial construtivo relativo ao Estádio Joaquim Américo Guimarães – e modificou ou artigo 2º da referida da Lei para autorizar a concessão de potencial construtivo de, no máximo R$ 123.066.666,67 (cento e vinte e três milhões, seiscentos e sessenta e seis mil e seiscentos e sessenta e seis reais, e sessenta e sete centavos), referente ao valor previsto para execução das obras exigidas para adequação do Estádio selecionado para sediar a Copa do Mundo - FIFA 2014.

Nada impede que no limiar da referida adequação do Estádio Joaquim Américo Guimarães qualquer outro mecanismo legislativo venha a ser manipulado para aumentar, diminuir, modificar ou mesmo extinguir cotas de potencial construtivo, desta feita invocando o abstrato e multifacetado “interesse público” do governante de ocasião. Acrescente-se ainda que, as expansões e contrações do mercado imobiliário, e por via reflexa a necessidade de aquisição de cotas de potencial construtivo, ou mesmo a outorga onerosa do direito de construir para fins de ampliação de qualquer área edificável, não é impulsionado pelo poder público, mas atende a uma demanda própria do setor imobiliário atuante no território municipal.

Para dar contornos finais resta uma dúvida quanto a manipulação do “solo criado” para fins de financiamento público: qual o ponto ótimo de emissão de cotas para evitar uma bolha no mercado de aquisições de potencial construtivo? Qual o método para fixar o valor das cotas de potencial construtivo? Como

291 Para Janaína Rigo Santini e Ricardo Quinto Mattia pode-se listar uma série de incidentes que, de uma maneira ou outra, tornam dificultoso o processo concretização de políticas urbanas, como a crise generalizada de moradia e a proliferação de formas ilegais de habitação urbana, combinada com a falta de políticas habitacionais e ausências de opções acessíveis oferecidas pelo mercado imobiliário in Direito Urbanístico e Estatuto das idades. Revista de Direito Imobiliário 63/2007. São Paulo: RT, 2007, p. 48/49.

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evitar a manipulação do mercado de transferências quando apenas um agente econômico é o titular de tamanho número de cotas de potencial construtivo?

São apenas algumas observações de cariz econômico que, na ausência de adequados instrumentos jurídicos e administrativos hábeis para dar respostas claras à população, só o tempo poderá responder.

4. CONCLUSÕES ARTICULADAS

4.1 Ao formador a concessão de cotas de potencial construtivo, como mecanismos de financiamento de arenas privadas, a municipalidade faz uso de instrumentos de política urbana como (i) a outorga onerosa do direito de construir, (ii) transferência de potencial construtivo e (iii) programas políticos urbanos de incentivos específicos.

4.2 Não há dúvida de que os instrumentos de política urbana utilizados para viabilizar o financiamento público à adequação do Estádio Joaquim Américo Guimarães tem que obedecer ao regime jurídico de direito público, porquanto são ativos patrimoniais imobiliários de titularidade do Município de Curitiba.

4.3 Da mesma forma, a celebração de contratos atípicos, celebrados entre entes públicos e privados, com afluência de mais de um regime jurídico, não apresenta ilegalidades primae face, podendo inclusive estar adstrita à autonomia de contratar da administração pública, desde que observado o respectivo regime legal respectivo.

4.4 A gestão das cláusulas contratuais, em especial a garantia concedida por meio de patrimônio público (cotas do direito de construir), deve ser complementar ao regime geral de contratos administrativos e não ao direito urbanístico.

4.5 A manipulação do direito de construir, mediante emissão de cotas de potencial construtivo, fundadas na edição e sobreposição de instrumentos legislativos municipais, não se obedecem aos critérios de mercado, inerentes à clareza, objetividade e segurança do investimento, podendo vir a apresentar resultado diverso do esperado.

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ARTIGO 9 O DIREITO DA CONCORRÊNCIA E A EXCLUSIVIDADE NOS CONTRATOS

DE TRANSMISSÃO DE GRANDES EVENTOS ESPORTIVOS

vinícius KLein292 caroLine samPaio de aLmeida293

SUMÁRIO: Notas introdutórias. 1. Premissas de direito concorrencial 1.1 O sistema da lei antitruste brasileira. 1.2 As ‘válvulas de escape’ do direito concorrencial brasileiro. 1.3 O poder econômico como falha de mercado e a sua correção pelo sistema. 2. A posição dos órgãos do SBDC. 2.1 A posição do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e sua análise crítica. 3. O entendimento do CADE e a Copa de Mundo. 4. Notas conclusivas. Referências bibliográficas.

NOTAS INTRODUTÓRIAS

As Olimpíadas e a Copa do Mundo de futebol são eventos que representam, concomitante e paradoxalmente, ato de congraçamento universal e espírito competitivo, que não se restringe às práticas esportivas. No campo econômico a competição pelos direitos de transmissão desses eventos esportivos tende a ser acirrada.

O presente estudo objetiva analisar os aspectos concorrenciais desta disputa, analisando um possível viés contrário a livre concorrência no modelo de venda desses direitos por meio de um pacote fechado que inclui todas as mídias (TV aberta, TV Fechada, Rádio, Celular e Internet) com exclusividade e preferência para renovação.

Tanto o mercado quanto o Direito correspondem a uma das formas de organização econômica e, conseqüentemente, alocação de recursos (escassos)

292 Doutor em Direito Civil pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Doutorando em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Professor de Direito Empresarial e Econômico na Universidade Positivo (UP). Diretor Acadêmico da Associação Paranaense de Direito e Economia (ADEPAR). Membro da Comissão de Direito Econômico da OAB/PR. Procurador do Estado do Paraná. E-mail: <[email protected]>.293 Doutora em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Especialista em Direito Público pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Professora convidada no curso de Especialização em Direito Civil e Empresarial da PUCPR. Conselheira Fiscal da Associação Paranaense de Direito e Economia (ADEPAR). Secretária da Comissão de Vítimas de Crime e Segurança Pública e Membro da Comissão de Estudos à Violência de Gênero, ambas da OAB/PR. Procuradora Jurídica da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero). E-mail: <[email protected]>.

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na sociedade. Para cumprir a sua função, o mercado vale-se do Direito (Estado), notadamente de princípios constitucionais econômicos, tais como livre iniciativa e liberdade de contratar, tornando possíveis as garantias, respectivamente, de acesso à arena de trocas e disposição de oportunidades de troca.294

Ambos são indissociáveis na medida em que o Direito aparelha o exercício, pelo Estado, de políticas voltadas à preservação do mercado e à acumulação de capital, fazendo uso, principalmente, de dois importantes instrumentos que interagem e se complementam, quais sejam: a legislação antitruste e a política de regulação econômica.

Nesse aspecto, a concessão de serviços de transmissão de televisão no Brasil tem uma estrutura jurídica e regulatória peculiar em relação a outros setores nacionais regulados da economia e modelos adotados internacionalmente. Como o sistema legal brasileiro não dispõe de ferramentas específicas para planejamento e controle de estruturas voltadas à concorrência no setor televisivo, resta-lhe como alternativa o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBCD) com suas imperfeições. Vale dizer, é limitado ao controle de condutas anticoncorrenciais ex-post (quando violam a lei antitruste), sendo ex ante somente nas hipóteses de fusão ou aquisição.

As transmissões esportivas, em particular, gozam de significativa relevância em termos de audiência pública, mantendo a mesma tendência observada em outros países.

Essas são algumas das questões a serem enfrentadas doravante no presente trabalho, cuja finalidade é analisar os fundamentos concorrenciais da posição adotada pelos órgãos que compõe o Sistema Brasileiro de Direito Concorrencial (SBCD) acerca do modelo contratual de venda dos direitos de transmissão dos grandes eventos esportivos, em especial da Copa do Mundo de futebol.

1. PREMISSAS DE DIREITO CONCORRENCIAL

1.1 O SISTEMA DA LEI ANTITRUSTE BRASILEIRA

A Constituição Federal de 1988 elegeu no seu artigo 1º, inciso IV, a “livre iniciativa” como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.

Historicamente, a livre iniciativa corporificou o ideal de libertação dos laços das corporações medievais para proporcionar mais espaço ao sistema de mercado que à época começava a se impor. Essa liberdade traduzia nada mais que o aumento do espaço de atuação privada em face de privilégios concedidos a determinados agentes econômicos.

294 FORGIONI, Paula A. A evolução do direito comercial brasileiro: da mercancia ao mercado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 204.

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A atual concepção da livre iniciativa traz em seu bojo esse conteúdo histórico, ao defini-la como garantia aos agentes econômicos de ingresso e permanência no mercado e de acesso às oportunidades, como a de troca, firmando contratos.295

Já a “livre concorrência” está elencada constitucionalmente no artigo 170, inciso IV, como um dos princípios da ordem econômica, assegurando, porém, a possibilidade de o Estado intervir para reprimir “o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros” (art.173, §4º), com vistas à defesa do consumidor (art.170, inciso V).

No sistema constitucional brasileiro, ambos os princípios da livre iniciativa e livre concorrência são ferramentas destinadas à promoção da dignidade humana, o que evidencia a pretensão constitucional de perseguir objetivos mais amplos do que o do livre mercado simplesmente.296 A disciplina antitruste tem por escopo, em outras palavras, não apenas implementar a eficiência, como também preservar, ao teor dos ditames constitucionais, ambiente no qual as empresas sejam estimuladas a competir, inovar e satisfazer as necessidades dos consumidores, evitando-se a estagnação de mercados por agentes com grande poderio econômico.297

Ao modelar a economia e a atuação dos agentes econômicos, o antitruste se perfaz como um instrumento de garantia de existência digna, conforme os ditames da justiça social, ou seja, de alcance do interesse coletivo. Sua concretização pode ocorrer ora por aplicação da lei antitruste ora pelo afastamento desse diploma legal a práticas restritivas. Vale dizer, o Estado poderá deixar de aplicar a Lei Antitruste, suprimindo ou atenuando o controle sobre o processo de concentração, com vistas a formatar o funcionamento do mercado.298

É por esse motivo que a legislação antitruste tem se municiado de mecanismos a fim de evitar o desempenho de uma função oposta àquela desejada pela tutela da concorrência, criando, por exemplo, obstáculos ao crescimento econômico e à salutar competição entre os agentes econômicos. Tais mecanismos, doravante denominados “válvulas de escape”,299 decorrem

295 FORGIONI, Paula A. A evolução do direito comercial..., p.206.296 GRAU, Eros Roberto; FORGIONI, Paula A. Loterias: serviços públicos. Livre iniciativa/livre concorrência e imposição de restrições à atividade dos lotéricos. O Estado, a empresa e o contrato. São Paulo: Malheiros, 2005, p.123.297 FORGIONI, Paula A. Os fundamentos antitruste. 5ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p.188.298 FORGIONI, Paula A. Os fundamentos..., p.189.299 Expressão dada por Paula A. FORGIONI aos meios técnicos que viabilizam à realidade permear o processo de interpretação e aplicação da legislação antitruste (Os fundamentos..., p.194).

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da necessidade de flexibilização do texto normativo de modo a adequá-lo à cambiante realidade e ao contexto econômico e social no qual está destinado a operar.300 Na sequência, analisar-se-ão três dessas válvulas de escape, quais sejam: (i) regra da razão, isenções e autorizações; (ii) mercado relevante; e (iii) o jogo do interesse protegido.

1.2 As ‘válvulas de escape’ do direito concorrencial brasileiro Para melhor compreensão da “regra da razão”301 e suas variações

(isenções e autorizações), torna-se imperioso discorrer, ainda que brevemente, sobre o famoso caso Pronuptia, de 1986, apreciado pela Corte de Justiça das Comunidades Europeias, em que se examinou a conformidade das cláusulas de um contrato de franchising em profundidade.302

A regra da razão foi elaborada originalmente como critério para atenuar a aplicação do Sherman Act303 aos contratos comerciais, cuja seção I permitia, em tese, a declaração de ilicitude de grande parte deles. A essência da referida regra reside na aplicação do ato normativo somente aos casos em que os dispositivos contratuais causassem uma desarrazoada (unreasonable) restrição ao comércio.304

Com a evolução doutrinária e jurisprudencial, acrescentou-se a expressão “injustificada”, passando a regra da razão a definir como contrária ao direito concorrencial somente o comportamento ou estrutura que seja apta a proporcionar uma restrição substancial e injustificável. Em face disso, práticas antes consideradas ilegais passaram a ser analisadas de forma mais equilibrada, sopesando-se os efeitos concorrenciais e as eficiências criadas por tais práticas.

300 BERNINI, Giorgio. As regras de concorrência. In: Trinta anos de direito comunitário. Luxemburgo: Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias, 1984, p.347.301 A regra da razão opõe-se à regra de “per se”. Nesta, o operador do direito só faz a subsunção do fato à norma, sem analisar os elementos de mercado que cercam aquela conduta. Já pela “regra da razão”, os elementos que cercam a conduta são levados em conta, ou seja, há uma maior flexibilidade da norma em relação aos fatos concretos.302 Acórdão de 28.1.1986 – Processo 161/84. Disponível em: <eur-lex.europa.eu>. Acesso em 18.07.2012.303 O Sherman Antitrust Act é uma lei federal de defesa da concorrência nos Estados Unidos que prevê disposições proibindo todo acordo com o intuito de restringir o comércio. Trata-se de um controle repressivo da concorrência punindo-se a monopolização ou sua tentativa, mas não o monopólio em si. Ao lado do Sherman Act, tem-se o Clayton Act, que estabelece um controle preventivo ao vedar condutas passíveis de se caracterizarem como lesão à concorrência, nos termos da incipiency doctrine. Para essa doutrina, deverá o julgador decidir por bloquear fusões que conduzem a uma razoável probabilidade de poder de mercado quando pairarem dúvidas sobre o caso concreto. No direito brasileiro, a Lei nº 12.529/2011, tal como na lei anterior, traz previsão dos controles preventivo (art. 88) e repressivo (art.36) em relação aos atos de monopolização ou tentativa de monopolização que podem causar lesão à concorrência.304 SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial: as estruturas. São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 142-146.

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A título elucidativo, fruto da evolução jurisprudencial, a regra da razão atualmente pressupõe três análises prévias: (i) prejuízo aos consumidores provocado pela restrição; (ii) objetivo perseguido pelo ato e se tal objetivo possui virtude redentora (redeeming virtues) capaz de justificar a restrição; (iii) possibilidade de empregar maneira alternativa, menos lesiva à concorrência, para alcançar os objetivos pretendidos.305

No que se refere propriamente ao caso Pronuptia306, o Tribunal Superior de Justiça Bundesgerichtshof formulou consulta à Corte para obter decisão prejudicial à ação ajuizada pela empresa Pronuptia de Paris GmbH (master-franqueada da empresa francesa, identificada no processo como franqueador) contra a Pronuptia de Paris (franqueada), que buscava o pagamento de royalties sobre três contratos de franchising celebrados entre ambas, por meio dos quais a franqueada detinha, em caráter de exclusividade, a comercialização de vestidos de noiva em três regiões geográficas da Alemanha: Hamburgo, Oldemburgo e Hannover.

Em primeira instância, a franqueada foi condenada ao pagamento de royalties atrasados, relativos aos exercícios de 1978 a 1980. Irresignada, a franqueada pleiteou, em sede de apelação, a declaração de nulidade do contrato por ofensa às normas de concorrência contidas no art. 85 do Tratado de Roma, questionando, em especial, a exclusividade territorial que constituiria barreira à livre circulação de mercadorias dentro do Mercado Comum. Com base em tais argumentos, a decisão de primeira instância foi revertida, pois, embora o direito alemão não vedasse tais contratos, eles continham restrições que violavam o mencionado art. 85, sendo considerados nulos.

O franqueador interpôs, então, recurso perante o Supremo Tribunal da Alemanha Federal, última instancia do Poder Judiciário naquele país, que concluiu pela necessidade de interpretação do Direito Comunitário, questão prejudicial ao julgamento, solicitando, assim, à Corte de Justiça o respectivo pronunciamento.

A decisão prejudicial foi favorável ao franqueador, cuja conclusão foi pela inaplicabilidade do disposto no nº 1 do artigo 85º do Tratado CEE, nos termos do nº 3 do artigo 85º, ao contrato-tipo de concessão (franchise) de distribuição praticado pela Pronuptia relativamente aos seus concessionários (franchisés) na CEE. Em face disso, foram consideradas válidas e legais as cláusulas que obrigavam o franqueado a aplicar os métodos comerciais desenvolvidos

305 AREEDA, Philip. The “rule of reason” in antitrust analysis: general issues. Washington, D.C.: Federal Judicial Center, 1981, p.2. Disponível em: <www.fjc.gov>. Acesso em: 12.07.2012.306 O caso Pronuptia está detalhado em: BESSIS, Philippe. Le contrat de franchisage: notions actualles et apport au droit européen. Paris: L.G.D.J., 1992, Annexe 3. Na íntegra em português ver: <eur-lex.europa.eu>. Acesso em: 26.07.2012.

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pelo franqueador e a utilizar o know-how transmitido, assim como a vender as mercadorias, objeto do contrato, somente em local instalado e decorado segundo as instruções do franqueador.

Em outras palavras, a decisão do Tribunal Comunitário, limitada àqueles contratos de franchising específicos, definiu que, embora o art. 85-1 do Tratado vede contratos que possam afetar o comércio entre seus Estados-membros, a aplicação da regra a um contrato de franchising dependeria não só do teor das cláusulas contidas no contrato, mas também do contexto econômico em que viesse a se inserir.

O pronunciamento da Corte no caso Pronuptia, ao atenuar os limites das regras do art. 85-1 e 85-3 do Tratado de Roma, evidenciou clara aplicação da “regra da razão” (rule of reason).

Em 30.11.1988 a Europa adotou o Règlement d’Exemption nº 4.087/88 da Comissão, relativa à aplicação do art. 85 do Tratado de Roma aos contratos de franchising, o que colocou fim à incerteza jurídica quanto à sua aplicabilidade. Insta ressaltar que cada Règlement disciplina um tipo específico e único de contrato e que a isenção não é concedida a cláusulas individuais ou acordos parciais, mas ao contrato como um todo, quando presentes as condições que a justifiquem.307 Vale dizer, não se aplicam aos contratos de franchising, de modo geral, as vedações do art. 85-1 do Tratado de Roma e os contratos que se sujeitam aos critérios definidos para contratos de franchising nos termos do Règlement n. 4.087/88, não necessitam ser submetidos à Comissão para obter a isenção contida no art. 85-3.

No direito concorrencial brasileiro, a nova Lei Antitruste nº 12.529/2011 emprega a “regra da razão” de forma ampla, incluindo os modos e o montante de restrição, além de suas justificativas. No seu art. 88, estão elencadas as condições pelas quais os atos da prática comercial podem limitar ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços, cujas hipóteses devem subsidiar a aplicação do art. 36 do mesmo diploma, que define as infrações da ordem econômica.

Tanto a regra da razão, como as isenções e autorizações constituem técnicas voltadas a permitir determinadas condutas, embora restritivas da concorrência, afastando-se barreiras legais a sua concretização.

As isenções consistem na ausência de imposição de sanção prevista para determinada prática restritiva da concorrência, ilícita sob o aspecto legal, quando a mesma acarreta a melhoria da produção ou distribuição de bens ou o progresso técnico ou econômico. Esse método contempla duas normas, uma que veda de maneira geral as práticas restritivas da concorrência e outra, específica, que autoriza a prática restritiva quando concedida a isenção. É o caso

307 CRETELLA NETO, José. Do Contrato Internacional de Franchising. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 209.

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do item 3 do artigo 101 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE),308 que se aplica tão-somente aos acordos entre empresas restritivos da concorrência.

No tocante às autorizações, ou leis específicas que afastam a aplicação da lei antitruste, correspondem a restrições à livre concorrência ou livre iniciativa, cujos limites e fundamentos devem ser apontados na lei e respaldados na Constituição Federal. Por também assumirem contornos de exceção, interpretam-se restritivamente, aplicando-se somente às pessoas e aos casos nelas expressamente mencionados.309

As válvulas de escape, apesar de atenderem à necessidade de flexibilização das normas antitruste e sua adequação à realidade, acarretam inevitável insegurança jurídica e falta de previsibilidade no processo de interpretação e aplicação de tais normas. A busca pela segurança da codificação e vinculação do intérprete mostrou-se insuficiente ao longo dos anos,310 por conduzir a uma incapacidade do sistema para disciplinar os casos concretos que lhe são submetidos. O mesmo ocorreu com as doutrinas econômicas, cujas fórmulas matemáticas fixas e previsíveis não foram capazes de contemplar a cambiante realidade disciplinada pelo antitruste.

É justamente nesse contexto que os princípios jurídicos ganham relevância, servindo de instrumento ao intérprete para a adequada aplicação de normas

308 Artigo 101º - 1. São incompatíveis com o mercado interno e proibidos todos os acordos entre empresas, todas as decisões de associações de empresas e todas as práticas concertadas que sejam susceptíveis de afectar o comércio entre os Estados-Membros e que tenham por objectivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado interno, designadamente as que consistam em: a) Fixar, de forma directa ou indirecta, os preços de compra ou de venda, ou quaisquer outras condições de transacção; b) Limitar ou controlar a produção, a distribuição, o desenvolvimento técnico ou os investimentos; c) Repartir os mercados ou as fontes de abastecimento; d) Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso de prestações equivalentes colocando-os, por esse facto, em desvantagem na concorrência ; e) Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o objecto desses contratos [...] 3. As disposições no n.º 1 podem, todavia, ser declaradas inaplicáveis: — a qualquer acordo, ou categoria de acordos, entre empresas; — a qualquer decisão, ou categoria de decisões, de associações de empresas, e — a qualquer prática concertada, ou categoria de práticas concertadas, que contribuam para melhorar a produção ou a distribuição dos produtos ou para promover o progresso técnico ou económico, contanto que aos utilizadores se reserve uma parte equitativa do lucro daí resultante, e que: a) Não imponham às empresas em causa quaisquer restrições que não sejam indispensáveis à consecução desses objectivos; b) Nem dêem a essas empresas a possibilidade de eliminar a concorrência relativamente a uma parte substancial dos produtos em causa.309 FORGIONI, Paula A. Os fundamentos..., p.209-211.310 Sobre as teorias modernas hermenêuticas ver: FERRARA, Francesco. Interpretação e aplicação das leis. In: ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis. 2ª edição, Colecção cultura jurídica, Coimbra: Arménio Amado,1963, pp.127 e ss.

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antitruste, com uma razoável expectativa de previsibilidade e segurança.311 Razoável porque não é possível garantir em grau máximo generalidade e previsibilidade almejada pelos agentes econômicos, pois as normas antitruste nada mais são que produto do próprio ambiente concorrencial mutante.

1.3 O PODER ECONÔMICO COMO FALHA DE MERCADO E A SUA CORREÇÃO PELO SISTEMA

No Estado Democrático de Direito, a intervenção estatal na economia ocorre em regime de exceção, observadas situações que impedem o mercado de se autorregulamentar. Nesse sentido,

[S]egundo as teorias normativas da regulamentação, o Estado deve intervir quando o sistema de transações impessoais de mercado, mediado somente pelos preços, falha em proporcionar uma alocação eficiente de recursos. O mercado perfeitamente competitivo constitui o padrão de referência dessas teorias, operando em um ambiente de racionalidade ilimitada.312

Entre as falhas de mercado reconhecidas pela doutrina tradicional – externalidades, assimetrias de informações e bens públicos – destaca-se o poder econômico que merece maior atenção no presente trabalho.

Há duas modalidades de poder econômico. A primeira diz respeito à situação de dependência econômica no âmbito das relações privadas e sob um contexto jurídico-histórico relacional das partes. A segunda, por sua vez, ocorre no campo das relações multilaterais de mercado e leva em conta não somente o vínculo histórico das partes, mas toda dinâmica de mercado que atribui a determinado agente um poder em face de seus concorrentes, clientes e fornecedores.

Caracteriza-se, assim, uma situação de dependência econômica quando um dos contratantes é capaz de impor suas condições a outra parte, que não terá outra alternativa senão aceitá-las para sobreviver. Trata-se de uma posição de superioridade de um dos contratantes em relação ao outro. Essa hipótese de abuso costuma ser enquadrada no artigo 187 do Código Civil, desde que a conduta seja desviada de sua função econômica ou ainda frustrada a legítima expectativa do agente.313

Caso o abuso seja praticado por empresa em situação de poder de mercado e implique prejuízo à livre concorrência, em qualquer de suas modalidades,

311 FORGIONI, Paula A. Os fundamentos..., p.254.312 FARINA, Elizabeth Maria Mercier Querido; AZEVEDO, Paulo Furquim de; SAES, Maria Sylvia Macchione. Competitividade: Mercado, Estado e Organizações. São Paulo: Singular, 1997, p. 115.313 FORGIONI, Paula A. Teoria geral dos contratos empresariais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.36.

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caracterizar-se-á abuso a ser coibido pelas autoridades de defesa da concorrência. Haverá uma situação de poder de mercado quando uma empresa, com poder econômico unilateral, tiver a capacidade de restringir produção e elevar preços acima dos níveis de concorrência, independentemente da atuação de seus concorrentes ou clientes.

Importante ressaltar que em situações de mercados monopolistas ou oligopolistas, não há garantias de que consumidores serão beneficiados com custos menores e, conseqüentemente, preços mais favoráveis, de modo que, sob a ótica da teoria econômica, não será uma solução “ótimo de Pareto”, eficiente.314

É por essa razão que, numa análise ex ante, torna-se imperiosa a disciplina das forças de mercado por regulamentação específica ou, ainda, a substituição pela atuação estatal. Da mesma forma, sob a ótica ex post, vislumbra-se a importância da implementação de uma política antitruste eficiente, que nada mais seria do que a efetivação de políticas públicas atinentes aos aspectos concorrenciais do mercado, que propiciem, por exemplo, condições de sobrevivência a empresas com dependência de poder econômico.

Para neutralizar, senão eliminar tal falha de mercado, a intervenção estatal tem sido o remédio utilizado pelas autoridades públicas. A ideia dessa interferência estatal é a de retomar o normal funcionamento do mercado, próximo ao modelo de concorrência perfeita.

2. A POSIÇÃO DOS ÓRGÃOS DO SBDC

O CADE já analisou a questão de possíveis práticas anticompetitivas de associações e clubes de futebol e emissoras de televisão atinentes à negociação dos direitos de transmissão dos campeonatos brasileiros de futebol em várias mídias.

De forma mais específica as infrações investigadas eram: i) comercialização conjunta dos direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol por parte dos times participantes (venda centralizada de direitos) a partir do ano de 1997; ii) exclusão de concorrentes por parte de associações de futebol, devido à não inclusão dos direitos de transmissão de alguns times de futebol à época não integrantes daquela associação no pacote de direitos cedido às emissora de televisão aberta e fechada; iii) associação entre empresas de televisão para aquisição conjunta dos direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol nas temporadas de 1997 a 1999; iv) estipulação de cláusulas de exclusividade e de preferência nos sucessivos contratos de cessão de direitos de transmissão em televisão aberta e fechada dos jogos do Campeonato Brasileiro de Futebol desde 1997.

314 FARINA, Elizabeth Maria Mercier Querido; AZEVEDO, Paulo Furquim de; SAES, Maria Sylvia Macchione. Competitividade: Mercado..., p. 151

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No curso do processo, a associação de futebol responsável sustentou, em síntese, ausência de infração à ordem econômica ante a: (i) autorização constitucional e infraconstitucional para firmar acordos entre clubes de futebol e sua organização em associações; (ii) livre associação das emissoras para buscar um fim comum; (iii) realização de concorrência pública.

A emissora de TV detentora dos direito de transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol aventou, de forma sucinta: (i) a necessidade de geração de mais receita por meio da utilização de outras mídias; (ii) o impacto da concorrência entre o futebol e outros programas televisivos na definição de mercado relevante; (iii) a possibilidade de desequilíbrio econômico-financeiro no caso de eventual quebra de exclusividade, o que afetaria o potencial de receita da associação de futebol envolvida; (iv) a decisão de leiloar com exclusividade e adotar a cláusula de preferência sempre foi tomada unilateralmente pela associação de futebol responsável; (v) a cláusula de preferência, ao lado de certas condutas, são admitidas pelo direito antitruste para proteger as empresas do comportamento free-rider, a exemplo dos investimentos realizados pela emissora ao longo dos anos; (vi) que não restou caracterizado o abuso de posição dominante por parte da emissora.

Enfrentadas as preliminares de caráter processual invocadas pelos investigados, a extinta Secretaria de Direito Econômico (SDE),315 após discorrer sobre os contratos dos direitos de transmissão para televisão aberta e fechada em análise, bem como sobre as experiências europeia e norte-americana, emitiu parecer.

A primeira questão importante para a análise da potencial conduta restritiva vertical diz respeito à definição dos mercados relevantes de origem (upstream ou à jusante) e alvo (downstream ou à montante).

A conclusão da SDE foi que: “definem-se os mercados downstream supostamente afetados pelas condutas adotadas pelas representadas como os mercados de: 1) transmissão de imagens e sons na televisão aberta; 2) transmissão de imagens e sons na televisão fechada; 3) transmissão de imagens e sons na internet; 4) transmissão de imagens e sons por meio de telefonia celular”316. Quanto ao mercado upstream a SDE afirmou que: “Portanto, os dados acima representados evidenciam a existência de um grupo de telespectadores (homens adultos) para os quais o futebol não apresenta bons substitutos na televisão. Por este motivo, define-se o mercado relevante upstream, sob a ótica do telespectador, como os de jogos de futebol com a participação dos times nacionais.”317 Na ótica

315 As funções da SDE passam a ser exercidas, com o advento da Lei nº 12.529/2011, pela Superintendência-Geral, órgão responsável pela análise de todos os atos de concentração submetidos ao CADE.316 Parecer SDE p. 29.317 Parecer SDE p. 38.

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dos anunciantes a conclusão é a mesma: “conclui-se que tanto pelos critérios de afinidade com o público alvo e custo, quanto pela adequação temática, os jogos de futebol transmitidos em televisão aberta são produtos diferentes dos demais, do ponto de vista dos anunciantes. Por essas razões define-se o mercado relevante do lado do anunciante também como o dos jogos regulares de futebol com participação dos times nacionais.”318 Por fim, com relação as emissoras abertas: “Considerando, portanto, que a variedade de grade de programação é uma necessidade das emissoras, que os jogos de futebol transmitidos ao vivo com participação de times nacionais são fundamentais para atrair o público masculino adulto, para atrair elevados investimentos publicitários e também para contribuir para a construção da imagem e a fixação da marca da emissora, conclui-se que os outros programas de outras categorias de programação não se apresentam como bons substitutos às transmissões de jogos de futebol. Assim, também em relação às emissoras de televisão aberta, o mercado relevante deve ser definido como o de jogos de futebol regulares com participação de times nacionais.”319 Desse modo, o mercado relevante upstream é definido como o de jogos regulares de futebol com a participação de times nacionais.

Após a definição do mercado relevante a SDE analisa também as características do mercado delimitado, de modo a definir a existência ou não de infração à ordem econômica.

No direito pátrio não há o chamado direito de arena – situação em que o clube mandante tem a titularidade plena dos direitos de transmissão –, o que acarreta um regime de co-propriedade forçado. Ademais, existe um grau significativo de interdependência e necessidade de coordenação entre os clubes que disputam o campeonato. Todas essas questões tornam a venda não centralizada mais custosa, em especial em função dos elevados custos de transação.

A segunda questão importante é a possível associação entre emissoras para a aquisição dos direitos de transmissão de Campeonatos de futebol, o que restou que um acordo entre empresas incapazes de apresentar ofertas isoladamente é pró-competitivo e não restritivo a livre concorrência.

Outra questão é a de que a SDE entende que caracteriza forte prejuízo à livre concorrência a venda de direitos de transmissão agrupados em um só pacote e com exclusividade e na inserção de cláusula de preferência quando da renovação dos contratos. Assim, constatou-se que a venda conjunta de todas as mídias (TV aberta, TV fechada, rádio, internet e celular).

Por fim, ao direcionar contratos em prol de seus interesses e em detrimento da concorrência, resta caracterizada atitude que restringe a livre concorrência.

Nesse contexto a SDE sugeriu algumas medidas para fim de evitar os danos a concorrência identificados. Para tanto, as diretrizes recomendadas para

318 Parecer SDE p. 43.319 Parecer SDE p. 48.

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o modelo de venda dos direitos de transmissão de campeonatos de futebol, a exemplo do Campeonato Brasileiro de Futebol, foram as seguintes: i) venda dos direitos de transmissão das diferentes mídias em pacotes separados; ii) proibição da inclusão do direito de preferência na renovação em todos os contratos; iii) limitação da vigência dos contratos a 4 (quatro) temporadas; iv) venda dos direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro para a TV aberta em três pacotes, sendo um com os jogos das quarta-feira e domingo, um segundo com os jogos das quinta-feira e sábado e um terceiro com os melhores momentos dos jogos para ser utilizado em reprises.

Posteriormente, o CADE acolheu o entendimento esposado pela SDE quanto a definição dos mercados relevantes. Ainda, entendeu que é legítima a negociação por meio de uma associação de Clubes, em função da ausência de direito de arena no Brasil e das eficiências geradas em função do caráter cooperativo da atividade. Quanto à cláusula de preferência observou que ela efetivamente reduz a competitividade, gerando ineficiências. Acerca da obrigatoriedade de transmissão em todas as mídias entendeu que essa conclusão deve ser contextualizada as diversas mídias em questão são ao mesmo tempo substitutas e complementares a TV aberta. Afinal, por exemplo, se duas empresas diversas detém os direitos de transmissão da TV aberta e da TV fechada tem-se uma necessidade de coordenação dessas mídias, visando evitar a canabalização dos produtos.

2.1 A POSIÇÃO DO CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA (CADE) E SUA ANÁLISE CRÍTICA

É complexa a promoção da intervenção em geral do Estado no domínio econômico e, em especial, no âmbito concorrencial. Vários casos já foram decididos pelo CADE sobre mercados de TV fechada, mas há casos mais específicos, como os de intervenção no mercado de transmissões esportivas. Assim, observou-se uma certo receio do órgão em intervir de forma mais incisiva em função da dificuldade de apreensão da racionalidade econômica do mercado em análise. Esse contexto prevaleceu mesmo em um órgão com contornos institucionais próprios, que foram desenhados visando facilitar e apreensão do comportamento econômico.

A análise feita pelo CADE, entretanto, foi capaz de identificar algumas características relevantes: no Brasil a venda conjunta dos direitos de transmissão não enfrenta qualquer óbice concorrencial em função da ausência de direito de arena; o produto jogo de futebol é único e não tem substituto perante os anunciantes em função da penetração no público espectador de homens adultos; o sublicenciamento pode ser instrumento eficaz para minorar os prejuízos concorrenciais dos contratos de exclusividade de transmissão; a cláusula de

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preferência e a venda em um pacote fechado de todas as mídias tem efeitos bastante significativos de restrição a livre concorrência.

Essas características podem ser um instrumento interessante para analisar as peculiaridades do grande evento esportivo objeto deste trabalho: a Copa do Mundo de Futebol, é o que se fará na próxima seção.

3. O ENTENDIMENTO DO CADE E A COPA DE MUNDO

A principal similaridade entre a alienação dos direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro e da Copa do Mundo é a repetição do modelo de venda conjunta de todas as mídias e a ausência de uma disputa ampla baseada em preço tornam os tornam os termos do contrato de transmissão da Copa do Mundo potencialmente danosos ao ambiente concorrencial pátrio.

Todavia, deve-se ponderar se a possibilidade de sub-licenciamento e as características específicas da Copa do Mundo – curta duração e periodicidade a cada quatro anos - seriam capazes de compensar os danos concorrenciais apontados.

Não é possível neste trabalho fazer uma análise mais precisa e definitiva, entretanto, pode-se apontar algumas diretrizes gerais. O primeiro ponto diz respeito a desnecessidade de grandes investimentos por parte da empresa detentora dos direitos na relevância da seleção brasileira de futebol e do evento Copa do Mundo. Ao contrário de outros esportes ou mesmo de alguns campeonatos nacionais de futebol a sua importância para os brasileiros já está consolidada na cultura nacional. Assim, não se identifica, numa análise mais geral, a necessidade de proteção contra atitudes de carona (free-rider). Um segundo ponto a ser considerado é que a maior periodicidade da Copa do Mundo, nos moldes da linha de análise do CADE, reduz os impactos concorrenciais negativos, mas não a ponto de tornar insignificantes.

Assim, o modelo de venda dos direitos de transmissão da Copa do Mundo com um pacote fechado de todas as mídias – ao contrário do que ocorreu na última Olimpíada – se seguida a linha de análise adotada pelo CADE tem o potencial de efeitos concorrenciais negativos no mercado pátrio. Esse modelo, apesar da ausência de condenação em função da celebração do TCC, já foi considerado como pernicioso a livre concorrência. Apesar da ausência de um estudo econômico detalhado, as características específicas da Copa do Mundo não parecem ser capazes de suplantar esses efeitos negativos.

Desse modo, o trabalho iniciado pelo CADE na mitigação dos efeitos anticoncorrenciais das práticas contratuais utilizadas nos processos de venda de direitos de transmissão de eventos esportivos em geral e de competição de futebol em especial não deve ser interrompido e na Copa do Mundo de Futebol de 2014 tem-se uma grande oportunidade para repensar os fundamentos da

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análise já realizada e eventualmente retomar uma atuação mais incisiva na defesa da concorrência nesses mercados.

4. NOTAS CONCLUSIVAS

Em função dos recursos limitados a atuação da autoridade concorrencial deve ser feita direcionada para os mercados e as práticas com maior possibilidade de causar prejuízos significativos a livre concorrência. Para tanto faz-se necessário uma atividade de escaneamento (screening) dos mercados, de modo a identificar aqueles que demandam uma maior atenção na perspectiva concorrencial. Essa é atividade a que se propôs esse estudo, demonstrar que o mercado de direitos de transmissão de eventos esportivos merece um lugar no conjunto dos mercados que demandam uma maior atenção concorrencial.

Ademais, trata-se de mercado que foi objeto de uma análise inicial, todavia a atuação concorrencial mais incisiva foi afastada em função das peculiaridades do caso.

Desse modo, pode-se concluir indicando que o modelo de venda dos direitos de transmissão da Copa do Mundo de Futebol tem o potencial para causar danos significativos ao ambiente concorrencial pátrio. Entretanto uma análise mais assertiva dependeria de um estudo econômico mais aprofundado, o que poderia ser feito pelo próprio Departamento de Estudos Econômicos do CADE.

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ARTIGO 10 OS EVENTOS ESPORTIVOS DE 2014 E 2016 E O COMBATE AOS CARTÉIS

EM LICITAÇÕES NO BRASIL

Gustavo FLausino coeLho320

ricardo viLLeLa maFra aLves da siLva321

SUMÁRIO: Introdução. 1. Cartel: caracterização e nocividade. 1.1 Previsão legal e caracterização do cartel. 1.2 O custo social do cartel. 1.3 Conclusão preliminar: o prejuízo gerado pelo cartel e a necessidade de sua repressão. 2. Cartel em licitação. 2.1 Cartéis em licitação e os danos gerados pela prática no contexto da Copa do Mundo em 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016. 2.2 As modalidades de cartel em licitações e condições estruturais necessárias. 2.3 O Papel do mercado relevante em casos de cartel em licitação. 2.4 Condições estruturais do mercado relevante e os procedimentos licitatórios relacionados aos eventos esportivos de 2014 e 2016: por que o cartel será uma preocupação do CADE? 3. O CADE e o combate aos cartéis em licitações. 3.1 A jurisprudência do CADE. 3.2 As ferramentas da Lei nº 12.529/2011: o programa de leniência e os procedimentos de busca e apreensão. 4. Conclusão. Bibliografia.

INTRODUÇÃO

O momento pelo qual passa o Brasil atualmente é marcado por investimentos substanciais. Com as descobertas relativas às reservas do pré-sal, a execução do Programa de Aceleração do Crescimento, além da conquista do direito de sediar a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, os investimentos do governo no setor de infraestrutura no país devem crescer de maneira considerável322. Esses investimentos governamentais incluirão gastos com a aquisição de bens e serviços de particulares, que deverão ser precedidos por processos licitatórios323.

320 Advogado graduado pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Especialista em Direito Societário e Mercado de Capitais pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ). 321 Advogado graduado pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ).322 Por exemplo, até setembro de 2012, R$ 385,9 bilhões haviam sido investidos em projetos de infraestrutura previstos no Programa de Aceleração do Crescimento, sendo que as obras já concluídas representam R$ 272,7 bilhões. Disponível em: <http://www.pac.gov.br/sobre-o-pac/divulgacao-do-balanco>. Acesso em: 10 dez. 2012.323 Conforme estabelece o artigo 2º da Lei nº 8.666/1993: “As obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Administração Pública,

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A Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 incluem-se no contexto de ampliação substancial dos gastos públicos com infraestrutura. Além da construção de diversos estádios de futebol e centros esportivos em geral, serão necessários também investimentos em mobilidade urbana, saneamento, urbanização, geração de energia, dentre muitos outros. Somente para a Copa do Mundo de 2014, por exemplo, estima-se que serão investidos aproximadamente R$ 33 bilhões em infraestrutura324.

Os recursos que serão necessários para a realização da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016 devem ser utilizados de forma eficiente, de modo a maximizar seu valor e garantir que sua aplicação ocorrerá em consonância com os interesses públicos e da sociedade. Portanto, é essencial certificar-se que as regras concorrenciais serão respeitadas nos procedimentos licitatórios relacionados aos eventos esportivos que o Brasil sediará nos próximos anos.

A exigência de licitação como condição para a realização de compras pelo poder público baseia-se na competição, uma vez que os participantes do certame devem concorrer com vistas à obtenção do menor preço para a execução dos serviços ou fornecimento de bens desejados pelo poder público325. Assim, a concorrência está presente no conceito de licitação e deve ser garantida para assegurar-se o êxito do procedimento. A literatura e a lógica econômica sustentam que, em regra, a falta de concorrência em processos licitatórios propicia ao(s) seu(s) participante(s) fixar um preço acima daquele que seria observado em situação de competição, resultando em prejuízos à administração pública e diminuindo o bem-estar da sociedade. A livre concorrência é um direito garantido pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988326 e é protegida por meio da Lei nº 12.529/2011, sendo um direito de titularidade da coletividade327. Portanto, considerando o valor jurídico e também econômico da proteção da concorrência, especialmente no âmbito de procedimentos relacionados à utilização de recursos públicos, a observância das regras concorrenciais deve ser estabelecida como uma das prioridades em licitações.

Nesse contexto, o presente artigo dedica-se ao estudo dos cartéis em licitações. O cartel é frequentemente indicado como o ilícito concorrencial mais

quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei”.324 Essa a outras estimativas podem ser encontradas em <http://www.copa2014.gov.br/pt-br/sobre-a-copa/grandes-numeros>.325 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14ª edição. Malheiros: São Paulo, 2002, p. 466.326 Conforme inciso IV do artigo 170: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] IV - livre concorrência”.327 Cf. parágrafo único do artigo 1º da Lei nº 12.529/2011.

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grave e danoso à coletividade. No caso dos cartéis em licitações, o prejuízo à sociedade fica ainda mais claro, pois os recursos desviados pela prática são pertencentes ao poder público e, consequentemente, à população em geral. Para a adequada abordagem da prática do cartel em licitações, em primeiro lugar buscar-se-á tipificar o cartel e analisar como ele prejudica os consumidores e diminui o bem-estar da sociedade, demonstrando o seu custo social e esclarecendo o efeito do “peso morto” (deadweight loss). Em seguida, analisar-se-á a prática do cartel no contexto de procedimentos licitatórios e as particularidades que a licitação apresenta para a defesa da concorrência. Para a adequada análise do cartel em licitações, utilizar-se-á dois documentos elaborados pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (“OCDE”)328 e pela Secretaria de Direito Econômico (“SDE”)329-330 sobre o tema. Após a abordagem teórica do cartel em licitações, estudar-se-á a jurisprudência e a prática do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (“CADE”) relacionadas à repressão do cartel em procedimentos licitatórios. Por fim, a conclusão do presente estudo buscará indicar as premissas que devem ser utilizadas para o combate ao cartel em licitações, assim como recomendações para o aprimoramento da defesa da concorrência em procedimentos licitatórios.

1. CARTEL: CARACTERIZAÇÃO E NOCIVIDADE

1.1 PREVISÃO LEGAL E CARACTERIZAÇÃO DO CARTEL

No ordenamento jurídico brasileiro, o cartel é previsto como infração administrativa, além de ser tipificado como crime contra a ordem econômica pela Lei nº 8.137/1990331. O inciso I do parágrafo 3º do artigo 36 da Lei nº 12.529/2011 define o cartel da seguinte forma:

[A]cordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma: a) os preços de bens ou serviços ofertados individualmente; b) a produção ou a comercialização de uma quantidade restrita ou limitada de bens ou a prestação de um número, volume ou frequência restrita ou limitada de serviços; c) a divisão de partes ou segmentos de um mercado atual ou potencial de bens ou serviços, mediante, dentre outros, a distribuição de clientes, fornecedores, regiões ou períodos; d) preços, condições, vantagens ou abstenção em licitação pública.

328 Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Diretrizes para combater o conluio entre concorrentes em contratações públicas. Fev. 2009. Disponível em: <http://www.oecd.org/dataoecd/34/29/44162082.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2012.329 Secretaria de Direito Econômico. Combate a cartéis em licitações. 2008. Disponível em: <http://www.comprasnet.gov.br/banner/seguro/Cartilha_Licitacao.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2012.330 Apesar de a SDE não atuar na defesa da concorrência desde a entrada em vigor da Lei nº 12.529/2011, o documento elaborado por este órgão ainda é referência adequada para a análise da prática do cartel em licitações.331 Cf. artigo 4º, inciso II, da Lei nº 8.137/1990.

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Pode-se perceber, a partir da definição legal, que o cartel é um acordo realizado entre concorrentes com objetivo de regular variáveis relevantes na dinâmica concorrencial, como preço, quantidade e qualidade, independente da forma ou do método adotado. O cartel, portanto, é espécie de colusão entre agentes econômicos332.

O caput do artigo 36 da Lei nº 12.529/2011 determina que são infrações à ordem econômica, “independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir” os efeitos anticompetitivos previstos em seus quatro incisos333. Portanto, a forma adotada por membros de um cartel para estruturar o acordo ilícito é irrelevante para a caracterização da infração administrativa. Desse modo, tanto cartéis formalizados explicitamente, por meio de acordos escritos, ou tacitamente, i.e., sem a existência de um acordo propriamente dito334, podem ser penalizados pelo direito concorrencial se obtidas provas suficientes para provar sua existência335.

É importante observar que nem todos os acordos entre concorrentes são penalizados pelo direito concorrencial. Na sistemática do direito concorrencial

332 Conforme ressaltado por Calixto Salomão, a colusão entre agentes econômicos pode ser horizontal, quando ocorrer entre concorrentes diretos, ou vertical, quando envolver agentes econômicos percentes à diferentes etapas da mesma corrente produtiva (SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial: as condutas. Malheiros: São Paulo, 2007, p. 260).333 “Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; II - dominar mercado relevante de bens ou serviços; III - aumentar arbitrariamente os lucros; e IV - exercer de forma abusiva posição dominante.”334 A colusão tácita está relacionada com a ideia do “comportamento paralelo intencional” mencionado por Calixto Salomão Filho (op. cit., p. 263). A instabilidade do cartel, causada pelo incentivo de seus participantes oportunisticamente burlarem o acordo, faz com que a colusão horizontal tácita seja mais difícil de ocorrer. Consequentemente, a teoria econômica indica que a colusão tática somente poderá ocorrer em mercados que apresentem fatores estruturais que confiram maior estabilidade ao acordo (v.g., homogeneidade do produto, presença de poucos concorrentes, baixa taxa de inovação, existência de barreiras ao mercado, transparência de preços).335 No contexto norte-americano, Herbert Hovenkamp ressalta o fato de que as autoridades públicas concentram seus esforços principalmente com casos nos quais é mais fácil provar o acordo ou contrato anticoncorrencial, embora os cartéis tácitos sejam aqueles que causam os maiores prejuízos aos consumidores: “[o]ne disconcerting conclusion for antitrust policy is that oligopoly strategies can be more stable and free from incentives to cheat than are cartel strategies. [...] A related, equally disturbing conclusion is that the agreement requirement obliges antitrust enforcers to put their limited resources in the wrong place. Since antitrust laws require ‘agreement’, enforcement money is generally spent in areas where an agreement can be proven. But only the least stable situations require a qualifying antitrust agreement. In those areas where cooperative interaction among firms is likely to do the most damage, no ‘agreement’ is required” (HOVENKAMP, Herbert. Federal Antitrust Policy: the law of competition and its practice. 3ª edição. St. Paul: West Publishing Co., 2005).

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brasileiro, mesmo as práticas que geram efeitos anticoncorrenciais podem ser consideradas lícitas caso tais efeitos adversos sejam compensados por ganhos de eficiência336. A ponderação dos efeitos e do contexto no qual se insere a prática anticoncorrencial foi introduzida pelos tribunais norte-americanos por meio da “regra da razão” (rule of reason). Segundo essa regra, algumas condutas anticompetitivas deveriam ser consideradas ilícitas per se – i.e., o simples fato de adotá-las seria considerado ilegal – enquanto outras condutas deveriam ser analisadas levando-se em consideração as circunstâncias e o contexto no qual estavam inseridas337. Enquanto na prática norte-americana a necessidade de ponderação dos efeitos construiu-se por meio do esforço jurisprudencial, no Brasil ela se dá por força de previsão legal. Assim, não há no ordenamento brasileiro qualquer prática que seja considerada ilegal per se. No entanto, dada a inexistência de eficiências criadas pelo cartel, a prática é usualmente condenada pelo CADE sem que haja ponderação de seus efeitos. Outros acordos, como aqueles que estabelecem colaboração entre concorrentes para alcançar uma finalidade comum ou outro tipo semelhante de interação entre competidores devem ser analisados por meio da ponderação de efeitos, muito embora possam envolver a fixação de preços ou regulação de condições de concorrência. Portanto, a prática do cartel, conforme aqui descrita e tipificada pela Lei nº 12.529/2011, refere-se a acordos horizontais com o único intuito de regular variáveis relevantes da dinâmica concorrencial, como preços, quantidade, qualidade, área de atuação, dentre outras338.

Assim, o cartel é caracterizado como a prática pela qual concorrentes estabelecem acordo, sob qualquer forma, tácito ou explícito, cujo único objetivo é regular suas condições de concorrência, de modo a maximizar seus lucros, sem nenhum tipo de contrapartida (i.e., criação de eficiências) para o consumidor.

336 Cf. artigo 88, parágrafo 6º: “Os atos a que se refere o § 5º deste artigo poderão ser autorizados, desde que sejam observados os limites estritamente necessários para atingir os seguintes objetivos: I - cumulada ou alternativamente: a) aumentar a produtividade ou a competitividade; b) melhorar a qualidade de bens ou serviços; ou c) propiciar a eficiência e o desenvolvimento tecnológico ou econômico; e II - sejam repassados aos consumidores parte relevante dos benefícios decorrentes”. Apesar do mencionado dispositivo referir-se à aprovação de atos de concentração que geram eficiências, não obstante apresentem também efeitos anticoncorrenciais, a mesma lógica pode ser aplicada na análise de condutas anticompetitivas. Desse modo, não seria razoável que o CADE condenasse práticas que geram eficiências que compensam os efeitos anticoncorrenciais criados.337 Cf. HOVENKAMP, Herbert, op. cit., pp. 253 e ss.338 As práticas que possuem como único objetivo restringir a concorrência são tratadas pelo direito concorrencial norte-americano como “naked restraints”, em oposição às práticas que, embora restrinjam a concorrência, buscam a criação de eficiências, chamadas de “ancillary restraints” (Cf. HOVENKAMP, Herbert. The antitrust enterprise: principle and execution. Cambridge: Harvard University Press, 2008, p. 125).

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1.2 O CUSTO SOCIAL DO CARTEL

O cartel é geralmente indicado como a prática mais nociva ao consumidor, em razão das perdas substanciais que gera. Estima-se que o cartel implique em sobrepreço de 10 a 20% com relação ao preço em condições normais de concorrência339. Na literatura jurídica e econômica, o custo social do cartel é geralmente medido por meio do peso morto (deadweight loss) gerado pela prática.

Em condições de concorrência perfeita, os agentes econômicos não são capazes de estabelecer o preço de seus produtos (que é, portanto, estabelecido pelo mercado), podendo apenas determinar a quantidade que produzirão. Por esse motivo, os agentes aumentam a quantidade ofertada até que o custo de produção de uma unidade adicional (custo marginal) se iguale ao preço dado pelo mercado, de modo a maximizar sua receita. Na medida em que o nível de competição diminui e as condições de mercado se afastam do cenário de concorrência perfeita, a quantidade produzida pelo agente econômico diminui, causando, consequentemente, o aumento dos preços.

No entanto, enquanto houver concorrência, nenhum dos agentes econômicos presentes no mercado poderá diminuir discricionariamente a quantidade ofertada, pois correrá o risco de que a demanda reprimida seja suprida por seu rival. Pode-se perceber, portanto, que a concorrência possui papel primordial na manutenção de preços em patamares justos e na criação de incentivos para inovar e aprimorar produtos e serviços, já que qualquer tipo de escassez criada artificialmente por um competidor poderá ser sanada pelo seu concorrente, gerando uma constante pressão competitiva sobre os agentes econômicos340.

Quanto maior for a diferença entre o preço e o custo marginal em determinado mercado, maior será o retorno financeiro de seus agentes econômicos e menor será o bem-estar do consumidor, que estará pagando um valor maior do que o necessário e justo pelos produtos ou serviços. O cartel elimina a concorrência, criando uma situação de monopólio. Nessas situações, o preço situa-se muito acima do custo marginal, criando prejuízos enormes aos consumidores, gerando o peso morto representado no Gráfico ao lado341:

339 Secretaria de Direito Econômico. Combate a cartéis e programa de leniência. 2008. Disponível em: <http://www.comprasnet.gov.br/noticias/Cartilha_Carteis.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2012.340 Por essa mesma razão, afirma-se que cartéis são, por natureza, instáveis. Independente da forma ou do método adotado por membros de um cartel, o acordo somente funcionará adequadamente se for capaz de gerar escassez – seja ela de oferta, investimento, qualidade, inovação, ou de qualquer outra variável econômica. Desse modo, todos os participantes do cartel terão incentivo constante para burlar o acordo pactuado com os demais membros e suprir a demanda repremida criada pela escassez artificial e, assim, ampliar sua participação de mercado.341 Elaborado a partir de HOVENKAMP, Herbert, op. cit., p. 20; e NUNES, A. J. Avelãs. Economia

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Em mercado de concorrência perfeita, conforme demonstrado anteriormente, o preço é dado pelo mercado e os agentes econômicos, com o intuito de maximizar sua receita, produzirão quantidade Qc, equivalente ao patamar no qual o custo de produção de uma unidade adicional é igual ao preço dado pelo mercado (i.e., o patamar no qual o custo marginal encontra a demanda). Na hipótese de concorrência perfeita, o bem-estar do consumidor é maximizado, sendo o seu excedente representado pelo triângulo 1-3-6.

Na hipótese de monopólio, por outro lado, o monopolista é responsável pela oferta total do mercado e, portanto, pode produzir a quantidade que preferir342. Assim, o monopolista buscará estabelecer a sua produção no patamar que apresentar o maior retorno financeiro, i.e., maior lucro. Como o lucro é equivalente à diferença entre o custo de produção e o preço, multiplicado pelo número de unidades produzidas, o monopolista buscará ofertar a quantidade que oferecer o maior retorno financeiro de acordo com a seguinte equação: l = q (p-c). O resultado dessa equação será maximizado totalmente quando o monopolista oferta a quantidade representada no Gráfico 1 por Qm, no ponto no qual a receita proveniente da produção de uma unidade adicional, a receita marginal, cruza com a curva do custo marginal343.

Desse modo, o ganho do monopolista é representado no Gráfico 1 acima pela área definida pelos pontos 2-3-5-4, enquanto o triângulo 4-5-6 representa o peso morto causado pelo monopólio. O custo social do monopólio, portanto,

Política: a produção - mercados e preços. Serviços de Acção Social da Universidade de Coimbra: Coimbra, 2007, pp. 373 e ss.342 Por força do Princípio de Cournot, o monopolista pode optar por fixar o preço ou a quantidade que preferir, mas nunca os dois simultâneamente: “[s]e fixa as quantidade que quer vender, é o mercado que lhe diz o preço por que as compra; se fixa o preço a que deseja transacionar, é o mercado que lhe diz as quantidades que absorve” (NUNES, A. J. Avelãs, op. cit., p. 375).343 Caso o monopolista estabeleça sua quantidade em patamar no qual o custo marginal é maior que a receita marginal, sua retorno financeiro será menor em cada unidade produzida, fazendo que o retorno total diminua.

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nada mais é do que a perda de eficiência causada pela maximização do retorno financeiro do monopolista. Em razão da escassez causada pelo monopolista, os consumidores buscarão substitutos imperfeitos dos seus produtos ou serviços, criando ineficiência na alocação de recursos. Assim, além de pagar o sobrepreço gerado pelo monopólio, os consumidores também são forçados a buscar transações alternativas no mercado que representam um valor social reduzido344.

Além disso, o quadrado 2-3-5-4 representa a renda adicional auferida pelo agente econômico em razão de seu monopólio, i.e., a renda transferida do consumidor para o monopolista. No entanto, considerando que mercados monopolizados são atraentes, o agente monopolista deve constantemente adotar precauções para proteger seu domínio. Desse modo, grande parte ou até a totalidade da renda representada pela área do quadrado 2-3-5-4 pode ser utilizada pelo agente econômico para a proteção de seu monopólio345, gerando uma situação na qual todos perdem.

1.3 CONCLUSÃO PRELIMINAR: O PREJUÍZO GERADO PELO CARTEL E A NE-CESSIDADE DE SUA REPRESSÃO

Como é possível perceber na breve exposição feita ao longo deste capítulo, o cartel é uma prática concorrencial altamente nociva, capaz de gerar sérios prejuízos ao consumidor e ineficiência. Por essa razão, e considerando que a prática não oferece qualquer tipo de benefício compensatório, o cartel é conduta ilícita per se, bastando a sua comprovação para que seja condenada pelo órgão de defesa da concorrência.

Após a análise de como o cartel funciona e como os danos à coletividade são gerados, passa-se agora ao estudo do cartel em licitações.

2. CARTEL EM LICITAÇÃO

2.1 CARTÉIS EM LICITAÇÕES E OS DANOS GERADOS PELA PRÁTICA NO CON-TEXTO DA COPA DO MUNDO DE 2014 E DOS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016

No contexto do planejamento para a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, a questão dos cartéis em licitações gera preocupação não só pelo sobrepreço resultante, mas também em razão de possíveis perdas de qualidade e atrasos nos cronogramas previstos. Com o grande volume de licitações previsto para os próximos anos, cria-se um ambiente propício para a atuação concertada entre os agentes econômicos, pois, na hipótese de formação

344 HOVENKAMP, Herbert, op. cit., p. 20.345 HOVENKAMP, Herbert, op. cit., p. 21.

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de um cartel, haveria oportunidades suficientes para garantir que todos os participantes tenham “o seu próprio contrato”.

A prática do cartel em licitações é causadora de grande prejuízo para o poder público, podendo prejudicar o planejamento e orçamento elaborados para a execução das obras previstas. Desta forma, no caso da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016, a colusão em processos licitatórios pode dar causa a um inesperado aumento dos custos e atraso nas obras, prejudicando todo o projeto e comprometendo o país frente às organizações internacionais com as quais firmou obrigações. Além disso, os eventos esportivos que o Brasil sediará exigem o mais alto padrão de qualidade e tecnologia nas instalações e infraestrutura das cidades-sede. Em um ambiente de pouca concorrência, a qualidade dos produtos e serviços é reduzida. Logo, o cartel em licitações atinge diretamente o bem-estar da sociedade e os interesses do Estado.

2.2 AS MODALIDADES DE CARTEL EM LICITAÇÕES E CONDIÇÕES ESTRUTU-RAIS NECESSÁRIAS

Assim como nos cartéis tradicionais, os acordos horizontais em licitações têm como objetivo primordial eliminar a concorrência entre os agentes econômicos, de forma a possibilitar o aumento abusivo de preços. Tanto na Lei nº 8.884/1994346, quanto na Lei nº 12.529/2011347, a prática do cartel em licitações é prevista em dispositivo próprio, o que demonstra a grande preocupação do legislador com o conluio entre concorrentes com o objetivo de aumentar abusivamente os preços em procedimentos licitatórios.

No entanto, os cartéis em licitações possuem uma peculiaridade com relação aos demais tipos de acordos horizontais ilícitos. O cartel tradicional permite que todos os seus participantes recebam benefícios do acordo ilícito imediatamente. A partir do momento em que o acordo ilícito é pactuado entre os concorrentes, todos os participantes passam a extrair indevidamente uma parcela excessiva da renda do consumidor. No entanto, o procedimento licitatório só permite um agente vencedor por certame. Assim, os participantes do cartel estruturam seus acordos de diversas formas para garantir que todos obterão os benefícios advindos do acordo ilícito. Pode-se perceber que o cartel em licitações será sempre operacionalizado mediante acordo expresso entre seus participantes. Devido às peculiaridades dessa prática, não há que se falar em colusão tácita em procedimentos licitatórios, pois os seus participantes deverão necessariamente

346 Cf. Artigo 21, inciso VIII, da Lei nº 8.884/1994. A Lei nº 8.884/1994 era considerada a lei antitruste brasileira até 29 de maio de 2012, quando a Lei nº 12.529/2011 entrou em vigor, revogando os dispositivos legais da lei anterior (exceto os artigos 86 e 87).347 Cf. Artigo 36, parágrafo 3º, inciso I, alínea “d”, da Lei nº 12.529/2011.

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organizar-se para decidir como o vencedor do certame distribuirá aos demais agentes a renda extraída indevidamente do poder público ou, se o acordo envolver diversas licitações, qual agente sairá vencedor em cada procedimento.

O cartel em licitações pode ser operacionalizado de diversas formas, a depender das características do mercado em questão e de outras condições fáticas. Assim, o acordo pode ser estruturado por meio de: (i) fixação de preços, no qual os concorrentes determinam o valor de suas propostas em comum acordo; (ii) divisão do mercado, quando a cada competidor é reservada uma determinada região onde ele ganhará as licitações; (iii) direcionamento privado da licitação, no qual os participantes do cartel acordam previamente quem será o vencedor do certame e sob quais condições; e (iv) subcontratação posterior, quando o agente escolhido para vencer o certame compromete-se a subcontratar os demais348. Para efetivar o acordo ilícito, os participantes do cartel utilizam diferentes artifícios na ocasião do procedimento licitatório, como, por exemplo: (i) oferecimento de propostas fictícias; (ii) supressão de propostas; e (iii) propostas rotativas.

Por meio de propostas fictícias, os membros do cartel apresentam ofertas com preços excessivamente elevados ou impõem condições inaceitáveis para o comprador349. O objetivo da apresentação da proposta fictícia é simular a existência de competição entre os concorrentes, quando na verdade já existe definição, entre os agentes econômicos, sobre qual deles será o vencedor do certame. Pela supressão de propostas, por sua vez, os agentes que participariam do procedimento licitatório não comparecem ao certame para apresentação de sua proposta ou, de outra forma, comparecem ao procedimento, mas retiram a proposta previamente apresentada. Dessa forma, os agentes que retiram ou não apresentam sua proposta buscam favorecer o participante do cartel escolhido pelos demais membros do acordo para vencer o certame350. Por fim, os participantes do cartel podem também estruturar um sistema de rodízios. Quando há mais de um certame em um mesmo mercado, os participantes do cartel podem decidir os vencedores de forma rotativa. Assim, “as empresas conspiradoras continuam a concorrer, mas combinam apresentar alternadamente a proposta vencedora (i.e. a proposta de valor mais baixo)”351.

348 OCDE, op. cit., pp. 1-2; e SDE, op. cit., pp. 9-10.349 Cf. OCDE, op. cit., p. 2: “[A proposta fictícia] [o]corre quando indivíduos ou empresas combinam submeter propostas que envolvem, pelo menos, um dos seguintes comportamentos: (1) Um dos concorrentes aceita apresentar uma proposta mais elevada do que a proposta do candidato escolhido, (2) Um concorrente apresenta uma proposta que já sabe de antemão que é demasiado elevada para ser aceita, ou (3) Um concorrente apresenta uma proposta que contém condições específicas que sabe de antemão que serão inaceitáveis para o comprador”.350 Desse modo, “a supressão de propostas implica que uma empresa não apresenta uma proposta para apreciação final” (OCDE, op. cit., p. 2).351 OCDE, op. cit., p. 2.

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Independentemente da forma escolhida pelos agentes econômicos para estruturar seu acordo, o cartel em licitações só poderá ocorrer na presença de determinadas condições estruturais no mercado afetado. Conforme já esclarecido, o cartel é instável por natureza, pois seus participantes têm o constante incentivo para burlá-lo e suprirem a demanda reprimida criada pela escassez artificial. Além disso, a peculiaridade da licitação, que só permite um vencedor em cada certame, confere ainda mais instabilidade ao acordo. Neste sentido, para que o acordo funcione de maneira adequada, as seguintes características devem estar presentes: (i) reduzido número de empresas, i.e., o acordo deve ocorrer em um mercado oligopolizado; (ii) existência de barreiras à entrada; (iii) previsibilidade das variações da oferta e da procura; (iv) existência de associações comerciais e associações de classe; (v) grande número de licitações; (vi) poucas alternativas disponíveis no mercado para o produto licitado; (vii) homogeneidade dos produtos ou serviços; e (viii) nível reduzido de inovação352-353. Como se pode perceber, todas as características estruturais e fáticas do mercado necessárias para possibilitar a existência de um acordo ilícito são aquelas que conferem ao cartel estabilidade e segurança. Além disso, tais condições também diminuem os custos de monitoramento com relação ao cumprimento do acordo pelos seus participantes, reduzindo os incentivos para burlá-lo.

O número reduzido de agentes do mercado é um dos facilitadores de acordos horizontais ilícitos. Com menos concorrentes no mercado, há mais facilidade para que os participantes de um cartel coordenem-se e evitem que outros agentes que não aderiram ao acordo possam suprir a demanda reprimida gerada pela escassez artificial. Além disso, um elevado número de licitações no mesmo mercado pode aumentar a probabilidade de conluio entre os concorrentes, na medida em que facilita a prática do rodízio entre os ganhadores e também a subcontratação posterior. Adicionalmente, a realização frequente de licitações pelo poder público confere estabilidade ao cartel, pois cada participante sabe que terá a sua oportunidade de vencer um certame. Variações previsíveis na procura e na oferta também tornam a coordenação mais simples. Em mercados nos quais há pouca oscilação com relação à oferta e à procura, os agentes econômicos podem planejar com maior segurança o seu acordo ilícito. A existência de barreiras à entrada no mercado também é um fator importante, pois o surgimento de um novo competidor – atraído pela alta de preços provocada pelo cartel – pode desestabilizar o conluio. A homogeneidade dos produtos ou serviços e o nível de inovação tecnológica também são importantes, pois mercados nos quais os

352 OCDE, op. cit., pp. 3-4.353 A SDE também aponta como características facilitadoras a comunicação frequente entre competidores e a rigidez nas regras da licitação, que podem impedir o comprador de agir rapidamente caso perceba algum indício de conluio entre os participantes do certame.

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produtos e serviços possuem baixo nível de diferenciação e não há necessidade de grandes investimentos em pesquisa e desenvolvimento apresentam maior estabilidade. Ademais, a existência de associações comerciais e associações de classe pode facilitar a colusão em procedimentos licitatórios, permitindo a troca de informações entre os concorrentes.

2.3 O PAPEL DO MERCADO RELEVANTE EM CASOS DE CARTEL EM LICITAÇÃO

Considerando que a possibilidade de ação concertada dos agentes econômicos para participar de licitações está relacionada às condições do mercado em questão, a definição do mercado relevante354 é essencial e indispensável para a análise concorrencial dessa prática.

Em ocasiões anteriores, o CADE decidiu que a definição do mercado relevante em casos relacionados a licitações atende a parâmetros diferentes355. Nesse sentido, a dimensão produto do mercado relevante deve ser definida em função do objeto da licitação, conforme definido pelo edital356. Desta forma, o mercado de compras governamentais constitui um mercado em separado em relação ao mercado privado, pois é regulado por regras próprias e possui condições especiais que afetam a dinâmica concorrencial. Além disso, os requisitos mínimos determinados pelo edital podem ser considerados como barreiras à entrada, pois podem impedir determinados agentes de participarem do certame357, o que torna ainda mais evidente o fato de que o procedimento

354 O mercado relevante é um conceito próprio do direito concorrencial. Uma das técnicas mais utilizadas para a sua correta definição (e que também serve como bom referencial para explicar o seu significado) é o teste do monopolista hipotético. Assim, o mercado relevante será aquele no qual um monopolista hipotético poderia exercer seu poder de mercado sem ser contestado por eventuais concorrentes. Portanto, “[o] mercado relevante é aquele em que se travam as relações de concorrência ou atua o agente econômico cujo comportamento está sendo analisado” (FORGIONI, Paula A. Os fundamentos do antitruste. 5ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 211).355 No julgamento do processo administrativo nº 08012.002742/2005-65.356 Cf. voto do conselheiro Vinícius Marques de Carvalho no processo administrativo nº 08012.002742/2005-65, p. 7: “[C]abe ressaltar que o mercado relevante em análise é o mercado de compras governamentais, que se constitui um mercado à parte ao mercado privado, pois contém aspectos e condições específicas em relação ao mercado privado. Sob a ótica da dimensão do produto, o mercado é o de fitas reagentes, com concessão de uso gratuito, dos monitores (aparelhos portáteis) para verificação de glicemia capilar, conforme estabelecido no Edital do Pregão Presencial nº 05/2005”.357 Cf. voto do conselheiro Vinícius Marques de Carvalho no processo administrativo nº 08012.002742/2005-65, p. 8: “[f]az-se necessário destacar que o Edital da licitação impõe relevante barreira à entrada, na medida em que esse exclui novos entrantes ao exigir que as empresas participantes detenham experiência prévia no fornecimento de fitas reagentes para verificação de

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licitatório constitui um mercado relevante separado. Quanto à dimensão geográfica, esta também deve ser delimitada em função da licitação. Por exemplo, eventual restrição à participação de empresas estrangeiras estabelecida em edital de procedimento licitatório impacta na definição do aspecto geográfico (para âmbito nacional).

Ademais, há também nexo entre a definição do mercado relevante em casos relacionados a licitações e o aspecto temporal do certame. Assim, é importante ponderar a duração das fases inerentes ao procedimento licitatório (v.g. habilitação, recebimento de propostas, abertura de propostas) e os custos de transação relacionados à relação entre o agente privado e o ente público358. Tais peculiaridades fazem com que haja uma clara diferenciação entre mercados para compras governamentais e mercados privados.

2.4 Condições estruturais do mercado relevante e os procedimentos lici-tatórios relacionados aos eventos esportivos de 2014 e 2016: por que o cartel será uma preocupação do CADE?

Conforme esclarecido ao longo da presente análise, as condições estruturais de um determinado mercado exercem um papel primordial com relação à possibilidade e probabilidade de formação de cartel para participação em licitações. Além disso, determinadas disposições contidas nos editais dos procedimento licitatórios podem afetar a definição do mercado relevante e restringir o número de participantes capazes de concorrer no certame.

Com relação à Copa do Mundo de 2014 e aos Jogos Olímpicos de 2016, pode-se afirmar que a variação da procura relacionada a compras governamentais (licitações) é razoavelmente previsível, devido à tendência do aumento da demanda nos próximos anos. A variação da oferta também pode ser previsível nos mercados de difícil acesso, especialmente se os editais dos procedimentos licitatórios impuserem elevada quantidade de exigências como condição para participação no certame. Nos mercados que possuem grandes barreiras à entrada, a elasticidade da oferta é baixa e o ingresso de um novo competidor, improvável, conferindo, desta forma, grande estabilidade a um cartel que seja eventualmente firmado.

Portanto, é provável que as autoridades públicas e o CADE estejam atentos a possíveis acordos ilícitos entre concorrentes para participação em licitações relacionadas à Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Assim, passa-se agora ao estudo da experiência do CADE relacionada ao combate a cartéis em licitação e das ferramentas disponíveis ao órgão para a repressão a essas condutas.

glicemia capilar, com compatibilidade de volume, quantidade, prazos etc.”358 Cf. voto do conselheiro Vinícius Marques de Carvalho no processo administrativo nº 08012.002742/2005-65, p. 7: “[A] SDE lembra que a dimensão temporal é outro aspecto importante para a análise, pois aspectos temporais podem afetar a produção e a demanda num dado mercado”.

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3. O CADE E O COMBATE AOS CARTÉIS EM LICITAÇÕES

3.1 A JURISPRUDÊNCIA DO CADE

A jurisprudência do CADE demonstra que a maior dificuldade da autarquia é provar a existência de acordo horizontal para participação em licitações359. Como o cartel em licitações só pode ser operacionalizado por meio de acordo expresso entre seus participantes, o CADE deve provar, mediante contratos, atas, correspondências, conversas telefônicas, ou qualquer outro tipo de evidência, a ocorrência do conluio. Em grande parte dos casos relativos a cartéis em licitações que foram comprovados e condenados pelo CADE, a autarquia utilizou as principais ferramentas dispostas pela Lei nº 12.529/2011 no combate aos cartéis: o programa de leniência e a busca e apreensão.

Para fins deste estudo, serão analisados brevemente os seguintes casos de cartel em licitação condenados pelo CADE: (i) processo administrativo nº 08012.009118/1998-26 (acordo em licitação da Petrobras), condenado pelo CADE em 20/09/2000; (ii) processo administrativo nº 08012.002127/2002-14 (cartel das britas), condenado pelo CADE em 13/07/2005; e (iii) processo administrativo nº 08012.001826/2003-10 (cartel dos vigilantes), condenado pelo CADE em 24/10/2007.

O processo administrativo nº 08012.009118/1998-26 refere-se a suposto acordo entre participantes da licitação internacional promovida pela Petrobras para a prestação de serviços de engenharia e suprimento de diversos materiais para a adaptação de uma plataforma de petróleo para perfuração em lâmina d’água de 1.200 metros. No caso, o acordo, intitulado “intercâmbio de informações técnicas”, foi realizado entre dois potenciais participantes do certame e dispunha que (a) caso a proposta vencedora fosse igual ou superior a US$ 33 milhões, seria pago ao perdedor o valor de US$ 1 milhão; ou (b) caso a proposta vencedora fosse inferior a US$ 33 milhões, seriam pagos US$ 250 mil ao perdedor; ou (c) não havendo vencedor entre os agentes envolvidos, haveria abertura de crédito no valor de US$ 250 mil por um dos agentes em favor do outro360. Assim, além de pactuarem sua participação conjunta na licitação

359 Cf. processo administrativo nº 08000.001164/1997-53, arquivado em 29/03/2006; averiguação preliminar nº 08000.017954/1995-43, arquivada em 17/01/2007; averiguação preliminar nº 08012.004432/2003-13, arquivada em 13/05/2009; averiguação preliminar nº 08012.004604/1998-67, arquivada em 28/10/2009; averiguação preliminar nº 08012.002742/2005-65, arquivada em 23/06/2010; averiguação preliminar nº 08012.007704/2004-18, arquivada em 07/07/2010; processo administrativo nº 08000.019901/1997-10, arquivado em 06/04/2011; e averiguação preliminar nº 08012.014050/2007-21, arquivada em 18/05/2011.360 Cf. voto vista do Conselheiro Thompson Almeida Andrade no processo administrativo nº 08012.009118/1998-26.

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em questão, as partes também dispuseram sobre a distribuição dos benefícios decorrentes do acordo.

Segundo o CADE, o acordo entre os dois agente apresentava potencial361 de falseamento da concorrência, uma vez que havia sido pactuado um ajuste de vantagens condicionado à fixação do valor da proposta no certame promovido pela Petrobras362. Além disso, concluiu-se que o acordo criou incentivos para alinhamento na tomada de decisões dos concorrentes, arrefecendo a concorrência e contribuindo para que o valor final ofertado na licitação fosse superior a US$ 33 milhões363.

O CADE considerou o acordo ilícito e condenou as representadas do processo administrativo nº 08012.009118/1998-26 ao pagamento de multa no valor de 1% do seu faturamento bruto, além de obrigá-las a retratarem-se publicamente por meio de declarações em jornais de grande circulação.

O processo administrativo nº 08012.002127/2002-14 foi o primeiro no qual os órgãos de defesa da concorrência utilizaram a ferramenta da busca e apreensão para obter provas acerca de suposta conduta ilícita. O caso buscou investigar suposto “cartel para fixar preços, alocar consumidores, restringir a produção e fraudar licitações no mercado de pedra britada”, mediante utilização, inclusive, de software para “direcionar as vendas e fiscalizar o cumprimento do acordo”364. Assim, o cartel das britas é considerado um dos casos de cartel clássico julgados pelo CADE, já que o acordo foi estruturado de forma sofisticada, prevendo instrumentos de fiscalização e supervisão de seu cumprimento, além de atuar em diversos meios, inclusive em licitações.

Além dos instrumentos de supervisão e monitoramento do cartel, as evidências coletadas pelas autoridades de defesa da concorrência brasileiras demonstraram que os participantes do acordo elaboraram um programa de trabalho, que estabelecia os objetivos da colusão365. O programa de trabalho era executado por órgãos administrativos criados pelos agentes econômicos

361 De acordo com a legislação concorrencial brasileiro, não é necessário comprovar a existência de efeitos anticompetitivos da prática investigada, sendo suficiente demonstrar o potencial de a conduta gerar efeitos adversos. Nesse sentido, cf. artigo 20, caput, da Lei nº 8.884/1994 e artigo 36, caput, da Lei nº 12.529/2011.362 Voto do conselheiro relator João Bosco Leopoldino da Fonseca no processo administrativo nº 08012.009118/1998-26, pp. 2 e ss.363 Cf. voto vista do Conselheiro Thompson Almeida Andrade no processo administrativo nº 08012.009118/1998-26, p. 4: “[c]om esta intenção ou não, as suas propostas, ao invés de serem intrinsecamente independentes e estarem fundamentadas em capacidades diferenciadas de fazer uma oferta baseada em custos menores resultantes de diferentes níveis de eficiência produtiva, estavam aditivadas por um acordo que reforçava o interesse em apresentar uma proposta acima ou igual ao patamar de US$ 33 milhões”.364 Cf. SDE, op. cit., p. 17.365 Cf. voto do conselheiro relator Luiz Carlos Thadeu Delorme Prado no processo administrativo nº 08012.002127/2002-14, p. 15.

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para conduzir a gestão do cartel, como a “assembleia”, na qual as decisões eram tomadas em conjunto pelos participantes do acordo, e o “comitê gestor”, responsável por solucionar conflitos e gerir recursos financeiros, dentre outras prerrogativas366.

Por meio da busca e apreensão realizada, o CADE conseguiu obter documentos como atas de reunião, diretivas e regulamento para controle dos preços, que foram essenciais para provar a existência de acordo e fundamentar a condenação da prática. Como resultado, o CADE condenou as representadas com multas variando entre 15% a 17% do seu faturamento bruto.

Por fim, o processo administrativo nº 08012.001826/2003-10 relaciona-se com suposto cartel entre prestadores de serviços de vigilância no Estado do Rio Grande do Sul, com atuação tanto no mercado privado como em licitações367. Por meio do seu programa de leniência e por medidas de busca e apreensão, o CADE obteve gravações de interceptações telefônicas, documentos diversos, testemunhos e e-mails trocados por membros do cartel.

De acordo com as informações apuradas pelo CADE e conforme demonstra-do pelas provas obtidas, os participantes do cartel dos vigilantes reuniam-se periodi-camente para decidir quem seriam os vencedores das licitações previstas e qual seria o preço ganhador em cada certame368. Adicionalmente, os participantes do ilícito possuíam mecanismos de represália contra os agentes não alinhados ao acordo. Tais mecanismos eram implementados, inclusive, com o auxílio de sindicatos369.

Ao fim, o CADE condenou os participantes do cartel a multas entre 15% e 20% do faturamento bruto dos agentes, além de impor proibição de licitar e obrigação de retratação pública por meio de jornal de grande circulação.

Como se pode perceber, os casos mais relevantes julgados pelo CADE referentes a cartéis em licitação foram julgados e condenados com base em evidências obtidas por meio de procedimentos de busca e apreensão e pelo programa de leniência. Por outro lado, ainda há grande quantidade de casos arquivados pela autarquia em razão de insuficiência de provas, já que cartéis em licitação somente podem ser provados mediante acordo expresso entre seus participantes.

366 Cf. voto do conselheiro relator Luiz Carlos Thadeu Delorme Prado no processo administrativo nº 08012.002127/2002-14, p. 16.367 Cf. voto do Conselheiro-relator Abraham Benzaquem Sicsú no processo administrativo nº 08012.001826/2003-10.368 Assim, “[h]avia reuniões todas as segundas-feiras na sede do sindicato, ocasião em que todas as empresas levavam os editais de licitações a ocorrer durante a semana, quando era decidido quem vencederia e qual preço seria dado na licitação” (voto do Conselheiro-relator Abraham Benzaquem Sicsú no processo administrativo nº 08012.001826/2003-10, p. 18).369 Cf. voto do Conselheiro-relator Abraham Benzaquem Sicsú no processo administrativo nº 08012.001826/2003-10, p. 19.

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3.2 AS FERRAMENTAS DA LEI Nº 12.529/2011: O PROGRAMA DE LENIÊNCIA E OS PROCEDIMENTOS DE BUSCA E APREENSÃO

As duas principais ferramentas que o CADE dispõe são o acordo de leniência e o procedimento de busca e apreensão. Como visto, a maior dificuldade do CADE ao julgar casos relacionados a cartéis em licitações é provar, por meio de documentos, gravações, acordos escritos ou comunicações entre os agentes, a existência do conluio. Na maior parte dos processos administrativos relativos a cartéis condenados pelo CADE, a autarquia utilizou o acordo de leniência e/ou as buscas e apreensões para obter provas da existência de colusão.

Por meio do acordo de leniência, qualquer participante de um cartel pode denunciá-lo ao CADE e receber, em troca, a extinção da ação punitiva da administração pública ou a redução de 1/3 a 2/3 da penalidade aplicável, desde que o denunciante auxilie com as investigações e que dessa colaboração resulte (a) a identificação dos demais envolvidos na prática e (b) obtenção de documentos e provas suficientes para condenar a infração370. Para poder celebrar acordo de leniência com o CADE, é necessário que o agente (i) seja o primeiro a propor o acordo; (ii) cesse completamente seu envolvimento na prática ilícita; (iii) confesse sua participação no ilícito; e (iv) coopere com as investigações. Adicionalmente, é necessário que o CADE não disponha previamente de provas suficientes para provar a existência do ilícito371. Além da extinção da punibilidade administrativa, também ocorre em favor do agente beneficiário da leniência a extinção da punibilidade dos crimes tipificados na Lei nº 8.137/1990 e dos crimes relacionados à prática do cartel tipificados na Lei nº 8.666/1993 e no artigo 288 do Código Penal372.

A busca e apreensão, por sua vez, deve ser requerida pelo CADE ao Poder Judiciário. Como órgão administrativo, o CADE não possui competência para determinar a busca e apreensão de bens pertencentes a suspeitos de envolvimento em ilícitos concorrenciais. Por essa razão, é essencial a coordenação entre a autarquia, a Procuradoria Federal Especializada junto ao CADE (ProCADE) e os Ministérios Públicos Estaduais e Federal, com o objetivo de garantir eficácia e legitimidade aos procedimentos de busca e apreensão. Na estrutura interna do CADE, a competência para solicitar a busca e apreensão de bens junto ao Poder Judiciário pertence à Superintendência-Geral373.

370 Cf. artigo 86 da Lei nº 12.529/2011.371 Cf. parágrafo 1º do artigo 86 da Lei nº 12.529/2011.372 Cf. artigo 87 da Lei nº 12.529/2011.373 Cf. artigo 13, inciso VI, alínea “d”, da Lei nº 12.529/2011.

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4. CONCLUSÃO

Conforme visto ao longo deste estudo, o cartel é considerado a prática mais danosa à coletividade. Além de afetar o bem-estar da sociedade e transferir renda dos consumidores para os participantes do cartel, os acordos horizontais também envolvem um custo social representado pela alocação ineficiente de recursos e meios de produção. As substituições imperfeitas que os consumidores são forçados a realizar em razão da escassez artificial criada pelo cartel faz com que seja criado um “peso morto”, prejudicando de maneira ainda mais incisiva a coletividade. Ademais, a análise empírica indica que a renda extraída do consumidor pelos membros do cartel muitas vezes é utilizada para proteger o domínio criado. Nesse sentido, os mecanismos de supervisão, monitoramento e fiscalização do acordo, assim como todas as cautelas adotadas pelos seus membros para manter o conluio em confidencialidade representam custos substanciais, consumindo recursos que poderiam ser utilizados em outras atividades, como em investimentos em pesquisa e desenvolvimento, ampliação de unidades de produção, melhoria de distribuição dos produtos, dentre outras.

A perspectiva de aumento das compras governamentais em razão das obras para a construção da infraestrutura necessária para a Copa do Mundo de 2014 e Jogos Olímpicos de 2016 destaca a relevância da concorrência em licitações. O intenso volume de compras e contratação governamental em razão dos eventos esportivos que o Brasil sediará nos próximos anos cria as condições estruturais que, segundo a teoria econômica, facilitam a existência de conluio. Muito embora o cartel em licitações seja uma das práticas mais danosas à administração pública e ao bem-estar da sociedade, ela também é uma das mais difíceis de se provar. Para o CADE, é essencial evitar que acordos ilícitos possam, de qualquer maneira, atrapalhar o bom andamento das obras necessárias para a realização da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016. Além de proteger o legado que esses eventos esportivos deixarão para a população brasileira, a atuação do CADE também será determinante para garantir que o poder público honrará com todos os compromissos que celebrou junto à comunidade internacional para sediar a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.

Por todo o exposto, pode-se concluir que o CADE deverá adotar uma postura pró-ativa no combate à cartéis no âmbito de licitações com a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, atentando para os seguintes pontos: (i) criação de incentivos para a delação premiada, fortalecendo o programa de leniência e garantindo sua eficácia; (ii) cooperação com os Ministérios Públicos Estaduais e Federais, para solicitar a expedição de mandados de busca e apreensão, quando necessários; (iii) conscientização

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dos órgãos públicos responsáveis por promover os procedimentos licitatórios para a Copa do Mundo de 2014 e Jogos Olímpicos de 2016, especialmente nos mercados que apresentarem as condições estruturais propícias para a existência de acordos ilícitos; (iv) criação de incentivos à máxima transparência durante os procedimentos de licitação, de modo a dificultar eventuais rodízios, supressão de propostas ou oferecimento de propostas fictícias; e (v) criação de incentivos para que os órgãos públicos responsáveis por promover os procedimentos licitatórios para a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 elaborem editais que não impeçam a participação de um grande número de concorrentes, sem prejudicar a qualidade dos produtos e serviços contratados.

Da mesma forma, os agentes econômicos deverão atentar-se para as boas práticas concorrenciais quando participarem de licitações relacionadas à Copa do Mundo de 2014 e aos Jogos Olímpicos de 2016. Em especial, as seguintes precauções devem ser adotadas para garantir o cumprimento com as regras da livre concorrência: (i) evitar comunicações desnecessárias entre concorrentes; (ii) não relevar o valor ofertado no certame para os outros participantes; (iii) não participar de qualquer reunião ou discussão proposta por concorrentes do procedimento licitatório; e (iv) instruir empregados e representantes a não trocar informações com terceiros.

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ARTIGO 11A PERSONALIDADE JURÍDICA E A CAPACIDADE PROCESSUAL DO

COMITÊ OLÍMPICO INTERNACIONAL

martinho martins boteLho374

Le plus important aux Jeux olympiques n’est pas de gagner mais de partici-per, car l’important dans la vie ce n’est point le triomphe mais le combat; l’essentiel,

ce n’est pas d’avoir vaincu mais de s’être bien battu (Pierre de Frédy).

SUMÁRIO: Introdução. 1. A personalidade jurídica e a capacidade processual em direito internacional. 1.1 Noções históricas da personalidade jurídica. 1.2 O tratamento doutrinário da personalidade jurídica internacional. 2. O Comitê Olímpico Internacional (COI). 2.1 Origens históricas. 2.2 Estrutura funcional. 3. A Carta Olímpica. 3.1 Composição da Carta Olímpica 3.2 O movimento olímpico. 3.3 As recentes modificações da Carta Olímpica. 4. A personificação da COI e sua capacidade processual. 4.1 Capacidade processual do COI. 4.2 As vantagens e desvantagens da não utilização da capacidade processual do Poder Judiciário: a via arbitral. 5. Conclusão. Referências bibliográficas.

INTRODUÇÃO

Neste breve escorço, a proposta é refletir sobre o Comitê Olímpico Internacional (COI), a sua personalidade jurídica e capacidade processual no âmbito do Direito Internacional Desportivo. A reflexão passará pelas implicações da personalidade jurídica em Direito Internacional, além das origens históricas do COI, sua estrutura e a composição da Carta Olímpica de 2011, seguida por todas as entidades que participam dos eventos olímpicos.

Procurar-se-á entender como o COI lida com temas relacionados com a arbitragem e a solução de controvérsias, tendo em vista a discussão sobre a sua capacidade processual.

Para descortinar o texto, geralmente se entende que a atuação do COI é feita com justificativa ideológica: a de aproximar os povos por meio da cultura da paz desportiva.

No entanto, em um primeiro momento, o surgimento do COI se deu com a finalidade de fomentar a cultura dos jogos olímpicos da Antiguidade,

374 Martinho Martins Botelho. Doutor em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo (USP). Doutorando em Teoria Econômica pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professor do Centro Universitário Internacional Uninter, das Faculdades Santa Cruz e da Fundação de Estudos Sociais do Paraná (FESP PR). Advogado e Economista em Curitiba/PR.

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os quais eram considerados como um festival religioso e atlético da Grécia Antiga, sendo atribuída a primeira edição em 776 a.C.375

Os Jogos Olímpicos antigos eram os mais relevantes jogos pan-helênicos, tendo sido proibidos pelo imperador cristão Teodósio I em 393 d.C., por serem considerados uma manifestação de adoração de rituais pagãos.376

O período áureo dos Jogos Olímpicos da Antiguidade correspondeu ao século V a.C.377

Os Jogos Olímpicos considerados modernos foram realizados em Atenas em 1896, sendo disputados por amadores. Apenas no século XX, a competição passou a ser disputada por profissionais.

Juntamente com os Jogos Olímpicos modernos, pensou-se em criar uma estrutura centralizada em determinadas instâncias, o que representou o surgimento do COI com a função de controlar os eventos olímpicos.378

Em função disso, é necessário que se faça uma distinção da natureza jurídica do COI como entidade e a sua presença, ou não, como sujeito de direito internacional público.

Nesse sentido, a finalidade da presente pesquisa é fazer uma avaliação da possibilidade do COI possuir ou não subjetividade (personalidade de Direito Internacional) e a sua capacidade processual perante o Direito das Gentes, dentro do seu atual estágio evolutivo.

O trabalho está dividido em 4 partes, excluindo-se esta introdução. Na primeira parte, aborda-se a questão da personalidade jurídica e da capacidade processual em Direito Internacional, envolvendo-se com as noções históricas e o tratamento doutrinário.

A segunda parte trata do COI, evolução histórica, natureza jurídica e estrutura funcional; para se passar, na terceira parte, à Carta Olímpica de 2012, na qual se trata do Movimento Olímpico, embasando a percepção da capacidade processual do COI, inclusive frente à arbitragem internacional desportiva.

1. A PERSONALIDADE JURÍDICA E A CAPACIDADE PROCESSUAL EM DIREI-TO INTERNACIONAL

No âmbito dos estudos de Direito Internacional Público, durante a década de 1980, questionara-se sobre o lugar ocupado pelo indivíduo e pelas

375 SWADDLING, Judith. The Ancient Olympic Games. Texas: University of Texas Press, 2000, p. 11.376 PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica: Cultura Grega. Vol. I. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 25.377 PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Ob. cit., p. 27.378 LENSKYI, Helen Jefferson. Inside the Olympic Industry: Power, Politics and Activism. New York: SUNY, 2000, p. 31.

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Organizações Não-Governamentais (ONGs) na sociedade internacional.Tal questão fora alvo de algumas discussões, com significativa atenção

dos doutrinadores jurídicos e internacionalistas em geral, com a criação de alguns avanços importantes.

Porém, mesmo com a questão da subjetividade internacional do indivíduo e das ONGs ser restrito ao ser humano propriamente dito, recentemente, tal realidade acabou ganhando contornos menos restritos, ampliando-se as categorias de sujeitos de Direito Internacional.

A razão principal apontada para tal constatação é o avanço da sociedade internacional atual, desde a década de 1980, de acordo com o surgimento de novos problemas nas relações internacionais e no próprio Direito Internacional.

Visando a busca de maior efetividade, os internacionalistas mais contemporâneos passaram a estudar também a subjetividade internacional das pessoas coletivas, como as ONGs, e inclusive os povos e as minorias internacionais.

É nesse sentido, por exemplo, que Wolfgang Friedman assevera que o termo nacional ou indivíduo, na seara do Direito Internacional, incluiria também órgãos coletivos, além dos seres humanos.

O presente tópico está dividido em duas partes. Na primeira parte, estudam-se as noções históricas da personalidade jurídica em Direito Internacional e, na segunda, avalia-se o tratamento doutrinário da personalidade jurídica internacional.

1.1 Noções históricas da personalidade jurídica O Direito Internacional Público, tal como se conhece hodiernamente, foi

sistematizado em um período aproximado dos séculos XVI e XVII; e o seu objeto era as relações ditas com determinado grau de estabilidade entre grupos com poder de autodeterminação.

Porém, a ideia geral da sistematização de normas que regulassem a relação entre os indivíduos, seres humanos; com especial preocupação com questões internacionais como a paz e a guerra; é mais longínqua, antecedendo a formação dos Estados modernos, reportando-se à Antiguidade.

Em razão disto, Antonio Truyol y Serra menciona a existência de um Direito Internacional Público pré-histórico.379

Já se falou de notícias de realização de um tratado internacional no período de 3.100 a. C. para se fixarem os limites da Lagash e Umma, na região da Mesopotâmia; e também já em Roma, estavam previstas normas privadas e públicas (jus gentium) que eram invocadas nas relações com os cidadãos romanos e os demais povos; mesmo que ocorrera um abandono do direito

379 TRUYOL Y SERRA, Antonio. Fundamentos de derecho internacional publico. Barcelona: Seix, 1950, p. 29.

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internacional em razão do predomínio romano sobre os demais povos.380

Tais normas acabaram surgindo em razão da necessidade de se viabilizar o comércio com o Império Romano.

Porém, as ideias mais antigas do Direito das Gentes sempre foram formadas pela noção de unidade do indivíduo que defendia a paz e a fraternidade entre os povos.

Tal ideia tinha origem nos mais diversos sentimentos religiosos dos tempos e dos espaços, tal como no budismo, confucionismo, judaísmo e cristianismo, entre outros.

Inaugurou-se uma procura por embasamento ético-jurídico para as ideias mencionadas; sendo algo válido para todos os seres humanos, sem distinção de raça ou cultura consubstanciado na ideologia.

Para o Direito Internacional Público, a expressão “Direito das Gentes” tem origem dessa vontade de estabelecer a igualdade entre todos os seres humanos, ressoando desde a Antiguidade.381

Por outro lado, na origem histórica do Direito Internacional na forma conhecida atualmente, em uma sociedade politicamente organizada, confirma-se a existência de tais ideias.

Assim, a escola espanhola do Direito das Gentes, contemporânea dos grandes descobrimentos marítimos e do Direito Internacional do Mar, pregava um conteúdo vinculado ao Direito Natural e à existência da comunidade internacional do qual todos os povos faziam parte, restaurando a ideia de igualdade do gênero humano.

Francisco de Vitória, teólogo espanhol neo-escolástico, é considerado o primeiro idealizar do Direito Internacional, desconsiderando o nacionalismo exclusivista e defendendo o relacionamento entre as nações como decorrência da sociabilidade natural entre os povos.382

Tal ideia também foi corroborada por Hugo Grócio (Huig de Groot), jurista do século XVII, jusinternacionalista que enfatizava o surgimento de regras a partir do consentimento dos Estados nacionais, criando, com isso, uma base teórica que conciliava o jusnaturalismo e o juspositivismo do Direito das Gentes.383

A partir de tais teorias, vinculadas ao Direito Natural e ao jus gentium romano, os jusinternacionalistas passaram a admitir a subjetividade internacional do indivíduo, do ser humano.

No entanto, a partir do século XIX, tal pensamento foi repelido e, com o surgimento dos Estados modernos, passou-se a relegar o indivíduo ao segundo

380 TRUYOL Y SERRA, Antonio. Ob. cit., p. 31.381 No direito germânico, fala-se mais em Direito dos Povos, Völkerrecht.382 LITRENTO, Oliveiros. Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 63-64.383 LITRENTO, Oliveiros. Ob. cit., p. 65.

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plano na subjetividade internacional, sendo aceito apenas a ação internacional dos Estados na dita comunidade internacional.

Na lição de René-Jean Dupuy, tal entendimento foi fruto da elevada concentração do poder como função de solidariedade sentida pelos Estados, explicando nos seguintes termos384:

A tendência natural destes é a de salvaguardar o seu monopólio, de abrir a organização apenas aos Estados, de não acolher os indivíduos como tal. Por outro lado, o seu objetivo não é de modo nenhum constituir um poder acima deles, um governo supra-estadual, mas a maior parte das vezes, procuram limitar-se a constituição de um aerópago onde possam cooperar com vista à realização de um interesse comum.

Com isso, o Estado passa a ser o centro da subjetividade das relações internacionais, seguido por embasamentos teórico-doutrinários tal como será visto adiante.

1.2 O TRATAMENTO DOUTRINÁRIO DA PERSONALIDADE JURÍDICA INTER-NACIONAL

Na época contemporânea, em razão de relações sociais mais estreitas e um inter-relacionamento maior entre os Estados nacionais, principalmente em função de uma crescente interdependência e de maiores facilidades de comunicação e de transporte; o direito internacional acaba assumindo novos desafios.

Com isso, outros atores internacionais aparecem, resgatando-se a preocupação com o indivíduo, principalmente, em razão da agressão a normas de direitos humanos. Dá-se início a mecanismos de tutela jurídica do indivíduo, punindo-se os violadores das normas de proteção dos seres humanos, ignorando-se a tutela única dos interesses do Estado.

Na visão de Celso Duvivier de Albuquerque de Mello, mesmo que a subjetividade jurídico-internacional do indivíduo pareça ser uma questão simples, acaba não sendo apenas científico-acadêmica.385 Isso porque existiriam razões relevantes para que o ser humano seja considerado como sujeito de Direito Internacional, citando a dignidade humana que leva a ordem jurídica

384 DUPUY, René-Jean. Droit international public. Paris: Presses Universitaires de France, 1996, p. 109. No original: “La tendance naturelle de ceux-ci est de préserver son monopole, ouvrant ainsi la seule organisation aux États, en rejetant les individus en tant que tels. D’autre part, votre objectif n’est en aucun cas constituer une puissance supérieure à eux, un gouvernement supra-national, mais la plupart du temps, en cherchant à limiter la formation d’un aréopage où ils peuvent coopérer en vue de détention d’une participation commun.“385 MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 1º vol. 11ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 738.

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internacional reconhecer e proteger direitos a ele relativos; e a própria noção de Direito, criação do homem para o homem.

As doutrinas jurídicas que se defrontam com tal problema da subjetividade internacional são: a doutrina estatal e a doutrina individualista.

A doutrina estatal tem um viés decorrente da concepção positivista voluntarista do Direito Internacional, entendendo que o mesmo é fruto apenas da vontade do Estado. Destarte, as normas internacionais afetariam os indivíduos indiretamente, por meio da atuação (recepção ou não) das mesmas pelos entes estatais. Os expoentes de tal corrente são Dionisio Anzilotti386 e Karl Heinrich Triepel.387

A doutrina individualista, de concepção monista antivoluntarista, insere o indivíduo não como mero sujeito de Direito Internacional Público, mas sim como o seu único sujeito.

Para tal abordagem, como os Estados detêm meras técnicas de gestão de interesses coletivos, eles não poderiam ter a condição de sujeitos.

Tal teoria foi liderada, inicialmente, por Pierre Marie Nicolas León Duguit388 em 1901; e pelos seus seguidores Georges Scelle389 e Nikolaos Polits390, entre outros.

Na visão de Hans Kelsen, não se poderia aceitar uma corrente ou outra, mas ambas, chegando a afirmar que os Estados, assim como os indivíduos, possuem subjetividade internacional, porque todo direito é regulador da conduta humana.391

Ademais, outros autores têm posições diversas, ora aceitando o indivíduo como sujeito secundário de direito internacional; ora apenas como objeto do Direito Internacional.392

Contemporaneamente, a maioria dos jusdoutrinadores entende que o

386 Jurista e diplomata italiano, sendo um dos principais teóricos da corrente dualista que defende ser o Direito Internacional e o direito interno de cada Estado, sistemas rigorosamente independentes e distintos. Viveu de 1867 até 1950.387 Jurista alemão, expoente da teoria dualista do Direito Internacional Público, que viveu de 1868 até 1946.388 Jurista francês, expoente do Direito Público; vivendo de 1859 até 1928; sendo conhecido pelos princípios da solidariedade e interdependência dos seres humanos em Direito Internacional Público. 389 Jurista francês, mais conhecido pela sua atuação em Direito Internacional, sendo membro da Comissão de Direito Internacional da ONU; sendo professor de René-Jean Dupuy. Viveu de 1878 até 1961.390 Diplomata grego e professor de Direito Internacional, que presentou a Grécia na Liga das Nações e no Comitê Olímpico Internacional em 1930-1933. Viveu de 1872 até 1942.391 Nesse sentido, vide também: FERREIRA, André Gonçalves; QUADROS, Fausto de. Manual de Direito Internacional Público. Coimbra: Almedina, 1997, p. 349 e ss.392 É o exemplo de Angelo Piero Sereni e Rolando Quadri; ambos juristas italianos do século XX.

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indivíduo pode ser sujeito de Direito Internacional, principalmente em função da tendência do monismo nesse ramo jurídico.

Com isso, em geral, aceita-se a ideia da subjetividade jurídico-internacional, apenas dependendo da forma como as normas do ordenamento jurídico o visualize.

No entanto, com o refinamento das relações jurídicas internacionais, surgem novos atores, tais como as Organizações Não-governamentais (ONGs), para as quais também se passou a questionar sobre a sua personalidade jurídica e inclusive, em razão das suas atuações, sobre a capacidade processual.

É o caso do Comitê Olímpico Internacional (COI), ONG atuante no campo desportivo internacional, a qual será analisada adiante, antes de adentrar na questão central do presente estudo.

2. O COMITÊ OLÍMPICO INTERNACIONAL (COI)

O COI representa entidade com múltiplas funções, criado no final do século XIX.

O entendimento dos eventos olímpicos passa, necessariamente, pela compreensão desse ente central, cujos recursos financeiros advêm da venda de direitos de transmissão das Olimpíadas, licenciamento de produtos relacionados com o evento (mascotes, símbolos, imagens etc.) e também recursos de patrocinadores oficiais.393

Em razão disso, passa-se a breves considerações das suas origens históricas, da sua estrutura funcional e funções.

2.1 ORIGENS HISTÓRICAS

A ideia da criação do Comitê Olímpico Internacional (e do Movimento Olímpico, a ser mencionado adiante) foi do francês Pierre de Frédy em 23 de junho de 1894 no Congresso Internacional de Paris, organizado por Coubertin na Université Paris-I, Panthéon-Sorbonne.394

A visão de Coubertin era restaurar os Jogos Olímpicos da Antiguidade com a concepção moderna, enobrecendo e fortalecendo os esportes; garantindo a sua

393 LENSKYI, Helen Jefferson. Ob. cit., p. 56.394 Coubertin ficou conhecido pela famosa frase: “Le plus important aux Jeux olympiques n’est pas de gagner mais de participer, car l’important dans la vie ce n’est point le triomphe mais le combat ; l’essentiel, ce n’est pas d’avoir vaincu mais de s’être bien battu.”. Livre tradução: “O importante na vida não é o triunfo; mas a luta; o essencial não é ter vencido, mas ter lutado bem”. No mencionado congresso, a primeira e segunda edição dos Jogos Olímpicos modernos foram rapidamente acordados, sendo a de Atenas em 1896 e a de Paris em 1990, definindo-se também as cidades-sede dos jogos.

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independência e a sua duração; permitindo, com isso, o melhor cumprimento do seu papel educativo no mundo moderno.

2.2 ESTRUTURA FUNCIONAL

O COI representa uma organização não-governamental (ONG)395, sem fins lucrativos, constituída na Suíça na forma de associação de nacionalidade suíça; reconhecida pelo Conselho Federal Suíço396; confiada ao controle e desenvolvimento dos Jogos Olímpicos modernos; tendo como natureza jurídica uma entidade de direito internacional público397, possuindo status jurídico e existência perpétua, vale dizer, por prazo indeterminado.

O COI detém, atualmente, a autoridade suprema sobre os Jogos Olímpicos, sendo que os seus Membros são constituídos por pessoas naturais, nos termos do art. 16.1.1; não podendo ser constituído em número superior a 115 ao todo.398

Todos os membros, atletas, devem cumprir determinadas condições esportivas (condições de preparo desportivo; regras e regulamentos do COI etc.) e também celebrar um Contrato de Participação do Evento (CPE, Event Participation Contract, EPC) com o COI. Caso os atletas não assinem o CPE, não têm autorização para participar do evento desportivo.399

O justo receito do COI é que algumas disputas possam surgir no contexto dos Jogos Olímpicos, sendo que a arbitragem desportiva acaba sendo a mais

395 De acordo com a atual Carta Olímpica do COI, em vigência desde 08 de julho de 2011: “15 Statut juridique. 1. Le CIO est une organisation internationale non gouvernementale, à but non lucratif, de durée illimitée, à forme d’association dotée de la personnalité juridique, reconnue par le Conseil fédéral suisse conformément à un accord conclu en date du 1er novembre 2000. 2. Son siège est à Lausanne (Suisse), capitale olympique. 3. Le but du CIO est de remplir la mission, le rôle et les responsabilités que lui assigne la Charte olympique. 4. Afin de pouvoir accomplir sa mission et remplir son rôle, le CIO peut constituer, acquérir ou de toute autre manière contrôler d’autres entités juridiques, telles que des fondations ou sociétés.”396 De acordo com sentença judicial de 17 de setembro de 1981; do Conselho Federal Suíço.397 A expressão status legal não fora definido pela Carta. Tal denominação tem o significado de ser uma entidade jurídica distinta, separada dos sujeitos de direito que a compõe. Nesse sentido, tal designação já fora encarada em decisão exarada em sentença do Distrito de Nova Iorque, EUA (S.D.N.Y) em 1979, no caso Lisa Avigliano e outros vs. Sumitomo Shoji America Inc. O caso tratava sobre suposta imunidade processual de empresas subsidiárias japonesas sediadas nos Estados Unidos em razão de tratado internacional de 1953.398 Para o caso específico dos atletas, o número apresentado é bem maior. Nas Olimpíadas de Londres de 2012, foram mais de 12.000 atletas de diferentes modalidades desportivas e nacionalidades.399 CHAPPELET, Jean-Loup; KÜBLER-MABBOTT, Brenda. International Olympic Committee and the Olympic system: the governance of world sport. New York: Routledge, 2008, p. 45.

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utilizada pelas vantagens oferecidas, tal como será avaliada adiante.400 Os principais objetivos e funções do COI são:a) Criar normas que permitam a boa coordenação dos eventos olímpicos;b) Administrar, organizar, controlar e realizar os Jogos Olímpicos;c) Selecionar os países que servirão de sede para os jogos quadrienais,

assim como acompanhar e orientar na organização dos eventos de acordo com os Comitês Olímpicos nacionais;

d) Administrar os direitos autorais de símbolos, marcas e imagens relacionadas aos Jogos Olímpicos.

3. A CARTA OLÍMPICA

Relevante fonte jurídica do direito internacional desportivo dos Jogos Olímpicos é a Carta Olímpica, que permite compreender os limites de atuação dos diversos entes olímpicos.

Além da sua composição, o Movimento Olímpico e as recentes modificações no seu texto serão vistas adiante.

3.1 COMPOSIÇÃO DA CARTA OLÍMPICA

A última versão da Carta é composta por 5 capítulos e 61 artigos; e descreve diversos detalhes, diretrizes e regras; discriminado em: Movimento Olímpico e os seus 3 principais componentes: Comitê Olímpico Internacional, Federações Internacionais e Comitês Olímpicos Nacionais.

3.2 O MOVIMENTO OLÍMPICO

De acordo com a autoridade suprema do Comitê Olímpico Internacional, o Movimento Olímpico inclui organizações, atletas e outras pessoas que, espontaneamente, aderiram e concordaram em aderir à Carta Olímpica (CO), nos termos da Regra 6 CO/2011.401

400 A arbitragem acaba sendo escolhida pelas partes contratantes (atleta individual e COI) de acordo com cláusula compromissória específica definida no CPE.401 De acordo com a CO/2011: “6. Jeux Olympiques. 1. Les Jeux Olympiques sont des compétitions entre athlètes, en épreuves individuelles ou par équipes et non entre pays. Ils réunissent les athlètes sélectionnés par leurs CNO respectifs, dont les inscriptions ont été acceptées par le CIO. Les athlètes concourent sous la direction technique des FI concernées. 2. Les Jeux Olympiques sont constitués des Jeux de l’Olympiade et des Jeux Olympiques d’hiver. Seuls les sports qui se pratiquent sur la neige ou sur la glace sont consideres comme sports d’hiver.” Livre tradução: “6. Jogos Olímpicos. Os Jogos Olímpicos são competições entre atletas, em eventos individuais ou em equipe, e não entre países. Eles reúnem os atletas selecionados por seus respectivos CNOs

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Assim, a concepção do Movimento Olímpico é construída por meio de um conjunto de ações combinadas, organizadas, de maneira universal e permanente; executadas pela autoridade suprema do COI; sendo que todos os indivíduos e entidades são inspirados pelos valores do Olimpismo.

O Movimento Olímpico exige o cumprimento da Carta Olímpica e o reconhecimento pelo COI, sendo um princípio fundamental esses dois determinantes; além da ética nos esportes, entre outros.402

O Movimento inclui ainda as Federações Esportivas Internacionais (FIs), os Comitês Olímpicos Nacionais (CONs), os Comitês Organizadores dos Jogos Olímpicos (COJO), além de outras federações reconhecidas, instituições e organizações, atletas, juízes/árbitros, treinadores e outros técnicos desportivos.

A finalidade é claramente definida na Regra 1 da Carta de 2011, in verbis: “O objetivo do Movimento Olímpico é contribuir para a construção de um mundo melhor e mais pacífico, educando as pessoas jovens através do esporte praticada em conformidade com o Olimpismo e os seus ganhos”.403

3.3 AS RECENTES MODIFICAÇÕES DA CARTA OLÍMPICA

Os Jogos Olímpicos modernos têm o referencial legal nas Cartas Olímpicas históricas que representam codificações de regras e princípios fundamentais das Olimpíadas, sendo composta, atualmente, dentro da visão do chamado Movimento Olímpico.

(Comitês Nacionais Olímpicos), cujas inscrições foram aceitas pelo COI. Os atletas competem sob a direção técnica das FIS (Federações Internacionais). Os Jogos Olímpicos são constituúdos pelos Jogos da Olimpíada e pelos Jogos Olímpicos de Inverno. Apenas os esportes que são praticados na neve ou gelo são considerados esportes de inverno.”402 Nesse sentido, são destaques os seguintes artigos da CO/2011: “2 Mission et rôle du CIO. La mission du CIO est de promouvoir l’Olympisme à travers le monde et de diriger le Mouvement olympique. (...). 6 Jeux Olympiques.* 1. Les Jeux Olympiques sont des compétitions entre athlètes, en épreuves individuelles ou par équipes et non entre pays. (...). 8 Le symbole olympique. Le symbole olympique se compose de cinq anneaux entrelacés de dimensions égales (lês anneaux olympiques), employés seuls, en une ou cinq couleurs.(…).”403 In verbis: “1. Composition et organisation générale du Mouvement Olympique. 1. Sous l’autorité suprême et la conduite du Comité International Olympique, le Mouvement olympique comprend les organisations, les athlètes et les autres personnes qui se soumettent à la Charte olympique. Le but du Mouvement olympique est de contribuer à la construction d’un monde meilleur et pacifique en éduquant la jeunesse par le biais d’une pratique sportive en accord avec l’Olympisme et ses valeurs. Livre tradução: “1. Composição e organização geral do Movimento Olímpico. 1. Sob a autoridade suprema e a conduta do Comitê Olímpico Internacional, o Movimento Olímpico compreende as organizações, os atletas e outras pessoas que se submetem à Carta Olímpica. O objetivo do Movimento Olímpico é contribuir para a construção de um mundo melhor e pacífico na educação de jovens através da prática despostiva em conformidade com o Olimpismo e os seus valores.”

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Historicamente, a sua finalidade é melhor definir a gestão olímpica do Comitê Olímpico Internacional404, as ações e o funcionamento do Movimento Olímpico; estabelecendo condições para a celebração dos Jogos Olímpicos.

A Carta foi primeiramente publicada em 1908, com o título Annuaire du Comité International Olympique.405

Algumas das regras contidas nessa primeira Carta tinham sido escritas por Pierre de Frédy (mais conhecido pelo título Barão de Coubertin) em 1898.406

Embora a denominação utilizada seja Carta Olímpica, utilizado em todas as edições; foi apenas em 1978 que efetivamente foi utilizado na publicação.

Algumas edições da Carta também foram divididas em várias partes separadas, ao invés de uma única publicação como vem acontecendo atualmente.

Assim, são utilizados diferentes títulos, tais como:a) Statuts / Règlements et protocole de la célébration des olympiades mo-

dernes et des Jeux olympiques quadriennaux / Adresses des membres, em 1921;b) Règles olympiques, em 1946.A Carta Olímpica contemporânea sofreu, recentemente, algumas

alterações, estando em vigência a partir de 08 de julho de 2011; sendo constituída por um conjunto de regras e diretrizes para a organização dos Jogos Olímpicos; e para o controle e gestão dos negócios olímpicos.

Estruturalmente, é constituída por princípios fundamentais, regras e textos de aplicação407; adotados pelo COI.

Os idiomas oficiais são inglês e francês408; prevalecendo o idioma francês em caso de discrepâncias em interpretações409; reconhecendo-se ainda os idiomas francês, inglês, alemão, espanhol, russo e árabe; como de

404 A sede administrativa do COI foi, originalmente, em Paris; mas, desde 10 de abril de 1915; mudou para Lausanne, na Suíça.405 No século XXI, foram as seguintes Cartas Olímpicas publicadas pelo COI: 2000, 2001, 2003, 2004, 2007 e a última de 2010. Antes, tinham sido publicadas 59 Cartas, incluindo emendas, modificações, protocolos etc.406 As Cartas Olímpicas foram publicadas desde 1908; sendo que a atual é a 65ª em vigência. Entre elas, existem diferenças instituições, de denominação e também de conteúdo.407 O texto original da Carta em francês se refere a Texte d’application de la Régle”, sendo que em inglês; utilizaram-se os Bye-Law to Rule. Historicamente, os Bye-Law podiam se referir a uma regra de um local ou a aplicação limitada de uma regra superior por uma autoridade. Além disso, referiam-se também a regras internas de uma companhia ou de uma organização. eram regras que limitavam a aplicação de uma regra por uma autoridade. Acabam sendo mais frequentes no Canadá, Reino Unido e em alguns países do Commonwealth; assim como nos Estados Unidos, como no American Code Enforcement Officer ou nos Municipal Regulations Enforcement Officer.408 23.1 À toutes les Sessions, une interprétation simultanée doit être fournie en français, anglais, allemand, espagnol, russe et arabe.409 23.3 En cas de divergence entre le texte français et le texte anglais de la Charte Olympique et de tout autre document du CIO, le texte français fera foi sauf disposition expresse écrite contraire.

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utilização em interpretações simultâneas.410

O conteúdo da Carta é dado em seis capítulos:a) Capítulo 1: O Movimento Olímpicob) Capítulo 2: O Comitê Olímpico Internacional (COI)c) Capítulo 3: As Federações Internacionais (FI)d) Capítulo 4: Os Comitês Olímpicos Nacionais Olímpicos (CON)c) Capítulo 5: Os Jogos Olímpicosd) Capítulo 6: Medidas e sanções, procedimentos disciplinares e solução

de controvérsias.Ao longo da história dos Jogos Olímpicos, a Carta Olímpica,

frequentemente, tem sido utilizada como direito material aplicável para dirimir controvérsias, estando reservada para três finalidades principais:

a) Estabelecer princípios e valores do Olimpismo;b) Servir como uma lei do COI;c) Definir os direitos e deveres dos quatro principais constituintes do

Movimento Olímpico: o Comitê Olímpico Internacional (COI), as Federações Internacionais (FIs) e os Comitês Olímpicos Nacionais (CONs) e a Organização dos Comitês dos Jogos Olímpicos.

4. A PERSONIFICAÇÃO DA COI E SUA CAPACIDADE PROCESSUAL

No âmbito do Direito Internacional, a personificação vem sendo discutida sob a forma de organização de indivíduos em Organizações Não-Governamentais.

As ONGs são conhecidas como pessoas jurídicas sem finalidade existencial lucrativa, podendo ser tanto fundações quanto associações, criadas por iniciativas privadas, públicas ou mistas; envolvendo pessoas de mesmas ou várias nacionalidades na defesa de determinados interesses comuns.

A função de perseguir diversas causas, geralmente, é de característica humanitária, ambiental, de cidadania, entre outras; podendo incluir também a atuação dos Estados nacionais, de pessoas jurídicas privadas com finalidade lucrativa etc.

Em geral, tal como no caso do COI – considerado ONG -, são classificados como pessoas jurídicas de direito interno, tendo um caráter heterogêneo, o que se dificulta a evolução da sua capacidade internacional, segundo José Francisco Rezek.411

Além do COI, também representa o mesmo exemplo de tal complexidade o Green Peace, sendo que ambos atingiram um grau de atuação compatíveis

410 23. 2 À toutes les Sessions, une interprétation simultanée doit être fournie en français, anglais, allemand, espagnol, russe et arabe.411 REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 156.

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com a discussão sobre a subjetividade internacional para entidades como essas.Outro exemplo igualmente pertinente é o da Cruz Vermelha Internacional

que fora criada como associação no âmbito do direito suíço, e que desempenha relevante função internacional de defesa humanitária.

Com isso, a Cruz Vermelha tem o direito de atuar em vários Estados, por razões humanitárias, sempre com a autorização deles. Goza de direitos e obrigações perante a sociedade internacional, e, por isso, é considerada como pessoa jurídica de direito internacional.

Igualmente, a Cruz Vermelha tem a prerrogativa de firmar acordos internacionais com outras entidades internacionais, fortalecendo a consideração de que se tratam de pessoas jurídicas de direito internacional.

O art. 25 da Convenção Europeia de Direitos Humanos estabelece que as ONGs – tal como o COI – têm o direito individual de reclamar agressões a normas comunitárias, tal como fora anteriormente concedido aos indivíduos particulares. Com isso, é de se sustentar a tendência das subjetividades autônomas das ONGs.

O mais relevante documento convencional a ser apresentado para o caso do reconhecimento da personalidade jurídica das ONGs é o de 24 de abril de 1986; a depender da forma regular da sua constituição jurídica de direito privado interno, de acordo com as regras nacionais dos Estados signatários, nos termos dos arts. 2º e 3º da Convenção Europeia de Direitos Humanos.

Em razão da breve análise, conclui-se que, em geral, as ONGs podem possuir características de sujeitos de direito internacional, tais como: capacidade subjetiva para reclamar o cumprimento de direitos, sujeito de direitos objetivos, incluindo-se a capacidade processual, tal como ocorre para o caso do COI, a seguir analisado; reforçando-se a hipótese do trabalho.

4.1 CAPACIDADE PROCESSUAL DO COI

O COI tem a capacidade de ser parte em um processo, podendo ser demandado (réu) e demandar judicialmente (autor), em razão de ser pessoa jurídica de Direito Internacional Público.412

412 Para a doutrina jusprocessualista, a capacidade processual não é a mesma coisa que a capacidade de ser parte em um processo judicial. A capacidade de ser parte em um processo é para quem pode ser parte ativa (autor) ou passiva (réu). Tal circunstância cabe a qualquer pessoa, podendo ser dada inclusive para menores de idade, os quais devem ser representados caso tenham menos de 16 anos; ou assistidos, quando têm entre 16 e 18 anos. A capacidade processual somente é dada para aqueles que detêm a capacidade para os atos civis, vale dizer, os menores de idade não a possuem; além dos absolutamente incapazes e nem os relativamente incapazes. Já a capacidade postulatória representa a possibilidade que a pessoa tem para requerer em juízo a reparação, declaração ou reconhecimento de algum direito que entenda possuir. Via de regra, quem tem a

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O direito aplicável no campo da capacidade de ser parte processual no caso de ONGs internacionais ainda não é suficientemente preciso; assim como o caso da determinação em razão dos diversos tribunais nacionais ainda utilizaram abordagens de direito processual diferentes; sendo que, em alguns casos, acaba sendo ignorado por completo.413

Duas avaliações distintas têm sido utilizadas para se determinar quando uma entidade internacional tem personalidade jurídica de Direito Internacional Público414: a abordagem indutiva415 e a abordagem objetiva.

A visão indutiva considera a organização documental da entidade internacional para se determinar o propósito do ente, a partir do qual se pode considerá-lo ou não como sujeição internacional. Caso a entidade seja formada por atributos de personalidade jurídica; tal como poder de contratar; a capacidade de atuar em juízo ativa e passivamente, além da concessão de determinados privilégios e imunidades passa a existir. Com isso, o teste da visão indutiva é aprovado e a entidade terá personalidade jurídica de direito internacional público.

A visão objetiva, ao contrário, envolve etapas mais complexas, dividas em quatro testes: a entidade deve ser mais do que um simples centro de ações de nações para o alcance de finalidades comuns; deve possuir uma infraestrutura física e operacional; deve realizar tarefas/operações específicas e especiais; e deve ocupar uma posição relativamente desvinculada dos seus membros, com determinada autonomia de decisões.

O COI tem personalidade jurídica de acordo com o teste indutivo, tendo em vista a sua criação de acordo com o direito internacional inclusive do ponto de vista de status legal e judicial, nos termos da Carta Olímpica de 2011.

A Carta Olímpica permite que o COI contrate com organizações em outros países, visando afirmar a sua independência de controle político e governamental, incluindo-se fundações e outras empresas.416

capacidade postulatória são advogados (públicos e privados), membros Ministério Público e das Defensorias Públicas.413 KLEIN, Pierre; SANDS, Philippe. Bowett’s law of international institutions. 6th edition. United Kingdom: Sweet & Maxwell, 2000, p. 302.414 KLEIN, Pierre; SANDS, Philippe. Ob cit., p. 299-304.415 RAMA-MONTALDO, Manuel. International legal personality and implied powers of international organizations, p.111- 112. In: British Yearbook of International Law, n. 44, 1970.416 Regra 15.4 Afin de pouvoir accomplir sa mission et remplir son rôle, le CIO peut constituer, acquérir ou de toute autre manière contrôler d’autres entités juridiques, telles que des fondations ou sociétés. Livre tradução: “A fim de cumprir sua missão e cumprir o seu papel; o COI poderá estabelecer, adquirir ou controlar outras pessoas jurídicas, tais como fundações ou empresas.

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O COI também satisfaz os quatro elementos do teste objetivo. É mais do que um simples centro para harmonização de ações entre nações que participam dos Jogos Olímpicos, assim como os seus membros têm direitos e obrigações perante a organização.417

Ademais, tem uma infraestrutura composta por oficiais418, Comitês Olímpicos Nacionais (CONs)419, Federações Nacionais de Esportes (FIEs)420, o Movimento Olímpico, assim como as suas regras e textos de aplicação421; como já fora mencionado anteriormente.

O Comitê tem uma função especial: promover e governar as Olimpíadas; cumprindo a missão, papel e responsabilidades atribuídos pela Carta.

Por fim, o Comitê tem uma existência perpétua com sucessão indefinida, ou seja, continua a existir embora as Federações Internacionais de Esportes (FIEs) e/ou os Comitês Olímpicos Nacionais (COIs) possam sair da organização e outros novos possam aderir à entidade.422

4.2 AS VANTAGENS E DESVANTAGENS DA NÃO UTILIZAÇÃO DA CAPACIDADE PROCESSUAL DO PODER JUDICIÁRIO: A VIA ARBITRAL

Mesmo que a capacidade processual da COI possa ser questionada no âmbito do Poder Judiciário, é na arbitragem que reside o maior interesse da participação das questões do direito internacional desportivo.

Desde que ambas as partes, na maioria dos casos, tenham o seu lugar de negócios ou domicílio em diferentes países, a celebração de uma convenção arbitral dá-lhes a oportunidade da escolha de um foro “neutro”, para a solução de controvérsias, o que pode não acontecer caso determinado litígio seja levado a algum Poder Judiciário nacional.

Trata-se de uma vantagem: a neutralidade do foro jurisdicional.Outra vantagem que se torna possível elencar é que as partes, pela via

arbitral, podem escolher árbitros que tenham conhecimento especializado, o que se torna importante para o caso do direito internacional desportivo, em função das particularidades dos contratos desportivos. Assim, é substancial a utilização da arbitragem como mecanismo alternativo para a solução de conflitos, ou, como se denomina comumentemente: mecanismo alternativo de solução de controvérsia (MASC).

417 Regra 16.2.418 Como o caso do Presidente do COI, Regra 20.419 Regra 27.420 Regra 25.421 Regras 15 até 24.422 Regra 15.1.

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Ademais, a confidencialidade das informações processuais arbitrais acaba sendo relevante vantagem, porque acaba sendo, particularmente, interessante para os litígios emergentes relacionados com eventos desportivos a fim de se evitar má publicidade que poderia ser prejudicial para a comercialização de evento desportivo.

A autonomia da vontade das partes e a flexibilidade processual são princípios orientadores da arbitragem internacional desportiva, ao contrário das regras jurisdicionais estatais aplicáveis aos processos judiciais.423 Tal característica pode ser importante para o caso do direito internacional desportivo, uma vez que as partes envolvidas têm diferentes origens legais.

A autonomia da vontade arbitral permite, nesse sentido, chegar a um acordo sobre conjunto híbrido de regras processuais que harmonizam o direito civil com direito desportivo.

Até mesmo o idioma do processo pode ser relevante para o procedimento arbitral.424

Em caso de descumprimento da sentença arbitral, existe a possibilidade de execução, uma vez que, praticamente, para todos os Estados nacionais é obrigatória a aplicação da Convenção de Nova Iorque de 1958 sobre reconhecimento e execução de sentenças arbitrais.425

Além disso, as sentenças arbitrais detém segurança jurídica em função da limitada possibilidade de serem revisadas, não sendo comparáveis a um processo judicial passível de recursos. Em muitos casos, em razão disso, a arbitragem possibilita a resolução mais rápida de solução de controvérsias, não sendo uma regra geral, obviamente.

A celeridade de um processo arbitral em comparação com um processo estatal vai depender de jurisdição para jurisdição, e de corte arbitral para corte arbitral.

No campo do direito desportivo, inclusive no caso de arbitragem envolvendo o COI, o processo arbitral permite o fortalecimento do princípio da uniformidade do esporte, segundo o qual todos os atletas são tratados do mesmo modo, aplicando-se as mesmas normas materiais; corroborando com o princípio da igualdade de condições nas modalidades desportivas.

Por outro lado, a arbitragem não é considerada uma solução completa para os problemas jurisdicionais estatais, razão pela qual ainda vem sendo questionada a depender das condições de cada caso concreto.

Como desvantagens da utilização da arbitragem, as partes processuais (isso inclui o COI), devem estar cientes do risco que correm para os custos do processo arbitral que podem superar os da jurisdição estatal.

423 GARCEZ, José Maria Rossani. A arbitragem nacional e internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 98.424 GARCEZ, Jose Maria Rossani. A arbitragem na era da globalização. São Paulo: Forense, 2009, p. 23.425 Referida convenção foi ratificada pelo Brasil na forma do decreto federal nº 4.311, de 23 de julho de 2002.

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A base da jurisdição de um tribunal arbitral é um acordo privado entre as partes (convenção arbitral), tendo, em geral, as cortes arbitrais um poder coercitivo.426

No entanto, aos tribunais arbitrais não têm, particularmente, as seguintes características

a) falta o poder de impor medidas provisórias (ou liminares) e também o cumprimento da sentença arbitral de maneira coercitiva (ausência do jus coertium);

b) falta o poder de exigir a presença de testemunhas sob coerção;c) falta o poder de sequestrar ou utilizar bens para garantir o cumprimento

da posterior sentença arbitral.Ademais, inexistem regras universais para que a coisa julgada (res

judicata) exista.Podem existir problemas com a independência e imparcialidade dos

juízes arbitrais quando as partes venham a escolhê-lo, assim como não se garantem tais qualidades mesmo em caso de cortes arbitrais.

O art. 61 da CO/2011 estabelece, categoricamente, o que fora sustentado aqui, in verbis427:

61. Solução de Controvérsias1. As decisões do COI são definitivas. Qualquer controvérsia relativa à

sua aplicação ou interpretação não pode ser resolvida pelo Conselho Executivo do COI e, em certos casos, por meio de arbitragem perante o Tribunal de Arbitragem do Esporte (TAE).

2. Qualquer litígio por ocasião dos Jogos Olímpicos ou em conexão com estes, serão submetidos, exclusivamente, ao Tribunal de Arbitragem do Esporte (TAE), de conformidade com o Código de Arbitragem em matéria de esporte.

Em geral, os CPEs apresentam a seguinte cláusula compromissória, tal como a recomendação do próprio COI, de acordo com a CO/2011428:

All disputes arising out of or in connection with the application of these rules or the Olympic Games are finally settled by an arbitral tribunal consisting of three arbitrators. The seat of the arbitration is in Lausanne, Switzerland.429

426 GARCEZ, Jose Maria Rossani. Ob. cit., p. 73.427 No original: “61 Règlement des différends. 1. Les décisions du CIO sont définitives. Tout différend relatif à leur application ou interprétation ne peut être résolu que par la commission exécutive du CIO et, dans certains cas, par arbitrage devant le Tribunal Arbitral du Sport (TAS). 2. Tout différend survenant à l’occasion des Jeux Olympiques ou en relation avec ceux-ci sera soumis exclusivement au Tribunal Arbitral du Sport (TAS), conformément au Code de l’arbitrage en matière de sport.”428 CHAPPELET, Jean-Loup; BRENDA, Kübler-Mabbott. International Olympic Committee and the Olympic system: the governance of world sport. New York: Routledge, 2008, p. 29.429 Tradução livre: “Todos os litígios decorrentes de ou em conexão com a aplicação destas regras ou a Jogos Olímpicos são, finalmente, resolvidos por um tribunal arbitral composto por três

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Ainda existem algumas dúvidas na doutrina jurídica acerca da ausência de uma decisão judicial de execução de sentença arbitral ainda ser considerada uma desvantagem da arbitragem, principalmente, em função da falta de uniformização das sentenças arbitrais em alguns casos.

Muito embora sejam situações questionadas, no âmbito do direito desportivo do COI, a arbitragem é reconhecida como mecanismo oficial de solução de divergências

5. CONCLUSÕES

O COI tem a capacidade de ser parte processual de acordo com o Direito Internacional, podendo ser parte ativa e parte passiva em processos, inclusive no Brasil; questão complementada pela noção de sujeição internacional, muito embora uma parte da doutrina jurídica não a reconheça.

Ademais, para o COI, inexiste imunidade de jurisdição, em razão de a mesma ter a natureza jurídica de ONG transnacional, não tendo imunidade constitucional e tampouco infraconstitucional e/ou convencional.

Seguindo a tradição dos meios alternativos de solução de controvérsias, as últimas Cartas Olímpicas vêm prevendo a solução de disputas por meio da arbitragem apenas em determinados casos pela Corte de Arbitragem do Esporte, em ocasiões de ou em conexão com os Jogos Olímpicos; de acordo com o Código de Arbitragem Relacionado a Esportes (Code of Sports-Related Arbitration).

A questão a ser discutida que mereceria uma avaliação mais complexa seria, basicamente, relacionada a dois aspectos na aplicação da arbitragem do COI: a da provocação da jurisdição estatal e a do direito material aplicável (inclusive a lex sportiva), a qual, certamente, mereceria um estudo a parte; que vai além dos propósitos do presente trabalho.

árbitros. A sede da arbitragem é em Lausanne, Suíça.”

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ARTIGO 12 COOPERAÇÃO INTERGOVERNAMENTAL E PREPARAÇÃO PARA OS JOGOS OLÍMPICOS E PARAOLÍMPICOS DE 2016: O PAPEL DE

MEDIADORA DA AUTORIDADE PÚBLICA OLÍMPICA

ricardo siLveira ribeiro430

SUMÁRIO: Introdução: nasce a Autoridade Pública Olímpica. 1. APO: características gerais, marco normativo e interlocução com atores governamentais relevantes. 2. Coopera ção e comunicação entre os entes e órgãos governamentais: o lugar institucional de mediadora da APO. 3. Conclusão. Bibliografia.

INTRODUÇÃO: NASCE A AUTORIDADE PÚBLICA OLÍMPICA

No dia 2 de outubro de 2009, a cidade do Rio de Janeiro foi escolhida pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) para sediar os XXXI Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016 após uma ampla competição que envolveu a disputa com outras seis cidades.431 A grandiosidade do projeto olímpico, por si só, já torna imenso o desafio de coordenar a preparação e realização dos jogos, pois a infraestrutura e os serviços necessários implicam uma alocação de recursos humanos e materiais em dimensões jamais vistas na realização de um grande evento no Brasil.

Agregue-se a esse fato a necessidade de sincronização da atuação dos setores público e privado. A governança inerente aos jogos envolve ações organizadas do Comitê Rio 2016 e dos governos das três esferas da federação – União, Estado do Rio de Janeiro e Município do Rio de Janeiro. O sucesso de toda a operação, portanto, depende do quão eficiente essa colaboração será.

Ainda durante a fase de candidatura, foram estabelecidos inúmeros compromissos internacionais com o COI. Um deles foi a criação de um ente administrativo que teria a missão de coordenar as ações governamentais necessárias aos Jogos de 2016 – a Autoridade Pública Olímpica (APO). No Dossiê de Candidatura, os responsáveis por sua concepção atribuíram à APO uma missão institucional bem mais ampla que a atual. No desenho institucional

430 Doutor em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Professor Titular I da Universidade Norte do Paraná em Londrina/PR. Procurador Federal da Advocacia-Geral da União.431 As cidades foram Chicago, Praga, Tóquio, Baku, Doha e Madrid. Em fase mais avançada, o processo seletivo contou com uma disputa acirrada entre Rio de Janeiro, Tóquio, Chicago e Madrid. Cf. MORE about the election. Disponível em: <http://www.olympic.org/rio-2016-summer-olympics>. Acesso em: 03 jan. 2013.

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original, esse ente seria responsável por todos os aspectos do planejamento e da execução das ações governamentais lá definidas, inclusive a elaboração de projetos, licitações, contratações, execução de obras de infraestrutura, entrega de serviços públicos e legado.432

Sob a perspectiva da escolha racional, esse compromisso fez todo sentido. Procurou sinalizar ao Comitê Olímpico Internacional (COI) que a estrutura de Estado Federal que vigora no Brasil não seria um óbice à cooperação entre os entes políticos. Com uma promessa crível, minimizou-se a probabilidade de não escolha do Rio de Janeiro por aversão ao risco.

Em 2010, com a vitória no processo seletivo internacional já assegurada, os primeiros movimentos dos governos foram realizados para definir o marco normativo da APO. O Governo Federal editou a Medida Provisória (MP) n° 489, de 12 de maio de 2010, autorizando a União a integrar o consórcio APO. Ao mesmo tempo, encaminhou projeto de lei com o objetivo de ratificar o protocolo de intenções firmado entre a União, Estado do Rio de Janeiro e Município do Rio de Janeiro para constituir a APO.433

Da análise do projeto e da MP n° 489/2010, nota-se uma mudança na orientação original. No art. 2º deste ato normativo, por exemplo, a APO não mais passaria a licitar e contratar obras e serviços. Seria uma espécie de coordenadora e planejadora das ações governamentais e, somente em caráter excepcional, assumiria tarefas de implantação dos projetos olímpicos (elaboração de projetos, licitação e contratação).

Em verdade, essas últimas tarefas foram absorvidas por uma empresa pública autorizada a funcionar como “braço executor” das ações da União à luz do art. 2º da MP n° 488, de 12 de maio de 2010. É o que se vê na Exposição de Motivos n° 12/2010/ME/MP/MF:

2. Dentre os compromissos assumidos pelo país, no processo eleitoral do Comitê Olímpico Internacional – COI, que culminou com a eleição da cidade do Rio de Janeiro para sediar os Jogos Olímpicos de 2016, constou a criação de um ente público interfederativo, formado pela União, Estado do Rio de Janeiro e Município do Rio de Janeiro, denominado Autoridade Pública Olímpica – APO, que tem por objetivo coordenar os esforços governamentais com vistas a garantir a disponibilidade das obras de infraestrutura e serviços necessários à realização dos Jogos.

3. Inúmeros debates ocorreram para definição de conceitos e estruturas desta instituição, com a participação de diversos órgãos do Governo, […], nestes

432 DOSSIÊ de candidatura do Rio de Janeiro a sede dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016. Rio de Janeiro: 2009, V. I, temas 3 e 4, p. 50 e 66. O Dossiê pode ser consultado livremente em: <http://www.rio2016.org/comite-organizador/transparencia/documentos>.433 BRASIL. Congresso Nacional. PL 7374/2010. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=478092>. Acesso em: 04 jan. 2013.

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debates, sugestionou-se que, além da Autoridade Pública Olímpica, também se faria necessária a constituição de uma empresa, de capital exclusivo da União, uma vez que apenas a APO seria insuficiente para o cumprimento integral dos compromissos assumidos com o Comitê Olímpico Internacional, para prestar serviços especializados aos entes envolvidos e à APO na elaboração dos projetos, monitoramento intensivo das ações, planejamento da gestão do legado esportivo, econômico e social, elaboração e revisão de estudos e, eventualmente, a contratação e fiscalização de obras, equipamentos e serviços de engenharia.434

Em 22 de setembro de 2010, ambas as Medidas Provisórias perderam vigência nos termos do art. 62, §§ 3º e 11, da CF/88, pois não foram apreciadas tempestivamente pelo Congresso Nacional.435 Nessa mesma data, nova Medida Provisória, a de nº 503, foi editada com o objetivo de ratificar o protocolo de intenções que regulava a APO, dada a ausência de aprovação do projeto de lei enviado à Câmara dos Deputados até então.

Tal como já anunciado pela MP n° 489/2010, a APO foi concebida com competências muito mais restritas que as originalmente previstas pelo Dossiê de Candidatura. Além disso, a União abandonou a via de instituir uma empresa pública executora das políticas públicas relacionadas aos jogos, pois não mais editou ato normativo nesse sentido.

A partir da conversão da MP nº 503/2010 na Lei nº 12.396, de 21 de março de 2011, restou definitivamente materializada a ratificação pela União do protocolo de intenções. Nos âmbitos do Estado do Rio de Janeiro e do Município do Rio de Janeiro, as ratificações foram manifestadas pelas Lei n° 5.949, de 13 de abril de 2011, e Lei n° 5.260, de 13 de abril de 2011 respectivamente.436

Com as ratificações dos três entes políticos, a APO foi definitivamente constituída com características institucionais bem peculiares e com competências diversificadas, que incluem desde a coordenação das ações governamentais para o planejamento dos Jogos de 2016 até a interlocução com entes públicos e privados em caso de impasse.

O modelo original do Dossiê de Candidatura, contudo, foi abandonado. A APO não mais realizaria as licitações e contratações inerentes às obras e prestações de serviços dos Jogos de 2016. Apenas em caráter excepcional, nos termos dos parágrafos segundo ao quinto da cláusula quarta do contrato de consórcio

434 BRASIL. Presidência da República. EM n° 12/2010/ME/MP/MF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Exm/EM12-ME-MP-MF-MPV488-10.htm>. Acesso em: 04 jan. 2013.435 Cf. Atos Declaratórios do Presidente da Mesa do Congresso Nacional n° 34/2010 e 35/2010. Disponível em: <http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-1/medidas-provisorias/2010-posteriores-a-emenda-constitucional-no32#content>. Acesso em: 04 jan. 2013.436 O Estado do Rio de Janeiro chegou a editar a Lei n° 5.765, de 29 de junho de 2010, com o objetivo de ratificar o protocolo de intenções. Posteriormente, essa lei foi revogada pelo art. 3º da Lei n° 5.949, de 13 de abril de 2011.

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público,437 poderia assumir essas competências se essa medida se justificar para assegurar o adimplemento das obrigações dos entes políticos com o COI.438

Portanto, no marco normativo aprovado por leis de ratificação, a APO passou a ser, apenas, uma instância de coordenação das ações governamentais, monitoramento do adimplemento dos compromissos internacionais e definição dos projetos olímpicos relevantes e das responsabilidades dos governos (cláusula quarta do contrato de consórcio público). Certamente, são funções extremamente importantes, mas, em termos práticos, pode-se questionar se seria justificável a criação de um ente com tais competências. Há alguma razão que justifique a existência da APO, para além da mera previsão em leis de ratificação?

Acreditamos que sim. No ambiente da preparação para os Jogos de 2016, os atores governamentais ver-se-ão diante de inúmeras situações estratégicas, nas quais as decisões de um ente tem potencial para afetar as recompensas do outro. Em muitos momentos, essas interações criarão oportunidades para cooperação e, de modo geral, o sucesso do planejamento e realização das Olimpíadas e Paraolimpíadas no Brasil depende da capacidade de coordenação entre os governos, a qual pode ser aumentada substancialmente com a presença de um terceiro que facilite as comunicações recíprocas e oriente as ações. Na literatura da teoria dos jogos com comunicação (games with communication), esse terceiro é denominado mediador e, como demonstraremos, a APO pode fazer as vezes de mediadora, aumentando as chances de cooperação e de obtenção de recompensas superiores às do equilíbrio na ausência desse terceiro.

No concernente à organização formal do artigo, dividiremos o trabalho em duas seções. Na primeira, serão discutidas algumas das características institucionais da APO e do marco normativo que rege sua atuação. Nesse primeiro momento, as considerações serão de ordem estritamente normativa. Na segunda seção, faremos uma rápida revisão da literatura sobre jogos de informação incompleta com comunicação, com o objetivo de demonstrar como a existência de cheap talk e da figura do mediador podem induzir cooperação.

1. APO: CARACTERÍSTICAS GERAIS, MARCO NORMATIVO E INTERLOCU-ÇÃO COM ATORES GOVERNAMENTAIS RELEVANTES

A APO foi constituída como autarquia a partir das ratificações do protocolo de intenções firmado entre a União, Estado do Rio de Janeiro e

437 O contrato de consórcio consta como anexo das leis de ratificação.438 O risco de esse fato acontecer é baixo e existem entraves institucionais relevantes. Para que a APO assuma licitações e contratações, há a necessidade de haver decisão unânime do Conselho Público Olímpico que aprove essa possibilidade. O Conselho, por sua vez, é composto pelos Chefes dos Poderes Executivos de cada ente ou por representantes dessas autoridades (cláusula décima primeira do contrato de consórcio público), razão pela qual se torna muito difícil que essa unanimidade ocorra.

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Município do Rio de Janeiro pelas Leis Federal nº 12.396, de 21 de março de 2011, Estadual nº 5.949, de 13 de abril de 2011, e Municipal nº 5.260, de 13 de abril de 2011. Nessa oportunidade, o protocolo de intenções converteu-se em contrato de consórcio público e suas cláusulas podem ser consultadas nos respectivos anexos das leis ratificadoras.

Em termos de estrutura jurídica, a APO foi delineada, fundamentalmente, por essas leis. A cláusula vigésima sexta do contrato de consórcio acrescenta, ainda, que se aplica à APO a Lei n° 11.107, de 6 de abril de 2005, e, subsidiariamente, as disposições do Código Civil sobre associações civis.

Como autarquia, a APO possui personalidade jurídica de direito público, submete-se às normas do regime jurídico de direito público e, juridicamente, sua criação data do momento em que ocorreram todas as ratificações do protocolo de intenções pelos três entes políticos (art. 37, XIX, da CF/88).

Sua designação, nas leis de ratificação, como “associação pública”, contudo, deve ser adequadamente compreendida. A APO possui um “rótulo”, uma “roupagem”, uma forma jurídica diferenciada de associação pública, que em nada descaracteriza a natureza autárquica desse ente (cláusula terceira, inciso V, e cláusula nona c/c art. 41, IV, do CC). Em verdade, associações públicas não passam de autarquias especializadas na gestão de consórcios públicos. A Lei n° 11.107/2005 e as leis ratificadoras, portanto, ao mencionarem o termo “associação pública”, não quiseram indicar a existência de um quinto ente da Administração Indireta no Brasil, mas, exclusivamente, classificar ou “rotular” autarquias especializadas na gestão de consórcios como “associações públicas”.

Como associação pública, a APO deve ser entendida como entidade interfederativa, pois integra a Administração Indireta de todos os entes políticos consorciados (cláusulas segunda e nona do contrato de consórcio público c/c art. 6º, §1º, da Lei n° 11.107/2005). Esse simples fato cria um problema teórico e prático de grande proporção: a APO somente pode ser regulada por legislação de caráter nacional ou existem possíveis exceções, nas quais normas estaduais, federais e municipais poderiam impor seus respectivos comandos jurídicos?

A solução para essa dúvida parece estar no seguinte raciocínio: se a APO pertence à Administração Indireta da União, do Estado do Rio de Janeiro e do Município do Rio de Janeiro, não pode ser regida por legislação exclusivamente aplicável a determinado ente, pois, do contrário, haveria lesão ao princípio federativo (arts. 1º e 18 da CF/88). Um ente estaria impondo sua legislação à APO, afastando unilateralmente a incidência da legislação dos demais consorciados.

Para evitar esse problema, deve-se entender que a APO somente poderá ser regida por legislação de caráter nacional, isto é, por normas que se aplicam a todos os entes políticos da República Federativa do Brasil. São exemplos: normas gerais da Lei n° 8.666/1993; Lei Complementar n° 101/2000; Lei n° 4.320/1964. Há duas exceções, contudo, a essa regra.

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A primeira resulta do próprio contrato de consórcio público. Cientes da necessidade de um marco normativo sólido para o ente interfederativo, os consorciados podem adotar, expressamente, uma lei ou ato administrativo normativo de algum dos entes. Desde que a cláusula de escolha da legislação seja ratificada pelas leis de cada ente, não se vê óbice a tal técnica, pois não estará havendo qualquer usurpação da função normativa. Muito pelo contrário, os Poderes Legislativos de cada ente validarão a escolha do contrato de consórcio ou, na pior das hipóteses, não aprovarão a indicação da respectiva norma, ratificando o consórcio de maneira parcial (art. 5º, §2º, da Lei n° 11.107/2005).

Por outras palavras, a função normativa ainda continua nas mãos de cada Poder Legislativo. Essa técnica, apenas, permite que existam ganhos de eficiência na aprovação do marco normativo do consórcio público, para que não haja o problema de, a cada formação de um novo consórcio público, nova legislação ter que ser aprovada.

No contrato de consórcio público da APO, há um exemplo claro de adoção dessa técnica na cláusula décima sexta. De acordo com a íntegra desse dispositivo, aplicar-se-á, parcialmente, à APO a Lei nº 8.745, de 9 de dezembro de 1993, que trata da contratação de servidores públicos temporários no âmbito federal.

Ainda sobre esse ponto, observe-se que se essa legislação escolhida não detivesse o status de lei em sentido formal e material, o “problema” seria ainda menor. Nada obstaria que o contrato de consórcio público indicasse um decreto regulamentar ou outro ato administrativo normativo de um dos entes consorciados para regular as relações jurídicas do consórcio, principalmente porque a indicação estaria ratificada por cada uma das leis.

E se não houve indicação da legislação cabível no contrato de consórcio público e essa medida se afigura como imprescindível à atuação da associação pública? Nesse caso, tem-se a segunda exceção. A omissão deve motivar a aplicação de legislação de determinado ente consorciado.

Como vimos, o consórcio é regido por legislação de caráter nacional e por eventuais normas indicadas no contrato de consórcio público. Se, sob o ponto de vista material, para viabilizar a atividade administrativa, há a necessidade de uma norma reguladora de determinadas relações jurídicas, mas o contrato de consórcio foi silente quanto a qual norma aplicar, deve-se entender que houve omissão juridicamente relevante. A APO deve, então, procurar aplicar, no que couber, as diretrizes da legislação federal em cada situação concreta.

Obviamente, dado o princípio federativo, essa é uma medida excepcional e sua aplicação deve estar adstrita às situações nas quais a escolha de um marco normativo torna-se crítica para a adequada atuação da APO: sem o apelo à legislação de determinado ente, o consórcio teria sérias dificuldades para realizar sua atividade administrativa. Observe-se, nesse sentido, o exemplo a seguir.

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O pregão eletrônico é regulado por decretos elaborados por cada ente federativo. Embora tenha sido previsto no art. 2º, §1º, da Lei n° 10.520/2002, todo o detalhamento de seu modus operandi deve ser estabelecido por decretos regulamentares. Assim, se a APO deseja utilizar-se do pregão eletrônico para licitar a aquisição de bens ou a contratação de serviços comuns, terá que enfrentar o problema relativo a qual norma aplicar, se a federal, estadual ou municipal. De acordo com a ideia desenvolvida acima, deverá aplicar o Decreto n° 5.450, de 31 de maio de 2005, sob pena de não ter marco normativo à disposição para orientar sua atuação de maneira adequada e perder a oportunidade de licitar por uma modalidade que traz enormes ganhos para o Estado em eficiência e economicidade.

Certamente, o leitor deve estar se perguntando sobre as razões jurídicas pelas quais a APO deveria adotar a legislação federal no que couber. Em verdade, elas existem por dois motivos. Primeiramente, essa é a lógica subjacente à própria Lei n° 11.107/2005, como se vê da leitura do art. 20:

Art. 20. O Poder Executivo da União regulamentará o disposto nesta Lei, inclusive as normas gerais de contabilidade pública que serão observadas pelos consórcios públicos para que sua gestão financeira e orçamentária se realize na conformidade dos pressupostos da responsabilidade fiscal (grifos nossos).

Portanto, se cabe ao Poder Executivo da União regulamentar a lei dos consórcios e disciplinar as normas gerais de contabilidade a serem seguidas, isso significa que, se houver dúvida quanto a qual norma seguir, deverá optar-se pela Federal, pois essa é a orientação jurídica mais compatível com o art. 20 da Lei n° 11.107/2005.

Por outro lado, sob uma perspectiva mais pragmática, a APO tem a peculiaridade de ser controlada externamente pelo Tribunal de Contas da União, dados o art. 9º, parágrafo único, da Lei n° 11.107/2005, e a cláusula décima segunda do contrato de consórcio. Parece, portanto, evidente que, em caso de ausência de indicação da legislação relevante no contrato de consórcio público, a atuação da APO deve basear-se no marco normativo federal no que couber, pois esse é a grande fonte das interpretações do órgão de controle externo.

Feitas essas considerações, cabe lembrar que as ações governamentais serão desenvolvidas por três entes políticos – a União, o Estado do Rio de Janeiro e o Município do Rio de Janeiro. É dizer: obras e serviços a serem disponibilizados pelos poderes públicos serão efetivamente implementados por esses entes. Por esse motivo, no âmbito de cada ente, foram criadas instâncias para cuidar dessas ações.

O Governo Federal, por meio do Decreto s/n° de 13 de setembro de 2012, constituiu dois órgãos para cuidar dessas ações. O primeiro é o Comitê Gestor dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016 (CGOLIMPÍADAS), consti-

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tuído com a missão de definir as políticas públicas para a organização dos jogos no âmbito do Governo Federal (“definir diretrizes e ações”). O segundo de-nomina-se Grupo Executivo dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016 (GEOLIMPÍADAS) e suas atribuições são, essencialmente, de monitoramento e coordenação da implementação das políticas definidas ex ante pelo CGOLIM-PÍADAS. Em ambos os órgãos, observa-se a participação do Ministério do Esporte e da Casa Civil, unidades administrativas decisivas, no âmbito federal, para a coordenação de ações dentro da União. Observe-se, ainda, que o decreto atribuiu ao Ministério do Esporte a função de coordenar o CGOLIMPÍADAS e o GEOLIMPÍADAS.

No Município do Rio de Janeiro, as ações são realizadas por uma empresa pública que tem por objetivo o exercício de funções de planejamento, implementação de ações e monitoramento das mesmas; tudo de acordo com as Leis Municipais n° 5.229, de 25 de novembro de 2010, n° 5.260, de 13 de abril de 2011, e n° 5.272, de 7 de junho de 2011.

Por fim, o Estado do Rio de Janeiro optou por comandar as ações governamentais por meio do Escritório de Gerenciamento de Projetos da Secretaria de Estado da Casa Civil (EGP - Rio), órgão da Administração Direta estadual instituído pelo Decreto n° 40.890/2007.

Esses três atores, contudo, não esgotam o número de potenciais envolvidos nas ações dos Jogos de 2016, pois as obras e serviços mobilizam tantas áreas temáticas (ex.: distribuição de energia elétrica, proteção ambiental, acessibilidade) que, potencialmente, cada ação empreendida tem a possibilidade de atrair a atuação de outros órgãos ou entes federais, estaduais ou municipais, como o Instituto Estadual do Ambiente (INEA), a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), o Ministério da Justiça, entre muitos outros.

É dentro desse contexto que começa a fazer sentido a APO. A diversidade de atores e áreas temáticas aumenta a complexidade da organização dos Jogos no âmbito governamental, pois há a necessidade de coordenação das ações de entes e órgãos de diversas esferas da federação. Nesse sentido, um ente com natureza interfederativa seria ideal para promover os diálogos e tratativas necessários, principalmente se esse ente tivesse um nível de insulamento burocrático capaz de blindá-lo contra o jogo político imediato.

A APO foi desenhada com esse objetivo. Suas competências incluem, essencialmente, a representação dos entes consorciados, a coordenação, o monitoramento do cumprimento dos compromissos internacionais com o COI e a definição dos projetos olímpicos e das responsabilidades dos entes governamentais (cláusula quarta do contrato de consórcio). Também é responsável por intermediar o relacionamento dos atores governamentais com o Comitê Rio 2016, associação civil responsável pela organização e realização dos Jogos de 2016.

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É importante ressaltar que a APO tem a seu dispor instrumentos para viabilizar o cumprimento dessas competências. Por exemplo, à luz do parágrafo primeiro da cláusula quarta do contrato de consórcio público, pode realizar estudos técnicos e firmar convênios, contratos e ajustes de qualquer natureza.

O insulamento parcial do jogo político direto procura ser feito a partir da definição de um mandato de quatro anos para seu Presidente (cláusula décima segunda), permitida a recondução. Durante esse período, o dirigente torna-se estável e somente haverá a possibilidade de perda do mandato por renúncia, condenação penal transitada em julgado ou destituição por decisão definitiva em processo administrativo disciplinar (art. 2º da Lei n° 12.396/2011).

2. COOPERAÇÃO E COMUNICAÇÃO ENTRE OS ENTES E ÓRGÃOS GOVER-NAMENTAIS: O LUGAR INSTITUCIONAL DE MEDIADORA DA APO

As seções anteriores delinearam o arcabouço institucional que rege a APO. Até então, foram realizadas análises normativas, de modo que houve pouco espaço para uma discussão dos aspetos positivos relativos à participação da APO na organização e realização dos jogos.

Nesta seção, o enfoque será outro. Começaremos por fazer uma rápida descrição do ambiente no qual as ações de preparação para os Jogos de 2016 se delinearão. A partir dessa, serão tecidas algumas considerações sobre as possibilidades de cooperação nas situações estratégicas subjacentes. Por fim, adentraremos na discussão sobre como a APO poderia atuar para aumentar a possibilidade de novos equilíbrios Pareto superiores aos tradicionais. Como se verá, o arcabouço teórico que orientará a abordagem desta seção vem da teoria dos jogos. Assumimos alguma familiaridade do leitor com conceitos como situação estratégica, jogo, estratégias, recompensas (payoffs) e resultados (outcomes).

Quando da análise do planejamento e organização dos Jogos de 2016, deve-se ter em conta duas ideias.

Primeiramente, os Jogos propiciarão situações estratégicas entre múltiplos atores em diversos momentos e circunstâncias. Assim, deve-se descartar qualquer tentativa de modelar as relações entre dois ou mais entes ou órgãos a partir de um só jogo (ex.: guerra dos sexos, dilema do prisioneiro), pois múltiplas interações ocorrerão em condições completamente distintas. Não há, portanto, um só jogo capaz de modelar todas as possíveis situações estratégicas dos atores governamentais. Para cada jogo, uma situação estratégica com características peculiares pode surgir, suscitando diferentes problemas de cooperação. Dada a multidimensionalidade das áreas temáticas relativas a cada jogo, as estratégias, as recompensas e os jogadores também não podem ser evidenciados em uma discussão tão abstrata quanto a do presente artigo.

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Um segundo ponto é que iremos tratar aqui de um problema de cooperação mais sutil. Não estamos a discutir se há viabilidade ou não de haver uma “macrocooperação” entre os atores governamentais para o planejamento e realização dos jogos. Em verdade, não é difícil prever que haverá cooperação em grau suficiente para que os Jogos de 2016 sejam realizados. É difícil imaginar uma situação na qual os entes políticos deixem de cumprir completamente suas obrigações internacionais, de forma que o Comitê Olímpico Internacional e o Comitê Paraolímpico Internacional tenham que intervir para viabilizar a realização dos eventos. Há duas razões para crermos que esse não é um problema real.

A primeira centra-se no fato de que uma falha dessa magnitude implica altos custos para os agentes políticos dos três entes da federação. A visibilidade dessa omissão tenderia a prejudicar, substancialmente, as carreiras dos agentes políticos das três esferas, razão pela qual a “conexão eleitoral” opera como forte incentivo para que sejam tomadas as decisões necessárias à viabilização da cooperação. Por outro lado, ainda que o Estado do Rio de Janeiro e o Município do Rio de Janeiro não dessem o suporte necessário à realização dos jogos, os incentivos induzem a União a assumir a responsabilidade integral por falhas dessa magnitude, pois, do contrário, poderia haver forte mobilização da opinião pública no sentido de responsabilizar o Presidente por não haver atuado, devidamente, para suprir tais omissões.

A segunda razão tem a ver com a própria dinâmica da cooperação. Os entes e órgãos governamentais interagem, continuamente, em jogos distintos. Embora nem sempre a estrutura de um jogo se repita, o fato é que se os atores vão interagir em múltiplos jogos, devem antecipar que se os jogos se repetirão durante longo período, haverá a perspectiva de cooperação futura. Deve, portanto, haver cooperação no momento presente, para que se assegure uma boa relação entre os jogadores durante todo o período.

Observe-se que essa é uma consequência típica da necessidade de garantir futuramente a cooperação. Se um jogador não coopera agora, isso fará com que, no futuro, o outro jogador lembre-se desse fato e deixe de cooperar. Se, por outro lado, coopera agora, induz o outro jogador a cooperar também no futuro. Essa previsão somente é possível quando há a perspectiva de jogos repetidos infinitamente ou, ao menos, durante um grande número de vezes.439 Esse é o caso das interações entre os entes e órgãos governamentais. Embora os jogos não se repitam infinitamente, ocorrerão finitamente por um número muito grande de vezes, cuja quantidade é desconhecida dos jogadores a priori. Por si só, isso possibilita fortes incentivos para que haja cooperação agora a fim de garantir a cooperação futura.

439 SHEPSLE, Kenneth. Analyzing Politics: rationality, behavior, and institutions. New York/London: Norton, 2010, p. 243 e nota 5.

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Por outras palavras, essas duas razões representam fortes incentivos para que os governos apoiem a realização dos Jogos de 2016 de maneira suficientemente forte. Por conseguinte, a não realização dos eventos por ausência de apoio governamental é pouco provável.

Persiste, contudo, o risco de os entes governamentais não cooperarem de maneira adequada no momento oportuno, no timing necessário à realização dos eventos, pois os entes e órgãos estão sujeitos a diferentes preferências, são responsivos a governantes distintos e os benefícios e custos da preparação e realização dos Jogos de 2016 são assimétricos, isto é, são diferentes para cada jogador, de modo que existe uma estrutura de incentivos à ação diferenciada para cada ente ou órgão governamental.

Há potencialidade, portanto, para que ocorram dificuldades de cooperação em cada jogo, sendo o decurso do tempo, em verdade, uma boa proxy da eficiência com que esses problemas serão resolvidos. Quanto mais demorado o surgimento da cooperação, mais próximas serão as datas de realização dos Jogos de 2016 e mais alto será o risco de um inadequado suporte governamental para os eventos.

É aí “onde entra” a APO. Suas competências possibilitam que esse ente faça as vezes de partícipe em jogos com cheap talk (“diálogo barato”, “comunicação barata” ou “comunicação não custosa”).440 No contexto da preparação para os Jogos de 2016, jogos com cheap talk serão jogos de informação incompleta cuja comunicação entre os jogadores não possui qualquer repercussão em suas recompensas.

Para que o jogo seja de informação incompleta, algum dos jogadores deve deter informação privada não compartilhada com os demais jogadores,441 isto é, as características dos jogadores não são de conhecimento comum. Algum jogador não conhece os objetivos do outro jogador, nem a importância relativa dada aos objetivos, para cada estratégia. As recompensas, portanto, não são conhecidas por algum jogador; não são de conhecimento comum.442

Por exemplo, quando uma empresa negocia coletivamente condições de trabalho com o sindicato obreiro, nem a empresa sabe as cláusulas de um acordo coletivo de trabalho que seriam aceitas pelos trabalhadores para que eles não entrem em greve, nem os trabalhadores sabem o valor máximo que a empresa está disposta a pagar para que a greve não ocorra.443 Para ilustrar melhor a ideia, digamos que o sindicato dos trabalhadores pode ser

440 Como a tradução de cheap talk não é adequada, manteremos o termo em inglês.441 MYERSON, Roger. Game Theory: analysis of conflict. Cambridge: Harvard, 2004, p. 67.442 FIANI, Ronaldo. Teoria dos Jogos: com aplicações em Economia, Administração e Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006, p. 301 e 305. 443 O exemplo é uma adaptação de hipótese citada por BIERMAN, H. Scott; FERNANDEZ, Luiz. Teoria dos Jogos. São Paulo: Pearson, 2011, p. 250.

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radical ou moderado. A empresa pode não saber com que perfil está lidando. Tecnicamente, a caraterística radical ou moderada pode ser denominada de tipo do jogador. Assim, em um jogo de informação incompleta, algum jogador não conhece o tipo do outro jogador. Outro exemplo: seleção de profissionais competentes por empresa. Quando a empresa procura contratar um profissional competente, dificilmente terá certeza de que eventual candidato a emprego é do tipo competente ou incompetente.

Por outro lado, ocorre cheap talk quando o jogo permite comunicações entre os jogadores que não representam custo significativo. Os jogadores podem enviar mensagens, sem que suas recompensas sejam afetadas por esse “diálogo”. Portanto, a comunicação é cheap por ser irrelevante às recompensas do jogo e por não ser capaz de gerar propostas vinculantes, nem ser submetida a qualquer controle de seu conteúdo no futuro.444

A primeira modelagem de jogos de informação incompleta com cheap talk deve ser creditada ao artigo “Strategic Information Transmission”, de Crawford e Sobel. Nesse trabalho, os autores analisaram o papel da comunicação direta no jogo do emissor-receptor (sender-receiver game) e chegaram à conclusão de que a possibilidade de comunicação direta entre os jogadores pode ter um papel fundamental na definição de equilíbrios Pareto superiores aos de um jogo sem a possibilidade de cheap talk. A relevância da comunicação aumenta quando as preferências dos jogadores não diferem muito. Quanto mais próximas as preferências ou objetivos dos jogadores, melhor o equilíbrio resultante da cooperação.445

No modelo de Crawford e Sobel, uma expansão dos equilíbrios do jogo pode ser observada ainda que o emissor não tenha compromisso com a revelação de toda a verdade em sua mensagem. Basta que parte da informação privada tenha sido revelada ao receptor. Daí a extrema importância do modelo446 para a análise de situações estratégicas reais permeadas pela presença de informação privada que não pode ser revelada na totalidade. Dito de outro modo: cheap talk não funciona adequadamente se existirem fortes incentivos à mentira, mas se a situação estratégica possibilitar incentivos para que um jogador revele parcialmente sua informação privada, há grandes chances de haver coordenação com resultados melhores.447 De uma maneira geral, experimentos

444 AUMANN, Robert; HART, Sergiu. Long Cheap Talk, Econometrica, v. 71, n. 6, p. 1.619-1.660, Nov. 2003. 445 CRAWFORD, Vincent; SOBEL, Joel. Strategic Information Transmition. Econometrica, v. 50, n. 6, p. 1,431-1.451, Nov. 1982. 446 KRISHNA, R. Vijay. Communication in Games with Incomplete Information: the two player case. Disponível em: <http://www.econ.ed.ac.uk/papers/comm1.pdf>. Acesso em: 05 jan. 2013. 447 FARRELL, Joseph; RABIN, Matthew. Cheap Talk, The Journal of Economic Perspectives, v. 10, n. 3, p. 103-118, Summer, 1996.

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confirmaram essas evidências em maior ou menor grau, principalmente em circunstâncias nas quais as preferências entre os jogadores são similares.448

Como já se viu, uma das missões da APO é justamente servir de interlocutora entre os órgãos e entes públicos. O ambiente no qual se encontra permite que sejam travados diálogos entre os jogadores de maneira relativamente livre, sem que esses fluxos de comunicação tenham qualquer repercussão sobre as recompensas dos jogadores. À medida que a APO consegue facilitar a comunicação entre os governos, há boas chances de haver o surgimento da cooperação em equilíbrios melhores que os originalmente estabelecidos pelo jogo. Com a proximidade das Olimpíadas e Paraolimpíadas, certamente a comunicação por cheap talk não poderá se dar por tempo indefinido. Observe-se, contudo, que o tempo aumentará o custo de não cooperar e, por definição, haverá maior probabilidade de atuação conjunta.

Assinar contratos também é uma forma de os jogadores expandirem equilíbrios. A APO tem, inclusive, competência para promover ajustes de qualquer ordem entre os jogadores. Entretanto, para que esse expediente funcione adequadamente, a teoria dos jogos exige que haja a possibilidade de assinatura de “contratos vinculantes” (binding contracts), capazes de obrigar as partes, sob pena de uma autoridade responsável pelo enforcement punir ou obrigar o cumprimento de suas cláusulas.

Formalmente, no direito brasileiro, há a possibilidade de as partes fixarem sanções executáveis na via judicial em caso de descumprimento do contrato. Portanto, seria fácil afirmar que a APO poderia resolver problemas de cooperação por, simplesmente, deter a competência para celebrar contratos com entes do poder público com o objetivo de assegurar a cooperação. Esse raciocínio esbarra, contudo, em dois problemas.

Primeiramente, nem sempre os atores governamentais estarão dispostos a assinar contratos ou ajustes, pois, na esfera administrativa, o procedimento para tanto é extremamente burocrático e envolve um custo para os agentes públicos.449 Em segundo lugar, ainda que esses contratos sejam assinados, no contexto da organização dos Jogos de 2016, deixar a cargo do Judiciário realizar o enforcement das obrigações contratuais não é uma opção, pois não se tem controle sobre o modo como o Poder Judiciário interpretará o ajuste e o procedimento processual subjacente à judicialização é extremamente burocrático e tende a ser moroso, de modo que atores racionais devem procurar evitá-la.

448 CRAWFORD, Vincent. A Survey of Experiments on Communication via Cheap Talk, Journal of Economic Theory, 78, p. 286-298, 1998. 449 A assinatura de contratos e ajustes como convênios pressupõe a realização de uma série de atos formais, para que haja o cumprimento da Lei n° 8.666/93 e da legislação correlata. Certamente, há um custo em optar-se por formalizar contratos, convênios e ajustes em razão da necessidade de cumprimento do procedimento burocrático.

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Ceteris paribus, quanto mais próxima a data de realização dos Jogos de 2016, menos incentivos os atores governamentais terão para judicializar o cumprimento de obrigações contratuais. Assim, a assinatura de contratos e ajustes entre entes e órgãos governamentais somente acontecerá quando for estritamente necessária para fins de obediência à legislação. Não será um mecanismo usual de resolução dos problemas de coordenação.

Será, então, que a única via disponível à APO para assegurar coordenação é participar ativamente da cheap talk? A resposta é negativa. A APO, além da via de participar da comunicação por cheap talk, pode fazer o papel de mediador para ajudar os jogadores a chegarem à cooperação. Ao menos, essa é uma de suas competências (cláusula quarta, incisos I e IV, do contrato de consórcio público).

Um mediador é “uma pessoa ou máquina que pode ajudar os jogadores a se comunicarem ou compartilharem informações”.450 Quando se usa a figura de um mediador em jogos de informação incompleta com comunicação, os melhores frutos ocorrem quando os jogadores se sentem livres para reportarem sua informação privada ao mediador em segredo e, a partir de então, o mediador faz uma recomendação de ação para os jogadores – um plano de mediação (mediation plan) –, capaz de aumentar as utilidades esperadas das recompensas.

Se esse plano de mediação propiciar aos jogadores um equilíbrio bayesiano com utilidade esperada ao menos tão boa quanto a utilidade que seria obtida se os jogadores mentissem ou se desobedecessem as prescrições do plano, não haverá incentivos para a seleção adversa ou para o risco moral e, portanto, deve-se esperar cooperação dos jogadores independentemente da celebração de qualquer contrato. O plano será, portanto, compatível em incentivos (incentive compatible). O mediador, contudo, não poderá revelar a informação privada de um jogador aos demais. Deve, apenas, revelar o mínimo de informação necessária a cada jogador, privadamente, quando apresenta o plano de mediação.451

Não é difícil entender o porquê disso. Se o mediador revelasse toda a informação privada ou a recomendação de ação de um jogador, o outro poderia ter incentivos para jogar sua melhor resposta, obtendo recompensas melhores em prejuízo do jogador que teve sua informação privada ou ação revelada. Obviamente, esse segredo não permanece indefinidamente, mas pelo tempo necessário a que os jogadores possam agir de modo cooperativo.

Às vezes, o jogo permite que o mediador faça recomendações aos jogadores que são plausíveis para todos. Nesse caso, não fará sentido qualquer recomendação privada, tal qual no jogo anterior. O jogo, então, deixa de ser um

450 “A person or machine that can help the players communicate and share information”. Cf. MYERSON, Roger. Game Theory: analysis of conflict. Cambridge: Harvard, 2004, p. 250.451 MYERSON, Roger. Game Theory: analysis of conflict. Cambridge: Harvard, 2004, p. 260.

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simples jogo de informação incompleta e passa a ser denominado de problema de escolha coletiva bayesiana (Bayesian collective-choice problem).

Tal qual no jogo de informação incompleta com comunicação, se a recompensa esperada por reportar sua informação privada honestamente ao mediador for superior à de mentir, haverá compatibilidade de incentivos. Há, porém, um ponto. Este jogo supõe que os jogadores entrem em algum tipo de acordo para que o mediador possa apresentar sua recomendação, seu plano de escolha coletiva (collective-choice plan). É de se concluir que só participarão do jogo se o mecanismo promovido pelo mediador promover utilidades esperadas ao menos tão boas quanto às da alternativa de o acordo não ocorrer, ou seja, só participarão se for individualmente racional (individually rational) participar.452

Quanto ao possível papel da APO como mediadora dos jogos de informação incompleta com comunicação, há de se destacar que dependerá em grande parte da reputação construída a partir de então com os jogadores nas interações estratégicas cotidianas. Muito do papel de mediação somente pode ser realizado quando os jogadores confiam no mediador e o veem como terceiro desinteressado em relação as suas recompensas.453

Deve-se, ainda, destacar que, tal qual ocorre com problemas de ação coletiva e de coordenação, oportunidades para o exercício de liderança surgem normalmente dos processos de interação entre os atores. Se a APO conseguir antecipar planos de ação para os atores e soluções para os problemas, ocupará um lugar central na preparação e realização dos Jogos de 2016.

Por fim, algumas palavras devem ser ditas sobre o monitoramento do cumprimento dos prazos e compromissos internacionais firmados com o COI. Embora a APO tenha competência para tanto, observamos que o principal sentido do contrato de consórcio não é fazer com que a autarquia seja um “fiscal” da preparação e organização dos Jogos de 2016.

A APO não tem mecanismo à sua disposição para sancionar os entes consorciados e, no máximo, tem certo poder de veto (veto power) estabelecido no inciso VII da cláusula quarta do contrato de consórcio. Pode funcionar, também, como “alarme de incêndio”, para que o Congresso Nacional atue, dado seu dever de reportar ao Poder Legislativo Federal, a cada seis meses, “suas atividades e calendário de ações a cumprir, para acompanhamento dos prazos estabelecidos pelo Comitê Olímpico Internacional e pelo Comitê Paraolímpico Internacional” (art. 6º da Lei n° 12.396/2011).

Com isso, queremos dizer que o monitoramento deve ser, apenas, um instrumento à disposição da APO para que ela se mantenha informada de “tudo

452 MYERSON, Roger. Game Theory: analysis of conflict. Cambridge: Harvard, 2004, p. 263-267. 453 Lembramos que o mediador não é um jogador. O mediador é um terceiro que se interpõe entre os jogadores com o objetivo de promover a cooperação.

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que se tem por fazer” e da criticidade ou não de eventuais atrasos nas medidas de preparação para os Jogos de 2016. Com essa informação, terá subsídios melhores para agir e elaborar planos de mediação e de ação coletiva destinados a orientar os jogadores.

3. CONCLUSÃO

Este artigo procurou enunciar a estrutura jurídica da Autoridade Pública Olímpica e discutir se existem instrumentos à sua disposição para propiciar a cooperação entre os entes governamentais.

Com uma rápida revisão de conceitos associados à teoria dos jogos de informação incompleta com comunicação, concluiu-se que a APO não só tem um conjunto de competências que lhe propiciaria atuar como uma facilitadora da cheap talk, como poderia assumir o papel de mediadora da relação entre os entes e órgãos federativos dentro de determinadas condições.

Embora, de uma maneira geral, o artigo faça uma análise ainda muito abstrata do ambiente estratégico que permeia a preparação para os Jogos de 2016, aponta para a existência de incentivos à cooperação que poderão ser importantes para o sucesso da coordenação entre os entes e órgãos governamentais. Da análise de suas competências, fica evidente que a APO, ao poder atuar como mediadora, preenche um vazio institucional que pode potencializar a coordenação, tal qual prevêem os modelos dos jogos de informação incompleta com comunicação.

Assim, a existência de um ente administrativo com competências para agir como interlocutor induz cooperação, quando se compara com a alternativa institucional de deixarem os jogadores agirem sozinhos, isto é, agirem em um ambiente que, eventualmente, não teria qualquer mediador à sua disposição.

Obviamente, essa é uma conclusão demasiadamente genérica, mas pesquisadores interessados em análises mais concretas poderão investigar jogos específicos, de modo a verificar se as hipóteses do presente artigo demonstram-se hígidas.

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