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Teologia Contemporânea William E. Hordern Anteriormente publicado sob o título Teologia Protestante ao Alcance de Todos Editora Hagnos Digitalizado por Eclesiano 20/11/2011

Teologia Contemporânea - William E. Hordern

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Teologia ContemporâneaWilliam E. Hordern

Anteriormente publicado sob o título Teologia Protestante ao Alcance de TodosEditora Hagnos

Digitalizado por Eclesiano20/11/2011

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ConteúdoReconhecimento....................................................................................................................................3

Prefácio à Edição Revista........................................................................................................................4

Introdução..............................................................................................................................................5

O Crescimento da Ortodoxia..................................................................................................................9

Ameaça Contra a Ortodoxia.................................................................................................................23

Fundamentalismo ou Cristianismo Conservador: A Defesa da Ortodoxia............................................34

Liberalismo: Reconstituição da Ortodoxia............................................................................................45

Neo-Ortodoxia: A Redescoberta da Ortodoxia.....................................................................................66

Søren Kierkegaard............................................................................................................................67

Emil Brunner.....................................................................................................................................70

Karl Barth.............................................................................................................................................76

Neo-Ortodoxia Americana: Reinhold Niebuhr......................................................................................86

A Fronteira Entre o Liberalismo e a Neo-Ortodoxia: Paul Tillich..........................................................96

Rudolf Bultmann: Conservador Radical..............................................................................................107

Dietrich Bonhoeffer e o Cristianismo Secular.....................................................................................117

Tendências Teológicas Atuais.............................................................................................................128

Conclusão...........................................................................................................................................141

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Reconhecimento

Em um livro desta natureza, é impossível que se consiga expressar conveniente reconhecimento a propósito de todas as fontes utilizadas. Pelo próprio fato de que meu propósito é só o de tentar uma interpretação da teologia visando aos crentes em geral, e não aos leitores preocupados com os aspectos técnicos da matéria, parece-me que um grande número de notas de rodapé seria desinteressante. A secção intitulada “Sugestões para Leituras Complementares” não é, propriamente, uma bibliografia completa concernente às fontes que pude utilizar. E apenas uma compilação de obras que, em meu entender, podem interessar ao crente estudioso. Sinto-me devedor, entretanto, para com bom número de autores, cujos nomes dariam lista muito grande para constar aqui.

Uma palavra de gratidão especial tenho de dirigir a William Hubben, editor de Friends Intelligencer. Em princípios de 1953, ele me solicitou que escrevesse uma série de artigos a respeito dos teólogos modernos. O esforço que fiz para atender à solicitação veio a ser fator importante, que resultou em minha decisão de escrever um livro relacionado com o assunto, de modo que muitas páginas deste livro apareceram nos vários artigos da série.

Durante o outono de 1953, tive a oportunidade de proferir estudos nos quais fiz uso de boa porção do material em estudo, por ocasião de um “Fórum de Adultos” realizado em conexão com reuniões promovidas pelos “Amigos de Swarthmore”. A maneira interessada e perspicaz como os participantes ali se comportaram me proporcionou valiosa ajuda, principalmente por fazer-me atento àqueles pontos a respeito dos quais eu não alcançara ainda muita clareza ou não tinha conseguido expor com a devida precisão.

Sinto que é de meu dever estender minha gratidão ao “Board of Managers” da Universidade de Swarthmore, pela licença que me concedera e que possibilitou a publicação deste livro.

Por último, mas nem por isso de menor importância, tenho de externar minha gratidão aos alunos. Por cinco anos que me têm sido dado que lecione na referida Universidade em Swarthmore, cheguei a compreender suficientemente como fazer exposição de problemas teológicos de modo a atender às expectativas de um público constituído de crentes profundamente interessados, portadores de senso crítico.

W. E. H.

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Prefácio à Edição Revista

Quando apareceu a primeira edição deste livro em 1955, eu estava sentindo que era grande a necessidade de que surgisse uma obra que servisse de introdução, para que os crentes interessados tomassem conhecimento das discussões teológicas contemporâneas. A receptividade manifestada para com o livro deixou claro que não eram poucos os crentes que participavam daquele meu sentimento. Ficou evidente que os crentes em geral estão dispostos a se informar sobre os debates teológicos.

Muito contrariamente ao que se pensa entre os leigos, a teologia não é um assunto estático de modo nenhum. Os teólogos se sentem forçados a fazer contínuos relacionamentos da fé cristã com o mundo em mudança no qual vivemos. Como resultado, tornou-se evidente, durante certo tempo, que aquela edição original de A Layman's Guide To Protestant Theology já estava defasada. Ao procurar, entretanto, empreender a necessária revisão da obra, tive a real impressão das dificuldades que tinha de enfrentar. Como é que alguém poderá fazer justiça a todos os vários desenvolvimentos verificados no campo da teologia desde o aparecimento deste livro? Ao lançar aquela primeira edição não me faltava a compreensão exata de que eu estava exposto a muita crítica, pelo fato de não ter tomado em consideração alguns dos pensadores entre os teólogos. A verdade, porém, é que num livro deste porte não é possível tratar de todas as correntes teológicas importantes. Mesmo que esta edição revista seja mais volumosa do que a original, ela é, não obstante, criticável, pois multiplicaram-se as tendências teológicas em nossos dias. Em virtude disso, o leitor já é logo avisado que este livro não é, de modo nenhum, uma introdução completa à teologia contemporânea. Caso a obra venha a atender a suas finalidades, no sentido de proporcionar incentivo aos crentes interessados neste gênero de literatura, então eles poderão prosseguir lendo em outras fontes, e, assim, preencherão as lacunas deixadas pela leitura desta obra.

W. E. H.

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Introdução

O presente livro surge para corresponder à convicção que tenho de que há uma necessidade real no sentido de que os crentes em geral, no seio do Protestantismo, sejam levados a pensarem de modo mais criativo a propósito de assuntos ligados à teologia. Entretanto, cabe a pergunta: Onde é que o crente deve começar nesse esforço de reflexão? Caso lhe ocorra pegar um livro qualquer de teologia, certamente ele se sentirá perdido em face dos termos cuja significação não lhe é familiar. A teologia se lhe torna, assim, tão inacessível quanto o é, por exemplo, algum dos tratados sobre a relatividade escritos por Einstein. Como outras ciências, também a teologia tem cunhado uma terminologia técnica, seu próprio jargão. O que o presente livro visa a fazer é introduzir o crente estudioso nesse campo do pensamento humano, mediante o emprego de termos que lhe sejam familiares. Temos de fazer uso de alguns termos técnicos, sem dúvida, mas, ao fazê-lo, vamos tentar defini-los.

Em primeiro lugar, será melhor dizer por que se deve admitir que a teologia é uma coisa necessária. Não é essa uma noção que pareça intuitiva, nem mesmo aos crentes mais curiosos. J. P. Williams referiu-se a certo ministro evangélico, que teria dito o seguinte: “Gosto muito de flores, mas odeio a botânica; da mesma forma, gosto muito de religião, mas odeio a teologia.” Trata-se de uma atitude bem generalizada que, não raro, tem suas bases em argumentos plausíveis. Porque, a verdade é que a teologia pode parecer algo insípido e, até mesmo, destituído de cristianismo. Não obstante, a resposta para o problema de uma teologia empobrecida deve ser, propriamente, teologia melhor, e não a rejeição da teologia. Podemos perceber o quanto isso é verdade se fizermos a fazer uma análise do que a teologia realmente é.

“Teologia” é palavra que procede do grego: Theos, que significa, Deus, e logos, que significa tratado ou pensamento lógico. Dai se depreende que Teologia é tratado ou desenvolvimento bem ordenado do pensamento que se possa obter a respeito de Deus. A palavra Deus não pode ser definida de forma exaustiva, mas é normalmente empregada para representar o que quer que se creia como sendo o fato Último, a Fonte da qual tudo o mais teria provindo, o Valor supremo ou a origem de todos os valores da existência. Deus vem a ser o ente admitido como sendo digno de constituir-se no alvo e no propósito da vida. A luz de tais considerações, torna-se evidente que ninguém poderá passar sua existência sem a adoção de alguma forma de teologia.

Com freqüência, alguém diz assim: “Por que preocupar-se com assuntos de teologia? Os teólogos passam o tempo inutilmente discutindo questões sem qualquer importância...” Passemos a um exame dessa maneira de pensar. Por que será que os problemas citados são

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considerados sem importância? É claro que quem faz semelhante objeção tem em mente algum conceito do que se deva admitir como sendo de mais alto valor, em comparação com o que ele se acha na condição de asseverar que os argumentos dos teólogos lhe parecem destituídos de importância. Isso quer dizer que tal pessoa encontra-se em determinada posição teológica, tem uma opinião com referência à natureza de Deus, conceitos, portanto, que o levam a proclamar como sem importância os argumentos enunciados pelos teólogos. De modo que, mesmo um ataque assim, endereçado contra a teologia, não passa de uma investida de natureza teológica.

Freqüentemente ouvimos pessoas dizendo que não é o que alguém crê e, sim, o que faz que tem importância. Trata-se de meia verdade, que, como acontece com as verdades apresentadas pela metade, chega a ser perigosa. E meia verdade porque, do ponto de vista cristão, o pensamento teológico não é nenhum fim em si mesmo. O cristianismo é doutrina que se propõe a ser vivida. Visa a resultar em ações. De forma que, se permanecer sempre como pensamento, torna-se algo até mesmo destituído de verdadeiro cristianismo e, portanto, fútil. Entretanto, acentue-se que se trata de meia verdade, pois, o que quer que o homem faça, tal comportamento estará em íntima correlação com o que pensa e com o que crê ser o sendo valor último da existência. Sempre que o chamado homem prático se encontra diante de situações que lhe forçam a decidir quanto à melhor maneira de proceder, sente ser portador de alguma idéia implícita quanto ao que constitui um alvo a ser alcançado em tal circunstância, ou que valores se lhe impõem como devendo ser assegurados mediante o encontro das soluções cabíveis. Além disso, ele não poderá deixar de revelar algum conceito quanto aos meios mais recomendáveis pelos quais os valores serão alcançados. Tudo isso não passa de teologia, implícita ou explicitamente.

O refrão, “Não é o que alguém pensa, mas, sim, o que faz que tem importância”, parecia razoável quando a grande maioria dos indivíduos no âmbito de nossa cultura se encontrava sob uma escala de valores advinda do cristianismo. Atualmente, porém, vivemos num mundo no qual, precisamente, tal escala de valores se encontra, a cada momento, ameaçada e posta em dúvida. Os ideais de moralidade que pareciam evidentes aos antepassados tornaram-se problemáticos nos últimos dias. Tanto o Comunismo como o Nazismo reconhecem que não é fácil distinguir entre o que o homem pensa e o que faz. Como conseqüência, adotam uma tremenda propaganda, com o objetivo de mudar o conteúdo do pensamento dos indivíduos. Estão persuadidos de que, uma vez que consigam mudar os pensamentos relacionados com a natureza última das coisas e quanto aos valores, não haverá nenhuma dúvida de que terminarão por mudar as ações dos homens. A Teologia Cristã não é nada mais nem menos do que uma tentativa de mudar o pensamento dos homens de modo que passem a agir como cristãos de verdade.

Pelo fato de que vivemos num tempo em que a significação última da existência é submetida a dúvidas, já não nos é possível ficar à margem das discussões. Há poucos anos atrás, os homens admitiam que podiam ignorar tais questões últimas, prosseguindo em seus afazeres animados pela intenção de contribuir para a melhora desejada do mundo. A

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educação, a ciência e a tecnologia teriam condições de encontrar saída para todos os grandes problemas da humanidade. Todavia, como Dr. N. M. Pusey, presidente da Universidade de Harvard, observou em seu famoso discurso proferido perante a Faculdade Teológica daquela Instituição, não é possível que alguém se alheie dos problemas relacionados com a natureza última das coisas, pretendendo que se trate de algo inexistente. Caso alguém insista em ignorar os problemas, verificará que aparecerão sob formas pervertidas e distorcidas, para exporem a sua insuficiência de raciocínio. A ênfase dada pelo Dr. Pusey é muito bem ilustrada pelas várias formas de totalitarismo que surgem quando os homens não podem enxergar mais nenhuma outra realidade última além do Estado ou da Classe Econômica a que pertencem.

O esforço de pensar a respeito de Deus conduz-nos imediatamente ao trato de um grande numero de problemas correlatos no âmbito do que se designa por “Teologia”. Primeiramente, verifica-se a existência do problemas relacionado com a posição do homem diante de Deus, que é a Fonte Última de tudo quanto existe, nisso incluindo-se uma idéia sensata do que o homem admita como sendo o bem. Assim, vemo-nos forçados a estudar o conceito de Revelação, isto é, como será que o homem pode inteirar-se de como Deus é, propriamente? Será que Deus pode ser descoberto pelos métodos adotados para as descobertas de ordem científica? Ou será melhor admitir que Deus mesmo tenha de proporcionar-nos uma revelação de sua natureza? Caso se admita a última hipótese, como seria e onde se daria essa revelação?

Tais perguntas conduzem-nos à necessidade de formularmos um conceito do que seja pecado. O pecado ocorre quando o homem se encontra em desarmonia com a Fonte de seu ser e quando trai seus valores supremos. E interessante observar que, mesmo quando se trata de um sistema ateu ostensivo, como se verifica no Comunismo, não se pode fugir ao problema do pecado. Por exemplo, sabe-se que aqueles que traem os valores tidos como supremos pelos partidários do Comunismo, na verdade, não são chamados “pecadores”, mas passam a ser apelidados de “trotskistas”, “criaturas de Wall Street”, “belicistas”, “capitalistas imperialistas”, e assim por diante.

As preocupações com o pecado nos levam a questões relacionadas com a salvação. Salvação é experiência que ocorre quando uma pessoa, de alguma forma, consegue vencer a distância em que se encontra da Fonte de seu ser e quando retoma a lealdade para com os valores supremos. Como é que o homem pode alcançar a salvação? Como lhe será possível triunfar sobre o pecado? Por que será que o homem peca? Qual a razão por que o homem não consegue se conformar aos valores supremos? Será que ele cai naturalmente em situação pecaminosa? Pode o homem vencer o pecado e permanecer coerentemente fiel aos padrões que ele aceita como mais elevados por esforço pessoal ou será que é indispensável algum socorro de fora? Até mesmo aquele que diz que não é o que se crê, mas, sim, o que se faz que é relevante não poderá deixar de encontrar uma resposta, implícita ou explícita, para as perguntas assim formuladas, antes que se lhe torne possível agir em qualquer situação da vida.

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Outras perguntas subjazem às que foram feitas. Por exemplo, como é que o homem pode organizar-se mais convenientemente para a realização coletiva do bem? Isto é, que devemos entender por Igreja? Para onde será que as coisas nos estão conduzindo neste mundo? Qual será nosso destino final? Em que havemos de depositar nossa esperança? Será que a presente vida, a história do homem sobre o planeta, é a soma total das oportunidades que nos são concedidas para o conhecimento do Ente Supremo, ou será o caso de admitir- se uma existência e um reino além dos limites do presente no qual se consumarão os valores atualmente idealizados? Tais são as perguntas concernentes ao que os teólogos denominam “Escatologia”.

Assim considerando-se, verifica-se a impossibilidade de fugir dos problemas de natureza teológica. Simplesmente, não dispomos de uma alternativa entre teologia e inexistência de teologia. A alternativa diante da qual nos encontramos é a seguinte: ou temos uma teologia bem sistematizada, isto é, uma teologia que tenha passado pelo crivo de uma crítica rigorosa, ou, então, temos uma teologia que não passe de conglomerado de conceitos, idéias preconcebidas e sentimentos tomados sem qualquer preocupação crítica. Uma das fraquezas do Protestantismo nos dias atuais reside no fato de que é limitado o número de crentes informados sobre o conteúdo do que crê e das razões por que crê. Trata-se de erro que os comunistas, por exemplo, geralmente não cometem. O Partido Comunista se empenha tremendamente na formação dos que se tornam filiados. Nenhuma religião admitida parcialmente poderá subsistir diante da disciplina agressiva do Comunismo. Entretanto, nunca devemos supor que a teologia seja necessária só por causa da ameaça do Comunismo. A ameaça representada Comunismo tão-somente ilustra um fato básico a respeito da vida.

Os acontecimentos peculiares ao século vinte contribuem para um renascimento da teologia protestante. Os homens encontram-se mais uma vez empenhados em encontrar soluções que satisfaçam aos problemas últimos da existência e estão fazendo tentativas de fixar o sentido das soluções oferecidas pelo cristianismo. Espero que este ajude o leitor a se informar do que se passa nos domínios da teologia. Este livro não oferece uma imagem completa de tudo quanto se discute nas esferas teológicas; não passa de simples introdução. Ele poderá levar o leitor a interessar-se em fazer mais prolongadas leituras e, quem sabe, incentivá-lo a refletir com mais exatidão. Pode ser que o leitor não aceite nenhum dos pontos de vista teológicos que serão delineados; entretanto, o livro terá alcançado o fim a que se propõe caso ajude o leitor a formular seu próprio modo de encarar os problemas teológicos em face do panorama geral do pensamento moderno.

Há muitas maneiras de conduzir o crente ao estudo da teologia moderna. Uma das maneiras mais acessíveis consistiria na discussão de certos tópicos, como o pecado, Deus, salvação, dando-se um resumo das várias interpretações existentes. Creio, porém, que um método assim poderá confundir mais do que esclarecer. A teologia tem de contar com um ponto de convergência das várias doutrinas. Ela tende à formulação de sistemas de pensamento nos quais as respostas encontradas para qualquer pergunta lancem luz sobre uma pergunta a seguir. Preferi,

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portanto, fazer apreciação da teologia moderna mediante o exame de várias escolas. Dessa forma, sinto-me em condições de ilustrar a maneira como cada um dos sistemas propostos se faz um todo orgânico.

Ao mesmo tempo em que, eu creio, é esse o método mais desejável, não se pode negar que ele tem certas deficiências, e devemos ressaltá-las. Em primeiro lugar, como já alguém disse: “todos os rótulos são pejorativos”. Há sempre alguma injustiça em considerar alguém como partidário de uma escola de pensamento. Não raro, isso resulta em atribuir-lhe concepções que o próprio indivíduo, na verdade, rejeita. Usualmente, há alguma originalidade ou individualidade inconfundível em cada pessoa que pensa, e tal é o que se perde de vista quando ele é encaixado em uma determinada escola. Temos procurado destacar as diferenças individuais tanto quanto nos tenha sido possível fazê-lo. Entretanto, o leitor concordará em que esse é um ponto fraco do método adotado que nós não podemos vencer de todo. Num livro que pretende ser tão-somente uma introdução, esse é preço que se tem de pagar inevitavelmente.

Uma segunda dificuldade consiste no fato de sermos continuamente tentados a exagerar as diferenças dos vários pontos de vista existentes, de modo que nem sempre pontos de contato podem ser evidenciados. Procuramos fazer com que a posição defendida por certa escola fique bem destacada de posição defendida por uma outra. Além disso, o relacionamento de todos os pontos comuns levaria a uma repetitividade bem desagradável. Insista-se, portanto, nisso, que o leitor não deve perder de vista essa limitação do método.

Uma terceira dificuldade reside em que, caso nos limitemos a estudar a teologia em termos das escolas contemporâneas, chegaremos à conclusão de que há certos pensadores de renome que são referidos muito de passagem e outros que até são ignorados. O problema de saber qual o teólogo que deve ser tomado como representante da escola a que esteja filiado é, na verdade, assunto que depende do julgamento de cada um. Não posso ter certeza de que todos concordem com os critérios que adoto.

Posto que nosso propósito é introduzir o leitor ao estudo dos desenvolvimentos modernos da teologia, temos de começar pela história. Os problemas que se nos apresentam atualmente não surgiram de repente, no decorrer do século. Eles foram gerados no passado e não podem ser entendidos senão mediante os vestígios que deixaram em sua história. Não dispomos de espaço para o tratamento adequado da história do pensamento ocidental, mas dedicamos dois capítulos a um esboço de alguns dos elementos mais insinuantes das bases históricas dos vários sistemas.

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O Crescimento da Ortodoxia

É quase impossível empregar o termo “ortodoxia” sem provocar emoções. Há pessoas que ficam horrorizadas só em pensar na probabilidade de não estar na exata linha ortodoxa. Para estes, a ortodoxia, quer se trate de política, de religião ou de boas maneiras, constitui-se na principal necessidade da existência. Para outras pessoas, a ortodoxia é algo como o mais deplorável estado a que o ser humano pode ver-se reduzido. Equivaleria a ser considerado trivial, destituído de originalidade, ou pessoa, propriamente, simplória. De modo geral, os Estados Unidos se orgulham de não seguir os cânones da ortodoxia, de modo que, pode dizer-se que os americanos têm procurado agir como se estivessem produzindo a nova ortodoxia de não se ser ortodoxo. Espero ser capaz de deixar de lado todo conteúdo emocional que a palavra insinua em tudo quanto vou dizer. Por cristianismo ortodoxo eu quero significar alguma coisa exclusivamente descritiva. O cristianismo ortodoxo é aquele que alcançou obter a aprovação da imensa maioria dos cristãos e que é expresso pela maioria das proclamações oficiais ou por confissões de fé formuladas por grupos de cristãos.

Chegando-se a esse ponto, alguém poderia levantar a objeção de que seria melhor falar de ortodoxias, em vez de continuar falando de ortodoxia. Não é fato que cada uma das múltiplas divisões da cristandade defende sua própria ortodoxia? Cada uma das divisões, de fato, assim tem feito, mas tem subsistido certo núcleo de doutrinas cristãs que conseguiram a adesão coerente da maioria dos cristãos, a despeito das notórias diferenças. Estamos interessados, portanto, nesse acervo de crenças sobre as quais existe certa harmonia.

Nos nossos esforços de chegar à ortodoxia devemos começar pelo exame do próprio Novo Testamento. Os primeiros crentes não contavam com a existência de nenhuma ortodoxia no sentido de uma razoável formulação sistemática do pensamento. A erudição crítica moderna da Bíblia tem sugerido que haja muitas teologias dentro do Novo Testamento, mas não lhe tem escapado também que, ao lado das muitas variações na teologia, o fato era que existia uma fé comum. As várias teologias não passam de tentativas feitas por homens sérios no sentido de pensar e exprimir a outro a fé comum. Muito dessa fé é algo implícito mais do que explícito. Vinte séculos não foram suficientes ainda para conseguir-se a elaboração de todas as implicações contidas na fé básica do Novo Testamento.

A fé contida no Novo Testamento encontra-se fundamentalmente alicerçada na admissão de que, na vida, na morte e na ressurreição do homem Jesus, Deus entrou na vida humana de modo decisivo. Exatamente por isso chegaram até nós quatro relatos da vida de Jesus. Foi essa a razão pela qual os cristãos foram capazes de enfrentar as ameaças relacionadas com as masmorras, o fogo e a espada, para difundirem por

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toda parte a Boa Nova que, como se sabe, é o que quer dizer a palavra “Evangelho”. E mera distorção da história supor que o cristianismo tivesse começado por causa do entusiasmo que alguns poucos homens teriam experimentado ao ouvirem a respeito da brilhante ética ensinada por Jesus. Pelo contrário, os primitivos cristãos puseram-se a proclamar ao mundo convicções relacionadas com alguém a quem Deus tinha declarado ser Senhor.

E impossível exagerar a importância da ressurreição para os crentes primitivos. Paulo diz-nos: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé” (1 Co 15.17). Estudando essa passagem, o leitor verifica de imediato que o Apóstolo não estava se esforçando intelectualmente para persuadir os condiscípulos de que Cristo teria ressuscitado de entre os mortos; em vez disso, o Apóstolo fazia uma simples referência a um ponto de fé, a respeito do qual seria impensável a existência de qualquer diferença entre ele e os seus leitores, de modo que lhe era possível prosseguir em seu raciocínio visando ao estabelecimento de prova suficiente para o ensino de outro ponto de fé. A ressurreição de Jesus constituía-se em convicção tal que não se podia admitir que alguém se recusasse a aceitá-la e continuasse a considerar-se como pessoa cristã. A ressurreição de Jesus era a rocha da fé confessada por aqueles crentes.

Nos dias atuais, não é raro que ressurreição signifique para os cristãos nada mais do que mera prova de existência depois da presente vida. Significava isso também para os primeiros cristãos, mas significava muito mais... Primariamente, a Ressurreição de Jesus era a prova máxima de que Jesus era o Cristo ou Messias de Deus. Por séculos, os judeus tinham vivido nutridos pela promessa de que Deus haveria de enviar-lhes o Messias, seu instrumento Eleito, que haveria de salvar seu povo e estabelecer uma sociedade marcada pela justiça. De modo muito compreensível, uma vez que os judeus tinham vivido por séculos sob o domínio de conquistadores estrangeiros, ocorreu-lhes que o Messias deveria ser um poderoso chefe militar, capaz de arregimentar as legiões celestiais para obter a vitória sobre os cruéis opressores. Finalmente, quando Jesus apareceu, seus seguidores ousaram afirmar que ele era o longamente esperado Messias. Entretanto, ele não procurou agir em correspondência com as expectativas de muitos. Ele não arregimentou nenhum exército; ele se recusou a ser feito rei. Por último, ele foi aprisionado, cuspido e escoltado, como se fosse um criminoso comum, para ser executado. Morreu esplendidamente, mas os discípulos acalentavam o desejo de algo diferente de qualquer morte esplêndida. Um Messias que morto, vencido e derrotado pela Roma Imperial dificilmente seria alguém que se pudesse afirmar ser capaz de salvar o homem. Os discípulos puseram-se em fuga não, na verdade, porque não tivessem coragem, mas, sim, pelo fato de parecer-lhes insensato arriscar a vida defendendo uma causa perdida. Admitiram terem-se enganado de modo trágico e o mais adequado era só persuadirem-se cada vez mais disso. Não obstante, nas profundezas mesmas do desespero a que estavam prostrados, viram-se subitamente diante de um desenvolvimento inesperado. Jesus não estava morto. Ele estava vivo; Ele tinha ressuscitado.

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O que a ressurreição significava, portanto, era que Jesus se mostrava definitivamente como sendo o Messias ou o Instrumento do próprio Deus. Deus tinha estado operando através dele, como os discípulos tinham crido anteriormente. Roma imperial, com seu poder cruel, já não deveria ser tida como a força mais invencível neste mundo. Roma tinha desencadeado uma sucessão de acontecimentos que terminariam por sobrepujá-la, o que ocorreu exatamente no instante quando, através de seus soldados, tinha crucificado o humilde carpinteiro da Galiléia. Os poderes do mal - e sabe-se que os cristãos primitivos criam que nelas se incluíam os demônios tanto quanto os homens maus - tinham alcançado o ponto extremo de sua manifestação. Mas, exatamente no momento de sua aparente vitória, eis que Deus se evidencia como muitíssimo mais poderoso do que tais poderes. Jesus não tinha conseguido realizar o que os contemporâneos esperavam que ele realizasse. Entretanto, na medida em que os dias iam passando, seus seguidores entenderam que ele tinha conseguido realizar algo bem melhor. Jesus não lhes tinha dado independência com relação ao Império de Roma, mas lhes tinha possibilitado quebrar os grilhões que os mantinham sujeitos ao pecado e à morte, grilhões pelos quais se sentiam acorrentados ao medo. Ele lhes tinha revelado com muita certeza que o poder do bem é admiravelmente maior do que o poder responsável pela existência do mal.

Mediante a ressurreição de Jesus, Deus tinha demonstrado a superioridade do espírito de Jesus sobre o espírito do mal. Portanto, os cristãos passaram a esperar a volta ou a segunda vinda de Cristo, quando o mal haveria de ser completamente desfeito. As forças do mal já tinham sido derrotadas por ocasião da batalha crucial; nenhuma dúvida se poderia admitir quanto a quem seria o último vencedor. Acontecia, porém, que as forças do mal se encontravam ainda em campo e continuavam capazes de acarretar muito desconforto. A batalha decisiva tinha obtido a vitória, mas a vitória final ainda pertencia ao porvir.

Os discípulos saíram pelo mundo pagão levando a mensagem de que Deus tinha falado, Deus tinha agido, Deus tinha revelado sua natureza ao homem. O homem não precisaria mais se esforçar para subir as encostas da traiçoeira montanha que promete o conhecimento de Deus; Deus mesmo tinha descido das alturas, para permitir que os homens o contemplassem. “Deus”, assim asseveravam, “estava em Cristo, reconciliando o mundo consigo mesmo” (2 Co 5.19).

Não obstante a simplicidade daquela fé, o fato era que se tratava de fé cheia de implicações. Por exemplo, ela implicava em afirmar-se que Deus era como Jesus era; o espírito de Jesus revelava qual era a natureza de Deus. Num mundo onde muitas vozes se erguiam, alegando conhecerem tudo a respeito de Deus, os cristãos se atreveram a crer que Deus mesmo tinha procurado desfazer as nuvens que ocultavam a sua face aos homens. A única palavra encontrada para descrever a vida e o ensino de Jesus foi “amor”. Sendo Deus como Jesus, então “Deus é amor” (1 Jo 4.8).

Com o passar do tempo, o primitivo termo “Messias” ou “Cristo”, conforme a tradução grega, não parecia mais adequado para exprimir todo o conteúdo da fé. Isso começou a acontecer particularmente quando

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tiveram de percorrer outras regiões da Grécia e da Roma imperial, onde ninguém tinha ouvido nada a respeito do Messias esperado pelos judeus. Foi assim que os discípulos tiveram de passar a designar Jesus de “Senhor”, “Salvador” e “Filho unigênito”. Todos esses eram termos pelos quais os cristãos tentavam exprimir a fé que tinham no sentido de que Deus, em Jesus, tinha feito uma revelação de si mesmo aos homens de maneira absolutamente única. Finalmente, eles chegaram a dizer como o duvidoso Tomé: “Meu Senhor e meu Deus!” Jesus não tinha apenas sido enviado por Deus. Ele era o próprio Deus, isto é, Deus em operação na vida humana.

Paulo, proeminente intérprete do cristianismo durante o período quando o Novo Testamento estava sendo escrito, foi quem deu orientação ao cristianismo em sua fase inicial de combates - nas lutas travadas contra o legalismo. Todas as religiões, também as cristãs, tendem a tornar-se legalistas. Isto é, tendem a ensinar que o homem terá de obedecer a certas normas e regulamentações para que possa alcançar o favor divino.

Tanto Jesus como Paulo lutaram contra o legalismo. Jesus afirmou que, quando alguém tivesse feito tudo quanto lhe fosse possível, ainda assim teria de considerar-se um servo inútil (Lc 17.10). Isso queria dizer que tal pessoa não deveria pensar que tivesse feito jus a qualquer pagamento por parte de Deus. Semelhantemente, foi ainda Jesus quem ressaltou que Deus faz com que a chuva caia sobre justos e injustos (Mt 5.45). Deus não abre nenhum guarda- chuva sobre as cabeças dos bons, de modo que possam contar com alguma proteção especial contra estilhaços ou setas provenientes de situações surpreendentes. A dificuldade que os cristãos têm mostrado de aceitar um princípio tão básico que marca os ensinos de Jesus é algo muito estranho. Parece coisa natural, ainda a um bom número de crentes, pensar que a manutenção de uma vida superiormente virtuosa terá de receber alguma recompensa excelente, se não aqui mesmo, com toda certeza no além. Jesus, entretanto, na Parábola dos Trabalhadores da Vinha (Mt 20.1-16), condena totalmente essa maneira de pensar. O obreiro que começou sua fadiga desde o amanhecer e suportou todo o calor do meio-dia, nem por isso receberá maior retribuição no fim da jornada do que a retribuição a ser recebida pelos que à obra se dedicaram tão-somente durante uma hora.

Os primitivos cristãos, sob a orientação de Paulo, puderam entender que o legalismo, isto é, a preocupação em receber uma recompensa da parte de Deus em troca de certas observâncias é coisa basicamente errada. É errado por que comercializa a religiosidade. Passa-se a ser bom na expectativa da retribuição. E errado, porque conduzir os indivíduos muito facilmente ao orgulho e à hipocrisia, como se pode entender das atitudes próprias aos fariseus. Pelo fato de que os fariseus podiam cumprir a lei um pouco melhor que os demais, sentiam- se superiores. Além do mais, o legalismo estimula os crentes no sentido da hipocrisia de pensarem que estão fazendo melhor do que na verdade estejam. Por outro lado, as pessoas que tinham experiência semelhante à de Paulo percebiam-se muito bem como o legalismo levava ao desespero. Ao verificarem como ficavam abaixo dos padrões sublimes de bondade

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que lhes eram propostos, mostravam a tendência de cair em desespero com relação a si mesmos, à salvação e à recompensa tão almejada.

Em lugar do legalismo, Jesus e Paulo preferiram realçar os méritos da salvação por graça, mediante a fé. A doutrina se encontra implícita em Jesus e explícita em Paulo. Suas raízes estão na afirmação de Jesus de que Deus é Pai. Todos os filhos que possam receber o amor paternal têm condições de perceber o significado da salvação pela graça. O filho não precisa conquistar o favor dos pais; sente-se amado, simplesmente por ter vindo ao mundo. Antes mesmo de um filho poder compreender o que seja amor, o fato é que se sente envolvido por uma atmosfera de demonstrações de amor. O verdadeiro pai não procura dar mais presentes aos bons filhos do que o faz aos menos reconhecidos. A autêntica vida doméstica não se alicerça em bases comerciais, dando mais amor em troca de mais virtudes; ela alicerça-se na graça, que é o amor imerecido. O filho deve sentir-se motivado não por desejos de receber maiores favores dos pais, mas, sim, pela gratidão pelos favores que já tenha recebido.

Quando ocorre que um filho pertencente a uma casa paterna desse tipo se desvie, quando se verifica o desapontamento nas esperanças longamente acalentadas, ele não será merecedor dos favores do lar. A parábola a propósito do Filho Pródigo é bela exposição da salvação pela graça. Depois de o filho ter concorrido para a infelicidade do lar e de ter manchado o próprio bom nome e o da família por viver dissolutamente com as meretrizes, viu-se finalmente ganhando seu sustento de modo vergonhoso, no meio dos porcos. Enquanto se esforçava para conseguir algumas “bolotas” ocorreu-lhe um plano pelo qual parecia possível obter novamente os favores paternos. Chegou a articular consigo mesmo um pequeno discurso, mediante o qual seria possível oferecer-se como servo ao pai. Entretanto, o pai não lhe deu tempo para que proferisse o discurso. Estando o filho ainda bem distante, eis que o pai corre ao seu encontro e o aceita como filho, não como servo.

Devemos ter o cuidado de não interpretar a parábola de modo demasiado sentimental. Não se trata de relegar o passado ao passado. O verdadeiro pai não deixa de repreender o filho que se trans via. Robert Louis Stevenson, em seu livro The Master of Ballantrae, narra a história de certo pai que simplesmente fechava os olhos aos erros cometidos pelo filho. O citado autor diz como aquele pai agia de tal maneira que o perdão - para empregar-se mal o nobre vocábulo - como que fluía dele como as lágrimas lhe fluíam por efeito da senilidade. Mas o autêntico perdão paterno não tem nenhuma semelhança com as lágrimas fáceis da senilidade; assemelha-se muito mais à experiência da Cruz do Gólgota; o perdão fere; despedaça a alma. Não é coisa fácil abraçar o pescoço recentemente contaminado por falsas carícias de uma meretriz; não é coisa fácil esquecer as palavras indelicadas e até de zombaria proferidas por vizinhos; todavia, a despeito de todo o custo, o pai perdoa.

E um tal relacionamento familiar que Jesus e Paulo procuram usar como ilustração da graça de Deus. O amor de Deus não é algo que o homem tenha de comprar e mereça. “Quando ainda éramos pecadores” diz Paulo, “Cristo morreu por nós” (Rm 5.8). Quer dizer, antes que o homem se tivesse feito suficientemente bom, Deus agiu para salvá-lo.

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Mediante a pessoa de Jesus, Deus oferece ao homem a promessa de que, caso o homem tão-somente se volte para o Pai Celestial, será recebido. Essa atitude de perdão não é uma experiência insignificante para Deus. Mesmo que Paulo não tenha delineado nenhuma doutrina clara com respeito à significação da Cruz, o Apóstolo não revela dúvidas de que ela representa exatamente o preço que Deus teve de pagar para que pudesse reconquistar o homem do domínio do pecado. Esse perdão de Deus poderia, então, ser alcançado por qualquer ser humano, desde que o aceitasse pela fé.

A fé não significa, no entender de Paulo, crer em algo, embora se saiba que o crer está envolvido na experiência da fé. Mas a fé é, primeiramente, o ato da auto-rendição. O filho pródigo, por exemplo, revelou ter fé no momento em que se levantou para voltar à casa paterna. A fé é, para Paulo, portanto, a entrega sem reservas pela qual o indivíduo é levado a agir de certa forma. A fé para com Deus, então, não significaria uma simples admissão da existência de Deus nem qualquer crença quanto à pessoa de Jesus. Significaria, sim, o entregar-se de todo coração, para comportar-se como filho de Deus, de modo a obter a exata maneira de pensar que houve em Cristo Jesus (Fp 2.5).

Estaria em erro, porém, quem supusesse que a graça seria tão-somente uma predisposição Divina no sentido de perdoar àqueles que fossem a ele com fé. A graça incluía também o necessário poder espiritual que é dado ao indivíduo para que se torne capacitado a realizar o que antes lhe era impossível. Jesus assegurou aos discípulos que a fé é capaz de remover montanhas e Paulo afirma que, através da fé foi possível encontrar forças para a realização das virtudes que antes ele bem conhecia, mas não tinha condições de cumpri-las. Paulo nos ensina que podemos “viver em Cristo” uma vida diferente, caracterizada por novo ânimo e imenso poder.

A graça de Deus liberta o homem do medo e do próprio sentimento de culpa. O homem, sob a influência da graça, entende que é aceito por Deus, mesmo como se encontra. Passa a nutrir-se da convicção de que nem a vida nem a morte, nem principados nem potestades poderão separá-lo do amor de Deus que está em Cristo Jesus (Rm 8.38-39). Além disso, liberta-o da servidão aos hábitos, à indolência e às fraquezas, que tanto lhe fazem presa do pecado. Através de toda a história do cristianismo, os convertidos têm afirmado que em Cristo eles receberam duas formas de liberdade: liberdade do medo e do poder do pecado.

As linhas acima retratam o núcleo da fé cristã sobre que se baseia a ortodoxia. A ortodoxia se desenvolveu levando em conta a maneira de viver produzida pelas básicas convicções da fé. A teologia cristã não é um sistema filosófico que tivesse provindo de longa reflexão por determinados indivíduos privilegiados por condições de quietude e de estudos. Pelo contrário, a teologia surgiu no entrechoque de muitas lutas, através da atuação de homens que jamais desertaram a linha de fogo sustentada pela Igreja. Todas as peças que passaram a constituir a plataforma da ortodoxia ali foram postas, tendo-se em vista alguma heresia que ameaçava transtornar os conceitos sobre a natureza do cristianismo e destruir a fé que lhe era substancial. Enfrentando os argumentos da heresia, os cristãos cada vez mais se sentiam forçados a

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pensar mais demoradamente nas implicações dos enunciados da fé. Pelo fato de que as doutrinas do cristianismo surgiram das experiências da vida e não de discussões mantidas em ambiente acadêmico, elas nem sempre poderão ser entendidas por homens que, falando- se figuradamente, ficam como traças nas bibliotecas lendo a respeito das doutrinas. As doutrinas podem ser devidamente entendidas, sim, por pessoas que de fato participam das exigências da vida cristã, que se predispõem a enfrentar, como o fizeram os formuladores da ortodoxia, os perigos próprios à linha de fogo onde a vida cristã exige coerência.

Como acontece com o termo “ortodoxia”, também “heresia” é termo bastante carregado emocionalmente. Quero dizer com isso a falsa interpretação que existe quanto à posição ortodoxa. A primeira heresia de vulto, o Gnosticismo, surgiu nos séculos segundo e terceiro. Foi um movimento que se constituiu em séria ameaça dentro do cristianismo, na ocasião quando os imperadores romanos o estavam ameaçando externamente. Das duas ameaças, os gnósticos eram os inimigos mais perigosos. Roma imperial não podia matar o cristianismo de maneira nenhuma; mas o Gnosticismo, caso tivesse conseguido impor-se, o teria pervertido.

Os gnósticos eram filósofos que insistiam em produzir uma mistura de todas as religiões existentes no mundo, aproveitando-se do que cada uma pudesse oferecer de melhor. Não passou muito tempo até que um bom número deles conseguisse penetrar na comunidade dos crentes. Começaram por estabelecer conexões entre algumas de suas idéias e as do cristianismo, mas, ao fazê-lo, tinham de introduzir mudanças no cristianismo, de modo que este se enquadrasse no esquema das idéias que traziam consigo.

Uma das convicções básicas dos gnósticos consistia no que conhecemos pelo nome de dualismo. Isto é, eles criam que o mundo se divide, em última análise, entre dois poderes: o do mal e o do bem. Concordando com a filosofia grega de modo geral, eles identificavam o mal com a matéria. Por causa disso, rejeitavam o Deus do Velho Testamento, pois ele tinha criado o mundo material. O criador deste mundo tem de ser, necessariamente, mau, era o que insistiam em afirmar.

Também, pelo fato de os gnósticos identificarem o mal com o mundo material, procuravam, em conseqüência, obter a salvação fugindo do mundo. Todas as coisas materiais seriam más e, assim, um empecilho à salvação da alma. Criam que a alma só poderia se salvar através de renúncias de natureza ascética com relação a tudo que se prendesse à carne e, além disso, através do conhecimento. De fato, sabe-se que o termo “Gnóstico” vem do grego gnosis, que significa “conhecimento”. Eles se interessavam de modo muito particular pelas formas místicas do conhecimento. O conhecimento seria algo a ser mantido sob segredo, devendo tornar-se acessível apenas a um círculo limitado de pessoas iniciadas em mistérios, tornadas capazes e dignas de conhecer a verdade.

Os gnósticos valorizavam um bom número de noções próprias ao cristianismo. Por exemplo, sentiam-se bem com a idéia de que Cristo foi enviado por Deus a este mundo. Ensinavam que o bom Deus tinha enviado um de seus subalternos, Cristo, a este mundo, com o propósito de

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libertar as almas dos homens da prisão da matéria, à qual teriam sido aprisionados pelo Deus mau do Velho Testamento. Cristo, entretanto, não aceitaria em que sua pureza fosse manchada pela matéria. A rigor, não seria possível que ele se tornasse homem. Não seria admissível que Cristo nascesse de mulher, uma vez que, mesmo a mulher sendo virgem, Cristo não poderia evitar a de contaminação. Igualmente inimaginável para eles era admitir que Cristo tivesse comido e bebido, ficado exausto e sofrido até a morte. As várias correntes gnósticas faziam uso de diferentes argumentos na tentativa de resolver o incômodo dilema. Um dos grupos insistia em que o Cristo Divino tinha adotado o humano Jesus por algum tempo e, através dele tinha agido e falado, mas saíra de Jesus antes da crucificação. Outro dos grupos preferia admitir que Jesus não tinha corpo real, absolutamente; tratava-se de alucinação capaz de passar como fato verdadeiro. Fosse qual fosse a escola a que o gnóstico pertencesse, concordaria, não obstante, em admitir que Jesus não seria, em hipótese alguma, ser humano real. Era uma heresia, portanto, que não negava que Jesus fosse divino; negava, sim, que Jesus fosse humano.

Os gnósticos tornaram-se bem difíceis de ser combatidos, pelo fato de que, em sua maioria, eles tinham um comportamento muito puro. Uma vez que, então, o ascetismo contava com grande número de admiradores, a renúncia aos desejos da carne, em que tanto eles insistiam, fazia com que tivessem considerável receptividade. Nos argumentos que empregavam com freqüência, eles insistiam em apresentar-se como detentores de algumas informações sigilosas com as quais os seus adversários não contavam. Jesus tinha confiado tais verdades ao círculo limitadíssimo de gnósticos contemporâneos, escondendo-as dos judeus materialistas que fundaram a Igreja. Quando suas alegações não convenciam, os gnósticos passavam a falar de uma revelação especial que teriam recebido do céu e capaz de corroborar os pontos de vista que proclamavam. Não obstante, o cristianismo tinha de promover a expulsão das influências gnósticas de seu meio. Se o gnosticismo tivesse triunfado, a mensagem do cristianismo destinada a todos os homens teria sido substituída por outra, destinada a um círculo de privilegiados. O Cristo dos crentes teria deixado de ser uma figura humana e teria se tornado, como um dos muitos deuses das religiões de mistérios - simples entidade vaga e lendária. Os cristãos teriam sido forçados a abandonar a preciosa herança de que eram portadores, vinda do judaísmo, passando a comportar-se como comunidade de ascetas fugindo do mundo.

O cristianismo se uniu para o grande esforço de expulsar aquela heresia e, assim fazendo, teve a oportunidade de consolidar a posição ortodoxa que lhe convinha. O “Credo Apostólico”, que é, ainda, repetido em muitas igrejas, surgiu durante aquele tempo e pode ser melhor compreendido como expressão da polêmica contra o gnosticismo. Em primeiro lugar, o Credo faz afirmação quanto a “Deus, Pai Todo-Poderoso, criador do céu e da terra”. Isto é, o Credo repudia a idéia de que o mundo criado seja mau ou tenha origem em qualquer deus mau. O mundo material é bom e digno de ser usado e usufruído pelo homem.

O “Credo Apostólico”, em seguida, passa a afirmar o que se cria de “Jesus Cristo, seu Filho unigênito, nosso Senhor, que foi concebido mediante o Espírito Santo, nascido da Virgem Maria, sofreu sob Pôncio

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Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado”. Muitos hoje em dia param perplexos diante da frase: “nascido da Virgem Maria”. Não conseguem aceitar o nascimento virginal. Entretanto, por ironia, aos primitivos gnósticos, o problema não se encontrava associado a “virgem”; associava-se a “nascido”. O homem atual tem a impressão de estar diante de coisa estranha, ao ouvir: “nascido da Virgem Maria”. O gnóstico experimentava a mesma sensação, ao ouvir; “nascido da Virgem Maria”. Efetivamente, a frase, juntamente com as outras relacionadas com sofrimento, morte e sepultamento, foi o método próprio pelo qual a Igreja conseguiu deixar patente sua fé na completa humanidade de Jesus. Como quer que fosse que o cristianismo ortodoxo preferisse dizer o que cria concernente à divindade de Jesus, o fato notório sempre foi a manutenção da convicção quanto à humanidade de Jesus.

À luz da mesma consideração, deve ser compreendida a outra frase do “Credo”, que causa dificuldade a muitos pensadores atuais, isto é, “a ressurreição do corpo”. Pergunta-se, vão ser: “Será que temos de admitir que os átomos do corpo vão ser reconstituídos e revivificados outra vez?” Na verdade, a quem quer que tenha lido o capítulo 15 da Primeira Epístola aos Coríntios jamais ocorrerá supor que esta é a maneira de crer conforme a doutrina. Sabe-se que a doutrina reflete o método pelo qual os judeus criam e afirmavam ser o homem um todo; o homem não é dividido, como os gnósticos e certos filósofos gregos afirmavam, em alma boa e corpo mau. A doutrina gnóstica da imortalidade da alma supunha a crença e implicava em que a alma seria necessariamente imortal e tão-somente precisava ficar livre da prisão do corpo. A doutrina implicava ainda mais ao afirmar que o corpo seria, na melhor hipótese, um fardo para a alma e, na pior hipótese, seria um obstáculo à salvação da alma. O cristianismo negava tudo isso, insistindo no valor próprio do corpo, e, assim, ressaltando a importância da presente existência.

Outro problema de maior relevância que atraiu muito a atenção dos cristãos dizia respeito à Trindade - a relação entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Também as discussões em torno desse assunto foram suscitadas pela existência de heresias. Os cristãos jamais ocuparam seu tempo pensando sobre a Trindade, considerando-a matéria de debate filosófico. Agostinho refletiu bem sobre o que aconteceu, declarando que os pronunciamentos feitos com relação ao assunto não visavam à necessidade de dizer algo, mas tão-somente atendia à necessidade de romper o silêncio. Na verdade, tinham surgido certas idéias que tornaram impossível a manutenção do silêncio em torno da matéria.

Depois de refletir muito, cheguei à conclusão da impossibilidade de tornar clara a doutrina ao leitor, dentro do pouco espaço disponível. As mais poderosas mentes entre os cristãos discutiram o assunto através de séculos antes que se chegasse à mais satisfatória conclusão, sendo que os debates pressupunham pleno conhecimento das correntes filosóficas vigentes, de modo que a doutrina jamais poderia ser explanada concisamente. Tenho de limitar-me a fazer poucas observações que poderão ajudar-nos no propósito que nos anima.

O problema da Trindade foi debatido no Concilio de Nicéia, realizado em 325, do qual nos veio o “Credo de Nicéia”, encontrável em hinários e livros de orações de algumas denominações modernas. Muitas

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pessoas terão ouvido a zombaria que se faz a propósito do Concilio de Nicéia, no sentido de que ali se teria travado uma batalha que por pouco teria dividido a cristandade, mas que aquela batalha teria girado apenas em torno de um “iota”, a menor letra do alfabeto grego. Foi bem verdade que as duas facções em Nicéia mantiveram-se em luta a respeito de qual de duas palavras deveria constar na formulação do “Credo” e também é verdade que a única diferença quanto à enunciação e grafia das duas palavras consistia na presença ou ausência da referida letra grega. Enquanto uma das facções insistia na adoção da palavra homoousios, para estabelecer que Cristo é da mesma substância de Deus, a outra facção empenhava-se com igual ardor pela adoção da palavra, homoiousios, para afirmar que Cristo seria de substância semelhante à de Deus. Entretanto, só a ignorância poderia concluir disso que o problema não teria maior relevância.

Lembro-me de certa história que apareceu numa revista há poucos anos. A história procura explicar o porquê de o telégrafo e outros sistemas de comunicação através de cabos submarinos escreverem os nomes pertinentes à pontuação, em vez de adotar os respectivos sinais. Certa mulher, que fazia excursão pela Europa, passou um telegrama ao marido nos seguintes termos: “Encontrei maravilhosa pulseira. Preço trezentos e oitenta mil cruzeiros. Posso comprá-la?” Com toda urgência, o esposo lhe respondeu: “Não, preço muito alto.” Ocorreu que o telegrafista, ao transmitir a mensagem, deixou colocar o sinal da vírgula. A senhora em questão recebeu a mensagem e entendeu que o esposo estava lhe dizendo que o preço não era muito alto. Em conseqüência, comprou a pulseira. O esposo moveu processo contra a companhia e a justiça lhe deu ganho de causa. Desde então, os que se têm utilizado do código Morse escrevem as palavras pertinentes à pontuação. A anedota serve para lembrar que a importância de qualquer mensagem não poderia ser avaliada pelo tamanho da pontuação nem pelo número das letras empregadas. Embora fosse só um “iota” que dividisse as facções em Nicéia, o fato era que o problema em debate girava em torno de concepções da fé cristã tremendamente diferentes.

O problema da Trindade surge da convicção cristã de que Deus esteve agindo em e através de Jesus Cristo. No decorrer do quarto século, Ário propagou a teoria de que Cristo era um deus menor criado pelo único Deus. O tal deus menor teria vindo à terra na pessoa do homem Jesus, que, entretanto, não seria realmente homem, mas, sim, um ser divino imune às limitações normais da humanidade. Caso o partido liderado por Ário tivesse obtido a vitória pela inserção do “iota” no “Credo”, então o ponto de vista que defendiam teria prevalecido como cristianismo ortodoxo. Significaria dizer que o cristianismo teria se degenerado, descendo à condição de mero politeísmo. Ele passaria a admitir dois deuses e um Jesus que, no final de contas, não seria nem deus nem homem. Teria significado que Deus se mostraria como absolutamente transcendente, de modo a não poder ser alcançado pelo homem. O resultado teria sido tornar o cristianismo em mais uma religião de mistério tão familiar no paganismo.

O “Credo de Nicéia” afirma que Deus e Cristo são da mesma substância. Essa era a maneira própria de expressar-se, em termos da

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filosofia contemporânea, a verdade de que há um só Deus. Deus encontra-se em atividade na criação e sustentação do universo (como Pai); estava em Cristo (como Filho) e atua nos corações crentes (como Espírito Santo). O Credo de Nicéia rejeitou todas as pressões tendentes à admissão de três deuses que fossem unidos de alguma forma. Houve cristãos que chegaram a pensar em termos de três deuses, mas, ao pensarem assim, sabiam muito bem o quanto se distanciavam das veredas da ortodoxia. As críticas levantadas por maometanos, judeus e unitarianos no sentido de afirmarem que o cristianismo ortodoxo dispõe de três deuses e, portanto, teria abandonado o monoteísmo do Velho Testamento é atitude oriunda de uma maneira incorreta de entender.

Um dos fatores de complexidade é que a doutrina trinitária se refere a “três pessoas”, mas um só Deus. A palavra “pessoa” não tinha para os primitivos pensadores a mesma significação que tem hoje. Para nós, “pessoa” sempre refere-se a Pedro, João ou Henrique. Entretanto, o termo latino, persona, significava originalmente uma máscara que era usada por qualquer ator em ambiente teatral. De acordo com o pensamento trinitariano, tal máscara não seria utilizada pela Divindade para esconder, mas, sim, para revelar aos homens seu verdadeiro caráter. Está claro que, ao pensar-se na Trindade, não se deve afirmar a existência de três pessoas no sentido em que a palavra nos é familiar. A interpretação de Agostinho foi a que se tornou ortodoxa, se não universalmente aceita, para o Ocidente. Ele acreditava que, uma vez que o homem foi criado à imagem de Deus, foi criado à imagem da Trindade. Portanto, ele fazia uso de analogias derivadas da constituição mental do homem para dar explicações sobre Trindade. A Trindade seria como a inteligência, a memória e a vontade na mente humana. Em resumo, de acordo com a interpretação de Agostinho, não temos de pensar na existência de três pessoas quando consideramos a Divindade; podemos pensar numa só pessoa. E claro que Agostinho procurou deixar evidente que apenas fazia uso de uma analogia; ele foi um pensador profundo demais para afirmar que entendia ser Deus semelhante a um homem glorificado, assentado lá no céu. Todavia, caso seja nosso desejo falar de Deus, temos de utilizar analogias, e uma analogia para explicação da Trindade não seria mesmo em termos de três homens, mas, sim, de um só homem.

A doutrina da Trindade foi importante, não só por ter salvo o cristianismo de um possível retorno ao paganismo, mas também por proporcionar aos crentes a necessária segurança de que foi Deus mesmo quem esteve presente em Jesus Cristo, tendo sido responsável pelo que o Salvador fez sobre a terra. A salvação do homem não fica na dependência de alguma fragilidade concernente a qualquer conquista humana, nem depende do que alguma entidade inferior a Deus tivesse efetuado. O homem tem condições de triunfar sobre o medo e a dúvida pelo fato de que o próprio Deus foi quem agiu em seu favor, tendo-se revelado como Deus cheio de amor e de misericórdia.

A controvérsia trinitariana foi seguida pela que se tornou conhecida pelo nome de controvérsia cristológica. Essa controvérsia aconteceu por ocasião do Concilio de Calcedônia, em 451, e resultou na elaboração do “Credo de Calcedônia”. Num sentido, pode-se dizer que a controvérsia

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trinitariana se travou em torno da natureza de Deus no céu. Como é que Deus é, admitindo-se que Jesus é divino? A doutrina cristológica, por outro lado, procurou fixar-se em entender como Jesus seria, durante sua permanência na terra, uma vez que se afirme sua divindade. O Concilio de Nicéia tinha estabelecido a existência de um só Deus e que Jesus seria plenamente divino, ato do único Deus. Não demorou muito para que as pessoas começassem a ficar perplexas sobre a questão de como Jesus podia ser divino e humano. Como seria possível afirmar que o eterno, imutável e perfeito Deus podia assumir as limitações de um ser humano? Muitos entendiam que isso era simplesmente impossível.

Certo grupo de pensadores, conhecidos como apolinarianos, admitia que Jesus, com efeito, tinha um corpo humano (não poderiam deixar de admiti-lo, a menos que caíssem no velho erro gnóstico), mas negavam que ele tivesse uma verdadeira personalidade humana. A segunda Pessoa da Trindade teria ocupado o lugar da personalidade humana no corpo de Jesus. Apesar da concessão de que Jesus dispunha de corpo, isto não o fazia mais humano do que os gnósticos seriam capazes de admitir. Continuaria a impossibilidade de crer com a Bíblia que ele “foi tentado em todas as coisas como nós somos tentados” (Hb 4.15). A oposição surgida contra os apolinarianos insistia em afirmar a existência de duas naturezas em Jesus, estando nele o próprio espírito humano, e o espírito de Deus. Os dois teriam acabado por fundir-se, pelo fato de que o Jesus humano se deu a si mesmo de modo completo ao Jesus divino, resultando disso uma unidade moral. Esse último ponto de vista, conhecido como Nestorianismo, admitia a existência de liberdade moral em Jesus de modo a tornar viável a possibilidade de ele ser tentado. Entretanto, parecia conceber Jesus como tendo personalidade dupla ou dividida.

A decisão adotada em Calcedônia é demasiado complexa para que possa ser analisada no espaço disponível aqui e as autoridades ainda não estão de acordo quanto às implicações que ela tem. Todavia, este fato pode ser levado em consideração: a fé ortodoxa ficou estabelecida como sendo aquela que afirma ser Jesus verdadeiramente divino, obra de Deus, e também que ele é verdadeira e completamente humano. O Concilio de Calcedônia repudiou qualquer teoria que negasse quer a divindade, quer a humanidade de Jesus. Não pode haver dúvida de que esta era a mesma fé acalentada pelos mais primitivos cristãos e, como tal, Calcedônia foi fiel para com a preciosa herança. Não obstante, também é claro que o problema de como se pode entender que Jesus fosse tanto humano como divino continua sem nenhuma solução. Verificaremos que o problema volta à controvérsia na teologia moderna.

E muito fácil ficar criticando os debates acontecidos em Nicéia e em Calcedônia. Houve ali muitos exemplos de ressentimentos mesquinhos, de choques de nacionalidades, de manobras políticas e de ambições de poder. Apesar de tudo, porém, quando se contempla os acontecimentos sob a perspectiva da História, não se pode deixar de admitir que alguma orientação divina se fazia evidente. A despeito das fraquezas humanas, tão evidentes então, o fato foi que a Igreja demonstrou muita firmeza contra as forças que seriam capazes de destituir o cristianismo do monoteísmo e do Jesus histórico e que a rebaixariam à condição de qualquer crendice pagã. Será bom manter essa consideração em mente

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quando ficamos impacientes à vista de outras tantas fraquezas humanas, que são por demais evidentes nas discussões do atual Concilio Mundial de Igrejas, sempre que faz algum esforço para reformular algumas das implicações da fé em face das necessidades dos dias atuais. É fácil chamar a atenção para as fraquezas citadas, mas os historiadores no futuro terão melhores condições de perceber a mão de Deus operando nas atividades do Concilio.

O mais notável pensador com que a ortodoxia contou no Ocidente foi Agostinho. A Igreja Católica o canonizou, mas sabe- se que a Reforma Protestante se apoiou mais coerentemente sobre Agostinho do que o fez com relação a qualquer outro pensador de antes da Reforma. Já fizemos referências à contribuição feita por ele para a fixação da doutrina da Trindade. Agostinho tem de ser alinhado entre os mais raros gênios, que aparecem só uma vez no decorrer de cada milênio. O pensamento moderno lhe deve mais do que o revela o reconhecimento a ele dirigido. O Bispo de Hipona fez com que a reflexão humana se tornasse capaz de se voltar para dentro da própria mente, para que se auto-analisasse e, como foi dito por certo escritor recente, quase que a única coisa que Agostinho teria de aprender da psicologia moderna seria o jargão adotado. Infelizmente, podemos citar só um dos aspectos da contribuição admirável do excepcional pensador. Foi ele quem mais claramente despertou o pensamento ordotoxo para a concepção do pecado original.

Antes de Agostinho, o pensamento cristão tinha dado expressão à sua fé, afirmando que Jesus, considerado como a Revelação de Deus, era também a revelação do que o homem foi destinado a ser desde a criação. Sendo assim, algo parece estar errado. O homem, com suas muitas expressões de visão curta, seu ânimo vingativo, seus incessantes crimes, tanto de comissão como de omissão, encontra-se muitíssimo aquém de revelar o mesmo espírito que houve em Jesus. Em face disso, a ortodoxia tinha declarado que na verdade o homem decaíra. Adão, o primeiro homem, tinha feito uso da liberdade que Deus lhe dera para fazer uma escolha contrária à vontade expressa de Deus e, em conseqüência, comprometera todo o gênero humano. Cristo foi enviado ao mundo para restaurar o homem de modo que lhe seja possível retomar sua posição original.

A doutrina de Agostinho, como se verifica em outros enunciados da ordodoxia, foi elaborada tendo-se em vista uma heresia. A heresia que tinha de ser combatida era de responsabilidade do monge inglês Pelágio. Pelágio insistia em afirmar que todo homem se encontra absolutamente livre para escolher o bem ou o mal em qualquer momento de sua vida. Insistia em que a queda de Adão não tinha afetado a mais ninguém além dele mesmo. Contra tais afirmações, Agostinho opunha a negação de que o homem seja livre no sentido de poder fazer o bem ou o mal. Trabalhando com a intuição de princípios que nos fazem lembrar os enunciados da moderna psicologia do subconsciente, Agostinho ressaltava que os impulsos que caracterizam a raça humana em suas manifestações pecaminosas são mais fortes do que a doutrina Pelagiana admite. Não se pode acreditar que o indivíduo, no início, seja como uma folha em branco; ele tem consigo elementos que vêm do meio social e outros hereditários. Pelo fato de que a herança é pecaminosa, verifica-se

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que o homem é pecador, isto é, o homem tem propensões para o pecado; ele tem uma tendência tão forte para a pecaminosidade que, a não ser mediante o socorro da graça Divina, ele não pode se livrar do mal. Em vez de ser livre, o homem, de fato, encontra-se preso a uma conduta pecaminosa, e poderá tornar-se livre só na medida em que Deus lhe proporcione a graça suficiente para que rompa as correntes que o prendem.

Agostinho situou a fonte do pecado original, isto é, a fraqueza ou incapacidade de fazer o bem, no sentimento do orgulho humano. Em uma renovada alusão à narrativa Bíblica concernente a Adão, Agostinho ressaltou que Adão tinha sido livre. Ele tinha a sua disposição tudo quanto desejasse enquanto vivia no Jardim do Éden. Entretanto, Adão desejou algo mais: ele quis ficar independente de Deus. Ressentiu de estar em situação de dependência com relação ao Criador; ele desejou tomar o lugar de Deus. Assim, iludido pela serpente que lhe tinha passado a idéia de que ele podia tornar-se como Deus, ele comeu do fruto da árvore. Isto é, a recusa do homem de aceitar a posição de criatura que lhe foi determinada, de modo a acomodar-se ao fim para que foi formado, leva-o à descabida presunção de querer ser igual ao Criador. Recusando-se a dar a Deus o lugar próprio em sua vida, o homem descobre que o resultado disso é o prevalecimento da concupiscência ou ambição desmedida com relação às coisas que há no mundo. Em outras palavras, uma vez que Deus deixa de ser o próprio centro da vida, o homem degrada-se a ponto de cometer todas as demais formas de pecado: torna-se avarento, lascivo, capaz de roubar o próximo, assassinar e comportar-se egoisticamente. A palavra “concupiscência”, entretanto, implica também a questão do sexo. A princípio, no caso particular de Agostinho, as deturpações do sexo se constituíam em apenas uma categoria entre os muitos desejos mundanos que tanto arruínam o ser humano; todavia, houve sempre uma tendência, tanto em Agostinho como em seus seguidores, no sentido de darem muita ênfase ao pecado proveniente do sexo, mais do que o faziam com relação a outras formas do pecado.

O pecado de Adão foi transmitido aos descendentes. Sendo que a procriação acontece através do sexo, entende-se que haja uma causa dupla para a propagação pecaminosa. A origem sexual de cada ser humano é pecaminosa e a tendência para o pecado é também transmitida como fraqueza congênita.

Caso desejemos entender os teólogos modernos que procuram reconsiderar a doutrina, temos de levar em conta que em Agostinho aparecem de fato dois elementos distintos. Primeiro, houve uma análise psicológica do homem. De acordo com essa análise, o orgulho, que vem a ser uma das fraquezas básicas no homem, explica a existência do imenso abismo que separa o que o homem foi destinado a ser e o que ele é. Disso se despreende que a fonte dos males que atingem o homem é de natureza espiritual. Entretanto, na explicação que oferece a propósito de como tal situação teria começado e de como se teria transmitido, depara-se com a doutrina de Agostinho concernente à pessoa de Adão e à herança associada aos traços que transmitiu aos descendentes. Quase pode-se ter a impressão de que a natureza espiritual do pecado é transformada em defeito biológico. Não é fácil conciliar a análise espiritual do pecado com

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a noção de uma transmissão biológica. Certamente, é possível, como consideraremos mais adiante, aceitar a análise espiritual feita por Agostinho, rejeitando-se, não obstante, a teoria da herança defendida por ele.

A teoria agostiniana o levou à doutrina da predestinação. Esta nunca se tornou uma doutrina aceita por todos os cristãos, mas vamos encontrá-la outra vez na ortodoxia Calvinista. Concluindo-se que o homem não pode salvar a si mesmo, que a graça de Deus é que tem de salvá-lo, então como devemos entender que Deus se decida quanto a quem ele terá de socorrer? Não deveríamos entender, pensava Agostinho, que Deus fique condicionado à previsão de que alguém venha a merecer a graça, pois esta é livre, isto é, imerecida. Quem lê as Confissões de Agostinho, autobiografia de sua vida espiritual, sempre percebe como o autor repete as expressões de sua admiração pelo fato de ter sido salvo por Deus. Agostinho confessa-se absolutamente persuadido de que nada fizera por merecer a salvação. Ele não pensava que vinha de si mesmo a virtude de não mais andar nos caminhos do erro e do pecado, nos quais encontrava tanto prazer no passado. Deus tinha agido sobre o autor de maneira como jamais poderia ter sido prevista. Deus o tinha escolhido e destinado para a salvação.

Na época da Reforma, a maioria de seus líderes deixou de pôr em dúvida qualquer das doutrinas consideradas ortodoxas vistas até aqui. Lutero, por exemplo, retomou a doutrina de salvação pela graça, ressaltando-a de modo como não o fora desde os dias de Paulo. Sua atitude o colocou em conflito aberto com a doutrina católica concernente à natureza da Igreja e da autoridade de sua hierarquia. Recusando-se a submeter-se às pretensões de supremacia do Papa, Lutero entendia que a autoridade última residia na Bíblia, interpretada pelo Espírito Santo operando dentro do coração crente. Em lugar da hierarquia católica, ele passou a ensinar a doutrina do sacerdócio de todos os que crêem. Isto é, nenhum crente precisaria de sacerdote para servir-lhe de intermediário diante de Deus, com exceção de Cristo, que é o Mediador perfeito e sacerdote perfeito que intercede em favor de todos.

Calvino concordou com Lutero e produziu a primeira Teologia Sistemática protestante. O centro da teologia, para Calvino, é Deus, e o principal objetivo do estudo da teologia é a glorificação de Deus. Toda fé que admita qualquer capacidade natural no homem será, no entender de Calvino, algo semelhante a apoiar-se em algo sem firmeza. Onde quer, porém, que o homem se revele incapaz, Deus se apresenta como tendo todo o poder. Pode-se confiar em Deus, pois ele é capaz de fazer tudo que o homem não pode. Assim, percebe-se como Calvino se fez seguidor da doutrina da predestinação ensinada por Agostinho.

A doutrina da predestinação é das mais difíceis de ser entendida pelo homem atual. Todavia, ironicamente, verifica- se que o homem atual se mostra propenso a aceitar teorias deterministas que negam a liberdade e a dignidade do ser humano. As doutrinas modernas do tipo determinista são menos plausíveis do que a enunciada por Calvino, pois elas não reconhecem a existência de um Deus misericordioso capaz de mudar o curso necessário e determinado do universo. A predestinação se revelou importante para os calvinistas como doutrina básica para a

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experiência da segurança espiritual. O católico romano, por exemplo, podia encontrar tranqüilidade quanto à sua salvação por entender que se encontrava dentro da verdadeira Igreja. Os protestantes preferiram dar um passo decisivo na rejeição dessa tranqüilidade, expondo-se a perder a salvação, a fim de que pudessem seguir as leis da própria consciência. A doutrina da predestinação, portanto, é a resposta calvinista à presunção católica. A salvação da alma, dizia Calvino, não depende de ela ser filiada ou não a uma instituição. Salvação é experiência que diz respeito ao homem e Deus. Temos de confiar que Deus vai salvar os que elegeu. As diferenças que dividem os homens nada significam diante de Deus.

Há uma outra peça importante, na plataforma da ortodoxia, que deve ser referida. É a doutrina da expiação. Todas as religiões têm sentido necessidade de tratar de alguma idéia de expiação. Uma vez que se admita que Deus faz exigências que os homens não podem satisfazer, torna-se inevitável o problema de saber-se como será possível obter reconciliação com a Divindade, da mesma forma que, se alguém percebe que ofendeu a um amigo ou outra pessoa qualquer, sabe que será conveniente a adoção de um meio de expiação a fim de que a comunhão desfeita seja restabelecida.

Contrastando com tudo que se conhece de outras religiões, o cristianismo tem sustentado um só ponto de vista a esse respeito. Enquanto se verifica que a maioria das religiões crê que o homem tem de fazer algo para aplacar a Deus, o cristianismo ensina que foi o próprio Deus quem efetuou a expiação. Outras religiões oferecem sacrifícios visando a que Deus desvie sua face irada e perdoe ao homem. O cristianismo, porém, ensina que Deus efetuou o sacrifício em e mediante Jesus, de modo que sua iniciativa resultou no estabelecimento da comunhão entre a Divindade e o homem. Entretanto, surge o problema: Que foi mesmo que Deus fez? Paulo foi claro em salientar que a morte de Jesus é um fato de importância central, mas não acrescentou maiores explicações. A Igreja nunca fez convocação de um Concilio para definir a matéria como o fez a propósito da Trindade e da natureza de Cristo. Não se tem adotado uma formulação doutrinária neste sentido desde o começo da história do cristianismo e, em conseqüência, não se pode falar de posição ortodoxa a respeito.

A chamada doutrina clássica da expiação foi ensinada por mais de mil anos. Segundo se dizia, Satanás tinha conquistado a alma do homem pelo fato do pecado em que este tinha caído. Mas Deus teria feito uma proposta de troca a Satanás: entregaria a Satanás a alma de Jesus, embora ela não lhe pertencesse, em troca de Satanás liberar as almas daqueles que aceitassem o Salvador. Satanás teria concordado, pensando que Jesus não passava de um homem bom. Ao recebê-lo, porém, viu que era impossível retê-lo, pois Jesus era Filho de Deus. Por isso Satanás não teria ficado com as almas dos crentes nem com Cristo. A doutrina assim apresentada soa muito grosseira e implica em que Deus se mostre capaz de agir com astúcia face ao Diabo. Ela contém, não obstante, duas importantes verdades. Expressa, por exemplo, que, mediante a morte e ressurreição de Jesus, Deus sobrepujou as forças do mal. O bem, portanto, mostra-se mais poderoso do que o mal. Por outro lado, a doutrina assinala o fato de que o mal tende a exagerar-se e, finalmente,

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destruir-se a si mesmo. “Dê-se bastante corda a um homem e ele acaba se enforcando.” Isso é, de fato, uma realidade. Caso Hitler, por exemplo, se contentasse com um pouco menos de poder, certamente teria conseguido manter-se por mais tempo no governo da Alemanha. O mal não poderá jamais satisfazer-se e, apresentando crescentes expressões de ganância, acabará se destruindo. Mas, apesar de tão notáveis intuições da verdade, a doutrina não podia esconder toda a grosseria que continha e, no decorrer do século, surgiram outras onze doutrinas da expiação.

A primeira surgiu com Anselmo. Ele alegava que o homem devia irrestrita obediência a Deus, governador do universo, mas deixou de prestar-lhe obediência e caiu em situação de devedor. O homem desonrara a Deus. A Justiça requeria ou que o homem pagasse a dívida ou que fosse punido. Qualquer uma das duas medidas resultaria na manutenção do prestígio Divino como governador moral do ser humano. Entretanto, não é do agrado de Deus punir eternamente o homem, pois o propósito que teve ao criá-lo foi no sentido de manter-se em comunhão com sua criatura racional. O homem não poderia oferecer satisfação pelo débito contraído para com a Divindade, uma vez que nada poderia acrescentar à perfeita obediência que, naturalmente, lhe é requerida. Caso Deus consentisse em apenas remover o pecado humano de sua presença, daria espaço para que se levantassem dúvidas quanto à natureza da honra e do prestígio de seu governo. Chega-se, então, ao tremendo dilema: O homem era devedor mas só Deus poderia saldar a sua dívida. Foi assim que Deus teve de enviar Jesus, que tanto é Deus como é homem. Pelo fato de ser Deus, lhe foi possível pagar a dívida; pelo fato de ser também homem, foi possível pagá-la em favor do homem. Entretanto, nem mesmo Jesus poderia saldar um tal compromisso por viver em total virtude, uma vez que, por ser humano, já tinha a obrigação de viver assim. Todavia, sabe-se que Jesus não tinha de morrer, pois viveu sem pecado. Em conseqüência, ao oferecer-se para morrer, ele pagou a dívida do homem. Vindicou-se a honra ultrajada, de modo que Deus poderia ministrar o perdão a todos os que se aproximassem dele mediante Cristo Jesus.

Essa teoria não chegava a expressar de maneira completa o que a Igreja cria a respeito da expiação e jamais foi aceita oficialmente. Sua maneira de expor deixava a impressão de que Deus teria agido como senhor feudal que demonstrava receios de que os servos escapassem do seu domínio, caso fosse demasiado complacente com eles. Não obstante, a teoria assinalava a convicção da Igreja de que o perdão não é coisa tão simples nem fácil. Perdoar é algo que acarreta sofrimento à Divindade.

Abelardo foi responsável pela apresentação de outra das teorias surgidas. Ele insistia em dizer que não há absolutamente nada, da parte de Deus, capaz de impossibilitar a ministração do perdão. Entretanto, o perdão é experiência bilateral. Ninguém poderá perdoar a alguém que não deseje ser perdoado. O perdão significa restauração de relações rompidas; ora, ninguém poderá conseguir que a comunhão seja retomada, caso o outro se mantenha refratário a isso. Ai estava, entendia Abelardo, o problema Divino. Deus desejava perdoar ao homem, mas o homem, por sua vez, o que queria era continuar em sua conduta em busca de prazeres e não procurava arrepender-se nem suplicar o perdão.

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Assim sendo, Deus se pôs a agir; ele enviou-nos o Filho para que sofresse e morresse pelo homem na mais clara demonstração de seu amor. Ao perceber essa sublime realidade, o homem é levado a envergonhar-se de si mesmo e arrepende-se, finalmente, de modo que Deus se torna capaz de perdoá-lo.

A doutrina de Abelardo também dizia algo que o cristianismo ortodoxo queria expressar. De fato, na morte de Cristo, contemplamos o amor de Deus de modo tal que somos conduzidos ao arrependimento. Não obstante, a doutrina de Abelardo fez com que ele fosse acusado de heresia. O argumento ortodoxo contra ela se faz nos seguintes termos: Caso alguém se lance na água e me salve de afogamento, seu gesto me revela, sem dúvida, muito amor. Mas, se, por outro lado, estivermos andando juntos às margens de um rio e ocorrer- lhe dizer inesperadamente: “Olha aqui quanto eu te amo!”, lançando-se em seguida à correnteza, então poderei ser levado a entender que meu amigo perdeu o bom senso. Em outras palavras, a morte de Cristo só poderá ser vista como revelação do amor de Deus para com o homem se for entendida como sacrifício absolutamente necessário. A morte de Cristo fica sem sentido, caso se admita que o homem poderia salvar-se sem que ela tivesse ocorrido.

O cristianismo ortodoxo, embora nunca ficasse plenamente satisfeito com a teoria exposta por Anselmo, de modo geral tem adotado uma forma bem parecida coma sua. Cristo, é o que se crê, tornou-se nosso substituto; ele morreu para satisfazer o débito que tínhamos para com Deus ou ele sofreu a punição que devíamos sofrer em vista de nosso pecado. A ortodoxia protestante tem se inclinado para uma concepção da doutrina em termos de formalidades jurídicas. O homem cometeu um crime pelo qual deveria ser punido, mas Jesus consentiu em “beber o cálice de amargor” em lugar do homem. Assim interpretada, a doutrina produz os mesmos efeitos buscados na teoria de Abelardo; há uma preocupação no sentido de conseguir que o homem se arrependa, mas isso acontece por causa da convicção de que o sacrifício era necessário e não seria nenhum simples gesto de bravura.

Este é o esboço geral da posição ortodoxa em teologia, sobre cujas doutrinas os cristãos das mais diversas denominações podem concordar razoavelmente. Trata-se, portanto, desse acervo de pensamentos, com algumas implicações decorrentes deles, que teremos em mente sempre que nos referirmos ao cristianismo ortodoxo.

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Ameaça Contra a Ortodoxia

Ao longo do capítulo anterior tivemos a oportunidade de expor os fatos relacionados com o aparecimento da ortodoxia. Mesmo no decurso da exposição feita, ficou evidente que nem todos os cristãos foram sempre ortodoxos, pois a ortodoxia vai se definindo em função das heresias. Neste capítulo vamos nos concentrar no estudo dos não ortodoxos. Caso fosse nosso propósito fazer um relato completo da história dos movimentos não ortodoxos, teríamos de começar com os cristãos primitivos, como o fizemos no caso do capítulo anterior. Entretanto, nosso objetivo é outro; desejamos apenas oferecer uma interpretação do campo moderno da teologia e, por isso, vamos nos limitar ao tratamento do que parece proveitoso para esse objetivo. E, uma vez que nos preocupamos particularmente com o pensamento protestante, vamos restringir-nos ao estudo de períodos posteriores à Reforma.

Ao penetrar na fase moderna dos acontecimentos mundiais, o crente se encontra com uma dupla ameaça à ortodoxia. Uma das ameaças vinha de fora do ambiente da Igreja, agindo através das correntes da filosofia secular. A outra ameaça vinha de dentro mesmo da Igreja, onde se verificava insatisfação de grande número de cristãos com relação aos enunciados da ortodoxia. Há correlação entre as duas formas de ameaça, mas há também diferenças importantes. Vamos tomar em consideração primeiro o pensamento secular e, em seguida, vamos passar à consideração dos desenvolvimentos nas esferas próprio do cristianismo. Uma vez que os acontecimentos seculares são mais conhecidos do que os religiosos, vamos considerar de modo mais completo apenas estes últimos.

Na época em que se difundia a Reforma, outra poderosa corrente de idéias estava se propagando, contando já duzentos anos de existência - a Renascença. A Renascença começou contemplando o passado e descobrindo a cultura antiga da Grécia e de Roma, na qual se verificara a atuação de um espírito de vida bem diferente do espírito dominante ao longo da fase medieval na Europa. Alguns dos pensadores responsáveis pela Renascença eram indiferentes para com a religião; outros até mostraram-se favoráveis para com ela e, finalmente, uns poucos, como Melanchthon e Zuínglio, foram ativos no movimento da Reforma. Entretanto, havia certa tendência em bom número de pensadores renascentistas no sentido de abandonarem a ortodoxia. Erasmo, por exemplo, esforçou-se para manter-se como filho leal da Igreja Católica Romana, mas suas obras foram condenadas pelas autoridades eclesiásticas.

A Renascença se caracterizava pela fé na capacidade humana e por um grande interesse pelo mundo. Em comparação com a preocupação medieval para com a vida depois da morte, é razoável dizer-se que, nesse

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sentido, a Renascença permaneceu pouco interessada. Uma vez que insistia em crer na suficiência da razão, a Renascença não percebia nenhuma necessidade de uma revelação proveniente de Deus. Não considerava coisa importante nem a teologia nem os aspectos sacramentais da Igreja. A religião, no entender dos pensadores da Renascença, seria só o fundamento da ética.

A Renascença tinha muito interesse na possibilidade de restauração do pensamento do mundo antigo e deu início a uma verdadeira ciência, visando a restauração das palavras originais dos manuscritos. Com o passar do tempo, esse interesse levou certas pessoas a uma reconsideração do conteúdo dos manuscritos da Bíblia, e esse precisamente foi um dos motivos para que Erasmo atraísse a ira da Igreja Romana. Lutero, porém, ao traduzir a Bíblia, procurou fazer o melhor uso dos resultados alcançados pela erudição existente na Renascença.

O século dezoito, século do racionalismo e do iluminismo, trouxe consigo o mais forte golpe contra a ortodoxia. Os racionalistas eram pessoas que depositavam a mais vivida confiança nas possibilidades da razão. Levantaram-se, pois, contra todas as autoridades instituídas à margem da razão e reivindicaram para a própria razão a necessária autonomia para que lhe fosse possível o exame de todos os problemas sem nenhuma interferência. Os racionalistas não eram, de forma alguma, irreligiosos. John Locke, por exemplo, afirmava que não se deveria ter nenhuma tolerância para com ateus, uma vez que estes eram uma ameaça à estrutura da civilização ocidental, sobre cujos princípios se alicerçavam a tolerância e outros ideais. Entretanto, não sendo um movimento de oposição à religião, o Racionalismo se insurgia, de fato, contra a ortodoxia. Desejava-se uma religião, como Kant ressaltou, dentro dos limites da razão.

Entre os ataques desfechados pelo Racionalismo contra a ortodoxia encontra-se a argumentação de Hume a propósito da improbabilidade dos milagres. Hume não chegou a negar a possibilidade da ocorrência de milagres; a própria filosofia que produziu evidenciaria a contradição de uma tal negação. Todavia, ele insistia em alegar que a admissão de ocorrência de milagre ficaria sempre em plano inferior à adoção de qualquer outra maneira de explicar a ocorrência do mesmo fenômeno. Apesar de que a argumentação de Hume tendesse a transformar-se num círculo vicioso, o fato é que ele foi muito apreciado como tendo demonstrado o absurdo da idéia de milagre. Tornou- se, em conseqüência, quase impossível à ortodoxia apresentar qualquer prova definitiva quanto à verdade da fé mediante o expediente de chamar a atenção para as narrativas miraculosas da Bíblia.

Emanuel Kant investiu contra as chamadas “provas da existência de Deus”. Elas não eram elementos de importância central para a ortodoxia, pois a Igreja não revelara maior preocupação em provar a existência de Deus até chegar ao século treze, quando Tomás de Aquino expôs suas famosas cinco provas. Não obstante, abalou profundamente a ortodoxia a constatação de que a razão não tinha condições de estabelecer, de maneira a superar todas as dúvidas, a existência de Deus. O próprio Kant alegou que, embora a razão pura não pudesse certificar-se da existência de Deus, as exigências práticas da conduta moral o exigiam. O Deus de

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Kant, porém, dificilmente coincidiria com as concepções da ortodoxia. Para Kant, há apenas três postulados religiosos imprescindíveis para a manutenção da conduta moral: Deus, a liberdade do homem e a imortalidade.

Mesmo que Kant, em suas últimas obras, tivesse voltado a uma concepção concernente ao mal em sua forma radical, os racionalistas, em geral, mantiveram-se opostos a qualquer doutrina relacionada com o pecado original. Revelaram-se absolutamente crentes na bondade da razão humana e na suficiência do homem para encontrar soluções para todos os problemas.

Ao mesmo tempo em que o racionalismo estava investindo contra a religião ortodoxa, a ciência natural estava surgindo. Muita coisa despropositada se tem escrito a respeito de conflito entre a religião e a ciência. De modo geral, a ciência é apresentada como um cavaleiro vestindo armadura refulgente, perseguindo coerentemente os lampejos da verdade, enquanto que a religião aparece como um dragão estúpido, que tudo faz para devorar a verdade. Essa maneira de retratar os fatos, devida em grande parte à monumental obra de Andrew Dickson White, intitulada A History of the Warfare of Science with Theology in Christendom (“História das Lutas entre a Ciência e a Teologia na Cristandade”), é verdadeira só em parte. Em todos os conflitos em favor da ciência se têm encontrado muitos piedosos e ortodoxos. Por outro lado, sabe- se que sempre houve cientistas que se opuseram aos novos avanços científicos. Para que se faça o necessário equilíbrio, deve-se escrever um outro livro, cujo título poderia ser: História das Lutas Travadas entre Ciência e Ciência. Na verdade, o que tem acontecido é que todo o complexo de sentimentos de uma certa época se levanta em protesto contra as novas concepções do mundo que pareçam minar a representação mental do universo aceita naquele momento. A religião, quando atua como força organizada na sociedade, não raro, tem se tornado um centro em torno do qual giram os protestos de natureza não científica. Como conseqüência, a religião, particularmente em sua forma ortodoxa, expõe-se ao descrédito. Assim, fica parecendo que a ciência sempre tenha estado certa e que a religião sempre tenha estado errada. Surgiu, então, a estranha idéia de que a ciência teria condições de encontrar solução para todos os problemas humanos, e que seriam tão-somente a inércia e a ignorância, particularmente provenientes das igrejas, que estariam entravando a marcha vitoriosa da ciência, considerada como a real salvadora.

Particularmente, duas doutrinas científicas pareciam perturbar muito a religião ortodoxa, isto é, as de Copérnico e de Darwin. O mundo medieval retratou mentalmente um universo no qual a terra ocuparia o centro, sendo o homem a forma de vida por excelência. Copérnico conseguiu libertar a visão para a contemplação de um universo tão vasto que a terra passou a ser considerada como um grão de areia perdido no espaço. Entendeu-se que era ridícula a afirmação que a terra e o homem seriam em alguma coisa de importância diante de Deus, caso Deus existisse. A teoria da evolução defendida por Darwin desfez as barreiras existentes entre o ser humano e o mundo animal. Apareceu o homem como sendo simplesmente um animal mais altamente desenvolvido. Em

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lugar da afirmação de um amor inteligente do Criador, atribuindo a cada animal sua forma e compleição peculiar, Darwin aventou a hipótese da vigência de uma luta encarniçada pela existência, estendendo-se a todas as formas de vida, com a vitória assegurada ao mais bem equipado.

Embora a princípio a doutrina evolucionista parecesse dar margem a pensar que o homem estaria preso a uma interminável luta pela sobrevivência, com o passar do tempo ela veio a oferecer base para uma esperança mais elevada quanto ao progresso, como tinha sido o sonho dos movimentos racionalistas. Herbert Spencer foi um dos elementos particularmente responsáveis pela mudança. O ser humano, que se tinha desenvolvido desde a ameba até alcançar o presente estado de progresso, estaria destinado, por invariável lei natural, a continuar progredindo, para chegar, afinal, à perfeição. A maneira ortodoxa de representar o homem como tendo caído no pecado passou a ser considerada uma concepção ridícula. O homem não tinha caído coisa nenhuma. O que lhe aconteceu efetivamente foi que, tendo começado como simples animal irracional, ao longo de tempo muito curto, tendo-se em vista a idade do universo, ele alcançou alturas inimaginadas. A frente do homem se estende um futuro infinito cheio de promessas. Essas idéias tornaram-se patrimônio comum de intelectuais e de pessoas comuns. O avanço contínuo das invenções fez com que o homem de cultura média passasse a olhar complacentemente para os mais velhos, mantendo-se na expectativa de coisas ainda mais extraordinárias que haviam de surgir. Como Harry Emerson Fosdick disse, as pessoas, de modo geral, não revelavam nenhum interesse em morrer e passar a usufruir o céu; elas tinham, sim, o desejo de viver uma centena de anos para que pudessem ver as novas maravilhas que o gênio inventivo do homem haveria de criar.

Na medida em que os homens passaram a olhar para mais longe, cheios de esperança, cresceu, porém, a insatisfação com as imperfeições do sistema social vigente. Karl Marx se tornou um notável porta-voz das esperanças relativas a uma sociedade terrena melhor. Em sua maneira de entendê-la, a religião seria uma das barreiras levantadas contra a conquista de uma vida melhor na terra. A religião nutre o ser humano com esperanças a respeito do céu, de modo a impedi-lo de revoltar-se contra os que o oprimem na presente existência. Mesmo entre os que não se tornaram seguidores de Marx, passou a prevalecer um sentimento generalizado de que a religião ortodoxa era uma inimiga das esperanças humanas concernentes à conquista de nível mais elevado e decente de existência.

Quando surge a Psicologia moderna, vemos que Freud faz outras acusações contra a religião. Não só a religião seria algo anacrônico, considerando-se a imagem do universo que ela defende, tendo sido sempre inimiga da ciência e do progresso, mas, além disso, Freud alegava, a religião seria ilusão, pois resultava em uma recusa pueril em aceitar a realidade da existência. Pelos fins do século dezenove, tinha-se tornado crescentemente inviável intelectuais apoiarem qualquer forma religiosa e quase ficou impossível concordarem com o cristianismo ortodoxo. Nietzsche falou por muitos ao proclamar que “Deus morreu”. Não obstante, um pequeno número continuou a sentindo-se mal com as implicações dessa posição. Porque, como, aliás, o próprio Nietzsche o

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percebeu com clareza, caso Deus tivesse morrido, também o tinham as tradições morais que haviam atravessado os séculos. O homem precisará tomar o lugar de Deus na reformulação moral e será o super-homem quem vai reformulá-la.

Estando a religião em geral, e em particular a ortodoxia, atravessando um dificílimo período face às idéias seculares, dentro dos próprios círculos religiosos, a ortodoxia estava sendo submetida a sérios ataques. Vamos passar à consideração disso.

A Reforma não foi um movimento único; foram quatro, embora esses quatro estivessem vitalmente relacionados. Além dos movimentos luterano e calvinista, houve, na Inglaterra, o movimento anglicano. E, tanto na Inglaterra como no continente europeu, surgiram os grupos Anabatistas, Batistas, Congregacionais, Quakers, Menonitas e algumas dúzias de seitas menores. Os primeiros movimentos da Reforma mantinham-se ortodoxos no sentido em que estamos empregando o termo. O mesmo se pode dizer quanto à maior parte dos grupos sectários. Mas nesses últimos já apareciam ameaças potenciais contra a ortodoxia.

As seitas romperam com os grupos principais da Reforma a propósito da doutrina da Igreja. Elas entendiam que a Igreja só deveria admitir em seu meio os santos, isto é, cristãos que fossem praticantes e convertidos. Condenavam a prática da recepção de recém-nascidos pelo batismo na Igreja, pois, afirmavam, só os que davam prova de vida cristã é que deveriam tornar-se membros da Igreja.

Pelo fato de que os sectários davam muita ênfase à necessidade de que cada membro da Igreja fosse um cristão praticante, tornaram-se inimigos da doutrina da salvação pela graça. E que fixavam a atenção no fato de que muitos utilizavam essa doutrina como desculpa para manterem-se abaixo da melhor conduta cristã. O protesto que insistiam em levantar nesse sentido passou a ter maior significado no decorrer dos anos, quando a segunda geração de líderes da Reforma tinha começado a afirmar que salvação pela fé não passaria de salvação por ter-se uma crença. Em vez de se entender a fé como ato de entrega pessoal a Deus, como o tinham ensinado Paulo e Lutero, passou-se a entendê-la como uma aceitação intelectual dos credos e doutrinas ortodoxas. Pela natureza da reação que manifestaram contra tais deturpações, os sectaristas se expuseram ao perigo de cair em atitude legalista. Os ensinos de Jesus se tornaram normas que deveriam ser estritamente obedecidas por quem quer que procurasse filiar-se à Igreja.

Muitos dos grupos referidos, sob a direção do quacre George Fox, pregavam uma doutrina de inspiração interior de cada indivíduo, proporcianada pelo Espírito Santo, isto é, uma iluminação interior. Na verdade, não havia nada contrário à ortodoxia em tal maneira de entender, pois os cristãos sempre creram que o Espírito Santo fala ao coração humano e pode guiá-lo. Tanto Lutero como Calvino insistiram muito nisso. Entretanto, prevaleceu certa tendência entre os sectaristas, no sentido de adotarem como autoridade última exatamente a iluminação interior alegada, e não a Bíblia. Não demorou que isso levasse a um movimento de crítica radical contra a Bíblia e a ortodoxia.

Por volta do ano 1600, encontrava-se em campo uma forma radical de protestantismo que atacava ferozmente a ortodoxia. Tornou-se

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conhecida como Socinianismo, por causa do nome de Fausto Socino, que teve de fugir para a Polônia a fim de livrar- se das perseguições que lhe foram movidas por católicos e por protestantes. Esse movimento foi o precursor do moderno Unitarismo e do Liberalismo teológico. Os socinianos aceitavam a Bíblia, mas não sem submeterem-na à crítica. Entendiam que ela contém erros. Insistiam em afirmar que nada pode ser tomado como sendo revelação de Deus que contrarie as leis da razão e do senso comum e que não tenha proveito moral. Nessa base, relegavam ao descrédito muitas narrativas bíblicas.

A doutrina ortodoxa da Trindade era rejeitada por eles por causa da incoerência dos conceitos filosóficos gregos utilizados na formulação dos credos. Negavam também que Jesus tivesse uma natureza divina, já que entendiam que ele era um tipo mais excelente de ser humano, verdadeiro super-homem, por assim dizer.

A doutrina do pecado original era tida como absolutamente irracional. O homem ainda dispõe da mesma faculdade de escolha do bem e do mal, como acontecia com Adão. Pecado hereditário é coisa contraditória. Não pode existir pecado sem que haja culpa e, caso se admita que nos tornamos culpados antes do nascimento, então deve-se entender que alguém tivesse pecado antes de nascer, o que é absurdo.

A idéia de que Jesus pudesse levar sobre ele a punição devida a nossa culpa é imoral e absurda, insistiam em dizer os socinianos. Ninguém poderá ser punido com justiça em lugar de outrem. Deus não depende de tal esquema de expiação, uma vez que ele deseja nos perdoar gratuitamente, desde que o homem se volte para ele.

A fé sociniana reduzia-se ao que era considerado o essencial. Os socinianos criam que Deus recompensava e punia os homens no além por obediência ou desobediência aos princípios da lei ética ensinada mais claramente por Jesus. A ressurreição de Jesus e outros milagres referidos na Bíblia eram provas de que Jesus falou com autoridade divina.

Com o surgimento do racionalismo, um novo movimento, o Deísmo, apareceu. Os socinianos tinham se interessado em manter-se como cristãos, mas os deístas procuravam um tipo de religião que reunisse o que fosse comum a todas as expressões do pensamento dos homens de boa vontade. Os deístas foram repelidos pelas guerras religiosas travadas durante o século dezessete, bem como pelas caçadas contra heresia, tão comuns na época. Um de seus primeiros representantes, Lord Herbert of Cherbury (morto em 1648) alegava que uma religião racional deve mostrar-se independente de qualquer suposta revelação especial. O primeiro ponto de fé confessado por uma tal religião é Deus, cuja existência poderá ser demonstrada pelo simples fato de que o mundo requer um criador. Uma vez admitida a existência de Deus, deve-se concordar que deva ser adorado e obedecido, o que significa que o homem tem de viver conforme padrões éticos. Quando deixamos de agir em conformidade com essa convicção, devemos nos arrepender e fazer tudo para vencer o pecado. Visto ser claro que a presente existência não retribui devidamente a virtude nem pune totalmente o mal, segue-se a necessidade da existência de outra vida, na qual sejam ajustadas as contas.

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O Deus proclamado pelos deístas tem sido designado como Deus relojoeiro. Ele teria criado o mundo como um fabricante de relógios os fazem, dando-lhes corda em seguida e deixando que prossigam trabalhando. Uma vez que Deus é comparável a um perfeito relojoeiro, não será necessário que interfira mais no funcionamento do universo. Assim sendo, os deístas não podiam aceitar nada que se parecesse com uma interferência Divina no mundo, tais como milagres e uma revelação especial através da Bíblia.

Os deístas entendiam que a religião que defendiam teria sido a religião original da humanidade. Dela teriam procedido, por meio de distorções, as demais religiões. As distorções teriam sido obra de sacerdotes que começaram a confeccionar teologias, mitos e doutrinas das várias religiões com a finalidade de exercerem domínio sobre as consciências.

O deísmo nunca chegou a alcançar o homem comum; tratava- se de uma forma religiosa destinada só a intelectuais. A hegemonia que exerceu entre intelectuais é demonstrada na influência de seus conceitos na elaboração da Declaração de Independência da América do Norte. A crítica que Kant levantou contra as provas da existência de Deus foi um golpe muito mais sério contra os deístas do que o foi contra os ortodoxos, pois a presunção de demonstrar racionalmente a existência de Deus era muito mais uma característica do deísmo do que da ortodoxia.

Na medida em que o mundo moderno se tornava menor, os cristãos sentiam que precisavam encarar o fato de não serem a única forma religiosa sobre o planeta. Na verdade, isso não foi descoberto de uma só vez. Através dos séculos, a Europa tinha tremido pelo medo vindo das ameaças de conquista maometana. Entretanto, chegou mesmo o tempo quando os cristãos começaram a encontrar-se com pessoas que confessavam outras religiões; passaram, então, a estudar a literatura que tinham consigo e se esforçar para entender o significado da fé confessada. Surgiu, então, uma nova ciência, a das religiões comparadas, para que se conseguisse fazer melhores estudos sobre as religiões não cristãs. Os esforços nesse sentido foram estimulados pelo Deísmo, pela convicção revelada quanto à existência de uma religião simples universal e comum a todos os seres humanos originalmente. Por ironia, as pesquisas empreendidas através de outras religiões desfez completamente a teoria deísta, em vez de sustentá-la.

Vários fatos perturbadores para a ortodoxia surgiram dos estudos relacionados com a nova ciência. Algumas crenças paralelas com crenças cristãs, como, por exemplo, o nascimento virginal, apareceram também em outras religiões. Todas as religiões contavam com muitas narrativas miraculosas e, se o cristianismo podia lançar mão de milagres para demonstrar-se verdadeiro, coisa que até mesmo os socinianos faziam, o que fazer então com os milagres alegados por outras formas de fé? Todas as religiões tinham suas próprias Escrituras Sagradas, as quais eram tidas como reveladas pelas respectivas divindades. Por que se deveria afirmar a superioridade das Escrituras Cristãs? Além disso, pessoas interessadas primariamente nas conseqüências éticas da religião tomaram conhecimento de que outras religiões também tinham elevados

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padrões éticos. Em suma, a natureza exclusiva do cristianismo passou a ser objeto de discussão e polêmica.

Outro desenvolvimento importante verificado durante o século dezenove foi a crítica bíblica. O termo “crítica” pode levar a mal-entendidos. Não significa, de modo nenhum, o direito de despedaçar a Bíblia, embora muitos cristãos ortodoxos tenham entendido que era isso que estava acontecendo. Efetivamente, o crítico bíblico é simplesmente um erudito que estuda a Bíblia para descobrir-lhe a significação mais exata. E crítico no sentido de fazer esforços para encontrar razões plausíveis e científicas para as conclusões a que chega e não limitar-se a uma passiva aceitação dos dogmas da Igreja. Albert Schweitzer chamou a atenção de seus leitores para o fato de que alguns dos primeiros críticos que fizeram sérios estudos relacionados com o Novo Testamento eram inimigos de Cristo; eram pessoas que se dedicaram a estudos críticos da Bíblia animadas pelo propósito de destruir a religião nela alicerçada. Entretanto, a Igreja logo assumiu a tarefa de fazer estudos críticos e, com o passar do tempo, os seminários vieram a tornar-se importantes centros de pesquisa nesse campo. Isso não foi conseguido sem que se travassem muitas batalhas, mas os críticos conquistaram paulatinamente o seu devido espaço, embora muitos deles tivessem perdido sua posição ao longo do processo.

A crítica bíblica foi expressa de duas maneiras: a baixa e a alta crítica. Os termos são puramente técnicos e não implicam juízo de valor. A baixa crítica trata dos problemas relacionados com o texto e procura pesar o valor dos manuscritos da Bíblia que têm sido descobertos, procurando saber qual o melhor texto das Escrituras. O único aspecto da baixa crítica que se pode ter como novidade no mundo moderno seria a maior exatidão das datas atribuídas aos manuscritos antigos e o maior número deles que se vem descobrindo. Não houve nenhum choque entre a baixa crítica e a ortodoxia.

A alta crítica começa onde termina a baixa crítica. Ela não se interessa primariamente pela exatidão do texto; mas sim pelo significado das palavras. O crítico deseja ler nas entrelinhas de modo a obter, através do texto, a lição real dos acontecimentos narrados nele. Para consegui-lo, o crítico entende que precisa fixar bem o tempo quando teria sido escrita cada uma das passagens das Escrituras, quem as escreveu e a quem e para que foram escritas. A alta crítica afirma que nós só podemos entender a Bíblia se a pudermos estudar tendo toda a situação contemporânea em mente. Por exemplo, um salmo qualquer assume significado muito diferente quando o crítico conclui que ele não teria sido produzido pela inspiração de Davi, como o ensina a tradição, mas teria sido um dos cânticos populares surgidos nas situações de sofrimento dos judeus enquanto se encontravam no exílio.

A alta crítica não é mais moderna do que a baixa crítica. Desde o segundo século, encontramos escritores cristãos empregando alguma forma de alta crítica para ajudá-los no entendimento da Bíblia. Entretanto, mais recentemente veio às mãos do crítico uma nova arma - a arma da crítica histórica. Esse novo método tinha sido desenvolvido pela Renascença, em sua última fase, e foi aperfeiçoado pelos estudiosos da história. Foi aplicado primeiro ao estudo dos livros produzidos na

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antigüidade, sendo então descobertos muitos documentos forjados e também idéias revistas introduzidas em manuscritos antigos. Durante o século dezenove, o método foi aplicado à Bíblia, considerada como simples livro antigo cujas credenciais teriam de submeter-se a critérios de avaliação histórica. Isso resultou, de fato, em muitas descobertas que produziram abalos na ortodoxia.

Alguns dos resultados da alta crítica que deixaram em pânico a ortodoxia podem ser referidos sucintamente: Os críticos geralmente concordaram na afirmação de que Moisés não escreveu os primeiros cinco livros da Bíblia, como sempre se acreditou. Em vez disso, eles teriam sido escritos por, pelo menos, quatro diferentes autores. Entre outras coisas, essa afirmação significava a existência de duas narrativas da criação em Gênesis. Os críticos afirmaram que os livros e as passagens que são tidas como fazendo previsões quanto ao futuro teriam sido escritas depois dos acontecimentos. Chegou a ser noção geralmente aceita que o Evangelho de João, por muito tempo o Evangelho favorito da ortodoxia, não teria sido da autoria do apóstolo João e não se trataria de história exata dos acontecimentos narrados. Os primeiros três Evangelhos, chamados Sinópticos, foram datados como mais antigos do que o de João e foram considerados como sendo mais fidedignos. Mais chocante, entretanto, do que todos os elementos citados foi o fato de se lançar dúvidas sobre a convicção de a Bíblia ser infalível em tudo o que ela contém.

Um dos importantes desenvolvimentos da alta crítica foram as pesquisas a propósito do “Jesus histórico”. O termo é interessante por implicar em que Jesus tal como teria vivido na história seria diferente do Jesus que temos retratado nos Evangelhos. Os críticos se esforçam para ler nas entrelinhas e presumiram ter deparado com Jesus tal como ele foi na realidade. Na opinião deles, a Igreja primitiva e os escritores dos Evangelhos fizeram muitos acréscimos no relato propriamente bíblico, de modo que o problema consistiria em conseguir fazer uma triagem entre os ditos e feitos autênticos de Jesus e os acréscimos. Um grande número de pretensas biografias de Jesus veio à luz no decorrer do século dezenove, cada uma apresentando-se como fiel descrição do verdadeiro Jesus. Duas das mais conhecidas foram A Vida de Jesus, de David Friedrich Strauss (1835-1836), e A Vida de Jesus, de Renan (1863). Embora as biografias se contradissessem em muitos pontos, todas elas concordavam no esforço de abolir os elementos miraculosos. Esses autores supunham que a ciência tinha provado a impossibilidade de ocorrência de milagre e concordavam em que Jesus jamais tivesse ensinado ser o Messias ou que o mundo estivesse próximo do fim, quando ele haveria de voltar para estabelecer o Reino de Deus. O “reductio ad absurdum” foi atingido quando alguns críticos começaram a afirmar que, uma vez que os relatos evangélicos eram tão destituídos de fidedignidade, a conclusão era que Jesus nunca tivesse existido. Jesus seria um mito inventado pela Igreja primitiva. Esse ponto de vista foi logo desacreditado, mas não podia deixar de acarretar muitas dificuldades aos pensadores ortodoxos por algum tempo.

Albert Schweitzer, em seu livro A Busca do Jesus Histórico (1906), traçou uma história brilhante daquela época e revelou como bom número

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das biografias de Jesus então surgidas não passava de representações imaginárias do que os respectivos autores desejavam encontrar. Não eram descrições a respeito de Jesus, o carpinteiro da Galiléia, que viveu durante o primeiro século, mas, sim, uma figura que teria ensinado e agido como qualquer intelectual do século dezenove. Todavia, o conforto advindo aos ortodoxos através do livro de Schweitzer era muito pobre. Schweitzer concluiu que Jesus ensinou ser o Messias e que ele acreditou na vinda iminente do Reino de Deus que desceria do céu para recriar a terra. A ética ensinada por Jesus consistia apenas em princípios capazes de nortear a conduta dos discípulos durante o curto intervalo até que ele voltasse nas nuvens do céu e fizesse raiar o novo dia. Jesus teria enfrentado a morte sob a patética ilusão de que, assim procedendo, ele apressaria o estabelecimento do Reino.

O cristianismo europeu procurou enfrentar os desafios vindos dos vários desenvolvimentos através de duas escolas de pensamento que, por seu turno, afetaram o pensamento americano. A primeira começou com Friedrich Schleiermacher (1738-1834). Ele entendia que o racionalismo do século dezoito foi substituído pelo romantismo do século dezenove. Se, anteriormente, a razão fria tinha sido objeto da mais intensa busca dos estudiosos, agora, a emoção e o sentimento exigiam a atenção os homens. Daí partindo, Schleiermacher procurou conseguir uma reabilitação da religião no conceito dos intelectuais, que tinham, em sua maioria, deixado de estudá-la durante o século dezoito.

Schleiermacher insistia em afirmar que os grandes debates sobre a existência de Deus, a autoridade das Escrituras, os milagres e coisas semelhantes nunca penetravam além da superfície da religião. O ponto central da religião sempre fora o sentimento e não as provas racionais e as discussões estéreis. O Deus da religião não é, como sugerem muitas especulações, nenhum produto de teoria formulada para uma pretensa explicação do universo. Deus, para o coração religioso em especial, é uma experiência, uma realidade viva. A religião se baseia no sentimento ou na intuição. Schleiermacher procura analisar o conteúdo desse sentimento em termos de dependência diante do universo. Ele tentou demonstrar que todos os homens sentem a necessidade de manter boas relações com o universo, que é a fonte de seu ser. Toda expressão grandiosa de Arte e de Literatura inclui algum conceito relativo ao universo em sua totalidade e isso é, seja ou não reconhecido o fato, uma experiência de Deus. Infelizmente, essa realidade tem sido obscurecida pela atuação dos propagadores tradicionais da religião. Eles procuram identificar a religião com as confissões de fé, de modo que as pessoas que deixaram de valorizar essas confissões pensam que estão desligadas da religião. Nisso reside um engano trágico, pois, na verdade, essas pessoas se encontram em contato com Deus através do sentimento de dependência que experimentam diante do universo.

Na opinião de Schleiermacher, a religião é essencialmente ética, pelo fato de que, uma vez que alguém perceba a dependência em que se encontra com relação ao universo, percebe também as relações que lhe convém manter com o próximo, que, como ele, está na dependência da mesma fonte de existência. Em todas as religiões encontramos as evidências dessa experiência fundamental do ser humano, fato que é

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expresso mediante as várias doutrinas e formas. Mas, se as formas assumem o lugar mais importante, então os homens devem se livrar delas a fim de que possam retomar a experiência da religião em toda a sua pureza e potencialidades.

Pecado é algo que ocorre quando o homem procura viver de si e para si mesmo, isolando-se do universo e de seus semelhantes. Essa pessoa procura absorver-se nos próprios interesses, mas, assim pretendendo, acaba se vendo como miserável. Essa consciência de miserabilidade do ser humano quando procura se isolar é prova, segundo o entende Schleiermacher, de unidade entre o homem e Deus. A vitória do homem contra sua própria miséria será possível somente na medida em que ele se dedicar completamente ao serviço de Deus e dos demais homens.

Pelo fato de que o pecado acarreta separação entre o homem e Deus, bem como entre o homem e seus semelhantes, Deus decidiu enviar-nos um Mediador na Pessoa de Jesus Cristo. A exclusividade de Jesus não deverá ser procurada, no entender de Schleiermacher, em nenhuma doutrina de tipo metafísico nem em nenhuma origem miraculosa, como a narrativa do nascimento virginal. O milagre real é a própria pessoa de Jesus. Em Jesus encontramos um homem que experimentava a consciência de Deus em grau supremo; onde nós apenas experimentamos lampejos de Deus, ele tornou-se portador de conhecimento pleno. Onde nós não alcançamos senão uma submissão vaga, instável, ele se caracterizou pela submissão mais completa. Jesus, considerado como homem cheio de Deus, é um pioneiro notável nos domínios do espírito e da moral.

Pelo fato de que Jesus dispõe de pleno e satisfatório conhecimento de Deus, ele é capaz de comunicar a consciência de Deus a outros. Mediante Jesus nos é possível alcançar comunhão com Deus de modo vital e vitalizante. A Igreja é uma testemunha atuante do fato de que, através dos séculos, os homens têm alcançado os privilégios da mais vital consciência de Deus mediante o contato que estabelecem com a pessoa de Jesus. Isso conduz ã adoção de normas de reconciliação verdadeira com os semelhantes para que haja uma real fraternidade.

Através de Schleiermacher a religião conseguiu encontrar respostas para muitas perplexidades características da época. Em primeiro lugar, porque a religião se tornou independente da filosofia e da ciência. A religião considerada como algo cuja base se encontra na experiência individual apresenta-se como tendo o seu próprio espaço; ela contém em si mesma as provas de sua razão de ser; sua vitalidade não decorre de nenhum fator externo. Além disso, o centro da autoridade em religião se vê deslocado da Bíblia para o coração do crente. A crítica bíblica não poderá causar danos ao cristianismo, uma vez que o núcleo da mensagem da Bíblia consiste no que ela diz ao indivíduo; e ela conseguirá dizê-lo de modo ainda mais nítido exatamente pelo fato de os críticos capacitarem o indivíduo a melhor entender a mensagem.

Por outro lado, outras religiões também não vão mais ser um problema relevante; elas também revelam certa forma de consciência de Deus. As doutrinas peculiares às religiões podem ser diferentes, mas sob a superfície de todas as doutrinas encontra-se uma experiência comum ao

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gênero humano. Não é de estranhar-se que Schleiermacher fosse aclamado por muitos como o salvador da religião; todavia, muitas de suas idéias não haveriam de agradaram aos defensores do cristianismo ortodoxo.

Em fase posterior do século dezenove, iniciara-se outra escola de pensamento, com o filósofo alemão Albrecht Ritschl (1822-1889). Ele foi o grande teólogo que lutou para que se apresentasse a religião como algo de caráter eminentemente prático. A religião não deve ser apresentada como uma teoria, insistia ele em dizer. Ela deve começar perguntando: “Que devo fazer para ser salvo?” pois se essa pergunta fosse modificada, para significar uma outra do tipo: “Como será que eu vou poder ir para o céu depois da morte?” então a religião se tornando um problema teórico. Ser salvo é experiência que significa viver de modo diferente, isto é, ser salvo do pecado, do egoísmo, do medo e da culpa. Ritschl não admitia discussões metafísicas nem teológicas que não parecessem ter conseqüências práticas. Por exemplo, ele deixou de lado a doutrina de Agostinho concernente ao pecado original pelo fato de que ela não lhe parecia razoável para o estudo da questão prática de saber-se o porquê de alguns homens serem mais pecadores do que outros.

Para que se mantenha como algo prático, o cristianismo terá de basear-se em fatos e, por isso, Ritschl se sentiu à vontade diante das pesquisas que se faziam sobre o Jesus histórico. O fato de maior relevância no cristianismo é o impacto produzido por Jesus sobre a Igreja através dos séculos. Deus não deve ser procurado através da natureza, pois que essa tem dentes e garras e articula uma linguagem ambígua concernente ao Criador. Nós o encontramos, em vez disso, na história, em cujo curso surgem os movimentos que revelam preocupação para com os valores capazes de tornarem a vida digna de ser vivida. A tarefa proposta à teologia consiste no esforço por conseguir que o homem volte a Jesus e se informe do que significa, realmente, segui-lo.

Na opinião de Ritschl, a religião tem suas bases no juízo de valor e deve distinguir-se bem da ciência. A ciência se preocupa em falar-nos de fatos, isto é, das coisas como realmente são, mas a religião procura avaliá-los de modo a deixar transparecer que uns valem mais do que outros. O que mais deve impressionar os estudiosos a propósito do ser humano é o fato de que, embora o homem seja um produto da natureza e da evolução, encontramos nele um sentimento de valores. A única explicação satisfatória possível desse fato consistirá numa interpretação do universo que admita não apenas as coisas provenientes dos átomos e das moléculas, mas também reconheça os valores. De acordo com o entende Ritschl, Deus jamais seria conhecido intuitivamente, como Schleiermacher queria, nem poderia ser Deus uma inferência racional como os deístas ensinavam; pelo contrário, Deus é o postulado absolutamente necessário para que se consiga explicar o sentimento de dignidade inerente ao ser humano.

Os conflitos que surgem entre a ciência e a religião começam quando a religião se põe a emitir enunciados sobre fatos ou quando a ciência se põe a emitir juízos pertinentes aos valores. Quando a religião ousa fazer enunciados relativos a fatos, como ocorre quando ela condena a evolução como uma teoria errada, o resultado é uma ciência sem

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utilidade. Por outro lado, quando a ciência se atreve a formular juízos concernentes a valores, como ocorre quando ela diz que, pelo fato de o homem ter evoluído de animais inferiores, ele não tem nenhuma dignidade que o eleve acima dos irracionais, então o resultado disso é uma péssima religião. É claro que Ritschl jamais ensinou que ciência e religião devessem ficar separadas de modo que nunca pudesse haver qualquer diálogo entre as duas realidades. Muito ao contrário dessa posição, ele afirmava que uma mesma pessoa poderia dedicar-se a estudos científicos e à piedade religiosa. A religião poderia muito bem aproveitar- se dos resultados da ciência, e a ciência, por sua vez, poderia favorecer sentimentos que concorrem para o juízo de valor é o domínio próprio da religião. Entretanto, pode-se considerar como ponto pacífico que a religião e a ciência são dois aspectos basicamente diferentes, pelos quais a realidade da existência poderá ser considerada.

Fazendo-se aplicação dos conceitos acima descritos a uma avaliação da crítica bíblica, verifica-se que o ponto de vista de Ritschl foi muito útil a muitos de seus contemporâneos. A crítica bíblica procura manter-se como tentativa de estudos científicos; procura certificar-se dos fatos relativos a autores, datas e significado dos livros reunidos na Bíblia. Trata-se de um empreendimento de importância vital, pois a religião deve basear-se em fatos. Não obstante, os fatos não são, por si sós, nenhuma religião senão depois de terem sido avaliados, e isso não poderá ser feito pela crítica bíblica. Se, por exemplo, a crítica bíblica chega à conclusão da impossibilidade de milagres operados por Jesus, nega o seu nascimento virginal, nada sabe de sua preexistência, nem por isso terá feito com que Jesus se torne menos valioso para os crentes. As convicções concernentes à divindade de Jesus não dependem de qualquer dos elementos referidos; tais convicções se apóiam somente no fato de que Jesus é a fonte de um movimento criativo de valores; ele conduziu os homens à experiência com o Deus do qual procedem os valores. Isso significa que a maneira como Jesus viveu é uma evidência de encarnação dos mais elevados ideais e das mais sublimes conquistas morais, de modo que nos sentimos atraídos a viver como ele viveu. Jesus é divino no sentido de que ele pôde fazer por nós o que só Deus podia fazer; nos tornou conscientes de que há maiores valores que nos são propostos. Da influência vinda de Jesus surge a Igreja, comunidade criadora de valores - verdadeira cunha que visa à constituição de uma sociedade inspirada por sentimentos de amor, portanto, à constituição do Reino de Deus na terra.

O pensador que mais se esforçou para divulgar as idéias de Ritschl foi Adolfo von Harnack, competente teólogo que tinha méritos próprios e não se limitou, de forma alguma, a transmitir idéias alheias. Seu livro intitulado “Que é Cristianismo?” (1901) teve uma extraordinária aceitação. Uma das razões que explicam essa popularidade seria o fato de que nele o cristianismo aparece muito simplificado. Harnack procurou reduzir o conteúdo do cristianismo a três afirmações. Primeiro, o cristianismo afirma que Deus é Pai,exerce providência e é bondoso. Em segundo lugar, o cristianismo ressalta a filiação do homem para com Deus. Em terceiro lugar, o cristianismo afirma o valor infinito da alma humana. Ele negava os milagres atribuídos a Jesus e insistia em afirmar que Jesus nunca se apresentou como sendo o Messias nem como sendo

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divino. Teria sido Paulo e, mais tarde, o pensamento grego que perverteram aquele evangelho extremamente simples de Jesus, transformando-o na teologia elaborada que encontramos nas confissões de fé posteriores. Daí surgiu o refrão tantas vezes repetido de que devemos voltar à religião de Jesus e não a uma religião que gira em torno de Jesus.

A influência de Schleiermacher e de Ritschl atingiu a América do Norte mais para o fim do século dezenove. Eles se tornaram elementos de sustentação do liberalismo teológico americano. Tinha havido na América certa preparação para o movimento ao qual as referidas teologias podiam falar. Desde os tempos de Jonathan Edwards, a América começara a lançar dúvidas sobre a legitimidade da forma de ortodoxia calvinista com a qual a história do país tivera seu início. No decorrer do século dezenove, o movimento unitariano se manteve em atividade. Como se sabe, esse movimento negava a Trindade e a divindade de Jesus e só atribuía valor religioso ao que coincidisse com os resultados da razão humana e com as exigências da fé na bondade essencial do homem.

Horace Bushnell, congregacionalista, fez críticas às doutrinas relacionadas com a expiação e promoveu a divulgação da idéia de crescimento na fé cristã. No entender de muitos, a idéia de que alguém pudesse tornar-se crente por meio de uma educação na fé a partir da tenra infância, em vez de pela experiência de uma conversão agitada ocorrida em determinado momento da existência, seria o mesmo que negar a doutrina do pecado original. Seria como se admitisse que a criança já nascesse naturalmente boa e que continuaria assim desde que educada convenientemente.

O liberalismo teológico existente na América é o resultado das várias forças discutidas ao longo do presente capítulo associadas a formas nativas de pensamento liberal americano.

Do que ficou dito no decorrer do capítulo está claro que, no fim do século dezenove, a ortodoxia se encontrava em grandes apuros e sofrendo pressões de todos os lados. E, quando estamos tratando da história do pensamento, não podemos nos esquecer que o século dezenove termina no ano de 1914 e não no de 1900. Se pudéssemos dar uma descrição da situação real em termos de luta de boxe, diríamos: terminado o assalto, a ortodoxia se encontrava presa às cordas e a multidão de espectadores gritava no desejo de ver o nocaute. Entretanto, a ortodoxia foi salva pelo gongo (Primeira Guerra Mundial) e, ao reiniciar-se a luta, ela apresentava sinais inesperados de novo vigor. Em vez de mostrar-se evasiva, a ortodoxia passou ao ataque. Ainda é muito cedo para dizer se tais expressões de revigoramento correspondem a uma permanente reabilitação ou se trata apenas do último esforço ditado pelo desespero. Todavia, uma coisa é certa: a ortodoxia saiu-se bem nos últimos assaltos, em alguns pontos muito relevantes, e, por enquanto, está contando com os aplausos dos torcedores. Mas isso diz respeito ao pensamento cristão moderno.

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Fundamentalismo ou Cristianismo Conservador: A Defesa da Ortodoxia

De modo geral, os americanos estão bem familiarizados com o termo “fundamentalismo”, e bom número de pessoas é capaz de lembrar-se das polêmicas teológicas travadas no começo deste século entre os fundamentalistas e os liberais ou modernistas. Em todo o território americano e nas denominações que contam com maior número de membros, surgiram personalidades dispostas a se colocarem como verdadeiros alicerces da fé. Na opinião dessas dedicadas personalidades, era mais do que evidente que a Igreja Cristã se encontrava cheia de elementos subversivos, que tinham o propósito de promover o solapamento do cristianismo.

A batalha ampliava-se através das assembléias eclesiásticas, das instituições teológicas e também da imprensa diária. Os jovens que já se encontravam prestes a serem ordenados para o exercício do ministério tinham de enfrentar uma verdadeira rajada de perguntas relacionadas com o que pensavam a respeito do nascimento virginal de Jesus, da ressurreição corporal de Cristo, da expiação com sangue e da infalibilidade da Bíblia. Algo da mentalidade então vigente pode ser percebido nos parágrafos seguintes, extraídos de um artigo publicado em um periódico secular:

“Há alguns anos ninguém imaginaria que a população dos Estados Unidos pudesse ficar ansiosa para ler notícias sobre uma convenção eclesiástica. Nem mesmo apareciam notícias relacionadas com tais convenções... A situação começou a mudar já há cerca de dois anos. O que aconteceu anteriormente, para que houvesse a mudança, ninguém sabe dizer com certeza; o caso, entretanto, é que o tema do nascimento virginal de Jesus passou mesmo a competir com os temas relacionados com crimes e com a política partidária, ocupando a primeira página dos jornais, até mesmo em um veículo de comunicação do porte do New York Times. Desde então, temas de religião vêm se tornando uma das mais sensacionais notícias neste país.

Poucos anos atrás, a nação se manteve na expectativa, enquanto os presbiterianos, reunidos em Columbus, Ohio, realizavam uma votação a respeito do nascimento virginal de Jesus. Pouco mais recentemente, a Associated Press e todas as demais agências de notícias do país transmitiram em Séries de Notícias para o mundo, dando a seqüência dos acontecimentos, os vários argumentos apresentados numa das cortes de justiça do Tenessee, a propósito da importante questão do problema da procedência da mulher de Caim e também o de como Deus pôde trabalhar à luz do dia antes que tivesse inventado o Sol.

Atualmente, todos se voltam para New Orleans. O problema em debate ali é o seguinte: Será que o bispo tem capacidade de pensar? Não há ninguém que esteja realmente ansioso por saber qual o desfecho das discussões. O público não tem opinião formada quanto a isso; o que interessa a todos é o noticiário. Porque, por estranho que isso nos pareça, religião é fonte de notícias hoje em dia, e isso vale” (Charles E, Wood, “Religion Becomes News”, The Nation, Vol. 121, August, 19, p. 204).

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O termo “Fundamentalista” parece que foi usado pela primeira vez por Dr. C. C. Laws, editor do periódico batista, “Watchman-Examiner”. Esse termo sugere que os que o adotam firmam-se no que é mais fundamental na fé cristã, isto é, naquele mínimo de convicções sem as quais não se poderia admitir que alguém seja cristão. Bom número de pessoas filiadas a essa escola não gostaram dessa designação, preferindo antes a designação de “Cristianismo Conservador”, ou apenas “Cristianismo”. John Gresham Machen alegou que ele não via nenhuma razão para que aquilo que sempre foi conhecido na história como sendo cristianismo tivesse de ser designado de forma como um “ismo” entre muitos que já existem por toda parte.

Durante os primeiros vinte e cinco anos do século vinte, os fundamentalistas encontravam-se em plena atividade dentro da maior parte das denominações protestantes. Eles estavam na ofensiva e fizeram tudo para afastar os liberais dos postos de liderança eclesiástica. Os ataques que eles fizeram contra os professores dos seminários teológicos, contra estudantes que estavam prestes a serem ordenados e também contra ministros já em plena atividade foram bem sucedidos. Um dos casos mais conhecidos envolveu a pessoa de Harry Emerson Fosdick, que foi obrigado a deixar a Igreja Presbiteriana e voltar para a sua própria denominação, a Batista.

Na medida em que o tempo ia passando, os liberais não demoraram a vencer muitas batalhas. Os seminários mais conceituados tornaram-se em centros de liberalismo, e os fundamentalistas, ou tiveram de retirar-se, por sentirem-se desconfortáveis neles, ou quando chegava o tempo da aposentadoria, eram substituídos por liberais. Em certo sentido, caso se insista em encontrar uma data para o fim da controvérsia Fundamentalismo X Liberalismo, pode-se dizer que esta data é o ano de 1929. Naquele ano, Machen se viu frustrado na oposição que tinha levantado contra a reorganização do Seminário de Princeton, onde ele lecionava. Como resultado de seu desapontamento, ele renunciou a seu posto e passou a colaborar na fundação do “Westminster Seminary”, em Philadelphia. Um segundo fracasso ocorreu a Machen e outros presbiterianos conservadores quando tentaram fundar a Junta Missionária Independente. A Igreja Presbiteriana determinou que a organização fosse desfeita e a ordem foi confirmada pelas decisões das instâncias eclesiásticas da denominação. Finalmente, em 1936, a Assembléia Geral tomou decisões contra o funcionamento da Junta Independente e, como seus componentes se recusaram a prestar obediência à decisão, foram expulsos. Machen e outros companheiros fundaram uma nova denominação, que recebeu o nome de Igreja Presbiteriana da América. Em resumo, durante a década de 1930, foram os fundamentalistas, e não os liberais, que passaram a sentir a necessidade de sair de suas igrejas e seminários.

Quando se diz que a controvérsia entre fundamentalistas e liberais cessou, isso não quer dizer que os fundamentalistas tenham desaparecido. Significa que a luta aberta arrefeceu. Nos fins da década de 1930, os liberais, como ainda veremos, encontravam-se em luta de vida e morte em outros setores. Por outro lado, os fundamentalistas estavam lutando entre si mesmos, de modo que não tinham tempo para

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atacar os liberais. A situação se definiu, de modo geral, conseguindo-se que os liberais formassem uma congregação e os fundamentalistas formassem outra. Com freqüência, acontecia que seminários diferentes, um liberal e outro fundamentalista, supriam as congregações de ministros, às vezes dentro de uma mesma denominação. Um grande número de fundamentalistas sentiu-se muito à vontade entre uns poucos grupos dissidentes, os quais, uma vez que eles não se viam na obrigação de justificar seus pontos de vista racionalmente, ficaram perdidos numa verdadeira confusão de extravagâncias emocionais. Muitos desses grupos se juntaram para formar o Concilio Americano de Igrejas Cristãs, que periodicamente se atreve a fazer incursões na opinião pública pela insistência em acusar de comunistas os que pertencem ao Concilio Nacional de Igrejas.

Rejeitado pelas denominações mais conceituadas e dividido pelas divergências internas, o fundamentalismo dava a todos a impressão de estar enfraquecido quando eclodiu a Segunda Guerra Mundial. O fundamentalismo não deixou de exercer uma forte influência no conjunto da vida da Igreja, e os pastores percebiam muito bem que suas respectivas congregações encontravam-se divididas pela controvérsia. Entretanto, os teólogos não tinham dúvida de que o fundamentalismo como tal tinha deixado de ser tema relevante. Nos últimos anos da década de 1940, porém, aconteceu um despertamento da erudição em círculos fundamentalistas, a ponto de surgir uma teologia conservadora como que das cinzas do antigo movimento.

Elemento típico desse inesperado despertamento foi E. J. Carnell, professor de Apologética no Seminário Teológico de Fuller. Ele se graduou Universidade de Weaton e no Seminário de Westminster, instituições que defendiam o Cristianismo Conservador. Não obstante, ele se doutorou na Harvard Divinity School, por sua vez, uma das linhas avançadas do liberalismo. Ele foi membro tanto da Associação Filosófica Americana como da Academia Americana de Religião, e é certo que nenhuma dessas duas entidades pode ser considerada como simpática ao fundamentalismo. Ele escreveu livros sobre Reinhold Niebuhr, Søren Kierkegaard, e sobre vários outros, através dos quais empreendeu a defesa filosófica e racional do Cristianismo Conservador. Na primavera de 1967, ele faleceu subitamente, quando tinha apenas quarenta e sete anos de idade. A morte de Carnell foi uma perda muito séria para o movimento fundamentalista, mas não se pode deixar de registrar o fato de que, durante as últimas duas décadas, um grande número de jovens teólogos fizeram peregrinações intelectuais semelhantes à que ele fez, de modo que é de esperar-se que sua obra tenha continuidade.

Depois de destacado esse despertamento da teologia conservadora, é necessário que estabeleçamos a distinção entre fundamentalismo e conservadorismo em teologia. Os novos teólogos conservadores entendem que têm muita afinidade com o pensamento que era defendido por seus antepassados fundamentalistas, crendo mesmo que não estão falando mais do que o que coincide com o melhor da tradição fundamentalista. Eles encontram a principal fonte de inspiração intelectual em personalidades como a de Machen, que, como se sabe, nunca se sentiram à vontade em serem chamados de fundamentalistas. Eles têm plena

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consciência dos erros do ponto de vista fundamentalista quanto à ciência e outros desenvolvimentos modernos. O grupo encontrou um evangelista de notável eficiência na pessoa de Billy Graham, que insiste em realizar suas campanhas de evangelização com apoio financeiro de fontes ecumênicas, que transcendem a todas as fronteiras do conservadorismo. O jornal “Christianity Today” divulga, através de um círculo bem amplo de leitores, que inclui pastores e crentes em geral, a opinião conservadora. Algumas denominações conservadoras uniram-se para formar a Associação Nacional de Evangélicos. Não se tem mais dúvidas de que o termo “fundamentalismo”, desde quando começou a ser empregado, designa pessoas que defendem pontos de vista nada harmoniosos. Por muitos anos, certa ameaça de existência de um inimigo comum fazia com que estas pessoas procurassem se entender. Uma vez que os motivos deixaram de existir, passaram a formar grupos diferentes. Dentro dos arraiais do fundamentalismo, sempre houve teólogos com a disposição de defender a ortodoxia com o que melhor tivessem de erudição. Eles não viam com bons olhos os ataques feitos contra a ciência ou contra a crítica bíblica. Sentiam-se preparados para se confrontarem com a erudição liberal no próprio campo de investigação dos liberais. E dessa atitude mantida pelos antigos teólogos fundamentalistas que surge o moderno conservadorismo. Outros grupos de fundamentalistas demonstraram-se profundamente suspeitosos contra a erudição como tal e preferiram dar mais ênfase à experiência de conversão, deixando em segundo plano o problema da pureza doutrinária. Essa segunda categoria de fundamentalistas, nos últimos anos, tem procurado lançar seus mais duros ataques exatamente contra a erudição conservadora, pois vê nessa erudição a forma mais perigosa do modernismo atual.

Os termos “fundamentalista” e “conservador” não são fáceis de se definir. Usualmente, são termos empregados para caracterizarem aqueles que crêem na inspiração verbal da Bíblia, isto é, aqueles que afirmam que as palavras da Bíblia vêm diretamente, e sem possibilidade nenhuma de erro, do próprio Deus. Não obstante isso que é alegado, quando se faz um exame mais aprofundado, verifica-se que nem fundamentalistas nem conservadores estariam tão interessados assim na defesa do ponto de vista de que a Bíblia seja literalmente palavra infalível de Deus. O interesse principal que efetivamente revelam diz respeito à defesa do cristianismo ortodoxo. Para que pudessem enfrentar o desafio lançado contra a ortodoxia, como tivemos oportunidade de expor ao longo do último capítulo, os fundamentalistas e conservadores entenderam que nada poderia ser melhor do que ocuparem esta primeira linha de combate, ou seja, que deveriam defender a doutrina da inerrância da Bíblia.

Na parte em que tratamos da ortodoxia, tivemos pouco a dizer quanto à doutrina da revelação, isto é, a doutrina de como Deus se faz conhecido ao ser humano. A razão da insuficiência de nossa discussão da matéria resulta da inexistência de uma doutrina ortodoxa a respeito, como, por exemplo, existe no caso da Trindade. Em toda ortodoxia de tipo cristão há uma convicção de que Deus se tenha revelado, particularmente através dos acontecimentos que a Bíblia registra. Essa revelação especial teria começado com a eleição dos judeus e se completa com a pessoa de

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Jesus. Entretanto, nunca houve uma concordância total a respeito de como Deus se revela na Bíblia nem quanto à forma como se deve entender que a Bíblia seja um livro inspirado. Com efeito, essas são questões que só foram ardorosamente discutidas já no século vinte.

Na Igreja que existiu antes da Reforma, prevaleciam divergências de opinião, sem que ocorressem conflitos irreconciliáveis. Sábios como Agostinho, por exemplo, afirmavam que alguns textos bíblicos são mais valiosos do que outros, deixando transparecer a existência de algum critério pelo qual se possa avaliar a revelação dentro da própria Bíblia. Pensadores como Orígenes procuraram interpretar a Bíblia por meio de métodos alegóricos, deixando de dar atenção maior ao sentido literal das passagens. Outros pensadores, como Occam, adotavam um ponto de vista interpretativo, irrestritamente literalista, e a Bíblia, para tais pensadores, tinha o aspecto de uma lei divinamente ditada.

Um dos aspectos mais radicais do pensamento de Lutero era a maneira como ele manuseava a Bíblia. Ele teve a iniciativa de convocar os protestantes a um movimento de retorno à autoridade da Bíblia, que deveria ser considerada como estando acima da autoridade papal ou eclesiástica. A luz disso, podemos ver a ousadia verdadeiramente profética com que ele procurou fazer uso da Bíblia. Para Lutero, a Bíblia não seria nem literalmente verdadeira de capa a capa, nem todas as partes dela deveriam ser tomadas como se fossem de valor igual. Ele entendeu que a própria Bíblia contém o critério pelo qual o todo de seu conteúdo deve ser avaliado. Esse critério não seria outro que não o da mensagem da salvação pela graça, mediante a fé, mensagem que nos é anunciada pelo próprio Cristo, quando se dirige ao coração do crente. A luz desse critério, o reformador começou o movimento que resultou em que os Apócrifos deixassem de constar das edições protestantes da Bíblia; sendo que, como se sabe, aqueles livros permanecem nas Bíblias de edição católica romana. Lutero levantou dúvidas quanto à conveniência de se manterem na Bíblia livros como Ester e o Apocalipse. Ele não entendia que devesse atribuir muito valor à Epístola de Tiago. Lutero pensava que algumas das predições feitas pelos profetas não teriam se cumprido, de modo que, para ele, a Bíblia não deveria ser considerada absolutamente inerrante em todos os seus pormenores. Lutero chegou até a admitir a possibilidade de que pudesse surgir um outro Novo Testamento, caso houvesse alguém tão completamente devotado ao Espírito Santo como foram os escritores bíblicos.

Essas atitudes assumidas por Lutero eram muito ousadas, não sendo nenhuma surpresa que os seguidores de Lutero, e até mesmo o próprio Reformador, nem sempre tenham sustentado coerentemente tais pontos de vista. Com o passar do tempo, os protestantes sentiram maior necessidade da adoção de um princípio de autoridade. Roma alardeava com orgulho o fato de que dispunha de uma só voz portadora de autoridade irrefutável e insistia na objeção de que o protestantismo possuía inumeráveis vozes em conflito. Os séculos dezesseis e dezessete caracterizaram-se pelas tendências no sentido do autoritarismo; a autoridade dos reis que se consideravam portadores do direito divino era muito prejudicada pelas lutas que os soberanos mantinham entre eles mesmos e também pelos atritos dos soberanos com o Papa infalível. Não

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é difícil entender por que os protestantes procuraram fazer face à autoridade com autoridade também. E, uma vez que os protestantes resolveram apelar para alguma autoridade, essa teria de ser a autoridade da Bíblia. Entretanto, desde que se começou a tomar a Bíblia como fonte autorizada com a qual venceram-se reis e papas, já não foi mais admissível seu manuseio com a liberdade antes praticada por Lutero. Para protegerem a autoridade assim constituída por eles, os protestantes passaram a proclamar ser a Bíblia a única autoridade infalível, que, diferentemente do que se passava com reis e papas, era a própria palavra literal de Deus. Cada uma das palavras presentes na Bíblia passou a ser entendida como ditada por Deus a homens encarregados de escrevê-la. Houve um protestante de nome A. Polano, que afirmava sem rodeios que até as pontuações bíblicas teriam sido inspiradas, e, portanto, eram absolutamente inerrantes. Eis a tradição que se transmitiu ao fundamentalismo.

Na opinião de qualquer fundamentalista, essa doutrina tornava-se o primeiro ponto essencial da defesa que deviam levar a efeito. Começando alguém a pôr em dúvida as afirmações da Bíblia, não haveria como permanecer firme no íngreme declive que - assim pensavam os fundamentalistas - convergiria inevitavelmente para a negação da existência de Deus, da divindade de Jesus, para a perda de certeza quanto à própria salvação e, finalmente, para a adoção de padrões de conduta absolutamente repreensíveis. Os fundamentalistas em tudo vêem algo como uma espécie de “humanismo insidioso”, isto é, a penetração sorrateira de idéias que, no final das contas, resultarão em que o ser humano fique sem Deus, sem religião e sem moralidade. O fato do aparecimento de pessoas no mundo de nossos dias que nada querem saber da existência de Deus, nem de religião, nem de moralidade tem proporcionado encorajamento aos fundamentalistas no sentido de que prossigam no zelo que demonstram para com a manutenção da doutrina da infalibilidade da Bíblia.

O ponto vital por excelência no fundamentalismo é a preocupação que revela para com os interesses da salvação individual. Para os fundamentalistas, a questão que tem importância capital é: “O amigo já está salvo?” Uma vez que o homem nada pode fazer para salvar-se, entende-se que Deus é quem há de salvá-lo. Esse estado de absoluta insuficiência humana é decorrente da queda ocorrida em Adão, que resultou na introdução do pecado no mundo, pecado esse que é herdado por todos os homens. O homem nasce com a culpa em que Adão incorreu, todos demonstram essa predisposição de caráter, que, inevitavelmente, os faz pecadores de fato. Essa criatura pecadora que é o homem não pode fazer absolutamente nada que agrade a Deus e, em conseqüência, está destinada ao castigo eterno no inferno, a menos que Deus mesmo faça algo em seu favor.

Deus é caracterizado por seu infinito amor, misericórdia e graça. Os liberais, assim o dizem os fundamentalistas, deixam de levar em consideração o juízo de Deus, de modo que o conceito do amor de Deus se torna mera expressão de sentimentalismo no ensino que ministram. Seria uma injustiça que Deus cometeria se perdoasse o pecado de modo fácil, agindo como se tudo pudesse simplesmente ser esquecido, quando

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na verdade se sabe que as conseqüências da prática do pecado não se interrompem jamais e continuam a acarretar infelicidade a outros. O homem se tornou pecador e, num universo moral como o que existe, ele deve ser responsabilizado pelo pecado que comete. Entretanto, por seu infinito amor e misericórdia, Deus decidiu enviar seu Filho unigênito ao mundo. Jesus viveu uma vida absolutamente impecável, de modo que ele nunca mereceu a morte. Ele aceitou, não obstante, morrer voluntariamente, a fim de proporcionar salvação aos homens. A morte de Jesus é, pois, uma expiação substituta. Ele sofreu as penas merecidas pelo pecado humano a fim de que a justiça de Deus pudesse ser satisfeita e o homem obtivesse a liberdade espiritual. O sangue de Jesus foi derramado para lavar o pecado do homem do mesmo modo como, no Velho Testamento, o sangue de animais era derramado em sacrifício ritual simbólico. A morte de Cristo não poderá salvar o homem sem que o coração humano o aceite na qualidade de Filho de Deus. A pessoa que aceita a Cristo passa a ter certeza de que terá a eternidade no céu e recebe em seu coração a graça de Deus como poder que o capacita para vencer as tendências pecaminosas enquanto estiver vivendo sobre a terra.

Os milagres são evidência da atividade divina no mundo e de sua presença entre os homens. Sabemos que Jesus era Filho de Deus pelo fato de que ele nasceu de uma virgem, por ter curado os enfermos, por ter operado a ressurreição de mortos e por ter ele mesmo ressuscitado de entre os mortos em forma corporal.

A maioria dos fundamentalistas crê na doutrina da vinda “pré-milenista” de Cristo. A doutrina pré-milenista ensina que o Reino de Deus não é igual à existência atual da Igreja como afirmam alguns grupos, nem é o Reino de Deus uma suposta sociedade perfeita que o homem mesmo possa fazer surgir sobre a face da terra, como afirmam alguns liberais. O Reino de Deus, a sociedade perfeita, será estabelecido mediante a segunda vinda de Cristo, quando ele aparecerá sobre as nuvens e quando a história terminará em verdadeira catástrofe. Cristo, uma vez realizado o juízo para com os que ainda estiverem em vida e para com os mortos ressuscitados, estabelecerá seu Reino e exercerá o domínio por mil anos, exatamente o milênio. Depois dos mil anos, ocorrerá uma batalha final entre as forças de Deus e as de Satanás e, com a vitória divina acontecida então, todos os santos serão elevados aos céus para uma eternidade de felicidade, ao passo que os incrédulos serão lançados no inferno.

Esse é o plano divino para a salvação dos perdidos, mas como podemos ter certeza de que isso é verdade? Não há dúvida de que nenhum conhecimento dessas coisas nós poderíamos ter, caso tivéssemos de ficar limitados a informações de procedência humana, pois nenhuma palavra humana pode nos dar segurança de salvação. E só Deus mesmo quem nos pode dizer da verdade ou não dessas coisas. Se a Bíblia não passa de palavra humana, então temos de admitir que continuamos no pecado, absolutamente destituídos de segurança de salvação. Mas, aceitando-se ser a Bíblia a palavra de Deus, sem sombra de erros e sem mancha de opiniões humanas, então certamente podemos nos sentir inabalávelmente seguros. E dessa maneira que a doutrina de que a Bíblia

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é infalível transforma-se na necessária proteção para a fidedignidade da mensagem do evangelho.

A doutrina da infalibilidade da Bíblia é freqüentemente mal compreendida. Pelo que geralmente se fala, parece que a doutrina é totalmente refutada pela objeção de que ela nada mais é do que inspiração mecânica, o que coincide com o mais desvitalizado literalismo. Procura-se, ainda, refutá-la pela alegação de que há muitos manuscritos da Bíblia, sendo numerosos os casos nos quais eles diferem entre si quanto à maneira de dizer as coisas nos vários textos. E verdade que alguns representantes do fundamentalismo ficam vulneráveis diante de críticas desse teor. Há algumas seitas cuja aceitação literal do conteúdo das Escrituras leva seus adeptos ao ponto de até tentarem pegar em ofídios extremamente venenosos ou fazer coisas igualmente despropositadas. Muitos dentre tais literalistas se recusam a levar em conta certas implicações relacionadas com a existência de diferentes manuscritos da Bíblia. Tendo-se em mente, entretanto, que alguns conservadores como, por exemplo, Machen, também foram eruditos bíblicos de alto nível, então não nos será difícil perceber que os conservadores dispõem de respostas adequadas para não cederem diante de tais críticas, aparentemente óbvias.

Machen e outros conservadores de seu tipo não se cansam de afirmar que só o manuscrito original da Bíblia, isto é, aquele que veio diretamente da inspiração divina, é que será imune a erros. Esses eruditos conservadores não entendem, absolutamente, que as edições da Bíblia atualmente não tenham erros. Com efeito, os conservadores têm contribuído admiravelmente com a tarefa da erudição bíblica, no propósito de que seja possível a restauração do melhor texto da Bíblia. Embora haja fundamentalistas fanáticos que, declarando ser a Versão do Rei Tiago infalível, têm chegado ao extremo de queimar a Versão Revisada, isso não acontece com todos os conservadores. Grande número dentre eles tem recomendado a leitura das edições revistas. Os conservadores amigos da erudição expressam a convicção de que Deus mesmo permitiu a perda do original da Bíblia, que era imune a qualquer erro, pelo fato de saber que o homem haveria de idolatrá-lo, como é o que acontece com relação às relíquias religiosas. Os homens encarregados de fazerem cópias da Bíblia cometeram erros e isso explica a existência de manuscritos discordantes. Todavia, Deus os preservou de introduzir em suas cópias os tipos de erros que pudessem resultar em prejuízo para a salvação dos pecadores, E. J. Carnell citava um trecho da introdução ao Revised Standard New Testament, onde se lê que um grupo de eruditos não conservadores concorda em que nenhum manuscrito tenha sido encontrado que requeresse qualquer mudança na fé cristã. Isso, nos diz Carnell, é tudo quanto um conservador deseja saber da parte dos eruditos.

Simplesmente não é verdade que o conservador, quem quer que ele seja, não passa de um literalista. O conservador não se sente solicitado a amputar sua mão direita, nem a arrancar um de seus olhos, pelo fato de que Jesus disse que os homens fizessem isso. Os conservadores sabem muito bem que a Bíblia, por vezes, faz uso de linguagem poética e alegórica. Em seus estudos ele não se baseia em uma interpretação literal

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das palavras das Escrituras; antes, procura obedecer à lição que vem do sentido “natural” dos textos. Nos pontos nos quais a Bíblia, obviamente, deve ser entendida literalmente, o conservador assim a entende. Assim sendo, o conservador crê na ocorrência da ressurreição corporal de Jesus de entre os mortos, pelo fato de que ninguém pode ler os respectivos textos sem entender que eles dizem que Jesus ressuscitou mesmo. Entretanto, o conservador não se sente obrigado a admitir que Isaías tenha visto os montes a saltitarem nem aplaudindo com as mãos. A palavra inspirada de Deus poderá ocorrer em textos poéticos ou em textos de prosa, de modo que temos de interpretá-los no sentido natural que eles contém.

Já que expressam a disposição de fazer tais concessões, fica bem claro que os conservadores não são intransigentemente diferentes dos liberais. Uma diferença básica existente entre conservadores e liberais verificamos quando comparamos a maneira como reagem, normalmente, à Alta Crítica. A crítica textual das Escrituras é tarefa na qual os conservadores se empenham cordialmente. Na verdade, o conservador demonstra mais preocupação do que os liberais pela possibilidade de encontrarem-se manuscritos mais fidedignos que nos permitam a mais exata versão da Bíblia.

A Alta Crítica, porém, é coisa bem diferente da crítica textual. Os fundamentalistas rejeitam toda a Alta Crítica, por considerarem- na verdadeira tramóia do diabo. Não é que os conservadores se oponham à existência da Alta Crítica, em princípio. Afirmam, porém, que os eruditos liberais da Alta Crítica têm caído em erro, que decorre das pressuposições com que realizam seu trabalho científico. Em primeiro lugar, alega o conservador, o erudito liberal da Alta Crítica pressupõe que a Bíblia não é diferente de qualquer livro antigo e que não requer nenhum método especial para que seja entendida. Deixando de admitir a Bíblia como sendo, conforme ela mesma o insinua, um livro relacionado com uma revelação especial de Deus, o erudito da Alta Crítica não terá como livrar-se de interpretá-la mal. Em segundo lugar, este erudito pressupõe a veracidade dum ponto de vista que, na realidade, nunca ficou cientificamente demonstrado. De acordo com as pressuposições desse ponto de vista, nenhum acontecimento pode ser considerado como tendo ocorrido, caso não se torne explicável em termos de uma compreensão contemporânea do universo e do homem.

Pelo fato de que o erudito da Alta Crítica é animado por pressuposições e por um ponto de vista do universo que não se baseia em provas, estando essas noções quase sempre arraigadas em seu subconsciente, ele começa a procurar causas naturais para a explicação da existência da Bíblia. Como conseqüência disso, os eruditos da Alta Crítica não hesitam em fazer violência ao texto da Bíblia. Por exemplo, diz-nos o conservador, a Alta Crítica ainda não pôde demonstrar a impossibilidade da ocorrência de milagres. Tampouco tem ela levado seus partidários a realizarem uma análise sensata das narrativas bíblicas pertinentes, para poderem ressaltar nelas inconsistências ou irracionalidades. O erudito da Alta Crítica não nos apresentou nenhuma evidência histórica que lançasse dúvidas sobre os testemunhos de que Jesus operou milagres e ressuscitou de entre os mortos. Acontece apenas

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o fato de que o crítico liberal não encontra lugar para a ocorrência de milagres no sistema universal que imagina; os milagres são repugnantes para ele. Vê-se, então, o crítico liberal à mercê da mais irrefreável imaginação e começa a criar teorias complicadíssimas para oferecer explicações do que teria acontecido em vez dos milagres descritos na Bíblia. Entende-se, assim, que a atitude de tais eruditos nem é crítica, propriamente, nem científica; é uma atitude alicerçada em fé absolutamente dogmática. O conservador assevera estar procedendo como um verdadeiro cientista nesse caso, muito mais que o liberal, pois ele, o conservador, não parte de nenhuma pressuposição de que jamais possam ocorrer milagres. Ele olha os fatos com mente aberta, e são as evidências que lhe ensinam que os milagres ocorreram como foram narrados.

Em resumo, na opinião do conservador a diferença entre ele e o erudito da Alta Crítica, não está no fato de que ele creia ter sido Moisés quem escreveu os cinco primeiros livros da Bíblia, ao passo que o erudito da Alta Crítica não o crê. Também não se encontra essa diferença no fato de que um afirme a fidedignidade histórica da Bíblia, enquanto o outro a rejeite. Com efeito, há espaço para divergência de opiniões sobre esses tópicos entre os próprios conservadores. A diferença real que os separa está em suas visões do mundo que são diametralmente opostas. O erudito da Alta Crítica, alega o conservador, entende que o mundo é uma unidade auto-suficiente inteiramente compreensível pelo intelecto humano. O liberal não vê espaço para a idéia de uma revelação especial nem para coisa nenhuma que dê a impressão de uma interferência divina em nenhum domínio natural. Em resumo, o liberal nega qualquer sentido de realidade que se possa atribuir ao conceito do sobrenatural... A natureza é um todo que tudo explica. Enquanto isso, sabe-se que o conservador entende o conceito de Deus como sendo sobrenatural e admite intervenções sobrenaturais de Deus para beneficiar os seres humanos. O mundo é explicado como produto da criação de Deus. Se Deus entende ser necessário agir com seu dinamismo criador na estrutura universal, para o propósito de conceder-nos uma revelação especial de sua divindade ou para operar milagres, o que cabe ao homem dotado de inteligência é ter uma atitude receptiva para com tais manifestações divinas e não fechar a elas, obstinadamente, sua razão.

Há uma tendência generalizada no sentido de considerar-se todo fundamentalista e todo conservador como se não passasse de uma pessoa que abandona as faculdades da razão. Novamente chamamos a atenção do leitor para o fato de que podemos encontrar elementos que justificariam essa má fama entre os fundamentalistas, mas não se deve entender que todos os conservadores em teologia mereçam uma tal reputação. Seria mais correto pensar que o conservadorismo teológico coincide com o racionalismo, exercitando-se no seio do cristianismo. Não há nenhum outro movimento religioso que ponha mais ênfase sobre a necessidade de manter-se uma fé racional do que o fazem os conservadores. Os defensores do conservadorismo teológico não se opõem a que os pontos de vista que adotam sejam expostos ao debate franco, pois entendem encontrar-se precisamente nesse debate os prêmios da vitória conservadora. Por exemplo, E. J. Carnell, em seu livro

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intitulado An Introduction to Christian Ethics, dedica trezentas e cinqüenta páginas à apresentação de sua argumentação correta dos fatos, tudo caracterizando-se pela nitidez, coerência e capacidade com que ele se expressa. Ele revela possuir muito conhecimento de filosofia, de ciência e de teologia de fontes não conservadoras. Ele se opõe a todo esforço que pretenda deixar a religião à margem da responsabilidade de justificar-se racionalmente perante as mentes questionadoras. Carnell nunca consentiria em que a religião fosse tomada como capaz de esconder-se atrás de intuições ou sentimentos místicos, como o queria Schleiermacher, nem em que ela ficasse satisfeita com expressões contraditórias e paradoxais. Ele só encontra uma razão para filiar-se entre os que preferem pensar nos termos do cristianismo conservador: é que o cristianismo conservador oferece explicações para os fatos ligados à existência de modo muito mais coerente do que o que se vê em qualquer outra filosofia. Sem dúvida, há quem discorde do conteúdo do livro de Carnell, mas não se pode admitir que alguém o rejeite como um produto do obscurantismo e da irracionalidade.

Carl Henry, editor do Christianity Today, não cessa de deplorar a falta de respeito para com a razão que se verifica na teologia não conservadora contemporânea. Ele está absolutamente confiante de que a razão pode demonstrar a existência de Deus, a veracidade histórica da Bíblia e a legitimidade da fé cristã. Onde quer que os teólogos modernos neguem os méritos da razão, Carl Henry não hesita em lançar- lhes em rosto que, assim fazendo, estão expondo o cristianismo ao desprezo e tornando-o vulnerável diante dos críticos. Os teólogos não conservadores, que não fazem reservas em afirmar que não dispõem de provas racionais para a existência de Deus nem podem oferecer evidências históricas para a vida de Jesus, são antecessores dos teólogos que chegam ao despropósito da afirmação de que Deus morreu.

Embora seja necessário que ressaltemos o fato de que Carnell e Henry são representantes contemporâneos nossos do conservadorismo teológico, também é verdade que os pais intelectuais desses dois teólogos modernos nunca deixaram de demonstrar o mesmo respeito profundo para com a razão humana. Machen, por exemplo, escrevendo durante a década de 1920, assinalou que a grande deficiência do liberalismo se encontrava no irracionalismo e no antiintelectualismo que o liberalismo alardeava. Os liberais, dizia Machen, alegam que a religião é coisa que não se pode expressar com exatidão e que, por isso mesmo, a expressão intelectual nela admissível terá de empregar termos simbólicos e, assim sendo, a melhor maneira pela qual alguém se torna impopular em teologia consiste na exigência de que sejam definidos os termos usados tão pitorescamente. Os liberais jogam com palavras como Deus, expiação, redenção e cristianismo, mas eles se a definir esses termos de modo que possam ser entendidos claramente por todas as pessoas que os ouçam.

Os liberais são obscurantistas pelo fato de que menosprezam o ensino dos postulados da fé. O liberal se diz apenas interessado na aplicação do cristianismo às necessidades da existência. Entretanto, pergunta-lhe Machen, como é que o indivíduo poderá fazer aplicação de uma coisa que não sabe o que é? Com efeito, para que se possa saber o que é o cristianismo, é necessário pensar no cristianismo, isto é, o

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indivíduo terá de analisar suas doutrinas. Resumindo-se, é muito necessária a teologia que o liberal se orgulha em deixar de lado. O desdém dos liberais para com a teologia nada mais é do que desculpa para ficarem aferrados a uma forma de pensamento absolutamente superficial ou, pior ainda, ficarem no comodismo de não exercitarem nenhum pensamento.

Além do que já se disse, continua Machen alegando que o liberal é antiintelectualista por causa dos hábitos que cultiva, que o levam a ler na Bíblia exatamente o que ele quer encontrar nela e não o que ela registra. O “Jesus da história”, por exemplo, sobre quem os liberais gostam de falar bastante, não coincide com o Jesus plenamente evidenciado nos Evangelhos, pois não passa do Jesus que os liberais gostariam de encontrar ali descrito. O liberal quer encontrar nos Evangelhos um Jesus que se caracterize só por sua humanidade e não por ser Filho de Deus. Ao mesmo tempo, o liberal procura exprimir-se dizendo encontrar na pessoa de Jesus o maior mestre de moral e de religião. Pode haver coisa mais ilógica do que isso? Se se crê que Jesus não é o Filho de Deus, insiste Machen em dizer-nos, é preciso concordar que ele é o reverso do que se pode considerar como sendo um mestre fidedigno de noções fundamentais do comportamento humano. Pois se sabe que Jesus se apresentou a si mesmo como sendo divino, agiu como portador de autoridade sobre os homens, fez alegações que sugeriam ser ele capaz de fazer exatamente aquilo que só Deus pode realizar, por exemplo, ele perdoou pecados. Jesus apresentou-se como sendo o Messias e disse que voltaria a este mundo uma segunda vez, sobre as nuvens do céu. Ele nos diz que é o Caminho, a Verdade e a Vida. Ora, se Jesus não passava de simples homem, embora se apresentasse dessa maneira, então somos obrigados a dizer que ele não pode ser considerado um exemplo para nós, pois ele teria sido ou um louco ou um charlatão. De qualquer forma, seria irracional devotar-lhe honra como mestre de admiráveis princípios éticos. Não obstante, isso é típico da atitude inconsistente assumida pelo liberal. O liberal não atenta para os fatos como eles o são efetivamente, mas, sim, como preferiria que tivessem sido.

Em suma, na mesma ocasião em que os liberais se vangloriavam de serem verdadeiros defensores da razão e de uma religiosidade racional, o notável pensador das fileiras conservadoras que foi Machen veio a público para chamar a atenção de todos para o fato de que são, na verdade, os liberais que traem as exigências da razão. Pode-se alegar com razão que haja inconsistência em certos pormenores da argumentação sustentada pelos conservadores. Afirma-se que seus argumentos levam a crer que não haja mistério na religião, pois ela seria puramente racional. O que não se pode fazer legitimamente, porém, é dizer que a teologia conservadora seja irracional.

Uma das razões pelas quais se vem pensando que os conservadores e os fundamentalistas sejam irracionais em sua maneira de argumentar provém da batalha obscurantista que foi travada contra a teoria da evolução em tempos passados, precisamente em nome do fundamentalismo. O termo “fundamentalismo” encontra-se ainda muito associado, na mente de muitos, com a lei promulgada no Estado do Tennessee, que proibia o ensino relacionado com a teoria da evolução nas

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escolas. Associa-se, também, com o rumoroso processo movido contra Scopes, que, aliás, resultou da aplicação da referida lei. Entretanto, é sabido que nenhum sistema de pensamento poderá ser julgado com justiça à base do que os fanáticos fazem em nome de tal sistema. Há fundamentalistas que condenam tudo quanto tenha o nome de ciência, considerando-a como sendo gerada pelo diabo, mas não se pode desconhecer que os conservadores têm colaborado para a harmonia existente entre o que a Bíblia diz e o que a ciência demonstra.

Em um de seus primeiros trabalhos publicados, Carnell expôs sua posição, que ele mesmo designou de “estágio evolutivo”. Ele chamou atenção para o fato de que a Bíblia não diz que Deus criou a cada uma das variedades dos seres na forma como as conhecemos atualmente. O que a Bíblia afirma é que Deus criou cada criatura segundo sua espécie, tais como “ervas que dêem semente” ou “répteis”. Dentro de cada uma das espécies, existem inúmeras variedades, que bem podem ter surgido em virtude do funcionamento de algum princípio evolutivo. O que a ciência nunca conseguiu demonstrar foi que uma espécie possa vir de outra. Nesse ponto, a biologia nos fala de elos que faltam ou de mutações, mas, na verdade, não dispõe a ciência de fatos comprobatórios do que sugere. Essa concepção dos “estágios evolutivos” oferece explicações para todos os fatos verificados pela ciência, tão bem como o tem feito qualquer das teorias já propostas. Essa concepção credencia os conservadores para ficarem tranqüilos com a afirmação de o homem ter sido uma criação especial de Deus e não o produto de uma evolução de animais inferiores, uma vez que o conceito dos “estágios evolutivos” sugere-nos que consideremos o ser humano como uma das “espécies” originalmente criadas diretamente por Deus. Desde o aparecimento da referida obra de Carnell, bom número de eruditos conservadores tem procurado demonstrar como não há, absolutamente, nenhuma incompatibilidade entre a teoria da evolução e o ponto de vista conservador quanto à Bíblia.

A preocupação dos conservadores por situarem-se bem em face das imposições intelectuais da ciência moderna tem resultado no aparecimento de um grupo de eruditos conhecidos sob a designação de, “Filiação Científica Americana”. Para que alguém possa se associar ao grupo, é necessário ser detentor de um diploma de doutorado em alguma das ciências. Os sócios se comprometem a permanecer na defesa da convicção de que jamais haverá incompatibilidade entre a ciência e a Bíblia infalível. Não são poucos os livros escritos por membros dessa agremiação intelectual, procurando provar a legitimidade dos pontos de vista que defendem.

Os conservadores têm revelado muita sensibilidade em face da acusação de estreiteza intelectual que lhes tem sido feita, tendo-se em consideração os esforços que fazem por livrar a Igreja daqueles que não tenham as mesmas opiniões que eles têm. Machen fez tudo para rebater essa acusação. Novamente, ocorreu-lhe o expediente de fazer uso dos argumentos liberais contra os próprios liberais. A estreiteza mental, ressaltou ele, não pode significar a devoção que se tenha pela defesa de certos princípios, com a rejeição de outros. O indivíduo se mostra portador de mente estreita quando rejeita as convicções defendidas por

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outro sem antes entendê-las. Ora, os liberais dizem continuamente: “Vamos agir com mente aberta e vamos ficar unidos numa só igreja, pois as diferenças doutrinárias que existem entre nós não são muito importantes.” Entretanto, esclarece-nos Machen, é da própria essência do cristianismo conservador considerar os problemas doutrinários como sendo de importância suprema. Não pode ser tomado como evidência de estreiteza de mente o aceitar ou rejeitar a doutrina da morte substitutiva de Jesus por nossos pecados. Mas é o cúmulo da estreiteza de mente afirmar, como fazem os liberais, que alguém que esteja firmado nessa convicção passe a agir como se para ele fosse de pouca importância. Se os liberais, de fato, tivessem mente aberta, isto é, se verdadeiramente se dispusessem a considerar as implicações das posições que outros assumem, mesmo não concordando com tais posições, então não teriam dificuldade alguma de perceber que o apelo que fazem em favor da união é feito nos termos só do liberalismo. Com efeito, o que os liberais desejam é nada mais nada menos do que uma incondicional rendição dos conservadores a eles.

A propósito da questão relacionada com a liberdade de expressão, Machen alega não pretender, de maneira nenhuma, que os liberais percam a liberdade, tanto de manter seus pontos de vista como também de disseminá-los. Em última análise, Machen mostra-se disposto a admitir que um liberal pode até ser melhor cristão diante de Deus do que algum conservador. Não obstante essa concessão, ressalta Machen, a verdade é que as igrejas dispõem de confissões de fé. O liberal pode concordar ou não com elas; nisso reside o seu direito e privilégio. O liberal pode ser da opinião de que as confissões de fé estejam erradas e pode até entender que não deva haver confissões de fé. Todavia, se for esse o caso, a honestidade há de levar o liberal a sair divulgando suas idéias por onde quiser. Há igrejas com idéias afins às suas. Por que se deve aceitar que o liberal continue a ser sustentado por uma igreja com a qual ele se encontra em desacordo? Como é que o liberal pode, honestamente, entender que uma igreja lhe dê sustento, quando ele está destruindo as bases doutrinárias sobre as quais ela se estrutura?

Os conservadores não entendem constituir-se em nenhuma violação da liberdade acadêmica se um seminário cristão procurar estabelecer limitações para o ensino de seus professores. Que Faculdade de Direito admitiria em seu corpo docente alguém que fosse de parecer que a Constituição do país devesse ser desrespeitada? Quantas Faculdades de Medicina admitiriam alguém ensinando os princípios característicos da seita que se chama “Ciência Cristã”? Será que existem atualmente muitos departamentos de biologia nas universidades, com tanta lar- gueza de mentalidade que permitam que professores ensinem com inteiro desprezo pela teoria da evolução? Por que é que se há de entender que um seminário seja tão diferente, a ponto de não se atrever a destituir um ou outro de seus docentes que esteja ensinando que Deus morreu ou, por qualquer outro ensino, insista em destruir as bases doutrinárias da fé que, um dia, tal professor declarou nutrir em seu coração?

Como salientei, durante o período da Segunda Guerra Mundial, a maioria dos teólogos não conservadores entendia que não era necessário levar a sério a teologia fundamentalista e conservadora. Era verdade que

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se percebia a existência de partidários dessa teologia dentro das igrejas, mas a opinião geral entre os liberais era no sentido de que a teologia conservadora e fundamentalista não tinha a importância de corrente competidora que despertasse receios. Quando lancei a primeira edição deste livro, fiz uma predição quanto à probabilidade de que aquela situação viesse a mudar, tendo em vista o surgimento de alguns jovens teólogos conservadores. Eu recebi mais críticas a propósito do capítulo que escrevi sobre a teologia conservadora do que sobre qualquer outro capítulo do livro. Os não conservadores não me perdoavam pelo fato de eu lhes ter eu dado a impressão de favorecer demais as idéias teológicas defendidas pelos fundamentalistas e pelos conservadores em geral. De acordo com aquelas críticas, era como se eu tivesse contribuído para preservar o “mito” de que a teologia conservadora ainda continuasse como digna de algum respeito diante do homem moderno.

Enquanto estive empenhado na revisão deste capítulo, senti-me no dever de chamar a atenção para o fato de que, nestes anos desde quando saiu a primeira edição do livro, os conservadores têm conseguido exercer uma influência mais profunda do que eu previra. Longe de dar sinais de enfraquecimento, o que muitas pesquisas de opinião pública vêm demonstrando é que os conservadores têm mensagem para maior número de crentes e ministros no protestantismo do que se pode verificar com respeito a outras posições teológicas.

Os conservadores vêm-se mostrando estudantes assíduos da teologia não conservadora, da qual muito desejam aprender. Os teólogos não conservadores, porém não demonstram igual disposição para ler nem para aprender as lições que lhes possam vir de fontes conservadoras. Embora a controvérsia entre fundamentalistas e liberais seja história do passado,as exacerbações dessa controvérsia ainda parecem funcionar como fator muito insinuante na vida eclesiástica americana. É possível que ainda chegue o tempo quando o movimento ecumênico se demonstre suficientemente amplo para incluir os conservadores em seu meio.

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Liberalismo: Reconstituição da Ortodoxia

Os termos “liberalismo” ou “modernismo” são de difícil definição. Primeiro, porque era coisa muito comum, durante os conflitos assinalados entre fundamentalistas e liberais, sempre que alguém não fosse fundamentalista, automaticamente ser posto no rol dos liberais ou modernistas. Os dois termos são empregados como sinônimos, embora não tenham faltado tentativas de diferenciá-los. Um outro problema associado às tentativas de definição é o fato de que o liberalismo é, por sua própria natureza, de tal ordem, que muitas posições podem estar contidas em seu escopo.

Apesar de suas variedades, o liberalismo assumiu, na opinião de grande parte de seus defensores dos primeiros anos do século, o significado de uma reconstrução do cristianismo ortodoxo. Não obstante o fato de que os fundamentalistas considerassem os liberais como verdadeiros subversores da fé, os liberais se tinham a si mesmos como salvadores da essência do cristianismo. No entender dos liberais, eram os fundamentalistas que estavam levando o cristianismo a perder sua influência, pela insistência que faziam em mantê-lo em moldes envelhecidos, fazendo-o impossível de ser aceito por pessoas inteligentes. Típica da atitude dos liberais era a declaração muito difundida, feita por Fosdick, de que, para ele, o problema não estava na enunciação de uma nova ou de uma velha teologia, pois o problema real era o de ter-se uma nova teologia ou não se ter nenhuma teologia.

Para que possamos entender o liberalismo, temos de saber de que nele se encontram dois elementos. Há, antes de qualquer coisa, as considerações relacionadas com o método próprio do liberalismo, isto é, o método que significa a capacidade conferida aos liberais de, provavelmente, chegar a conclusões diversas. Em adição a isso, deve-se considerar a existência de certo acervo de pensamentos que se vêm acumulando e que é típico dos liberais.

O método do liberalismo inclui uma tentativa de modernizar a teologia cristã. Alegam os liberais que o mundo tem passado por mudanças radicais desde quando foram elaborados as primeiras confissões de fé da cristandade; isso faz com que elas assumam feição arcaica e destituída de realidade ao homem atual. Temos, então, de repensar o cristianismo de modo que ele seja expresso em formas mentais inteligíveis ao mundo de nossos dias. Fosdik costumava dizer que temos de expressar a essência do cristianismo, suas “experiências permanentes”, mas não é legítimo procurar identificar essas experiências com as categorias transitórias nas quais foram expressas no passado. Por exemplo, diz Fosdick, uma das experiências permanentes do cristianismo tem sido a convicção de que Deus triunfará definitivamente sobre o mal. Essa convicção tem sido retratada, tradicionalmente, mediante a categoria do Segundo Advento de Cristo nas nuvens para destruir as

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forças do mal e estabelecer o domínio do bem. Já não podemos manter essa categoria antiquada, mas podemos ainda crer na verdade que se procurava exprimir através da antiga maneira de se dizer. Podemos continuar trabalhando sob a convicção de que, mediante a dedicação de seus seguidores desprendidos, Deus se encontra no presente empenhado na edificação de seu Reino e de que haverá uma renovação proposta à nossa vida individual e social, visando a que toda conduta se conforme à vontade divina. A essência da fé fica, portanto, estabelecida, diz Fosdick, mesmo que a forma de enunciação na qual se encontrava revestida seja abandonada como coisa ultrapassada.

Um segundo aspecto do método liberal é a recusa em aceitar a fé religiosa só com base na autoridade. Em vez disso, o liberalismo insiste em que todas as crenças devem ser submetidas à verificação da razão e da experiência. A mente humana é capaz de avaliar os pensamentos vindos de Deus. As intuições que ocorrem ao homem e à razão se constituem nos melhores indícios através dos quais podemos nos informar sobre a natureza de Deus. A mente deve conservar-se aberta a todas as verdades, não importando a procedência delas. Isso quer dizer que os liberais se propõem a manter a mente livre de preconceitos; nenhum problema lhes parece vedado ao meticuloso exame da razão. O surgimento de fatos novos poderá sempre concorrer para que se modifiquem as convicções consagradas pelos costumes e pelo tempo. Os liberais procuram devassar o desconhecido, possuídos que estão da profunda convicção de que qualquer verdade que surja será inevitavelmente uma verdade Divina. Animados desse espírito, os liberais aceitam cordialmente as conclusões da alta crítica bíblica e a teoria da evolução. Recusam-se a admitir uma religião que tenha medo da verdade ou que procure se proteger das investigações da crítica.

Torna-se evidente que, na medida em que alguém se mantém liberal com base no método que adota, as conclusões prováveis poderão ser diametralmente opostas. Não é coisa inimaginável, por exemplo, que alguém possa obedecer a esse método liberal e chegar à adoção de uma teologia bem parecida com a conservadora. Entretanto, o liberalismo foi associado a certas conclusões, tanto quanto com o método descrito, de modo que, uma vez que temos de continuar a análise da escola, é necessário que examinemos algumas das aludidas conclusões.

Subjazendo ao liberalismo teológico tal como veio a proliferar nos primeiros vinte e cinco anos deste século, encontra-se a influência da filosofia do Idealismo Absoluto, originária de Hegel e de Lotze, mas reinterpretada na América do Norte por Josiah Royce. O Idealismo Absoluto tem suas bases na idéia de que, se o homem pode crer no próprio conhecimento, será imprescindível supor a existência de uma estrutura racional do universo fora dos domínios de sua mente. As faculdades da razão humana, sua lógica e suas suposições apriorísticas só poderão funcionar para nos dar conhecimento do mundo se admitirmos que o mundo obedece a princípios correspondentes. Em outras palavras, podemos depositar confiança em nossa mente somente na medida em que possamos admitir que o mundo também expressa uma mente ou razão. O idealismo veio, portanto, a interpretar toda realidade como evidência da razão ou mente divina. Por outro lado, o Idealismo se tornou logo muito

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bem visto pelos cristãos pelo fato de sugerir excelentes meios de ataque contra todas as formas de filosofia materialista.

Alguns idealistas, como Hegel e Royce, fizeram com que a terminologia cristã se tornasse parte inerente do sistema por eles defendido. Todavia, para esses homens, as doutrinas cristãs não passariam de símbolos de verdades racionais de que os homens são portadores. Assim pensando, por exemplo, afirmavam que o conceito da divindade de Jesus seria somente uma enunciação simbólica do fato de que todos os homens trazem consigo um aspecto divino em sua natureza. O conceito básico da Bíblia, que consiste em demonstrar que Deus tem se revelado a si mesmo através de certos acontecimentos pertinentes da história, foi considerado pelos idealistas como noção ingênua e pré-filosófica.

O idealismo era uma filosofia de teor otimista. Afirmava ser o universo inerentemente racional e que a razão estava triunfando paulatinamente sobre os remanescentes de irracionalidade. O bem, pensava-se, seria algo mais básico do que o mal, de modo que a vitória derradeira do bem estaria definitivamente assegurada. Por vezes, tal maneira de considerarem-se as coisas era identificada com a noção cristã do Reino de Deus ou, como Royce o designava, a “Comunidade Amada”.

O liberalismo muito poucas vezes se rendeu de modo irrestrito à filosofia idealista, porque os teólogos liberais não consentiram jamais em abandonar a Bíblia. Mas os liberais aproveitaram-se muito do pensamento idealista. Uma das idéias mais importantes que procuraram explorar do idealismo consistia na ênfase quanto à imanência de Deus. Para a consideração disso, temos de parar para um ligeiro exame de alguns termos teológicos técnicos, principalmente os termos “imanência” e “transcendência”. O conceito de imanência implica em admitir que Deus age na estrutura universal e expressa-se mediante a natureza. Uma forma extrema de imanência encontra-se no Panteísmo, para o qual Deus é o mundo e o mundo é Deus. Essa forma extrema aparece em vários dos filósofos idealistas, mas é raro que apareça entre teólogos liberais. O conceito de transcendência, por outro lado, implica em afirmar a existência de Deus fora da estrutura universal. Uma forma extrema de transcendência aparece no conceito deísta, para o qual Deus se encontra tão distante do mundo que ele pode ser comparado com o relojoeiro que não se encontra presente no mecanismo do relógio que fabrica.

É óbvio que o fundamentalismo teológico procura ressaltar a verdade da transcendência sem que se sinta obrigado a negar a imanência de Deus. Para o fundamentalismo, Deus se distingue do mundo e, quando nele intervém, o faz mediante a operação de milagres e atos especiais de revelação. Em oposição a isso, o liberalismo insiste em que se pode encontrar Deus presente em todas as manifestações da vida e não apenas em alguns raros acontecimentos espetaculares. A maneira própria pela qual Deus realiza tudo é pelo funcionamento das leis naturais e através de mudanças progressivas. O liberalismo nega que algumas coisas venham de forças naturais, enquanto que outras sejam devidas à operação de forças sobrenaturais. O teólogo liberal vê Deus operando em e através de tudo quanto aconteça e exista. Sendo assim, o nascimento virginal de Jesus é uma convicção muitíssimo importante para

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o fundamentalista, pois é uma prova de que, em Cristo, o sobrenatural se evidenciara. No entender do liberal, porém, a noção do nascimento virginal de Jesus seria não só desnecessária, mas ainda um verdadeiro entrave para a razão, uma vez que Deus está presente por ocasião do nascimento de qualquer criança.

Apesar da ênfase dada à noção de imanência, a maioria dos liberais sempre acreditou que Deus é transcendente tanto quanto é imanente. Por exemplo, Rufus Jones, em texto no qual ressalta a imanência divina, prossegue dizendo que Deus é espírito e é da essência do espírito, mesmo em se tratando da forma como o intuímos no caso peculiar ao ser humano, transcender a si mesmo. Por conseguinte, é concebível que um Deus espiritual imanente terá de transcender os limites do espaço-tempo universal. Deus é algo mais do que o universo, mas não pode ser entendido como sendo algo radicalmente separado do universo.

Tendo-se em conta a fé professada a propósito do Deus imanente, é claro que o liberalismo aceitaria a teoria da evolução não como se fora fosse um remédio amargo, a ser tomado pelos que estão possuídos da determinação de contentar-se só com a verdade toda, mas, pelo contrário, a teoria da evolução lhe parecia de admirável utilidade para a vindicação do conceito da imanência de Deus. Em vez de se crer que ele irrompeu através das nuvens, para criar o mundo, a teoria possibilitava a crença de que Deus trabalhou por eras sem conta, construindo, mediante a operação das leis naturais, o universo tal como o podemos contemplar com a maior admiração. Em sua grande maioria, os liberais concordariam com a maneira como certo poeta cantou: “Alguns dizem que é evolução e outros dão o nome de Deus.”

Uma vez que Deus está operando no universo e, particularmente, operando na vida espiritual do ser humano, torna-se ele, conforme o entende o liberalismo, um Deus humanizado. Isso não significa entender que Deus seja como um ente humano glorificado nem que o homem se torne Deus, mas significa que Deus deve possuir características espirituais consideradas boas no caráter humano. Certo teólogo liberal expressou com humor a esse respeito, dizendo que, tendo sido criado sob as fortes impressões acarretadas pela cruel crença predestinista de Calvino, foi um grande alívio para ele a descoberta de que Deus seria, pelo menos, tão bondoso quanto lhe pareciam alguns dos presbíteros de sua Igreja. Alguns liberais mostravam-se até contrários ao emprego da frase “Reino de Deus”, que lhes dava a impressão das implicações associadas aos conceitos gastos do feudalismo. Em vez dessa frase, eles sugeriam a conveniência de empregar- se, para a idéia em causa, a nova expressão, “Democracia de Deus”. Não se preocuparam em definir-se que Deus, no caso, deveria passar a ser um monarca limitado por uma constituição ou que seria, simplesmente, um presidente eleito por sufrágio universal. Entretanto, não seria justo deixar de assinalar que não foram muitos os liberais que chegaram tão longe. Mas é justo que se diga que os liberais insistiam muito em que Deus teria de ser concebido como devendo certas coisas ao homem; o homem poderia exigir de Deus que lhe fossem assegurados alguns direitos inalienáveis.

Se Deus está presente nos processos universais, então não será razoável pensar que estejamos à mercê absoluta de uma revelação

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especial. Visto que uma das provas que os liberais apresentam quanto à existência de Deus consiste na experiência religiosa, e, uma vez que tal experiência não fica restrita ao cristianismo, torna-se claro que outras religiões também dispõem de revelação. O homem em seu estado mais recomendável é, com efeito, uma continuação da revelação de Deus. Até mesmo os que não demonstram reconhecimento para com Deus bem poderão, através de alguma dedicação que revelam para com objetivos sublimes da existência, constituírem-se eles mesmos em revelação da natureza e da vontade de Deus. Há diferenças entre liberais a esse propósito. Alguns, como é o caso de D. M. Edwards, estariam dispostos a admitir que todo tipo de conhecimento é revelação, tanto quanto qualquer doutrina do cristianismo. Outros, entretanto, são mais cautelosos e preferem expressar a crença de que Deus poderá ser encontrado de modo mais convincente na pessoa de Jesus e na Bíblia do que o será em qualquer conhecimento de ordem geral. Todos os liberais, porém, concordam em que a revelação deve submeter-se aos critérios da razão e da experiência. De outro modo, insistem eles, como seria possível decidir em face dos conflitos da revelação? Com toda a certeza temos de admitir que não somos deixados á mercê dos fanáticos que apareçam alegando serem portadores de alguma revelação de Deus. Bom número de liberais pensa como J. S. Bixler, quando afirma que o fato de alguns credos revelarem mais e melhor a respeito de Deus do que outros o fazem é suficiente evidência de que os respectivos profetas e sábios fizeram um maior uso do que os outros da intuição e da capacidade de penetração que lhes foram conferidos por Deus.

Tendo-se em mente tal conceito de revelação, não deverá causar surpresa que os liberais tenham aplaudido o aparecimento da alta crítica da Bíblia. Os liberais não só criam que a Bíblia não devia usar nenhuma desculpa para ter um tratamento especial entre os demais livros com os quais os homens podem contar, mas, bem mais do que isso, sentiam-se felizes por não terem mais de esforçar-se em qualquer apologia em favor da Bíblia inteira, considerada como se fosse Palavra de Deus. Não era mais necessário defender um Deus que estabelecera ordens aos israelitas para que matassem os inimigos junto com mulheres e crianças indefesas, nem um Deus que teria enviado ursos para devorarem meninos que tinham enchido a paciência do profeta.

Ao ser examinada à luz dos métodos da alta crítica, os liberais afirmam que a Bíblia patenteia ter Deus feito revelação de si mesmo de modo evolucionário, exatamente como teria criado o mundo. Tendo começado com idéias primitivas de instintos sanguinários, a Bíblia evidencia como os judeus paulatinamente teriam alcançado as noções mais requintadas de um Deus justo que poderá ser servido tão-somente pelos que praticam a justiça, amam a misericórdia e andam humildemente diante de Deus. Essa revelação progressiva de Deus chega a seu cumprimento em Jesus, no qual Deus é retratado como Pai amoroso de todos os homens.

O lugar exato de Jesus no pensamento liberal varia com o respectivo pensador. Há considerável número de liberais que consideram a pessoa de Jesus como divina e como revelação de Deus. Outros há, porém, que não vêem em Jesus ninguém mais do que um entre os

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notáveis líderes do pensamento religioso e ético. Em nenhum outro ponto é mais difícil conseguir uma síntese do liberalismo do que no que concerne a Jesus. William Adams Brown, que por muitos anos atuou como importante voz liberal, talvez seja bem típico. Ele entende que Jesus é uma autoridade para os cristãos em três formas: Primeiro, Jesus é a ilustração mais nítida do tipo de conduta em que os cristãos desejam viver e que almejam ver prevalecendo na sociedade. Jesus é uma autoridade porque ele nos capacita a vermos de modo muito mais claro do que o faz qualquer outro o que o mundo seria caso todos passassem praticar o amor. Segundo, Jesus exemplifica a seus discípulos o tipo de ânimo que há de prevalecer caso a vida ditada pelo sentimento do amor venha mesmo a tornar-se em realidade. Por ele, percebemos que, sem que haja espírito de sacrifício, tal sociedade jamais poderá ser alcançada. Por último, Jesus simboliza perante os seguidores aqueles mananciais de poder nos quais devem confiar caso desejem efetivamente vencer os obstáculos que impedem o estabelecimento da conduta ditada pelo amor. O homem necessita de ajuda que lhe venha de fora. Em Jesus contemplamos alguém que esteve totalmente imerso no amor divino e pôde certificar-se de que Deus é capaz de suprir-lhe todas as necessidades. Foi dessa forma que ele se tornou, aos olhos dos seguidores, o próprio símbolo do que Deus é e o canal mediante o qual o amor de Deus poderá penetrar os sentimentos humanos. Declarações assim, mesmo que possam ser consideradas típicas do centro do liberalismo, poderiam sofrer críticas de alguns liberais que as classificariam como radicais, enquanto outros fariam críticas por considerá-las demasiado conservadoras.

Muitos liberais se mostraram bastante interessados nas pesquisas concernentes ao Jesus histórico. Entendiam que o cristianismo teria de procurar alicerçar-se sobre o tipo exato de pessoa que Jesus teria sido. Em conexão com isso, havia uma certa persuasão de que uma tarefa criteriosa da erudição era necessária para que se conseguisse restaurar a verdadeira figura de Jesus ante os olhos de todos. Essa investigação a propósito de Jesus fazia uso de vários refrões; algumas vezes se dizia assim: “Não Cristo, mas Jesus”, querendo-se significar que “Cristo” seria título associado a certa doutrina, enquanto que “Jesus” seria o termo próprio para a devida referência ao profeta da Galiléia. Outro refrão era assim: “A religião de Jesus, não a teologia de Paulo.” Muitos liberais pareciam achar que Paulo merecia incriminação pelo pecado de esconder Jesus atrás de uma tela fuliginosa de teologia.

Sempre se esteve muito longe de qualquer harmonia a propósito de que tipo de ser humano o Jesus real e histórico teria sido. Mas, de modo geral, tinha-se a impressão de que ele teria sido o mestre de uma religião simples e ética, baseada principalmente nos princípios da Paternidade de Deus e da fraternidade humana. Já tivemos ocasião de chamar a atenção para a presença do mesmo tema em Harnack, e sabe-se que é um tema ainda em debate.

Os fundamentalistas ficaram tremendamente alarmados, pensando que os liberais estavam perdendo o conceito que deveriam ter de Jesus, figura central do cristianismo, e que a doutrina básica da divindade do Salvador já não seria confessada por eles. Os liberais, porém, respondiam

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a tais clamores asseverando que estavam redescobrindo Jesus. Ressaltavam que tudo quanto os fundamentalistas tinham não passaria do Cristo do “berço, da cruz e do túmulo”. Isto é, os liberais atacavam os fundamentalistas, dizendo que estavam interessados só no fato de que o Filho de Deus nasceu de modo miraculoso, de que ele sofreu morte substitutiva e de que ele ressurgiu de entre os mortos. Enquanto isso, os liberais desejavam apresentar Jesus na inteireza de sua vida perante os olhos dos cristãos. Os liberais alegavam que os fundamentalistas se preocupavam de tal forma com as doutrinas teológicas a respeito de Jesus que chegavam a esquecer-se de seguir os seus ensinos.

De modo geral, pode-se afirmar que, como os liberais tendem a apagar a linha divisória existente entre conhecimento e revelação, também tendem a apagar a linha existente entre todos os homens e a pessoa inconfundível de Jesus. Todos os homens são, potencialmente, filhos de Deus; Jesus é supremo e exclusivo, pelo fato de ter cumprido as potencialidades inerentes a todos de maneira completa, mais do que outros o têm feito. Os poucos liberais que atribuem importância ao conceito da divindade de Jesus, não raro, insistem em afirmar que tal conceito não deverá mais ser interpretado nos termos do Credo de Nicéia, que diz ser Jesus da mesma substância de Deus; em vez disso, o conceito deverá ser interpretado em termos de caráter e integridade espiritual. Jesus foi UM com Deus pelo fato de ter vivido completamente a vontade de Deus com referência a todas as coisas.

Os liberais, considerados como uma escola, têm geralmente negado a doutrina do pecado original. Isso não significa que os liberais não tenham se impressionado com o fato de que o homem não pode se vangloriar de ser perfeito; mas os liberais insistem na afirmação de que nada existe de radicalmente errado na natureza humana como tal. Não há nenhum abismo entre Deus e o homem, uma vez que, em seus melhores instantes, o homem é como Deus. O homem poderá ser conquistado do domínio do pecado mediante a educação e por fazê-lo contemplar os ideais de Jesus. Além disso, há graus de pecaminosidade; qualquer pessoa poderá fazer progresso no empenho por vencer o pecado e, mesmo que não consiga alcançar a perfeição almejada, o fato é que lhe é possível mover-se sempre nessa direção.

Muito foi escrito nos anos mais recentes a propósito da dificuldade revelada pelos liberais em entender as profundezas pecaminosas da natureza humana. E verdade que houve e ainda há liberais que são capazes de dizer, como J. S. Bixler, que o pecado não passa de um tema utilizado pelos poetas esotéricos e pelos teólogos desiludidos, os quais se põem a penetrar no passado na intenção de encontrarem elementos de apoio para os credos anacrônicos que defendem. Bixler insiste ainda no fato de que há um elemento de artificialidade e de impostura no emprego do termo “pecado”; trata-se de um conceito para cuja compreensão temos de interrogar a nós mesmos. Entretanto, Bixler não é típico do liberalismo.

Muitos liberais insistiam em dizer que estavam tomando o pecado como coisa mais séria do que o faziam os fundamentalistas. Os fundamentalistas, alegavam, condenam o pecado em geral, mas não tomam na devida conta os pecados particularmente considerados. Os

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liberais não se cansam de insistir em que têm muito pouco a dizer com relação ao pecado em geral, pelo fato de estarem preocupados com formas concretas de pecado, como acontece nos políticos corruptos, na exploração egoísta, no dogmatismo que se justifica a si mesmo, na discriminação racial e assim por diante. Walter Rauschenbusch assinalou, há muitos anos passados, que, se nutrir uma doutrina concernente à queda original do homem, chegar-se à afirmação de um tal estado de depravação, que se é levado a dar muitíssima pouca atenção às contribuições para o pecado que têm sido feitas pelos antepassados mais recentes e por nós mesmos também.

Na opinião de todos os liberais, a ética ocupa lugar absolutamente central. Por vezes acontece que os liberais recaem numa espécie de prova pragmática da religião que professam. A verdade da religião deverá ser julgada pelo critério de saber-se se ela concorre efetivamente para que o mundo se torne lugar mais condizente com o ideal de uma melhor existência.

Nisso se encontra um elemento que ajuda a explicar a tendência de muitos liberais menosprezarem a teologia. Tem- se gasto muito tempo em disputas teológicas, que seria bem mais proveitoso se fosse dedicado à realização de atos de natureza ética, alegam os liberais. Muita teologia parece não ter nenhum resultado nem conseqüências éticas. O reagente capaz de evidenciar o quilate de uma religião não se encontra no que o homem crê, mas, sim, neste enunciado: “Quando o fizestes a um destes pequeninos...” Para muitos liberais, a filosofia e a psicologia da religião têm tomado o lugar da teologia. E. S. Brightman, por exemplo, expressou negando de coração ser teólogo; ele disse ser um filósofo dotado de interesse particular para com a filosofia da religião. Como o entendia, não há nenhum domínio da teologia que não possa ser estudado pela filosofia. Essa é uma conclusão quase inevitável quando a revelação ou é negada ou é reduzida ao nível de qualquer outro conhecimento.

Elemento importante do liberalismo foi a escola do Evangelho Social. A relação exata do Evangelho Social com o liberalismo em geral é difícil de analisar. Por um lado, ele foi um produto do liberalismo, e a maior parte de seus expositores eram partidários da teologia liberal. Por outro lado, o Evangelho Social levantava críticas ao liberalismo, afirmando que ele se indentifica- va com uma das classes existentes na sociedade, isto é, a classe média, e, ligava-se ao interesse próprio do Evangelho Social o fato de que a crítica mais radical levantada contra o liberalismo tinha de surgir de homens da estatura de Reinhold Niebuhr. A despeito das ambigüidades, porém, não poderão subsistir dúvidas de que o Evangelho Social é um dos elementos dentro do escopo do liberalismo.

Em certo sentido, o Evangelho Social é tão velho quanto o próprio cristianismo. Embora de vez em quando alguns cristãos preferiram fugir da sociedade, não sentindo nenhuma necessidade de torná-la cristã, o que tem sido geral, porém, na conduta cristã, é que os crentes procuram cristianizar a sociedade. O catolicismo medieval, por exemplo, tinha um evangelho para a sociedade e sabemos que se esforçou muito para edificar uma cultura cristã. O Calvinismo apresentou um programa bem definido para a sociedade, e não é nenhum acaso verificarmos que os países fortemente influenciados pelo Calvinismo se tenham tornado

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democracias. Todas as seitas surgidas junto com a Reforma tentaram, por várias formas, o estabelecimento de uma ordem social cristã.

Não obstante, verificou-se um certo formato moderno associado ao Evangelho Social tal como apareceu entre os cristãos liberais dos últimos vinte e cinco anos do século dezenove e da primeira metade do século vinte. Eram homens que reagiram contra o evangelho de tipo individualista, que era apresentado pelos grupos mais ortodoxos e pelos fundamentalistas. Os advogados do evangelho social insistiam em salientar que não é suficiente pregar um evangelho que não passa de um seguro contra o fogo do inferno. Não é nenhuma vantagem ficar salvando os indivíduos um a um, quando se verifica que um sistema social corrupto está condenando-os aos milhares. O evangelho social atenta para o fato de que os homens vivem em sociedade e, em grande parte, são moldados pela sociedade. Sendo a sociedade corrupta, ela acabará sempre corrompendo os homens. Com muita freqüência, as esperanças nutridas quanto a uma vida melhor aqui na terra tomavam o lugar de qualquer interesse manifesto para com a vida no além.

Os que pregavam o evangelho social se convenceram de que por “Reino de Deus” Jesus não tinha querido dizer alguma espécie de vida depois da morte, nem a probabilidade do estabelecimento de uma sociedade sobre a terra como o efeito de intervenções sobrenaturais de Deus coincidindo com a Segunda Vinda de Cristo. Em vez disso, Jesus quis referir-se à sociedade na qual os homens se comportem como irmãos, capazes de viver em regime de cooperação, de amor e de justiça. Uma tal sociedade ideal é possível de ser realizada pelo esforço humano, contando-se com o auxílio divino, é claro. Com efeito, percebe-se que os homens já fizeram bom progresso nesse particular, como se vê da existência nas estruturas peculiares às democracias políticas. Nesse ponto, o evangelho social tinha as mesmas convicções seculares relativas às possibilidades do progresso, algo muito comum nos primeiros trinta anos do século XX. Não se quer dizer com isso que os proclamadores do evangelho social se iludissem com um conceito ingênuo de um progresso inevitável, nem quer dizer que eles tivessem como coisa de fácil realização conseguir chegar a uma sociedade perfeita. Rauschenbusch, que faleceu no ano de 1919, foi um dos mais destacados expositores do evangelho social e nunca deixou de mostrar-se ciente do fato de que existe mesmo um reino do mal, isto é, um movimento social organizado com a finalidade de implantar o mal. Ele entendeu perfeitamente que o progresso social pode ser retardado e, até mesmo, perdido. Embora ele se tivesse lançado de corpo e alma nas lutas através das quais os trabalhadores reivindicavam salários mais justos, não perdeu de vista, entretanto, que um tempo viria quando os trabalhadores, tornando-se poderosos, teriam de sofrer resistências em nome dos interesses da comunidade em seu todo.

Os pensadores filiados ao evangelho social não procuraram articular nenhum programa definido que visasse à salvação da sociedade. Mas tendiam a concordar em que há situações de alternativa muito nítidas ante os olhos dos cristãos nos domínios econômico, político e social. Não poucos entre eles chegaram a identificar os ideais de ordem social cristã com elementos ideológicos associados com a democracia, o

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socialismo, o New Deal ou o movimento em favor da instituição de cooperativas.

Dois problemas em particular tocaram muito os corações dos pensadores filiados ao evangelho social - a paz e as relações que deveriam existir entre as várias raças humanas. Bom número deles passou a repudiar todas as guerras que o futuro pudesse trazer, entendendo que a Primeira Guerra Mundial tinha já deixado muito clara a futilidade de aceitar a guerra. Embora nem todos se comprometessem com uma idéia de pacifismo absoluto, concordava-se, entretanto, em que a guerra teria de ser terminantemente abolida antes que se pudesse alcançar o estabelecimento do Reino de Deus. A Liga das Nações contou com apoio integral da parte deles. Dentre os filiados a essa escola de pensamento foi que surgiu a mais coerente formulação de que a discriminação racial é verdadeira mancha que enfraquece toda a presunção entre os que proclamam o cristianismo.

Em esboço muito rápido, era essa a essência do movimento liberal, particularmente como apareceu durante os primeiros trinta anos do século XX. Um resumo desse tipo não é muito adequado para a descrição dos pensadores em particular, pois, como se sabe, independência no pensar era uma reivindicação importante para todos os liberais e uma independência acentuada não torna possível a apreciação de todas as variações da escola dentro dos limites de um capítulo. Entretanto, mesmo não sendo adequado tentar descrever minuciosamente o sistema defendido pelos diversos pensadores, não se pode deixar de admitir a conveniência de uma descrição relacionada com as tendências que estavam obtendo a vitória sobre o fundamentalismo e assumindo o controle dos mais destacados seminários e órgãos oficiais das denominações de maior vulto no período compreendido entre 1900 a 1930.

Quando o liberalismo percebeu ter derrotado o fundamentalismo no sentido em que procuramos fixar no último capítulo, então os próprios liberais tomaram conhecimento de que se encontravam muitíssimo divididos entre eles mesmos. Pode-se verificar a existência de três tendências principais no liberalismo, embora se deva reconhecer que alguns pensadores jamais poderiam se enquadrar em qualquer delas.

Primeiro, na ala esquerda dos liberais, surgiu um grupo conhecido como humanista. Em 1933, o grupo publicou um manifesto cujo teor não passava de filosofia naturalista. Caracterizava-o uma formal negação da existência de Deus, da imortalidade da alma e de tudo quanto pretendesse explicar-se em termos do sobrenatural. Em lugar de tais convicções, o grupo entendia que era satisfatória uma sugestão quanto aos méritos humanos e respectivas capacidades. Ao invés de ficar contemplando algo acima dele, que lhe valha para algum socorro, e em vez de ficar se embalando no sonho de uma vida no além, cumpre ao homem realizar e desenvolver a própria personalidade. Assim entendendo-se, surge a necessidade de tudo fazer para uma reestruturação da sociedade, para que ela se torne propícia ao desenvolvimento a que o homem se destina. Todas as coisas deverão submeter-se ao critério dos efeitos que proporcionam no sentido do bem-estar humano.

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Os humanistas alegavam estar levando os ideais do liberalismo a conclusões mais lógicas. Os liberais tinham ressaltado a imanência divina; então, os humanistas estavam insistindo em que Deus fosse compreendido como completamente imanente: Deus é o mundo; Deus é o homem com os sonhos que o animam. Os liberais tinham aludido à experiência religiosa; então, os humanistas estavam procurando identificar a religião com a própria experiência. Onde quer que ocorra a experiência da integração da personalidade, aí se encontra a religião. Os liberais tinham dado muita ênfase à ética e a utilizado como critério de julgamento, de modo que a religião teria de ser avaliada pelos frutos éticos que proporcionasse; então, os humanistas passaram a insistir em que a religião teria de ser identificada com a ética. Os liberais tinham procurado humanizar a Bíblia; então, os humanistas passaram a dizer que a Bíblia era um livro puramente humano. Os liberais tinham ressaltado a humanidade de Jesus; então os humanistas o estavam contemplando só como homem dotado de virtudes, mestre maravilhoso, embora sofrendo os prejuízos advindos de uma concepção pré-científica do universo. Entretanto, Jesus não deverá ser preferido, de modo algum, a outros mestres que existiram no passado ou existem no presente. Os liberais, acusavam os humanistas, reconheceram o direito que tinha a ciência de devassar todos os domínios, mas a verdade é que muitos dentre eles ficaram assustados com a sugestão de que a ciência tinha condições de oferecer soluções para todos os problemas. Resumindo, o liberalismo se vê assim censurado por ter defendido uma reforma parcial; seus defensores ficaram só naquele ponto do qual podiam ver a terra prometida de longe, mas sem que tivessem coragem suficiente para entrar nela.

Um segundo grupo de liberais surgiu sob a designação geral de “Filosofia Empírica da Religião”. Eram pessoas que procuravam encontrar uma religião que pudesse enquadrar-se definitivamente nos moldes ditados pela ciência. A. N. Wieman, líder de um dos ramos da escola, afirma que a teologia liberal quis ser empírica, mas aceitava o conceito de experiência religiosa em sua maneira geral de pensar e isso teria aberto a porta para certa subjetividade não empírica. Wieman deseja apresentar uma teologia cujo centro seja o próprio Deus e não o homem. Assim, ele diz que, em vez de fazer introspecção, procurando descobrir nossa própria experiência, o que devemos fazer é contemplar fora de nós a realidade de Deus. Ressalta ele que já passou o tempo de ficar pensando em demonstrar a existência de Deus; Deus deve ser definido de modo a fica claro que sua existência nunca pode ser negada. Wieman apresentou várias definições de Deus, sendo uma delas a seguinte: “Deus é aquele caráter inerente aos acontecimentos ao qual o homem se sente obrigado a ajustar-se com o fim de alcançar o bem supremo e de evitar o maior de todos os males.”

Wieman não acredita que seja possível conhecer algo a respeito de Deus senão mediante a experimentação; temos de viver experimentalmente para que possamos encontrar os valores existentes no universo. Para Wieman, Deus é parte da natureza, aquela parte da qual nós dependemos para a produção e a preservação dos valores humanos. A primeira vista, cabe a pergunta: Qual será a diferença existente entre

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Wieman e os humanistas, visto que ambos são naturalistas quanto à filosofia que defendem? A diferença reside no fato de que Wieman tenta encontrar uma fonte fora do homem que seja a base das noções de valor entre os homens. Os humanistas, por outro lado, afirmam que as noções de valor derivam só dos interesses humanos. A natureza distinta do homem é indiferente em se tratando de valor.

Outra ala da escola empírica é aquela que se associa à filosofia personalista e encontrou seu expositor mais destacado na figura de E. S. Brightman. Para Brightman, a religião deve ser baseada na experiência, mas deve-se entender que a experiência é a vida consciente em sua inteireza. Para que se veja a verdade da religião deve-se tomar em consideração a coerência com que se possa confrontar com o conhecimento e outras experiências como um todo. Enquanto o filósofo que analisa a religião possa dispor da experiência do misticismo, da revelação e outras fontes não perderá de vista que cada um dos referidos aspectos terá de submeter-se ao crivo da razão.

Ao passo que o Deus de Wieman não é pessoal, o de Brightman é pessoal. Brightman chega a essa conclusão ponderando sobre vários fatos da experiência e compreendendo que a hipótese de um Deus pessoal é mais coerente na explicação que sugere. Deus não é, efetivamente, uma pessoa, mas ele é pessoal no sentido de incluir uma vontade racional e é fonte de onde vêm as noções de valor humano. Também é pessoal no sentido de que os seres humanos podem manter relação pessoal com ele.

O aspecto mais peculiar da teoria de Brightman reside na afirmação que faz de que Deus é limitado. Encarando seriamente o problema da existência do mal, Brightman prefere adotar o ponto de vista de que um Deus completamente bom e completamente poderoso não permitiria o mal. Desde que ele entende que há evidências de que Deus é bom, então resta-nos somente a alternativa de que ele não é todo-poderoso. O elemento de limitação encontra-se na intimidade mesma de Deus como dado aspecto incriado de sua natureza. O homem é, portanto, chamado para colaborar com Deus na luta contra o mal.

O terceiro grupo de liberais incluía a maioria dos ministros partidários da teologia liberal. Cada uma das posições anterior-mente referidas representa uma forma de rompimento radical com o cristianismo ortodoxo. O terceiro tipo de liberalismo, porém, não se afasta muito da ortodoxia. E um tipo que tem sido designado de Liberalismo Evangélico, 110 sentido de que se pensa ter retido o essencial do “evangelho” ou da boa-nova do cristianismo. Esse tipo de liberalismo encontra-se em pensadores como Harry Emerson Fosdick, W. A. Brown, Rufus Jones e H. S. Coffin. Essas personalidades do mundo teológico sempre foram dedicadas a valorizar a razão, caracterizando-se por uma mente aberta em face das correntes de pensamento modernas. Entretanto, procuraram sempre manter-se firmemente alicerçados na Bíblia e na tradição cristã. Nunca puseram em dúvida a realidade da existência de Deus e, mesmo que gostassem muito de pregar sobre a imanência divina, nunca deixaram de crer que Deus transcende a todo o universo. Afirmavam abertamente a exclusividade da pessoa de Jesus e da religião cristã e, embora não subscrevessem na integra o credo ortodoxo,

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não deixavam de concordar com os ortodoxos no que dissesse respeito à aceitação de Jesus como Senhor de suas vidas.

Rufus Jones foi em elemento típico dessa escola. Ele mostrava-se profundamente interessado no misticismo, atitude que ele entendia como sendo o conhecimento direto que se pode obter de Deus. Deus pode tornar-se conhecido pelo homem como poder espiritual que se faz acessível. Deus é a fonte dinâmica que fica acima do homem, mas na qual ele pode se saciar. Assim concebido, o homem é uma criatura capaz de viver em duas circunstâncias diferentes, uma delas de caráter terreno e outra de caráter espiritual. Aquele que procura viver como se não dispusesse de outro ambiente que não exclusivamente o terreno, simplesmente não é um ser humano no significado total desse termo; tal pessoa estará sufocando os impulsos de suas mais autênticas potencialidades. O processo que resulta na salvação humana não acontece à margem da normalidade, pois, na verdade, a salvação é a consecução do tipo mais completo de sanidade espiritual normal.

O misticismo de Jones o levava à ação. Como Fosdick uma vez salientou, Jones na verdade vivia mais a conduta cristã do que falava dela. É ele mais do que outro qualquer deve ser considerado o responsável pela fundação da organização benemérita intitulada “Friends Service Committee”, cujas atividades pela prestação de socorros e promoção de reabilitação de vítimas da guerra alcançaram repercussão pelo mundo todo.

No entendimento de Jones, a Bíblia não seria livro infalível de modo nenhum; é evidente nela a presença do elemento humano e, como acontece com tudo quanto é humano, em suas páginas há erros, trivialidades e mesmo algumas coisas definitivamente más. Apesar de expressar-se assim sobre a Bíblia, ele reconhecia haver na Bíblia algo que a fazia um livro absolutamente exclusivo. Através de todas as evidências de fraqueza humana nela encontradas, Jones afirmava poder ouvir, enquanto lia suas páginas, a voz do Espírito de Deus, que lhe falava mediante os escritores. A palavra transmitida pelos escritores bíblicos lhe falava diretamente ao coração e ele sentia que era o próprio Deus quem estava lhe falando por meio da mensagem daqueles escritores.

Jones pensa que os argumentos a propósito de ter sido Jesus divino ou só humano provêm de uma concepção inexata do homem. Se pensa que o homem é um ser completamente alheio a Deus, então isso vai determinar que seja extremamente difícil saber como é que Jesus poderia ser Deus e homem. Quando, porém, nos deixamos impressionar pelo fato de que o homem é um ser essencialmente relacionado com Deus, criado à imagem de Deus, então o problema se torna muito simples. Na pessoa de Jesus deparamos com alguém em quem as possibilidades divinas já existentes no homem chegaram a seu mais alto desenvolvimento. Pelo fato de que, em Jesus, vemos alguém que se rendeu completamente à vontade de Deus, o consideramos como aquele em quem Deus mesmo pode ser contemplado. Deus, uma vez que é Espírito, não poderia revelar-se de maneira completa senão através de uma pessoa. É preciso que haja alguém que se dedique sem reservas ao cumprimento da vontade de Deus para que possa demonstrar ao homem como Deus é. Cristo é, dessa forma, o próprio centro da história; não podemos saber o quanto o

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universo é capaz enquanto não sabemos daquilo em que o homem pode tornar-se, conforme se vê em Jesus. O maior acontecimento que a história registra é, sem dúvida, esse surgimento admirável de Deus na história através da pessoa sem par de Jesus. Entretanto, Jones está ciente de que, como Deus surgiu na história da maneira como o vemos na pessoa de Jesus, isso significa que ele não está ausente da história em todo o desenrolar dos tempos. Deus mesmo é quem nos revela que está presente em todo o transcorrer da história, bem como nos corações dos homens.

Na posição defendida explicitamente por esse terceiro grupo verificamos a tentativa de manter o conceito do Deus de Jesus Cristo e também de manter a pessoa de Jesus como revelação suprema de Deus. A posição mostra acreditar que o cristianismo pode enriquecer-se recebendo contribuições de muitas fontes de verdade, pois, de fato, todas as verdades lhe pertencem por direito. Entretanto, seus adeptos não se mostram predispostos a sacrificarem o cristianismo, submetendo-o às fortes críticas da modernidade. Essa posição representa o significado do liberalismo teológico segundo o entendiam os liberais em sua maioria, através das décadas de 1920 e 1930. Não obstante, era uma posição que se encontrava sob muita tensão, e não é surpresa que, ao repensar sua posição, o liberalismo contou precisamente com os teólogos dessa escola para promover sua reorganização.

O liberalismo, no exato momento em que conseguiu vencer as influências do fundamentalismo, começou a desintegrar-se. Já nos começos de 1934, Walter M. Horton, um teólogo liberal, sentiu-se em condições de escrever assim: “O liberalismo, considerado como sistema de teologia, chegou ao fim.” Horton chegou ao ponto de declarar que, mesmo os liberais, quase nunca conseguiram falar nem escrever sem fazer alguma sátira contra o liberalismo.

Horton, quando se pronunciava a propósito da morte do liberalismo, insistia, não obstante, no fato da existência nele de valores tais que deveriam ser mantidos e preservados. Ele somente reconhecia que, para se conseguir essa preservação, o liberalismo tinha que reconstituir-se. Ironicamente, as “experiências permanentes” do liberalismo teriam de ser enunciadas em novas categorias, a fim de que os tempos modernos pudessem entendê-las. O liberalismo tinha cumprido tão bem sua tarefa de ajustamento aos tempos modernos que, uma vez tais tempos já decorridos, novas gerações estavam fazendo exigências que, diante delas, o liberalismo era difícil de compreender como fora o fundamentalismo com relação à geração anterior. Alguns liberais abandonaram completamente o liberalismo e passaram a lançar as bases para o surgimento da neo-ortodoxia, que estudaremos no próximo capítulo. Outros liberais, entretanto, começaram a re-elaboração do liberalismo e tornaram-se conhecidos como neoliberais.

Para que se compreenda o neoliberalismo, é necessário o conhecimento das causas pelas quais o liberalismo entrou em declínio na década de 1930. Os liberais se colocaram entre os humanistas e os fundamentalistas. Trazia muito mal-estar aos liberais o fato que a crítica que lhe vinha dos dois lados era estranhamente semelhante. Os opositores da teologia liberal insistiam em acusá-lo de inconsistência da posição, pois a lógica do liberalismo haveria de, necessariamente,

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conduzir ao humanismo. Os humanistas costumavam levantar contra os liberais a acusação de que eles não eram consistentes, pois tinham medo do homem e não demonstravam a necessária confiança no progresso humano, como, aliás, era de esperar-se em face da lógica dos postulados que proclamavam. Por outro lado, já se disse que o fundamentalismo insistia que essa seria mesmo a conclusão lógica da posição assumida pelo liberalismo. William Jennings Bryan disse que o liberalismo nada mais seria do que uma espécie de anestésico capaz de fazer alguém dormir enquanto sua fé em Deus ia sendo amputada.

Durante os dias calmos e prósperos da década de 1920, os argumentos humanistas eram muito bem recebidos. O homem estava dando soluções prontas para os problemas graves da existência. A ciência, a educação e o gênio organizador humano estavam conseguindo o que as religiões tradicionais jamais conseguiram. De fato, tudo deixava transparecer que a real necessidade era mesmo uma dose maior de fé no próprio homem e em sua capacidade de realização. Entretanto, em 1929, ruiu essa difundida fé depositada na capacidade humana com a ocorrência da grande depressão econômica. A América começou então a aprender a verdade já muito conhecida na Europa de que o século vinte não era nenhuma alvorada da Utopia. Em face dos vários enunciados de que suas pressuposições desfechariam, logicamente, no humanismo, os liberais, longe de voltarem-se para o humanismo, preferiram submeter suas pressuposições a um exame mais profundo.

Mais importante ainda do que isso, na consideração das causas do declínio do liberalismo, vieram a ser os próprios acontecimentos da primeira metade do século. O século vinte se iniciou como uma fase promissora na história, pois seria o século no qual a ciência, devidamente equipada para o atendimento das necessidades humanas, haveria de concorrer para o banimento de todos os males da superfície do planeta. Decorridos apenas seus primeiros catorze anos, começa a mais sangrenta guerra já registrada na história da humanidade. A América, isolada como estava do palco da guerra, sentia-se ainda em condições de manter-se otimista, nutrindo a esperança de que aquela guerra seria o fim de toda a beligerância, de modo que jamais ocorreria uma outra guerra. A Europa não podia ter a mesma esperança, de modo que, no transcurso dos anos entre 1914 e 1918, o liberalismo morreu naquele continente. A América não conseguia entender a estranha teologia proposta por Barth e por Brunner, surgida lá do outro lado do Atlântico. Entretanto, depois da depressão econômica ocorrida em 1929, também a América começou a fazer introspecções para entender o verdadeiro estado de sua alma.

A depressão de 1929 exerceu uma influência muito profunda em toda a extensão da América. O gigante industrial em que o país se tinha tornado debatia-se desesperadamente, envolvido com o ridículo problema de que tinha produzido demais. O Presidente Hoover se mantinha otimista e não cessava de dizer em alto e bom som que a prosperidade se aproximava, pois estaria ali mesmo na primeira esquina da rua... A prosperidade, entretanto, não aparecia. Roosevelt e seu programa de governo, intitulado o “New Deal”, deu a todos uma centelha de esperanças, mas o desemprego não parava de aumentar senão quando a ameaça de outra guerra exigiu o retorno dos homens ao trabalho.

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Enquanto isso acontecia, os estados totalitários surgiram no cenário mundial. Primeiro, surgiu o comunismo russo, apresentando-se como aurora de uma nova era de extraordinárias esperanças. Entretanto, já por volta da metade da década de 1930, o comunismo aparecia claramente como reino do terror a todos quantos o estudavam a sério, com exceção daqueles para os quais a necessidade de fé era tão profunda que eles se sentiam na obrigação de crer que alguém estava triunfando sobre os problemas que se encontravam diante de todas as nações. Em seguida surgiu a Segunda Guerra Mundial, com a matança de seis milhões de judeus, com o emprego da bomba atômica, com a manutenção da guerra fria, com as guerras na Coréia e mais o medo com probabilidade de eclosão de uma terceira guerra mundial. Não é estranho que uma teologia nascida nos fins do século dezenove e nos começos do século vinte percebesse a necessidade de mudanças em sua maneira de pensar.

O personagem mais importante do romance escrito por Howard Spring, intitulado A Fama E o Estímulo, quando procurava relembrar os acontecimentos a que assistira durante a década de 1940 e também meditar sobre toda a sua existência passada, comentou que o mundo de 1940 tinha sido muito diferente do mundo da época, durante a qual ele tinha sido criado. No mundo em que viveu durante sua juventude, “nenhum bem parecia ser impossível”, enquanto que em 1940 o personagem verificava que não havia “nenhum mal, nenhuma bestialidade, nenhuma traição, nenhum crime que desse a impressão de ser coisa inacreditável”. O homem moderno começou a sentir-se perdido. A palavra “ansiedade” tornou-se conceito fundamental do pensamento psicológico. Os homens começaram a procurar pelo mundo o que lhes parecesse normal, e os estudiosos da história foram ao encontro deles, afirmando que, na verdade, aquele era o estado normal do mundo. As eras anormais seriam, de fato, aqueles anos quando “nenhum bem parecia ser impossível”. Que seria que o liberalismo dos primeiros anos do século vinte teria para dizer ao homem moderno de 1940?

Os liberais começaram perguntando si mesmos quanto ao significado de alguns problemas muito sérios. Sendo tão claro a qualquer inteligência mediana que a maior necessidade existente no mundo é de fraternidade, por que será que os homens em geral não resolvem viver como irmãos, de fato? Sentimos que temos de amar nosso próximo como a nós mesmos, para dar fim às guerras, às injustiças econômicas, à discriminação racial e a outros males que aí estão ameaçando levar à destruição humana, tornando a existência um constante pavor. Por que será que o homem se recusa tão sistematicamente a seguir o caminho tão simples e racional que o conduziria à salvação? Não se pode alegar que o homem ainda não teria sido suficientemente instruído a respeito do que é mais conveniente, pois sabe-se que todas as culturas dão ênfase às mesmas idéias de salvação. Teremos então de admitir, perguntam os liberais a si mesmos, que haja alguma verdade digna de crédito na ortodoxia? Será que temos de admitir mesmo que o homem é inerentemente pecador? Existirá mesmo uma fraqueza inata da natureza humana que a faz rebelde contra a maneira absolutamente evidente de conduzir-se para que alcance sua salvação?

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À luz desse auto-questionamento, os neoliberais sentiram-se forçados a pôr em dúvida que a solução real para os graves problemas humanos fosse que alguém dissesse aos homens como deviam viver melhor. De modo geral, todos os homens demonstram que sabem como é que devem viver. Não estaria então a solução do problema numa iniciativa de se reconstituir o ser humano de modo a conseguir que o homem prefira a melhor conduta? Admitir-se-á, então, que Paulo estava mesmo descrevendo a verdadeira condição humana quando disse: mas não consigo realizar o bem” (Rm 7.18)? Se este é o caso, não será necessário ver na pessoa de Jesus alguém mais do que mero mestre de ética? Não será prudente reconhecermos, de imediato, que necessitamos de um Salvador que nos possa resgatar mesmo da servidão ao pecado? Os neo liberais não tinham respostas quando se formulavam a si mesmos essas perguntas, mas não pode haver dúvida quanto ao fato de que eles se esforçaram muito para encontrar respostas satisfatórias diante de tantas perplexidades.

As ameaças contra o liberalismo não vinham só da natureza dos acontecimentos que caracterizavam a época. A isso se tem de adicionar a reavaliação dos fatos e das teorias filosóficas sobre as quais o liberalismo tinha construído suas teses. Em primeiro lugar, leve-se em consideração o fato de que a filosofia idealista já não desfrutava do mesmo conceito de antes, passando a exercer maior influência a filosofia analítica na Grã- Bretanha e na América e a filosofia existencialista na Europa. Os liberais, que se tinham dedicado tanto à enorme tarefa de estabelecer correlações entre a teologia e as correntes modernas de pensamento, viram-se de repente na indesejada situação de estarem defendendo conceitos associados a uma filosofia que tinha caído de moda.

A Bíblia se tornou um problema para os liberais. Primeiro, se a verdade da Bíblia não tem nada mais do que a verdade que podemos experimentar sob categorias mais modernas, uma verdade, aliás, que podemos conhecer somente através da razão, por que devemos de nos preocupar com a Bíblia? Por que dedicar tanto estudo e pesquisa sobre o Jesus histórico, quando é notório que ele não fez nada mais do que insistir em que amemos a Deus e a nosso próximo, comportamento esse que podemos escolher por nós mesmos? Será que algum elemento de autoridade reconhecida pelos liberais ainda permanece, não obstante o desprezo que alardeiam para com qualquer autoridade sobre o pensamento? Será que temos de admitir que uma verdade qualquer se torna mais autorizada quando encontrada na Bíblia ou quando verificamos que tal verdade foi proferida por Jesus? Por que será que nós dedicamos mais tempo ao estudo da Bíblia do que aos Analectos de Confúcio, se não for pelo fato de que haja algo absolutamente exclusivo na fé cristã?

Esse questionamento se tornou mais contundente na medida em que a direção tomada pela erudição bíblica no decorrer do século vinte ia ficando mais clara. Não podemos dizer que a arqueologia e a crítica bíblica tenham conseguido apresentar provas definitivas quanto à veracidade da ortodoxia, mas podemos afirmar que, nos anos mais recentes, essas ciências têm proporcionado muito mais conforto aos ortodoxos do que aos liberais.

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Podemos mencionar alguns dos elementos que comprovam isso. Por exemplo, sabe-se que a interpretação liberal do Velho Testamento firmava-se nitidamente na teoria de Wellhausen, erudito alemão do século dezenove. A teoria de Wellhausen supunha que, mediante o expediente de redatarem-se os livros da Bíblia, se poderia conseguir uma reconstituição da história de como as idéias contidas naqueles livros se desenvolveram ao longo dos séculos. A luz dessa imaginada reconstituição, pretendia-se encontrar na Bíblia uma verdadeira evolução, partindo-se do politeísmo mais primitivo e passando-se por vários estágios, até chegar à fé num só Deus portador de atributos morais. Esse ponto de vista foi exposto de modo muito acessível aos leitores crentes em geral num livro muito divulgado de Fosdick, intitulado Guia para a Compreensão da Bíblia. Entretanto, as tendências posteriores vieram a ser muito diferentes, indicadas, por sinal, pelas palavras proferidas por certo erudito suíço, que não sentiu nenhum constrangimento em dizer que o livro de Fosdick não passaria de “um obituário da erudição bíblica do século passado”. Agora ninguém mais deixa de perceber que Wellhausen nada mais procurou fazer do que reescrever a história de Israel dentro dos conceitos da filosofia de Hegel, cuja característica principal é exatamente a ênfase que dá ao desenvolvimento evolutivo. Enquanto isso, a arqueologia nos proporciona elementos seguros para a crença de que o monoteísmo de Israel vem de tempos bem remotos, pelo menos coincidindo com a época em que Moisés viveu, o que está em total discordância com a maneira de entender exposta por Wellhausen.

O liberalismo, entretanto, sentiu-se mais perturbado ainda pelos últimos desenvolvimentos da erudição bíblica no campo do Novo Testamento. A erudição bíblica do século dezenove era de tipo analítico. Ela gostava de tomar a Bíblia em partes separadas e submetê-las a estudos. O resultado a que se chegava sugeria que se considerasse a Bíblia como um verdadeiro ajuntamento de partes destituído de qualquer sentido de unidade, o que dava ensejo aos liberais para que lançassem uma parte da Bíblia contra outras partes, como se fazia com Paulo, que era lançado contra Jesus. A erudição do século vinte, porém, apropriando-se dos resultados da análise anterior, esforçou- se para descobrir uma síntese e não demorou para ver que a Bíblia em geral e o Novo Testamento em particular sugerem a unidade que os caracteriza.

A questão relacionada com o Jesus da história deixou de ter a relevância de antes. Já fizemos suficientes considerações a propósito dos esforços para se encontrar a solução desse problema. As discussões travadas contribuíram, sem dúvida, para que Jesus fosse contemplado de maneira muito mais simpática no esplendor de sua humanidade, de sua beleza de caráter e de seu dinamismo moral. Entretanto, sem dúvida Jesus não era o carpinteiro da Galiléia pura e simplesmente, mestre de uma ética muito singela, que era o principal objeto das pesquisas empreendidas pelos liberais. Em vez de uma figura assim, só humana e nada mais, a erudição moderna nos exibe uma personalidade que estava absolutamente consciente de sua procedência celeste e que afirmou de si mesmo ser o agente eleito de Deus para vir a este mundo e consumar a salvação dos homens. Ressalta-se que o evangelho pregado por Paulo a

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respeito de Jesus não é nenhuma novidade radical discrepante do evangelho do próprio Jesus quando falava de si mesmo.

Como conseqüência de tudo o que temos considerado, Paulo não mais terá de ser considerado o vilão nos círculos da erudição teológica. Não se poderá mais, legitimamente, levantar contra o Apóstolo dos Gentios que ele teria sido um pervertedor do evangelho simples que Jesus tinha ensinado antes dele. As bases do evangelho pregado por Paulo e do evangelho pregado pela Igreja nascente, sabe-se agora muito bem, eram absolutamente idênticas. Paulo não deve mais ser tido como pensador grego que teria levado para o conjunto de noções espirituais do cristianismo alguns conceitos procedentes das religiões de mistério; seu fundamento era judaico e cristão.

Além disso, o Evangelho de João, verdadeira fortaleza da ortodoxia, não pode mais ser relegado a uma posição obscura e negligenciável, como pensavam alguns eruditos da Alta Crítica. Fragmentos antiqüíssimos do Evangelho de João, recentemente encontrados, provam para além de dúvida que esse Evangelho já se encontrava em circulação nos fins do primeiro século, data muito anterior à que era sugerida pelos eruditos para esse documento do cristianismo ter sido escrito. Pode-se até registrar o fato de que os eruditos do Novo Testamento não mais fazem objeção séria contra a afirmação de que o Evangelho teria sido escrito pelo próprio discípulo de Jesus. Mais ainda, verifica-se agora que, com relação a algumas das narrativas, o Evangelho de João vem sendo reconhecido como prestando informações históricas mais satisfatórias do que o fazem os Sinópticos.

A. M. Hunter oferece-nos um resumo dos últimos resultados das investigações sobre o Novo Testamento feitas neste século, nesta passagem muito significativa de seu livro “Interpreting the New Testament”, na página 140:

“Apesar de certas aberrações e exageros evidentes de alguns críticos, o fato é que o curso dos estudos relacionados com o Novo Testamento empreendidos no século vinte visam principalmente a tornar mais sólidos os alicerces sobre os quais a fé cristã se vem erigindo, bem como a robustecer e aprofundar nossas convicções de que uma 'nova face' passou a caracterizar a existência como efeito da bendita iniciativa divina de dar-nos seu Filho unigênito.”

Resumindo, insistimos em afirmar que, a erudição bíblica do século vinte está muito longe de dar apoio ao liberalismo nos pontos mais cruciais discutidos pela teologia. Quando os liberais, no início do século, expressaram irrestrita adesão à crítica bíblica, jurando que se deixariam guiar pela verdade, onde quer que ela levasse, nunca imaginariam que, com efeito, comprometiam-se a voltar às convicções da ortodoxia.

Eis aí, em resumo, algumas das razões pelas quais o liberalismo caiu em dificuldade. Entretanto, para que o liberalismo comprove sua fidelidade para com o método que lhe é bem característico, isto é, para que dê prova de que se mantém no propósito de estabelecer conexões pertinentes entre o cristianismo e as exigências intelectuais do mundo contemporâneo, mais ainda, para que seja coerente na decisão de obedecer à razão e à experiência, concorda-se em que a escola se

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proponha a adaptar-se diante dos últimos resultados da erudição bíblica, apesar dos golpes que tem sofrido. Exatamente essa adaptação foi o que o neoliberalismo tentou conseguir.

O momento mais decisivo da mudança verificada no liberalismo ocorreu em 1935, quando Harry Emerson Fosdick proferiu um de seus sermões no púlpito de sua majestosa igreja, instalada num dos arranha-céus de Nova York. Ele era um verdadeiro e grande símbolo do liberalismo. Reinhold Niebuhr chegou a dizer, a propósito de Fosdick, que ele era uma rara combinação de notável pregador e notável teólogo. Por muitos anos, sua voz foi instrumento eficiente para a divulgação da mensagem do cristianismo, segundo as teses do liberalismo moderado, através de uma cadeia nacional de rádio. Os livros produzidos por Fosdick tinham alta vendagem. Embora Fosdick nunca se filiasse entre os liberais extremados, os fundamentalistas o tinham como principal inimigo entre os teólogos na América. Entendiam perfeitamente que na pessoa de Fosdick se encontrava alguém que era ouvido por milhões e que, usando sua linguagem bela e admiravelmente persuasiva, não se cansava de propagar as razões pelas quais se deveria aceitar o cristianismo do liberalismo. Os humanistas, por outro lado, deparavam em Fosdick um antagonista dos mais sérios, pois era um dos líderes liberais que obstinadamente se recusavam a “render-se à lógica” tornando-se adeptos do humanismo de uma vez.

Embora tivesse sido ordenado ao ministério como batista, Fosdick foi convidado para tornar-se ministro da Primeira Igreja Presbiteriana de Nova York. Os conservadores presbiterianos começaram, então, uma campanha feroz no sentido de que Fosdick fosse substituído em seu posto e, depois de várias outras medidas sem êxito, conseguiram que se adotasse uma “declaração de fé” que deveria ter a assinatura de todos os ministros provenientes de outras denominações que estivessem em igrejas presbiterianas. Fosdick se recusou a assinar o documento e preferiu aceitar o convite que lhe foi, então, feito pela Igreja Batista da Park Avenue, sob a condição de que ali não haveria nenhum credo definido, podendo-se receber crentes de todas as procedências e convicções que dela quisessem tornar-se membros. Sua igreja veio a construir posteriormente a “Riverside Church”, onde se instala atualmente uma das mais influentes igrejas protestantes da América do Norte.

Naquele domingo de 1935, quando a depressão econômica se encontrava em seu ponto mais inquietante, Fosdick decidiu realizar uma análise profunda dos postulados da teologia. O tema de sua mensagem naquela ocasião foi o seguinte: “A Igreja tem o dever de ultrapassar o modernismo.” Não era isto nenhum primeiro brado de alerta que surgia nas fileiras do liberalismo, mas, quando Fosdick, que se situava como uma espécie de general não promovido oficialmente nos exércitos do liberalismo se atrevia a falar, como o fez, já não seria mais possível a ninguém ocultar a tendência evidente para uma mudança dentro do movimento. Os fundamentalistas começaram a aclamar o homem com extravasamentos de alegria, enquanto muitos liberais amargavam a impressão de terem sido traídos pelo apreciado líder. Essas atitudes, entretanto, não eram tão sensatas. Fosdick não tinha dado nenhuma voz

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de comando visando à retirada; o que lhe tinha ocorrido era lançar os planos para novos ataques a serem desfechados.

Fosdick introduziu seu memorável sermão, insistindo no fato de que a Igreja não podia ter deixado de tornar-se modernista; que ninguém entendesse que ele estivesse recuando da posição que sempre assumira. Ele contou, então, como foi que certo menino, cinqüenta anos antes, chorava convulsivamente na hora de dormir, pelo terror de que estava indo para o inferno, enquanto sua mãe, já impacientada por aquele resultado dos ensinos religiosos de então, tudo fazia para acalmá-lo. “Aquele menino”, disse Fosdick, “aqui está pregando este sermão nesta manhã”. O modernismo, salientou Fosdick, tinha sido muito importante no passado para que não acontecesse a alguns terem sua inteligência beneficiada pelos progressos do século dezenove, mantendo-se fiel, entretanto, a um tipo de religião associada às idéias vigentes no século dezesseis.

Contudo, como se tem de reconhecer que o modernismo era necessário na época de seu surgimento, não seria ele um movimento suficiente para atenderem a todas as necessidades espirituais. E verdade que o modernismo objetivava, como devia, conseguir que a religião passasse a falar uma linguagem condizente com as exigências intelectuais então em voga. Mas, sem dúvida, ele devia fazer algo mais do que meramente acomodar-se às exigências contemporâneas, pois essa acomodação implicaria em que o modernismo não passasse de um movimento superficial e transitório. Fosdick procurou ressaltar particularmente quatro elementos de fraqueza no modernismo teológico.

Em primeiro lugar, Fosdick pensava que o modernismo tinha se preocupado excessivamente com o intelectualismo. O alvo por excelência que o movimento tinha estabelecido consistira num empenho em ajustar o cristianismo de modo que a inteligência moderna fosse receptiva e capaz de entendê-lo. Por mais necessário que isso seja, não passa de um só dos muitos problemas que demandam atenção. Basta que se tome em consideração o fato de que as experiências mais profundas que agitam a alma humana, seja em matéria de religião seja em qualquer outro domínio da existência, nunca se restringiram a perplexidades intelectuais. E sinal de prudência nos propormos o devido uso de nosso cérebro; entretanto, em vez de procurarmos a solução dos problemas que nos afligem somente pelas vias cerebrais, é muito importante que procuremos soluções também do coração, da consciência e da imaginação. O ser humano é excessivamente maior do que os processos intelectuais de que é capaz. De modo que, fixar-se só no empenho de obter soluções de natureza intelectual para os problemas da existência implicará em manuseio insatisfatório de um só dos aspectos da vida humana. Além disso, os problemas espirituais mais críticos não ficam nos domínios intelectuais; na verdade, eles são problemas morais. Será que Cristo poderá trazer-nos soluções para os problemas relacionados com a presença do pecado em nossa vida como indivíduos e em sociedade? O que nosso mundo moderno necessita, não é tanto de almas intelectualmente ajustadas às atuais circunstâncias, e, sim, de almas “moralmente inconformadas com o mundo”.

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Em segundo lugar, o modernismo teológico tornou-se perigosamente sentimentalista. Isso resultou do fato de que as últimas décadas do século dezenove e as primeiras do século vinte, em cujo transcurso o modernismo se ajustou, foram um dos períodos da História mais cheio de presunção quanto às ilusões de um progresso inevitável. Foi assim que o modernismo teológico caiu no erro de eliminar o conceito de um julgamento moral de Deus sobre os homens neste mundo. Se os horrores que caracterizavam os ensinos da velha teologia deveriam ser rejeitados, disso não se teria de concluir, necessariamente, que Deus não merecesse nenhum temor em face da consciência humana. Foi o sentimentalismo, e não o realismo intelectual, que concorreu para que se deixasse de tomar em consideração a necessidade de temor para com Deus. O pecado, seja em sua forma pessoal seja em sua forma social, é algo tremendamente real, insiste Fosdick. O pecado é tão real como nossos antepassados nos ensinavam a admiti-lo e podemos mesmo estar certos de que não é outra coisa que leva os homens e as nações à perdição, senão o pecado.

Em terceiro lugar, o modernismo teológico tem concorrido para que se aceite um conceito de Deus absolutamente destituído de substância. O modernismo teológico chegou ao ponto de tornar-se compatível com uma cultura inteiramente antropocêntrica. Deus é figura, não raro, negligenciada, que assume uma posição semelhante à de membro honorário, como “uma espécie de presidente do Conselho dos Promotores de uma próspera empresa industrial ou comercial”. E necessário, assim o entende Fosdick, que a teologia retome o problema da existência, isto é, o problema relacionado com o que seja eternamente real. Se os materialistas estão raciocinando direito, quando dogmatizam que este mundo nada mais é do que matéria, sendo o homem apenas o resultado acidental do esfriamento que estabeleceu condições para seu surgimento na terra, então deve-se concordar que é absolutamente ridículo insistir que o homem seja portador de alguma dignidade ou glória. Chegou já o tempo quando a apologética é irrelevante; temos de abandonar esta atitude que consiste em deixarmos transparecer que o que mais nos importa é conseguir que alguns cientistas de renome afirmem a existência de um Deus Todo-Poderoso. O cristianismo firma-se em bases inabaláveis, e que são as únicas capazes de renovar as esperanças humanas. O cristianismo proclama a todos que o eternamente real é espiritual e que o que em nós é, efetivamente, mais sublime, procede do que é mais profundo no universo.

Finalmente, Fosdick levantou contra o modernismo teológico a acusação de que ele tem consentido demais em perder as bases de sua firmeza ética e sua capacidade para empreender necessários protestos de ordem moral. O modernismo se sente muito confortável no ambiente atual do mundo. É perfeitamente justo que se procure formular o pensamento teológico de acordo com as exigências das teorias astronômicas ou os ensinos da biologia. A infelicidade, porém, encontra-se no fato de que, uma vez adquirido o hábito da acomodação, esse hábito passa a prevalecer também para os conceitos do nacionalismo, do imperialismo e do capitalismo contemporâneo. Nisso é que está o maior perigo.

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Fosdick concluiu seu sermão com a formulação de um desafio. O modernismo teológico triunfou na batalha que teve de travar. Os fundamentalistas encontram-se sem forças e o futuro das várias igrejas assegurará, sem dúvida, a manutenção das idéias características do modernismo. Portanto, cumprirá ao modernismo teológico que sua senha de guerra não seja mais essa: “Acomodemo-nos à cultura de nossos dias!” Ele deve adotar esta outra senha: “Vamos ficar acima da cultura atual e vamos desafiá-la!” Não poderemos jamais fazer com que haja perfeita consonância entre os ensinos de Cristo e os princípios da cultura moderna, porque, na verdade, Cristo sempre será um desafio para qualquer cultura.

Senti a necessidade de demorar-me na consideração do famoso sermão proferido por Fosdick porque ele representa bem as tendências básicas do movimento neoliberal. Aquele sermão foi precedido por muitos indícios de que uma grande tempestade teológica ia ocorrer. Liberais como Walter Horton e John Bennett já haviam feito sérias advertências, chamando a atenção dos liberais para o fato de que a escola tinha de fazer mudanças em seus métodos de ação, caso se quisesse manter no propósito de trazer uma mensagem sensata para a inteligência do homem moderno. Bom número de liberais que tinham essa opinião adotou a designação de “realistas”. Entretanto, a melhor designação é “neoliberalismo”, para deixar patente o relacionamento orgânico do novo movimento teológico com o antigo liberalismo, pois isso foi característica dos aludidos pensadores, mesmo quando se expressavam mais contrários às formas assumidas pelo liberalismo nos começos do século vinte. Como Horton declarou, “Os liberalismos perecem, mas o liberalismo, propriamente dito, permanece”.

O termo “realismo” implica em que os aludidos liberais abandonaram a filosofia idealista. Eles agora estão empenhados em pesquisas nos domínios exteriores ao homem, e não nos domínios reservados à introspecção, na preocupação de vislumbrarem a Deus. As experiências subjetivas do homem têm, para eles, agora, uma importância secundária para a consideração da realidade que existe fora do ser humano. Não se pensa mais de Deus como se ele não passasse de uma construção da própria mente humana, mas, sim, como fator presente nas circunstâncias da vida humana e diante ao qual o homem deve se ajustar.

Em harmonia com essa nova orientação do pensamento teológico, os neoliberais não hesitaram em levantar contra os liberais a crítica de que tinham procurado formular um conceito de Deus exatamente nos termos do que desejavam do que Deus fosse, e não fizeram investigações que visassem à descoberta do que Deus, em verdade, é. Por exemplo, os liberais tinham alegado a inconveniência de se atribuir certas características a Deus, pois tais características lhes pareciam até imorais, pelo fato de que as características não estavam condizendo com o que os liberais pensavam de Deus. Entretanto, eis o parecer dos neoliberais: somos nós que temos de nos ajustar ao que Deus é, concorde isso com o entendimento que temos de Deus ou não. Em vez de ficarmos pregando somente as doutrinas que nos pareçam pragmaticamente proveitosas para que o ser humano venha a contribuir para o surgimento de um

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mundo melhor, o que nos cabe fazer é pregar as doutrinas que se mostrem verdadeiras.

Boa parte do realismo adotado pelos neoliberais é evidente na firme resolução que tomaram no sentido de enfrentarem todos os mais chocantes e infelizes fatos associados à situação geral da existência humana. Elton Trueblood intitulou assim um livro que escreveu, no qual se patenteia essa preocupação realista: “A Conjuntura em que Vive o Homem Moderno”. Um pensamento verdadeiramente central em toda a teologia neoliberal é a nítida compreensão de que o homem se encontra numa conjuntura real, entendendo-se que a vida não é nada semelhante a um conto do tipo otimista e tomando-se em consideração que a conjuntura da existência humana requer algo mais do que a repetição de sublimes ideais éticos. Num mundo como este no qual vivemos, assim pensa Herbert Wallace Schneider, o homem não precisa tanto ficar “à procura de Deus, pois o fato é que o homem se sente levado em direção a Deus”.

Horton se sente forçado a entender que Deus se aproxima do homem, por assim dizer, com duas mãos. Uma de suas mãos está espalmada, e, através dela, Deus nos afaga com evidências de seu amor para conosco. A outra mão, porém, Deus a tem estendido para nós como um punho fechado, pronto para golpear-nos em nossos mais elevados planos de realização, caso tais planos não coincidam perfeitamente com sua vontade. E certo que Deus deseja que sejamos receptivos à sua amorosa aproximação para conosco. Acontece, porém, que, quando não correspondemos aos amorosos acenos, ele nos golpeia com força por meio de depressões econômicas, guerras, insatisfações psicológicas e até mesmo a destruição de tudo que é devido à civilização. A colossal diferença que existe entre as duas hipotéticas mãos divinas pode-se anular tão-somente atentando-se para a pessoa de Jesus Cristo e para sua Igreja. Não obstante tudo isso, podemos depositar confiança até naquele punho fechado de Deus, uma vez que ele nos convence de que todos os sistemas forjados pela maldade contêm os fatores de sua própria destruição.

A análise realista da conjuntura em que se desenvolve a existência humana leva logicamente o neoliberalismo à compreensão de que a doutrina ortodoxa relativa ao pecado é, em muitos aspectos, muitíssimo mais realista do que aquele otimismo nutrido pelo liberalismo quando tecia considerações sobre o ser humano. Logo depois do início do século vinte, G. K. Chesterton, simples leigo que militava nos círculos do catolicismo romano, começou a lançar em rosto aos liberais o fato de que eles tinham abandonado, como destituída de sentido, a única doutrina do cristianismo que poderia ser submetida à verificação dos métodos empíricos. Ele falava da doutrina do pecado original. Os neoliberais perceberam essa realidade. Sem que se sentissem forçados a uma restauração da posição agostiniana em sua inteireza, é fato que os neoliberais têm reconhecido quanto de verdade há na posição do teólogo de Hipona.

A posição agora defendida pela maioria dos liberais não seria muito diferente da que John C. Bennett esboçou num dos capítulos do livro intitulado Teologia Liberal que foi editado por D. E. Roberts e por H. P.

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Van Dusen. Bennett empenha-se no esforço de conseguir que sejam conservadas algumas preciosas verdades, bem realçadas no liberalismo. Primeiro, a verdade de que o homem é essencialmente bom, considerado como criação especial de Deus. Todos os homens, e não apenas Adão antes da queda, são criados à imagem de Deus. O homem, tal como o vemos atualmente, não é um ser essencialmente mau. Em vez disso, deve-se afirmar que o homem é “uma coisa boa, entretanto, espoliada”. Agostinho entendeu isso assim, embora se saiba que alguns de seus seguidores se tenham esquecido desse aspecto de sua doutrina quanto ao homem. Em segundo lugar, não podemos deixar de ter em mente que o homem é também um ser muito limitado, que faz parte de toda a natureza e que portanto está submetido às leis da natureza. A luz dessa consideração, Bennett não se sente em condições de acompanhar os pensadores ortodoxos que afirmam serem basicamente maus os instintos do homem, como é o caso dos impulsos decorrentes do sexo. O homem morre por ser animal e não por ser pecador. Em terceiro lugar, o homem é um ser racional e a vida racional em sua concepção mais legítima coincide com a que nos é, de fato, desejável. A razão é um verdadeiro fator de proteção para que não nos deixemos iludir por revelações fictícias. Em quarto lugar, o homem é um ser livre e, em conseqüência, responsável por seus atos. Em quinto lugar, o homem só poderá manter-se dentro do verdadeiro desígnio proposto à sua existência quando se encontra socialmente relacionado. Uma filiação leal dentro das várias comunidades é o conteúdo fundamental da vida humana que se deve realizar.

Mas Bennett também aceita verdades da tradição agostiniana. Primeiro, deve-se considerar a doutrina relacionada com o pecado. O pecado não pode ser definido de modo a incluir apenas aquelas preferências nossas que nos levam a escolher mal não obstante o conhecimento de que certas ações são pecaminosas e opõem-se à vontade divina para conosco. O problema humano em sua forma mais chocantemente real consiste em nos iludirmos facilmente a ponto de pensar que os atos maus que cometemos sejam atos muito meritórios. Em segundo lugar, temos de apreender do agostinianismo a verdade de que há pecado em todos os níveis do crescimento moral e espiritual. Toda boa conduta que se encontra entre os homens pode desvirtuar-se. Resumindo, não nos seria possível jamais alcançar uma conduta absolutamente perfeita. Em terceiro lugar, pelos motivos já sugeridos, as esperanças utópicas nutridas pela humanidade são efetivamente ilusórias. Não se pode ter nenhuma esperança quanto ao estabelecimento de uma ordem social perfeita e justa sobre a terra. Isso não significa que não aconteçam mudanças para melhor nas comunidades humanas, significa, sim, que o progresso jamais ocorrerá sem sérios retrocessos, de modo que todas as reformas sempre incluirão verdadeiros subprodutos acarretados pela presença insidiosa do mal em toda parte. Nunca podemos pensar que as nossas conquistas já hajam de conduzir necessariamente ao estabelecimento do Reino de Deus sobre a terra. Em quarto lugar, não há como deixarmos de tomar em consideração que uma atitude de arrependimento é sempre necessária ao longo de nossa existência. Uma autêntica atitude de arrependimento durante toda a nossa existência nos

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livra da presunção de justiça própria e de desprezar outro cuja pecaminosidade nos impressione.

Torna-se mais do que evidente que o neoliberalismo é incapaz de ter esperanças quanto às probabilidades de encontrar soluções para os dilemas humanos na mesma medida em que o liberalismo tinha se esforçado em manter essas esperanças. O neoliberalismo não demonstra tanta confiança em que se deva ter alguma atividade social em particular como capaz de justificar uma designação de “atividade cristã”. Os liberais partidários do movimento associado ao Evangelho Social sempre expressaram a opinião de que o sistema capitalista americano não pode ser considerado compatível com a designação de “sistema cristão”. Os neoliberais sabem que esse sistema jamais poderia ser adequadamente substituído por um outro mais compatível com o cristianismo. Isso não impede os teólogos neoliberais de terem esperanças muito positivas. Eles se sentem em condições de colaborar no esforço comum de alcançar os melhoramentos propostos em face de qualquer situação social, sem, entretanto, deixarem-se impressionar por expectativas de êxitos inteiramente satisfatórios.

Semelhantemente, os teólogos neoliberais mostram-se mais e mais firmados na convicção de que nem a sociedade em seu todo nem o homem individualmente considerado poderão tornar-se idealmente bons por efeito só da educação e da ciência. A escória do egocentrismo que existe na natureza humana é tão inerradicável que a mera manipulação educacional e os melhoramentos introduzidos pela ciência jamais poderiam anular sua influência. Qualquer tentativa de reforma social terá de utilizar meios violentos tanto quanto persuasivos para atingir seus objetivos. A religião terá de proporcionar o necessário dinamismo para que ocorram mudanças na vida humana, enquanto a educação esteja se esforçando pela assimilação dos ideais éticos.

Uma vez que Deus não é mais identificado com o homem, no que a natureza humana tem de mais sublime, os neoliberais demonstram-se predispostos a concederem que há necessidade de que surja algum tipo de mediador entre Deus e o homem. Visto que não podemos obter perfeita compreensão de como Deus seja pela consideração do que o homem é, então não há como não admitir que Deus tenha de se revelar a si mesmo, a fim de que o conheçamos. Mais uma vez chamamos a atenção para o fato de os neoliberais se voltarem para a pessoa de Cristo, não apenas para o “Jesus da História”. Os neoliberais ainda não chegaram a nenhum consenso quanto ao que signifique a divindade de Jesus, embora saibam que a doutrina terá de ser tomada a sério. Jesus não é exaustivamente explicado quando se diz que ele foi o que de melhor se pode conceber de possibilidades alcançadas pelo homem; Jesus é um dom inefável de Deus para todos os homens. Georgia Harkness possivelmente fala por todos quantos, com ela, encontram-se nas fileiras do neoliberalismo, ao afirmar que, no que tange à divindade de Jesus, necessitamos ter uma convicção firme, sem descambar para o dogmatismo.

Um dos aspectos significativos do neoliberalismo vem a ser o novo sentimento que tem a propósito da importância da Igreja. Desde o momento quando Fosdick lhe dirigiu a convocação no sentido de que não

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fique tão conformado com este mundo, antes procure até insurgir-se contra os males que nele se encontram, o neoliberalismo tem revelado que sente necessidade mesmo de deparar uma situação que lhe permita firmar-se em face do mundo. A isso se deve acrescentar o fato da experiência que os líderes do movimento têm obtido através dos encontros ecumênicos, pois eles têm podido contemplar a Igreja Protestante organizando-se e se esforçando para entender-se a si mesma.

Os liberais, em geral, sempre demonstraram possuir um conceito nada elevado a respeito da Igreja. Conforme o entendiam muitos liberais, as igrejas não passavam de organizações sociais de pessoas que se reuniam em virtude das preocupações de ordem religiosa e ética que entendiam ter em comum. A necessidade da existência da Igreja seria somente de natureza prática. Os homens são capazes de produzir mais quando organizados do que quando preferem ficar isolados uns dos outros. E um dos traços característicos do liberalismo levantar muitas críticas contra as igrejas no estado em que habitualmente existem. Os liberais nunca deixaram de criticar, tanto as divisões que determinaram o surgimento de diferentes igrejas, como também a incapacidade que sempre demonstraram de alcançarem a perfeita observância dos ensinos de Jesus.

Os neoliberais não se satisfazem com as opiniões costumeiras dos liberais quanto à Igreja. Não é que eles tenham deixado de levantar críticas, como faziam os liberais, quanto às condições nas quais as igrejas existem. Entretanto, os neoliberais admitem que há uma Igreja que fica acima e além das denominações, que se vão fragmentando cada vez mais. A verdadeira Igreja é, na opinião deles, uma sociedade viva, cujo início ocorreu com a pessoa de Jesus e destina-se a dar continuidade à obra do Salvador no transcurso dos tempos. A Igreja não é meramente uma entre outras organizações sociais capazes de serem exaustivamente explicadas em termos sociológicos. A Igreja é uma instituição divina, criada pelo próprio Deus. Walter M. Horton chega ao ponto de asseverar-nos que, assim como Cristo tinha duas naturezas, a humana e a divina, assim também a Igreja.

No começo da década de 1940, George Hammar, teólogo sueco, escreveu um tratado a propósito da teologia americana e chegou à conclusão de que o neoliberalismo seria uma forma muito instável de pensamento teológico. Ele classificou-o como teologia de transição que, embora tivesse rompido seus vínculos liberais, não preferiu juntar-se à ortodoxia. Atualmente é muito claro que os neoliberais nunca foram capazes de estruturar uma escola de pensamento teológico. Muitos de seus antigos adeptos tiveram de filiar-se à neo-ortodoxia. Alguns líderes, como Horton, procuraram desenvolver uma teologia de tipo ecumênico, aproveitando-se de verdades encontradas em várias outras posições, mas não se empenharam na criação de uma nova escola. John Bennett, talvez o mais capacitado nas fileiras dos neoliberais, nunca se satisfez com uma designação que resultasse em que ele ficasse na obrigação de defender os postulados de uma posição teológica qualquer. A maior parte das obras que ele tem trazido a público nos últimos anos trata de ética cristã e através delas ele vem procurando elaborar uma concepção realista do

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procedimento cristão de modo a enfrentarem-se, como convém, os problemas sociais, políticos e internacionais do mundo em que vivemos.

Não é grande o número de teólogos atualmente que estejam demonstrando a disposição de levantar a bandeira do liberalismo. Pode-se dizer mesmo que a teologia liberal já saiu de cena. Não obstante, na medida em que se prossiga na leitura dos capítulos a seguir, vai ficar evidente que os temas liberais reaparecem com freqüência, de modo que, no capítulo que trata das tendências teológicas contemporâneas, se verá como ressurgem vários dos temas liberais. O termo “liberal” pode ter sido abandonado, mas o legado do pensamento característico do liberalismo teológico ainda é uma força atuante nos domínios da teologia. 

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Neo-Ortodoxia: A Redescoberta da Ortodoxia

Chamamos a atenção para o fato de que a teologia liberal foi muito criticada e o movimento neoliberal conseguiu desenvolver-se. Houve um certo número de teólogos que avançou além do neoliberalismo e tornou-se conhecido como “teólogos neo-ortodoxos”. Essa designação sempre foi infeliz, até porque sabe-se que “neo” é partícula que implica em algo novo e diferente, ao passo que “ortodoxia” sugere o que nos venha do passado e seja tradicional. Isso nos faz lembrar certa ocorrência na política do Canadá. Depois de ter ficado fora do poder nos primeiros anos da década de 1930 e de ter perdido terreno em diversas eleições, ocorreu ao partido Conservador que o seu nome era uma desvantagem, quando o país estava preocupado com seu progresso e com a conquista de suas metas fixadas para o futuro. Decidiu, então, mudar seu nome para o de “Partido Conservador Progressista”. Isso levou um dos políticos do partido concorrente a escrever um ensaio em estilo de sátira, com este título: “Os Conservadores Progressistas ou, o partido que é capaz de ensinar a maneira como se deve ir para a frente olhando para trás”. A teologia designada neo-ortodoxia parece sugerir a mesma coisa. Mas, que fique bem claro que a designação não foi cunhada pelos filiados ao movimento, mas, sim, por teólogos de outras tendências.

Apesar da impressão paradoxal que se lhe pode associar, o termo “neo-ortodoxia” é muito útil para o propósito de transmitir-nos uma idéia precisa da tendência que, então, se desenvolveu na teologia. Depois que os liberais tinham suspendido sua revolta contra a ortodoxia, determinado número de teólogos se pôs a expressar-se de modo a ressaltar a importância de várias doutrinas características da ortodoxia, como a doutrina do pecado, a da revelação mediante a pessoa de Cristo e a da salvação pela graça. Todavia, tais teólogos não queriam pura e simplesmente retornar à ortodoxia. Em expressiva maioria, os neo-ortodoxos começaram sua atividade como teólogos liberais e esse fato dava colorido ao pensamento, que procuravam exprimir de duas maneiras: por um lado, certos aspectos do liberalismo tinham continuidade na exposição do pensamento deles. Por exemplo, eles aceitavam a crítica bíblica em sua forma radical. Por outro lado, os neo-ortodoxos insurgiram-se francamente contra conceitos liberais como os que resultavam em extremada valorização da racionalidade humana, ou seja, conceitos relacionados com a teologia natural.

Precisamos fazer uma pausa neste ponto, para darmos definições de alguns termos. Desde os tempos de Tomás de Aquino tem prevalecido a distinção entre teologia natural e teologia revelada. A teologia natural coincide com os resultados de estudos filosóficos da religião. Restringe-se a teologia natural ao que o homem tenha capacidade de apreender de Deus, da imortalidade e questões semelhantes, à base só de deduções racionais. A teologia natural toma em consideração fatos e teorias que

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estejam ao alcance da verificação humana. Ela se distingue da teologia revelada pelo fato de que, essa última, isto é, a teologia revelada, parte da convicção de que Deus tenha dado ao homem uma revelação especial de si mesmo. Foi assim que Tomás de Aquino pôde afirmar que a teologia natural poderia demonstrar a existência de Deus, mas que se requer uma teologia revelada para saber que essa existência divina coincide com a Trindade. Os fatos poderão ser razoavelmente resumidos dizendo-se que a teologia natural representa um esforço de pesquisa a respeito de Deus por parte do homem, enquanto a teologia revelada representa a busca que Deus tomou a iniciativa de fazer em relação ao homem. Os liberais, visto que davam muita ênfase ao valor da razão e da experiência do homem, costumavam dar maior realce à teologia natural. O neoliberalismo concorreu bastante para que se desse atenção à teologia revelada, mas não entendia que, para tanto, se tivesse de abandonar os postulados da teologia natural. A neo-ortodoxia, entretanto, repudia totalmente a teologia natural.

O termo “neo-ortodoxia” nunca designou com a devida propriedade nenhuma escola de pensamento teológico. Sempre foi uma designação empregada de modo a abranger pessoas que, na verdade, tinham muito pouco em comum, senão apenas a realidade de que rejeitavam tanto a alternativa liberal como a fundamentalista. Com o passar do tempo, tornou-se evidente que alguns dos pontos submetidos a debates nos círculos da teologia tinham, como debatedores em posições diametralmente opostas, personalidades cujos nomes figuravam como neo-ortodoxos. Os capítulos a seguir vão ressaltar algumas das divergências encontradas dentro da neo-ortodoxia.

Søren Kierkegaard

Quem inspirou o surgimento de muitas tendências neo-ortodoxas foi o filósofo e teólogo dinamarquês, Søren Kierkegaard (1813-1855). Durante o século dezenove, Kierkegaard foi uma voz a clamar no deserto de uma civilização complacente. Seu clamor não alcançou nenhuma repercussão senão no que diz respeito à auto-satisfação que os editores de jornais costumavam expressar, lançando-lhe verdadeiros impropérios. Aconteceu, porém, que, em face das ansiedades, do sentimento de desolação e das expressões de desespero próprias do século vinte, as palavras de Kierkegaard começaram a assumir, na consciência de muitos, a forma de verdadeiras profecias. Suas experiências, que eram só dele no século dezenove, tornaram- se experiências comuns aos indivíduos no século vinte. Em muitos pontos, Kierkegaard parece mais atualizado do que o que se pode dizer de qualquer dos filósofos surgidos em nosso século. Ele foi o inspirador da filosofia conhecida como “existencialista”, que conta entre seus expositores pessoas que se filiam ao cristianismo, ao judaísmo, ao agnosticismo e ao ateísmo.

Os fatos ligados à vida trágica de Kierkegaard já são por demais conhecidos, de modo que não temos de recontá-los neste capítulo. Os leitores interessados nisso poderão recorrer a vários textos que divulgam o pensamento de Kierkegaard. Vamos apenas passar em revista algumas

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de suas idéias básicas que inspiraram o desenvolvimento da teologia em nosso século.

Kierkegaard é um pensador existencialista, isto é, ele insiste em chamar a atenção para o fato de que o verdadeiro pensamento não poderá partir senão da consideração do homem existindo numa determinada situação. Verdades abstratas a propósito do ser humano podem valer para a consideração do homem de modo geral, mas não têm nenhum valor para aplicar- se ao homem em particular. Enquanto Descartes, como se sabe, procurou fazer a exposição de sua filosofia a sós, deixando-se ficar ao sabor do raciocínio puro, Kierkegaard procurou estruturar sua filosofia à base da consideração do homem tal como ele existe, na relação cotidiana que mantém com Deus, com o universo e com os demais homens.

Kierkegaard insurgiu-se contra o prevalecimento de idéias abstratas na filosofia e na religião. Nas ciências e na matemática podemos tratar os fatos objetivamente, sem que nós mesmos estejamos profundamente envolvidos neles. No caso, porém, da filosofia e da religião, nunca nosso objetivo ao estudá-las se res-tringirá ao interesse de apreendermos o significado dos dogmas e das idéias, pois o que desejamos, em última análise, é viver conforme os dogmas e as idéias. Kierkegaard levanta veemente protesto contra os filósofos que constroem magníficos edifícios teóricos, mas nunca residiriam em tais edifícios. O objetivo fun-damental dos verdadeiros pensamentos religiosos e filosóficos é conseguir que os homens aceitem esses pensamentos e os adotem como normas de conduta. Quando um pensamento qualquer não ajuda o homem a saber o que deve fazer nesta existência, então esse pensamento é uma traição contra o ser humano.

Particularmente, diz-nos Kierkegaard, nós necessitamos do método existencialista sempre que tratamos de Deus ou do homem. Mediante o raciocínio objetivo, nós podemos pensar com isenção de ânimo e conforme as normas da razão, pois os objetos se encontram fora de nós. Não estaremos vitalmente interessados, como seria o caso se os objetos estivessem associados com a integridade de nosso ser. Os objetos relacionam-se apenas com nossa mente e com as faculdades de nossa razão. Entretanto, considerar Deus e o ser humano como se não passassem de realidades objetivas resultaria em rebaixá-los de sua sublimidade conceituai. Deus jamais poderá ser tomado como se fosse somente um dos objetos acessíveis ao pensamento humano, pois ele é o mais vivo desafio que força o ser humano a uma intransferível decisão. Deus é sujeito, e não objeto, quando estabelece contato com o homem. Semelhantemente, quando nos ocorre pensar de outro ou de nós mesmos como se fôssemos objetos, nós desumanizamos o ser humano. Devemos considerar o homem como sujeito, a saber, como centro de um processo de vontade, pensamento, esperança e paixão. O homem é alguém, e não alguma coisa.

Com isso se associa a ênfase no homem como sendo um indivíduo. Kierkegaard previu um dos fatos que se vem tornando uma tragédia em nossos dias, isto é, esta tendência de submergir o indivíduo na massa humana, agindo como se o indivíduo não passasse de uma peça descartável no mecanismo social. O ser humano pode chegar à

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infelicidade de não mais se ter como homem simplesmente por aceitar sua anulação pessoal dentro de um grupo. O existencialismo insiste na necessidade de preservar o ser humano na consciência de suas faculdades de livre escolha nas várias situações que o envolvam. Kierkegaard ficou triste ao ver como as pessoas nas igrejas cristãs ficam como que estereotipadas, não mais comportando-se como individualidades independentes, que têm de prestar contas só ao próprio Deus.

Voltando à interpretação que nos oferece a respeito do cristianismo, verificamos que Kierkegaard, na verdade, nos põe diante de uma questão nova. Tanto os fundamentalistas como os liberais têm se preocupado com o conteúdo da fé religiosa. Os fundamentalistas entendem que dispomos de um acervo de verdades divinas que podem ser demonstradas mediante a autoridade das Escrituras. O liberalismo entende que, no cristianismo, nós temos a mais elevada expressão das verdades que o homem desvenda de modo insuficiente por toda parte. Kierkegaard se opõe a essas duas correntes, questionan- do-lhes não quanto ao que seja o conteúdo do cristianismo, mas, sim, quanto ao que significa ser um cristão. Como é que o indivíduo se torna cristão? Com efeito, as diferenças não parecem tão grandes, mas será muito interessante lembrar a acusação que Fosdick fez contra o liberalismo, quando mostrou que ele se preocupava demais com os problemas intelectuais do cristianismo.

O problema se tornou grave em extremo a Kierkegaard pelo fato de que o filósofo ter compreendido a triste realidade de não serem verdadeiramente cristãos os membros da Igreja oficial da Dinamarca. Aquela gente não passava de cristã nominal. O fato de alguém ser cristão nominal era um obstáculo sério a que se tornasse verdadeiramente cristão. Além disso, para Kierkegaard, o problema se associava ao de saber-se como é que alguém pode ser autenticamente humano. Em essência, Kierkegaard propõe uma resposta a tais questões, dizendo-nos que não estamos salvos, ou melhor, não nos tornamos cristãos, nem autenticamente humanos, pelo fato de ficarmos sabendo de certas coisas que antes não sabíamos. Em vez disso, somos salvos pela transformação que acontece em nossa vida por efeito da atuação da graça divina em nós. O evangelho não é nenhuma nova filosofia. O evangelho é, de fato, uma intervenção divina que resulta em solução definitiva para o problema crucial do desespero humano. Kierkegaard estava intransigentemente convicto de que ninguém se torna cristão... Somente pode-se admitir que os indivíduos se esforçam mais ou menos sinceramente no sentido de se tornarem cristãos. O homem tem condições de iniciar esse esforço, mas de antemão deve saber que não pode alcançar o alvo.

Kierkegaard acreditava que o ser humano só podia se tornar cristão mediante um salto de fé, um comprometimento radical da vida toda do indivíduo. Isso é porque em face dos apelos do cristianismo, a razão humana se sente como diante de um limite intransponível que lhe veda o conhecimento. A razão, que se mostra tão eficiente no estudo das coisas em geral, é incapaz de entender a Deus na base da aplicação dos mesmos métodos de estudo, em razão de ser Deus absolutamente diferente de qualquer coisa que possa ter sua existência demonstrada ou não. Ao tornar-se conhecido, Deus assume aspectos paradoxais para nossa razão.

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O Deus que certos indivíduos presumem poder demonstrar por intermédio da filosofia a que obedecem não passa da imagem de tais indivíduos. O Deus real só poderá ser encontrado na medida em que ele mesmo se faça conhecido como fator vivo na existência.

Não obstante, não se deve entender que a ousadia da fé seja uma atitude irracional, ainda que se tenha de concordar que a razão jamais possa demonstrar-nos a vantagem ou não de que se exerça tal ousadia. Ao meditar na real situação em que se encontra neste mundo, o homem poderá sentir-se na iminência do desespero, e esse desespero poderá conduzi-lo à bênção de aceitar a salvação que Deus lhe oferece. O homem se vê como um ser limitado no meio das circunstâncias finitas que o envolvem, mas, no final de contas, ele se sente empurrado para o infinito.

Os sonhos do homem excedem enormemente sua capacidade de realização. Ele tem um profundo desejo de alcançar uma conduta ditada pelas normas do bem, mas sente que não consegue viver conforme normas tão sublimes. Enquanto passa o tempo, comendo, bebendo e dando expansão à sua alegria, o indivíduo pode estar desapercebido das próprias ansiedades e da insegurança em que se encontra. Entretanto, no instante mesmo quando ele sente o dever de adotar seriamente algum padrão ético, lhe ocorre a consciência desesperadora de sua insuficiência.

As dúvidas que agitam o homem nunca são completamente superadas; mas, mediante o salto da fé, pelo qual a alma humana passa a preferir uma vida de obediência para com Cristo, o homem alcança a certeza moral pertinente às convicções que tem. Com Kierkegaard, a teologia moderna se depara com uma compreensão nova do que seja a certeza religiosa. Kierkegaard não acena com nenhuma certeza; o que ele sugere é o salto, que é algo semelhante a um salto em um lugar escuro e um palpite de que possa haver algum Deus. A fé significa algo semelhante a uma aposta, comprometendo o todo da existência, com base no Deus presente em Jesus Cristo.

A fé, no entender de Kierkegaard, não quer dizer nenhuma crença relacionada com dogmas impossíveis de serem demonstrados como verdadeiros; a fé significa o comprometimento de toda a existência a que alguém se disponha em face de Deus. Não se admite nenhuma posição intermediária; ou o indivíduo aceita ou rejeita a Cristo. Aqueles cristãos nominais que consideram a Igreja como refúgio, a fim de continuarem desfrutando a crença de que são pessoas fidedignas, estão, na verdade, procurando firmar-se numa posição intermediária, mas, efetivamente, tais pessoas não passam de inimigas de Cristo, mais do que os ateus confessos. Kierkegaard dirigia críticas muito duras contra os pregadores que se esforçavam em ganhar um bom dinheiro fazendo pregações a respeito da crucificação de Cristo. Para Kierkegaard, o tornar-se um cristão implicava em que a pessoa tivesse de expor toda a sua vida à tarefa perigosa e desolada de seguir os preceitos divinos. Essa tarefa é perigosa e desolada pelo fato de que significa sempre o viver de modo contrário ao entendimento das multidões e até mesmo em oposição ao sentir da Igreja. A vida cristã é de sofrimentos; não há tal coisa como uma ingênua paz interior no cristianismo, conforme pensa Kierkegaard.

O Deus de Kierkegaard é sempre transcendente. Não se trata de nenhuma doutrina filosófica que se deva antepor à doutrina da imanência

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divina ensinada pelos liberais. Em vez disso, a doutrina da transcendência anunciada por Kierkegaard baseia-se em que o homem está separado de Deus por causa de seus pecados e de sua culpa. O ser humano não poderá jamais elevar-se até Deus; Deus é quem tem de vir até o homem. Até mesmo no salto da fé em direção a Deus, é Deus mesmo quem tem a iniciativa da ação dentro do coração do homem. Embora Kierkegaard nada ensinasse da doutrina da predestinação, o fato é que ele sempre acreditou que o homem, desassistido da misericórdia divina, jamais teria condições de encontrar Deus.

Em análise extremamente insatisfatória, é isto o que Kierkegaard nos tinha a dizer. O pensamento que ele expôs causou muita agitação na teologia moderna. Mediante sua análise das ansiedades, do desespero e do pecado na vida humana, ele lançou muita dúvida sobre a legitimidade do otimismo cultivado no decorrer do século dezenove. A análise que ele procurou fazer da capacidade da razão humana forçou os teólogos a adotarem um ponto de vista bem diferente quanto à maneira de pensar sobre Deus. Será que temos o direito de falar de Deus nos mesmos termos que empregamos para a designação do que se passa no mundo físico? Vamos encontrar os temas tratados por Kierkegaard com freqüência nas páginas que seguem.

Emil Brunner

O que se chama neo-ortodoxia deriva-se, originalmente, de Karl Barth. Por muitos anos, o pensamento de Barth não foi conhecido na América, e um certo número de mal-entendidos a propósito de seu pensamento permaneceu em voga até quando sua obra, “Dogmática da Igreja”, foi traduzida para a língua inglesa, já por volta da década de 1950. Como resultado disso, a maioria dos estudiosos americanos não teve outra fonte de conhecimento da neo-ortodoxia além do teólogo Emil Brunner, proferiu conferências por todo o país várias vezes, tendo suas obras traduzidas antes das de Barth.

Brunner nasceu na Suíça no ano de 1889. Ele fez seus estudos em Zürich, Berlim e no Union Theological Seminary, em Nova York. Depois de ter exercido um pastorado de oito anos, ele tornou-se professor de teologia em Zürich em 1924. Em 1953 ele deixou Zürich, para ser professor na Universidade Cristã do Japão. Durante o tempo em que esteve no Japão sua saúde se tornou precária; não obstante, depois de voltar para a Suíça, pôde concluir o último volume de sua Dogmática, apesar de estar, impossibilitado de escrever. Ele conseguiu desenvolver- se na arte de compor sua teologia mediante o emprego de um dictafone. No ano de 1966, Brunner faleceu.

Brunner se tornou conhecido no mundo de língua inglesa, inicialmente, como expositor da teologia “dialética” ou “da crise”. O conceito de dialética é comum em filosofia desde os tempos de Sócrates. A dialética resulta numa tentativa de encontrar a verdade mediante a disposição de ouvir os que pensam diferentemente, a fim de que haja discussão dos assuntos sem qualquer reserva. Segundo a teologia dialética, a revelação de Deus relaciona-se com o conhecimento humano

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de tal forma, que ela não coincidirá jamais com as expectativas que o homem possa ter a propósito da divindade. Quando Deus se comunica com o homem, este fica diante de um paradoxo. A teologia é uma expressão incompleta e finita do relacionamento paradoxal do homem para com Deus e nunca poderá ser definitivamente resolvido esse paradoxo em termos humanos.

Essa posição recebeu a designação de “teologia de crise”, pelo fato de insistir na afirmação de que ocorre uma crise quando Deus se acha diante do homem. Num boletim médico, chama-se de crise o ponto delicado no qual parece que o doente ou vai ceder aos avanços da morte ou mostra sinais de recuperação. Semelhantemente, quando Deus se encontra diante do homem, conforme essa teologia, o futuro total do homem se encontra, então, em jogo. Ao homem que se encontra face a face com Deus é concedido que diga “não” a Deus, e, nesse caso, avançará em direção à morte espiritual, ou então, ele dirá “sim” a Deus, e será transformado num novo homem.

Na medida em que ia desenvolvendo sua teologia, Brunner ia dando mais e mais ênfase a sua tese de “verdade como encontro”. Na ciência e na filosofia o homem raciocina em termos do sujeito (aquele que raciocina) e objeto (aquilo sobre o que o sujeito exercita o raciocínio). Tal é o que leva à distinção que se faz entre pensamento objetivo e pensamento subjetivo. O pensamento objetivo é limitado e verificado pela existência do objeto. Aquele que exercita o raciocínio objetivo não interfere na disposição dos fatos, deixando que falem por si mesmos, independentemente das preferências e desejos que se tenha com relação a eles. A ciência e a filosofia procuram ressaltar bastante o valor do pensamento objetivo. Por outro lado, o pensamento subjetivo refere-se ao fato de que se pode pensar à base dos sentimentos cultivados, com desprezo para com os fatos em sua objetividade. Grande parte da história da filosofia tem consistido no debate relacionado com o valor do pensamento objetivo e o valor do pensamento subjetivo, nisso se incluindo a discussão de como elementos subjetivos possam interferir em nossa percepção do objeto.

Na opinião de Brunner, é trágico esse fato de que a teologia tenha consentido em ficar sob o controle da dicotomia do pensamento objetivo ou subjetivo. Quando a Igreja pensa em termos objetivos, ela entende com isso que a revelação consiste de verdades que Deus revelou aos homens mediante a Bíblia e também a Igreja. O conhecimento de Deus nos é apresentado como se fosse algo objetivamente disponível. Sempre têm havido cristãos que se ficam perturbados com esse alegado objetivismo. Eles sabem que o diabo também é capaz de citar textos das Escrituras com muita habilidade. Quando esses cristãos chamam a atenção para o fato de que a única alternativa para a hegemonia da objetividade consiste na subjetividade do conhecimento, têm procedido em nome dos interesses intelectuais do subjetivismo, Eles procuram ressaltar a importância da experiência íntima do homem, ou seja, a importância da “fé”. Tais pessoas procuram, então, chamar os demais homens para que contemplem introspectivamente, a fim de que aí possam se inteirar da existência de uma verdade viva que não poderia ser observada jamais por vias objetivas. Todavia, onde quer que ocorra o

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surgimento do subjetivismo, cada indivíduo se toma a si mesmo como autoridade última para a descoberta da verdade e, em conseqüência, a Igreja se expõe à desintegração com o aparecimento simultâneo de revelações que se anulam entre si.

Diante disso, Brunner é da opinião que o objetivismo e o subjetivismo não devem ser alternativas únicas. Na Bíblia e nos acontecimentos da Reforma do século dezesseis, temos uma alternativa que Brunner chama “verdade como encontro”. Nessa alternativa, o pensamento é um processo dialético; o pensamento atenta tanto para a Palavra de Deus presente na Bíblia como também para o testemunho do Espírito Santo no íntimo do crente, sabendo-se que essas duas experiências acontecem como uma unidade indivisível.

Voltando-nos para a Bíblia, certificamo-nos através dela que Deus sempre é quem toma a iniciativa em fazer-se conhecido ao homem. Deus não nos revela informações nem doutrinas novas, pois o que ele nos revela é sua própria pessoa. Dessa forma, o relacionamento que se estabelece ora de natureza objetiva, ora subjetiva, fica superado. Deus não se revela como sendo objeto para o exercício do raciocínio. Ele se revela como pessoa que entra em relação com o homem.

Para desenvolver sua tese, Brunner faz uso da distinção entre as relações que podem ser enunciadas como sendo eu-isso e eu-tu, já sugeridas por Kierkegaard e divulgadas pelo filósofo e teólogo judeu Martin Buber. O conhecimento expresso em termos de eu-isso é de teor objetivo e relaciona-se com um objeto qualquer tomado como coisa existente fora de nós. Nesse conhecimento eu- isso, a pessoa que exercita o conhecimento nada tem a ver com a coisa que conhece - nenhuma preocupação vital a prende ao objeto do conhecimento. Não existe nenhuma comunhão entre o objeto conhecido e a pessoa que o conhece. O melhor exemplo que se tem para o conhecimento em termos de eu-isso é o científico; neste sabe- se que o cientista fica independente em relação aos experimentos que leva a efeito, controlando-os e manipulando-os à vontade.

E possível mantermos conhecimento do tipo eu-isso em relação a uma pessoa. Podemos observá-la com o mesmo ânimo com que observamos a tudo o mais, podemos procurar informações a respeito de uma tal pessoa, podemos fazer uma relação das características que nela descobrirmos, e, assim, chegaremos a classificar essa pessoa dentro de categorias pertinentes. Não raro, acontece que fazemos uso da pessoa para alcançar nossos fins. Tudo isso é verdade, mas sabe-se perfeitamente que há outra maneira pela qual conhecemos uma pessoa - é a maneira que se pode expressar pela fórmula eu-tu. Nesse caso, a pessoa deixa de ser um “isso” ou “alguma coisa”, para passar a ser um “tu” para nós. A pessoa se revela para conosco não proporcionando-nos informações sobre quem seja, mas, sim, comunicando-se, e a essa pessoa nós nos damos também. Uma relação em termos de eu-tu vem, assim, a substituir aquele primeiro relacionamento objetivo em termos de eu-isso, quando nos encontrávamos um em face do outro como se não passássemos de duas coisas. Estabeleceu-se a comunhão entre duas individualidades. Não haverá mais aquela disposição pela qual alguém teria ficado como a observar à distância, procurando informações. Em vez

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disso, aquele que passou a conhecer a outra pessoa sente-se mudado no mais profundo de seu ser pelo fato de ficar conhecendo e dar-se a conhecer pela comunicação estabelecida com a pessoa considerada.

O estabelecimento de relações assim expressas é a melhor analogia para a experiência do conhecimento que adquirimos de Deus. E erro crasso supor que possamos obter conhecimento objetivo de Deus, uma vez que isso implicaria em entender que Deus ficasse ao alcance de nossas faculdades e pudesse ser retido, controlado e manipulado por nós. Eis onde reside, segundo Brunner, o erro do catolicismo romano e do fundamentalismo. Cada uma dessas correntes presume possuir em seu sistema algumas verdades infalíveis a respeito de Deus, verdades essas que manejam para julgarem a outros que pensem diferentemente e para adquirirem por si mesmos a salvação. Acontece, entretanto, que Deus só se faz verdadeiramente conhecido mediante o estabelecimento da relação que se expressa em termos de eu-tu. E da própria essência da relação eu-tu o fato de nos ela impossibilitar definitivamente de possuir, controlar ou manipular o outro. Mediante a experiência do eu-tu, nós nos aproximamos reciprocamente e nos comunicamos com espontaneidade, dando-nos sem reservas. O mesmo princípio se aplica à relação eu-tu que se estabelece entre o homem e Deus; não podemos possuir nem manter Deus em nossos credos, nem na Bíblia nem na Igreja. Deus permanece livre. A revelação não é algo que nos dê algum conhecimento de Deus; propriamente, a revelação é Deus mesmo que se nos dá. Deus tem de comunicar-se a nós, pois só Deus pode revelar Deus.

Isso explica o porquê de a teologia natural e a filosofia não poderem jamais proporcionar-nos um conhecimento adequado a respeito de Deus. Segundo a filosofia, nós pensamos sobre Deus; nesse caso, Deus fica como se fosse um “isso”, isto é, um objeto cuja existência ou não existência pode ser debatida. Quando ocorre que, numa classe de estudos filosóficos, surja a discussão sobre provas da existência de Deus, não há dúvida de que o tempo destinado a essa cogitação é extremamente agradável; os componentes da classe podem desenvolver-se bastante quanto ao melhor emprego das regras de lógica. Entretanto, a classe nada aprenderá por esse meio concernente ao Deus do culto que é prestado pelos cristãos, pelo fato de que a palavra “Deus” significa alguma coisa muitíssimo diferente nas duas esferas racionais. Prova-se isso, entre outras coisas, pelo fato de não se determinar que necessariamente ocorram mudanças no comportamento respectivo de duas pessoas, aquela que tenha aceito os argumentos que provam a existência de Deus e aquela outra que não o fez. Acontece, porém, que o Deus da revelação cristã não pode ficar à mercê de uma discussão assim, para ser aceito ou rejeitado sem maiores conseqüências. O conhecimento de Deus determina mudanças nas profundezas do ser individual, capazes de renovar a personalidade.

Embora Brunner rejeite o papel que se atribui à teologia natural, convém assinalar que ele rompeu com Karl Barth, a propósito dessa questão, durante a década de 1930. Brunner foi criticado por Barth por ter afirmar que a imagem de Deus encontra-se ainda no homem pecador e que Deus é revelado na natureza. Mantendo-se inflexível diante dos teólogos liberais, Brunner procurou deixar claro seu pensamento de que o

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homem, enquanto considerado em seu estado de pecado, nada poderá aprender de Deus, pois encontra-se cego por efeito do pecado. Todavia, quando se exprime contra Barth, Brunner argumenta que, se o homem pecador já não é mais imagem de Deus e se não há nenhuma revelação de Deus na natureza, então a conclusão é que o homem não pode mais ser responsabilizado pelo pecado que comete.

Uma vez que a razão humana é libertada pela revelação de Deus, ela passa a ser útil, para que, por seu intermédio, se demonstre a legitimidade da fé cristã, diz-nos Brunner. Assim sendo, quando procura demonstrar que o método de raciocínio à base da dicotomia sujeito e objeto é inapropriado para o pensamento que se deve articular a propósito de Deus, Brunner entende que está fazendo uso da razão mesma para tornar evidente a possibilidade da fé cristã. Além do mais, o teólogo deve usar a razão para responder às alternativas relacionadas com a fé cristã. A razão jamais conseguiria a conversão de alguém (é só o encontro com Deus em Cristo que pode operar a conversão do pecador), mas a razão pode muito bem preparar o terreno para que a conversão venha a ocorrer, pois lhe é possível contribuir para que os obstáculos racionais sejam removidos.

Em sua doutrina do pecado, Brunner aceita a análise feita por Agostinho, concernente ao pecado original, mas não aceita a teoria de que o pecado se transmita por hereditariedade. A essência mesma do pecado, diz-nos Brunner, requer o livre arbítrio. O pecado resulta de uma preferência humana e não de algum princípio de hereditariedade. O homem foi criado por Deus para viver neste mundo em harmonia com a vontade de Deus, mas ele prefere viver com seus interesses voltados para si mesmo. O homem se retira para dentro do castelo de seu próprio eu e dali só pode ser tirado pela iniciativa divina em procurá-lo com profundo amor e, uma vez que conquiste sua confiança, Deus lhe supera as ansiedades e termina por capacitá-lo ao ponto de que o homem não permaneça mais naquele seu antigo castelo.

A Bíblia assinala um determinado lugar e uma determinada ocasião quando, em Jesus Cristo, Deus decidiu fazer-se conhecido ao homem. Em virtude disso, o cristianismo deve permanecer como fator de escândalo para o entendimento do homem moderno, pois lhe agrada só um Deus que possa ser conhecido em qualquer lugar e ocasião por quem quer que esteja disposto a se esforçar. Atrás desse desejo moderno, o que se encontra mesmo é a recusa obstinada em deixar de considerar a preocupação pecaminosa que tem para consigo mesmo. Não podemos deduzir logicamente como o justo Deus deve tratar com os pecadores. E somente pelo fato de que Deus mesmo veio a este mundo para revelar-nos sua natureza perdoadora que nos encontramos em condições de falar com segurança a respeito do perdão do pecado que Deus nos concede. Por causa do pecado humano, Deus só se poderá fazer conhecido através de um Mediador, Jesus Cristo, que veio de Deus com a revelação que o homem jamais poderia obter por si mesmo.

Brunner expressa sua convicção inabalável de que jamais pode haver fé cristã sem conduta cristã. Seu livro intitulado O Imperativo Divino, uma obra de cerca de seiscentas páginas, é um dos tratados clássicos de ética cristã produzidos neste século. Ele dedica a primeira

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parte desse seu livro a uma análise das bases teológicas da conduta ética, e, em seguida, ele passa a fazer aplicações da análise, considerando as esferas específicas do Estado, dos sistemas econômicos e da família.

Brunner começa essa obra expressando o reconhecimento de que todos os homens dispõem de algumas teses sobre qual é a melhor conduta. Como fato atestado pela História, ele ressalta que a moralidade tem se associado intimamente com a religião e que todas as religiões éticas demonstram possuir determinado conceito de existência de uma lei que procede da vontade divina. A despeito dessa verificação histórica, é fato que tem havido, desde os tempos de Sócrates, uma séria tentativa, visando a formulação de uma ética racional que não dependa de nenhuma revelação de Deus. A tentativa poderá ser irreligiosa ou não, mas, se alguma religião se faz presente nesse esforço racional, será uma religião conhecida apenas pela razão do homem.

Dos esforços dos racionalistas nos vieram dois sistemas básicos: o naturalista e o idealista. O sistema naturalista trata o ser humano como produto da natureza, como animal apenas, e se esforça em encontrar na própria natureza os elementos essenciais para a formulação do que venha a ser a melhor conduta. Uma ética que parta dessa suposição terá de enfrentar um dilema. E que o homem, com freqüência, se percebe absolutamente consciente de um “sentimento de dever” que o leva a proceder de modo que ele bem sabe não lhe ser natural. Ou o naturalista terá de negar a validade dessa persuasão ou será inevitável que crie um elemento não naturalista qualquer dentro de seu sistema.

Os idealistas, em sua maioria influenciados por Kant, procuram construir uma ética sobre a base do conceito “do dever pelo dever”. O ser humano se conhece um “imperativo categórico”, isto é, o sentimento de que somos obrigados a proceder de certa maneira, não importando as inclinações que tenhamos nem as vantagens ou prejuízos que possam nos ocorrer nas circunstâncias. Entretanto, pergunta-nos Brunner, o que é mesmo que o “tu deves” significa para aqueles que não pensem que ele proceda de Deus? Quem é mesmo o legislador que é capaz de assegurar-nos a legitimidade do imperativo? O idealismo nos força ao reconhecimento de que nossa personalidade se encontra dividida, de modo que temos de pensar em termos da existência de um “eu” melhor, que legisla para um “eu” menos digno. No caso particular de Kant, sabe-se que a maneira cristã como foi criado brilha, por assim dizer, através da exposição de seu pensamento, assim os princípios que ele recebeu no período de sua formação dão nítido colorido a suas idéias, mesmo quando ele pensa estar empregando apenas os ditames da razão na exposição de sua filosofia. Não acontece, porém, a mesma coisa com relação a outros. No caso de outros que não Kant, a ética idealista poderá levá-los a uma identificação das inclinações com o senso do dever.

Em sua obra intitulada A Justiça e a Ordem Social, Brunner analisa o que acontece com o conceito de justiça quando não se leva em consideração sua base própria na vontade divina. A época do racionalismo procurou fundamentar o conceito de justiça só na razão humana. Durante o século dezenove, os positivistas, negando qualquer idéia de sobrenatural, insistiram na tese de que a justiça não passa de uma noção muito relativa, que varia de lugar para lugar. Eles negavam a

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existência de qualquer conceito de justiça que fosse eternamente válido e que fosse superior à legislação humana. Se fosse assim, acreditava Brunner, inevitavelmente haveria a possibilidade de surgir um Estado que poderia chegar ao ponto de sobrepor-se a todos os conceitos tradicionais, para proclamar ser o único padrão de justiça exatamente o do arbítrio da força dominante. Resumindo, o totalitarismo vai se implantar à base do conceito de que o Estado não pode errar, pois não se admite nenhum princípio mais elevado do que a lei do próprio Estado, de modo que o Estado jamais poderá ser julgado. Disso decorre também que, dada a inexistência de qualquer “lei absoluta, sagrada, divina e eterna”, torna-se, ipso facto, impossível denunciar como iníqua qualquer lei ou ato nacional. Não poderíamos, então, levantar nenhum protesto contra os estados totalitários, considerando- os como verdadeiros monstros, quando praticam hediondas injustiças; diante deles, somente podemos ficar murmurando assim: “Não posso com coisas assim; não tolero tais ações!”

No cristianismo, Brunner entende que se encontra a efetiva alternativa contra o positivismo naturalista e contra o idealismo subjetivista. Na Bíblia, a bondade tem sua base sólida somente na realização da vontade de Deus. E Deus quem fala às consciências essa admirável noção do “tu deves”. Em face desse imperativo, depreendemos a plena significação do que seja a culpa, sem que, necessariamente, tenhamos de cair em desespero, pois, com o conhecimento da culpa, vem também a segurança de que ela poderá ser anulada pela consciência do perdão de Deus.

À luz desse princípio ético, entendido como decorrendo da própria vontade divina, temos a convicção de que todos os homens são pecadores. Todos têm deixado de cumprir a vontade de Deus neste mundo. E somente por misericórdia divina que nos podemos considerar como estando justificados. O pior pecado, portanto, não será nenhum dos vícios conhecidos. O pior pecado é esse orgulho que leva o ser humano a achar que é bom e, não raro, a olhar com desdém para o próximo. Tal pessoa se sente continuamente forçada a adotar padrões de conduta sem exigências, de modo que ela não encontra nenhuma dificuldade em justificar-se a si mesma ou parecer absolutamente correta a seus próprios olhos.

No cristianismo, o comportamento recomendável não vem, propriamente, de nenhum senso de dever. A obediência para com Deus não é fruto de nenhum sentimento de obrigação, pois decorre, na verdade, de um ato espontâneo de amor. O homem, em seu estado de egocentrismo, se vê elevado para uma atmosfera de amor divino que, por sinal, não adota nenhuma fórmula condicional que se pudesse traduzir assim: “Eu vou amá-lo se...” A consideração dessa realidade nos dá o exato significado da liberdade cristã. Consiste essa liberdade no fato de que o salvo por Cristo não terá mais de obedecer servilmente a nenhuma lei; o crente passa a fazer espontaneamente aquilo que bem sabe corresponde à vontade de Deus. Deus não promulga mandamentos para escravos; agrada-lhe ministrar amorosas instruções a seus filhos.

Quando os sentimentos do amor levam o homem a libertar-se do jugo da lei, cria-se uma relação nova, que passa a prevalecer entre tal pessoa e os semelhantes. Os sentimentos do amor substituem os

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princípios de uma lei abstrata antes vigente. Acontecerá, então, que nenhuma outra pessoa será mais um “caso” para o salvo pela experiência do amor divino, um “caso” para qual o crente tenha de recorrer a um preceito legal qualquer. O crente passa a entender que aquela pessoa, tão prejudicada por suas peculiaridades temperamentais, poderá, não obstante, ser amada pelo que é e deverá ser tratada conforme as necessidades individuais que tenha.

A sociedade é organizada segundo certas pré-disposições naturais, tais como se vê na existência do Estado, da família e da Igreja. Essas entidades provêm de Deus, pois, sem elas, não teríamos uma vida estável em comunidade. Entretanto, embora sejam entidades originárias do próprio Deus, o fato é que estão manchadas pela realidade do pecado humano, e, em conseqüência, o cristão não tem de devotar a elas lealdade irrespondível.

A tragédia do pecado original torna-se mais clamorosa quando vemos que a posição que ocupamos nas entidades referidas acima nos força a proceder, muitas vezes, de modo reprovável. Por exemplo: não é incomum que ouçamos a respeito da luta íntima que ocorre aos juízes tementes a Deus, quando eles se sentem obrigados a lavrar sentenças baseadas em uma lei claramente injusta. O bom juiz, nesses casos, entende que a sociedade precisa das leis para existir, e, por isso, ele aplica a lei, embora sinta grande peso em seu coração. Não obstante essa realidade, sabe-se que o juiz em questão não será uma pessoa sem outras possibilidades sociais. Por isso, concebe-se que ele possa procurar alguma maneira de mitigar a injustiça com relação a algum caso, mediante o estabelecimento de amizade pessoal com a pessoa vitimada. Sempre que verifique o caráter iníquo de uma legislação, o cristão tem o dever de fazer tudo para que surja melhor legislação. Entretanto, o que ele nunca deve esquecer é que uma legislação qualquer, uma vez que concorra para a manutenção da ordem, será melhor do que nenhuma legislação, e deverá vigorar enquanto não surja uma melhor.

Pelo fato de que o pensamento de Brunner era mais aberto para a teologia natural em comparação com o pensamento de outros teólogos neo-ortodoxos, explica-se que ele fosse muito mais aceito pelos teólogos liberais da América. A defesa incisiva da posição mantida pelos americanos durante a vigência da “guerra fria” contra os países comunistas determinou que Brunner se tornasse muito amado por grande número de americanos. Na análise do relacionamento em termos de eu-tu, considerado como maneira própria pela qual deve-se pensar sobre Deus, não há dúvida de que Brunner fez uma contribuição de valor permanente para os estudos teológicos. Nos anos mais recentes, entretanto, nota-se que a influência do pensamento de Brunner já não é tão grande. Outros teólogos têm ocupado o centro do cenário das discussões teológicas. Só o transcorrer do tempo é que poderá irformar-nos a precisamente quanto à obra de Brunner, se ela haverá de ser retomada em estágio posterior, ou se os conceitos que trouxe à tona devem ser considerados como simples transição no desenvolvimento da teologia do século vinte.

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Karl Barth

Em 1919, a atmosfera tranqüila da teologia européia viu-se perturbada pelo aparecimento de um comentário da Carta aos Romanos, escrito por certo ministro ainda desconhecido, Karl Barth. Segundo disse um escritor, Barth pegou uma carta escrita em grego característico do primeiro século da Era Cristã e conseguiu torná-la uma exposição especial para as necessidades do homem do século vinte. Todos os teólogos recentes devem alguma coisa a Barth, mesmo nos casos nos quais os teólogos somente reagem contra ele. Atualmente se diz com certa freqüência que vivemos numa época pós-barthiana. Entretanto, mesmo que seja verdade, o fato é que a presente época ostenta as marcas da contribuição feita por Barth.

Barth nasceu em 1886 em Basiléia, na Suíça, e estudou sob a influência de teólogos liberais, como Harnack e Hermann. Em 1911, ele começou seu pastorado de dez anos na vila suíça de Safenwill, onde ele escreveu seu Comentário da Carta aos Romanos. Em 1921, tornou-se professor em Gottingen e em 1929 transferiu-se para Bonn. Barth observou com atenção ascensão política de Hitler e foi um dos fundadores da Igreja Confessional, que resistiu a todas as tentativas dos “Cristãos da Alemanha” no sentido da união do cristianismo com o nazismo.

Ele colaborou na elaboração da Declaração de Barmen, que, em verdadeiro desafio lançado ao totalitarismo de Hitler, afirmava que Deus é o único Führer (líder) da Igreja. Em 1935, por ter se recusado a jurar fidelidade ao nazismo, ele teve de deixar o território da Alemanha. Aceitou, então, uma cátedra de teologia na Universidade de Basiléia, da qual só veio a sair por aposentadoria, em 1962.

Barth começou como teólogo liberal, acreditando que o Reino de Deus pudesse estabelecer-se mediante os esforços de homens portadores de dedicação cristã. A Primeira Guerra Mundial causou um tremendo choque ao otimismo que o caracterizava. Quando viu como as nações civilizadas estavam enfurecidas na orgia da destruição, teve a impressão de estar o homem numa condição tão desesperada que seus problemas não seriam solucionados apenas com mudanças operadas nas estruturas políticas e econômicas. Por algum tempo ele esteve perplexo com as deficiências nos sermões que tinha de pregar semanalmente. Muitas pessoas vinham ouví-lo cada semana, mas, que podia ele dizer a elas? Não raro, os ouvintes saíam do culto em verdadeiro estado de desapontamento, pois não lhes parecia que seus sermões fizessem a necessária confrontação com os problemas que mais prendiam a atenção de todos.

Barth consultou os teólogos de então, mas percebeu que eles nada tinham que pudesse ajudar a um pregador de comunidade modesta. Os teólogos ignoravam os problemas relacionados com a pregação, pelo fato de que a teologia tinha se tornado acadêmica, mais do que eclesiástica.

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Posteriormente, já como teólogo, Barth tinha a convicção de que a única razão para que existam teólogos é que eles sejam capazes de ajudar e criticar a obra a que o pregador se destina. Se os teólogos ignoram a tarefa do pregador, eles terminarão por entregar-se a murmúrios inaudíveis a respeito de Deus, esquecidos de que têm uma terefa mais elevada do que a de manipularem, de maneira um pouquinho diferente, as mesmas idéias já muito comuns no mundo moderno.

Uma vez que não pôde encontrar nenhuma ajuda no campo da teologia, Barth se voltou para a Bíblia, em cujas páginas ele encontrou “um estranho e novo mundo”, bem mais cativante do que as lições da mais recente filosofia. Ele não tinha nenhuma intenção de tornar-se teólogo; apenas tinha a esperança de que, de uma perspectiva bíblica, seria possível adicionar “uma pitada de tempero” para melhorar o sabor da teologia que outros estavam produzindo. Entretanto, depois do aparecimento de seu Comentário da Carta aos Romanos, ele foi empurrado para o centro mesmo das discussões teológicas. Compara-se ele com alguém caindo em lugar escuro, tudo fazendo para se firmar. Para sua grande surpresa, ele tinha tocado numa corda destinada a acionar um sino e, uma vez que as badaladas se fizeram ouvir, toda a cidade se despertou.

A teologia de Barth não é fácil de ser resumida, pelo fato de que ele tem escrito mais do que qualquer outro teólogo desde Tomás de Aquino. Sua obra mais extensa, a “Dogmática da Igreja”, tem mais de oito mil páginas, mesmo incompleta. Outra dificuldade para se fazer um resumo consiste no fato de que seu pensamento passou por mudanças muito significativas. Ele costuma ressaltar que a teologia é um esforço finito e humano de compreender a Deus e exige que se mantenha um espírito de constante reforma e revisão de conceitos. A Teologia deve levar em consideração as condições contemporâneas. Nunca bastará que simplesmente se repita o que disseram os teólogos do passado. Eles foram realmente grandes, pelo fato de que fizeram aplicação da Palavra de Deus atendendo às exigências de sua época. Em vez de ficarmos repetindo suas idéias, o que temos de fazer é realizar para nosso tempo o que eles entenderam necessário para o tempo quando viveram. Barth insiste que seus alunos leiam muito, tendo a Bíblia numa das mãos e os jornais na outra.

Uma vez que se tenha em mente que o mundo passou por muitas mudanças durante a vida de Barth, não se estranhará que sua teologia tenha se alterado. Todavia, há temas básicos que permeiam toda a sua teologia, dando-lhe uma consistência fundamental. A teologia de Barth, em seu todo, parte da convicção que ele sempre expressou de que, por mais de um século, os teólogos tinham enveredado por um caminho que os conduzia a erros. A teologia obstinava-se no esforço de partir do estudo do homem para a compreensão de Deus. Schleiermacher ensinou que quando os homens olhassem para dentro de si poderiam encontrar a Deus. Ritschl, por exemplo, procurou levar seus leitores a encontrar Deus nas preocupações éticas que tinham. Outros pensadores insistiram na possibilidade de encontrar Deus nas experiências místicas do homem ou na razão humana. Barth diz que todas essas vias que pretendem partir do homem para Deus não passam de becos sem saída. Na Bíblia, verifica-se

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que não é o homem que procura por Deus, e, sim, Deus mesmo que procura pelo homem. Através de todas as transformações sofridas por sua teologia, essa concentração do pensamento de Barth, que consiste em mostrar como é Deus quem procura pelo homem, jamais sofreu qualquer mudança.

Barth distingue entre religião e fé. Religião é a procura de Deus por parte do homem e resulta sempre em que o homem encontre um tipo de deus correspondente aos desejos que tem. Isso não significa uma crítica levantada só contra as religiões não cristãs, pois também os cristãos criam religiões e a crítica mais severa de Barth contra a religião visa exatamente a religiões cristãs. Jesus é a revelação divina que destrói qualquer religião. Os cristãos dos primeiros séculos eram considerados ateus pelo fato de agirem de modo a destruírem os deuses feitos pelos homens naqueles tempos. Em face dessa consideração, não deixaria de ser um sinal muito salutar se pudéssemos ver os cristãos ainda sob suspeitas de ateísmo.

Pelo fato de que temos um Deus vivo, Barth previne-nos contra a tendência de identificar a Palavra de Deus com qualquer forma estereotipada ou instituição humana. Para ele, nem mesmo a Bíblia deve ser identificada como sendo a Palavra de Deus. O erro do fundamentalismo, no seu entender, consiste em ver a Bíblia como se ela fosse um “Papa-de-papel”, com todas as características de auto-suficiência. Para Barth, as palavras registradas na Bíblia e as que foram proferidas por Jesus não passam de “sinais”. Pode-se ler a Bíblia sem que se tenha o privilégio de ouvir a Palavra de Deus. Entretanto, é certo que a Palavra de Deus veio até nós mediante esses sinais. Um dia qualquer, encontrando-nos a ler uma passagem das Escrituras, a Palavra de Deus poderá surpreender-nos falando conosco exatamente na situação em que nos encontramos. Os escritores bíblicos procuraram transmitir-nos a revelação que receberam de Deus e, ao lermos o que escreveram, o mesmo Deus que lhes falou poderá falar-nos também. Assim entendida, conclui Barth, a Bíblia é um relato de uma revelação passada e é uma promessa de revelação futura.

Revelação para Barth não significa que recebermos uma nova informação ou teologia que não pudéssemos obter através de esforços próprios. Deus não revela informações, mas, sim, a Si mesmo. A Palavra de Deus é sempre dirigida a uma pessoa em situação peculiar. Quando Deus chama, diz Barth, ele não chama estação por estação transmissora, ele chama pessoa por pessoa.

Em sua primeira obra publicada, Barth insistiu no conceito de que Deus é “Inteiramente Outro”. Os críticos de Barth têm objetado que, se Deus é na verdade inteiramente Outro, segue- se que não podemos entender nada a respeito dele, mesmo que se revele. Entretanto, Barth nunca negou que haja lugar para uma analogia entre Deus e o homem, de modo tornar possível o entendimento de Deus por parte do homem. Ao designar Deus de Entidade inteiramente Outra, o que Barth quis dizer essencialmente é que Deus é uma realidade distinta de nós. Ele se recusava a fazer uso do termo “Deus”, para descrever o “espírito de humanidade” ou os “aspectos produtivos do conceito de valor no universo.” Além disso, ele desejava ressaltar que não podemos chegar à

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compreensão de Deus partindo da consideração do ser humano no que tenha de melhor, apenas adicionando-lhe alguns superlativos. Deus não é nenhuma culminação de tudo quanto seja bom no homem. Mesmo quando o homem alcança o cumprimento das mais elevadas virtudes, ainda assim não passará de servo inútil, que terá de ficar na inteira dependência do perdão divino.

Pelo fato de que Barth nega a capacidade do homem de alcançar uma compreensão de Deus mediante as faculdades da razão, com freqüência se ouve chamá-lo irracionalista. Certamente, em suas primeiras obras, Barth se sentia na obrigação de dizer coisas muito pejorativas contra a razão humana, mas a posição que passou a defender depois é consistentemente racional. Distingue ele entre o raciocínio a priori e a razão a posteriori. O raciocínio a priori alega o conhecimento da verdade independentemente da experiência. Quando nega que o homem possa conhecer a Deus pelos processos racionais, Barth deseja é negar que se tenha qualquer conhecimento a priori de Deus. Caso se admitisse que o homem dispõe de conhecimento a priori de Deus, se deveria concluir ter ele também um critério pelo qual pudesse avaliar a revelação de Deus. O raciocínio a posteriori é o que se pode efetuar depois da experiência de um acontecimento qualquer. Barth insiste na afirmação de que todo o conhecimento de Deus é a posteriori. Não podemos saber quem é Deus até o momento em que ele se revela a si mesmo. Não podemos saber a priori que Deus seja amor, por exemplo; essa é uma noção que adquirimos depois que a vida de Cristo a torna evidente para nós. Todavia, depois que Deus se revela, Barth insiste na necessidade de que o homem use a razão para entender o que Deus disse.

A experiência vivida por Barth na vigência do nazismo muito concorreu para que ele se firmasse cada vez mais na tese de que nós podemos conhecer a Deus somente através de revelação. Bom número de teólogos levantou contra Barth a objeção de que sua posição nada tinha de relevância, pois ele tinha estabelecido um divórcio entre a revelação e a história e cultura humanas. Tais teólogos não se cansaram de afirmar que nos informamos sobre a natureza de Deus partindo da História tanto quanto das Escrituras. Quando Hitler chegou ao poder, a maioria desses teólogos tentou encontrar uma fórmula que tornasse o cristianismo compatível com o nazismo. Por todo um século, os teólogos tinham se esforçado para conseguir certa modernização da fé para reconciliarem-na com a modernidade. Naquela fase da história da Alemanha, Hitler era a própria personificação da modernidade e a todos parecia ser muito lógico que se procurasse alguma fórmula de reconciliação entre o cristianismo e a situação contemporânea. Já vimos que Barth concordava com seus críticos na questão de que a teologia devia sofrer mudanças à luz dos novos tempos. Entretanto, só nisso fica sua concessão para com os críticos. Barth estava disposto a aprender das condições de seu tempo o como expressar-se a fé crista, mas ele estava persuadido de que a época atual não pode revelar o que temos de dizer. O que temos de dizer em matéria teológica estende suas raízes na revelação de Deus e não nas condições da época moderna. Aqueles que acusavam Barth da falha de apresentar uma revelação dissociada das condições da época, por isso mesmo irrelevante para o homem moderno, tinham, por sua vez, muito

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pouco a dizer a propósito do nazismo. Alguns deles comprometeram-se com o “Movimento Cristão Alemão”, que se esforçava para encontrar uma fórmula de conciliação entre o nazismo e o cristianismo. Outros ficaram hesitando indefinidamente entre uma atitude de franca aceitação do nazismo e uma atitude de crítica ponderada. Barth exerceu um papel importante em face da situação de sua época precisamente por manter-se como testemunha de uma Palavra de revelação divina, que era capaz de emitir juízo em qualquer tempo.

Em seus escritos mais antigos, Barth foi profundamente influenciado pelo pensamento de Kierkegaard. Do pensamento de Kierkegaard ele aceitou a tese da distinção qualitativa existente entre tempo e eternidade. Muito do que o antigo Barth disse a respeito do Deus Inteiramente Outro estava baseado no conceito de que o tempo e a eternidade, o homem e Deus são realidades que se opõem. Isso significa que é um absoluto paradoxo afirmar que Jesus é Deus e homem. No fim da década de vinte, Barth começou a escrever sua Dogmática, chegando a completar um de seus alentados volumes. Quando os críticos disseram que a obra dependia muito da filosofia existencialista, Barth refez todo o trabalho. Tratava-se do ponto mais decisivo em seu desenvolvimento teológico. A partir de então, ele se dedicou ao objetivo de fundamentar sua teologia na Bíblia apenas, e, assim, procurando libertar-se da influência do conceito de uma distância existente entre Deus e o homem, ele foi capaz de considerar seriamente a encarnação de Cristo. Enquanto, na primeira fase da exposição de sua teologia, sua ênfase era sobre o Espírito Santo, considerado como ponto fundamental de encontro entre Deus e o homem, Barth passou depois a ressaltar a pessoa de Cristo como centro da teologia.

Barth agora entende ser uma falácia afirmar que a encarnação de Deus em Cristo seja um paradoxo. A aparência de paradoxo decorre de pensarmos que, independentemente de Cristo, dispomos do conhecimento de quem Deus seja e o que venha a ser Deus e homem, e não podemos vislumbrar como nossas idéias concernentes a Deus e homem possam convergir no reconhecimento de uma só pessoa. Entretanto, diz-nos Barth, caso se não começamos com raciocínios apriorísticos, mas procuramos encontrar em Cristo a revelação tanto de Deus como do homem, o paradoxo se dissipará. Em Cristo, vemos que Deus inclui o conceito de humanidade. O homem pode compreender a revelação de Deus pelo fato de que o homem foi criado à imagem da humanidade que existe no próprio Deus.

O ponto de vista de Barth pode ser ilustrado através da discussão que ele faz concernente à onipotência divina. Dizer que Deus é onipotente equivale a dizer que ele dispõe de todo o poder no universo. Enquanto o homem pensa em termos apriorísticos, ele entende que o poder de Deus é análogo ao que o próprio homem gostaria de ter, caso lhe fosse concedido um poder ilimitado. Assim, parece-nos absurdo que Deus se mostre fraco, nasça numa manjedoura, e morra cravado numa cruz. Quando, porém, decidimos raciocinar a posteriori, isto é, à luz da revelação de Deus em Cristo, então podemos adquirir uma noção totalmente diferente do que venha a ser a onipotência divina. A onipotência passará a incluir a compreensão de que Deus dispõe do poder de tornar-se fraco e de

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palmilhar a senda que conduz à crucificação. Deus demonstra que ele - não os deuses criados pela imaginação humana - é um Ser verdadeiramente poderoso, exatamente pelo fato de que, muito diferentemente dos deuses humanos, ele ousa tornar-se fraco e destituído. Em vez de manter-se invariavelmente entronizado em sublimes altitudes, como o homem o faria, caso lhe fosse conferida a onipotência, Deus desce até o homem em sua humilhação. Em vez de exigir subserviência do homem, Deus vem ao homem como alguém que serve.

Cristo é a revelação do verdadeiro Deus e também do verdadeiro homem. Pelo fato de que Barth começou sua revolução teológica expressando real desilusão com o otimismo liberal a propósito do ser humano, é comum ouvir dizer que ele substituiu um ponto de vista otimista por outro pessimista com relação ao homem. Isso não é verdade. Ainda no início de sua influência como teólogo, sabe-se que Barth chamou a atenção de alguns de seus admiradores, por perceber que eles estavam insistindo demais na realidade do pecado e da depravação da natureza humana. Não podemos render glórias a Deus reduzindo o conceito da liberdade humana, dizia Barth com insistência. E verdade que, atentando-se para o que o homem tem sido ao longo da história, não se pode deixar de ressaltar o fato de que ele é um indigno pecador. As páginas da história mostram quanto o homem tem sido desumano para com o próprio homem. Não obstante, ao olharmos para Cristo e reconhecermos ser ele o verdadeiro homem, entendemos que o pecado não é nenhuma parte essencial da natureza própria do ser humano.

Barth crê efetivamente que o homem não auxiliado por Deus inevitavelmente cai no pecado. Mas, em Cristo, Deus deixa claro que não é seu desejo deixar que o homem fique à mercê da pecaminosidade. Por isso Barth insiste em dizer que não devemos jamais fazer referências ao pecado, a menos que prossigamos dizendo que o pecado ficou vencido, perdoado e destituído de seu terror mediante a obra de Cristo. Jesus disse que para os homens certas coisas são impossíveis, mas elas são possíveis a Deus (Mt 19.26). Nisso se encontra o tema da doutrina antropológica de Barth. A consideração de que para Deus todas as coisas são possíveis, Barth passa a dar a maior ênfase na realidade da nova vida que, mediante o poder de Deus, o homem alcança usufruir. G. C. Berkouwer deu o seguinte título ao seu livro a respeito de Barth: O Triunfo da Graça na Teologia de Karl Barth. Esse é um título muito apropriado, pois são poucos os teólogos que têm escrito tão vividamente a respeito do triunfo de Deus sobre o pecado ou procurado ressaltar a firme promessa de uma nova vida que é dada ao homem.

O fundamento para o otimismo de Barth pode ser encontrado na doutrina da expiação que ele desenvolve. Temos chamado a atenção para o fato de que, no entender de Barth, Deus revela sua onipotência na capacidade de tornar-se fraco. Isso significa que, em Cristo, Deus chegou até um “país longínquo”, onde os homens vivem como pródigos. Deus não se satisfaz em viver a sós no céu, pelo contrário, agrada-lhe ter a companhia do homem. Quando a ética cristã nos incentiva a tomar as cargas uns dos outros, não é isso senão porque o próprio Deus toma sobre si as cargas de outro. Quando somos exortados a que amemos os

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inimigos, não será isso senão porque Deus também ama os que são seus inimigos. Deus revela-nos que ama “o mundo” e não apenas judeus, cristãos ou pessoas bem qualificadas. Uma vez que Deus amou o mundo e veio pessoalmente a este mundo, da mesma forma deve sua Igreja sentir-se vocacionada a servir ao mundo.

Aceitando vir até o “país longínquo”, o Filho se fez carne. Isso significa que ele aceitou a condição limitada que é a natureza humana, caracterizada por tentações e problemas. Jesus submeteu-se às condições de nossa existência. Entretanto, Cristo não se encarnou indiscriminadamente, pois é certo que ele se encarnou como judeu. No entender de Barth, os judeus ocupam lugar muito peculiar na teologia cristã. Deus, no propósito de conquistar a humanidade para si, escolheu o povo judeu, visando utilizá-lo na realização de seu plano de salvação. O Velho Testamento nos relata como foi que Deus se mostrou fiel para com o povo judeu, mesmo quando o povo não correspondia a essa fidelidade. Aos judeus Deus fez as promessas pertinentes a todos os homens, e, assim, quando o Filho chegou no “país longínquo”, ele se tornou judeu, para que cumprissem as promessas feitas a Abraão, Isaque e Jacó.

Enquanto Hitler estava promovendo o assassinato de seis milhões de judeus, Barth procurou estudar os capítulos 9 a 11 da Carta aos Romanos, com uma nova visão, e teve uma compreensão dos judeus que, na verdade, se opunha a muitos conceitos comuns entre cristãos a respeito desse povo. O ponto de vista mais em voga entre cristãos é o de que nos tempos do Velho Testamento, os judeus eram o povo escolhido de Deus, mas, uma vez que a nação rejeitou a Cristo, ela deixou de ser a nação eleita, pois foi substituída pela Igreja. Alguns cristãos têm ido mais longe do que isso, afirmando que os judeus se encontram sob maldição, pelo fato de terem crucificado a Cristo. Barth entende que toda essa maneira de ver os fatos difere do pensamento expresso por Paulo.

Desde o começo, os judeus foram escolhidos por Deus por causa da graça divina, e não por causa de qualificações que pudessem apresentar. Da mesma forma, os cristãos também dependem da graça de Deus. Se a desobediência dos judeus resultou em que eles já não devam considerar-se como povo eleito de Deus, então os cristãos, que se vêm demonstrando sempre desobedientes contra Deus, já não têm nenhuma razão para esperar que Deus cumpra as promessas que lhes fez. Uma vez que Deus se tornou carne judia em Cristo, o povo de Deus passou a existir numa dupla forma - a Sinagoga e a Igreja. Paulo entende que essas duas instituições cabem no propósito divino.

Para Barth, tudo indicava que Hitler tinha uma compreensão demoníaca de uma importante verdade que a maioria dos cristãos deixou de levar em conta. Hitler percebeu que tinha de promover o extermínio dos judeus pelo fato de que, enquanto os judeus continuassem existindo, seriam testemunhas do Deus vivo, que jamais deixará de condenar a presunção dos ditadores de que são capazes de exercer uma autoridade insuperável (Barth ressaltou que a melhor prova que existe da existência de Deus é a existência dos judeus neste mundo). Barth viu, nas medidas de perseguição adotadas por Hitler contra os judeus, uma declaração de guerra contra o próprio Deus. Com base nisso, Barth sentiu-se em condições de predizer que as perseguições movidas por Hitler contra os

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judeus haveriam de conduzi-lo bem cedo à adoção de medidas de perseguição contra a Igreja.

Cristo veio a este mundo como judeu e identificou com seu povo e com o pecado de seus concidadãos. Uma vez encarnado, Cristo se expôs às mesmas tentações que são comuns aos homens em geral, mas sabe-se que ele não cometeu nenhum pecado, revelando-nos, dessa maneira, que o pecado não é algo que seja essencial ao homem. A vida de Cristo, portanto, acarreta julgamento sobre nossas vidas. Quando contemplamos a humana verdadeira, que é característica de Cristo, passamos a entender que a vida egocêntrica dos homens em geral é uma distorção da natureza que temos em nós. Em Cristo fica evidente que nosso pecado consiste em pretendermos ser capazes de julgar a nós mesmos. Adão e Eva caíram no pecado por terem desejado conhecer o bem e o mal como Deus os conhece. Conhecer o bem e o mal como Deus mesmo os conhece equivaleria a tomar o lugar daquele que cria a distinção entre o bem e o mal. Cada nação, classe e indivíduo adota seus próprios padrões e costumes, pelos quais é levado a pensar de si mesmo como sendo bom. Entretanto, sabe-se que, com a vinda de Cristo a este mundo, ficou claro que o homem se encontra debaixo do juízo divino e não tem capacidade de julgar-se a si mesmo.

Se toda a obra de Cristo tivesse consistido em proferir o juízo contra nós, isso teria resultado em fazer-nos mais infelizes do que antes que ele viesse ao mundo. Todavia, Cristo nos revela que Deus tem liberdade de escolher a maneira pela qual seu juízo vem sobre os homens, e a verdade é que o juízo divino recaiu sobre Deus mesmo em Cristo, e não sobre o homem. E, pelo fato de que Deus profere o juízo sobre si mesmo, ele nos livra da obrigação de nos julgarmos a nós mesmos. Essa é uma experiência de liberdade, pelo fato de que, quando o homem pretende ser juiz de si mesmo, faz-se vulnerável ao juízo do próximo. O homem é perseguido pela necessidade de que outros pensem bem dele. O homem pecador é bastante estranho. Em certos momentos o homem exibe as próprias virtudes como a justificar-se a si mesmo, mas, logo depois o mesmo homem começa a olhar a seu redor, para certificar-se da presença de outros que concordam com a opinião que ele tem de si mesmo. Que admirável convicção de liberdade aparece nas palavras de Paulo, quando diz: “Todavia, a mim mui pouco se me dá de ser julgado por vós, ou por tribunal humano; nem eu, tampouco, julgo a mim mesmo. Porque, de nada me argúi a consciência; contudo, nem por isso me dou por justificado, pois quem me julga é o Senhor” (1 Co 4.3-4). O cristão pode expressar-se assim porque, quando ele se sente julgado por Cristo, percebe ao mesmo tempo de que é julgado por aquele que lhe ministra uma palavra de perdão e lhe faz promessas relacionadas com uma nova vida. Deus não teve em pequena conta a condição pecaminosa em que o mundo se encontra, mas também não entendemos que ele tenha ficado distante do mundo, como que dizendo: “Que o mundo vá para o inferno!” A verdade é que ele decidiu fazer a difícil viagem até o “país longínquo”, no propósito de tornar-se como uma de suas criaturas decaídas, para possibilitar o plano de libertar os homens do juízo, da separação de Deus e do nada, que é a morte.

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Desde a vinda de Cristo a este mundo não nos destinamos mais ao futuro como pecadores. O motivo dessa destinação removeu-se já de sob nossos pés. Em um sermão que pregou, Barth citou um grupo de soldados japoneses destacados em uma ilha remota do Pacífico que, catorze anos depois de terminada a Segunda Guerra Mundial, ainda a atirava contra todos os que lhes aparecessem diante dos olhos, pois não tinham ouvido nada sobre o término da guerra. Que gente estranha aquela, lutando numa guerra terminada catorze anos antes! Mas isso não é tão estranho como o fato de que continuamos a viver como pecadores dois mil anos depois que Cristo anulou o poder do pecado.

Barth não aceita nem o pensamento expresso por Anselmo, de que a morte de Cristo teria sido uma satisfação dada por causa da ira divina, nem a idéia de que Cristo foi punido por nós. Esses pontos de vista parecem não bíblicos para ele, por implicarem a ocorrência de algo que teria concorrido para mudar a mente divina a propósito do homem. Tudo quanto se tem de pensar com relação à encarnação de Cristo é que Deus não quis abandonar o homem à sua própria sorte; o amor divino não consentia na permanência do pecado, pois o homem, mediante a prática do pecado, estava destruindo a si mesmo. Deus abriu um novo caminho diante do homem, para fazê-lo encontrar a paz. Cristo, mediante o perfeito arrependimento que experimentou, realizou o que o homem tinha de fazer. Ele se pôs a si mesmo sob juízo, para fazer com que o homem ficasse livre do juízo.

Como é que podemos alegar hoje que somos aqueles pelos quais Cristo agiu? Admitindo-se que o Filho chegou até o “país longínquo” e foi o juiz que se submeteu a julgamento por nós - que será que isso importa a nós no século vinte? A única resposta parece-nos ambígua, quando sugere que os atos de Cristo nos podem falar pelo fato de que ouvimos o relato de tais atos através da leitura da Bíblia e da pregação. Mas, será o caso de perguntar-se: Terá mesmo significado essa palavra que descreve os atos de Cristo quando a ouvimos como algo já de segunda mão? Barth observa que a teologia contemporânea tem se interessado pelo problema de como relacionar a fé com a História. Entretanto, será que a História, com suas dúvidas e ambigüidades, nos trará alguma ajuda?

Barth declara que nós nos capacitaremos para encontrar respostas a tais perguntas somente na medida em que atentarmos para a ressurreição de Cristo. Para os primeiros discípulos, a ressurreição de Cristo era como o veredicto de Deus concernente a Cristo. Ressuscitando a Cristo de entre os mortos, Deus deixava claro que tinha aceitado o arrependimento de Cristo em favor dos homens. Estar morto significa anular-se. A ressurreição de Cristo de entre os mortos exigiu de Deus o exercício do mesmo poder necessário para que o mundo surgisse do nada. Pela ressurreição que operou em Cristo, Deus fez uma promessa à sua criatura racional no sentido de jamais abandoná-la. Deus revelou daquela forma que Cristo havia de estar sempre com o homem; que aquele que veio até o “país longínquo”, para estar com seu povo, ainda se encontra presente.

A expiação não é como uma transação comercial entre Deus e Cristo e que pudesse acontecer, por exemplo, em Marte, tão convenientemente como aconteceu na face da terra. A expiação significa

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que o Senhor de tudo quanto existe veio ao encontro de seu povo no tempo e no espaço. Deus tem eternamente em sua própria constituição o Filho, que partiu para o “país longínquo”, sofreu as experiências que nos afligem, submeteu-se a julgamento pelos homens e, finalmente, morreu e ressuscitou ao terceiro dia. A ponte que liga nossa época e o primeiro século da Era Cristã não se confunde com os resultados das pesquisas dos historiadores; a ponte é a própria pessoa do Senhor Jesus, que vive para sempre. A cruz de Cristo e sua ressurreição fizeram com que a Igreja surgisse. O membro da Igreja é uma pessoa que sabe que a condição humana mudou desde a vinda de Cristo ao mundo. A Igreja não pode deixar de ser missionária; ela tem de contar a todos o que aconteceu; ela tem o dever de anunciar aos soldados que ainda se encontram em esconderijos atrás de árvores que a guerra chegou ao fim. Não é que a proclamação feita pela Igreja cause mudanças, a situação de todos os homens neste mundo veio a mudar por efeito da morte e da ressurreição de Cristo. Já foi assinado o tratado de paz.

O cético, entretanto, insiste em perguntar: “O que é mesmo que foi mudado?” Não é evidente que o mundo continua com guerras e com rumores de guerra? Não se vê que os homens continuam sofrendo injustiças da parte de outros homens? O Novo Testamento, Barth nos lembrar, contém previsões de tudo isso. A resposta a tais perguntas não será, como pensam alguns, afirmar que Cristo foi para o céu, mas há de voltar logo para promover o estabelecimento de seu Reino perfeito. Os homens referidos no Novo Testamento não estavam felizes pelo fato de esperarem para logo a volta de Cristo sobre as nuvens dos céus. Pelo contrário, eles se mantinham na expectativa da segunda vinda de Cristo porque experimentavam como fato glorioso e real a presença do Senhor com eles. Depois dos vários aparecimentos durante os quarenta dias que se seguiram à ressurreição, eles continuaram vendo a presença de Cristo com eles mediante a atuação do Espírito Santo. Com freqüência se ouve esta pergunta: Qual é a novidade do cristianismo? Nem sua ética nem sua teologia podem ser consideradas como exclusivas. Segundo o entende Barth, a exclusividade do cristianismo é o próprio Cristo. Ser cristão nada mais é do que ser um novo homem por estar convencido da realidade da crucificação e ressurreição do Salvador. O fundamento sobre o qual se apóia todo o esforço missionário e da pregação do evangelho que se vem realizando no mundo encontra-se na pessoa de Jesus Cristo.

A ressurreição de Cristo, conhecida como realidade nos dias atuais mediante a atuação do Espírito Santo, expressa o veredicto de Deus. Se Cristo não tivesse ressuscitado, não poderíamos dizer aos homens que a situação humana diante de Deus mudou. Na melhor das hipóteses, diríamos que a situação poderia mudar, caso pudessem imitar a Jesus, mas isso lhes seria, de fato, uma má notícia, pois quem estaria em condições de aceitar o desafio? O veredicto divino nos assegura que aquilo que nós não podíamos fazer por nós mesmos Deus o fez por nós. Somos julgados e perdoados; somos renovados mediante o poder do Espírito Santo. O otimismo de Barth a propósito do que Deus pode fazer para transformar-nos em novas criaturas baseia-se na nova situação que Deus determinou que surgisse.

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Quando o Filho partiu para o “país longínquo”, fez isso em espírito de obediência para com o Pai. Semelhantemente, o cristão deve sentir-se chamado a uma vida de obediência, e Barth, então, mostra-se muito preocupado com esta pergunta de natureza ética - como será que o cristão deve demonstrar que mantém vida de obediência para com Deus? A convicção de Barth é que o cristão tem de procurar servir a Deus com tudo quanto faça parte da vida. Ele deve interessar-se pelos problemas de natureza política e social, tanto quanto se interessa pelos problemas individuais. Uma das razões pelas quais Barth repudiou a teologia liberal, sob cuja influência ele obteve sua formação, foi o comportamento adotado por seus professores durante a Primeira Guerra Mundial. Ele ficou aturdido em face de professores aos quais admirava e que manifestavam apoio espiritual irrestrito para com a causa que a Alemanha estava defendendo. Para Barth, o fato demonstrava que aqueles teólogos, na preocupação de conformar-se com o mundo moderno, até perderam a consciência do juízo divino sobre este mundo.

Barth expressa total repugnância a qualquer ética que procure se traduzir em termos de regras e preceitos. Através da Bíblia, vê-se como Deus promulga mandamentos para a observância de homens situados em um dado tempo e espaço. Em Cristo, encontramos o modelo próprio para nosso espírito de obediência, sendo nosso dever nos mantermos como discípulos de Cristo dentro de cada situação com suas características peculiares e suas necessidades. Em certo sentido, pode-se alegar que isso deixará o cristão sem qualquer orientação, uma vez que ele não vai poder contar com normas inflexíveis que lhe assegurem uma conduta coerente. Por outro lado, porém, sabe-se que Cristo é uma pessoa real e a lealdade que se deve devotar a seu Espírito não deixará o cristão destituído de orientação precisa em sua maneira de conduzir-se.

Por que é que devemos obediência a Deus? Os não-cristãos não cansam de nos acusar de obedecemos a Deus por pensarmos que ele é semelhante a um policial todo-poderoso e cósmico. Barth rejeita essa maneira de considerar o fato. Seria algo inteiramente degradante para o ser humano obedecer a Deus somente por reconhecer-se que Deus é poderoso para fulminar o homem, caso não lhe preste obediência. Não melhorará muito dizer que, mediante a obediência que presta a Deus, o homem consegue a realização de sua própria natureza. Essa é uma verdade, mas resulta em procurar estimular o espírito de obediência por motivos egoístas. Conforme o entende Barth, a razão fundamental pela qual se deve obediência a Deus é que é esse espírito que melhor corresponde ao amor com que Deus se deu a nós em Cristo. Mediante a obediência cristã autêntica, o homem se torna verdadeiramente livre. Fazer a vontade de alguém que nos ama e a quem também amamos, é um motivo perene de alegria espiritual. O cristão não presta obediência a Deus por motivos de medo nem de fraqueza; sua obediência para com Deus provém de uma exuberância de alegria e força espiritual. Aquele que presta obediência sem exuberância de alegria espiritual será, num sentido muito profundo, um desobediente. Ele é semelhante àquele indivíduo de uma das parábolas de Jesus que aceita estar presente ao banquete só porque foi convidado, mas deixa de trajar-se de acordo com o

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ambiente das bodas, com o objetivo de deixar transparecer a alegria de que está possuído.

O cristão não deve surpreender-se por encontrar aqueles que não têm seus nomes incluídos entre os que se dizem cristãos, agindo de conformidade com o espírito de Cristo. Não é incomum que tais pessoas causem constrangimentos a certos cristãos. Quando isso acontece, o cristão não deve ficar se defendendo, alegando falsas razões pelas quais não tem conseguido que sua conduta seja melhor. Pelo contrário, aí está um exemplo do ponto de vista adotado por Barth de que, efetivamente, a situação de todos os homens mudou desde a expiação efetuada por Cristo. Como resultado dessa observação, o cristão deve sentir-se impulsionado a dar graças a Deus, vendo como o espírito de Cristo opera mesmo naqueles que não confessam o nome de Cristo.

O discipulado cristão convence-nos à adoção de um relacionamento diferente com as coisas neste mundo - com a família, o emprego da força, o dinheiro e coisas semelhantes. Cada uma dessas coisas pode tornar-se um ídolo para nós. O perigo que é a tentação de nos tornarmos demasiado apegados às coisas deste mundo não deve, entretanto, ser nenhuma razão para que os cristãos nada queiram com tais coisas. Essa conclusão seria muito falsa, porque, em primeiro lugar, ela implicaria em falta de fé no poder que Deus tem de tornar alguém imune ao pecado quando está exposto ao mundo. Em segundo lugar, seria uma conclusão errada, pelo fato de que o cristão nunca deve sentir-se chamado a salvar sua própria alma. A vocação do crente é no sentido de que ele procure servir ao mundo, coisa que não conseguirá fazer fugindo do mundo.

O cristão terá de fazer uso das coisas neste mundo de modo diferente do que acontece no mundo, o que, não raro, até pode acarretar mal-estar no mundo. Entretanto, isso não é motivo para se entender que o cristão tenha de agir sempre com antagonismo para com o mundo; por exemplo, quando Daniel estava na cova dos leões, não pensou que devesse pisar na cauda deles. Além disso, é claro que o cristão não tem necessariamente de sentir-se obrigado a lutar contra o mundo, pois a verdade é que este mundo já tem motivo demais de perturbação para que os cristãos lhe queiram introduzir mais perplexidades. O cristão que deseja se conservar fiel a seu Senhor bem sabe que tem de enfrentar perseguições e incompreensões no mundo. O cristão deve ter em mente que, conforme o título de um dos livros de Barth, será inevitável que ele nade “contra a corrente”.

O discipulado cristão incentiva o crente a servir ao Estado. Seria mera hipocrisia uma oração no sentido de que o Estado se torne justo, por exemplo, sem que o indivíduo que ora assim a Deus procure fazer tudo para torná-lo justo. Além disso, como foi o caso de Barth sob a vigência do nazismo, o cristão poderá sentir-se na obrigação de opor-se ao Estado. Nesse caso, entretanto, o cristão estará agindo em favor do Estado, e não contra o Estado. O cristão estará, em situações assim, levantando objeções contra as falhas do Estado, procurando colaborar para que se torne um Estado verdadeiro. O Estado considerado como instituição existe pela graça divina e visa ser um fator de bênção para a vida humana. O Estado não existe para ser cultuado; o poder que ele tem em si é limitado pela vontade divina. Mesmo que não se deva identificar o

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cristianismo com nenhuma democracia e mesmo que se reconheça que os homens podem se comportar como cristãos sob qualquer forma de governo, Barth é de opinião, que os cristãos devem normalmente colaborar para o estabelecimento de alguma forma de governo democrático, pois esta é sempre a maneira mais apropriada para conseguir que o Estado seja útil para o ser humano.

No mundo do pós-guerra, Barth continuou expressando idéias políticas que estão em desacordo com as tendências gerais contemporâneas. Por exemplo, em 1948 Brunner escreveu uma carta, criticando-o por não se opor ao comunismo, como fizera relativamente ao nazismo. Barth respondeu-lhe, chamando a atenção para o fato de que a Igreja, na obediência que devota a Cristo, deve falar tendo em vista situações concretas e não em termos de princípios gerais. A ação desempenhada em tempos passados não deve repetir-se como a música de um gramofone; à Igreja cabe o dever de procurar a vontade divina para o tempo presente. Barth entendia que a situação em 1948 era diferente da situação reinante em 1933. Em 1933, Hitler era uma tentação efetiva para o mundo Ocidental. Os louvores que eram ouvidos em seu favor partiam de todos os lados; até mesmo Winston Churchill lhe dedicou alguma apreciação. Certo número de alemães de influência tinha organizado o Movimento Cristão da Alemanha com o objetivo de promover uma compatibilização do cristianismo com o nazismo, e tinha conseguido, de fato, infiltrar-se na estrutura da Igreja. Já em 1948, Barth entendia que a situação nada tinha de semelhança com a anterior. Por onde quer que tivesse viajado em todo o mundo Ocidental, tinha visto que, com exceção de um número muito desprezível de comunistas, era inegável a oposição que essa ideologia vinha sofrendo em toda parte. Cada pessoa individualmente se sentia livre para opor-se ao comunismo, e, com efeito, assim se manifestava. Então, por que haveria a Igreja de sentir-se com a responsabilidade de dizer precisamente o que todos os cidadãos podiam ler nos órgãos de imprensa? Enquanto isso, não se deveria reconhecer que, no Ocidente, o problema real consistia, então, em que as pessoas em geral se inclinavam para uma atitude destituída de crítica na consideração da maneira de vida que se tornara habitual? Não seria o caso de reconhecer-se o perigo a que a Igreja estava exposta de fazer da luta anticomunista um princípio absoluto?

Karl Barth conseguiu deixar às gerações futuras uma preciosa herança no campo da teologia. Por muitos anos ainda sua Dogmática proporcionará inspiração para novas investigações teológicas. Ele tem conquistado aplausos dos teólogos católicos romanos e sua obra tem contribuído muito para as discussões ecumênicas contemporâneas entre protestantes e católicos. Sua tentativa séria, visando construir uma teologia em torno do ato de Deus em Cristo e também sua expressão jubilosa da fé cristã, atrairão adeptos ao longo de muitos anos. Talvez os que entendem que a teologia tenha entrado em fase pós-barthiana compreendam que esse juízo é prematuro. Neste continente, o que se tem verificado é que Barth tem sido consistentemente incompreendido (essa incompreensão constava da primeira edição deste livro). A história futura poderá concluir que, pelo menos neste continente, a teologia que se professou durante a década de sessenta era ainda pré-barthiana.

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Neo-Ortodoxia Americana: Reinhold Niebuhr

Não pode haver nenhuma dúvida quanto à evidência de ser Reinhold Niebuhr o teólogo americano mais importante hoje. Isso é admitido tanto pelos que discordam dele como pelos que o seguem. Não há nenhum teólogo que tenha causado maior impacto sobre o público do que o fez Niebuhr. Seus livros são lidos avidamente, mesmo por pessoas que normalmente não “morrem de amores” por leituras relacionadas com teologia.

Niebuhr, professor do Union Theological Seminary, agiu como figura proeminente em um número enorme de outros empreendimentos. Foi líder do movimento ecumênico dentro do protestantismo. Concorreu em diversas ocasiões a postos oficiais, sob a legenda socialista e, depois, chegou aos escalões de cúpula do Partido Liberal em Nova York. Por ter sido um dos primeiros políticos liberais a perceberem a natureza e o perigo do comunismo, tornou-se um dos pais fundadores de entre os americanos da “Ação Democrática”. Poucos são os cristãos que deram tanto tempo e ajuda à causa sionista como Niebuhr. De maneira incompreensível, ele encontrou tempo para escrever numerosos livros, editar dois jornais de cunho religioso e fazer parte do corpo editorial de algumas revistas seculares. Seus artigos apareceram em inúmeras publicações religiosas e seculares.

Caso queiramos entender mesmo a teologia de Niebuhr, temos de levar em consideração que não se trata de algo elaborado em ambiente tranqüilo nem acadêmico. É teologia produzida na sua vida turbulenta e nos enormes esforços que fez de aplicar o cristianismo às esferas sociais, econômicas e políticas da vida. O pensamento característico de Niebuhr sempre parte do que é humano, material e social. Ele não se voltou para a ortodoxia simplesmente pelo fato de ser ortodoxia, nem por virtude de ela estar associada com alguma espécie de autoridade dogmática. Ele aceitou seus postulados por encontrar neles as mais adequadas respostas aos problemas da vida em sociedade.

Niebuhr formou-se num dos seminários existentes no pais em 1915 quando sustentava as teses da teologia liberal. Ele acreditava na bondade de Deus e do homem, afirmava a importância de fazer tudo pela aplicação do Sermão do Monte ao todo da existência e tinha a esperança otimista de que o Reino de Deus haveria de se instalar sobre a terra dentro de um futuro relativamente próximo. Caso tivesse se tornado pastor de uma das igrejas da classe média nos subúrbios das grandes cidades, talvez ele nunca tivesse se tornado um teólogo de renome. Entretanto, ele foi, entretanto, para uma igreja em Detroit, constituída de crentes pertencentes a classes trabalhadoras, onde pôde contemplar bem ao vivo os problemas com que os trabalhadores se debatiam, inteirando-se das táticas empregadas para a supressão das organizações que promoviam a união dos trabalhadores e do trágico dispêndio de valores humanos que a

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América estava fazendo para conseguir sua industrialização acelerada. Ele começou, então, a ter dúvidas de que os problemas da época pudessem ser resolvidos de modo simples, como a teologia que tinha abraçado lhe fazia crer.

Com o passar do tempo, os fatos grosseiros da existência forçaram Niebuhr a entender que a ortodoxia cristã seria mais realista e mais respeitável intelectualmente do que a teologia liberal. Efetivamente, Niebuhr deseja que consideremos sua teologia como simples redescoberta da sabedoria da ortodoxia cristã, que se encontrava tão ofuscada. Isso não significa dizer que ele se tivesse voltado para o fundamentalismo. O emprego que ele faz do termo “mito” torna bem claro que isso não aconteceu.

As relações do homem para com Deus, isto é, do finito para com o infinito, não serão jamais expressas em termos racionais e lógicos, entende Niebuhr. Podem sê-lo somente mediante a adoção de mitos, tais como os do relato da criação e da queda presentes no livro de Gênesis. Em religião, como cremos, tratamos com mistérios e experiências tão profundos da existência que resistem a todos os esforços que façamos no sentido de conseguir descrevê-los de modo nítido. Niebuhr compara a teologia com o que fazem os pintores, que, tendo de trabalhar sobre superfície plana, precisam dar a ilusão de perspectiva, como se houvesse uma outra dimensão, isto é, profundidade. Trata-se de uma forma de ilusionismo, mas um expediente legítimo para que nos retrate a verdade a ser contemplada. Semelhantemente, o teólogo sente necessidade de oferecer-nos uma descrição da divindade e dos processos pelos quais opera, mediante maneiras de dizer características do mundo existente no espaço e no tempo. Entretanto, sabe-se que Deus transcende ao mundo de modo que nenhuma das expressões que usemos para descrevê-lo corresponderá à realidade divina. Por outro lado, a divindade não é só transcendente, ela é também imanente e ativa no universo, e isso faz com que nos seja possível dizer algo a propósito de Deus. Uma vez que nossa lógica temporal pode expressar-se, porém não de modo adequado a respeito de Deus, tem-se o direito de, assim como o pintor faz, lançar mão de símbolos que dêem impressão da existência de outra dimensão da realidade. A teologia, em conseqüência, vem a ser uma tentativa de expressar as dimensões da profundidade própria da existência. Niebuhr emprega o termo “mito” para dar-nos idéia do que se passa com o pensamento que a teologia sistematiza. O termo é, talvez, menos feliz, pois sabe- se que está associado aos contos de fada. Entretanto, Niebuhr o emprega com a significação de que, embora não expresse a verdade com exatidão científica, possibilita tratar-se de verdades que não possam exprimir-se adequadamente por nenhuma outra maneira. Será, então, algo que pode ser considerado como ilusório, mas verdadeiro, exatamente como acontece com o ilusionismo da profundidade no caso dos artistas.

O fundamentalismo toma o mito como literalmente verdadeiro e, por isso, entra em conflito com a ciência, por exemplo, a propósito da evolução. O caso, porém, é que uma interpretação literalista das Escrituras Sagradas não resulta só em ciência absurda, mas também em religião falsa. Resulta em simplificar-se demais a relação de Deus com o universo. O liberalismo, por outro lado, passou a considerar os mitos tão-

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somente como expressões de vulgaridade, como se não passassem de especulações pré-científicas. Niebuhr, entretanto, insiste em que devemos tomar os mitos com seriedade, mas não entendê-los como literalmente verdadeiros. Ao serem assim interpretados, os mitos passam a revelar-nos uma intuição admirável no sentido do relacionamento existente entre Deus e o homem. Por exemplo, o relato concernente a Adão e Eva não nos descreve como teria sido efetivamente o primeiro homem e a primeira mulher, pois é uma representação intelectual da situação pertinente a todo homem e toda mulher.

Niebuhr encontra na história do cristianismo duas atitudes para com a razão. Uma delas entende ser o cristianismo inteiramente irracional, isto é, o situa acima da inacessível à razão. Ele não pode ser demonstrado nem ser objeto de investigações através do exercício da razão; qualquer teologia natural deve ser considerada como coisa idolátrica e as tentativas de provar a veracidade da revelação não passam de atitude presunçosa. Niebuhr afirma que tanto Kierkegaard como Barth merecem essa crítica. Entende o teólogo americano que essa é uma atitude perigosa, por concorrer para que se anule a significado do evangelho. Considerando-se a revelação como nada tendo com o que conhecemos através da razão, como nos será possível, então, entendê-la? Além disso, essa maneira de entender resultaria em incapacitar-nos para estabelecermos qualquer critério de discernimento entre uma revelação verdadeira e outra falsa. A rendição apaixonada proposta por Kierkegaard com relação a Deus é atitude salutar, considerada como antídoto contra a adoção de uma fé inconseqüente, mas, rejeitando-se a ajuda da razão, tal rendição apaixonada nada nos teria a dizer em face dos nazistas, que também se rendem apaixonadamente a Hitler.

Lado a lado com os cristãos anti-racionalistas encontraram-se sempre os cristãos racionalistas, diz-nos Niebuhr, desde Orígenes e Tomás de Aquino até os partidários do liberalismo hodierno. Consoante os postulados dessa escola racionalista, é impossível que a fé e a razão se contradigam entre si. A fé tem de ser racional. O erro da escola reside, entende Niebuhr, no fato de que ela estabelece prematuramente algum princípio de racionalidade ao qual se deverá conformar toda a existência. Essa escola procura interpretar toda a realidade em termos de natureza e raciocínio ou em termos do que seja natural e sobrenatural. Entende que lhe seja possível determinar precisamente onde termina a razão e onde começam os domínios reservados à fé. Em resumo, o liberalismo pretende saber demais. Como Niebuhr costumava dizer, essa atitude implica numa alegação de saber qual seria “a geografia do céu e do inferno, tanto quanto os móveis de um e a temperatura do outro”. Acontece, porém, que a vida é cheia de contradições e de mistérios. Sentimos que deve haver algum sentido no todo que nos cerca, algum sistema, não há dúvida, mas, caso insistamos em encontrar muito rápido o sentido e o sistema em questão, terminaremos por deixar de fazer justiça à consideração de todos os fatos. Niebuhr está persuadido de que a maioria dos sistemas racionais propostos se mostram tímidos demais no tratamento dos paradoxos e das contradições da existência e, por isso, tentam forçar a realidade a situar-se nos limites de suas teorias. Preferem ignorar ou negar alguns aspectos da realidade da existência para que possam

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manter os sistemas arquitetados como se fossem coerentes e, de fato, racionais. Isso é particularmente verdadeiro quando vemos que insistem em ajustar o ser humano às peculiaridades dos sistemas criados, pois o que se sabe é que o ser humano permanece sempre como criatura paradoxal e contraditória. Qualquer que seja a explanação racional que dele se pretenda fazer será uma super-simplificação.

Niebuhr deve ser considerado como tendo procurado fazer aplicação da virtude cristã da humildade à faculdade do pensa-mento. A humildade cristã nunca implica em servilismo abjeto; é virtude que conduz os indivíduos ao reconhecimento de que não são grande coisa. A humildade resulta em que a pessoa se considera a si mesma com honestidade e reconhece as próprias limitações. Niebuhr se esforça para que a razão se submeta a esse postulado. Não entende ele que a razão nada possa conhecer quanto ao significado último da existência humana, como é a atitude de Barth e agnósticos em geral. Entretanto, não lhe ocorre afirmar jamais que a razão possa conhecer todas as coisas.

Niebuhr lança novas bases para que se faça a apologia do cristianismo. Em primeiro lugar, ele nos incentiva a fazer uma distinção radical entre o que seja mundo natural e mundo da história humana. Justifica-se a distinção em vista da exclusividade do caráter da liberdade humana. Os acontecimentos não ocorrem na vida do homem com a mesma fatalidade com que na natureza. As ciências sociais não podem, pela natureza mesma das coisas, fazer predições com a mesma exatidão que é possível nos domínios reservados às ciências físicas.

Os acontecimentos da história apresentam-se ao crente como fatos espontâneos; não podem ser antecipados por efeito do emprego de nenhuma teoria racional. Entre os acontecimentos da história encontram-se os que nos revelam o próprio Deus. Dispomos de uma analogia para o que se passa com a revelação nas relações que mantemos com outras pessoas. Temos evidências de que há, no outro, certa profundeza de realidade que é muitíssimo superior ao que se delimita no organismo físico. Temos evidência de que há diante de nós um “tu” e não mera coisa. Nunca chegaríamos ao conhecimento do “tu”, caso lhe contemplássemos só o comportamento, pois bem sabemos que a essência real da individualidade permanece uma incógnita. Só conhecemos uma outra pessoa quando ela nos fala deixando transparecer o que esteja se passando no íntimo de seu ser. A palavra com que a pessoa se dirige a nós constitui-se, de imediato, em evidência de que estamos tratando com uma dimensão bem diferente, absolutamente estranha às dimensões próprias da existência física como tal; isso é para nós uma revelação do exato caráter da pessoa com que temos contato. O mesmo é verdade com relação a Deus. Deparamos, por toda parte, com indícios de que o mundo em que vivemos implica em algo que lhe seja superior, de que este universo não dá explicações satisfatórias de si mesmo, de que há sob tudo quanto vemos uma tal profundidade de existência que jamais é percebida pelo conhecimento sensitivo. Tal intuição, entretanto, não resultaria nunca em apropriarmo-nos do conhecimento dessa dimensão da realidade sem que ela nos falasse e se nos revelasse. O cristianismo tem sua base na convicção de que Deus nos tem falado através da Bíblia e através da pessoa de Jesus de modo particular.

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A fé relativa à revelação de Deus não pode ser demonstrada. Para retomarmos a analogia de Niebuhr, podemos ressaltar que também não podemos demonstrar que o caráter que outra pessoa nos revela mediante palavras que nos dirige seja verdadeiro. Com relação a todas as experiências associadas a amor e amizade, vemo-nos forçados a aceitar como verdadeiras as palavras que outros nos dirigem. Semelhantemente, temos de aceitar a revelação que Deus nos faz de si mesmo com sentimento de amor, confiança inabalável e profunda convicção. Entretanto, isso não nos deixa desassistidos, como o sugeria Barth. Niebuhr pensa que as intuições proporcionadas através da revelação possam ser úteis à razão para o esforço de compreender o sentido dos aspectos contraditórios da realidade. A razão não pode, por si só, fazer demonstrações quanto ã veracidade da revelação, mas, uma vez suposta a veracidade da revelação, a razão pode, então, demonstrar sua capacidade de oferecer-nos mais adequada representação da realidade do que qualquer outra alternativa seria capaz de fazê-lo. Niebuhr, portanto, opta pela aceitação da revelação de Deus aos homens pelo fato de estar convicto de que a hipótese da revelação registrada na Bíblia é mais adequada para dar explicações e para promover a redenção da vida humana.

São dois os métodos pelos quais Niebuhr procura tornar mais claro seu ponto de vista. Por um lado, ele lança seu ataque contra as hipóteses alternativas, por exemplo, contra o humanismo, para deixar patente que não conseguem fazer justiça ao que se depreende do todo da existência. Entende que as aludidas alternativas omitem demais. Por outro lado, ele acha que a hipótese cristã faz justiça ao todo da existência. A deficiência manifesta das filosofias modernas na interpretação e compreensão devida dos fatos perturbadores característicos do século vinte tem contribuído para tornar o cristianismo relevante. Deve ser notado que a deficiência das filosofias modernas não significa que o cristianismo seja verdadeiro; temos de continuar vivendo pela fé. Entretanto, tão manifesta deficiência dos esforços da razão persuade-nos muito de que é razoável fazer-se prova dos postulados da fé cristã.

O ponto de maior destaque na teologia de Niebuhr é a afir-mação do pecado original. Não é que a afirmação da doutrina signifique que o homem herde a culpa de Adão; significa, sim, que o homem cai natural e inevitavelmente no pecado, que é o reclamar para si mesmo e para os interesses que tem mais do que a importância objetiva pertinente o autorizaria.

O pecado provém do fato de que o homem é criatura finita, portador de natureza animal, embora seja capaz de exercer espiritualidade. Isso quer dizer: o homem dispõe da faculdade do raciocínio, tem esperanças, sonha, tem noções de moralidade e, sobre tudo, é capaz de, por assim dizer, situar-se fora de si mesmo, de modo a poder julgar o seu caráter. Os aspectos finitos da personalidade humana lhe ameaçam a natureza espiritual. O significado da vida se vê ameaçado pela dependência em que o homem se encontra, pela natureza animal que traz consigo e pela morte física inevitável que o espera. O homem anseia obter conhecimento perfeito, liberdade real, comportamento virtuoso e elevada noção de justiça, mas o que lhe é dado que alcance fica sempre muito aquém do

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que ele pretende. Por ser de natureza espiritual, o homem não pode prescindir de um significado para a existência, isto é, uma razão para sua presença no universo. Pelo fato de reconhecer-se finito, sente que todo significado que lhe ocorre para a existência se expõe a ameaças. Tal duplicidade de situações lhe traz ansiedade. Para que seja possível triunfar sobre a ansiedade que o aflige, o homem procura algum abrigo que lhe pareça suficientemente protetor contra as vicissitudes da vida. Pode acontecer que o homem escolha submergir-se na sensualidade de sua natureza animal e, dessa forma, cessar sua luta por atender às exigências dos ideais, mas, mais comumente, ele prefere adquirir certa confirmação de si mesmo através do orgulho, aproveitando-se da boa-fé que outros lhe revelem. O homem se recusa a reconhecer suas limitações e, não raro, reclama para si aquilo que pertence só à divindade. O pecado humano, portanto, vem da mesma fonte responsável por sua criatividade e sua nobreza. Não é diminuir a dignidade humana reconhecer que o homem é pecador, uma vez que pecado é experiência exclusiva de criaturas que, em parte, disponham de recursos que lhes permitam ultrapassar o nível da existência animal.

O orgulho se manifesta de três formas, cada uma das quais é uma tentativa abortada, visando encontrar tranqüilidade e significado para a vida apesar das situações de insegurança ansiosa. Primeiro, existe o orgulho acarretado pelo exercício do poder. O poder dá impressão exaltada ao homem e o faz sentir-se em segurança. Por um momento, o poder o leva a pensar que está acima das contingências tão próprias das camadas mais baixas da sociedade humana. A sede desmedida do poder conduz o homem a empregar levianamente o domínio sobre os semelhantes através do totalitarismo, da discriminação racial, do imperialismo e assim por diante. Em segundo lugar, é comum o orgulho acarretado pela presunção do saber. O homem ousa alegar que tem em sua posse a inteira verdade e que não busca outra coisa que não a verdade. Pelo fato de que qualquer aceitação realista da relatividade do conhecimento que possui lhe dá a sensação de que a vida mesma está ameaçada, o homem passa a defender de modo fanático o sistema de verdade que produziu. Ele, de fato, oculta a ansiedade que o agita mediante arrojos de presunção a respeito de um conhecimento que ele desejaria muito possuir, mas nunca se concretiza. Em terceiro lugar, deve-se considerar a existência do orgulho moral. Classicamente, o orgulho moral é retratado na atitude do fariseu, que ostenta sua bondade e religiosidade como meio para exaltar-se sobre os semelhantes. Ele agradece a Deus por não ser como os outros. E uma atitude muito comum, presente nos destemperos da intolerância religiosa, da perseguição e da falta de simpatia com relação aos “pecadores” por parte dos mais virtuosos.

Normalmente, no mundo de nossos dias, os indivíduos procuram dar expressão ao orgulho que os possui mediante uma identificação com certos grupos sociais como nações, classes, igrejas ou raças. Pensa-se encontrar segurança por identificar-se com os privilégios, o nível de conhecimento ou a notória virtude do grupo a que se esteja associado. Essa é uma das razões por que se deve reconhecer que a religião não é necessariamente boa. A religião não passa de uma arena última onde se

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travam as lutas entre a consciência de Deus e a vigência do orgulho humano. A religião poderá conduzir a consciência à humildade verdadeira diante de Deus ou poderá atuar de modo a levar o vaidoso a dar graças a Deus por lhe ter proporcionado a contemplação da luz celestial, ao passo que outros, menos evoluídos, não contando com os mesmos privilégios, rastejam nas trevas.

O problema fundamental relacionado com a situação moral do homem moderno, aos olhos de Niebuhr, consiste na “consciência fácil” que ostenta. O orgulho o empolga, levando- o a reclamar o reconhecimento para si de uma perfeição que ele não tem em hipótese alguma. Essa impressão de justiça própria o torna cego para as evidências de justiça e verdade que podem estar presentes nos que se situam na oposição. O homem tem o costume de racionalizar as ações que pratica, de modo a dar-lhes aparência, a outros e a si mesmo, de que sejam mais justas, mais éticas e mais de acordo com os ideais do que, na verdade, são. Em conseqüência disso, os piores males não decorrem do egoísmo requintado; os piores males se originam dos interesses disfarçados de nobres ideais. Até mesmo os bons atos humanos são anulados pela presença de sentimentos de orgulho.

Uma estudante de cor me disse, há algum tempo, que ela não iria assistir às reuniões da Sociedade Promotora de Boas Relações entre as Raças (Race Relations Society) pelo fato de que ela não suportava expor-se a ser usada pelos membros da referida entidade como prova de que eles fossem mais corretos na atitude que cultivavam com outras raças do que os demais. Qualquer membro de um grupo de minoria confirmará que prefere lidar com os fanáticos que o odeiam, a lidar com pessoas que saem interesseiramente de seu próprio meio, para fazer adulações, sob alegação de bondade superior que possuam. Isso exemplifica o ponto de vista de Niebuhr de que as boas ações deixam de ter características virtuosas sempre que decorram do orgulho. Também o teólogo encontra bom acervo de exemplos do ponto analisado nas relações internacionais, onde a presunção de justiça própria da coletividade torna impossível estabelecer relações harmoniosas com outras coletividades igualmente presunçosas.

A única cura disponível para que se anulem tais efeitos do pecado humano reside no reconhecimento da legitimidade da doutrina cristã da salvação pela graça. O pecado humano não provém da natureza animal do homem nem de seus desejos físicos. O pecado surge das tentativas humanas de livrar-se das ansiedades que agitam a alma. Enquanto o homem insiste em pensar que é capaz de vencer suas ansiedades de modo a construir a própria segurança não lhe será possível evitar o orgulho. Ele deve manter-se realista na aceitação de sua intranqüilidade e ficar sabendo que ela só será removida por intervenção da divindade. A ansiedade humana conduz à prática do pecado sempre que a fé em Deus não proporcione o triunfo sobre todas as solicitudes. Os reformadores tinham razão: o pecado, basicamente considerado, não consiste em nada que o homem faz, mas sim, na alienação da divindade que a ação humana pode pressupor. Mediante o exercício da fé em Deus o homem consegue triunfar sobre suas ansiedades. Esse fato protege-nos contra o orgulho por duas razões. Primeiro, o salvo percebe que é Deus e não sua própria

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pessoa que funciona como base sobre a qual se sustenta sua tranqüilidade espiritual. Segundo, o mesmo salvo, consciente das imperfeições de seu caráter, passa a entender que suas relações com Deus resultam do perdão outorgado pela divindade e não de qualquer justiça que possa ter. Ele não pensaria em desdenhar os irmãos “cheios de pecado”, pois bem sabe ser tão pecador como eles. A pregação tradicional protestante tem consistido em ressaltar que o homem jamais poderá chegar ao céu, a menos que se assegure da salvação de graça consumada pelo Filho de Deus. Niebuhr ressalta que não será possível nenhuma solução para os problemas sociais sem que os indivíduos alcancem a mesma salvação.

O teólogo não admite que ninguém, mesmo o cristão, possa sobrepor-se e libertar-se do orgulho. O orgulho se mantém sempre de tocaia, conseguindo levar o cristão a cair na armadilha da forma pior de pecado - o orgulho de se ter a si mesmo como pessoa virtuosa. O cristão, entretanto, conta com a vantagem de dispor de um meio pelo qual o orgulho poderá ser anulado e ao qual ele pode recorrer incessantemente através da experiência do arrependimento.

À luz disso, Niebuhr critica tanto os secularistas como também os teólogos, que se põem a condenar-se reciprocamente, entendendo que os respectivos partidários sejam mais corretos do que os partidários de outras convicções. Tanto é estupidez que os cristãos se tenham como melhores do que outros, por causa das excelências da fé que têm, como é estupidez os secularistas se exibirem como não tendo nada a ver com fé nenhuma. Os cristãos bem sabem que há manchas terríveis em sua história e não desconhecem que não são poucas as preciosas verdades que têm enriquecido o patrimônio da cultura humana surgidas do secularismo. A Igreja deve assimilar as verdades trazidas pelo secularismo; ela não deve desconsiderar o fato de que muitos dos valores associados à cultura atual representam excelentes contribuições seculares. O cristão está convencido de que sua religião contém a verdade última não acessível à filosofia que caracteriza o secularismo, mas ele não tem o direito de entender, por causa dessa realidade, que seja necessariamente mais correto e mais sábio, nem que deva ser mais poderoso do que os demais. A mais triste heresia associada à Igreja, quer católica quer protestante, é a sua presunção de identificar-se com Deus de modo a entender que qualquer oposição que se faça a ela é oposição feita contra os caminhos divinos. Sempre que a Igreja adquiriu comportamento tão presumido, não pôde evitar ser atacada por uma força secular qualquer, que se torna portadora do juízo divino sobre a Igreja, que, no caso, terá esquecido a natureza que lhe é própria.

E fato conhecido que Niebuhr dedicou considerável parte de sua energia ao combate em favor do estabelecimento de uma ordem social mais cristã. Não obstante, muitos estudiosos tem insistido que, em sua teologia, não se encontra base para a adoção de tal comportamento. Sua teologia, diz-se, poderia levar os indivíduos ao desespero e à passividade. A incompreensão deve-se, em parte, à falta de cuidado na leitura de Niebuhr e, em parte, como sugere D. R. Davies, ao fato de que muitos não conseguem compreender as profundezas da vida.

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Niebuhr costumava recontar diante dos alunos uma história que, sem dúvida, reflete a experiência de algo que teria exercido considerável efeito em seu pensamento e, portanto, ilustra bem a posição em que se situa. Quando realizou seu ministério pastoral em Detroit, enquanto ainda era partidário da teologia liberal, um dia ele estava à frente de uma classe de Escola Bíblica Dominical, ensinando uma lição baseada no Sermão do Monte. Tendo, então, feito eloqüente exposição do mandamento de voltar a outra face a quem ferir uma delas, surpreendeu-se o teólogo com o desafio que lhe foi dirigido por um dos alunos. O aluno tinha conseguido sustentar a mãe viúva e outros dependentes vendendo jornais. Todos os dias, disse o garoto, acontecia uma luta entre os vendedores de jornais na disputa da melhor esquina para o seu ganha-pão. Ele deveria, como cristão, voltar a outra face para outro vendedor de jornais, aceitando a redução dos ganhos obtidos na esquina onde costumava ficar, e, em conseqüência, aumentando pobreza em casa? Niebuhr sentiu-se pego de surpresa, reconhecendo que a teologia que ensinava não dispunha de respostas para uma situação semelhante.

A historieta assim narrada indica o significado da convicção de Niebuhr de que a sociedade nunca nos propõe alternativas sem complexidades. A tragédia da vida social consiste em que se é obrigado a escolher o menor mal e nunca algum bem absoluto que se encontre em alguma situação diante dos indivíduos. Aquele que insiste em seguir literalmente algum sistema de absolutos morais ficará surpreendido ao perceber que não estará fazendo nenhum ataque eficiente contra os males existentes na sociedade. Pelo fato de que os indivíduos, geralmente, deixam de perceber as ambigüidades das ações que praticam, acabam tendo atitudes de justiça própria. Temos de convencer-nos da trágica necessidade de fazer o melhor possível nas respectivas circunstâncias, mesmo quando saibamos que esse melhor não estará destituído de elementos de maldade.

A idéia dessa necessidade foi desenvolvida pela primeira vez no livro que traz o título sugestivo Moral Man and Imoral Society (“O Homem Moral e a Sociedade Imoral”). Tendo-se em vista a doutrina de Niebuhr quanto ao pecado, fica claro que ele não pensa que os indivíduos possam atender a todas as exigências da moral. Todavia, o teólogo insistiu muito em que os atos praticados individualmente podem situar-se em níveis mais elevados de moral do que podem os atos praticados em sociedade. As situações sociais são sempre misturas ambíguas de bem e de mal, de altruísmo e de egoísmo. Ao integrar-se a um dado grupo social, o indivíduo é motivado por vários sentimentos. Ele se mostra altruísta, às vezes, predispondo-se a morrer, se necessário, em favor da sociedade. Entretanto, o egoísmo está por tráz de tal predisposição; é “por meu país” que o indivíduo está predisposto a sofrer sacrifícios. O pecado original do orgulho pode expressar-se através de uma sociedade qualquer de modo muito mais natural do que através do indivíduo. Posso parecer mais aceitável ao fazer exigências para a nação, para a raça ou para o partido político, coisas que seriam ridículas se feitas para mim mesmo.

Por causa da natureza da sociedade, as reformas nunca são feitas somente tendo-se em vista as exigências de ordem moral. Os capitalistas, por exemplo, não empreendem a adoção de reformas associadas ao

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sistema pelo fato de ouvirem as exortações dos pregadores, que os incentivam a amar o próximo. As reformas nesse campo acontecem quando os trabalhadores se organizam em entidades suficientemente fortes para obterem concessões. Prevalece sempre uma luta latente entre as nações e entre os grupos sociais que existem dentro de cada nação. A justiça não se estabelece por efeito de apelos de ordem moral, mas, sim, pela necessidade de estabelecer-se razoável harmonia entre os grupos em suas exigências conflitantes.

Nisso, insiste Niebuhr, é que se encontra a base cristã da Democracia. Muitas das teorias democráticas têm sua razão de ser na convicção de que os homens são equilibrados e bons, portanto, capazes de governarem-se a si mesmos. E uma ilusão. Caso o homem não tivesse nenhuma capacidade de submeter-se à justiça, então a Democracia seria impossível. Entretanto, são as deficiências humanas que tornam necessária a implantação da Democracia. A Democracia é uma necessidade porque nenhum indivíduo deve ser tido como suficientemente bom para que se lhe confira o direito de exercer poder sem restrições. O pecado original do orgulho explica por que é que o homem abusa das faculdades do poder irrestrito para explorar a fraqueza de outros. Niebuhr entende que essa realidade foi reconhecida pelos autores da Constituição Americana quando criaram o sistema de equilíbrio pelo qual o povo se protege contra os abusos do poder.

Niebuhr adotou a interpretação dada por Barth de que a ética cristã é uma “possibilidade impossível”. Jesus ensinou uma ética inviável, não admitindo nenhuma concessão em face das fraquezas humanas e em face das conjunturas da relatividade das situações sociais. O Salvador impunha uma ética absoluta: “Não resistais ao mal”, “Sede perfeitos”. Ele não ensinou, na realidade, regras de conduta moral; o que ensinou foi um princípio absoluto - o amor. A ética de Jesus não é, como ensinavam os liberais, nenhuma enunciação diferente de normas prudentes de conduta, um patrimônio do senso comum das várias épocas e gerações. Ao contrário disso, Jesus ministra lições sobre um amor tão perfeito, tão capaz de desprender-se de si mesmo que, na verdade, ninguém o pode alcançar enquanto estiver neste mundo. Entretanto, não se trata de uma ética irrelevante. Embora não haja, de fato, nenhuma situação na qual a ética do amor possa ser aplicada de modo perfeito, por outro lado, não há também nenhuma situação na qual não se possa chegar mais perto do cumprimento ideal do amor do que se conseguira antes. A ética do amor se sobrepõe como critério de julgamento diante de cada uma das situações alcançadas de modo a despertar sempre o cristão, levando-o a olhar para cima para a contemplação de um alvo superior.

A tese de Niebuhr se opõe a dois extremos. Contra o otimismo americano em geral ele insiste no aspecto da impossibilidade de cumprir a ética do amor. Aqueles que não conseguem apreender o sentido de perfeição contido na ética de Jesus, usualmente terminam por aceitar como cristão um tipo de vida moral que nunca vai além de presunções de respeitabilidade. Entretanto, quando ele pensa nas atitudes de desespero próprias do pensa-mento europeu, Niebuhr passa a admitir a viabilidade do cumprimento dos requisitos da ética do amor. Em todas as situações

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imagináveis haverá sempre oportunidades de se fazer aplicação dos sentimentos do amor.

Niebuhr é da opinião que é impossível identificar o cristianismo com qualquer conquista social. Ao cristão cumprirá que se mantenha como perene revolucionário. O reino que nós mesmos construímos não será nunca aquele Reino pelo qual oramos a Deus. Todas as reformas sociais são ambíguas. Elas sempre parecem mais justas aos olhos dos que dela se beneficiam do que são aos olhos dos que não ganham nada com ela. Além disso, qualquer que seja o progresso alcançado, ficará sujeito ao perigo de uma posterior corrupção e degenerecência. Um reformador pode, de modo geral, certificar-se dos defeitos associados aos planos elaborados por outro, mas o cristão tem condições de certificar-se dos defeitos associados aos planos que ele mesmo elabora, diz Niebuhr.

Entende o teólogo que o maior erro do liberalismo consistiu na tese de que todos os homens fossem essencialmente bons. A convicção de que o homem tenha recursos próprios suficientes para obedecer aos ensinos de Jesus provém do postulado de Kant, que diz: “Se devo, posso.” Partindo daí, os liberais passaram a crer que as deficiências vigentes na sociedade poderiam ser removidas por mudanças na estrutura social e por meio da educação generalizada. As teorias assim elaboradas esbarram sempre no rochedo submerso do pecado humano. O pecado não tem origem nas imperfeições vigentes na sociedade; é o pecado que causa as imperfeições. Removidos os velhos exploradores do povo, outros surgem imediatamente.

Isso faz com que surja um dilema. Caso o homem leve em consideração de modo realista as possibilidades limitadas das conquistas alcançadas, como poderá concorrer para a realização de uma sociedade melhor? É claro que a maioria das reformas empreendidas no passado foram resultado de iniciativas de pessoas que se deixaram empolgar pelo sonho de uma sociedade muito mais perfeita do que era realidade até então. Teriam aquelas pessoas trabalho com a necessária energia para que as reformas limitadas que obtiveram se realizassem, caso não se deixassem possuir pelas suas ilusões? São, então, as ilusões necessárias para o progresso social? Niebuhr não afirma que sejam necessárias. Com efeito, pensa ele, as ilusões são, na verdade, os maiores fatores de perversões em qualquer plano de reforma. Por estar muito cheio de presunção, o reformador não se protege contra a influência dos males contidos nos sistemas que propõe.

Para Niebuhr, a resposta capaz de solucionar esse dilema encontra-se em levar a sério, embora não literalmente, o ensino do apocalíptico que a Bíblia contém. O ensino apocalíptico concernente ao fim do mundo e à Segunda Vinda de Cristo tem sido pervertido pelos que continuamente fazem predições a propósito do iminente fim de tudo. Entretanto, não se deve deixar de tomar em consideração a profundeza de idéias que os ensinos apocalípticos contém. A esperança cristã quanto à história contempla o que haverá de acontecer além da história. Os recursos divinos para obter o cumprimento de sua vontade não ficam limitados a este mundo nem à presente existência. Será, todavia, erro incompreensível fazer do cristianismo uma religião interessada apenas no que haverá de acontecer no além. O Apocalipse nos ensina que a história

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aponta para um cumprimento, ela não acabará em negação. Disso se depreende que o curso proposto à história humana, o sentido das vitórias que o homem alcança sobre o mal, terá sua importância última por ocasião do cumprimento definitivo a ocorrer além da história.

O cristão poderá contribuir para que haja progresso e reformas sem que fique à mercê de ilusões. Pelo fato de que o cristão não tem esperanças do estabelecimento do Reino de Deus ou da ordem social perfeita na superfície da terra, ele não é levado ao desespero, no qual o reformador secular, geralmente, cai, quando percebem as dificuldades inevitáveis de seus empreendimentos. Por outro lado, com a convicção de que qualquer coisa que fizer será de significado para o cumprimento último além da história, o cristão se sente impulsionado a agir e a se esforçar ao máximo, mesmo quando as aparências de êxito não sejam animadoras.

Niebuhr é considerado, com freqüência, como profeta sombrio. E verdade que, em confronto com o otimismo prevalecente na América do Norte, não poucas das palavras sóbrias que proferiu e escreveu assumiram aspecto de mensagem pessimista. Entretanto, Niebuhr bem poderia responder a seus críticos com as palavras do Deão Inge, quando se dirigia aos censores, que o chamavam de “Deão sombrio” - “As coisas ficaram muito piores do que eu tinha profetizado.” Muito cedo, em sua carreira, Niebuhr percebeu que tanto o otimismo excessivo quanto o desespero são inimigos do evangelho e, desde então, tem procurado traçar um curso realista que fique eqüidistante das duas tendências. Em um artigo, ele chamou a atenção de seus leitores, para o fato de que os profetas sombrios falharam em suas previsões. Por exemplo, era comum afirmarem que, caso adotássemos as linhas de certa política externa, teríamos inevitavelmente a guerra atômica. Entretanto, os governos em questão adotaram a tal política e não tivemos a eclosão da guerra. Conclui Niebuhr dizendo-nos que isso mostra que a sociedade não obedece a férreas leis invariáveis. Há o envolvimento de certa possibilidade de livre arbítrio, de modo que nunca podemos ter certezas do que vai acontecer no curso da história, visto que o homem pode fazer uso de sua liberdade para realizar o que não poderia ser objeto de predições. No exercício desse arbítrio reside o antídoto para ambas as tendências, isto é, para o pessimismo e para o otimismo. Pelo fato de que o homem dispõe de relativa liberdade, poderá acontecer que ele chegue ao ponto de arruinar a estrutura de uma sociedade bem organizada. Em conseqüência, não podemos ficar na doce ilusão de que uma situação de utopia se estabeleça definitivamente. Por outro lado, o homem tem condições de promover melhorias em qualquer situação social dentro da qual viva. Eis a razão por que não deveríamos jamais ficar inativos quando nos encontrássemos no meio de uma situação má; o ambiente sempre poderá ser melhorado.

Refletindo sobre a interpretação que sugere quanto ao relacionamento que deve haver entre o cristão e a vida social, Niebuhr entende que os crentes devem sentir-se como diante dos vários tipos de vocação. E uma necessidade a existência de perfeccionistas que, à semelhança dos pacifistas, recusem-se a comprometer-se com o mundo e procurem viver conforme padrões de moral absoluta. Niebuhr crê

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firmemente que tais pessoas estejam enganadas, pois não são pessoas tão imunes ao pecado como pensam. Os perfeccionistas dependem dos males sociais em grande número de situações sutis. Por exemplo, não seria possível a ninguém comprar os alimentos indispensáveis à sua vida física sem que pagasse o imposto que é cobrado de todos para efeitos de preparação bélica e para a manutenção de males abomináveis. Apesar da citada condição, os perfeccionistas têm o mérito de servirem de instrumentos para forçarem outros cristãos a lembrarem-se das implicações categóricas do ensino de Jesus e perceberem que estão se comprometendo com o mal. Nesse caso, vê-se como os perfeccionistas contribuem para persuadir os cristãos a um arrependimento.

Outro cristão poderá sentir-se vocacionado por Deus para atuar como profeta que insista na necessidade de que os preceitos do Salvador sejam observados pela sociedade, e levante sua voz em veemente condenação dos compromissos existentes na sociedade. Sua função consistirá em despertar consciências para forçá-las a compreenderem que estão manchadas por formas de culpa que em nada diferem dos males que condenam em outros. O próprio Niebuhr assumiu essa posição profética.

Entretanto, o cristão poderá sentir-se vocacionado por Deus para atuar como estadista em uma posição que consiga entendimentos que envolvam compromissos com o mal. Poderá tratar- se de alguém que esteja nas altas rodas da administração pública ou de alguém que desempenhe papel de agente secreto das forças armadas. Todavia, onde quer que se encontre, tal cristão compreenderá como é impossível para ele viver de modo agradável a Deus. Ele deve ficar atento para o fato de que, deixando de comprometer-se e de contribuir para a vigência de um mal menor, ele poderá expor-se a ver o triunfo de mal maior. Não é que o compromisso o deixe à vontade; o cristão em causa não cessará de suplicar o perdão divino pelo que se sente forçado a fazer; entretanto, sente que o dever o leva, mesmo diante de Deus, a permanecer na posição na qual atua animado pelo desejo de fazer o melhor que esteja a seu alcance na sua complexa situação. A maioria dos cristãos se encontra em tal conjuntura. Não obstante o comprometimento assim assinalado, não pode deixar de ser notado que há um mundo de diferença entre o comportamento do cristão, que aceita comprometer-se com tristeza e sentimento de arrependimento sincero, e o homem que consente em comprometer-se, aceitando o mal vigente como se se tratasse do próprio bem. O cristão sempre estará consciente da necessidade de encontrar algum meio de atenuar os males que se associam ao exercício de sua vocação, enquanto, no caso de pessoas de outra formação, o que acontece é que nem mesmo deixam transparecer qualquer consciência de estarem envolvidas pelo mal.

Podemos representar as duas posições diferentes citando, como fez Niebuhr, o que aconteceu com Lincoln. Lincoln aceitou a Guerra Civil Americana como necessidade trágica, como o melhor de dois males diante dos quais ele tinha de optar. Entretanto, consciente de que se tratava de mal necessário, Lincoln manteve o coração aberto para ministrar perdão e promover reabilitações, sempre que uma oportunidade surgia. Contrariamente ao comportamento de Lincoln, aqueles que

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acreditavam estar lutando pelo que consideravam uma justíssima cruzada, nem mesmo tinham sentiam que estavam comprometidos com o mal. Os corações estavam cheios de ânimo vingativo. Essa diferença tornou-se um fator de contrastes ao longo da história do país.

Niebuhr contribuiu, mais do que qualquer outro pensador, para desfazer o impasse produzido pela controvérsia fundamentalismo-modernismo, pois ousou ressaltar os erros e valores dos dois lados. O fato de encontrarem-se americanos e europeus capacitados para a manutenção de verdadeiro diálogo através do movimento ecumênico deve-se, em parte, a Niebuhr, que sempre foi mediador entre os grupos de pensamentos diferentes. Atualmente não se encontram referências a Niebuhr com muita freqüência na teologia, e muitos dos teólogos mais jovens gostam de pensar que ultrapassaram o seu pensamento. Entretanto, o futuro poderá revelar que eles não ultrapassaram a Niebuhr, mas simplesmente ficaram na periferia do seu pensamento e continuam caindo nos mesmos excessos de otimismo e irrelevância que ele, com tanta insistência, criticou nas décadas de 1930 e 1940.

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A Fronteira Entre o Liberalismo e a Neo-Ortodoxia: Paul Tillich

Paul Tillich tem importância crescente no pensamento teológico americano. Com o auxílio que lhe foi prestado por Reinhold Niebuhr, ele conseguiu fugir da tirania de Hitler em 1933 e tornar- se professor do Union Theological Seminary de Nova York. Embora ele fosse essencialmente pensador e erudito, sua vida foi muito ativa. Ele exerceu capelania por quatro anos durante a Primeira Guerra Mundial, os quais lhe causaram uma impressão vivida a respeito dos problemas sociais. Voltou do cenário da guerra para empenhar-se em atividades relacionadas com o funcionamento do Movimento Socialista Religioso na Alemanha, atividade que tornou inviável sua presença no pais sob Hitler.

Desde sua chegada à América, Tillich dedicou considerável parte de seu tempo a serviços em favor dos refugiados procedentes da Europa. Ele se empenhou na organização do Conselho em prol da Alemanha Democrática. Tais preocupações concorreram para que o teólogo mantivesse contato muito íntimo com os desenvolvimentos ocorridos na Europa. Tillich, que sempre gostou de manter-se entre vários pontos de vista, ficou, dessa forma, na fronteira existente entre o pensamento da Europa e o pensamento da América.

Tillich tem sido chamado, com razão, “o teólogo dos teólogos”. Suas obras nunca aparecem em linguagem fácil, embora seja muito compensador o esforço que o leitor tem de despender. E comum que ele traga para a exposição de seu pensamento considerável acervo de erudição. Ele se sente completamente à vontade tratando de vários domínios da cultura, como, por exemplo, história, filosofia, psicologia, arte e análise política, além da sua especialidade, que é a teologia, propriamente dita.

Tillich é típico da erudição alemã no que ela tem de melhor. Não há nenhum teólogo americano que disponha de tanta riqueza de pesquisa histórica como se vê em Tillich. Ele tem a capacidade de expor o essencial do pensamento característico até de escritores obscuros do passado. Todavia, por estranho que pareça, ele não pode, sem ajuda do secretário particular, lembrar-se do lugar onde teria deixado as notas usadas por ocasião de alguma preleção.

Tillich ocupa posição estranha na teologia. Na Europa, ele é considerado liberal e opositor de Barth e Brunner. Ele fez referências humorísticas de si mesmo, apresentando-se como “o último liberal”. Entretanto, na América do Norte, ele é considerado de modo geral como pertencendo à escola neo-ortodoxa, sendo que, em alguns círculos teológicos, chega a ser situado no mesmo grupo com Barth e Brunner. A melhor descrição, porém, que se pode fazer a respeito dele é que se encontra na fronteira entre o liberalismo e a neo-ortodoxia, procurando

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aproveitar o que de melhor haja nas duas escolas e recusando-se a ser identificado como pertencendo a qualquer delas.

Tillich associa-se aos liberais na insistência em que a religião se submeta ao escrutínio da razão. Ele aceita, de todo o coração, a alta crítica da Bíblia e nega a insistência de Barth de que o cristianismo deva ser entendido fora do ambiente do conhecimento secular. Diferentemente de Barth, Tillich pensa que a obra criadora de Deus pode ser mostrada através da natureza. Por outro lado, Tillich aceita a legitimidade da posição da ortodoxia e da neo-ortodoxia quanto à insistência em que se tenha como critério final de toda revelação a figura de Jesus como sendo o Cristo tal como se nos depara na Bíblia. Ele proclama a imensa distância existente entre Deus e o homem e chama a atenção para o perigo da idolatria associada a qualquer pensamento ou ação que pretenda ter encontrado a Deus de modo demasiado simples. O teólogo concorda com os conceitos ortodoxos e neo-ortodoxos concernentes ao pecado.

A relação de Tillich com outras formas do pensamento teológico se torna nítida, ao examinarmos o “princípio de correlação” que ele tem destacado como de importância central em seu método. Ao passo que Barth crê ser impossível e inconveniente qualquer tentativa de relacionar o evangelho cristão com a situação e o pensamento cultural contemporâneo, Tillich, pelo contrário, crê ser obrigação inevitável do teólogo uma tentativa de relacionar a mensagem bíblica com a situação vigente. Ele insiste em dizer que o homem não pode receber respostas a perguntas que ele não tenha feito. Em conseqüência, caso se tenha real desejo de que alguém adquira compreensão devida da revelação de Cristo, deve-se entender a necessidade de certa preparação visando a informá-lo do conteúdo da revelação. Isso quer dizer que se tem de estabelecer uma correlação entre o pensamento e os problemas característicos de todas as épocas com as respostas sugeridas pela fé religiosa. E tarefa do teólogo demonstrar a existência de tal correlação. Em outras palavras, a teologia cristã tem de aprender a empregar a linguagem da cultura na qual se encontre.

Ao voltarmo-nos para a Teologia Sistemática de Tillich, portanto, aí encontramos, primeiro, uma análise de um problema particular de acordo com os termos da filosofia moderna. Uma vez o problema alcançando seu ponto de maior profundidade, no qual se torne clara a relação em que se encontra com a própria existência e ser do homem, então, Tillich passa a demonstrar como é que a revelação cristã oferece resposta adequada para a solução do problema em causa. A resposta assim oferecida será sempre simbólica e paradoxal, mas, por fim, se vê que se trata de solução mais satisfatória do que o que se pode obter em qualquer alternativa. Por apresentar, dessa forma, uma correlação existente entre perguntas e respostas, entre o pensamento moderno e a revelação bíblica, Tillich consegue dar à sua exposição um formato muito mais sistemático do que se pode ver em Barth.

Tillich não entende, por seu método de correlação, que as respostas oferecidas às perplexidades da vida possam ser deduzidas da análise filosófica pertinente. As respostas vêm de fonte que fica “além” dos domínios filosóficos. Ele se esforça por situar-se em um meio termo entre

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o que considera como não passando de métodos falsos. Por um lado, a filosofia naturalista tenta oferecer respostas partindo da análise da existência natural do ser humano. Esse método deixa de levar em consideração o fato de a existência do próprio homem um problema fundamental. A teologia liberal comete, não raro, o erro de fazer exposição concernente ao cristianismo, considerando-o mero sistema que se tivesse desenvolvido das tendências religiosas naturais da humanidade. O cristianismo é reduzido, assim, a algo dito pelo homem, em vez de algo dito ao homem. Por outro lado, Tillich rejeita o que designa de falácia sobrenaturalista que leva a crer que a mensagem cristã seja um punhado de verdades sagradas que tenham “ caído na situação humana, assemelhando-se a corpos estranhos vindos de um mundo diferente”.

O método de correlação se torna mais claro quando entendemos três termos que Tillich emprega com extrema freqüência: teonomia, heteronomia e autonomia. Todo pensamento, crê Tillich, será expressão de um ou mais dos conceitos que esses termos representam.

Heteronomia implica na imposição de uma lei sobre o homem. Poderá surgir em formas religiosas e seculares. Sempre que um tipo qualquer de religião dita crenças e ações a seus fiéis, deve ser classificada como uma religião heteronômica. A religião, nesse caso, ignora e anula toda criatividade que esteja no íntimo do crente; ela resulta em sufocação das expressões da razão humana. A heteronomia usualmente procura justificar-se pela alegação de que fala como porta-voz da divindade. Pela heteronomia Deus nos é retratado como legislador supremo que tem de ser obedecido sem outra razão senão à da promulgação do mandamento. Por que é que devemos obedecer a tal Deus? Tão somente, assim pensa Tillich, pelo fato de tratar-se de alguém bem mais poderoso do que qualquer de nós. Entretanto, uma atitude assim nada explica, pois o fato é que nos destruímos quando nos submetemos a um poder tão estranho e alheio às exigências da personalidade racional.

Tendo-se submetido à heteronomia, mais cedo ou mais tarde se verá que as vítimas são levadas a se rebelarem e, assim procedendo, fazem-no em nome da autonomia, isto é, em nome de uma resolução de deixarem-se governar por si mesmos. A autonomia pretende que se viva de acordo com a estrutura racional humana, confiando-se à razão a confecção da lei. O indivíduo autônomo recusa-se terminantemente a curvar-se diante de qualquer coisa que lhe seja externa e que se queira impor a ele como capaz de assumir o controle de seu destino ou dominar sua alma.

A teonomia fica eqüidistante em relação à heteronomia e à autonomia. Implica na afirmação de que a lei superior, oriunda de Deus, é, ao mesmo tempo, a lei mais conforme com a natureza íntima do homem. Essa lei não vem de fatores externos, pois a verdade é que o homem a encontra inscrita no íntimo do coração. A lei promulgada por Deus, portanto, encontra-se em harmonia perfeita com a natureza essencial do ser humano. E lei que incentiva o homem a ser efetivamente aquilo para que foi destinado. Obedecer à lei, do ponto de vista teonômico, nunca resultará em anulação da personalidade, como é o que

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acontece quando a obediência se faz por sentimentos heteronômicos, porque, no caso teonômico, a personalidade se realiza em sua plenitude. A personalidade se reencontra no entendimento do que realmente é. Os mandamentos divinos não se propõem a um cumprimento ditado pelo sentimento de que Deus seja mais poderoso do que qualquer ser humano, mas, sim, pela convicção de que são mandamentos que expressam a relação essencial do homem consigo mesmo, com o próximo e com o universo.

Contemplando retrospectivamente através da história, Tillich chama a atenção para o fato de que os períodos pelos quais a humanidade tem passado foram caracterizados pelo prevaleci- mento de uma ou outra das concepções acima consideradas. Por exemplo, a primeira parte da Idade Média e os primeiros anos da Reforma foram épocas destacadas por evidente consciência de teonomia, quando a realidade mais profunda da existência, que é Deus, passou a refletir-se em todas as coisas consideradas pelo espírito humano. A religião é expressão natural da vida sempre que ocorrem períodos de teonomia. Por isso mesmo, em tais ocasiões não se admite nenhuma divisão entre o que seja sagrado e o que seja secular, pois toda a existência passa a ser vista na relação que mantém com a divindade. Quando isso acontece, a religião não é entendida como experiência que implica a existência de algo que de fora dê ordens ao homem, porque, no caso, a religião fica sendo como o próprio sangue da vida racional e passa a ser pressuposição de todo pensamento. O homem é religioso espontaneamente, sem que para tanto lhe ocorra qualquer reflexão. Nos períodos caracterizados pela teonomia os homens não se sentem jamais divididos em sua vida interior; muito ao contrário, sentem-se portadores de personalidades íntegras, coesas e em plena fruição do universo.

Quando declina um período caracterizado pela teonomia, um outro, caracterizado pela heteronomia, vai tomando o seu lugar. Sempre que a vida religiosa não mais decorra espontaneamente, verifica-se que as hierarquias religiosas fazem tudo para conseguir que os homens sejam forçados a adotar um comportamento religioso. O pensamento passa a exigir censuras, as falhas na conduta têm de ser punidas e a lei tida como originária de Deus fica na dependência de medidas empregadas por autoridades que façam isso. Assim é que vemos como os últimos anos da idade média e os últimos da Reforma trouxeram consigo o desenvolvimento da heteronomia. Então, a ortodoxia veio a ser transformada em acervo de normas a serem impostas e tornaram-se freqüentes as ocorrências de perseguição religiosa.

A reação que se faz contra a vigência de um período de heteronomia resulta na implantação da autonomia. A Renascença promoveu reação autonômica contra a fase final da Idade Média e o Racionalismo do século dezoito nada mais foi do que reação autonômica contra a ortodoxia heteronômica a que o protestantismo se reduzira. A autonomia empenha-se em luta contra a heteronomia, insistindo pela preservação da dignidade e a liberdade individual. Não pode haver dúvidas de que Tillich aplaude a revolta autonômica, pois a entende como perfeitamente adequada diante das exigências descabidas da heteronomia. Os períodos caracterizados pela autonomia tudo fazem para

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tirar de sobre os indivíduos as normas impostas de fora. E o sentimento da autonomia que se reflete na adoção de refrões assim: “A arte por amor à arte”, “Negócio é negócio” e “Uma religião vale tanto como outra”.

Embora Tillich expresse seu contentamento com relação à insistência da autonomia em favor de postulados rejeitados pela heteronomia, é fato que ele ressalta serem insatisfatórios os períodos autonômicos quanto às maiores necessidades humanas. A autonomia deixa o homem destituído de intuição profunda quanto à coesão da vida. Vemo-nos atualmente no meio de uma ordem autonômica que se desintegra. Uma era autonômica, não raro, conduz à perda tanto da visão do mundo, considerado em seu todo, como também da visão do centro da vida. Verifica-se, então, que a vida é concebida como se fosse algo esfacelado numa série de atividades não correlacionadas e, portanto, sem nenhuma profundidade de significado. O indivíduo que se vangloria de sua autonomia expõe-se a ficar em extrema perplexidade, sem qualquer critério de orientação para a existência. Cai, portanto, em situação que lhe impede a autoconfiança e a criatividade, tornando-se um perturbado, cheio de decepções e, quase sempre, entregue ao desespero. Resumindo, a autonomia não proporciona ao homem nenhum elemento de certeza inabalável e nem qualquer fundamento para a fruição da vida.

Ao degenerar-se, como está acontecendo atualmente, uma era autonômica pode seguir um de dois caminhos. As atrações dos conceitos heteronômicos fazem-se muitíssimo fortes em tais ocasiões. Então, as religiões propensas ao autoritarismo passam a oferecer aos indivíduos um certo sentimento de segurança e de firmeza que pode levá-los à renúncia da liberdade autonômica. Por outro lado, formas seculares de heteronomia surgem mediante concepções de Estado Totalitário, como o Nazismo e o Comunismo, concepções essas que oferecem aos indivíduos apelos ilusórios de segurança, de um objetivo rico de significado no porvir e, acima de tudo, tranqüilidade. Estamos atravessando um período histórico no qual muitos são levados à busca de qualquer maneira de “escapar da liberdade”. A outra alternativa consiste no surgimento de alguma forma cativante de teonomia. Os homens situados nos limites do desespero podem pensar que, em vez de abandonar os privilégios da liberdade, devem procurar encontrar a totalidade, o significado e a profundidade da vida em Deus. Deus, segundo essa concepção teonômica, não é um poder de fora que venha em socorro do homem; Deus é concebido como profundidade e fundamento racional que está por trás dos conceitos de verdade e de bondade já definidos pela autonomia.

A teonomia encontra sua mais notável expressão, no entender de Tillich, no princípio essencial do protestantismo. Seu entendimento do protestantismo começa com uma análise do ser humano. O homem se encontra, por vezes, nas “extremidades de uma situação” que se mostra no ponto onde tudo quanto dá significado à existência está sob ameaça. E situação que ocorre sempre que todas as possibilidades humanas chegam ao limite ou ao extremo. Nesse ponto, a própria existência está ameaçada. Não se trata de uma experiência que deva ser confundida com a da morte, embora a morte possa apontar para os limites ou os extremos a que o homem tem de chegar.

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Uma conjuntura extrema é uma ameaça para o homem por causa da liberdade que lhe é peculiar. O homem não cresce como uma flor que desabrocha, alcançando sua forma natural, porque o homem é dotado de liberdade pela qual ele pode decidir contra a forma natural de seu desenvolvimento. Persegue-lhe uma profunda exigência no sentido de que cumpra o mandamento do bem e da verdade. Caso se verifique que tal exigência não seja cumprida, e, na verdade, nunca o é em sua inteireza, então acontece que a vida se vê precipitada em discórdias, em consciência de culpa e, por fim, em ansiedades. O homem procura, por vários meios, escapar às ansiedades. Inclina-se, com freqüência, a aproveitar-se dos êxitos do passado para tirar de lá a verdade e as conquistas da bondade. Lança-se nos braços de uma religião heteronômica que lhe faz promessas de tranqüilidade. Pode ser que prefira ou o exercício incessante da atividade ou afundar- se em prazeres carnais. Pode ser que lhe ocorra experimentar o totalitarismo como forma política capaz de dar-lhe a segurança interior. Chegados ao fim de uma era autonômica como esta em que vivemos, notamos uma evidente tendência humana de se ficar atônito, olhando em todas as direções, para vislumbrar de onde possa vir a salvação que liberte a alma da ameaça contra os valores e o significado da vida.

As ansiedades que agitam o homem nos extremos da experiência não são exatamente comparáveis com o sentimento do medo. O medo ocorre sempre em face de perigos específicos e pode ser anulado pela coragem. A ansiedade, porém, é o sentimento subjacente e profundo da insegurança que provém do perceber-se que todo o significado e objetivo da existência estão em perigo. E isso que explica o fato de que o homem, por vezes, encontra possibilidade de alívio na ocorrência, durante pouco tempo, de ameaças a sua própria pessoa, o que o leva, em conseqüência, a um relaxamento das ansiedades. Quando isso acontece, o homem se levanta, cheio de coragem, e vence a ameaça específica que lhe tenha suscitado o medo; vê-se, entretanto, que o expediente é de efeito temporário e, mais cedo ou mais tarde, sente-se a vítima outra vez na situação extrema que a aflige. Semelhantemente, as referidas ansiedades não deverão ser confundidas com o medo de origem neurótica ou qualquer gênero de ansiedade que se possa curar mediante os processos vigentes na psicoterapia. As ansiedades aludidas são evidências da natureza humana considerada como tal.

O princípio protestante é a verdadeira resposta apresentada pelo cristianismo face às situações extremas da vida, entende Tillich. O protestantismo surgiu da redescoberta da mensagem bíblica da justificação pela fé alcançada por Lutero. Este é o paradoxo de que o homem, destituído de qualquer santidade, vê-se aceito como se fosse santo. As ansiedades do homem, como sua consciência de culpa são vencidas quando ele se informa da realidade de que Deus o aceita tal como se encontra. Não se lhe parece mais conveniente que adote o fingimento para deixar transparecer o que não é; ele pode enfrentar todas as ambigüidades associadas à situação extrema em que se encontra, sem nenhuma preocupação de racionalizá-las. Remove-se, assim, a necessidade que o homem sente de enganar a si mesmo. A vida

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inteira do ser humano é, dessa forma, transformada mediante uma atitude de aceitação de Deus.

A fé, mediante a qual alguém recebe em seu coração a convicção da graça perdoadora de Deus, não é nenhum conhecimento de menor grau de certeza. A fé significa uma consciência profunda do incondicional que fica além do ser humano. Mediante a fé o crente experimenta uma elevação de seu ser acima de si mesmo; sente-se a alma dominada por um poder que não vem de si mesma. O santo não o é por ser bom; mas sim por ter-se tornado transparente a algo que transcende à sua própria existência.

Em virtude da compreensão alcançada a propósito da graça divina, o protestantismo representa o protesto eternamente necessário contra tudo quanto queira tomar o lugar de Deus. Conforme o protestantismo, somente Deus é santo,, de modo que, nem igreja, nem doutrina nenhuma, nem instituições, nem ritos, serão santos em si mesmos. Cada uma dessas coisas pode ter santidade na medida em que aponte para além do que é, tornando-se símbolo da santidade divina. O protestantismo, como se sabe, revoltou-se contra a Igreja Romana, pelo fato de aquela Igreja ter passado a reclamar para si, como instituição, a capacidade de conferir a graça de Deus. O Princípio Protestante terá de insurgir-se, com a mesma disposição de ânimo, contra, até mesmo, qualquer das igrejas do meio protestante, quando houver a tendência de se falar como se fosse porta-voz de Deus. O protestantismo mantém-se em oposição incondicional a toda heteronomia. Onde quer que surja alguma forma de heteronomia sob uniforme protestante, deve ser alguma perversão do protestantismo em sua natureza legítima. Assim sendo, o protestantismo é sempre levado a insistir na verdade do sacerdócio universal dos crentes, isto é, a verdade de que a graça divina não se condiciona a comunicar-se tão-somente através de algum grupo particular de pessoas ordenadas, pois é experiência franqueada a todos. Pode acontecer que, em certas ocasiões, as igrejas se mostrem tão refratárias em face dos propósitos de Deus que algum movimento secular tenha de tomar-lhes o lugar. Portanto, o protestantismo não pode fazer nenhum pronunciamento de condenação do secularismo em termos abertos; em vez disso, o dever do protestantismo consiste em incentivar os secularistas para que procurem penetrar mais profundamente no conteúdo próprio do seu pensamento, para que possam conhecer a base e a profundidade sobre que estão, pois assim serão conduzidos à percepção da natureza teonômica do pensamento e da vida que lhes são peculiares.

Tillich tem certeza de que estamos no fim de uma era. As forças sociais e as formas de pensamento que têm governado a vida através dos séculos mais recentes encontram-se em processo de desintegração. O problema com que a Igreja Protestante se defronta consiste no fato de que ela se encontra tão intimamente identificada com esta sociedade em decadência que é possível que ela também caia com o desaparecimento da presente ordem. Assim, o princípio do protestantismo poderá sentir-se na contingência de expressar-se através de outros instrumentos e, até mesmo, adotando formas de oposição contra as igrejas oficiais do meio protestante.

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Conforme o entende Tillich, a religião não é nada restrita a crenças e práticas corretas; não pode ser identificada com as formas religiosas tradicionais. A pessoa é religiosa quando se preocupa, no mais profundo de seu ser, com o incondicional. A experiência do incondicional prende-se ao que detenha a mais absoluta autoridade, isto é, o ente diante do qual a pessoa se comporta com profunda humildade e com temor. A consciência de obrigação ética, o empenho em procurar a verdade e a beleza, todas essas atitudes têm em si algo do incondicional. Interesse último é aquele que tem precedência sobre os demais da vida. Essa preocupação última domina o ser humano de modo a elevá-lo acima de si mesmo. Em face da presença dessa realidade última, o ser humano sente que deve dizer: “Não minha vontade, mas tua vontade seja feita.” O crente rende-se, portanto, à grandiosa realidade com todo o coração, com toda a mente e com toda a força. O interesse último é de caráter total; não fica nenhuma parte do ser nem nenhuma parte de seu mundo fora do império desse interesse.

Ao contemplar-se a religião por esse prisma, entende-se que religião é experiência encontrada com freqüência entre os que se dizem não religiosos. Os ateus, por exemplo, de modo geral, revelam muito interesse pela verdade ou por alguma outra realidade. Com efeito, entende Tillich, temos de nos convencer de que os ateus podem estar salvos pela fé. O ateísmo que ostentam poderá vir da inteira rendição em face da verdade e do interesse último que lhe dedicam. A lealdade que devotam à verdade pode impedir-lhes de aceitar a existência do Deus retratado nas várias religiões existentes. Entretanto, essa lealdade para com a verdade é por si só, um relacionamento com Deus, embora o ateu não o entenda como tal.

Essa definição de religião torna claro que nosso problema não reside na existência de irreligião, mas, sim, na existência de falsa religião. A idolatria, isto é, a incidência do interesse último naquilo que nem é último nem é incondicional é a fonte de onde vêm os males do mundo. Quando os homens adotam, como objeto de interesse último, o Estado, a Igreja, o partido político ou qualquer outro elemento menos significativo, então ocorre que os resultados disso são destruidores e caóticos.

O objeto da teologia é aquilo, e só aquilo, que se constitua em motivo de interesse último para nós. O conflito da ciência e da teologia tem ocorrido, quer quando os teólogos tentam tratar de assuntos de interesse secundário, quer quando o cientista tenta falar sobre o que seja pertinente ao interesse último. A teologia nada tem a dizer acerca de questões de ciência, arte, história, e assim por diante. Os interesses secundários são elementos de consideração teológica somente quando se tornam símbolos que indicam a existência do interesse último.

Por causa da natureza da religião, a teologia nunca pode se apresentar como algo de valor simplesmente objetivo. Há áreas, insiste em dizer Tillich, nas quais os estudos feitos objetivamente, à distância, revelam-se mais satisfatórios. Todavia, aplicar o método, satisfatório como é relativamente às ciências físicas, a todos os campos do conhecimento nada mais seria do que evidência de ser menos do que objetivo. Estudos à distância, em assuntos de religião, implicam em

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rejeição apriorística da exigência religiosa, que é o estudioso se deixar possuir de interesse último em face da realidade. Disso se depreende que tais estudos consistem numa negação do Deus que esses esforços intelectuais alegam desejar alcançar objetivamente.

Entretanto, podemos fazer esta pergunta: Qual deve ser o objeto último do interesse humano? Tillich responde: “O objeto último de nosso interesse deve ser o que determina nosso ser ou nosso não ser.” Tornamo-nos portadores de interesse último em face do que entendemos como capaz de destruir ou salvar nosso ser mais profundo. Tillich se apressa em destacar que não tem em mente o aspecto físico de nosso ser. Muitas coisas ameaçam ou beneficiam nossa vida física sem que devam ser consideradas como interessando-nos de modo inevitável. O teólogo emprega o termo “ser” para referir-se ao todo da realidade humana, à estrutura racional, ao significado e ao objetivo proposto à existência. “Ser ou não ser”, num contexto assim, é assunto pertinente ao interesse último. Será uma expressão capaz de penetrar nas profundezas e no significado da vida para esclarecer o porquê de vivermos e para que vivermos.

Tendo em vista a natureza do interesse último, Tillich demonstra que a idéia popular de Deus não é nenhum objeto digno de constituir-se em interesse último. Trata-se de simples ídolo. E dessa forma que Tillich chega ao extremo de escandalizar seus leitores, fazendo-lhes a confissão de que não crê que Deus exista. Ele repudia as chamadas provas da existência de Deus. A estratégia, na verdade, não visa a mais do que causar impacto à atenção dos leitores e, em parte, manifesta a preocupação em torno da necessidade de adotar-se uma terminologia mais precisa.

Para Tillich, Deus não existe porque existência é uma das categorias expressivas de dependência. Um deus que exista será só um outro ser qualquer de modo que, mesmo que o chamemos de ser supremo, o fato será invariavelmente que ele se manterá no mesmo nível no qual estamos. As expressões superlativas tornam-se diminutivas quando a Deus, pois resultam no estabelecimento de comparação com outros seres. Isso equivale sempre a diminuir Deus, situando-o no nível onde nos encontramos, mesmo quando, de modo ostensivo, estejamos nos esforçando para realçar-lhe a sublimidade. Esse deus não é digno de nosso interesse último; pode ser que ele seja mais poderoso do que nós, sendo até capaz de apagar-nos da existência, mas o fato é que não se constitui em interesse real para nossa existência, incluindo-se o significado, o propósito e alvo supremo diante de nossa vida. Em vez de nos esforçarmos para ultrapassar o limite da natureza, na procura de um ser sobrenatural chamado Deus, Tillich prefere contemplar através da natureza, para descobrir-lhe a profundidade e a fonte de onde se origina. Deus não é um ser, pois é Ser em si, isto é, está nele a capacidade de Ser e de dar origem a tudo quanto existe.

A história da religião está cheia de deuses. Deuses são seres portadores de poder sobre-humano. Não obstante serem entidades tidas como mais poderosas do que o homem, na verdade, não passam de imagens da natureza humana elevadas a um nível sobre-humano. Isso faz com que os céticos levantem a crítica de que os deuses são apenas

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projeções da natureza humana. A crítica é verdadeira, admite Tillich, mas os céticos se esquecem de que as projeções são feitas sempre sobre alguma coisa, por exemplo, sobre uma tela. No caso em consideração, a tela é a experiência generalizada da existência de um reino característico do interesse último.

A esfera povoada de deuses coincide com a esfera do que é santo. Santidade é fenômeno experimentado. A qualidade de santo é qualidade daquilo que se constitui em objeto de interesse último, de modo que somente o que é santo pode proporcionar a necessária condição para que mereça o interesse último. A experiência da santidade é evocada mediante a apresentação de algum objeto, e o perigo associado à religião consiste em expor- se tal objeto, que causa a experiência, como fosse coisa santa por si mesmo. E assim que surgem as expressões da idolatria, pelas quais os objetos da religião passam a ser considerados como divinos e santos por si mesmos.

As várias tentativas feitas para se obter provas da existência de Deus são perversas, pois, na verdade, terminam por negá-lo. Todos os argumentos apresentados para provar a existência de Deus fazem uso da noção “Deus” como elo para se obter explicação sobre o mundo tal como o conhecemos. Acontece, porém, que chamar a tal elo “Deus” é incorrer no pior ateísmo que existe. Os argumentos usados como prova da existência de Deus nem são, propriamente, argumentos, nem provam tal existência. Só serão válidos se tomados como expressivos da situação humana. O homem formula sobre Deus pelo fato de que já se encontra persuadido de Deus. A persuasão não provém da argumentação feita, pois é pressuposição da qual a argumentação parte. Todos os argumentos indicam a presença de algo incondicional dentro da personalidade e manifesta através do universo. Se não fosse esse o caso, a pergunta jamais poderia ser feita.

O homem confronta-se com esse elemento incondicional n senso de verdade que traz consigo. Até os céticos, que insistam em dizer que não há verdade nenhuma, dão certa expressão fé que têm, de que haja, pelo menos, esta verdade - a verdade da declaração de que não há verdade. A exigência no sentido de admitir-se a existência da verdade apresenta-se como incondicional. O homem não pode ficar satisfeito com menos do que a admissão da existência da verdade. Semelhantemente, o senso do dever, a exigência de que se admita a existência d bem, é de natureza incondicional. O homem pode fazer o bem ou deixar de fazê-lo, mas não pode fugir à realidade de que o senso do dever lhe impõe certo procedimento e lhe faz sérios desafios.

Quando falamos de Deus, diz Tillich, sentimos que teme de expressar-nos em termos simbólicos. A única declaração destituída de simbolismo que podemos fazer concernente Deus é a afirmação de que ele é Ser em si. Ele não é um ser, mas é o poder de ser que existe dentro de todos os seres, capacitando-os a existirem e sem cuja presença deixariam de existir. Tudo o mais que possamos dizer a respeito de Deus é simbólico. Por exemplo, temos de falar de Deus como sendo pessoal, uma vez que o homem não pode manter interesse último por coisa alguma que seja menos do que pessoal. Entretanto, a declaração é simbólica pelo fato de que personalidade implica em limitação. E, não

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obstante, um símbolo muito útil pois que Deus é o poder de ser que está na base de toda personalidade e determina que ela seja o que é. Igualmente, falamos de Deus como dando origem a certas coisas, mas também essa é uma expressão simbólica. Deus é o fundamento sobre o qual não haveria nem causa nem efeito. Entretanto, o fundamento da causalidade não pode ser, corretamente, chamado de causa, nem se lhe deve aplicar o nome de Causa Primeira. O mundo não é nada que exista fora de Deus; o mundo é meio de contínua atividade divina.

A fé em Deus é a resposta para a busca de incentivo, para a coragem de poder a ansiedade que surge da situação extrema em que o homem se encontra, conforme examinamos em páginas anteriores. A coragem comum pode ser suficiente para que se vençam as ameaças específicas, mas é necessária uma coragem mais profunda para que se vença a ansiedade que surge da natureza finita da própria vida. Essa coragem última se baseia na participação no poder último de ser. A finitude e a ansiedade não desaparecem, mas o poder de viver com elas fica acessível.

Através da discussão até aqui desenvolvida, quanto à idéia de Deus defendida por Tillich, torna-se evidente que o teólogo depende da existência de um profundo senso de misticismo. Deus é experimentado como sendo o incondicionado que atua dentro da vida. A natureza não é simplesmente um acervo imenso de coisas existindo no espaço; a natureza passa a comportar- se como janela através da qual se pode contemplar a realidade de Deus. Deus é experimentado como sendo o sustentador da natureza e de si mesmo - o poder do qual vem a coragem última e a transformação da vida. Deus não nunca pode ser considerado como se fosse um objeto como outros objetos; ele é a profundeza da realidade, da qual todos os objetos recebem a realidade que têm.

Tillich combina a convicção relativa à revelação em Cristo como sendo definitiva, com certa apreciação simpática da revelação existente em outras religiões. A convicção cristã de que Cristo nos revela a verdade inclui o reconhecimento de que, onde quer que a verdade se manifeste, ela estará sempre em harmonia com os ensinos de Cristo. A mensagem de Cristo não teria sido entendida pelos homens em geral, caso nenhuma preparação anterior tivesse ocorrido. Essa mensagem teria chegado a nós como um estranho fenômeno num mundo destituído de qualquer revelação prévia. As religiões humanas, incluindo-se a religião cristã, são meios de preparação que visam à capacitação do homem para o entendimento do “Novo Ser” que temos em Cristo.

Jesus, na qualidade de Cristo, era um “Novo Ser” no sentido de que ele retratou fielmente aquilo que Deus queria obter do homem. O homem, tal como existe no mundo, não é o homem tal como Deus queria que fosse. Esse é o significado da queda, conforme a entende Tillich; há uma divisão na essência do homem, isto é, entre o que Deus queria que o homem fosse e o que o homem é existencialmente considerado (quer dizer, o homem em sua realidade atual). Em Jesus, vemos o homem na completa união com Deus, sujeito às vicissitudes e tentações da existência humana, mas vencendo-as mediante a graça divina. Jesus não é o Cristo por efeito de seu próprio poder ou bondade, mas, sim, porque Deus estava presente nele. Como tal, os cristãos estão convictos de que

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Cristo é a revelação em sua instância última. Isso não significa dizer que a revelação tenha cessado desde o ano trinta e três de nossa era, mas, sim, que todas as revelações têm de ser avaliadas e verificadas à luz da revelação que nos vem através de Cristo.

O caráter definitivo da revelação em Cristo se justifica, segundo Tillich, pelo fato de que em Jesus nós encontramos uma revelação dotada da capacidade de negar-se sem perder-se. Todas as revelações vindas do Deus infinito têm de vir através de um meio. Entretanto, isso significa que o meio ofusca, geralmente, a revelação ou, em muitos casos, os meios tomam o lugar da revelação. E a grande maravilha da pessoa de Jesus o fato de que ele abriu mão de qualquer reivindicação quanto a si mesmo; ele abdicou de tudo quanto era Jesus em favor do que nele era Cristo. Isto é, Jesus não reclamou nenhuma regalia pessoal e nenhum privilégio; ele apontava continuamente para Deus, que operava nele e através dele. Pelo fato de que Jesus se entregou de modo tão completo, ele foi transparente em patentear o mistério que ele revelava. As tentações que Jesus sofreu foram tentações visando persuadi-lo a reclamar para si alguns privilégios definitivos. Jesus manteve-se irredutível contra todas as tentações para que fizesse uso da união com Deus em benefício próprio.

Para Tillich, isso ressalta o fato de que qualquer religião que gire em torno de Jesus será idolátrica. Ele crê que a teologia liberal cai com freqüência nessa idolatria. Não é o homem Jesus que é o objeto legítimo de culto, mas, sim, o mistério de Deus que brilha através de Jesus. Os cristãos não estabelecem Jesus como uma autoridade heteronômica que lhes imponha obediência. Em vez disso, temos em Jesus como o Cristo a verdadeira resposta para a interrogação encontrada em todas as religiões humanas, concernente à relação do homem com a entidade última e com o próximo. Em Cristo encontramos não uma nova lei, mas, sim, com a verdadeira natureza do homem.

O cristianismo não detém nenhum elemento de superioridade sobre outras religiões em sua qualidade de religião. Os que adotam a sua confissão não são pessoas mais justas do que aqueles que adotam outras crenças. Todavia, aquele que é o conteúdo do testemunho do cristianismo, isto é, a figura sem par de Cristo, é verdade exclusiva.

A revelação de Cristo ressalta o amor como sendo a lei da existência. Amor, no sentido cristão, é poder mais do que emoção - é o poder que promove a reunificação do que fora separado. O amor combina a consciência de um dever absoluto com a relatividade necessária à compreensão das situações particulares. Em todas as situações nas quais outras pessoas estejam envolvidas devemos ter o ânimo de manter com tais pessoas o relacionamento ditado pelo amor. Pois saber como é que o amor deve se comportar em face de situações particulares é decorrência do conhecimento quanto às necessidades dos indivíduos sob consideração. O amor não é nenhuma lei heteronômica; o amor se expressa em termos de necessidades individuais.

Tillich observa que, enquanto que poucos anos atrás o problema dominante consistia em como obter o controle da natureza, hoje o problema se encontra na compreensão da história. Boa parte das obras que ele publicou preocupa-se com assuntos pertinentes ao campo da história. Ele entende que, embora o homem se mantenha livre em face de

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situações históricas, há de reconhecer-se também a influência do destino que limita as possibilidades existentes em dados períodos. A história está se encaminhando para alguma situação; ela tem um fim e não pode ser entendida como sendo mera repetição despropositada de acontecimentos. Dentro da história há uma luta incessante entre as forças a serviço do bem e as forças a serviço do mal; luta essa que causa tremendas divisões dentro dos indivíduos e na sociedade que eles constituem. O significado da história encontra-se na revelação de Cristo.

Tillich fez uso do termo Kairós, para a descrição das oportunidades que ocorrem no curso da história. Trata-se de uma palavra grega empregada por Paulo com relação a Cristo e se traduz pela frase “na plenitude dos tempos”. Tillich crê que nessa expressão se encontra a idéia de que a ocasião era oportuna e havia condições para que ocorresse uma intervenção de Deus na história através de Cristo. A referência é feita, portanto, a um momento exclusivo, cuja ocorrência tornou possível a revelação. Uma ocasião anterior ou uma outra posterior não ofereceria condições para o acontecimento. Como ocorreu uma oportunidade exclusiva, um grande kairós, quando Cristo veio a este mundo, Tillich pensa que ocorram kairoi, confluências significativas menores na história quando conquistas de vulto devem ser alcançadas. A hora do destino destaca a necessidade de que surja uma estrutura social diferente.

O conceito do kairós capacita Tillich a manter-se entre dois extremos. Por um lado, ele rejeita o pessimismo que não admite nenhuma esperança com relação à história futura do homem, pois não crê na possibilidade de nenhum progresso. Por outro lado, esse teólogo rejeita toda forma de utopia que alegue ter edificado ou ser capaz de edificar uma sociedade perfeita aqui na terra. Tillich crê que, no kairós, muitas coisas positivas ocorrem, destacando-se vitórias sobre forças a serviço do mal; entretanto, tais triunfos não serão de natureza permanente.

É convicção de Tillich que nós nos encontramos atualmente num kairós. Em face da situação de decadência a que assistimos, devemos nos sentir como diante da oportunidade de nos esforçarmos para que se estabeleça um novo período teonômico. A luz disso, podemos apreender o sentido daquele seu conceito relacionado com o Socialismo Religioso.Ele afirma que o socialismo está bem atento ao fato de que nós nos encontramos num período de kairós, uma vez que o sistema vigente está desmoronando e outro deve tomar-lhe o lugar. O socialismo religioso não é movimento político; trata-se da tentativa de compreender o socialismo à luz da teonomia. É um movimento tão crítico ao socialismo como o é ao capitalismo. Ele não é simpático ao Marxismo nem ao Comunismo.

O socialismo, diz-nos Tillich, observa o que se passa com os males do capitalismo, as injustiças, o desemprego periódico e a mecanização dos que trabalham. Entretanto, o socialismo deixa de penetrar mais profundamente na crítica que empreende. Semelhantemente ao que acontece entre os capitalistas, também os socialistas esperam realizar mudanças na sociedade através de modificações nas técnicas e na estratégia. Como o capitalismo, também o socialismo tende a afirmar que a aquisição das mais altas possibilidades derivadas dos fatores econômicos devem ser o alvo de todos os esforços. Dessa forma, vê-se que o socialismo é somente o outro lado da moeda do capitalismo; não

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passa de um sistema competidor em face do capitalismo, não chegando, portanto, a ser uma verdadeira alternativa.

O socialismo religioso defendido por Tillich procura compreender a base divina debaixo da situação social e econômica. Por outro lado, essa espécie de ideologia socialista pôde fixar bem, mais do que o tinha conseguido o cristianismo ortodoxo, o fato de que as condições sociais de uma época podem ser fatores sérios de dificuldade para que o homem alcance seu bem-estar espiritual. O socialismo religioso entendeu também que, em medida alarmante, o protestantismo se tinha reduzido à condição de aspecto religioso associado ao capitalismo. O operariado estava distante da Igreja Protestante. O socialismo religioso assume a responsabilidade de fazer tudo para reconquistar o proletariado, aceitando, para tanto, tudo quanto seja justo e verdadeiro que conste da filosofia socialista e procurando ressaltar as verdades mais sublimes que são relegadas pelo socialismo secular. Por outro lado, o socialismo religioso levanta sérias críticas contra a utopia manifesta, contida no socialismo. No entender dos que propõem o socialismo religioso, o kairós do socialismo já veio, mas o socialismo não é e não deveria ser o Reino de Deus, nem algo que se possa chamar de ordem social perfeita e definitiva. A falta de compreensão disso por parte do Comunismo Marxista foi o fator que determinou a queda numa forma diferente de heteronomia demoníaca.

Tillich, como se percebe, é pensador profundo e complexo. Suas obras não poderiam ser resumidas em um capítulo como este, em melhores condições que um artigo de enciclopédia. Nossa esperança é no sentido de que, através das linhas acima, tenhamos ressaltado algo da natureza exclusiva, da amplitude de visão, da profundeza das idéias que lhe caracterizam o sistema. Por muitos anos, Tillich impressionou modestamente a teologia americana. Deveu-se isso ao fato de que ele lançava pequeno número de publicações e o domínio da língua inglesa lhe exigiu esforço imenso. Nos anos mais recentes, porém, várias de suas obras foram publicadas e ele conquistou discípulos em grande número, particularmente entre os teólogos mais jovens. Pelo menos por isso, a América do Norte deverá manifestar sua gratidão para com Hitler: ele foi responsável pela transferência de Paul Tillich para este país.

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Rudolf Bultmann: Conservador Radical

Mais ou menos durante os últimos dez anos, o teólogo que que maior influência vem exercendo na Europa e, com menor intensidade, na América, é Rudolf Bultmann. Nascido em 1884, Bultmann primeiro foi conhecido como um erudito do Novo Testamento, influenciado pela teologia de Barth. A maior parte da sua carreira se desenvolveu durante o tempo em que ensinou em Marburg. Ele foi um dos membros da Igreja Confessional na vigência do nazismo, mas, diferentemente do que aconteceu com Tillich e com Barth, pôde continuar como professor. Isso se explica pelo fato de que, como, aliás, ele mesmo informa, nunca participou de movimentos políticos. Durante o transcurso da Segunda Guerra Mundial, Bultmann publicou um ensaio de quarenta páginas, intitulado “Novo Testamento e Mitologia”, que foi suficiente para levá-lo para o centro das controvérsias teológicas e foi o opúsculo que concorreu para que se fizesse familiar na teologia o termo “demitologização”. Embora Bultmann se aposentasse como professor em 1951, a época de sua maior influência ocorre a partir de sua aposentadoria exatamente por causa das discussões estimuladas pelo ensaio referido. Nossa melhor compreensão de Bultmann, entretanto, dependerá de não começarmos a estudá-lo pelo conceito da demitologização. Muito da incompreensão em torno de Bultmann vem de não se procurar interpretar seu ensaio tão controvertido à luz de seu pensamento total.

Bultmann permanece arraigado nas intuições próprias à neo-ortodoxia. Ele afirma ele que há uma diferença qualitativa entre Deus e o mundo. Nenhuma análise filosófica do mundo resultará em conhecimento de Deus. Deus se torna conhecido apenas através da revelação que faz de si mesmo, mas, mesmo na revelação, ele se encontra oculto de modo tal que nenhum estudo racional nem empírico dos acontecimentos pertinentes à revelação poderá descobrir todo o significado da revelação. A revelação é contemplada somente através dos olhos da fé. Bultmann aplica o conceito de justificação pela fé somente ao conhecimento e à salvação. Uma vez que sabemos que nenhuma obra meritória será suficiente para que por ela consigamos a salvação, também deve-se admitir que nenhuma atividade intelectual poderá demonstrar que estejamos tratando com Deus. Deus não é nenhum objeto que possa ser apreciado pelo pensamento humano, e nós não podemos falar de Deus em termos objetivos; por isso Bultmann expressa seu repúdio para com a identificação pretendida por Tillich entre Deus e o Ser em si.

Visto que Deus não pode ser tomado como objeto para estudo por parte do homem, segue-se, no entender de Bultmann, que não podemos falar de Deus, a menos que, simultaneamente, falemos de nós mesmos. O conhecimento de Deus implica em mudança, e, assim sendo, falar a respeito de Deus coincide com o falar do que Deus fez em meu favor. À primeira vista, pode parecer que a teologia se proponha a dizer algo a respeito de Deus independentemente do relacionamento de Deus com o

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homem. Por exemplo, costumamos afirmar que Deus criou o universo. Entretanto, diz Bultmann, a doutrina da criação não é nenhuma teoria cosmológica que trate da origem do universo. Ao confessar minhas convicções relativas à existência de Deus como criador, o que expresso efetivamente é meu sentimento de finitude e minha convicção de que minha origem e a origem do mundo no qual eu existo encontram-se fora de mim e do mundo que me cerca. A criação não é nenhuma noção descritiva de acontecimentos passados, mas, sim, uma noção que implica em reconhecimento de que a vida que estou vivendo é uma experiência “inquietante”, isto é, uma experiência pela qual me sinto amedrontado e aterrorizado. Mediante a noção de criação, convenço-me de que sou mais do que uma coisa entre as muitas existentes; não sou mero produto de uma série casual, pois sou também um agente livre que se sente chamado a tomar decisões. Finalmente, quando afirmo a criação, estou confessando que minha vida inteira fica limitada tanto no tempo como na capacidade e que eu sou o responsável último pelo que sou.

A teologia de Bultmann está intimamente relacionada com sua erudição histórica. Ele foi um dos eruditos do Novo Testa-mento que tomaram a dianteira no desenvolvimento do que se conhece como “crítica da forma”. Os que adotam a crítica da forma procuram alcançar além dos documentos escritos, para examinarem as épocas quando as tradições eram transmitidas oralmente. A crítica da forma parte da suposição da existência de leis que determinam o desenvolvimento das tradições oralmente transmitidas. Para ajudar a memória, por exemplo, os relatos obedecem a certas regras. Ao ler-se com atenção os Evangelhos, percebe-se que os relatos sobre milagres e controvérsias travadas por Jesus obedecem a formulações semelhantes. Pelo fato de que as tradições transmitidas oralmente tendem a desenvolver-se em determinadas maneiras durante certo período, o crítico da forma afirma ser possível separarem-se tradições mais antigas de outras mais recentes e identificar pontos que tenham sido adicionados a uma narrativa na medida em que ia sendo repetida.

Um dos passos básicos para que se faça a crítica da forma consiste em analisar a comunidade que tenha preservado, contado e escrito as narrativas da forma como chegaram até nossos dias. Qual teria sido a situação vivencial e quais teriam sido os problemas que concorreram para que a Igreja, em seus primeiros anos de existência, admitissse as narrativas nos termos em que foram registradas? A primeira vista, temos a impressão de que a crítica da forma tenha abandonado toda a esperança de obter informação positiva a respeito de Jesus por parecer que esse método possibilite apenas a obtenção de informações concernentes à Igreja, que foi a entidade que veiculou as narrativas sobre a pessoa de Jesus. E Bultmann insiste em afirmar que jamais podemos descobrir o Jesus histórico. Mas, ponderado estudo dos Evangelhos demonstra-nos que seus escritores não tinham nenhum interesse de exatidão histórica como hoje afirmamos ser isso necessário. Aqueles escritores não eram pessoas eruditas que se preocupavam com a preservação da verdade dos fatos; eles estavam empenhados na pregação, em proclamar ao mundo a pessoa do Senhor e Salvador, em quem os homens poderiam alcançar a bênção da nova vida. Bultmann,

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entretanto, não entendia que isso devesse resultar necessariamente em que nos desesperássemos de saber algo a respeito da pessoa de Jesus. Mesmo porque a crítica da forma demonstra que alguns dos relatos evangélicos são história autêntica, particularmente os relatos que nos informam dos ensinos de Jesus. Além dessa consideração, sabe-se que a Igreja veio a existir por causa da pessoa de Jesus, e, em conseqüência, há de reconhecer-se que o espírito de Jesus está presente nos relatos que recordam os seus ensinos. Através dos Evangelhos é verdade que nós não temos algo semelhante a um video-tape da vida de Jesus, mas é certo obtermos deles a impressão vivida da maneira como ele exerceu influência sobre aqueles que o conheceram de perto, souberam amá-lo e se tornaram seus seguidores.

No entender de alguns teólogos, as dúvidas levantadas pela crítica da forma a propósito da validade histórica dos Evangelhos poderiam resultar na inutilização da fé cristã. Não é verdade que o cristianismo se baseia na convicção do que Deus tem operado ao longo da história? Sob essa consideração, muitos têm surgido que atacam a crítica da forma, salientando que seus métodos são imprecisos e que os críticos da forma muito raramente concordam entre eles mesmos. Para Bultmann, porém, tais objeções não alcançam o que de fato importa. Conforme Bultmann o entende, essa preocupação de fazerem-se pesquisas em torno da historicidade da vida de Jesus descrita nos Evangelhos não passa de outra modalidade de presunção de se alcançar a salvação mediante a realização de obras meritórias. Essa preocupação parece dizer que, por confirmar-se a veracidade histórica dos relatos evangélicos, fica demonstrado ipso-facto que o cristianismo seja verdadeiro. A verdade, porém, alega Bultmann, é que nada que pudesse ficar demonstrado como veracidade histórica haveria de estabelecer a verdade de que Jesus fosse mesmo o Filho de Deus ressurreto que foi proclamado ao mundo pela Igreja. A maioria dos que tiveram oportunidade de ver Jesus durante o tempo de sua vida na terra não chegou a ser crente, portanto, cabe perguntar por que pensar que qualquer demonstração histórica hoje o tornaria mais irresistível à fé do que o teria sido enquanto conviveu com os homens?

Bultmann é da opinião que necessitamos proceder a um reexame de toda a questão da história e do relacionamento da história com a fé cristã. Muito facilmente tendemos para uma visão da história que a considera sob a diferenciação usual entre sujeito e objeto, com que normalmente procuramos nos informar da natureza dos objetos existentes no mundo. Isso quer dizer o seguinte: o cientista, por exemplo, procura estudar um elemento químico qualquer situando-se como sujeito da observação em face de um objeto que ele observa; tal cientista atenta para o elemento químico de fora para dentro e seu propósito não passa de analisá-lo objetivamente. Entretanto, não podemos agir da mesma forma quando consideramos a história, pois sabe-se que o historiador participa da história que narra. A verdadeira história nunca será mera narrativa que procure fixar os fatos objetivamente tal como tenham acontecido. A verdadeira história empenha-se por encontrar o significado dos acontecimentos. E fato que, no dia 22 de novembro de 1963, o Presidente Kennedy foi assassinado, alvejado por um tiro, em Dallas. Todavia, a profusão de livros que surgiu em conseqüência do acontecimento prova

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que dizer tal coisa de modo conciso não satisfaz. Todos querem descobrir o significado do fato em termos de algo que se possa dizer quanto às pessoas envolvidas, os motivos e as reações emocionais que deixaram transparecer. E dessa maneira que Bultmann afirma que a verdadeira história exige do historiador que procure travar uma espécie de diálogo com a história que ele esteja considerando; a história deve ser revivida para o historiador.

A fé cristã não se prende a Jesus, como se ele fosse um acontecimento remoto da história. Considerado como tal, Jesus não passa de um herói submetido ao martírio. A fé cristã preocupa- se somente com o Cristo ressurreto que proporciona a todos uma nova maneira de viver, que é como ele adquire significado tanto através das palavras empregadas na pregação como na celebração dos sacramentos. O que importa no conteúdo dos Evangelhos não é o que eles nos informam sobre a pessoa de Jesus, “como realmente ele era”, qualquer que seja o significado que a isso se atribua, mas, sim, o que os Evangelhos nos deixam ver do significado de Jesus para os primeiros cristãos e, por conseguinte, o que Jesus pode significar para nós.

Bultmann está preocupado em saber como os homens de hoje podem entender ser a Bíblia uma Palavra Divina que lhe é dirigida. Para entendermos qualquer coisa escrita, precisamos ter alguma “noção preliminar” - diz-nos Bultmann. Por exemplo, quando manuseamos um livro que trata de música, ele não terá significado para nós enquanto não dispusermos de algum conhecimento dessa arte. Entretanto, como seria possível o entendimento da Bíblia quando ela nos fala de Deus, se o próprio Bultmann alega que fora da revelação jamais será possível conhecermos Deus? Bultmann replica-nos que nós conhecemos, como seres humanos que somos, quais são os problemas para os quais só encontramos solução no próprio Deus. Com freqüência, Bultmann faz referências ao dito de Agostinho, de que nossos corações não obtêm tranqüilidade enquanto não a encontram no próprio Deus. É possível que o indivíduo não faça nenhum uso do nome de Deus. Entretanto, isso não impede que tal indivíduo reconheça não ser exatamente o que sente que deveria ser. Todos têm consciência da insuficiência própria. Todos entendem muito bem que estão marchando na direção da morte. Ao homem que tem essa percepção de si mesmo é que a Palavra de Deus se dirige como a resposta adequada para as perguntas implícitas em seus momentos de insatisfação. Através da revelação, ficamos sabendo que Deus é tanto nosso limite como aquele que nos liberta de limitações.

Uma vez que, para que se obtenha exata compreensão do Novo Testamento, é necessário ter um conhecimento preliminar do que significa pertencer ao gênero humano, a teologia terá de extrair de uma análise filosófica a noção do que significa, efetivamente, ser homem. Nesse ponto, Bultmann baseia-se na filosofia de Martin Heidegger. Heidegger procurou, em seu livro Ser e Tempo, fazer uma análise do que significa ser homem. A filosofia de Heidegger é extremamente complexa e muitos de seus colegas a têm considerado como estando acima das possibilidades de compreensão. Não queremos aqui dar nenhum resumo da filosofia de Heidegger; vamos nos limitar a fazer referências aos pontos que Bultmann deriva dessa filosofia.

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Em Heidegger, Bultmann encontra uma filosofia que lhe dá os instrumentos com os quais obter, conhecimento da natureza humana. Não é que Heidegger proporcione a Bultmann um conhecimento de Deus e da revelação, mas que nele se encontra a citada noção preliminar de que o estudioso necessita para a compreensão do Novo Testamento. Embora Heidegger não seja um cristão, Bultmann acredita que ele jamais poderia ter escrito como o fez caso nunca tivesse existido no mundo a fé cristã. Heidegger deve muito a Kierkegaard e, conseqüentemente, a Lutero e ao Novo Testamento. Entretanto, o que Heidegger disse a propósito do ser humano pode ser entendido mesmo sem que se tome em consideração a fé cristã.

A base do que Heidegger diz, Bultmann chega à conclusão de que, ser humano é destacar-se em face de tudo no universo. O homem é um ser que, para existir de fato, deve apossar-se da compreensão da própria existência. As categorias que empregamos para descrever e para conhecer as coisas não podem satisfazer quando desejamos compreender o próprio homem, uma vez que o ser humano não é como uma coisa qualquer dotada de características rígidas. Em sentido básico, o eu essencial do homem transcende o mundo material no qual nos encontramos e transcende até mesmo sua própria natureza racional e emocional e mais ainda. E nisso, aliás, que reside a liberdade humana, isto é, nessa faculdade peculiar ao homem de escolher o que quer ser.

Assim sendo, o homem percebe que há de enfrentar a vida com o ânimo que Heidegger designa de “cuidado”. Esse ânimo decorre do reconhecimento pelo homem de que pode escolher o que quer ser. O ser humano não surge com um conjunto predeterminado de propriedades, como acontece com um reagente ácido, nem como se fosse mero animal guiado pelos instintos. Por outro lado, o ser humano se vê obrigado a tomar em consideração o fato de que está cercado por situações que existem independentemente de si mesmo. O homem sente-se como “precipitado” dentro da existência, sem que para isso lhe fosse dada uma opção; ele se encontra herdeiro de condições sociais e históricas peculiares e sente-se portador de determinadas habilidades, e assim por diante. O homem “decai”, por assim dizer, perdendo-se no mundo das coisas que o cercam. Ele procura negar a liberdade que o caracteriza e comporta-se como a tornar-se meramente o que as circunstâncias o levariam a ser. Entretanto, mesmo nesse estado decaído, o homem jamais pode escapar da responsabilidade que tem para consigo essencialmente.

Dessa forma, o homem percebe que se encontra diante de duas possibilidades: ele pode procurar viver de modo autêntico ou de modo destituído de autenticidade. O viver destituído de autenticidade significará que se aceita ser determinado pelo mundo das coisas. Em vez de o indivíduo procurar decidir por si mesmo, ele deixa que a multidão, por exemplo, se encarregue de tomar as decisões. Todavia, vivendo destituído de autenticidade, o homem não pode fugir ao sentimento de que ele não se encontra inteiramente à vontade neste mundo. Ele faz tudo para conseguir certa segurança mediante a posse de coisas, mas fica-lhe, não obstante, a convicção de que as coisas não lhe proporcionam a segurança a que aspira. Pelo fato de perceber que jamais escolheu existir, também descobre que não pode decidir quanto ao momento próprio para

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que deixe de existir neste mundo. Não será o caso de o indivíduo procurar contentar-se com a idéia de que a morte é uma experiência natural e que todos os homens morrerão um dia, pois se sabe que não vem nenhum conforto dessa idéia, uma vez que não está se falando da morte do ser humano, mas, sim, da minha morte. Mas, como é certo que eu tenho de passar pela experiência da morte, também é certo que tenho de procurar viver como for melhor para mim. Tenho de aceitar plena responsabilidade nisso.

Uma vida autêntica ocorre sempre que o homem tenta agir consciente de sua responsabilidade. Sente-se, então, o indivíduo como que desprendido do próprio passado e em face do futuro. O homem sente-se, em tal caso, verdadeiramente livre. O homem não vive mais como sob a tirania das coisas; não aceita mais ser levado pelo que a multidão espera dele. O homem ousa ser ele próprio. Enquanto o homem aceita viver sem autenticidade, não pode sentir-se solidário com o próximo. Por um lado, pelo fato de estar procurando encontrar segurança através da posse de coisas, será inevitável que se sinta competindo com os demais que se empenham em conseguir as mesmas coisas. Por outro lado, uma vez que superestima as expectativas da multidão sobre sua pessoa, o homem passa a contemplar os outros como fatores de limitação sobre sua liberdade. Procurando, porém, uma vida efetivamente autêntica, o homem já se não mostrará tão interessado na posse de coisas a ponto de ver no próximo um competidor. O homem, então, revela que aceita de bom grado as limitações decorrentes da precipitação de sua existência em situações peculiares e, em virtude desse seu ânimo, sente-se livre para amar ao próximo, em vez de ressentir-se com as situações que a presença deles possa acarretar.

Bultmann conclui afirmando que essa análise filosófica concernente ao que significa o ser humano concorda com o ensino do Novo Testamento. Quando Paulo descreve o homem impenitente como um escravo do mundo, não será isso equivalente à noção da vida sem autenticidade que Heidegger retrata em sua filosofia? Não será o caso de perceber-se certa identidade da noção de “queda” articulada na filosofia de Heidegger com o que a Bíblia diz da “queda” do homem em Adão? Deve-se entender disso que o cristianismo não passa de uma das formas que a filosofia existencialista pode assumir, ou que o existencialismo é uma secularização do cristianismo? Não, exclama Bultmann, a filosofia pode dar-nos uma descrição da vida humana e de suas possibilidades, mas a filosofia não pode capacitar o homem para que ele passe a viver de modo autêntico. O filósofo entende que a consciência humana dispõe da capacidade de motivar o homem no sentido de que viva de modo autêntico. Isso, entretanto, decorre de deixar-se de tomar em consideração o pecado envolvido no estado decaído em que o homem se encontra. Como a Bíblia ressalta, não podemos salvar-nos por meio de obras meritórias. Sempre que o homem procura reformar-se, ele termina por comprometer-se mais inarredavelmente com o mundo e empenhar-se em franca competição com o próximo. O homem pode, talvez, perceber que uma maneira autêntica de viver implique em que se ame o próximo, mas a verdade é que o homem não tem condições de amar sem reservas.

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No máximo, ele pode ele chegar a amar para corresponder ao amor que recebe de outro.

A mensagem que a Bíblia contém assegura-nos que o que o homem não podia fazer Deus mesmo o fez em seu favor. Em Cristo, Deus expressa o amor que tem pelo homem e, quando o homem aceita as evidências do amor divino, fica livre para amar o próximo. Ao ouvir que seus pecados foram perdoados por Jesus, o homem sente-se livre com relação ao passado pecaminoso de sua experiência e capacita-se para um futuro melhor. Uma vez informado de que sua existência é um dom inefável de Deus, o homem não hesita em devolver a Deus sua existência. Persuadindo-se de que o mundo das coisas materiais é criação de Deus, o homem sente-se livre para fazer uso delas sem que tenha de submeter-se a elas. O cristão não tem de se comportar como asceta, que foge do mundo das coisas. Tal comportamento seria inautêntico, pois o homem que tem obrigação de renunciar às coisas do mundo, nesse caso, peca por atribuir-lhes demasiada importância. O procedimento cristão compatível está bem expresso na primeira carta de Paulo dirigida aos Coríntios (7.29-31). A noção fundamental dessa passagem é que o cristão deve possuir as coisas do mundo “como se não as possuísse”. Isso significa dizer que de tais coisas se deve fazer uso adequado sem que para essa utilização seja preciso incorrer numa forma de idolatria. Pelo fato de ter sido alcançada a libertação de todos os motivos de ansiedade, entende-se que já não será mais necessário possuir coisas para que se possa ter uma impressão de segurança.

Há ainda uma outra maneira pela qual Bultmann procura distinguir bem entre a fé cristã e uma análise filosófica. Ele faz uso de uma analogia de certo indivíduo que deseja encontrar alguém que se lhe revele amigo, mas esse seu desejo não se cumpre. Esse ser humano poderia ser alguém capaz de saber o que é ter um amigo e até mesmo poderia discorrer eruditamente a propósito do prazer da amizade. Um belo dia essa pessoa pode ter um amigo verdadeiro. Que será, então, quando se tem de admitir que a imaginada pessoa vai passar a conhecer o que antes não podia conhecer? Não deveríamos crer que tal pessoa obtenha acréscimos em seus conhecimentos teóricos da amizade? Na verdade, ela continuará fazendo uso dos mesmos conhecimentos que empregava antes para discorrer sobre o tema da amizade. Não obstante, sabe-se que tal pessoa tornou-se alguém diferente por efeito da amizade que conseguiu estabelecer com outra. Essa pessoa passará a viver em ambiente de dimensões diferentes e contemplará a si mesma e a seu amigo de maneira como não lhe poderia ocorrer antes. Não é que tal pessoa passe a saber alguma coisa mais a respeito de amizade, mas que ela passará a saber propriamente o que é o que vem a ser o contar com um amigo. Algo que nenhuma psicologia da amizade lhe poderia jamais ministrar é o que o amigo será experimentalmente para ele, com o qual passa a contar em sua vida.

Sempre que Bultmann faz referências a Deus, usa analogias derivadas do relacionamento pessoal existente entre seres humanos, pois ele está persuadido de que o relacionamento do homem com Deus é análogo ao relacionamento que se pode estabelecer entre as pessoas. E assim que a filosofia nos deixa, em seu entender, na situação de alguém

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que conhece tudo a respeito da amizade, mas que não tem nenhum amigo. A filosofia tem condições de nos ensinar o que é uma vida autêntica, isto é, ela dispõe de elementos para proporcionar uma contemplação da terra prometida à distância, mas não pode satisfazer a alguém com um melhor conhecimento a respeito do que significa ser autêntico. Tal conhecimento nos ocorre somente quando a Palavra de Deus assume para nós a forma de um recado pessoal. Quando Deus nos fala e lhe respondemos em atitude de fé, não passamos com isso a ter uma nova teoria sobre o mundo; tornamo-nos, sim, novas criaturas, isto é, passamos da morte para a vida. Não é o caso de apenas ouvirmos que nossos pecados já foram perdoados - isso não passaria de gélida teoria. O que acontece definitivamente é experimentarmos que nos encontramos livres do pecado.

Ora, podemos entender, assim, por que é que Bultmann pensa que um conhecimento histórico do homem Jesus é algo irrelevante para a fé cristã. Mero conhecimento a propósito de Jesus seria semelhante ao mero conhecimento concernente à amizade - não passaria de um conhecimento teórico, destituído de poder transformador em nossas vidas. O Jesus da história seria na melhor das hipóteses, um exemplo proposto para que seguíssemos sua conduta, mas, se fosse assim, ele até poderia nos precipitar no desespero, pois, quem poderia se sentir imitador de Jesus sem ajuda de sua graça? O Cristo que nos salva é o Senhor ressurreto, a quem podemos encontrar no curso de nossa existência. E onde é mesmo que nos encontramos com o Senhor ressurreto? Ele vem até cada um de nós mediante as palavras da pregação e nos sacramentos.

Os críticos de Bultmann temem que ele tenha tornado o cristianismo algo simplesmente subjetivo. Como poderíamos ter certeza de que a fé que temos não passa de um pensamento que coincide com os desejos que acalentamos? A resposta oferecida por Bultmann a esse questionamento é que não podemos garantir que, quando dizemos “saber”, temos presente no raciocínio a maneira desse saber. Por exemplo, não nos ocorre sempre como é que sabemos que o hidrogênio e o oxigênio se combinam e formam a água. Caso alguém insista em ter sempre presente em sua mente a objetividade da verdade, o que vai acontecer é que ele vai cair numa certa maneira de vida sem autenticidade, pois isso será como insistir em encontrar segurança no mundo das coisas. A semelhança do que ocorre com o estabelecimento de amizades, a fé implica em que o crente se expõe a riscos. Jamais conseguiríamos obter prova objetiva de que um nosso amigo nos queira bem de fato, pois, em todas as circunstâncias, pode ser que ele esteja fazendo uso de nós para seus objetivos ocultos. Isso, porém, nunca significa que não tenhamos razões para depositar certa confiança nele. Aquilo que nem sempre pode tornar-se conhecido mediante análise de teor objetivo, relativo às várias situações, bem pode ser que se torne conhecido pelos que participam das respectivas situações. A principal razão de que dispomos para nos firmarmos na fé em Cristo é o fato de que nos temos tornado novas criaturas em virtude da fé nele depositada. Não podemos obter conhecimento de Deus; o que podemos experimentar é o fato de que o encontramos incessantemente no transcurso de nossa existência na medida em que sua Palavra venha a nós, exatamente como

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acontece de ficarmos sabendo dos bons intuitos de nossos amigos para conosco mediante as experiências que a convivência nos proporciona. Mais uma vez somos lembrados de que não podemos falar de Deus sem que atentemos para o que acontece com o ser humano que usufrui da experiência do encontro com Deus.

Dispondo das informações básicas consideradas, podemos retornar ao conceito da demitologização de Bultmann, conforme esse conceito se encontra caracterizado em seu famoso ensaio Novo Testamento e Mitologia. Ele começa com a observação de que o Novo Testamento chegou até nós envolvido em certa maneira mitológica de pensar que, geralmente, é desagradável ao homem de hoje. Era uma mentalidade que gostava de retratar o universo como se ele estivesse escalonado em três esferas, isto é, os céus, bem acima, a terra, em posição intermediária, e o inferno, nas profundezas. Procedentes tanto do céu como do inferno, surgem espíritos capazes de exercer influência sobre a vida humana. A ordem da natureza pode ser quebrada com freqüência por efeito de intervenções sobrenaturais. O fim do mundo é entrevisto como ocorrendo em futuro próximo, quando Cristo haveria de voltar a esta terra, vindo sobre as nuvens, para exercer o juízo. Jesus é retratado como um ser preexistente, que sofreu uma morte sacrificial para realizar a expiação capaz de anular o poder do pecado humano. Essa maneira mítica de pensar não pode prevalecer em face das exigências racionais do homem atual, uma vez que, modernamente, os homens pensam em termos de um universo totalmente diferente do que era antes imaginado, e sabe-se que as idéias sobre como é constituído o universo não são como noções optativas. Bultmann entende que seja coisa absolutamente impossível ao homem acostumado ao ambiente dos moderníssimos hospitais permanecer nas crenças que aceitem como verdadeiras as narrativas dos milagres registradas no Novo Testamento.

Bultmann é tido quase sempre como alguém que se preocupa principalmente com a questão de tornar o cristianismo crível ao homem de nossos dias. Isso é uma pena, pois tanto crentes como não crentes levantam suspeitas contra quem se propõe a diminuir a rigidez doutrinária do cristianismo com a finalidade de torná-lo menos ofensivo aos céticos. A verdade é que isso sempre esteve muito longe das intenções de Bultmann. Sua convicção é no sentido de que o cristianismo contém, de fato, um tremendo elemento de escândalo diante do entendimento de todos os homens. Esse tremendo fator de escândalo se encontra na realidade de que o cristianismo declara em alto e bom som que o homem é um pecador e só poderá alcançar sua salvação mediante a eficiência do ato salvador exclusivo que Deus efetuou por meio de Cristo. O problema, entretanto, como Bultmann o ressalta, é que o homem moderno não acaba enfrentando o referido elemento de escândalo implícito na fé. Em vez dessa necessária confrontação, o homem de nossos dias fica escandalizado com a forma mitológica na qual os fatos são descritos e procura desfazer-se de tais narrativas, considerando- as simples contos de fada, não lhe ocorrendo a importância da mensagem própria de tais narrativas no que elas têm a dizer que interessa à existência de cada ser humano. E dessa maneira que Bultmann levanta a questão de ser ou não o mito um elemento indispensável da fé cristã. Ele

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mesmo nos responde não ser o mito um elemento indispensável da fé. O elemento mítico não passa de reflexo dos conceitos vigentes a propósito do universo nas circunstâncias do surgimento do cristianismo. A fé cristã legitimamente considerada requer que se procure entendê-la independentemente da moldura mítica que lhe caracterizou o início.

Bultmann afirma que o propósito do elemento mítico que consta no Novo Testamento não é apresentar-nos nenhuma visão objetiva do universo, mas, sim, expressar o entendimento do homem concernente a si mesmo. Através da articulação de mitos, o homem procura mostrar sua convicção de que a origem e os desígnios do mundo encontram-se fora do mundo. Entretanto, o mito enfeita imagens e termos que são tomados do próprio mundo para darem forma à referida convicção humana, por isso é que ocorrem as contradições. Por exemplo, o mito procura exprimir a convicção de que Deus transcende o mundo que existe no tempo e no espaço e, nesse empenho, o mito emprega a linguagem de que Deus se encontra “alto e elevado”. Ora, essa maneira de dizer resulta em atrair a noção de Deus para o sistema de tempo e de espaço que nos é conhecida, e, então, Deus é retratado como estando entronizado lá em cima, no céu. Não se deve estranhar, ressalta Bultmann, que encontremos no próprio Novo Testamento os escritores tentando superar a influência mitológica. O Evangelho de João, por exemplo, abandona a idéia da segunda vinda de Jesus e passa a retratar o juízo que há de sobrevir ao mundo como algo que está ocorrendo, como a presença de Jesus e a vida eterna, uma realidade em cuja fruição o homem se inicia de imediato e nas circunstâncias em que ele crê.

Bultmann salienta o fato de que, em todos os tempos, os teólogos têm debatido muito por causa da armadilha mitológica. Alguns deles sugeriram para a interpretação de textos mitológicos o expediente de considerá-los como alegorias expressivas da existência íntima da alma. A teologia liberal procurou safar-se das dificuldades relacionadas com a mitologia, mas caiu no erro que resultou em não atribuir o devido prestígio ao Evangelho propriamente dito. Os liberais, na verdade, perderam de vista a fé neotestamentária de que, em Cristo, Deus agiu visando operar a salvação do homem. No entender dos teólogos liberais, o Novo Testamento não passaria de uma das expressões (quem sabe, a melhor delas) de verdades, de ética e de uma religião universal.

Que é, então, que temos de fazer com os mitos registrados no Novo Testamento? Devemos considerá-los de modo existencial, a saber, temos de procurar descobrir qual teria sido a compreensão da própria existência que os escritores do Novo Testamento desejaram mostrar através da articulação de mitos. O termo “demitologização” não é muito útil para descrever o propósito que Bultmann tinha em mente. O termo nos sugere que Bultmann estivesse querendo livrar-se dos mitos. Entretanto, sabe-se que seu objetivo não era outro que não o de interpretar os mitos em termos da existência humana. Assim vemos que ele entende da linguagem mítica concernente a Adão, “a carne”, bem como a linguagem a propósito das forças demoníacas, que nada mais seriam do que modalidades pelas quais se poderia expressar as experiências humanas de vida inautêntica na esfera das coisas. Por outro

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lado, as referências do Novo Testamento à vida no espírito ou o estar “em Cristo” são descrições da vida autêntica.

Bultmann pensa que existe só um problema sério no que tange à vida de Jesus. E o fato de que a vida de Jesus é retratada tanto em termos míticos como em termos históricos. Jesus nos é retratado como carpinteiro cujos pais eram pessoas bem conhecidas, não obstante, reconhece-se nele um ser preexistente. Ele viveu de modo humano e sofreu a morte como qualquer outro homem; não obstante, registra-se a informação de que ele nasceu de uma virgem. Como vamos harmonizar esses pontos de vista? Em alguns casos, Bultmann admite não ser tão grande a dificuldade. No caso dos relatos pertinentes ao nascimento virginal, eles não passam de tentativas de expressar o significado de Jesus para a fé. Tais narrativas nos declaram que Jesus veio até nós em decorrência de uma ação divina especial.

Todavia, que é que podemos dizer com relação à Cruz e à Ressurreição? A Cruz, propriamente, é um acontecimento que pertence à história, mas é interpretado de modo mítico, considerado como sacrifício de expiação pelos pecados do mundo. Essa interpretação, aliás, não é exaure o significado da Cruz - na melhor das hipóteses, a interpretação nos diria que todos os pecados já foram perdoados. Entretanto, o Novo Testamento tem muito mais a nos dizer do que isso. A Cruz não só nos deixa livres da punição reservada ao pecado; ela nos deixa livres do poder do pecado. Assim sendo, deve-se entender que a Cruz não é apenas um acontecimento ocorrido na história; ela é um acontecimento perene que nos ocorre mediante os sacramentos. Receber a Cruz nos dias atuais equivale a ser crucificado com Cristo, para estar morto para o pecado. Através de nossa definição do significado da Cruz de Cristo, nós perdemos o terror que o sofrimento nos infunde; tornamo-nos capacitados para receber o que nos venha a acontecer neste mundo, comportando-nos como se tal não nos acontecesse. Mediante a Cruz, o mundo foi julgado, e isso quer dizer que eu fui julgado, não obstante o glorioso fato de que obtive redenção no julgamento a que fui submetido. A Cruz estabeleceu uma situação nova na História: novas possibilidades foram abertas ao homem. Uma vez proclamada, a Cruz lança um desafio aos homens no sentido de sua aceitação e no sentido de que os homens aceitem ser crucificados com Cristo.

A Cruz, tal como se nos apresenta na leitura dos fatos ocorridos na história, não tem o significado do poder capaz de transformar a maneira de viver dos homens. Acontece, porém, que, sempre que a Cruz é tomada como tema da pregação do Evangelho, ela nunca se encontra só, pois está associada à mensagem da ressurreição de Jesus. Contudo, não deveríamos ver a ressurreição como mítica? Podemos crer mesmo na ressurreição de um cadáver? Bultmann preocupa-se em levar-nos a jamais tratar a ressurreição de Jesus como se não passasse de relato mítico. Mesmo que o Novo Testamento narre a ressurreição com todas as aparências de um mito, temos de transcender à lição da narrativa do Novo Testamento. Tratamos a realidade da ressurreição no nível de um mito, quando procuramos fazer uso da narrativa para provar, com o sobrenatural, que Jesus é o Salvador e que sua morte teria sido um acontecimento de salvação em favor do homem. Isso, porém, não é

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nenhuma prova incontestável, pois a crença que tem por objeto a ressurreição de Jesus não passa de mero artigo de fé, e não se pode provar a veracidade de um artigo de fé por um outro. Além disso, essa tentativa de usar a ressurreição como argumento comprobatório da divindade de Jesus resulta também em queda numa atitude de inautenticidade, caracterizada pelo intuito de encontrar segurança na objetividade das coisas deste mundo. O Cristo ressurreto nos vem mediante as palavras da pregação e convoca-nos à fé. Não há meio pelo qual a história possa dar provas da ocorrência da ressurreição. Do mesmo modo como não posso provar a quem disso duvide que meu amigo é sincero comigo, pois só posso perceber a sinceridade de meu amigo no relacionamento das autênticas amizades, assim também ninguém pode provar definitivamente que Jesus ressuscitou de entre os mortos. Podemos somente encontrar o Cristo ressurreto na pregação que a Igreja faz neste mundo.

Conseqüentemente, segundo o entende Bultmann, a ressurreição de Jesus significa o surgimento da fé, que se prende ao poder salvador da Cruz de Cristo. Os cristãos participam da ressurreição de Cristo na medida em que participam da crucificação. Na vida identificada com a ressurreição de Jesus que passam a experimentar, os crentes têm liberdade relativamente ao pecado, embora deva-se reconhecer que essa liberdade ainda se mantém à base de lutas íntimas e seja muito imperfeita. Sem que se disponha do efetivo conhecimento do significado salvador da Cruz, a morte de Jesus não passa de um acontecimento trágico que eliminou desta existência um outro grande homem. Entretanto, o poder salvador da Cruz significa que Cristo venceu a morte e proclamou nossa liberdade sobre ela. Esse poder da Cruz nós o encontramos na pregação, e Bultmann conclui insistindo que a fé derivada da ressurreição de Jesus de entre os mortos coincide com a fé na palavra da pregação.

Mais uma vez se levanta a voz do crítico, exigindo de Bultmann que ele diga se não é verdade que necessitamos de alguma verificação de natureza histórica em face de tudo isso. Como teria surgido essa fé relacionada com a ressurreição de Jesus de entre os mortos? Que dizer do túmulo vazio? Bultmann não se cansa de responder, diante de tais perguntas, que, dessa forma, o que se está desejando é obter segurança a partir do mundo objetivo. Tudo que as pesquisas históricas nos podem provar é que os discípulos se tornaram crentes na ocorrência da ressurreição de Jesus de entre os mortos e saíram pelo mundo pregando que ela tinha acontecido. Isso jamais persuadirá o cético à fé. Ele pode tentar explicar tudo psicologicamente. Mas, enquanto isso acontece, o indivíduo que insiste na possibilidade de provar historicamente a ressurreição estará revelando desconhecimento do elemento que realmente interessa. A fé relacionada com a ocorrência da ressurreição de Jesus significa a mesma coisa para nós que significou para os primeiros discípulos - a auto-manifestação do Senhor ressurreto, através de quem o acontecimento redentor da Cruz se torna completo. Existe um antigo hino de teor absolutamente evangélico, em cujo estribilho se encontram estas palavras:

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“Ele vive, ele vive, para conceder-nos a salvação.Se me perguntardes como é que sei que ele vive,hei de dizer-vos: Ele vive em meu coração.”

Por estranho que pareça, Bultmann, não obstante ser conhecido por todos como um radical “demitologizador”, concorda plenamente com a mensagem do citado estribilho. Quem quiser que exija prova efetivamente objetiva de que Cristo ressurgiu de entre os mortos estará revelando o receio que tem de expor-se aos riscos que estão associados à experiência da fé cristã.

Existe ainda um outro problema que Bultmann sente que tem de enfrentar. Há aqueles que o acusam de não ter se livrado, absolutamente, da tendência para o mito, pois ele ainda fala de um imaginário “ato de Deus”. Bultmann diz que Jesus viveu como qualquer outro homem vive. Não admite ele nenhuma possibilidade de intervenção miraculosa do sobrenatural neste mundo. Não obstante, insiste em falar da pessoa de Jesus como sendo um ato de Deus. Não será isso uma atitude mitológica? Não implicará isso em falar-se do transcendente em termos deste mundo?

Bultmann procura deixar claro o porquê de ele não entender que continuar falando de um ato de Deus seja atitude mitológica. Caso se entenda por ato de Deus um acontecimento que quebre as leis da natureza, então sem dúvida prevalece uma atitude mítica ao enunciar-se a noção de um ato de Deus. Entretanto, sabe-se que na Bíblia Deus é visto como agindo através das forças que chamamos de naturais. No Velho Testamento, por exemplo, se diz que Deus decidiu agir através de certo rei que concedeu liberdade aos judeus que estavam, então, sofrendo no cativeiro, e nada se diz naquele relato de nenhuma ocorrência miraculosa. Para Bultmann, um ato qualquer de Deus ocorrerá sempre como acontecimento natural, que pode ser tomado como sendo ato de Deus somente pelos que têm a visão da fé. Por outro lado, sabe-se que o mito sempre procura dar uma prova objetiva da intervenção divina; o mito procura ressaltar a presença de um poder sobrenatural mediante o qual sejam dissipadas todas as dúvidas quanto à ocorrência do ato de Deus. O que distingue o ato de Deus em Cristo de um mito é que não podemos provar objetivamente que Deus estivesse agindo por meio de Cristo. A idéia de ato de Deus não nos constrange a crer como a formulação do mito pretende fazer, pois é uma idéia que resulta em convencer-nos a crer.

Bultmann pode considerar-se como conservador radical. No trato do problema relacionado com a historicidade do Novo Testamento, ele não cede a ninguém o primeiro lugar que ocupa no empenho por defender um ponto de vista radical. Ele se recusa intransigentemente a tentar proteger o Novo Testamento contra as dúvidas mais radicais que lhe são levantadas. Ele concorda com os que entendem que boa parte da linguagem do Novo Testamento é mítica. Não devemos manchar a natureza da fé cristã pela insistência em conseguir que outros creiam em alegadas intervenções sobrenaturais no universo. Tudo isso faz com que Bultmann se coloque como figura de relevo entre os teólogos da ala radical. Entretanto, quando os radicais ficam fascinados diante da exposição de sua teologia, Bultmann como que se insurge contra eles com

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a ênfase conservadora de que Deus agiu decisivamente em Cristo, visando a salvação dos homens. Nesse ponto, os radicais ficam prostrados em verdadeiro desapontamento, com a triste impressão de que Bultmann arrefeceu em seu ânimo e abandonou seu proclamado radicalismo. Por outro lado, os conservadores que lêem Bultmann não conseguem crer que Bultmann realmente acredite nas declarações de teor conservador que faz depois de ter dito tanta coisa que coincide com os pontos de vista do radicalismo. Tanto os conservadores como os radicais concordam em que Bultmann é incoerente quando fala como conservador ou como radical. Entretanto, Bultmann não se deixa impressionar com essas críticas. Em adesão definitiva ao conceito da realidade da nova vida que ele deriva da pregação do Cristo ressurreto, ele não teme de tratar com total desdém a tudo quanto transpareça preocupação de segurança com base em evidências fornecidas neste mundo. Em Bultmann, pelo menos, vê-se que as tendências do pensamento teológico radical ficam bem à vontade em face da fé entendida do ponto de vista conservador.

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Dietrich Bonhoeffer e o Cristianismo Secular

Uma das figuras de maior influência na teologia atualmente é Dietrich Bonhoeffer. Por cerca de dez anos, desde sua morte em 1945, ele foi lembrado principalmente como mártir, mas, nos dez anos seguintes, seu pensamento foi se tornando fator de grande inspiração para teólogos filiados a tendências bem diferentes. Pode parecer estranho que ele pudesse causar impacto tão notável sobre os teólogos e sobre os jovens pelo fato de que seu estilo é um tanto pesado e não muito claro. Por exemplo, ele preferiu dar os seguintes títulos a suas obras de maior importância: Sanctorum Communio e Ato e Ser. Como se observa, não são títulos assim que costumam ser adotados para o lançamento de best-sellers.

Em grande medida, a influência de Bonhoeffer baseia-se na maneira como ele viveu. Filho de um psiquiatra alemão, ele nasceu em 1906. Foi muito ativo nas iniciativas ecumênicas da Igreja considerada como uma entidade mundial. Ele foi um dos primeiros alemães que perceberam o mal contido no nazismo. Por causa da maneira aberta como criticou o regime de Hitler, ele quase sempre teve de trabalhar clandestinamente. Por algum tempo, ele esteve com a responsabilidade da direção de um seminário que existiu à margem da lei. Ele ausentou-se da Alemanha por um certo período, durante o qual desempenhou um pastorado à frente de uma paróquia inglesa. Quando as nuvens da guerra estavam se adensando durante o ano de 1939, ele se encontrava em visita aos Estados Unidos. Seus amigos insistiram muito com ele para que permanecesse fora da Alemanha, mas ele sentiu que só lhe seria possível colaborar na futura reconstrução da Alemanha caso estivesse presente ali durante os anos tenebrosos que ele antevia para o país e, assim pensando, Bonhoeffer voltou para sua terra.

Os teólogos importantes da Alemanha na década de 1930 sentiam que tinham a obrigação de decidir quanto ao que fazer em face do nazismo. Barth e Tillich tiveram de exilar-se, Bultmann agiu com suficiente reserva para manter-se em sua cátedra durante a era nazista, mesmo tendo de experimentar constantes tensões. Bonhoeffer optou pela volta à Alemanha, para comprometer-se com o movimento de resistência que operava na clandestinidade e até mesmo para associar-se ao grupo que planejou assassinar Hitler. Em 5 de abril de 1943 ele foi preso e passou dois anos na cadeia. Pouco antes da chegada das tropas americanas que conseguiram libertar a área do país na qual ele estava preso, ele foi enforcado em Flossenburg, no dia 9 de abril de 1945.

Enquanto ele esteve aprisionado, conquistou o respeito e a admiração dos companheiros de prisão e dos encarregados da vigilância. Os vigilantes lhe permitiram até o envio de cartas endereçadas a seu amigo Eberhard Bethge. Exatamente aquelas cartas, divulgadas em volume intitulado Cartas e Escritos da Prisão, tornaram-se uma das

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principais fontes para que se verificasse sua elevação até os altos escalões do pensamento teológico nestes últimos tempos. Bonhoeffer morreu como tinha vivido, isto é, dando testemunho de sua fé. Os policiais foram buscá-lo para que ele fosse levado ao lugar de sua execução precisamente no instante em que ele estava terminando a realização de um culto do qual participava juntamente com os demais companheiros de prisão. Com absoluta tranqüilidade, ele voltou-se para um de seus amigos e disse-lhe: “Chegou o fim. Para mim, esse é o momento quando começo a viver.”

O leitor do volume que reúne as referidas cartas com freqüência fica perplexo. Sente-se como se estivesse ouvindo uma gravação de alguma conversa mantida entre desconhecidos. Trata-se de cartas dirigidas pelo autor a um seu amigo e ele as escreveu mais visando a um extravasamento de valor terapêutico do que à elaboração de algum ensaio teológico. As cartas revelam o quanto de angústia ia naquele coração sensível, que numa prisão nazista, localizada em área diariamente ameaçada pelas incursões aéreas de bombardeios promovidos pelos países aliados, sofria. Com freqüência se vê que as cartas são, a um só tempo, expressões de esperança e de desespero. Numa das cartas, por exemplo, Bonhoeffer chega a dizer, cheio de confiança, que em breve seria absolvido e, poucas linhas abaixo, pede ao amigo que um determinado hino de sua preferência seja cantado durante o funeral. As cartas de Bonhoeffer denotam claramente a saudade que tinha da família e dos amigos. Bonhoeffer, dessa forma, mostrava como, embora dando palavras de encorajamento a todos quantos podiam vê-lo ali na prisão, não reprimia os impulsos de seu coração no sentido de levantar o véu em que se sentia envolvido por dúvidas e receios. Noutra de suas cartas, ele se abre para com o amigo, dizendo como dirigiu palavras muito ásperas contra certo companheiro de prisão, por entender que ele estava dominado pela covardia, e logo passa a lamentar-se por sentir as acusações de sua consciência pelo que fez.

Bonhoeffer não podia reprimir-se e dizia impropérios pela perda do caráter privado da vida em nosso mundo moderno. Ele se opunha a que alguém intentasse trazer a público o que se passava no íntimo de outro. Que, então, ele pensaria, se soubesse que aquelas suas cartas, nas quais ele procurava dar vazão a suas angústias mais profundas, haveriam de ser reunidas em livro de excepcional procura nas livrarias? Não obstante, que a perda para a teologia moderna, se tais cartas não tivessem vindo à luz! A leitura das cartas de Bonhoeffer nos traz mais inspiração do que a leitura de outros livros que são anunciados como sendo destinados à devoção. As cartas não foram escritas como tratados teológicos; entretanto, elas têm sido um incentivo para o aparecimento de estimulante tendência no campo da teologia.

Um dos problemas capitais na interpretação do pensamento de Bonhoeffer consiste em decidir qual é o significado de suas cartas escritas nos anos de prisão. Será que as cartas são enunciados totalmente independentes ou será que devemos lê-las em paralelo com as lições contidas em seus escritos sistemáticos? Alguns têm expressado receios (outros rejubilam-se com isso) de que Bonhoeffer tenha perdido sua fé durante o tempo de sua prisão e afirmam, em conseqüência, que seu

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pensamento teria apostatado do cristianismo. Outros estudiosos alegam que, embora ele não teria perdido sua fé, Bonhoeffer entendeu que o cristianismo teria de ser totalmente reconstruído, de modo que nada escrito em seus antigos escritos é útil para lançar qualquer luz sobre a orientação teológica posteriormente adotada. Há outros estudiosos ainda que nada encontram de novo nas cartas que Bonhoeffer escreveu nos dias de sua prisão. Resumindo, pode-se afirmar que os estudiosos deste assunto encontram- se atualmente empenhados no que nós podemos chamar de “pesquisas concernentes ao Bonhoeffer histórico”.

Em livro desta extensão e desta natureza, não podemos dar explicações mais satisfatórias nem documentar a interpretação particular que adotamos, mas devemos indicar qual é essa interpretação. Na opinião do autor deste livro, Bonhoeffer era um pensador dinâmico e original que estava continuamente desenvolvendo suas idéias. Naturalmente, o tempo que teve de passar numa prisão o constrangeu a reavaliar com seriedade a exposição de sua teologia. Entretanto, longe de entender que suas cartas contenham elementos radicalmente diferentes das doutrinas antes sistematizadas por ele, o que temos de notar em suas cartas são novas ênfases a propósito de determinadas facetas de seu pensamento fundamental.

Aqueles estudiosos do assunto que entendem serem as cartas escritas durante a prisão algo como um rompimento definitivo com o pensamento que o caracterizava antes, têm deixado de tomar em consideração a ocorrência dos mesmos temas tanto nas cartas como nos antigos escritos. A última obra de envergadura que, aliás, ele não chegou a concluir, é sua “Ética”. Ao longo das páginas desse livro, encontramos quase todos os temas constantes nas cartas escritas na prisão, com a vantagem de que, no livro inacabado, os assuntos são desenvolvidos mais do que o poderiam ser nas cartas. Mais ainda, mesmo em produções contemporâneas às obras que tinha publicado, como vemos na coletânea de seus ensaios ocasionais, intitulada Nada de Espadas Enferrujadas, será possível identificar as sementes, por assim dizer, das quais os conceitos registrados nas cartas da prisão vieram a germinar.

Bonhoeffer tinha o excepcional talento de enunciar seu pensamento em frases capazes de produzir grande impacto. Uma dessas frases é a seguinte: “Graça barata”. Bonhoeffer acusou as igrejas protestantes em geral, particularmente a sua própria Igreja Luterana, de elas procederem como se fossem águias, “esvoaçando sobre o cadáver da graça barata”. Essa “graça barata” promete aos homens que, crendo-se em certas doutrinas, os pecados serão perdoados sem que se tenha de fazer para isso nenhum esforço. Isso é um grande conforto para aqueles cristãos que não querem a viver diferentemente dos não cristãos. A graça barata prega a possibilidade de obter-se perdão sem nenhum arrependimento.

A graça barata é noção que provém da injustificada ênfase que se dá a essa gloriosa salvação como sendo gratuitamente oferecida aos homens. Bonhoeffer era e manteve-se como Luterano muito compenetrado para que ousasse negar a realidade dessa experiência de gratuidade da salvação. Entretanto, ele insistia em dizer que a graça de Deus não é algo barato. E algo que custa muito. A graça divina renova e transforma a vida do ser humano; a natureza humana é pecaminosa e

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deve experimentar verdadeira morte. Na pessoa do próprio Lutero, Bonhoeffer identifica uma espécie de símbolo dessa experiência transformadora. Quando Lutero entrou no mosteiro dos Agostinianos, aquela sua atitude representava para ele um sacrifício extremamente custoso, pelo qual ele pensava, então, ser possível obter a salvação. Todavia, encontrando-se ali no mosteiro, percebeu o inesquecível Reformador que a graça de Deus não se destina, propriamente, aos atletas espirituais, pois não é algo que deva ser objeto de conquista ou de aquisição. Exatamente quando se desesperou da eficiência daquele seu método, foi que ele viu que a mão divina lhe estava sendo estendida, para dar-lhe a graça de que ele necessitava. Ao apossar-se, então, da graça que lhe era oferecida, Lutero não teve nenhuma dúvida de que se tratava de uma graça efetivamente custosa. Porque mais uma vez ele entendia que devia abandonar tudo e seguir a Cristo sem reservas. Somente havia uma diferença, que era a de que ele tinha de procurar manter-se como fiel seguidor de Cristo, voltando para o ambiente do mundo.

A volta empreendida por Lutero para o ambiente do mundo era um golpe mais profundo contra o mal vigente por toda parte do que poderia ser aquela sua anterior fuga para uma vida de asceta. Longe de sentir-se livre das obrigações da prática das boas obras, Lutero entendeu que a graça divina o conduzia para a adoção de mais sério discipulado. Entretanto, alegava Bonhoeffer, os luteranos mostram-se esquecidos da intuição experimentada por Lutero. Eles têm vivido como se o cristianismo nada mais fosse do que a freqüência à igreja, durante cujos atos de culto eles podem ouvir que seus pecados já foram perdoados. Já não se lembram de que os cristãos devem sentir-se chamados para que sejam discípulos de Jesus. Sob o impacto dessas verdades, Bonhoeffer intitulou um de seus livros de “O Custo do Discipulado” (1937). Depois de empenhar-se em forte ataque contra o que chama de graça barata, Bonhoeffer se voltou para o Sermão da Montanha, considerando-o como estudo do significado do discipulado. O livro termina com algumas considerações a respeito da Igreja, considerada como o lugar próprio onde os discípulos de Jesus podem encontrar a fonte do revigoramento espiritual, que os capacita para uma vida conforme às exigências associadas ao discipulado. Posteriormente, em um outro livro, sob o título Vida em Comunidade, Bonhoeffer procurou fazer estudos mais minuciosos da Igreja, considerada como entidade que presta cultos à divindade, chamando a atenção dos leitores para o fato de ser ela a comunidade da qual se pode derivar o poder necessário para que se viva como cristão fiel.

Escrevendo suas cartas durante a prisão que sofreu, Bonhoeffer parece ter a impressão de ter dito algo perigoso em seu livro O Custo do Discipulado. Não existe a menor dúvida de que o livro incorre em perigo de estimular o legalismo. Não obstante isso, Bonhoeffer escrevia da prisão que não tinha mudado seus pontos de vista externados anteriormente. O que tinha escrito antes lhe parecia continuar sendo uma palavra que a Igreja não podia esquecer nem deixar de ouvir durante o tempo que se encontrasse sob o regime nazista. Hitler tinha nada a temer enquanto os cristãos continuassem freqüentando a Igreja, para ouvirem que estavam perdoados, mas o que jamais haveria de tolerar seria que os

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cristãos se dispusessem a comportar- se como discípulos de Cristo a qualquer custo. Durante sua prisão, Bonhoeffer continuava a tirar força espiritual da maior parte da vida de adoração que ele tinha procurado delinear em seu livro Vida em Comunidade. Quando se referia a um tipo de piedade ou cristianismo capaz de exercer influência no mundo, nada mais estava ele fazendo do que dando continuidade ao desenvolvimento de seu antigo tema do discipulado que realmente custa.

Outras frases com as quais Bonhoeffer provocava muito o raciocínio de seus leitores em geral consistiam nas afirmações de que “o mundo alcançou a maioridade” e, em conseqüência, “ultrapassou os limites da religião”, de modo que devemos atualmente nos esforçar para apresentar, ao mundo um “'cristianismo não religioso”. O tema relativo a um homem não religioso e também relativo a um cristianismo não religioso tinha permeado o pensamento de Bonhoeffer por vários anos. Entretanto, enquanto se encontrava na prisão, ele percebeu o sentido de urgência que isso não podia deixar de criar para a Igreja. Por tempos imemoriais, os teólogos tinham feito apologia do cristianismo sob franca adoção do ponto de vista de que todos os seres humanos são religiosos. Essa natureza religiosa geralmente admitida constituir-se-ia no ponto básico, partindo-se do qual, era possível ao cristão dialogar com não cristãos sobre a fé. Os teólogos faziam tudo para demonstrar como as aspirações religiosas do ser humano podiam encontrar a mais plena satisfação exatamente no conteúdo da fé cristã. Foi o que procurou fazer Schleiermacher quando partiu do ponto de vista do sentimento religioso universal e começou a alegar a superioridade do cristianismo sobre todas as demais religiões étnicas.

Bonhoeffer chama a atenção do leitor para Tillich, tomando- o como um exemplo da tentativa de produzir convicção nos que ainda não são crentes, pela suposição de que são todos já religiosos. Tillich alega que todos os seres humanos são religiosos, pelo fato de que há neles essa preocupação de natureza última. Tillich tenta demonstrar que a divindade revelada em Cristo é a única merecedora da mais sublime preocupação humana. Bonhoeffer levanta contra Tillich a objeção de que este tenta entender este mundo melhor do que o próprio mundo já pôde entender a si mesmo e, por isso mesmo, seria como se o mundo tivesse se sentido a si mesmo incompreendido. O problema, como o veio a entender Bonhoeffer, consiste em que Tillich deixa de levar em conta o fato de que o homem atual já não é um ser religioso, de modo que, qualquer tentativa de convencê-lo, mediante uma suposta religião de que seja portador, não prosperará. Pergunta-nos, então, Bonhoeffer: “Qual será o lugar de Deus, da oração, de Cristo, da Igreja e do culto na total ausência de religião no mundo atual?”

Quando Bonhoeffer faz perguntas a respeito do lugar de Deus, da oração, da Igreja e outras coisas semelhantes, numa situação de ausência de religião, isso nos soa muito estranho. Tomada como plausível, nossa definição generalizada de religião, caso o indivíduo reconheça a existência de Deus, faça oração, preste culto e pertença à Igreja, com isso demonstrará sua religião. Acontece que a palavra religião não dispõe de nenhuma definição aceita por todos. Temos de entender o que Bonhoeffer

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quer dizer com a palavra, “religião”, caso desejemos entender aquele seu apelo no sentido de adotar-se um cristianismo não religioso.

Em primeiro lugar, Bonhoeffer é de opinião que a religião estabelece uma divisão do mundo em duas esferas, a sagrada e a secular, ou a santa e a profana. A religião costuma entender que certas pessoas, certas profissões, certos atos e certos livros são sagrados, enquanto os demais são profanos. As pessoas e as atividades dedicadas ao que seja sagrado serão mais elevadas do que as pessoas e as atividades associadas ao que seja profano. A vida que mais interessa ao religioso constitui-se num cenário de tensões e conflitos entre situações religiosas e profanas. Quanto mais religioso se presuma uma pessoa qualquer, tanto maior tempo e energia devotará ao que lhe pareça sagrado e tanto menos se disporá a gastar com o que lhe pareça profano.

Durante toda sua vida, Bonhoeffer empenhou-se na luta contra o estabelecimento dessa divisão do mundo em esferas sagrada e secular. Já pudemos ver como, mediante sua análise do discipulado que custa, ele insistiu em salientar que temos de servir a Cristo no ambiente do mundo (isto é, na esfera do que se tem geralmente como sendo profano), e não num mosteiro (isto é, num lugar tido como sagrado). Já em 1932, Bonhoeffer escreveu, dizendo que a Igreja não se destinava a comportar-se como se fosse um santuário, mas, sim, seria ela “o mundo vocacionado por Deus para Deus mesmo”. Assim sendo, a Igreja não deve se retirar do ambiente do mundo, para fixar-se em ambiente que lhe proporcione uma existência sagrada, pois ela deve, na verdade, sair para o mundo levando-lhe a presença de Deus.

Em sua Ética, Bonhoeffer escreveu algumas linhas nas quais procura mostrar o erro da tendência da Igreja de pensar em termos do estabelecimento das “duas esferas” referidas. Quando a Igreja se deixa impressionar pelo pensamento de que haja duas esferas, a sagrada e a profana, ela logo revela a intenção de situar-se como instituição sagrada, de modo que lhe acontece tornar-se como se não passasse de mera “sociedade religiosa”. Em vez de um tal procedimento, entende Bonhoeffer que a Igreja deve procurar integrar-se no mundo, onde lhe será possível lutar visando à salvação do mundo pela importância da insistência em dizer aos homens que Deus ama este mundo. A responsabilidade própria do cristão não consiste em manter uma vida de piedade (isto é, uma vida cuja ênfase recaia no que se considere como sendo sagrado), mas, sim, no empenho por demonstrar-se fiel testemunha de Cristo no mundo através da maneira de viver e das atividades que desempenha. A pessoa que presume dedicar-se a um tipo de vida piedosa comporta-se como a zombar de Deus. Teria sido por esse motivo que Lutero se sentiu em condições de poder dizer que Deus preferiria ouvir as blasfêmias dos ímpios do que as expressões de Aleluia dos que se têm como piedosos. Bonhoeffer afirma que a Igreja vive numa “infeliz impiedade” quando, mostrando-se desobediente para com Deus, não obstante, continua invocando-lhe o sublime Nome. Por outro lado, há uma “feliz impiedade” no mundo, que é como um protesto levantado contra essa impiedade da falsa santidade, que tanto tem concorrido para a corrupção da Igreja.

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Quando, escrevendo suas cartas na prisão, Bonhoeffer começou expressar-se em favor da existência de um cristianismo independente da religião, ele não estava abrindo nenhum abismo com relação a seu pensamento anteriormente expresso. Nas cartas se encontra, porém, uma nova ênfase. Em seus escritos anteriores, seu pensamento primordial consistia em afirmar que a fé cristã, na verdade, leva o ser humano a desvalorizar a religião. Na prisão, entretanto, ele se tornou convencido de que o homem moderno ultrapassou a fase de apreço para com a religião de tal forma que um apelo dirigido ao sentimento religioso universal já não funcionava como método eficiente para despertar a atenção para a necessidade de aceitação do cristianismo. As últimas razões dadas pelo cristianismo para insistir em defender a religião não mais prevaleciam.

A religião tinha desaparecido, assim cria Bonhoeffer, pelo fato de que o ser humano “alcançou sua maioridade”. O homem moderno encontra explicações para todos os problemas e soluciona-os sem nenhuma necessidade de fazer referências a Deus. Tudo indica, insiste Bonhoeffer em dizer, que Deus mesmo está procurando ensinar ao homem a possibilidade de que se viva sem cogitação quanto à existência da divindade. Deus consentiu em ficar à margem do mundo e ser cravado numa cruz, pelo fato de que não é por sua Onipotência que ele se propõe a salvar o mundo, mas, sim, pela humilhação a que chegou na pessoa de Cristo. Assim é que o mundo, alcançada sua maioridade, veio a fazer-se mais acessível à mensagem da divindade que se encontra revelada na Bíblia. Jesus oferece ao homem exatamente o oposto do que o indivíduo religioso o esperaria. O indivíduo que se presume religioso supõe, em geral, que, abandonado o mundo e dedicando a maior parte de seu tempo e de suas energias ao que lhe parece ser sagrado, ele será recompensado com muita felicidade e total ausência de sofrimentos. Enquanto isso, o Deus bíblico convoca o ser humano para que procure adentrar bem no âmago deste mundo impiedoso em que vivemos e aí passe a experimentar os sofrimentos que Deus mesmo teve de padecer.

Em segundo lugar, pela designação de religião, Bonhoeffer quer significar uma sistematização de natureza metafísica que tenta dar explicações do universo. O ser humano deseja explicar e entender sua própria existência. A metafísica é o meio de tentar oferecer uma explicação para a qual o homem costuma voltar-se quando verifica que os meios mais comuns se mostram insatisfatórios. Isso conduz ao que Bonhoeffer intitula de “O Deus dos Elos Não Explicados”. Isso quer dizer que, quando não dispomos de conhecimento mais racional, procuramos dizer, com ares de piedade, que nos encontramos em situação tal que só pode ser explicada como derivando-se da ação divina. O homem primitivo teve de apelar para sua crença relacionada com os deuses admitidos por ele para encontrar explicações para a maioria de suas experiências. Na medida do progresso do pensamento humano, surgiram explicações naturais para muitas experiências antes inexplicáveis, mas ainda subsistem elos sem explicação na corrente do conhecimento, de modo que há quem continue invocando a existência de Deus com o propósito de obter explicações para muitos fenômenos. Mesmo nos dias atuais, há cristãos insistindo em afirmar ser impossível ao cientista produzir a vida nos laboratórios. Como conseqüência lógica, entende- se que a criação da

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vida só é possível pela atividade divina. Entretanto, sabe-se não estar longe o momento quando o cientista produza a vida em seus tubos de ensaio, encontrando-se mais um dos elos tidos como inexplicáveis.

O problema relacionado com esse estranho deus dos elos não naturalmente explicáveis consiste em que ele se vai tornando inócuo com o passar dos tempos. A ciência chegou ao ponto de preencher as lacunas explicativas dos fenômenos. O homem, alcançada sua maioridade, diz Bonhoeffer, não sente mais necessidade hipótese da existência de Deus, para ter nela a solução dos problemas que enfrenta. A religião, nesse sentido de metafísica com que se pretende completar nossa mais plausível explanação e conhecimento do universo, é coisa obsoleta. Entretanto, isso não é nenhuma perda séria para o homem que tem fé bíblica. O Deus bíblico não é para ser encontrado naquilo que ainda vamos conhecer, mas, sim, em tudo quanto já conhecemos.

Outro aspecto da religião, para Bonhoeffer, consiste em que ela se propõe a tratar da interioridade e da individualidade de cada ser humano. O filósofo Whitehead de definiu a religião como aquilo que um ser humano costuma fazer com os momentos quando se encontra a sós. Bonhoeffer concordaria com isso, devendo, entretanto, fazer-se a ressalva de que, enquanto Whitehead tem isso em alta conta, Bonhoeffer o deplora, na verdade. O Velho Testamento, diz ele, não contém nenhum interesse para com a salvação pessoal nem individual e, bem compreendido, também o Novo Testamento não contém mostra esse interesse.

O apelo que se costuma fazer à religião como sendo uma experiência de natureza interior corresponde tanto à famigerada divisão entre o que se considera sagrado e o que se considera profano como ao que se tem chamado de deus do elo inexplicável. O indivíduo pretende voltar-se para sua vida interior, desinteressando-se do mundo em torno, com o propósito de encontrar-se em domínio que lhe é sagrado. Da mesma forma como se faz uso da noção da existência de Deus para preencher-se uma lacuna do conhecimento, também é comum ver-se como alguns se voltam para Deus, por tomá-lo como se fora “um deus ex-machina”, com o objetivo de ter seus problemas pessoais solucionados, sempre que verifica a insuficiência dos próprios esforços. Isso é como se Deus se dispusesse a ser como um mocinho de recados capaz de trazer uma alegre mensagem aguardada pelo homem e tirá-lo do desespero.

Quando a teologia constrói sobre o fundamento da religiosidade natural do ser humano não pode deixar de desfigurar-se. Ela sente que tem de atacar o homem que já atingiu a maioridade, e insiste para que consinta em voltar a um estado anterior de dependência servil. A teologia, nesse caso, terá de fugir para as considerações que ficam nos extremos da vida, para dar-nos a impressão de que ainda seja algo cabível no mundo. Nos extremos da morte, da culpa ou do desespero, a teologia tudo faz para encontrar as evidências de fraqueza e frustrações, passando, então, a explorá-las, de modo a conseguir a adesão dos homens à religião. Esse ponto de vista, que parte da noção de um sentimento religioso universal, termina por insistir num esforço persuasivo tal que leve pessoas perfeitamente felizes a se sentirem infelizes, e assim

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conseguir que se voltem para Deus como fonte única da felicidade e do revigoramento espiritual.

Os teólogos que procuram basear o cristianismo na referida noção de que o sentimento religioso universal tem procurado voltar-se, em tempos mais recentes, para os ensinos da psicologia do subconsciente e para a filosofia existencialista, em evidente esforço por encontrar nelas verdadeiras aliadas. Tanto a psicologia como a filosofia existencialista procuram analisar o ser humano em termos que lhe deixam patente o estado íntimo mais desesperador. Bonhoeffer se refere desdenhosamente a essas correntes do pensamento atual como “metodismo secularizado”. O ponto de vista no qual se situam essas correntes de pensamento encontra repercussão no íntimo somente de um pequeno número de intelectuais, indivíduos degenerados, pessoas que se têm na conta de muito importantes no mundo e que têm prazer em ficar olhando para o próprio íntimo. O homem comum, porém, encontra-se sempre muitíssimo ocupado com o trabalho, a família e distrações de sua preferência, para que se entregue a qualquer gênero de desespero intelectual.

Conforme o entende Bonhoeffer, qualquer ataque teológico que se faça contra a maioridade alcançada pelo mundo contemporâneo será desprezível, despropositado e destituído de cristianismo. Será um ataque desprezível pelo fato de ser uma tentativa de tirar partido do ser humano em sua fraqueza peculiar. Resulta sempre numa espécie de farejamento sacerdotal que procura insinuar a existência de algum pecado nos indivíduos para conseguir que fiquem agrilhoados. Tais ataques são expedientes de intimidação. Jesus falou demoradamente com os indivíduos mais fracos e pecadores de seus dias e nunca deixou de transmitir-lhes uma palavra de esperança. Nunca lhe ocorreu explorar-lhes a fraqueza nem fazer nenhuma tentativa de dar- lhes impressão de que eram piores do que o eram na verdade. Jesus não fez nenhuma tentativa no sentido de que os ladrões crucificados em ambos os lados de sua cruz se convertessem, até o momento quando um deles se dirigiu a ele. O ataque levantado contra a maioridade alcançada por este mundo é despropositado pelo fato de que não se pode conceber que os homens voltem à adolescência pela qual tenham passado. É um ataque destituído de cristianismo, por nada mais ser do que uma tentativa no sentido de forçar a Cristo para que volte a um estágio já ultrapassado da religiosidade humana. Isso seria como degradar a Deus, reduzindo-o ao papel de um expediente para preenchimento de lacunas próprias à fraqueza humana e uma entidade que tem de satisfazer necessariamente aos desejos egoístas do ser humano.

Para a religião, o homem ideal é o Homo-religiosis, isto é, um “santo” no sentido vulgar da palavra: um indivíduo piedoso que se concentra em sua vida interior de oração, à margem da atmosfera contaminada do mundo. Desde o início de sua carreira, Bonhoeffer demonstrou desconforto em presença dos piedosos. Ele preferia a camaradagem com os não crentes mais do que a convivência com aqueles que ficavam falando impertinentemente a respeito de Deus. Deus nos convoca, alega ele, não para que nos tornemos santos, mas, sim, para que nos tornemos, propriamente, homens. Não nos convém insistir em sermos mais religiosos do que Deus. Deus não se fez orgulhoso a ponto de

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desprezar a necessidade de tornar-se homem e viver conforme as limitações humanas. Os santos não aceitam participar dos prazeres que há no mundo, mas Bonhoeffer entende ser isso uma atitude de ingratidão para com Deus, tendo-se em vista quão admiráveis são os dons que dele nos vêm. E algo impróprio alguém demonstrar-se ansioso pelo transcendente quando se encontre, por exemplo, envolvido nos braços da esposa. O santo mantém seus olhares voltados para um outro mundo; ele se expressa com saudade do céu, como certo hino o enuncia. Entretanto, opina Bonhoeffer, o fato é que Deus nos pôs neste mundo e, enquanto aqui nos encontramos, é com este e não com outro mundo que temos de nos preocupar.

Enquanto se encontrava na prisão, Bonhoeffer planejou fazer uma exposição da fé cristã em termos do mundo atual e de um ponto de vista alheio ao conceito da religiosidade universal. Ele teve admitiu que a tarefa a que se propunha era mais difícil do que tinha pensado ser. Em certo momento, ocorreu-lhe alegar que a linguagem de que se dispõe atualmente já perdeu sua força original e não há outra linguagem que possa colocar-se no lugar da antiga. Talvez, o que devemos fazer seja continuar em nossos hábitos de oração dirigida a Deus e de serviço desprendido para com o próximo, enquanto ficamos na esperança de que o Espírito Santo nos venha a proporcionar as palavras mais capazes, para que voltemos a falar com poder ao mundo que nos cerca. Embora Bonhoeffer não pudesse contar com o tempo necessário para que elaborasse devidamente seu pensamento, podemos perceber a direção para onde ele se estava dirigindo. Essa direção pode ser verificada numa comparação dele com outros teólogos de influência. O popular livro do Bispo J. A. T. Robinson, intitulado Honesto para com Deus, deixou em seus leitores a infeliz impressão de que Bonhoeffer tivesse um pensamento pouco diferente do de Bultmann e Tillich. Na verdade, Bonhoeffer repudia o pensamento característico desses dois teólogos.

O conceito de demitologização de Bultmann é uma tentativa de tomar-se em consideração o fato da maioridade alcançada pelo mundo, no dizer de Bonboeffer. Uma vez que o homem moderno já não pode aceitar o conceito mitológico que se encontra na Bíblia, impõe-se que tal conceito bíblico passe a ser interpretado existencialmente. Bonhoeffer, entretanto, não se dá por satisfeito com isso. Ele faz restrição a Bultmann, tendo-o como insuficientemente radical. A tentativa por ele feita para anular os milagres destina-se ao fracasso, uma vez que as noções de Deus e de milagres encontram-se muito associadas. O que temos, então, de fazer é falar de Deus e de milagres em sentido que não coincida com o religioso que lhes é comum. Bultmann entretanto, mantém-se dentro do domínio próprio ao conceito de religião, como é evidente do emprego que faz do existencialismo ensinado por Heidegger. A preocupação de Bultmann com a tentativa humana de encontrar a maneira autêntica de viver, não passa de forma atual de procurar uma salvação individual, que, como se sabe, é da natureza mesma da religião.

Bonhoeffer faz críticas a Bultmann, por ter abandonado os milagres, mas, ao mesmo tempo, faz críticas também a Barth, por ele ter insistido em que se aceite tudo quanto se diz a respeito dos milagres narrados nos Evangelhos. Bonhoeffer chama-nos a atenção para o fato de que a própria

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Bíblia nos força a que consideremos alguns milagres como sendo mais importantes do que outros. Assim é que a ressurreição de Cristo mantém lugar exclusivo. Contra Bultmann, Bonhoeffer disse assim: “Essa mitologia (da ressurreição e de outras narrativas) é a própria coisa...” Em suas cartas escritas na prisão, ele nos diz que Sócrates inteirou-se da arte de morrer, mas que Cristo triunfou sobre a morte. E o significado da ressurreição. A narrativa da ressurreição é diferente dos demais mitos pelo fato de que os outros mitos prometem aos homens uma salvação que os tira do mundo, ao passo que o mito da ressurreição sugere que os cristãos se voltem para o ambiente do mundo. O mito surge de situação que fica num extremo; Cristo se apodera do homem entronizando-se no coração de sua existência.

Há estudiosos que entendem que Bonhoeffer insistiu mais do que lhe convinha nesse ponto e pensam que ele teria mudado de pensamento, caso tivesse vivido mais alguns anos. Os críticos entendem que, caso Bonhoeffer tivesse tomado na devida seriedade aquele seu antigo pensamento de que o mundo tinha alcançado a maioridade, não lhe teria ocorrido a tentativa de pregar a esse mesmo mundo a mensagem da ressurreição de Jesus de entre os mortos. Essa crítica, porém, deixa de tomar em consideração um tema consistente que permeia as obras escritas por Bonhoeffer, nelas se incluindo as cartas da prisão. Por um lado, ele mostra ter percebido que não se pode escapar religiosamente do mundo, que já alcançou a maioridade. Não obstante, Bonhoeffer reconhece que existe uma espécie de amor para com o mundo que não se harmoniza com a fé cristã. O falso amor que se dedica ao mundo, caracteriza-se por aceitá-lo tal como se encontra, ao passo que o amor cristão para com o mundo leva-nos a que saiamos para redimi-lo. Bonhoeffer acusa Bultmann de ter caído no erro da teologia liberal. Tanto Bultmann como os liberais afirmaram que o homem moderno se houvesse de transformar em nova lei que pudesse determinar a Cristo o lugar que lhe cabe no mundo. Cristo veio a esse mundo para operar uma reconciliação. Isso se constitui em suficiente evidência, entende Bonhoeffer, para o fato de que o mundo necessita de salvação e não pode salvar-se a si mesmo. O cristão que ame o mundo não deverá, portanto, submeter-se ao mundo como vencido, pois que, se submetendo, o cristão nada lhe poderia proporcionar de bom. Se pretender limitar a fé cristã somente ao que o homem moderno se disponha a aceitar em determinado momento da história, então o que vai acontecer é que a fé cristã se destituirá de qualquer dinamismo salvador.

A oposição de Bonhoeffer contra Tillich já foi referida. Para Bonhoeffer, Tillich parte do conceito falso de que o homem seja religioso por natureza, de modo que nos será possível conquis-tá-lo para Cristo apelando para seu sentimento religioso. Além disso, Tillich fez referências aos momentos extremos da existência, quando é dado ao homem que se confronte com Deus e a respeito dele demonstre uma preocupação última. E no instante mesmo da dúvida que o indivíduo se acha com “coragem de ser”. Consoante o entende Bonhoeffer, isso não passa de outro apelo religioso que procura explorar as fraquezas humanas.

O relacionamento de Bonhoeffer com Barth é algo mais complexo. Bonhoeffer foi mais influenciado por Barth do que o teria sido por

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qualquer outro teólogo. Em suas cartas escritas da prisão, ele recorda o fato de que Barth foi o primeiro teólogo que produziu uma crítica severa contra a religião. A definição aventada por Barth do que seja a religião é algo diferente da definição sugerida por Bonhoeffer. Barth definiu a religião em geral como sendo uma busca humana por Deus, enquanto o cristianismo é a resposta humana em face do interesse que Deus revela para com o homem. Todavia, Barth e Bonhoeffer concordam que o cristianismo não é mera procura introspectiva de soluções para os problemas que nos afligem nem algo que se pareça com uma fuga para algum domínio reservado ao que seja sagrado. Ambos concordam em dizer que o lugar do cristão é, propriamente, no mundo, onde deve procurar viver como leal discípulo de Cristo.

A despeito dos pontos de harmonia que tem com Barth, Bonhoeffer lhe dirige críticas em suas cartas escritas da prisão. Entende ele que Barth tenha tido a leviandade de enfrentar o mundo em plena maioridade, com o conceito infundado do “positivismo da revelação”. Essa frase, que Bonhoeffer deixa sem qualquer explicação, é muito obscura. O problema básico que parece que ele vê em Barth consiste numa apresentação da revelação com bases em uma decisão de recebê-la ou deixar de recebê-la. Barth não procurou interpretar suficientemente a mensagem da revelação para o homem dos dias atuais. A despeito do ataque digno de consideração que encetou contra a religião, Bonhoeffer entende que Barth não levou sua tentativa de elaborar o pensamento de uma interpretação não religiosa do Evangelho até o ponto desejado.

Como é que Bonhoeffer traça as características de uma interpretação não religiosa do cristianismo? Certamente, ele não pensa que se deva abandonar a Igreja, nem esquecer a oração, nem desprezar o culto. Entretanto, ao longo de toda a vida, ele procurou atacar a idéia de que haja qualquer esfera que deixe de pertencer a Cristo. Cristo não pode ficar encarcerado dentro de uma sociedade eclesiástica, considerada sagrada. Assim como temos de procurar servir a Deus através do conhecimento que vamos adquirindo, e em tudo quanto revele capacidade em nós, também temos de compreender o imperativo que pesa sobre nós de procurar servir a Deus quando nos empenhamos em transações de natureza comercial e quando somos cientistas em algum laboratório. A Bíblia não dá nenhum apoio à idéia de que se deva dar preferências à vida interior do ser humano, como se se pudesse afirmar que nessa vida interior se encontrasse a localização própria dos talentos sagrados de que sejamos portadores. A Bíblia, pelo contrário, contempla o homem como sendo uma totalidade e é o homem em sua inteireza que se deve sentir reinvindicado por Deus. Assim sendo, o lugar da Igreja não pode encontrar-se nas extremidades da existência, mas, sim, no centro da vida humana.

Em sua Ética, Bonhoeffer tem uma passagem que lança muita luz sobre o cristianismo considerado à parte da religião. Ele toma, como elemento de contraste, a ética popular de Dilschneider, que sugeria estar a ética cristã preocupada com o cristão economista ou estadista, mas nada tinha a dizer quanto à economia e à política em si mesmas. (O leitor deve verificar a semelhança existente entre os argumentos expressos por Dilschneider e as idéias correntes na América de que o dever da Igreja

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consiste em procurar salvar as almas e tratar de assuntos espirituais sem que se procure envolver nos problemas políticos e econômicos). Bonhoeffer põe imediatamente seu indicador na questão social. Será que a Igreja tem apenas de ministrar a caridade aos que tiverem sido esmagados pelo rolo compressor das instituições sociais, ou será o caso de admitir-se que a Igreja tem o dever de tomar providências para que ninguém seja esmagado?

Para Bonhoeffer, a questão deve ser respondida em termos do senhorio de Cristo. Significa dizer-se que nada fica fora do relacionamento com Cristo. A Igreja é a instituição por cujo mi-nistério Jesus se torna conhecido no mundo, e, em conseqüência, sem dúvida tem responsabilidade para com todo o mundo que Deus ama. E somente mediante Cristo que tudo, desde o ser humano até o Estado e a economia, alcança relevância. Isso não significa que tenhamos de lutar pelo estabelecimento de um Estado cristão, ou por uma economia cristã, mas significa que temos de contribuir para o estabelecimento de um Estado e de uma economia que obedeçam a normas justas, tendo-se em vista a pessoa de Cristo. Cristo, em sua qualidade de Senhor, vem até essas instituições não como um ser estranho a elas, mas, sim, como instituições que lhe pertencem em última instância. Sob o domínio de Cristo, as instituições assumem seu verdadeiro caráter. Os cristãos não têm de lutar para conseguirem que as instituições sociais caiam sob controle de um grupo sacerdotal nem deve constituir-se em objetivo dos cristãos o obter-se a conversão de alguns poucos líderes. Em vez disso, os cristãos devem se esforçar para que as instituições sejam libertadas de influências prejudiciais para que se façam úteis para o mundo. Colaborando no seio das instituições que são responsáveis pela aplicação da justiça, os cristãos proporcionam os meios para que o senhorio de Cristo seja exercido através delas. Exatamente como se espera que o cristão se mantenha como homem verdadeiro e não como um santo mal compreendido, da mesma forma cumpre conseguir-se que o Estado se mantenha como verdadeiro e não se entenda como “sociedade religiosa”.

Esse ponto de vista relativamente ao senhorio de Cristo no mundo é de conseqüências muito interessantes. Bonhoeffer observa que o cristianismo tem muitas coisas esperançosas a dizer aos pecadores, mas nós não podemos esquecer de que Deus é Deus dos bons também. As versões generalizadas do cristianismo em seu aspecto sentimental têm dado tanta ênfase à mensagem dirigida aos pecadores que deixam a impressão de nada ter o cristianismo a dizer aos que são bons. Entretanto, em tempos como os nossos, Bonhoeffer assim diz, devemos procurar tomar um outro ângulo para nossa visão quanto aos bons - aqueles que lutam pelo prevalecimento da justiça ou que se dispõem a lutar contra a desumanidade sob qualquer de suas formas. São eles também pecadores, mas o pecado deles não será nunca a bondade que todos lhes reconhecem, e, sim, a separação em que estejam do Senhor da vida de cada um deles. Quando tivermos de dialogar com tais pessoas, não devemos insistir em fazê-los pensar que as atividades humanitárias que exercem não passem de imundos andrajos, ou que sejam atos equivalentes aos que prostitutas e nazistas praticam. Não convirá que intentemos apanhá-los em evidências de alguma insuficiência, mas, em

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vez disso, temos de conduzi-los à consideração de que as atividades benfazejas que desempenham apontam-lhes a pessoa de Cristo.

Não podemos deixar de ficar admirados diante da visão do cristianismo que Bonhoeffer pôde obter durante sua prisão. Se tivéssemos de pensar em um lugar no qual alguém se tivesse de retrair na mais invariável introspecção, empenhado no desejo de encontrar-se com a divindade no mais profundo recesso de sua consciência de fraqueza, não teríamos dúvida de afirmar que tal lugar haveria de ser uma prisão nazista, quanto mais se considerarmos que tal lugar se encontrava em uma área que era alvo de intenso bombardeio dos aliados, inimigos daquele regime. Não obstante, foi exatamente em lugar assim que Bonhoeffer entendeu de convocar a Igreja, para que ela saísse da situação em que se encontrava, a murmurar contra os avanços do conhecimento humano e pusesse um ponto final em seus métodos de exploração da fraqueza humana. Há poucos anos passados, certo líder religioso popular estava sendo citado pelos jornais por ter afirmado que um número muito grande de americanos estava tomando comprimidos para conseguir dormir, em vez de se voltar para Deus. Bonhoeffer não se preocuparia com tal coisa. O que lhe ocorreria decerto criticar seria o fato de que um considerável número de líderes religiosos continua oferecendo Deus ao povo, como se ele fosse um substituto das famigeradas pílulas.

Como Bonhoeffer desenvolveria seu pensamento, caso lhe tivesse sido dado mais tempo de vida? Não podemos responder a isso com nenhum grau de certeza, mas ousamos sugerir algumas linhas prováveis. Referiu-se ele certa vez a Deus como estando não nos extremos da vida, mas, sim, como constituindo-se no “além que se situa exatamente no meio da vida”. Não há dúvida de que isso coincide com uma verdadeira reafirmação da concepção cristã tradicional de que Deus seja a um só tempo imanente e transcendente. Deus deve ser encontrado por nós naquilo que conhecemos e não no que não conhecemos. Quando procuramos encontrar a Deus naquilo que não conhecemos, isto é, nos elos ainda não acessíveis ao conhecimento, nada mais estamos fazendo do que pensando em Deus como se ele estivesse no nível das coisas que nos são conhecidas. Por exemplo, costumamos ouvir que ele seja a primeira causa de tudo. Bem sabemos o que é uma causa nas diversas situações que nos são conhecidas neste mundo, mas não sabemos o que seja a causa da qual provém o universo. Assim, ouve-se, com relação ao universo deve-se admitir uma causa, com a ressalva tão-somente de que se trata de causa infinitamente maior e melhor. Entretanto, a despeito de nossa referência a ele como causa “maior e melhor”, Deus tem se tornado simplesmente um elemento entre outros pertencentes à mesma série. Em tal caso, Deus já não se manteria como realidade transcendente.

Admitido, porém, Deus como constituindo-se no Além, que se situa exatamente no meio da vida, confessarmos que Deus se encontra nos processos que conhecemos, operando através deles, entretanto, operando em dimensão diferente das causas em geral. Em situações normais, nós reconhecemos a existência de diferentes dimensões. O policial, ao atentar para uma vítima qualquer, se pergunta: Qual teria sido a causa de sua morte? Essa é uma pergunta destinada a responder-se numa de suas

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dimensões mediante um laudo de autópsia. Entretanto, quando o mesmo policial se pergunta: Qual teria sido o motivo pelo qual aconteceu esse crime? o policial estará aludindo ao mesmo conjunto de fatos ocorridos no mundo, mas estará, então, atentando para esses fatos de uma perspectiva muito diferente da anterior e a resposta que a nova pergunta solicita envolverá uma dimensão peculiar. Nenhuma autópsia trará esclarecimentos relativos aos motivos da prática de um crime. Deus, considerado como constituindo-se no Além que se situa no meio da vida, terá de ser encontrado, não em algumas poucas experiências de natureza exótica, mas, sim, como determinando uma dimensão própria na inteireza da vida.

Da prisão, na qual esteve durante dois anos, Bonhoeffer procurou expressar-se, para dizer ao mundo que Deus e a fé cristã não podiam, desde aquele momento, ficar à mercê de uma conceituação que os deixaria como a florecerem como plantas de estufa, ao abrigo do mundo impiedoso, onde o homem alcançou à maioridade. O cristão deve sentir-se vocacionado pelo Salvador para que se lance no ambiente da agitação do mundo. Não se admite que o cristão, diz-nos Bonhoeffer, em uma de suas últimas cartas, aceite comprometer-se com essa superficial espécie de vida mundana conforme a entendem os “esclarecidos, os ocupados, os que desfrutam de conforto e os que se entregam à lascívia”. A vida do cristão deve ser algo muitíssimo mais, algo em que o “conhecimento da morte e da ressurreição esteja presente sempre”. O ser humano precisa deixar de pensar de si como se fosse alguém com características especiais, como o seriam os santos. Ao homem cumpre que tome a vida tal como ela se nos apresenta. É só assim que o homem se pode arrojar nos braços amorosos de Deus e chegar a participar dos sofrimentos que padeceu na cruz. “Porque”, disse Bonhoeffer, “eu descobri finalmente, e continuo ainda descobrindo, que é somente através do viver completo neste mundo que se aprende a crer.”

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Tendências Teológicas Atuais

J. Robert Nelson, em palavras encomiásticas que proferiu a propósito de Emil Brunner, observou que Brunner falecera poucos meses apenas depois de Paul Tillich. Essa consideração conduziu Nelson a dizer o seguinte: “E a pergunta se nos faz impertinente: onde se encontrarão seus sucessores?” Nos dias atuais nós procuramos em vão por alguém que surja com probabilidades de fazer uma contribuição capaz de comparar-se com a que foi deixada por esses teólogos. No momento, a teologia não compreend três ou quatro escolas sob a orientação de pensadores dignos desse nome. Ao contrário disso, o que se vê é que a teologia se vai tornando fragmentada em crescente e estonteante número de tendências, escolas e modalidades.

Embora a teologia não esteja contando com pensadores de renome nos dias atuais, o fato é que ela consegue aparecer novamente nos jornais de modo tal que nos faz lembrar os dias da controvérsia entre fundamentalistas e liberais há anos atrás. Os crentes em geral defrontam-se com perplexidades de natureza teológica em todos os meios de comunicação aos quais se têm habituado. Quase que anualmente se vem verificando a aparecimento, no mercado livreiro, de alguma obra teológica que alcança ampla divulgação. A venda apreciável de tais livros indica o interesse generalizado que existe em torno dos problemas de natureza teológica, embora também seja indício do interesse do público para com tudo quanto pareça uma briga que se esteja desencadeando em algum setor.

A teologia atual encontra-se em agitação e muitas incertezas, acarretadas pelas controvérsias. Quando lancei a primeira edição deste livro em 1954, disse o seguinte: “Há uma tendência no sentido de que os teólogos procurem fixar um terreno intermediário, de modo que consigam harmonizar-se, fugindo aos extremos.” Essa tendência veio a acentuar-se nos últimos anos da década de 1950. Tornou-se muito comum ouvir-se a confissão de pensadores neo-ortodoxos de que tinham abandonado precipitadamente muitas verdades advogadas pelo liberalismo, enquanto, por outro lado, alguns liberais começaram a falar com certo entusiasmo a respeito das correções necessárias, já feitas pela neo-ortodoxia. Os conservadores encontram intuições muito promissoras em ambos os grupos acima referidos. Ainda nos primeiros anos da década de 1960, esses excelentes indícios de bom entendimento conturbaram- se. Verificou-se, então, que os teólogos voltaram à mania de se atacarem. Não se admite mais que os teólogos insistam em acusar seus adversários de “heréticos”, mas é usual que eles procurem diminuir a força dos argumentos adversários como sendo “irrelevantes”.

Não podemos, no espaço reservado para este nosso propósito, fazer mais do que traçar um esboço muito rápido de algumas das tendências notáveis da teologia. Ainda é cedo demais para saber qual delas venha a

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tornar-se na voz do futuro de modo que devesse merecer aqui um tratamento condizente. Espera-se que o próprio leitor se sinta inspirado a tomar em consideração as novas tendências, estudando-as por si mesmo.

Atrás de todas as recentes tendências da teologia, verifica-se o interesse profundo que existe no sentido de que se procurem soluções para os graves problemas de nossa época (por isso mesmo, o defeito de irrelevância vem a ser o mais odioso que se pode atribuir a um teólogo qualquer). O leitor atento dos capítulos precedentes compreenderá que isso não é coisa nova. Haveria alguém entre os teólogos já estudados que não participasse desse interesse para com o que seja relevante? Qual é, então, a novidade? Prevalece por toda parte atualmente a impressão de que o mundo se encontra em estonteante processo de mudanças e que, por isso mesmo, qualquer teologia ou igreja que se proponha a fazer-se ouvida há de demonstrar-se com suficiente disposição de também mudar com vivacidade e radicalmente.

Os padrões de mudança característicos do mundo atual encontram-se em muitos níveis. O nível mais óbvio é o tecnológico. Não alcançamos fantástico progresso apenas referente às conquistas espaciais. Também o alcançamos na área da automatização da vida e no uso dos computadores. Marshall McLuhan é personalidade que vem empolgando as atenções do público por sua insistência na tese de que os modernos métodos de comunicação estão concorrendo para introduzir mudanças tais na estrutura mental contemporânea que jamais ocorreram iguais, nem mesmo quando a imprensa foi inventada. Intimamente associada à revolução tecnológica, encontra-se a explosão que se verifica na área do conhecimento propriamente dito. Não é raro que ouçamos afirmações de que o conhecimento exato chega a duplicar-se de dez em dez anos. Alguém que tenha saído com seu diploma da universidade há dez anos passados, seja qual for o campo de sua especialidade, encontra- se neste instante absolutamente desatualizado, caso não tenha procurado manter-se em dia com seus estudos. Talvez ainda mais significativa do que essa verdadeira revolução de natureza tecnológica e na esfera do conhecimento seja a revolução que se pode chamar de “capacidade de estimular a expectativa”. Com efeito, essa revolução relaciona-se com o fato de que a tecnologia resultou em ampliarem-se os horizontes da vida. Os pobres e destituídos de privilégio em todo o mundo estão fazendo exigências no sentido de que se lhes proporcione melhor participação no que haja de bom sobre a terra. Vai ficando bem remota no passado a situação na qual se concebia que os ricos ficassem buscando os louvores do público por fazerem muita caridade aos menos afortunados. As revoluções que se vêm processando em antigas colônias e as agitações freqüentes dos guetos por causa da discriminação racial são sintomas de uma nova disposição perante a vida que os empobrecidos se resolvem a manifestar.

Ouvimos, por toda parte, o que se diz da revolução ética de nossa época. Naturalmente, os itens que constam nas manchetes dos jornais limitam-se às questões da moralidade sexual e do uso de drogas, como, por exemplo, o LSD. Entretanto, sabe-se que o problema é de maior profundidade. A revolução ética vigente decorre da divisão existente entre as gerações. Número considerável de jovens expressa repulsa

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contra a maneira de viver tida como boa pelos pais. Não são poucos os que se põem a fazer referências lisonjeiras a outros tempos e lugares da terra, para trazerem-nos à memória que, em todas as sociedades, pessoas jovens e amadurecidas nunca deixaram de viver sob tensão mútua. Há alguma coisa diferente do que sempre se soube quanto a essa realidade? Admitindo-se que Marshall McLuhan tem razão no que diz, concorda-se que o jovem universitário de nossos dias vem sendo envolvido por condições intelectuais drasticamente diferentes das condições que envolveram anteriormente seus pais. O jovem universitário de hoje dispõe de padrões diferentes de avaliação. Grupos conhecidos como Beards, Beatniks e Beatles aí encontram-se diante de nossos olhos como a simbolizarem a adoção de modos de vida que jamais poderão ser devidamente entendidos pelos que já tenham mais de quarenta anos de idade.

Para cúmulo de tudo isso, alguns teólogos nos surpreendem com uma confissão de que a cristandade é coisa do passado. Com isso querem ressaltar que já não vivemos em cultura que possibilite à maioria das pessoas a aceitação dos valores proclamados pelo cristianismo. Na medida em que vemos países não cristãos oferecendo melhores condições de propagação do evangelho, pelos quais eles passam a admitir o triunfo do Salvador nascido numa manjedoura, verifica-se a triste realidade de que os cristãos se vão tornando em reduzida minoria entre nós. Alguns países, que tinham antes uma razoável esperança de que se houvessem de manter como protestantes, encontram-se atualmente sob situações tais que lhes fazem impossível que se esqueçam de que se constituem em sociedades pluralistas em matéria de fé, principalmente por ocasião de comemorações relacionadas com o natal e nas tentativas de manterem atos religiosos em escolas públicas. A sociedade tornou-se secular no sentido de que ela não admite mais nenhum controle por parte de grupos eclesiásticos.

Num mundo em mudança, o cristão se sente como que sob o império da necessidade de anunciar uma palavra que possa corresponder às exigências da época. Ao mesmo tempo, vai crescendo o número dos que alegam que a Igreja se tenha tornado mera estrutura interessada na preservação do passado; que ela se encontra preocupada na manutenção de seu bem- estar e não se dispõe aos riscos associados à necessidade de servir ao mundo. Ao darmos uma olhada nas correntes teológicas existentes atualmente, precisamos ter em mente essas circunstâncias.

Um dos temas predominantes na teologia moderna expressa- se por refrãos que sugerem a necessidade vigente de um cristianismo em conformidade com as exigências do mundo em que vivemos, ou seja, um cristianismo secularizado. Tais refrãos, que revelam a inspiração vinda de Bonhoeffer, refletem as preocupações de certos cristãos que se sentem vocacionados a entrarem nos domínios sociais e políticos para conseguirem prestar serviços relevantes a Deus e aos homens. A palavra “secularismo” tem uma história muito curiosa na teologia. Em 1928, por ocasião de uma das assembléias do Concilio Missionário Internacional, ocorrido em Jerusalém, foi declarada guerra contra o secularismo exatamente por um liberal americano, Rufus Jones, que, como se sabe, dedicou sua vida inteira à luta pelo estabelecimento de um mundo

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melhor. Ele afirmou então que o mais terrível rival do cristianismo já não seria nem o budismo, nem o islamismo, nem nenhuma outra religião étnica, mas, sim, o secularismo. No entender de Jones, o secularismo significava uma tentativa de adotar um tipo de existência que nada incluísse de preocupação pela divindade nem qualquer consideração de natureza espiritual. O secularista individualmente poderá prestar culto a Deus ou não, mas o fato será que procurará viver como se Deus não existisse. Durante duas ou três décadas, a interpretação que Jones dava do secularismo concorreu para que sua oposição se constituísse em fator de luta no “slogan” adotado pelo movimento ecumênico. Por exemplo, a Conferência de Oxford ocorreu em 1937 sob as sombras projetadas pelo nazismo e no entender de bom número de participantes da Conferência, o nazismo não passava de fruto sazonado do secularismo. Uma vez que o ho-mem passou a ignorar Deus, decidiu, em conseqüência, prestar cultos ao Estado.

Em 1954, Edwin Aubrey, outro liberal americano, publicou um livro com o seguinte titulo: “Secularismo, um Mito”. Esse livro caiu no esquecimento pelo fato de que sua publicação ocorreu doze anos antes da época que lhe seria mais própria. O livro surgiu numa época quando nenhum teólogo entendia que se devesse ouvir uma palavra recomendável sobre o secularismo. A tese defendida por Aubrey consistia na afirmação de que o termo “secularismo” se tinha tornado verdadeiro mito, que os teólogos estavam usando para denegrir tudo quanto não aprovavam. Ele fez uma lista de vinte e sete elementos que eram rejeitados sob a alegação de que incidiam em secularismo. Aubrey, então, convocou os estudiosos da teologia para que deixassem de gastar cartuchos de maneira tão indiscriminada e passassem a analisar com melhor critério as contribuições do mundo moderno, tanto no que tinham de positivo como negativo.

Sob a influência de Bonhoeffer o clima teológico mudou. Com rapidez fulminante, a palavra “secular” passou a ser considerada muito adequada e os teólogos já não sentiam nenhum constrangimento em dizer, com certo orgulho: “Sou mais secular do que o senhor.” Como se explica que tivesse havido uma tal mudança? Em parte, Isso proveio do fato de que o termo passou a ser definido diferentemente. Harvey Cox, um dos elementos que mais advogaram a secularização, procurou introduzir uma distinção entre “secularismo”, que ele dizia não aceitar, e “secularização”, que lhe despertava simpatia. Com o termo “secularização”, Cox procurava significar o processo histórico que ele pensava ser irreversível, pelo qual a sociedade fica livre tanto de controle eclesiástico como também de pontos de vista metafísicos destituídos de amplitude. A secularização será, assim, fator para que o homem se liberte da idéia de que ele está submetido a limitações impostas pelo destino ou tenha de reconhecer a existência de áreas fora do alcance do conhecimento. Estabelece-se, assim, o centro de maior interesse do homem como encontrando-se propriamente no mundo e não em domínios sobrenaturais. Por outro lado, no entender de Cox, o “secularismo” era como uma ideologia que resulta no estabelecimento de um novo conceito fechado do mundo, expressando-se como se fosse uma nova religião.

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Para Cox, a pedra angular da moderna secularização se encontra exatamente nas páginas da Bíblia. Esse é o caso quando a Bíblia nos revela sua doutrina a propósito da criação, pela qual nos ensina o “desencanto” da natureza. Com isso se deseja salientar o fato de que, ao afirmar-nos que o universo foi criado por Deus, a Bíblia nos deixa bem claro que o mundo nada tem de sagrado, pois só Deus o é. Assim compreendendo-se, vê-se que o mundo destina-se a ser manipulado pela ciência ou estudado pelo homem em todos os seus aspectos. Em segundo lugar, pode-se observar que o êxodo dos judeus, quando foram libertados da escravidão egípcia, nada mais foi do que o reconhecimento de que a política não é coisa sagrada coisa nenhuma. Quando os judeus conseguiram sacudir dos ombros o jugo que lhes advinha do monarca de então, aliás, devidamente constituído em seu governo, era como se estivessem a dizer que não há governo propriamente sagrado nem nenhuma autoridade que fique acima de qualquer crítica. A partir das experiências da existência nacional, os profetas nunca deixaram de opor-se, quando era necessário, em nome de Deus, a todos os desmandos dos vários reis que os judeus tiveram. Nunca houve tempo quando fosse lícito a qualquer governante que exigisse obediência irrestrita. Finalmente, vemos que, no Sinai, também os critérios tradicionais de valor perdem toda a auréola sagrada. Proibindo Deus a adoção da idolatria, deixou ele bem patente à consciência humana a verdade de que os valores admitidos por uma cultura não devem ser tomados como absolutos nem deverão entender-se como merecedores de fidelidade perene.

Uma outra dimensão foi ressaltada por Cox para deixar bem claro seu pensamento a propósito da secularização. Embora a base teórica da secularização se encontre na própria Bíblia, como se verificou, não foi senão depois do surgimento da cidade moderna que a secularização pôde firmar-se de modo definitivo. Antes o ser humano vivia nos estreitos limites da tribo ou das pequenas comunidades. Atualmente, entretanto, a maioria das pessoas passou a viver em cidades, de modo que quase todos vieram a receber influências próprias do ambiente urbano. É pensamento comum admitir-se como deplorável o fato inegável de que as grandes cidades não concorrem para que os traços das pessoas fiquem evidentes. Na opinião de Cox, porém, o fato recebe louvor, uma vez que, dessa forma, o homem fica livre. Por exemplo, enquanto se manteve em ambiente menos populoso, o indivíduo sempre esteve sob observação de vizinhos, e nunca se sentiu à vontade para escolher quem quisesse que fosse seu amigo. Sabe-se que, nos grandes centros, mantemos com as pessoas em geral um relacionamento superficial e passageiro. Chegamos a ignorar quem seja o vizinho do apartamento ao lado, e também ele ignora nossa existência. Pois bem, Cox insiste em dizer-nos que exatamente isso é uma vantagem, uma vez que nos deixa livres para escolher nossos amigos.

A maneira de viver-se nos grandes centros se caracteriza pela versatilidade (lembremo-nos de que os judeus foram um povo nômade). Os homens que vivem nas grandes cidades não ficam acorrentados a um determinado lugar, nem obrigados a trabalharem só em certas profissões nem invariavelmente submetidos às condições sociais que tenham herdado. Em grandes cidades é que, de modo geral, os talentos e o

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conhecimento científico são mobilizados para que os problemas humanos tenham solução. Os novos modos de vida fazem-se viáveis através dos esforços humanos.

Cox não cessa de expressar sua convicção de que a Igreja deve parar de se opor à secularização. Uma vez que se percebe como a própria Bíblia dá apoio à secularização, não há outra alternativa para a Igreja senão a de reconhecer-lhe a razão de ser. Em vez de empenhar-se em luta inglória para retomar uma forma de existência somente adequada para os tempos tribais e de pequenas comunidades, o que efetivamente a Igreja deve fazer é ser a vanguarda de Deus na vida urbana. A Igreja não é, primariamente, uma instituição; primariamente, a Igreja é o povo que foi preparado por Deus para “fazer-se presente onde quer que a atividade esteja acontecendo”, a fim de que possa tudo fazer pelo estabelecimento de um mundo melhor.

Cox faz notável tentativa, como o fez Bonhoeffer, de falar de Deus de modo secular. Ele expressa repugnância em face da linguagem metafísica de Tillich, tendo-a como remanescente imprestável de uma época superada. A demitologização proposta por Bultmann nada mais fez do que oferecer uma versão da Bíblia em termos metafísicos atuais. Cox entende não ser adequado que alguém fale de Deus em termos metafísicos. Precisamos falar dele através de analogias políticas. Quando os indivíduos viviam em pequenas comunidades, as relações pessoais se caracterizavam pelo sentimento do eu em face de um tu, por isso mesmo se podia compreender que a teologia, então, chamasse a atenção dos homens para o fato do relacionamento entre Deus e o homem nos mesmos termos. Relativamente aos grandes centros urbanos, porém, o tipo de relacionamento humano se faz diferentemente. Não é mais o relacionamento do eu e do tu, mas também não se deverá dizer que seja um relacionamento do eu com alguma coisa. O relacionamento como se verifica nos grandes centros caracteriza-se pela inclusividade, que se expressaria bem como sendo “eu e vocês”. E um relacionamento que implica em que tomamos alguém como sendo elemento de uma equipe. Em vista dessa mudança, o homem contemporâneo deve ser levado a procurar manter-se em comunhão com Deus em termos inclusivos. Em Jesus, vemos como Deus aceitou colaborar com o homem. Em vez, portanto, de deixarmo-nos fascinar com a contemplação da divindade, propriamente, cumpre que nos preocupemos mais com a obra que devemos fazer com a assistência divina. Como Bonhoeffer tinha já dito antes dele, Cox é claro em dizer que a tarefa de falar-se de Deus em termos de secularização é de extrema dificuldade. Todavia, ele não vislumbra outra esperança para a teologia.

Cox não é o único teólogo partidário dessa tendência no sentido da secularização, nos dias atuais. Outros teólogos há que não chegariam a concordar com todos os pontos de vista que ele defende. Apenas uns poucos se mostram tão otimistas quanto Cox a respeito dos valores morais decorrentes da vida dos grandes centros. Os teólogos que adotam essa tendência pela secularização estão todos de acordo na admissão de que se deva considerar a existência dos problemas próprios deste mundo em que vivemos como preocupação primordial para os cristãos. Deploram esses teólogos as muitas maneiras pelas quais a Igreja tem procurado

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racionalizar para inocentar-se em face dos fracassos que vem sofrendo no trato dos problemas relacionados com os males sociais e políticos. Vamos passar à consideração de uma outra tendência, que há entre os teólogos liberais - a preocupação por encontrarem-se novas formas eclesiásticas pelas quais prestar-se serviço ao mundo.

Collin Williams já escreveu muitos livros criticando a preocupação da Igreja atual no sentido de que se estabeleçam congregações sempre que surjam povoados. Williams não entende que as congregações sejam iniciativas totalmente obsoletas, mas admite que elas não mais tenham capacidade para conseguirem a realização de muitos propósitos que a Igreja deve sentir-se desafiada a empreender nos dias de hoje. Por tornar-se a congregação local uma espécie de estrutura primordial do funcionamento da Igreja, temos chegado ao inconveniente de vermos a Igreja dividida conforme as peculiaridades de natureza social, econômica e racial, que se encontram vigentes nas várias comunidades. Por exemplo, a Igreja sai do ambiente do trabalho, pois é sabido que as pessoas não residem mais, geralmente, nas proximidades do local de trabalho. Além disso, a tarefa concernente à manutenção da paróquia local, não raro, monopoliza tanto o tempo dos crentes que eles nem mais se sentem vocacionados a prestar serviços fora do âmbito da respectiva congregação.

Outrora, a congregação local era a única entidade devidamente aparelhada para proporcionar aos cristãos o ensejo de tomarem a sério os problemas do mundo. Numa pequena comunidade, todos eram capazes de conhecer a pessoa que era vítima do alcoolismo e também as pessoas que se encontravam em precárias condições econômicas. A congregação local, então, dispunha de condições e cumpria ou não as obrigações que lhe devessem pesar sobre os ombros, uma vez que, pelo menos sua organização lhe proporcionava condições suficientes para o cumprimento das obrigações cristãs. Nos dias atuais, entretanto, os alcoólatras e outros relegados da sociedade formam verdadeiros subgrupos humanos e não são geralmente visíveis. As favelas se encontram bem longe das congregações suburbanas, de tal forma que a consciência dos cristãos não se impressiona facilmente, como seria o caso se tivesse de contemplar os hediondos problemas da miséria de modo mais vivencial. Para que atenda às necessidades humanas nos grandes centros, diz- nos Williams, a Igreja terá, forçosamente, de permitir que se de-senvolvam novas estruturas que lhe permitam sair ao encontro do povo onde, na verdade, o povo necessitado se encontra.

Há um outro grupo teológico que gosta de fazer uso do termo “secular”, mas que deve ser considerado bem à parte da teologia da secularização nos termos que acabamos de considerar a propósito de Cox ou Williams. O grupo aludido é o dos teólogos da “morte de Deus”. No momento quando escrevemos esta página, o grupo não conta com mais do que dois membros, que são Thomás Altizer e William Hamilton. Embora alguns espíritos satíricos tenham já feito a piada de que os teólogos da “morte de Deus” bem poderiam realizar uma convenção numa cabine de telefone, não se pode desconsiderar o fato de que as referidas personalidades têm causado muita confusão.

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A frase “morte de Deus” foi cunhada originalmente pelo filósofo Friedreich Nietzsche. Tem sido uma frase muito empregada pelos teólogos para o propósito de salientar que muitos há em nossos dias que agem de tal forma que até dão a impressão de que, para eles, Deus não assume nenhuma aparência de realidade, e, portanto, é como se fosse conceito de alguém que já morreu. Gabriel Vahanian concorreu para que a frase impressionasse seus leitores em livro que escreveu sob o título “Deus Morreu”, publicado em 1957. Vahanian alega ser o ateísmo atual não apenas uma teoria que alguns pensadores sentem prazer em propagar; mais do que isso, o ateísmo é uma forma de viver bem generalizada entre as massas. Quando escreveu seu livro, Vahanian percebia que se processava, então, um certo despertamento de interesse favorável à religião. Isso, porém, resultava em confirmação da tese que ele estava defendendo. O que se encontrava em processo de revivescência era uma expressão de religiosidade que procurava identificar Deus com certa tranqüilidade que o homem experimenta em sua vida interior e com os ideais de bem-estar econômicos então em voga. Nada poderia contribuir mais para patentear-se a morte de Deus do que a maneira leviana como aquela aparente religiosidade que se proclamava estava empregando o nome de Deus. Vahanian, entretanto, não cria pessoalmente que Deus estivesse morto. O Deus vivo da fé que a Bíblia nos anuncia pode ser ignorado pelos homens, mas os homens não conseguirão jamais matá-lo. Assim foi que Vahanian procurou incentivar os cristãos a que se arregimentassem para pulverizar os ídolos que são cultuados em nossos dias, a fim de que o Deus Vivo voltasse a ser ouvido pela consciência humana. Os teólogos da “morte de Deus” partem da observação do que se passa em nossa cultura atual, mas as conclusões a que chegam são muito diferentes das conclusos de Vahanian. Eles querem mesmo divulgar, em sentido realista, que Deus morreu.

Altizer é pensador difícil pelo fato de que ele fala em termos hiperbólicos e poéticos. Uma das noções centrais em seu pensamento é a de que os elementos opostos não se demoram a se evidenciarem idênticos em última análise. Assim pensando, acha ele se expressa com entusiasmo, por exemplo, desta maneira: “Deus morreu... Graças a Deus.” Ele pensa que podemos tomar com seriedade tanto uma como outra das frases assim enunciadas. Ele insiste em que o cristão tenha de aceitar conformadamente as circunstâncias de sua época, passando a pensar em termos que lhe sejam compatíveis e, não obstante essa sua insistência, ele procura tirar sua inspiração de pensadores mortos a muito tempo, como é o caso de G. W. F. Hegel e o poeta William Blake. Altizer diz que Deus morreu em Cristo, Deus morreu no século dezenove, Deus morreu na primeira metade do século vinte e Deus morre outra vez todas as vezes que o cristão ama efetivamente seu próximo. Para cúmulo de tudo isso, Altizer acha que temos de desejar a morte de Deus. A coisa se parece como se o Deus de Altizer tivesse de sofrer tantas mortes como se vê que acontece com certo herói de ópera italiana, que ressurge várias vezes de seu leito mortuário, para cantar uma outra ária.

Talvez, o melhor ponto de partida para uma consideração do pensamento de Altizer seja a ênfase que dá ao texto de Fp 2.6-8, onde se lê que Cristo, “Subsistindo em forma de Deus... a si mesmo se esvaziou,

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tomando a forma de servo... tornando-se obediente até a morte...” Para Altizer, isso significa que o Deus transcendente e primordial morreu efetivamente em Cristo, a fim de que pudesse entrar plenamente na história. A Igreja entendeu de devolvê-lo ao céu mediante a doutrina da Ressurreição e da Ascensão de Cristo. Nisso se encontra uma das razões para que se rejeite todo pensa-mento cristão tradicional. Entretanto, a morte de Deus não alcançou completar-se em Jesus; a morte de Deus desenvolve-se num processo contínuo pelo qual o Espírito se corporifica e torna-se carne. Com o movimento progressivo da Palavra ou Espírito corporificando- se na encarnação da história verifica-se o surgir de uma nova era. Essa era encontra-se agora muito próxima de seu surgimento nos Estados Unidos, como, aliás, o poeta Blake a predisse.

A pessoa que se aproxima de Altizer com a expectativa de que nele vai encontrar um teólogo ateu desabrido ficará muito desapontado. A morte de Deus não quer dizer que Deus já não exista; significa, sim, que Deus está se tornando imanente de fato no mundo da história. Certo repórter comentou, em tom de deturpação de algo que lera, que, se tivesse aparecido em determinado periódico de Atlanta (onde Altizer ensina) que um teólogo tinha dito ser “Deus imanente”, em vez de ter dito que “Deus morreu”, então aquele tal periódico nunca teria saído de Atlanta.

William Hamilton é pensador muito diferente de Altizer. Em 1961, o livro de Hamilton, intitulado “A Nova Essência do Cristianismo”, não alcançou mais do que modesta receptividade. Em suas páginas, Hamilton tinha dado expressão à sua maneira de pensar no sentido de que a teologia devesse tornar-se humilde e fragmentária. O teólogo não ousa presumir que se encontre na posse do conhecimento necessário para o desenvolvimento de uma descrição sistemática da inteireza da existência. Ele sente necessidade de desfazer-se de muitas coisas supérfluas, a fim de que possa marchar de modo mais desenvolto. Cumpre ao teólogo que procure reduzir o máximo possível o número de artigos de fé até encontrar-se o núcleo a propósito do qual se tenha razões para dizer-se que o conhecimento científico a tal nos credencia e, uma vez firmado nesse núcleo, caberá ao teólogo torná-lo divulgado com toda a sua paixão. O problema de fato grandioso que a fé enfrenta é o que se relaciona com a presença do sofrimento no mundo, e ao teólogo cumpre que o procure tratar com toda a honestidade. Enquanto trata desse grave problema, Hamilton se volta para o sofrimento pelo qual Jesus passou. Em Jesus encontramos Deus mesmo humilhando- se, para conseguir operar a salvação humana. Na presença de Jesus neste mundo, nos deparamos com a necessidade em que nos encontramos de falarmos de Deus mesmo como capaz de sofrer. O cristão atual há de comportar-se como pessoa rebelde contra Deus, uma vez que é só quando nos rebelamos contra esta imagem do Deus-Pai que nos fazemos capazes de prestar serviços ao Deus que se limitou a si mesmo e aceita sofrer. Uma vez que seja portador de um tal espírito, o cristão poderá resignar-se a viver num mundo de sofrimento, sem entretanto, deixar de experimentar um estranho deleite em viver.

Em 1964, foi publicado um artigo de Hamilton, intitulado “Criança de Quinta-Feira”. E uma descrição do que se deve entender por um

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teólogo moderno, e, embora escrito com o pronome pessoal na terceira pessoa, geralmente se admite que o artigo seja autobiográfico. Descreve-se ali o teólogo dos dias atuais como alguém que veio a perder a fé para com Deus, sem, entretanto, cair em desespero. O teólogo continua vivendo sem fé e sem tem esperanças, mas ele ainda se mostra adepto da virtude do amor. Raramente lhe ocorre ler livros teológicos, a menos que se lhe confie a revisão de alguma obra dessa especialidade. O teólogo atual não freqüenta assiduamente a Igreja. Ele escreve cartas e artigos, mas evita escrever livros. Ele vive em dois mundos. Quando em roda de amigos pertencentes à Igreja, ele adota atitude de piedade estudada, enquanto, quando se encontra em companhia de amigos não associados à Igreja, sua atitude de acordo com a situação do mundo. O teólogo nosso contemporâneo está esperando... Talvez ainda lhe seja possível adotar alguma fé, mas a verdade é que ele não se preocupa muito com isso. No momento lhe parece que ele tem muita coisa a fazer, principalmente sente que tem de comprometer-se nas lutas relacionadas com os direitos dos cidadãos. Com Bonhoeffer, portanto, o teólogo de hoje confessa encontrar na linguagem teológica tradicional algo destituído de dinamismo, e o que ele pode fazer é só manter-se em oração e procurar proceder retamente para com o próximo.

Em artigos posteriores que publicou, Hamilton demonstra ter abandonado essa idéia de ficar esperando. Nenhum Deus existe mais pelo qual esperar, e ele não faz mais referências à oração. A Reforma do século dezesseis, diz-nos Hamilton, significou três coisas para a teologia do século vinte: O liberalismo redescobriu Lutero como sendo o indivíduo autônomo capaz de obedecer à própria consciência à revelia de qualquer autoridade despótica. A neo-ortodoxia redescobriu o Deus justo e a plausibilidade da ênfase dada por Lutero à doutrina da justificação pela fé. A teologia da “morte de Deus” redescobriu o significado do movimento iniciado por Lutero, saindo-se de um claustro e voltando-se para o ambiente do mundo.

Para Hamilton, o claustro simboliza a religião. Ele define religião como sendo não só um conjunto de atividades piedosas e eclesiásticas, mas também a visão da divindade, considerada como capaz de trazer-nos soluções para nossos problemas. A religião inculca-nos a fé a propósito de certas necessidades que temos, cuja satisfação só Deus mesmo poderá proporcionar-nos. Hamilton assevera-nos não existir, de maneira alguma, dentro do ser humano nenhum espaço conformado à idéia de Deus que esteja à espera de vir a ser preenchido. O mundo para o qual se volta o teólogo da “morte de Deus” é, precisamente, o da classe média, onde se encontram a tecnologia e as cogitações sobre o sexo e os centros de densa população, deplorados pela literatura sofisticada e pela teologia desatualizada. Nos dias atuais são muitos os que desejam fruir das condições de vida que a classe média mantém e, por isso mesmo, menosprezam seus valores.

Para Hamilton, o conceito da morte de Deus descreve um acontecimento experimentado por muitos em nossos dias. Houve tempo quando Deus e a linguagem concernente a Deus eram realidades relevantes no entender de tais pessoas. Entretanto, algo lhes teria acontecido para que Deus não mais seja para eles uma entidade real.

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Prevalece algum sentimento de perda em face disso, mas não será perda tão grande como tais pessoas poderiam pensar. Terminam por aperceber-se de que a existência sem Deus neste mundo também tem seus encantos.

O teólogo da “morte de Deus” não tem preocupação quanto a Deus, mas não deixa de pensar em Jesus. O teólogo procura encontrar Jesus neste mundo, onde decerto, Jesus se encontra irreconhecível nas lutas que são travadas em favor da justiça, da beleza, das atitudes claras e da ordem. Deparamo-nos com Jesus na medida em que amamos o próximo. Além disso, nós mesmos temos de nos tornar Jesus neste mundo e para com este mundo. Quando foi perguntado a Jesus, “Quem é meu próximo?”, ele proferiu diante de seus ouvintes a Parábola do Bom Samaritano, como que lhes querendo dizer: “Não se deve perguntar quem é o próximo, deve-se é ser um deles.” Eis a tarefa que pesa sobre o cristão hoje.

Em 1966, Hamilton publicou um artigo sob o título, “O Novo Otimismo”. Alegou ele, então, que a principal razão para que esteja acontecendo o declínio da neo-ortodoxia reside no pessimismo que essa teologia encerra a propósito do ser humano e do mundo. Ora, a América superou já a fase do pessimismo e tudo nesse país transpira otimismo. Ele procura traduzir essa convicção em termos simbólicos, fazendo referências ao dia 4 de janeiro de 1965. Naquele dia T. S. Eliot faleceu. Eliot tinha descrito nossa época como caracterizada por “homens sem substância”, que chegaria a seu fim fazendo-nos ouvir um gemido e não um alarido. Tratava-se de um poeta do pessimismo, muito preferido nas rodas neo-ortodoxas. Acontecia, entretanto, naquele mesmo dia que Lyndon Johnson proferia sua mensagem relacionada com o Estado da União, em cujo conteúdo se encontrava um compromisso que o presidente assumia concernente a iniciativas que visavam aos Direitos Civis e a uma verdadeira guerra declarada contra a miséria.

Hamilton admite que haja evidências favoráveis à manutenção de ânimo otimista com relação a vários aspectos da vida. Saul Bellow, conhecido romancista, rejeita as teses existencialistas e seu herói, Herzog, apresenta-se como cometendo seu ato pós-pessimista de resolução no sentido de não se tornar um maluco. Há cientistas sociais hoje em dia que crêem firmemente na possibilidade de que a tecnologia venha a encontrar soluções para os problemas humanos. Certas formas artísticas celebram o júbilo de viver-se como está acontecendo, por exemplo, com a exibição do agradável filme dos Beatles, “A Noite de um Dia Difícil”. O movimento em favor dos Direitos Civis encontra- se em marcha e entoa este verdadeiro cântico de fé, que é a melodia: “We shall overcome”. Hamilton salienta que todo esse otimismo não se relaciona com o que se pensa que Deus possa fazer em favor do homem, mas, sim, é um otimismo expressivo do que o homem sente: o que ele pode fazer para conseguir a solução de seus próprios problemas.

Hamilton disse que, neste mundo de vertiginosas mudanças em que estamos vivendo, um artigo que se escreve fica desatualizado já antes que venha a ser publicado nos periódicos. O artigo que escreveu a propósito do otimismo ilustra exatamente isso. Ao aparecer, em letra de forma, ele dava toda a impressão de uma exposição anacrônica. Em 1966, o conflito armado no Vietnam trouxe-nos a impressão de um acontecimento mais

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desesperador do que o que se tinha imaginado antes. A anunciada guerra contra a miséria ficou bloqueada por alegações de falta de recursos. O movimento em favor dos Direitos Civis fragmentou-se pelo aparecimento de vários grupos que se digladiavam entre si, sendo que a legislação anteriormente votada mostrou-se menos eficiente do que o que dela se esperava. As perturbações da ordem que passaram a prevalecer nos vários guetos raciais eram eloqüentes expressões de que tudo não havia passado de pura frustração em face de desprezíveis conquistas adicionadas ao capítulo dos Direitos Civis.

Também em 1966, veio a público um livro escrito por William Stringfellow, advogado profundamente interessado em teologia. Intitula-se seu livro “Dissidentes numa Grande Sociedade” e é uma franca ilustração do ponto de vista oposto ao defendido por Hamilton. Tendo residido por bom número de anos em uma das favelas de Harlem, Stringfellow atreve-se a desencadear forte ataque contra o que entende como fracasso da Grande Sociedade quanto ao dever que lhe pesa de promover o estabelecimento de melhores condições de vida para os que vivem nas favelas. O referido escritor retrata a nação como se dirigindo para uma fase de horrendas violências, enquanto se encontra a braços com os problemas da guerra longínqua no Vietnam e dilacerada internamente por conflitos derivados da discriminação racial. Stringfellow não se mostra menos preocupado com a necessidade de admitir-se Cristo como estando dentro da estrutura deste mundo do que já vimos ser o caso com Hamilton. Com efeito, ele procurou viver como o faria Cristo enquanto se manteve na convivência dos miseráveis numa favela. Entretanto, não obstante o fato de ter ele ocupado a vanguarda na enorme luta da guerra contra a miséria e contra a discriminação racial, ele não se ilude quanto à insignificância da vitória alcançada. Também ele chega ao fim de seu livro com uma palavra de otimismo, mas seu otimismo fica nos limites da fé cristã, que a morte e a ressurreição de Cristo são as admiráveis realidades que nos convocam para as atividades espirituais neste mundo, pois só essas realidades é que são dignas de se constituírem em base para a esperança que podemos nutrir em nosso coração. A teologia americana está entrando numa fase de debates muito interessantes a propósito dos temas ressaltados por Hamilton e por Stringfellow.

Paul Van Buren é um teólogo que se encontra em estreita relação com a teologia da “morte de Deus”, tanto pelo que se pode observar nas referências que a ele são feitas nos periódicos como também pelas afinidades que mantém com Hamilton. Van Buren, entretanto, não se tem como filiado a nenhum movimento e até se diz ser algo insensato o insistir-se em que Deus morreu. Uma vez que se comporta assim, temos de reconhecer que ele representa uma outra corrente de opinião prevalecente na teologia atual.

A semelhança de muitos teólogos da última década, Van Buren procura desvencilhar-se das preocupações da teologia com a filosofia existencialista e prefere estabelecer uma aliança da teologia com a filosofia analítica, que predomina nos países de língua inglesa. O objetivo que ele denota em seu livro “O Significado Secular do Evangelho” consiste num esforço no sentido de que a fé cristã seja reinterpretada

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tendo-se em vista as necessidades humanas nesta nossa era secular. A primeira preocupação dele não é com a conversão dos que não são crentes, e, sim, a preocupação de tomar a sério o problema capital da situação enfrentada pelo indivíduo que é, ao mesmo tempo, um cristão e um homem secularizado.

Para Van Buren, o secularismo significa uma reação natural do homem moderno contra a filosofia idealista e a ênfase que dá aos métodos empíricos de obtenção do conhecimento. Van Buren entende que esse secularismo já se encontrava presente em formas anteriores de filosofia analítica, na afirmação de que as únicas afirmações válidas a propósito de assuntos objetivos de significado real prendem-se a enunciados que possam comprovar-se por processos empíricos.

Van Buren procura descrever o cristianismo de modo a conseguir harmonizar a mensagem bíblica com o secularismo de nossos dias. O termo “Deus” tornou-se destituído de significado para o homem secularizado, de modo que é necessário que procuremos expressar as convicções do cristianismo sem nenhuma referência a Deus. O Novo Testamento dá respostas satisfatórias a todas as questões levantadas a propósito de Deus tão-somente por conduzir a mente à consideração da pessoa de Jesus. Aquele que tenha visto a Jesus, ipso-facto terá visto o Pai (Jo 14.9). Uma vez que se sabe que Jesus foi pessoa histórica, não é difícil ao homem secularizado formular enunciados significativos a seu respeito. Na pessoa de Jesus, por exemplo, é sabido que os discípulos encontram alguém que lhes parecia estranhamente livre para mostrar-se capaz de viver a fim de amar os semelhantes. Depois da morte de Jesus, os discípulos perceberam que aquela liberdade característica de Jesus mostrou-se ser algo comunicável, de modo que se sentiram também livres para o legítimo exercício do amor para com o próximo. Através da história, a Igreja Cristã tem experimentado que a comunicabilidade amorosa advinda da pessoa de Jesus continua a operar na vida dos cristãos. O significado da ressurreição de Jesus é exatamente este, de que sua liberdade de amar os homens é comunicativa. O homem secularizado não pode crer que alguém tenha ressuscitado de entre os mortos. Entretanto, ele tem condições de perceber o fenômeno empírico da capacidade de amar que se comunica de uma pessoa a outra.

O pensamento de Van Buren é uma tentativa fascinante de manter-se secularista sem reservas, não obstante a fidelidade que devota para com o evangelho. A pessoa de Cristo se mantém como central no pensamento de Van Buren e sua analogia concernente à liberdade de amar, que se faz comunicativa, é uma tentativa de descrever em termos empíricos exatamente o que a teologia tradicional sempre chamou de “graça”.

Em anos mais recentes, a doutrina de Deus vem sendo trazida novamente para o centro das preocupações teológicas e não são poucos os livros já publicados a propósito. Isso, possivelmente, não poderia evitar-se. A filosofia analítica pôs em realce a questão de se saber se alguma forma de linguagem concernente a Deus poderia ser considerada como suficientemente significativa. As várias teologias produzidas pelos partidários da secularização puseram-se a interrogar se poderíamos falar de Deus de modo apropriado às pressuposições da secularização. A

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teologia da “morte de Deus” chegou mesmo a levantar questões quanto a ser Deus um ente real ou não.

Embora todos concordem em afirmar que a questão da existência de Deus é de importância capital, não ocorre a mesma unanimidade quanto à maneira como nos seria lícito falarmos de Deus. O Bispo Robinson, em seu bem divulgado livro “Honesto para com Deus”, chamou a atenção de seus leitores para o problema de falar-se de Deus como aquele que se encontra elevado em sua majestade e fez sugestões de que devamos pensar em Deus como aquele que se encontra nas profundezas da existência, constituindo-se, portanto, na base mesma de nosso ser. Já vimos isso quando fizemos referências aos conceitos de Tillich. Entretanto, não têm faltado teólogos que põem em dúvida essa vantagem de empregarem-se conceitos metafísicos, como o é o da “Base do ser”, parecendo-lhes que não são expressões adequadas ao homem moderno mais do que, por exemplo, o conceito que afirma Deus como encontrando-se exteriormente.

Certo grupo de teólogos tem feito tentativas visando ao restabelecimento da filosofia exposta por A. N. Whitehead. Nesse grupo verificamos um reavivamento da teologia natural que é tradição liberal. O maior número de filiados a essa escola de pensamento teológico parece ter estado associado com a Universidade de Chicago, onde o filósofo Charles Hartshorne se manteve fiel ao pensamento de Whitehead por muitos anos. Esse grupo de teólogos está absolutamente convencido de que, para conseguirmos uma resposta satisfatória em face da teologia da “morte de Deus”, temos de demonstrar a realidade objetiva de Deus mediante uma orientação metafísica racional. Whitehead lhes parece ser um excelente ponto de partida.

John Cobb Jr. alega que o ser humano, intuitivamente, exige que se lhe dê uma explanação plausível para a existência de ordem no universo. Whitehead entende encontrar-se essa explanação em seu conceito de Deus como sendo “O princípio de materialização,,/ que determina o surgimento do que é atual das inumeráveis possibilidades. Cobb é de parecer que o cristianismo deve demonstrar-se capaz de falar de Deus de modo bem de acordo com esse ponto de vista. Não há nenhuma vantagem em que se procure identificar Deus com uma noção vaga, como é a de que ele se constitua em “profundezas” da existência humana. A fé cristã só se justifica se pudermos falar de Deus como sendo uma realidade fora de nós, mas também relacionada conosco.

Há inúmeras razões para que uma teologia natural que se procure basear em Whitehead exerça fascinação sobre muitos espíritos. Whitehead leva a sério as disciplinas científicas. O Deus que ele entende existir não tem nada a ver com o Deus concebido pela metafísica tradicional, Ser estático e perfeito, pois ele o entende como sendo “processo”. Deus encontra-se a tornar-se, de modo que o conceito de Deus formulado por Whitehead tem muito em comum com o Deus da fé da pela Bíblia. Os críticos, entretanto, alegam que a filosofia de Whitehead não é atual e expressam muita dúvida de que o Deus concebido por Whitehead possa ser identificado com o Deus da fé cristã.

Daniel Jenkins, teólogo britânico, estaria disposto a concordar com Cobb no ponto de vista de que a fé cristã dependa da admissão de Deus

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como sendo uma realidade fora de nós. Todavia, o método que adota para demonstrar a plausibilidade da fé em Deus é muito diferente do método de Cobb. Jenkins chama a atenção para o fato de que o termo “razão” tem duas conotações. Em primeiro lugar, “razão” não passa de instrumento de lógica pelo qual os indivíduos procuram deduzir argumentos e chegar à posse da verdade. Assim sendo, como acontece com todos os instrumentos, a razão é absolutamente neutra. Acontece, porém, que o raciocínio é coisa que só acontece com relação a pessoas, e sabe-se que as pessoas são mais do que o que se pode compreender pelo termo razão. Assim, a razão é um dos meios pelos quais os homens procuram exaltar-se a si mesmos. A razão encontra-se sempre na iminência de cair na racionalização. Quanto mais intimamente nos aproximarmos de considerações pertinentes ao que seja central em nossa vida, tanto mais nos expomos à tentação de racionalizarmos quanto à natureza de nossos atos. As questões que dizem respeito a Deus não se assemelham a pesquisas em torno de algum longínquo planeta, de modo que Deus pudesse ser estudado objetivamente, como o pretende a teologia natural. As questões relacionadas com Deus impõem respostas que envolvem toda a direção e o comprometimento de tudo em nossa vida.

Para Jenkins, a evidência primária da existência de Deus é, de modo geral, a Bíblia e, de maneira particular, a pessoa de Jesus. Para os cristãos, as questões relacionadas com a fé em Deus giram em torno da questão fundamental, assim formulada: “Que pensais de Cristo?” A Bíblia se apresenta como portadora da revelação de Deus. A tarefa da demonstração da verdade dessa presunção bíblica coincide com a necessidade de demonstrar-se que a perspectiva da Bíblia proporciona-nos melhor compreensão da própria vida do que se pode obter de qualquer outra perspectiva. Assim sendo, Jenkins procura dar desenvolvimento a suas idéias mediante um ataque negativo aos pontos de vista opostos a suas idéias, passando, em seguida, a uma demonstração positiva da adequação dos moldes do pensamento cristão para as referências com as quais consegue lançar luz sobre o mistério da vida.

David Jenkins, outro teólogo britânico, adota um ponto de vista algo diferente do adotado por Daniel Jenkins. Em fascinante opúsculo, intitulado Guia para os Debates sobre Deus, ele oferece um esboço da história de como se desenvolveu até nossos dias a polêmica em torno de Deus. Lembra-nos ele que o debate tem percorrido já alguns séculos e que as teorias em voga não são novas, como alguns supõem que elas sejam.

David Jenkins nos diz que o problema importante não é: “Será que Deus existe?”, mas, sim, este outro: “Que é conhecimento?” Não há por que dialogar com alguém que defina o conhecimento com o propósito de excluir a possibilidade do conhecimento de Deus. É fácil incorrer-se no engano de supor que a resposta que se possa dar à pergunta de como é que o homem pensa habitualmente nos dias atuais seja a resposta do que se deva entender como sendo o conteúdo próprio do pensamento. Enquanto muitos pensadores se esforçam em encontrar uma determinada maneira de expressar a fé cristã dentro de uma estrutura de referência

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própria ao homem secularizado, Jenkins nos convida ao reexame dessa estrutura de referência.

O fator novo, introduzido nos debates concernentes a Deus, atualmente em comparação com os debates de outrora, é o aparecimento da ciência. Jenkins não entende que as descobertas científicas tenham acarretado obstáculos sérios à manutenção da fé em Deus. Entretanto, é sabido que com a ciência se tem associado a impressão de que, caso algo pareça inacessível ao conhecimento em termos de ciência, isso é porque tal entidade não existe e não tenha nenhuma realidade. Jenkins não nega que a ciência seja exclusiva em sua capacidade de proporcionar-nos conhecimentos em muitas áreas de investigação. Não se mostra ele com nenhuma propensão por reabrir o debate mediante o qual os argumentos teológicos eram empregados para desprestigiarem as teorias científicas, como, por exemplo, acontecia relativamente à evolução. O que ele pergunta, entretanto, é se os métodos adotados pelas ciências serão capazes de fornecer conhecimento a respeito de tudo quanto se possa conhecer neste mundo. Muitos anos atrás, E. T. Ramsdell levantou o mesmo problema, quando alegou que, embora o ser humano possa saber muito bem que poderá verificar cientificamente alguma verdade, não conseguirá, porém, saber se o que não seja cientificamente verificável tenha ou não algum significado. O indivíduo poderá somente crer que sim ou que não. A ciência, afirma Jenkins, é o meio pelo qual os seres humanos podem obter conhecimento das coisas existentes no universo. Acontece, porém, que Deus não é uma das coisas existentes no universo. Seria absolutamente irracional a pretensão de demonstrar a existência de Deus mediante os métodos que empregamos para demonstrar a existência de tudo mais, uma vez que Deus é diferente de tudo mais. Caso desejemos pensar de Deus temos de aceitar a pensar diferentemente da maneira pela qual pensamos quanto às coisas.

Admitindo-se a existência de Deus, há de conceber-se que ele mesmo tome a iniciativa de fazer-se conhecido pelos homens. Temos de nos conservar livres de preconceitos em face de sua própria revelação, quando e onde ela nos ocorra. O crente deve cultivar a virtude da humildade, pois nunca terá uma tal demonstração da existência de Deus que lhe proporcione o envaidecimento de sobrepujar a todos os argumentos do descrente, de modo a torná-lo um crente. Além disso, Jenkins concorda com Bonhoeffer, afirmando que Deus se revela através do serviço a ele atribuível neste mundo, de modo que cumpre ao cristão procurar dar testemunho de Deus também mediante uma vida útil que mantenha perante o mundo. Para que nos seja possível demonstrar a outras pessoas que temos conhecimento de Deus, temos de viver com eles no mundo, procurando tirar ânimo do companheirismo mantido pelo povo de Deus em seus atos de culto e nas expressões várias do comprometimento para com a causa do Evangelho. E-nos necessário que procuremos deixar patente qual é a fonte das certezas de que estamos possuídos e qual é a natureza própria dessas certezas.

Esse resumo do pensamento teológico contemporâneo proporcionará, decerto, ao leitor, que fique com a idéia da diversidade de opiniões hoje em voga. Alguns pensadores nos incentivam a tomar o mundo mais a sério, tornando-nos mais secularizados, ao passo que

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outros pensadores preferem que consideremos melhor as pressuposições do secularismo. Alguns nos dizem que Deus morreu, enquanto outros encontram-se empenhados em desenvolver mais adequada compreensão de Deus. Caso nos dispuséssemos a escrever mais, poderíamos examinar outras tendências do pensamento teológico. Por exemplo, poderíamos demorar um pouco, considerando o caso de alguns dos partidários da teologia de Bultmann, que chegaram ao ponto de se insurgirem contra o líder e encontram-se empenhados em “novas buscas do Jesus histórico”. Possuídos da esperança de que seja possível superar as limitações características do século dezenove, os referidos partidários de Bultmann já produziram várias novas “vidas” de Jesus nos últimos anos. Outros seguidores de Bultmann tentaram desenvolver uma “nova hermenêutica”. Sabe-se que a Hermenêutica é um meio pelo qual se obtém uma interpretação aceitável de algum texto, e o que os referidos pensadores desejam é, exatamente, descobrirem a maneira de interpretar as Escrituras de modo que elas se façam aceitáveis ao homem do século vinte. Heinrich Ott, que ocupa a cátedra que foi de Barth na Universidade de Basiléia até a época de sua aposentadoria, tenta conseguir uma síntese entre a teologia de Barth e a de Bultmann, para o que ele se está valendo da filosofia de Heidegger.

Finalmente, temos de chamar a atenção do leitor para uma atividade de extraordinária importância na teologia protestante atual - os contatos mantidos com a teologia católica romana. Até o presente momento, esses contatos ainda não resultaram no aparecimento de nenhum ponto de vista teológico particular. Mas não deixa de ter lançado já uma nova luz sobre todas as preocupações de natureza teológica. Por um lado, temos pessoas que já escreveram importantes exposições em favor da teologia protestante - por exemplo, Robert McAfee Brown, que se encontra à procura de renovada inspiração teológica através desses contatos com os eruditos católicos romanos. Por outro lado, vemos o aparecimento de eruditos católicos romanos que se dizem surpreendidos com tantos pontos de vista a propósito dos quais concordam com os protestantes. Hans Küng escreveu um livro a respeito da doutrina da justificação de Barth e disse que a doutrina de Barth está em harmonia essencial com a posição católica romana, descontada a terminologia diferente empregada pelo teólogo reformado. Não se pode pôr em dúvida a perspectiva de que esses contatos entre confissões tão diferentes hão de resultar em influência decisiva sobre a teologia futura.

O leitor deste capítulo poderá estar estranhando muito os paralelismos estabelecidos aqui entre muitos pensadores, comparando-os com o pensamento desenvolvido no capítulo sob o título: “Ameaça contra a Ortodoxia”. E também evidente que muitos dos temas da teologia liberal estão reaparecendo em forma um tanto modificada. Kenneth Hamilton, teólogo canadense, ressaltou que os teólogos atuais que, geralmente, se orgulham de estar promovendo uma verdadeira revolução teológica estão, na realidade, retomando posições que são conhecidas a, pelo menos, dois séculos.

Há duas maneiras pelas quais podemos entender essa tendência da teologia de retomar o passado. Muitos dos que se encontram na vanguarda desse movimento de retomada do passado costumam alegar

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que há questões teológicas que foram suscitadas no último século e não foram devidamente respondidas, pois a neo-ortodoxia os tinha abandonado. Por outro lado, em livro que publicou recentemente, James Smart deplorou o fato de que aqueles que procuram nos incentivar a avançar além de Barth e de Bultmann nos dias atuais, o que, na verdade, estão fazendo é retrocederem a uma era anterior aos referidos teólogos, além disso, não tomaram em consideração as conquistas teológicas feitas em nosso século. Há, possivelmente, muita verdade tanto em uma como na outra maneira de entender-se a tendência da teologia para uma retomada do passado. As futuras discussões teológicas é que vão mostrar qual delas corresponde mais à verdade.

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Conclusão

A ampla variedade de pensamentos teológicos que temos visto ao longo deste livro pode parecer algo deplorável ao leitor. Talvez ele tenha tido a impressão de encontrar-se num verdadeiro cipoal de idéias em conflito. Pode ser que o leitor tenha se sentido como acontece com grande número de eleitores quando estão chegando as eleições. Isto é, o eleitor ouviu com atenção as exposições que os vários partidos fizeram de seus programas e, então, encontra-se em torturante dúvida, pois ainda não sabe bem em quem votar. Não obstante tais inconvenientes, sabe-se que isso é da essência mesma da democracia. Caso não houvesse mais do que um só partido na disputa das preferências eleitorais, não se sentiria o eleitor em causa tão forçado a fazer uma opção. Creio que o mesmo princípio vale quando se considera o que está acontecendo nos domínios da teologia. Caso não houvesse diferenças teológicas, o que teríamos não seria nada além de uma forma totalitária de religião. O protestantismo tem razões para considerar que as diferenças existentes em seu meio são motivos de glória e não de vergonha. De fato, quando ocorre que as diferenças dêem lugar a atitudes de intolerância e de amargura, temos motivos para sincero arrependimento. Entretanto, mesmo em tais casos, nosso arrependimento não será causado pela existência das diferenças de ponto de vista, mas, sim, pelo fato de descobrirmos que não somos capazes de nos amarmos reciprocamente por causa das diferenças.

Há uma outra comparação a estabelecer-se com o que se passa no cenário político. Durante as campanhas eleitorais não se ouve muito a respeito das grandes idéias que os partidos defendam em comum. O propósito que a todos os políticos anima durante uma campanha eleitoral consiste em que as diferenças sejam bem ressaltadas. Entretanto, caso os mesmos concorrentes se encontrassem em face de uma filosofia bem diferente, se verificaria quão ampla lhes seria a área de harmonia. Em tempos de crise, a política externa passa a ser defendida sem discordâncias pelos vários partidos. Pois bem, este livro pode exibir-nos algo semelhante ao que se passa com uma disputa política, em que nada se encontra que reflita o ânimo dos cristãos em face de inimigos anticristãos. Se esse fosse o caso, se perceberia a insistência em acentuar as áreas nas quais todos os grupos teológicos concordam. Em vez disso, este livro se tem ocupado em retratar os cristãos quando procuram pensar no significado da fé que têm em confronto com a maneira de pensar sobre os mesmos assuntos pelos correligionários, de modo que tivemos de ressaltar os elementos de diferença nas várias posições defendidas. Verifica-se que os representantes das várias escolas de pensamento teológico que temos esboçado nos capítulos anteriores encontram-se em atividade nas várias denominações e no movimento ecumênico existente na Igreja.

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As diferenças de pensamento são perturbadoras para todas as pessoas que creiam estar na posse da verdade absoluta, tal como é revelada por Deus. Caso o indivíduo insista que se encontra na posse de uma tal verdade, terminará por entender que todos quantos discordem dele devem estar em erro e até mesmo estarão em oposição contra o próprio Deus.

Entretanto, dado que nos convençamos de que toda a verdade apreendida pela mente humana é finita, então isso nos levará a aplaudir o aparecimento de diferenças teológicas. Uma vez que estejamos convencidos de que a infalibilidade não será jamais atingida em nenhum setor humano, será fácil ficarmos receptivos para com as divergências, considerando-as como necessário corretivo em face de nossas limitações.

Não desejo expor-me à incompreensão quanto a essa maneira de entender as coisas. Não é que eu esteja aqui advogando o prevalecimento dessa atitude de tolerância escorregadia, tão comum atualmente. O leitor bem sabe qual é esse tipo de tolerância; ela geralmente se expressa assim: “A fé que uma pessoa professa é tão boa quanto o é a de qualquer outra pessoa.” Levada a um extremo, essa atitude resultaria em admitir-se que protestantismo, catolicismo, hinduísmo, comunismo e umbandismo, tudo poderia ser tomado como sendo verdadeiro. Assim, não se teria de fazer nenhuma opção em face de tais formas religiosas e ideológicas. Se as opiniões religiosas são todas de igual valor, então isso nada mais significa do que dizer que todas elas não valem nada. Seria como se confessássemos a impossibilidade de saber qualquer coisa a propósito de religião.

Decidindo pensar de alguma forma, temos de deixar transparecer nossa suposição de que podemos chegar a algumas conclusões e que algumas de nossas conclusões dispõem de mais argumentos plausíveis do que acontece com outras conclusões. O fato de que não é possível alcançar a verdade absoluta jamais poderia significar que não pudemos conhecer alguma verdade. Onde nos encontraríamos com relação à ciência e à política, por exemplo, caso insistíssemos na afirmação de que, uma vez que não dispomos do conhecimento de todas as coisas, temos de supor que nada conhecemos, e, por conseguinte, uma opinião será tão racional como qualquer outra?

Uma vez que aceitamos que alguma verdade, embora não verdade absoluta, pode ser alcançada por nós, então isso fará com que reconheçamos, nos debates travados nos domínios da teologia, um dos caminhos salutares que conduzem à verificação da verdade. Podemos perfeitamente perceber de que dada posição que defendemos fica mais fortalecida pelas críticas que receba de elementos que estão defendendo posições diferentes. Pode ser que sejamos persuadidos a abandonar certas idéias, por reconhecermos sua falsidade, quando elas são atacadas, ou pode ser que cheguemos a descobrir a existência de uma grande verdade nelas, verificando quão firmes se encontram ante os vagalhões da crítica. Nunca devemos nos esquecer de que podemos aprender muitíssimo de posições que, de modo geral, considerar infundadas. Podemos admitir preliminarmente que nenhuma posição atrairá pessoas sinceras, caso nada tenha de verdade nela. Como Reinhold Niebuhr disse, muitas foram as preciosas verdades que

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conseguiram impor-se na história, mesmo acompanhando algum erro. Por último, temos que lembrar que a verdadeira tolerância não requer que se ignore a diferença que exista entre pontos de vista discordantes. A tolerância é uma atitude tal que é capaz de levar alguém a dizer a seu adversário que continuará a dar-lhe atenção e dedicar-lhe respeito, mesmo considerando que ele esteja errado. A verdadeira tolerância reconhece que alguém tem todo o direito de errar e que, mesmo quando ele afunda demais no erro, a verdade é que, ainda assim, pode ser que tal pessoa traga à luz do conhecimento humano alguma verdade muito necessária. Uma discussão significativa e criativa em seus resultados só poderá ser levada a efeito quando os debatedores se encontrem animados desse espírito.

Atualmente, é coisa amplamente aceita em círculos teológicos esta afirmação de que todas as tentativas humanas que visam falar de Deus são limitadas e não passam de esforços da razão no empenho por alcançar a compreensão de uma realidade que, com efeito, transcende a todas as possibilidades de expressão humana. Uma das principais razões pelas quais se vê que os protestantes e os católicos se mostram interessados no estabelecimento de contatos é esta. Exatamente, o fato de que os teólogos que militam nas duas áreas religiosas começaram a perceber a precariedade dos pontos de vista que têm concernentes à sua capacidade, mais do que isso acontecia em épocas passadas. Mesmo nos casos em que vemos alguns teólogos absolutamente convictos de que Deus se revelou de modo infalível nas páginas da Bíblia ou através da Igreja, eles se predispõem já a admitir que não podemos nos considerar portadores de infalível compreensão da revelação. Por conseguinte, temos de dar ouvidos a quem discorde de nós, exatamente pela possibilidade de que tal pessoa disponha do elemento de verdade que nos falta.

Um dos desenvolvimentos admiráveis ocorridos em nosso século consiste no fato de que as divergências teológicas não são mais peculiaridades denominacionais. Praticamente, todas as denominações de maior número de adeptos contam, em seu meio, com representantes das várias posições teológicas alinhadas no conteúdo deste livro. Com relação a alguma denominação em particular, é possível que haja o prevalecimento de certa tendência teológica. Entretanto, não faltarão exceções em todas elas. Teologicamente falando-se, é freqüente que ocorra a um cristão encontrar-se em mais harmonia com pessoas pertencentes a outras denominações do que com um bem expressivo número de pertencentes à sua própria denominação. A controvérsia a propósito do fundamentalismo e do modernismo chegou ao ponto de dividir ao meio algumas denominações e mesmo igrejas locais e, como se sabe, as divergências desde então introduzidas nas várias denominações não pararam. Esse fato contribuiu para que se tornasse viável o espraiamento do movimento ecumênico, que caracteriza o século vinte, e, por seu turno, o movimento ecumênico também tem estimulado tais divergências.

Este livro não tem nenhuma presunção de ter dado tratamento completo nem adequado da teologia protestante moderna. O propósito principal pelo qual ele veio a ser escrito é incentivar os crentes

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estudiosos em geral, a fim de que venham a ler mais e procurem pensar com a devida seriedade a respeito das questões de natureza teológica. Com o lançamento deste livro, pretende-se que ele sirva de um primeiro passo numa escalada intelectual, que poderá ser frutífera e compensadora àqueles que se disponham a lugares mais elevados.