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Tenho Algo a Dizer - Memórias Da Unesp

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TENHO ALGO A DIZER

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TENHO ALGO A DIZER:memórias da Unesp na ditadura civil-militar (1964-1985)

Maria Ribeiro do Valle

Clodoaldo Meneguello Cardoso

Antonio Celso Ferreira

Anna Maria Martinez Corrêa

1ª edição - Bauru, 2014

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Copyright © 2014 Editora Unesp Direitos de publicação reservado à Fundação Editora da Unesp (FEU)

Praça da Sé, 10801001-900 – São Paulo-SP

Tel. (11) 3242-7171Fax: (11) 3242-7172

[email protected]

Printed in Brazil 2014

Copyright© Cultura Acadêmica, 2014

Tenho algo a dizer : memórias da Unesp na ditadura civil-militar (1964-1985) / Maria Ribeiro do Valle ... [et al.]. – São Paulo : Cultura Acadêmica, 2014.

240 p. ; 23 cm.

ISBN 978-85-7983-623-7 Inclui bibliografi a

1. Ditadura militar. 2. Brasil-História militar. 3. UNESP-História. I. Valle, Maria Ribeiro do. II. Título.

981T283

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”

RealizaçãoCEDEM – Centro de Documentação e Memória da Unesp

OEDH – Observatório de Educação em Direitos Humanos / Unesp

Apoio PDI – Unesp / Programa de Desenvolvimento Institucional

FAAC – Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação / BauruFCL – Faculdade de Ciências e Letras / Araraquara

Reitoria da Unesp

Equipe de editoraçãoApoio técnico de gravaçãoEvandro Douglas Guidelli

DesgravaçãoAline Ramos

Gustavo ZuccheratoJoão Vitor Campos dos Reis

Nathalia Perillo Mendes de VasconcellosLeonardo C. Manffré

Vinícius de Almeida Martins

RevisãoClodoaldo Meneguello Cardoso

Maria Ribeiro do ValleWaltair Martão

CapaInky Design / Unesp-Bauru

Projeto gráfico e diagramaçãoCanal 6 Editora / Bauru

ImpressãoAvalon Gráfica Digital / Bauru

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A todos(as) aqueles(as)que lutaram contra o arbítrio institucional na Unesp

e que demonstraram (e ainda demonstram) sua indignaçãocontra as políticas e práticas de violação dos direitos humanos

na ditadura militar e no Brasil de hoje.

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Sumário

Abertura .............................................................................................................. 11

DIZERES 1 – Os pesquisadoresPelo direito à memória e à verdade na Unesp .......................................... 13Clodoaldo Meneguello Cardoso

A universidade nos tempos da Guerra Fria e da Ditadura Militar: contestação e repressão ............................................................................. 27Antonio Celso Ferreira

Institutos Isolados, Unesp e a ditadura .................................................... 41Anna Maria Martinez Corrêa

Tenho algo a dizer sobre a ditadura na Unesp......................................... 55Maria Ribeiro do Valle

DIZERES 2 – Os depoentesDepoimento 1 – Onosor Fonseca ............................................................. 69

Depoimento 2 – Ulisses Telles Guariba Neto .......................................... 75

Depoimento 3 – José Roberto Tozoni Reis ............................................... 93

Depoimento 4 – João Francisco Tidei Lima............................................. 113

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Depoimento 5 – Antônio Quelce Salgado ................................................ 129

Depoimento 6 – Luís Carlos da Rocha ..................................................... 133

Depoimento 7 – José Sterza Justo ............................................................. 145

Depoimento 8 – William Saad Hosne ...................................................... 169

Depoimento 9 – Reinaldo Ayer de Oliveira ............................................. 185

Depoimento 10 – Antônio Luiz Caldas Júnior ....................................... 205

Depoimento 11 – Luis Carlos Ferreira de Almeida ................................. 227

Nota final............................................................................................................. 239

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Abertura

Este livro é o resultado do projeto de pesquisa: Tenho algo a dizer: memórias da Unesp na ditadura civil-militar (1964-1985) realizado pelo CEDEM –

Centro de Documentação e Memória e pelo OEDH – Observatório de Educa-ção em Direitos Humanos, da Unesp, em 2013 e 2014.

Participaram da equipe os professores da Unesp: Antonio Celso Ferreira (CEDEM/IBILCE-S. J. do Rio Preto) e Clodoaldo Meneguello Cardoso (OEDH/FAAC-Bauru) – coordenadores; Anna Maria Martinez Corrêa (CEDEM) – con-sultora; Solange de Souza (CEDEM) – apoio técnico; Maria Ribeiro do Valle (FCL-Araraquara) – pesquisadora-bolsista.

A pesquisa foi realizada em fontes documentais do CEDEM e por meio de depoimentos de (ex) professores e ex alunos da Unesp, gravados durante mais de 20 horas, em áudio e/ou vídeo. O período pesquisado abrangeu acon-tecimentos ocorridos pós-1964 nos Institutos Isolados de Ensino Superior do estado de São Paulo, que deram origem à Universidade Estadual Paulista ‘Júlio de Mesquita Filho’, criada em 1976.

O projeto: Tenho algo a dizer recebeu apoio e financiamento da Reitoria da Unesp por meio do PDI – Programa de Desenvolvimento Institucional, na linha 13: Memória Social.

Agradecemos a todos e a todas que direta ou indiretamente contribuíram para a realização deste projeto.

A equipe

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D I Z E R E S 1OS PE SQ U I SAD O R E S

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PELO DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE NA UNESP

Clodoaldo Meneguello Cardoso

O direito à memória e à verdade é condição para superar o legado de violência de tempos de arbítrio e garantir o fortalecimento de institui-

ções com valores democráticos.

Antecedentes

A liberdade e a democracia, que temos – ainda muitas vezes apenas formal –, foram conquistadas com muita luta e sofrimento de grupos organizados

de trabalhadores, estudantes, intelectuais, religiosos, artistas e políticos contra a ditadura civil-militar (1964-1985). Passados 50 anos do golpe de 64, ainda ouvimos ecos desse passado sombrio num país, em que grande parte da população ainda não tem acesso aos bens econômicos, sociais e culturais. Emprego, moradia, saúde e educação, para muitos ainda são dramas coti-dianos a serem superados em novas lutas.

O que a geração, que lutou contra a ditadura, tem a dizer aos jovens de hoje? E o que tem a ouvir deles? Como preservar as conquistas e avançar rumo a uma sociedade democrática plural, participativa e igualitária? Como superar a cultura autoritária e as desigualdades sociais que se perpetuam no país? 

Essas questões nortearam um conjunto de atividades de extensão, ensino e pesquisa que o Observatório de Educação em Direitos Humanos (OEDH) da Unesp desenvolveu a partir de 2012 para culminar em 2014 – cinquentenário do Golpe militar. O objetivo principal estava com o foco na juventude atual para pensar o Brasil de hoje e o sentido da cidadania ativa, e fazer avançar da democracia liberal representativa para uma democracia social participativa,

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capaz de superar a miséria e as desigualdades sociais, alicerce dos demais pro-blemas estruturais do Brasil.

O momento histórico, com a criação da Comissão Nacional da Verdade, instituída pela lei nº 12.528 de 18 de novembro de 2011 e instalada em maio de 2012, exigia um esforço de toda sociedade brasileira de revistar o triste período da ditadura civil militar para trazer à luz aquilo que ainda está ocultado. So-mente com isso, pode-se suavizar as cicatrizes do sofrimento passado, entender mais profundamente a sociedade embrutecida que a ditadura nos legou e ali-mentar a luta por uma democracia social, participativa e igualitária.

Atento a este contexto, OEDH da Unesp iniciou suas atividades, organi-zando, em abril de 2012, a II Jornada de Direitos Humanos de Bauru, sob a temática: Memória, verdade e cidadania, hoje. Realizada em parceria om diver-sos órgãos municipais, estaduais e federais, a Jornada estendeu-se por 10 dias, com intensa programação acadêmica, cultural-artística e política dirigida para públicos diversos. Além de palestras e mesas-redondas militantes e ex-presos políticos, merecem destaques:

• sessão da Caravana da Anistia do Ministério da Justiça, julgando em Bauru, algumas dezenas de casos;

• oficina “Memória e cidadania, hoje” para professores e diretores da Rede Estadual, em parceria com o Memorial da Resistência de São Paulo e Diretoria de Ensino de Bauru;

• exposição Direito à memória e à verdade da Secretaria de Direitos Hu-manos da Presidência da República;

• peça teatral Filha da Anistia, com sessões para 2.000 estudantes do 2º grau; e

• a presença do, então, deputado estadual Adriano Diogo, presidente da Comissão Estadual da Verdade (CEV) da Assembleia Legislativa do Esta-do de São Paulo, na sessão extraordinária da Câmara Municipal de Bau-ru, em que foi oficializada a Comissão de Direitos Humanos da Câmara como colaboradora da CEV. Foi este o embrião que gestou a Comissão Municipal da Verdade de Bauru, instalada em maio de 2012, como grupo de apoio à Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal.

Também diversas universidades movimentaram-se nesse sentido, criando suas comissões da verdade para passarem a limpo a sua história no período da ditadura e revelar o arbítrio institucional e os movimentos de resistência,

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em que se vitimaram professores, funcionários e alunos. Vigilância, controle, censura, demissões, aposentadorias compulsórias e até mesmo prisões estão agora sendo reveladas; até então estavam ocultadas em arquivos empoeirados, em dossiês trancados e principalmente no silêncio das vítimas mudas e aprisio-nadas nas paredes da memória.

Projeto em construção

Para estimular o debate no interior da Universidade Estadual Paulista, o OEDH elaborou, em agosto de 2012, um pré-projeto de pesquisa, com o título: “Peço a palavra”, perseguindo objetivos semelhantes aos das Comissões da Ver-dade já existentes em algumas universidades brasileiras. Assim o OEDH daria sua contribuição para uma possível futura Comissão da Verdade da Unesp.

O pré-projeto “Peço a palavra!” já previa um cronograma de execução em três fases distintas e com metodologias específicas. A primeira restringia-se à divulgação do projeto em toda comunidade acadêmica, convites de participa-ção e inscrição dos depoentes entre professores, funcionários e alunos perse-guidos pela ditadura, no interior dos “Institutos Isolados de Ensino Superior” que deram origem à Unesp, criada em 1976.

A segunda fase caracterizava-se pela pesquisa de campo, ou seja, coleta de dados, documentos em arquivos e de depoimentos por escrito, em áudio ou em vídeo. Os depoimentos teriam dois focos principais: a repressão institucional e as ações de resistência. Nesta fase havia duas preocupações metodológicas pró-prias de pesquisa histórica: uma relacionada aos métodos de manuseio e seleção de análise de fontes documentais e outra específica de captação de depoimentos pela metodologia de “história oral”. O segundo expediente metodológico a ser utilizado nessa primeira fase seria de ordem psicológica. Como se tratam de situações vividas em momentos de grande sofrimento, os depoentes seriam aco-lhidos com profundo respeito, afeto e sensibilidade ética para que não sofressem nenhuma pressão ou incômodo psicológico ao dar seu testemunho totalmente voluntário e livre de direcionamento por parte do pesquisador e entrevistador.

Na terceira etapa, as atividades estavam voltadas para o campo da lingua-gem e, portanto, com metodologias específicas dessa área. Aqui o trabalho envolveria atividades de gravações em áudio e vídeo, de transcrição e, poste-

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riormente, a adaptação da linguagem oral para a linguagem coloquial escrita, necessária para edição e publicação do texto. A realização do projeto, portanto, iria requerer o trabalho de equipe multidisciplinar com profissionais de His-tória, Ciências Políticas, Psicologia, Língua Portuguesa, atuando diretamente na equipe ou por meio de consultoria. Também a pesquisa deveria contar com alunos bolsistas, em especial, da área de Jornalismo.

O tempo de execução do projeto foi previsto inicialmente para 1 ano (fe-vereiro de 2013 a fevereiro de 2014), com a participação de 2 alunos bolsistas e voluntários. Apresentado o pré-projeto para alunos participantes e professores consultores do OEDH, o projeto ganhou caraterísticas mais amplas.

Agora, com o título de “Tenho algo a dizer: memórias da Unesp na ditadu-ra civil-militar (1964-1985)”, o OEDH apresentou o projeto ao CEDEM – Cen-tro de Documentação e Memória da Unesp, instalado em São Paulo, propondo parceria. Caminho bastante natural, uma vez que o CEDEM é um importante centro aglutinador de acervos documentais, arquivos e coleções históricas, de informações, de referências e de estudos e pesquisas sobre a Unesp e sobre a história política contemporânea brasileira. Abriga coleções e arquivos produzi-dos, acumulados ou publicados por pessoas, organizações, partidos políticos e demais entidades, identificadas como formadoras e integrantes das esquerdas brasileiras. Em reunião no dia 13 de novembro de 2012, foi aceita, de pronto, a proposta de parceria do OEDH, pelo – então coordenador do CEDEM – prof. Antonio Celso Ferreira.

De imediato incorporam-se à equipe do projeto as pesquisadoras do CEDEM: Anna Maria Martinez Corrêa, coordenadora do projeto Memória da Unesp I e Solange de Souza, do Acervo e Gestão Documental e a secretária Rosimeire Apa-recida Francelin. A seguir o projeto ganhou forma institucional com previsão orçamentária para bolsas de pesquisadores, viagens para coleta de dados, bolsas para alunos estagiários e publicação.

Em fevereiro de 2013 apresentado na Reitoria da Unesp, à professora Tânia Regina de Luca, coordenadora do PDI – Programa de Desenvolvimento Insti-tucional, o projeto: Tenho algo a dizer, foi avaliado e aprovado, no Programa PDI/13, Memória Social.

Agora o projeto contava com o apoio financeiro do PDI da Unesp, por meio de duas bolsas para professores pesquisadores do quadro de docentes da Unesp para realizar a pesquisa no período de maio a dezembro de 2103.

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Viabilizando a pesquisa

Em 2 de abril, o CEDEM e o OEDH publicaram edital público, com ampla divulgação na comunidade acadêmica unespiana para inscrição e seleção de docentes-pesquisadores.

O edital contemplou 1 bolsa de pesquisa para docente doutor da Unesp da área de História e 1 bolsa para docente da área de Ciência Política, com a finalidade de colher informações sobre eventuais impactos da ditadura civil-militar de 1964-1985 entre discentes dos antigos Institutos Isolados de Educa-ção Superior do Estado de São Paulo e posteriormente na Unesp desde 1976.

Divulgou-se o edital com a seguinte justificativa:

O CEDEM e o Observatório de Educação e Direitos Huma-nos da Unesp (OEDH) também firmaram parceria para elabo-ração do projeto “Tenho algo a dizer”, que visa obter depoimen-tos de docentes e ex-docentes, servidores técnicos e ex-servidores técnicos afetados direta ou indiretamente pelo regime nesse perí-odo da nossa história recente.

Com a implementação da  Comissão  Nacional da Verda-de  (Lei Federal nº. 12528 de 18/11/2011) será possível conhe-cer muito do que está ocultado no período compreendido entre 1964 a 1985, em relação às graves violações aos direitos huma-nos cometidos durante a ditadura civil-militar, bem como as lutas individuais e coletivas de resistência ao arbítrio.

Pretende-se, assim, participar da reconstrução histórica do pe-ríodo da ditadura militar relacionada à Unesp, em consonância com os esforços da Comissão Nacional da Verdade e de outras comissões estaduais, municipais e institucionais criadas e em fase de criação, atualmente no Brasil.

O projeto envolverá a coleta de depoimentos voluntários e do-cumentos, para publicação,  que revelem experiências vividas por docentes e funcionários (e ex) da Unesp e dos, então, “Ins-titutos Isolados”, relacionadas à ditadura civil-militar do perí-odo de 1964 a 1985. Dessa forma, o projeto “Tenho algo a di-

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zer” também contribuirá com a construção da própria história da  Unesp. (Edital disponível em: <http://www.cedem.unesp.br/#!/editais/>. Acesso em: 10 set. 2014.)

 Ainda no edital estavam previstas as seguintes atividades do projeto:a) pesquisa nos depoimentos existentes no CEDEM para indicação de pos-

síveis contatos;b) definição dos fundamentos teóricos e metodológicos das entrevistas, do

grupo de entrevistados, da preparação do campo de trabalho, das roti-nas de transcrição e de conferência e arquivamento;

c) contatos com entrevistados, agendamento das entrevistas e viagens;d) realização de aproximadamente 30 entrevistas, totalizando 120 horas de

gravação em áudio e/ou em vídeo; ee) elaboração de texto para publicação.Seguindo as normas do Edital, foram contempladas com as bolsas as pro-

fessoras Maria Ribeiro do Valle e Eliana Maria de Melo Souza, ambas da Facul-dade de Ciências e Letras, câmpus da Unesp de Araraquara.

Com a equipe completa, iniciaram-se em maio de 2013 as reuniões de estu-dos de fundamentação teórico-metodológica e de planejamento para execução da pesquisa. Posteriormente, a professora Eliana solicitou seu desligamento do projeto, por motivos de ordem pessoal. Com isso o projeto sofreu uma signifi-cativa redução no número de entrevistas previsto, cujo trabalho foi feito apenas por uma única professora bolsista Maria Ribeiro do Valle. Mesmo assim, devi-do à excelente qualidade dos depoimentos/testemunhos coletados, os objetivos da pesquisa foram plenamente atingidos.

A pesquisa realizada na Unesp teve como referências teóricas o conjunto de publicações sobre o direito à memória e a verdade, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e do Ministério da Justiça. Atuou-se em sintonia o esforço nacional – e das muitas comissões da verdade espalhadas pelo Brasil – em resgatar os fatos ocultados no período da ditadura.

As narrativas do passado, alegres ou tristes, modulam nossa identidade, nos ensinam a viver com consciência o presente e a preparar o futuro. É funda-mental manter a memória viva para que as lindas histórias nunca se acabem e as tristes, jamais voltem a acontecer. Mas nem todos pensam assim. Os podero-sos que causaram o sofrimento injusto procuram apagar ou ocultar o passado

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19Pelo direito à memória e à verdade na UnespClodoaldo Meneguello Cardoso

para enfraquecer o espírito do povo. Eles sabem que povo sem memória viva é um povo culturalmente frágil. Por isso, o esforço do resgate da memória de tempos sombrios é sempre uma luta de resistência, uma luta de libertação.

Sob a orientação dos professores de história participantes da equipe, deba-teram-se aspectos importantes metodológicos da pesquisa histórica, que neste caso seria prioritariamente, por meio de entrevistas. Optou-se pela metodolo-gia de “história oral”, considerada mais adequada para colher informações por meio de testemunhos voluntários. Esta metodologia prioriza a não interferên-cia do pesquisador no direcionamento das respostas do entrevistado, embora aquele tenha um objeto formal específico na coleta das informações, que neste caso centrava-se no arbítrio institucional e nos movimentos de resistência. Ou-tro aspecto metodológico da “história oral”, debatido, foi a importância sobre a preparação do campo de trabalho antes da entrevista, ou seja, o pesquisador deve realizar uma ambientação inicial para que o entrevistado esteja um clima de tranquilidade confiabilidade e naturalidade. Assim garante-se um depoi-mento mais espontâneo possível. Também se definiram as orientações sobre o trabalho de transcrições das entrevistas, a ser feito em duas etapas, como de praxe: na primeira, transcreve-se a linguagem oral, pra num segundo mo-mento realizar a adaptação da linguagem oral escrita para a linguagem escrita coloquial, própria para publicação e/ou arquivamento.

Um segundo momento de estudos foi sobre a conjuntura histórica nacional e internacional em que ocorreram os fatos relacionados com a ditadura civil-mi-litar. Houve também uma explanação, da profa. Anna Maria Martinez, sobre a política de criação de unidades universitárias, pelo poder público, entre 1956 e 1964, no interior do estado de São Paulo. Essas unidades denominadas Institutos Isolados de Ensino Superior foram, em parte reunidas numa universidade, em 1976, dando origem à Unesp. No período pós Golpe de 64, houve fatos marcantes de repressão da ditadura e de resistência no interior de alguns dos Institutos Iso-lados como: Assis, São José do Rio Preto, Botucatu e outros. Daí a importância de a pesquisa Tenho algo a dizer abranger um período anterior ao da existência da Unesp. A história dos Institutos Isolados é parte intrínseca da própria história da Unesp, como mostra o grande Projeto Memória da Universidade, desenvolvido pelo CEDEM sob a coordenação da Profa. Anna Maria Martinez.

Outra diretriz estabelecida para a pesquisa refere-se à pesquisa/análise, antes mesmo de dar início às entrevistas, de dois acervos do CEDEM, como

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fontes documentais: a) partes de depoimentos colhidos no projeto Memória da Universidade e b) processos sofridos por docentes, técnico-administrati-vos e pesquisadores da Unesp por motivação política. Desse último arquivo, a pesquisa contou com uma listagem de 23 professores que foram demitidos ou compulsoriamente aposentados pela ditadura. O dossiê destes processos estava sob a guarda do Conselho Estadual de Educação do Estado de São Paulo, já transferida para o CEDEM. Do projeto Memória da Universidade foram sele-cionadas 17 entrevistas para estudos e levantados 71 nomes que potencialmen-te poderiam ser entrevistados no projeto Tenho algo a dizer.

No planejamento da pesquisa foram previstas 30 entrevistas, totalizando 60 horas de gravação audiovisual e perfazendo um total de 40 dias de trabalho e viagens durante o ano de 2013. Programou-se, inicialmente, uma divulgação do projeto em toda comunidade acadêmica da Unesp, abrindo inscrições para quem se despusesse relatar memórias na Unesp no período da ditadura. Tam-bém foram feitos convites individuais para docentes previamente selecionados.

A pesquisa de campo foi efetuada, durante todo o ano de 2013, pela pro-fessora Maria Ribeiro do Valle, realizando entrevistas em diversas cidades do estado de São Paulo. O custeio das viagens teve o apoio da FCL-Unesp de Ara-raquara, onde atua a docente.

Conforme previsão no projeto, as transcrições das entrevistas ficariam a cargo de alunos bolsistas a serem contratados para este fim sob a supervisão de professores da equipe do projeto. Como não foi possível a liberação de bolsistas para o projeto, o trabalho de transcrição das entrevistas foi realizado, em parte, por bolsistas do Observatório de Educação em Direitos Humanos, com sede no câmpus de Bauru. Em parte, pois com a greve ocorrida na universidade, ele foi concluído por uma profissional na área, contratada com verba da Capes, obtida pela profa. Maria Ribeiro do Valle.

Concluídas as entrevistas e suas transcrições no final de 2013, ficou para 2014, a organização o material coletado, a produção de textos, as revisões e a normalização e a produção do livro-relatório a ser publicado. Devido a im-previsto, como paralizações na universidade, este trabalho estendeu-se até o final do ano.

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Jornada de abril: 50 anos do golpe

O projeto de pesquisa: Tenho algo a dizer foi concebido no interior de ativi-dades de extensão universitária, de caráter acadêmico-político e, por isso, tem características teóricas e práticas indissociáveis. Tal é o perfil do campo de atua-ção em direitos humanos. Pensar os direitos humanos – como, por exemplo, o direito à memória – em seus fundamentos teóricos, implica em realizar também intervenções sociais, especialmente, no campo da educação formal e informal.

Por esta razão, uma questão nos desafiava em 2013: de que modo a temá-tica do projeto Tenho algo a dizer, a ditadura, poderia ser refletida e vivenciada pela comunidade acadêmica da Unesp, no decorrer da própria pesquisa? Bus-cando a resposta, o OEDH propôs ampliar a parceria com o CEDEM, com a realização de um grande evento em abril de 2014, pela passagem do cinquen-tenário do Golpe de 64. Concebeu-se uma jornada de eventos, articulada pelo OEDH, durante todo o mês de abril, com atividades simultâneas em São Paulo e em cidades do interior do estado, em que há a presença da Unesp.

Pensar o Golpe militar – 50 anos depois, a partir da memória, da história e dos direitos humanos foi o foco que norteou a organização dos eventos, na jor-nada de abril/2014. Conferências, mesas, debates, vídeos, rodas de conversas, apresentação de trabalhos acadêmicos e manifestações culturais e artísticas ofereceram subsídios e/ou estimularam reflexões sobre a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985) e sua relação com a realidade dos dias atuais.

Por que memória, história e direitos humanos?A memória. Em primeiro lugar, é preciso resgatar a memória das vivências

e as lembranças daqueles que travaram a luta contra o arbítrio e sofreram dire-tamente a repressão violenta do regime. Milhares de brasileiros foram vítimas da ditadura em prisões arbitrárias, torturas, assassinatos, desaparecimentos e exílios. É preciso dar voz para toda essa dor contida em décadas de silêncio. Falar publicamente e dar testemunhos sobre as torturas, desaparecimentos e sobre as perdas de entes queridos expurgam o sofrimento tatuado na alma das vítimas e recuperam o mínimo de equilíbrio para caminhar na vida. Apesar de triste, manter viva essa memória é condição primeira para que o terrorismo de Estado jamais volte a acontecer. A memória dos fatos, dos sentimentos e das vi-vências pessoais é o fermento de nossa identidade e o alicerce para a construção de nossos sonhos pessoais e coletivos.

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A verdade. Torna-se também imperativo conhecer as verdades históricas desse período, muitas vezes ocultado na educação das novas gerações. E o co-nhecimento histórico passa pela pesquisa nas fontes e em bibliografia especiali-zada, que oferece subsídios para análises e interpretações mais globais a partir de uma cadeia de relações dos acontecimentos isolados. Este é o caminho para a análise conjuntural e estrutural. Na primeira, o conhecimento histórico do Golpe de 64 e da ditadura vai além do mosaico de informações sobre os fatos da época. É preciso analisar a conjuntura histórica nacional que, na época, de-senhava a construção de uma democracia social no Brasil. Com grande apoio e participação popular, o governo de João Goulart propunha reformas de base na política, no acesso a terra, na educação e em outras áreas, causando grande incômodo ao contexto político dominado por partidos conservadores. A análise conjuntural do Golpe exige ainda um olhar para o cenário internacional daquele momento histórico, marcado pela Guerra Fria entre os EUA e a URSS. Esta di-visão maniqueísta do mundo foi o grande álibi para o imperialismo econômico e cultural das duas grandes potências centrais em relação aos países periféricos. Na América Latina, por exemplo, os EUA, em nome do combate ao comunismo, arvoraram-se no direito de intervir em políticas nacionais, sustentando golpes de Estado e apoiando a implantação de ditaduras em países que buscavam de-mocraticamente soluções para a superação das brutais desigualdades sociais.

Por sua vez, a análise estrutural tem como referência a longa duração da his-tória, um tempo de séculos, com ritmo lento de mudanças, em que se formam as estruturas da vida material e cultural de um povo. Neste prisma, o Golpe de 64 foi mais um dos fatos históricos decorrentes da estrutura social conservadora e autoritária das elites nacionais, que – desde o Brasil colonial – são os donos da terra, do trabalho e do poder político. Na longa duração, a história do Brasil apresenta poucas e curtas experiências de vida política democrática e mais raras ainda, de governos voltados realmente para a emancipação humana da popu-lação mais pobre e excluída. O que se vê, em seus 500 anos, é uma estrutura socioeconômica, no campo e na cidade, construída a partir dos interesses das elites que, sem pudor, escravizaram índios e negros, exploraram mão-de-obra dos imigrantes e, hoje, dos nordestinos. E sempre que não foi possível abafar a ferro e fogo os movimentos sociais – como na Guerra dos Canudos ou no Golpe de 64 – as elites souberam realizar acordos de cúpula, mantendo-se no poder, mesmo com nova roupagem – como na Proclamação da República ou na aber-

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tura lenta, gradual e segura pós-ditadura, na década de 1980. Todavia, o que predomina na história do Brasil é o perfil estrutural de uma sociedade, marcada pelas desigualdades sociais e pelo autoritarismo virulento. A ditadura civil-mili-tar, sob as lentes da longa duração, não foi um regime de exceção, mas de regra.

Com as análises conjuntural e estrutural, o conhecimento da verdade his-tórica do Golpe proporciona-nos uma compreensão mais ampla e profunda não apenas do referido período histórico, mas também da sociedade brasileira atual. E essa é condição para a construção de qualquer processo de superação de seus problemas estruturais.

Os direitos humanos. Pensar a dignidade humana na sociedade brasileira é repensar o sentido de cidadania, hoje. Construir uma cidadania ativa e viven-ciá-la a cada dia passa primeiramente pela desconstrução do pálido conceito de cidadania, ainda bastante difundido na mídia e na educação. Para essa ci-dadania formal, ser cidadão é possuir legalmente direitos individuais e deveres sociais já estabelecidos. A posse de direitos legais e o cumprimento dos deveres sociais, somados ao caráter moral e ético do indivíduo constituem o tripé da cidadania passiva, uma vez que essa nos tira a dimensão de sujeito das trans-formações sociais. Tal conceito de cidadania, na realidade, está muito mais re-lacionado à possibilidade de acesso ao consumo de bens supérfluos, do que propriamente àqueles bens sociais coletivos que tornam digna a vida humana como: educação, saúde, trabalho, moradia, transporte, cultura, lazer etc. Esses são conquistas de uma cidadania ativa.

Como o próprio nome expressa, a cidadania ativa trata-se de uma a ação coletiva da população organizada para concretamente conquistar, proteger e ampliar direitos individuais e coletivos fundamentais. É a chamada luta pelos direitos humanos.

Com o resgate da memória das vivências passadas e da compreensão crítica dos seus processos históricos, podemos, por meio da cidadania ativa, caminhar em direção a uma democracia social e participativa, capaz de transformar as estruturas sociais brasileiras geradoras da miséria, da pobreza e de outras for-mas de desigualdades e exclusão social.

A jornada de abril/2014 envolveu 10 unidades da Unesp que aceitaram o convite, aderindo ao projeto: Araraquara, Assis, Bauru, Botucatu, Ilha Soltei-ra, Marília, Presidente Prudente, Rio Claro, Registro e São José do Rio Preto. Também houve atividades em São Paulo, em parceria com o CEDEM, com o

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Memorial da Resistência de São Paulo e Memorial da América Latina. Em cada local, organizou-se um evento (ou mais) sobre o tema a partir de suas espe-cificidades acadêmicas ou culturais. As diversas propostas foram articuladas em reuniões preparatórias, coordenadas pelo OEDH-Unesp, câmpus de Bauru. Realizar uma jornada de eventos articulados tematicamente foi uma experiên-cia inédita e exitosa na Unesp, uma universidade multicampi. E mais. Durante a preparação da Jornada, ocorreram reuniões – no câmpus de Marilia – para debater sobre criação da Comissão da Verdade na Unesp, com adesão de pro-fessores de várias unidades da Unesp.

A abertura das atividades da jornada “Golpe militar – 50 anos: memória, história e direitos humanos” aconteceu no dia 31 de março de 2014, na reitoria da Unesp. Na sessão, a vice-reitora no exercício da reitoria, a profa. Marilza Vieira Cunha Rudge, e a pró-reitora de Extensão Universitária, profa. Ma-riângela Spotti Lopes Fujita, deram posse à Comissão da Verdade da Unesp, presidida pela professora Anna Maria Martinez Corrêa, ex-coordenadora do CEDEM. Comissão da Verdade da Unesp foi instituída em 18/3/2014 a partir de Portaria nº 88, de 24 de fevereiro de 2014. Após a cerimônia de posse, realizou-se a mesa-redonda: “Ditadura civil-militar: história, verdade e legado social”, com a participação do historiador Antônio Celso Ferreira, então coordenador do CEDEM; Marco Aurélio Nogueira, diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI) e a profa. Angélica Lovatto, representando o prof. Marcos Del Roio (FFC-Marília), convidado para a Mesa. A coordenação da Mesa ficou a cargo do docente Clodoaldo Meneguello Cardoso, coordena-dor do OEDH. Toda a programação dos eventos sobre a ditadura militar ocor-ridos em unidades da Unesp e pelos parceiros de São Paulo está registrada no site do Observatório de Educação em Direitos Humanos da Unesp.

Em síntese

Foi assim, então, que a ideia-força ‘Unesp na ditadura’, concebida no OEDH-Unesp, ganhou sua primeira expansão com a realização, em abril de 2012, da II Jornada de Direitos Humanos de Bauru: memória, história e cidadania, hoje. Posteriormente a ideia desdobrou-se no pré-projeto de pesquisa: Peço a palavra, posteriormente renomeado como: Tenho algo a dizer: memórias da Unesp na

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25Pelo direito à memória e à verdade na UnespClodoaldo Meneguello Cardoso

ditadura civil-militar (1964-1985). Em novembro de 2012, o projeto de pesquisa ganhou a parceria do CEDEM e recebeu apoio da Reitoria, pelo PDI – Programa de Desenvolvimento Institucional da Unesp. Como interface prática da pesqui-sa desenvolvida em 2013/2014, realizou-se uma ampla jornada de eventos, em abril de 2014, pelo cinquentenário do Golpe Militar de 64, em São Paulo e em dez unidades da Unesp. Na abertura da jornada na Reitoria, foi instalada a Co-missão da Verdade da Unesp.

Das pesquisas, reflexões e debates da jornada de eventos, em abril de 2014, produziram-se, na Unesp, vários livros sobre diversos aspectos do período da ditadura e seus desdobramentos históricos na política, na economia, na educa-ção e na cultura em geral. É uma contribuição da Unesp ao esforço nacional – do poder público progressista, das comissões da verdade e de vários setores da sociedade – em resgatar as memórias e revelar verdades ocultadas, deste perío-do sombrio de nossa história. Somente assim podemos perceber o triste legado social da ditadura na sociedade brasileira atual, marcada por uma cultura de violação dos direitos humanos individuais e sociais. Apesar dos avanços so-ciais nos governos progressistas pós-ditadura, o Estado brasileiro continua, em grande parte, sob a tutela das elites conservadoras. Então, convivemos ainda com a cultura da tortura, justiçamentos, ditadura midiática, criminalização dos movimentos sociais e exclusão de grande parte da população aos direitos de justiça, salário digno, moradia, alimentação, saúde, educação gratuita, la-zer... São os traços das desigualdades e do autoritarismo de nosso país.

Clodoaldo Meneguello CardosoPossui graduação em Filosofia e Letras. Mestre e doutor em Educação pela Unesp-Marília. Como pesquisador associado ao LEI – Laboratório de Estudos so-bre a Intolerância – FFLCH/USP, realizou o Pós-Doutorado em História Social. É professor aposentado do Departamento de Ciências Humanas, Faculdade de Ar-quitetura, Artes e Comunicação, Unesp-Câmpus de Bauru, onde desenvolve ati-vidades de pesquisa e extensão como: coordenador do OEDH – Observatório de Educação em Direitos Humanos, e coeditor da RIDH – Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos. É autor, dentre outros, do livro: Tolerância e seus limites, Editora da Unesp. [email protected]

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A UNIVERSIDADE NOS TEMPOS DA GUERRA FRIA E DA DITADURA MILITAR:

CONTESTAÇÃO E REPRESSÃO

Antonio Celso Ferreira

Os impactos da ditadura militar nos Institutos Isolados do Ensino Superior do Estado de São Paulo e na Unesp1, além do contexto nacional, devem

ser compreendidos no complexo quadro internacional do pós-guerra, coinci-dente com os anos da Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética. Eric Hobsbawm designou esse período como a Era do Ouro (1945-1990), marcada tanto por uma enorme expansão das economias capitalistas centrais, quanto por movimentos de descolonização, revolução e modernização nos países então considerados pertencentes ao Terceiro Mundo, entre eles o Brasil2.

A Era do Ouro foi caracterizada por um conjunto de processos que abalaram os modos de vida das sociedades locais, embora de maneira desigual nos vários continentes e nações. Os mais importantes foram a grande explosão demográ-fica, a “morte do campesinato”, a urbanização acelerada e a expansão da alfabe-tização básica – ainda que se mantivessem índices alarmantes de analfabetis-

1 Os Institutos Isolados do Ensino Superior do Estado de São Paulo foram criados nas décadas de 1950 e 1960, tendo sido integrados à Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, implantada em 1976 com a junção daquelas faculdades e de novos campi fundados pelo governo do Estado. O assunto é desenvolvido no próximo capítulo, por Anna Maria Martinez Correa.

2 HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Compa-nhia das Letras, 1995. Ver, especialmente, a parte dois: A Era do Ouro, p. 223-392.

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mo nos países pobres –, aumentando significativamente a demanda pelo ensino médio e pela educação superior. Como diz o historiador britânico no livro Era dos Extremos, “hoje é evidente que a Era do Ouro pertenceu essencialmente aos países capitalistas desenvolvidos, que, por todas essas décadas, representaram cerca de três quartos da produção do mundo e mais de 80% de suas exportações manufaturadas [...]. Apesar disso, a Era do Ouro foi um fenômeno mundial, em-bora a riqueza geral jamais chegasse à vista da maioria da população do mundo”3.

Em escala global, a educação despontou como valor universal e o principal meio para aumentar a renda familiar e elevar o status social, especialmente para as camadas sociais médias. Como decorrência da expansão do sistema educacional, ampliou-se o número de estudantes e professores nos diversos níveis de ensino, multiplicaram-se os cursos superiores, inclusive nos países dependentes, como Brasil, nos quais a criação de universidades passou a ser vista como símbolo de independência nacional. Foi nessas circunstâncias que a juventude, sobretudo estudantil, emergiu como camada social relativamente autônoma nas várias partes do globo, ainda que “numa posição meio incômoda em relação ao resto da sociedade”, uma vez que “ao contrário de outras classes ou agrupamentos sociais mais velhos e estabelecidos, eles não tinham, nela, um lugar determinado nem um padrão de relações”.4

As universidades tornaram-se lócus de uma cultura própria – aquilo que se chamou de uma cultura jovem transnacional –, bastante impactada pelas novas tecnologias de comunicação e pela nascente indústria cultural do cinema e da música, ainda em sua fase de vanguarda. Nesse ambiente confrontaram-se valores tradicionais e modernos no tocante aos comportamentos, conflitos geracionais e relações entre os sexos, como também se difundiram vários pro-jetos de transformação da ordem social, em diferentes graus de radicalidade e abrangência. Nelas também repercutiram fortemente os sucessos das revolu-ções cubana e chinesa, bem como das lutas anticoloniais das nações africanas, asiáticas e latino-americanas, levando milhares de jovens ao redor do mundo a se identificarem, embora muitas vezes de forma difusa, com valores anticapita-listas e contrários à organização tecnocrática da sociedade.

3 HOBSBAWM, E., op. cit., p. 255.

4 Idem, p. 295

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29A universidade nos tempos da Guerra Fria e da Ditadura Militar: contestação e repressãoAntonio Celso Ferreira

Dos fins da década de 1950 a 1968, ano que marcaria simbolicamente o ápi-ce da contestação juvenil, proliferaram mundo afora diversas formas de protes-to e resistência, em sua maioria, reprimidos com violência. Os campi e cidades universitárias tornaram-se lugares de novos modos de reflexão, expressão e práticas políticas. Em países da Europa Ocidental, como a França, foram radi-calmente questionadas as estruturas centenárias e obsoletas da universidade, incapazes de corresponder às expectativas dos jovens. Em alguns deles, como na própria França e na Itália, o movimento estudantil chegou a impulsionar o movimento operário, tendo sido construídas algumas alianças esporádicas entre esses dois setores. Nos Estados Unidos, os movimentos estudantis assu-miram formas de resistência às guerras imperialistas, como a do Vietnã, e de apoio às lutas pelos direitos civis dos negros, das mulheres e dos homossexuais.

No Brasil, as lutas travadas na universidade pautaram-se, sobretudo, pelo ideário do desenvolvimento nacional autônomo e das reformas sociais e, a par-tir de 1964, representaram o mais importante foco de resistência à ditadura mi-litar instalada no país. Uma parte significativa da população estudantil iden-tificou-se com os projetos de transformação defendidos por organizações da esquerda socialista e comunista ou pelos católicos de esquerda, mobilizando-se em torno das propostas da reforma universitária e de outras reformas estrutu-rais, mormente a reforma agrária e o movimento pela erradicação do analfabe-tismo. Ainda que as expressões artísticas, políticas e culturais das vanguardas europeias e norte-americanas também encontrassem eco na vida universitária brasileira, foram mais valorizadas as manifestações da cultura nacional-po-pular que, desde os anos 50, eram temas centrais do Cinema Novo, do teatro politicamente engajado e da música popular brasileira, em franca expansão. A partir de meados dos anos 60, alguns setores do movimento estudantil se radicalizaram aderindo à luta armada contra a ditadura militar, no que foram respondidos por brutal repressão policial e militar.

Não é preciso dizer que, dos finais dos anos 60 a meados da década seguin-te, tais movimentos, no Brasil e no exterior, já haviam sido duramente penali-zados ou mesmo dizimados, marcando o ocaso das rebeliões dos jovens e o fim de uma era universitária.

Nesse contexto, as universidades, o movimento estudantil e a rebelião dos jovens tornaram-se objeto de reflexão intelectual de pensadores vindos de dife-

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rentes linhas e tradições teóricas, tais como Herbert Marcuse, Hannah Arendt5, Guy Debord, Cornelius Castoriadis, Michel Foucault e até mesmo Jean-Paul Sartre, filósofo já então consagrado como o mais importante pensador engaja-do nas causas revolucionárias. O maoísmo e o guevarismo também ganharam a simpatia de muitos desses movimentos, sem falar das ideias contraculturais que se expandiram com força notadamente nos Estados Unidos6.

No caso brasileiro, o pensamento de Sartre, muito mais do que os outros au-tores citados, teve grande repercussão na universidade, assim como o maoísmo, o guevarismo e as obras dos teóricos marxistas, tanto os clássicos – Marx, Lenin, Trotsky, Gramsci – quanto os pensadores marxistas estruturalistas Althusser e Poulantzas. Os pensadores e líderes da contracultura, entretanto, somente al-cançariam alguma influência, entre nós, mais tarde, à altura da década de 1970.

Desde a década de 1930, intelectuais brasileiros como Anísio Teixeira, Fer-nando de Azevedo e Lourenço Filho, entre outros, fundaram o movimento da Escola Nova que colocou em debate a necessidade da reforma da educação nacional nos níveis fundamental e médio. O movimento tinha como meta a construção de um sistema estatal de ensino público, laico, livre e aberto – o único meio efetivo de combate às desigualdades sociais da nação. Suas propos-tas tiveram desdobramento a partir dos anos 50 nas obras e na atuação política de pensadores como Darcy Ribeiro, Álvaro Vieira Pinto, Florestan Fernandes e Emília Viotti da Costa – para citar apenas alguns dos mais importantes intelec-tuais que então se envolveram na luta pela reforma universitária. Essa questão passou a ser considerada prioritária para o desenvolvimento nacional autôno-mo no governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960) e, sobretudo, no de João Goulart (1961-1964), quando integrou a pauta das Reformas de Base, combati-das pelas forças conservadoras e que levariam à queda de Goulart. Nesses anos, o debate sobre a reforma universitária teria grande ressonância não só entre intelectuais progressistas como também entre os estudantes.

Não era para menos, uma vez que a universidade brasileira surgiu tardia-mente e desvinculada de projetos nacionais consistentes: no período monár-

5 A propósito desses dois autores, consultar VALLE, Maria Ribeiro. A violência revolu-cionária em Hannah Arendt e Herbert Marcuse. São Paulo: Editora da Unesp, 2006.

6 A respeito do assunto, consultar ROSZAK, Theodore. A Contracultura. 2. ed. Rio de Janei-ro: Vozes, 1972.

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quico (1808-1989), a Coroa implantou algumas escolas superiores autônomas para a formação de profissionais liberais, especialmente nos campos da medi-cina, do direito e da engenharia; e na Primeira República (1889-1930), o siste-ma foi descentralizado, o que possibilitou o surgimento de algumas faculdades públicas e privadas – estas geralmente confessionais – nos estados economica-mente mais dinâmicos. Somente depois de 1930 é que foram criadas as primei-ras universidades públicas no país: A Universidade Nacional do Rio de Janeiro, a efêmera Universidade do Distrito Federal – ambas pelo governo federal – e a Universidade de São Paulo, implantada pelo governo estadual.

Nos anos 50 e 60 ampliou-se o número de faculdades estaduais ou munici-pais, como, por exemplo, os já referidos Institutos Isolados do Ensino Superior do Estado de São Paulo. Nos primeiros anos da década de 1960, sob o governo Goulart, e como parte das tentativas de remodelação das estruturas universitárias nacionais, foi criada a Universidade de Brasília, projetada por Darcy Ribeiro, que seria seu primeiro reitor. Concebida de maneira inovadora, integrada e voltada para o desenvolvimento científico e tecnológico nacional, a UnB foi uma das pri-meiras a sofrer um processo de desmontagem desde o golpe civil-militar de 19647.

À altura da década de 1960, os principais diagnósticos dos educadores in-dicavam a incapacidade do sistema em absorver as novas gerações de estudan-tes saídos do ensino médio, bem como o arcaísmo, os modelos copiados do exterior e a fragmentação das estruturas universitárias existentes. Em seu livro A universidade necessária, escrito no período do exílio e publicado em 1969, Darcy Ribeiro sintetiza com rara lucidez os dilemas da universidade brasileira e latino-americana nos tempos da Guerra Fria, bem como a submissão das eli-tes políticas e intelectuais do continente ao Império norte-americano:

Nas nações historicamente atrasadas, os sintomas desta crise conjuntural, surgem como efeitos reflexos, entre os quais so-bressai o de desafiar suas universidades – que fracassaram na tarefa de absorver, aplicar e difundir o saber humano atingido nas últimas décadas – a realizar a missão quase impraticável de auto-superar suas deficiências para dominar um saber novo que se amplia cada vez mais, ou ver aumentar progressivamente sua

7 Consultar RIBEIRO, Darcy. UnB: invenção e descaminho. Rio de Janeiro: Avenir Editora, 1978.

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defasagem histórica em relação às nações adiantadas. [...] A polí-tica de desenvolvimento autônomo exige [...] o máximo de lucidez e intencionalidade, tanto em relação à sociedade nacional como em relação à universidade. E só pode ser executada através de um diagnóstico cuidadoso de seus problemas, uma planificação ri-gorosa de seu crescimento e uma escolha estratégica de objetivos necessariamente opostos aos de uma modernização reflexa. [...] A política autonomista aspira a transfigurar a universidade como um passo em direção à transformação da própria sociedade, a fim de lhe permitir, dentro de prazos possíveis, evoluir da condição de um ‘proletário externo’ destinado a atender as condições de vida e de prosperidade de outras nações, à condição de um povo para si, dono do comando de seu destino e disposto a integrar-se na civilização emergente como uma nação autônoma”8.

Tal diagnóstico resultara da experiência do autor no exílio como convi-dado por diversos governos para analisar e propor reformas universitárias em países como o Uruguai, Costa Rica, Venezuela, Peru e Argélia. Nessa época, contudo, um a um, os países da América Latina seguiriam o mesmo destino do Brasil, com seus governos populares derrubados pelo imperialismo norte-ame-ricano em aliança com os setores nacionais retrógrados e ultradireitistas. Essa escalada não se deu pacificamente, ao contrário, encontrou forte resistência de setores nacionalistas e socialistas, particularmente nos movimentos estudan-tis. Ao longo dos anos 60 e meados de 70, as universidades foram os principais bastiões de luta contra os regimes ditatoriais.

O movimento estudantil brasileiro organizou-se a partir da década de 1930, com significativa presença no interior das faculdades e das entidades estudantis – como as casas de estudantes, centros e diretórios acadêmicos –, desaguan-do na fundação da UNE em 1937/1938, durante o Estado Novo, com apoio de Getúlio Vargas. Desde então, participou ativamente da mobilização da opinião pública na luta contra o nazi-fascismo e da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial para combater aqueles regimes. Apesar disso, as relações com Getú-lio nem sempre foram consensuais, sobretudo nos anos finais do Estado Novo,

8 RIBEIRO, Darcy. A universidade necessária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969, p. 8-10.

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quando vários setores estudantis passaram a defender a redemocratização do país. Nessa época, os comunistas perderam a hegemonia no movimento, que passou também a ser disputado por estudantes ligados às vertentes liberais capi-taneadas pela UDN, e por simpatizantes do socialismo democrático9.

Malgrado as acirradas disputas políticas no interior da UNE, no decorrer dos decênios de 1940 e 1950, a militância estudantil exerceu grande protago-nismo político, ampliado ainda mais pelo surgimento de entidades estudantis secundaristas por todo o país. A época foi marcada por numerosas manifesta-ções – greves, passeatas, comícios, quebra-quebras – que reivindicavam tanto a melhoria das condições de vida dos alunos – como a diminuição dos preços das passagens de bonde e outras pautas de natureza econômica e assistencial –, quanto questões diretamente políticas, como a democracia interna nas escolas, as reformas curriculares e a maior presença dos estudantes na vida pública. Em fins dos anos 40, sob a direção das tendências comunistas, a UNE liderou campanhas nacionais contra a alta do custo de vida, pela indústria siderúrgica nacional e pelo monopólio estatal do petróleo.

A mobilização estudantil cresceu ainda mais a partir do final dos anos 50, numa conjuntura ideológica e político-partidária cada vez mais tensionada. Com a vitória dos setores de esquerda – comunistas e católicos progressistas – na direção da entidade, ganhou corpo o discurso anti-imperialista e favorável a reformas estruturais do país. Em contrapartida, disseminou-se também o discurso anticomunista no movimento estudantil, alinhado à UDN e apoiado por entidades empresariais.

Na época também foram fundados alguns institutos formados por intelec-tuais, empresários e representantes da sociedade civil, cujas teses polarizavam os debates e repercutiam fortemente no meio estudantil. O Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB, criado em 1955 e vinculado ao MEC, aglutinou os intelectuais progressistas – comunistas e nacionalistas –, defensores do desen-volvimento nacional autônomo e das reformas estruturais do país. No campo liberal e conservador surgiram o Instituto Brasileiro de Ação Democrática – IBAD (1959) e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais – IPÊS (1961), financia-

9 Um panorama amplo e bem documentado das disputas políticas no interior da UNE até a derrubada do governo Jango é exposto no livro recentemente publicado de MATTOS, André L. R. Uma história da UNE (1945-1964). Campinas, SP: Pontes Editora, 2014.

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dos por agências e fundações norte-americanas, que pregavam o alinhamento e a subordinação do Brasil às políticas norte-americanas. Além destes, a Escola Superior de Guerra já funcionava desde 1949, expressando o anticomunismo da Guerra Fria que se disseminava a partir dos Estados Unidos10.

A UNE teria presença marcante na campanha pela posse de João Goulart, em 1961 e, durante seu governo, desenvolveu nacionalmente ações pela Reforma Universitária, pensada nos termos de uma universidade popular, democrática e nacional. Em alguns estados, os estudantes apoiaram as Ligas Camponesas em sua luta contra o latifúndio e também participaram dos movimentos de alfabe-tização de adultos e educação popular, orientados pelo método de Paulo Freire. Além disso, a UNE organizou uma greve nacional reivindicando participação paritária nos colegiados das faculdades, o que despertou forte reação da hie-rarquia universitária. A mobilização estudantil foi ainda muito expressiva no campo cultural, com a criação do Centro Popular de Cultura e a UNE Volante, que percorreram o país em caravanas de teatro, literatura, música e artes11.

Entretanto, como observa Rodrigo Patto Sá Motta em seu recente livro:

[...] entre os professores universitários a situação não era a mes-ma, e as ideias de esquerda não encontravam tanta receptivi-dade. Nos meios acadêmicos eram fortes os laços com valores conservadores, em alguns casos até com a extrema direita. Em geral as faculdades de direito e medicina eram baluartes con-servadores, apesar de certas exceções, e, de maneira geral, o corpo docente pendia politicamente para o centro12.

Desfechado o golpe civil-militar de 1964, o ambiente universitário foi se-riamente abalado. Faculdades seriam invadidas pelos agentes da repressão, a

10 Sobre o assunto, consultar TOLEDO, Caio N. ISEB fábrica de ideologias. Campinas, SP: Unicamp. 1997, e DREIFUSS, René A. 1964: a conquista do Estado. 6. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2006.

11 De uma vasta bibliografia, consultar BERLINCK, Manoel T. O Centro Popular de Cultura da UNE. São Paulo: Papirus, 1984.

12 MOTTA, Rodrigo P. S. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 25.

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perseguição aos estudantes ocorreria de maneira implacável com a participa-ção paramilitar de militantes do CCC – Comando de Caça aos Comunistas, tendo sido incendiada e depredada a sede da UNE, no Rio de Janeiro, e sua direção posta na ilegalidade.

Inicia-se a Operação Limpeza das universidades – expressão traduzida da Operation Clean-up que revela a participação direta dos organismos da inteli-gência militar dos EUA em parceria com os militares brasileiros na repressão. A operação, que ganhou ares de um verdadeiro terrorismo cultural, desencadeou uma onda de prisões de cientistas e intelectuais de esquerda, intervenção nas reitorias de várias instituições (UFPB, URGS, URRJ, UFES, UFG, entre outras), invasão de editoras e expurgos de livros considerados subversivos. As ações re-pressivas mais intensas atingiram inicialmente a Faculdade Nacional de Filoso-fia, no Rio de Janeiro, o Instituto Tecnológico da Aeronáutica, algumas unida-des da USP, e, sobretudo a UnB, cujo câmpus foi transformado num verdadeiro cenário de guerra. Dos Institutos Isolados de Ensino Superior do Estado de São Paulo, a Faculdade de Filosofia de São José do Rio Preto foi a mais afetada13. Das áreas mais prejudicadas pelos expurgos, além das Ciências Humanas, destacou-se a Física, fato que revela as estratégias imperiais norte-americanas, contrárias ao desenvolvimento científico autônomo brasileiro, respaldadas pelo silêncio omisso, ou mesmo pela franca adesão dos acadêmicos conservadores locais.

É preciso dizer, portanto, que “houve grande apoio à derrubada de Goulart entre professores e intelectuais, que, afinal, eram membros dos grupos sociais atemorizados pelos riscos de ‘comunização’, e que se aproveitaram da situação para garantir seus interesses e espaços de poder na hierarquia universitária”14.

13 O assunto será melhor analisado nos capítulos seguintes deste livro.

14 Uma boa síntese da escalada repressiva logo após o Golpe de 64, com documentação inédita pesquisada nos Estados Unidos, é dada por Motta, Rodrigo P. S. (op. cit., p. 23-64). O autor relata a perseguição a vários cientistas, como os físicos Mário Schenberg, José Leite Lopes e Plínio Sussekind, além de educadores e intelectuais como Perseu Abramo, José Albertino Rodrigues, Paulo Freire, Luiz Costa Lima, entre muitos outros. Em contraponto, não foram poucas as manifestações de solidariedade ao golpe e às intervenções na universidade por parte de professores universitários que passariam a servir de esteio ao novo regime, como Eremildo Viana, Djacir Menezes, Zeferino Vaz, Roque Spencer Maciel de Barros, Luiz An-

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O novo capítulo da repressão e da resistência nas universidades brasileiras iria se desenrolar até 1968, ou ainda estendendo-se a 1973, período turbulento em que o novo regime tentou, com enormes titubeios, viabilizar seu projeto de modernização conservadora do país, que incluía também a modificação da estrutura do ensino superior conforme um modelo tecnocrático norte-ame-ricano. Na primeira fase do regime, durante o governo de Castello Branco e início da administração de Costa e Silva, a orientação federal oscilou “entre assumir-se claramente como ditadura e respeitar alguns preceitos das institui-ções liberais”15. Tal oscilação perdurou até dezembro de 1968, quando a edição do AI-5 mostrou de modo incontornável sua face ditatorial.

Mas, apesar do controle imposto pelo MEC nos primeiros anos dos gover-nos militares, a UNE e as UEEs continuaram a atuar na clandestinidade, mobi-lizando-se pela abertura de mais vagas nas universidades a fim de solucionar o problema dos excedentes (candidatos aprovados nos vestibulares, para os quais não havia vagas suficientes, especialmente nos cursos mais procurados, como medicina e direito) e contra o projeto de reforma universitária da ditadura, for-mulado pelo convênio MEC-USAID16. De 1965 a 1968, as passeatas e os protes-tos estudantis retomaram as ruas, ganhando contornos explosivos nesse último ano, a par do levante internacional da juventude, como já foi dito. Essa época foi marcada, ademais, por grande efervescência cultural e pelo engajamento políti-co dos artistas do teatro, do cinema e da música popular, sobretudo, que anga-riaram crescente apoio dos setores médios urbanos, cada vez mais descontentes com os rumos do novo regime. A música de protesto tornou-se a expressão mais eloquente da contrariedade desses setores em relação aos governos militares17.

tônio Gama e Silva, Alfredo Buzaid, Esther Ferraz, Gilberto Freyre e Manuel Nunes Dias, muitos dos quais ocupariam altos cargos de direção na estrutura universitária desde então.

15 Motta, Rodrigo P. S., op. cit., p. 27.

16 Acordos negociados secretamente e vindos a público em novembro de 1966 após intensa pressão política e popular, estabelecidos entre o MEC a United States Agency for In-ternational Development  (USAID) para reformar o ensino brasileiro de acordo com padrões importados dos EUA.

17 De uma profusa bibliografia sobre o tema, ver: HOLLANDA, Heloisa B. de; GONÇALVES, Marcos A. Cultura e participação nos anos 60. São Paulo: Brasiliense, 2. ed. 1982; MELLO, Zuza H. de. A era dos festivais: uma parábola. Rio de Janeiro: Editora 34, 2003; e RIDENTI,

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A morte do estudante do estudante Edson Luís de Lima Souto, em março de 1968, durante uma manifestação contra o fechamento do restaurante universi-tário Calabouço, no Rio de Janeiro, comoveu os estudantes nacionalmente e boa parte da opinião pública, desencadeando uma nova onda de mobilização. Desde então, sucessivas passeatas e protestos alastraram-se pelas principais capitais do país, chegando mesmo a ameaçar a estabilidade do governo Costa e Silva, de resto já debilitado, além disso, por disputas internas pelo poder no aparelho mi-litar. Em outubro do mesmo ano, o cerco ao XXX Congresso da UNE, realizado clandestinamente em Ibiúna (SP), levaria a uma nova vaga de prisões que tiraria de circulação as principais lideranças do movimento estudantil, entre eles José Dirceu, Vladimir Palmeira, Franklin Martins e Jean Marc van der Weid.

Com o cerceamento das liberdades imposto pelo AI-5, já referido, e pelo decreto 477, de fevereiro de 1969, o ambiente universitário se tornou irrespirá-vel. Além dos novos expurgos de professores e alunos, as universidades passa-ram a ser diuturnamente vigiadas por espiões das agências de informações do regime (SNI, DSI e ASI), ao mesmo tempo em que a censura se abateu sobre a imprensa, dificultando a denúncia dos atos arbitrários dos governos. De 1970 a 1973, sob o governo do general Médici, a ainda no governo Geisel, no qua-driênio seguinte, o aparato repressivo se fortaleceu levando ao encarceramento e ao assassinato de diversos militantes comunistas, muitos deles provenientes dos movimentos estudantis.

Criaram-se assim as condições para a implantação definitiva da reforma uni-versitária da ditadura, concebida de maneira tecnocrática e em grande parte fiel aos planos estabelecidos pelos acordos MEC-USAID. A nova legislação, colocada em prática mediante sucessivos decretos, orientou-se pela ideia de racionalização dos recursos públicos e pela centralização das decisões no MEC, que passou a ser gerido por técnicos e empresários leais ao regime ditatorial. Objetivava-se, fun-damentalmente, transformar a universidade em formadora de recursos huma-nos para a modernização do país conforme os preceitos capitalistas do Império.

Para isso, o sistema de ingresso dos estudantes nas universidades foi uni-ficado sob o modelo do vestibular classificatório, pondo fim ao problema dos excedentes. A partir de então, ampliaram-se as vagas para os cursos superiores

Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas brasileiros, do CPC à era da TV. São Paulo: Editora Unesp, 2014.

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com a abertura de um grande número de universidades federais e outras esta-duais – muitas das quais criadas para atender à clientela política dos governos -, sem falar do setor educacional privado que cresceria desmedidamente nas décadas seguintes. No ensino fundamental e médio foram implantadas as dis-ciplinas de Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política do Brasil, assim como a disciplina de Estudos dos Problemas Brasileiros nos cursos su-periores, que funcionariam como formas de propaganda do regime e de com-bate ao pensamento da esquerda. A criação das licenciaturas curtas foi outra medida destinada a formar recursos humanos em ampla escala para o ensino fundamental e médio. A expansão do sistema universitário serviu para minar o descontentamento de amplas parcelas das classes médias, o que contribuiu ain-da mais para a derrocada do movimento estudantil, que só retornaria à cena, com novas lutas e novos impasses no final dos anos 70.

A reforma universitária extinguiu as cátedras e implantou o sistema de de-partamentos, conforme o modelo das universidades norte-americanas, crian-do também uma nova carreira docente, que, em muitos aspectos, correspondeu aos antigos pleitos dos professores universitários, neutralizando posturas opo-sicionistas. Tais medidas foram fartamente divulgadas na imprensa juntamen-te com a intensa propaganda dos sucessos dos governos militares à época do chamado Milagre Brasileiro18.

Desde a década de 1970, os novos planos federais incluíram também o estímu-lo à pós-graduação, financiada por agências de fomento e fundações privadas nor-te-americanas, que cresceria exponencialmente nos decênios subsequentes, igual-mente de modo centralizado, passando a moldar a universidade dos nossos dias19.

A Unesp, criada em 1976, e da qual trata este livro, entre várias outras instituições, foi uma das criações da ditadura, como se poderá depreender da leitura dos próximos capítulos. Da sua criação aos anos oitenta, não foram pou-

18 Um quadro expressivo dessa conjuntura é dado por ALMEIDA, Maria H. T. NOVAIS. “Carro--zero e pau-de-arara: O cotidiano da oposição de classe média ao regime militar”. In. Novaes, Fernando e SCHWARZ, Lilian. A história da vida privada no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, Vol.4.

19 Motta, Rodrigo P. S., op. Cit., especialmente o capítulo 6 – “Os resultados das reformas”, p. 242-287.

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cos nem irrelevantes os esforços dos movimentos universitários no sentido de democratizá-la, mas esses objetivos foram apenas parcialmente alcançados.

Nascia então a assim chamada universidade operacional, tão bem caracte-rizada por Marilena Chauí20, modelo que se alargaria nacionalmente nas déca-das de 1980 e 1990, época de apogeu do neoliberalismo. Esse modelo de univer-sidade, apesar de já esgotado, ainda vige e nos vigia no presente.

Antonio Celso Ferreira

É professor titular de História do Brasil pela Unesp, câmpus de Assis. Mestre e Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Coordenou do Centro de Documentação e Memória da Unesp – CEDEM –, de 2011 a 2014. É autor dos livros “Um eldorado errante: São Paulo na ficção histórica de Oswald de Andrade” e “A epopeia bandeirante: letrados, instituições e invenção histórica (1870-1940)”, ambos pela Editora Unesp, além de outros livros, capítulos de livros e artigos em revistas especializadas.

20 Chauí, Marilena. Escritos sobre a universidade. São Paulo: Editora Unesp, 2001.

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INSTITUTOS ISOLADOS, UNESP E A DITADURA

Anna Maria Martinez Corrêa

A Universidade Estadual Paulista (Unesp) foi criada em 1976, em pleno re-gime militar, ficando sensivelmente marcada pelas condições de sua ori-

gem. Ela resultou da aglutinação de escolas isoladas, os chamados Institutos Isolados de Ensino Superior do Estado de São Paulo, criados em fins da década de 1950 e inícios de 1960. No Centro de Documentação e Memória da Unesp (CEDEM), tivemos a oportunidade de realizar pesquisas sobre a criação des-sas escolas isoladas e sobre sua posterior integração numa universidade. Esses estudos possibilitaram a formação de um acervo que compõe hoje o projeto Memória da Universidade. Esse acervo guarda parte considerável dos registros que marcam a trajetória histórica da Unesp. A coleta e o arranjo desse material contaram, além do apoio institucional, com a colaboração da Fapesp.

Todos os dados referentes a essas pesquisas encontram-se disponíveis no acervo do Cedem sob a rubrica – Memória da Universidade. Este relato que me proponho a desenvolver está fundamentado em dados coletados nesse acervo.

Os Institutos Isolados de Ensino Superior Público do Estado de São Paulo resultaram da política desenvolvida pelo governo do Estado de São Paulo con-forme a proposta contida na Constituição Paulista de 1947 de desenvolvimento do ensino superior público no Estado de São Paulo. Estava aí implícita a neces-sidade de expansão do ensino superior, com a criação de escolas no interior do Estado com a visão clara de expansão da cultura no sentido do interior. Após a atenção que havia sido dada à criação do ensino secundário, com a criação

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de ginásios estaduais, logo ficou revelada a carência de pessoal docente para a implementação daquelas escolas. Ainda que o número de escolas secundárias não fosse suficiente, um primeiro passo havia sido dado e era necessário im-plementar essas escolas com profissionais competentes. Daí a preocupação de ampliar a criação de faculdades visando à formação de profissionais aptos para essa finalidade. Ao mesmo tempo houve o cuidado para a formação superior de profissionais especializados como engenheiros, farmacêuticos, dentistas, médi-cos, etc. Imediatamente começaram a surgir reivindicações de várias cidades do interior, quando todas elas queriam uma escola superior para atender a grande expectativa de seus jovens. Essa busca tornou-se uma verdadeira competição por parte dos políticos locais que começaram a ver na criação de faculdades uma grande oportunidade de ganhos eleitorais. Nem todos puderam ver seus pedidos atendidos e é difícil perceber quais foram os critérios utilizados para a escolha das cidades contempladas com a criação de uma faculdade. O fato é que, no espaço de tempo de 1957 a 1963 foram criadas as faculdades que vieram com-por os Institutos Isolados que se distribuíram pelo interior do Estado. Além das novas faculdades criadas, tratou-se igualmente da incorporação de duas escolas ao patrimônio público, a Faculdade de Farmácia e Odontologia de Araraquara e a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Preto.

Entre essas escolas foram criadas seis faculdades de filosofia tendo como um dos objetivos a formação de pessoal docente para as escolas secundárias. Essas escolas estiveram em seus momentos iniciais sob a custódia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Em fins de janeiro de 1958, a Congregação dessa Faculdade nomeou uma comissão encarregada de propor ao governador do Estado uma relação de nomes de futuros diretores das recém criadas faculdades. Deveriam ser titulados da própria USP que iriam compor o quadro de docentes. O corpo administrativo seria organizado a partir das possibilidades locais. O corpo discente ficava sujeito a uma seleção realizada em exames vestibulares. Em algumas faculdades adotou-se o recurso da reali-zação de uma ação prévia mediante o funcionamento de cursos preparatórios. Em tempos de dificuldades de circulação da informação seria uma forma de di-vulgar a abertura daquelas faculdades. Quanto aos locais escolhidos para o fun-cionamento dessas escolas foram principalmente edifícios públicos, conforme as disponibilidades locais. Da mesma forma, procurou-se imediatamente criar uma infraestrutura mínima para tornar possível seu funcionamento. Para essas

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atividades preparatórias houve um grande apelo à comunidade local, que estava recebendo do governo do Estado um bem que merecia cuidados especiais. Tal-vez venha daí um sentimento de posse que acabou dominando entre os morado-res das cidades contempladas, a ponto de, em algumas situações, permitir certas ingerências na vida dessas instituições, ingerências que, tendo em vista a visão muitas vezes conservadora dessa sociedade local vieram a agravar as imposições do regime autoritário que passou a vigorar a partir de 1964.

Essas faculdades, assim criadas tiveram da parte do governo do Estado, no momento de sua instalação, ampla liberdade de escolha de seu próprio caminho dependendo, no entanto, da atuação de seus diretores, responsáveis pelos pro-jetos pedagógicos e pelas opções curriculares. Embora centralizadas por uma administração única, sob os cuidados da Secretaria da Educação, essas escolas criaram sua própria personalidade conforme as relações com a comunidade que as acolhia. Desde então, a comunidade local passou a ver nessas escolas um patrimônio próprio havendo razões para uma relação cordial e amistosa. No entanto, essa acolhida nem sempre se fez de modo amigável. Havia uma velada esperança de uma troca de favores. O patrimônio adquirido pela comunidade local deveria ser gerido por ela ou estar de acordo com as suas perspectivas. Criou-se a expectativa de preenchimento de cargos públicos. No entanto, na composição do quadro docente, que era da responsabilidade do diretor no-meado, não estava prevista a contratação de profissionais locais. Os primeiros professores que vieram compor os quadros docentes eram procedentes, na sua maior parte, da Universidade de São Paulo, geralmente recém-formados que poderiam realizar sua carreira acadêmica nas novas instituições. Houve tam-bém em muitas unidades a colaboração de professores titulados que aceitaram o desafio de participar do projeto de expansão cultural do interior do Estado. Lembramos os casos da Faculdade de Assis e da Faculdade de Medicina de Bo-tucatu. Essas duas faculdades resultaram de trabalho meticuloso, de estudos de especificidades de suas áreas, embora em datas diferentes. Nos dois casos hou-ve a preocupação de reunir profissionais dispostos a realizar o desafio de uma proposta singular. Isso não quer dizer, no entanto, que nas outras faculdades criadas nesse momento também não houvesse preocupação semelhante. Assim foi com Rio Preto, Rio Claro, Marília, Araraquara, Presidente Prudente, unida-des que desde o início puderam contar com especialistas visando a formação de

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cursos de qualidade. A Faculdade de Medicina também foi produto de estudos prolongados resultando daí uma nova concepção de ensino da Medicina.

Havia uma ideia generalizada, em relação às faculdades de Filosofia, em torno de um modelo que era a USP, principalmente de sua Faculdade de Filo-sofia, criada em 1934, voltada, naquela ocasião, para a formação de uma elite intelectual apoiada na colaboração de profissionais estrangeiros. Esse modelo, no entanto, talvez não estivesse mais na expectativa dos agentes responsáveis pelas novas instituições. Os tempos eram outros, os objetivos diferentes e os futuros estudantes talvez tivessem outras expectativas.

Para compor o quadro docente, o governador nomeava o diretor, geralmen-te profissional titulado pela Universidade de São Paulo que ficava em carregado de indicar os integrantes das disciplinas indicados nos currículos. Esses profes-sores em sua maioria jovens imbuídos dos acontecimentos do momento, de fins dos anos 50 e começo dos 60, principalmente da área de Humanidades estavam atentos às grandes reivindicações do momento, recém saídos de períodos mais duros da guerra e da ditadura varguista viam-se abertos às reivindicações de-mocráticas de um mundo mais aberto a novas reivindicações sociais. Talvez não estivesse em sua expectativa repetir o modelo da USP mas a possibilidade de criar algo novo poderia ser atraente e, ao mesmo tempo, um grande desafio.

Essa forma de pensar que nem sempre encontrava eco nas comunidades mais conservadoras do interior. Se para os novos docentes estava aberta a pos-sibilidade de inovação, por outro lado, seria preciso ter havido um cuidado maior, em conhecer o terreno sobre o qual iriam estender suas criações. Em algumas dessas cidades, desde algum tempo já havia uma tradição cultural estabelecida que pode ser identificada, por exemplo, no funcionamento de es-colas confessionais de conhecida reputação no interior do Estado, a ação da Igreja Católica ciente de seus cuidados sobre questões morais. Mas, acima de tudo, seria preciso reconhecer a ação de uma elite intelectual, ciosa de sua au-toridade, assumindo sua ação de liderança sobre a organização dessas escolas adotando uma postura de autoridade sobre elas.

Os estudantes ingressantes, muitas vezes procedentes de outras cidades, distantes da tutela familiar passaram a encontrar nessa nova vivência uma pos-sibilidade de ampliação de seu horizonte de vida. Daí a constatação de um pri-meiro distanciamento entre as comunidades locais, ainda muito conservadoras e uma aproximação entre estudantes e docentes ambos interessados num con-

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vívio mais aberto em busca de ideais mais democráticos. Era a época em que se discutiam as propostas de reformas de base do governo federal, com o apelo à tomada de consciência da situação existente no país, premido pelo alto índice de analfabetismo, pela situação de subdesenvolvimento, levando os jovens a olharem a si próprios, seu ambiente de vida, seus problemas mais próximos. Os acontecimentos internacionais obrigavam a uma reflexão maior a respeito do momento vivido no país. Para a comunidade local, especialmente para uma certa “elite” culta local, a escola passou a adquirir o aspecto de uma entidade revolucionária provocando inquietações e aquilo que era considerado um pa-trimônio seu, começava a ser visto com uma certa desconfiança.

Aliada a essa situação, apesar de ser responsável pela composição dos pri-meiros corpos docentes, a Universidade de São Paulo não chegou a dispensar o merecido crédito a essas escolas. A seu ver, a expansão do ensino superior pelo interior do estado de São Paulo poderia comprometer a qualidade do que era considerada o seu mais precioso bem – a formação da intelectualidade paulista. Os principais locais de discussão onde a USP demonstrava sua opinião eram nos órgãos administrativos da Universidade, nas Congregações e no Conselho Universitário e em outros órgãos, como no Conselho Estadual de Educação cujos integrantes eram frequentemente docentes titulados da Universidade de São Paulo. Com a criação do Conselho Estadual de Educação, em 1963, os Ins-titutos Isolados que estavam sob a tutela da Secretaria da Educação, tiveram no CEE um órgão gerenciador responsável pelas contratações e escolha do pessoal docente daquelas escolas. A composição do quadro docente dos Institutos pre-cisava de uma aprovação dessas entidades, o que nem sempre ocorria de modo tranquilo. Além disso, o jornal O Estado de São Paulo, espécie de porta voz des-sa maneira de pensar, deu total apoio às críticas feitas aos Institutos Isolados. Logo às primeiras notícias do projeto de criação dessas faculdades, o jornal anunciou sua fúria. No editorial de 20 de junho de 1957, Alteração que se impõe – chama esse acontecimento de “medida descabida e insensata”. Ainda, em seu editorial de 7 de abril de 1960 – Abusos têm de acabar, agride de forma violenta a qualidade dessas escolas. Sem permitir um tempo de implantação e de ama-durecimento, para escolas recém criadas, o jornal atacava indiferentemente es-colas públicas e privadas. O principal argumento, a par da crítica à qualidade do trabalho desenvolvido, era a questão orçamentária. A criação dos Institutos Isolados vinha absorver verbas que deveriam estar alocadas na Universidade

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de São Paulo, ainda com muitas carências em sua organização. O editorial, ex-tremamente ofensivo, foi respondido por docentes de Presidente Prudente, de Araraquara e pela Câmara Municipal de Rio Claro numa demonstração de que se iniciava uma forma de resistência às imposições de um modelo conservador.

Apesar dessas críticas, os Institutos Isolados assumiram e levaram adiante sua tarefa de promover a expansão do ensino superior público pelo interior do Estado contribuindo, ainda, de maneira eficaz para melhores condições de vida cultural nos espaços a seu alcance. Assim, foram responsáveis pela criação em diversos pontos do Estado, de clubes de cinema proporcionando à socieda-de local não só a exibição de filmes de qualidade como também uma série de discussões a respeito dessa arte. Em Assis, por exemplo, o professor e cineasta Jean-Claude Bernadet ministrou durante algum tempo, um curso sobre cine-ma e a teatróloga Haydée Bittencourt, um curso de teatro. Em São José do Rio Preto, houve a formação de um grupo de teatro, o GRUTA, nos moldes dos Centros Populares de Cultura mantendo uma ligação com o Teatro de Arena de São Paulo. Ainda em Assis, em 1961, o II Congresso de Crítica e História Literária reuniu especialistas de todo o país contando ainda com a presença de profissionais do exterior. Em Marília, em outubro de 1961, o diretor da unidade, professor Eurípedes Simões de Paula reuniu professores de História de várias universidades brasileiras para a formação de uma entidade para o desenvolvimento da pesquisa Histórica, a Associação Nacional de Professores Universitários de História a ANPUH. Ao mesmo tempo, o professor Eurípedes havia organizado em Marília uma das mais completas bibliotecas de História do país. Outras manifestações culturais ocorreram ainda em várias localida-des sob a orientação dos Institutos que se encarregaram de demonstrar suas atividades a conferencistas e pesquisadores. O procedimento que se tornou habitual, de convidar pesquisadores de renome para a abertura do ano letivo em suas aulas inaugurais ou para participação em formaturas, contribuiu em muito para divulgar a qualidade dessas escolas.

Por outro lado, muitas das ações dos Institutos tiveram repercussão in-ternacional, como a passagem por Araraquara dos filósofos Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir, em 1960, acompanhados por Jorge Amado. O evento chamou a atenção de intelectuais de várias partes do país, de estudantes e mi-litantes políticos que se fizeram presentes nas duas conferências proferidas por Sartre, uma delas na Faculdade de Filosofia de Araraquara e outra no Teatro

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Municipal da cidade. A conferência no Teatro Municipal havia gerado uma grande expectativa tanto no sentido de aguardar os relatos dos intelectuais franceses sobre sua recente passagem por Cuba e também sobre seus contatos com os integrantes do movimento das Ligas Camponesas do nordeste brasilei-ro. Havia um interesse especial da parte de docentes de Araraquara e de São José do Rio Preto que vinham estudando a movimentação das Ligas Campone-sas de Santa Fé do Sul tendo levado a questão à reunião com Sartre. Por outro lado, grupos mais conservadores liderados por um religioso local, também se manifestaram no sentido de contestar e reprimir a realização desses eventos.

Um acontecimento de grande importância para essas novas escolas foi a criação, em 1962 da FAPESP. A nova instituição vinha dar um alento aos jovens pesquisadores abrindo-se a possibilidade do desenvolvimento e da realização de suas pesquisas visando complementar sua carreira acadêmica. As novas fa-culdades precisavam de docentes titulados e pelas condições iniciais elas não estavam ainda em condições de formar seus próprios quadros. O recurso foi a busca de titulação fora, com muita frequência, no exterior. Nesse ponto a FAPESP representou uma grande ajuda quer na concessão de bolsas, de pro-mover facilidade de deslocamentos ou ainda pela ajuda na montagem de uma infraestrutura para o desenvolvimento da pesquisa.

Em razão da situação política vivida no momento coincidente com as origens dos Institutos Isolados, as críticas levantadas pelo O Estado de São Paulo eram agravadas pelas acusações de “comunização” divulgadas pelo próprio jornal, numa acusação aos docentes que vieram compor os quadros dessas escolas. Um exemplo disso foi a notícia publicada em janeiro de 1964 a propósito do vestibu-lar em Araraquara que para cujas provas teriam sido indicadas leituras de auto-res comunistas. As ações reacionárias que precederam o golpe de 1964 levaram muitos moradores de cidades que abrigavam os Institutos Isolados a manifesta-rem publicamente suas opções anticomunistas como a “Marcha da Família com Deus” que empolgou a muitos com a participação efetiva dos setores religiosos.

Nesse quadro geral, ocorreu o golpe de 31 de março de 1964 que trouxe uma série de restrições aos trabalhos dos Institutos com questionamentos a respeito das posições políticas de muitos de seus membros. Sob a alegação de “comunistas” docentes passaram a ser perseguidos, investigados e muitas vezes presos. Para essas prisões muito contribuiu a formulação de denúncias da pró-pria comunidade local que via com desconfianças o posicionamento de pro-

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fessores e de estudantes. Em algumas localidades, os delegados se dispuseram a não aceitar essas denúncias, a não ser que o autor da acusação registrasse a denúncia responsabilizando-se pela autenticidade daquela afirmação. Em ra-zão disso, muitos delatores desistiram das acusações.

As principais críticas eram endereçadas à realização de cursos sobre a rea-lidade brasileira, a adoção do programa de erradicação do analfabetismo pelo método Paulo Freire, a realização de palestras sobre reforma agrária, sobre o movimento das ligas camponesas ou simplesmente pela participação em reu-niões, consideradas por esses grupos como tendo caráter subversivo. Em fun-ção disso foram feitas prisões em Araçatuba, Assis, Marília, Araraquara, São José do Rio Preto, Rio Claro. A situação mais grave ocorreu em Rio Preto, onde houve uma verdadeira devassa, com prisões de professores e estudantes. Os profissionais tiveram seus mandatos cassados, demitidos ou tiveram de se abrigar em outras localidades.

Essa ação repressiva não se fez sem uma ação contrária, como resistência àquelas ações. A forma encontrada foi inicialmente o recurso à imprensa apesar da forte resistência encontrada principalmente pelas proposições jornal O Estado de São Paulo que com suas argumentações de defesa de um certo tipo de cultura, de elite, vinham fragilizar a ação dos Institutos. De início, o jornal se colocou francamente a favor do golpe, apoiando a “Marcha da Família com Deus” e iden-tificando essa ação com os ideais de 32. Ainda assim, alguns docentes e entidades locais, endereçaram cartas a vários jornais expondo a indignação provocada pela forma de tratamento desenvolvida pelo O Estado de São Paulo que vinha, de cer-ta forma, apoiar a política repressiva representada pelo golpe de 64.

Uma das primeiras manifestações de uma vontade política procedente dos Institutos ocorreu com o movimento dos estudantes da Faculdade de Medicina de Botucatu, realizando, em 1967, a chamada “Operação Andarilho” que veio a fazer coro com a já iniciada movimentação estudantil da capital. O movimento consistiu numa marcha pelo interior de São Paulo até a capital, com o objetivo de demonstrar a insatisfação dos estudantes. Pediam recursos para a implan-tação definitiva da Faculdade de Medicina e para que ela fosse equipada devi-damente; pediam a valorização do tempo integral e sua adoção definitiva nas escolas do interior e eram contra o “professor viajante” que, residente em São Paulo, passava poucos dias com seus estudantes. As críticas diziam respeito às dificuldades de aparelhamento da Faculdade, sua falta crônica de recursos, a

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necessidade de um local para a realização da etapa final do curso, a residência. Somando-se a isso havia ainda a questão dos excedentes, questão que estava alimentando protestos em São Paulo, em várias faculdades, aos quais vieram se somar os “andarilhos” de Botucatu. A forma escolhida foi a marcha pelo interior do Estado de São Paulo e que, da mesma maneira que as passeatas da capital, vinha dar visibilidade aos problemas dos estudantes do interior.

O movimento estudantil adquiriu uma expressão maior em fins de 1967 e 1968 sendo o principal tema a crítica ao processo de Reforma Universitária ao qual vieram se juntar as queixas dos estudantes pela falta de recursos, ou pela grande questão do momento, a dos excedentes. Não só as passeatas que marca-ram a presença do estudante e suas manifestações de protesto, mas também pe-los “Fóruns de Debate” que levaram para o interior das faculdades a motivação das passeatas. Em meados de 1968, o governador Abreu Sodré, visando tirar os estudantes das ruas determinou a realização dos Fóruns de Debate. A finali-dade era levar para dentro das faculdades os temas apresentados sob a forma de protestos nas ruas. Que professores e alunos discutissem seus problemas em assembleias e formulassem conclusões que seriam remetidas ao governo do Estado que procuraria assim obter soluções.

Em algumas unidades, por iniciativa de estudantes, houve o levantamento de questionamentos a respeito dos cursos, da metodologia utilizada, principal-mente da questão da reforma universitária, as interferências externas, enfati-zando-se a necessidade de uma maior politização e de uma vinculação maior com a realidade vivida naquele momento. De acordo com alguns observadores, essas discussões contribuíram para projetar lideranças que passaram a ser vi-giadas pelos órgãos controladores do poder. Em algumas unidades a realiza-ção dos fóruns foi bastante criativa resultando daí a elaboração de projetos para novos caminhos para a vida universitária. Principalmente nas unidades de Ciências Humanas esse foi o sentido dos fóruns. Na maior parte, porem, as discussões dos fóruns ocorreram no interior das congregações e tiveram um aspecto meramente burocrático sem qualquer outra repercussão.

Nas faculdades de Humanidades, esses fóruns contribuíram para uma maior aproximação entre os estudantes não só entre os Institutos mas também com outras universidades o que possibilitou uma maior socialização das ques-tões em discussão. Quanto aos docentes, essa aproximação possibilitou o início de uma ação mais concreta, cujos termos acabaram sendo expostos em A Carta

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de Araraquara, de agosto de 1968. Esse documento estabelecia os princípios fundamentais para uma ação comum entre os Institutos Isolados, lançando assim os fundamentos de uma forma de associação entre os docentes com os rudimentos de uma universidade democrática.

Quanto aos estudantes, a participação nos fóruns também proporcionou formas de associação que os preparou para uma atuação coletiva, que infeliz-mente terminou com o desmonte dessa atuação, por ocasião da queda do Con-gresso de Ibiúna. Ao todo foram 15 estudantes indiciados pela participação do Congresso de Ibiúna, procedentes dos Institutos de Araraquara, Assis, Botuca-tu, Franca, Guaratinguetá, Marília, Rio Claro, Rio Preto e Presidente Prudente.

Desde a sua criação, em 1963, o Conselho Estadual de Educação vinha se preocupando com os Institutos Isolados, sendo estudadas várias propostas para sua administração. Os integrantes do Conselho eram na sua maioria pro-cedentes da Universidade de São Paulo e nesse sentido em geral participavam da opinião crítica do Conselho Universitário e também do jornal O Estado de São Paulo. Entre as soluções apontadas constava a criação de uma universida-de, ou de uma federação de escolas, ou a criação de universidades regionais. Em 1969, com a criação da CESESP, os Institutos passaram a ser regidos por essa coordenação. Havia nela um poder superior decisório capaz de reger as contratações ou não contratações.

Em 1968 a Secretaria da Educação havia realizado um levantamento da situação dos Institutos Isolados numa avaliação de sua infraestrutura, suas edificações, principalmente laboratórios e bibliotecas, número de docentes, de estudantes, funcionários, questões como grau de procura e de desistência. Esse levantamento foi feito de acordo com as normas autoritárias do momento, sem nenhuma participação de seus integrantes. Os dados resultantes desse levanta-mento foram utilizados na definição dos destinos dos Institutos Isolados, sem que se procurasse saber suas aspirações, suas inquietações, suas expectativas, as características que vinham assumindo desde a sua criação. Nem mesmo os resultados dos Fóruns de Debate, que havia sido uma proposta governamental, foram levados em conta. Nessas circunstâncias começam as especulações a res-peito da criação de uma universidade.

Em 1975 tomou posse como secretário da Educação, José Bonifácio de Oli-veira Coutinho que, já em seu discurso de posse, em março daquele ano, suge-riu a retirada dos Institutos Isolados da Secretaria da Educação. Desde então

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passou a tomar corpo a ideia da criação de uma universidade o que agradava aos integrantes dos Institutos embora sempre houvesse uma desconfiança a respeito dos rumos a serem tomados. Durante todo o ano de 1975, a questão foi debatida, sendo apenas privilégio do grupo participante das reuniões da CESESP, distante das opiniões da comunidade acadêmica.

A ideia de universidade foi sendo gestada longe dos olhos da comunidade acadêmica, junto à cúpula administrativa da Secretaria da Educação, promovi-da pela CESESP que, de certa maneira, já funcionava com uma reitoria e pelo Conselho Estadual de Educação. O fundamento básico da nova entidade já es-tava prescrito na Lei 5.540 enquanto que a universidade real, concreta, vinha sendo gestada desde os acontecimentos de 1968 que haviam levado a uma re-flexão sobre as relações entre os vários segmentos, suas responsabilidades, seus objetivos a busca de relações com novos campos do conhecimento. Passaram a ser pensadas novas formas de relacionamento, propostas de novas metodo-logias de ensino e de pesquisa, e uma grande inovação seria a apresentação de formas de interdisciplinaridade. Essas reflexões trouxeram a exigência de aproximações, de busca de formas associativas com disciplinas como antropo-logia, sociologia, filosofia. No caso específico das Humanidades insistia-se na não compartimentação, na fusão de áreas. Toda essa ação teria que ser respal-dada pela aproximação de interesses comuns que viriam preparar a formação da Adunesp. Essa busca de formas associativas, de complementação de interes-ses teve na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência um forte respaldo.

Até que, em outubro, o governador Paulo Egydio apresentou à Assembleia o projeto de criação da Universidade Estadual Paulista. Havia entre os integrantes dos Institutos uma grande expectativa em torno da criação de uma universi-dade. Ao mesmo tempo havia desconfianças quanto ao que se podia esperar de um governo comprometido com uma administração nada democrática. O momento era de inquietação. A morte de Herzog trazia a marca desse momento.

O silêncio perdurou até a notícia da criação da Unesp, em 31 de janeiro de 1976 tendo como seu primeiro reitor, indicado pelo governador, o professor Luiz Ferreira Martins, procedente da USP e até então, coordenador da CESESP. A Universidade trazia a aglutinação dos Institutos Isolados que seriam regidos por um Conselho Universitário Provisório composto pelos diretores das diver-sas unidades, sem que houvesse representação da comunidade universitária. A essa universidade foi atribuído o nome de Júlio de Mesquita Filho, segundo o

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governador Paulo Egydio, como homenagem ao grande educador Paulista. Ao atribuir essa homenagem, o governador não levou em conta o desprezo, a críti-ca arrasadora que o jornal, de propriedade do homenageado, moveu contra as escolas integrantes da nova Universidade, crítica que continuou a ser mantida por anos afora. Quer dizer, o prêmio não foi suficiente para aplacar a ira dos senhores editores. Além disso, o governador não respeitou a vontade da co-munidade acadêmica – por várias vezes tripudiada por este jornal – não sendo chamada para opinar sobre a escolha desse título.

O Conselho Provisório foi responsável pela elaboração do primeiro Estatuto que regeria a nova Universidade. Para informar a respeito de sua estrutura foi apresentado um documento contendo os princípios que deveriam fundamentar a caracterização da Unesp. Nesse documento está expressa a maneira de ver a universidade segundo a ótica de seus criadores. A fundamentação técnica esteve representada na pesquisa efetuada em anos anteriores que dava conta das ques-tões relativas à infraestrutura. Outra fonte foi proporcionada pelos dados dos vestibulares. Percebe-se uma motivação contábil no sentido de reduzir despesas há uma crítica com relação ao número de vagas oferecidas e as realmente ocu-padas, também está presente uma preocupação em atender ao mercado, que as vagas fossem proporcionais às necessidades do mercado. Daí uma forte crítica às Ciências Humanas que passariam a ter seu campo de ação limitado. O do-cumento Fundamentação do Anteprojeto do Estatuto da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” trazia como ponto central de sua argumenta-ção, seu item 3 – No processo de reestruturação inicial e na expansão da futura Universidade não se admite em uma mesma região duplicação de meios para o mesmo fim baseando-se sempre na aglutinação de recursos humanos criando-se assim condições para os trabalhos universitários em sua plenitude.

Na exposição da motivação básica da criação da Universidade, está implí-cita a forma autoritária de seu funcionamento. A marca mais evidente está na anulação da vontade da comunidade acadêmica que não foi chamada a cola-borar no processo de criação da Unesp. Não só isso mas desprezou-se igual-mente aquilo que vinha sendo construído desde os estudos sobre a Reforma Universitária. O documento trazia ainda uma proposta de organização dos câmpus universitários com as respectivas faculdades. Essas propostas traziam restrições às áreas de Ciências Humanas. Antes de ser uma proposta de caráter acadêmico, de incentivo à criação no campo do conhecimento, era uma forma

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burocrática de ver a universidade, ressaltando o aspecto quantitativo demons-trando desconhecimento da realidade daqueles Institutos que já haviam criado uma vida própria. A nova proposta trazia o fechamento de cursos, transferên-cia de cursos e de docentes, sem atentar para as relações que haviam sido esta-belecidas entre cursos de diferentes especialidades, sem respeitar os vínculos estabelecidos com as comunidades locais. Num momento de acirramento das relações entre Estado e comunidade universitária, a aplicação do novo estatuto, sem o comprometimento da comunidade universitária provocou indignação geral e um clima de revolta tomou conta de todo o Estado de São Paulo.

No decorrer desse processo, aqueles que se sentiram mais tocados pelas novas determinações procuraram se unir fazendo gerar uma grande força por toda a universidade mostrando assim seu potencial de dinamização e de or-ganização. Foi o processo de formação da Associação dos Docentes da Unesp (Adunesp) que contou com forte apoio dos estudantes das localidades mais atingidas e funcionários na medida de suas possibilidades.

Por toda Universidade começaram a surgir protestos. Essa ação foi seve-ramente reprimida pelo governo paulista, repressão que encontrou apoio nas palavras do jornal O Estado de São Paulo. Em editorial do dia 30 de novem-bro de 1976, intitulado Tropicalismo Universitário, o jornal não só apresentou seu apoio às restrições propostas pelo Estatuto como foi muito além, alegando serem elas tímidas e propondo o fechamento de cursos. Desqualificou a ação daqueles que, num evento realizado em Presidente Prudente, protestavam con-tra a proposta de fechamento de vários cursos daquela unidade universitária. Desse evento fizeram parte não só docentes, funcionários e estudantes da pró-pria Unesp como também muitos professores, titulares de várias áreas vieram se solidarizar com os unespianos. No entanto, apesar de toda resistência da comunidade acadêmica, embora houvesse naturalmente aqueles que concor-davam com essas formas discricionárias, na própria universidade, o Estatuto acabou sendo aprovado em fins de 1977. Na imposição do novo Estatuto o fator mais grave era a reestruturação dos câmpus e suas unidades universitárias. Daí as manifestações claras dos descontentamentos.

No entanto, as vozes que protestavam na Unesp não eram as únicas no país. A política da ditadura exercia sua força retratada na invasão do câmpus da Universidade de Brasília. Em São Paulo, a PUC sentia o peso dessa ação. Na Unesp a invasão do câmpus de Botucatu provocou uma grande comoção. O

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movimento estudantil, apesar das muitas baixas sentia-se recrudescer. Os pro-testos que marcaram os anos de 1977 e 78, tiveram a mesma motivação. Os des-contentamentos, os desencontros da aplicação de um Estatuto centralizador, restritivo quanto às liberdades democráticas, vieram a constituir manifestação evidente de desagrado pela criação de uma forma de Universidade autocrática, gerada em pleno regime discricionário.

Anna Maria Martinez Corrêa

Possui graduação em História e Geografia pelo Instituto Sedes Sapientiae Pontifí-cia Universidade de São Paulo e mestrado em História Social pela Universidade de São Paulo. Tem doutorado e Livre Docência em História pela Universidade Esta-dual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, câmpus de Assis-SP. É professora adjunta aposentada e pesquisadora colaboradora Centro de Documentação e Memória da Unesp (CEDEM), em São Paulo.

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TENHO ALGO A DIZER SOBRE A DITADURA NA UNESP

Maria Ribeiro do Valle

Em primeiro de abril de 1964, os primeiros atos da ditadura militar no mes-mo dia do golpe já explicitam os seus principais alvos: os sindicatos, as

organizações dos trabalhadores rurais e as instituições universitárias que su-postamente tinham se tornado o locus privilegiado da ameaça comunista e das propostas revolucionárias, recrutando quadros para a esquerda. As universida-des passam a ser vistas como a expressão viva do perigo iminente de que o Bra-sil deveria ser salvo: a “comunização” da esquerda em curso no Brasil. Apesar do alarmante “perigo vermelho” alardeado pelos golpistas, são de fato notórios o aumento dos movimentos sociais no campo, a força crescente dos sindicatos e a esquerdização dos estudantes universitários particularmente devida à in-fluência que os comunistas tinham entre as lideranças estudantis. Tanto assim que o grupo mais forte no movimento estudantil pré-golpe era vinculado à esquerda católica, a chamada Ação Popular (AP), embora os professores com posições de esquerda e com militância no PCB passem a ter mais expressão depois de 1964. Nos Institutos Isolados de Ensino Superior que comporiam futuramente a Universidade Estadual Paulista, os seus professores e alunos por serem considerados subversivos, sofrem a repressão da ditadura, mas também são palco da luta de resistência às arbitrariedades do governo militar que mui-tas vezes encontraram eco na própria comunidade acadêmica.

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São José do Rio Preto

A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Preto (FAFI) é a primeira faculdade a ser invadida no Brasil pela polícia já no dia primeiro de abril de 1964, imediatamente após a instalação do regime ditatorial. Sua história, já contada por Florido, merece destaque aqui por ter sido alvo privi-legiado da repressão e por isso mesmo ser também emblemática das violações aos direitos sofridas, quer pelos demais Institutos Isolados, quer por outras universidades brasileiras. O movimento pela democratização que acompanha-remos de perto é, sem dúvida uma resposta a tais atrocidades.

A FAFI se destacou desde o início de sua criação em 1955 por sua expe-riência de “Reforma Universitária interna”, que incluía a organização em de-partamentos (já em 1957), a participação paritária do corpo acadêmico nos espaços organizativos e deliberativos e a relação estreita dos professores, recém formados na USP, com os estudantes. Docentes e alunos estiveram unidos na Campanha em Defesa da Escola Pública, durante os debates sobre a Lei de Diretrizes e Bases para a Educação (LDB/1961), no Projeto nacional de Alfabe-tização, nos programas de alfabetização pelo Movimento Popular de Cultura (MPC) com os trabalhadores rurais da região e nas apresentações artísticas pelo Grupo Universitário de Teatro Amador (GRUTA).

Talvez residam aí os motivos que desencadearam a abertura. Ainda no dia primeiro de abril, o Inquérito Policial Militar (IPM)1 que interrompe o projeto Institucional inovador da FAFI – considerada como pioneira em relação às decisões políticas, contando com a representação estudantil nos órgãos cole-

1 Os Inquéritos Policiais Militares foram instrumentos existentes antes de 1964 e previstos no Código de Justiça Militar, abertos com a finalidade de se instalar um processo sumário, onde os envolvidos eram indiciados por atividades ilícitas, sem direito à defesa, e julgados em um curto período. Existentes desde a ditadura varguista, esses inquéritos funcionavam como dispositivos de perseguição política, principalmente contra os comunistas. Com a instalação do regime civil-militar de 1964, os IPMs foram indiscriminadamente utilizados pela Justiça Militar como estratégicos no “controle das áreas políticas, militares e psicossociais”. O decreto lei n.53.987 de 27 de abril de 1964 regulamentava os IPMs previstos pelo AI-1 que constituíam um mecanismo legal para a busca sistemática de segurança absoluta e a eliminação do inimigo interno, através da repressão de qualquer atividade política civil.

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giados e no desenvolvimento de propostas acadêmicas como a interdisciplina-ridade. O processo criminal é então instaurado contra os seus protagonistas – professores e estudantes, considerados “inimigos da ordem democrática”. Não por acaso eles pertenciam ao departamento de Pedagogia que era fruto de uma experiência inovadora: os estudantes tinham igualdade de votos nas decisões departamentais, além de contar com comissões em cada série para avaliar o aproveitamento do curso. O departamento de Pedagogia fica total-mente desfalcado a partir da denúncia de que seus professores defendiam uma “ideologia extremista”.

O IPM nº 183/64 é o processo criminal no qual se insere a sindicância da FAFI constituído pelo material apreendido no MPC, no Centro Acadêmico de Filosofia (CAF) e na casa do professor Franz Wilhelm Heimer, particularmente os textos que serviriam de base para a constituição da AP no Brasil, bem como para as suas orientações políticas e filosóficas. O indiciamento é realizado pelo delegado de polícia José Domingos Ferreira e culmina no exercício da direção da FAFI por um juiz da comarca da cidade.

Os professores universitários da FAFI são, então, investigados por práti-cas revolucionárias: Franz Wilhelm Heimer – indiciado como mentor e líder dos projetos subversivos em andamento na Faculdade; Flávio Vespasiano Di Giorgi, Jacob Lebenszteyn, Orestes Nigro, Joacyr Badaró, José Aluysio Reis de Andrade, João Jorge da Cunha, Casemiro dos Reis Filho, Ary Neves da Silva, Pedro Bonilha Regueira, Newton Ramos de Oliveira, Lélia Rodrigues Bano-zzi, José de Arruda Penteado, Hélio Leite de Barros e Maurício Tragtemberg. São indiciados e considerados foragidos os professores Wilson Cantoni, Maria Edith do Amaral Garboggini, Mary Amazonas Leite de Barros, Sarah Rottem-berg e Norman Maurice Potter. Maria de Lourdes Heimer, esposa do professor Heimer, também foi presa por coordenar o MPC, embora não pertencesse ao quadro docente da FAFI. Eles perderam seus cargos e/ou foram demitidos pela faculdade, após terem sido presos, interrogados, e alguns indiciados, ficando impedidos de assumir funções públicas. Ao todo trinta estudantes e ex-estu-dantes também foram detidos. Os fatos considerados gravíssimos, ou seja, as práticas subversivas citadas no processo eram relacionadas ao CPC – Centro Popular de Cultura, ao movimento católico: AP – Ação Popular, ao CAF e ao GRUTA. Esses, que supostamente eram ligados ao PC, levando levavam a “pa-lavra de Moscou” inclusive às áreas rurais sob a forma de teatro ou de alfabeti-

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zação de adultos, com o agravante de contarem com a presença de participan-tes da Igreja Católica.

São José do Rio Preto era um dos municípios que compunham uma das regiões de atuação da AP e o professor Heimer tinha feito parte de sua direção em São Paulo, depois de ter tido participado da Juventude Universitária Cató-lica (JUC) e da Juventude Estudantil Católica (JEC), destacando-se como uma importante referência intelectual. Em seu depoimento durante a sindicância, afirmou que a AP não tinha ligações com João Goulart e segundo Florido:

[...] além de negar qualquer financiamento da AP vindo do go-verno federal, confirmou que o MPC tinha recebido dinheiro para a realização do projeto de alfabetização em parceria es-tabelecida com o MEC, a PUC-SP e o Movimento de Cultura Popular da capital, e que o MEB seria um dos parceiros para a realização do trabalho no Centro de Formação Sindical que estavam planejando. (FLORIDO, p. 117)

Heimer reafirmou em seus depoimentos todos os princípios filo-sóficos e estratégia da AP, constantes no documento de base, que acreditavam na possibilidade de se transformar a realidade his-tórica brasileira através da organização dos trabalhadores, sua conscientização e mobilização pacífica, acreditando no homem como verdadeiro personagem da sociedade. (FLORIDO, 118)

Contudo, segundo Florido, os policiais rasuram o documento de base apreendido para incriminar os professores de incitação à violência, enquadran-do-os dentro da Lei de Segurança Nacional.

Por sua vez, os estudantes e professores acusados afirmam que o CAF, o MPC e a GRUTA não teriam articulação formal com a AP – fato confirmado pela ausência de referências aos mesmos nas cartas e informes apreendidos –, apesar da convergência com suas ideias e argumentos políticos. Em seu de-poimento, Maria de Lourdes Heimer esclarece que o MCP em São José do Rio Preto contava com o apoio dos professores Franz Heimer, Flávio Di Giorgi e Aluysio Reis de Andrade e com estudantes alfabetizadores que fizeram o curso do método Paulo Freire com o próprio pedagogo. Ela afirma que o MCP não tem vínculo com a AP e nem com o GRUTA, recebendo apoio financeiro

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da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e do Movimento de Educação de Base (MEB).

O programa de alfabetização foi colocado em prática pela primeira vez no Grupo Escolar “Asilão” que ficava no bairro Esplanada, na periferia de São José do Rio Preto. Uma outra iniciativa teve início na fazenda Nossa Senhora Apa-recida de Olavo Fleury e foi interrompida com o golpe de 1964, com invasão da sede do MPC, sem que tivesse sido concluída a programação prevista para 40 dias. É importante ressaltar que na ocasião em que o inquérito resultante da invasão foi revisto pela justiça comum, em 1968, os colonos desmentiram a acusação de que os professores tenham tentado colocá-los contra o patrão. Em seu depoimento, Ledercy Gigante, estudante vinculada ao projeto de alfa-betização com o Método Paulo Freire, afirma ser impossível qualquer tipo de incitamento dos trabalhadores rurais à participação em sindicatos tanto por se tratar de uma “fazenda modelo”, quanto pelo fato de que os familiares dos proprietários e empregados domésticos assistiam as aulas.

Já o GRUTA tinha ligações estreitas com o Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE que promovia a cultura popular, criticando a realidade brasileira, man-tendo assim uma forte identidade com o MCP e o CAF. Todavia, o professor Orestes Nigro afirmava que o grupo de teatro não tinha vínculo com qualquer movimento ou grupo político-partidário. No entanto a delação dos integrantes dessas entidades partiu de seus próprios colegas segundo pesquisa de Florido:

Os estudantes Yvone de Moura, João Paulo de Oliveira e Amélia Fernandes de Souza testemunham no IPM (1964, vol. 2) indi-cando nomes de colegas que se pronunciavam como da esquer-da e que faziam parte das atividades do CAF, MPC e GRUTA. Eudete Focchi, Ledercy Gigante, Aparecida Barco Soler, Marisa Jorge Ramos, Maria de Lourdes Cápua, Mara Jorge ramos, Ma-ria Isabel Cápua, Maria Edna Mugayar e Marisa Jorge Ramos prestaram depoimentos em seguida, defendendo-se das acusa-ções dos colegas, negando seus propósitos comunistas e a arti-culação entre as entidades. (FLORIDO, 127)

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Já o Centro Acadêmico da FAFI apoiava as Reformas de Base, particular-mente, a Reforma Universitária, assim como a União Estadual dos Estudantes (UEE) e a União Nacional dos Estudantes (UNE), fato que o torna alvo da in-vasão policial no dia primeiro de abril de 1964, sendo seus integrantes presos e interrogados. A detenção dos estudantes ocorre durante uma assembleia em que eles decidiram encaminhar um telegrama manifestando solidariedade a Jango, apoiando as reformas e repudiando qualquer ato arbitrário que impe-disse o projeto democrático em curso. Dos estudantes presos, apenas Ledercy Gigante é indiciada e processada até o fim. A brutalidade da repressão policial acaba por intimidar vários deles que, constrangidos, passam a delatar colegas e professores durante os interrogatórios policiais. O depoimento do professor assistente de Geologia, Samir Felício Barcha, ex-aluno, também contribui para culpabilizar o CA de subversão.

A faculdade passa a ser vista como um foco de atividades comunistas, em-bora segundo o exame de Florido ocorra apenas o expurgo dos professores, uma vez que

[...] não seria do interesse das autoridades locais punir os es-tudantes e referendar a ideia de que a subversão vinha dos ci-dadãos rio-pretenses. O objetivo era culpar os professores “fo-rasteiros” que pensavam diferente das pessoas da cidade e que representavam uma ameaça para a ordem local, acusando-os assim de infiltração na instituição, em nome do comunismo in-ternacional. (FLORIDO, p. 133)

As investigações do Departamento de Ordem Política e Social (DEOPS) na FAFI contaram com a manifestação de solidariedade e com o apoio integral ao regime por parte dos professores Celso Abbade Mourão, Fahad Arid, Luiz Dino Vizotto, Samir Barcha, Edoardo Querin, dentre outros. Esses docentes solici-taram um rigoroso inquérito para apurar as responsabilidades dos subversivos, sendo testemunhas de acusação, respaldados pela Lei de Segurança Nacional de 1953. O delegado Domingos Ferreira encaminha para o DEOPS de São Pau-lo, no dia 24 de abril, o pedido de acompanhamento do processo uma vez que tinha sido confirmada a existência de “atividades subversivas na FAFI” que visavam a transformação da estrutura sócio- econômica do país pela violência.

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Se por um lado, a FAFI abrigava um grupo de professores articulados com os movimentos de esquerda a com governo João Goulart, particularmente pelo apoio às Reformas de Base, com destaque à Reforma Universitária, por outro parece que havia um exagero por parte dos delatores com relação à dimensão atribuída ao perigo que eles apresentavam para a ordem local e nacional por meio da organização de insurreições armadas. Catalogados como “inimigos da ordem” e “ameaça à segurança nacional”, os professores que passaram pela prisão foram obrigados a assinar um “Termo de Fé Democrática”.

A construção e a identificação do inimigo interno na FAFI pelos milita-res, por grupos dominantes da comunidade e por parte significativa de seus docentes tinham por intuito a destruição do projeto político-pedagógico da FAFI. O professor João Dias da Silveira foi demitido e substituído pelo juiz da 2ª vara criminal e interventor José de Castro Duarte, que designa uma comis-são para elaborar um novo regimento para a Faculdade. Todos os professores presos e processados foram demitidos pelo governador Adhemar de Barros no dia 19 de maio de 1964.

Os professores Franz W. Heimer, Orestes Nigro, Newton Ramos de Olivei-ra, João Jorge Cunha, Flávio V. Di Giorgi, Wilson Cantoni, Sarah Rosemberg e Joacyr Badaró tiveram seus contratos rescindidos no dia 20 de maio, enquanto o professor Maurício Tragtemberg em julho, sendo todos demitidos em 9 de outubro pelo Governador Adhemar de Barros.

Em 11 de maio de 1970, a promotoria pública do Ministério Público Fede-ral, encerra o processo justificando a “extinção de punibilidade” dos acusados por estar tramitando entre a Justiça Militar e Justiça Comum há mais de cinco anos. (Cf. FLORIDO, p. 24)

O destino de vários desses professores será a emigração para universidades do exterior: Norman Maurice Potter vai para os EUA, Franz W. Heimer para a Alemanha, Wilson Cantoni, o mais citado nos depoimentos de acusação, para o Chile. Os que permanecem no Brasil conhecerão o chamado “exílio branco”, as perseguições administrativas ou serão processados pela Lei de Segurança Nacional. Não podemos deixar de registrar aqui que o professor Wilson Can-toni foi dispensado das funções a partir de 1º de abril de 1964 pelo Ato do dire-tor, expedido com autorização do governador, tendo sido publicado no Diário Oficial do Estado de São Paulo de 20/05/1964. Quando foi promulgada a lei da Anistia, em agosto de 1979, ele já tinha falecido no exílio.

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Marília

Em Marília o golpe de 1964 acirrará as posições políticas no interior mes-mo da faculdade, dividindo o corpo docente e o discente. O professor Antônio Quelce Salgado é preso, temporariamente afastado e reintegrado. Da comissão processante faziam parte dois professores da USP. Suas acusações eram justi-ficadas pelo curso sobre a realidade brasileira, ministrado pelo professor, em que ele abordava a realidade da indústria farmacêutica, o problema da reforma agrária e o da mortalidade infanto-juvenil. Esses cursos eram ministrados em conjunto com o professor Ubaldo Puppi e abertos à comunidade; sendo, por-tanto, considerados reuniões subversivas, fato que os levou a serem ameaçados de morte pelo presidente da Associação Rural Mariliense.

O professor Zeferino Vaz, na época secretário da Coordenadoria do En-sino Superior do Estado de São Paulo (CESESP) responsável pelos Institutos Isolados, demite o professor Ubaldo Puppi como punição exemplar. Ele é rein-tegrado em 1965, depois de ter sido cassado, respondido a processos, IPMs, e expulso do ensino público. Outra acusação importante que o professor Quelce sofria era a divulgação que fazia do Método Paulo Freire. As ligações dos dois professores com a AP – Ação Popular levam-nos novamente à prisão em 1969. Um dos processos sofridos pelos docentes Quelce e Puppi chega até o Supremo Tribunal Federal, mas devido ao contato que tinham com o destacado jurista Sobral Pinto, por intermédio de Alceu Amoroso Lima, são absolvidos.

Algumas outras vítimas da ditadura na Unesp

Em Assis, serão presos por resistência ao golpe, o professor Onosor Fonse-ca acusado de politização dos alunos e o estudante Antônio Dimas

As prisões e demissões voltam à cena com o AI-5: o professor Percy Sam-paio Camargo da Faculdade de Odontologia do câmpus de Araçatuba é demi-tido e apenas reintegrado com a Lei da Anistia. O professor Percy conhecerá a clandestinidade e o exílio por ter sido demitido pelo Médici. Apenas volta ao Brasil com a anistia depois de um “período muito difícil”, passando por três países, um dos quais o Chile onde também é preso e refugiado.

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Em Araraquara o professor Pedro Calil Padis também demitido com base no Ato Institucional nº 5, vindo a falecer exatamente um mês depois de ser anistiado e de ter ficado por dez anos afastado de suas funções.

A criação da Unesp

Assim como o golpe militar de 1964 desarticula projetos acadêmicos, afas-tando os professores de seus cargos, pesquisas e alunos, a criação da Unesp, em 1976, reeditará esta página trágica da história através do fechamento e trans-ferência de vários cursos. Consequentemente vários professores dos Institutos Isolados que passariam a fazer parte dessa nova Instituição de Ensino Superior, foram demitidos.

Para a maioria dos entrevistados é quase consensual o fato de que a criação da Unesp, durante a ditadura militar, ocorre no seu compasso, de forma total-mente autoritária. A unidade de Presidente Prudente foi a que mais sofreu re-taliação, perdendo o maior número de cursos que por sua vez eram da área de humanas. Há um ato público contra o fechamento dos cursos, acompanhado de greves de alunos e, em contrapartida, a demissão – pelo reitor Luiz Ferreira Martins – dos professores Rafael Campos Ferreira (Biologia Animal), Francis-co Teotônio Mendes Neto (Política), José Carlos Tartaglia (Economia) e Mauro José Alves (Filosofia). As teses da professora Maria da Conceição D’Incao sobre os boias-frias e do professor José Ferrari Leite sobre o Pontal do Paranapanema são considerados escritos subversivos e apreendidos pelo governo.

O ato público de Presidente Prudente já faz parte de uma grande agenda de mobilização contrária à criação da Unesp que receberá apoio de diversas uni-dades: Araraquara, Marília, São José do Rio Preto, Assis, Botucatu. Estava em germe a criação da Associação dos Docentes da Unesp – primeira associação de docentes do Estado de São Paulo. O seu primeiro presidente foi o professor de Assis Ulisses Telles Guariba, casado com Heleny Guariba, também professora em Assis. Ela passa a participar da luta armada, sendo presa e torturada. Hoje faz parte da lista de nossos desaparecidos políticos.

A Unesp é criada pelo governador Paulo Egydio Martins, tendo como pri-meiro reitor o professor Luiz Ferreira Martins e como vice o professor Arman-do Ramos. Segundo entrevista, do então reitor, dada à professora Anna Ma-

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ria Martinez Correa2 (Ver CORRÊA (Org.), Unesp, 30 anos), as reuniões mais difíceis que ele realizou para a exposição do estatuto da Unesp nos diversos campi foram exatamente as de Marília, Assis, Presidente Prudente e Botucatu. Segundo os entrevistados do Projeto Tenho algo a dizer, existia na universidade um ambiente conservador e pessoas eram capazes de desempenhar o papel de interventores. Assim desencadeou-se uma sucessão de atos arbitrários, de per-seguições, demissões e de transferência de professores que discordassem da rei-toria e dos diretores a ela alinhados. Apesar de tudo, a Associação de Docentes de Botucatu e a Adunesp, criada em 1976, refletem a abertura que começa a ser vivida pela sociedade. Elas passam a defender as seguintes palavras de ordem: democratização da Universidade, reformulação dos estatutos e regimentos da Unesp, eleições diretas para diretor e reitor, mais verbas para saúde e educação. A luta pela constituinte no nível nacional, se traduzia na Unesp na luta por uma “estatuinte”. A reintegração dos cassados, defendida, em 1981, pelo professor Aziz Nacib Ab’Saber3, contra a maioria dos integrantes do Conselho Universi-tário (CO) e do reitor, revela o descompasso entre a organização da comunidade universitária e os seus dirigentes partícipes da ditadura civil-militar.

O projeto Tenho algo a dizer ouviu os principais atores que, tendo sido alvos ‘privilegiados’ da ditadura militar na Unesp, foram, ao mesmo tempo, expoentes da luta pela construção da democracia na universidade. Os episó-dios destacados permeiam duas eleições paritárias, a primeira para diretor do câmpus de Assis em 1983 e a segunda para reitor em 1984, mostrando o pionei-rismo da comunidade unespiana composta por três segmentos – alunos, pro-fessores e funcionários – em um exercício de democracia que até hoje é inédito na história das universidades brasileiras.

Contudo, não podemos perder de vista que estávamos em pleno regime de exceção e nossa universidade se torna palco, então, de invasões policiais, atos repressivos por parte das autoridades políticas e também das acadêmicas que unidas atuam no sentido de calar as vozes que se opõem ao arbítrio. Esse movimento que intercala atos de repressão e resistência ecoa também na socie-

2 Então coordenadora do CEDEM – Centro de Documentação e Memória da Unesp, onde desenvolve o projeto: Memória da Universidade.

3 Então diretor do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas de São José do Rio Preto.

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dade mais ampla, onde a aprovação da Lei de Anistia de 1979 traz os primeiros indícios da possibilidade da abertura política.

Parece que a Unesp e a sociedade brasileira estão em compasso, uma vez que os fatos vivenciados em uma parecem interferir direta ou indiretamen-te na outra. O movimento das ‘Diretas Já!’ tem, simultaneamente, início em 1983, ano da eleição do professor Antônio Quelce Salgado para diretor do câmpus de Assis. Segundo nossos entrevistados há uma sensação de que a luta pela democratização ocorre dentro e fora da universidade, simultaneamente, dando a sensação de que seus atores estão juntos numa luta comum. O pro-fessor William Saad Hossne, da medicina de Botucatu, é eleito da mesma for-ma para assumir o cargo mais alto da reitoria da Unesp, em 1984, parecendo até mesmo que nossos personagens se antecipam na concretização de ideais de emancipação política. Contudo, nossos candidatos eleitos são obviamente impedidos de tomar posse. E o outro lado da moeda, o regime autoritário, se revela ainda com toda a sua força dentro da Unesp, dando a sensação de que o arrefecimento da ditadura é ali, mais lento e gradual do que na conjuntura brasileira mais ampla.

Ouvimos particularmente os professores e alunos de Assis e Botucatu, acre-ditando que os episódios de violação dos direitos humanos que vivenciaram, desde o primeiro dia do golpe militar, repercutem em todas as unidades da Unesp e revelam, embora não esgotem, uma parte de sua história ainda não co-nhecida, desvelada e contada. Protagonistas das eleições paritárias para diretor e reitor, eles têm muito a dizer a respeito da Ditadura Militar e seu enraizamento na Unesp desde os seus primórdios nos Institutos Isolados. Seus relatos lançam luz aos acontecimentos desencadeados pelo golpe militar em 1964, pelo endu-recimento do regime em 1968 com o Ato Institucional nº 5, bem como para a redemocratização, que tem como um dos marcos a Lei de Anistia. Tais datas revelam que, em 1976, tanto a criação da Unesp, como a da Adunesp estão es-treitamente ligadas à luta de resistência contra a ditadura militar no passo e no compasso de um jogo de forças contraditórias que mesclam movimentos ora no sentido da democratização, ora no da repressão política.

Nos depoimentos da segunda parte desta obra, regataremos fatos marcan-tes, como a prisão do professor Onosor Fonseca em Assis em 1964. Veremos que ela desembocará na sua inclusão na sindicância instalada após a eleição do professor Quelce para diretor de Assis em 1983. Também ouviremos a história

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do aluno Luís Carlos Ferreira de Almeida que vivencia a dura repressão da Po-lícia durante a visita de Maluf ao câmpus de Botucatu, em 1984, sendo também indiciado por participar de ações políticas do Centro Acadêmico. Ele é hoje professor do câmpus de Registro da Unesp. Veremos que o movimento de Assis recebe apoio de professores e alunos dos mais diversos campi, de outras univer-sidades públicas e privadas brasileiras e de importantes meios de comunicação. Acompanharemos também a luta pela democratização da universidade duran-te a campanha para a eleição do professor William Saad Hossne, de Botucatu, demandou reuniões em todos os campi nas quais eram debatidas as propostas que ele representava.

Assim, com uma pequena, mas consistente amostra de depoimentos, con-seguimos compreender que a história dos alunos e dos professores da Unesp por nós entrevistados, perpassa todos os períodos de nossa ditadura milita. Ela é tecida pelos avanços e recuos não apenas do Estado de Exceção no Brasil, cuja mesma oscilação ocorre nos movimentos da comunidade unespiana rumo ao rompimento com ele. Podemos dizer que a Unesp encontra-se, então, como um cabo de guerra disputada pelas forças de repressão e de resistência. Os profes-sores e alunos entrevistados ou ficaram na Unesp até a aposentadoria ou ainda fazem parte de seu quadro de servidores, podendo tecer considerações sobre as repercussões desse período turbulento na Unesp de hoje.

Embora a trama que envolve as eleições diretas de 1983 e de 1984 na Unesp seja o nosso fio condutor, a vivência de seus atores extrapola essas datas, tra-zendo à tona episódios que por vezes a antecedem e a ultrapassam, enrique-cendo nosso enredo. Faz parte dela outras pessoas que, por meio das memórias registradas a seguir, passam também a ter as suas histórias contadas.

Referências

CORRÊA, Anna Maria Martinez (Org.). Unesp 30 anos: memórias e perspecti-vas. São Paulo: Editora da Unesp, 2006.

FLORIDO, Caroline Maria. Da efervescência cultural ao obscurantismo ditato-rial: a história da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Preto sob o olhar de intervenção em 1964. Faculdade de Educação da Unicamp, Campinas, 2013. (Dissertação de Mestrado)

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DEPOIMENTOS. Entrevistas com (ex) professores da Unesp e/ou dos Institu-tos Isolados de Ensino Superior, transcritas na 2ª parte desta obra.

Maria Ribeiro do ValleGraduada em Ciências Sociais pela FFLCH-USP e História, é mestre e doutora em Educação pela Unicamp. Realizou o Pós-Doutorado em Ciência Política no IFCH – Unicamp. É professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp – câmpus de Araraquara. É autora dos livros “1968: O Diálo-go é a violência – movimento estudantil e ditadura militar no Brasil”, Editora da Unicamp; e “A violência revolucionária em Hannah Arendt e Herbert Marcuse”, Editora da Unesp.

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D I Z E R E S 2OS D E PO E NTE S

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DEPOIMENTO 1

Onosor Fonseca

Professor aposentado da Unesp de Assis-SP. Depoimento dado em 9 de outubro de 2013.

Instituto Isolado e comunidade

Quando o Instituto Isolado veio para Assis, a cidade teve uma certa pre-venção contra a faculdade. Logo no início duas alunas engravidaram e

isto serviu de motivo para que a cidade acoimasse o Instituto Isolado de antro de descaminhos das moças, antro de prostitutas. Coitadas das moças, eram alunas, e daí? E ninguém foi perguntar na cidade quantas outras moças, não alunas da faculdade, engravidaram na época. Isso ninguém foi fazer estatísti-ca, mas como elas eram da universidade, elas ficaram marcadas e marcaram o Instituto Isolado.

O golpe militar de 1964

Em 1964 houve o golpe e um núcleo de resistência no Rio Grande do Sul comandado por Leonel Brizola. O Brizola instalou aquilo que ele chamava de cadeia da liberdade ou alguma coisa semelhante e foi apoiado pelo general La-dário Pereira Telles lá no Rio Grande do Sul. Sobre o general Peri Beviláqua que atuava em São Paulo, posso dizer que houve um momento em que a gente teve a impressão de que ele balançava entre apoiar o Leonel Brizola na cadeia ra-diofônica da liberdade ou pender mais para o golpe mesmo. Minas capitaneou

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uma investida contra o Rio de Janeiro; desceu para o Rio com tropas e com o apoio do Nordeste. Em todo o restante do Brasil, o pessoal acabou apoiando o Magalhães Pinto.

O golpe, professores e alunos na FAFIA

Em face desse reboliço no país, eu tinha acabado de terminar meu curso aqui na FAFIA1, em 1963. Fiz o primeiro ano de Letras em São Paulo e me transferi para Assis, onde me formei em 1963. Em 1964 já era professor, mas não tinha dado nenhuma aula, fui contrato correndo. Os estudantes fizeram uma reunião na sala do diretório e convidaram os professores para fazer um depoimento a respeito do golpe e sobre o que eles deviam fazer. Eu estou ten-tando me lembrar do nome dos professores. Lívia Ferreira era professora da Educação; o professor José Ferreira Carrato, o professor de filosofia Leones Regenberger, o professor Prado, o Virgílio Noya Pinto e finalmente o João de Almeida que também fazia parte desse grupo. Então nós atendemos ao pedido dos alunos para dar o nosso depoimento. Eles queriam saber que atitude deve-riam tomar diante do golpe. Todos nós fomos unânimes em dizer o seguinte: “a melhor atitude que vocês têm que tomar agora é não tomar partido porque a repressão que vier, virá violentamente contra os mais fracos e vocês são a parte mais fraca. Professores e alunos que forem resistir ao golpe agora vão sofrer uma dura repressão. Então, fiquemos um bocadinho na expectativa para ver conforme a evolução e eventualmente a gente possa até, se por acaso os golpis-tas sofrerem derrotas, a gente possa depois até tomar partido mais abertamen-te. Mas a conveniência mesmo é não nos manifestar porque é uma questão de autodefesa”. Foi isso que eu fiz nessa época, aliás, eu não, todos nós fizemos.

Quando eu vim para Assis, com essa discussão de direita / esquerda, o meu posicionamento sempre foi de esquerda. Isso eu nunca escondi e me manifes-tava lá no salão da faculdade. Toda manifestação que eu tinha oportunidade de desancar a direita, eu fazia mesmo e isso de certo influenciou [os alunos]. Eu era ex-aluno, mas depois me tornei professor e isso deve ter tido alguma

1 Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis.

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71Depoimento 1 – Onosor Fonseca

influência nos meus alunos. O Antônio Dimas, meu aluno, sempre muito gene-roso; ele acha que eu tive uma influência muito grande sobre a vida dele.

Eu e o Dimas fomos presos. Ele ficava numa cela e eu em outra aqui em As-sis. E para nós nos comunicarmos não havia como, porque a cela ficava assim num corredor e ele estava numa cela e eu na outra. Então nós conseguimos um espelho cada um e aprendemos a linguagem dos mudos para nos comunicar. Olha que coisa curiosa, a gente se comunicava desse jeito. Quanto tempo nós estivemos presos? Eu fiquei eu acho que 18 dias.

Todos os professores eram visceralmente contrários ao golpe. Isso ficou bem claro, mas aconselhamos os alunos a se manterem numa posição de muito cuidado porque se viesse uma repressão violenta, eles seriam violentamente re-primidos. Bem, acontece que, na época aqui em Assis, o delegado era Antônio Colezi, que convocou nós seis professores para depoimento. Cada um ia lá e fazia o seu depoimento. Quando chegou a minha vez, ele me pressionou muito e queria saber se eu era financiado pelo Partido Comunista. Falei “eu não sei de onde o senhor tirou isso”, e ele falou “ah, mas o senhor começou o curso em São Paulo e veio depois pra cá; que explicação se dá para isso? Além disso, a idade dos seus colegas é muito menor do que a sua. Por que o senhor está fazendo o curso agora?”. Ele estava com certas indagações desse tipo; então expliquei para ele o seguinte: “olha, acontece que ingressei no ensino secundário em 1955, apenas com meu diploma de professor primário, e por que pude fazer isso? Porque eu tinha ganho em concurso uma bolsa na Aliança Francesa, estagiei um ano em Paris, quando voltei, prestei concurso e me efetivei”. Lecionando em São Sebastião, vejo uma propaganda do Instituto Isolado de Assis, coman-dado pelo professor Antônio Soares Amora que oferecia a oportunidade de o professor secundário que não tivesse feito faculdade ser comissionado para fazê-la. Então, entrei em contato com o professor Amora e terminei os outros três últimos anos aqui na faculdade de Assis. E imediatamente depois de eu ter me formado, o professor de língua e literatura francesa Vitor Ramos vendo o meu trabalho e minha desenvoltura ao falar, escrevia correntemente francês, sugeriu a minha contratação e o professor Amora me contratou. Só que eu não cheguei a dar aula nenhuma porque veio a repressão.

O que mais eu teria a dizer? Esse Antônio Colezi, na verdade, queria achar um jeito para extorquir alguém e ele achou que era comigo que devia ser feito isso porque “afinal de contas é estranho que uma pessoa da sua idade venha

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pra cá depois de ter feito faculdade um ano em São Paulo e seus colegas são muito mais novos; você deve estar financiado”. Se o escrivão de então se dis-pusesse a falar, não vou citar nome para não comprometê-lo, ele presenciou isso tudo. O Colezi querendo saber quanto eu tinha no banco, de onde vinha esse dinheiro. Falei “não há segredo nenhum, eu recebo do meu trabalho”, mas no fundo ele estava querendo mesmo era extorquir. Bom, eu não dei chance. E para os outros, ele diz que fez todo um processo contra nós e eu como agente comunista, evidentemente.

E a coisa se complicou um pouco para mim porque eu fiz a campanha do petróleo na época em que falar ou publicar alguma coisa com “o petróleo é nosso” era ser comunista. Eu fui preso em São Carlos por causa disso e eu já ti-nha uma ficha portanto no DOPS em São Paulo de 1953, 1954, nem me lembro. Estava escrevendo “o petróleo é nosso” na sarjeta com os meus amigos e a polí-cia em cima da gente. Me prendeu e fui parar no DOPS em São Paulo, fichado como comunista porque estava fazendo a campanha do petróleo é nosso. Olha o absurdo da época. Daí é que vem essa história de que o Onosor é um agente comunista. Por causa da campanha do petróleo.

Acontece que toda pessoa que fizesse campanha do petróleo naquela época era taxado de comunista, então acabei sendo preso e mandado para São Pau-lo. Saí dali poucos dias depois, por uma circunstância curiosíssima; porque, primeiro, o prefeito de São Carlos era um ex-professor meu e me queria muito bem e o diretor do DOPS em São Paulo era de uma família de São Carlos tam-bém; era o Elpídio Reali, secretário de segurança pública. Acontece que meu ex-professor, o Luís Augusto de Oliveira foi para São Paulo falar com o Elpídio Reali mesmo, [dizendo] que era um absurdo o que estava acontecendo, o fato de me prenderem. Daí cinco dias eu fui dispensado, não antes de ele botar uma pessoa na mesma cela que eu para me contar histórias dele, do trabalho dele, querendo saber a minha. Eu falei “eu não tenho história”.

Quando eu vim pra Assis, houve essa reunião e houve portanto todo um processo contra nós, em que o principal acusado era eu. A acusação era que eu era um subversivo, que eu era um agente comunista aqui em Assis. Aí o tempo foi passando e o processo correndo, eu fui, por duas vezes, retirado da sala de aula. Eu dava aula em Cândido Mota, era professor efetivo de francês; fui re-tirado de lá para fazer novos depoimentos aqui, “eu vou repetir aquilo que eu já tinha dito, estava cansado de dizer”. Olha a pressão que faziam contra mim.

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73Depoimento 1 – Onosor Fonseca

Mas esse processo teve andamento e quatro ou cinco anos depois, terminado o processo policial, houve a manifestação pela promotoria pública e uma das coisas mais dignas que eu vi na minha vida, foi a coragem de, em plena repres-são, o promotor público dizer o que disse, citando a Constituição, que é livre a manifestação de pensamento, quem quer que manifestasse ideias de direita, de esquerda, tinha a garantia da Constituição.

Depois outra acusação era ter livros em casa. Isso fez parte da acusação que o Colezi fazia contra mim. Eu tinha livros marxistas, eu tinha livro nazista também. Eu tinha as minhas posições políticas e a direita estava muito organi-zada, a tal ponto que eles imprimiram durante alguns anos, financiados pelos Estados Unidos, um jornalzinho que era mandado para todas as escolas, para todo lado, em São Sebastião e aqui, em todas as cidades. Era uma propaganda descarada da direita e do golpe. Ter livros nazistas, comunistas é um direito e até mesmo um dever de todo intelectual que queira estar informado, portanto, isso não é crime, é coisa garantida na Constituição. Portanto, o doutor Nilton Calazans achava que era extemporânea a minha prisão ou a decretação da mi-nha prisão. No fim, o seu parecer a meu favor foi para um juiz substituto. Ele era de Presidente Prudente e respondia pela vara de Assis; César Laerte dá um despacho exemplar, mandando arquivar o processo e aí termina essa história da perseguição do Colezi contra mim.

Mas não termina a história do próprio Colezi. Isso foi noticiado pelo jor-nal. A Folha de S. Paulo publicou inclusive, na época da repressão quando eu fui preso, o meu nome. E, por sorte, um ex-aluno meu de São Carlos, advogado, lendo a Folha, anotou bem essa história e procurou entrar em contato comigo, contando a seguinte história: “sabe quem é o Colezi? O Colezi foi delegado em São Carlos, nomeado pelo Ademar de Barros. Sabe o que aconteceu lá em São Carlos? Ele vendia pneus e peças dos carros das viaturas. Acabou sendo demi-tido a bem do serviço público e o Ademar o reintegrou e ele foi delegado aqui em Assis”. No fim, se eu não me engano, ele foi morto, foi baleado num bairro muito violento, Capão Redondo, em São Paulo.

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DEPOIMENTO 2

Ulisses Telles Guariba Neto

É professor aposentado do Departamento de História da Faculdade de Filosofia da USP e dirige a Fundação Educacional do Município de Assis (FEMA). O professor Ulisses teve uma atuação expressiva nos episódios que envolveram a violação dos direitos humanos na Unesp durante a ditadura civil-militar de 1964 a 1985 e vai nos dar um depoimento a respeito disso. O professor Ulisses Telles Guariba veio da USP e esteve desde a fundação do instituto isolado de Assis em 1968 até 1977.

Antecedentes

Eu vim para a universidade muito cedo, nos anos 1960. Era na USP, na Rua Maria Antônia, em São Paulo. Fiquei lá durante uns cinco anos. Depois

obtive uma bolsa para o exterior, fui contratado por uma professora assistente, e fiquei dois anos fazendo Ciência Política e Metodologia das Ciências Huma-nas na França. Voltei em 1967, no momento em que a contestação ao Regime Militar adquiria uma dimensão grande.

A universidade teve um papel fundamental nisso porque o movimento estu-dantil e a mobilização dos docentes deram um destaque a favor da movimenta-ção política que levou às greves do ABC, depois à contestação do Parlamento e ao seu fechamento em dezembro de 1968. Aí começa outra história, a mais difícil.

Nesse período que vai de 1964 a 1968, havia a Universidade de São Paulo, a USP, ensino público, com todas as suas escolas tradicionais: Direito, Enge-nharia, Medicina e a velha Filosofia, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, que nasceu em 1934. Em torno dela foram criadas várias unidades de ensino. Nesse ano já havia a reserva da Cidade Universitária; não havia ne-

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nhum prédio ainda construído, apenas um Instituto de Estudos Educacionais, que hoje é a Faculdade de Educação.

Ali se chegava por uma estrada no meio do mato, no largo de Pinheiros. Só existia ali a Cidade Universitária, que começava a ser construída. O prédio da Reitoria era elaborado; começava a se planejar a Universidade. As unidades es-tavam todas no centro de São Paulo. Até 1964, portanto, a USP era hegemônica. Mas o ensino público universitário começava a se expandir para o interior.

Isso começou a ocorrer no final da década de 1950, nos governos de Carva-lho Pinto e de Jânio Quadros. Foi quando se criaram os institutos isolados que deram depois origem a Unesp. Foram criadas as Faculdades de Filosofia, de Odontologia, de Engenharia de Guaratinguetá. Foram criadas por uma forte demanda política municipal e regional. Essas regiões tinham mais representa-ção política no Governo do Estado, e conseguiram esses institutos isolados, que eram uma grande ambição.

Havia passado aquela fase mais aguda, do final dos anos 1940, início dos anos 1950, quando a demanda do poder político local do interior eram escolas secundárias. Antigamente queria-se uma escola de Educação para formar uma professora, uma intelectual, para as filhas. Depois foram as escolas secundárias que se mutiplicaram.

Se pegar os dados, a ampliação da rede do ensino médio no Estado de São Paulo foi imensa no final dos anos 1950 e durante os anos 1960. É nesse cenário que aparece a demanda para a expansão do ensino superior público gratuito.

Logo que entrei na faculdade, nos primeiros anos, participei de um mo-vimento que foi muito importante em São Paulo, o Movimento pela Escola Pública. Estava-se votando, depois da Constituição de 1946, depois de tantos anos, uma Lei de Diretrizes e Bases, LDB, da Educação. Em todo aquele tempo passamos sem lei! Quem dirigia eram as secretarias municipais e o Ministério da Cultura, o MEC, que tinha um poder desmedido; preocupava-se com o en-sino médio, primário, secundário e o universitário.

O que concorria com o poder público, quem queria o dinheiro do poder público? Não eram as privadas, naquele tempo eram as confessionais, as esco-las católicas, evangélicas... Elas queriam que constasse lá na LDB um famoso artigo. Nós queríamos que tivesse a redação, dizendo que dinheiro público será aplicado no ensino público. Aí, essas escolas diziam: “não, o dinheiro público será aplicado ‘preferencialmente’ no ensino público”.

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77Depoimento 2 – Ulisses Telles Guariba Neto

Isso motivou uma grande campanha em São Paulo, da qual participaram Florestan Fernandes, Roque Spencer Maciel de Barros, todo o pessoal da Edu-cação, inclusive o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que na época era professor.

Publicaram um livro famoso, sobre lei orçamentária e sua relação com a campanha da escola pública, publicação organizada pelo Roque Spencer Ma-ciel de Barros. Ele era do curso de Pedagogia. O João Villa-Lobos, que tinha sido meu professor do secundário, também participou dessa campanha. Foi importante, pois se discutiu a democratização do ensino. Ou seja, o caráter que deveria ter as universidades, como é que deveria ser gerenciado esse dinheiro público, que modelo de universidade que se deveria ter.

Naqueles anos, a universidade era comandada pelos catedráticos, que, de certa forma, dirigiam toda a universidade. Não havia departamento, nada. Exis-tiam áreas de saber. Eu, por exemplo, fui da última turma. Eu poderia ter sido psicólogo, pois tínhamos um curso de Psicologia e uma multidão de Psicologia. Não existia um departamento de Psicologia, que só foi criado em 1965, por aí. Eram unidades em si – História com Geografia –, depois separavam os dois; Filosofia com Psicologia com as outras disciplinas, esses códigos tradicionais e as especialidades que apareceram fundamentalmente na Faculdade de Filosofia.

A novidade da Faculdade de Filosofia é que ela introduziu um sistema de ensino tradicional. Havia três grandes escolas: Medicina, Engenharia e Direito. Ela introduziu as áreas de especialidades: Biologia, Geologia, Física, Química. Foram criadas as áreas que compunham essa Faculdade de Filoso-fia, tal como ela tinha sido projetada, pensada em 1936 pela Missão Cultural Francesa e implantada pelo governo paulista. Como dizia o Antônio Candi-do, “querendo” de alguma forma, tendo perdido a Revolução de 1932, ganhar a liderança do processo político nacional, pelo saber, conhecimento, desen-volvimento da ciência, da cultura.

1964 -1968: as universidades sob a mira da repressão

O cenário de 1964 era mais ou menos esse: os institutos isolados [de ensino superior] no interior eram comandados pelo Conselho Estadual de Educação. A LDB previa a organização dos Conselhos Estaduais também – os “consumi-

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douros” Conselhos Estaduais. O de São Paulo veio de 1935. Mas os institutos isolados eram comandados pela Câmara do Ensino de 3º Grau. Há uma forte expansão da rede pública de ensino secundário, uma demanda crescente por vagas na universidade, no final dos anos 1960.

Lembro quando, em 1965, fui para a França. Quando voltei, em 1968 – co-mecei no Departamento de História. [Antes] havia classes de 10, 12, 15 alunos e quando eu voltei, as classes já eram de 100, 150, porque tinham sido abertas as vagas, pois havia a crise dos excedentes.

No auge, em 1968, houve um debate muito importante sobre o destino da universidade, a discussão sobre a Reforma Universitária de 1967 e 1968, quan-do se pensou muito sobre o futuro da universidade.

Éramos criados nesse clima. Eu tinha voltado da Europa, com as experiên-cias acadêmicas universitárias de lá, e vim para cá, para a realidade; era criar um curso de Filosofia em Assis – o que era mais ou menos surrealista naquele tempo. Os institutos isolados, todos eles, estavam crescendo.

Os institutos isolados e o golpe

A USP tinha um “cobertor de proteção” muito grande. Ela praticamente formava a elite. Toda a elite política tinha passado pela USP de alguma forma: Faculdade de Direito, Medicina, Escola Politécnica... Os filhos das lideranças faziam parte [da USP]. Os institutos isolados, não. Eles eram um pouco à parte na sociedade. Mas tinham uma atividade política muito intensa, porque a resis-tência em 1964 ao Golpe foi progressivamente crescente. Ou seja, muita gente resistiu em 1964. Houve um domínio hegemônico do golpe com mobilização da sociedade, das classes médias, pelo movimento da ‘revolução’, mas progres-sivamente voltou a renascer a oposição ao regime militar, à ditadura.

Isso brotou, nos sindicatos e nas organizações partidárias de esquerda, os movimentos socialistas, trotskistas, comunistas... Portanto, havia uma atuação muito grande entre os ferroviários, no interior, e entre os metalúrgicos, em São Paulo, que tinham estrutura sindical grande. Começava a renascer a oposição no regime militar.

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Os institutos isolados no interior, nos locais onde eles foram mais ativos, foram reprimidos fortemente. Por exemplo, em São José do Rio Preto, na época, houve a demissão de 18 professores. Não deveria ter mais que 30 professores.

São José do Rio Preto foi o primeiro instituto isolado invadido. Em 1964, havia aquela mobilização local, do setor conservador. Lá havia uma atividade intensa de mobilização de professores e de alunos contra o Golpe e eles foram castigados em 1964. A USP não; se manteve. Fizeram uns inquéritos, mas hou-ve uma certa proteção – a USP sempre foi protegida. Em 1964 teve os inqué-ritos, depois, em 1969, teve gente cassada, depois da morte do ex-presidente general Castello Branco e quando o Regime se fechou com o Ato Institucional nº 5, o AI-5. Foi depois do AI-5 que vieram as cassações: na Faculdade de Medi-cina, na Faculdade de Engenharia, na Faculdade de Filosofia. Foram: Fernando Henrique, Octavio Ianni, Florestan Fernandes. Era um outro contexto.

Em 1964, os institutos que tinham movimentos políticos e de oposição, como Assis, tinham uns professores secundários ligados aos movimentos sin-dicais, caso dos ferroviários, e acabavam sendo chamados na polícia. Não che-gavam a ser demitidos, mas foram presos durante um certo tempo para inter-rogatório, foram ameaçados, aquela coisa toda que ocorreu um pouco em cada lugar. Em algumas cidades mais, outras menos, mas isso fez com que brotasse no seio da própria Universidade uma insatisfação contra a Ditadura.

De fato, os institutos isolados no interior foram os locais onde de certa for-ma se “gestou” e se produziu oposição ao Regime Militar, que foi mais intenso a partir do golpe de 1968. Houve o fechamento do Governo, a repressão passou a ser visível. Os policiais frequentavam os campi e houve também uma conver-são: muita gente foi participar de movimentos ligados à luta armada – mais ou menos intensamente. Houve em São Paulo uma classe inteira de pessoas que se voltaram para os movimentos de luta armada.

A universidade foi castigada mesmo depois do AI-5. Na USP e também no interior houve várias cassações. Quem ficou manteve-se de uma forma sub-terrânea atuando contra o Regime. Desaba a repressão sobre o movimento de luta armada – que se organizaria a partir de 1967 e logo houve confronto direto com as forças de repressão.

Havia muito improviso na luta armada e também na repressão. Quando se organizou a Operação Bandeirantes, a OBAN, o DOI-Codi, era um grau de improvisação igual ao que tinha a organização dos guerrilheiros do PCdoB que

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queriam fazer focos de luta na zona rural. Também havia focos de luta urbana, que eram os outros grupos, como o Partido Operário Comunista.

Essas pessoas, muitas vezes professores universitários, em virtude dessas participações mais amplas, eram triadas e a universidade passou a ser mais investigada. Por exemplo, quando dava aula na USP, dizia: “moçada! Turma do DOPS! O tema hoje é esse, anotem aí direitinho”. Escrevia na lousa: “anotem direito para não mandar essas informações erradas para o DOPS!” Ali as brin-cadeiras eram normais. Eles estavam lá assistindo à aula.

Esse foi o cenário pós-1968. Havia uma repressão externa da universida-de? Não, havia uma fiscalização. O foco da repressão estava nos movimentos sindicais e também na vigilância dos estudantes. Então os episódios – mesmo aquela história de Ibiúna, no congresso da União Nacional dos Estudantes, a UNE – não tinha nenhum perigo; tanto que prenderam todo mundo. Era uma forma de mostrar o poder do Estado que se organizava como repressão, e de certa forma impedir que houvesse uma expansão dos movimentos de oposição.

Vale lembrar de um fato importante. O Abreu Sodré era o governador pau-lista em 1968. Logo depois foi substituído pelo Laudo Natel. O período Abreu Sodré, apesar do reconhecimento do Regime no plano federal, protegeu muito a universidade: “quem manda no Estado sou eu”. Ele não era um radical, obscu-ro. Era uma “elite ilustrada”. Ele, de certa forma, segurava a repressão. Ele não pode mais quando assumiu o Costa e Silva e daí veio o AI-5. Houve a punição exemplar da universidade para que houvesse uma espécie de “registro” da re-pressão e todo mundo andasse na linha.

O governo Abreu Sodré deu uma cobertura grande às universidades pau-listas. Por exemplo, no Rio de Janeiro, sofreu-se maior repressão do regime, mais que a USP. Era mais direta: expulsava, mandava embora e acabou. Não tinha muita ‘finura’. O Abreu Sodré, não. De alguma forma, ele protegeu esse patrimônio cultural universitário. Isso é bom que se registre. Depois, o período dos anos seguintes foram anos muito bons, em 1971, 1972.

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81Depoimento 2 – Ulisses Telles Guariba Neto

Os anos do milagre econômico e as universidades paulistas

Pois é, os efeitos do milagre se faziam sentir nas contas públicas, o Sodré coordenou a universidade melhor, acertou salários, criou tempos integrais, regu-larizou a universidade. Em 1969, foi aprovada a Lei de Reforma Universitária, a 5540. A universidade acabou sendo “bem tratada”, pelo menos em São Paulo. Os salários melhoraram, apareceu o tempo integral. Tanto é que eu era professor da USP e do instituto isolado [de Assis], podendo optar por tempo integral na USP ou no instituto isolado. Só que na USP não saía, pois o Departamento de Filosofia era mal visto pelo Governo do Estado. Então, não dava dinheiro para a Filosofia.

Era difícil conseguir tempo integral na Filosofia da USP, mas no interior, não. Era fácil conseguir no Instituto Isolado de Assis. Então me ofereceram tempo integral lá e fui fazer minha tese de doutorado em Assis, em 1971 até 1974. Esse era o quadro.

Não sei se isso explica alguma coisa mas, nesses anos mais duros, houve muitos episódios ligados à militância externa na universidade. Agora, o que houve sempre dentro das instituições foi a cooptação dos professores. O Go-verno Militar tinha um poder grande de cooptação. Cooptou todo mundo em 1964 e cooptou depois nos anos 1970.

Havia, dentro das universidades, resistentes e favoráveis ao Regime. Em Assis mesmo, a maioria dos velhos professores titulares era absolutamente fa-vorável a ‘revolução’, ao que acontecia, como o “milagre” econômico. As vozes divergentes eram minoritárias. Havia o Movimento Estudantil, que se forta-leceu muito no final da década de 1960. Também teve a briga pela Reforma Universitária. Foram anos agitados, entre 1967 e o início de 1969. A partir daí, acabou a farra e o Regime se fechou.

A luta passou a ser fora da universidade, e às vezes quem era atingido é quem também militava fora. Esse foi o cenário do fechamento do Regime. Cla-ro que a USP votou a Reforma Universitária em 1969. O Zeferino Vaz chamou até um cassado amigo dele de São José do Rio Preto para organizar a Unicamp. Esse cara fez um excelente trabalho e votou em 1968 o Estatuto da Unicamp, que era modelar na época. Foi melhor do que o da USP, reformulado em 1969. Era mais democrático, mais voltado para o horizonte da pesquisa, do fortaleci-mento da instituição como unidade. O Estatuto da Unicamp era modelar, o da USP seria reformulado em 1969.

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A Unesp era um problema: o que fazer com esse monte de institutos isola-dos? Houve muitas ideias em discussão na época, inclusive integrá-las à USP. O Hélio Lourenço, que foi reitor também, fez um debate sobre a Reforma Universi-tária e um projeto, chamado de “USPão”, era a grande Universidade de São Pau-lo, integrando todos esses institutos. Seriam todas as instituições de ensino su-perior organizadas em polos regionais, para que houvesse uma descentralização e uma integração funcional de professores, administrativos, com um conselho gestor político e forte, formado basicamente por representantes do corpo docen-te, mas também com representação das várias categorias, dos funcionários, da sociedade civil. Seria um conselho político forte que daria orientação política à força da USP. Depois, os conselhos técnico-administrativos, que gerenciariam a graduação e a pós-graduação, viriam como órgãos gestores dessas várias regiões administrativas. Todas seriam integradas num sistema de ensino superior.

Isso nunca foi adiante. As iniciativas acabaram sendo fragmentárias. Ou seja, Zeferino Vaz querendo criar uma Universidade em Campinas; a USP mui-tas vezes multiplicando cursos e assumindo uma feição com “vários tentáculos” pelo interior afora, e sobravam os institutos isolados. E o que fazer com eles?.

A criação da Unesp

O Luiz Ferreira Martins tinha sido do Conselho Estadual de Educação, na época do 3º grau, e foi ser secretário de Educação do Paulo Maluf. Foi aí que ele vendeu a ideia para o Maluf de transformar esses institutos isolados numa uni-versidade. Era uma ideia que ninguém necessariamente era contra. Ganhar o status de universidade e entesourar-se era um ganho. Isso porque antes eles [os institutos isolados] eram administrados pelo Conselho Estadual de Educação 3º Grau e dependia da força política local para conseguir verba do governador. Era isso que fazia criar essas unidades. Nenhum desses institutos isolados foi criado por interferência do poder político local. Era o Governo Estadual que liberava os recursos para eles.

O que fazer? Fazer uma universidade foi a proposta do Luiz Ferreira Mar-tins. Ele juntou um grupo – de titulares, catedráticos – e transformou esse grupo numa “clientela” de amigos dele. Eles elaboraram um projeto de Estatuto. Pri-meiro fizeram a média política. “Maluf: O nome da faculdade terá que ser ‘Júlio

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de Mesquita Filho’, porque você vai ter o Estadão do teu lado”. E o jornal era con-tra! O Estadão tinha uma tradição, fazia editoriais contra os institutos isolados.

Fizemos algumas concentrações regionais. Por exemplo, tivemos uma fa-mosa que foi em Presidente Prudente. Reunimos num ginásio em Prudente mais ou menos umas cinco mil pessoas: professores, alunos e a comunidade. A cidade inteira foi para o estádio apoiar, com o prefeito Constantini Brasili. Foi um evento em defesa da Faculdade de Filosofia de Prudente. O cidadão João Eduardo Villa-Lobos publicou um editorial no Estadão dizendo “imagine o pedreiro, a empregada doméstica, todo mundo reunido discutindo os destinos da universidade. É ridículo, universidade não se faz assim…”

Tem uma história famosa e verdadeira. Um deputado chegou no portão dos Mesquita e disse: “Consegui uma faculdade para minha cidade”. E a resposta: “La-mento. Pêsames! Porque vocês estão, ao criar esses institutos, enterrando o ensino público da USP”. Ele era defensor da USP e não queria que o dinheiro público fos-se para outras unidades, achava que tinha que ser concentrado na USP. Era uma visão dele, do Roque, do João Villa-Lobos – que eram redatores, editorialistas do Estadão na época. Havia outro que foi reitor de Brasília, que era do mesmo grupo, também jornalista do Estadão. A ideia de pôr “Júlio de Mesquita” era exatamente para ter o apoio do jornal para formação dessa nova universidade.

Os tempos eram outros e não tinha mais sentido falar dos institutos isolados, pois era outra realidade. Queríamos que a universidade fosse fundamentalmente democrática e o que havia como ideário na época era o Estatuto da Unicamp. Mas na criação da Unesp foi feito um tremendo de um fechamento – uma ação entre amigos. Fecharam cursos e distribuíram cursos em função de interesses puramente locais. Diziam alguns mais afoitos que visavam privilegiar as escolas privadas; então não queriam alguns cursos universitários porque na localidade lá tinha uma escola que estava crescendo, então eles eram transferidos para outra.

De fato houve remanejamentos em função de interesses locais: “esses soció-logos aqui de Prudente estão nos incomodando, mande-os para Marília”; “os filósofos aqui de Assis incomodam pra caramba. Aqui é um curso de Letras e não pode ter um curso de Filosofia que só atormentam nossos alunos; leva o curso de Filosofia para Marília”. Coisas assim. Tiraram um curso de São José do Rio Preto e mandaram para Marília. Enfim, arranjos internos da faculdade.

Sempre houve uma ala progressista dentro da universidade, que foi se avo-lumando nos anos 1970, como um sinal em todo o resto da sociedade. As

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eleições de 1974 marcaram uma trajetória – depois de 1974 ficou muito difícil o governo se mexer – optando-se pela transição lenta, gradual e segura. Veio o pacote de abril de 1977. Todo mundo pensou que seria uma contrarrevolução, um novo 1968; no entanto, em 1978 não foi aquele estouro da oposição nacio-nalmente. Em 1982 acabaram sendo eleitos os governadores: 20 governadores do MDB foram eleitos, o que de certa forma colocou o governo do general Figueiredo na “retranca”.

Não havia alternativa a não ser criar os mecanismos de transição. Dentro do partido da oposição, duas coisas se ordenaram desde cedo: o grupo do Tancredo Neves, dizendo “nós queremos a eleição indireta” para renovar o governo fede-ral, e o grupo do Ulysses Guimarães que queria a eleição direta. Não foi direta, perdeu no Congresso, teve a eleição do Tancredo, indireta. Com a morte dele, assumiu o José Sarney como presidente da transição para a Nova República.

Esse trajeto impactante todo fez também com que, na formação da Univer-sidade, o Luiz Ferreira Martins ganhasse a parada. Montou a Universidade do jeito que ele queria. Só que a resistência era terrível.

Assis

Por exemplo, em Assis, em 1980, renovou-se o mandato do diretor. Nós tivemos o bumbo enorme tocando durante seis meses, dia e noite no câmpus: BUM! BUM! BUM! Os alunos batiam aquele bumbo das seis da manhã até a meia-noite. Foi durante seis meses na porta do diretor.

Foi feita a eleição direta em toda a universidade para reitor. Nosso candidato foi o William Saad Hossne, que ganhou estourado. Mandou o nome pro C.O. – ele fazia parte do Conselho Universitário, representando Botucatu. O C.O. não incluiu o nome dele na lista tríplice. Era o Montoro o governador. Havia um gru-po – nós éramos do MDB e sempre nos reuníamos – pessoal da Unicamp, pessoal da USP, tinha o André Montoro, que era da assessoria dele. Reunia-se um grupo de uns 12, que trabalhavam no Governo e na Secretaria de Assuntos Políticos.

Éramos chamados para dizer o que fazer com a Universidade. Aí decidimos que a solução não era nomear ninguém. Daí, chamamos o Fábio Prado, que foi sempre o cabeça da USP: “Fábio, e se o governador não nomear ninguém?” Ele disse: “se não nomear ninguém, fica sem reitor. O que acontece? A lei não diz

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que é obrigado a ter um reitor, fica sem reitor. O Conselho Universitário vai indicar alguém provisoriamente”. De fato indicou.

O Fábio Prado disse: “O ideal seria fazer uma intervenção na Universidade. A gente vai ao Tribunal [de Justiça], faz um trabalho político com o presidente do Tribunal e os desembargadores para que eles reconheçam que é uma via razoável e que não entrem com liminar”. Se entrar com uma liminar, o C.O. mantém o seu reitor.

Foi feito esse trabalho todo e, em um dia de 1984, o Montoro nomeou o professor Jorge Nagle. Dentro desse grupo, que discutia as questões da univer-sidade, nós queríamos que tivesse sido o Saad porque ele era membro do C.O., tinha sido o votado, mas nas avaliações disseram: “Não, o Nagle é o homem do confronto. Se ele for reitor vai ser uma encrenca permanente. Então vamos arrumar outro nome mais conciliador”. Foi a posição do Serra que prevaleceu, e venceu o Nagle, que foi indicado interventor.

De fato, ele ficou um ano como interventor, e em seguida chamou o C.O. para indicar uma nova lista tríplice, se colocou como candidato, foi indicado na lista trí-plice, e o Montoro o indicou como reitor e regularizou – passou a ser reitor de fato – e aí o Nagle fez um trabalho importante, inclusive refazer o Estatuto da Unesp. Melhorou bastante, apesar de ter muitos problemas. Isso foi um ponto histórico.

A criação da Adunesp

Nós, em 1976, quando a oposição tomou corpo, organizamos a Associação de Docentes da Unesp, a Adunesp. Exato, fui o primeiro presidente. Foi assim: convocamos os conhecidos de todos os campi – fomos todos para Araraquara, em primeiro lugar – e o grande mentor disso foi o Waldemar Saffioti. Ele foi o “pai da criança”; ajudou a chamar o pessoal das áreas técnicas. Ele tinha muito prestígio como professor. Nós chamamos o pessoal da Filosofia e marcamos uma grande reunião em Araraquara e lá fundamos a Adunesp. Depois a elei-ção, se não me engano, foi em Araraquara.

A fundação foi em Araraquara; assinamos lá os documentos. A festa de comemoração foi em Marília. Lá, estava o Waldemar, a Heleieth Saffioti, a Vera Botta. Tinha o pessoal de Rio Claro, de Guaratinguetá, de Botucatu, de As-sis, Prudente, Marília e São José do Rio Preto. Não tinham representação nem

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odontólogos de São José dos Campos nem os de Araçatuba. Depois tivemos um ou dois de Araçatuba, que se inscreveram. Organizou-se o “Fundo Adunesp”.

Estabeleceu-se uma linha de ação conjunta com a Associação de Docentes de Botucatu. É que lá eles tinham uma antiga associação de docentes, dos mé-dicos, que era corporativa, ligada às atividades profissionais, faziam contratos. Era uma associação bem avançada para a época. Trabalhamos muito em con-junto com o pessoal de Botucatu.

Essa movimentação foi de agitar, fazer debates, discutir, apresentar artigos, publicar. Nós tivemos cobertura da imprensa. Tínhamos muito apoio do Per-seu Abramo. Ele era editor de Educação da Folha. Ele e a Irede Cardoso, que depois foi vereadora e deputada estadual pelo PT, muito amiga nossa, colega de escola. Havia esse apoio, com declarações, publicação de artigos nos jornais, textos. Marcávamos reuniões em cada lugar.

A reunião de Presidente Prudente

Em Presidente Prudente, houve uma reunião com cinco mil pessoas. Com a Aracy Balabanian! O Armen Mamigonian, agora professor aposentado de Prudente, é irmão da Aracy. Mas ela esteve lá, apareceram artistas, teve música, muita gente... Foi uma festa e tanto! Havia essas mobilizações. Alguns profes-sores que não tiveram contrato renovado – foram uns dois que estiveram em Prudente. Houve isso em outros locais também.

O Luiz Ferreira Martins, que também não era bobo, era esperto, dizia assim: “Eu vou levar o Estatuto para ser discutido em cada lugar”. Então ele marcava: segunda-feira às 8 da manhã em Assis, às 11 em Presidente Pruden-te, às 14 em Marília, às 15 em São José do Rio Preto, às 16 em Araçatuba...vamos supor, um dia assim. Só que ele ia de avião, a gente, de carro. Tinha que acompanhar esse debate em cada lugar e iam dezenas, centenas de alunos, de professores, que contestavam todo o projeto. Ele abria o debate, a gente falava contra, ele fechava o debate, encerrava a discussão, e dizia que o projeto ia ser esse mesmo e ia embora, tomava vaia. Chegava em Prudente a gente já estava lá. Corríamos o Estado inteiro atrás do Luiz Martins. Às vezes nos dividíamos, porque tinha áreas diferentes. Foi uma grande mobilização.

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Essa mobilização permitiu, depois, discutir as questões na Universi-dade e buscar uma solução na época do governo Montoro, que foi o novo Estatuto. Aquelas ideias todas foram discutidas de alguma forma o Nagle colocou no Estatuto.

O pioneirismo da Adunesp e a organização das demais ADs

Agora, o movimento das associações também tem uma pequena história: nós fundamos a Adunesp antes da Adusp – do renascer da Adusp. Um ou dois meses antes. Eu participava das duas. Isso em 1976. Eles ficam bravos quando a gente fala, mas nós fizemos antes, em Araraquara.

Depois desse período, quando eu saí da Unesp, fui coordenador da Adusp na Filosofia por dois anos e era também representante dos assistentes na Con-gregação. A Adusp tinha um projeto: quando ela se formou, nós achávamos que essas associações deveriam ser feitas em todas as universidades brasileiras. Então nós saíamos com o Luiz Carlos Guedes, da Física; tinha um grupo da Adusp que ia às universidades. Eu fui em algumas.

Eu ajudei a organizar na Universidade Estadual de Londrina. Depois tive-mos um grande debate na Federal do Rio, depois estive em Belo Horizonte, de-pois em Florianópolis, depois em Vitória, para organizar as ADs dessas facul-dades. Depois estivemos na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a SBPC, e nós organizamos uma associação na Universidade Federal do Ceará. A de Pernambuco estava mais avançada.

Assim foram organizados núcleos de ADs. Realizamos em 1977 um encon-tro da SBPC na PUC-SP e fizemos uma coalizão, um debate das associações de docentes. Tivemos naquele ano dez associações organizadas no Brasil inteiro. Vinte e duas em núcleos, em processos de organização. Já eram mais de 30. O Antônio Cândido esteve conosco em vários debates. Na verdade, queríamos discutir qual a estratégia política dessas associações, o que elas teriam que fazer.

A Associação deveria primeiramente, ser profissional: lutar por salários, regras bem estruturadas na carreira, ter uma função quase que sindical. Segun-da função: ser o “aríete” contra as formas autoritárias de ordenação na univer-sidade, bater naquilo que não é forma democrática. Até os limites. Por exemplo, tinha gente que queria eleição direta para reitor. Nós nunca defendemos isso.

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Achamos que tinha que ter um equilíbrio entre a representação docente, que faz a alma da universidade, a representação funcional, que é funcional, e a re-presentação do aluno, que é o consumidor do saber. Mas nunca uma alegoria dos docentes, não podia ter. “Vota todo mundo!” – isso nós não concordamos.

Tinha que ser um “aríete” contra as formas de organização conservado-ra, democratizando-a, fazendo os departamentos funcionarem de forma mais democrática, tendo representação do aluno, estabelecendo formas de diálogo mais adequadas entre professores e alunos, pensando no fundamento, no re-gimento e na qualidade de ensino, essencial, e nas formas de avaliação. Essas eram as funções das associações de docentes: discutir isso.

Por último, fazer um plano da Reforma Educacional do governo. Tínha-mos que pensar uma universidade para o final do século, ou seja, começar a discutir a questão da estrutura, do funcionamento das universidades bra-sileiras em prol das mudanças aceleradas que estavam ocorrendo no mundo. Esse era o projeto que deveria orientar as ações dos docentes. Cumpriu bem a função de se contrapor, as funções profissionais, mas nunca conseguiu for-mular um projeto original e novo de universidade. Principalmente porque ela começou a se atrelar a partidos.

Antes, por exemplo, nós tivemos o aparelhamento típico – pelo PT, pela Central Única dos Trabalhadores. O aparelhamento dessas associações acabou virando um apêndice partidário e não um órgão de reflexão interna da própria universidade sobre ela mesma. Esse foi o grande equívoco dessas associações. Tanto é, que perderam representatividade, porque não tinha uma proposta que mobilizasse a comunidade universitária em direção a objetivos maiores de or-ganização, de reformulação de seus horizontes.

Aquilo que existe hoje é a mais urgente necessidade de se repensar o pro-jeto de universidade para o Brasil. Houve avanços, lógico. Mas naqueles anos se avaliou muito pouco a importância do ensino técnico e ensino científico; as universidades avançaram por conta própria, mas você não tem uma clara formulação de uma política científica e tecnológica na universidade. A orga-nização das pesquisas, a formação – tanto é que isso foi totalmente deslocado do eixo da universidade pro CNPq, para a Finep, para a Capes. Ou seja, para o Governo Federal, que é hoje o dono da grana.

As universidades ficaram muito dependentes desses órgãos centrais de ges-tão, quando isso deveria estar muito mais ligado à gestão própria da universi-

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dade. Esse é um exemplo. Veja a avaliação do ensino tecnológico hoje, em São Paulo, por exemplo. Existe um tremendo programa de ensino tecnológico em expansão. Nos anos 60 era mal visto, se dizia que estava se formando “mão-de-obra para as empresas, para o avanço do capitalismo”. Era muito curioso isso. Hoje não, hoje é uma realidade que tem que ser enfrentada, discutida, aprofun-dada e desenvolvida, quer dizer, esses são dois exemplos no ensino tecnológico.

A gente vê o Governo fazer uma coisa que é um escândalo, o ProUni: en-tregam o dinheiro público para as escolas particulares, que fajutam um curso de quinta categoria. Mas eles cooptam os empresários do ensino, eles se enri-quecem, repassam dinheiro. Tem gente aí que organiza escola só para receber dinheiro do ProUni. Evidentemente, com todos os compromissos de corrupção envolvidos. Quando é que se poderia – nos anos 1960, 70 e 80, imaginar um governo que fizesse o despejo do dinheiro público sobre as escolas particulares. Essas pessoas deveriam ser pelo menos fuziladas, segundo nossa ótica daque-le tempo. Fazem isso com maior descaramento e ninguém protesta. Para ver como as coisas mudaram. É preciso repensar todos esses projetos nacionais.

Ainda sobre a criação da Adunesp

A criação da Adunesp era uma forma de mobilização e de organização dos professores, para discutir o que iria acontecer na universidade – já que se falava numa universidade nova – como organizar uma seção para discutir essa uni-versidade. Ela tinha função fundamentalmente de mobilização dos professores para discutir, para participar do processo de elaboração da Unesp.

A crítica ao anteprojeto do professor Luiz Martins

Dizíamos o tempo todo sobre o estreitamento do Conselho Universitário, as regras de sucessão fechadas, tudo dirigido por uma organização da cúpula. Não havia representatividade da comunidade. Por exemplo, os diretores eram nomeados pelo C.O. Não havia, sequer se pensava em eleição, em indicação, era tudo [decidido] nas congregações. Os titulares eram membros permanentes

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dessas congregações. Havia uma ou duas representações; era uma estrutura muito fechada. O Luiz Martins estava sempre à frente.

Quando o Luiz Martins apresentou o Estatuto, disse: “vou fazer uma con-sulta”. Ele fez uma consulta relâmpago. Em poucos dias. É verdade que os estu-dantes e professores participavam deste debate, mas sua participação acabava sendo dizer que não era da forma como estava sendo proposta que eles que-riam. Acabou havendo polarização entre os professores em todo lugar.

Havia o pessoal com assentos nas mesas, que eram os favoráveis, e os que estavam fora das mesas, que eram contrários, junto com os estudantes. Havia discussões, debates. Como eu disse anteriormente, abria-se a discussão, a co-munidade falava e o Luiz Martins respondia. Do lado dele tinha o Armando Ramos, que também respondia, embora fosse agressivo – eu brigava muito com ele. Os alunos aplaudiam, diziam que não era o que queriam. E o Luiz Martins terminava: “já fiz a consulta, vou embora”.

Repressão à diretoria da Adunesp

Eu fui processado algumas vezes pelo Ferreira Martins, por entrevistas que eu dava na Folha de S. Paulo. Quem me defendeu foi o Freitas Nobre, que era meu advogado. Eu o conhecia pela vida política, partidária e também foi advo-gado da Folha – que passava a também ser ré no processo. Mas esses processos nunca foram para frente, não deram em nada, foram arquivados. Eu lembro até que um dos processos foi tão mal feito pelo Miguel Reale Jr., contratado pelo Luiz Martins, que o Rangel Pestana, advogado da Folha, disse: “esse é tão ruim que eles não têm nenhuma vontade de te incriminar”. O Luiz Martins não gos-tava do debate, que era o que sempre propus nas entrevistas. Ele geralmente se sentia ofendido. Daí, vinha processo por calúnia e difamação.

Da universidade para a sociedade: a formação de quadros políticos

Em Prudente houve uma movimentação importante. O pessoal da Unesp resolveu tomar o MDB dos “bandidos” que havia por lá. Tinha dois grupos,

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o grupo do Senado e o grupo da Arena. E tinha um MDB que ninguém dava bola. Eram uns picaretas, que na época tinham as famílias como membro e ven-diam apoio. Nunca funcionou direito. O pessoal da Unesp dizia: “vamos tomar o MDB”. Daí, todo mundo se filiou. Renovaram o partido, fizeram um MDB novo e lançaram candidato, que foi eleito. Só para ilustrar, era o Mauro Bragato, então presidente do diretório acadêmico. Ele foi eleito, em 1978, deputado esta-dual, o que mostra que o debate da universidade estava atingindo a sociedade.

Todos nós – o MDB –, em 1977, praticamente todo mundo foi fazer a cam-panha do Fernando Henrique. Graças a isso, acabamos nos filiando ao partido, militando mais diretamente na política. Eu mesmo, de 1978 a 1982, fui presi-dente do MDB de Assis.

O atual prefeito – já foi prefeito três vezes – e também foi deputado, em 1982 foi trabalhar comigo na Secretaria Estadual da Educação no início, quan-do nós formamos o Marcelo Barbieri – ele era do MR-8 e queria trabalhar com movimentos sociais. Eu falei com o filho do Montoro, que disse: “ah, pode levá-lo, é por sua conta.” Ele só queria fazer trabalho social, mobilizar estudantes, tinha boas ideias, mas acabou não ficando.

Fiquei três meses na Secretaria – não dei certo com o Paulo de Tarso – e de-pois fui trabalhar na Secretaria de Assuntos Políticos. Após a eleição, em 1982, fui trabalhar com o Governo Montoro. Trabalhei dois anos na Secretaria de Assuntos Políticos, enquanto existiu, depois fui assessorar o Serra na Cetesb e no DAEE [Departamento de Águas e Energia Elétrica]. Depois teve a eleição do Quércia. Eu fui trabalhar com o Tidei na Secretaria da Agricultura. Ele me con-vidou para fazer a assessoria política dele. Fiquei lá nos dois anos que ele ficou. Quando voltou para o Congresso, fui ser diretor do CEPAM [Centro de Estudos e Pesquisas da Administração Municipal], aquele órgão que dá assessoria polí-tica para prefeito, vereador. Na eleição do Fleury, fizemos a campanha. O vice do Fleury era o atual senador Aloysio Nunes. Fui assessor dele por quatro anos.

Ou seja, fiquei praticamente 12 anos trabalhando no Palácio dos Bandei-rantes em funções diferentes. Acumulava isso com a Universidade: dava aula, autorizado pela Universidade, desde que não houvesse prejuízo da atividade docente. Isso dá uma ideia de que a gente acabou sendo “empurrado” para a área política – da universidade para a sociedade, porque mudou o quadro.

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A visita de Paulo Maluf em Assis e a prisão de João Francisco Tidei Lima

Nós fizemos uma grande passeata na cidade. Juntamos os estudantes e pro-fessores e fizemos a famosa “passeata silenciosa” e demos ali duas voltas na delegacia seccional, depois descemos a avenida principal protestando contra a prisão do professor João Francisco e contra a visita do Maluf, as duas coisas. Não sei por que foi silenciosa, alguém deve ter dado a ideia e pegou. Lembro assim: todo mundo, quase dois quarteirões de gente então, bastante gente na passeata. Esse foi também um episódio que era rescaldo daquele conflito do final dos anos 1970. A situação indicava a realização de eleição para os gover-nadores. O Paulo Maluf, governador de 1978 a 1982, era muito mal visto.

A eleição do Quelce para diretor em Assis

Participamos deste momento. Foi eleição para diretor. As sucessões sempre foram muito tumultuadas. Alguns diretores foram nomeados pelo reitor, se não me engano, o professor Joãozinho e depois o Manoel de Mendonça. O Quelce foi eleito diretor, mas não foi escolhido. Daí é que veio a mobilização dos estu-dantes, o tal bumbo. Você não imagina o que é um bumbo tocando o dia inteiro.

Primeiro o Manoel assumiu – tocou lá o bumbo por uns quatro meses, defronte à sala dele, das seis da manhã à meia-noite. O Mendonça era um con-servador. Ele nunca olhou com bons olhos para o setor mais progressista da Faculdade, mas também não era um puxa-saco do Bartini. Ele queria é o cargo de diretor para incorporar no salário dele as vantagens do cargo; a preocupa-ção dele era essa. Ele era um professor de Literatura. Só que não era o que a comunidade queria. Ele só estava interessado na função, era despolitizado. O Mendonça passou um mal bocado, ele sofreu o que o diabo pode sofrer. Ele nem precisava daquilo. Ele corre atrás de prestígio, de vantagens. Então, aquilo que fica pobre diante do objetivo maior da comunidade que era ter um proces-so mais democrático e ele era um conservador típico: “Faço. Quem tá no poder manda, eu obedeço”. Na ditadura, então, era cheio de mandantes.

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DEPOIMENTO 3

José Roberto Tozoni Reis

Botucatu, 12 de setembro de 2013.

Atualmente é professor voluntário aposentado da Faculdade de Medicina da Unesp de Botucatu. O professor José Roberto Tozoni Reis teve uma importante atuação nos episódios que envolveram a violação aos dos direitos humanos na Unesp du-rante a ditadura civil-militar e ele vai nos dar um depoimento a esse respeito.

Comentário inicial

Em 1968, quando ocorreu o Ato Institucional número 5, eu era presidente do diretório acadêmico da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de As-

sis, ainda um Instituto Isolado. Eu estudei em Assis, no curso de Psicologia, de 1967 até 1970. Retornei depois como professor em 1974, onde fiquei até 1989. Fiquei 15 anos, sendo transferido, incorporado a Botucatu, para a Faculdade de Medicina, fiquei mais 15 anos até me aposentar, e continuo até hoje como professor voluntário. Então, eu acompanhei a história da Unesp desde a sua criação, em 1976.

São três momentos importantes. O primeiro para mim é a vida estudantil, em Assis. O segundo momento importante que vivi foi o da criação da Unesp, que significou uma intervenção significativa do regime ditatorial, criando pra-ticamente um modelo de universidade que era para ser perene. Acho que a pretensão dos que criaram também era a dos que criaram o Terceiro Reich, era para durar mil anos. Porque ela foi construída por uma estrutura de poder que era para ser imutável.

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E o terceiro momento importante foi o da reviravolta desse modelo. A par-tir da democratização do país e, digamos, da conjuntura favorável à democra-tização da universidade, ocorreu em um movimento em 1984 que se iniciou com a contestação aberta a um modelo de poder instituído em Assis, em 1983.

Parte I: Estudante em Assis

1968: O movimento estudantil na FFCL de Assis, nos institutos isolados e no Brasil

Entrei como estudante no curso de Psicologia em 1967, fui da segunda tur-ma. A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis foi criada em 1958, como Instituto Isolado. Era parte da política de interiorização do ensino su-perior, da criação de polos culturais. A faculdade de Assis foi uma das primei-ras, como instituto isolado. Há outras mais antigas, mas que funcionavam não como instituto isolado do Estado, mas tinham outra personalidade jurídica. Era um projeto daquele momento.

Como se criavam os cursos? Um curso era formulado por professores que eram da USP. No caso de Assis, foi o curso de Letras. Então, os primeiros pro-fessores foram da USP. Em Botucatu, foi o curso da Faculdade de Ciências Mé-dicas e Biológicas; em Marília, foi a Faculdade de Filosofia; em Guaratinguetá, foi a Faculdade de Engenharia. Enfim, cada local tinha a sua especificidade.

Depois se ampliava. O curso de Letras foi criado em 1958; depois o segun-do curso foi História, na década de 60; depois Psicologia, em 1966; e Filosofia em 1967. Eram os cursos existentes até 1976, quando foi criada a Unesp.

Eu era da segunda turma de Psicologia, no momento em que nós estáva-mos no primeiro período da Ditadura e o movimento estudantil ainda era um movimento forte. Grande parte da contestação à Ditadura era feita a partir das universidades. Quando eu entrei, no primeiro ano, digamos, a principal ativi-dade política estudantil era se articular em torno das reivindicações ligadas às questões de ensino. Eram reivindicações de melhoria das condições de ensino e era uma diretriz dos grupos que militavam no movimento estudantil, sendo valorizar as questões específicas das reivindicações relativas às condições dos cursos. Isto era muito forte, no ano que eu entrei, em 1967.

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No final de 1967, o Diretório Acadêmico encaminhou à direção da facul-dade, depois de um processo de assembleias com os alunos, o chamado Me-morial, em que descrevia o que era tido como as carências relativas ao ensino e propondo alterações. Isso foi entregue no final de 1967, já existiam os quatro cursos. Tinha o de Letras, que era o mais antigo, tinha algumas turmas forma-das; História também; Psicologia, que estava na segunda turma. E o curso de Filosofia, que estava na primeira turma.

A Direção da Faculdade prometeu responder, e não respondeu. Naquela época, os diretores eram nomeados diretamente pelo governador. Em geral eram professores também da USP. O primeiro diretor foi o professor Soares Amora, que era o professor do curso de Letras; o segundo foi o professor Júlio Garcia Morejón, que era também do curso de Letras. Nesse período, o diretor era o professor Rolando Morel Pinto.

Quando se iniciou o ano de 1968, as lideranças estudantis fizeram uma mobilização. Aquilo que havia sido entregue à direção não só não tinha sido respondido, como o diretor havia se afastado, estava na Europa. Também o vice-diretor. Então, não se tinha a quem se dirigir, nem com quem buscar inter-locução. O que as lideranças estudantis fizeram? Uma manifestação. Naquela época não podia fazer pichações no prédio. Fizemos a pichação na entrada da faculdade, no piso, na rua, no asfalto.

No primeiro dia de aula, chegaram os professores e alunos, e aquilo cha-mou muita atenção, mais ou menos 200 metros todo com pichações, com as reivindicações específicas que haviam sido entregues à direção. Criou-se uma situação de muita perplexidade. Era a primeira vez, alguns professores fala-vam isso, que se levava para fora do câmpus as coisas que devem ser resolvidas dentro. Mas que também não seriam resolvidas, porque a direção não só não respondeu como não estava presente.

Criou-se uma situação de pressão tal que o governador nomeou um diretor pró-tempore porque a faculdade estava acéfala. Foi o professor Virgílio Noia Pinto, do curso de História. Foi o primeiro diretor que não era professor do curso de Letras da USP.

O professor Virgílio chegou e a primeira coisa que ele fez, surpreenden-temente para aquela época, foi convocar os alunos numa assembleia, no an-fiteatro, para ouvir por que estava acontecendo aquilo. Ele fez duas reuniões porque os cursos eram matutinos e vespertinos. O professor saiu chocado das

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reuniões. Ele até teve uma frase assim “quando alunos calouros fazem reivin-dicações com essa tendência, a gente até entende que é coisa da juventude. Mas quando aqueles que estão no final do curso dizem que estão saindo frustrados porque não tiveram o ensino que esperavam ter, que já são pessoas maduras, alguma coisa está acontecendo”.

Ele atendeu à reivindicação e criou uma comissão para fazer um levan-tamento de todos os problemas, uma comissão paritária. A briga aí era então quem iria eleger quem, porque os estudantes queriam eleger os seus pares, mas os professores, não. Existia um clima de antagonismo entre professores e alu-nos na questão se os professores seriam eleitos somente pelos pares ou pelos alunos também. Eu não me lembro qual foi a solução, mas os professores tam-bém eram os que tinham uma postura mais crítica ou pelo menos que eram mais abertos a receber as críticas.

Essa comissão fez um trabalho, ouviu depoimentos de representantes de classe, de chefes de departamento. As pessoas falavam livremente o que acha-vam que poderia ser feito para melhorar as condições de ensino na faculdade. Havia depoimentos livres para quem quisesse dar seu depoimento. Essa comis-são trabalhou vários dias e depois fez um relatório e entregou para o diretor.

Eu não me lembro mais as datas corretamente, mas sei que esse relatório depois foi praticamente desconsiderado porque o diretor titular e o vice volta-ram da turnê na Europa. Tornou-se secundário com o que aconteceu no país naquele momento, porque essa comissão trabalhou no começo de abril de 1968.

O assassinato de Edson Luís no Rio de Janeiro pela polícia militar

No final de março aconteceu um episódio que, digamos, unificou as ma-nifestações estudantis no Brasil, que foi a morte do Edson Luís, no Calabouço, no dia 28 de março. A partir daí, a mobilização estudantil ganhou nova dimen-são, estritamente política ou especificamente contra a ditadura. Não era o foco principal, mas a partir daí passou a ser.

Eu lembro que nós organizamos pela primeira vez em Assis uma passeata. Isso ocorreu em várias cidades do interior em que existiam institutos isolados. Eles foram, em seu projeto original, concebidos para levar, para mexer, dina-mizar a vida cultural da cidade. Existia um choque de valores, é uma cidade

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basicamente agrícola, existe um antagonismo. Foi a primeira vez que teve uma passeata de estudantes, e com o apoio da população.

O que mobilizou muito naquela época era um slogan “mataram um estu-dante que poderia ser seu filho”. A população, parte da população, podia ser conservadora, mas a morte do estudante era uma coisa muito chocante. Então foi, a partir daquele momento, o que aconteceu? No Brasil todo, o movimento estudantil cresceu até chegar a passeata dos 100 mil.

Aconteceria no final de agosto a eleição para o diretor acadêmico. Nesse tempo também, além das questões ligadas ao confronto com a ditadura, os ins-titutos isolados começaram também a se articular quando surgiu a ideia de ter uma universidade, deles serem integrados, se falava numa integração naque-la época. Em relação aos professores, não existia uma entidade representativa porque a Adunesp foi criada para combater a criação da Unesp nos moldes que ela estava sendo criada. Foi uma reação à criação da Unesp.

O Congresso de Araraquara, o de Rio Claro e o de Ibiúna

As lideranças dos professores e estudantes se articularam e convocaram um congresso, em Araraquara. O congresso era para discutir o que se falava de integração dos institutos isolados, porque eles eram dispersos e eram lite-ralmente isolados. Isso fez o congresso de Araraquara ser marcado por uma certa tensão inicial. Era no mesmo período em que aconteciam paralelamente várias atividades e os congressos estaduais clandestinos. A União Nacional dos Estudantes, a UNE, era clandestina e preparava um congresso em Ibiúna, em outubro daquele ano.

Havia um clima de contestação no país, principalmente nas universidades. Existia clara repressão policial, tudo muito misturado. Era um congresso, era um evento, era público. Os congressos da União Estadual dos Estudantes, da UEE, eram clandestinos. Mas esse congresso dos representantes dos institutos isolados era um congresso público, com divulgação, aberto. Existia uma tensão no começo com o boato de que não se realizaria e que haveria intervenção poli-cial, o que não ocorreu. Depois dos primeiros dias, foi mais tranquilo.

Esse congresso terminou com uma proposta de criação de uma universi-dade do interior do Estado, que fosse uma universidade democrática, portanto,

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que tivesse uma estrutura de poder que contemplasse a participação nas deci-sões, principalmente de professores e funcionários. Importante lembrar que esse congresso foi paritário também, ele tinha o mesmo número de represen-tantes dos alunos e de representantes dos professores.

Esse congresso, por limitações de tempo, não pode terminar suas delibe-rações. Então, foi marcada uma continuidade e definido que seria em outubro, em Rio Claro. Nesse meio tempo aconteceu a eleição do diretório acadêmico em que eu fui candidato a presidente. A eleição não era por chapa, era por car-go, então aconteceu algo muito insólito: os membros eram da chapa composta por duas tendências do movimento estudantil.

Uma tendência que naquele momento era ligada originalmente ao Partido Comunista Brasileiro, mas que não era mais do Partido Comunista, e, sim, das dissidências do Partido Comunista. Em nível nacional tinha como represen-tante no Estado o ex-ministro José Dirceu. Ele foi presidente da UEE em São Paulo. A outra parte do movimento estudantil se originou da Ação Popular, que foi um movimento que nasceu dentro da Igreja Católica, mas que depois virou a Ação Popular Marxista Leninista, e que tinha uma aliança, naquele momento, mais próxima com o PCdoB.

Em Assis, nós não tínhamos ligações orgânicas com essas correntes, com esses partidos, com essas organizações, tínhamos ligações de afinidade. Nós organizamos uma chapa que contemplava as duas forças de esquerda do movi-mento estudantil. E havia outra chapa com os alunos mais despolitizados e que estavam ligadas a professores mais conservadores. Foram eleitos parte de uma chapa e parte de outra.

Eu me lembro que o secretário e o tesoureiro eram das chapas opostas e as duas vice-presidentes eram da nossa chapa. Eu era candidato a presidente e deu empate! A comissão era composta também pelo professor Ênio Fonda, que era um professor conservador, mas amigo dos estudantes de esquerda, pessoa das Letras, embora dizia-se que ele era informante policial infiltrado. O terceiro era o secretário da faculdade. Naquela época, a administração tinha um poder muito forte, não o corpo administrativo como um todo, mas aqueles do topo da administração. Ele sugeriu: “vamos resolver isso logo, pelo critério universal”. Qual é o critério universal? Quando você tem um empate em todos os critérios de uma eleição, é a idade.

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Eu tinha 20 anos, tinha aparência de menino. Em relação ao outro, eu era um mês e meio mais velho e ele achou que fosse o contrário. Então o presidente convocou uma assembleia do Diretório Acadêmico para decidir se acatava ou não a decisão da comissão eleitoral. Eu assumi, contrariando a direção da fa-culdade. Chegou-se a fazer uma ameaça de não liberar os recursos destinados ao diretório. Houve um certo confronto, liberaram a verba e reconheceram o resultado da eleição.

Na realidade, eu só fui destituído na prática em dezembro, quando bai-xou o Ato Institucional nº 5, o AI-5. Mas isso ocorreu entre o Congresso de Araraquara e o de Rio Claro. Foi por causa desse de Rio Claro, que não fui pra o congresso da UNE. Tinha também umas questões pessoais. Eu trabalhava e estudava e, como o Congresso da UNE era clandestino, você tinha que se deslocar da sua cidade três ou quatro dias antes, que tinha uns esquemas de despistamento para chegar até o Congresso. Então nós não íamos diretamente até o local do Congresso. Cada um ia para um lugar e isso demorava em torno de três dias. Então, tinha que se ter muito tempo.

Decidimos, na diretoria, que iria a vice-presidente e eu iria para de Rio Cla-ro. O que aconteceu? Eu estava em Rio Claro quando houve toda a repressão do Congresso de Ibiúna. Eu me lembro que eu saí da reunião e fui para São Paulo contratar advogados para fazer a defesa da colega que havia sido presa no Con-gresso, a Isabel Perón Andrade, vice-presidente do diretório. Ela fazia História e, até onde sei, dava aula na USP. Ficou presa por mais de duas semanas.

Eles foram fazendo as filtragens e mantiveram presas as lideranças nacio-nais e regionais importantes. Eram o Travassos, que era presidente da UNE, o José Dirceu, presidente da UEE, e o Vladimir Palmeira. Na época, haveria a eleição da nova diretoria durante o evento. O Vladimir Palmeira estava con-correndo. Outras lideranças regionais importantes também ficaram presas. De qualquer forma, a Isabel foi solta.

A ocupação das faculdades

A palavra de ordem naquele momento é que, se houvesse algum tipo de repressão, os estudantes deveriam ocupar as faculdades e, no interior, quem cumpriu fomos nós, em Assis e Botucatu, que tinha o movimento mais forte de

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todos os Institutos Isolados. No interior de São Paulo, várias faculdades foram ocupadas, inclusive na USP. Nós mantivemos a ocupação por mais de uma se-mana e depois o câmpus foi sendo paulatinamente desocupado.

O AI-5

Tivemos depois, em dezembro, o AI-5. Ou seja, isso aconteceu concomi-tantemente à passeata dos cem mil, em 1968. Depois teve o famoso discurso do deputado Márcio Moreira Alves, que as moças não se casassem com os cadetes. O governo da época já era do general Costa e Silva e ele propôs a cassação do mandato do deputado Moreira Alves de maneira com que o próprio Congresso o cassasse, por decoro parlamentar, porque ele tinha ofendido as forças arma-das. A câmara negou e depois, em resposta a isso, veio o AI-5 e as cassações poderiam ser feitas sem passar por nenhum órgão, nem pela Justiça, suspendeu todos os direitos individuais e os direitos políticos.

Nesse momento houve um refluxo no movimento estudantil e nos mo-vimentos sociais que também combatiam a Ditadura, foram acuados. Houve uma desmobilização. Eu costumo dizer que trouxe pra mim um ganho profis-sional, porque, com a diminuição da atividade política, eu me dediquei mais ao estudo. Não que eu não estudasse, estudava muito, mas os estudos eram voltados para a formação política e havia empenho nisso.

Para denegrir o movimento estudantil diziam que quem participava eram alunos que não queriam estudar e que tinha notas baixas. É que existia tam-bém, isso antes da Ditadura, os que eram chamados estudantes profissionais. Falavam isso pejorativamente, porque eram militantes que ficavam nas entida-des e que obviamente, quando assumiam entidades estaduais ou nacionais, se afastavam das atividades de ensino. Falavam que era estudante profissional pe-jorativamente. Mas eu lembro que todos os meus companheiros do movimento estudantil, do ponto de vista acadêmico, eram bons alunos. Ninguém descui-dava dessa parte, só que a gente dedicava muito tempo à formação política.

Parece que o tempo durava mais naquele momento. Dava tempo para tudo. Meu curso era das 7 da manhã ao meio-dia, eu trabalhava. No final do primei-ro ano da faculdade eu prestei um concurso pra funcionário público municipal, na Prefeitura. Do meio-dia às seis. Como era estudante, tinha tolerância pra

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chegar mais tarde, 30, 40 minutos, era o tempo de comer correndo e ir. E à noite dava tempo para fazer política e boemia, de ouvir o rádio, ler e estudar. Isso era das 11 às 2 da manhã. O dia parecia mais longo.

A repercussão da invasão da UnB, em Assis

Nesse momento, surgiu uma questão importante para o ensino superior. Em agosto, houve a invasão da Universidade de Brasília, a UnB. Coincide com o discurso do Márcio Moreira Alves na tribuna do Congresso.

Em Assis existia um deputado do MDB que era de um grupo progressista do MDB chamado de autênticos, que era do deputado Santilli Sobrinho. Ele morava lá e o filho era estudante da UnB. Ele foi lá, fazer a intervenção como parlamentar e acabou sendo alvo da repressão, tomou muitas cacetadas.

Na época nós estávamos no período de eleição para prefeito, e tinha um candidato do MDB que ganhou. Ele foi lá, era deputado da região, chamado para ser homenageado, era uma sessão de desagravo na Câmara, por ele ter sido alvo da repressão policial. Ele era inclusive o autor do projeto que criou a faculdade, quando era deputado estadual. Ele tinha essa identificação com o movimento estudantil. Eu fiz um discurso, como presidente do diretório acadêmico. Eu era funcionário da prefeitura, e o prefeito um dia me chamou: “Tozoni, eu não sei o que eu faço com você. Me chamaram em São Paulo, no DOPS; tinham gravado o discurso que você fez e me fizeram ouvir o discur-so. Eu não tenho nada com isso, você é meu funcionário, e o discurso foi na Câmara, no Poder Legislativo. Mas as coisas que você falou, cada coisa que você falava, o quepe do coronel até subia na cabeça. Por favor, pare com isso.” Depois ele falou: “Mas, de qualquer forma, eu fiz um acordo com ele de que eu seria avisado se você fosse preso. Então fique de malas prontas, eu te aviso e você some, e reaparece algum dia”. Ele foi muito humanitário, embora fosse da Arena, tinha boas relações com os funcionários. Com a desmobilização do movimento estudantil, às vezes ele falava “Olha, tem alguma coisa aí, mas não tem ordem de prisão”. Foi uma situação de muita apreensão, mesmo já não tendo mais a militância aberta. Era uma época mais de resistência.

Mas o diretório acadêmico continuou. O diretório foi criado logo depois do Golpe Militar. Ele coexistiu às vezes de forma antagônica, era centro aca-

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dêmico e diretório acadêmico. Nós só tínhamos o diretório acadêmico. O que houve foi que, se não fui destituído, acabou hibernando, vamos dizer assim. A direção não recebia mais nenhuma ajuda. Foi a partir do AI-5. Isso foi no dia 13 de dezembro, estava no final do período de aula. Quando nós voltamos em março, não conseguimos continuar, mas não houve uma destituição formal. Na realidade, a gente não tinha mais o poder de mobilização para confronto, estava todo mundo muito assustado, com muito medo. As lideranças não con-seguiam nem fazer assembleia.

O movimento realizado pelos estudantes da Unesp no interior do estado foi muito importante, saiu um pouco do eixo Rio e São Paulo. Em 1968, estáva-mos na discussão e na resistência à implantação da reforma universitária que tinha os compromissos com o Banco Mundial, com o MEC-USAID.

Parte II: Professor em Assis

A criação da UNESP

A criação da Unesp em 1976 aconteceu no governo do Paulo Egydio. Foi a proposta da Assembleia Legislativa, de tramitação muito rápida, e já na criação da lei cria-se um Conselho Universitário provisório.

Nessa época, o Luiz Ferreira Martins era o coordenador da Coordenadoria do Ensino Superior do Estado de São Paulo, CESESP, que fazia a coordenação dos diversos institutos isolados. Ele era professor na USP em Bauru, formado Faculdade de Veterinária de Botucatu. Quando foi nomeado o primeiro reitor, devendo ser provisório, convocou o Conselho Universitário, composto por ele, pelo vice-reitor e pelos diretores de unidades, todos nomeados, para fazer o Estatuto da Unesp.

Eles fizeram o estatuto, que, segundo o professor Maurício Tratenberg, não tinha nada a ver com a Unesp. Ele se manifestava: “a utopia burocrática con-cretizada”. Eles fizeram coisas que nunca se imaginou ser possível fazer de tão burocrático que era. Era assim: para ocupar qualquer cargo na Universidade tinha que ser titular e eram poucos os titulares. Inclusive, eles eram titulares na condição anterior, nos institutos isolados não existia uma carreira, então era professor “regente” ou “assistente”. Todos os regentes se transformaram em

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titulares. Tinha muito titular que não tinha nem doutorado. Então todos os cargos para sair dependiam de uma lista tríplice de três titulares eleitos pela congregação dos quais o reitor escolhia um. E os cargos de titulares eram dis-tribuídos de acordo com as afinidades. Os titulares que passaram a ser concur-sados depois que a Unesp foi criada eram sempre aliados do reitor.

Enfim, eu me lembro que na composição da Congregação da Faculdade ha-via cinco representantes dos professores titulares, o diretor tinha que ser titular e o vice-diretor tinha que ser titular, porém nunca havia cinco representantes, porque não tinha titular em geral. Aí, eram cinco titulares, sendo um dos dou-tores, um dos assistentes e um dos auxiliares de ensino.

Eu mesmo entrei como auxiliar do ensino, sem mestrado e nem pretendia ir para a Universidade. Eu tinha me formado em São Paulo, terminei na PUC-SP e estava me preparando para fazer carreira como psicólogo. Então me convida-ram para dar aula, pois precisavam, e eu me interessava desde aquela época pela Psicologia de grupos. Convidaram-me para uma disciplina que estava sendo criada, sobre dinâmica de grupo. Em 1973, eu fui procurado para ministrar uma disciplina em tempo parcial. Era para as licenciaturas. Eu fiquei um mês e meio como substituto e depois fui convidado para dar a disciplina no quinto ano de Psicologia, que estava sendo implantado.

Prestei concurso, naquela época não era concurso para provimento de car-go, era tipo um concurso público. Mas éramos contratados como celetistas. Passei e fui pressionado pelo chefe de departamento a assumir imediatamente. Eu falei: “eu não quero assumir, eu quero resolver a minha vida em São Paulo”. Eu estava me direcionando para outra coisa, embora eu fosse ficar apenas um dia só. Aí eu assumi no começo de 1974. Eu voltei como docente concursado em tempo parcial em 1974.

Militância e docência

Quando eu fui estudante, não havia nenhum professor militante, a não ser o Onosor Fonseca. Alguns poucos, como o Almeida Prado, eram simpatizantes na época, tinham boas relações. Ele era professor de Letras, tinha participado do grupo do jogral, coordenava atividades culturais, mas teve resistência na congregação, uma resistência minoritária.

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Meu currículo, embora eu tivesse dois anos de formado, era dirigido à área de grupos e relações humanas. Eu acabei ficando e não me interessei muito por pesquisa, mas já tinha experiência como professor de Psicologia no colegial. Enquanto eu terminava o curso, dei aula em um grande colégio público de São Paulo, o segundo maior, o colégio Marina Cintra. Eu tinha trabalhado lá e tinha gostado. Fui para a universidade e gostei muito, e fui seduzido para ficar em tempo integral.

Antes eu trabalhava em tempo parcial, um dia eu dava aula e ia embora, voltava para São Paulo, onde morava. Eu não fiz mestrado, fazia as pesquisas regulares que tinha que fazer. Mas a maior parte do envolvimento era com docência, com assistência, tinha uma clínica psicológica e eu gostava muito de atender também, e fui retomando, como docente, a atividade política.

Eu voltei em 1974 e, em 1976, quando foi criada a Unesp, eu atuava em período integral. Então, por esse projeto mirabolante da Ditadura, organizado pelo Luiz Ferreira Martins, foi criada esta estrutura de poder em que para se disputar qualquer cargo você tinha que ser titular, para ser titular você tinha que ser aliado do poder central. Para fazer lista tríplice para diretor, a congre-gação é que fazia. Com essa estrutura, ela era majoritariamente conservadora. Para fazer a lista tríplice ou a lista sêxtupla para reitor, tinha que ser o Conselho universitário. Quando nós conseguimos eleger um representante dos docentes que não era do “grupo”, digamos, do grupo da Reitoria, foi o João Francisco Tidei. Foi a primeira vez que isso aconteceu.

Criou-se a situação de não só se emprestarem docentes para chefe de de-partamento dentro da unidade, como emprestar de um instituto para outro, de uma faculdade para outra. Eu me lembro de um professor lá de Assis, Mário Masquerpi, que era diretor em Marília porque eles não tinham titulares.

Tinha que ser diretor e tinha que ser confiável ao reitor. Alguns, por exem-plo, o Mário, não eram do grupo do reitor, mas eles eram toleráveis porque não eram pessoas que confrontavam. Em Presidente Prudente, por exemplo, até existia um ótimo diretor, mas a Reitoria levou um professor de Araçatuba para ser diretor lá. Ou seja, eles tinham o controle absoluto, de cima para baixo. Era para ser imutável.

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Parte III: Criação da Adunesp no compasso da democratização

A Adunesp foi criada como associação porque era proibido aos servidores públicos se sindicalizarem. Mas, na verdade, esse é o sindicato dos professores. Tinha uma lei da ditadura que proibia, os servidores públicos não podiam se sindicalizar; hoje pode, por isso a associação. Tanto que a Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior, a Andes, virou sindicato bem depois.

Com isso, a resistência aumentou e a Unesp começou de uma forma bas-tante autoritária e com muita resistência. Foi a Adunesp que mobilizou na-quele momento a resistência. Foram criados núcleos em cada câmpus, exceto naqueles câmpus em que o poder era exercido de forma mais absoluta ainda. Por exemplo, Franca era o quintal do Manuel Nunes Dias, que era professor da USP. Eles não tinham na Unesp professores disponíveis e foram pegar o Manuel Nunes Dias, que era professor da USP. Muito polêmico, ele era bem direitista, então era alvo de muito embate. Tinha sido diretor da ECA, na época em que a Escola foi criada.

Franca, por exemplo, não era nem da Unesp, vinha gente de fora mais con-servadora ainda. O Manuel Nunes Dias era o troglodita. Tanto que o apelido dele era “Manequim Salazar”, ele era salazarista. Então era essa a estrutura, a criação da Adunesp, que trouxe uma possibilidade de se organizar a militância política dentro da Universidade.

Eu fiz parte da articulação para criar a Adunesp, junto com o Tidei, mas eu não fiz parte da diretoria no início. Ela foi a primeira, a da USP veio depois. Quem tinha o poder de articular eleições para o Conselho Universitário? Não existia uma entidade. Tinha que ser uma articulação espontânea, era muito di-fícil. Com a Adunesp, não. Toda vez que tinha eleição para o C.O. e para repre-sentantes docentes acontecia um embate, tanto que aos poucos conseguimos eleger representantes. Primeiro foi o João Francisco Tidei, que era represen-tante dos professores assistentes, depois conseguimos, na segunda vez, eleger o representante dos auxiliares de ensino. Depois representantes de professores doutores. Só não chegamos a eleger representantes de titulares.

A representação estudantil era limitada também, mas passou a ter uma ar-ticulação entre os representantes docentes, os estudantes e alguns dos setores administrativos. Botucatu tinha uma militância muito forte no setor adminis-trativo. Porque aqui, muitas vezes, os movimentos, por exemplo, de greve, de

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ocupação, eram unificados. As assembleias que decidiam não eram assembleias por categorias, alunos, professores, era uma assembleia geral de todos. Mas, na maioria dos campi, a alta burocracia tinha muito privilégio sobre o setor admi-nistrativo, e eles tinham controle sobre a maioria dos servidores. Então, entre os alunos não havia nenhum apoio, entre os professores, o apoio era bem dividido. Entre os funcionários havia apoio quase total, exceto em Botucatu.

Nesse momento, em 1976, começa a avançar o processo de democratização do país. A eleição em 1982, a primeira eleição direta para governador depois de 1966, elegeu o Montoro, em São Paulo; o Brizola, no Rio de Janeiro; e o Tan-credo, em Minas Gerais. Eram Estados com a maior densidade eleitoral e eram candidatos da oposição. O Montoro se elegeu e começou imediatamente com a campanha das diretas para presidente. Com a eleição do Montoro se potencia-lizou a perspectiva. Isso foi em março de 1983.

A eleição de Quelce em Assis e a recondução do Mendonça

Em agosto haveria a sucessão da direção em Assis, onde o diretor era o pro-fessor Fernando Mendonça. Desde o começo do ano se articulou uma pressão para se fazer uma eleição direta. O Quelce, que era professor de Biologia em Marília, já tinha ido para Assis em 1981.

O Quelce tinha um histórico de militância, tinha sido preso em 1964, era geneticista e no curso de Psicologia tinha algumas disciplinas de Ciências Bio-lógicas. Ele estava desgastado lá e pediu transferência para Assis. Então o De-partamento de Psicologia passou a ter um professor titular.

Imagina só, ele vinha de Marília, era de esquerda e era o único titular. Não tinha como não ser chefe de departamento. Isso ampliou muito as possi-bilidades de luta, inclusive na congregação. Continuamos sendo minoria, mas ameaçando. Começamos também com articulações, inclusive jurídicas, para garantir direitos. O diretor falava assim: “é isso o que vocês estão querendo só que não pode! Não é permitido pelo Estatuto. Pronto, é isso”. Então tem o estatuto, tem a assessoria jurídica.

O Quelce se tornou, naturalmente, o candidato da esquerda, porque ele era titular. Foi muito bem recebido em Assis, menos pela extrema direita. Ha-via uma polarização do corpo docente. A maioria dos professores tinha uma

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posição intermediária. Pode-se dizer que nas coisas fundamentais a esquerda tinha o apoio da maioria, mas nos órgãos colegiados e congregações, não tinha.

Então se começou a campanha por uma eleição direta, paritária. O estatuto não permitia, mas e se a congregação se comprometesse e fazer a lista que a comunidade elegesse e os professores aceitassem? A nova estrutura foi criando uma certa pressão sobre os titulares.

Fizemos a eleição; o Quelce teve 26% dos votos, segundo colocado. O Men-donça o sexto ou sétimo. Foi a primeira experiência. Como o voto era paritário, o setor administrativo também tinha peso importante, eles tinham um terço dos votos e assim mesmo o Mendonça teve menos de 10%. A congregação fez a lista e nós já conseguimos, com a pressão, ter o controle da congregação. Não de evitar que o Mendonça estivesse na lista. Fizemos votações sucessivas. Na primeira votação, só o Quelce teve maioria para poder marcar bem.

O professor Fernando Mendonça não chegou a ter a maioria. Era mês de férias, final do semestre até agosto. O que ele fez nas férias? Ele renunciou ao final do mandato, mandou a lista para o reitor, que o nomeou para o segundo mandato. Foi uma manobra, muito bem articulada. Eu não sei se foi no começo das férias, isso se divulgou e os alunos começaram a mandar cartas, algumas anônimas para o Fernando Mendonça. Mandavam para a casa dele e ele fi-cou louco. Quando os alunos voltaram, começou o movimento pela renúncia. A mobilização era muito forte. O grande elemento que aí se encadeou foi o bumbo. Os alunos saíam com instrumentos musicais e tinha um bumbo que eles iam batendo. Passando, ninguém conseguia ter aula. Passaram-se alguns minutos e o Mendonça chamou a polícia. A polícia veio, tirou os estudantes e isso originou a ocupação.

A ocupação de Assis

Naquele dia eu estava em São Paulo, representando os docentes, e nós tí-nhamos ido negociar, com o deputado Márcio Santilli, um ex-aluno de Filo-sofia em Assis, filho do ex-prefeito e ex-deputado. Só por curiosidade, a Fi-losofia tinha sido um curso que, na criação da Unesp, eles tiraram de Assis e mandaram para Marília. O diretor da época tinha muita antipatia pelo pessoal

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da Filosofia e ele queria se livrar, fizeram aquele remanejamento para fechar cursos, racionalização burocrática. Os professores de História de Marília vão para Assis e os da Filosofia vão para Marília, um acordo entre eles, segundo os afetos e desafetos, que passavam, obviamente, pelas relações políticas.

Mas aí estávamos em São Paulo e tínhamos conseguido uma audiência, junto com o Márcio Santilli e representantes dos alunos e professores, com o Secretário de Segurança. O objetivo era garantir que não haveria repressão policial, porque a situação estava ficando mais tensa. Aí, os alunos passam to-cando bumbo, o Mendonça fica atormentado, chama a polícia, “o bumbo, o bumbo”. Aquilo foi considerado crime!

A sindicância

Foi feita uma sindicância que propunha demissão, expulsão de aluno, de-missão de docentes. A polícia veio, não sei se prendeu quem estava tocando bumbo, aí os alunos invadiram. No dia do bumbo, houve só prisão, a inva-são veio depois. Uma vez, ao chegar de uma viagem, um oficial de justiça me entregou uma intimação de reintegração de posse. O Mendonça me colocou como um dos responsáveis pela ocupação, junto com os alunos. Afinal eu era sempre representante do auxiliar de ensino na congregação e ele ficava muito incomodado. Ele não podia mais entrar mais no câmpus. Ele não dizia que era de direita. Falava que saiu de Portugal fugido por perseguição política. Outra versão dizia que ele saiu fugido por estelionato, mas ele sempre foi de direita

O apoio era basicamente dos servidores. Professores, que apoiavam o Men-donça diretamente eram só alguns, eram titulares, poucos. Quando ele foi diretor pela primeira vez, teve até um certo apoio, porque o anterior era tão repressivo que chegou a colocar nas portas de aula uma janelinha de vidro para os bedéis olharem os professores que estavam dando aula e prestarem atenção no que eles estavam falando.

O Mendonça entrou na congregação se propondo a articular, com um gru-po da esquerda, vários compromissos. Do ponto de vista interno, ele criou uma distinção, mas depois ficou muito ligado ao reitor. Tinha uma posição de direi-ta, embora fosse liberal em termos pessoais, tinha uma convicção salazarista.

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Nesse momento ele participa, articula o golpe todo. Nem sei se está correto juridicamente ele renunciar antes para ser reconduzido.

Por causa da ocupação, ele não podia entrar, mas as atividades continua-ram normalmente. Foi chegando a uma situação de desespero até que o reitor proibiu que as aulas ocorressem. Nós, professores, uma pequena parte parou, mas a maior parte ainda continuou dando aula e registrando. Algumas coisas que não funcionavam, como o refeitório dos estudantes, passaram a funcionar. A vida ficou melhor e ele não podia entrar.

Era também uma situação tensa porque o corpo administrativo, princi-palmente os chefes intermediários, era muito ferrenho na aliança com ele. A ocupação foi na sala da direção e da congregação. Os alunos dormiam lá, se revezavam. Eles fecharam o prédio maior, que era o prédio 2, onde funcio-navam a Letras, a Psicologia e a História, porque o prédio 1, onde estavam os estudantes, não conseguiram fechar. Começou a haver ameaça da sindicância, de colocar todos para fora.

Muitos professores recuaram e as aulas passaram a ser não mais aulas espe-cíficas de cada curso, mas que tivessem um interesse mais amplo para a especi-ficidade dos cursos, um tema que pudesse ser interessante para todos os cursos, também eram temas políticos. Funcionava como uma universidade livre. É in-teressante que, na prática, foram superadas as divergências das muitas tendên-cias da esquerda. Toda a briga na época de tendências do PT, PCdoB e PDT. As brigas no movimento eram muito fortes e desapareceram naquele momento.

As aulas contavam agora com um cronograma, com calendário e eram da-das na congregação; porque, quando se decretou isso em relação às aulas, mui-tos alunos foram embora e só ficaram os militantes. O tempo passou, foram dois ou três meses de ocupação, foi se desgastando e os alunos não queriam perder o ano, até que decidiram entregar a sala.

O Mendonça continuou na direção, teve embate, porém, não com uma pressão de massa. O movimento foi se enfraquecendo, não havia muita pers-pectiva de mudança. Chegava o final do ano e muitos alunos queriam se for-mar. Ele não teve paz, mas terminou o mandato.

A luta foi mais em torno da universidade. Teve também muita participação, mas o foco já era mais amplo. Esse processo todo gerou uma interlocução com outras Unidades, que vinham dar apoio, em delegações; vinham de Araraquara, de Botucatu. A partir da Adunesp e da entidade dos estudantes, foi acalentada

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a ideia da escolha do reitor no ano seguinte. Naquele momento houve uma uni-ficação e daí, então, no ano seguinte, se começou a campanha pelas entidades para a eleição direta para reitor, já neste novo momento que o Montoro assumia em campanha, a eleição direta pra presidente. Tinha um lema de umas congre-gações no palácio que era “diretas urgentes para reitor e presidente”.

A eleição para reitor

Isso foi crescendo, começou a campanha, apesar das dificuldades por cau-sa das demissões, por exemplo, em Assis. Foi feita a eleição e apareceram dois candidatos: o Carlos Aldrovandi, que tinha sido professor em Assis e estava em Araraquara na época, e o William Saad Hossne, que tinha passado por uma experiência de reitor na UFSCar. O Saad, embora nomeado na ditadura – ele foi nomeado pelo Delfim, no fim da ditadura –, era muito progressista. São Carlos o projetou como acadêmico progressista em termos de gestão.

A maior parte dos congregados votou e isso foi acuando o grupo, que já não era mais liderado pelo Luiz Martins, pois foi o Armando Otávio Ramos, de Botucatu, que assumiu a Reitoria. Ele saiu para ser secretário do partido do Maluf e usou a marca de reitor para ser candidato a deputado federal. O Luiz Martins teve um mandato de deputado federal. Eles foram sentindo-se acuados e se democratizaram, lançaram uma consulta. Havia até uma carta dele manuscrita dizendo por que ele estava fazendo aquilo, queria respeitar a vontade da comunidade.

Qual era o pensamento estratégico eleitoral deles? Eles não vão participar e quem vai participar da nossa consulta? Eles vão boicotar. Quem vai participar? As pessoas que são do nosso time, principalmente os funcionários. Nós vamos ter um resultado para apresentar ao governador. O C.O. pressionava para fazer a lista, para que a comunidade elegesse fazendo esse mesmo esquema. Ou seja, colocar em primeira votação só o eleito e depois os outros para complementar a lista. O Montoro certamente nomearia, pois não havia mais a ditadura.

Então, seria o mais votado, era esse o compromisso do Montoro. Eles de-ram esse golpe: “vamos fazer um processo democrático oficial, a universidade vai consultar”. Então já tínhamos feito nosso processo, tínhamos eleito o Saad: “vamos dar um golpe neles também, nós vamos participar e votar no Saad”.

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111Depoimento 3 – José Roberto Tozoni Reis

Vitória estrondosa. O Saad foi eleito na consulta da comunidade, mas não in-cluíram o nome do Saad na lista para o governador. Mais do que isso, eles não tinham seis nomes de confiança, do grupo mesmo, incluindo o próprio reitor, o Armando Otávio Ramos, que foi o sexto nome. Esse foi o pretexto jurídico para o Montoro devolver a lista. Por quê? A lei que criou a universidade dizia que o mandato do reitor era de um ano, proibida a recondução sucessiva. Se ele não podia ser reconduzido, ele não poderia estar na lista. O Montoro usou isso como argumento, “essa lista está invalidada”.

Começou a pressão, que durou quase um semestre. Aí, acabou o mandato do reitor, assumiu o vice-reitor que era de Araraquara, Raphael Lia Rolfsen. O cabeça, no entanto, era o Armando e o Luiz Martins mesmo. Dizem até que ele era meio simplório, eu não o conheci pessoalmente: “só quero ficar aqui, quero ficar na minha casa”. Acabou o mandato dele, então quem assume, na ordem de sucessão, na ausência do reitor e vice-reitor, é o pró-reitor. As pró-reitorias não eram assim como são hoje, com um pró-reitor. Hoje ele é escolhido como reitor para ser responsável por uma área da administração. Os pró-reitores eram apenas votados no C.O., em ordem de sucessão nesses casos. Então assu-miu o Manoel Nunes Dias, que foi reitor.

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DEPOIMENTO 4

João Francisco Tidei Lima

O professor João Francisco Tidei Lima foi muito atuante nos episódios que envolveram a violação dos direitos humanos na Unesp durante a ditadura ci-vil-militar de 1964 a 1985. Aqui ele fala sobre sua atuação, como professor, e a trajetória da própria Universidade durante aquele período. O professor dá uma visão mais ampla das relações políticas e sociais no Brasil e como elas repercu-tiram na Unesp.

Eu cheguei a Assis em agosto de 64. Tomei posse na disciplina de História no Instituto de Educação Clybas Pinto Ferraz. A partir daí, comecei a fazer

contatos com professores da faculdade que também repartiam o seu tempo de trabalho com o Ensino Médio. Um deles era o Onosor Fonseca, ex-preso políti-co, logo depois do golpe de 1964. Ele era professor de Francês e ficou preso por algum tempo com o vereador Norberto Ferreira, um líder ferroviário. Onosor era militante de intensa atividade política nos anos 1950 em São Paulo. Parti-cipou do Movimento pela Nacionalização do Petróleo no Brasil e da fundação da Petrobrás, em 1953.

Em 1968, o Governo decretou o Ato Institucional nº 5, radicalizando ainda mais a Ditadura Militar. Em 1970, a convite dos professores Luís Antônio Mou-ra Castro e Nilo Odália, assumi a disciplina de História Moderna na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, futuro câmpus da Unesp. Inicialmente, em tempo parcial. Lecionava simultaneamente com aulas da mesma disciplina na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Tupã, uma instituição particular.

Em dezembro de 1973, passei a trabalhar exclusivamente em regime de tempo integral na Faculdade em Assis, quando era diretor Manoel Lelo Belot-

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to. A atividade acadêmica compreendia também frequência no curso de Pós-Graduação em História Social na USP, sob orientação de Eduardo d’Oliveira França. Paralelamente, Caio Navarro de Toledo, meu colega do curso de Filo-sofia de Assis, e eu começamos a reorganizar o Clube de Cinema na Faculdade. Formalmente era uma atividade cultural, mas, naquele momento, um precioso local para discussão política.

O Clube de Cinema se torna referência na cidade

Era o tempo da feroz ditadura chefiada pelo general Emílio Médici. Inicial-mente fazíamos sessões semanais no auditório chamado Salão de Atos. Alu-gávamos filmes, bitola de 16 mm, diretamente em São Paulo. Depois fizemos acordo com o Cine Pedutti em Assis, para organizar aos sábados um programa na sessão das 22 horas. Buscávamos os filmes na distribuidora em Botucatu. Infalivelmente em todas as sessões, tanto na Faculdade quanto no Cine Pedutti, distribuíamos textos para discussão após a projeção. Os textos eram elabora-dos também com a participação de professoras do Curso de Letras, como Letí-zia Zini Antunes e Marzia Vezentini.

O debate, após a exibição dos filmes, ia longe. Numa das sessões, em pleno Cine Pedutti, exibimos o  filme “Os Deuses Malditos”, de Lucchino Visconti, clássico italiano de forte conteúdo político. A projeção acabou pouco depois de meia-noite. Aí, abrimos uma discussão coordenada pelo Wilcon Joia Pereira, já falecido, professor do Departamento de Filosofia. Nós convidávamos pro-fessores de diferentes áreas, dependendo do assunto, para coordenar o debate. Nessa noite, fomos até duas e meia da manhã, cerca de 80 pessoas presentes! Tamanha era a vontade de refletir politicamente sobre a realidade do país.

Mantivemos o Clube de Cinema durante muitos anos, com presença nu-merosa de alunos e professores. Numa pequena sala do câmpus, preparávamos os textos, em seguida eles eram mimeografados e depois distribuídos, antes das sessões.

De modo geral, naquele tempo os filmes lançados em São Paulo demora-vam até dois anos para chegar a Assis. Em 1974, era muito celebrado “Cabaret”, de Bob Fosse, estrelado por Liza Minelli. Era aparentemente um musical, mas, a rigor, um belíssimo filme de conteúdo político marcante e inesquecível, am-

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bientado em Berlim, em 1931, antevéspera da chegada do nazismo ao poder na Alemanha. Não pensamos duas vezes, fomos buscar o filme em São Paulo para exibi-lo na Faculdade, com ampla divulgação pela cidade. Fizemos sessões nos três períodos. Salão de Atos superlotado, distribuímos textos a todos, e concluí-mos cada sessão com debate.

Também convidávamos palestrantes especialistas em cinema. Um deles, Jean Claude Bernardet, belga naturalizado francês, com passagens pela Univer-sidade de Brasília, onde foi demitido pela Ditadura Militar, e pela Escola de Co-municações e Artes da USP. Lá ele também foi punido por ordem da Ditadura. Em 1973, levei o Jean-Claude para falar aos meus alunos da Faculdade em Tupã.

Levávamos o Jean-Claude Bernardet  a Assis principalmente na exibição de filmes nacionais. Um deles, “O Caso dos Irmãos Naves”, do diretor Luís Sérgio Person, no qual o Jean-Claude foi um dos roteiristas. Tratava de um erro judiciário durante a ditadura do Estado Novo (1937-45) que custou prisão e torturas para dois irmãos. Outros filmes foram “Vidas Secas” e “São Ber-nardo”, baseados em obras de Graciliano Ramos, ambos retratos vigorosos do seu realismo crítico contundente. Graciliano, como se sabe, esteve filiado ao Partido Comunista Brasileiro nas décadas de 1940 e 1950.

O funcionamento do Clube de Cinema não disfarçava sua visível preocupação política. Claro, não éramos ingênuos a ponto de supor que não estávamos sendo vigiados. Anos depois, em 1981, quando fui preso, durante visita a Assis do go-vernador Paulo Maluf, ligado à ditadura militar, no interrogatório o delegado se referiu às atividades do Clube de Cinema como “um instrumento de subversão”.

Além do Clube de Cinema, o Caio Navarro e eu organizávamos conferên-cias na Faculdade em Assis, em 1975. Primeiro conferencista, o grande soció-logo Florestan Fernandes, demitido da USP anos antes por ordem da Ditadura. Teve passagem pelos Estados Unidos, a convite da historiadora Emília Viotti da Costa, que também tinha sido demitida da USP. Emília estava como pro-fessora na Universidade de Yale, em New Haven, e programou cursos a serem ministrados pelo Florestan. Depois de certo tempo, ele quis retornar ao Brasil, preocupado com a situação política daqui. 

O Caio e eu buscamos Florestan em São Paulo, organizamos palestras em Assis e o levamos até o câmpus de Presidente Prudente, onde o chefe do Depar-tamento de Geografia, Armén Mamigonian, preparou um encontro dele com alunos e professores.

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A criação da Adunesp e o envolvimento político dos professores

Naqueles anos de 1975 e 1976, lutávamos também contra a forma autori-tária de criação da Unesp, juntando os antigos institutos isolados. Dessa luta resultou a fundação da Associação de Docentes da Unesp, a Adunesp, primeira associação a reunir professores do ensino superior no País. Era um testemunho da resistência contra a truculência dos agentes oficiais liderados pelo professor Luiz Ferreira Martins, indicado para ser o futuro reitor da nova universidade.

Nós, professores reunidos nessa espécie de resistência, marcávamos encon-tros nas cidades dos antigos institutos isolados. Presidente Prudente era uma delas. Ali liderava a organização dos professores o Armén Mamigonian. Hoje ele mora em Florianópolis, mas ainda leciona no curso de Pós-Graduação de Geografia da USP. Em Prudente havia seis cursos, no entanto, no projeto de reorganização de Luiz Martins, perderia quatro, ficando apenas com dois.

Para mobilizar a cidade, o Armén organizou uma reunião em 1975, no gi-násio de esportes, e convidou para integrar a mesa de trabalhos sua irmã, a atriz Aracy Balabanian. Ela sentou-se ao lado do professor Eduardo d’Oliveira França, meu orientador na Pós-Graduação da USP. O Armén organizou tam-bém seguidos encontros – dos quais participei – com o jurista Goffredo da Silva Telles em São Paulo, para consultas sobre possíveis embargos jurídicos que pudessem evitar a forma ditatorial de organização da Unesp.

Outra cidade mobilizada era Botucatu, onde a Faculdade tinha vários cur-sos, como o de Medicina, e com professores há anos filiados à associação de docentes do câmpus. Era um pessoal aguerrido, que justificava a fama de a ci-dade ser uma espécie de “Vietnã da Unesp”. Ali, no ginásio de esportes superlo-tado, ouvimos o discurso do respeitado historiador e militante marxista Jacob Gorender, falecido em 2013. Ele apoiava integralmente a luta dos professores, criticando a forma como a Universidade era organizada.

Araraquara, onde o câmpus abrigava vários cursos, sediou seguidas reu-niões dos professores, incluindo um dos líderes, Waldemar Saffiotti fundador do curso de Química. Foi justamente em Araraquara, no início de 1976, que se chegou à decisão de fundar a Adunesp. Lembro que nós ficávamos sempre hos-pedados na chácara do Waldemar e de sua esposa, a socióloga Heleieth Saffioti, orientanda do professor Florestan Fernandes. Convivi com o casal, inclusive na

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dolorosa passagem da perda do filho único, ao qual eles homenageariam mais tarde doando a chácara à Unesp. Em Araraquara, trabalhava também, em uma das disciplinas de História, José Ênio Casalecchi, futuro diretor do câmpus. Fizemos uma sólida amizade, revigorada nos encontros de protestos contra a Ditadura Militar e a forma autoritária de organização da Unesp. 

Decidida a fundação da Adunesp, vieram as consultas para organizar a pri-meira diretoria, eleita em encontro no câmpus de Marília em 1976: presidente, Ulysses Telles Guariba Neto, meu colega de Assis; secretário, Celestino Alves, de Presidente Prudente; tesoureiro, Telmo Correia Arrais, também de Assis. Todos os presidentes dos núcleos regionais eram considerados vices da Asso-ciação central. Eu, por exemplo, respondia pelo núcleo de Assis. 

Eu estava muito envolvido politicamente no interior da Universidade. Re-partia as horas com a leitura e a discussão de textos marxistas. Participava de um grupo de estudos formado pelo professor Pedro de Alcântara Figueira e Fanny Goldfarb, um casal do Rio de Janeiro. Eles tiveram uma passagem pelo Chile quando o então presidente Salvador Allende acenava com a chegada do país ao socialismo, pela via institucional. Com o Golpe Militar de 1973 e a ditadura imposta por Augusto Pinochet, Pedro e Fanny retornaram ao Brasil e se instalaram em Assis, na casa da professora Letízia Zini Antunes, local das reuniões do grupo de estudos. Com a intermediação do professor da USP Fer-nando Antônio Novais, Pedro de Alcântara tornou-se orientando de Eduardo d’Oliveira França, então diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, a FFLCH, da USP. Ele era também meu orientador. O professor França obteve uma bolsa da Fapesp, uma das pré-condições para redigir e de-fender sua tese de doutoramento em Assis.

Fernando Novais sempre foi fonte de nossas consultas metodológicas. Por diversas vezes foi nosso convidado para conferências no câmpus de Assis. Outro palestrante sempre lembrado foi o sociólogo Chico de Oliveira, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Esteve em Assis pela primeira vez em 1974, convidado pelo professor Nilo Odália, chefe do Departamento de História.

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Militância durante a Revolução dos Cravos, em Portugal

Fui a Portugal em 1975, durante a Revolução dos Cravos, para conhecer o movimento e, se possível, participar daquela experiência. Nós vivíamos uma década fortemente ideologizada. Havia uma bipolarização em nível mundial, comandada pelos Estados Unidos e a antiga União Soviética. 

Antecipei o encerramento do semestre em junho de 1975 e embarquei. Le-vava comigo uma dupla incumbência: localizar em Portugal o ex-preso político da nossa ditadura, o teatrólogo José Celso Martinez Corrêa, irmão da minha amiga e colega de departamento Anna Maria,  e conseguir notícias de outro exilado, Celso Guimarães, antigo professor do Departamento de Filosofia. Ele possivelmente vivia na França.

Desembarquei em Portugal com um pacote de alimentos brasileiros, pre-parado pela mãe do Zé Celso, para entregar pessoalmente a ele. Localizei sua moradia em Lisboa, mas não o encontrei porque ele fazia um filme na África, sobre a independência de antigas colônias portuguesas.

Anos mais tarde, já de volta ao Brasil, o Zé Celso, a convite do Clube de Cinema, levou o belo documentário “25”, filme premiado por academias fran-cesas. Por falar na França, naquele ano de 1975 cheguei também a Paris. Atendi a um pedido dos pais do Celso Guimarães, exilado político. Havia meses ele não mandava notícias à família que morava em Bragança Paulista. O Celso vivia em uma casa alugada juntamente com o historiador Arnaldo Contier, meu colega de departamento. O Arnaldo relatou que ele teve que fugir para a Europa, pois era caçado por agentes policiais da Ditadura. Durante alguns me-ses, em solidariedade, colegas de departamento, como Ulysses Guariba, Caio Navarro, Carlos Arthur, Álvaro Martins e Wilcon Joia, assumiram suas aulas não oficialmente. Os salários do Celso continuaram a ser pagos. O dinheiro era entregue à família, que o remetia a Paris. O diretor da Faculdade, Manoel Lelo Belotto, também foi solidário.

Em Paris, localizei o hotel onde o Celso se hospedava, próximo à Sorbonne. Mostrei foto e dados pessoais na portaria. Informaram que ele tinha deixado o hotel havia quase um mês. Ele só retornaria ao Brasil anos depois, quando começava a anistia aos presos políticos.

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Portugal

O país estava literalmente sacudido pela Revolução dos Cravos. Gente que esteve por décadas no exílio agitava as bandeiras do Partido Comunista, lide-rado por Álvaro Cunhal, e do Partido Socialista de Mário Soares e de outros segmentos partidários. Participei de diversos debates, como, por exemplo, no Largo do Rossio, em Lisboa, entupido de gente até a madrugada. Estive tam-bém na ocupação de edifícios pertencentes a banqueiros que davam sustenta-ção ao salazarismo. 

Devidamente informado por brasileiros exilados, logo que desembar-quei em Lisboa, localizei em alguns cinemas filmes proibidos havia anos pela ditadura brasileira e que não conseguíamos exibir no Clube de Cinema. Por exemplo, “Johnny Vai à Guerra”, vigorosa abordagem antimilitarista de Dalton Trumbo, célebre roteirista e diretor norte-americano perseguido pelo macar-thismo em seu país até meados da década de 1950. A propósito, demorei um pouco para localizar esse filme por conta das “diferenças” entre o português do Brasil e o de Portugal. Nos Estados Unidos, o nome do filme era “Uma Arma para Johnny”. Depois de muito procurar, descobri o filme em um cinema da Av. Liberdade, com este título: “E Deram-lhe Uma Espingarda”!!! Outro filme que localizei, também proibido por aqui, foi “Estado de Sítio”, do diretor grego Costa Gavras. Denunciava a ditadura brasileira e seu aparato repressivo.

Entre os exilados que encontrei em Portugal, estava Flávio Roberto de Sou-za, Ele era um dos 40 presos políticos trocados pelo embaixador alemão se-questrado no Rio, em junho de 1970. Fui apresentado a ele, nos tornamos ami-gos e fui visitá-lo durante dias seguidos num hospital público, onde passara por cirurgia. Falamos, por exemplo, do então sargento Darcy Rodrigues, um bau-ruense conhecido meu, companheiro de prisão do Flávio, no Brasil, e também no grupo dos 40. Rodrigues integrava a tropa do capitão Carlos Lamarca na guerrilha do Vale do Ribeira. Deitado no leito de uma enfermaria, Flávio Ro-berto, experiente na militância política, me passava detalhes e perspectivas do processo revolucionário em Portugal. Ele descartava qualquer esboço sociali-zante da Revolução dos Cravos. Os fatos depois confirmariam seu diagnóstico.

Outro dos 40 presos trocados pelo embaixador, e que eu conheceria muitos anos mais tarde, era Apolônio de Carvalho. Morto em 2005, aos 93 anos, era um histórico comunista, casado com Renée, uma francesa que ele conheceu

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combatendo o nazismo na França em 1943. Isso, depois de passar pela guerra civil na Espanha contra o fascismo do general Franco. Conheci Apolônio e Re-née em São Paulo e convivi durante anos com Raul, um dos seus filhos, e a nora Izabel, em Assis. Este casal também fora preso pela Ditadura e, em meados da década de 1970, se instalou em Assis, em uma casa cedida pelo casal italiano Andréa e Márzia Vezentini. A Márzia era professora de Língua e Literatura Ita-liana, juntamente com a Letizia Zini, mais tarde mulher de Benedito Antunes, antigo aluno e professor da Faculdade.

Durante minha permanência em Lisboa, reencontrei também um jornalis-ta brasileiro, Jorge de Figueiredo, cuja família residia em São Paulo. Eu era ami-go de seus pais e sempre circulava por sua casa, na Rua Oscar Freire. Lá, por sinal, cruzei várias vezes com Therezinha Zerbini, mulher do general Euryale Zerbini, cassado pela Ditadura logo após o Golpe de 1964. Militante política até hoje, Therezinha, depois do AI-5 em 1968, passou oito meses no Presídio Tiradentes, lado a lado com a militante Dilma Roussef.

Quanto ao Jorginho Figueiredo, como era conhecido, antes de rumar para Portugal trabalhou durante anos na extinta revista Visão, que, ao longo da sua história, teve diferentes orientações editoriais. No início de 1971, com uma  ditadura feroz entre nós, a Visão defendia as liberdades democráticas. Na equipe de jornalistas coordenada por Vladimir Herzog, estava, entre ou-tros, o português antisalazarista Miguel Urbano Rodrigues. Ele fora enviado especialmente à Bolívia para cobrir, durante o governo do general Juan José Torres, a instalação da Assembleia Popular, saudada por vários segmentos de esquerda como o primeiro soviete das Américas. Mas Rodrigues alertava em uma reportagem de capa que “1971 é bem diferente de 1917 (data da Revo-lução Russa) e o desfecho poderá ser cruento”. Como acabaria acontecendo, em agosto de 1971 o coronel Hugo Banzer, com apoio da ditadura brasileira, comandou um sangrento golpe militar. 

Em Portugal, em 1975, o Jorginho Figueiredo, monitorado por Rodrigues, acabaria tendo intensa participação na revolução que também sacudia a im-prensa portuguesa. Pelo que sei, ainda vive por lá.

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De volta ao Brasil

De volta a São Paulo e à nossa mídia, durante a Ditadura Militar, o antigo companheiro do Jorginho na Visão, Wladimir Herzog, integrava, em 1975, a equipe de jornalismo da TV Cultura, do Governo do Estado. Foi preso, tortu-rado e assassinado nas dependências do DOI-CODI, órgão repressor subordi-nado ao 2º Exército em São Paulo. Em outubro, foi organizado um ato ecumê-nico na Catedral da Sé, em homenagem à memória de Herzog. Não esqueço, porque eu estava lá junto com 8 mil pessoas. Não foi fácil chegar à catedral. Fiquei um bom tempo na casa da família do Jorginho em São Paulo e, no per-curso, tivemos que encarar o bloqueio de mais de 500 policiais dificultando o acesso. Em prédio vizinho, ostensivamente agentes da ditadura filmavam as pessoas nas escadarias da catedral.

Ainda em 1975, a Anna Maria Martinez Corrêa, o Arnaldo Contier e eu convidamos nosso orientador Eduardo d’Oliveira França para uma homena-gem em Assis. Isso foi logo após ele se demitir do cargo de diretor da FFLCH da USP, por não aceitar a presença de coronel do Exército em uma sala ao lado do seu gabinete.

Universidade de Yale

Em janeiro de 1976, a convite de minha colega Lumna Maria Simon, amiga e então namorada e professora da área de Letras em Assis, passei 15 dias na Universidade de Yale, em New Haven, Estados Unidos, onde ela cumpria bolsa de estudos, regendo uma disciplina. Ali conheci pessoalmente a historiadora Emília Viotti da Costa, demitida da USP e cassada pelo AI-5 em 1969. Emília coordenava cursos na área de História e me indicou para participar, ao lado de outros historiadores, de uma discussão sobre a Historiografia Brasileira da Escravidão e Urbanismo na América Latina. Conheci também naqueles dias um casal de exilados argentinos, que deixaram seu país ameaçado pela Aliança Anticomunista Argentina, a Triple A, esquadrão da morte de extrema direita que tinha apoio financeiro e logístico da americana CIA.

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USP

Quando frequentei o curso de mestrado na área de História Social na USP, eu me ligava às atividades culturais e políticas inerentes. Acabei encontrando um antigo exilado, o sociólogo Darcy Ribeiro, em sessão da Sociedade para o Progresso da Ciência, SBPC, em 1978. O encontro estava marcado inicialmen-te para o auditório no prédio da Geografia e História, mas, devido à multidão interessada em ouvir Darcy, teve que ser transferido para o auditório da Fa-culdade de Arquitetura e Urbanismo, um espaço mais amplo. Não esqueço a euforia e a ansiedade de todos. Era um corre-corre na travessia das quadras da Cidade Universitária para conseguir lugar e ouvir o grande Darcy Ribeiro. Valeu a pena, claro!

A criação da Unesp

Voltando a 1976, quando nasceu a Unesp, aquele foi o ano também da con-solidação da Adunesp, enfatizo, a primeira entidade docente do ensino supe-rior no país. Era o resultado da nossa resistência à forma ditatorial de organi-zação e instalação da Universidade, que tinha à frente Luiz Ferreira Martins, o primeiro reitor. A Associação nasceu oficialmente a partir de uma assembleia liderada por Waldemar Saffiotti, em Araraquara, em junho de 1976.

Após a eleição da primeira diretoria, começamos a mobilização para a ten-tativa de participação no primeiro Conselho Universitário, o C.O. O que estava funcionando era provisório, biônico, como dizíamos criticamente  na época. Era nomeado pelo reitor Luiz Martins e composto apenas pelos diretores, sem participação docente e discente. A elaboração do estatuto na época era afinada com a conjuntura da ditadura.

Organizamos uma chapa para concorrer em todas as representações do-centes no Conselho Universitário. Sob clima ditatorial, intimidador para muita gente, a chapa da Adunesp foi amplamente derrotada. Fui a exceção, me elegi como representante dos professores assistentes. A minha categoria era a mais mobilizada. Participei do C.O. em 1977 e em 1978. Logo após a primeira reu-nião, elaborei uma circular para endereçar aos núcleos da Associação de toda a Universidade. No texto, eu dava ciência da instalação do Conselho e do seu

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funcionamento sob a direção ditatorial de Luiz Martins, auxiliado pelo vice-reitor Armando Octávio Ramos, do câmpus de Botucatu. 

Informei aos meus colegas que relataria as reuniões integralmente. Na vo-tação das matérias, eu ficava sempre com os representantes dos alunos. Es-clareci aos colegas que era o máximo que poderia fazer, informar tudo o que acontecia nas reuniões, para que eles pudessem cobrar dos seus diretores. Claro que eu fazia as minhas intervenções, mas as minhas cobranças no interior do Conselho tinham repercussão minimizada. Eu erguia o braço, pedia a palavra. O reitor demorava para me concedê-la. Quando o fazia, perguntava meu nome: “Como o senhor se chama, mesmo?” Em represália, eu não me dirigia a Luiz Martins chamando-o de magnifico reitor. Braço erguido, eu repetia: “Profes-sor! Professor!” Alguns diretores sentados ao meu lado se incomodavam e me assediavam: “João, por favor, fale magnífico reitor!”

Essas obrigações institucionais eram simultâneas com outras atividades. Por exemplo, cumpri os dois anos como representante dos assistentes no CO da Unesp e, em fins de 1978, tornei-me mestre na área de História Social da USP, sob orientação de Eduardo d’Oliveira França. Fui indicado por Nilo Odália, então presidente da Adunesp, para fazer um curso de especialização no Institut Européen des Hautes Etudes Internationales – Université de Nice. Dez anos antes, ele havia frequentado cursos por lá. Fiquei de outubro de 1979 a maio de 1980 em Nice, e apresentei uma monografia manuscrita sob o título “Amérique Latine – Democratie et Crise”. Justifiquei o tema sustentando que o Brasil ti-nha inaugurado em 1964 um novo modelo de ditaduras na América Latina, sendo seguido por Uruguai e Argentina na década de 1970. Era uma ditadura diferente do caudilhismo tradicional, com novos fundamentos sociais e econô-micos e aparelhamento político e militar.

A década de 1980 em Assis

Em maio de 1980, após concluir minha bolsa na França, retornei e reas-sumi a disciplina de História Moderna em Assis. Em 12 de junho de 1981, o governador Paulo Maluf, ligado à ditadura, estava na cidade. Ele tinha como secretário da Educação nosso antigo reitor Luiz Ferreira Martins. Por volta de 6 horas da manhã, fui chamado até o portão de casa por agentes do DOPS. Fui

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levado por uma viatura policial à delegacia e fiquei preso, com mais três estu-dantes. Na edição de 13 de junho de 1981, os principais jornais paulistas, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, deram destaque em primeira página: “Maluf vai para Assis e a polícia prende quatro”.

Os mesmos jornais noticiaram os protestos do deputado estadual Hé-lio César Rosas e do deputado federal Tidei de Lima, meu irmão, ambos do PMDB. Eles divulgaram também uma nota repudiando a prisão, assinada pelo presidente do diretório do PMDB de Assis, meu colega Ulysses Telles Guariba Neto. Fui interrogado durante todo o dia.

Os delegados fizeram um levantamento das minhas atividades políticas passadas, destacando as sessões do Clube de Cinema e a fundação da Adu-nesp. Tudo era classificado como “atividade subversiva”. O delegado que me interrogou disse que eu e os estudantes tínhamos distribuído panfletos “ofen-dendo o governador”, e que só seriamos liberados depois que Maluf deixasse a cidade. Isso aconteceu no final da tarde, depois de um habeas corpus impe-trado pelos advogados Humberto de Carvalho, Luís Gonzaga de Campos e Francisco Maldonado Júnior. 

Entramos em 1983, o país agitava-se pela volta das eleições diretas para presidente da República. Concentrações no Nordeste, no Sul, no Sudeste... Em Assis, eu estava casado com a Anadir, pai do Carlos Frederico, nome escolhi-do em homenagem a Marx e Engels. Anos depois nasceu Verena, nome que homenageava a alemã Verena Stolcke, autora de livros sobre a mulher e as relações de trabalho. 

Eu participava com colegas de reuniões para a escolha do próximo dire-tor do Instituto de Letras, História e Psicologia da Unesp de Assis. Em maio, distribuímos um boletim informativo proclamando a necessidade de eleições diretas para diretor. Era um critério, diga-se, ainda inédito nas universidades, mas inteiramente afinado com as necessidades liberalizantes de um país ainda em camisa de força.

No dia 17 de junho, comparecemos todos, professores, alunos e funcio-nários, ao Salão de Atos e votamos. Os seis mais votados ficaram na seguinte ordem: Antônio Quelce Salgado, Manoel Lelo Belloto, Mário Mascherpe, José Ribeiro Jr., o então diretor Fernando Mendonça e Alvaro Lorencini. Em nome da Adunesp, fizemos a campanha de Quelce, chefe do Departamento de Psico-logia. Ele proclamou a legitimidade das eleições diretas na vida pública brasi-

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leira, inclusive no interior das universidades. Na reunião da congregação, com a presença de José Roberto Tozoni Reis, representando os assistentes, e do re-presentante dos auxiliares de ensino, defendemos a escolha de Quelce.

O reitor Armando Octávio Ramos ignorou a votação dele (26,6%) e es-colheu Mendonça, o penúltimo colocado, com 8%, exatos 37 votos entre 940 votantes. O núcleo local da Adunesp, presidido por Clélia Jubran, publicou nota repudiando a escolha e conclamando imediata mobilização. Na Câmara de Assis, nosso colega e vereador Onosor Fonseca defendeu a legitimidade da escolha direta. Ao lado dos alunos, organizamos manifestações pela cidade e nos reunimos seguidamente na Faculdade, inclusive durante as férias de julho.

Repressão policial e ocupação

Logo no retorno às aulas, em 1º de agosto, Mendonça decidiu chamar a polícia militar para invadir o diretório acadêmico e impedir que os alunos se manifestassem com instrumentos musicais. Lembro de estar em minha sala de trabalho e ser alertado para o que acontecia. Fui à sede do diretório. O pre-sidente, Leonardo Colosso, era meu aluno no curso de História. Eu disse ao diretor que a presença da polícia no câmpus era inconcebível. Ele, então, con-vocou a Congregação. O diretório decidiu que os alunos deveriam se postar em frente da sala da Congregação. Contra o nosso protesto, Mendonça pediu reforço militar para expulsar os alunos do saguão. Lá estavam também Quelce e José Sterza Justo, seu colega de departamento.

No dia seguinte, o jornal A Voz da Terra estampou na primeira página: “Violenta tarde no câmpus”. Em assembleia no Salão de Atos, sob a presidência de Leonardo Colosso, o diretório acadêmico decidiu pela ocupação da diretoria do câmpus, ação que se estendeu até setembro. 

Em represália, o diretor Fernando Mendonça convocou dias depois, na sua residência, Celso Camilo Costa, locutor e repórter da Rádio Cultura de Assis, que passou aos ouvintes os detalhes do encontro. Com a palavra, o locutor:

“O professor Mendonça me dizia de alguns professores que estão por trás de tudo isso: Antônio Quelce Salgado, Wanderley Codo, José Roberto Tozoni Reis, José Sterza Justo, Odair Sass, João Francisco Tidei Lima, Cristina Amélia Luzzio. Eles estariam manobrando os alunos em cima de tudo isso!”

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A Adunesp, presidida por Clélia Jubran, imediatamente contratou um ad-vogado junto à Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo para interpelar o diretor e o locutor, “para que expliquem no prazo de 48 horas o que pretendiam dizer quando usaram as expressões terroristas, vândalos e subver-sivos para identificar sete professores universitários da cidade”.

O reitor Armando Octávio Ramos decidiu, ainda em agosto, formar uma comissão de sindicância, integrada, entre outros, pelo historiador Manuel Nu-nes Dias, do câmpus de Franca. Recebi no dia 26 de agosto notificação para comparecer em 1º de setembro à reitoria e prestar esclarecimentos. Semanas depois, a comissão sugeria demissões, suspensões, rescisões contratuais e can-celamento de bolsas, atingindo dezenas de professores e funcionários.

A repercussão teve resposta imediata. A Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, por exemplo, publicaram alguns artigos a respeito. Um deles era as-sinado pelo professor Caio Navarro de Toledo, antigo colega de Assis e agora na Unicamp, e pela professora Marilena Chauí, da USP, protestando contra as punições. Eles signataram também um documento, ao lado de Florestan Fer-nandes, Antônio Cândido, Paulo Freire, Dalmo Dallari, Paul Singer, José Ar-thur Gianotti, Gilda de Mello e Souza, Octavio Ianni, Fernando Novais, Carlos Guilherme da Motta, Elza Berquó, Eunice Durhan, Gabriel Cohn, Maria Lygia Coelho Prado, Modesto Florenzano, Sandra Nitini e Maria Helena Capelato, entre outros, publicado na imprensa da Capital, no qual concluíam que, “pelas suas consequências, a ameaça dessa reitoria constitui-se num intolerável aten-tado à liberdade intelectual e aos direitos humanos em nosso país”.

De Brasília, inteirado dos fatos, meu irmão Tidei de Lima expediu uma nota: “É inadmissível essa estúpida repressão na Unesp de Assis. Ainda em se-tembro tive encontro com o governador Franco Montoro e lhe sugeri a criação de uma  assessoria para assuntos universitários. O governo do estado de São Paulo tem que agir com desassombro e firmeza, avalizando por um lado a esco-lha do próximo reitor da Unesp e impedindo, por outro, essas arbitrariedades no câmpus de Assis”.

A Adunesp de Assis, por meio da presidente Clélia Jubran, contatou o ad-vogado Hélio Pereira Bicudo, há anos conhecido pelas suas denúncias contra o Esquadrão da Morte. Ele assumiu a defesa dos professores, funcionários e alunos punidos. As punições foram posteriormente anuladas.

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A Unesp e a redemocratização

Nos diferentes campi da Unesp, a mobilização continuou. Na Reitoria co-mandava o antigo vice de Luiz Martins, Armando Octávio Ramos, sem mu-danças nas diretrizes e com mandato que iria se encerrar em março de 1984. A Adunesp propôs consulta direta à comunidade universitária. Entre os can-didatos, o médico William Saad Hossne, professor na Medicina de Botucatu e ex-reitor da UFSCar. Outro candidato, Nilo Odália, ex-presidente da Adu-nesp e ex-diretor no câmpus de Araraquara. Os mais votados: Saad, 55%; Nilo, 24%. O Conselho Universitário não reconheceu e promoveu nova consulta. Outra vitória de Saad, com 57,3%. O C.O. preferiu escolher Armando Octávio Ramos, que obtivera 28,5%.

Professores e alunos em Assis, Marília e outros campi ocuparam as direto-rias. Em São Paulo, alunos fizeram o mesmo na Reitoria. O governador Mon-toro nomeou como reitor pró-tempore Jorge Nagle, respeitado pedagogo do câmpus de Araraquara. Ele logo em seguida seria candidato a mandato efetivo. 

Participei por um tempo da administração de Nagle, ao lado de José Ênio Casalecchi, Nilo Odália, Telmo Arrais e outros colegas. Fui presidente, durante um ano, da Fundação para o Vestibular da Unesp, a Vunesp, sem prejuízo da minha atividade docente. Em 1987, estive com meu irmão Tidei de Lima pedin-do a incorporação do câmpus universitário de Bauru, uma fundação munici-pal, à Unesp, o que se concretizou em 1987 e 1988.

A crise na Unesp, motivada pelo estatuto autoritário e pelas gestões tru-culentas de Luiz Ferreira Martins e Armando Octávio Ramos, começou a ser resolvida na gestão do governador Franco Montoro. Com o fim do mandato de Armando Octávio Ramos, Montoro nomeou um reitor pró-tempore, o pe-dagogo Jorge Nagle, do câmpus de Araraquara, de 1º de agosto de 1984 a 16 de janeiro de 1985.

Nagle era muito respeitado no meio universitário e empenhado na amplia-ção do ensino superior público gratuito. Participei, em 1986, da sua gestão, ao lado de José Ênio Casalecchi. Presidi a Vunesp, participando, inclusive, de en-contros interestaduais no Rio e em Minas. Simultaneamente, acompanhei o trabalho legislativo de meu irmão Tidei de Lima, que se empenhava em esta-tizar a Universidade de Bauru e o seu Colégio Técnico e Industrial, até então uma fundação municipal, com mais de 5 mil alunos e centenas de professores

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e funcionários. Na área do ensino superior público gratuito, Bauru possuía so-mente a Faculdade de Odontologia da USP.

Na condição de professor da Unesp, estive com meu irmão nos contatos iniciais com o Jorge Nagle. Em uma madrugada de 1987, em seu apartamento, em São Paulo, depois da autorização do governador para esta conversa, fui di-reto ao assunto:

— “Professor Jorge Nagle, a comunidade deseja a Unesp em Bauru!”Ele respondeu imediatamente:— “Tidei, sou o reitor, mas não o dono da Universidade. É uma decisão

que compete ao Conselho Universitário, formado por diretores e representan-tes docentes e discentes de todos os 14 campi. Vocês podem e devem percorrer cada câmpus e explicar as qualidades da Universidade de Bauru e que, em últi-ma análise, justificam a pretendida incorporação pela Unesp.”

Uma comissão do Conselho Universitário também esteve em Bauru para levantar as potencialidades do câmpus. Em outubro de 1987, o C.O. aprovou a incorporação da Universidade de Bauru e do seu colégio técnico. Em novem-bro, o governador Orestes Quércia oficializou no Palácio dos Bandeirantes a proposta de incorporação. Em 12 de agosto de 1988, perante 5 mil pessoas em praça pública, ao lado do reitor Jorge Nagle, o governador assinou o decreto que autorizava a instalação da Unesp em Bauru, beneficiando 4.300 alunos univer-sitários, 900 alunos do colégio técnico e centenas de professores e funcionários.

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DEPOIMENTO 5

Antônio Quelce Salgado

O professor Antônio Quelce Salgado teve uma importante atuação nos epi-sódios que envolveram a violação aos direitos humanos na Unesp durante a ditadura civil militar e ele vai nos dar um depoimento a esse respeito.

A ditadura faz parte da história da Unesp

Infelizmente, sim. A reitoria conduzida com princípios de ditadura começou um pouco antes da ditadura militar no Brasil e isso foi se consolidando ao

longo de muito tempo. Mesmo depois de a ditadura perder a força no Brasil, a Reitoria continuou ainda por algum tempo exercendo o mando ditatorial.

Houve muitas brigas entre reitores, pró-reitores, diretores de unidades, chefes de departamentos das diversas unidades. Em Assis, o movimento foi muito expressivo, com muita gente trabalhando, atuando violentamente contra aquele estado de coisas. Violentamente no bom sentido, claro. Um bom exem-plo são os professores José Roberto Tozoni e João Francisco Tidei Lima.

Iniciou-se na universidade da discussão para mudanças, com reflexos em nível nacional. Naquela época, eu era presidente da Associação dos Docentes da Unesp, a Adunesp. A participação foi muito grande dos professores, com momentos altos e baixos. Havia muito contato entre os diversos campi e muitas pessoas da própria Reitoria se engajavam para engrossar o movimento, inclu-sive pela eleição para diretor e reitor. Eu não tive politicamente uma atuação muito destacada, mas participei dos movimentos pela democratização da uni-versidade e pela formação da própria Unesp, em 1976.

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Prisão em Marília

Fui preso por atividade subversiva. É o que diziam na época. Liderávamos o movimento estudantil e de alguns professores. Eu fazia parte da esquerda de Marília, posso dizer assim. Recebíamos pressão contrária e favorável de alguns diretores. Isso, numa época em que qualquer respiração mais profunda soava em todos os lugares do Brasil. Inclusive em Marília. Cada vez que nos envol-víamos em alguma ação nova éramos chamados para prestar esclarecimento na delegacia. Tinha até um preconceito contra a camisa vermelha. Um diretor uma vez me aconselhou a usar roupas de outras cores, menos a vermelha.

Tive que ir muitas vezes à delegacia. Lembro que a última vez que isso acon-teceu eu voltava de São Paulo, onde havia ficado preso, no DOPS, diga-se de pas-sagem. Logo que eu cheguei a Marília e tive que prestar depoimento na delegacia. Fiquei sete horas sendo entrevistado pelos policiais. Foi sorte eu ter saído de lá.

Eu tinha um amigo que era reserva do exército e ele interferiu. Eu havia fi-cado uma semana preso, sem ser ouvido. Quer dizer, era para ir a Marília, ser ouvido e continuar preso. Ele chegou na delegacia e falou ao delegado: “vocês vão ouvir os professores agora, senão eu vou tirá-los de lá”. Quem estava por cima da carne seca eram os “milicos” mesmo, não é? Então, fomos ouvidos e liberados.

No quartel da polícia, vivíamos quase uma vida de príncipe. Tínhamos um quarto para dois e podíamos jogar basquete do lado de fora, recebíamos visitas sem objeção. O bispo de Marília foi nos visitar algumas vezes, dom Antônio.

A igreja e o movimento

A igreja não se posicionou, não se manifestou, com exceção do bispo de Marília. Ele brigou um pouco por nossa causa, sim. Inclusive fez um documen-to muito interessante que mandou ao DOPS para nos ajudar. Mas é que havia também muita perseguição, muita exposição na mídia, muitas entrevistas, e a pessoa acaba, mesmo sem querer, sendo ligada ao movimento.

Na segunda vez em que fui preso, em 1969, um aluno meu, que era tenente da polícia, foi me buscar em casa. Todo constrangido, falou que estava lá por-que tinha sido mandado. Aí, me levou para o quartel do exército em Lins.

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131Depoimento 5 – Antônio Quelce Salgado

Somando tudo, acho que fiquei um mês preso. Em São Paulo foi mais, uns 15 ou 20 dias. Ficamos o professor Ubaldo Puppi e eu um pouco nervosos da-quela vez porque há uma lei que diz que você não pode faltar as suas atividades funcionais por mais de um mês sem autorização. Então, fazíamos de tudo para sair logo da prisão, apressávamos os trâmites para ver se conseguíamos sair antes de completar um mês. E deu certo. Aí voltávamos para Marília e reassu-míamos. A Aurora Pantaleão, diretora na época, mesmo sendo de direita, era muito boa, decente com a gente. Ela ficava sempre de olho para tentar nos tirar o mais rapidamente possível da prisão.

Participação política

Eu participava, sim, juntamente com o Ubaldo Puppi, da Ação Popular, um mo-vimento de esquerda que se reunia para discutir os destinos da Nação. Depois veio a Unesp. O reitor da época inventou de fazer a Universidade e fechou alguns cursos, transferindo os professores para outros lugares. Eu fui um deles e vim para Assis.

Eu estava em um curso de formação de professores em três anos. Era um curso de Ciências Físicas e Biológicas. Eu mesmo ajudei a fundar. Aí ele fechou o curso lá em Marília e me transferiu para Assis, em 1982. Eu conhecia um pouco da cidade, pois me reunia com algumas pessoas de vez em quando, sem-pre discutindo essas questões de esquerda e direita. O professor Tozoni era um deles. Mas foi, no fundo, algo positivo, pois, como eu era professor titular, foi para o grupo de esquerda uma espécie de avanço, pois não havia na época ne-nhum professor nesta condição. Havia uma burocracia da direita, que só dava vantagens de administração aos mais graduados.

Logo que cheguei a Assis me tornei chefe do Departamento de Psicologia e assim fiquei por alguns anos. Em 1983 começaram as reuniões pra ver o anda-mento político do chamado grupo de esquerda. Culminou com o lançamento da minha candidatura para diretor da faculdade. Mas antes disso eu havia passado por Franca e cheguei a ser diretor da Faculdade lá. Também em Franca fui pre-sidente da Adunesp.

Franca tinha um problema muito grave de direita. O Manuel Nunes Dias era o chefe da direita da Unesp, vamos dizer assim. Ele estava lançando outro candidato que também era de direita, mas que eu respeitava, era uma boa pes-

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soa. Eles acharam que eu poderia enfrentar o candidato do Nunes e fizeram uma coligação entre estudantes, professores e funcionários para me apoiar. Eu ganhei a eleição. Mas como havia tido algumas discussões com o reitor à época e seria ele a escolher o diretor, ficamos preocupados. Não sabíamos se ele iria escolher meu nome, afinal, eu não era do grupo dele.

Mas ele acabou me escolhendo. Na verdade, ele não era de direita propria-mente dita. Ele tinha origem na esquerda, parece que havia militado em um partido comunista. Fiquei um tempo lá e acredito que tenha tido uma boa par-ticipação, em relação ao período em que fui chamado até minha saída, posso dizer que as coisas lá mudaram da água para o vinho. Depois voltei para Assis. Aí começou o movimento.

Eleição para diretor em Assis

Fui eleito diretor em 1983, mas não assumi. O reitor reconduziu o profes-sor Mendonça, que já era diretor na ocasião. Isso provocou um grande movi-mento contrário. Provocou até uma grande invasão na Faculdade. Os estudan-tes invadiram a diretoria, ficaram por lá uns dois meses e meio.

Foi uma movimentação bonita. Misturaram até um pouco de sentimenta-lismo com o movimento. No Dia dos Pais, muitos parentes dos invasores pro-moveram um almoço. Teve até militar pedindo desculpas, aquela velha história do “nós somos mandados”.

Voltando à recondução do professor Mendonça ao cargo de diretor em As-sis, a partir desse acontecimento foi montada uma comissão de professores da Reitoria para investigar os acontecimentos. Eles pressionaram muito, mas eles também foram pressionados. Aqui foram ouvidas diversas pessoas, profes-sores e alunos e funcionários. Acabamos sofrendo um processo de expulsão. Éramos umas 40 pessoas envolvidas. Esta história da expulsão foi em certo ponto positiva, pois repercutia, dava força ao movimento, provocava reuniões do Conselho Universitário.

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DEPOIMENTO 6

Luís Carlos da Rocha

O professor Luís Carlos da Rocha atua no Departamento de Psicologia Evolu-tiva, Social e Escolar da Faculdade de Ciências e Letras do câmpus de Assis da Unesp. Ele teve importante atuação nos episódios que envolveram a violação aos direitos humanos na universidade durante a ditadura imposta pelos milita-res. Aqui, seu depoimento a respeito desse período da nossa história.

O início da docência na Unesp

Cheguei a Assis no primeiro semestre de 1983. Em princípio, pensei que seria uma passagem rápida, pois trabalhava na Universidade Estadual de

Maringá. Tinha ido ao Paraná em virtude da luta política, uma vez que todos os professores da Fundação de Sociologia e Política de São Paulo, inclusive eu, tinham sido demitidos. Houve um corte geral, a polícia política cercou a uni-dade e não deixava ninguém entrar. Foi um semestre inteiro sem aulas, pois os colegas se recusavam a assumir as aulas de professores que tinham sido demi-tidos porque lutavam pelos direitos de se organizar, de formar uma associação de professores. Lembro que o ministro Guido Mantega trabalhava lá, pertencia à Associação e também foi demitido.

Em Maringá eu era professor concursado, mas pensava em voltar para São Paulo, onde a ação política era mais dinâmica. Mas alguns amigos acabaram me convencendo a ir para Assis. Mesmo não conhecendo a cidade, prestei concurso e aqui fiquei. Acabei, com o tempo, me apaixonando por Assis, pois reconheci aqui um lugar de luta, de atividade de criatividade, de pessoas de coragem. A Faculdade é pequena, mas aguerrida. Já se passaram 30 anos, aqui constituí família e não pretendo ir embora.

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O clima político na faculdade

Quando cheguei, havia um movimento por eleições diretas para diretor. Na época, os diretores eram indicados. A Congregação, que eu considerava razoavelmente obediente ao diretor, formava uma lista e a apresentava ao rei-tor, que fazia a indicação dos novos dirigentes. Era um movimento pioneiro, inédito no país. Nem se falava em Diretas Já. Simpatizei com aquilo e logo me envolvi no movimento, comecei a participar de assembleias. Conseguimos realizar uma eleição informal, na qual foi eleito o professor Antônio Quelce. Iniciamos um movimento para que ele pudesse tomar posse, como expressão do desejo da comunidade.

Na época, fazíamos eleições dentro de critérios paritários, com professores, funcionários e alunos tendo um peso equivalente. Quelce ganhou em todas as categorias. O movimento de apoio à sua eleição foi enfrentado de forma muito forte e violenta pela direção da época e pela Reitoria. Esta, diga-se de passagem, era muito identificada como valores da ditadura e se compunha de pessoas remanescentes do malufismo. É até estranho falar disso, se passou tanto tempo e esse personagem ainda hoje aparece na televisão como se nada tivesse aconte-cido, se colocando sempre como a melhor opção para o povo paulista.

A distensão da ditadura militar e a luta pela democracia na Unesp

O Franco Montoro havia sido eleito governador. A ditadura caminhava para o fim, naquele clima de distensão lenta e gradual. As forças progressistas e hege-mônicas, assim, pensavam em fazer uma transição mais tênue, diferentemente de outros países vizinhos. Na verdade, com isso acabamos sem conseguir lavar a alma dos pecados da ditadura, até hoje. Quem sabe a Comissão da Verdade consiga resgatar a memória deste período e fazer as reparações necessárias.

Foi uma luta dura, havia muitas paralisações. Mas houve um fato marcante na época. A Reitoria fechou o nosso câmpus, suspendeu as aulas para evitar a influência que esse movimento poderia ter sobre os alunos, e o que ele poderia significar para a cidade e para outros lugares. Nós tínhamos uma mobilidade muito grande. Montamos uma espécie de escritório em São Paulo para ficar em

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135Depoimento 6 – Luís Carlos da Rocha

contato com a imprensa, que pouco conhecia da Unesp de Assis. Procuráva-mos os canais de televisão, visitávamos as redações dos jornais, convocávamos coletivas na sede da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a SBPC. Nosso porta-voz era João Francisco Tidei de Lima, uma pessoa muito correta, absolutamente confiável, e que conhecia todos nós pelo nome. Fazíamos as-sembleia com 150 pessoas e, se alguém levantava a mão, ele falava: “A voz agora é para o professor Francisco, ou para a aluna Cleide”.

Lembro quando organizamos a primeira entrevista coletiva em São Paulo. Alguns amigos meus jornalistas diziam que, para ver a unidade de uma uni-versidade pouco conhecida nenhum repórter apareceria. Fizemos releases para todos os jornais, mandamos uma comissão para cada um. Pois acabamos tendo sete aparições na televisão. Deu certo. Tínhamos um material muito bom e uma bela causa, que era a democracia.

A democracia acadêmica podia ser um assunto secundário, mas a po-pulação, de alguma forma, começava a ser contaminada pela ideia de um retorno à normalidade democrática. Tanto que, um ano depois, as ruas esta-vam cheias de gente brigando pelas “Diretas Já”. Ou seja, estávamos certos. Definimos uma proposta política de democracia direta num momento em que a sociedade estava disposta a também assumir essa luta. Então, a nossa proposta de democratização da universidade foi muito bem recebida pela mí-dia e pela intelectualidade.

Em uma das assembleias, eu me ofereci para visitar outras unidades e levar nossa bandeira. Naquela época, era difícil fazer reuniões em algumas unida-des, muito dominadas pelo esquema da Reitoria. Em Franca, por exemplo, o diretor Manuel Nunes Dias era de extrema direita, tinha vindo da USP, da Es-cola de Comunicações e Artes, a ECA, era de um grupo tradicional de direita. Ele tinha perseguido e ameaçado estudantes com o antigo 477, um correlato do AI-5 pra circunstâncias estudantis que poderia expulsar alunos.

Lembro que um dos alunos mais perseguidos da ECA era o atual vereador petista Zé Américo. Na época, ele era um garoto com menos de 20 anos, tinha até saído da unidade para não ser preso. Nós corremos toda a ECA, fomos a todas as salas levantando o pessoal contra o diretor, que nós não conhecíamos muito bem, mas que era uma pessoa truculenta, o Manuel Nunes Dias.

Quando me sugeriram ir à Franca, me senti muito mais desafiado, estimu-lado. Eu disse: “bom, depois de tanto tempo, para mim vai ser uma satisfação

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visitar como professor uma unidade que tem uma pessoa tão identificada com a ditadura, e que agora, naturalmente, haverá a oportunidade de um debate olho no olho”. Eu me ofereci e os colegas aprovaram: “tá bom, então vai o professor novo”. Alguns colegas até falaram: “olha, Luís, você acabou de entrar, você não tem muito respaldo, o seu contrato é provisório, é meio temerário isso aí”.

Na época medo não era uma coisa que nos detinha, absolutamente. Sen-tíamos, lógico, mas não nos detínhamos por receio. Tínhamos muito orgulho do que fazíamos. Saímos aqui com um carro, com dois alunos, um era repre-sentante estudantil, e fomos para essas unidades. Foi muito importante. Em Araraquara, por exemplo, a gente fez uma reunião, com a atuação muito im-portante do professor José Ênio; Ele ajudou a promover um belo encontro, com cerca de 200 pessoas, que manifestaram uma grande solidariedade à luta. De-pois fomos para Jaboticabal, onde disseram que nunca havia tido assembleia. Pois fizemos uma reunião lá, também com 200 pessoas. Também apoiaram amplamente nossa luta.

Chegou a vez de Franca. Manuel Nunes Dias poderia ter muitos defeitos, mas a covardia não era um deles, enfrentava a situação. Ele preparou alguns professores que deveriam fazer perguntas e colocações embaraçosas, tentando desmoralizar o movimento. Foi uma ótima reunião, conseguimos, sem arro-gância, sem imposição e de modo bastante democrático total apoio das pessoas de lá. Grande parte dos professores preparados pelo diretor concordou conos-co. A causa passou a ser comum, pode-se dizer assim. Fizemos outra reunião no dia seguinte e o sucesso também foi grande. Acho que o Manuel Dias não gostou nada do resultado.

No outro dia fomos convidados para um programa de rádio. Alertaram para nós que o radialista era “perigoso”. A entrevista seria ao vivo e ele certa-mente nos colocaria diante de situações embaraçosas. A principal questão que ele nos colocou foi sobre o fato de uma entidade pública, sustentada pelo di-nheiro público estar parada, sem oferecer o serviço, sem oferecer as aulas. Uma entidade com professores bem preparados, mas que não estão ensinando. Se-gundo ele, a população precisava e clamava por esse ensino. Nosso argumento era muito bom. Tínhamos aprovado em assembleia que desejávamos trabalhar, dar aula, nem que fosse nos jardins se as salas estivessem fechadas, mas era a Reitoria que tinha ordenado o fechamento das salas. Isso o desarmou, ele não estava preparado para essa resposta. Daí, ele tentou jogar a culpa no gover-

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nador Montoro, mas nós dissemos: “não, foi o reitor, foi o reitor, por isso que devemos ter uma reitoria identificada com a população e com a universidade, justamente para não ter esse tipo de situação, ou seja, uma reitoria que feche as atividades de ensino para sufocar o anseio democrático”.

Voltamos para casa orgulhosos, satisfeitos. Tínhamos feito uma viagem cansativa, mas muito produtiva. Embora ela tenha me custado o único período de desemprego na minha vida.

Participação política e repressão

Esta é uma longa história. Como toda pessoa que luta por causas sociais, muitas vezes se enfrentam adversários muito mais fortes que você. Mas mesmo na derrota, dizemos que conseguimos uma vitória moral. Na época, em 1983, não conseguimos eleger o diretor. A unidade havia ficado parada por um bom tempo e houve uma invasão policial. Até os professores mais conservadores foram contra. Eles vinham para desocupar a congregação, que tinha sido ocu-pada. Aliás, o prédio todo estava ocupado. Também o prefeito, o Santilli, muito identificado com a luta democrática dos autênticos do PMDB, nos foi solidário, prometendo ficar conosco nesse momento.

Quando vimos que não era possível evitar a entrada da polícia, estabelece-mos uma estratégia de resistência passiva. Deitamos no saguão e combinamos que não nos moveríamos do local, e se a polícia quisesse, ela teria que tirar as pessoas, carregar uma por uma para fora. Assim foi feito. Os policiais carrega-vam as pessoas respeitosamente, com certo cuidado, mas, quando chegavam na porta, jogavam-nas para fora. Foi uma ação muito importante, pois o caráter plástico da situação ficou muito favorável a nós, que estávamos convictos, pací-ficos, sentados na nossa unidade e tínhamos a polícia nos retirando na marra, nos carregando e jogando para fora do prédio como se fôssemos pacotes. Seria difícil não ser simpático pela nossa causa. A opinião pública nos defendeu e foi contrária à Reitoria. Mas não conseguimos vencer a luta, não tivemos a posse do Quelce, mesmo dialogando com o governador, com secretários, com depu-tados estaduais.

Por sinal, a Comissão de Educação da Assembleia Legislativa fez um relató-rio interessante, mostrando a importância da democratização da universidade

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no próprio fluxo da construção da democracia nacional, ainda muito no rascu-nho. Lembro um deputado que foi muito importante, o petista Paulo Frateschi. Ele nos acolheu muito bem, tinha posições muito identificadas com a nossa luta, sempre veio à nossa unidade e promoveu sessões especiais da Comissão para discutir a situação que vivíamos, o que nos deu uma publicidade muito grande.

Quelce não toma posse, mas o movimento avança na luta pela eleição do reitor

Pelo contrário. Quando nós perdemos, pensamos em dar um passo à fren-te. Em vez de recuar, proporíamos eleição direta para reitor. Seria uma luta que envolveria todas as unidades. Nenhuma universidade brasileira havia proposto ou feito uma eleição direta para reitor até aquele momento. Então, começamos uma campanha nesse sentido. Dela participaram pessoas importantes, como o Willian Saad Hossne, um acadêmico e um cientista amplamente reconhecido, uma pessoa identificada com as questões democráticas, com a ideia de lisura acadêmica, de competência. Convidamos e ele aceitou ser um dos candidatos. Outro candidato importante foi o professor Quelce, acadêmico e pesquisador de reconhecimento internacional. Sabia que ele dá nome a uma síndrome, a síndrome de Quelce Salgado? Foi ele quem a identificou. Achávamos que a uni-versidade tinha que estar nas mãos dos seus melhores quadros.

A luta pela eleição direta a reitor se fortalecia cada vez mais. O Nilo Odá-lia foi outro candidato. Ele era um professor muito admirado, um intelectual reconhecido. Ele também aceitou participar da eleição e foi bem votado. Não venceu, ficou em segundo, mas deu uma contribuição importante, pois o obje-tivo era fazer com que as pessoas se expusessem ao jogo democrático, ao voto, correndo as unidades, levando suas propostas, debatendo.

O Willian Saad ficou em primeiro lugar. Daí começou a luta para que essas pessoas fossem empossadas, principalmente para que o Willian Saad assumis-se a Reitoria. Foi muito difícil, porque na época o Armando Otávio Ramos, que era um sucessor do Luís Ferreira Martins, tinha o controle do Conselho Universitário e compôs uma lista, encabeçada por ele, para ser oferecida ao governador. Um deles era o Manuel Nunes Dias. Ele fez também um esquema interessante, colocando como pró-reitor o próprio Manuel Dias, pessoa reco-

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nhecidamente identificada com a direita mais truculenta. Ele pensava: “O go-vernador não pode escolher outros da lista porque são indicações gravíssimas, pessoas muito identificadas com a direita, vai sobrar o meu”.

Era o governador quem deveria indicar, mas ele não tinha formalmente pra-zo para isso. Ele pensou: “ele vai usar o expediente de deixar correr o final da minha reitoria. Numa certa altura, ao terminar o meu mandato, eu tenho que sair e vai entrar o vice. Bom, ele vai deixar o vice correr e vai entrar quem? O pró-tempore. Quem eu vou colocar como pró-tempore? Manuel Nunes Dias”. Isso o governador evitaria a todo custo porque ele sabia bem quem era Manuel Dias. Foi isso que aconteceu. O Montoro aceitou essa estratégia, não indicou ninguém.

Assim, Manuel Nunes Dias, como pró-reitor, foi empossado reitor da Unesp. A esta altura, já havia sido instituída uma comissão de sindicância, que propunha a punição ou demissão de dezenas de pessoas, como o Quelce e eu, lógico. O Hélio Bicudo se apresentou gentilmente para nos defender, mas este processo não prosseguiu.

Criaram-se, então outros expedientes para punir os professores, aprovei-tando-se do fato de a Universidade ter ficado fechada. O professor Antônio Merisse, por exemplo, foi demitido porque não apresentou o relatório de ativi-dades. Como ele o faria com as portas das salas fechadas? No meu caso, como havia um contrato provisório que deveria se renovar até a efetivação, no seu término eu estaria na rua. O Manuel Nunes Dias entrou na Reitoria dizendo que, enquanto ele estivesse no comando, eu não voltaria a trabalhar na Unesp.

O desemprego militante

Eu me senti muito honrado pelo fato de que uma pessoa com um passado tão identificado com as piores causas tenha dito que eu deveria ficar fora da universidade. Foi como um cumprimento para mim. Meus colegas foram mui-to gentis comigo. Fiquei sete meses afastado das aulas, com o salário mantido pela contribuição dos colegas, que faziam um rateio mensal. Não chegava ao meu salário, mas simbolicamente isso me satisfazia plenamente. Isso foi feito também para o professor Merisse e também pude dar minha contribuição.

No final das contas, conseguimos derrubar o Manuel Dias da Reitoria. O Montoro usou o expediente oferecido por um juiz de direito. Nós levamos esse

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parecer ao governador. O documento oferecia alternativas para lidar com a situação, ele adotou as diretrizes desse parecer e conseguiu nomear proviso-riamente um reitor, retirando o Manuel Nunes Dias do cargo e indicando em seu lugar o professor Jorge Nagle, do câmpus de Araraquara. O gesto poste-riormente foi corroborado pelo Conselho Universitário para todo o mandato. Assim que o Nagle entrou na Reitoria ele me recontratou. Eu tenho no meu contrato uma nomeação que coloca a minha contratação em substituição ao próprio. Eu fiquei muito satisfeito porque, enfim, é o reconhecimento de que eu tinha um lugar na universidade. Fui conduzido para o meu preciso lugar, em substituição a mim mesmo. O mesmo aconteceu com o Merisse.

Saad é eleito mas não toma posse

Bom, nós perdemos essa luta também, não conseguimos emplacar o rei-tor, nem o Saad nem o Odália. Mas de certa forma emplacamos o Nagle. Ele era uma pessoa identificada com nosso movimento, embora não tivesse par-ticipado das eleições, não pleiteava o cargo. Foi uma solução mais do staff do Governo para gerir aquela crise. A solução nos satisfez porque removia pessoas como o Manuel Dias da Reitoria e colocava outra que o Governo tinha ampla confiança de que teria tato para administrar a crise e levar a Universidade para uma solução institucional aceitável. Montoro sempre foi muito precavido, pru-dente, dentro da linha de caminhar devagar, mas com segurança.

Ou seja, perdemos de cabeça erguida. Ao mesmo tempo começava uma nova luta por eleições diretas, outra batalha que iríamos perder. Enfim, a vida da qual nos orgulhamos foi uma sucessão de revezes, de derrotas. Sempre pre-tendemos mais do que conseguíamos fazer, mas acredito que a construção de uma sociedade pautada por justiça social e democracia é realizada assim mes-mo. Propomos muito, não conseguimos, mas se avança e se constrói.

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A repercussão da luta pela democratização da Unesp na sociedade brasileira

Fazendo um paralelo com o período de redemocratização do país, dá para se dizer que a Unesp teve um papel nesta história de vanguarda. Até me dói quando as pessoas não reconhecem isso imediatamente. Alguns colegas que não estavam aqui em 1983, não dão o devido valor quando se fala da importân-cia da universidade. A vida acadêmica é tão cheia de divisões. Dois professores se candidatam, há enfrentamentos, mas uma coisa é certa: a luta de 1983 foi de uma importância enorme na campanha de 1984 na eleição direta para reitor. Perdemos a primeira luta, mas entramos em uma batalha muito maior, com mais entusiasmo, com mais gente participando.

Lógico que não foi isso que estimulou o movimento das Diretas Já, mas num certo sentido, nos antecipamos, nos deu a satisfação posteriormente de ver e de participar de uma grande campanha nacional pela democracia. A reto-mada da democracia brasileira teve uma história, percorreu um longo caminho antes de ser conquistada. Da mesma forma, o estatuto da Unesp, que não é uma maravilha, mas está anos-luz à frente do estatuto da USP.

Por que a Reitoria da USP às vezes é ocupada? Porque lá existe um sistema de escolha de dirigentes na qual nem sequer há uma consulta, uma lista trípli-ce com algum significado dentro da Universidade. O Conselho Universitário tira os nomes que quiser do bolso do colete, sem ouvir ninguém, sem a parti-cipação ampla de todos os setores da Universidade. São dezenas de milhares de pessoas, é muita gente.

A USP ainda não deu o passo que demos anos atrás e está pagando, tendo que conviver ocupação da Reitoria. Fizemos a reforma do estatuto da Unesp com ampla participação, na qual tínhamos eleições para diretor, o rebaixamento da titulação de titular para doutor, por exemplo, ampliando muito o leque de parti-cipação da Universidade. Hoje está esgotado esse sistema de professores titulares na Reitoria, não é necessário. É perfeitamente possível que os pleiteantes à Rei-toria tenham até o título de doutor. O nosso estatuto hoje não permite e esta é uma das ideias a implantar, tornando ainda mais amplo o trânsito na condução da Universidade. Isso não significa que a pessoa vai ser indicada, mas que ela tem o direito de propor um nome, um programa, propor ideias que serão discutidas.

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Tem também a discussão sobre a expressão de votos das categorias. Nós te-mos agora 70% de professores da composição do nosso funcionamento demo-crático, do funcionamento dos órgãos, 15% de alunos e 15% de funcionários. É muito pouco para essas duas parcelas. Iniciamos esse processo com o voto igualitário. Num novo ajuste, tentando ser mais realistas com a condição que tínhamos, os percentuais foram respectivamente para 50%, 25% e 25%, o que ainda era bem melhor que o quadro que se tem hoje. A Unicamp, por exemplo, trabalha com representatividade de 60%, 20% e 20%.

A Adunesp

Dentro do espírito vanguardista, a Associação dos Docentes da Unesp, a Adunesp, entra nesse bolo. É a primeira entidade dentro do Estado de São Pau-lo com essa característica nas universidades. No início, a Adunesp não era uma proposta com suporte consistente. Tanto que, ao sermos demitidos, não conse-guimos manter nem a associação nem nosso próprio exercício profissional lá dentro, todos os professores associados à entidade foram demitidos. Sinal que era uma proposta muito atrevida para a época. Ela parece simples, não é? Não para quem conheceu a ditadura.

O balanço da luta

Enfim, fazendo uma avaliação de toda esta história, nós convivemos e di-vidimos a luta com grandes pessoas, conseguimos estabelecer relações de com-panheirismo muito sólidas, agradáveis, consistentes. Evidentemente demos a nossa contribuição para o processo democrático, que costuma mesmo se fazer com as sobras de algumas derrotas. Nós tivemos que passar muito tempo para ter experiência de vitória. Particularmente, acredito que a grande experiência de vitória da democracia brasileira, exemplar para o mundo, foi a eleição do presidente Lula. Quem poderia imaginar, um homem com as suas dificulda-des com o português pobre, um operário perseguido, sindicalista, mal visto pela direita, eleito presidente da República? Eu me lembro da primeira eleição, aquela em que ele foi candidato ao governo de São Paulo. Foi mais para marcar

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posição, afinal só era possível por o currículo da pessoa e o dele falava em pri-são, algo inaceitável para as pessoas.

Pois nós conseguimos uma eleição expressiva depois de derrotas. A direita, na verdade, usou tudo o que podia para derrotar a esquerda. Usou todas as for-mas de sedução, como foi o caso do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Conseguimos, assim, ter a experiência de vitória. Um nome popular, eleito por uma votação expressiva e que conseguiu resistir a todas as manobras da mídia, toda pressão e projetar o País de uma forma que nós não imaginávamos. Ao viajar ao exterior percebíamos que as pessoas começavam a tratar o brasileiro de forma diferente. Na Argentina, na Espanha, na Itália, nos diziam que ali era preciso um Lula também. Nos fez ter orgulho de sermos brasileiros. Con-seguimos eleger uma pessoa que se tornou um nome importante da política internacional, levou o país a uma respeitabilidade que não imaginávamos, além de ter produzido uma coisa importantíssima, que às vezes temos dificuldade de entender que é ter tirado do valo da miséria milhões de brasileiros. Isso pa-rece insignificante para a classe média, mas não para as pessoas que estavam naquela condição.

Nossa atualidade: um novo país?

Esta é a diferença entre uma vida infeliz e uma vida de esperança. Impor-tantíssimo! Eu tenho amigos que viajam muito, jornalistas que andam pelo país todo, e eles falam: “olha, você tá aqui em São Paulo e não imagina a trans-formação do país, o que aconteceu nas pequenas cidades, o que é essa bolsa-família. Tem gente que fala com despeito que isso se trata de uma esmola, mas dinamizou relações, trouxe orgulho de pessoas que simplesmente viviam de escambo. Num certo sentido, puderam fazer suas compras, dinamizando o co-mércio, ou seja, estabeleceu um patamar de dignidade que não havia no País até então. Acredito que só uma liderança realmente de base, de raiz popular, que tivesse a sua vida constituída nas dificuldades da população, é que teria a disposição de olhar para esses problemas.

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A Unesp hoje

Houve um arrefecimento dessas preocupações durante um tempo. Todas as situações recentes são difíceis de serem avaliadas, a distância é que permite você olhar as coisas com um pouco mais de clareza, quando elas começam a tomar o seu formato. Mas temos visto o aparecimento de uma disposição de luta que há dois ou três anos não existia. Evidentemente que ela aparece de uma forma confusa, de uma forma não clara. As pessoas às vezes dizem: “mas, afinal, há uma pauta de reivindicações?”. Tínhamos muita experiência política na época, éramos capazes de fazer propostas muito bem articuladas. Havia um aprendizado grande de resistência à ditadura.

A juventude hoje não é diferente, se formou no meio de uma democracia, mas uma democracia de pouca participação direta. Então, quando ela come-ça a participar de forma direta, é natural que não saiba precisamente o que fazer. Ela tem uma noção meio intuitiva do que é necessário, da sua própria insatisfação, mas que não tem ainda condição de precisar as suas colocações e as propostas viáveis. Eu vejo muita gente reclamar que as propostas não são muito claras. É porque as pessoas estão aprendendo, engatinhando, tateando a experiência democrática. Um dia evidentemente terão muita clareza, e espero que tenham a mesma disposição de luta que têm hoje.

Alguns têm a visão mais clara, outros, uma disposição forte. Contra a di-tadura era muito assim. O jogo democrático se compõe de uma disposição de vontade, de anseios. Aprende-se a sua expressão mais próxima da possibilida-de, mais próxima da capacidade de produzir avanços, reformas. Eu vejo com bons olhos, estamos num momento bom, novo, difícil de ser compreendido, é verdade, mas um momento de retomada da participação democrática. Pode-mos eventualmente ver problemas da participação, mas a maior dificuldade é quando falta a participação. Para mim isso é a infelicidade da vida, a falta de participação. Isso não só mata o cotidiano como nos deixa sem memória digna de ter mais tarde quase nada a lembrar.

Mesmo a luta pouco regrada, confusa às vezes, ela tateia coisas importantes e deixa como um lastro duas coisas: os elementos de experiência para as ações mais concretas, mais efetivas na frente, e uma memória que algum dia a gente vai precisar para ter orgulho de nós mesmos.

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DEPOIMENTO 7

José Sterza Justo

Entrevista realizada em 10 de outubro de 2013.

É doutor em Psicologia Social e professor do Departamento de Psicologia Evo-lutiva, Social e Escolar da FCL/Unesp em Assis/SP.

A eleição do professor Quelce: Assis no compasso da redemocratização

Primeiro quero dizer da importância desse projeto, dessa tentativa de resga-tar nossa história, a da Unesp, e ao mesmo tempo a história do nosso país.

A propósito, eu gostaria de enfatizar o quanto a Unesp foi parte importante da história do nosso país, precisamente no período da redemocratização. Vou detalhar como isso aconteceu, mas já adianto que o movimento pela redemo-cratização no nosso país contou com uma contribuição importantíssima da Unesp que se iniciou especificamente no câmpus de Assis com o movimento pelas eleições diretas na universidade, isso logo no início de 1983.

Havia um clima disseminado no país pela redemocratização, mas antes de se estabelecer as eleições diretas no país, nós deflagramos aqui em Assis um movimento reivindicando a eleição direta do diretor do câmpus, em sintonia com movimento nacional pela eleição direta do Presidente da República que era o objetivo maior.

Em Assis, em 1983, mais precisamente, se inicia o movimento pela eleição direta do diretor do câmpus. O mandato do diretor vencia neste ano; a escolha do diretor era feita por aquele conhecido processo de elaboração, pela congregação

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da unidade, de uma lista sêxtupla de nomes para livre escolha do Reitor. A con-gregação daquela época, era uma congregação bastante restrita com a participa-ção de professores, poucos aliás, e um representante de alunos, não mais do que isso. E era esse o colegiado que escolhia, dentre os professores titulares, aqueles seis que seriam enviados ao Reitor para que ele escolhesse o seu preferido.

O que fizemos foi deflagrar então uma ampla mobilização pela eleição do diretor da unidade, através da votação dos três segmentos, professores, alunos e funcionários. Como o estatuto não previa eleições diretas, nós realizamos um movimento paralelo, autônomo, independente para a eleição do diretor. O primeiro desafio foi tentar divulgar esse movimento, divulgar esse processo eleitoral, e fazer com que a comunidade como um todo, os professores, os fun-cionários e os estudantes, aderissem a ele. Nós precisávamos que esse processo fosse um processo bastante encorpado, com uma ampla participação para que pudesse ter força de pressão sobre os colegiados e sobre o reitor para que pudés-semos viabilizar, na prática, essa maneira de escolher o diretor.

Nós tínhamos dois grandes desafios: o primeiro era esse, no plano local, de fazer uma eleição bastante representativa dos três segmentos. Segundo desafio, fazer com que a congregação acatasse o resultado dessa eleição, porque nós pensamos o processo dessa forma: fazemos a eleição, levamos para a congrega-ção, a congregação homologa o resultado da eleição e homologando o resultado da eleição, pressionamos o reitor para que ele escolha aquele que tivesse sido eleito. Mas também destacando que nós achávamos importante a redemocrati-zação da própria universidade, da estrutura política-administrativa da própria universidade, tudo isso inserido no quadro geral do país.

E o câmpus de Assis, talvez por ser o câmpus cujo mandato do diretor se expirava em 1983, e esse clima pelas eleições diretas já estava posto no cenário geral do país, talvez por isso, Assis saiu na dianteira, ou seja, foi o primeiro câmpus na Unesp que deflagrou esse movimento pela eleição direta do diretor. Posteriormente, outros campi também fizeram o mesmo movimento, mas As-sis foi o primeiro e esse movimento aqui foi um movimento realmente muito intenso, muito forte, muito significativo, e embora, já antecipo, ele não tenha chegado ao seu objetivo, não tenha conseguido de fato empossar aquele que foi eleito, o processo foi muito marcante e ele se repercutiu na universidade como um todo e, evidentemente, também demos uma contribuição pra todo o pro-cesso de redemocratização do país.

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Tínhamos o cenário geral do país que favorecia e tínhamos também as entidades todas, sobretudo a representativa dos professores e dos alunos que fo-ram os dois segmentos evidentemente mais engajados. Os funcionários, temos que fazer esse registro, o segmento dos funcionários, não teve uma participa-ção significativa. Foram poucos, eu acho que não tínhamos mais do que três ou quatro funcionários no câmpus que participaram efetivamente do movimento, nas assembleias, nas discussões, nas ocupações, enfim, em tudo que aconte-ceu nesse período, mas o segmento como tal não participou, aliás, eles eram contrários. Era um segmento aliado à direção na época, era aliado ao governo, isso está nos documentos. Nós vamos falar provavelmente da comissão da sin-dicância que foi aqui instalada pelo reitor para dissuadir o movimento e punir aqueles que eles consideravam as lideranças responsáveis por ele. E lamentavel-mente tivemos depoimentos de funcionários, nessa comissão de sindicância, delatan do, uma funcionária delatando aqueles que estavam sendo considera-dos como líderes do movimento, delatando para essa comissão para serem pu-nidos evidentemente. Isso era sabido, a comissão tinha esse propósito, que está nos documentos também, de apurar os fatos e identificar os responsáveis e pu-ni-los como, aliás, isso foi feito. Só estou dando esse como um exemplo de qual foi o posicionamento dos funcionários nesse movimento; essa funcionária, na época, era a chefe da sessão de graduação, ela delatou 60 e poucos alunos. Até ficou apelidada de “sessentinha”.

Um outro episódio também que demonstra isso: quando houve a ocupação da sala da direção, a secretária do diretor na época, se colocou como se fosse uma leoa de chácara, uma guardiã ali na segurança da sala. Ela tentou impedir a entrada dos estudantes para fazer a ocupação. Só para se ter ideia de quanto os funcionários eram aliados do poder estabelecido, desse tipo de poder con-siderado autoritário e opressivo dentro da universidade, e eles eram completa-mente avessos a qualquer ideia de democracia, de democratização.

Até na participação nas eleições, se fossemos colocar em uma ordem o vo-lume de participação desses segmentos, o maior era o dos alunos, depois o dos professores e por último, bem por último, o dos funcionários. Essa partici-pação foi sendo modificada ao longo do processo. Naquele momento inicial, quando divulgamos a data da eleição, fizemos um cronograma para a eleição e criamos um processo semelhante ao que temos hoje, ou seja, com um perío-do para discussão dos candidatos. Detalhe, na época, só professores titulares

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poderiam exercer a direção do câmpus, hoje os doutores também podem. Isso diminuía bastante o universo de candidatos possíveis. Na realidade o câmpus de Assis, acho que tinha algo em torno de 10 a 12 titulares. Então nesse primei-ro momento da divulgação do calendário, da divulgação da eleição, houve uma adesão bastante grande dos três segmentos. Claro, não foi tão fácil convencer os nossos colegas professores titulares na época, a se inscreverem para a eleição, até porque esse era o segmento mais conservador.

Na época os funcionários já eram todos concursados. Então eles tinham es-tabilidade diante da ditadura, assegurada pelo Estatuto do funcionalismo públi-co. Entre os docentes, já tínhamos uma parte que era celetista e uma outra parte que era dos concursados também. Mas havia da parte sobretudo do segmento dos professores e dos estudantes um sentimento de segurança muito grande. Aliás, curioso até, constatar que num período de autoritarismo muito forte, de ameaças muito fortes, um período que ainda, bom, aí em 81, 82, 83, já nem tan-to, porque já estavam num movimento bastante avançado da democratização, mas ainda assim como pairava um clima de ameaça por conta de sindicâncias e possibilidade de punições mais rigorosas, demissões. Mas o sentimento de segurança era muito grande e ele decorria não de garantias legais, mas da força e da união dos segmentos em torno dessas bandeiras, em torno dessas ações no sentido da redemocratização. Agora me recordo de um exemplo dessa solidarie-dade, dessa confiança e dessa determinação pela causa, pela luta que foi o que ocorreu com um de nossos colegas, Luís Carlos da Rocha, que foi um dos indi-ciados pela Comissão de Sindicância. Na ocasião, ele era professor colaborador, havia essa figura do colaborador, que era um contrato de dois anos, renovável por mais dois anos e essa renovação não era uma renovação automática, porque funcionava praticamente como um contrato enquanto se aguardava a realização de um concurso regular. Pois bem, o artifício utilizado para punir o Luís Carlos, não foi uma demissão, um ato de demissão formal, mas o que se fez foi a não renovação do contrato dele. O contrato dele venceu exatamente nesse período da evolução do movimento e aí o contrato dele não foi renovado.

Mas o que nós fizemos? Nós fizemos uma cotização entre um grupo de do-centes e cada um pagou uma parte do seu salário. Dividimos entre nós o salário que ele recebia na época, e nós pagamos durante alguns meses, não lembro exa-tamente quantos meses, mas por alguns meses nós pagamos o salário do Luís Carlos para que ele se mantivesse aqui e, como um gesto de total discordância

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com aquela demissão e a reivindicação para que o contrato dele fosse renovado, o que acabou ocorrendo depois, mas isso foi quando o reitor na época, o Nunes, já tinha sido substituído pelo Nagle. Quando havia avançado a própria redemo-cratização dentro da Unesp. Coloco isso como um dado dessa solidariedade, dessa força, dessa confiança, dessa segurança que havia nesse movimento, que havia nesse enfrentamento do regime autoritário. Vivíamos num movimento de ponta-a-ponta que era o movimento pela redemocratização do país.

Criação da Unesp

Até me arriscaria a dizer que com a ditadura ruindo aqueles que se bene-ficiavam dela procuraram manter os redutos que fossem possíveis de serem mantidos em suas mãos e sob seu controle. E um desses espaços foi, sem dúvi-da, a Unesp. Eu diria que a Unesp foi um desses redutos do autoritarismo no estado de São Paulo, foi um reduto do Malufismo – tomando a figura de Maluf como figura máxima dessa adesão de políticos à ditadura militar, aos militares.

A Unesp, no meu ponto de vista, foi criada como reduto do que poderia sobrar dessa direita, como se fosse uma premiação, como uma reserva possível que eles poderiam ter no apagar das luzes da ditadura militar, no interior do estado de São Paulo. A Unesp é uma filha tardia da ditadura nesse sentido. Tentou-se fazer dela esse espaço de manutenção de privilégios daqueles que faziam parte da universidade, daqueles que foram mais colaboradores com o autoritarismo, com a ditadura militar.

Por isso, talvez, que a gente tenha tido um enfrentamento grande, uma grande dificuldade, para alinhar a estrutura político-administrativa da uni-versidade ao que estava já se esboçando no cenário geral do país, ou seja, para redemocratizar a estrutura na universidade, para colocar o espírito democrá-tico dentro da organização e da prática política da universidade. Aqueles que se encastelaram na reitoria, começando com o Luiz Ferreira Martins, depois vem o Armando, todos eles, filhotes da ditadura e do Malufismo se opuseram ferrenhamente à democratização da Unesp. Em 1984, quando o movimento pela eleição direta avançou para a escolha do Reitor se repetiram os mesmos episódios ocorridos em Assis no ano anterior: eleição paralela, elaboração de

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lista sêxtupla pelo Conselho Universitário sem o nome daquele que havia sido o mais votado nas eleições diretas para Reitor.

Eu acho que isso, que se transcorreu durante praticamente todo o ano de 83 em Assis, fortaleceu muito a ideia de redemocratização da universidade. Então, voltando a 83, se estabelece o processo eleitoral, o calendário, as ins-crições. Alguns titulares se candidataram, dentre eles, aquele que depois foi o eleito, que recebeu a maior votação, que foi o professor Antônio Quelce Salga-do. A eleição foi feita e uma boa parte dos titulares, inclusive o próprio dire-tor da época que repudiava esse processo eleitoral, ficavam um pouco numa berlinda, porque, claro, eles não compartilhavam com isso, até mesmo pela posição político-ideológica, no entanto, não podiam se contrapor diretamente a um movimento muito forte.

Ao mesmo tempo em que tinha o movimento da resistência forte, tinha o outro lado, que era o lado da adesão, da cumplicidade, da aliança. E era do segmento que comandava a universidade, era do segmento que estava na reito-ria, era do segmento que estava na direção das unidades, porque o processo de escolha possibilitava isso. Imagina o governador ter um leque de opção de seis titulares na universidade, vamos destacar isso, só os titulares poderiam ocu-par esses cargos de direção e de reitor. Então isso restringia bastante e, aliás, como acontece até hoje, eles são muito bem administrados pelos poderes. Não interessa expandir a titularidade somente como um plano de carreira, uma trajetória de carreira profissional. Até o titular acho que prevalece o mérito acadêmico no sentido da produção de conhecimento. Mas o concurso de titu-lar é um concurso por vias políticas, porque vai desde a concessão do cargo, a destinação do cargo para o câmpus, daquele concurso, daquela área, daquele professor até a criação do próprio cargo pelo governador. Aliás, registre-se; nós estamos dizendo então do momento do malufismo, enquanto poder hegemô-nico político garantido pela ditadura militar que mandava no estado de São Paulo e consequentemente mandava na Unesp.

Unesp hoje

Hoje, aliás, faço questão de dizer isso e com muito conhecimento de causa, hoje é exatamente a mesma coisa e digo com toda segurança que é até pior.

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Aliás tive um embate recente com o reitor onde eu acho que isso apareceu com mais visibilidade. Hoje é pior porque a Unesp está completamente subordina-da aos interesses do governo do estado de São Paulo, do governo não, de um partido político, até de uma ala de um partido político, o PSDB, que comanda o estado de São Paulo há muito tempo e que comanda a Unesp e está gerencian-do a Unesp. Aliás, nós temos hoje, um ex-reitor que é secretário de governo. Curioso isso, não é? E já mostra a proximidade da administração da Unesp com o governo do estado de São Paulo e que também mostra o caminho pelo qual, hoje, os interesses do governo do estado de São Paulo penetram muito mais facilmente na nossa universidade, pela via desse secretário, o Herman, secretário de educação do estado de São Paulo, e do nosso Durigan, que é o nosso reitor, que era vice-reitor do Herman e que, evidentemente, mantém com ele uma grande ligação.

É por isso mesmo que a gente está assistindo hoje essa ampliação dos onze cursos de engenharia. Mas a demonstração maior de subserviência é a criação do câmpus de São João da Boa Vista. São João da Boa Vista, eu conheço. Co-nheço aquela região, eu conheço aquela realidade, eu conheço os deputados daquela região que há mais de 10 anos, vinham falando, prometendo àquela região um câmpus da Unesp. Promessa essa, com a qual eles se fortaleciam politicamente. E isso se conseguiu exatamente agora, no momento em que o PSDB está desesperado para manter os espaços políticos que já estão sendo ameaçados, exatamente igual ocorria na época, lá atrás, 83 e 84.

A situação não é diferente. Lá também o malufismo, já no processo de en-fraquecimento do autoritarismo procurou a todo custo se manter na Unesp. O mesmo processo, agora, acontece com o PSDB. O problema é que a nossa Unesp é muito vulnerável nesse sentido, o fato de ela ter unidades em todo o estado de São Paulo torna a Unesp uma excelente moeda de barganha política dos poderes políticos locais. Então é exatamente isso que o nosso governador e o nosso reitor e o Herman fazem e outros antes deles também fizeram. Antes do Herman, foram criados vários campi, Rosana, Ourinhos, Tupã, enfim, fo-ram vários campi criados pelo interior do estado de São Paulo.

E por que isso? Porque havia uma política universitária? Evidentemente que não. É barganha política mesmo para favorecer certos poderes locais, deputados que pressionam o governador, fazem as negociações com a reitoria da Unesp que se dispõe a esse lamentável papel. Então nesse sentido, acho que a história,

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fundamentalmente, nos dá essa grande contribuição de visualizar, de podermos entender o momento atual, por eventos anteriores. E esse paralelo que eu estou fazendo aqui não é exagero. E mais ainda, sobretudo quando eu digo que a situa-ção hoje, dessa subordinação da Unesp às políticas partidárias, hoje ela é pior, porque lá, no período de 83, 84, e em 76 quando a Unesp foi criada, a coisa era escancarada, a grande diferença é essa, lá a coisa era escancarada.

Visita de Maluf a Assis em 1981

O governador escolhia mesmo o reitor que ele queria, que era mais pró-ximo à ele; era um colegiado fechado. Enfim, não se dissimulava a infiltração do poder do governo sobre a universidade porque o governador já ia logo na cidade do câmpus. Ele vinha visitar a cidade como ele veio em ocasião e, como uma medida preventiva para que não houvesse manifestações, qualquer tipo de manifestação, contra a visita dele à cidade, o serviço de segurança vinha e prendia aquelas lideranças que supostamente poderiam organizar alguma ma-nifestação de protesto. O João Francisco – professor do curso de História – era uma dessas vítimas. Antes de o Maluf chegar já prenderam o professor. Mas era curioso; nós acabávamos fazendo exatamente aquilo que eles queriam evitar. Nós fomos lá fizemos manifestação na frente da delegacia. Aquela manifesta-ção que eles não queriam, acabou acontecendo.

Mas nesse período a coisa era aberta, descarada; os diretores não se preo-cupavam em dissimular as suas ações de acordo ao reitor, ao governador, ao regime militar; enfim, isso transparecia, a forma autoritária de gestão da uni-versidade, ela transparecia, era muito transparente. Essas ações do governa-dor, o uso político da universidade, da Unesp em particular, em 1976; a Unesp foi criada para isso, para manter espaços de poder para aqueles redutos do autoritarismo.

Unesp ontem e hoje: ditadura e sua herança

E hoje o problema é que essas coisas são mais dissimuladas. Hoje nós temos também, talvez até mais, eu diria; é difícil a gente dizer mais ou menos, que-

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rendo quantificar coisas que não são quantificáveis, a bem da verdade; mas eu fico até em dúvida quando eu penso sobre a época da ditadura militar e hoje. Porque agora nós estamos vendo ações e presenciando fatos, mas com conse-quências muito terríveis para a universidade. Não me lembro de intervenções dessa natureza com consequências tão danosas, como agora estamos vendo com a criação desses campi, com a criação desses cursos, como a questão das unidades experimentais.

Outro caso recente é o da criação do curso de medicina em Bauru. O reitor nega, veementemente, mas sabemos de toda a força política da cidade de Bauru desde quando a Unesp encampou uma Fundação Municipal de Ensino Supe-rior que lá havia e que acabou sendo transformada em um Câmpus da Unesp. Então, essa ingerência sempre aconteceu, e hoje, ela está também muito forte, embora bastante dissimulada. O Reitor tem o descaramento de dizer que nós vivemos numa universidade democrática, que todas essas decisões de criação de cursos, os projetos da reitoria, são projetos discutidos pelos órgãos colegia-dos. Tanto que eu fiz uma crítica a ele, dizendo que nós estamos vivendo um período de neutralização dos colegiados, mas o fato é que ele conseguiu anular os colegiados. Nosso esforço para construir isso que a gente acreditava que fosse a democracia dentro da universidade, que foi aquela luta árdua, acabou hoje servindo à cúpula do poder e legitimando as atuais formas de dominação.

Eleição do Quelce

Só para completar, rapidamente essa história então, a eleição foi feita, houve uma grande participação, conseguimos até colocar o nome do Quelce – o pro-fessor eleito – na lista sêxtupla da Congregação, embora não em primeiro lugar. A congregação já deu um primeiro golpe no resultado das nossas eleições, mas o reitor poderia ter escolhido o Quelce, se ele quisesse prestigiar essa redemo-cratização, mas claro que o reitor não escolheu o mais votado na eleição, ele reconduziu o diretor na época. Então nós tínhamos um ou outro titular que escapava dessa elite do poder, extremamente conservadora, eram poucos, mui-to poucos. Então tínhamos, dentre esses que escaparam inteiramente, aliás, eu diria foi sorte ter Quelce. Ele já veio de Marília titular. O Quelce foi uma dessas vítimas da reestruturação que ocorreu com a criação da Unesp.

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Criação da Unesp e da Adunesp

Foi um projeto extremamente verticalizado; foi totalmente negociado mes-mo pelas elites dominantes da universidade e do Malufismo do governo do Esta-do de São Paulo. Instituíram isso em projeto e decidiram o que bem entenderam desse projeto de universidade. Claro, isso provocou um movimento também grande, dos professores principalmente, de oposição a esse projeto autoritário de criação da Unesp. Aliás, esse momento foi um momento muito fecundo, lá em 1976, porque foi ali que se criou, junto com a Unesp – essa junção dos Insti-tutos Isolados – as bases, da organização dos docentes. Talvez se não fosse esse ato tão impositivo, autoritário de criação da Unesp, a gente não tivesse conse-guido construir essa articulação dos docentes de vários campi, que criou a base da associação dos docentes que depois foi transformada em sindicato. Ocorre-ram várias reuniões porque a indignação, sobretudo daqueles professores das áreas mais críticas, mais distantes da elite do poder, ficaram muito perplexos diante daquilo que se estava estabelecendo como sendo a estrutura da Unesp.

A reorganização dos campi significava o fechamento e a transferência de alguns cursos e a justificativa era pífia. Falava-se, então, numa necessidade de racionalização da organização da universidade; que não duplicasse meios para os mesmos fins; isso significando que não se duplicasse cursos em regiões, en-volvendo cidades muito próximas, como no caso aqui de Assis e Marília, são 70 km de uma cidade à outra. Então, um curso que se repetia nessas duas cidades era o curso de letras. E situações como essa eram consideradas de duplicação desnecessária de curso; portanto se fechava um desses cursos. E aí, claro, é necessário fazer algum tipo de acomodação, significando isso conceder algu-ma compensação para aqueles que teriam o curso fechado, cursos que seriam extintos. Vamos dar aqui o exemplo de Assis e Marília. Com relação ao curso de Letras, então, se decidiu manter o curso em Assis e transferir o curso de Fi-losofia de Assis para Marília, como compensação. Nem preciso dizer que não foi uma decisão através de discussões amplas entre os campi, que isso tudo era negociado entre os diretores com o reitor, isso se negociava lá e se decidia nes-ses bastidores e a comunidade universitária era comunicada da decisão e pouco ou nada se podia fazer contra isso pelos órgãos colegiados que, foram todos já constituídos mesmo como órgãos para não ter nenhuma representação efetiva

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do conjunto da comunidade universitária. O caminho dos órgãos colegiados era um caminho impossível, quer dizer, não se conseguiria nada ali mesmo.

Foi isso que forçou os docentes a se organizar para fazer algum enfrenta-mento, através de manifestações contra essas medidas. Foi então que se cria-ram as bases da Associação dos Docentes, embora de imediato nada tenha sido conquistado. Que eu me lembre, não se conseguiu deter nada dessa reorganiza-ção que foi feita nos cursos. Para os diretores também não ficava bem, inclusive para os seus pares próximos do seu espectro político, fechar um curso. Por exemplo, no caso de Marília, o curso de Letras também tinha docentes muito ligados ao poder local que se opunham a essa extinção do curso. Então alguma negociação tinha que ser feita entre eles, nesse caso particular, se transferiu o curso de filosofia de Assis para Marília e o curso de letras de Marília foi extin-to. Os docentes de lá foram sendo progressivamente remanejados para Assis.

A Unesp se fez dessa maneira, primeiro com um poder extremamente verticalizado, com uma estrutura administrativa, aliás, muito distanciada da realidade da Unesp, dessa realidade de câmpus em cidades muito distantes em todo o estado de São Paulo. E se cria, então, essa administração central que curiosamente já estava prevista. A reitoria da Unesp, nos primeiros documen-tos, nos primeiros projetos, estava prevista para funcionar no câmpus de Ilha Solteira. Porque ali, veja como as coisas funcionavam, haviam instalações aus-piciosas, então tinha bastante espaços lá, prédios do antigo canteiro de obras da CESP totalmente abandonados depois da conclusão das Usinas de Jupiá e Ilha Solteira. A localização em face dessa realidade da Unesp, dane-se. A questão ali era uma questão estritamente econômica, assim como também se resolvia o fechamento desses cursos também por uma questão econômica.

Imagino que essa justificativa de cursos duplicados é pífia. Aliás, esses cur-sos existiram juntos durante todo o período dos Institutos Isolados, isso era na época de 59, 60, por aí, porque que só em 76 se chegou a essa constatação de que esses cursos estavam se duplicando? A necessidade da licenciatura, sobretudo na área de letras, na área de humanas de maneira geral, comporta cursos em qualquer cidade, ainda mais naquele período onde essa capacidade de circula-ção de um estudante de uma universidade para outra era muito menor do que o existe hoje. Então evidentemente que não era essa a razão, aliás, eram dois cur-sos excelentes, dois cursos tradicionais que deveriam ter sido preservados pelos próprios quadros que eles tinham formado, pela própria produção acadêmica.

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Isso foi na verdade uma medida mesmo de ceifar todo o investimento que já se havia feito desses cursos desde a criação deles.

A transferência do curso de Filosofia de Assis para Marília teve também um significado político. Tratava-se de um curso com um corpo docente bas-tante politizado e crítico, por isso a direção do câmpus de Assis o rifou e sua transferência para Marília acabou pulverizando seu quadro docente, muitos dos professores desse curso acabaram se transferindo para outras Universida-des ou se aposentaram antecipadamente porque, enfim, não estariam dispostos a recomeçar toda uma experiência de inserção em um novo câmpus.

Então foi uma insanidade. Foi uma negociata extremamente prejudicial, tanto para aqueles cursos que foram fechados, como também para o câmpus de Assis. Era o único curso de filosofia, aliás como é até hoje. Jamais se pode-ria ter feito isso que fizeram com o curso que tinha um quadro de docentes respeitável, muito respeitável. Era uma referência, não é exagero dizer, que a filosofia aqui era uma referência para o estado, para as outras universidades também. Foi esse projeto autoritário, verticalizado, que criou a Unesp e com essas consequências.

Veja que a Unesp não surgiu dentro de um projeto de fortalecer e expan-dir o ensino superior do estado de São Paulo. Registre-se isso, não nos esque-çamos, surgiu isto sim, dentro de um projeto que sempre foi um projeto da ditadura militar, de privatização do ensino no nosso país. Esse período todo da política educacional da ditadura militar, inspirada por esses modelos nor-te-americanos, pela Escola Superior de Guerra foi marcado pela tentativa de se funcionalizar a universidade para aquilo que se entendia como sendo o desen-volvimento econômico, tecnológico e industrial do país. Evidentemente que a área de humanas, uma universidade crítica não era o que buscava a ditadura. E esse tipo de projeto educacional, sobretudo, no nível do ensino superior, com os interesses da iniciativa privada, conduzia para uma política de privatização, para uma política de criação e expansão das universidades particulares, não se tratava de fortalecer as universidades públicas. Então, as universidades públi-cas que já estavam estabelecidas, como era o caso da USP, tinham condições de resistir a essa política privatizante, mas a Unesp surgiu toda já dirigida por esse veio político ligado à ditadura militar. Ela poderia ser subordinada facilmente a essa política de privatização.

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Houve várias tentativas de privatização direta, e isso acontecia na univer-sidade pública de maneira geral, não só na Unesp. Várias propostas de paga-mento de taxa por parte dos alunos sofreram muita resistência do movimento estudantil na ditadura, mas, veja, utilizavam-se artifícios dessa forma, claro que o fechamento dos cursos da Unesp não era para fortalecer a Unesp, era isso sim até mesmo diminuir o tamanho da própria Unesp. Era para, na ver-dade, se construir mais uma forma de comando verticalizada e centralizada, que poderia ter uma ação mais efetiva nessas unidades isoladas que antes eram dispersas e mais pra isso do que para expandir o ensino superior. Tanto que a Unesp nasceu fechando cursos, não criando cursos. Se o objetivo não era sufocar inteiramente os institutos isolados, era pelo menos mantê-los o mais inerte possível, dentro de uma estrutura bem controlada, como era a da Unesp. Com toda certeza, a criação da Unesp não ocorreu dentro de um projeto de ampliação dos recursos públicos dentro do estado de São Paulo para o ensino superior. Foi contra esse perfil de universidade que estava sendo criado que se esboçou todo esse movimento de 1983 para a redemocratização.

Ocupação na Unesp de Assis em 1983 e suas repercussões ainda hoje

O diretor eleito pelo sistema de votação direta aqui não foi empossado. Ele fez parte da lista sêxtupla mas foi preterido pelo Reitor e isso deflagrou efetiva-mente as ações mais radicais do movimento que implicaram na ocupação da direção, num gesto claro, que nós não queríamos aquele diretor, que nós quería-mos o diretor que havia sido eleito. O sentido da ocupação da sala da direção do câmpus por mais de 60 dias foi exatamente esse, ou seja, nós queremos o nosso diretor, porque ele foi eleito. A reivindicação era exatamente essa; aí ficou essa queda de braço com a reitoria. O reitor tinha escolhido o que já era diretor na época, o professor Mendonça, que evidentemente era um grande aliado dele.

E ficamos nesse impasse adentrando o mês de julho que era o período de recesso. Eles apostavam que no período de recesso, o movimento se enfraque-cesse. Ele não enfraqueceu, ao contrário, ele também gerou muitas manifesta-ções por cartas, telegramas que foram enviadas em um volume enorme. Aliás a comissão de sindicância prestou também esse grande serviço; eles compilaram

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todas as cartas e telegramas que foram enviados para o diretor no período de recesso pelos alunos solicitando a renúncia dele para que o eleito pudesse ser empossado. E ao compilar e reunir tudo isso, e anexar no processo da comis-são de sindicância, eles deixaram esses documentos aqui à nossa disposição. Seguramente, não fosse a comissão de sindicância a gente não teria esses do-cumentos. Essas cartas e telegramas foram enviados ao endereço particular do diretor. E mostra bem como o movimento se manteve principalmente no período de recesso, e foi retomado logo na sequência, no mês de agosto, e se prolongou até setembro, outubro, mais ou menos.

Até que se chegou ao ponto que se estabeleceu esse impasse. Aliás, também uma outra lição da história, nesse confronto todo entre o movimento e o dire-tor da época, tivemos um episódio que foi a presença da polícia para desalojar os estudantes que estavam sentados no saguão do prédio onde estava a sala da congregação. A polícia foi chamada para desalojar os estudantes que estavam ali tentando impedir a realização de uma congregação, por discordarem de uma congregação que ia escolher o vice daquele diretor que tinha sido empos-sado contra o resultado das eleições. Isso soava até como um gesto de afronta. Ora, estava-se ali pleiteando, reivindicando ainda a posse do eleito e o diretor que havia sido reconduzido ao posto contra a vontade da maioria convocou uma Congregação para a escolha do seu Vice.

Diante do protesto o diretor o que faz, chama a polícia para desalojar. Eu me lembro que estávamos lá, eu e alguns outros professores, e a gente tentou até formar um cordão de isolamento, mas nós éramos poucos, e também não era nossa proposta enfrentar a força bruta da polícia. Mas diga-se que, apesar de polícia ser polícia em qualquer lugar, mas naquele episódio particularmente aconteceu um desdobramento que hoje a gente até acha ele engraçado e dá risada. Os policiais pegaram os estudantes e colocaram fora do prédio e os es-tudantes retornavam no prédio e ficou esse vai e volta. Não teve uso de cacetete nada, mas era um ato de agressão. Na verdade, bastava a presença da polícia ali para caracterizar um ato de agressão à democracia dentro da universidade. Mas, por fim, a congregação não tinha mesmo como ser realizada porque os seus membros dentro daquele cenário, mesmo aqueles aliados ao diretor, não tinham mais qualquer condição de participar da congregação depois do tumul-to e a congregação então foi suspensa e com isso a polícia se retirou sob a vaia dos manifestantes, saiu vaiada.

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Depois disso a polícia não foi mais chamada, a direção ficou ocupada. Exa-tamente no momento em que a polícia sai vaiada, ocorre uma reunião dos pró-prios estudantes no saguão do prédio, onde se decide invadir, ocupar a direção, foi exatamente nesse momento que a direção foi ocupada. E aí ficou ocupada então por cerca de 60 dias, aproximadamente, e a polícia não foi mais chamada.

Faço questão de registrar isso, porque tivemos um episódio recente lamen-tável na nossa universidade e a situação de hoje é pior do que daquela época, porque mesmo naquela ocasião como eu relatei, e foi isso mesmo, a polícia ia lá, pegava os estudantes, carregava, colocava para fora. Tivemos esse epi-sódio agora da ocupação da reitoria pelos estudantes em 2013, reivindicando melhorias nos programas de auxílio à permanência estudantil e a polícia foi chamada no dia seguinte, com uma precisão. Quer dizer, antes nós dizíamos: o poder policial tem uma comunicação com os poderes da universidade, com os gestores da universidade; hoje, eu diria: tem muito mais, chamam a polícia no dia seguinte. Naquela vez chamaram e não ousaram mais chamar a polícia. E olha, estamos falando de malufista, de gente da ditadura militar, que é capaz de tolerar 60 dias de ocupação de uma direção. E hoje se chama a polícia no dia seguinte; a tolerância, digamos, é muito pequena. E vivemos, como costuma-mos dizer, num estado de democracia.

Ou mesmo, no episódio de ocupação da reitoria no ano seguinte, em 1984; a mesma coisa, claro que havia nas manifestações diante da reitoria aqueles agentes de segurança infiltrados fazendo fotografias, até conseguimos iden-tificá-los. Era um período em que se utilizava muito desse expediente, desse sistema de informação. Em geral eram ‘arapongas’ infiltrados nos movimentos, nas passeatas e nas manifestações. Mas nos dias de hoje, jamais poderíamos imaginar que se poderia chamar a polícia para resolver uma contenda política dentro da Universidade. Depois de termos avançado tanto nesse espírito de-mocratizante, a gente foi se deparar com cenas de intervenção policial como no período da ditadura. E essas interferências do poder político me parecem também de uma forma muito mais ampliada, com efeitos muito mais perni-ciosos do que aqueles da época da ditadura militar. Porque também nós temos um quadro político hoje que precisamos considerar. Que coisa até muito per-versa, eu diria, da própria história. Se naquele período a gente tinha todo um amordaçamento da participação política o fato é que, mesmo assim, havia um movimento de resistência muito grande, muito fortalecido. E resistência de vá-

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rias formas, desde a resistência dos grupos organizados, da resistência mesmo da guerrilha, até outras resistências como eram as do movimento estudantil, do próprio movimento dos docentes, que se fazia mais por essas ações de orga-nização, sobretudo, de promoção de fórmulas de entendimento do que estava acontecendo no cenário político e de posicionamento diante dele.

O que se fazia por vários caminhos: as assembleias, reuniões e os eventos científicos; aliás, dentro do curso de Psicologia, tiveram muito essa função. As chamadas Semanas de Psicologia se estabeleceram como instituição de resis-tência política dentro da Psicologia. Lá atrás, essas Semanas de Psicologia se posicionavam mais politicamente; a figura da reunião científica era para se debater problemas mais gerais do país. Então era uma reunião científico-polí-tica, em que não só se discutiam temas pertinentes à psicologia, mas também ocorriam reuniões paralelas de grupos com a intenção de se discutir mesmo, de discutir conjuntura e se pensar formas de ação política naquele momento.

Aqui em Assis, o Clube de Cinema também era um desses casos; então vamos discutir cinema, fazemos sessões aqui, no cinema de Assis, de filmes de cunho político. E na organização dessa atividade, o filme e a discussão tinham mesmo o propósito de se entender na época, de formar consciência, de escla-recer as pessoas. Funcionava quase como um aparelho político. Havia uma clareza do que se vivia no campo político, a opressão. Havia uma clareza da necessidade de enfrentamento e de tentativa de transformação do cenário po-lítico do país. Havia também uma clareza dessa necessidade, especificamente, na universidade. E o que a gente vive hoje é muito diferente do espírito dessa época. Hoje praticamente a gente não tem mais como constituir forças de re-sistência; as entidades estudantis estão muito precarizadas. O movimento dos docentes que foi tão forte e que nasceu como esse movimento de resistência ao autoritarismo na universidade, está praticamente diluído no sindicalismo, completamente amorfo, e quando muito consegue deflagrar alguma campa-nha salarial. Então de fato, nós não temos hoje forças de enfrentamento.

É por isso que o poder hoje se exerce com tanta facilidade na universidade. Nesse sentido talvez hoje ele seja muito mais autoritário do que era naquela época. Pelo menos naquela época o autoritarismo esbarrava em algum tipo de resistência e hoje ele não esbarra em resistência alguma; isso torna a situação de submissão da universidade, aos poderes constituídos, muito maior do que antes. Esse é um dos resultados de toda essa avaliação que a gente faz nas nos-

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sas conversas, sempre brincamos uns com os outros que, se soubéssemos no que ia dar todo aquele esforço pelo projeto de uma universidade democrática, talvez a gente não tivesse empenhado com tanta determinação naquelas lutas. Hoje o que ocorre é que tudo o que foi criado naquele espírito de democrati-zação é utilizado exatamente contra qualquer relação democrática no interior da universidade.

A eleição de Willian Saad Hossne em 1984 e a posse de Manuel Nunes

Esse estatuto que está aí foi resultado de todo o movimento pela demo-cratização, que termina lá em 1984 com uma intervenção branca do gover-nador que vai nomear um reitor pro-tempore, diante de um impasse que se estabeleceu. Elegemos o Saad na eleição direta e o Conselho Universitário não o colocou na lista enviada ao governador do Estado que já era o Franco Mon-toro, de um partido de oposição à ditadura. O governador esteve em Marília e dizíamos pra ele que o nosso movimento tinha o espírito das suas posições políticas também. E ele nos dizia, talvez com muita sinceridade, que não tinha instrumento jurídico para empossar o eleito e nem condições políticas para fazer uma intervenção na universidade que seria contrária à própria índole do regime democrático que é agir com a lei e não fora da lei. Mas, assim como não havia dispositivo para intervenção, também não havia nenhum disposi-tivo legal que o obrigasse a escolher um dos candidatos da lista encaminhada pelo Conselho Universitário. Então encontraram essa saída jurídica. Venceu o mandato do reitor da época e ele teve que deixar o exercício da reitoria e pas-sar o cargo para o decano do Conselho Universitário como previa o Estatuto em casos de vacância do cargo de reitor. O decano era o professor Nunes do curso de direito de Franca, que era uma das grandes figuras da direita malu-fista da universidade. E já tinha sido diretor do câmpus de Franca no período do movimento de Assis de 83.

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A suspensão do contrato do professor Luiz Carlos e a sindicância de Assis

Quando a gente estava na campanha para empossar o eleito para a direção de Assis, visitamos vários campi da Unesp pedindo apoio e recebíamos sempre bastante solidariedade. O nosso colega Luiz Carlos Rocha foi escolhido para fazer a visita ao câmpus de Franca, onde o Nunes era o diretor. E, durante uma grande reunião dos professores e alunos, expõe toda a situação do Câmpus de Assis e faz um discurso veemente contra a ditadura e contra o autoritarismo no território do Nunes. Imagina! Justamente nesse período o Nunes estava no exercício da reitoria e o contrato do Luiz Carlos não foi renovado, numa clara demonstração de perseguição e da tentativa de intimidar todos os outros que estavam na mesma luta. O Nunes também foi o mentor da comissão de sindi-cância que foi criada aqui em Assis para punir os participantes do movimento pela democratização da Unesp. Essa sindicância e outras medidas de intimida-ção contribuíram bastante para um fortalecimento ainda maior do ‘Movimen-to pelas ‘Diretas na Universidade’. Fizemos grandes mobilizações em defesa dos nossos colegas que estavam sendo indiciados pela comissão de sindicância. Conseguimos fazer reuniões com a grande imprensa na cidade de São Paulo para divulgar o que estava acontecendo na universidade. Tivemos apoio do Hélio Bicudo, respeitadíssimo como jurista. Foi ele quem defendeu os nossos colegas nesse processo. Para se ter a dimensão da importância do que estava acontecendo aqui em Assis, é necessário ter em mente que estávamos em pleno processo da redemocratização do país, então, as forças democráticas, incluindo os partidos políticos de oposição à ditadura militar emprestavam todo o apoio e solidariedade ao movimento de Assis.

A ocupação da diretoria de Assis em 1983

Ela terminou de uma forma muito triste, com uma grande derrota de todo esse movimento porque, a estratégia que foi adotada pelo reitor e pelo diretor a do desgaste do movimento, deixando o tempo passar. Depois da ocupação da sala da Direção, o diretor e o Reitor não fizeram mais nada. O calendário esco-lar foi suspenso, aprofundando a estratégia do desgaste com o tempo.

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Quando o diretor da época percebeu que estávamos tentando fazer um movimento de resgate das atividades acadêmicas universitárias e temendo que nós pudéssemos ser muito bem sucedidos nisso, ele suspendeu oficial-mente o calendário.

Um movimento como esse é muito heterogêneo: há aqueles participantes muito mais empenhados e determinados, aqueles mais ou menos e aqueles que dão apoio meio estratégico, mas que não abraçam a causa com tamanho vigor como os outros. Então isso vai provocando as debandadas; os alunos começam a voltar para casa. Começa a ter também a pressão da cidade e a pressão das próprias famílias, porque sabia-se que esse tempo longo [sem au-las] ia implicar na reposição e uma parcela dos próprios professores também já preocupados com prejuízos pessoais tais como reescalonamento de suas férias e coisas assim. Ao cabo de 60 e poucos dias, mais ou menos, o movimento estava bastante enfraquecido.

Também foi um esforço enorme manter a ocupação da sala da direção; era preciso ter pessoas lá dia e noite, dia e noite. A estratégia de deixar o tempo passar foi muito bem sucedida, porque se eles tivessem feito algumas ações mais violentas, chamar a polícia, coisas assim, com certeza, reanimaria, rees-tabeleceria a força do movimento, mas não, acho que eles foram muito sábios nesse sentido, e aí o tempo mesmo foi desgastando.

Em uma assembleia já muito pequena feita na sala da própria direção, de-cidiu-se desocupar a diretoria com uma entrega simbólica da chave da porta da direção, junto com um abacaxi para o governador do estado. O chefe do seu gabinete recebeu uma comissão que lhe entregou o abacaxi com a chave da direção. Passado pouco tempo, acho, um ou dois anos, o diretor se aposentou, deixou a direção, sem terminar o mandato; aí foi eleito um novo diretor.

O que ficou num primeiro momento pra gente foi uma sensação de derrota muito grande, mas que, felizmente, logo foi sendo superada, no ano seguinte, com o cenário das eleições pra reitoria. E aí sim, com outras unidades refazen-do a experiência de Assis, se deu o ápice do movimento pela democratização da universidade. Em 1984 com o processo eleitoral da escolha do reitor, toda essa mobilização retorna mas, agora, dirigida para a reitoria.

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Eleição do Professor William Saad Hossne

Então, voltando à questão da eleição do reitor: o governador cruzou os braços, não escolheu ninguém da lista sêxtupla elaborada pelo C.O., que não continha do nome do mais votado na eleição direta. E ficou essa situação pre-cária e provisória do Nunes respondendo pela reitoria até o momento em que também se expirou o período previsto para ele poder responder como o de-cano da universidade pelo Conselho Universitário e aí se descobriu que a tal lista encaminhada ao governador tinha o nome do Reitor que encerrava seu mandato e como o Estatuto da universidade não permitia recondução a lista foi declarada irregular e devolvida ao Conselho Universitário. Foi o artifício forjado pelo governador para anular aquela lista. Então a lista foi devolvida e isso criou as condições políticas pra que o governador nomeasse um reitor pro-tempore até que se regularizasse a nova lista sêxtupla da qual ele poderia escolher o novo reitor. Bom, nós celebramos esse ato primeiro como um ato de vitória porque entendíamos que o núcleo duro do poder tinha sido afastado, ou pelo menos o reitor tinha sido afastado.

Imaginávamos que o professor Nagle, escolhido pelo governador como Reitor pró-tempore, fosse convocar outra eleição ou fazer com que o nome da-quele que tinha sido eleito constasse da nova lista sêxtupla. Ele não fez nada disso, conduziu o processo conforme previa o Estatuto da Universidade e aí ele foi indicado na lista sêxtupla e escolhido pelo governador e acabou se benefi-ciando dessa situação inicial que nós apoiamos.

Enfim, o resultado disso tudo podemos até dizer que foi bastante positivo. De qualquer maneira, mesmo considerando a estratégia do Nagle como uma estratégia golpista, houve na sua gestão grandes avanços. Houve a revisão do Estatuto da UNESP e a criação desse sistema que a gente tem hoje, que se apro-xima razoavelmente do que pretendíamos desde 1983 ou pelo que é muito mais avançado do que, por exemplo, o da USP que continua mantendo o sistema da lista sêxtupla. Mas de qualquer maneira em relação ao que se pretendia e se imaginava como uma universidade democrática, em 1983, o que acabou se realizando foi deveras frustrante.

O câmpus de Assis, apesar de ter saído na frente na reivindicação de elei-ções diretas foi um dos últimos a ter, de fato, um diretor eleito. Curiosamente o Quelce que não foi empossado aqui em Assis, quando foi eleito em 1983, acabou

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sendo eleito no câmpus de Franca, quando as eleições já faziam parte do Estatu-to. E depois quando o Quelce foi eleito aqui, já não tinha mais também o mesmo sentido que teria sido a posse dele lá em 83 com o movimento das eleições.

Eu faria uma avaliação dessa forma: acho que isso, que se germinou nesse período de 83 a 84, foi completamente absorvido e neutralizado no que tinha da inspiração transformadora, questionadora. Houve a manutenção de um mesmo tipo de poder que permanece centralizado e autoritário, no entanto, travestido de democrático. Um mesmo tipo de poder funciona de uma forma muito parecida com o que foi instituído pela ditadura militar. Ou seja, nós temos uma elite na universidade, constituída ali pelos reitores, pró-reitores, o que eu chamo de círculo palaciano da reitoria. E o processo para a escolha do reitor que vai por aí: se faz a tal consulta, a eleição, nessa proporcionalidade de 70% do peso para os professores e 15% para os outros segmentos o que por si já massacra o espírito de uma eleição equilibrada entre os três segmentos.

Aliás, registre-se também nessa história toda, o que eu até chamaria de oportunismo dos funcionários que, naquele período mais duro para implantar a democracia, ficaram de fora. Depois que ela foi implantada da forma como está na universidade daí sim eles ocupam muito bem o espaço nas eleições e na gestão da própria universidade. E ainda reivindicam uma paridade, que pode até ser legitima, numa análise política de hoje, mas historicamente eles não são merecedores disso, que fique o meu registro até dessa minha revolta contra o que fizeram em 83, ou seja, o funcionário ao lado da ditadura, numa atitude de “pelego”, como eram chamados aqueles que bajulavam o poder.

O processo todo de sindicância foi anulado e arquivado pelo Nagle, tendo sido uma das primeiras medidas que ele tomou assim que assumiu a reitoria.

Unesp hoje

Hoje a gente tem a absorção de toda essa intenção democratizante e a colo-cação dela a serviço da manutenção de um poder exercido de forma igualmente ditatorial. Nós temos um círculo palaciano que manda na universidade já há muito tempo. A eleição propriamente dita não interfere em nada, em absoluta-mente nada, aliás eu acho que deveríamos acabar com as eleições na Unesp, não tem mais sentido, é só para legitimar um exercício de poder que não tem nada

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a ver com democracia, que não tem nada a ver com eleição. O vice-reitor se candidatando a reitor, sendo eleito reitor, junto com outro vice, que será o pró-ximo reitor. Nós até brincamos dizendo: “ah!, nós não escolhemos mais o vice, nós escolhemos o reitor do mandato seguinte, em geral saindo dos quadros das pró-reitorias e quem escolhe os pró-reitores é o próprio reitor”. E digo mais, ainda se fosse assim até que não estaria mal, eu suspeito que, na verdade, nos-so reitor, está sendo escolhido pelo governador do estado e não simplesmente porque ele continua tendo a decisão final. O buraco é um pouco mais embaixo: o chamado círculo palaciano da reitoria mantém uma profunda relação com o outro palácio, o do governo do estado. É nesse tapete que se negocia o nome daqueles que serão candidatos a reitor até porque entram nessa negociação as forças político-partidárias regionais sempre muito interessadas em manter es-treitos vínculos com os gestores da Unesp.

Então nesse sentido é até pior do que antes, porque, pelo menos, a lista sêx-tupla era de um colegiado, tinha todas as negociações com o círculo palaciano, mas pelo menos era tudo mais transparente. A eleição, hoje, serve apenas para sancionar essas escolhas que saem desse círculo do poder da reitoria. E isso aconteceu também no plano das unidades; eu não tenho acompanhado muito bem a situação de outros campi, mas posso dizer por Assis. Há duas eleições que a gente tem candidato único, aliás, na última eleição também para a reitoria foi de candidato único e o reitor se gaba de ter sido eleito com 90% dos votos, sendo um candidato ‘chapa branca’. E os professores têm 70% dos pesos dos votos.

Temos que dizer isso: o nosso sistema de gestão da universidade, de escolha dos dirigentes, não tem nada a ver com democracia, não tem nada a ver com eleição. Antes mesmo com todas aquelas restrições de candidatos, só titular, nós tivemos quatro candidatos. Imagina! Hoje esse processo eleitoral que a gente tem consolida e legitima o autoritarismo na universidade. O fluxograma administrativo da universidade, os colegiados foram pensados pela reestrutu-ração dos estatutos, que deu origem ao que está aí. Nós entendíamos que a democracia na universidade dependia de órgãos colegiados representativos e fortes. E muito foi conquistado nesse sentido, como a retirada da exigência de titular para o exercício da direção. O que nós estamos assistindo hoje é uma forma de gestão que neutraliza os colegiados.

Como é possível um conselho universitário aprovar com um voto só con-trário uma matéria tão polêmica como a criação de 11 cursos de engenharia e

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mais um câmpus em São João da Boa Vista? Mesmo que não houvesse interes-ses escusos o assunto seria extremamente polêmico. Essa matéria foi encami-nhada na calada da noite, ou seja, quando se aproveitava o período de recesso de fim de ano ou as primeiras reuniões dos colegiados para se aprovar no afo-gadilho matérias polêmicas.

Como é que o reitor consegue uma adesão tão grande como essa no Con-selho Universitário numa questão polêmica? Isso mostra que ele tem controle sobre o Conselho Universitário e nós sabemos em geral como esse controle se constitui: é por negociatas, compra de adesão ou barganhas do tipo “toma lá, dá cá”. Mas não bastasse esse controle que ele tem, já há tempos vem sendo criada uma estrutura paralela de gestão de universidade e que eu acho que ainda não está tão visível para o conjunto da comunidade universitária. São as tais comissões assessoras. Então, temos comissão assessora de contratação docente, comissão permanente de avaliação, e o PDI, que é onde de fato se toma as decisões principais da universidade.

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DEPOIMENTO 8

William Saad Hosne

É professor titular de cirurgia da Faculdade de Medicina do câmpus da Unesp de Botucatu. Atualmente é professor emérito, coordenador do curso de pós-graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado de Bioética do Centro Uni-versitário São Camilo, em São Paulo. O professor William Saad Hosne teve uma importante atuação nos episódios que envolveram a violação aos diretos huma-nos na Unesp durante a ditadura militar e nos dará um depoimento a respeito.

Preâmbulo: a revolução do conhecimento no século XX

Para explicar por que estou aqui, vou falar antes da gênese da criação da Fa-culdade de Medicina em Botucatu. O século 20 teve tamanha evolução do

conhecimento que teve cinco revoluções, diferentemente do período entre os séculos 16 e 18, quando houve uma revolução, a científica. Mesmo levando-se em conta o prejuízo causado por duas guerras mundiais.

Na primeira metade do século 20, tivemos a revolução atômica, que nos deu o conhecimento do átomo, da medicina nuclear e da bomba atômica. A partir da década de 50, com a descoberta da dupla hélice do DNA, iniciou a chamada revolução molecular, com a nova biologia molecular e cujo auge nós estamos vivendo agora com a engenharia genética, geneterapia, reprodução as-sistida. Nos últimos 40 ou 50 anos, houve duas revoluções mais ou menos si-multâneas: a espacial, em que o homem saiu da Terra, trazendo novos desafios éticos e científicos, e a das comunicações, cujo ícone é a internet, que também mudou a dinâmica de informações e de costumes.

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Enfim, mais recentemente, no final do século 20 e início do século 21, as-sistimos a revolução da nanotecnologia, a descoberta da propriedade dos ma-teriais em dimensão ‘nano’, que é o milionésimo de milímetro, no qual a pro-priedade da matéria é completamente outra, e isso está sendo aproveitado e vai abrir perspectivas na Agronomia, na Biologia, na Medicina.

Pois bem, eu volto à segunda revolução, a molecular. Ela teria se iniciado em 1953, quando os cientistas Watson e Crick descobriram a dupla hélice. A partir daí, essa Biologia seria outra, uma nova Biologia, não tem nada a ver com aquela antiga do curso ginasial. Era uma nova Medicina, uma nova Biologia que o destino me deu a oportunidade de conhecer.

É importante lembrar a criação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, a Fapesp, em outubro de 1962. Em 1964, eu fui indicado para ser diretor da instituição. Foi justamente no ano do Golpe que tive a oportunidade então de ver a importância dessa revolução molecular. Eu pre-via, em contato com o pessoal da Genética, da Bioquímica, da Química Orgâ-nica, o quanto isto iria interferir nas Ciências Biológicas Aplicadas. Seriam as outras profissões da Saúde. A importância dessa mudança, desse novo quadro da biologia molecular, não se relacionava apenas à ciência básica, mas também à ciência aplicada.

O outro aspecto é que pouco tempo antes, o governador Carvalho Pinto preparava o seu segundo plano de ação. O sucesso do primeiro plano premiou a sua gestão, mas o ensino superior não fora incluído. Quando chegou a hora de preparar o segundo, no final da década de 60, o governador pediu ao reitor Ulhôa Cintra que fizesse um estudo sobre as necessidades da USP e dos Ins-titutos Isolados. Naquele momento eles estavam desvinculados, então foram vinculados à USP. Foi nomeada uma comissão multidisciplinar, com pessoas que ocupavam posição de destaque em várias disciplinas, na Física, na Quími-ca, na Genética, tendo o Ruy Leme, da área de Engenharia de Produção, como presidente. Uma das áreas que foi representada foi a Biomédica e o reitor me designou para participar desse grupo representando essa área.

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As necessidades do ensino superior nos anos 60

Fizemos um trabalho exaustivo, definindo as necessidades do ensino su-perior. Carvalho Pinto deu grande apoio e cada um de nós ficou incumbido de propor iniciativas. Eu sugeri a criação na USP de um núcleo de pesquisa básica e aplicada em Biologia, começando com a pesquisa para depois entrar no ensi-no, ao contrário do que normalmente era feito.

A ideia era congregar neste novo centro, a partir da pesquisa, sobretudo a ex-perimental, o pessoal da área básica, que já dominava a nova Biologia, e o pessoal da área aplicada. Certamente haveria repercussão. A partir de uma certa “alfabe-tização”, esses colegas que entrariam na área aplicada modificariam o ensino de cada uma das disciplinas. Era uma ideia realmente pioneira naquele momento.

O professor Cintra se entusiasmou pela ideia e ela foi defendida no plano de ação, que foi aprovado. Por razões, como ambição, inveja, problemas buro-cráticos, o centro não foi criado. Isso era início dos anos 1960. Havia naquela época uma expansão do número de escolas de nível superior no País, sobretudo em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Muitas faculdades foram criadas, principalmente de Letras, Filosofia e Ciências porque, dizia-se, eram mais ba-ratas, não por serem importantes.

A Faculdade de Medicina de Botucatu

O fato é que Botucatu reivindicou uma instituição de nível superior e pediu uma faculdade de Medicina. Por que não, uma faculdade de Filosofia, Ciências e Letras como acontecia em várias cidades do interior? É porque aqui seria o lugar ideal para tratar a tuberculose, por causa do clima seco, típico de Campos do Jordão. Era o que se acreditava na época.

Então Botucatu foi escolhida para ter um hospital sanatório para tubercu-lose. Foram construídos no final da década de 1950 cinco hospitais, um deles esse de Botucatu. Demorou vários anos para o prédio ficar pronto. Quando chegou a hora de inaugurar, o tratamento para tuberculose já havia mudado, principalmente com o advento dos novos antibióticos. O prédio acabou fecha-do por vários anos, praticamente abandonado. Por isso Botucatu deveria ter

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uma faculdade de Medicina, pois o mais difícil neste caso seria ter um hospital, que já estava pronto.

O professor Cintra me chamou e disse que gostaria de ter em Botucatu uma faculdade não apenas de Medicina, mas também de Ciências Médicas e Biológicas. Assim nasceu a Faculdade de Medicina de Botucatu, tendo tam-bém Odontologia, Enfermagem, Agronomia e Biociências, fazendo um entro-samento entre as Ciências Biológicas básicas e as aplicadas. O que não deu para se fazer na USP seria feito em Botucatu.

O próximo passo seria buscar os professores. O fato de estar na Fapesp me ajudou porque eu conhecia o cenário dos cientistas do estado de São Paulo. Po-deríamos vender a ideia, trazer as pessoas a Botucatu para trabalhar em tempo integral. Seria uma nova maneira de ver a universidade, fazendo ensino, pesqui-sa e assistência em tempo integral e tentar reproduzir o que acontece em alguns lugares do mundo, em que se tem a grande universidade numa pequena cidade.

Isso foi muito importante, essa filosofia e este germe que levou à criação da faculdade. Afinal, todos que vieram para cá estavam integrados com uma nova ideia. Não eram pessoas sem emprego, todos estavam bem colocados na USP. Eu, por exemplo, era livre-docente, era professor adjunto, tinha uma clínica em São Paulo. Vários professores que eu convidei vieram espontaneamente, se identificaram com o projeto, vieram por um ideal. Para atuar em um lugar tranquilo, em tempo integral, dedicando-se totalmente ao ensino, à pesquisa e, sobretudo, à extensão universitária.

A extensão, por sua vez, foi encarada desde o começo não como uma mera prestação de serviços, mas como a universidade se estendendo com a sua filosofia de ensino e pesquisa onde ela também presta serviços. Ela não é secretaria de go-verno para fazer esse desenvolvimento, mas tem a obrigação de participar disso.

A criação do hospital, a da pós-graduação e a da Unesp

Quando chegamos a Botucatu, o hospital estava fechado. Não havia entra-do nenhum doente. Tínhamos que montar um centro cirúrgico. Começamos na Santa Casa, e aos poucos fomos construindo e transformando o lugar em várias unidades. A meu ver, no entanto, essa expansão não se deu no momento certo, talvez fosse melhor esperar mais um pouco, para haver uma integração

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maior entre as unidades. De qualquer modo, este espírito se introduziu na nos-sa faculdade e foi o motor que impulsionou e atraiu as pessoas para esse desen-volvimento. Assim, conseguimos chegar em 1975 a ter em Cirurgia o primeiro curso de pós-graduação credenciado pelo Conselho Federal de Educação.

Este fato foi importante para a criação da Unesp em 1976. O governador na época, Paulo Egydio Martins, disse no seu discurso, e eu estava presente, que ela já poderia ser uma universidade, uma vez que possuía um curso de pós-graduação. Esse curso, que eu montei em 1972; era emblemático porque tinha por objetivo reunir na pesquisa experimental o pessoal das Ciências Básicas e Biológicas. Não era apenas para cirurgiões, mas para experimentadores entra-rem na área da pesquisa experimental e poderem se desenvolver. Ou seja, era consequência da própria filosofia que eu contei até aqui.

Em função disso tudo que contei, compreende-se melhor por que foram feitos determinados movimentos, por que a faculdade não aceitava arbitrarie-dades. Era preciso ter liberdade de criação, não podia ficar na dependência de grupos fechados. Esse movimento vai ocorrer alguns anos depois durante a tentativa de redemocratização da Universidade.

A criação da Unesp não desarticula este núcleo, mas traz um novo fator para ser considerado, que era o fato de não sermos mais um instituto isolado. Isso representou, do ponto de vista acadêmico, um avanço, pois agora aqueles institutos formavam uma universidade. Era preciso se assumir como uma uni-versidade que exige uma visão acadêmica de nível compatível com universida-de, não apenas uma faculdade isolada. Vai se viver numa área multidisciplinar com outras unidades, com outras pessoas, outras responsabilidades.

Esta situação abre um leque de perspectivas muito interessante e de gran-de responsabilidade uma vez que os institutos isolados perderam a força ad-ministrativa que tinham antes, quando eram independentes. Eles já estavam criados, tinham a sua história, sua evolução, uma gênese, e isso tudo precisa-ria ser respeitado, canalizado num sentido positivo. Foi o que nós tentamos fazer durante a campanha para a Reitoria, ou seja, dar oportunidade para os institutos não ficarem numa guerra fraterna entre eles, mas, respeitando sua história, abrindo-as para o futuro, sabendo trabalhar o presente, que era novo, que era ser universidade.

Havia no princípio o temor de que, ao fazer parte de uma universidade, a verba geral para a instituição teria que ser repartida e talvez a fatia do bolo fos-

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se menor que aquela que a unidade conseguiria antes, quando estava isolada. Existe uma lógica neste raciocínio, mas, levando-se em conta a perspectiva de desenvolvimento harmônico das unidades, as necessidades de cada unidade seriam respeitadas independentemente de ter poder ou não. O que precisa é ter mérito para obter isso, não simplesmente porque é amigo do governador, é ligado a um ou outro partido, é fora disso.

A criação da Unesp merece uma reflexão crítica. Nós tivemos na história da universidade mundial, fenômeno que surge na Idade Média, as chamadas universidades de geração espontânea. Aconteceu em Paris, em Oxford, por exemplo, onde os chamados professores foram se congregando e defendendo seus interesses, criando assim a universidade. Depois que as universidades passaram a ter a importância, nos séculos 17, 18 e, particularmente, 19, elas começaram a ser criadas por lei, por bula papal, pois era importante criar uni-versidades, faculdades.

No nosso caso foi o inverso. Temos várias faculdades isoladas no inte-rior do Estado que não se conheciam e, de repente, estão aglutinados numa universidade. A grande mensagem é que “vocês agora são universidade, as-sumam essa universidade”. Alguns quiseram assumir e por isso surgiu um movimento depois de alguns anos no sentido da redemocratização. Outros se sentiram incomodados pelo novo desafio porque preferiram estar acomo-dados dentro da antiga situação.

Este fenômeno tem a ver com a história da Unesp. Estamos falando de 1976 e tudo aconteceu num momento importante na história da universidade no mundo. Este dado é muito importante levando-se em conta o movimento em que a gente entrou. Eu, particularmente, entrei nesse movimento não para ser reitor, mas para contribuir para uma evolução que eu sentia ser necessária.

No Brasil nós tivemos a USP de fato como a primeira universidade. Eu sou mais velho que a USP, quer dizer, a universidade é uma instituição que tem quase mil anos e eu sou mais velho que a primeira universidade brasileira efe-tiva. Essa USP foi criada buscando pessoas intelectuais, capacitadas de fora do País. Não tínhamos a massa crítica inicial, então foi o modelo europeu que foi copiado, vários professores vieram da Europa. Esse pessoal trouxe o respeito aos valores acadêmicos construídos no decorrer de quase mil anos.

O grande mérito da USP ao copiar o modelo europeu foi transplantar o respeito à dignidade acadêmica cultivando a autonomia, o conhecimento. Isso

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175Depoimento 8 – William Saad Hosne

foi importante e deu a força à USP, que é um grande modelo para nós todos no País. Esse modelo foi muito importante, permitiu o desenvolvimento da USP, é a matriz. Mas a partir do final da década de 1960, ele começou a se mostrar um modelo desgastado, exaurido. A sociedade mudou; novos desafios estavam colocados e isso coincide com 1968 que levou a um movimento de contestação geral e a universidade começou a também contestar porque ela sentia que tinha que fazer mudanças.

Nesse momento, se ergueu a bandeira da reforma universitária e aí algu-mas pessoas, particularmente na USP, começaram a se preocupar em discutir um novo estatuto para a universidade. As forças conservadoras perceberam o risco que isso traria para elas. Então empunharam a bandeira da reforma universitária e tentaram fazer uma mudança de estatuto que eu não sei se foi reforma ou se foi remendo. O que se fez? Copiou-se, em parte, sem estudo, sem a própria filosofia, o modelo americano.

A vigência do modelo americano de universidade e seu desgaste nos anos 60

Um departamento se faz, por exemplo, com a ideia de coisas muito posi-tivas, mas elas estavam mais colocadas, expostas e estruturadas em função de luta de poder e de não mudar muito, o que tinha que acontecer. Foi necessária a mudança? Foi. Ela trouxe algumas coisas boas? Trouxe. Mas ela não se fez na profundidade, de certa forma esse movimento foi abortado.

Quando chega na década de 1970, passamos a viver uma fase com um mo-delo exaurido. A partir daí percebe-se a necessidade de se adotar um modelo que não existe, que tem que ser construído. Mas para construí-lo é preciso primeiro preparo, destituir-se de preconceitos, juntar as várias áreas do conhe-cimento, deixar de considerar que tecnologia é a ponta e as Ciências Humanas são o rabo do leão. Pelo contrário, tudo isso tem que ser juntado e esse modelo tem que ser construído. Isso só pode ser feito se você se dispuser a isso e tiver liberdade para tal.

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O movimento pela democratização da universidade

Então o nosso movimento não era simplesmente eleição direta para reitor, era a liberdade para construir um novo momento, uma nova universidade. Eu acredito que a nossa universidade brasileira é prestigiada, ocupa um lugar de destaque. Mas também acredito que vivenciamos o fim de um fenômeno que não foi resolvido na época, que está escondido e que não faz questão de apare-cer. A universidade é muito acomodada, sem a ousadia que lhe é própria. Ela tem medo de entrar em crise quando, para mim, a universidade é crise, ela é crítica de tudo e a começar de si própria para poder construir. Ela tem que se construir dentro de valores e dentro de princípios e para isso precisa de duas condições fundamentais: a disposição e a liberdade de trabalho.

Em minha opinião, perdeu-se a oportunidade de se fazer a reforma am-pla. Estava tudo amadurecido para isso e o que se fez foi uma mudança de estatuto que não entrou no mérito das questões. Eu fiz parte desse momento, eu fui membro dos Conselhos Universitários da USP, da Unicamp e da Unesp e frequentemente a discussão era sobre vírgula no item do estatuto, não era a filosofia. Havia a necessidade da reforma, teve aspectos positivos e negativos, mas ela parou, não se aprofundou e isso levou a uma certa acomodação.

Parece estranho vindo de uma pessoa de 80 e poucos anos, mas vejo o pessoal mais jovem acomodado, com receio de se desenvolver para não parecer incompe-tente. Há uma série de fatores, alguns são de natureza infantil, outros, problemas do próprio indivíduo que não os resolveu e os projeta na sua vida universitária ou no seu colega. As pessoas das diversas áreas não se encontram na universidade, evitam o contato, quando, na verdade, esse contato só enriquece.

Agora começamos a falar em interdisciplinaridade, que só tem sentido se for transdisciplinar. Não é apenas juntar o sociólogo com o cirurgião, é o ci-rurgião entender a linguagem do sociólogo, a sua mensagem e vice-versa. Isto enriquece o indivíduo. É a multidisciplinaridade e tem que ser acompanhada da transdisciplinaridade nesse processo de inter-relação. Temos o privilégio de trabalhar na universidade, mas não podemos fazer isso porque não dá tempo, existe uma burocracia a ser cumprida, os relatórios a finalizar, provas a corri-gir, e ficamos às vezes em embates inúteis e desgastantes.

Precisamos passar por esse processo de transformação, criar condições para que ele possa nascer de maneira sadia, se desenvolva e busque o seu ca-

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minho. Não há necessariamente um único modelo de universidade, podem ser vários modelos, que terão um tempo de vida útil e deverão depois também ser reformulados. Costumo dizer que a universidade tem que ser subversiva, no bom sentido, manter o que é bom e trocar o que está ruim e avançar.

A eleição direta para reitor na UFSCar

O nosso movimento das diretas para reitor foi nessa ocasião, começou em Assis. Mas ele, num sentido amplo da palavra, foi importante na medida em que pegou a universidade inteira. Não era mais uma situação local ou uma unidade, era um fenômeno geral. Seria o momento oportuno para se fazer uma reflexão sobre isso e de certa forma foi o que aconteceu.

Eu vinha de uma experiência em São Carlos, na UFSCar, onde fizemos um trabalho com a comunidade, com liberdade para ela buscar o seu cami-nho. Fomentei esta situação e o trabalho foi espetacular. Mérito da comuni-dade, que se identificou com a proposta, discutiu e ajudou a universidade, que estava em 32º lugar entre as federais em termos de ensino e pesquisa, e passou para o quarto lugar. Isso mostrou um pouco para a Unesp que era possível fazer isso na Universidade.

Antes de eu sair de São Carlos, a comunidade lá queria a eleição direta para reitor. Isso foi importante porque teve repercussão nacional. Mas não era uma luta simplesmente para eleger um dirigente, tinha um significado. Porque, quando chegou em 1979, no governo do general Figueiredo, é baixada a lei 6733, pela qual os dirigentes de fundações de qualquer natureza seriam no-meados a partir daquela data por um ato do presidente da República, indicação direta, sem mandato. Todas as universidades federais criadas depois de 1961 foram sob a forma de fundação. Portanto, todos os reitores das universidades fundacionais não seriam mais indicados pelo Conselho Universitário.

Essa é uma agressão à autonomia da universidade e atingia uma das ca-racterísticas mais profundas da instituição. A UFSCar sabia da importância de uma autonomia não apenas financeira, mas de trabalho, e sentiu-se abso-lutamente agredida porque ela não podia sequer fazer a lista sêxtupla. Então a comunidade achou que o único instrumento de que dispunha para protestar contra isso seria realizando eleição direta. Ou seja, ela não surge apenas por um

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movimento político, partidário, de sindicato ou de interesses. Surge do senti-mento de protestar contra isso.

Eles fizeram a eleição e eu saí vencedor, apesar de não ser candidato. O Go-verno não me escolheu, deixou o vice, a Universidade entrou em greve. Quan-do acabou o mandato do vice, nomearam um reitor pró-tempore. A repercus-são foi muito grande.

O movimento por eleição direta na universidade era muito mais profundo e conceitual do que simplesmente um modismo, uma tendência. O Ministério ficou num impasse porque queria o fim da greve, mas encontrava resistência cada vez maior a qualquer atitude. Então a comunidade e o próprio Ministério me solici-taram, não formalmente, mas deram a entender que gostariam que eu ajudasse nesse impasse. Eu era a figura, o eleito, a comunidade defendia o meu nome.

Fui ao Ministério da Educação de comum acordo com a comunidade e combinei que não assumiria a Reitoria. Em troca, eles revogariam a lei 6733. O Ministério se comprometeu a revogá-la, só não o fez de imediato para não dar a entender que era por causa da greve.

A revogação dessa lei, que segundo informações teria sido inspirada por um reitor de uma universidade federal que queria permanecer no poder, tam-bém foi um movimento contra a continuidade do reitor, que é o que o nosso reitor aqui queria quando terminou a gestão dele. Daí se iniciou o movimento. Tudo a ver com a ação em São Carlos.

O movimento pelas diretas na Unesp

O nosso movimento pelas diretas surge na década de 80. Começa aí um processo porque o reitor queria continuar e mostrar que tinha poder junto ao Governo do Estado para ser reconduzido, embora a lei proibisse a recondução. Busca-se uma indicação ouvindo-se a comunidade e surge a ideia da eleição direta, com participação de todos. Pedia-se que as pessoas se inscrevessem e fossem falar com a comunidade, levantando propostas. Foi um momento im-portante de se discutir a universidade.

Na verdade, fui procurado para ser candidato. Eu estava saindo de uma reitoria que me tinha dado muita satisfação, tinha terminado uma greve, den-tro de uma luta vitoriosa, mas não queria ser candidato, não queria pedir car-

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go nenhum. Eu achava que reitor não tinha que pedir, eles deveriam ouvir, mas não fazer palestras sobre universidade para ser candidato. De qualquer forma, acabei inscrito pela comunidade e pelas associações de docentes, a de Botucatu e a da Unesp.

Foi feita a eleição. Houve um processo de consulta à comunidade, profes-sores, alunos e funcionários. A Reitoria, por sua vez, achando que ganharia esta consulta, dizia que, se fosse feita pelas entidades, não seria oficial, eles próprios fariam a consulta. O Conselho Universitário baixou uma resolução consultando a comunidade para elaboração da lista. Nós ganhamos a eleição. O Conselho Universitário a anulou, com aquela alegação. Refizeram e ganhamos de novo. Aí, fizeram a lista e não puseram o nome dos que foram eleitos. Todo o processo teve que recomeçar.

Ficou claro que nós estávamos brigando por objetivos diferentes. Lutáva-mos pela Universidade, pela discussão da instituição. Ou seja, discutíamos a Unesp enquanto eles ambicionavam o poder. Fomentávamos e alimentávamos a possibilidade de uma discussão sobre os rumos da universidade, como ela seria, não importava quem seria o reitor. Não mais colocar em reunião do Conselho Universitário ou em congregação probleminhas de processos mera-mente administrativos e burocráticos, mas debater, no sentido de enriqueci-mento, de reanálise.

Era emocionante ser convidado pelas unidades e, diante de um auditório lotado, contar a história da universidade, respondendo perguntas, interagindo com a comunidade. Essa discussão foi muito útil porque ela deu vários frutos, embora tenha dado outros que não deveria dar. Se esse pessoal parar pra pen-sar – dizer “ganhamos aquela eleição” – hoje pode-se avaliar que o processo de discussão da Unesp foi interrompido. Um processo que não era questão de eleger A, B ou C, mas de redemocratização.

Vivíamos a fase pré-constituinte, então era parte do processo a universida-de lutar pela restituição da liberdade, evitar aqueles conchaves políticos, ambi-ções, evitar a invasão do câmpus de Botucatu, com uma tropa de choque guia-da pelo reitor, cercar os estudantes, os professores darem uma volta em torno dos alunos. Aquele foi um momento muito importante, não foi uma questão de eleição direta simplesmente, era algo muito mais profundo e que muita gente provavelmente não percebeu.

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O futuro da Unesp: ecos do passado

De algum modo, esse processo vai continuar, vai aflorar ainda. O modelo atual começa a se exaurir. Vai ser necessário voltar a discutir o futuro da Unesp, para onde vai essa instituição. Apesar de termos ganho a consulta [naquela épo-ca], eles não nos incluíram na primeira lista. Passamos a ter um reitor interino, de Araraquara. Tenho um relacionamento amigável com ele, não o critico, mas o grupo dele tinha me procurado quando o governador indicou um pró-tempo-re. Era para eu sugerir um pró-tempore. Eu disse: “eu não vou sugerir, isso é um ato de intervenção que o governo corajosamente deve assumir”.

A experiência que eu tive com o curso de pós-graduação em Bioética – que montei há dez anos – e a minha trajetória nesta área, me levaram a receber recentemente o prêmio Guerreiro da Educação e me mostraram o quão impor-tante é a mensagem que a Bioética traz. Eu coordenei um trabalho da Prefei-tura de Botucatu sobre normas da ética de pesquisa em ser humano. Isso não existia. Foi uma iniciativa feita junto com a sociedade. É bom que haja todas as correntes de pensamento porque é dessa diversidade que a gente vai crescer, tem que saber trabalhar com isso e não é fácil.

Esse curso de Bioética foi o primeiro do país. Formamos até agora 120 mestres. Meu alunado foge do padrão clássico da pós-graduação. Lá eu tenho médico, advogado, jornalista, assistente social, padre, freira, engenheiro, admi-nistrador. Gente que tem 30, 40 anos ou mais, com família, emprego e sente a necessidade de discutir esse assunto.

Discussões muito ricas surgem nas aulas por conta disso. Debates que par-tem de pessoas que não vão ganhar mais por que faz uma pós-graduação, mas sai uma pessoa diferente. Lembro que em uma das bancas, o candidato para a defesa da dissertação era um padre, que tinha paróquia, atuante. Daí, um dos examinadores perguntou a ele para que o curso tinha servido e ele falou: “eu achava que era um bom padre, agora sou um padre melhor”.

Hoje, todo projeto de pesquisa com ser humano em qualquer área, não ape-nas na Medicina, tem que ser aprovado por um comitê de ética multidisciplinar, com médicos, filósofos, filólogos, matemáticos, cientistas sociais. Essa interação é importante. Há 160 comitês deste tipo no Brasil, com mais de 20 mil pessoas participando. Quanto maior a interação entre as áreas, mais as pessoas reveem seus conceitos, suas convicções, princípios, fazem um mergulho dentro de si.

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Interessante lembrar que aquele clima em São Carlos encontrava reflexo na Unesp. O pessoal de Araraquara, que é cidade vizinha, acompanhava aquele movimento, me perguntava muito a respeito das ações realizadas na UFSCar. À medida que fazia palestras sobre o assunto, a receptividade ao movimento aumentava. Encontrávamos também resistências. Em uma das unidades, havia marcado dia e horário para a reunião, mas o diretor daquela unidade não nos apoiava e, do nada, deu ponto facultativo. De certa forma, era sinal de que o processo estava ganhando corpo, ficando importante. Lamento pelo outro lado, embora respeite. Algumas das pessoas contrárias a nós conheciam a uni-versidade, vinham de escolas onde havia um verdadeiro espírito universitário, sabiam o que era certo e errado.

Eu não ia pedir voto, o ponto central do debate era a universidade, numa conversa que passava de duas horas. As pessoas sentiam necessidade daquilo, conhecer a história da universidade e promover uma reforma. A democrati-zação tinha como principal objetivo evitar o obscurantismo e dar autonomia para que possa se exercitar a vida acadêmica no seu sentido mais profundo. A história da universidade oferece as ferramentas para isso.

Não era só discurso. Aliás, para mim aquela experiência de ir às unidades e conversar com a comunidade universitária foi de uma riqueza imensa. Uma pessoa uma vez me perguntou o que eu poderia fazer dentro da universidade com pessoas como ela, que era analfabeta, assim como outros colegas dela. Pois essa mesma pessoa depois coordenou um curso de alfabetização, atraiu professores da sua unidade que montaram um curso aberto, facultativo e alfa-betizaram os operários que precisavam aprender a ler e escrever.

Ninguém para e raciocina porque é importante ter eleição direta. No caso de São Carlos, como disse, havia oposição à lei 6733. Agora, a escolha por lista sêxtupla é a melhor? Nós estamos sendo beneficiados com essa lista tríplice? Ou o reitor é escolhido por simpatia de algum grupo político? É ligado a um governador, a um partido? Todo cidadão, todo homem de universidade tem que ter a sua cidadania, suas convicções políticas, até sua militância política, o que não pode é usar a universidade em torno de uma ideologia política partidária.

Muito bem, faz-se a eleição direta. Só que esta eleição também passou a ser de barganha. Até o preço de refeição entrou na história. Não é por aí. Este é um problema que também precisa ser discutido. Quem é o reitor e para que que ele serve?

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Necessidade de mudanças

Vou dar um exemplo. Tínhamos em Botucatu o Departamento de Educa-ção, onde entrava a Psicologia da Educação, Filosofia da Educação, Pedagogia. Era algo muito importante dentro daquela ideia de uma faculdade de Ciências Médicas e Biológicas, de integração entre as áreas. No curso de pós-graduação de Cirurgia Experimental, havia duas disciplinas, Didática e Metodologia do Ensino Superior, que eram dadas pelos professores do Departamento de Edu-cação. Estávamos aprendendo muito. Mas disseram que o Departamento de Educação tinha que sair porque dividiram as faculdades, não havia lugar para ele. Só não foi desativado totalmente e existe ainda hoje, porque nós argumen-tamos que o curso de pós-graduação tinha conceito A na Capes e iria acabar se tirasse a Educação. Ficaram com receio e mantiveram o departamento.

Essa necessidade de mudança sobre a qual estamos conversando tem a ver com situações como essa. É preciso fazer uma avaliação mais profunda do que estamos fazendo na Unesp e ver que caminho estamos seguindo. Vamos es-quecer essa história de ranking. É mais que isso. Veja, hoje estamos envolvidos com a chamada avaliação. Tudo precisa ser avaliado. Temos hoje até um mer-cado de avaliadores, com especialização no exterior! É lógico que é importante haver um mecanismo de avaliação. Mas quem vai fazer ou propõe a avaliação tem a obrigação ética de dizer o que, para que e por que vai avaliar. Se é para só dar nota, não tem sentido. É avaliação por avaliação.

Outra situação que às vezes passa despercebida é a escolha do assessor. O assessor dá parecer, é anônimo, tem o poder. Se ele não tiver caráter adequado, maturidade, ele pode criar problemas terríveis, acabar com projetos. Assim, é preciso analisar com cuidado a qualidade dos pareceres. Eu lia atentamente os pareceres, abria uma discussão e, quando encontrava algo estranho, ia ver o que estava acontecendo.

A Fapesp é um exemplo interessante. Ela estava prevista na Constituição de 1946, mas só foi implantada em 1962, graças a um grupo de pesquisadores, principalmente da área tecnológica, da Genética, da Biologia Molecular, que estava se reunindo para efetivar a Fundação.

Ou seja, ela nasce de um movimento autêntico de análise. Estávamos viven-do o pós-guerra, no qual a ciência tinha se mostrado importantíssima. Tanto que em 1951 fora criado o CNPq. Um estudo o precedeu. Quando existe uma

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discussão autêntica e gente capaz para conduzi-la, o restante funciona. A uni-versidade está cheia de gente boa, competente, mas que às vezes desiste no meio do caminho, desanima. Tem que se criar outro clima pra que isso possa ocorrer.

A herança da ditadura

A ditadura trouxe consequências funestas. Pessoas foram exiladas, perse-guidas, houve um movimento de liquidar lideranças. São gerações de pessoas competentes que foram afastadas, e nós estamos pagando o preço agora. Não há liderança mais. São duas ou três gerações que foram castradas, colegas que foram parar nos Estados Unidos, perseguidos aqui e contratados lá. Tem ex-aluno meu fazendo pesquisa de primeira linha lá.

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DEPOIMENTO 9

Reinaldo Ayer de Oliveira

Hoje é dia 13 de novembro de 2013. Nós estamos aqui no Instituto Oscar Frei-re, no Departamento de Medicina Legal, Ética Médica, Medicina Social e do Trabalho da Faculdade de Medicina da USP com o professor Reinaldo Ayer de Oliveira. Ele teve uma importante atuação nos episódios que envolveram a violação aos direitos humanos na Unesp durante a ditadura civil-militar e vai nos dar um depoimento a esse respeito.

Na Faculdade de Medicina de Botucatu

Entrei na Faculdade de Medicina de Botucatu, que na época tinha o nome de Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu, a FCMBB. O

primeiro movimento estudantil de que eu participei foi a Operação Andarilho. Quando cheguei à faculdade, havia duas turmas que tinham iniciado a Medi-cina e nós não tínhamos um hospital universitário, uma estrutura adequada de ensino; mas não só do ponto de vista estrutural como também a falta de professores e conteúdos. Havia poucos professores. Os estudantes faziam um movimento pela melhoria das condições estruturais e de ensino da FCMBB.

Este movimento ficou um tempo em Botucatu. Um colega nosso, em uma das assembleias estudantis, sugeriu que fôssemos a pé para São Paulo protestar contra o descaso com o ensino superior. Fizemos uma marcha para a Capital. Lá, fomos recebidos pelo governador. Houve uma grande negociação e ele nos prometeu medidas que pudessem sanear os problemas relacionados à faculdade.

Saímos do Palácio do Governo e acampamos no Parque do Ibirapuera. Fi-camos um bom tempo por lá. Durante esse acampamento, tivemos contato não

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só com estruturas partidárias, mas também com um movimento estudantil mais politizado. Naquela época, em 1966, já se falava na Ditadura, quer dizer, um regime fechado, militar, e, eu confesso, quando nós entramos na faculdade, não tínhamos claramente essas noções de política.

Isso fez com que houvesse um crescimento muito grande dos estudantes de Botucatu. Nós nos tornamos assim, depois de um certo tempo, uma referência de movimento estudantil forte. Não conseguimos tudo, mas parte daquilo que a gente pretendia foi obtida, inclusive a abertura do hospital. Quando volta-mos, percebemos que tínhamos nos tornado uma força política.

Começaram os primeiros movimentos de protesto contra a Ditadura. Um desses movimentos nós chamamos de ‘Operação Denúncia’, para exatamente denunciar as ações que o Governo Militar vinha tomando em relação à Edu-cação e outras áreas. Foi um movimento bem interessante, foi o passo inicial e decisivo para a politização dos estudantes em Botucatu. O que se seguiu depois nesses anos de 1966 e 1967 fomos nós, do interior, observando o que acontecia em movimentos de outras faculdades, também do interior. Porque nós éramos os chamados institutos isolados, não tínhamos nenhuma percepção clara ainda da questão da universidade.

Nós conhecíamos movimentos em Araraquara, para nós uma referência importante em Ciências Humanas. O mesmo acontecia em relação a Assis, outro câmpus. A gente tinha muita vontade de ter a condição de uma uni-versidade, uma instituição que abrangesse todos os campos do conhecimento, ou seja, ciências exatas, humanas e biológicas. Tínhamos uma relação com os estudantes dessas unidades também por meio de congressos estudantis, do in-tercâmbio de grupos de teatro, nos quais havia lideranças.

Na USP

Eu me envolvi com alguns colegas da Faculdade de Medicina da USP. Nós trocávamos informações, mesmo porque grande parte dos professores que fo-ram para Botucatu era da USP. Começou a haver um relacionamento entre essas duas faculdades. Eu jamais imaginei que um dia eu daria aula na Uni-versidade de São Paulo, mas aconteceu. Na USP, acabei me envolvendo com alguns colegas que chegaram a ir para a luta armada. Naquela época eu tinha

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dois irmãos na Escola Politécnica e pude acompanhar todo aquele movimento de invasão do Conjunto Residencial da USP, o CRUSP.

Um dos meus irmãos tinha um apartamento que servia como ponto de apoio para as pessoas que tinham partido para a clandestinidade, um aparelho. Eu me lembro de uma vez que eu cheguei ao apartamento, entrei, comecei a andar lá dentro. Sabe quando você fica incomodado, achando que tem alguma coisa? Era uma dessas pessoas que estava há três dias dentro do apartamento sem nada para comer. Meus irmãos tinham ido viajar e ele começou a pegar pão que estava no lixo para matar a fome. No prédio onde a gente morava, embaixo tinha um res-taurante. Desci com ele, nunca vi uma pessoa comer tanto na minha vida.

Esse foi o meu envolvimento. Um pouco depois disso eu me formei, em 1970. Depois de formado, fui fazer residência médica. Já estava casado. Meu envolvimento político diminuiu, embora houvesse um franco confronto con-tra a Ditadura. O que nos movia era o regime ditatorial. Um dos meus colegas morreu; outro foi preso. Eu nunca fui preso ou algo parecido. Mas ia sempre ver esse meu colega que ficou preso um bom tempo. Ele sofreu muito. Hoje ele vive tranquilo e é um médico psiquiatra, mas passou um período muito dramático.

Eu tinha outro colega, hoje professor titular aqui na Medicina da USP, que também sofreu um processo muito pesado. Ele não chegou a ser preso, mas acabou passando por um processo muito violento; era de deixar impressiona-do. Agora, frente ao que aconteceu com esse meu colega preso e ao outro que morreu, não significou nada. Como diria aquela expressão, sofri a “ditabranda”.

Não concordo com essa palavra, mas o que aconteceu comigo foi muito menos violento do que com outros colegas. Por isso é que eu sentia muito pró-ximo de mim um regime ditatorial. Por conta dessas questões, eu fiquei um tempo trabalhando com meu orientador da residência médica aqui em São Paulo e acabei me envolvendo, como aconteceu com várias pessoas, com o cha-mado movimento social, com as organizações sociais.

Sempre tive muita dificuldade com os discursos dos partidos políticos. Eu fazia uma política mais de aproximação com as pessoas que tinham esses ideais, mais libertários. Eu participei ativamente do movimento da Sociedade Brasilei-ra para o Progresso da Ciência, a SBPC, quando ela começou a discutir a Dita-dura em congresso. Neste caso, o congresso da USP e aquela reunião histórica que teve no teatro da PUC-SP, quando a SBPC declarou-se contra a Ditadura.

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O professor Oscar Sala na época era o presidente da SBPC. Então eu comecei a militar nessas organizações que existem dentro da universidade mesmo.

A criação da Unesp

Esse tempo mais ou menos coincide com a chegada da Unesp, criada em 1976. Naquela época eu voltava para Botucatu. Eu tinha me formado médico e completado a residência. Aí vinha essa ideia de uma Unesp de cima para baixo. A figura da Unesp para uma série de professores e alunos também era a figura de ditadura. Aquilo simbolizava a ditadura, ou seja, o reflexo de uma ditadura que o País vivia num sistema universitário. Quer dizer, tinha a ver com um estatuto que foi criado por pessoas sem nenhuma discussão. Os institutos iso-lados, todos eles em um crescimento intelectual muito grande, mesmo político, e, de repente, se tira um curso daqui, põe não sei onde.

Eu considerei a criação da Unesp uma expressão do que se tinha como estratégia ditatorial: “eu imponho, eu faço, eu ponho”. Foi na hora em que se abriu a primeira ideia de representação, com o colega João Francisco sendo eleito pelos docentes da Universidade para o Conselho Universitário, o C.O. O restante do Conselho foi todo indicado. Isso me motiva a criticar os colegas que aceitaram essas ideias.

Fiz parte da associação dos docentes. Nós nos organizávamos com outras associações de docentes, por exemplo, de Araraquara e Guaratinguetá. Então, começamos a organizar um movimento dentro da Unesp por meio das associa-ções de docentes, como existia o movimento dos estudantes.

Mas o movimento dos estudantes estava se enfraquecendo, em 1977, 1978. Começamos intensamente essa relação fundamentalmente em oposição àquela forma como a Universidade estava sendo implantada. Uma universidade cen-tralizadora, cujo C.O. não tinha representação democrática.

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Ecos de 1968

A Operação Andarilho, os Acordos MEC-USAID, a morte do Edson Luís, a sexta-feira sangrenta, a guerra da USP da Rua Maria Antônia. Depois, no con-gresso da União Nacional dos Estudantes, a UNE, em Ibiúna prendeu-se toda a liderança, e o AI-5 em dezembro de 1968, a doença do ex-presidente Costa e Silva. Aí, é luta armada mesmo.

O movimento estudantil deixou de existir nesse período. Por dois motivos. Um foi a repressão violenta sobre o movimento. Eu perdi colegas nessa época. O outro era o medo. Instaurou-se um regime de medo entre os estudantes. A ditadura criou os diretórios acadêmicos em substituição aos centros acadêmi-cos. Eram os diretórios financiados pela diretoria da faculdade, como aconte-ceu em Botucatu.

Quando estávamos na Operação Andarilho, lembro de um momento, quando andávamos para o Palácio dos Bandeirantes. Houve uma discussão se a gente passaria ao lado do acampamento do movimento dos excedentes, que estava no jóquei ou se passaríamos por fora. Houve uma assembleia para deci-dir isso. Decidimos por passar ao lado do movimento e isso foi uma indicação da questão da politização do movimento do andarilho.

A greve de 1979

O movimento dos docentes também ficou muito coeso, levando à politi-zação da Universidade como um todo, que depois resultará no processo das eleições em 1984. A greve do funcionalismo público em 1979 indica claramente um aumento dos conflitos de relações de trabalho mesmo, do que a Ditadura entendia como funcionário público e o que nós entendíamos.

Isso foi no período do ex-governador Paulo Maluf. Essa greve foi muito importante. Eu fiz parte do comando em São Paulo. Nós nos reuníamos no Sin-dicato dos Trabalhadores do Hospital das Clínicas. O Nilo Odália vinha muito aqui porque ele era da Associação dos Docentes, a Adunesp, e eu também. A Unesp teve uma participação muito importante nessa greve. Praticamente to-dos os campi entraram em greve. A Unicamp também.

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Naquela época, eu lembro que o presidente da Adunesp era o Nilo Odália e o presidente da associação dos docentes da Unicamp era o Paulo Renato Souza, que depois se tornou ministro da Educação. Nessa greve tínhamos o respaldo dessas pessoas, que se tornaram expressões na vida brasileira, foi bem interessante. Quando a greve terminou, o movimento dos docentes se desarticulou também.

A redemocratização

Já tinha passado aquele momento da criação da Unesp. Havia claramente em vários dirigentes dessas associações a ideia de que alguma coisa dentro da universidade deveria ser feita para se contrapor ao Regime Militar, que tinha esse braço de repressão dentro da Educação. Várias pessoas foram reprimidas. Começou o movimento que vai se expressar na Unesp em 1983 e 1984, que era a luta pela eleição direta para reitor. O reitor, na verdade, queria impor uma pes-soa. O mandato dele tinha acabado. Mas o movimento começou a crescer muito, a tal ponto que a universidade resolveu fazer uma consulta à comunidade. Nes-te processo, eu citaria duas pessoas extremamente importantes, os professores William Saad Hossne e Nilo Odália, que se tornaram candidatos a reitor.

Eu tenho uma ótima relação com o professor Saad e testemunhei isso. Fo-mos a todos os campi da Unesp. Passávamos às vezes dois dias num câmpus, conversando, discutindo, fazendo propostas. Ele e o Nilo são duas pessoas em-blemáticas, inclusive desse movimento todo. Dispuseram-se a participar dele e isso foi muito bom. Houve um crescimento muito grande da Unesp e eu consi-dero que naquele momento é que se começou a construir a Unesp. De 1976 até 1984, para mim, a Unesp foi a expressão da Ditadura Militar no ensino superior, não tenho a menor dúvida quanto a isso. Todos os cargos indicados, os diretores.

Em um desses movimentos, em 1978 ou 1979, não me recordo ao certo, sofro um processo, porque eu fiz uma crítica a um diretor da Faculdade de Medicina. O Sobral Pinto, advogado que fez a minha defesa, até hoje eu tenho a defesa que esse advogado fez à mão, ele escreveu à medida que ia conversando comigo. Até hoje eu tenho esse documento, lindíssimo.

O movimento de 1984 era não só em prol de uma educação, era em prol da educação livre. Ou seja, pela eleição dos dirigentes das universidades pela comu-

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nidade, sobre essa relação democrática entre os vários setores da universidade. Claramente colocado como um movimento que estava nesse conjunto todo das liberdades democráticas, que vinha lá de trás e que culminou com as eleições.

Esta palavra “eleições” dentro da Unesp foi muito interessante. Mais ou menos nessa época foi fundada a Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior, a Andes, cujo primeiro presidente foi o Newton Lima, hoje deputado. Ele era da Unesp.

As associações convergiram para a fundação da Andes. Apesar de tudo, nós perdemos a eleição para reitor, não obstante ter sido

nomeado uma pessoa que fazia parte desse movimento todo pela democra-tização da universidade, particularmente da Unesp, que foi o professor Jorge Nagle. Então acontece a eleição do reitor da UFSCar, do Willian Saad Hossne, numa consulta à comunidade. Essa consulta foi liderada pelo Newton Lima, que já estava na Andes. Lembro que o Golberi do Couto e Silva no Governo deu a carta branca para que o professor Saad fosse considerado eleito.

É lógico que não foi assim, houve um trâmite, a congregação indicou, hou-ve a participação de um deputado, o Lauro Lima, uma pessoa de expressão dentro do Governo. De certa forma, eu diria que a Ditadura aceitou. Todo o movimento que houve na Unesp surtiu resultado na UFSCar.

O professor Saad era da Unesp, mas então qualquer pessoa poderia ser rei-tor. O professor Saad era uma pessoa muito expressiva no movimento, não só da Educação, mas o movimento ligado a essas liberdades democráticas. Ele tinha tido duas gestões na FAPESP e uma das gestões dele, em pleno Regime Militar, com vários de seus assessores, como por exemplo, o Paulo Vanzolini, conseguiu-se por meio de bolsas de estudos, de programas e pesquisas, tirar muita gente do país que era perseguida. Vários outros professores universitá-rios, como o Clodoaldo Pavan, Oscar Sala, Roberto Carvalho da Silva, faziam essa articulação de aliviar professores que acabaram saindo do Brasil como se fossem pesquisadores, mas, na verdade, estavam fugindo, para não serem cas-sados, por esse braço da Ditadura dentro da universidade.

O professor Saad foi para a UFSCar e fez uma gestão brilhante. Um pouco antes dessa época, o movimento estudantil volta com aquelas várias correntes, como a Liberdade e Luta, a Libelu. Volta no início dos anos 80 com força.

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O pioneirismo da Adunesp e da Associação de Docentes de Botucatu

A Adusp contesta, diz que nasceu nos anos 1960 e depois foi reativada. Mas não importa, a Adunesp fez renascer, ou nascer, o movimento docente das uni-versidades brasileiras, pois ela tem depois importância fundamental na criação da Andes. Nós frequentamos os primeiros congressos da Andes. Tivemos uma participação muito ativa, a Adunesp e as pessoas ligadas a ela.

Os docentes da Faculdade de Medicina formaram um grupo que era a as-sociação dos médicos, para cuidar da questão de plantões e outros assuntos do gênero. Aí, rapidamente, quando começaram esses primeiros movimentos, a gente queria ver alguma ação em relação aos institutos isolados e o fato de serem agregados numa universidade. Começou-se um movimento para que to-dos os docentes se unissem. Eu lembro que um dos pontos que a gente pleiteava no início era exatamente os médicos ganharem pelo plantão, um algo a mais em relação ao salário que se ganhava. Era uma reivindicação. Foi muito difícil discutir isso com o pessoal da Agronomia, da Veterinária. Mas tudo bem, a associação dos docentes foi fundada. Ela tinha um caráter um pouco reivindi-catório. Inicialmente havia essa questão da política salarial, mas ela foi se forta-lecendo. Quando começou essa questão mais política, a partir da greve de 1979, a Associação se tornou mais forte. Essas questões políticas foram colocadas no programa dessas associações.

Chegou 1976, a Unesp foi criada e se fortaleceu. Uma colega nossa, a So-lange Bergamaschi, foi fundamental na história. Ela estava na Associação dos Docentes quando chegou o movimento da Universidade. Eu fui presidente no início dos anos 1980, um pouco antes do movimento das diretas para reitor. Pode-se dizer que não houve uma contraposição; houve uma associação especí-fica dos professores de Medicina, cujas lutas se somaram a uma luta mais geral, criando-se a Adunesp.

Essa passagem para a Adunesp foi muito interessante. Houve um congres-so em Araraquara, o congresso de fundação da Adunesp. Nós de Botucatu – lembro que a Dinah Borges de Almeida estava junto, o Caldas também – fomos a Araraquara com uma proposta de se fundar uma associação que seria uma federação de associações. Botucatu mantinha a sua independência, assim como

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Araraquara, Guaratinguetá, Presidente Prudente. Mas o Ulysses, o Nilo e o José Ênio não concordaram, acharam que deveria ser uma associação única.

Nós saímos de Araraquara meio estranhos; havia a Adunesp e a associação de Botucatu. Mas sempre caminhando juntos. Num determinado momento, nós nos transformamos mesmo e aí houve até uma proposta que se chamava Adunesp Câmpus de Araraquara, Adunesp Câmpus de Guaratinguetá e assim por diante. Lembro que nessa época eu era secretário do presidente Quelce Sal-gado, o Tozoni era tesoureiro. Já havia um recolhimento de mensalidades para a Adunesp: Botucatu, Araraquara, enfim, todas enviavam.

Depois o movimento de associações de docentes ficou um pouco enfra-quecido. Aí, se começou a discutir sobre associação e sindicato. O movimento docente como um todo abrandou. Botucatu voltou a ter uma associação de do-centes, como eu acho que tem em Araraquara, por exemplo. Na época, eu acom-panhava tudo o que acontecia nas Adunesps, mas hoje eu não sei como está esse movimento de associações de docentes. Vejo em Botucatu, para onde vou sem-pre, hoje é mais um clube. Nada de política mais envolvida, faz-se mais o social.

A criação da Adunesp frente à criação da Unesp

Um pouco antes da criação da Unesp, percebíamos que havia movimentos no sentido de se criarem três ou quatro universidades. Haveria uma univer-sidade em Botucatu, cuja vocação seria basicamente nas Ciências da Saúde, e também de Ciências Exatas. Havia a proposta de criação de uma universidade em Assis, basicamente de Ciências Humanas. Lógico que seria uma universi-dade com todas as faculdades necessárias, mas com uma vocação votada para algo mais específico.

Em Araraquara, não deixaria de existir Odontologia nem Farmácia, que na época eram faculdades muito fortes. Botucatu tinha, além da Medicina, uma faculdade de Veterinária, que até hoje se mantém forte, importante. Lembro que o professor Saad fez o projeto do que ele chamava de Centro Universitário de Saúde. Mas isso foi superado por uma imposição da reitoria.

Quando a universidade apareceu com o reitor Luís Ferreira Martins, quem é essa universidade? Quem é essa pessoa? É que ele trouxe como vice-reitor o

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professor Armando Otávio Ramos, de Botucatu, que a gente conhecia. Mas quem eram aquelas pessoas? Era uma universidade criada do dia para a noite.

Botucatu ‘perdeu’ com a criação da Unesp

No início eu acho que perdemos. Cada instituto isolado já vinha criando sua vocação, já sabia para onde ia. Pensavam no progresso, em métodos de ensino diferentes. A FM de Botucatu estava inovando em termos de reformas de currículo. Aí a Unesp veio e fixou regras, deslocou professores. Em Botuca-tu, na FCMBB, havia o instituto básico, por onde todos os alunos de todos os cursos passavam. Nós estávamos evoluindo para um tipo de ensino com um ou dois anos básicos para todas elas. Quando veio a Unesp, os cursos se separa-ram, houve uma divisão dentro do câmpus de Botucatu. Perdeu-se o comum. Era como se falassem: “olha, vocês não se falem. Vocês não foram feitos para ficarem conversando entre si. Vocês vão conversar agora com a Reitoria”. Tam-bém era um negócio antieconômico. Cada faculdade tinha uma diretoria, um carro para cada diretor... Horrível.

Em Araraquara e Botucatu ainda havia uma estrutura onde era possível manter a reunião dos diretores. Quando o câmpus era muito complexo, era chamado câmpus complexo, os diretores se reuniam para criar uma adminis-tração única. A Faculdade de Botucatu tinha uma independência financeira, negociava suas verbas diretamente com o Governo. Ela passou então a ter que entrar no bolo da Unesp, principalmente por conta do hospital. Porque o hos-pital administrado pela FM, mesmo dentro daquele conjunto da FCMBB, ti-nha um orçamento pago pelo Estado, quer dizer, separadamente da faculdade. Quando entrou para a universidade, o que aconteceu? O orçamento do hospital passou a ser do orçamento da Universidade.

Eu fiz parte do C.O. por um tempo. Ouviam-se pessoas questionando: “por que vai tanto dinheiro para a FM de Botucatu”? Tentava-se discutir isso, entre colegas, mas as pessoas não se convenciam: “não, vocês têm que arrumar verba de outra maneira”. Tanto é que agora, bem recentemente, o hospital saiu da Unesp, passou a ser do Governo do Estado com um compromisso diferente.

Mas a Unesp ainda reclama porque paga os funcionários. Se você pergunta: “como o regime ditatorial mudou a Unesp quando ela foi criada”? Ela burocra-

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tizou a Unesp. Ou seja, isso aqui é disso, isso aqui é daquilo, isso aqui é uma gavetinha que abre aqui, outra abre ali, quem abre essa gaveta é fulano, é bel-trano... Tudo ficou muito compartimentado, mesmo com um C.O. Não se tem uma ideia única: “olha, agora nós vamos atingir tais metas”. Existem esforços, desde o início da Unesp, de algumas pró-reitorias, para tentar sistematizar de alguma maneira, fazer uma coesão, por exemplo, da pesquisa. Nós tivemos pró-reitores na Unesp que eram de pesquisa, por exemplo, e faziam um esforço sobre-humano para manter um vínculo mais estável com a Fapesp.

As discussões sobre os plantões na FM eram um terror. Sempre se coloca-va isso porque quem pagava os plantões era a Universidade. Um professor de Letras fala: “poxa, e eu, não posso ganhar um plantão? Um correspondente a um plantão”? Pois nós deixamos de ser institutos isolados e nos tornamos uma universidade onde cada um tem a sua mesinha e não fala com o outro. Efeitos da Ditadura na criação.

Heranças da criação da Unesp

Carregamos uma herança meio complicada que foi a promessa de uma unidade. Conseguir fazer uma união desses institutos isolados todos. Se nós continuássemos como institutos isolados, será que estaríamos mais na frente em termos de ensino, pesquisa e extensão universitária? Eu não sei responder isso. As comparações que hoje faço em relação à USP. A USP, com todas essas heranças, foi constituída com respeito. Há uma percepção de que as unidades têm uma força muito grande. [Eles dizem:] “Nós somos USP, mas nós somos Faculdade de Medicina. Eu dou aula no Direito; também Direito é USP, mas é Faculdade de Direito.”

A Escola Politécnica, por exemplo, desde que foi fundada, tem personali-dade própria, ela é Poli. Tem a Esalq em Piracicaba. A Filosofia tem uma perso-nalidade grande, diferente da História e da Geografia. Então cada unidade tem a sua personalidade, sua cara, o seu jeito, a sua roupa.

A Unesp não conseguiu fazer isso. Ela tentou isso e não conseguiu. A Fa-culdade de Medicina, em relação à Universidade, por exemplo, se há um movi-mento de greve, ela nem fica sabendo. Você pergunta aos professores: “Ah, você soube que o pessoal ‘saiu’ da reitoria”? Eles respondem: “Ah, mas eles estavam

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na reitoria”? Aqui na Medicina tem uma expressão muito engraçada: quando um documento vai para a reitoria, dizemos que o documento desceu.

Por outro lado, a USP tem o maior orgulho pela FM e a FM tem o maior orgulho da USP. Não sei como foi criada essa relação; é muito interessante. Na próxima eleição [na USP] provavelmente vai haver uma consulta, mas o proces-so, apesar de ele ser ampliado, vai ser indireto. Tem um colega nosso de Ribeirão Preto que é candidato. Até o escritório político dele está aqui no departamento. Um professor da Patologia: “vamos colocar o Marco Antônio Zago lá”.

Eu gostaria muito que ele fosse reitor, mas dentro desse conjunto da uni-versidade há um comentário: “não, mas ele é da Medicina”. Aí o pessoal: “não, mas ele é da Medicina de Ribeirão Preto”. As pessoas acham que a Medicina aqui é muito nariz empinado. A Medicina aqui tem um orçamento da Universi-dade, mas a chamada Saúde aqui dentro é do Estado, a negociação é do Estado. Aí, a negociação sai. A USP acaba se fortalecendo porque se atravessa a rua aqui e já se está na secretaria. Na Unesp se está muito longe.

A invasão do câmpus pela polícia em 1968

O hospital de Botucatu ia ampliar uma ala e nós, o centro acadêmico, per-deríamos nossa sala. Os alunos, então, invadiram a sala para protegê-la. Não houve negociação. Chegavam notícias de que o professor estava negociando e, de repente, a polícia invadiu. Quer dizer, não houve conversa, ninguém foi conversar com os alunos. Ou seja, eles invadiram. Isso foi muito ruim para a faculdade. E poderia ser pior, se alguns colegas professores não tivessem uma relação com os militares que estavam invadindo.

No momento da invasão, vários professores foram para a faculdade. Na hora em que a tropa invadiu mesmo, o pessoal disse: “olha, vamos conversar; vamos com calma”. Naquele momento houve uma negociação. Os professores foram com o chefe da polícia: “olha, tudo bem, vocês saem pacificamente, dá para negociar”. E os professores: “não, calma, vamos negociar”. Tanto é que foi mantida a sala depois.

Mas essa maneira de como as pessoas, em 1968, agiam, como começavam a assumir posições dentro da Universidade, como tinham esse relacionamento

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com o Regime Militar; tudo isso foi ficando preocupante. Para nós, estudantes, e para algumas pessoas.

Nunca conseguimos em Botucatu caracterizar se tínhamos dentro do câm-pus os delatores. Não houve prolongamento disso. “Não, agora vamos revidar”. Os estudantes, quase de modo natural, defenderam um espaço que existia den-tro do hospital e isso ficou importante depois na criação da universidade. As-sim se criou esse espírito dentro da universidade. Os estudantes já tinham um movimento importante, foi logo depois de Ibiúna, em outubro.

Sobre o Paulo Maluf, houve um movimento contra a falta de verba para a Educação, o funcionamento do hospital, da fazenda experimental. Foi um mo-vimento de reivindicação mesmo e de protesto contra a presença do Maluf no câmpus, porque ele tinha sido indicado pela ditadura. Ele foi para Botucatu e ficou aquele clima: “ele vai para a faculdade, ele não vai para a faculdade”. Foi um movimento mais de estudantes. E ele foi para o câmpus. As pessoas foram lá com folhetos e cartazes protestar contra duas coisas, a Educação e a falta de verbas e contra a presença dele no câmpus. Afinal, ele era um preposto da ditadura.

E, aí, do nada, os seguranças dele começaram a desmobilizar, bater nos estudantes; aí a polícia veio e prendeu alguns. Nós estávamos no hospital, nem estávamos lá, e aí foi desagradável. Ele tinha ido entregar um microscópio.

Eu tinha a percepção, a mesma que várias pessoas tinham. O malufismo era de direita; quer dizer, um movimento malufista era resultado do movimen-to de direita e se identificava com ele. Sem dúvida, uma relação direta com a ditadura. Talvez algumas pessoas que entraram no movimento estudantil ou no movimento docente passaram a entender essa questão da ditadura pelo en-tendimento do “malufismo”, o que era o “malufismo”.

Há pouco tempo eu fiz uma matéria junto com uns alunos aqui do centro acadêmico, por conta de eu dar aula de Bioética. Contava histórias e havia uma menina, presidente do centro acadêmico, a Flora. Ela tem uma história de vida impressionante. Quando tinha uns 8 anos, o pai foi preso e ficou três anos recluso. Era professor do Instituto Tecnológico da Aeronáutica, o ITA, e foi preso porque divergiu do que estava acontecendo. Na época da Ditadura, ela tinha 1 ou 2 anos. O pai morreu há uns três ou quatro anos Ele tinha mais ou menos a minha idade. Hoje ela tem 30 anos, no máximo. O avô dela é o José Goldemberg, que foi ministro e secretário em São Paulo. Ou seja, ela ouvia as histórias do avô, que foi um político, e do pai, que foi um preso político, e se

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sensibilizava quando eu contava as histórias da época da ditadura. Ela se dizia em dúvida sobre qual caminho seguir, o do pai ou o do avô. Eu falei: “ah, você vai ter que achar o seu caminho”.

Os processos

Eu acho que foram tão insignificantes frente a coisas mais importantes. Eu vim pra São Paulo fazer residência. O Chichinho foi preso em 1969, ficou até 1972, se não me engano. Eu ia muito visitá-lo na prisão, junto com outro amigo, o Trajano, que era de Presidente Bernardes. O Trajano tinha feito USP e era muito amigo do Chichinho, cujo nome era Reinaldo.

Enfim, a gente ia muito ao Presídio Tiradentes visitar o Chichinho. Eles tinham uma ala embaixo, onde ficavam os presos políticos. Eles permitiam que a gente ficasse lá um pouco. Eu conheci vários presos lá, era supertranquilo [visitá-los]. Algumas pessoas começaram a sair da prisão e estavam completa-mente perdidas. Tinha um rapaz de Itaoca, o irmão tinha sido assassinado, era um artista plástico. Quando ele saiu, foi para a casa da irmã, a Neide. Então, íamos muito à casa da Neide. Não sei se houve algum tipo de denúncia, mas um dia recebi um papel dizendo para eu ir à Justiça Militar, lá perto da Av. Brigadeiro Luís Antônio.

Fiquei apavorado. Eu tinha uma cunhada, a Regina, que era advogada, ela não estava exercendo advocacia, mas falou: “eu vou lá com você”. Teria ainda a vantagem de ser uma presença feminina na conversa. Eles queriam saber qual a minha relação com várias pessoas. É impressionante como o pessoal tinha as informações. Bom, isso deu um processo, e eu fiquei quase três anos respon-dendo a isso. Depois, quando abriram os arquivos do DOPS, eu fui lá procurar meu nome. Havia muito registro fotográfico, com marcações em vermelho, das passeatas em que a gente ia, com marcação em vermelho.

Aí aconteceu um problema com outro amigo meu, o Lenine Garcia Bran-dão, que foi processado por causa desse nome, Lenine. A Regina foi advogada dele. O Lenine falou: “não, não é nada, poxa vida”. Aí surgiu meu nome, porque na época lá em Botucatu nós do centro acadêmico tínhamos um jornal e nele o Lenine escrevia poesia. Eu era o diretor do jornal. Quinze dias depois, outro processo. Fiquei também uns dois anos respondendo.

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Mas eu tenho vergonha de falar isso, nem gostaria que fosse muito ci-tado, porque é vergonhoso para nós. Que sistema era esse no país em que se pegava um indivíduo que era amigo de outro e ficava dois anos depois respondendo processo?

Unesp, 1985

Quando terminou o movimento [de escolha de reitor] da Unesp, em 1985, foi indicado o Nagle para a Reitoria. Eu e minha mulher, na época, a Sílvia, resolvemos viajar. Ela falou “Nós vamos fazer uma viagem supertranquila”. Fomos fazer uma viagem para o Caribe de navio. Quando chegamos em San Juan, eu falei: “por que nós não vamos para Cuba? Gostaria muito de conhecer Cuba”. Naquela época não havia relações diplomáticas entre o Brasil e Cuba. Enfim, fomos para Cuba. De Cuba, nós iríamos para a Jamaica e depois para o Brasil. Mas houve um problema político na Jamaica e voltamos para San Juan. Pegamos o visto na embaixada americana, pois eu era latino-americano. O na-vio também era americano.

De volta ao Brasil, havia o processo de escolha de reitor na Unesp. Começa-ram a me perguntar o que eu fui fazer em Cuba. Expliquei que foi uma viagem tipo segunda lua-de-mel.

Tem vários amigos que ainda brincam comigo dessa maneira, que eu que tinha ido para Cuba, tinha relações com Cuba e na polícia ficou essa história. Mas para mim isso é um arbítrio muito grande. Imagine, eu estava à mercê de qualquer coisa. Aliás, gostei muito da viagem, tive a oportunidade de assistir o Fidel Castro falando em praça pública. Era um daqueles discursos homéricos, longos que ele fazia.

A Associação de Docentes de Botucatu

Fui presidente da Associação de Docentes de Botucatu. Na Adunesp, eu fiz parte da diretoria do Nilo Odália, uma pessoa admirável. Também fui da diretoria do Quelce, junto com o Tozoni, que era o tesoureiro. Quando fomos para Araraquara, na criação da Unesp, havia duas associações independentes.

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Botucatu recebia as mensalidades dos seus associados e a Adunesp criou uma mensalidade. Nós não contribuíamos com a Adunesp. Na gestão do Nilo, não tinha isso. Na gestão do Quelce, começou a haver uma contribuição da associa-ção dos docentes para a Adunesp.

São Paulo, 1993

Comecei a vir muito a São Paulo a partir de 1993. Essa história de atuação política estava meio atenuada, não gostava mais de participar. Então acabei recuperando essa participação dentro da universidade e dos movimentos polí-ticos, quando ingressei no CRM. Era outra forma de trabalhar, de você partici-par. Também voltou a questão da participação partidária, havia remanescentes do partido comunista e tive uma militância no PT.

Quando eu vim para a USP, eu estava meio lento, pessimista, desanimado com a questão da vida universitária, com os rumos da Unesp, uma universida-de muito burocratizada. Comecei também a me distanciar das pessoas; alguns amigos morreram. Quando vim para a USP, percebi que ela tem um detalhe, ela é uma universidade extremamente exigente. Ela pega pelo lado, por exem-plo, da pesquisa, do conhecimento. Eu acho que em cinco anos aqui publiquei mais do que nos 15 anos em Botucatu. É exigência científica mesmo.

A USP dá muito prestígio pra você. Isso realmente acontece. Eu converso com colegas meus, de todas as áreas. Quando eu cheguei aqui em 2000, o pro-fessor Giovane Serra me chamou e falou: “Reinaldo, muito bom, meus cumpri-mentos, veio para a USP, que bom, você fez o concurso e sei que o concurso foi difícil”, desenhou um montão de coisa. “É o seguinte, Reinaldo”, e chama uma menina: “essa aqui é fulana, nossa assessora de imprensa. Tudo o que chegar aqui na USP sobre Bioética ela vai passar para você”. É outro mundo.

Eu tinha dado uma entrevista no programa do Jô Soares sobre terminalida-de de vida, que é um tema que eu trabalho também. No dia seguinte, tinha uma demanda. A menina: “professor, o Estadão está fazendo uma matéria, o senhor pode falar com eles”? Tem mais, por exemplo, um congresso sobre Medicina Fetal, tudo organizado por um sujeito aqui desta área, que eu nem conheço, diga-se de passagem. Ele queria colocar uma discussão ética dentro, e sabe o que ele faz? Ele perguntou para a assessoria de imprensa da USP quem deveria

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ser procurado. E o repórter telefonou para mim. Essa dinâmica que existe aqui é bem interessante.

Voltando à redemocratização da Unesp

Discutindo a luta, a participação dos professores, o câmpus de Assis é con-victo de que a eleição do professor Quelce teve grande repercussão, por exem-plo, em Botucatu.

Tem um detalhe naquela história que para mim é emblemática, aquela fo-tografia em Assis, quando a polícia invade, depois foi feito disso um cartaz, com a mensagem: “toda vez que os justos gritam, um carrasco vem calar”. Eu tenho dois cartazes desse. Aquilo foi muito motivador, foi esparramado para a Universidade toda, serviu como força motriz, superinteressante...

Eu viajei por todos os campi da Unesp com o professor Saad, com o Nilo Odá-lia, o Zé Ênio. Dormíamos no mesmo hotel às vezes e íamos para as discussões. Na USP não acontecem essas coisas, nunca aconteceu. Aquele foi um momento impressionante, a gente entrava junto, teatros lotados de professores e alunos.

Pois é, onde estão os professores?

A diferença no discurso era mínima. Tinha até uma coisa que eu achava diferença e falava para eles: “mas, Saad, precisa corrigir isso, vamos mudar esse discurso nosso”. O Saad vinha muito com aquela história: “não, eu estava mui-to bem, mas as pessoas vieram me chamar para fazer esse movimento. Eu, na verdade, eu não quero ser reitor, não é meu plano de vida atual ser reitor, mas eu acho que é importante colaborar com a democracia”...

Eu tinha inventado uma frase ótima com ele, eu chegava num determinado lugar e falava assim: “nós estamos aqui de peito aberto, o que nós queremos é oxigenar a universidade”. São duas expressões que eu tirei da cirurgia cardíaca, quer dizer, abre o peito para as pessoas verem o seu coração e a oxigenação da universidade. O Nilo, não, ele trazia um discurso mais político: “estou queren-do ser reitor, estou aqui competindo com o professor Saad porque eu acho que a universidade deve mudar, ela tem um destino”... Acabava ficando muito in-

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teressante porque depois que o Saad dizia isso, ele começava a falar o que seria uma universidade de peito aberto, oxigenada. Ele trazia a questão da pesquisa, a experiência dele na Fapesp. O Nilo trazia a experiência política dele.

Os dois discursos entravam um no outro, se complementavam. Quem as-sistia pensava: “qualquer um desses pode ser reitor; essas são as pessoas que serão o nosso reitor”. Acontecia muito de alguém se levantar e falar: “indepen-dentemente do resultado dessa consulta, é possível que os dois se comprome-tam a colocar o outro como vice, caso for eleito”? Era fantástico.

O Nilo era ótimo nesse aspecto. Ele falava: “não, eu estou me candidatando a reitor, entendeu? Eu quero ganhar para ser reitor, mas o professor Saad é uma pessoa que seguramente vai participar da minha reitoria”. Eu dizia para o Saad que ele tinha que falar assim também. Mas o Saad era muito bacana, a postura dele era interessante, e dispunha como acadêmico, diferentemente do Nilo.

Eu tenho saudade, um sentimento muito gostoso que eu tenho em relação a tudo que aconteceu comigo, voltando a essa coisa de um depoimento pessoal. Para mim foi muito enriquecedor, aprendi muito sobre universidade, conheci pessoas incríveis na minha vida, só a universidade proporciona isso.

Eu tenho essa ideia também aqui na USP, na Faculdade de Medicina. É muito claro isso. Você cruza no corredor com uma pessoa que ontem estava no jornal porque operou o presidente da República, e o tratamento que há entre as duas pessoas é universitário, de igual para igual. São amigos, são colegas. Médicos, colegas de outros médicos. Eu digo: “poxa, soube que ontem você operou fulano”. E a pessoa fala como médico: “Pois é, uma cirurgia difícil, foi complicado descolar não sei o quê, mas foi tudo bem. Aliás, quem estava me auxiliando era o fulano, um senhor cirurgião”... Fica falando assim. Aí chega outra pessoa, ficamos conversando, vamos tomar um café. Esse espírito uni-versitário é que mantém a universidade viva, ativa.

É o espírito universitário que está morrendo.

Isso tem que ser resgatado. Nós estamos perdendo um pouco disso. Em algumas faculdades, essa relação com aluno é interessante. A faculdade de Me-dicina tem uma relação um pouco diferente, por exemplo, do que seria a facul-dade de Filosofia, pois, na verdade, os alunos da Medicina são muito identifi-

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cáveis, no sentido de que serão médicos, cirurgiões, que irão fazer uma cirurgia plástica amanhã ou depois. Por que eu digo isso? Porque turmas se passaram e um professor viu que aquele aluno que se tornou cirurgião plástico manteve a relação de amizade com ele. Trinta anos se passaram e o sujeito pega o telefone e fala: “professor, é o seguinte, amanhã eu vou operar uma pessoa e tenho dú-vidas, qual a melhor técnica”?

Em algumas outras áreas eu vejo que isso não acontece. Esse vínculo você não vê em outros cursos e é ruim isso. Não obstante, a faculdade de Medicina também tem coisas complicadas. Eu tenho uma aula, projeto a fotografia do professor Euryclides de Jesus Zerbini, um mito na nossa vida; ele fez o primeiro transplante de coração. Ele tinha 75 anos, o homem estava operando. Chegava às 7 horas da manhã, operava três ou quatro pacientes com aquele amor que ele tinha pelo que fazia, pelos doentes; era um homem incrível. Perguntei para as pessoas: “vocês sabem quem é essa pessoa”? A classe não sabia. No Instituto do Coração da USP, onde eles fazem ou tinham feito estágio, tinha um enorme painel com a foto dele. Um colega nosso que é de São José do Rio Preto tem lá um grupo na internet, “alunos do professor Zerbini”.

Eu lembro de três mulheres fantásticas que conheci na Unesp, as adorava. Uma era a Eliete Safioti. Recentemente houve um debate no CRM sobre en-velhecimento, eu coordenava a mesa e, de repente, ela levantou lá no fundo e começou a falar sobre vida urbana, envelhecimento. Eu, com os óculos meio ruins, falei: “não é possível que seja a Safioti”. Isso foi há uns três ou quatro anos. Ela faleceu recentemente.

Quando ela terminou a pergunta, eu falei: “professora Eliete Safioti, eu gos-taria de convidar a senhora para fazer parte da mesa”. Enquanto vinha, eu fui falando sobre ela. Eu admirava muito aquela mulher.

A outra é a Maria Conceição D’Incao. Além de ser uma mulher lindíssima, eu ficava apaixonado pelas coisas dela. Voltei a encontrá-la várias vezes aqui em São Paulo, mas depois desse movimento da Unesp não a vi mais. Tinha ainda a irmã dela, que estava em Marília, a Maria Angela D’Incao. Saíamos de Botucatu para assisti-la. Lembro de um seminário dela sobre Florestan Fernan-des. Ela ainda estava casada com o Trajano.

“Isso é universidade”! Discutia-se naquela época se era possível você fazer uma universidade mesmo com câmpus assim separado. Sim, é possível fazer isso. Mas era preciso quebrar esse esquema meio burocratizado e elas conse-

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guiam romper. Muitos anos depois eu a encontrei num avião. Ela ia para o Amazonas, ia morar lá. Ela me deu um livro dela sobre índios. É uma pessoa incrível. Vou começar a chorar daqui a pouco, esse pessoal me impressionou muito na minha vida. Bom, eu era da Medicina e via essas pessoas das Huma-nas, comecei a ter esse contato maior, e pensei: “poxa, essas pessoas são incrí-veis”. Tem muita coisa boa na Universidade.

Valeu a pena ir para a universidade?

Aquilo que eu até já falei, né, eu sou uma pessoa que fiz universidade a vida toda, vou me aposentar daqui alguns anos e tal. Me emociono até hoje com isso. Apesar de todas as lutas, as dificuldades, os altos e baixos, eu não faria outra coisa na vida a não ser essa vida universitária. Ser professor, ensinar, pes-quisar e fazer com que essa universidade tenha um contato mais rápido, mais direto com a sociedade. Eu não tenho a menor dúvida quanto a isso. Faria tudo outra vez, como diz a música do Gonzaguinha: “eu faria tudo outra vez”. Eu faria tudo... igualzinho!

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DEPOIMENTO 10

Antônio Luiz Caldas Júnior

Hoje é 12 de setembro de 2013, estamos no Departamento de Saúde Pública da Faculdade de Medicina do câmpus da Unesp de Botucatu, com o professor assistente doutor Antônio Luiz Caldas Júnior, que atualmente também é vice-prefeito de Botucatu. O professor teve uma importante atuação nos episódios que envolveram a violação dos direitos humanos na Unesp durante a ditadura civil e militar e vai nos dar um depoimento a respeito.

Na Faculdade de Medicina de Botucatu

Cheguei a Botucatu em 1975, ou seja, antes da Unesp. Vinha da Escola Pau-lista de Medicina, em São Paulo. Ou seja, vivi o movimento estudantil

num período pouco glamouroso e muito duro. As pessoas falam com certo orgulho do movimento estudantil do final dos anos 1960, aquele período de repressão e de lutas. Mas essa parte mais festiva, se é que se pode dizer assim, perdeu totalmente essa face num período muito difícil. Eu tive um contato por meio de colegas médicos, principalmente, e estudantes, me informando que existia em Botucatu uma faculdade de Medicina, onde se respirava um clima mais ameno, mais agradável. Especialmente na área de Saúde Pública, a área em que eu queria me especializar.

Surgiu daí a motivação de ir para Botucatu. Essa cidade, onde existia um instituto isolado, a Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu, apresentava uma possibilidade de ação acadêmica num ambiente mais favorá-vel do ponto de vista das relações políticas. Era uma faculdade mais nova, que tinha motivado a vinda também de muitos professores com esse compromisso

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democrático, especialmente da Faculdade de Medicina da USP, da EPM e da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Esse era o cenário que se apresentava e foi o que encontrei em Botucatu. Professores que militavam politicamente, na vida universitária, estudantes mobilizados, uma situação bem diferente do ambiente que eu tinha na minha faculdade, embora lá tivesse militado politi-camente durante os seis anos de curso.

A criação da Unesp

Em 1977, eu não estava em Botucatu porque fui fazer o segundo ano de residência médica em São Paulo. Foi nesse período que surgiu a Unesp e se sucederam muitos fatos negativos marcantes na história da instituição. Alguns eu acompanhei de forma testemunhal e outros por informação, porque eu era vinculado à instituição mesmo estando em São Paulo.

Sempre tive militância política, então punha um olhar político nesses fatos da instituição. O que mais chamou atenção nesse período foi a forma como a Unesp foi criada, ou seja, de maneira autoritária, com absoluto desrespeito às opiniões divergentes.

O governo do estado de São Paulo promoveu a criação de uma universida-de. Foi um parto difícil. É uma comparação meio grosseira, mas é quase um parto de alguém que foi estuprado: criança nasce, vira filho; então a Unesp hoje é uma universidade querida de todo mundo, mas ela foi gerada de forma meio bruta. Muita coisa de ruim aconteceu sem que as pessoas fossem ouvidas. Em Botucatu e em toda a Unesp.

Uma história de cursos desmantelados, professores desterrados, mudados de município por ofício, enfim, todo tipo de desmando que eu pude acompa-nhar na Universidade. O professor Jorge Nagle, de quem tive o privilégio de ser aluno em curso de pós-graduação, arrepiava os alunos dizendo: “a universida-de sempre é conservadora”. Ele demonstrava, e eu acredito no professor, com sua formação política, que “a universidade tem uma velocidade de mudanças, mas outros setores da sociedade são a vanguarda, não a universidade”.

Isso de certa forma protegeu, digamos assim, a USP e a Unicamp de algu-mas investidas da Ditadura. Porque alguns professores, embora fossem conser-vadores no ponto de vista político, eram também conservadores no sentido de

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não admitir uma ingerência indevida da Ditadura Militar e Civil que havia na universidade. Podiam ser pessoas conservadoras, mas diziam: não, a universi-dade não pode participar disso.

No caso da Unesp isso não aconteceu. Então a Unesp foi vítima, na sua criação, de todos esses desmandos, de departamentos criados e fundidos sem nenhum critério, unidades também criadas assim, atendendo ali a um misto, a uma conivência entre as determinações políticas e certos interesses menores de grupos de pessoas.

Para que o processo sobrevivesse era necessário encontrar esse tipo de apoio, e algumas pessoas trocavam apoios por favorecimentos pessoais, aca-dêmicos, carreiras universitárias que se elegiam a toque de caixa. O sujeito era doutor, dali a alguns meses era livre-docente, daqui a pouco era professor titular em tempo recorde. E daqui a pouco o sujeito era diretor de unidade.

Eu vivi um período da Unesp que não era mais o período cruento da re-pressão política, de prisões e de perseguições, inclusive de mortes de alunos. Na época que não era Unesp, havia os institutos isolados. Eu peguei um período em que esse efeito autoritário e arbitrário da Ditadura se expressava muito mais nas relações institucionais, muito menos nas prisões ou perseguições policiais.

A cumplicidade com a repressão

Gosto de dizer que a universidade, diferentemente de outras instituições no Brasil, encontrou no seu próprio seio os agentes desse processo repressivo, ditatorial. Certas instituições – talvez o exemplo sejam os sindicatos, as esta-tais – eram dirigidas por interventores, porque muitas vezes não se encontrava, dentro do corpo daquela instituição, pessoas que se dispusessem a violentá-la. Um trabalhador que assumisse a presidência do sindicato contra os seus com-panheiros de categoria profissional. Então, colocavam lá um interventor. Na universidade, salvo exceções, os dirigentes nesse período eram professores, eram pares, mesmo no movimento estudantil.

Logo que cheguei a Botucatu, houve um episódio muito curioso. Nós tí-nhamos um centro acadêmico com grande tradição de lutas, o Centro Acadê-mico Pirajá da Silva. Ainda tem esse nome, mas hoje é só da Medicina. Na épo-ca havia apenas uma faculdade, a FCMBB, que englobava todos os cursos. Foi

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fundado pela direção da faculdade um diretório acadêmico. Alugou-se uma casa e um mobiliário. A FCMBB propiciou a criação desse diretório. Quem era a diretoria? Eram estudantes. Não eram elementos externos à instituição, eram da própria instituição. Isso era algo que criava um ambiente de acirramento muito grande, de disputas dentro da faculdade.

O tempo passou, cada um com as suas motivações – era um período com-plicado. Difícil julgar, pinçar pessoas, dizer: “esse cara, aquele cara...”. Mas o movimento geral era esse. Muitos professores argumentavam, se valiam da teo-ria do “menos pior” ou “do mal menor”. Valiam-se da ideia de dizer: “eu assumi aquela função porque poderia ter sido pior ainda”. Esse é um argumento histó-rico, difícil de descartar.

A ditadura

Até no cárcere existia isso: tinha o torturador e tinha o que batia menos. Dentro da faculdade nós tínhamos também pessoas que assumiam essa postura, de ser uma via “menos trágica” do que a outra. Esse era o argumento, a defesa que hoje é apresentada. Tem gente que ameniza nossa ditadura, dizendo que aqui foi mais tranquilo – que poderia ter sido como no México... – a “ditabranda”!

Quando fiz no facebook uma homenagem ao Salvador Allende, um sujeito anticomunista que conheço aqui coloca: “lá mataram dez mil, mas o Fidel Cas-tro matou cem mil”. O cara ainda quer arrumar uma desculpa para o Pinochet. É a chamada “ditabranda”, que poderia ter sido pior.

O clima do país era esse. Depois de um período de acirramento da repres-são na época do Médici, houve uma proposta objetiva de transição feita pela Ditadura que era a tal “abertura lenta e gradual”, do Geisel. Era um aceno à sociedade de que era possível esse período de exceção aqui no Brasil ir se desa-celerando lentamente, por meio de pequenas concessões. Tivemos aqui um di-tador, o João Baptista Figueiredo. Os jornais publicavam charges, na TV havia quadros humorísticos, de chacota, coisas que são muito comuns nas ditaduras. Quer dizer, o Figueiredo viveu um período em que ele era um ditador, com leis de exceção, depois veio a Anistia.

Ou seja, o Brasil viveu uma situação muito sui generis no governo Figuei-redo: tinha um ditador, mas já não havia mais prisões, tudo se amenizou. No

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período Geisel, não; ainda ocorreram mortes, muitas prisões e o Congresso fechado. No Figueiredo funcionou com o Congresso aberto, ocorreram as elei-ções de 1982, vencidas pelo PMDB, a reorganização do movimento sindical, a fundação do PT, o Lula, greves, tudo isso dentro de um regime ditatorial.

Esse modelo de transição lenta e gradual de certa forma também aconteceu dentro do ambiente universitário, em que se tinha uma ditadura institucionali-zada. Nada se fazia à margem da Lei. Tudo era aprovado no Conselho Univer-sitário, nas congregações. Não eram atos de exceção.

Na época do Figueiredo, não teve nenhum ato institucional porque o Fi-gueiredo era ditador na forma da lei. Fizeram uma constituição adulterada em 1969 e ele governava (não mais no regime de exceção) porque o AI-5 havia sido revogado. Era um ditador institucionalizado. Dentro da Universidade era a mesma coisa. Nós tínhamos um estatuto que permitia coisas absurdas, mas, como a Unesp foi concebida dentro da Ditadura, ela tinha um estatuto que admitia que tudo aquilo era feito dentro da Lei. Ninguém vai dizer “era um ato de exceção, de arbítrio”. Não era arbítrio! Era a ditadura normatizada e institu-cionalizada que nós tínhamos na Unesp.

O desgaste da ditadura na sociedade e na universidade

Isso foi ficando em desacordo com o ambiente geral do país. Especialmente a partir de 1982, com a vitória esmagadora da oposição nos governos estaduais. A eleição de 1980 havia sido adiada, seriam eleições municipais. Os mandatos foram protelados. Isso criou um grande impasse, uma situação de perplexida-de, antes do movimento das “Diretas Já”, porque havia falta de sintonia entre a manifestação explícita da sociedade brasileira e o regime de exceção que nós vivíamos aqui. Era o menos mal também, porque diziam “não, o Figueiredo era horrível, mas se fosse o grupo do general Sylvio Frota...”. Sempre existiu a ideia de que havia militares duros que poderiam ser piores que o Figueiredo. Isso servia quase como um “guarda-chuva”. Cada um com a sua cara-de-pau.

Eu vi uma vez o Médici dando uma declaração dizendo que “no governo dele nenhum deputado foi cassado”. Então, como falavam que ele era um dita-dor? É verdade. Se você observar, o general Costa e Silva cassou muita gente e

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fechou o Congresso. Mas voltou a haver cassações na mão do general Ernesto Geisel. Cada um tem o seu critério.

Na Unesp, foi-se criando uma total dissintonia entre uma instituição uni-versitária, que se tornava anacrônica do ponto de vista político. O estado de São Paulo e o Brasil afora, fazendo eco com as palavras ‘sábias’ do professor Jorge Nagle: “... essas ilhas de autoritarismo dentro da universidade”. Isso parecia uma afronta, uma vez que as universidades nos anos 1960 e 1970, muitas vezes, se constituíram nas ilhas de resistência à Ditadura, com muitas vítimas inclusive.

O governo de Franco Montoro

Nós tivemos a felicidade de em São Paulo termos um governador como o Franco Montoro, que era uma pessoa dinâmica, descentralizadora. Analisando a história, acredito que o Montoro foi um tremendo governador, um homem de coragem política para o momento que se vivia. Às vezes ele era criticado, mas desempenhou um papel muito importante. Tínhamos um governo de estado democrático, progressista, com a Saúde e a Educação avançando, a adminis-tração pública se reformulando, processo de descentralização pela criação dos Escritórios Regionais de Governo, reforma nas políticas sociais e nas atividades meio do Estado, nas finanças, tudo.

O movimento estudantil no final dos anos 1960 e durante os anos 1970 tinha na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a SBPC, um espaço de expressão democrática, talvez a única oportunidade na qual alguém ousaria falar que a Ditadura era uma ditadura. Apenas como exemplo, eu conheci a alta direção do PCdoB, partido ao qual eu era filiado havia muitos anos, em uma reunião da SBPC, em 1982, em Campinas. Naquele local poderia haver o se-cretário geral de um partido proscrito. Era a ditadura da época do Figueiredo. O sujeito vinha lá e se apresentava como o secretário geral do partido. Onde? Dentro da universidade, numa reunião da SBPC. Uma mesa-redonda sobre as-suntos políticos à qual ele poderia ir e se manifestar.

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Ecos da ditadura na Unesp

A direção da Universidade era conservadora. Aí veio a Unesp, que tinha uma tradição, pela forma como foi criada. Tínhamos tido uma sucessão de reitores, especialmente o primeiro reitor, o Luiz Ferreira Martins, e depois o professor Armando Otávio Ramos – aliás, saiu de Botucatu – que governaram a Unesp com mão-de-ferro. Cabe à história julgá-los, mas foi um período de mão-de-ferro, embora governassem “dentro do institucionalizado”, um absur-do que nós sabíamos.

Os mecanismos, mesmo de eleição, eram muito complexos, de tal forma que as eleições sempre eram como era, aliás, o colégio eleitoral – o presidente da República era um general não por acaso – foi montado para ser daquele jeito. Os concursos, as representações nas congregações, tudo era feito de um jeito que garantia esse conservadorismo. Que não era um conservadorismo, sobretudo político, mas era a dominância, no caso da Unesp, uma universidade dispersa, desses grupos políticos.

A USP tem um coração, que é a Cidade Universitária, embora tenha as Fa-culdades de Medicina em São Paulo e Ribeirão Preto, a Faculdade de Direito, a Agronomia em Piracicaba, mas tem aquele coração, na Reitoria. E havia muitos poderes locais. Isso é um diferencial nosso com a USP.

É lógico que tem as unidades, mas aqui não eram só unidades; havia unida-des, inclusive geograficamente distintas, com histórias distintas. [...] Dentro de cada unidade havia esses micropoderes, e, na verdade, havia ali uma congrega-ção de interesses, de reciprocidades. Alguns até de caráter político. Era um go-verno de exceção, um perfil ideológico, de direita, digamos assim. Mas muitas vezes de interesses menores, interesses de grupos em se manter no poder e as benesses que isso trazia. Essa era nossa Unesp.

Quando chegou em 1983, foi feita uma reunião em São Paulo de profes-sores universitários, mas não eram quaisquer professores. Eram estudantes, funcionários e professores que tinham vinculações políticas com o movimento democrático. Alguns nos partidos legais, como PT, PMDB, PDT, PTB e o PDS, ex-Arena. Mas muitos deles com vinculações ou atuais à época, ou pretéritas com organizações de esquerda, algumas até clandestinas.

Recordo que em Botucatu, em meados de 1983, foi feita uma reunião das entidades e produzida uma carta em manifesto conclamando a Unesp a um

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processo de democratização. Já começava a história das diretas para presidente. Dois movimentos havia no Brasil: eleições diretas e constituinte. Esse manifes-to teve uma presença importante de Botucatu e de outras unidades, pois isso nasceu aqui, nós apresentamos em São Paulo. Eu participei diretamente da ela-boração deste manifesto, era um documento interessante, bem fundamentado: o Brasil se democratizava, e nós?

Nós fomos para trás do Figueiredo, que era um ditador. Nessa reunião, realizada ali no subsolo da antiga Fatec, no antigo prédio da Escola Politécnica da USP, na Av. Tiradentes, então uma unidade da Unesp, se reuniu um grupo de umas 20 ou 30 pessoas, que lançaram um manifesto à comunidade uni-versitária da Unesp. Ali havia pessoas com vinculação política e professores, democratas sem nenhuma vinculação. Tinham essa proposta: como se apro-ximava a eleição de reitor, marcada para 1984, que a comunidade universitária realizasse um processo de consulta, indicasse um nome da comunidade ao Conselho Universitário.

Isso ganhou grande projeção em todas as unidades da Unesp. Outras uni-versidades, pelo Brasil afora, passavam por movimentos semelhantes, mas a Unesp foi uma das primeiras a realizar uma eleição desse porte. Mas havia regras: os candidatos se inscreveriam e ocorreria a eleição.

A Adunesp e os centros acadêmicos na eleição direta para reitor

Participaram também a Adunesp, com suas representações regionais e algumas associações de docentes independentes, diretórios e centros acadê-micos, algumas organizações de funcionários – não havia ainda o Sindicato dos Trabalhadores da Unesp, o Sintunesp, pois durante a ditadura funcionário público não podia se sindicalizar. Essa reunião era um encontro de lideranças e criou-se um movimento, com um comando. Começaram a aparecer nomes e dois deles ganharam destaque, logo de cara, embora outros candidatos tenham se manifestado: os professores Nilo Odália, de Araraquara, e William Saad Hossne, de Botucatu, quem ganhou a eleição.

O Saad era um professor, um cirurgião que foi dirigir uma faculdade de outras áreas – Saúde, Fisioterapia, Enfermagem –, mas sobretudo ele era uma

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pessoa que tinha grande experiência na FAPESP e fez uma importante condu-ção democrática em São Carlos, na UFSCar, que havia sido muito bem avaliada do ponto de vista acadêmico e democrático. Ele foi um nome que correu a Unesp, poderia trazer para cá muita experiência. Sem falar do Nilo, professor universitário com tradição de militância política.

O professor Armando Otávio Ramos era vice reitor do Luiz Ferreira Mar-tins, que tornou-se secretário da Educação. Então assumiu como vice em exer-cício da Reitoria. Isso permitiu que ele depois fosse reconduzido na Reitoria, na gestão seguinte, mesmo com o estatuto não permitindo. O Armando era uma pessoa com muitas habilidades. Ele então falou: “não, eu vou fazer uma consul-ta”. E fez aprovar no C.O. uma resolução instituindo a consulta, com suas pró-prias regras. Ele achava que com isso iria esvaziar a consulta da comunidade, mas não foi o que aconteceu. No final de 1983, início de 1984, foi feita a con-sulta e ganhou a dupla Saad e Nilo, com uma expressão muito grande de votos.

Foi uma vitória importante do ponto de vista de números e de unidades universitárias. Muito expressiva. Quando a consulta do Armando foi às ruas, já tínhamos um candidato consagrado pelo voto, que era o professor Saad. O Nilo teve a dignidade de, assim que saiu o resultado, declarar apoio ao Saad. Eu lembro muito bem das palavras do Nilo: “a partir de hoje o meu candidato é o professor William Saad Hossne; ele é o candidato da comunidade universitária, alunos funcionários e docentes”.

Fomos para a eleição oficial, que permitia votar em seis nomes. A ideia era sugerir ao C.O. a lista sêxtupla, como era na ocasião. O professor Saad ganhou a eleição oficial de modo arrasador. A indicação das entidades era que se votasse só no professor Saad. Mas muitos professores, alunos e funcionários fizeram homenagem e também sufragaram o nome do Nilo, que teve também uma boa votação. Foi quase uma homenagem, embora ele próprio dizia: “não vão diluir voto, não votem em mim, votem no professor Saad”.

Não havia dúvida nem na votação das entidades nem na votação oficial de que a pessoa que a Unesp queria para conduzi-la nos quatro anos seguintes era o professor Saad. Aí se realiza a reunião do C.O., em 1984, que foi o escândalo do autoritarismo. Quem estava ali? Pelegos sindicais, pessoas incautas, um coi-tado de um sujeito despolitizado que é enganado? Não, ali estavam professores universitários, professores titulares, com toda a pompa universitária, e ali se manifestava a perpetuação da ditadura dentro da Unesp.

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Acho que até o presidente Figueiredo a essa altura queria cair fora da jo-gada, não aguentava mais. Lógico, teve a eleição, colégio eleitoral, não passou eleição direta, mas aí teve o Tancredo. O Sarney, que era o presidente do PDS, fez uma aliança com o MDB. Ou seja, o país queria avançar rumo à democra-cia. Na Unesp, o contrário. No C.O., quem foi lá no dia? O Fleury, o torturador, ou algum general? Não. Quem votou foram professores, alunos e funcionários da Unesp. Tiveram a coragem de fazer uma lista, em que não figurava o nome do professor William Saad Hossne. Um escárnio.

O governo não aceitou isso, mas o principal argumento do governador Mon-toro era o seguinte: “olha, quem bolou essa eleição foram vocês! Agora vocês me colocam na saia justa de ter que escolher um nome que não é aquele que foi o mais votado?”. Se tivesse ocorrido só a consulta, alguém poderia dizer “essa con-sulta é informal”, mas foi o C.O. que fez. Havia uma corrente dentro da Unesp que dizia que ele estava cometendo uma ilegalidade em não escolher e ele dizia “não”, porque o próprio C.O. fez a consulta e descartou o nome mais votado.

É lógico que o C.O. tem a autonomia, mas, então, para que fez aquilo? Uma farsa, uma palhaçada? O mais cômico da história é que havia um professor, que eu não conheço, de nome Saad, que foi incluído na chapa do professor Arman-do, imagino eu, para gerar confusão. A votação do C.O. não era por chapa, mas por eleições sucessivas.

Como que se fazia a lista sêxtupla? Fazia-se uma eleição. Cada um votava em um nome. Apurou-se, quem ganhou? Fulano. Agora vamos para o segundo nome. Algum professor poderia dizer “olha, eu tenho meus compromissos, eu quis votar no professor X, no professor Y”. Mas cada um daqueles professores tiveram seis oportunidades de colocar o nome do professor Saad. Eles não pre-cisariam tê-lo colocado na primeira, mas que pusessem na última. Não tiveram a dignidade, nem de colocar o homem mais votado no sexto lugar.

Isso foi um fato grave de desrespeito à vontade das pessoas, uma mácula. Essa eleição talvez seja o que de mais grave aconteceu em todos esses anos. Teve professor perseguido, transferido, teve tudo isso. Esse fato eu acho que foi o mais grave porque não foi um ato de um diretor, de um reitor; foi de um conjunto de pessoas. Quando você diz: “ah, o reitor deu uma canetada”, tudo bem, é um ato, é um ditador, é um arbitrário. Mas, não, foi a instituição, foi uma decisão do C.O. O Conselho Universitário [atual] deveria fazer uma reunião como foi feito há poucos dias [em Brasília]: o Congresso Nacional devolveu aos deputados

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comunistas os seus mandatos, de 1947, que tinham sido cassados! Eles foram cassados porque o PCB teve seu registro cassado. O Congresso se reuniu e esses mandatos felizmente foram devolvidos agora, em memória: Carlos Marighella, João Amazonas, Maurício Grabois, Gregório Bezerra. Eram todos esses e outros deputados federais que compunham a bancada. O Prestes, senador.

Para que serve isso? É a reparação histórica. De vez em quando o papa pede perdão por um negócio que aconteceu com os judeus em mil duzentos e não sei quando… O C.O. deveria se reunir na Unesp e pedir desculpas públicas à sociedade brasileira. Não os que estão lá hoje, mas a instituição, pelo que foi feito de desagravo. O professor Saad deveria ser chamado lá na sala do C.O. e receber um “título de reitor” nessa condição. Ele não vai assumir, como os deputados não assumiram.

Aquilo para mim foi um reflexo patético da ditatura na Unesp. Em uma universidade isso é uma vergonha. Se fosse em um clubinho da esquina, aceitá-vel, mas em uma universidade? Essa novela se prolongou até 1985. O Tancredo havia sido eleito, o país respirava novamente a democracia e a Unesp persistia [na ditadura]! Ridículo, patético!

O governador Montoro teve um papel absolutamente nobre porque ele sa-bia que, se pusesse um nome fora da lista, ele estaria maculando a autonomia universitária. Mas ele dizia: “se não tiver o nome do Saad na lista, eu não aceito a lista”. Aí foi feita uma negociação, manobras que levaram meses. Começaram a aparecer candidatos, as “terceiras vias”. Houve um grande acordo costurado politicamente. Até o professor Saad percebia que nós não poderíamos entrar numa guerra fratricida. A essa altura, o Saad era diretor da FMB [Faculdade de Medicina de Botucatu]..., para se ver como o tempo passou.

O professor William Saad Hossne

Eu viajei muito com o professor Saad nesse período, em que ele andava pelas unidades palestrando. Eu e outros professores nos revezávamos para levá-lo em debates nos diversos campi. Um dia, um professor de Botucatu, o Reinaldo Ayer de Oliveira, hoje na USP e diretor do Conselho Regional de Medicina, e eu fomos conversar com uma pessoa que poderia nos dar um apoio político. Essa pessoa era o senador Fernando Henrique Cardoso. FHC tornou-se senador porque ele

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era o primeiro suplente do Montoro, eleito em 1978. Ele falou “fiz meu doutorado em Sociologia nos anos 1950 na Faculdade de Filosofia da USP e, como precisava trabalhar com dados quantitativos, me indicaram um especialista em estatísticas na Faculdade de Medicina, o cirurgião William Saad Hossne”.

Hossne era cirurgião, veio da USP para Botucatu, organizou a pós-gra-duação, a primeira na Faculdade de Medicina. Foi um dos pioneiros e daqui foi elevado a essa condição de reitor da UFSCar por um processo democrático. Ele não era um interventor. A UFSCar precisava de um reitor com grandeza acadêmica e ele foi cumprir esse papel lá, por opção da comunidade acadêmica. Depois voltou para Botucatu e foi diretor. Alguns anos depois enveredou pela área de Ética Médica, a Bioética, da qual ele se tornou uma autoridade de reco-nhecimento internacional.

Esse é o homem que o C.O. não teve a coragem de por mesmo com a vota-ção que ele teve. Então, eu não vivi na Unesp o período obscuro da repressão. Eu vivi isso na Escola Paulista de Medicina, com pessoas presas, torturadas, mas aqui [na Unesp], não. Aqui eu vivi essa manifestação trágica, se não foi cômica. Foi um resto da ditadura; é quando tudo vai para o campo do escárnio, não tem nenhuma organicidade, aquele “fim de feira” da ditadura, com mani-festações até hilárias. A ditadura, no final dela, na Universidade, dá para fazer uma lista de situações hilárias, ridículas. Um período não menos violento do que era o anterior, mas patético.

Crise na gestão de Armando Ramos e a transição democrática com Nagle

O professor Nagle cumpriu um papel primoroso de transição, um papel meio apaziguador para que fosse feita uma transição democrática, ninguém queria revanchismo, tanto que ninguém foi perseguido. Eu acho que esse grupo de democratas foi condescendente com aqueles que os perseguiram. Nenhum professor foi vítima de processo de retaliação. Alguns inclusive, posso dizer, se “reabilitaram”. Mesmo sem fazer uma reabilitação pública, uma autocrítica pública, se reconduziram à vida acadêmica. Muitos professores, depois, tendo participado desses episódios, conseguiram se recompor e até se readequar à vida acadêmica.

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Após esse período, com os professores Nagle e Landim, que cumpriram muito bem esse papel, foi feito um novo estatuto da Universidade, com reu-niões memoráveis em Araraquara e em Jaboticabal. Foi um estatuto democrá-tico. Está aí a nossa Unesp, com sua grandeza. Mas foi um parto muito difícil, de oito anos de luta. De um início muito conturbado, com todas as consequên-cias que isso teve, de deformidades, algumas até hoje presentes: departamentos criados, dissolvidos; cursos transferidos, professores transferidos... Ainda bem que nós não tínhamos um câmpus avançado na Sibéria, porque senão alguns professores teriam sido enviados pra lá.

Tinha um câmpus avançado, na Antártida, mas nenhum professor chegou a ser mandado para lá, mas passou perto. Pois nós tivemos professores com transferências totalmente violentas. Professores que adormeciam numa cidade e acordavam com o nome no Diário Oficial transferidos para outras unidades, uma violência, uma arbitrariedade total.

O professor Armando simbolizou essa crise na Reitoria. Ele era um bom articulador político. Mas, na verdade, foi um conjunto de pessoas, porque ele não foi um ditador absolutista; ele não foi aquele cara que é “eu e mais ninguém, aqui quem manda sou eu”. Não foi. Na verdade, o Armando era o maestro de uma orquestra conservadora que dirigia a Unesp nesse período. Fica fácil exe-crar [o prof. Armando], até porque ele já faleceu. Ele era uma pessoa que veio da universidade e teve um final de vida acadêmica sumida. Ele foi diferente de outros, como na política nacional: certos elementos que participaram dos go-vernos ditatoriais foram execrados pelo resto da vida. Outros estão aí até hoje, inclusive com cargos importantes.

O Armando permaneceu no comando o tempo inteiro. Em meados de 1984, acabou o seu mandato e o governador não indicou novo nome. Então assumiu interinamente o professor Manuel Nunes Dias. Ele ficou um período, quando houve a transição. O Armando poderia ter se recandidatado inclusive. Talvez houvesse alguma advertência, uma discussão jurídica porque, na verda-de, ele tinha cumprido o mandato. De vice, sim, mas ele assumiu [a reitoria]. É que na Unesp até hoje é assim, quer dizer, o Tancredo morreu, o Sarney virou presidente. O Collor saiu, o Itamar virou presidente. Agora, vamos pegar o período democrático, de normalidade: o professor Durigan, nosso reitor atual, ficou lá três anos, quase quatro anos como vice-reitor no exercício da Reitoria,

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pelo afastamento do professor Herman. O Armando também porque o Luiz Ferreira Martins foi ser secretário.

Mas, enfim: o Armando tinha o comando, ele era o comandante disso tudo – ele assumia esse papel e não se importava se o xingavam ou não. Então, ele era uma pessoa que tinha o comando dessa estrutura e estava à frente, mas era um grupo de pessoas que sustentavam. Era uma federação do autoritarismo porque havia as representações locais em todas as unidades. Havia algumas unidades mais rebeldes, digamos assim, mas era minoria. Na maior parte das unidades tocavam na orquestra do professor Armando, essa é a realidade. Nós chegamos a ter episódios tristes. Eu me lembro pelo menos de uma intervenção de um professor que foi incluído numa lista e não fazia parte da comunidade universitária, se não estou enganado, em Presidente Prudente. Não era bem um interventor porque ele entrou na lista. Dava-se um jeito de colocar a pessoa na lista. Havia procedimentos escandalosos.

A expectativa que a população tem é que a universidade seja um ambiente acadêmico, todo formalista, todo mundo de beca. Essas coisas são próprias de um clube de futebol, um clube de baralho. Infelizmente isso se passou. Os regi-mes ditatoriais, de força, eles tendem a situações bizarras. A história está cheia de exemplos desses. Há uma decadência e se chega num ponto que infelizmente a Unesp teve que passar, mesmo sendo tão jovem na época.

Unesp: repressão e resistência

A criação da Unesp foi de grande relevância. Apesar de tudo, o fato de o governador ter criado a Universidade foi bom historicamente. Mas os institutos isolados, cada um no seu lado, se constituíram em núcleos de rebeldia mais di-fíceis de se debelar e isso estava em dissintonia com o movimento geral, de cen-tralização política que havia no país. Do mando centralizado. A Unesp acabou nascendo assim, nesse clima, entre trancos e barrancos. Tudo isso aconteceu e ao mesmo tempo a universidade se desenvolvia, muita coisa foi feita nesse período. Como muito foi feito no Brasil na época da Ditadura, inclusive coisas duradouras, importantes e relevantes; é um paradoxo. Para a universidade, foi um período difícil do ponto de vista político, mas obras e realizações também foram feitas. Teria que haver uma barganha do poder público, do poder cons-

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tituído com a universidade. Muitas unidades avançaram do ponto de vista de obras e de instalações. Foi um período rico [em construções].

Os institutos isolados também padeciam de uma falta de proximidade com o poder central. Com a Unesp, isso foi garantido pela presença de reitores que iam lá, se colocavam diante do governador e negociavam. Mas essa política de centralização [de verbas] teria sido melhor usufruída [aqui] se a Unesp tivesse sido criada antes, entre os anos 1960 e 1970, quando o rigor da Ditadura era muito maior. Na Unesp, o tiro [da ditadura] saiu um pouco pela culatra, porque essa unidade também aproximou não só as direções, constituindo poder, mas ela aproximou também a comunidade universitária. Todo esse movimento [de resistência] talvez não tivesse acontecido se não existisse a Unesp – cada facul-dade ficaria lá, cuidando de si.

São as contradições. Contradições como o capitalismo: ele vai se desen-volvendo, e se constitui também dentro dele o germe da contestação. Então os estudantes, os professores, os funcionários dos antigos institutos isolados agora adquiriam força, porque eles passavam a pertencer à mesma universidade.

A greve de 1979

Essa consciência foi adquirida pelos professores e pelos funcionários, es-pecialmente em 1979, com uma greve que durou quase 60 dias. Foi uma famo-sa greve do funcionalismo e que nos aproximou, porque até então as unidades eram distantes, por força da Ditadura e desorganização política da sociedade. Essa greve cimentou as relações entre a comunidade universitária da Unesp, pelo menos entre professores e funcionários. Foi a greve dos 70% mais 2000. E o movimento estudantil também. Era o Maluf o governador. Ele deixou os 70% pra lá e deu 2000 para todo mundo, e concedeu um aumento em separado para os professores.

O Maluf foi muito hábil em dividir o movimento. Ficou uma sequela du-rante muitos anos dos servidores técnico-administrativos, acusando os profes-sores de os terem abandonado e traído. Eu participei ativamente dessa greve. Ela teve uma grande importância.

Então a Unesp, por força, foi criada para ter uma reitoria forte, um coman-do forte no ensino superior do interior do Estado. Mas ela tinha dentro dela

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mesmo o germe da organização pela qual foi um exemplo. Esse movimento na Unesp pelo reforma do Estatuto antecedeu qualquer outro no Estado – aconte-ceu antes da USP e da Unicamp. Foi o primeiro ato de rebeldia organizado con-tra esse poder conservador, autoritário que estava instalado nas universidades do Estado e começou exatamente pela Unesp em 1983.

Na verdade a greve de 1979 era uma greve do funcionalismo. Porque na-quela época os professores e funcionários da Unesp eram mais funcionários do que são hoje, porque o nosso aumento era comum. O governador dava um au-mento para todo mundo: Educação, Saúde, universidades. Era o mesmo índice. Depois isso foi fragmentado e hoje então a polícia tem um aumento, o professor tem outro, as categorias de profissionais negociam em separado, como o Fó-rum das Seis e a APEOESP. Aliás, nem existia representação sindical, embora houvesse associações, como a Adunesp. A negociação era mais bruta, era feita como movimento de greve porque não tinha representação sindical. Então os 70% mais 2000 foi uma greve do funcionalismo público do Estado, não foi das universidades. Durou quase dois meses.

A Unesp teve um peso grande na greve, com a adesão dos professores. Foi um fator de fomento, porque tinha funcionário público universitário em Ara-raquara, em Assis, em todas as cidades das unidades, e isso “contaminava” todo o funcionalismo da região. Era um exemplo que era dado pela tradição de re-beldia das universidades. 1979 foi o ano em que a UNE foi refundada e os alu-nos começavam um movimento de reorganização dos diretórios acadêmicos.

A Unesp carregou essa greve no interior. Foi logo no começo do governo do Paulo Maluf, dia 17 de abril de 1979, a primeira greve de grandes proporções no funcionalismo público estadual. Depois do Golpe foi a primeira greve de funcionalismo com essa envergadura institucional. Ela se dava no plano dos trabalhadores, os docentes e funcionários técnico-administrativos.

A visita de Maluf à FMB em 1981

Para não dizer que nunca houve truculência, houve dois episódios que me recordo. Um deles foi uma invasão dentro do câmpus de Botucatu pela polícia, com prisão de alunos, mas não posso falar muito sobre isso, pois não estava presente. O episódio em que fui testemunha ocular foi o seguinte: o Governo

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brasileiro tinha um acordo com a Alemanha Oriental – uma infiltração comu-nista aqui – de troca de café por equipamentos. A Alemanha Oriental produzia alguns equipamentos na área de radiologia e, sobretudo na de microscopia. Em 1981, o Maluf veio a Botucatu entregar os microscópios. Foi feita uma reunião no auditório do Instituto de Biociências com o alto comando das quatro unida-des do câmpus para receber o governador.

O Maluf veio com uma comitiva de ônibus. Havia pouco mais de cem pes-soas no auditório. Do lado de fora, estudantes fazendo manifestação, pedindo mais verbas para a Educação e a defesa do ensino público. Professores estavam juntos, inclusive eu. Auditório lotado, muita gente do lado de fora e, de repente, um dos integrantes de seguranças à paisana da comitiva do Maluf, conhecido por Kojak, irmão do ex-jogador Serginho Chulapa, investiu, com outros “segu-ranças”, contra os alunos e começou uma pancadaria. Os alunos cantavam um antigo samba – “se gritar pega ladrão, não fica um, meu irmão” – e aquilo tinha sido a gota d’água. Os alunos fugiram, todos correndo. Foi pancadaria com o próprio material que os estudantes usavam. Este Kojak tinha se envolvido em outro ato violento, no bairro da Mooca, em São Paulo, dias antes.

O governador saiu por um corredor para chegar ao seu ônibus, que acabou levando uma chuva de torrões. Foi um episódio ridículo, com repercussão na imprensa, pois lembrava aquele na Mooca. Foi muito tenso, por sorte ninguém se feriu. Mas são os retratos da ditadura: um governador eleito indiretamente visitando o câmpus, uma tropa de choque, um pessoal barra-pesada acompa-nhando, tudo muito sinistro. Uma vez nos encontramos, professores e o prefei-to de Botucatu, com o Maluf em Brasília. Ele tem uma empresa em Botucatu, a Eucatex. Lembrou daquele fato: “gosto muito de Botucatu, mas foi uma ingra-tidão, fui lá entregar uns microscópios e jogaram terra, pedra”.

O malufismo e a Unesp

O Montoro entrou em 1983, todos esses episódios que vieram depois não tinham mais o Maluf na história. Não havia o malufismo na universidade. Não foi um governador que determinou que a Universidade fosse daquele jeito. Até porque, quando a Unesp surgiu, nem era o Maluf o governador, ele entrou de-pois. Talvez alimentasse algum ato de autoritarismo, mas eu não diria que era

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decorrente, porque elas estavam antes e depois do Maluf. Aliás, diga-se de pas-sagem, essa greve de 1979 foi feita no período do Maluf.

Então, em minha opinião, o malufismo funcionou, na universidade, como uma desculpa. Então naquele período “ah, era o malufismo”. Sinceramente, o Maluf podia alimentar esse comportamento, mas esse comportamento era da universidade, era da Unesp. Tinha sustentação na pessoa do Maluf. Mas e antes?

O Maluf era um cara cruento do ponto de vista do período que a gente viveu. O Paulo Egydio “era um governador, era um democrata, era o menos pior”. Mas o Egydio foi governador de 1975 a 1978. Foi no governo dele que morreram o Vladmir Herzog e o Manoel Fiel Filho. Vão dizer: “ah, mas isso aí não tem nada a ver”, mas ele era o governador. Foi criada a Unesp neste perío-do com fortes traços de autoritarismo. Muitos dizem que o Paulo Egydio era daqueles que resistia. Há quem diga “mataram o Herzog para por o Paulo e o presidente Geisel em situação difícil”. Mas houve uma grande repressão, por exemplo, na Guarda Civil do Estado em 1975, e o Paulo Egydio tem essa aura de, como se fosse um cara mais da ditabranda, menos ditador que o Maluf. E o Maluf, na Unesp, significou a truculência. Ele a personificou.

O Maluf acabou acirrando a greve de 1979. Foi um momento que o Maluf conseguiu catalisar o funcionalismo. É lógico que havia lá as greves no ABC, o ambiente político era outro. Mas ele tinha o dom, com certas frases, de propi-ciar a unidade de forças tão diferentes. Raras pessoas aqui ficaram à margem da greve, foi uma unanimidade isso aqui. Tanto é verdade que não emanavam ordens da Reitoria para cortar ponto, para punir pessoas. Nada disso aconteceu aqui. As congregações, os diretores ficaram na deles! Alguns mais truculentos. Mas, de uma forma geral, na greve de 1979 quem era força? Era o malufismo. Eu não tenho a menor dúvida de que o Maluf de certa forma acobertou o auto-ritarismo. “Ah, era o Maluf...” não, não era o Maluf; ele tinha agentes aqui que não eram malufistas. Já existiam antes. Mas vestiram esse manto autoritário.

Por mais que a universidade tivesse sido violentada nesse episódio, havia um respeito. Nesse período já não entrava polícia nos campi universitários, não fazia parte eles prenderem professores, estava fora de moda! Maluf em pouco tempo reintroduz isso. Em 1979, aqui foi comprado um caixão para enterrar o Maluf e alguns professores foram conduzidos à delegacia. Foi uma passeata daquelas. Foi apreendido o caixão, o carro do professor e os professores foram todos dar explicação na delegacia. Ninguém foi preso, mas ainda havia um

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clima de resquício da ditadura. Naquela greve de 1979 houve umas 20 passea-tas aqui na cidade. Alguns professores iam negociar com o delegado. Embora emanassem do Maluf ordens para a repressão.

Aquela greve foi exemplar porque foi criado um Comando de Greve, que de fato administrou as faculdades aqui durante dois meses. Os diretores se re-colheram nos atos formais administrativos – hospital, pesquisa – o professor ia lá no Comando..., mas muitas atividades continuaram, porque nós não po-díamos fazer greve para nos prejudicar. Experimentos, atendimento do hospi-tal, quem decidia isso era o Comando. A direção das faculdades tirou o time: “vocês administrem aí a greve”. Foi administrada assim. E o “monstro era o Maluf”. Nossa luta era contra o malufismo. O Maluf tem essa característica de ser polêmico.

Tem um episódio interessante. O Maluf fez uma viagem para o Japão. Lo-tou um ou dois aviões de empresários e professores das três universidades, vá-rios de Botucatu. Foi chamado “trem da alegria” e expôs muitas pessoas que aceitaram ir, porque a imprensa denunciava que foram lá gastar dinheiro. En-tão, de fato, o malufismo teve uma marca importante nesse início da Unesp. Ele depois foi embora e veio o Montoro.

Em São Paulo, com a eleição do Montoro, tudo se amenizou. O Maluf aca-bou sendo, nos últimos momentos da Ditadura, o baluarte – que já não era um militar, era um civil –, que poderia ser o possível presidente do Brasil. Ele sucederia o Figueiredo, seria algo bizarro. Ficava cada vez mais longe o período mais duro, mais cruento, que foi o final dos anos 1960 até 1978. No Estado de São Paulo os municípios, as prefeituras avançavam.

A Unesp na ditadura

Na Unesp houve uma polarização porque ela era muito novinha. Havia muitos professores de esquerda que vieram para cá – eu falo por Botucatu. Pro-fessores que eram perseguidos, que sabiam que lá na USP não iriam prosperar, e que disseram “vamos lá pro interior”. Era quase um exílio aqui. Há muitos depoimentos de professores assim. A universidade se tornava cada vez mais conservadora depois do Golpe. Aqui [na Unesp] tinha um projeto. Não era li-bertário, mas havia um projeto [político]-pedagógico.

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Dentro do projeto político na Faculdade de Medicina, a [área] Saúde Públi-ca era vista por uma ótica progressista. Havia um compromisso dos professores que não era a política oficial. Infelizmente essa disciplina era superconservado-ra na faculdade, os professores eram conservadores. Mesmo assim, havia con-tradições dentro desse conservadorismo.

A faculdade de Medicina de Botucatu: posicionamento político

Fizemos uma greve na EPM em 1974 que durou quase um mês. [...] Nesta greve, tivemos muitos conflitos com o diretor, que devia receber muita pressão, mas nenhum ato de repressão foi feito. Mantivemos a greve por umas três sema-nas, repercussão no Jornal Nacional. O objetivo era a melhoria do financiamen-to do Hospital São Paulo. Uma comitiva chegou a ser recebida pelo MEC, em Brasília. Mas era uma ousadia fazer greve, parou mesmo, não teve aula! Qual foi a postura da universidade: nenhum aluno foi ameaçado, posto pra fora.

Então, veja só, aqui na Unesp, que foi um lugar onde vim me abrigar por ser um espaço democrático, vi coisas aqui que eu não vi lá. E aqui, já tinha se pas-sado certo tempo, não cabia mais um negócio desses. Em 1982, não daria para imaginar a polícia entrar na EPM ou na USP. Não havia mais clima para isso. Na Unesp isso durou ainda muito tempo. Aqui o embate político era explícito. Em geral, os cursos de Humanas geram um calor maior, mas aqui na Unesp, ao contrário de outros lugares, na Medicina o clima também era acalorado, diferente, por exemplo, do que acontecia na EPM ou na USP.

Lembro que um programa democrático aqui era ir às formaturas no fim do ano, porque era um evento unificado, com todas as faculdades de Botuca-tu. Os alunos sempre escolhiam os professores à esquerda. Esses professores, os paraninfos, tinham a oportunidade de discursar. Os seus discursos eram publicados, porque eram manifestos a favor da democracia, a favor da Saúde Pública, a favor da Veterinária, da Agronomia.

Aqui nós tivemos um episódio gritante. Um professor foi afastado em fins dos anos 1970. Armaram uma arapuca para ele. Ele foi execrado publicamente aqui e foi de volta para a Alemanha, de onde ele tinha vindo. Criaram uma si-tuação constrangedora para esse professor e ele foi embora. Ele acabou virando

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paraninfo da turma. Voltou para isso. Imagina a cena: o diretor lá, aquele que mandou o cara embora, e o professor, vinha lá e rasgava o verbo.

Eu me formei na EPM. Lá, na formatura, como na Faculdade de Medici-na da USP, ninguém falava nada. Ficava no enaltecimento da Medicina, muito academicismo. Enquanto que aqui não. Aqui cada formatura da Medicina era uma tese de Sociologia, porque os alunos caprichavam, sempre homenageavam os professores que mais radicalizavam. Defensores da democracia, da liberdade democrática, ou do exercício ético das profissões, do compromisso acadêmico, científico, mais libertário...; esses eram os temas. Não que agora as formaturas não sejam assim, mas não é momento mais disso, há outras oportunidades de expressão política. Então, aqui na Unesp, eu posso dizer que a luta política aqui era muito mais polarizada.

A ingerência política

Aconteciam delações no interior do próprio professorado. Passou a haver dois grupos bem distintos. Eu senti isso tanto nos professores que relataram o que aconteceu no Golpe, quanto na criação da Unesp, que é quando há o ‘re-manejamento’. As demissões com o Golpe de 1964 fazem com que os professo-res sejam remanejados. Professores foram para câmpus que eram considerados mais à esquerda, mais à direita.

A USP tinha uma cara mais conservadora, porque também foi vítima de uma repressão muito mais violenta após o Golpe de 1964. Mesmo na Medicina, muitos professores foram cassados, demitidos ou aposentados. Como o FHC. Fizeram uma limpa na USP, de professores, de alunos, de tudo. A Unicamp, a gente sempre imaginava ser uma universidade mais liberal. Aqui havia muitos professores liberais, defensores da liberdade acima de tudo. Não eram de es-querda, mas não admitiam essa ingerência ditatorial. social-democrata. Acho que foi onde mais se acirrou essa luta entre professores.

A situação recrudesceu na Unesp justamente quando as outras universi-dades já estavam se estabilizando. E como era um período no qual a Ditadura degringolava, ficou essa cara meio extemporânea. Não houve essa confusão em 1982 e 1983, nem na USP nem na Unicamp.

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Eu acho que lá os reacionários eram internos. Essa coisa de o governador intervir, meter a colher, na Unesp foi muito mais condescendente. Mesmo com a história do malufismo. Nesse sentido tem razão de a Unesp ter se flexionado muito mais. A Unicamp se manteve na dela, a USP não se envolvia diretamente. Na Unesp, isso foi mais escancarado, com poderes locais, interesses, interven-ção de deputado. A Unesp se devassou muito diante da Ditadura. Até pela for-ma como ela foi criada. Eu imagino que os caras ficavam fazendo conta: “Como é que vai ser aqui..., vamos montar.... Ah, põe para cá, como vamos compor o poder ali? Junta esse departamento com aquele”. Veja, não existe uma faculda-de de Medicina no mundo que tenha essa composição de departamentos [como a de Botucatu]. Isso aconteceu em todas as unidades da Unesp. Colocaram em um departamento só uns três ou quatro, com um chefe só. Pegavam outro de-partamento e desmembravam. Temos unidade aqui que não tem quem junte. O câmpus de Botucatu foi repartido em quatro. Há unidade da Unesp, como é o caso de Araçatuba, em que o aluno se forma veterinário da Faculdade de Odontologia. Isso tinha significados políticos dentro da Unesp. [...]

[Nos anos 80 já] havia um movimento de democratização [no país]. Na Unesp fizeram o contrário, havia um movimento de contrafluxo. Felizmente o Montoro falou: “não, chega!”. Estávamos elegendo o Sarney presidente e aqui ia continuar na mesma lenga-lenga. Ainda bem que o Montoro cortou o barato e o Nagle tornou-se reitor. Senão era capaz de ter ficado até 1988 na mesma toada autoritária. E aqui nós tínhamos um potencial, tanto que a Unesp fez uma bela reformulação estatutária, um movimento muito bonito. Foi aí que, de fato, a Unesp nasceu. Rigorosamente a Unesp com dignidade, como a gente vê hoje, que teve sua “estatuinte”, que se criou um congresso de elaboração do regimen-to, mudou muita coisa. Mas foi aí que a Unes passou a ter uma cara mesmo bacana, porque o Nagle ele deu uma oxigenada democrática.

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DEPOIMENTO 11

Luis Carlos Ferreira de Almeida

Professor do câmpus experimental da Unesp de Registro. Teve uma importante atuação nos episódios que envolveram a violação aos Direitos Humanos na Unesp durante a ditadura militar. Ele relata sua militância política no movi-mento estudantil, como aluno da Unesp.

Graduação em Botucatu

Estudei Agronomia em Botucatu de 1979 a 1982. Quando lá ingressei, já tinha um pouco de formação política. Eu vinha de Osasco e, desde 1976,

tinha contato com um colega cujo pai era líder sindical, ligado à construção civil. Com outros colegas, pois na família esta discussão passava longe, formá-vamos uma turma que sempre discutia política, inspirados neste sindicalista, do qual só lembro o sobrenome, Pereira. Cheguei a participar de um grupo que concorreu para a direção do centro acadêmico do meu colégio. Era centro cívico na época. Lá também estudava o petista João Paulo Cunha, que depois se tornaria deputado federal. Eu morava no bairro de Quitaúna, e me lembro bem dos cartazes quando tinha 13 ou 14 anos: “procurado”, “terrorista”, “o cara matou sua família”. Tive colega que desapareceu na época.

O Pereira, neste trabalho sindical, distribuía um jornal chamado Unidade Proletária, principalmente entre os estudantes secundaristas. Lembro que eu tinha um livro de informação política chamado Brasil Socialista. Eu era tipó-grafo e, quando cheguei à universidade, trazia a ideia de que naquele lugar era possível fazer algum tipo de política. De certa forma, era uma irresponsabili-dade muito grande, pois em meados da década de 1970, a atuação política era

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arriscada. Reuníamos eu, um colega chamado Daniel e outros, com um quadro do grupo MR8, com livros e outros materiais, e, se tivesse sido pego, a história certamente teria sido diferente para mim.

Na faculdade, eu nunca tive vontade de participar de centro acadêmico. Para mim, a discussão já valia a pena. Para dizer a verdade, eu nunca fui uma liderança, aquela pessoa que estivesse à frente do movimento.

Quando começou a campanha pela anistia, achávamos que tínhamos que nos engajar nesta questão, espalhar a discussão em Botucatu. Anistia ampla, geral e irrestrita. Para tanto, promovemos, no auge desta discussão, uma ação: pichação. Para nós, era o instrumento mais barato, mais eficaz e de melhor visi-bilidade numa cidade que não tinha nenhum tipo de pichação. Era algo que eu trazia do meio urbano. Juntamente com um colega, no dia 13 de agosto, comecei na periferia e fui em direção ao centro. Chegamos a pichar a delegacia de polícia!

Mexemos num vespeiro. Tínhamos terminado a pichação quando passou por nós uma rádio patrulha. Um deles falou: “esses dois aí, tão com cara muito sus-peita”. Chamaram a gente, pressionando. “Não sabemos de nada, nada”, defendía-mos. Mas encontraram a lata, ainda com um pouco de tinta, e acabamos presos.

O próprio movimento militar, naquele momento, estava muito tenso con-tra esse tipo de manifestação e qualquer situação que fugisse do controle era vista como algo perigoso. Mesmo uma pichação. Fomos fichados, fotografados e a informação foi parar no DOPS, em São Paulo. Para piorar, eu tinha uma carta de uma amiga minha que nas entrelinhas daria a entender que eu tinha algo a ver com o PCdoB. Eu nunca tive nada com esse partido. Assim, de uma hora para outra passei a ser um membro do PCdoB que pichava pela anistia como membro do partido. Tudo registrado em documentos que recuperei pos-teriormente, incluindo informações de minhas passagens por São Paulo. Para ver como era o aparato repressor naquela época. Comecei, então, a ter a real dimensão desse tipo de ato.

Dormimos na cadeia e fomos liberados de manhã, ordenados a nos apresen-tar depois e prestar um novo depoimento. Na noite em que fiquei na delegacia, um dos delegados, que devia ser do DOPS, falava em tom ameaçador: “a sua sorte é que essa questão da anistia está muito forte agora. Se fosse alguns meses atrás, você iria para o Barro Branco”. Então, eu pensei: “No Barro Branco é para onde mandam as pessoas que são pegas aqui e certamente não é para uma conversa”.

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Quando fui no outro dia prestar depoimento, saí de lá com três processos referentes à Lei de Segurança Nacional, a LSN. E aí é que está a questão interes-sante: como é que se fala em anistia ampla, geral e restrita? Como é que você fala em abertura? Como é que você fala numa série de coisas e no meio desse processo pegam-se dois estudantes e os enquadra na LSN? Que democratiza-ção é essa? Na verdade, poderia ter pego uma pena de até oito anos de prisão por pertencer a partido clandestino, por ofensa às forças armadas e às autori-dades constituídas. Simplesmente por ter pichado uma delegacia.

Depois descobri que na mesma época tinha um outro grupo pichando na região em Botucatu. Acharam que nós éramos um braço desse pessoal. Nosso spray era azul e a primeira pergunta que fizeram foi: “cadê a lata do spray ver-melho”? Eu falei: “desconheço”. “Não, você sabe”. Aí que veio a questão: “Fosse antes, você iria falar quem era”. Porque não tomamos umas bolachas, não hou-ve agressão física: “vontade era mandar você pra lá, lá você iria falar”. A questão era bem por aí. Na Academia de Polícia do Barro Branco teria sido muito pior.

O meu colega também não tinha envolvimento político anterior, como eu. Nunca mais o vi. Eu acabei tendo um processo, que previa uma pena de oito anos, e ele um processo que previa uma pena de seis a quatro anos. Lembro que ele fa-lou: “essa coisa é bem maior do que eu imaginava”. Eu sabia o que estava fazendo, qual era o objetivo, acho que ele, não. Ele achou que fosse algo meio oba-oba.

Nessa situação tem que ter um advogado. E o delegado, no DOPS de Botuca-tu, falou para o meu advogado: “melhor seu amigo arrumar um bom advogado”. A Ditadura estava enfraquecida, mas o aparato de mantê-la funcionando; de fazer inquérito, ainda funcionava muito bem. Imagina, duas, três, quatro horas depondo, falando “não, não sei de nada de spray vermelho”. E tinha uma coisa assim: “me leve ao seu líder”. Eles queriam saber de uma verdade que não existia.

Nunca mais soube do Pereira. Ele desapareceu. Quando houve, em 1977, um episódio na Lapa, muitos simpatizantes do PCdoB foram mortos, e o Perei-ra, que era do MR-8, diga-se de passagem, desapareceu. Mesmo porque ele não tinha nome nem sobrenome, era simplesmente o tal do Pereira.

Aí tive que arrumar um advogado. Na verdade, quem foi o meu advogado em Botucatu, antes de eu prestar depoimento, foi o Agostinho Torres, já fale-cido. Em São Paulo, havia outro advogado que estava levando à frente essas questões da anistia. Uma vez eu saí de madrugada para São Paulo, conversei com ele em frente ao antigo prédio do DOPS. Levei o que tinha em mãos e a

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orientação que eu tive era para me manter calmo e deixar a coisa fluir. O tempo foi passando e, veja só, a discussão da anistia correndo no Congresso. Isso é que era mais paradoxal.

Daí, eu vim a saber depois que a anistia estava prevista para todos os cri-mes até o dia 31 julho. Na verdade, os eventos aqui foram em 13 de agosto. A situação que a própria ditadura causou para ela mesma, você anistia todo mundo até 31 de julho, zera essa conta. No dia 14 de agosto, você enquadra dois estudantes na LSN.

Faltando uns dez dias para terminar agosto, promulgaram a Lei da Anistia, valendo para todos os casos que estavam enquadrados até a data da promulga-ção. Toda essa história desapareceu. Eu fui chamado na delegacia e o delegado falou: “nós vamos transformar isso aí só numa sindicância”. Eu nem esperei para perguntar muito sobre como seria a tal da sindicância. Eu saí, não quis saber muito o que era, só sei que não tinha que falar nada.

Eles zeraram tudo. Senão, como explicar dois novos processados naquela situação de Lei de Anistia? Muito contraditório. O aparato do Estado estava mesmo por baixo. Até que ponto ele realmente deixou de funcionar? Porque o Estado continuava prendendo, enquadrando. Não estava claro se havia um processo de anistia em andamento ou não. Tenho isso tudo registrado.

A movimentação política na Unesp

Toda a movimentação política se dava dentro da Unesp. Politicamente ha-via duas faculdades em Botucatu. Uma particular e a Unesp que, para eles era uma coisa só. Falar que era estudante queria dizer que era da Unesp, não im-porta onde estudava.

A ficha que eu tenho é de 1º de setembro. Fazia um ano que tinha aconte-cido aquele fato e estavam atualizando minha ficha. Colocaram até a inscrição da UNE, o que era importante, pois estava no momento de reconstrução da UNE. Era 1980: “ouvido em declaração nos autos de investigação dois, de 1979, do setor de ordem política e social de Botucatu no dia 14 de agosto de 1979 por ter sido surpreendido pichando prédio da cidade utilizando azul escuro, escre-vendo frases subversivas. Arquivado em 25 de agosto de 1980”.

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Essa era a tal de redemocratização, eu ainda estava na mira. Em 22 de julho de 82, quase me formando, e, na ficha, que eu acho que tinha que sempre ser atualizada: “consta que o nominado é procurador geral do Centro Acadêmico Pirajá da Silva, documento na pasta de Botucatu”. O rastreamento permanecia.

E olha que tinha colegas muito mais engajados, que estavam discutindo a UNE. Então, que tipo de ingerência ainda deveria existir para essas pessoas? Por que, se três anos depois de uma coisa arquivada, que não teria nenhum tipo de prosseguimento, ainda existe alguém querendo saber o que essa pessoa faz dentro da universidade? Até meu endereço atualizaram. Aliás, eles tinham todos os meus endereços, até meu apelido, Tuca.

O interessante disso tudo é que a gente consegue, documentalmente, por acaso, mostrar que o aparato ainda funcionava até o início dos anos 1980. Ha-via a redemocratização em 1982, com as eleições para governador. Mas ainda te acompanhavam, atualizavam seu endereço, o ano de sua turma da faculdade, o seu cargo no centro acadêmico. Percebo, então, a Unesp alinhada totalmente com o Governo do Estado.

Na direção do centro acadêmico em oposição ao diretório acadêmico

Eu fui diretor por três gestões consecutivas, 1979-80, 1980-81, 1981-82. Foi a oportunidade de me engajar melhor no movimento estudantil. A Unesp ten-tou criar um diretório acadêmico dentro de Botucatu e esse diretório tinha voz dentro da Universidade. Ele era reconhecido, o centro acadêmico, não. O centro acadêmico não tinha nem espaço dentro do câmpus. Uma certa ocasião, tentamos negociar com o diretor a área de vivência do câmpus, não houve acor-do e acabamos despejados. Nossa sede era uma sala dentro do hospital.

O diretor do Grupo Administrativo do Câmpus, o GAC, não conversa-va com o centro acadêmico. Ele conversava com grupos de estudantes, menos com o centro acadêmico. Eu era o representante dos estudantes junto ao GAC para aquela área de vivência, administrada pelo centro acadêmico. Como es-tudantes, não conhecíamos como funcionava o processo eleitoral da Unesp. Pegando o Estatuto da Unesp, de quando ela foi criada, [descobrimos que] lá

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dizia que se aceitavam representações oficiais, reconhecidas, como era o caso dos diretórios acadêmicos.

Eis uma questão interessante dentro da Unesp. Havia os ‘diretórios aca-dêmicos’ e os ‘centros acadêmicos’. Quando se montava uma entidade e ela era independente, chamava-se centro acadêmico. Quando ela usava o termo atrelado à Reitoria, à legislação, ela se tornava diretório acadêmico. Durante o movimento estudantil, havia essa discussão, a existência de duas entidades representativas. A Faculdade de Medicina criou um D.A., que não foi pra fren-te. Os estudantes na época se mobilizaram e o diretório foi fechado. Mais do que ser criada no processo da ditadura militar, a Unesp queria ser o modelo de universidade que a ditadura militar queria dentro da representação estudantil.

Havia estudantes que se submetiam a isso. Não sei se por ingenuidade, não posso dizer, pois foi antes de eu entrar. Mas eu sei que a Universidade quis montar uma situação assim: “olha, nós temos uma universidade aqui com as representa-ções estudantis sob controle, com as estruturas sob controle, tudo sob controle”.

Paulo Maluf visita câmpus de Botucatu: violência contra estudantes

Veja só, o governador Paulo Maluf foi a Botucatu. Passou primeiro no cen-tro da cidade, foi recepcionado por escolares uniformizados. Depois foi para Rubião Júnior doar equipamentos para a Unesp. A Universidade vivia uma cri-se de verbas e ele fez uma doação em solenidade num auditório lotado. Pessoas foram convocadas a comparecer. Havia colegas, sabíamos, que tinham sido convocados, entende-se, mas ninguém é obrigado a bater palmas. E tinha pal-mas efusivas.

Estávamos todos fora, denunciando, questionando: “o que o governador, que está sucateando o ensino superior, vai fazer? Doar equipamentos que já es-tão aqui há muito tempo? Um ato político, é isso”? Fazíamos uma manifestação ao lado, onde fica hoje o Instituto de Biociências; era um descampado na época. E um guarda da segurança dele, o mesmo que participou de um episódio de violência na Freguesia do Ó, em São Paulo, pega os ‘pirulitos’, aqueles cartazes sustentados por uma vareta de madeira e parte pra cima da gente.

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Estávamos andando, sem organização, de improviso, é verdade, pois o centro acadêmico estava desprestigiado naquela época. Isso também ajudou a fortalecer nosso C.A. Aquilo foi um ultraje, até me emociono quando lembro. A gente apanhou dentro do câmpus. Tenho um monte de fotos daquela mani-festação. Olha o pessoal descendo o barranco, o aluno sendo empurrado, Foi algo espontâneo nosso. Veja só o papel que a Unesp cumpria naquele momento.

Havia professores engajados, ao lado do Maluf. O diretor, se não estava engajado, era omisso. Eu não sei o que é pecado maior, se alinhar e falar: “eu sou malufista, ponto, muito bem, acabou”. O Maluf só foi para lá porque tinha receptividade. Um governador tão impopular encontrou em Botucatu uma for-ma de se promover.

Muita gente nos culpou, dizendo que estragamos a festa do Maluf. Em rela-ção aos seguranças, não fizemos nada, nada, nada. E apanhamos com as ripas de madeira dos pirulitos. Os seguranças, sim, fizeram isso de forma coordenada.

Eu acho que eles não tinham ideia do poder de mobilização dos estudantes. A gente saberia que era o momento crítico da universidade, principalmente a questão das verbas. Era 1981. Partíamos para um processo de redemocratiza-ção, para a eleição de governador. A TV Cultura estava lá. Quando o Maluf saiu do câmpus, foi feito um corredor, que não devia ser só de segurança. O pau comendo lá fora, ele saiu nesse corredor polonês, escoltado, pessoas aplaudin-do, feliz da vida, e o repórter ainda o entrevista: “tudo bem, governador? Está sabendo de alguma coisa”? “Não, parece que tem alguns descontentes, alguma coisa do gênero”, e embarcou no ônibus. A Unesp queria ser essa universidade “bonitinha” frente aos governos de então.

Estou falando da Unesp da época. O movimento estudantil dentro da Uni-versidade ficou amarrado a esta situação. Essa questão de democratização den-tro da Unesp vem desde a década de 1980, já se discutia isso. Mas onde isso esbarrava? Ser ou não ser atrelado? Nós, por conta de todo o histórico de luta do centro acadêmico, de uma situação que já vinha desde a criação do curso de Medicina, nós falamos: “não, tem que ser independente por uma questão de princípio, porque nós somos Unesp”.

O Centro Acadêmico Pirajá da Silva surgiu na Faculdade de Medicina. De-pois, foram incluídos novos cursos dentro do mesmo centro acadêmico, hoje ele pertence só à Medicina de novo, ele volta ao seu processo original.

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A Unesp queria isso. Nós fizemos, em 1981, uma reunião com o reitor, o professor Armando Ramos. Era o grupo que estava construindo o DCE da Unesp. Estávamos no gabinete, na Praça da Sé. Aí a liderança falou: “magní-fico, nós queremos lamentar os episódios de Botucatu”. O reitor, então, tirou uma foto do bolso: “olha, veja bem, vocês em Botucatu, vocês estão enterrando o diretor, que falta de respeito”. Ele tinha uma foto daquele episódio, tirada pelo serviço de segurança do Maluf.

A foto tinha chegado às mãos dele. Ele sabia quem era quem, lógico que sabia. Ele mostrava a foto. A gente, jovem ainda, tem uma presença de espírito que às vezes deixa as pessoas meio desarmadas. Eu falei: “senhor reitor, posso ver essa foto? Eu quero ver. Esse aqui sou eu, queria uma lembrança do mo-mento, uma cópia dessa foto para o meu álbum de retratos, pode mandar para Botucatu aos cuidados do Tuca que a foto chega”. Lógico que essa foto nunca chegou. Mas foi para mostrar que não seria uma fotografia que iria intimidar, nos constranger.

O combate ao DCE

Entre os colegas havia pessoas mais engajadas que eu. Estou colocando a minha participação dentro desse processo. Eu era um estudante dentro de uma universidade que se indignou com um monte de coisas que acontecia dentro dela. O DCE não saía da Unesp porque esbarrou naquela discussão que hoje eu considero superada. Ou seja, de ser atrelado ou não, porque naquele momento, no final dos anos 1970, isso era uma questão de princípio.

Nós não queríamos a estrutura de representação que a Unesp queria para nós. Mesmo porque na USP e na Unicamp havia o DCE livre. A UNE foi recons-truída em 1979. Ou seja, naquele momento em que estávamos reconstruindo as entidades livres de representação, iríamos nos ajustar a essa representação que a Unesp propunha? Não, não queríamos.

Na verdade, isso foi um episódio. Tive que sair fugido de uma reunião do movimento estudantil porque se votou pelo DCE atrelado. A palavra não deve-ria ser essa. Aí, tinha que ter uma composição de chapas. Em um dado momen-to, eu falo: “não, eu quero uns 15 minutos para discutir com o grupo que está comigo aqui e quem votou contra”. Nós perdemos em três votos. Mas quem

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perdeu? Botucatu, Fatec e outra escola que eu não lembro. Só que Botucatu e Fatec davam 60% ou 70% da Unesp, e nossa posição era a de ser livre.

Falamos: “a gente reconhece o processo, é legítimo, só que não concorda-mos com o DCE atrelado e saímos do processo. O que precisar ser feito para o congresso, apoiamos, mas não vamos indicar componente para a chapa”. Essa reunião foi em Araraquara. Então, tirou-se o presidente. O vice-presidente tinha que ser alguém de Botucatu. Botucatu não indicou ninguém. Alguém da Fatec? Fatec não indicou ninguém. Tiraram o vice-presidente. Secretário geral? Botu-catu tinha que estar na chapa. Botucatu não indicou ninguém. Quando chegou no terceiro cargo, a reunião acabou. Não teve chapa, não teve composição.

O centro acadêmico, seus conflitos internos e o autoritarismo na Unesp

O CAPJ tinha uma estrutura diferente de cargos. Havia o presidente do centro acadêmico, o vice-presidente, o procurador-geral que era responsável juridicamente, respondendo pela firma centro acadêmico. A liderança políti-ca era o presidente. Naquela ocasião, estávamos eu, como procurador-geral, e um rapaz, como presidente, quando a situação ficou feia, quase partimos para a agressão física.

Se o ensino pago entrasse na Unesp, essa responsabilidade seria nossa. Por isso não queríamos compactuar com essa questão do diretório acadêmico, era contra nossos princípios, não teria sentido. A minha turma de faculdade era um pessoal muito engajado politicamente, principalmente no movimento estu-dantil. O diretório sempre era atuante. No final do curso, houve um problema com um aluno reprovado por faltas. Com três reprovações se perdia o curso. Era a única universidade que aplicava isso. Estava no nosso regimento. Só po-deria voltar dali a cinco anos.

Pois bem, um colega de turma reprovou três vezes em uma única discipli-na. Ele reprova numa disciplina que na primeira ocasião reprovou todo mundo a turma inteira tirou zero. Decidimos que ninguém faria a prova, todo mun-do entregaria a prova em branco, as três provas. A turma toda veio com zero. Reprova. Fizemos a tal da recuperação especial, ele ficou. Eu acho que ele tem uma parcela de culpa nisso. A terceira prova coincidiu com a eleição e ele estava

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engajado na campanha política. Reprovou por faltas, umas duas faltas. Resulta-do: ele perdeu, faltando 15 dias para a formatura, ele perdeu o curso.

Era um aluno brilhante, mas perdeu o curso inteiro porque ficou em uma disciplina; então, na Unesp assim não se forma, não cola grau. Qual a implica-ção disso? Tem que fazer a placa de formatura. Quem foi paraninfo da nossa turma? Foi o Dom Paulo Evaristo Arns. Ele vai à formatura. Quem foi o patro-no da turma? Foi o centro acadêmico. É quem eles não queriam nunca ouvir. Ou seja, também tínhamos as nossas as estratégias de resistência. Aconteceu o seguinte: na hora de fazer a placa: “ah, tem que colocar o nome do reitor, o nome do diretor”. Falei: “não, na nossa placa não vai botar o nome de ninguém, se não botar nome, não tem placa, então, não tem placa”. Então, a 15ª turma de Agronomia de Botucatu não tem placa até hoje.

Era 1982. Certamente erramos muito quando éramos estudantes. Éramos intransigentes, mas hoje vemos que para certas coisas cabia uma certa intran-sigência. Mas, pensando com a cabeça de hoje, certamente faríamos tudo de novo, igualzinho. Não iríamos compactuar com a presença de um reitor in-dicado pelo governador na placa. É algo que está mal resolvido até hoje. Tem gente da turma morrendo, colegas nossos perguntam: “E a placa? E a placa? E a placa”? E não tem placa.

Estávamos entre 1979 e 1982, era um momento rico. Eu era um estudante, me formei em quatro anos, nunca tive dependência, a não ser essa em que a sala toda resolveu zerar a disciplina. Nunca fui um aluno brilhante, mas também não fui um aluno ruim.

Para encerrar essa questão, e o autoritarismo na Unesp? Quando falamos da ditadura, da relação entre as pessoas, concluo que a Unesp era um braço da ditadura. Fizemos uma prova no dia da colação de grau, com tumulto, com um colega que perdeu um curso como se não fosse nada de mais. Quando termina a prova, o professor chega e fala: “dependendo do comportamento de vocês na colação de grau, é a nota”

Bom, nosso colega terminou o curso em outra escola. Na Unesp teria que esperar cinco anos. Como era um aluno brilhante, fez vestibular para a ESALQ, na USP, passou. Em um ano e meio terminou o curso lá. Na minha turma tem um aluno formado na ESALQ, que vai aos nossos encontros. Colega meu até hoje, muito amigo, um cara brilhante.

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A Unesp ontem e hoje

Essa era a Unesp que a gente vivia na época e digo, está acabando. Mas acredito que ainda haja coisas deste tipo por aí, dentro dos vínculos da Univer-sidade. Ela é muito grande, às vezes eu falo que a gente tem que ter um plural para a Unesp, tem Unesps. Vai-se a um câmpus, a outro, há várias formas de as coisas acontecerem.

Estou na Unesp há pouco tempo como professor, indo para o terceiro ano no câmpus de Registro, fiquei um ano como substituto em Botucatu. Esta para mim é a prova de que a Unesp mudou. Se fosse a mesma Unesp do passado, acho que eu não passaria nem na porta. Eu fiz doutorado na Unesp, teminei em 1996. Para mim, voltar à Unesp foi algo difícil. Quando eu voltei para fazer meu doutorado, em 1994, foi uma grata surpresa o quanto eu fui bem acolhido por essa nova universidade.

Eu não queria fazer na Unesp. Tentei Unicamp, passei, mas não abriu vaga. Trabalhava em Sorocaba, não muito longe, terminei o doutorado em dois anos e meio. Mas acho que é uma universidade que ainda tem que ama-durecer. Olhando 1979, o tempo em que fui estudante, o tempo em que fiz o doutorado, o tempo em que eu sou professor, acho que a universidade tem que se enxergar no mesmo nível de USP e Unicamp. Na prática, no dia a dia, às vezes tem-se a impressão de que ela se vê como prima pobre, como se ti-vesse complexo de inferioridade.

Até por conta das histórias dela, do processo de criação. Está no estatuto original, o Conselho Universitário é C.O.; você passa trinta e tantos anos, ainda tem a mesma sigla como C.O.; não se conseguiu mudar essa sigla. Onde se viu Conselho Universitário? Para mim demonstra que ainda tem coisas perdidas dentro na Unesp. Precisa se reciclar com os professores novos, que não sejam dos institutos isolados, sem tirar o mérito dos antigos professores.

Ela precisa começar a se enxergar como uma universidade que quer buscar um lugar no futuro e deixar para trás essas histórias que contei. É importante que as pessoas conheçam a história. Ninguém sabe em Botucatu que nós não temos placa: “olha, pessoal, as coisas nem sempre foram assim, já teve gente brigando, lutando”. Tem pessoas que nunca foram políticas, mas simplesmente se indignaram num dado momento, pessoas comuns, estudantes, e que vive-ram essa Unesp da qual estou falando.

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As prioridades do movimento estudantil hoje

Com a UNE aconteceu assim, quanto mais ela era colocada na ilegalidade, mais os estudantes levantaram a sua bandeira, até o fim. E foi o que houve com a gente. Quanto mais ilegal eles queriam, mais a gente lutava. Daí, quando co-meça a redemocratização, o próprio centro acadêmico se esvazia. O movimen-to estudantil como um todo. Hoje a pauta do movimento estudantil dentro da Unesp é por moradia, transporte gratuito, não há mais as discussões políticas de antigamente. São momentos diferentes. De qualquer forma sempre acho que hoje é melhor que na minha época, sempre há um avanço. Por mais que às vezes pareça que não, existe avanço. Pode parecer: “ah, não tem movimento estudantil engajado”, mas os alunos se movimentam de outra forma.

Não conseguimos acompanhar a velocidade do Facebook. Lá existe uma outra linguagem. Dizem que mobiliza mais, eu questiono. Em 1968, houve uma passeata de 100 mil pessoas no Rio de Janeiro, tudo divulgado por rádio.

Tinha rádio, mas o momento era outro. Para que que você mobilizaria cem mil pessoas hoje? Em torno de quê? O show da Shakira? Talvez em torno do passe livre. Este é um bom exemplo, embora seja um pavio de um monte de coisa. Tem um descompasso entre o discurso oficial e o dia a dia das pessoas. Alguma coisa está errada.

Mas acredito na Unesp, acredito, sim. Vamos colocar aqui todos os per-calços da criação, mas o que não tem remédio remediado está. Ruim ou bom, o processo de criação é assim. Acredito que a universidade que nós temos é a universidade onde eu trabalho e, se eu não acreditasse, seria um contrassenso: “como, você é professor e não acredita?”, acredito. Só que é a Universidade que tem que sentar e discutir mais.

Comparamos com a Unicamp, por exemplo, em termos de benefícios para professor, a Unesp: “pô, vocês têm isso?”, “nós temos”, “ah, na Unesp, não”. O trato da universidade em relação a funcionário e docente da USP e na Unicamp mostra que a Unesp tem muito a avançar ainda. Não é só isonomia salarial do funcionário, é outra isonomia, que está em outro campo que envolve uma mudança de cultura. Ela precisa se ver como igual, não simplesmente burocra-ticamente. A Unesp tem que se enxergar como uma universidade que quer um lugar no futuro.

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Nota final

E a pesquisa não pode parar...

Pelo cronograma previsto, encerra-se o projeto Tenho algo a dizer com a publicação deste livro-relatório; todavia, a pesquisa sobre a repressão na

Unesp e os movimentos de resistência, na época da ditadura militar, está longe de ser concluída. O projeto deixa aqui sua contribuição revelando parte dessa história. Há ainda mais (ex) professores, funcionários e alunos que têm algo a dizer, e certamente serão ouvidos pela Comissão da Verdade da Unesp, que ora inicia seu trabalho com apoio de todos nós.

Em setembro de 2014, representantes da Comissão da Verdade da Unesp noticiaram a existência do projeto de pesquisa Tenho algo a dizer, realizado pelo CEDEM e OEDH da Unesp, em fase de conclusão, num encontro realizado em São Paulo com integrantes de diversas comissões da verdade. A reunião foi promovida pela Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog da Câmara Municipal de São Paulo, com o objetivo de trocar informações e traçar diretri-zes comuns para continuar as investigações dos casos de repressão e tortura no Brasil. Estiveram também presentes membros e assessores da Comissão Nacio-nal da Verdade, e integrantes da Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, das Comissões da Verdade da USP, Unifesp, PUCSP, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e da Secretaria Municipal de Direitos Humanos.

Com a Comissão da Verdade da Unesp, mais revelações sobre o passa-do da instituição na ditadura poderão contribuir para compreendermos e

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enfrentarmos os desafios da universidade, hoje, com a mesma disposição e crença daqueles que outrora sonharam e lutaram por uma educação pública e de qualidade social.

O resgate das memórias dessas lutas do passado subsidia a compreensão do presente e aponta caminhos para o futuro. O momento histórico do país exige reformas importantes socioeconômicas e política para garantir uma transfor-mação da democracia liberal, ainda muitas vezes formal, para uma democracia social participativa. Somente assim serão garantidos a todos os direitos sociais econômicos e culturais além dos civis e políticos.

Na universidade, esta transformação passa por um diálogo amplo e corajo-so sobre questões de fundo, dentre outras, como: “autonomia da universidade frente ao poder político partidário”, “representação efetiva e forte nos órgãos colegiados”, “relações democráticas”, “presença da mulher, do negro e do pobre na universidade”, “violações dos direitos humanos”, “política cultural”, enfim, a “dimensão política do Projeto Político Pedagógico”.

Colocar em debate a ideia de uma estatuinte na Unesp é um bom começo.