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Teologia e Prática da Espiritualidade Jonathan Menezes

Teologia e Pratica da Espiritualidade - FTSA.pdf

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Teologia e Prática da

Espiritualidade

Jonathan Menezes

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Catalogação na fonte/ Bibliotecária Zoraide Gasparini CRB/9 1529

Janeiro / 2014

Coordenação editorial: Depto. Desenvolvimento InstitucionalCoordenadoria de Ensino à Distância: Gedeon J. Lidório JrProjeto Gráfico e Capa: Mauro S. R. TeixeiraRevisão: Mirian Soares

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por:

Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR86055-670 Tel.: (43) 3371.0200

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SUMÁRIO

Unidade - 01 Espiritualidade e espiritualidades,.............................07

Unidade - 02 O que é espiritualidade cristã?...................................15

Unidade - 03 Espiritualidade na Bíblia ............................................21

Unidade - 04 Espiritualidade na história..........................................29

Unidade - 05 Espiritualidade e oração (I)........................................39

Unidade - 06 Espiritualidade e oração (II).......................................47

Unidade - 07 Espiritualidade do deserto..........................................55

Unidade - 08 O deserto na espiritualidade de Jesus........................63

Unidade - 09 Espiritualidade, teologia e vida..................................73

Unidade - 10 Espiritualidade da libertação......................................83

Unidade - 11 Henri Nouwen e a espiritualidade da imperfeição..91

Unidade - 12 O que aprender com Henri Nouwen?......................101

Unidade - 13 Espiritualidade e a busca pela felicidade (I)...........109

Unidade - 14 Espiritualidade e a busca pela felicidade (II).........117

Unidade - 15 O valor da comunidade na espiritualidade............125

Unidade - 16 Espiritualidade e sexualidade (I).............................135

Unidade - 17 Espiritualidade e sexualidade (II)............................143

Unidade - 18 Espiritualidade, os pródigos e a juventude.............149

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APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA

Bem vindo(a) à disciplina de Teologia e Prática da Espiritualidade!

Nela você estudará prioritariamente fundamentos bíblicos, teológicos e históricos da espiritualidade, tendo como foco final uma compreensão (e vivência) de uma espiritualidade cristã e, por isso, cristocêntrica e solidária, visando à vivência da fé e da missão em sua integralidade, a serviço do reino de Deus.

Como introdução a este curso, gostaria de compartilhar com vocês um texto de minha autoria, que resume bem a tônica de tudo o que estudaremos neste semestre, intitulado:

A dança do Espírito“O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde

vem; assim é todo o que é nascido do Espírito” (João 3.8). O sopro do Espírito é um sopro constante, mas nunca visível a

olhos nus. Para se saber onde e como ele está soprando é preciso ter a capacidade de enxergar além. Além das aparências, das estruturas, das inibições de ânimo, das manifestações exóticas, de meras palavras. O Espírito pode estar em tudo isso, mas também pode permanecer “fora”. Ele não se limita ou se reduz às paredes do escravismo institucional humano, seja ele secular ou religioso. O Espírito é livre e age em liberdade: “Onde está o Espírito do Senhor, ali há liberdade”.

Mas, convém perguntar, onde está o Espírito? Ele não se encontra exclusivamente aqui ou ali. Não se faz monopólio de uma instituição, pessoa ou evento. O eventualismo humano apenas inibe a verdadeira ação do Espírito, ao pretender dizer: “Aqui está ele”; “Neste encontro ele se manifestará com poder”. Definitivamente, Paulo estava certo ao afirmar que o homem natural não aceita nem compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura, porque elas se discernem espiritualmente (1Co 2.14). Estamos falando do Espírito de Deus. Se Deus é o Onipresente, conforme diz o salmista, como se pode querer enjaular o Espírito?

Sua natureza é livre como é a de um animal selvagem, que ao ser preso ou confinado, perde todo o seu vigor, vitalidade e espontaneidade anteriores. O Espírito Santo age movido pelo sopro, pela palavra, pelo toque de Deus. Ele está presente onde Deus se encontra fazendo suas

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pequenas e maravilhosas revoluções, nos lugares, das formas e com as pessoas menos esperadas. Não tem como antecipar sua presença ou ação. O poder de consolo do Consolador não repousa nem cresce na prepotência, nas palavras decoradas, nem na manipulação pensada; esse poder só é fecundo na fraqueza, em palavras e em seres imersos nas imperfeições de sua humanidade. Ele é o brilho do tesouro que habita em vasos de barro.

A dança do Espírito não aprisiona, mas promove as sábias loucuras revolucionárias e libertadoras de Deus. Todos os que tentam aprisionar Deus, confiná-lo ou formatar sua natureza em uma caixa, falam de um conceito, privando os outros e a si mesmo nele. Contudo, graças a Deus, a verdade não germina ali. O vento sopra onde quer, onde Deus quiser.

Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!

Jonathan Menezes

OBJETIVOS DA DISCIPLINA

Ao final do curso, o aluno(a) deverá ser capaz de:

1. Conhecer os conceitos básicos que diferenciam a espiritualidade no plural da espiritualidade cristã

2. Relacionar os fundamentos históricos, bíblicos e teológicos contemporâneos da espiritualidade cristã

3. Compreender a importância de uma espiritualidade integral para a vida e missão da igreja

4. Desenvolver práticas e disciplinas que condigam com uma espiritualidade mais humana, cristocêntrica e solidária.

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Teologia e Prática da Espiritualidade

Unidade -01 Espiritualidade e espiritualidades

Introdução

Esta primeira unidade se trata de uma tentativa de encontrar definições possíveis para a espiritualidade, no sentido mais geral, para então diferenciar a espiritualidade cristã, em particular. Isto se fará, buscando suporte tanto em temas que estão sendo discutidos na atualidade (no Brasil, em especial), como a questão da busca de um cristianismo não-religioso, quanto em diálogo com autores que têm desenvolvido contribuições importantes nesta área.

Objetivos

1. Discutir sobre as dificuldades próprias de se compreender e definir o que é a Espiritualidade.

2. Identificar alguns dos diversos termos, conceitos e experiências que normalmente relacionam à espiritualidade.

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Em busca de definições

Defi nir espiritualidade não é uma tarefa tão fácil quanto parece ser, ao menos em nosso contexto latino-americano com forte tendência para a religiosidade. Na América Latina somos religiosos por natureza e nossa compreensão de espiritualidade normalmente diz respeito à intensidade dessa vida religiosa.

É devido a isso que neste curso não é possível tratar do assunto da espiritualidade cristã sem ambientá-lo no contexto do qual ele faz parte. Isso é necessário porque ela é experiência humana em relação ao divino, e o humano sempre está localizado em algum tempo e lugar. Em se tratando de realidade brasileira, tal necessidade se intensifi ca, pois nosso quadro religioso é bastante complexo e completamente relacionado à situação sócio-histórica. Isso quer dizer que, culturalmente, não vivemos a religião como algo à parte, mas no conjunto da vida.

Quando, por exemplo, acontecem as costumeiras enchentes de início de ano e pessoas diversas fi cam desabrigadas em várias regiões do país, ao serem entrevistadas por repórteres sobre o que farão a respeito, geralmente respondem: “Somente Deus poderá nos ajudar agora”, ou “Deus nos dará forças pra reconstruir tudo o que perdemos”. Para nosso povo, principalmente aqueles mais simples, não se fala de Deus como um conceito apenas, mas como uma forma de viver e dar sentido à vida.

Precisamos ter consciência de que a espiritualidade – ainda falando genericamente aqui – não acontece no vácuo, mas dentro das situações de vida no mundo. Ela não somente possui uma localização, como afeta a vida em todos os seus aspectos. Por mais que a modernidade iluminista tenha relegado a religião à esfera dos valores e da ética e entregue às ciências a orientação da vida concreta, na prática

Foto reprodução: TV Ji-Paraná

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cotidiana o fator religioso ainda é significativamente condicionador de nossas relações com as questões sociais, econômicas e culturais.

O contexto em que nossa espiritualidade “acontece” deve ser visto de modo integral, ou integrado, ou seja: histórico-religioso, sócio-econômico, cultural, ecológico, etc. Na cultura brasileira, historicamente ela tem sido um fator agregador desses aspectos. Para iniciarmos uma conversa sobre o assunto podemos, então, distinguir alguns conceitos religiosos que, invariavelmente, são relacionados à espiritualidade, inicialmente comentando algo sobre essa discussão no contexto atual e, em seguida, fazendo uma abordagem dos termos.

Sobre a religião e seus derivadosNo atual momento, vemos tomar corpo um movimento de

pessoas que se dizem apaixonadas por Jesus, mas que não gostam mais da igreja, detestam as instituições em geral, e desenvolveram uma ojeriza pelo que chamam de “religião” – a meu ver, a religião institucionalizada. O mote de sua trajetória está no slogan: “Mais Jesus e menos religião”.

O problema é que, nesse meio termo, apareceram outros apresentando outra visão de religião, mais positiva talvez, alegando que a religião faz parte da história humana desde sempre e tem oferecido contribuições importantes a ela. Em outras palavras, por mais que critiquemos a religião, na perspectiva dos defensores desta visão, não vivemos sem ela. Nesta discussão pouco criteriosa, termos como religião, religiosidade e espiritualidade acabam sendo utilizados de modo intercambiável, como se um fosse ou pudesse ser sinônimo para outro.

E a confusão se vê armada. Podemos desatar este nó?Em primeiro lugar, a discussão sobre as terminologias (religião,

religiosidade, espiritualidade, etc.) é in-termi-nável. Todas são palavras polissêmicas, se considerarmos o diálogo interdisciplinar, ou mesmo o senso comum. Ricardo Barbosa, por exemplo, defende que quando falamos de espiritualidade – especialmente no mundo contemporâneo em que o uso da palavra se tornou cada vez mais corrente – não nos

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referimos apenas, e necessariamente, à obra do Espírito Santo, mas “aos movimentos do espírito humano na busca por identidade e signifi cado. Neste sentido, podemos falar de espiritualidades”, no plural, uma vez que não se trata de um só rosto, mas de vários (SOUSA, 2004).

Em segundo lugar, esse movimento (por um cristianismo não-religioso) não é novo. Já vimos isso no século XX, através de Karl Barth, e mais fortemente na teologia de Dietrich Bonhoeff er, na teologia secular

(Harvey Cox) e da morte de Deus (A. T. Robinson e Cia), dentre outros. A diferença para o que temos visto atualmente é que esses últimos me parecem ter sido mais intencionais, proposicionais e consistentes (quer se concorde com eles ou não) no sentido de formular respostas relevantes aos problemas e movimentos de seu tempo, e não um fl ash mob de descontentes, como parece se apresentar grande parte do movimento atual. É preciso conferir mais coerência e conteúdo aos nossos descontentamentos.

No que diz respeito às terminologias, Paul Tillich, por exemplo, falando sobre a clássica diferenciação entre religião e revelação em sua Teologia Sistemática, afi rma que toda revelação pressupõe um receptor. E, considerando não haver receptor “puro” (isto é, livre da infl uência de sua cultura e da ideologia), e consequentemente nenhuma forma de fé, interpretação ou verdade universalmente válida, a recepção em si já é uma religião. Assim, o que Tillich chama de “religião” seria o processo de recepção e, por conseguinte, de signifi cação da revelação. Nesta acepção, não

Karl Barth

Harvey Cox

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há revelação sem religião e todos os que vivem conforme a revelação de Deus poderiam ser considerados religiosos.

Então, para começo de conversa, precisamos tentar entender qual religião esse movimento atual quer de menos, e qual Jesus ele quer de mais, para poder avançar no debate, não acham? Arriscar-me-ei, então, em algumas impressões mais pessoais sobre esse tema no último tópico. Agora, para não confundir muito os termos, como de propósito tenho feito até aqui, vejamos algumas conceituações importantes.

Alguns conceitos importantes

Temos alguns conceitos que normalmente são utilizados como sinônimos ou relacionados à espiritualidade. No entanto, eles possuem sentido próprio e designam alguns aspectos ou momentos da nossa espiritualidade, mas não ela propriamente dita. São eles:

1. Religiosidade – A experiência pessoal do ser humano com Deus traduz-se, numa linguagem mais contemporânea da história e antropologia das religiões, muito melhor como “religiosidade” que como “religião” propriamente dita. A palavra religião nos remete às instituições religiosas ou às grandes religiões, de caráter mais dogmático e clerical. Já religiosidade é um termo que evoca uma experiência mais ampla; traduz-se como expressão da interioridade do ser humano, de sua busca tateante pelo relacionamento com o transcendente, o numinoso, o sagrado. Isso se expressa em formas não institucionalizadas de lidar com o sagrado, como os ritos, êxtases, as danças, as festas, e assim por diante.

2. Fé – Tem a ver com o envolvimento com Deus a partir de uma resposta pessoal a Ele. Possível mediante a conversão, ou seja, a decisão

Paul Tillich

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pelo seguimento de Jesus como fruto de um ato de liberdade. Demanda a crença nesse Deus a ponto de um envolvimento de vida com ele. Karl Barth esclarece que a fé não é um estado humano e nem mesmo uma qualidade – a isto ele chama de “religiosidade”, classificação esta que, de certa forma, bate com o que vimos acima. Fé é história que se constrói com Deus através da sua Palavra, “uma história nova a cada dia”. Fé também não é igual a “crença”, isto é, a uma “suposição, a uma opinião, estabelecer um postulado, um cálculo de probabilidades, para então identificar o objeto da teologia com aquilo que supôs, postulou e considerou verossímil, e, neste sentido, o assumir” (BARTH, 2008, p. 64). Para Barth, a fé nasce de um encontro, e não de uma simples identificação, “do crente com aquele em quem crê” (Idem, p. 65).

Neste sentido, é válido ressaltar, portanto, que “fé” e “crença” são coisas opostas. Na diferenciação feita por Harvey Cox (2009, p. 2), a fé diz respeito a uma “confiança profundamente assentada”, algo vital para nossa existência. “Na linguagem cotidiana nós usualmente aplicamos o termo a pessoas em quem confiamos ou aos valores que nos são mais caros”. Já a crença seria, segundo Cox, mais como a opinião, mais proposicional que existencial. Dizer “eu acredito em Deus” é diferente de dizer “eu tenho fé em Deus”. E a diferença está proporcionalmente ligada ao compromisso. Acreditar que Deus existe não significa ter sua existência assentada em Deus e em sua Palavra. Já depositar a sua fé neste mesmo Deus implica em um compromisso de vida com Ele e sua Palavra, de modo que os valores, modo de agir e pensar divinos têm uma influência direta e decisiva em minha existência e em como a conduzo.

3. Misticismo – Os termos místico, mística e misticismo aparecem com freqüência na história da Igreja e como sinônimo, de certa forma, de espiritualidade. Misticismo tem a ver, todavia, com uma dada “experiência” e não com o seu pensamento e reflexão necessariamente. Trata-se da vivência interna do evento religioso, geralmente comunicada por meio de narrativa. Neste sentido, no relato de uma “experiência mística” a preocupação acaba recaindo mais no

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contato sobrenatural, na experiência em si, emocional e extática, sem dar muita importância ao conteúdo. Posso experimentar o sagrado, neste sentido, sem grandes significados para a maneira como vivo e me relaciono com o mundo. Já na espiritualidade bíblica, o conteúdo é importante, de tal forma que a experiência evoca, necessariamente, um conteúdo, um significado, uma mudança de mentalidade e, consequentemente, do jeito de viver.

4. Espiritualidade – Vocês perceberão, pelos textos desta e da próxima unidade, que espiritualidade é uma palavra que resiste à conceituação fechada. Ou seja, não podemos compreender espiritualidade como “somente isto” ou “somente aquilo”. Pelo contrário, precisamos buscar um entendimento básico inicial, ir aprofundando este entendimento por meio das leituras e, associado a isto, construindo um modo próprio de compreensão por meio da vivência. Gostaria de instigar isto ao longo do curso em geral, e mais especificamente na próxima unidade.

Conclusão

Espiritualidade é mais que um conceito. Mas, como seres humanos que somos, só nos entendemos e nos comunicamos por meio da linguagem. Por isso temos tantos conceitos de espiritualidade quantos são os campos semânticos, os contextos e as vivências. Isto não significa que qualquer definição ou percepção é válida, e sim que podem existir, no meio de tantas, algumas mais adequadas e apropriadas que outras. A próxima unidade, portanto, se trata da busca de uma visão apropriada e integral da espiritualidade, numa perspectiva cristã. Até mais!

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Referências bibliográficas

BARTH, Karl. Introdução à teologia evangélica. 8ª ed. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2003.

COX, Harvey. The future of faith. New York: HarperOne, 2009.MCGRATH, Alister. Uma Introdução à Espiritualidade Cristã. São Paulo: Vida, 2008.

SOUSA, Ricardo Barbosa de. Espiritualidade e espiritualidades. In: Espacio de diálogo. Disponível em: <www.cenpromex.org.mx/revis-ta_ftl/num_1>. Acesso 02 dez. 2013.

Escrito em parceria com textos (com uso autorizado) de autoria da professora Regina Sanches.

Anotações__________________________________________

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Teologia e Prática da Espiritualidade

Unidade 02: O que é espiritualidade cristã?

Introdução

Na unidade anterior, nos ocupamos de definições iniciais, procurando demonstrar como espiritualidade é um assunto complexo, razão pela qual utilizei esta palavra no plural (espiritualidades), além de comparar com termos relacionados tais como religião, religiosidade e misticismo. Nesta segunda unidade do curso, porém, gostaria de tratar especificamente do que falamos quando falamos em espiritualidade cristã. A tese principal a ser defendida é a de que a espiritualidade é diferente de mística, de religião e de religiosidade – embora seja muitas vezes, em com pouco critério, identificada com elas. Mais que isso, que a espiritualidade cristã é um modo de ser, expresso a partir de um encontro, relacionamento e compromisso com a pessoa de Jesus Cristo.

Objetivos

1. Diferenciar espiritualidade cristã de outras formas e compreensões de espiritualidade.

2. Desenvolver uma visão de espiritualidade mais ampla e integral.

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Sobre a espiritualidade cristã

De acordo com Alister McGrath (2008, p. 20), a palavra espiritualidade procede do termo hebraico ruach, que pode ser traduzido por “espírito”, inclusive no sentido de “vento”, “alento”. Refere-se ao ânimo de vida, tanto que a gera como que a sustenta. Também tem a ver como cada cristão responde à sua fé nas diversas representações cristãs existentes, o que, de acordo com ele, permite-nos também falar de “espiritualidades cristãs”.

Pode-se entendê-la, em geral, como uma qualidade não material que diz respeito à vivência, envolvimento, dedicação religiosa em geral, à luz de refl exão e entendimento. Mas, podemos falar também de espiritualidade cristã, que é aquela forma de espiritualidade específi ca da fé cristã e sua vivência.

Neste aspecto, eu fi caria com uma defi nição mais simples, que deve perpassar nossas conversas daqui para diante:

Espiritualidade é o modo de ser do cristão guiado pelo Espírito Santo.A espiritualidade cristã baseia-se na fé, pois é por ela que acolhemos

a palavra de Deus. A experiência mística e a devoção fazem parte e auxiliam nossa espiritualidade, mas não é sua fonte principal. A fonte de nossa espiritualidade é Jesus Cristo, que conhecemos prioritariamente pela palavra de Deus. A vida não é a razão da nossa espiritualidade, mas seu contexto. A espiritualidade cristã, conforme o próprio nome diz, é cristológica e cristocêntrica.

O seguimento de Jesus Cristo gerador da espiritualidade cristã não se dá, no entanto, como a um líder religioso de grande inspiração. Conhecemos Jesus pela obra de salvação e graça que ele realizou, e continua realizando, em nós. Nesse sentido, nossa espiritualidade, outra vez ressalto, é fruto do encontro com Cristo e a salvação que ele concede a nós, conforme ensinou o apóstolo Paulo aos cristãos na cidade de Corinto: “Porque nada me propus

Alister McGrath

“Ruach,” by Lucy A. Synk

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saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucifi cado” (1Cor 2.2). É em função disso que o estudo da espiritualidade cristã requer compreender seus fundamentos bíblicos e a experiência e elaboração histórica da Igreja – que veremos na próxima unidade.

Amor à vida, sim! Cultos e teatros sem substância, não!

Oportunamente voltando à discussão da primeira unidade sobre a questão da religião, pergunto: Quando profetas como Amós, por exemplo, criticam os cultos, encontros religiosos, ritos e formas de se “achegar a Deus”, o que afi nal ele está criticando? Ele está denunciando a forma de religião predominante em Israel, sem entrar no mérito de dizer “toda religião”, ou “a religião”. Talvez uma coisa que esteja faltando às nossas genéricas classifi cações sobre religião é “dar nome aos bois”. E isto Amós faz. Observem o seguinte trecho (na tradução “A Mensagem”, de Eugene Peterson):

Não suporto os encontros religiosos de vocês. Estou cheio dos seus congressos e convenções. Não me interessam seus projetos religiosos, seus lemas e alvos presunçosos. Estou enojado das suas estratégias para levantar fundos, das suas táticas de relações públicas e criação da própria imagem. Não suporto mais sua barulhenta música de culto ao ego. Quando foi a última vez que vocês cantaram para mim? Alguém aí sabe o que eu quero? Eu quero justiça – um mar de justiça. Eu quero integridade – rios de integridade. É isso que eu quero. Isso é tudo que eu quero (Am 5.21-24 – Grifos meus).

A religião criticada por Amós é covarde e superfi cial, porque marginaliza o que realmente importa e põe no centro o trivial e menos relevante. Confunde retidão com justiça própria e santidade com abstinência; faz dos sacrifícios e rituais o baluarte da espiritualidade, dissociando-a completamente da vida, da misericórdia e da sede por justiça. Afi rma uma sede incontrolável por Deus e seus mandamentos, mas é incapaz de reconhecê-lo no próximo, no diferente, na samaritana à beira do poço em meio ao caminho.

Daí, muitos desses encontros, congressos, convenções e projetos religiosos aos quais se refere o profeta, terem se tornado, para Deus, um negócio insuportável e indigno de atenção. Mais “culto ao ego” que outra

Eugene Peterson

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coisa. Daí a pergunta: “Quando foi a última vez que vocês cantaram para mim?”. E o que é viver e cantar “para Deus”?

É anelar por Deus com todo o nosso ser (lutando contra nossa divisão interna); é deixar ser movido e tocado pelas coisas que mobilizam o coração de Deus (o que sabemos por meio da Palavra); é desejar ardentemente que sua vontade seja feita tanto aqui na terra, como no céu; é lutar para que a justiça corra como rio que não seca; é buscar viver em integridade e afastar ao máximo do nosso caminho a hipocrisia. Mas, como? E seria isto outra forma de religião? Não sei, talvez, quem sabe. Linguagem, tudo passa por ela.

Não é novidade para ninguém que muitos sistemas religiosos se alimentam da hipocrisia e não subsistem sem ela. Muitas igrejas têm sido – até que provem a si mesmas e ao mundo o contrário – ao invés de centros de misericórdia e compaixão e comunidades de reino, covis de hipocrisia, onde o livre pensar é reprimido (sobretudo em assuntos como sexualidade, por exemplo), e o discordar (mais ainda da liderança e da orientação doutrinária) é tratado como pecado. Exceções à regra (os remanescentes) existem, é claro, mas com a sina de ter que “nadar contra a maré”, caso não (ou até que) se deixem corromper pelo “se não pode vencê-los, junte-se a eles”.

A hipocrisia vai, dessa forma, recebendo outros nomes, e vai sendo ornamentada com vestes outras, mais sofisticadas quem sabe (embora não menos vorazes) e se torna peça indispensável ao bom funcionamento da engrenagem, mascarada pelo discurso de que assim estaremos “no centro da vontade de Deus”. Como corolário disso e de outras tendências já bastante enraizadas, como a privatização da espiritualidade e a religião de consumo, as pessoas vão à igreja apenas para nutrir o lado “lúdico” da fé, que congrega e agrega a massa dos que querem distância do conflito e que relega aos ditos apóstatas, hereges e perdidos o lado trágico (e sombrio) da existência.

A hipocrisia tenta eliminar o sofrimento a todo custo e promover uma espécie de narcótico gospel como sustentáculo para uma fé “que funciona”. Uma fé que desconhece a compaixão, porque só age para aliviar a dor; que tem desconfiança em relação ao mistério, ao desconhecido e às incertezas; que pensa que testemunhar é igual a fazer propaganda de sua fé, e se distancia da prática da justiça por estar tão ofuscada com as celebrações e homenagens, públicas e privadas, ao “seu Deus” – o “meu Deus isso”, o “meu Deus aquilo”.

Essa fé é substrato da hipocrisia. Irracional e inconscientemente,

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muitas vezes, ela canta: “Hipocrisia, eu quero (eu preciso de) uma pra viver!”. Nos lugares onde ela é vivida, as palavras de Jesus – “Acautelai-vos do fermento dos fariseus!” – ecoam como gritos em uma terra de surdos.

Porque acautelar-se, talvez, implique em passar pela via da admissão honesta de que, no fundo, todos (digo, os que nos servimos do sistema religiosos, ou os que se encontram, como eu, em processo de libertação de suas entranhas) somos um pouco como os fariseus ou hipócritas – o que seria um total absurdo e falta de espiritualidade, para muitos. Se toda mulher é meio Leila Diniz, como diz a canção “Todas as mulheres” de Rita Lee, então (digo isso contra meu melhor senso) todo crente é meio hipócrita e, por natureza, religioso (no sentido que Amós abomina), até que prove o contrário lutando contra tal orientação.

Nas palavras do profeta Amós, temos indícios ou ecos (da Revelação) de um constante manifesto de repúdio divino contra a escolha de tantos em fazer do farisaísmo e da hipocrisia sua morada permanente. Agora pergunto:

• Quem será o primeiro a ter coragem de vestir a carapuça? • Quem ousará romper com as correntes (frouxas ou apertadas) da

hipocrisia? • Quem será capaz de avançar uma milha mais rumo a uma entrada

em um cristianismo não-religioso? Quem sabe você possa discutir essas e outras questões com sua

comunidade, grupo pequeno, ou mesmo no fórum indicado para esta semana, com seus colegas de turma.

Conclusão

No âmbito da fé cristã, entende-se a espiritualidade como um modo de vida, essencialmente relacional, centrado em Cristo e firmado na Palavra. Embora ela possa se expressar em formas e conotações consideradas religiosas, ela envolve mais que o que se entende comumente por religião. Ser espiritual, neste aspecto, é deixar que o seu viver seja guiado e orientado de modo integral (em tudo o que se é e se faz – isto falando em termos ideais, indicando uma busca e não “a perfeição” em si) pelo Espírito de Deus, sem abandonar os aspectos da vida material, corporal, humana. O templo do Espírito, nesse sentido, não é apenas meu espírito ou alma, mas meu corpo,

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todo o meu ser indivisível. Gostaria de relacionar, por fim e ao modo de retomada,

algumas idéias relacionadas à espiritualidade que devem ser mais bem pensadas, por exemplo:

1. É algo próprio do ser humano – é uma prática que requer pensamento, decisão, comportamento, vivência, o que é caracteristicamente humano.

2. É algo que se opõe ao material – historicamente tem sido entendida em contraposição ao corpóreo ou material, ou seja, vida espiritual contrapõe vida mundana.

3. Muitas vezes é tratada em referência à vivência religiosa – como se naturalmente dissesse respeito à religião.

4. Na religião, refere-se à relação com a transcendência – superação da materialidade e contato com o divino.

Dentro de uma compreensão integral de espiritualidade, não cabe mais pensá-la como o oposto do que é material e concreto. Vivemos em um tempo que busca superar os vícios impostos pela modernidade, como o que se expressa no dualismo entre fé e razão, religião e ciência, espiritual e material.

A cultura chamada de pós-moderna esforça-se pela integração em todos os sentidos e aspectos da vida humana. Espiritualidade, nesse caso, não é algo que se refere exclusivamente a atividades tipicamente “religiosas” (como orar, jejuar ou ir à igreja aos domingos), pois tem a ver com a vida como um todo, e não está à parte da vida no mundo e com a vivência nele. Se a espiritualidade é um “modo de vida”, como venho defendendo, envolve não somente uma parte dela, mas a vida inteira. Correr, por exemplo, pode ser uma atividade tão espiritual quanto o jejum, e por aí vai. Espero que esta idéia fique mais clara na próxima unidade, quando veremos um aporte bíblico e histórico à espiritualidade cristã. Até lá!_

Referências bibliográficas

McGRATH, Alister. Uma Introdução à Espiritualidade Cristã. São Paulo: Vida, 2008.

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Teologia e Prática da Espiritualidade

Unidade 03: Espiritualidade na Bíblia

Introdução

Tendo abordado algumas ideias básicas sobre o que há de específico na espiritualidade cristã em relação a outras formas possíveis de espiritualidade em voga nos dias de hoje, nos debruçaremos nesta terceira unidade de nosso curso sobre bases da espiritualidade cristã no Antigo e Novo Testamento. Para tanto, apresentarei alguns recortes e, a partir deles, analisaremos o assunto, tendo em vista tratar-se de um texto de pequeno porte. A intenção básica é que você constate que a Espiritualidade Cristã é necessariamente bíblica, ainda que a palavra “espiritualidade”, em si, não seja.

Objetivos

1. Apresentar alguns caminhos bíblicos da espiritualidade cristã.

2. Constatar que, embora não seja um termo bíblico, a essência da espiritualidade cristã está em ser bíblica.

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Teologia e Prática da Espiritualidade22

Bases bíblicas para a espiritualidade

Para tratar das bases bíblicas da espiritualidade cristã a partir do nosso contexto sócio-cultural, introduziremos o assunto com citações de dois teólogos terceiro-mundistas que experienciam situações de vida parecidas com a nossa, ou seja: sérios problemas sócio-econômicos, riquezas cultural e ecológica não devidamente aproveitadas, diversidade religiosa e uma teologia que emerge da situação sócio-histórica.

Nossa teologia da espiritualidade deve corresponder a essas situações e seus problemas comprometedores da vida. Devemos fazê-lo não à parte, mas do interior dessa realidade, conforme ensina John Mbiti, teólogo, fi lósofo e poeta queniano:

A religião permeia todas as partes da vida, de maneira tão completa que não é fácil, talvez nem possível isolá-la. Um estudo desses sistemas religiosos é, portanto, primariamente um estudo dos povos em si, com todas as suas complexidades tanto da vida tradicional, como da moderna (MBITI, 1990, p. 1).

De fato, viver com Deus é compartilhar das suas preocupações e fazer delas as nossas preocupações pessoais e comunitárias. É também aprender a amar o próximo como fruto da nossa liberdade de acordo com Kosuke Koyama, teólogo japonês que foi missionário na Tailândia:

Quando o amor funciona, o caráter da liberdade se revela – mesmo que continue sendo um mistério para nós. “Ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém sua vida pelos amigos” (João 15:13). O homem tem a liberdade de amar e “dar sua vida pelos amigos”. Quando escolhe perder a sua liberdade pelo amor aos outros, é que ele se torna mais livre e mais amoroso (KOYAMA, 1979, p. 46)

John Mbiti

Kosuke Koyama

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Outro teólogo, Juan Stam, latino-americano de coração e naturalização, relacionou a vida no mundo à esperança do cristão, à

luz do seus estudos em escatologia:Vivemos nestes tempos como cidadãos de uma nova

ordem. De agora em diante, somos a levedura e a semente, a luz e o sal da nova criação, assim como do Reino que veio e virá. Isso signifi ca viver como primícias da nova criação vindoura. Enquanto isso, “entre os tempos”, vivemos desejando e apressando a gloriosa transformação de todas as coisas, conforme o Criador prometeu (STAM, 2003, p. 98).

É tendo como ponto de vista (de onde vemos as coisas) essa compreensão de uma fé contextualizada que iremos agora para o texto bíblico.

Breve olhar a partir do Antigo TestamentoO melhor ponto de partida para qualquer teologia que se queira

afi rmar cristã é a criação. A chamada Teologia da Criação serve para nós como base para o tratamento do problema humano no mundo e a relação disso com Deus.

Também é nas narrativas da criação que encontramos os primeiros relatos sobre a presença e atuação do Espírito Santo. Nelas, ele é apresentado como ruach, termo hebraico que signifi ca “vento”, no sentido de “alento”, “fôlego”, “ânimo”. O Espírito na criação é aquele que anima a vida, ou seja, dá energia (no sentido da física mesmo). Explicando de uma forma poética e bem latino-americana: “Ele faz com que simples bonecos de barro cantem e dancem à luz do sol”. O Espírito foi a energia de vida na criação de todas as coisas, e, como tal, ele é também, até hoje, o sustentador dela no mundo.

Cosmos signifi ca mundo, no “sentido de universo”. Se a Floresta Amazônica permanece verde e as árvores de Buriti continuam a dar seus frutos e sua seiva a alimentar muitos, é porque o Espírito de Deus ainda age no mundo. Se as matas ao longo das estradas de Minas

Juan Stam

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reverdecem com uma pequena chuva após longo período de estiagem, é porque a vida está nelas, e essa vida (ânimo) vem do Espírito Santo e não de outro. Se o ser humano é capaz de dizer “a vida continua” após grandes perdas e sofrimentos, é porque há esperança no mundo, e, esperança é vida, a qual tem como fonte o Espírito Santo de Deus.

Neste sentido, todo atentado contra a vida no mundo, nas suas mais diversas manifestações, é também atentado contra o Espírito Santo e sua obra vivifi cadora. Nesta direção é que se deve compreender a evangelização, que não deveria visar o doutrinamento ou acréscimo de membros a uma Igreja local, mas, sobretudo, ser a condução de pessoas a Jesus Cristo, a única

fonte possível de vida por meio do Espírito.O que isso tem a ver com a espiritualidade cristã? Podemos

dizer que são dessas águas teológicas que ela emerge. E o ministério do Espírito Santo é gerar e manter a vida na criação de Deus. E podemos afi rmar que essa é a medida da nossa espiritualidade.

Ainda no Antigo Testamento podemos perceber como os profetas corresponderam ao Espírito ao encarnarem a Palavra de Deus em suas vidas, comunicando-a de modo integral. Também compreendemos a espiritualidade horizontal do sapiencialismo, que relacionou-a a vivência da vontade de Deus na vida, em sua organização e inter-relacionamentos. Sapiencialmente viver no Espírito é viver em sabedoria.

Um breve olhar a partir do Novo TestamentoA vida e obra de Jesus são mais do que modelo de espiritualidade;

são sua fonte principal, como ele mesmo afi rmou: “Eu sou a porta; se alguém entrar por mim, salvar-se-á, e entrará, e sairá, e achará pastagens” (Jo 10.9). Neste caso, achar pastagens é achar alimento, nutrir-se dele e assim viver. Não há espiritualidade cristã se esta não

Fonte: Wikipedia - Buriti

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for cristológica (no sentido de basear-se teologicamente na pessoa de Jesus) e cristocêntrica (no sentido de estar centrada em Jesus). Nossa vida com Deus somente é possível porque Cristo, através de sua obra salvadora, faz a mediação entre nós e ele:

Eu sou o caminho, e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim (Jo 14.6).

Cristo é o caminho por onde passa nossa espiritualidade. Como afi rma o termo que a acompanha e qualifi ca, ela é cristã. Mas ele também comentou que enviaria o Espírito da Verdade: “O Espírito de verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem

o conhece; mas vós o conheceis, porque habita convosco, e estará em vós” (Jo 14.17), que é também apresentado nesse mesmo capítulo de João como o Espírito Santo. Ele esclarece que o mundo não pode receber o Espírito porque não o reconhece,

mas aqueles que pela fé acolheram o conhecimento revelado de Deus, sabem quem é o Espírito e estão sensíveis à eles. Esses, sim, podem recebê-lo bem como o conhecimento da verdade que ele transmitirá.

Já em Atos dos Apóstolos, o ministério do Espírito se evidencia tanto no esclarecimento da verdade de Jesus Cristo, como vemos no caso do sermão de Pedro no pentecostes, como na vida da Igreja. Ele, o Espírito, é apresentado como a energia que impulsiona a Igreja em sua missão. Uma palavra recorrente no livro de Atos é “poder”. Ela é utilizada para se referir à proclamação dos apóstolos: “Os apóstolos davam, com grande poder, testemunho da ressurreição do Senhor Jesus” (At 4.33); ao ministério de Estevão “cheio de fé e poder” (6.8), e outros.

O sentido de poder nas narrativas tem a ver com energizar mesmo, fazer com que a proclamação, a oração e o testemunho surtam efeitos extraordinários, que vão além da condição natural e humana. Quando compartilhamos do ministério do Espírito ele compactua com nossa missão dando a ela a força necessária para que o possível e também o impossível ao ser humano aconteça: “E disse Pedro: Não

Fonte: Depositphotos

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tenho prata nem ouro; mas o que tenho isso te dou. Em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, levanta-te e anda. E, tomando-o pela mão direita, o levantou, e logo os seus pés e artelhos se fi rmaram” (At 3.6).

É bom lembrar, no entanto, que o mérito disso é todo do Espírito Santo, pois ele é o poder de Deus em nós: “Mas temos esse tesouro em vasos de barro, para mostrar que este poder que a tudo excede provém de Deus, e não de nós” (2Co 4.7). No texto Paulo fala de um “tesouro” (evangelho e a companhia do poder divino) em “vasos de barro” – que designa a nossa humanidade, que como o vaso vem do pó, é frágil, vulnerável e sempre sujeita à quebra.

Temos aqui então um contraste, uma dessas ironias divinas: o eterno poder, que não pode ser contido (do contrário, não seria eterno) escolhendo precisamente o que há de mais fraco e incerto para “se abrigar”. E a pergunta é: por quê? Paulo mesmo dá a resposta: é para mostrar que a excelência desse poder vem de Deus, e não da gente.

Trocando em miúdos: temos um tesouro (poder), mas esse tesouro não vem de nós, nem é para a nossa glória e nem nos faz triunfantes no mundo. Pelo contrário. Paulo segue afi rmando nos versos seguintes que “em tudo” somos perplexos, atribulados, perseguidos, abatidos, embora não o bastante para sermos destruídos, desanimados, angustiados e totalmente desamparados.

Curioso, não? Esse poder, que não é nosso, não nos faz mais poderosos que ninguém, tampouco imunes ao sofrimento de qualquer ser humano – agregando ainda um sofrer de outra espécie, por ser cristão. Mesmo tendo um tesouro, nunca deixamos de ser simples vasos! E o vaso não existe para proteger a integridade do tesouro, mas é o tesouro que é oferecido para proteger a integridade do vaso, a despeito de suas eventuais “quebras”.

Não somos, portanto, defensores ou detentores do tesouro; ele não precisa de sentinelas ou guardiões “espirituais”, nem de Indiana Jones “gospel”; e não somos nós que resplandecemos, mas ele resplandece através de nós. O vaso não existe

Fonte: Depositphotos

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ainda para se transformado em cofre forte, mas existe para morrer: “Trazemos sempre em nosso corpo o morrer de Jesus, para que a vida de Jesus também seja revelada em nosso corpo” (4.10).

Penso que o que Paulo está querendo aqui, dentre outras coisas, é nos convidando a rever nossa teologia da espiritualidade em sua ótica sobre o poder e reservar nela um lugar especial para a aceitação jubilosa da fraqueza. Somente quando assumirmos nossa fragilidade humana, o poder de Deus se aperfeiçoará em nós a fim de que participemos da transformação que o Espírito já vem realizando no mundo, muitas vezes sem a nossa “ajuda” pretensiosa.

Esse poder, portanto, não torna ninguém mais especial que o outro, mas certamente com maiores condições para o serviço (serviço no sentido de atuação de servo), conforme o texto sobre a cura realizada pelos apóstolos relata: “Pois tinha mais de quarenta anos o homem em quem se operara aquele milagre de saúde” (At 4.22).

Conclusão

Voltamos à pergunta: e o que isso tem à ver com a Espiritualidade? Se espiritualidade é estar e viver no Espírito, como um modo de vida – como vimos na primeira aula – isso significa então que somos graciosamente convidados a colaborar com suas ações e obras maravilhosas.

Quando pensamos em Espiritualidade cristã normalmente nos vem à mente aquela postura contemplativa de internalização da fé e vivência mística da experiência religiosa cristã. Esse é o modelo típico herdado do monasticismo medieval (como veremos adiante), que ofereceu a nós um modo de espiritualidade mais ascético, meditativo e baseado nas disciplinas espirituais. Embora seja extremamente interessante este modelo, ele não define por si só a espiritualidade cristã. Necessitamos por vezes da solidão (ou solitude), da quietude e da meditação para alimentar nossa vida espiritual – e sobre isto trataremos mais adiante neste curso.

Todavia, conforme o livro de Atos, o sair em missão, proclamar, conceder saúde a doentes também é parte de nossa espiritualidade.

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Quando fazemos isto estamos, mais do que nunca, andando no Espírito, pois é ele quem nos guia e nos conduz pelas trilhas do mundo, encarando e vivenciando os desafi os próprios da vida mundana e procurando estar em conexão com os propósitos e orientações divinas. Como esclarece John Stott, “andar no” Espírito é diferente de ser “guiado pelo” Espírito. Ele nos guia, mas o seu guiar não nos resigna a uma condição de passividade, pelo contrário, nós precisamos, na força que ele supre, segui-lo como resposta ao seu guiar.

Assim, “andar no Espírito” é andar deliberadamente ao longo do caminho ou de acordo com a linha que o Espírito Santo estabelece. O Espírito nos “guia”; mas nós temos de “andar no” Espírito ou de acordo com suas regras. (...) Isso será percebido em todo o nosso modo de viver, no lazer que buscamos, nos livros que lemos e nas amizades que fazemos. (...) Em tudo isso ocupamo-nos de coisas espirituais. Não basta submeter-nos passivamente ao controle do Espírito; também temos de andar ativamente no caminho do Espírito. Só assim aparecerá o fruto do Espírito (STOTT, 2003, p. 140).

O efeito disso em nós (o fruto propriamente) é como o efeito do exercício físico feito em boa medida, que no momento em que é realizado parece estar consumindo nossas forças, mas com o tempo descobrimos que, com ele, ganhamos saúde e, assim, energia de verdade. Vejamos adiante exemplos de espiritualidade na história. Até lá!

Referências bibliográficas

KOYAMA, Kosuke. Fift y meditations. New York: Orbis Books, 1979.MBITI, John. African religions & philosophy. Oxford: Heinermann, 1990.STAM, Juan. Profecia bíblica e missão da igreja. São Leopoldo: Sinodal, 2003.STOTT, John. A mensagem de Gálatas. Somente um caminho. São Paulo: ABU, 2003.

John Stott

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Teologia e Prática da Espiritualidade

Unidade 4: Espiritualidade na história

Introdução

Pensando ainda em bases da espiritualidade cristã, nesta unidade convido vocês para um passeio como que de avião sobre a história da Igreja, mas focando a espiritualidade cristã, como foi pensada e praticada no decorrer dos tempos por homens e mulheres em sua paixão pelo Divino. Certamente faltarão muitas informações importantes, mas precisarei fazer recortes devido ao espaço que temos. Retomarei, por fim, questões do período bíblico, fechando com a espiritualidade da Missão Integral.

Objetivos

1. Conhecer caminhos da espiritualidade na história para um posterior aprofundamento das temáticas abordadas.

2. Desenvolver a sua espiritualidade no plano pessoal à luz e tendo como modelo suas práticas bíblica e histórica.

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Um olhar sobre a espiritualidade na históriaA história da espiritualidade cristã somente é possível como um

recorte dentro da história mais abrangente da Igreja e da sua teologia. Não se trata de um assunto à parte, pois diz respeito à vivência da fé dessa Igreja no mundo.

Como vimos na unidade anterior, os antecedentes da história da espiritualidade cristã estão na espiritualidade bíblica. Lembremos de alguns antecedentes rapidamente.

No Antigo Testamento a espiritualidade é baseada na relação histórica concreta do povo com Deus. A história é o palco da ação divina. Ele promete salvação e a realiza no tempo e no espaço. Essas promessas realizadas viram memória e esperança, que se revitalizam nas novas situações do povo com seu Deus. Da mesma forma, o Senhor requer do seu povo fi delidade à aliança que estabeleceram no Sinai.

Tanto nas narrativas do Pentateuco, Livros Históricos e Profetas, como nos ensinos dos Escritos, a vida com Deus se faz na coletividade (do povo de Israel), e é realizada mediante a fi delidade aos preceitos do Senhor. Essa fi delidade, que seria uma sinônima possível de espiritualidade, deveria ser visibilizada através de políticas corretas e justas, vida social e familiar exemplar, dedicação religiosa, transmissão do conhecimento de Deus, e assim por diante. A necessidade de ser fi el se devia ao fato de que Israel era o povo eleito de Deus e com ele havia fi rmado um pacto, um acordo:

A fi nalidade da eleição é o serviço, e quando ele é recusado, a eleição perde seu sentido. Primordialmente, Israel deve servir os marginalizados em seu meio: o órfão, a viúva, o pobre e o estrangeiro. Sempre que o povo de Deus renova sua aliança com Javé, reconhece que está renovando suas obrigações com a vítimas da sociedade (BOSCH, 2002,

p. 36).É em vista das razões acima que a espiritualidade de Israel

Povo de Israel - Wikimedia Commons

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estava estreitamente relacionada à sua missão de transmissora do conhecimento de Deus pela via da vida no mundo e da comunicação e registro da revelação. Era preciso que as nações adorassem a Deus e, para isso, teriam que conhecê-lo. De certa forma, a espiritualidade das nações passava pelo serviço de Israel.

No Novo Testamento, a espiritualidade passava pelo reconhecimento do Messias (Jesus Cristo) e o seguimento de sua vida e seus ensinos, conforme transmitidos pelos apóstolos e, em vista disso, na reunião como Ekklesia e o exercício da missão. Tanto quanto a espiritualidade é dinâmica e celebrativa no AT, no NT ela é proclamadora (kerigmática), de serviço (diaconia), comunitária (na koinonia), requer ensino (didaskalia) e é celebrativa (litúrgica). Ou seja, trata-se de uma espiritualidade integral – como mais bem visto no texto de apoio desta aula, escrito pelo professor Marcos Orison.

No período antigoNo período antigo aconteceu uma mudança no paradigma

teológico, portanto, de compreensão da espiritualidade cristã. A fé histórica, dinâmica e narrativa do período bíblico cedeu lugar gradativamente para uma forma mais refl exiva e abstrata. A helenização da teologia cristã afetou o modo de se vivê-la no mundo. No fundo porque, enquanto fenômenos históricos, esta teologia já nasceu em diálogo com o helenismo.

Outro fator que contribuiu para isso foi a institucionalização da Igreja, que trouxe consigo a formalização do culto e a instituição do clero como mediador da relação com Deus. A espiritualidade a partir desse período começou a ser, em grande parte, sinônima de religiosidade. Na medida em que o povo era distanciado da Palavra de Deus, mais religioso se tornava. Não há espiritualidade sem conhecimento de Deus por meio da sua Palavra. Qualquer relação com a fé cristã que se estabeleça sem esse

Laocoonte, esculturaWikimedia Commons

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conhecimento é meramente seguimento religioso, porque a fé cristã requer consciência, como orientou Pedro em sua carta: “Santifi cai ao Senhor Deus em vossos corações; e estai sempre preparados para responder com mansidão e temor a qualquer que vos pedir a razão da esperança que há em vós” (1Pe 3.15).

O monasticismo dos chamados “Pais do deserto” (sobre os quais veremos mais detidamente na unidade 7) surgiu nessa época (séc. III) como movimento de espiritualidade, em reação aos rumos excessivamente institucionais da Igreja. Ele propôs uma vivência alternativa da fé, caracterizada pelo isolamento e reclusão, levando ao surgimento de uma espiritualidade de caráter apofático.

Um exemplo de espiritualidade apofática nesse período é Gregório de Nissa (viveu em Cesaréia, Capadócia em 330-395 d.C.), como bem comprova um texto dele próprio:

Quanto mais acreditamos que, o “Bem”, por sua própria natureza, está muito além do alcance do nosso conhecimento, maior é nosso sentimento de tristeza por estarmos separados desse “Bem”, que é tão grande quanto desejável, embora não possa ser completamente contido em nossa mente (NISSA apud MCGRATH, 2008, p. 246).

Outro exemplo de espiritualidade nesse período é Agostinho de Hipona, um importante teólogo dessa época e grande infl uenciador do pensamento medieval, inclusive dos reformadores. Conforme observa Alister MacGrath (2008, p. 249), “Agostinho argumenta basicamente que fomos criados para a comunhão com Deus. Quando isso não se realiza, o resultado é um sentimento de insatisfação e inquietude”. Nesse caso, a felicidade humana está diretamente relacionada à dependência e relacionamento com o divino:

Para Agostinho, as verdadeiras realização e satisfação humanas vêm somente quando Deus é adorado e conhecido. É interessante que Agostinho admita que outras coisas no mundo poderão oferecer pelo menos alguma aparência de felicidade; para ele, o fato de o mundo ser criado por Deus signifi ca que em toda a criação existem

Agostinho de HiponaFonte:Wikimedia Commons

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indícios da bondade e majestade de Deus. A criação, então, contém algum “refl exo da verdadeira felicidade”, que poderá servir de indicação para a fonte e satisfação dessa alegria: Deus (Ibid., p. 249).

No período MedievalAs tendências do período antigo acentuaram-se no período

medieval. O clero centralizou e exclusivizou a leitura da Bíblia. A Teologia se distinguiu da doutrina e se tornou nas grandes escolas uma forma de pensamento especulativo da fé. O monasticismo (a partir do séc. VI, com Bento) se tornou a grande força missionária e de espiritualidade da época. Aqueles que estavam fora dele, mas compunham a cristandade, se apegaram à religiosidade e, quando muito, ao misticismo medieval. O misticismo medieval, caracteristicamente apofático, gerou representantes interessantes e que são lembrados até hoje na história da espiritualidade, como por exemplo Bernardo de Claraval (monge de Claraval, França, que viveu entre 1090 a 1153). Conforme ele a Escritura Sagrada, pela qual possuia grande apreço, deveria ser muito mais orada do que estudada. Seus textos se caracterizavam pela ênfase no sentimento e na linguagem poética, como o que segue:

Existe indubitavelmente uma espantosa analogia entre o azeite e o nome do Amado, pelo que a comparação apresentada pelo Espirito Santo não é arbitrária. A não ser que possais sugerir algo de melhor, afi rmarei que o nome de Jesus possui semelhança com o azeite na tripla utilidade deste último, nomeadamente, para iluminar, na alimentação e como lenitivo. Mantém a chama, alimenta o corpo, alivia a dor. É luz, alimento e medicina. Observai como as mesmas propriedades podem ser encontradas no nome do noivo divino. Quando pronunciado fornece luz; quando meditado,

alimenta; quando invocado, serena e abranda (Bernardo de Claraval).

Monastério medievalFonte:Wikimedia Commons

Bernardo de ClaravalFonte:Wikimedia Commons

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Teologia e Prática da Espiritualidade34

Outro nome bem conhecido, principalmente por ter sido o grande inspirador de Lutero, foi Meister Eckhart (1260-1327). Monge dominicano, fi lósofo e místico, que se serviu do neoplatonismo para explicar sua compreensão de Deus. Nessa época surgiram também várias mulheres que contribuíram com a mística cristã, como: Hildegarda de Bingen, Gertrudes a Grande, Matilde de Magdehurgo, Matilde de Hackeborn e a conhecida Teresa de Ávila.

Na Reforma ProtestanteDe todos os reformadores, Lutero parece ter sido o que mais foi

infl uenciado pela mística medieval. Seus escritos transparecem essa forma de espiritualidade bastante dependente de uma relação mais

íntima e interna com Deus, como se pode observar pelo trechoa seguir:

A santidade cristã ou a santidade comum da cristandade é a seguinte: quando o Espírito Santo dá às pessoas fé em Cristo, santifi cando-as pela fé (Atos 15.9). Em outras palavras, quando o Espírito cria um novo coração, uma nova alma, um novo corpo, uma nova obra e uma nova natureza e escreve os mandamentos de Deus em corações (2 Coríntios 3.3), não em tábuas de pedra (LUTERO, 2001, p. 11).

No entanto, eles propuseram um novo paradigma de espiritualidade cristã ao afi rmarem o sacerdócio universal de todos os crentes, ou seja, que todos temos livre acesso a Deus. Isso implica que não dependemos de mediadores humanos para nos relacionarmos com Deus. Podemos fazer-lhe orações, oferecer-lhe nossas vidas em serviço, ler a Palavra e buscar entendê-la, pois, conforme ele, o Espírito Santo ilumina a todos igualmente para o entendimento das Escrituras.

Martinho LuteroFonte:Wikimedia Commons

Tereza de Ávila Fonte:Wikimedia Commons

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Lutero esclarece ainda que o conhecimento de Jesus Cristo e sua graça que recebemos da Palavra nos torna pessoas livres. Como seres livres em Deus estamos prontos para o serviço ao próximo e as

boas obras, como fruto de nossa própria liberdade. Nisso está a verdadeira espiritualidade cristã, na liberdade diante de Deus.

Calvino também afi rmava que o o homem somente se compreende de fato em Deus. Menos místico, mais fi lósofo e sistemático em seus pensamentos teológicos, ele relacionava a espiritualidade à disciplina da vida cristã, sua ética e reconhecimento da verdade.

O pietismo, movimento posterior à Reforma e que aconteceu dentro do luteranismo, apresentou uma nova forma de espiritualidade. O ortodoxismo que passou a caracterizar o protestantismo pós-reforma foi críticado pelos pietistas, que fi zeram a chamada para a experiência da fé cristã, não somente sua confi ssão. Retomaram a importância da oração e da leitura piedosa das Escrituras e fi caram conhecidos como um movimento de espiritualidade.

Já no moravianismo, movimento interno do pietismo, aliaram essa prática da espiritualidade à vida missionária para outros povos. A oração serviu não somente para alimentar a vida espiritual, mas para a vocação e a sustentação da obra missionária.

Na ModernidadeA Espiritualidade na modernidade possui várias representações.

Não há mais cristandade (uma sociedade cristã, aliada com o Estado) no sentido medieval, pois o próprio cristianismo se apresenta na forma de protestantismo e seus vários movimentos, catolicismo ocidental e catolicismo oriental. Cada segmento cristão faz apresentações de suas concepções de espiritualidade subsidiadas por teologias diversas.

No protestantismo tanto encontramos aquelas formas mais

João CalvinoFonte:Wikimedia Commons

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Teologia e Prática da Espiritualidade36

racionalistas de vivência da fé, quanto aquelas piedosas e devotas. Destaca-se nesse período o movimento evangelical. Surgiu na

Inglaterra no séc. XVIII, no interior da Igreja Anglicana e afi rmava a necessidade de arrependimento, conversão e mudança de vida, com isso, a necessidade da evangelização e da experiência da fé. Este movimento foi infl uenciador do metodismo e gerador de um esforço missionário no séc. XIX para várias partes do mundo. Ele surgiu no contexto dos chamados grandes avivamentos (na Inglaterra, na América do Norte e com vários focos na Europa). Estes avivamentos foram como que movimentos radicais de espiritualidade, voltando-se para uma experiência de retorno ao primeiro amor, e redespertar para uma vida cristã transformadora.

O Pentecostalismo

No início do séc. XX surgiu nos Estados Unidos um novo movimento de espiritualidade que chamaram de Pentecostalismo, sob a liderança de William Seymour. Afi rmava a atualidade do batismo no Espírito Santo e dos dons espirituais, até então compreendidos como

específi cos da Igreja do primeiro século.

O pentecostalismo se espalhou por vários lugares no mundo, mas seu impacto maior foi na Ásia, África e América Latina. Embora tenha dado origem a várias Igrejas até os dias de hoje, sua importância também está na contribuição para a revitalização da vida cristã e do culto nas igrejas históricas.

Originalmente, para o pentecostalismo a vida com Deus passa por uma via pneumatológica, ou seja, do poder do Espírito Santo, bem como a vida e missão da Igreja no mundo.

Wiliam SeymourFonte:Wikimedia Commons

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Um pouco de atualidade

Na atualidade temos, além do pentecostalismo que continua a comprovar sua vigência e força de influência, os movimentos teológicos do mundo dos dois terços que apresentam também suas formas de espiritualidade. Elas são sempre muito relacionadas à uma nova práxis cristã no mundo (práxis: ação tranformadora), solidária e preocupada com a realidade concreta.

Dentre elas destacam-se a teologia da libertação (ver “espiritualidade da libertação”, na unidade 10), e a teologia da missão integral, que propõe uma missão e forma de espiritualidade mais abrangente, holística e preocupada com o todo, como bem aborda o texto de apoio desta aula. Para tanto, apresenta o contexto percebido integralmente como lugar de onde se busca conhecer Deus e onde realizamos nossa missão. Da mesma forma, a Escritura deve ser lida como Palavra de Deus em um contexto, como também é contexto de vida, deve ser visto de modo integral.

Conclusão

Nesta unidade vimos que a espiritualidade, embora tipicamente cristã e, porranto, fundamentada em princípios que são sustentados em comum, foi adquirindo inúmeras facetas e variações. Um passeio pelos principais períodos da história deixou-nos uma, ainda que superficial e breve, impressão de que o Senhor é único, Cristo, mas as expressões, linguagens e experiências que encampam uma espiritualidade cristã são diversas e, muitas vezes, conflitantes. O mais importante, sobretudo se queremos pensar em uma espiritualidade humana e relevante para nosso tempo, é que pensemos que, desde os mais remotos tempos e situações, Deus nos convida a fincar raízes, mantendo os pés no chão desta história, mas com os olhos fitos em Jesus Cristo e na esperança nele depositada. Nas próximas unidades, prosseguiremos nosso estudo olhando um pouquinho para a teologia da oração, como importante vertente dos estudos em espiritualidade. Até lá!

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Glossário

1. - A espiritualidade apofática parte da concepção teológica de que a mente humana não consegue compreender plenamente os mistérios de Deus e que isso condiciona sua espiritualidade. Devido a isso ela é mais contemplativa e com ênfase no esvaziamento e na negação dos desejos. A espiritualidade catafática, por sua vez, baseia-se na afirmação dos pensamentos e desejos na devoção cristã.

2. - Neoplatonismo usulamente se refere a filosofia de Plotino (205-270) e aos individuos que eventualmente a ele se juntaram. Como última grande filosofia do mundo antigo, de acordo com Paul Tillich, “ era uma filosofia negativa, uma filosofia de escape deste mundo. Queria a elevação da alma acima do mundo material às alturas mais sublimes” (TILLICH, 1988, p. 109).

Referências bibliográficas

BOSCH, David. Missão Transformadora. Mudanças de paradigma na teologia da missão. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2002.McGRATH, Alister. Uma introdução à espiritualidade cristã. São Paulo: Vida, 2008.TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. São Leopoldo: ASTE, 1988.LUTERO, martinho. Como reconher a igreja. São Leopoldo: Sinodal, 2001.

Anotações__________________________________________

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Teologia e Prática da Espiritualidade

Unidade 5: Espiritualidade e oração (I)

Introdução

A oração sem dúvida é um dos assuntos mais tratados na teologia e prática da espiritualidade. Aposto que não se ora tanto quanto se fala de oração ou sobre a necessidade que o crente tem de orar. Poucas vezes, contudo, se trata de modo justo, honesto e bíblico da oração. Sem contar que nossas abordagens bíblicas ao tema, muitas vezes, seguem uma linha funcional e superficial, com citações de versículos que supostamente falam sobre “o poder da oração”, os resultados da vida de quem ora sempre, etc.

Assim, um aprofundamento bíblico e teológico sobre o tema é necessário. Nas duas próximas unidades proponho uma tentativa de traçar, por vias mais honestas e humanas, bíblica e teologicamente, o tema da oração relacionando-o ao tema da integridade, utilizando como exemplo a vida de Jeremias, e fiando-se no pensamento de autores contemporâneos da espiritualidade que têm seguido semelhante caminho.

Objetivos

1. Questionar ideias e percepções comuns sobre a oração sustentadas na igreja.

2. Perceber as virtudes e ganhos para a espiritualidade de se relacionar o tema da oração ao da integridade.

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Inquietações com o tema

Poucas vezes a oração esteve entre os meus temas prediletos. Talvez porque as exigências que quase sempre ouvia em relação a ela soassem pesadas e grandes demais para os raros momentos de oração que dedicava. Na adolescência, me diziam que a oração é um elemento fundamental na vida de qualquer cristão verdadeiramente convertido, como uma espécie de “termômetro da espiritualidade”: quanto mais intensamente se ora, mais próximo de Deus se está, logo, mais “espiritual” se é. Essa lógica sempre me soou muito própria do ponto de vista da vida cristã formal – que eu tinha como referencia – mas, ao mesmo tempo, bem imprópria levando em consideração meu pequeno grau de adequação a esses moldes.

Fora isso, ainda tinha o desânimo que batia ao ver (e ler) certas coisas sobre oração que a tratavam como um negócio. Era quase como se estivessem dizendo que oração é fazer business com Deus. Só não diziam que é um tipo de business do qual Deus mesmo, geralmente, está ausente. Afi nal, porque precisamos de Deus, não é mesmo? A oração já faz tudo: ela liberta, expulsa demônios, gera emprego, cura doenças, traz o marido ou a esposa de volta, promove a prosperidade, tem o poder de converter o coração de pessoas e, mais do que isso, de

“mover o coração de Deus”. Não me esqueço da primeira frase

que li no livro “A oração de Jabez”, de Bruce Wilkinson (2001, p. 2), em que o autor dizia: “Caro leitor, quero ensinar-lhe como fazer uma oração à qual Deus sempre atende”. Foi o sufi ciente para eu não querer ler mais. E nem precisava, precisava?

Ainda hoje me impressiono positivamente ao ver pessoas, como meu Prof. Steve Kawamura

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colega, professor Steve Kawamura, que são intercessoras por natureza. Mas tenho tentado deixar de lado a ilusão de orar tanto quanto elas ou de ser igual a elas, pois isso é algo que nunca serei. Tento admirá-las como admiro quem serve com naturalidade e prazer, quem canta maravilhosamente, quem apara cuida de um jardim como ninguém, quem cozinha coisas deliciosas, quem joga futebol magicamente, ou quem ensina e discursa conseguindo prender a atenção das pessoas

do começo ao fi m. São dons especiais.

Mas orar não tem a ver só com o dom de intercessão. Aprendi há algum tempo que, orar, mais do que interceder ou falar com Deus, é viver. Paulo diz: “Orai sem cessar” ou “orem continuamente” (1Ts 5.17). Isso signifi ca que, mesmo

quando o falar cessa, a oração não termina; Deus continua falando, e nós devemos continuar ouvindo a sua voz, que, apesar de inaudível, não cala. Deus tem seus meios, os mais diversos, para falar conosco e apontar o caminho certo. E tenho aprendido que, não obstante toda formalidade que ainda impera nesse quesito, há também muitos jeitos de orar, de andar e me relacionar com Ele. Além de recomendar a oração contínua, o apóstolo ainda recomenda que se dê graças a Deus em todas as circunstâncias da vida. T-O-D-A-S! Más ou boas, tristes ou alegres, na carestia ou na prosperidade; num quarto fechado, na igreja, em silêncio, reclusão ou em meio ao barulho do cotidiano, nas ruas da cidade; por meio de cerimônia, ou dispensando qualquer cerimônia; coletiva ou individualmente.

Assim, a oração é um ato sublime e incessante de uma vida que ama e teme ao Senhor. Ela pode não mudar o que Deus é, nem o quanto ele nos ama, mas NOS transforma; o nosso espírito se converte ao Espírito de Deus. Perseverar e viver continuamente em oração não implica em apressar Deus, nem ensinar como Ele deve agir. A demora de Deus, para nós, implica que não conhecemos o kairos (tempo,

Fonte: Depositphotos

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oportunidade, de Deus) e sua maneira de dar andamento e resolver as coisas. Orar, fi nalmente, signifi cará abrir nossa vida diante de Deus e ser receptivo ao que tem feito e fará...

JeremiasTu me conheces, SENHOR; lembra-te de

mim, vem em meu auxílio e vinga-me dos meus perseguidores. Que, pela tua paciência para com eles, eu não seja eliminado. Sabes que sofro afronta por tua causa. Quando as tuas palavras foram encontradas, eu as comi; elas são a minha alegria e o meu júbilo, pois pertenço a ti, SENHOR Deus dos Exércitos. Jamais me sentei na companhia dos que se divertem, nunca festejei com eles. Sentei-me sozinho, porque a tua mão estava sobre mim e me encheste de indignação. Por que é permanente a minha dor, e a minha ferida é grave e incurável? Por que te tornaste para mim como um riacho seco, cujos mananciais falham? (Jr 15.15-18).

O estilo de orar de Jeremias certamente não seria indicado a nenhum Prêmio Nobel de Oração, se esse negócio existisse (às vezes, mesmo que às escuras, ele parece existir); nem publicado num livro (Best seller) como sendo a oração que devemos repetir, porque Deus sempre atende. Por isso, me sinto razoavelmente confortável para falar de oração agora. Não porque Jeremias seja modelo, mas porque ele é um anti-modelo; até porque não creio que oração tenha a ver com modelos, nem com pacotes fechados.

Se não havia dissonância entre a vida e o livro de Jeremias, como o estudo de sua história me faz acreditar, o mesmo parece ser verdade sobre sua vida como profeta e sua vida de oração. As mesmas dores, angústias, ira, medo, lágrimas, alegrias, prazer, tristezas, raiva e depressão geradas por seu ministério profético eram matéria de suas conversas, nem sempre cordiais ou piedosas, com Deus. Em outras

Profeta Jeremias (escultura de Aleijadinho)Fonte:Wikimedia Commons

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palavras, ao orar, Jeremias mostrava que era humano e, precisamente por isso, que precisava de Deus. Vejamos alguns pontos interessantes na oração acima exposta.

Primeiro, ele se mostra carente, rejeitado (pelo pecado e indiferença do povo), e impaciente, clamando pela intervenção divina, que parecia retardar em função de sua paciência e longanimidade (v. 15). É como se ele estivesse dizendo: “Você me colocou nisso, e agora, por tua causa, eu estou sendo prejudicado. Vê se me livra dessa, Deus!”. Jeremias se mostra aqui igualzinho a qualquer um de nós – quando “nosso tempo compulsivo colide frontalmente com o tempo da providência divina” (PETERSON, 2003, p. 122) – tentando ensinar Deus a como ser soberano, e a como ser Deus!

Segundo, ele afirma ser solitário, em seu trabalho de profeta, não tendo ocasião para se sentar com uma galera em festa, dando risadas e se divertindo (v. 17). A tarefa de pensar, refletir, pregar e desvendar significados é uma tarefa muitas vezes solitária, sobretudo no caso de Jeremias. E, por mais necessário que seja, consciente e irredutível que se esteja, a solidão bate e, com ela, o desejo de convívio. E não havia porque esconder nada disso de Deus, já que tudo era “por causa Dele”. E o profeta diz se sentir “oprimido” pela mão de Deus. Por mais que fazer parte das causas Dele seja um privilégio, nem sempre é prazeroso (e nem tem que ser, tem?).

Terceiro, ele se revela sofredor (v. 18a). Sofremos muitas vezes por determinadas posições que ocupamos. Por mais necessárias e reconhecidamente importantes, elas (e os tipos de reação que temos em relação a elas) nos conduzem a lugares de sofrimento. Lembro-me que, desde criança, sempre fui muito conseqüente. E minha conseqüência me levava a não revidar com força (e as vezes nem revidar), as provocações de minha irmã caçula. E, como eu não queria revidar, para não ser injusto nem fazer besteira, esperava justiça do meu pai. E nem sempre essa justiça vinha do modo como eu esperava. Daí, vinha a revolta; aí a gente pensa e fala besteira, mesmo sem fazer. Esse é o lugar de Jeremias, de revolta e dor, por razões muito maiores. E ele quer partilhar com Deus essa dor. Através da oração ele pode fazer isso.

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Quarto, além de sofredor, ele também se mostra irado com Deus. A sensação é de que Deus o abandonou; no começo, parecia promissor andar ao seu lado. Depois, veio a decepção de ver que Deus nem sempre age do modo como esperamos, e que ser amigo de Deus implica em ter de conviver com inimizades outras. Então, Jeremias destila toda sua honestidade, quando diz (na tradução A Mensagem): “Você não é nada mais do que uma miragem, Deus; um adorável oásis à distância, e então nada!” (v. 18b).

Sinceramente, não sei como na nova versão do livro “Corra com os cavalos”, de Eugene Peterson (2008), os editores tiveram a proeza de

dizer, em um dos capítulos, que Jeremias é “o mais animado dos profetas”. Não entendo isso, pelo menos não nesse sentido quase neurolinguístico para a palavra “ânimo”. É o mesmo que querer “achar pelo em ovo” – e olha que tem gente por aí que “acha que achou”, sobretudo diante da necessidade de dar aos livros um maior “apelo comercial”.

Mas, não nos enganemos com esse negócio de honestidade, do da qual sou admirador, porém, consciente de que ela nem sempre será recebida e acolhida com uma tonalidade positiva. No caso de Jeremias, foi

uma amostra de sua intimidade, sem desfaçatez ou pieguismo, com Deus, o que é bom. Na oração, não precisamos de máscaras ou disfarces; queiramos ou não, estamos nus diante de Deus. Por outro lado, revela a perda do foco e das prioridades. A excessiva preocupação com o que os outros pensam ou dizem sobre nós, pode revelar uma desmedida preocupação conosco, o que pode ser um sinal de que perdemos Deus de vista, e esquecemos de nossa vocação, o que Ele nos chamou a ser e a fazer.

Mas, como lembra Peterson, no momento em que Jeremias coloca esses sentimentos em oração, algo começa acontecer. Deus, além

Livro de Eugene Peterson (2008)

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de ouvir atentamente, o convida a rever as palavras ditas, restabelecer prioridades e a renovar suas perspectivas, não como alguém ofendido por sua postura, mas desejoso de vê-lo avançar e crescer. Deixar falar os sentimentos às vezes significa, ainda que do lugar legítimo da intimidade, dizer coisas que prejudicam o relacionamento. Então, corremos o risco de dizer coisas “vis”. Mas Deus, como fez com Jeremias, abre as portas ao arrependimento sincero, e nos chama a separar o precioso do vil (v. 19), e recolocar o vagão de nossas vidas nos trilhos de sua vontade.

Conclusão

Vimos nesta unidade que uma das vantagens de se relacionar o tema da oração à vida é que, assim, ela deixa de ser uma prática espiritual “distinta”, nos humaniza e passa a estar relacionada com um jeito de ser no mundo, em nossa relação com os dilemas do dia a dia e com o fato de que Deus se preocupa conosco e não está “lá no céu” simplesmente, dispensando ou não suas bençãos de acordo com a eficácia da oração de seus filhos. Não existe oração eficaz, senão a oração do Espírito em nós. É ela que faz com que nossos gemidos ou nosso silêncio chegue até Deus. Nos concentraremos especialmente neste aspecto da oração na próxima unidade.

Até breve!

Referências bibliográficas

PETERSON, Eugene. Corra com os cavalos. Viçosa, MG: Ultimato; Niterói, RJ: Textus, 2003. _______. Ânimo: o antídoto bíblico contra o tédio e a mediocridade. São Paulo: Mundo Cristão, 2008.WILKINSON, Bruce. A oração de Jabez. São Paulo: Mundo Cristão, 2001.

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Anotações__________________________________________

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Unidade 6: Espiritualidade e oração (II)

Introdução

Dando continuidade à unidade anterior, em que tratamos da oração na perspectiva de uma vida humana íntegra, quero convidá-los a prosseguir agora pensando em formas e exemplos de oração. A forma usual de oração é aquela que fazemos em voz alta, em público ou no secreto do quarto (como Jesus recomendou que fosse), e tentamos exprimir em palavras aquilo que Deus já vê bem fundo e com transparência em nós, antes mesmo que o discurso seja formulado. Nesta unidade, porém, gostaria que pensássemos que a oração pode existir mesmo que não expressa, habitando viva no silêncio da alma e do coração. Em seguida, trarei alguns exemplos de oração que a gente geralmente não encontra na igreja, orações honestas que expressam dúvidas, incertezas, mas também confiança em Deus e no seu poder que, por fim, são maiores que a própria oração e dão sentido a ela, mesmo quando não enxergamos de cara.

Objetivos

1. Reconhecer a possibilidade da vivência da oração, mesmo quando não há palavras, seguindo a ideia de que orar é viver.

2. Elaborar, a partir dos referenciais de pensamento e vida aqui pontuados, sua própria teologia da oração.

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Oração e silêncio

Uma das percepções centrais no pensamento de Henri Nouwen é a da oração como “modo de vida”. Ou seja, orar seria para ele outro sinônimo para viver. Viver a vida deixando-se ser encharcado pela presença de Deus e por tudo o que ela envolve. Nesta percepção, orar é um ato do ser que se traduz em palavras, mas não somente em palavras. Pois palavras são, segundo Nouwen, “apenas um modo de expressar a realidade da oração” – talvez o mais recorrido na tradição cristã para a qual a palavra é tão importante (para muitos, imprescindível).

Esta visão vai ao encontro de tudo o que temos visto até aqui, e de uma intuição pessoal, fruto não só de experiências com a oração, mas da percepção de sua (in)efi cácia no mundo real no tocante à vida humana e seus mistérios, onde as palavras nem sempre encontram “o sentido” ou “fazem sentido”. É a intuição de que a oração genuína acontece (antes) no coração e pouco pode ser captada pelo discurso. Aliás, normalmente somos traídos pelo discurso, que tende a mascarar (no cativeiro da linguagem) o que se passa no coração e que talvez os olhos e a expressão refl itam um pouco melhor, embora sempre parcialmente.

Dessa forma, sinto-me impelido a, como Nouwen, “redescobrir os momentos de oração nos rostos do homem e nas formas do mundo em que ele vive”, de um modo que somente um contemplativo crítico e sensível da realidade pode fazer, despido das urgências de seu ambiente e da tendência comum em trivializar a oração, por um lado, tornando-a um ato mecânico-religioso, e de fetichizá-la, por outro, como uma “varinha de condão”.

Quando paro para contemplar, por exemplo, algumas histórias de vida sofridas de estudantes (que trabalham de dia e estudam a noite, ou que estão em busca de trabalho) e lutam diariamente para conciliar

Henri nouwen

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múltiplas atividades, tendo de lidar com as muitas contingências desse estilo de vida, posso perceber nas expressões e olhares cansados, sonolentos, mas alegres, relutantes e esperançosos, muitas orações sem palavras, pequenos e singelos gestos de uma busca que não cessa e, na difi culdade, traz consigo inúmeros aprendizados.

Então, em breves esforços de compaixão, oro também, sem palavras, com os olhos marejados ou esboçando um sorriso, na confi ança de que o Senhor está entre nós, partilhando conosco de cada instante. Ali, absorto por emoções e pensamentos que pululam e gritam em silêncio, encontro Deus, parafraseando Nouwen, na brisa suave que vem da janela – relembrando que o Espírito sopra e age no silêncio e de que onde houver luta, também haverá esperança – na angústia e na alegria do

outro e na solidão de meu próprio coração. Assim, ao invés dos “punhos

cerrados” – imagem utilizada por Nouwen para indicar tensão e auto-proteção – ouso orar a Deus “de mãos abertas”. Pois, como diz ele: “Uma vida imersa em oração é uma vida de mãos abertas, em que você não se envergonha de sua fragilidade mas percebe que é mais perfeito um homem se deixar guiar pelo outro do que procurar prender tudo nas mãos” (NOUWEN, 1999, p. 79).

Portanto, na perspectiva de mãos que se abrem, orar signifi cará abandonar-se diante de Deus, deixando de lado todo anseio por controle e abrindo-se para o maravilhoso e imprevisível mundo das possibilidades do Eterno, desejando um outro “eu” possível e crendo que “outro mundo é possível”.

Fonte: Depositphotos

Fonte: Depositphotos

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Orações que não se ouve muito na igreja

Nesta segunda parte, gostaria de compartilhar alguns trechos de pensamentos de autores os quais admiro não por me ensinarem 10 passos sobre como orar, ou a fórmula da oração bem-sucedida; longe de mim coisas assim, e dos autores os quais me referirei. Admiro-os, pois, ao falar sobre a oração, não escondem a difi culdade implícita nessa atividade, embora a considerem preciosa e importante; nem tampouco seguem a linha do determinismo crente, de que orar pode mudar céus e terra ou move o coração de Deus, desde que oremos “do jeito certo”. Defi nitivamente, não! Reconhecem que a oração muda a gente em relação a Deus e não Deus em relação à gente. Tampouco ignoram o fato de que, pessoas de oração são, antes de tudo, gente de carne e osso, humanos, demasiadamente humanos.

E isso me encanta, porque posso me distanciar cada vez mais do lugar religioso do cinismo, hipocrisia e da falsa piedade, e me aproximar mais de um lugar onde posso me considerar, quem sabe, um homem de oração, sem deixar de ser homem e nem almejar que minha oração “mova montanhas”, ocupando o lugar de Deus. Isso é o que ainda me mantém fascinado, ou seja, a chance de poder constatar que a oração, em si, não tem poder algum; quem o tem é Deus. E Ele parece não estar disposto a dividir esse posto com ninguém.

O primeiro autor a ser referendado não fala de oração (pelo menos não aqui). Mas fala sobre ser humano ou sobre a condição humana, coisa que nunca deixamos de ser, principalmente quando

oramos. As palavras de Paulo Freire, admirável ser humano e brilhante educador, me inspiram a gostar desse paradoxo que é ser humano:

Gosto de ser homem, de ser gente, porque não está dado como certo, inequívoco, irrevogável, que sou ou serei decente, que testemunharei sempre gestos puros, que sou e que serei justo, que respeitarei os outros, que não mentirei escondendo o seu valor porque a inveja de sua presença no mundo me incomoda e me enraivece. Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que a minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Paulo Freire

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Que o meu “destino” não é um dado, (sic) mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí que insista tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade (FREIRE, 1996, p. 58-59).

A segunda referência é de Eugene Peterson, para quem oração signifi ca prestar atenção em Deus e manter o foco de nossa vida Nele:

Oração é, na vida de fé, o ato em que entramos diante de Deus em postura consciente e deliberada de falar e ouvir – relacionamento do Criador com a sua criação e dela com Ele. A qualquer tempo que nos concentramos, focamos os pensamentos e prestamos atenção, nós oramos. Orar signifi ca ter consciência, exercitar a atenção, estimular e desenvolver a intensidade pessoal diante de Deus. (...) A oração é linguagem ousada para se dirigir a Deus, não para explicá-lo nem para falar sobre Ele. É resposta. O evangelho tem a missão de nos fazer parar de falar sobre Deus e nos levar a falar com Ele. (...) O verdadeiro conhecimento de Deus jamais é conhecimento sobre Ele; é sempre relacionamento com Ele (PETERSON, 2005, p. 128, 129).

A terceira e última referência é de Henri Nouwen, exemplo de integridade, como foi Jeremias; o que ele escrevia, ele vivia, e o que ele vivia era expresso com enorme e inexorável franqueza em seus escritos. Com sua sensibilidade e brilhantismo ele deixou um legado espiritual incomparável para nós, cristãos. Em todos os seus livros praticamente se fala sobre oração. Mas em no Diário de seu último ano sabático, encontrei o que, para mim, são as palavras mais humanas e livres até então por ele escritas sobre o assunto.

Primeiro, ele começa falando sobre seu entendimento do que vem a ser a oração:

A oração é a ponte entre a minha vida inconsciente e consciente. Ela conecta meu pensamento com meu coração, minha vontade com minhas paixões, meu cérebro com meu estômago. A oração é a única via para deixar o Espírito vivifi cante de Deus penetrar todos os recantos do meu ser. É o instrumento divino de minha completude, unidade e paz interior (NOUWEN, 2003, p. 20).

Eugene Peterson

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Em seguida, ele compara essa defi nição com sua vida de oração, fazendo uma confi ssão honesta acerca de si mesmo, um idoso de 63 anos de idade, que passou a vida falando sobre espiritualidade e oração, tendo um alto grau de aceitação e sucesso por isso, mas que, no fi m da vida, se vê diante da encruzilhada tenebrosa de ter que admitir certos paradoxos em sua espiritualidade:

Se é assim, o que posso dizer sobre minha vida de orações? Gosto de orar? É meu desejo orar? Reservo tempo parar orar? Francamente, a resposta é “não” para todas as três questões. Depois de 63 anos de vida e 38 de sacerdócio, minha oração parece tão morta quanto uma pedra. (...) A verdade é que não sinto nada de singular quando oro, se é que sinto alguma coisa. Não há emoções intensas, sensações físicas, ou visões mentais. Nenhum de meus cinco sentidos é tocado – nenhum cheiro especial, nenhum som especial, nenhuma imagem especial, tampouco algum movimento especial. Se por um bom tempo o Espírito agiu tão claramente em minha carne, agora não sinto nada. Vivi na expectativa de que a oração

se tornasse mais fácil à medida que eu envelhecesse e me aproximasse da morte. Mas parece estar acontecendo o contrário. As palavras escuridão e aridez parecem ser as melhores para descrever minha oração hoje (NOUWEN, 2003, p. 20, 21).

Por fi m, Nouwen nos brinda com a tentativa de avaliar sua própria confi ssão anterior, admitindo a grande dose de realismo nu e cru que nela há, sem, no entanto, perder de vista as possibilidades escondidas mesmo em seus mais áridos desertos espirituais, tampouco a perspectiva bíblica de que, no fi m das contas, o Espírito “nos ajuda em nossa fraqueza, pois não sabemos como orar, mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis” (Rm 8.26, NVI):

Será que a escuridão e aridez de minha oração são sinais da ausência de Deus, ou são sinais de uma presença mais profunda e vasta que meus sentidos podem abarcar? A morte de minha oração é o fi m de minha intimidade com Deus ou o início de uma nova comunhão, para além das palavras, emoções e sensações corporais? Na meia hora em que me sento para estar na presença de Deus e orar, não acontece coisa sobre a qual poderia comentar com meus amigos. Mas talvez esse tempo seja uma maneira de morrer com Jesus. O ano à minha frente deve ser um ano de oração,

Henri Nouwen

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embora eu diga que minha oração está tão morta quanto uma pedra. A minha certamente está, mas não a oração do Espírito em mim (NOUWEN, 2003, p. 21 – grifo do autor).

Conclusão

Nestas duas últimas unidades, procurou-se ressaltar que a oração é mais do que um gesto, que um rito, que um jeito de “convencer” a Deus sobre nossos puros desejos e sinceras intenções;

antes, trata-se de uma via sempre aberta de relacionamento com o Pai em que, para meu benefício e das pessoas em favor de quem oro, expresso diante Dele, por palavras, sem palavras, através de ações ou do silêncio quieto de um quarto, o que sinto, penso e acredito, bem como minhas (nossas) dores, alegrias, queixas e gratidão.

Nesse sentido, a oração não é algo que nos retira do contato com as coisas comuns (ou mesmo as incomuns e trágicas) da vida cotidiana, nem nos eleva para um plano além do mundo e

da condição humana, mas, ao contrário, é o que nos ajuda a estar mais atentos a esta vida, que a cada momento pulsa e gira ao nosso redor, e à presença constante e, na maioria das vezes suave e silenciosa, de Deus... No choro de uma mãe, na alegria e sorriso de um casal, na convulsão tortuosa do trânsito das grandes cidades, na brisa leve e fresca das manhãs no campo, no pranto e no riso, no luto e na alegria, e assim por diante.

É assim que entendo a “Soberania”: não como a ideia de um rei distante, reinando de seu “alto e sublime trono”, ditando como as coisas devem ou não devem acontecer cá na terra, mas de um rei que se mistura com a plebe, usa suas roupas, come na mesma mesa, enfrenta os mesmos problemas; um rei tão nobre a ponto de não reivindicar

Fonte: Depositphotos

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nobreza, e tão real a ponto de não parecer da realeza; um rei como Jesus mostrou que Deus é. E, por isso, pôde dizer, quando um de seus discípulos pediu para que lhe mostrasse o Pai: “Quem vê a mim, vê o Pai” (Jo 14.9).

Agora, quando eu oro, de olhos abertos ou fechados, balbuciando palavras ou em silêncio, tento olhar para o lado, para a vida, a natureza,

o próximo, e ali ver Jesus; e quando, pelo milagre da fé, consigo ver a Jesus, tento imaginar como é o Pai e, assim, percebo, como na canção “Nas estrelas”, dos Vencedores por Cristo, que: “Ele não vive longe lá no céu, sem se importar comigo. Mas agora ao meu lado está, cada dia sinto seu cuidar, ajudando-me a caminhar, tudo Ele é pra mim”.

Referências bibliográficas

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 17ª Ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.NOUWEN, Henri. Oração: o que é e como se faz. São Paulo: Loyola, 1999._______. Diário. O último ano sabático de Henri J. M. Nouwen. São Paulo: Loyola, 2003.PETERSON, Eugene. Trovão Inverso: o livro de Apocalipse e a oração imaginativa. Rio de Janeiro: Habacuc, 2005.

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Fonte: Depositphotos

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Unidade 7: Espiritualidade do deserto

Introdução

Falar do tema “espiritualidade do deserto” é explorar aquilo que, a meu ver, está na raiz de nossa vida com Deus – como esteve em Jesus e em tantos de seus seguidores na história. Ao mesmo tempo – e pensando no cotidiano de pessoas em um mundo urbano e secularizado – é algo que, em geral, se encontra ainda muito distante da maioria de nós, em que pese nossos estilos de vida. Por isso, para falar sobre este tema hoje, é preciso, primeiro, conceituar a questão (ou o lugar) do deserto na vida cristã – o que é o deserto e o que ele representa na caminhada histórica do cristianismo? É o que gostaria que fizéssemos nesta unidade, a primeira em que tematizaremos o lugar do deserto na espiritualidade cristã.

Objetivos

1. Conhecer alguns dos sentidos possíveis para o “deserto” na espiritualidade cristã.

2. Reconhecer a importância do deserto na vida espiritual de todo cristão.

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O que se entende por deserto?Em primeiro lugar, é claro

que deserto tem sim a ver com um “lugar”, reservado e próprio para meditação, silêncio e oração. Ali nos afastamos da compulsão por fazer e realizar coisas, bem como da compulsão por barulho e agitação, que tanto marcam nossa vida cotidiana, assim como demarcam

nossa identidade perante a sociedade. O uso do termo tem a ver com um tipo de vida que passaram

a ter alguns monges que, por volta do séc. IV da era cristã, no auge da crise espiritual do cristianismo, se afastaram de suas atividades corriqueiras, e buscaram o deserto, isto é, um lugar ermo, distante da vida barulhenta, a fi m de evitar a conformidade com um mundo em decadência. Esses monges fi caram conhecidos posteriormente como “pais do deserto”, porque serviram (e ainda servem) de inspiração para uma forma alternativa de cristianismo, não preocupada com poder e status, mas com uma longa obediência numa mesma direção, parafraseando Eugene Peterson.

E quando falo em “decadência”, me refi ro obviamente a um tipo moral e espiritual de declínio na perspectiva de alguns cristãos. Estes enxergavam em um dos períodos de maior “sucesso” do cristianismo – quando da conversão do imperador Constantino e posterior ofi cialização (em 380) do cristianismo como religião do império – tanto no que diz respeito a adesão religiosa, quanto em poder e institucionalização, um processo gradativo de perda de seus valores e ideais originários, baseados na centralidade da vida na pessoa de Jesus Cristo, e na fi delidade ao seu Evangelho.

Como explica Henri Nouwen (2004, p. 13), esses pais do deserto:

Fonte: Depositphotos

Fonte: Wikimedia Commons

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Eram cristãos que buscavam nova forma de martírio. Depois que a perseguição cessou, já não era possível dar testemunho de Cristo seguindo-o como testemunha de sangue. Contudo, o fi m das perseguições não signifi cou que o mundo aceitara os ideais de Cristo e mudara; continuou-se a preferir a escuridão à luz (Jo 3.19). Mas, se o mundo já não era o inimigo do cristão, então o cristão tinha de se tornar inimigo do mundo escuro. ão tinha de se tornar inimigo do mundo escuro. A fuga para o deserto era o meio de evitarA fuga para o deserto era o meio de evitar a tentadora conformidade ao mundo. Antão, Agatão, Macário, Poemen, Teodora, Sara e Sinclética foram líderes espirituais no deserto. Ali se tornaram mártires: testemunhas contra os poderes destrutivos do mal, testemunhas do poder salvífi co de Jesus.

Então, um dos lemas da espiritualidade do deserto passou a se fundar nas palavras de aba Arsênio:

“Foge, fi ca em silêncio e ora”.Segundo Nouwen

(Ibid.), elas denotam três meios para “impedir que o mundo nos molde a sua imagem” e se

constituem, desta forma, em três possíveis caminhos para uma vida no Espírito – embora não sejam os únicos, nem última palavra neste quesito. Sobretudo porque, como temos visto neste curso e como melhor veremos na próxima aula, esta vida no Espírito não é vida “fora”: nem do mundo, nem do corpo e muito menos dos confl itos e dilemas humanos. Pelo contrário, é em meio ao enfretamento de todas estas outras coisas que a necessidade do deserto se torna premente, e a espiritualidade cristã, efetiva e relevante.

Qual é o lugar do deserto na espiritualidade cristã?

Desse modo é que, em segundo lugar, podemos dizer que o deserto é mais que um lugar, é uma condição auto-induzida de sobrevivência, sanidade e busca pela maturidade e liberdade na vida cristã. Acontece todas as vezes que reservamos espaço em nossas agendas e, mais do que isso, em nossos corações para fi car em silêncio, orar e escutar a voz de Deus. Nesse sentido, o “silêncio” é também mais

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do que calar a voz da garganta, é também tentar calar as muitas vozes que perturbam e induzem à ansiedade os nossos irriquietos corações. E, por coração, aqui estou entendendo como no AT, isto é, não o orgão, mas o centro da vida, orientação e vontade humanas. Por isso, como defende Nouwen, “o silêncio do coração é muito mais importante que o da boca”, e cita o aba Poemen:

Um homem pode estar aparentemente em silêncio, mas, se seu coração condena outros, ele tagarela sem cessar. E pode haver outro que converse da manhã à noite e, contudo, esteja verdadeiramente em silêncio (NOUWEN, 2004, p. 57).

Então, pode-se dizer que é possível estar em silêncio, mesmo diante de e em conversa com inúmeras testemunhas, ou muito falante, mesmo estando sozinho e sem ninguém por perto. Nesse sentido, a visão de Nouwen se encaixa com a de Ricardo Barbosa (no texto de apoio desta aula) de que deserto, mais que uma geografi a, é um “estado do coração diante de Deus e de nós mesmos” (SOUSA, 1998, p. 97).

Conceitos importantesOutro conceito que está conectado com o lugar do deserto na

vida cristã, é o de solitude. É preciso, primeiro, entender que solitude é um estado que se relaciona, mas não se confunde com outros, como o de estar sozinho e com a solidão ou isolamento. Nouwen (1997, January 18) parte do princípio de que todos os seres humanos são sozinhos, uma vez que cada um de nós é único. Por isso, ser sozinho é o outro lado de ser único. “Nenhuma outra pessoa irá se sentir completamente como nos sentimos, pensar ou agir como nós”, afi rma este autor. A questão principal para ele é como tratamos a nossa condição de sozinhos ou únicos no mundo, se deixamos com que ela

se transforme em solidão ou se permitimos que ela nos guie para a solitude.

Dessa forma, precisamos diferenciar solitude de solidão. Solidão é um lugar de fuga: dos outros, de nós mesmos e de

Deus. É o estado em que nos encontramos quando não deixamos espaço para que a liberdade interior cresça, para que a fé em Deus e a

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relação conosco mesmos e com os outros amadureça. Então, buscamos a solidão tanto quanto ela nos busca; e quando encontramos o vazio dela proveniente, queremos preenchê-lo de modo rápido, artifi cial e infrutífero. Quando os outros e Deus se tornam meios de nos entreter, de nos tirar da solidão, longe nos encontramos de uma vida espiritual frutífera, e logo nos tornamos impulsivos, compulsivos e até violentos.

Solitude, por sua vez, é um espaço frutífero de liberdade e amadurecimento na fé, onde nos encontramos sós, mas não em

total isolamento, muito menos em fuga. Ao contrário, a solitude é um lugar de encontro: com Deus em primeiro lugar e conosco mesmos, nossas virtudes e defeitos, nossos sentimentos de raiva, frustração e decepção, nossas inadequações, nossos “demônios” e necessidades. É um espaço onde o confronto honesto com nossas expectativas e nosso verdadeiro eu, em busca da graça e do amor de Deus, se faz possível. Ali não apenas falamos com Deus, mas, principalmente, estamos abertos e dispostos a escutá-lo através da Palavra. A solitude é um lugar da Palavra, onde a Palavra não volta vazia, mas

pode ser germinada, ruminada e, só então, frutifi car. Como expressa Nouwen (1997, January 21), solitude é “o jardim para nossos corações, que anseiam por amor. É o lugar onde nosso ser sozinho pode dar fruto. É o lar para nossos corpos cansados e nossas mentes ansiosas”.

Só que não se trata de um projeto individualista. Pelo contrário, a solitude nos conduz à comunidade e a comunidade é suportada pela solitude, como melhor veremos na unidade 15 deste curso. “Solitude encontrando solitude, isto é o que signifi ca comunidade”, defende Nouwen (1997, January 22). Só que o anseio pela presença do outro e a necessidade de partilhar, quando suportados pela solitude, passam a ser mais naturais, frutos do amor, deixando o lugar compulsivo do controle, dos ciúmes e da extrema carência, que transforma a comunhão em doença (koinonite) e o amor (livre) em possessão. À medida então que nos movemos – num processo confl ituoso e custoso, muitas vezes

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– da casa da solidão para a casa da solitude, relacionamentos maduros podem florescer. Mais do que isso, é na solitude do deserto que nossos corações podem se encontrar com sua verdadeira vocação, sentido e missão, como veremos na próxima unidade mais concretamente através do exemplo de Jesus.

Conclusão

Retomando o que vimos até aqui:1. Deserto, historicamente, é entendido como uma geografia, um

lugar ermo, separado da civilização e do barulho, para onde homens e mulheres se deslocavam em busca de paz, consolo e abrigo em Deus, ou seja, visando melhorar a sua espiritualidade.

2. Por outro lado, deserto também é mais que uma geografia, é uma atuitude do coração, um estilo de vida, uma busca pela liberdade e maturidade por meio da contemplação em um mundo de ação (Merton).

3. Em nossos desertos hoje, podemos aliás introduzir uma prática espiritual de leitura da palavra que pode ser muito útil, que á a chamada Lectio Divina (ou leitura divina), uma prática de leitura meditativa e responsiva da Palavra de Deus, na qual o silêncio é um dos ingredientes essenciais. Abaixo, deixo-os com trechos do livro Meditatio, de Osmar Ludovico, em que autor explica com mais detalhes o processo da Lectio Divina. Boa leitura e até a próxima!

SOBRE A LECTIO DIVINA – de Osmar Ludovico

Ao usar Meditatio, fazemos referência a uma das mais marcantes e significativas páginas da história da Igreja. É uma expressão que vem desde a época dos pais do deserto, que foi muito utilizada e praticada pela Monástica e sistematizada no que chamamos de Lectio Divina pelo monge cartuxo Guigo II. Ele utiliza a idéia de uma escada para a prática da Lectio Divina, sugerindo uma subida para um encontro no alto, no monte de Deus, e logo uma descida para um encontro nas profundezas, no fundo do meu coração.

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Statio (preparação), Lectio (leitura), Meditatio (meditação), Oratio (oração), Contemplatio (contemplação), Discretio (discernimento),

Collatio (compartilhar) e Actio (ação) são os degraus dessa milenar tradição de ler a Bíblia. Esses passos constituem um movimento integrado em que cada degrau conduz ao outro. Passo a passo, lentamente saboreando cada passo em direção ao topo para, em seguida, descer ao vale, voltar ao concreto e ao cotidiano.

Assim diz Guigo II: “A leitura — Lectio — é o estudo atento da Escritura feito com um espírito totalmente orientado para sua compreensão. A meditação — Meditatio — é uma operação da inteligência, que se concentra, com a ajuda da razão,

na investigação das verdades escondidas. A oração — Oratio — é voltar com fervor o próprio coração a Deus para evitar o mal e chegar ao bem. A contemplação — Contemplatio — é uma elevação da alma que se levanta acima de si para Deus, saboreando as alegrias da eterna doçura”. E completa: “A leitura leva à boca o alimento sólido; a meditação o corta e mastiga; a oração o saboreia; a contemplação é a própria doçura que alegra e recria”.

(...) A Lectio Divina, que também se tornou conhecida nos nossos dias como Meditação Cristã ou Leitura Orante, é a arte de ouvir o coração de Deus, dizia São Gregório Magno. O objetivo não é um estudo bíblico ou uma exegese. É leitura bíblica que nos conduz a uma experiência de encontro com Deus e a uma experiência de oração. Êxodo 33:11 diz: “O SENHOR falava com Moisés face a face, como quem fala com seu amigo”.

O propósito da Lectio Divina não é simplesmente aumentar nosso conhecimento intelectual, mas nos levar a um encontro vivo com Jesus Cristo. Tal encontro não nos deixa ilesos, mas faz que nossa pobreza espiritual afl ore, nossos pecados venham à tona, bem como nos indica o caminho da transformação da vida. Sem isso, podemos conhecer as Escrituras sem que elas penetrem nas dimensões mais profundas do nosso ser, para tocar nossa consciência, nosso coração, nossa vontade.

Na leitura meditativa, a Palavra não é interpretada, mas recebida, uma palavra única, exclusiva, que nos ajuda a penetrar no “mistério, que é Cristo em vocês, a esperança da glória” (Cl 1:27). Na Lectio não empregamos a “força de vontade” ou uma disciplina da ordem da razão ou do esforço, mas lemos a Palavra para que ela surpreenda, para que toque a alma a partir

Osmar Ludovico

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de uma revelação pessoal, dirigida pelo Espírito por meio de nossa intuição, nossa imaginação, nossos afetos e sentimentos.

Para ler a Bíblia meditativamente precisamos de um tempo de preparação, de corpo relaxado, de alma apaziguada, de espírito pronto e alerta. Começamos fazendo contato com o corpo, suas dores e tensões, procurando relaxar em uma posição confortável. Faremos, então, contato com a alma e seus muitos ruídos internos, procurando trazê-la de volta ao seu sossego (Sl 116:7: “Retorne ao seu descanso, ó minha alma, porque o SENHOR tem sido bom para você!”).

Oramos ao Senhor, em quietude, com serenidade, aguardando o Senhor (Sl 130:5: “Espero no SENHOR com todo o meu ser, e na sua palavra ponho a minha esperança”). Então lemos a Palavra, sem forçar nada, deixando acontecer, nos entregando a ela, iniciando um diálogo com Deus no profundo da alma. Podemos manter um diário com nossas meditações, nossos eventos de alma, resgatando uma linguagem mais poética, mais metafórica, uma linguagem da alma, dos sentimentos, dos afetos. Davi tinha um diário, que se tornou o livro de Salmos, onde contava e cantava sua vida com Deus.

Ler a Bíblia meditativamente significa fazê-lo como quem saboreia as palavras; significa saber parar quando um texto ou mesmo uma palavra nos toca, nos fala ao coração diretamente, nos fortifica; significa permanecer com essa palavra sem a necessidade de procurar outras, e tão longamente quanto ela se mover em nós, operar em nós, realizar em nós. Operar o quê? Realizar o quê? Gerar o quê? A alegria de viver, a segurança da presença de Deus, de sua salvação, de seu amor incondicional. (LUDOVICO, 2007, pp. 17-20).

Referências bibliográficas

LUDOVICO, Osmar. Meditatio. São Paulo: Mundo Cristão, 2007.NOUWEN, Henri. A espiritualidade do deserto e o ministério contemporâneo. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2004.____________. Bread for the journey. A daybook of wisdom and faith. New York: HarperCollins, 1997.SOUSA, Ricardo Barbosa de. O caminho do coração. Ensaios sobre Trindade e Espiritualidade Cristã. 2ª ed. Curitiba: Encontro, 1998.

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Unidade 8: O deserto na espiritualidade de Jesus

Introdução

Vimos na unidade anterior que o deserto é mais que um lugar geográfico na espiritualidade cristã; é, principalmente, um lugar existencial – o espaço que reservamos em nossa existência para Deus, sua Palavra, e para um encontro conosco mesmos. Assim, nesta veremos a importância que Jesus dava para o deserto – um lugar para onde ele ia, mas sobretudo esse espaço reservado em sua vida de comunhão com Deus, silêncio e escuta. Também será significativo perceber através do relato de Lucas como o deserto colocava Jesus em contato com aquilo que havia de mais fundamental em sua vocação e missão, não permitindo ser levado pelos anseios e clamores das multidões, nem pela síndrome messiânica.

Por fim, à luz do salmo 42, refletiremos sobre o deserto como instância em que damos voz às nossas inquietudes e dúvidas, a fim de desenvolver uma vida de honestidade com Deus, consigo mesmo e com as pessoas. No deserto encontramos nossa identidade de filhos e filhas amados(as) de Deus, que permite desenvolvermos ao mesmo tempo uma relação crítica com o mundo ao nosso redor, de suspeita e avaliação constantes, a fim de compreender melhor nosso lugar e vocação neste mesmo mundo.

Objetivos

1. Reconhecer na pessoa de Jesus um exemplo da eficácia do deserto na espiritualidade cristã.

2. Refletir sobre os desafios pessoais que o deserto pode oferecer a nossa própria vida espiritual.

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O exemplo de Jesus no deserto (Lc 4.1-13)

Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto, onde, durante quarenta dias, foi tentado pelo Diabo. Não comeu nada

durante esses dias e, ao fi m deles, teve fome. O Diabo lhe disse: “Se és o Filho de Deus, manda esta pedra transformar-se em pão”. Jesus respondeu: “Está escrito: ‘Nem só de pão viverá o homem’”. O Diabo o levou a um lugar alto e mostrou-lhe num relance todos os reinos do mundo. E lhe disse: “Eu te darei toda a autoridade sobre eles e todo o seu esplendor, porque me foram dados e

posso dá-los a quem eu quiser. Então, se me adorares, tudo será teu”. Jesus respondeu: “Está escrito: ‘Adore o Senhor, o seu Deus, e só a ele preste culto’”. O Diabo o levou a Jerusalém, colocou-o na parte mais alta do templo e lhe disse: “Se és o Filho de Deus, joga-te daqui para baixo. Pois está escrito: ‘Ele dará ordens a seus anjos a seu respeito, para o guardarem; com as mãos eles o segurarão, para que você não tropece em alguma pedra’”. Jesus respondeu: “Dito está: ‘Não ponha à prova o Senhor, o seu Deus”. Tendo terminado todas essas tentações, o Diabo o deixou até ocasião oportuna (NVI).

No relato de Lucas, era início do ministério de Jesus, e ele deixa o Jordão (lugar de seu batismo) direto para o deserto. Ali permanece por 40 dias e noites, sem comer e nem beber, apenas na companhia do Espírito e sendo tentado o tempo todo pelo Diabo. Ao fi nal daqueles dias, certamente num momento de grande vulnerabilidade (afi nal, foram 40 dias sem suprimento fi siológico), Lucas afi rma que Jesus “teve fome”, de modo que o Diabo, tomando por ocasião a fraqueza física, o tentava ainda mais fortemente.

Os fatores ou elementos utilizados na tentação não foram criados pelo Diabo – como geralmente não são. O que ele faz é aproveitar o ensejo de fatores (humanos) já existentes em Jesus, especialmente na condição em que se encontrava: a fome (v. 2), o fato de ser Filho de Deus (v. 3), e, até por isso, de ter poder e autoridade para gerenciar até mesmo os anjos (v. 6), e a capacidade de realizar feitos heróicos (v. 9).

Ali, Henri Nouwen (2002a) afi rma que Jesus resistiu a três

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das grandes compulsões do mundo: ser capaz (transformar pedras em pães); ser poderoso (ter todos os reinos do mundo aos seus pés), e ser espetacular (atirar-se de um enorme penhasco, ordenando aos anjos para que o salvem).

Aqui, porém, me interessa mais o que do que o como da espiritualidade do deserto de Jesus. Ou seja, que elementos são fundamentais para compreender o modo como Jesus reage às tentações pelas quais passa no deserto? Falarei daqui para diante sobre quatro elementos: (a)

Espírito Santo, (b) Intimidade, (c) Temor e Assertividade, (d) Propósito e Identidade.

Espírito Santo. O texto de Lucas, afi rma que Jesus estava “cheio do Espírito Santo”, à medida que fora conduzido ao deserto; e que, quando retorna a Galiléia, também o faz “no poder do Espírito Santo” (v. 14). Ora, se a espiritualidade se confi gura como “vida no Espírito”, este não é um elemento meramente ocasional, nem nesta história, muito menos na vida e missão de Jesus. O Espírito Santo é a energia divina que nos conduz ao deserto, e nos capacita a passar por ele. No silêncio, no afastamento, nas durezas e lutas do deserto, e no desafi o de encarar a nós mesmos, nossos medos, vaidades e mais latentes tentações, contamos com a companhia e poder do Espírito, sem o qual nada podemos por nós mesmos.

Intimidade. Jesus demonstra ser íntimo de seu Pai e de sua Palavra. E nisto ele tem uma diferença fundamental com o Diabo: ambos demonstram conhecer a Palavra, isto é, saber partes dela. Mas somente Jesus demonstra compromisso para com os conteúdos e a vida que emana da Palavra. Enquanto o Diabo cita coisas da Palavra – como quem cita versos ou conta piadas memorizadas, ao sabor do momento e como fruto de oportunismo –, Jesus revela a Palavra, demonstra um saber que vai além da mera letra e que integra a Palavra a um viver comprometido com ela mesma. Esta intimidade não se reduz a mimos, afagos ou meras “declarações de amor”. Jesus vai além disso. Demonstra que ser íntimo de alguém é estar em contato com o que há de mais profundo, essencial e verdadeiro nele(a).

Henri Nouwen

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Temor e assertividade. Quem teme e ama a Deus, e conhece (por pouco que seja) a si mesmo e o que, como ser humano, é capaz, não brinca com o poder das tentações. No relato de Lucas, vemos que as palavras de Jesus, em resposta ao Diabo, não são lançadas ao vento; pelo contrário, são assertivas (isto é, claras, honestas, convictas), diretas, palavras de Deus. E nisso vemos também que ele não faz “joguinhos” com o Diabo; ele foge, cai fora das armadilhas. A tentação não se enfrenta (como se a força para resisti-las estivesse em nós). Da tentação se foge e se resiste, na força que Deus supre. Não posso escolher não ser tentado, pois isso faz parte de minha condição humana desde sua origem. Mas posso optar por não jogar com as tentações. No fi nal do trecho lido, Lucas termina dizendo que o Diabo o deixou “até ocasião oportuna” (v. 13). Ou seja, sempre existem outras oportunidades para que as tentações estejam à espreita e para que aprendamos a lidar com elas e trilhemos o caminho da resistência.

Propósito e identidade. O deserto conferiu a Jesus senso de propósito para sua vida e ministério. Tornou-se, para ele, um lugar recorrente de discernimento (do que é importante, em relação ao que é apenas trivial) e de comunhão com Deus. Um relato de Lucas (4.42-44), logo adiante ao texto que estamos analisando, demonstra bem isso:

Ao romper do dia, Jesus foi para um lugar solitário. As multidões o procuravam, e, quando chegaram até onde ele estava, insistiram que não as deixasse. Mas ele disse: “É necessário que eu pregue as boas novas do Reino de Deus noutras cidades também, porque para isso fui enviado”. E continuava pregando nas sinagogas da Judéia.

Atrair e ser atraído pelas multidões nos dias de hoje tem um ar de heroísmo espiritual, protagonismo e ministério apostólico. Pregadores que falam para multidões tendem a ser vistos como “ungidos” de Deus, gente que foi colocada por Ele no lugar certo para trazer a palavra, a cura e a libertação que as pessoas mais precisam. Há um ar de nobreza em ocupar esta posição. Mas Jesus parece não ser

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atraído por essa síndrome messiânica – embora ele fosse a pessoa mais autorizada a isso, uma vez que é o Messias (escolhido) de Deus, que veio para salvar, libertar e reconciliar a humanidade com seu Criador e Redentor.

Existem inúmeras passagens e ocorrências nos evangelhos que demonstram um apreço grande de Jesus pelas multidões, por suas afl ições, necessidades e insufi ciências (a exemplo de Mt 9.36, ou de Mc

6.34-46). Mas compadecer-se e dar atenção especial às multidões não signifi ca irrestritamente abraçá-las com suas queixas, causas e urgências. E este texto é um exemplo disso. O senso de propósito e missão de Jesus, forjado e fortalecido no deserto, em comunhão com o Pai, é o que o mantinha fi rme e focado em

sua missão. Ao passo que, mesmo tendo sido instado a não deixar a presença das multidões (o que é uma tentação messiânica), ele sabia exatamente o momento certo de deixá-las e ir proclamar as boas novas do Reino em outros lugares, ou mesmo buscar o silêncio pedagógico do deserto.

Então, a solitude no deserto é um lugar de grandes encontros e grandes confl itos – de luta contra as compulsões desse nosso “eu”, forjado em pecado e pressionado pelos clamores do mundo ao nosso redor, e de encontro com o Deus amoroso, que dá substância a nossa nova identidade como fi lhos de Deus. Ali, mas não somente ali, é claro, podemos nos libertar de qualquer reserva ou defesa, e receber o toque e o abraço do Pai, como na Parábola do Filho Pródigo, onde o Pai parece dizer:

Você é meu amado. Eu não vou te fazer perguntas. Onde quer que você tenha ido, o que quer que tenha feito, ou qualquer coisa que as pessoas digam a seu respeito, não importa, pois você é meu amado. Eu te ponho protegido em meu abraço. Eu toco você. Deixo-te seguro debaixo de minhas asas. Você pode retornar ao lar daquele cujo nome é Compassivo, cujo nome é Amor (NOUWEN, 1995, p. 82).

Quando, no deserto, passamos a ouvir a voz de Deus que

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nos chama de amados e amadas suas, tudo passa ter um signifi cado diferente, e grande parte daquilo que, para nós, tinha quem sabe enorme importância – sucesso, fama, reconhecimento, aprovação das pessoas – agora passa a ser relativizado diante dessa voz de amor. Esta que proporciona um reencontro com nossa verdadeira identidade, que não é aquela que carregamos em nosso RG, nem em nossos crachás profi ssionais e ministeriais, muitos menos nos diplomas, honrarias e títulos que acumulamos. Não. Isso é somente parte do que somos, a ponta do iceberg. O que realmente somos, em Deus, é muito mais do que aquilo que realizamos. De acordo com Nouwen (Ibid.), se mantivermos isso em mente, “podemos lidar com uma enorme quantidade de sucesso assim como com uma enorme quantidade de fracasso, sem perder nossa identidade, por que nossa identidade é a de que somos amados”.

Nossa inquietude na berlinda do desertoComo vimos, Jesus no deserto, enquantero tentado pelo Diabo,

provou que o fundamental é aprender a ouvir a voz do Pai, que diz (como em seu batismo): “Tu és o meu Filho amado, em ti eu me agrado” (Lc 3.22). Diante disso, e pensando em nossas vidas, pergunto: compelidos e remexidos por tantas vozes que nos ladeiam, a qual escutaremos?

Diante do abatimento em que muitas vezes nos encontramos, em função das grandes e pequenas questões que nos angustiam, podemos lembrar as palavras do salmista: “Por que estás abatida, ó minha alma? E por que te agitas dentro de mim?” (Salmo 42).

O deserto é lugar propício para travar uma conversa com a nossa alma. Isto é o que o salmista faz no repetido verso da canção de profunda angústia e inquietação por ele entoada no Salmo 42, na qual convida sua alma para um bate-papo querendo entender a razão de tanto abatimento. Uma das coisas mais sadias e razoáveis que alguém

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pode fazer quando não dá conta de algo é ser honesto, consigo mesmo, com os outros e com Deus. No caso do salmista, essa honestidade se apresenta em forma de perguntas: Por que me sinto tão abatido? Até quando essa situação vai perdurar? Onde está o meu Deus? Por que permanece calado por tanto tempo?

Perguntas como essas evidenciam dúvidas e temores que assolam até o mais seguro de si - embora gente muito segura de si tem uma tendência a não abrir mão de sua fachada de austeridade - e cujas respostas não são simples nem exatas. Aliás, em se tratando da vida e do sofrimento humano nada pode ser simples ou exato. Por isso a linguagem dos trovadores e profetas é recheada de honestidade, paradoxos e de bela, ilógica e não equacionável poesia.

A inquietude, quando não abafada com consolos artifi ciais, atrai e torna-se parceira dos paradoxos. O paradoxo pode até existir fora da mente, mas não pode ser reconhecido sem que (na mente) se dê lugar à inquietude, a qual provoca o pensamento que nos desperta quando algo não vai bem e nem, necessariamente, irá fi car bem - ao menos não do jeito desejado, tampouco com falsas garantias, do tipo: “Basta acreditar, que tudo vai dar certo!”.

O enfrentamento do paradoxo, por sua vez, promove, na linguagem do poeta, o que chamo aqui de aceitação inquieta - a

aceitação que não se confunde com mera rendição. Ou seja, aceitar uma determinada condição não implica em se render ou se resignar a ela. Por exemplo: reconhecer e aceitar que a política no Brasil é permeada por corrupção não implica em se render à falácia de que todo mundo que nela se envolve é ou fatalmente será um

corrupto, ou que nada pode ser feito a respeito da corrupção. Ademais, a realidade não se reduz ao que vemos. O que se vê é apenas uma parte do real, tanto quanto o olhar em si é parcial. Como bem disse Paulo, “agora, pois, vemos apenas um refl exo obscuro, como em espelho...” (1Co 13.12).

Assim, aceitação inquieta é aquela que indica a presença de

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uma fé que não banaliza nem suprime a realidade tal como a vemos ao mesmo tempo em que afirma (mesmo que relutando) a possibilidade e a imperiosidade de sua transformação. Por esta razão, a linguagem dos salmos - tão recheada de seus “por que” e “até quando” - também vem temperada com seus “contudo”, “apesar de” e “ainda que”, denotando fé na presença, persistência e fidelidade divinas em meio às mais variadas circunstâncias.

O silêncio (e aparente ausência) de Deus não é sinal de indolência ou paralisia da parte Dele, assim como minhas eventuais dúvidas, reclames e inquietações também não são sinais da falta ou morte da fé em mim. Pelo contrário, a inquietude não apenas provoca na mente o encontro com os paradoxos, como já dito, como retira a fé dos escombros da passividade e da falsa retidão, tornando-a um organismo vivo, atuante e em constante transformação.

A maturidade, desta forma, está mais para um tesouro a ser perseguido pelos cantos da existência e ao longo da vida na fé, que para um porto seguro onde se pode atracar de uma vez por todas. A soberba (ou o chamado “orgulho espiritual”) é que precisa de portos seguros de tal natureza. A “paz que excede todo entendimento”, não excede, mas existe paradoxalmente no meio de todo sofrimento, dúvida e inquietude que possamos ter.

A fé bíblica se alimenta, então, de uma espera inquieta no deserto e de uma inquietude expectante, em que uma mesma pessoa pode (em tom realista) indagar: “Por que estás abatida, ó minha alma? Por que te perturbas dentro de mim?”. E ainda assim (em tom esperançoso) declarar: “Espera em Deus, pois ainda o louvarei” (Sl 42.11).

Portanto, mesmo em meio a inquietude que nos assola no deserto, o chamado da voz que nos diz “filhos amados”, permanece como sinal de um seguimento, o seguimento dos filhos de Deus que andam conforme o caminho e segundo a imagem de seu Filho, na força do Espírito. De modo que a espiritualidade cristã formada no deserto é aquela que nos ajuda a não nos movermos mais e, sobretudo, por aquilo que funciona, que faz sucesso, que dá ibope, boa reputação ou agrada as outras pessoas. Igualmente, o deserto nos orienta a viver não somente pela, mas para a vontade de Deus revelada em Cristo.

Poderemos, então, desenvolver a atitude daqueles que Nouwen

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chama de “contemplativos críticos”, isto é, pessoas que, por causa de sua autenticidade evangélica, testam e provam tudo aquilo que veem, escutam ou tocam. O contemplativo crítico, assim, toma suas decisões pautado não pela opinião pública, pelo desejo de popularidade ou anseio por aprovação, mas por seu próprio senso de propósito e vocação. Segundo Nouwen (2002b, p. 73):

Ele não permite a ninguém cultuar ídolos e convida constantemente seu semelhante a formular perguntas signifi cativas, muitas vezes penosas e desordenadas, a olhar atrás da superfície do comportamento polido e eliminar todos os obstáculos que o impedem de atingir o âmago do assunto. O contemplativo crítico arranca a máscara ilusória do mundo manipulador e tem a coragem de mostrar qual é a verdadeira situação.

Anotações__________________________________________

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Fonte: Depositphotos

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Conclusão

Dessa forma, a espiritualidade que se forja no deserto, proporciona esse reencontro com a minha liberdade interna, parafraseando Nouwen. Esta liberdade me relembra que, embora eu faça parte do mundo, posso me ver liberto de seu domínio, de suas pulsões, vozes e compulsões, podendo assim, e somente assim, contribuir para a sua transformação.

Essa liberdade interna, contudo, não é propriamente minha, mas é a liberdade de Deus que faz morada em mim e me dá, sempre que para ela desperto, um novo sentido de propósito, missão e identidade. Como veremos na próxima unidade, ser chamado de filho amado, liberto no e do mundo, implica em uma conversão também para o caminho e a busca pela libertação de outros. Até lá!

Referências bibliográficas

NOUWEN, Henri. O perfil do líder cristão do século XXI. Belo Horizonte: Atos, 2002a. _________. O sofrimento que cura. 2ª Ed. São Paulo: Paulinas, 2002b._________. Moving from solitude to community to ministry. In: Leadership Magazine, Spring 1995, Carol Stream, IL.

Anotações__________________________________________

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Teologia e Prática da Espiritualidade

Unidade 9: Espiritualidade, teologia e vida

Introdução

Nas próximas duas unidades, aprenderemos um pouco sobre o que é e em que consiste uma “espiritualidade da libertação”. Primeiramente, dando-se conta de que é preciso não mais dissociar espiritualidade do fazer teológico e de nossa vida e contexto. Em segundo lugar, abrindo os olhos para a relidade que está ao nosso redor e redescobrindo um modo de ser cristão guiado pelo espírito, em nosso lugar e com nosso povo. Por fim, conscientizando-nos de que viver a espiritualidade numa perpectiva libertadora é, antes de tudo, mergulhar de cabeça na causa de Jesus e de seu reino, tendo consciência de que qualquer outra prioridade é secundária frente a esta. Ser espiritual, assim, é, pela graça, abraçar as implicações de viver com radicalidade o amor de Jesus pelas pessoas, desmantelando o egoísmo humano e convertendo-se um pouco mais a cada dia aos caminhos do Espírito.

Objetivos

1. Identificar algumas das falhas e lacunas de uma leitura tradicional do tema da espiritualidade.

2. Relacionar os temas da espiritualidade, teologia e vida.

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Espiritualidade e vitalidade humanaQuero começar trabalhando um pouco o tema da espiritualidade

e sua relação com a teologia e a vida. Antes de tudo, porém, cabe aqui a pergunta: quais são os sentidos tradicionais que têm sido atribuídos à teologia e prática da espiritualidade no meio cristão? Apresento, abaixo, quatro deles:

a. Aparência exterior. A espiritualidade é avaliada e associada às demonstrações externas (aparência, estética), mais precisamente às performances religiosas do cristão (Ex. Dizer “aleluia” e “amém” quando alguém está orando, ou levantar as mãos, ajoelhar e chorar durante o culto).

b. Vida interior. A espiritualidade é meramente uma disciplina interior, que tem relação com uma comunhão vertical (a pessoa e

Deus). As disciplinas clássicas de uma “vida espiritual”, nesse sentido estrito, são: oração, jejum, meditação, êxtase, solitude, submissão, serviço, confi ssão, orientação, contemplação, celebração, etc. Nesse sentido, como afi rma Gutiérrez (2000, p. 26): “A relação com Deus parecia obscurecer a presença dos demais e afundava cada cristão em sua própria

interioridade (ou melhor, em determinada maneira de entendê-la). A vida espiritual era chamada de vida interior, que muitos interpretam como algo que se vive exclusivamente dentro de si”.

c. Legalismo farisaico. Mede-se pelo seguimento da doutrina correta e do “reto comportamento” com base em leis (leia Cl 2.20-23). “Vida religiosa, no sentido estrito do termo, que garantia um ‘estado de perfeição’, e supunha por consequência a idéia de estados imperfeitos de vida cristã. Ao ‘estado de perfeição’ correspondia uma forte e estruturada busca de santidade; aos demais, no melhor dos casos, parcelas menos exigentes dessa espiritualidade” (GUTIÉRREZ, 2000, P. 24). Aqui está pressuposta a idéia da existência de duas classes

Gustavo Gutierrez

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de cristãos: os “mais” e os “menos” espirituais.d. Individualismo extático (ou de experiências com o

sobrenatural). Negação da adoração comunitária e cotidiana (transformação do caráter pela renovação da mente), e afirmação da contemplação individualista, na busca de galgar degraus na vida dita “espiritual” (leia Cl 2.18-19). Assim, uma “pessoa espiritual” é aquela que está em proximidade com o “mundo espiritual” (oposto ao mundo material), como os anjos, mantendo contato com os segredos e revelações celestiais especiais, em oposição às coisas e atividades mundanas. É o modo “espiritualista” de se interpretar a vida cristã, o qual “manifesta pouco interesse pelas tarefas temporais e revela grande insensibilidade à presença e às necessidades das pessoas reais e concretas que se encontram ao redor do cristão seguidor dessa espiritualidade” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 28).

Desse modo, como aponta Moltmann (2002, p. 82), dissociamos a espiritualidade de sua vitalidade essencial. Em nome de uma vida

focada no que está “além” e alheio a ela mesma e aos acontecimentos do aqui e agora – mais preocupada com a “alma”, o “espírito”, que com a matéria, o corpo e com a vitalidade integral que há na junção (se é que podemos dividir o ser humano, como queriam os gregos) entre todas essas

partes que formam a humanidade – apresentamos ao mundo, com efeito, um Deus distante, etéreo, transcendente, que vive longe e despreocupado com a nossa vida aqui na terra e que está disponível apenas aos “espirituais”, às almas mais elevadas e evoluídas. Como consequência, assumimos uma “espiritualidade dócil”, desvinculada dos sentidos, hostil ao corpo, à vida, separada do mundo e sem a menor dimensão cidadã, no lugar da “vitalidade original”, judaica e cristã, que vive a partir do Espírito Criador de Deus.

O resultado, portanto, tem sido desastroso para a vida dos

Charge: blog.veritatis.com.br

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cristãos e seu testemunho no mundo. Temos provado que existe a possibilidade de realizar a missão sem dar um bom testemunho da graça de Deus. A imagem do Deus que é vitalidade pura, que ama a vida e sua criação, e que transmite vida e vida abundante, em oposição às realidades de morte, tem sido abafada pela imagem (distorcida) de um Deus legalista e fariseu, inimigo da vida em todas as suas dimensões, que parece apenas estar interessado em aprisionar as pessoas e evitar que elas pequem a todo custo, pela imposição de normas e condutas exigentes demais para os comuns e menos “santos”, que não conseguem cumprir a lei.

Em contrapartida, viver a vida de Cristo, desenvolver a mente de Cristo, sendo seus seguidores, implica na compreensão, defendida por Moltmann (2002, p. 82), de que:

Não somos redimidos desta terra, de modo que pudéssemos desistir dela. Somos redimidos com ela. Não somos libertos do corpo, mas somos eternamente vivifi cados com ele. Por isso a esperança originária dos cristãos não se dirige ao além, no céu, mas à chegada de Deus e de seu reino a esta terra. Nós, humanos, somos criaturas terrenas, e não candidatos a anjos. Tampouco somos hóspedes aqui num belo planeta, para nos familiarizar com outro após a morte. Permanecemos fi és à terra, pois nesta terra esteve fi ncada a cruz de Cristo. Sua ressurreição “dentre os mortos” também é uma

ressurreição com os mortos e com esta terra embebida de sangue. À luz da ressurreição de Cristo já vemos os contornos da “nova terra” (Ap 21.1), na qual “já não haverá a morte, não haverá mais luto, nem clamor nem sofrimento”.

Outra questão que vale a pena ser comentada é sobre a relação entre teologia e espiritualidade. Não são categorias estanques, mas complementares. Custa-nos, como igreja evangélica, compreender isso e a nos desintoxicarmos de nossos preconceitos, erigidos históricamente. Entretanto, como diz o Pe. Gutiérrez, “o discurso sobre a fé parte da vida cristã da comunidade e se orienta para ela. Uma refl exão que não ajude a viver segundo o Espírito não é uma

Jurgen Moltmann

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teologia cristã. Toda autêntica teologia é uma teologia espiritual” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 52 – Grifo meu).

Já disse isso há duas aulas, e aqui apenas reitero: oração não é um mero rito ou experimento artificial; oração é vida, é o rumor do coração que se transforma em palavras, ou em simples silêncio, colocando nosso mundo limitado em vivo contato com o mundo ilimitado de Deus. Assim, para mim, a principal matéria-prima da teologia é a vida, assim como orar é viver e como Deus é sinônimo de Vida e Liberdade plenas. Só se pode conhecer a Deus à medida que se celebra intensamente o viver, o viver junto com outros, imersos na realidade. A teologia que se vale da experiência de Jesus (o Deus Encarnado) está totalmente ancorada em, e em permanente relação com, a realidade que nos cerca, tantas vezes dura e cruel. Segundo Eugene Peterson (2004, p. 264), “Deus não se revela à realidade para que a contemplemos como meros espectadores, mas para que possamos nela ingressar e viver”.

Anotações__________________________________________

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Bebendo em Nosso Próprio PoçoA espiritualidade cristã, que emerge da proposta de Gustavo

Gutiérrez, é uma espiritualidade que fi nca raízes, isto é, que não somente está conectada com a história humana, no sentido geral, mas com as histórias de vida, dor, alegria, tristeza, sofrimento, sonhos, derrotas, vitórias, agruras e conquistas vivenciadas por um povo em particular, vinculado à uma terra, que ele quer chamar de sua, mas que, tantas vezes, por diversas formas de exclusão e violência, é-lhe tirado esse direito à terra e, porque não dizer, à própria vida. Esse tem sido, em grande parte, o caso da realidade latino-americana, a partir da qual e à qual este autor se reporta em seu livro Beber em seu próprio poço.

Segundo ele, a raiz de toda espiritualidade é que ela nasce das experiências concretas vivenciadas por pessoas concretas, num espaço e tempo determinados. Experiência pessoal e, ao mesmo tempo, passível de ser expressa aos demais. Gutiérrez se baseia na idéia de Bernardo de Claraval, o qual afi rma que, nesses assuntos, “cada um deve beber

em seu próprio poço”. Dessa expressão surge a imagem do “poço de água”, a fonte de onde não somente uma, mas um grupo de pessoas de um vilarejo ou povoado retira a água para as necessidades da vida e para matar a sede. Dela, também surge à pergunta: “De que poço podem beber os pobres da América Latina?”. É uma pergunta sugestiva, pois,

conforme acredita Gutiérrez (2000, p. 53), “a espiritualidade é como água viva que surge do fundo da experiência de fé”.

Como exemplo, um testemunho. Henri Nouwen, famoso autor

Fonte: Wikimedia Commons - Lima Peru

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holandês na área da espiritualidade – sobre o qual ainda veremos mais na próxima unidade deste curso – expressa uma opinião muito particular sobre essa idéia. Após um período sabático de seis meses trabalhando com os pobres em países da América Latina, no início dos anos 80, mudanças fundamentais aconteceram em sua trajetória. Nouwen sempre se mostrou um cristão que se permitiu e admitiu passar por diversas conversões. Os pobres da América Latina foram parcialmente responsáveis por uma delas. Nouwen nutria até então uma visão mais intimista de espiritualidade, como interioridade, solitude monástica, em função da infl uência de mestres espirituais como Th omas Merton em sua jornada espiritual.

Em 1982, ele teve a oportunidade de participar de uma classe ministrada por Gustavo Gutiérrez, em Lima, no Peru. Ali, aquele teólogo apresentou um primeiro esboço de suas idéias sobre uma espiritualidade da libertação, que logo iriam compor o livro Beber

em seu próprio poço. Foi um curso para agentes de pastoral, provenientes de diversos países da América Latina. “A espiritualidade descrita para aqueles cristãos latino-americanos”, testemunha Nouwen (2001, p. 178) em seu livro Estrada para a paz, “não foi percebida como um modo de pensar estranho ou importado, mas como uma expressão do que eles já tinham conhecido em sua vivência diária do Evangelho”.

Isso é ainda mais signifi cativo se pensarmos que o modelo de espiritualidade que

recebemos no ocidente, que se diz cristão, tanto de católicos como de protestantes, reduziam-se a formas de religiosidade importadas de lá para cá, cujas expressões faladas, cantadas e vividas quase nunca correspondiam ao vivido e à realidade latino-americana (embora pudessem ser válidas em seu contexto, e não desprezíveis em seu todo). Gutiérrez, por sua vez, apresentou no referido curso não um itinerário espiritual do nada para alguma coisa, ou “de fora” para ser aplicado aqui, mas uma trajetória conhecida e familiar, por meio da qual aqueles jovens pudessem se dar conta de que já haviam encontrado

Henri Nouwen

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o Senhor em suas próprias vivências e pela presença (talvez antes irreconhecível) de um Deus amoroso e gracioso no meio da luta pela justiça e pela paz no mundo.

Desse modo, Nouwen (2001, p. 178) afi rma que:Beber em seu próprio poço é viver

sua própria vida no Espírito de Jesus da forma como o tiver encontrado em sua realidade histórica concreta. Isso não tem nada que ver com opiniões, convicções ou idéias abstratas, mas tem tudo que ver com a experiência tangível, audível e visível de Deus, uma experência tão real que pode se tornar a fundação de um projeto de vida. Como diz a primeira espístola de João:

“o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos e nossas mãos tocaram do Verbo da vida”.

Durante seu período na América Latina, Nouwen (1993) já vinha refl etindo sobre sua vocação. Perguntava a si mesmo e a Deus em seu diário: “O Senhor está me chamando para trabalhar na América Latina nos anos que estão por vir?”. Sua visão de espiritualidade, após esse tempo, havia mudado radicalmente. Segundo ele, sua intenção tinha sido de ir até lá para dar. Mas acabou recebendo de volta algo muito mais precioso do que podia oferecer, por seus tantos anos de sacerdócio. A marcha dos pobres mostrara-lhe outro tipo de sacerdócio, o de um compromisso mais profundo com Cristo, com os olhos fi tos na realidade e os pés atolados na lama da história. Em seu relato dessa experiência, ele afi rma:

Os pobres com quem convivi revelaram-me os tesouros de uma espiritualidade cristã que estivera escondida de mim em meu mundo abastado. Mesmo tendo pouco ou nada, eles me ensinaram a verdadeira gratidão. Mesmo lutando com desemprego, desnutrição e muitas doenças, ensinaram-me a alegria. We Drink from Our Own Wells é um livro importante não só por ser uma apresentação inteligente e perspicaz de uma espiritualidade latino-americana, porém mais ainda por ser um presente dos pobres que, por meio do ministério de solidariedade de Gustavo Gutiérrez, torna-se agora disponível para a conversão de nós que sempre nos consideramos auto-sufi cientes (NOUWEN, 2011, p. 185).

http://desenvolturasedesacatos.blogspot.com.br

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Falar da espiritualidade como algo que surge da experiência de fé, não significa que essa mesma fé exclua o discurso ou a racionalidade, isto é, que não necessite de uma “inteligência”, que proponha, organize, retrate e elabore uma teologia como resposta, como “segundo ato”. Mas, ao mesmo tempo, a reflexão teológica que não nasce da experiência concreta do povo de Deus, não servindo, portanto, à vida em comunidade, pode tornar-se uma reflexão vazia e estéril.

Uma teologia que não se situe no contexto de uma vivência de fé corre o risco de se converter em uma espécie de metafísica religiosa, em uma roda que gira no ar sem mover o veículo... A reflexão teológica só adquire seu pleno sentido no seio da Igreja, a serviço de sua vida e de sua inserção no mundo (GUTIÉRREZ, 2000, p. 58).

Conclusão

Gutiérrez (2000, p. 168) conclui, e assim com suas palavras concluo também, reafirmando um aspecto essencial da vida espiritual de um povo: “A espiritualidade é uma aventura comunitária. Passos de um povo que faz seu próprio caminho nos seguimentos a Jesus Cristo através da solidão e das ameaças do deserto. Experiência espiritual que é o poço do qual temos que beber. Ou talvez, na América Latina de hoje, nosso cálice, promessa de ressurreição”.

Anotações__________________________________________

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Referências bibliográficas

BARRO, A. C. Afinal, quem é o espiritual? In: BOMILCAR, Nelson. O melhor da espiritualidade brasileira. São Paulo: Mundo Cristão, 2005, pp. 275-289.GUTIÉRREZ, Gustavo. Beber em seu próprio poço. Itnerário espiritual de um povo. São Paulo: Loyola, 2000.MOLTMANN, Jürgen. A Fonte da Vida. O Espírito Santo e a teologia da vida. São Paulo: Loyola, 2002.PETERSON, Eugene. Transpondo Muralhas: espiritualidade para o dia-a-dia dos cristãos. Rio de Janeiro: Habacuc, 2004.NOUWEN, Henri. Estrada para a paz. Escritos sobre paz e justiça. São Paulo: Loyola, 2001.________. Gracias! A Latin American Journal. New York, USA: Orbis Books, 1993.

Anotações__________________________________________

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Unidade 10: Espiritualidade da libertação

Introdução

O propósito central desta unidade não é outro senão o de enfocar o tema da espiritualidade na perspectiva teológica da libertação. Para tanto, a problemática inicial é: existiu ou ainda existe uma preocupação da Teologia da Libertação (TdL) em relação ao tema “espiritualidade”? Se existe, como ela se configura? Como essa “espiritualidade da libertação” responde à fome de Deus na alma do povo latino-americano? Toda essa conversa de libertação não leva a uma “politização do Evangelho”? Será que a TdL, como questiona Daniel Migliore, não acaba por negar a natureza intensiva e pessoal de ser cristão: a experiência do perdão divino, a relação pessoal com Cristo, a prática da oração e outras disciplinas da vida cristã? Essas são algumas questões que devem nos mover aqui.

Objetivos

1. Compreender o lugar e importância de uma espiritualidade da libertação no contexto latino-americano.

2. Conscientizar outras pessoas acerca da necessidade de uma espiritualidade mais ampla, que seja encarnada, cristocêntrica e solidária.

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Gutiérrez e a espiritualidade libertadoraQuero dar, porém, especial destaque à obra de Gustavo

Gutiérrez, que, dentre os teólogos da libertação, foi um dos que melhor desenvolveu a, assim batizada, “espiritualidade da libertação”.

É a espiritualidade que nasce da assumpção da tarefa de libertação integral do povo, em especial dos pobres, na América Latina. É uma espiritualidade da superação. Sobretudo, superação da dicotomização do evangelho e do discipulado cristãos, isto é, desse negócio, que a gente não inventou, mas se apropriou (sem respaldo

bíblico), de separar corpo e espírito, igreja e mundo, teologia e vida/espiritualidade, e assim por diante.

Essa dicotomia se encontra do lado oposto da vida na fé e da causa libertadora. Segundo Daniel Migliore (1980, p. 83): “A luta pela libertação da vida humana em sua dimensão política e socioeconômica e a dádiva da nova vida e liberdade em Cristo não são processos separados mas interdependentes”. Uma espiritualidade, como defi ne Gutiérrez (1986, p. 172), “é uma forma concreta, movida pelo Espírito, de viver o evangelho. Maneira precisa de viver ‘diante do Senhor’ em solidariedade com todos os homens, ‘com o Senhor’ e diante dos homens. Ela surge de uma experiência espiritual intensa, depois tematizada e testemunhada”. Essa espiritualidade consiste, ainda, numa nova noção do compromisso e relação com Deus e com seu reino: compromisso de ouvir a palavra de Deus “a partir de baixo”, e de desenvolver-se, enquanto cristão, em solidariedade para com os pobres.

As implicações dessa visão são amplas e diversas. Uma espiritualidade da libertação, observa Migliore (1980, p. 93), deverá incluir (e não excluir ou negar) muitos dos elementos da espiritualidade cristã tradicional: leitura da Bíblia, oração, meditação, comunhão em torno da palavra e sacramentos, exercício dos dons espirituais, serviço

Gustavo Gutierrez

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ao próximo. Porém, afi rma ele, essa nova espiritualidade vai fazer uma releitura desses elementos, atribuindo-lhes novos signifi cados e usos, pois eles estarão intimamente relacionados com a práxis de liberdade em solidariedade com os pobres.

Dessarte, Migliore (1980, p. 94) afi rma que “essa nova espiritualidade da libertação é uma espiritualidade política”, não orientada a atender as demandas particulares de programas e ideologias político-partidárias, porém, direcionada rumo à “nova comunidade” (nova Jerusalém), a completa realização da vida humana em comunhão com Deus e com outros.

Esse câmbio, de uma espiritualidade preocupada com o “eu” para uma espiritualidade solidária para com os pobres e oprimidos leva, necessariamente, à uma nova compreensão do arrependimento, conversão, mortifi cação, novo nascimento e do compromisso cristão.

De acordo com Gutiérrez, a conversão evangélica é a pedra de toque de toda espiritualidade. À luz do pensamento e práxis libertadora, Gutiérrez expõe um sentido mais amplo de conversão. Para ele, conversão signifi ca

Radical transformação de nós mesmos, signifi ca pensar, sentir e viver como Cristo presente no homem despojado e alienado. Converter-se é comprometer-se com o processo de libertação dos pobres e explorados, comprometer-se lúcida, realística e concretamente. Não só com generosidade, mas também com análise de situação e com estratégia de ação. Converter-se é saber e experimentar que, contrariamente

às leis do mundo da física, só estamos de pé segundo o evangelho quando nosso centro de gravidade passa fora de nós (GUTIÉRREZ, 1986, p. 173).

Concretamente, de acordo com Jon Sobrino (1988, p. 69), “na América Latina, uma pessoa espiritual é alguém que vê os pobres com os olhos de Deus e lida com eles como Deus lida”. E quem Jon Sobrino

Fonte: Depositphotos

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seriam esses cristãos comprometidos e solidários? Como identifi cá-los? Na opinião de Sobrino (1988, p. 58):

Aqueles que realmente se vêm como amados de Deus, poderão igualmente amar seus irmãos e irmãs melhor. Aqueles cuja visão tem sido purifi cada por Deus, verão o mundo dos pobres com maior pureza. Aqueles que têm experienciado o perdão e a misericórdia de Deus de maneira mais profunda, identifi car-se-ão melhor com a realidade dos pobres.

Nesse sentido, “crescimento espiritual e processo de libertação estão tão intimamente ligados quanto estão os mandamentos de amar a Deus e amar ao próximo como a nós mesmos” (MIGLIORE, 1980, p. 95).

Em síntese, como poderíamos relacionar as principais características e contribuições de uma espiritualidade da libertação? Henri Nouwen (2001, pp. 180-183) aponta três elementos principais que fundamentam e distinguem a espiritualidade da libertação, enquanto produto

de uma ortopráxis cristã latino-americana, dos demais modelos de espiritualidade vigentes no continente.

3.1. A espiritualidade da libertação é integral. É integral porque “toca todas as dimensões da vida”. Deus é o doador da vocação para a liberdade aos seres humanos e maior interessado em que ela seja cumprida integralmente em sua vivência histórica. Isto signifi ca que, onde quer que haja injustiça, opressão, escravidão, sofrimento e morte, existe, em oposição, uma centelha divina incendiando, com as chamas da indignação, compaixão e solidariedade, a luta pela justiça e libertação do ser humano, no caso o pobre e o oprimido, que vive nessas condições. Pobreza, na acepção de Gutiérrez, signifi ca morte. Por isso, fazendo coro com a leitura de Nouwen, é impossível reduzir a teologia da libertação a um movimento meramente político, pois a luta para a qual Deus nos chama é uma luta pela vida, em todas as suas dimensões, contra as forças de morte.

3.2. A espiritualidade da libertação é cristocêntrica. Seu cerne e modelo é Jesus Cristo. Gutiérrez (2000, p. 11) inicia seu livro dizendo que “seguir Jesus defi ne o cristão”. Nouwen pondera que aqueles

Henri Nouwen

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que não compreenderam a centralidade de Jesus na luta pela plena liberdade humana sempre interpretarão mal a TdL e a espiritualidade da libertação. Jesus é o centro da luta pela liberdade. “Ele ama tanto o opressor quanto o oprimido e entrou na história para libertar todos os homens e mulheres”. Na visão de Nouwen (2001, p. 182), a proposta da espiritualidade da libertação se coaduna com a de Jesus, à medida que “a boa nova que Jesus anuncia é a nova de que o amor é mais forte do que a morte e que o mal do ódio, destruição, exploração e opressão só pode ser vencido pelo poder de Deus”.

3.3. A espiritualidade da libertação é contextual. Ou seja, é originada da experiência cotidiana concreta das comunidades cristãs da América Latina. Não é uma espiritualidade estática, isto é, pensada e praticada uma só vez para ser aplicada defi nitivamente em todo e qualquer contexto, mas dinâmica, situacional e, por isso, requer escuta constante das necessidades dos pobres para que se possa responder a elas de modo efetivo. Embora a participação humana seja muito importante no processo de libertação, essa espiritualidade, como ressalta Nouwen, não conclama as pessoas à salvar o mundo por si mesmas, mas reconhece que é a gratuidade do amor do Deus revelado em Jesus que nos liberta para trabalhar a serviço do Reino.

Para concluir essa parte, vale a pena destacar a maneira como Nouwen relata a própria relação entre ação-refl exão-ação percebida no compromisso espiritual radical com o Deus da Vida, através da solidariedade com os pobres da América Latina, do Pe. Gustavo Gutiérrez:

Gustavo Gutiérrez não escreveu simplesmente mais um livro sobre a vida espiritual. Por muitos anos, ele participou com todo o seu ser da dolorosa luta de seu povo. A partir dessa solidariedade íntima, foi capaz de identifi car os traços de uma nova espiritualidade, traços que podia ler no rosto das pessoas com quem conviveu. As palavras que ele escolheu para esses traços pertencem ao tesouro da tradição espiritual cristã: conversão, gratuidade, alegria, infância espiritual e comunidade (NOUWEN, 2001, p. 183).

Gustavo Gutierrez

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Conclusão

Não restam dúvidas quanto à contribuição da teologia da libertação para a teologia e prática da espiritualidade na América Latina. Talvez tenha havido distorções e reduções da mensagem evangélica, através de algumas propostas expandidas por outros teólogos e seguidores da TdL. Mas, da mesma forma, é inegável que houve distorções da mensagem cristã entre os primeiros cristãos, no decorrer dos séculos, até os dias atuais. Nosso trabalho não se torna mais fácil porque negamos essa patente realidade de violação das Escrituras. A exegese e hermenêutica bíblica nos ajudam a diminuir nossa ingerência sobre o texto e a nos aproximarmos um pouco mais do trabalho original dos autores. Mas nunca faremos uma reprodução literal dessa intenção, isso é ilusão. A iluminação do Espírito Santo é o diferencial que nos ajuda a discernir e aplicar a Palavra à nossa vida e missão no mundo contemporâneo.

Na introdução do livro Beber em seu próprio poço, Gutiérrez (2000, p. 12) afi rma que é um grave erro histórico reduzir o que acontece hoje no contexto latino-americano a um problema social ou político. Com efeito, dizer que os desafi os à espiritualidade são somente aqueles que brotam da relação entre fé e política é reducionismo imperdoável e “falta de perspicácia cristã”. Parece-me, portanto, que esse autor reconhece os perigos de que uma espiritualidade militante, se assim podemos chamar, torne-se mais militância que espiritualidade; perca os valores

do reino em nome de interesses políticos e partidários e transforme a fé cristã e a utopia possível do reino em mera luta política e social.

Segundo Gutiérrez (2000, p. 120), essa, no entanto, é uma compreensão sumária e simplista da perspectiva libertadora, pois “o movimento de solidariedade com os pobres e explorados não

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escamoteia o significado dessa etapa de rupturas reclamada pelo evangelho como condição para que aceitemos a mensagem do Reino. Antes, o evidencia ainda mais”. “Etapa de rupturas” é como o autor chama o processo de conversão pessoal como condição para a existência cristã, para que estejamos conscientes do que o pecado e o arrependimento significam em nossas vidas.

Tudo isso ele explica para enfatizar que a TdL, na verdade, não nega essas realidades, mas as reforça, ao contrário do que se pode pensar. Muitos de nós pensamos assim, primeiro, por causa de alguns autores e movimentos vinculados à TdL, que parecem dar a entender que o compromisso social e político de libertação dos pobres é sua “tábua de salvação”, e, segundo, concordando com Gutiérrez, também, na mesma medida, porque lemos pouco e mal os teólogos da libertação.

Nossas críticas parecem provir muito mais de leituras e informações secundárias do que de nosso próprio esforço em conhecer e compreender essa teologia. Como contrapartida, é preciso ler com abertura e atenção de diferentes fontes teológicas, para nosso próprio crescimento, e é preciso humildade, especialmente por parte de teologos evangelicais no Brasil, para reconhecer a dívida teológica e metodológica que temos com a perspectiva trazida pela teologia da libertação, para que possamos, com honestidade intelectual e ética cristã, prosseguir em nosso caminho e propor novos desafios à igreja em sua vivência espiritual e missionária na América Latina.

Que Deus nos ajude, dando discernimento e lucidez para essa tarefa!

Glossário

1. - Gutiérrez dedica um capítulo em sua obra Teologia da Libertação (1986), para falar de uma espiritualidade da libertação. Posteriormente, dedicou uma obra inteira para tratar do assunto: Beber em seu próprio poço (2000). As possíveis referências a Gutiérrez no decorrer desta aula, reportar-se-ão a estas duas obras.

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Referências bibliográficas

GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação: perspectivas. Petrópolis, RJ: Vozes, 1986.________. Beber em seu próprio poço. Itnerário espiritual de um povo. São Paulo: Loyola, 2000.MIGLIORE, Daniel L. Called to Freedom. Liberation Theology and the Future of Christian Doctrine. Philadelphia, USA: The Westminster Press, 1980.NOUWEN, Henri. Estrada para a paz. Escritos sobre paz e justiça. São Paulo: Loyola, 2001.SOBRINO, Jon. Spirituality of liberation. Toward political holiness. New York, USA: Orbis Books, 1988.

Anotações__________________________________________

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Teologia e Prática da Espiritualidade

Unidade 11: Henri Nouwen e a espiritualidade da imperfeição

Introdução

Como você devem ter percebido pela minha abordagem até aqui, a percepção de espiritualidade nela expressa advém de várias fontes. Mas, especialmente, de um escritor: Henri Nouwen. Esta unidade e a próxima consistem na leitura, discussão e aprofundamento de temas ligados à espiritualidade cristã, a partir da vida e obra de Nouwen, conhecido não apenas por sua brilhante e sensível leitura da condição humana sob a ótica da espiritualidade, mas, também, por sua história e exemplo de vida radical. Proporcionará a você aluno/a talvez o primeiro contato com o pensamento deste autor, e a possibilidade de uma identificação mais ampla através da leitura de seus livros disponíveis em língua portuguesa.

Objetivo

1. Conhecer um pouco sobre a vida e obra de Henri Nouwen.

2. Aprofundar-se em temas da espiritualidade cristã, a partir de uma abordagem de questões contemporâneas.

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Quem foi Henri Nouwen?Padre, professor, psicólogo e escritor, Henri J. M. Nouwen

nasceu na Holanda, em 1932, e faleceu em 1996, também em sua terra-mãe. Desde os cinco anos de idade, Nouwen falava sobre suas

pretensões de ser padre, e ele estava decidido a isso. Formou-se em teologia e psicologia na Holanda, tendo sido ordenado pouco tempo depois, aos 32 anos, em 1957. Nouwen passou os primeiros cinco anos de seu ministério realizando algumas de suas notáveis ambições: estudou na renomada clínica psiquiátrica de Karl Menninger (EUA), lecionou nas universidades de Notre Dame e Yale e viajou muito como conferencista. Por sua ênfase ecumênica e relativamente aberta em relação à

fé cristã, Nouwen teve o privilégio de falar tanto para católicos como para evangélicos, tendo trânsito livre entre estes dois grupos. Até hoje ele é muito respeitado e lido tanto em uma como em outra vertente religiosa. Certamente é um dos pensadores cristãos do século XX que exercitou com maestria a arte de cruzar fronteiras. Como testemunha, Philip Yancey diz que “ele ignorava as recomendações de Roma para que apenas os católicos participassem da eucaristia, e a celebrava diariamente com amigos, alunos ou estranhos, onde quer que estivesse” (YANCEY, 2004, p. 304).

Como vimos na unidade 9, Nouwen passou 6 meses viajando pela América Latina, passando por diversos tipos de conversão diante da realidade dos pobres, o que alterou não apenas seu modo de enxergar a espiritualidade, mas também de lidar com a sua própria vocação, perguntando-se muitas vezes se seria a vontade de Deus que ele permanecesse na América Latina colocando seus dons e talentos à serviço dos pobres. Gustavo Gutiérrez, um de seus mentores neste período, o aconselhou, contudo, a retornar aos Estados Unidos e falar

Henri Nouwen

Karl Menninger

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sobre tudo o que ali vira, sendo uma voz profética no mundo opulento e imperial norte-americano. Ao regressar para a América do Norte, Nouwen recebeu convite para lecionar em Harvard, e passou a se

engajar mais ferrenhamente em movimentos pelos direitos humanos, tendo a oportunidade de fazer o que ele chamou de “missão reversa”, seguindo o conselho de Gutiérrez. Nesse tempo sua fama e prestígio como professor, escritor e conferencista já percorriam o mundo, e em todo lugar por onde passava ele era bastante respeitado. Todavia, tudo isto não bastava para amenizar o profundo vazio espiritual e as feridas pessoais que há muito carregava e que, com o tempo, só aumentavam, tudo isso combinado a uma vida de fama, glória, agenda lotada de compromissos e atividades mil,

levando Nouwen a um ponto de colapso total num espaço de três anos. Até que ele compreendeu, à luz da experiência de Jesus, que o

caminho para subir é descer. Assim, abandonou sua brilhante carreira numa das melhores universidades dos EUA, para compartilhar sua vida com os necessitados, servindo em uma comunidade para defi cientes mentais, a Arca - O Amanhecer, em Toronto no Canadá. Sua vocação era mesmo entre os pobres, que viviam noutra espécie de miséria, revelando-lhe, contudo, a face da alegria e do poder de Cristo, escondidos por trás de suas vidas limitadas e sofridas. Conforme o próprio Nouwen disse em seus escritos, “ali ele não foi para dar, mas para receber; não por causa de excesso, mas por falta. Foi para conseguir sobreviver” (YANCEY, 2004, p. 306).

Anotações__________________________________________

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Philip Yancey

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Teologia e Prática da Espiritualidade94

Alegrias conjugadas com as tristezas

Acredito que uma das principais virtudes que Nouwen cultivava – mais acuradamente a partir dos últimos 10 anos de sua vida, em que ele conviveu de perto com o sofrimento e as limitações de seus

amigos da Arca – foi a de falar abertamente de suas próprias dores e feridas, não só através dos muitos livros que escreveu, mas também nos relacionamentos interpessoais, como testemunham algumas pessoas que com ele conviveram.

Ele afi rma no livro Podeis Beber do Cálice que conviver diariamente com os membros defi cientes da comunidade Daybreak, o pôs em contato com suas próprias feridas e tristezas internas. Por outro lado, testemunha ele, “a alegria que surge ao viverem juntos em uma comunidade de fracos faz a tristeza não apenas tolerável, mas uma fonte de gratidão”.

Nas palavras de Nouwen (1996, p. 40, 41):Minha necessidade de ter amigos, afeição e aceitação estão exatamente aqui

para que todos possam ver. Jamais vivi tão profundamente a verdadeira natureza do ministério pastoral: estar com o próximo em compaixão. O ministério de Jesus é descrito na carta aos Hebreus como sendo de solidariedade com o sofrimento humano. Chamar a mim mesmo de padre, hoje, me desafi a radicalmente a abandonar qualquer distância, todo e qualquer pequeno pedestal e toda e qualquer posição de poder, e me desafi a a associar minha própria vulnerabilidade à daqueles com os quais vivo. E que alegria isso traz! A alegria de pertencer, de fazer parte de algo, de não ser diferente.

Henri Nouwen diz que nossa concepção sobre a alegria é baseada no sucesso, no progresso e nas soluções fáceis para nossas mazelas e problemas. Volta e meia ouvimos na igreja que a alegria deve ser a marca distintiva do crente. Mas muitas vezes isso se torna algo do tipo “kit-viagem para o país das maravilhas com Alice e o coelhinho”, ou quem sabe não seria uma espécie de “selo de qualidade cristã”: se você tem, tudo bem, mas se não tem, algo deve estar errado com sua fé. Quantas vezes, confesso, cheguei até a me culpar por ser induzido

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a pensar desse modo nada realístico com que a igreja trata de alegria e felicidade hoje, nada diferindo inclusive da alegria ópio que o mundo atual tem proposto, do sorriso estampado no rosto, pensamento positivo, muito dinheiro no bolso e “saúde pra dar e vender”.

Não preciso contra-argumentar muito pra dizer que isso, apesar de muito comum, é uma tola subversão do caminho de Jesus. Para Nouwen, o cristianismo de nossos tempos, hedonista, procura se desconectar completamente da realidade do sofrimento e da renúncia, ou mesmo da vida abnegada. É um cristianismo que busca vitórias sem esforços. Almejamos, de acordo com ele,

Crescimento sem crise, cura sem dores, ressurreição sem cruz. Não é de admirar que gostemos de assistir a desfi les militares e de aplaudir heróis que retornam, operadores de milagres e recordistas. Também não é de admirar que nossas comunidades pareçam organizadas para manter o sofrimento à distância. As pessoas são sepultadas de maneira a disfarçar a morte com eufemismos e ornamentação rebuscada (NOUWEN, 2002, p. 08).

Na visão deste padre, a maneira de Jesus é tão diferente. Ele não veio eliminar as dores, mas ajudar-nos a enfrentá-las com o realismo e a esperança que a vida nesse mundo requer, na perspectiva da graça e do

amor de Deus, que padece junto com o sofrimento da humanidade. Ora, mas esse Jesus em nome de quem declaramos, determinamos, fazemos brados de vitória, repreendemos o inimigo, os infortúnios e as doenças que nos assolam, choramos, gritamos, esperneamos, rimos, batemos palma, rolamos no chão, nos declaramos perdidamente apaixonados por ele, não é o mesmo Jesus que disse: “No mundo, passais por afl ições; mas tende bom ânimo; eu venci o mundo” (Jo 16.33)? E tudo isso, lembrando, ele disse aos discípulos para que estes tivessem paz. Porém, será que em nossa compreensão triunfalista da fé e ilusória da alegria, existe lugar para se conceber uma paz que não signifi ca apenas “ausência de confl ito”, mas que se faz presente especialmente nos lugares de dor? Como podemos ser honestos com

Fonte: Depositphotos

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a vida, com as pessoas, com Deus e com nossos próprios sentimentos diante das perdas, e ainda assim, celebrar?

Em lugar de toda a balbúrdia espiritualista, pensadores radicais como Nouwen nos convidam a abandonar a frivolidade do caminho fácil e também do fatalismo e desesperança, a deixar de lado nossos falsos gritos de “Hosana”, ao mesmo tempo em que oprimimos nosso povo fabricando ilusões religiosas e, com elas, crentes imaturos e doentes, para viver nos caminhos de Cristo, romper as cadeias que ele rompeu, sofrer nossas próprias dores, não só as inerentes à vida, mas também aquelas inseparáveis do exercício da fé cristã na vida. Nas palavras de Nouwen:

Cristo convida-nos a permanecer em contato com os muitos sofrimentos de cada dia e a experimentar o começo da esperança e da nova vida, justamente aí onde vivemos, no meio das feridas, dores, falência. (...) terei menor tendência a negar meu sofrimento quando aprender que Deus o usa para moldar-me e atrair-me para mais perto de si. Deixarei de ver minhas dores como interrupções dos meus planos e serei mais capaz de vê-las como meios de Deus fazer-me pronto a recebê-lo. Deixarei Cristo viver junto às minhas dores e perturbações (2002, p. 09).

Anotações__________________________________________

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Fonte: DepositPhotos

O sofrimento que curaMinha própria percepção é de que se Deus não é pessoal e,

por isso, aberto para chorar comigo em minhas tristezas, tampouco será capaz de rir ao meu lado em minhas alegrias ou se regozijar na minha prosperidade. Em Jesus, assim como na experiência de Jó e de tantos outros, não consigo ver um Deus intocável e insensível de tão poderoso que possa ser, mas, por ser tão poderoso, enxergo um Deus que se “rebaixa” se for preciso pra ter compaixão e misericórdia da minha miséria e que caminha

comigo, uma ou dez de milhas, tanto no contexto das minhas dores como de meus maiores prazeres, em meio a alegrias que se conjugam com tristezas.

Esse é o sentido da espiritualidade para Nouwen. Não se resume na simples idéia de realizar performances e sacrifícios para Deus, mas em convidá-Lo a entrar em nossas vidas de modo que Ele possa chorar com a nossa afl ição ao mesmo tempo em que sofremos com as dores de Seu Filho e, conseqüentemente, compartilhemos do sofrimento do amor de Deus por um mundo ferido e proclamemos libertação. Conforme ressalta, “assim como Jesus, quem proclama a libertação é convidado não só a cuidar dos próprios ferimentos e dos ferimentos do outro, mas também a fazer de seus ferimentos uma fonte maior do poder que cura” (NOUWEN, 2001, p. 119). Para Nouwen, um ministro ferido pode e deve ser também um ministro que cura. Mas, para sermos “servos da cura”, antes é preciso identifi car, entender e aceitar nossa própria dor.

“Nenhum ministro pode esconder sua experiência de vida daqueles aos quais quer ajudar”, afi rma Nouwen (2001, p. 127), ao mesmo tempo em que não se pode empregar mal o conceito de ministro ferido defendendo uma forma de “exibicionismo espiritual”. Esse é um tipo de equilíbrio que este autor encontrou contra possíveis

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questionamentos daqueles que porventura acharem que o conceito de ministro ferido é mórbido e doentio, contradizendo, por exemplo, a idéia de auto-realização, auto-estima, auto-preservação, auto-auto, etc., tão usadas no contexto pós-moderno (o que inclui as igrejas). Ou seja, vivemos nossas “vidas espirituais” como alpinistas de egos, parafraseando Philip Yancey.

Conclusão

um modelo para este séculoComo você já deve ter percebido, Nouwen concentrou seus

escritos no fracasso e nas imperfeições, falando de dores, tristezas, perdas e feridas constantemente presentes em sua vida, arriscando-se a gerar comentários e críticas depreciativas daqueles que não compreendiam a vida, sobretudo a vida cristã, da mesma maneira.

Michael Ford, biógrafo de Nouwen, e o escritor Philip Yancey, que dedicou um capítulo do livro Alma Sobrevivente exclusivamente para falar de sua admiração por Nouwen e apontá-lo com um de seus mentores, afi rmam que esse “espinho na carne”, essa profunda dor que ele dizia “encarar nos olhos” e sobre a qual fazia questão de falar em seus textos, possivelmente era resultante de uma homossexualidade reprimida e, não sem muitas lutas, renunciada. Enfi m, o fato mais importante a se tratar com isso é que todos nós possuímos feridas; algumas estão expostas, outras escondemos o

máximo para que ninguém descubra, nos julgue ou aponte-nos como sendo “menos espirituais” por isso. Outras, quem sabe ainda estão obscuras, num campo menos conhecido de nossas vidas.

Foto de Henri Nouwenpor Frank Hamilton.

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Tenho de reconhecer que não estou acostumado e nem gosto de falar de minhas próprias mazelas, nem tampouco de expô-las para que os outros vejam. Mas aprendi com Nouwen que “defeitos e fidelidade não suplantam um ao outro, mas coexistem”. Com Philip Yancey, falando sobre Nouwen, também testemunho meu aprendizado de que sofrimento e alegria podem caminhar juntos, que Deus pode usar todas as situações de nossa vida, até mesmo a dor que nunca vai embora (YANCEY, 2004, p. 328). Até porque, como bem nos faz lembrar o apóstolo Paulo, “o poder se aperfeiçoa na fraqueza”, de modo que “quando sou fraco então é que sou forte (2 Co 12.9,10).

E porque esta espécie de ministro, defendida por Nouwen, pode ser chamado de um “ministro curador”, ou um “ferido que cura feridas”? Vou deixar com que Nouwen mesmo responda com suas palavras, escritas no livro O Sofrimento que Cura:

É curador porque afasta a falsa ilusão de que integridade pode ser dada de um ser para outro. É curador porque não extrai a solidão e a dor do outro, mas convida a reconhecer sua solidão em um plano que possa ser partilhada. Muitas pessoas nesta vida sofrem porque estão procurando ansiosamente pelo companheiro, pelo evento ou encontro que as livrará da solidão. Mas, quando entram em uma casa de real hospitalidade, percebem logo que seus próprios ferimentos devem ser entendidos não como fontes de desespero e amargura, mas como sinais de que têm que caminhar para frente, obedecendo aos sons do chamado de seus próprios ferimentos (2001, p. 133).

Anotações__________________________________________

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Referências bibliográficas

(Indico também outros livros de Nouwen e escritos sobre ele em português)FORD, Michael. O profeta ferido: um retrato de Henri J. M. Nouwen. São Paulo: Paulinas, 2005.NOUWEN, Henri. A Volta do Filho Pródigo. A história de um retorno para casa. São Paulo: Paulinas, 1997a.______. Nossa maior Dádiva. São Paulo: Loyola, 1997b.______. Mosaicos do presente. Vida No Espírito. São Paulo: Paulinas, 1998. ______. Cartas a Marc sobre Jesus. São Paulo: Loyola, 1999a.______. A Voz íntima do amor. Uma jornada através da angústia para a liberdade. São Paulo: Paulinas, 1999b. ______. Oração: o que é e como se faz. São Paulo: Loyola, 1999c.______. Espiritualidade do deserto e o ministério contemporâneo. São Paulo: Loyola, 2000a.______. Crescer: os três movimentos da vida espiritual. São Paulo: Paulinas, 2000b.______. Adam, o amado de Deus. São Paulo: Paulinas, 2000c. ______. O Sofrimento que cura. São Paulo: Paulinas, 2001a. ______. Intimidade: ensaios de psicologia pastoral. São Paulo: Loyola, 2001b.______. Memória viva. Apostolado e oração em memória de Jesus Cristo. São Paulo: Loyola, 2001c.______. Estrada para a paz: escritos sobre paz e justiça. São Paulo: Loyola, 2001d.______. Podeis beber do cálice? São Paulo: Loyola, 2002a. ______. O perfil do líder cristão do século XXI. Belo Horizonte: Atos, 2002b. ______. Transforma meu pranto em dança. Rio de Janeiro: Textus, 2003.______. Diário: o último ano sabático de Henri J. M. Nouwen. São Paulo: Loyola, 2006.______. Ministério criativo. Brasília: Editora Palavra, 2008.______. Tudo se fez novo: um convite à vida espiritual. Brasília: Editora Palavra, 2007.SHAW, Lucy. Henri Nouwen: a escalada para Deus. In: YANCEY, Philip. & SCHAAP, J. C. Muito mais que palavras. São Paulo: Vida, 2005.YANCEY, Philip. Henri Nouwen: o ferido que cura feridas. In: Alma Sobrevivente. Sou cristão apesar da igreja. São Paulo: Mundo Cristão: 2004.

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Teologia e Prática da EspiritualidadeUnidade 12:

O que aprender com Henri Nouwen

Introdução

Inicio fazendo de novo a pergunta da unidade anterior, porém, tentando respondê-la agora de um modo mais pessoal: quem foi Henri Nouwen? Em resumo, usando uma expressão de Zygmunt Bauman (2009, p. 70ss), para mim Nouwen foi um “artista da vida”. Primeiramente porque ele foi alguém profundamente fascinado pela vida e pelas pessoas, por conectar-se e relacionar-se. Parte de sua veia artística está em ter conseguido pintar de modo tão brilhante, sensível e inspirador sua teia particular de relações com a vida e com Deus. Um resumo das coisas que Nouwen mais amava fazer pode ser encontrado, em suas próprias palavras, no Diário de seu último ano sabático: “Escrever livros, fazer amigos, criar comunidade, partilhar histórias” (NOUWEN, 2006, p. 170).

Nouwen foi um santo-homem. Sua santidade estava não em feitos sobrenaturais, mas na forma íntegra com que efetuou as coisas mais naturais da vida - como amar, orar, sofrer, se alegrar, celebrar, morrer. Ele foi um pastor sensível e compassivo, atento a cada encontro e a singularidade de cada pessoa. Mas também foi um ministro vulnerável, ao ponto de escancarar sua vida, suas feridas e limitações de um modo às vezes até constrangedor pra quem o lê.

Foi um discípulo radical e apaixonado por Jesus. Extremamente consciente de sua dependência de Deus e também de seu inacabamento, nunca deixou de estar em busca, a caminho, ansioso por entender o que o Senhor queria para ele e para onde desejava conduzi-lo. A ele cabem as sábias palavras do frei Carlos Mesters: “A luz só se faz é na travessia e na escuridão”. O mais impressionante é que tanto a luz quanto a escuridão de Nouwen serviram como canais de benção e de cura para muitas pessoas. Elas, mais que os livros, são seu maior legado.

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Teologia e Prática da Espiritualidade102

Objetivos

1. Identifi car temas fundamentais da espiritualidade no pensamento de Henri Nouwen.

2. Desenvolver atitudes de compaixão e solidariedade para com a condição humana, desde a perspectiva cristã e pastoral, em situações específi cas.

Por que Nouwen?Porque em Nouwen descobri um modelo de espiritualidade

não focado em performances para Deus, mas em vida, abertura e entrega. Uma vida baseada na honestidade, uma abertura recheada de autenticidade, e uma entrega movida pelo amor e pela paixão de Cristo. Ele foi e continua sendo um modelo atual, pois conseguiu reunir em sua pessoa uma intelectualidade frutífera com o sentimento sincero,

de quem vive intensamente tanto “por fora” quanto “por dentro”, e a experiência da orientação sábia junto com uma postura de constante quebrantamento diante de Deus e da vida. Sua existência foi um protesto contra o superfi cialismo e um rompimento com os dualismos perniciosos que se propagaram no cristianismo. Nele vejo o paradoxo belo de uma coerência desarmônica, de uma resiliência frágil e de uma melancolia esperançosa.

O que aprendi com Nouwen?Dividirei este breve passeio naquilo que aprendi com Nouwen

por temas, que são, portanto, temas importantes na vida e obra deste autor.

Foto de Henri Nouwen por Frank Hamilton.

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1. Vocação Aprendi que, embora seja Deus quem chame, confi rme e

capacite - o que dá um peso enorme à questão -o processo de despertar para e prosseguir em uma vocação não é estático, mas dinâmico. A certeza do caminho vem enquanto caminhamos. Não somos chamados primordialmente para um lugar ou uma função, mas para andar com Jesus em serviço ao seu reino. Isto signifi ca que a pergunta pela vocação nunca será respondida inteiramente; na caminhada estaremos sempre tentando discernir os caminhos.

É o que Nouwen fez sua vida toda, como em sua passagem pela América Latina, ou em sua trajetória de uma carreira acadêmica prestigiada em Harvard para uma vida fora dos holofotes entre os defi cientes da Arca, em Toronto. Assim ele resumiu: “Tentei discernir a voz de Deus; e, no meio de uma grande variedade de minhas respostas interiores, tentei encontrar o caminho para ser obediente àquela voz”(NOUWEN, 1993, p. xvii).

2. Sofrimento e fragilidadeA vida do ser humano (e do cristão) pode não ser (e como

poderia ser?) só sofrer, mas indubitavelmente envolve sofrer. Aprendi com Nouwen que privar-se ou tentar se proteger do sofrimento é como que privar-se da própria vida - e de tudo o que podemos aprender com ela. Entendi que o sofrimento pode nos fazer mais humildes enquanto gente - ou uma

gente da mais amarga espécie, dependendo de como o encaramos. O sofrimento me aproxima da, e me ensina a aceitar a,

fragilidade de minha condição. Também me aproxima de Deus e me faz vê-lo como um Todo-Poderoso vulnerável, que nem sempre vai me livrar das dores da vida e do mundo, mas que sofrerá comigo sempre que tiver de enfrentá-las, oferecendo inexplicável conforto. Aprendi também que mesmo um ser ferido pode se tornar fonte de cura para as pessoas. E que, como ministro da cura, preciso desfazer-me da ilusão

Fonte: Depositphotos

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Teologia e Prática da Espiritualidade104

de que serei capaz de explicar o mistério da dor do outro ou de aboli-la; ou de que poderei conduzir alguém para fora do deserto sem tê-lo experimentado em minha própria pele.

O sofrimento, assim, pode ser um convite “a depositar nossas feridas e mãos maiores”, e para ver “Deus sofrendo por nós” e nos chamando a compartilhar este sofrer de seu amor por um mundo ferido (NOUWEN, 2003, p. 10).

3. IntegridadeAprendi com Nouwen que ser cristão tem a ver com

desenvolver-se como um ser humano inteiro, aceitando-se a si mesmo como amado de Deus, da maneira como se é e com a vida que lhe foi dada. Isto não significa que tenho que me resignar a um modo de ser torto. Pelo contrário, implica que toda a minha vida pode ser

abraçada como um processo em que, pela graça, estou a caminho de me tornar a pessoa que Deus projetou; nada vem fácil ou é instantâneo e nem se confunde com o meramente superficial. Parte-se, portanto, da compreensão de que o ser como um todo, bem como “tudo na vida, por mais insignificante ou difícil que possa parecer, abre-nos para a obra de Deus em nós” (NOUWEN, 2003, p. 15).

4. Alegria e tristeza Na vida e pensamento de Nouwen, como já disse antes, pode-

se notar um rompimento com dualismos perniciosos. Dentre eles o dualismo que opõe alegria e tristeza. Em nosso mundo, costuma-se pensar que a alegria não pode conviver na mesma casa em que a tristeza está. Assim, a alegria significaria ausência de tristeza e a tristeza, ausência de alegria. Quando, porém, olhamos para a vida em sua complexidade, vemos que muitas vezes elas andam juntas e estão até misturadas. E diria mais: a alegria que se vive se torna mais profunda quando se conhece o que é tristeza.

O próprio Jesus, como Nouwen (1997, p. 128) diz, “foi o homem das dores, mas também o homem da total alegria”. Ele não

Fonte: Depositphotos

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veio eliminar as dores, mas ajudar-nos a enfrentá-las com o realismo e a esperança que a vida nesse mundo requer, na perspectiva da graça e do amor de Deus, que padece junto com o sofrimento da humanidade.

Ora, mas esse Jesus em nome de quem declaramos, determinamos, fazemos brados de vitória, repreendemos o inimigo,

os infortúnios e as doenças que nos assolam, choramos, gritamos, esperneamos, rimos, batemos palma, rolamos no chão, nos declaramos perdidamente apaixonados por ele, não é o mesmo Jesus que disse: “No mundo, passais por afl ições; mas tende bom ânimo; eu venci o mundo” (Jo 16.33)? E tudo isso, lembrando, ele disse aos discípulos para que estes tivessem paz. Porém, será que

em nossa compreensão triunfalista da fé e ilusória da alegria, existe lugar para se conceber uma paz que não signifi ca apenas “ausência de confl ito”, mas que se faz presente especialmente nos lugares de dor? Como podemos ser honestos com a vida, com as pessoas, com Deus e com nossos próprios sentimentos diante das perdas, e ainda assim, celebrar?

Em lugar de toda a balbúrdia espiritualista, pensadores radicais como Nouwen nos convidam a abandonar a frivolidade do caminho fácil e também do fatalismo e desesperança, a deixar de lado nossos falsos gritos de “Hosana”, ao mesmo tempo em que oprimimos nosso povo fabricando ilusões religiosas e, com elas, crentes imaturos e doentes, para viver nos caminhos de Cristo, romper as cadeias que ele rompeu, sofrer nossas próprias dores, não só as inerentes à vida, mas também aquelas inseparáveis do exercício da fé cristã na vida. Nas palavras de Nouwen (2003, p. 9):

Cristo convida-nos a permanecer em contato com os muitos sofrimentos de cada dia e a experimentar o começo da esperança e da nova vida, justamente aí onde vivemos, no meio das feridas, dores, falência. (...) terei menor tendência a negar meu sofrimento quando aprender que Deus o usa para moldar-me e atrair-me para mais perto de si. Deixarei de ver minhas dores como interrupções dos meus planos e serei mais capaz de vê-las como meios de Deus fazer-me pronto a recebê-lo. Deixarei Cristo viver junto às minhas dores e perturbações.

Fonte: Depositphotos

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Teologia e Prática da Espiritualidade106

Aprendi com ele, portanto, que “o cálice da vida é o cálice da alegria tanto quanto é o da tristeza. É o cálice no qual tristezas e alegrias, dor e felicidade, luto e dança nunca se separam. Se as alegrias não pudessem estar onde as tristezas estão, o cálice da vida jamais poderia ser bebido” (NOUWEN, 2002, p. 42).

5. ComunidadeVida cristã é vida em comunhão. Comunhão que cria a

comunidade a partir do desejo que Deus cria em nós:- O Deus que vive em nós faz com que reconheçamos o Deus em nossos semelhantes-(NOUWEN, 2005, p. 62). Comunidade que se manifesta em formas concretas: no perdão, na reconciliação, no gesto de amor, compaixão, preocupação com o outro, na repreensão e no confl ito, na intimidade, na amizade, no partir do pão. Com Nouwen, aprendi que a eucaristia é muito mais que mero ritual, é um ”gesto humano” que relembra uma presença, a do Cristo com quem me comprometo, e a do irmão e da

irmã com os quais me envolvo por causa de Cristo.

Segundo Nouwen, mais do que a eucaristia, a ”vida eucarística” é que faz a diferença no dia a dia, a cada gole, a cada gesto, como uma celebração constante no seio da graça e na casa de Deus, que existe onde quer que dois ou três estejam reunidos em seu nome. Essa compreensão

permitiu com que Nouwen respirasse e vivenciasse a experiência de ser igreja até mesmo em reuniões íntimas com familiares e amigos. Ele disse:

Todos os dias celebro a eucaristia. Às vezes na igreja de minha paróquia, com centenas de pessoas presentes, às vezes na capela de Daybreak, em Toronto, Canadá, com minha comunidade, às vezes em um quarto de hotel, com alguns amigos, e às vezes na sala de estar de meu pai, apenas ele e eu (NOUWEN, 2005, p. 9).

Fonte: Depositphotos

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O resumo que eu faria da mensagem de Nouwen sobre a comunidade dá o tom de sua espiritualidade:

Não há um só ser humano que não receba o convite permanente para participar do banquete de celebração do amor do pai.

Sua paixão por Jesus e pelas pessoas se expressou em um enorme apreço e fidelidade à Igreja, como pouco se vê em nossos dias. Embora fosse um contemplativo crítico da realidade, era raro ver Nouwen fazendo críticas muito duras ou usando de acidez e sarcasmo para falar da Igreja. Mesmo em sua verve profética era possível perceber uma ternura sábia e um olhar esperançoso. As maiores transgressões de Nouwen eram transgressões de si mesmo, sempre que falava abertamente de seus pecados, idiossincrasias e temores. Essa foi também a sua maior arte, seu jeito de ser discípulo e ser humano, e sua forma de tomar a cruz.

Conclusão

Nestas unidades, aprendemos, a partir do exemplo de vida de Henri Nouwen, seu legado deixado por meio de seus muitos escritos e, em especial, na vida de tantos que por ele foram direta e indiretamente tocados, que a espiritualidade cristã é um caminho de integridade, no qual nos empenhamos em ouvir a voz que nos chama de “amados” e a obedecê-la, por onde quer que andemos, resistindo aos muitos apelos do mundo ao nosso redor. Por ser um caminho de integridade, a vida do discípulo ou do espiritual não é uma vida dividida, mas é uma vida em que corpo e espírito são uma e a mesma coisa, em que os traços da humanidade caída nos perseguem ao mesmo tempo em que perseguimos o caminho de santidade para o qual fomos graciosamente chamados. Esta indivisibilidade, portanto, não nos permite separar tristezas de alegrias, sofrimento de vitórias, assim como no caminho de Jesus não se separam a cruz e a ressurreição.

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Teologia e Prática da Espiritualidade108

Referências bibliográficas

BAUMAN, Zygmunt. A arte da vida. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.NOUWEN, Henri. Gracias. A Latin American Journal. Maryknoll, New York: Orbis Books, 1993.______. A Volta do Filho Pródigo. A história de um retorno para casa. São Paulo: Paulinas, 1997.______. Podeis beber do cálice? São Paulo: Loyola, 2002. ______. Transforma meu pranto em dança. Rio de Janeiro: Textus, 2003.______. Com o coração em chamas. Aparecida, SP: Santuário, 2005.______. Diário: o último ano sabático de Henri J. M. Nouwen. São Paulo: Loyola, 2006.

Anotações__________________________________________

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Teologia e Prática da Espiritualidade

Unidade 13: Espiritualidade e a busca pela felicidade (I)

Introdução

Esta unidade e a próxima abordam a questão da felicidade em perspectivas filosófica e teológica, fazendo relação com a vida e espiritualidade cristãs. Parte do princípio de que, no mundo atual, a felicidade se configura menos como princípio e telos (ou finalidade de existência) do ser humano, e mais como uma busca e/ou uma ambição, da qual jamais se deve perder a esperança de um dia encontrar, mesmo que num relance momentâneo, inacabado e fugídio. Dessa forma, ao comparar essa busca e seus ideais com a perspectiva cristã, analisar-se-á o tema da felicidade a partir de sua relação com três eixos hermenêuticos: a realidade, o outro e Jesus Cristo. Uma das considerações finais, que veremos na unidade seguinte, é a de que, para o cristão, felicidade não é objeto, nem fim e nem pretexto, mas fruto (não casual e não artificial) do encontro com Deus (consigo e com o outro) no caminho das desventuras bem-aventuradas da vida.

Objetivos

1. Conhecer algumas das maneiras de se conceber a felicidade no mundo atual.

2. Identificar na realidade, no outro e em Cristo pontos de partida para uma análise e percepção possíveis da questão da felicidade.

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O ser humano e a busca pela felicidade

A chave para a felicidade e o antídoto da miséria é manter viva a esperança de fi car feliz (Zygmunt Bauman).

Dentre todas as buscas e ambições humanas, a que tem como alvo a felicidade talvez seja a mais comum e recorrente; e é também um dos mais remotos anseios. Os antigos (fi lósofos, poetas, sofi stas, etc.) se ocuparam em responder questões como “O que é a felicidade”, ou “O que é preciso para ser feliz”? Uma diferença básica é que, nos dias atuais, o conceito ou a defi nição de felicidade parece menos importante que o “ser feliz” em si ou o anelo, a busca e “a esperança de fi car feliz”, como diz Bauman na epígrafe acima.

Neste ponto, aliás, parece se encontrar a tese e principal descoberta deste sociólogo em seu livro A arte da vida. Em suas palavras:

Não sendo possível atingir um estado seguro de felicidade, só a busca desse alvo teimosamente esquivo é que pode manter felizes (ainda que moderadamente) os corredores. Na pista que leva à felicidade, não existe linha de chegada (BAUMAN, 2009, p. 17).

Para Bauman, portanto, na era pós-moderna (ou, como ele prefere, líquido-moderna) o “estado” de felicidade foi substituído pela “busca” (sem fi m) pela felicidade. O permanente anseio e a expectativa de vir-a-ser é que consola (ou distrai) o desespero de ainda não ter alcançado, ou quem sabe ter experimentado

somente de relance, por um momento fugidio, essa tal de felicidade. Na busca, porém, impõe-se um “ideal de felicidade” – que varia

de pessoa, caso e circunstância – de onde provém parte da substância dos conceitos. E é impressionante o quanto nossos ideais humanos de felicidade são:

Efêmeros: fundam-se nas vaidades relacionadas ao gozo e ao bem-estar – saúde, bens, status, poder, fama, glória. Tem uma estrutura frágil, portanto, porque sempre de passagem.

Zygmunt Bauman

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Sensualistas: são baseados nas sensações, nos desejos e nas condições que nos permitem experimentar somente o prazer na vida. Felicidade, aqui, é igual a prazer e alegria sempre e dor nunca.

Individualistas: concentram-se no suprimento do “eu” e no suposto “direito” que cada indivíduo tem de ser feliz. O mundo e os outros são meios, muitas vezes, descartáveis: servem-me desde que (e enquanto) me façam feliz.

Ao me deparar com estes (intercambiáveis) ideais e tentando relacioná-los com uma ética cristã, pergunto se o cristianismo é um caminho para a felicidade ou uma antítese da felicidade nestes moldes? Com qual felicidade é possível identifi cá-lo (se é possível)?

Para responder a tais indagações, gostaria de propor aqui três associações (cristãs) básicas da felicidade: com a realidade, com o outro e com Cristo.

A felicidade no encontro com a realidade

De que maneiras a felicidade está relacionada com a realidade? O que é o real? Ele se dá a conhecer?

Para começo de conversa, não há defi nição (e compreensão) possível da realidade que não passe pelo jogo do espelho. Quando

nos olhamos nos espelho, o que vemos: a apresentação de quem realmente somos ou uma projeção distorcida? Alguns hoje dizem que a televisão mostra as pessoas de modo enganoso, assim como as revistas de moda, fi tness, fofoca e pornografi a – tudo por causa dos efeitos da produção e do photoshop: uma corzinha de mais, uma ruguinha e estriazinha de menos, e por aí vai.

Por sua vez, o espelho também produz algo ilusório. Basta pensar

nas muita versões que temos de nós mesmos diante do espelho, a depender do ângulo pelo qual nos fi tamos. Assim também é com a realidade. Segundo Paulo, não vemos as coisas claramente, mas “como

Fonte: Depositphotos

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em espelho” (1Co 13.12). Então, a realidade – “esse conjunto dos acontecimentos designados para a existência” (cf. ROSSET, 2008, p. 29) – é aquilo que existe e acontece não somente como nossos olhos e mente captam, mas muito além deles. A realidade, tal como é, me escapa; ao mesmo tempo, é indelével, porque chamada a se produzir a despeito de todos os esforços feitos para impedi-la, negá-la ou evitá-la.

Ou seja, a realidade é apresentada como aquilo que “é” independente de qualquer conceito, queixa ou rejeição. Da relação que estabeleço com este real depende minha felicidade; à medida que a realidade situa o ser que a (felicidade) deseja. A vida real, portanto, me remete ao inevitável confronto entre a felicidade desejada ou prometida e a felicidade possível.

Se, porém, Bauman estiver certo em sua tese de que a felicidade nunca deixa de ser um alvo desejável aos artistas da vida enquanto estes perseveram na estrada que supostamente conduz até ela, então nem o real, por mais trágico que seja, seria capaz de destruir seu “sonho de felicidade”; no máximo, o que ele pode fazer é adiar o sonho. Neste caso, para os paladinos pós-modernos da felicidade, a esperança (individualista) é a última que morre.

Em todo caso, ainda que não se possa acabar com o sentimento trágico da existência, é possível oferecer o narcótico adequado para

suportá-lo ou sublimá-lo. Clément Rosset, em sua refl exão

fi losófi ca sobre o tema da alegria – que subjaz e pode ser associada ao tema em questão – propõe, em contrapartida, a afi rmação da alegria (que ele chama de “força maior”) enquanto um abraço jubiloso na existência (no real), não importa em que qualidade. A isto ele chama de paradoxo central da alegria: “A alegria é um regozijo incondicional na existência e a propósito da existência” (ROSSET, 2000, p. 22). Para Rosset, a alegria,

nesse sentido, ou é paradoxal ou não é alegria, uma vez que está em contradição com a realidade e consigo mesma, muitas vezes. É um inexplicável e misterioso regozijo que se experimenta, mesmo em

Clément Rosset

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meio ao sofrimento, de tal modo que se torna “impenetrável aos olhos daquele que sente seu efeito benéfi co” (ROSSET, 2000, p. 27).

Já a atitude dos corredores que estão em busca da felicidade, tal como Bauman apontou, Rosset (Ibid.) rotula como sendo uma “negação neurótica”, pois consiste não em se acomodar, mas em negar a realidade, considerando a infelicidade não como inelutável, mas como “provisória e sujeita à eliminação progressiva”. Assim, a alegria proposta por Rosset se situa além do lugar comum da felicidade líquido-moderna, analisada por Bauman; ou poderíamos concluir que tal alegria é uma antítese (uma “força maior”) que a felicidade nesses moldes.

A felicidade no encontro com o outroQuem é o outro? Objeto, meio ou parte integrante de nossa

busca pela felicidade?Bem, este não é um ensaio sobre alteridade, e sim sobre

felicidade. Não pretendo aqui explorar múltiplas compreensões e signifi cados do outro – como Levinas e Buber, por exemplo, já o fi zeram e muito bem – mas apenas situá-lo em relação à busca em questão. Então, no tocante a tal busca, diria, em primeiro lugar, que o outro é tanto aquele que possibilita como o que interdita o “meu” caminho rumo à felicidade. Quero dizer com isso que não há felicidade possível sem a presença (complementar) do outro, tanto no sentido egoísta e privatista – do outro como aquele que promove, aplaude ou inveja a “minha felicidade” – seja no aspecto altruísta da solidariedade e do

companheirismo, do outro que compartilha da vida comigo e só assim ela tem sentido, tanto na alegria, como na dor, como se diz na poesia “Tomara”, de Vinícius de Moraes: “E pense muito que é melhor se sofrer junto que viver feliz sozinho”.

Mas o outro (que pode ser uma mesma pessoa) cumpre essa função dúbia e paradoxal da possibilidade e da interdição. Ser o outro de alguém ou ter alguém como o seu outro

Vinícius de Moraes

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implica, dessa forma, em aceitar e aprender a lidar com as frustrações, decepções e infelicidades provocadas invariavelmente na relação. Nessas horas, na mesma medida em que outrora sentimos necessidade da presença do outro, também sentimos – meses, dias, horas depois (e até simultaneamente) – repulsa e desejo de que ele ou ela vá embora pelas portas do fundo para que, quem sabe, a felicidade retorne pelas portas da frente.

O problema é que, seguindo esse raciocínio, ela não retorna sem o outro – provocador e interruptor da felicidade. Nesse interregno, há uma grande chance de que desejemos pagar um preço cada vez menor nessa relação com o outro. Se ser feliz é o que há de mais importante

na vida, então o outro não passaria de uma peça na engrenagem, que serve unicamente a este propósito. E se não servir, vamos atrás de outro que sirva e satisfaça, mesmo que com prazo de validade – muitos dos casamentos atuais que o digam. Como diz a canção de John Mayer (“I’m gonna fi nd another you”): “Eu vou agora fazer algumas coisas que você não me deixaria fazer, eu vou achar um outro de você”. No mundo em que temos vivido é assim: na mesma proporção em que se descarta um amor, por exemplo,

se consegue outro – só não consigo entender como ainda se pode falar em “amor” nestes termos.

Na perspectiva da fé cristã, o outro é também chamado de “próximo”. Mas o que signifi ca ser próximo de alguém?

Lucas conta uma história emblemática a este respeito. Certa vez, um legista ou perito na lei se aproxima de Jesus e, desejando testá-lo, pergunta acerca do caminho para a vida eterna. Jesus, por sua vez (e como de costume), responde com outra pergunta: “O que diz a lei?”. Então o legista cita o mandamento do amor (cf. Levítico 19.18), que termina com um “ame teu próximo como a ti mesmo”. Quando Jesus

John Mayer

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confirma ser este o caminho, dizendo “vá, faça isso e encontrarás vida”, vem a pergunta: “Quem é o meu próximo”?

Com a nova pergunta em mente, Jesus conta então a parábola do samaritano (ver Lucas 10.29-37). Todos já conhecemos o enredo da parábola; o que me interessa destacar aqui é a pergunta final de Jesus diante da história e a resposta do legista. Jesus pergunta qual dos três caminhantes (se o sacerdote, o escriba ou o samaritano) foi o próximo do homem quase morto à beira do caminho. A resposta do legista (embora lacônica no que diz respeito à pessoa do samaritano) vai direto ao ponto: “Foi aquele que deu prova de bondade para com ele”.

Como comenta Segundo Galilea, o samaritano foi irmão do ferido. E assim foi não por sua religião (o levita e o sacerdote eram religiosos, o samaritano era considerado herético), nem por sua raça (tida como impura e inferior por parte dos judeus), mas por sua bondade e dedicação aquele homem. Assim, nas palavras de Galilea (1979, p. 47): “O meu próximo não é aquele que compartilha minha religião, minha pátria, minha família ou minhas ideias. O meu próximo é aquele com o qual eu me comprometo”.

Conclusão

A felicidade, na perspectiva cristã, é incompatível com os caminhos do privatismo pós-moderno; de igual modo, não se equipara à hipocrisia e alienação de representações religiosas como as da parábola. Afirma, sem ser piegas, a necessidade do outro, assumindo e reconhecendo sua condição (demasiado humana) de provocador e interruptor da felicidade. Mas, mais do que requerer o outro para mim, sinto-me estimulado por esta perspectiva a ser o outro, o próximo, de alguém. Só que, quando isso acontece, a felicidade deixa de ser um fim, como veremos na unidade seguinte, que é uma continuação deste mesmo assunto. Até breve!

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Referências bibliográficas

BAUMAN, Zygmunt. A arte da vida. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.GALILEA, Segundo. Seguir a Cristo. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 1979.ROSSET, Clément. O real e seu duplo. Ensaios sobre a ilusão. 2ª ed. revista. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008._______. Alegria: a força maior. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.

Anotações__________________________________________

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Teologia e Prática da Espiritualidade

Unidade 14: Espiritualidade e a busca pela felicidade (II)

Introdução

Finalizar esta discussão com a questão da felicidade de Cristo é fascinante e, ao mesmo tempo, muito difícil. Isto, porque entendo que a felicidade em perspectiva cristica é um paradoxo. Nesse sentido, é insufi ciente (e até desonesto) sair por aí dizendo coisas como “só em Jesus encontramos felicidade” ou “vem ser feliz com Jesus”. Afi nal, no “frigir dos ovos”, como dizem por aí, o que isto signifi ca? Que espécie de felicidade é essa?

Bem, Jesus afi rma (não como promessa, mas como um tipo de conforto realista aos discípulos) que eles seriam felizes – abençoados ou bem-aventurados – enquanto vivenciassem uma série de situações nada confortáveis e que, até por isso, estão e sempre estarão em franco contraste com o entendimento mais ou menos comum que as pessoas têm de felicidade. Vejamos alguns trechos deste discurso – conhecido como “As bem-aventuranças” – na tradução “Th e Message”, de Eugene Peterson.Eugene Peterson

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Segundo Jesus, felizes são:

...aqueles que se encontram no fi m da linha. Com menos de si mesmo, sobra lugar para mais de Deus e de sua lei.

...aqueles que sentem terem perdido o que há de mais precioso para eles. Só assim poderão ser abraçados por Aquele para o qual são o que há de mais precioso.

...aqueles que desenvolveram um bom apetite por Deus. Sua comida e bebida serão a melhor refeição que já tiveram.

...aqueles cujo comprometimento com Deus provoca perseguição. Esta os conduzirá mais profundamente ao Reino de Deus (Mt 5.3,4,6,10).

A felicidade que quero que você visualize aqui tem a ver, antes de tudo, com um modo de ser, no qual está embutida uma aceitação (jubilosa) da irremediável condição em que os discípulos se encontrariam à medida que tentassem ser fi éis aos valores e modo de vida radical que Jesus depois apresenta ao longo do Sermão do Monte. Façamos, em primeiro lugar uma análise desses versículos, para depois pensar nas implicações disso para uma concepção cristã da felicidade.

Objetivos

1. Comparar a noção de felicidade que vige em nosso contexto com a percepção cristã, ou comparar a busca e realidade com o ideal cristão sobre “ser feliz”.

2. Desenvolver um modo cristão de associar (ou de dissociar) o caminho de nossa espiritualidade com os caminhos da felicidade.

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A felicidade no encontro com Cristo

Pensando na felicidade no encontro com Cristo, gostaria de destacar algumas coisas que me chama atenção somente nos trechos de Mateus elencados na introdução.

Primeiro: que ser feliz não tem (diretamente) nada a ver com satisfação (pelo menos não ao modo imediatista, que quer tudo de bom aqui e agora) ou com bem-estar, mas se parece mais com um “contentamento descontente” (lembrando aqui da poesia de Camões).

Segundo: que o que está em jogo não chega nem perto de uma busca pela felicidade, uma vez que não são a pretensão ou a ambição que dão o tom, mas o abandono e a despretensiosidade dos despossuídos.

Terceiro: que, entre perdedores e ganhadores, aqueles que perdem serão consolados com a esperança de encontrar alguma vantagem na desvantagem.

Quarto: que a realização dos felizes não se encontra tanto na conquista da autonomia quanto na graça da dependência. Como disse C. S. Lewis (2005, p. 66), “o próprio Deus é o combustível que nosso espírito deve queimar, ou o alimento do qual deve se alimentar”, e ainda que “Deus não pode dar uma paz e uma felicidade distintas dele mesmo, porque fora dele elas não se encontram”.

Finalmente, o centro da existência dos felizes ou bem-aventurados não está neles, ou em qualquer “vitória” que possam conseguir aqui e agora, mas em Deus e na construção de seu reino, não somente nesta história, mas também dentro dela. Se a felicidade pousa em seus ombros não é pela e nem na busca, mas em meio ao gradativo desprendimento da vida simples e a liberdade interior de quem se

deixa ser guiado mais pelo sopro do Espírito da vida que pelos ecos e ventanias do espírito do tempo.

Na vida cristã, felicidade não é objeto, nem fi m e nem pretexto,

Fonte: Depositphotos

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mas fruto (não casual e não artifi cial) do encontro com Deus (consigo e com o outro) no caminho das desventuras bem-aventuradas da vida. Dessa forma, hoje posso dizer que não sou e nem me sinto tentado a ser discípulo do Cristo pela proposta fi siologista – e propagandística (desculpem o pleonasmo) – para “ser feliz com Jesus”. Primeiro, porque esta “promessa” inexiste no Evangelho. Segundo, porque nem sempre sou, estou ou me sinto alegre ou feliz, e isto não é nem de perto sinal de que deixei de estar com Cristo – está na hora de parar com essa balela doentia! Terceiro, porque você não encontra uma palavra sequer nos discursos de Jesus, ou dos apóstolos, mesmo os de ânimo, que tente mostrar uma realidade diferente do que ela é. O que vejo é um realismo esperançoso e uma esperança realista. Por fi m, ainda tem o nó, que prefi ro não desatar, de pessoas que conheço que garantem ter uma vida saudável e feliz sem nunca ter passado pelo apelo ou dito “eu aceito”. Há mistérios que nem a mais pretensiosa ou competente das teologias pode desvendar. E é muito bom que assim seja, do contrário não seria mais teo-logia e sim diabo-logia.

Tornei-me seguidor de Cristo pela misteriosa e graciosa atração por seu amor, demonstrado na cruz do calvário, e pela consciência que passei a ter, pelo Espírito, do consequente compromisso com o

caminho da cruz. Se encontrei a felicidade nesse caminho é pela simples alegria de a ele pertencer, de poder ser chamado de e amado como fi lho, e pela imensa gratidão e contentamento que de mim brotam – não sem lutas, revoltas ou sofrimentos, afi nal sou humano – em meio às mais variadas circunstâncias.

Para Paul Tillich (1972), o que cria a alegria em alguém é a afi rmação do “ser essencial” desse alguém a despeito de desejos e ansiedades. Não estou seguro se concordo

que a alegria é “criada”, pois isto pode dar certo tom de artifi cialidade ao processo; prefi ro uma palavra que Tillich mesmo usa depois: aprendizado. Lembrando do que disse Paulo aos Filipenses: “Aprendi o segredo de viver contente em toda e qualquer situação, seja bem

Paul Tillich

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alimentado, seja com fome, tendo muito, ou passando necessidade” (Fp 4.12b – NVI). Isso mesmo, alegria é aprendizado. Dito isto, podemos retornar a Tillich (1972, p. 11):

Lucílio é exortado por Sêneca a fazer sua ocupação, o “aprender como sentir alegria”. Não é à alegria de desejos satisfeitos que ele se refere, porque a alegria real é “assunto sério”: é a felicidade de uma alma que é “elevada acima de todas as circunstâncias”. A alegria acompanha a auto-afi rmação de nosso ser essencial, a despeito das inibições provocadas em nós pelos elementos acidentais. Alegria é a expressão emocional do corajoso Sim ao verdadeiro ser próprio de uma pessoa.

Esta alegria se expressa no pranto tanto quanto no riso; e nos mais recônditos de nossa alma, ainda que muitas vezes ferida, triste,

sem horizontes, existe uma alegria escondida, a alegria de que ser é o sufi ciente, pois felizes podem ser aqueles que aprendem que na vida não precisamos ter ou fazer tantas coisas. O mais importante é caminhar, e de modo mais despretensioso possível, para que os sonhos e as pretensões de Deus

encharquem nossos corações, mobilizando-nos para uma jornada mais compassiva, sensível e agradecida.

A alegria de simplesmente ser-em-Deus nos ajuda a experimentar do gozo do trabalho e da vida material com mais naturalidade e menos apego, ilusão e dependência. Vale recordar aqui algumas das constatações do autor de Eclesiastes, de que “não há nada melhor para o homem do que desfrutar do seu trabalho, porque esta é a sua recompensa (3.22), e que “poder comer, beber e ser recompensado pelo seu trabalho é um presente de Deus” (3.13).

Auxilia-nos, ainda, a aprender a como lidar melhor (e até debochar, sem grandes culpas ou neuroses) das eventuais convulsões do ego, vaidades e mesquinharias como sendo parte indissociável dessa arte (torta) de ser humano – levar a sério o pecado não implica em se levar a sério demais o tempo todo, o que pode ser tão doentio quanto o descaso para consigo e suas responsabilidades. Descobrir esta alegria é aprender a viver sabendo que basta a cada dia o seu próprio mal,

Fonte: Depositphotos

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e também o seu próprio bem, e a desfrutar dos pequenos, simples e belos momentos do cotidiano como sendo especiais e repletos de singularidade.

A esperança cristã, contudo, também é paradoxal; nela não se separam o gosto de viver a vida que se tem (aceitação) do anseio pela ressurreição e a vida eterna (inquietude). A ética da aceitação jubilosa, presente na visão trágica de Rosset, por exemplo, se dissocia da visão cristã quando se resigna ao provisório, quase como que dizendo que

essa vida aí, da forma como é, está boa, e não se deve querer nada diferente disso. Segundo Rosset (2000, p. 28,29), a alegria é a “força maior” precisamente porque dispensa a esperança – entendida por ele apenas como atração pelo gozo de uma “outra vida” e, por isso, “força mais do que duvidosa”.

Entretanto, perguntaria a Rosset como a aceitação jubilosa pode resistir sem a esperança? É ela quem a alimenta; a aceitação só pode ser, por assim dizer, “jubilosa”, contente, porque não apenas aceita a provisoriedade em si, mas a provisoriedade do que é provisório. Em outras palavras, quero dizer que a esperança cristã aceita e convive com o provisório, mas não relega a ele a última palavra. Duvido que Rosset fi que jubiloso com minha apropriação de sua aceitação jubilosa.

Por outro lado, a felicidade no encontro com Cristo, como temos visto, também incorpora a dimensão trágica na medida em que não a nega, mas propõe o enfrentamento e a convivência. É parceira das tristezas, injúrias e dores e, às vezes no “olho do furacão”, de modo incompreensível, ressurge como fênix, como “socorro bem presente”. Aqui talvez seja válida a recorrência (ainda que deliberada) a Rosset (2000, p. 27), quando ele afi rma que esse “socorro da alegria” permanece, para nosso bem, misterioso, “impenetrável aos próprios olhos daquele que sente seu efeito benéfi co”. Segundo ele (Ibid., p. 8): “O homem verdadeiramente alegre pode ser reconhecido, paradoxalmente, por sua incapacidade de precisar com o que fi ca alegre e de fornecer o

Clément Rosset

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motivo próprio de sua satisfação”.A felicidade, nesse sentido, faz (e se desfaz) em um misto de

satisfação e alegria com e, aparentemente, sem motivo. Podemos estar obviamente alegres por uma linda razão, mas também “rindo à toa”.

Conclusão

Nas duas últimas unidades observou-se que, das buscas humanas, a busca pela felicidade continua sendo atual e recorrente. Também que esta busca tem a ver com a agenda do tempo em que temos vivido, de tendências sensualistas, individualistas e efêmeras. No confronto com a realidade, com o outro e com Cristo, vimos que a felicidade se vê num jogo paradoxal em que a busca pela felicidade e seus ideais nem sempre condizem com o modo como a vida se nos apresenta nestas diferentes instâncias. E, mais que isso, pensando no caminho da espiritualidade do discípulo, que é um caminho de renúncia e cruz, a felicidade não deve se tornar uma ambição por um suposto direito natural de todo ser humano, mas fruto despretensioso do próprio caminhar. Daí a compreensão de que felicidade não é objeto, nem fim e nem pretexto, mas resultado (não casual e não artificial) do encontro com Deus (consigo e com o outro) no caminho das desventuras bem-aventuradas da vida.

Anotações__________________________________________

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Referências bibliográficas

LEWIS, C. S. Cristianismo puro e simples. São Paulo: Martins Fontes, 2005.PETERSON, Eugene. The Message: The Bible in contemporary language. Colorado: NavPress, 2005.ROSSET, Clément. Alegria: a força maior. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. TILLICH, Paul. A coragem de ser. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972.

Anotações__________________________________________

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Unidade 15: O valor da comunidade na espiritualidade

Introdução

Estamos chegando reta final do curso de Teologia e Prática da Espiritualidade! Para os propósitos desta unidade em espcífico, gostaria de retomar algumas coisas. A tese defendida ao longo das aulas foi a de que a espiritualidade tem a ver com a qualidade de nossa relação com Deus, seja como vida vivida na fé, seja como cumprimento de um dos propósitos de Deus desde a criação, que é o de caminhar e ter intimidade com Ele. Assim, vimos que espiritualidade pode simplesmente ser descrita como o modo de ser do cristão guiado pelo Espírito. Se esse modo de ser é relacional, e se as relações são dinâmicas, então não há regras gerais ou modelos que dêem conta, e teremos tantos “modos de ser” quantas são as pessoas numa comunidade de fé. E porque é relacional e dinâmica, a espiritualidade depende da vida do/com o outro. Nesse sentido, esta unidade vem com o intuito exatamente de falar da importância que a comunidade tem e o papel que desempenha em nossa formação espiritual.

Objetivos

1. Conhecer de onde procede a comunidade cristã e qual seu alvo e razão de existir.

2. Identificar maneiras de como a comunidade contribui efetivamente para a espiritualidade.

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Qual é o lugar do outro na espiritualidade cristã?

Entendendo que investimos uma boa parte da unidade anterior falando sobre o lugar que o outro e a diferença ocupam em nossa caminhada, serei aqui bem pontual e objetivo.

Em primeiro lugar, a espiritualidade só existe por causa do Outro, que é Cristo. Ou seja, Cristo é a razão de ser da espiritualidade cristã; nossa vida é originada pela vida de Cristo, iluminada por sua Palavra, e guiada pelo seu Espírito. “Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente” (Rm 11.36).

Em segundo lugar, essa vida, que é originada, iluminada e guiada em Cristo, encontra seu melhor sentido no encontro com o outro, o próximo, o irmão de caminhada. Meu encontro com o camarada Cristo me conduz inevitavelmente ao encontro com meus camaradas de história, e muitas vezes se dá precisamente através dele.

Desde o princípio Deus fez essa escolha: “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2.18). Dois é sempre melhor que um: na alegria ou na dor, na celebração ou no luto. A esta vida partilhada é que o salmista se refere quando diz: “Como é bom e agradável viverem unidos os irmãos... ali o Senhor ordena a sua benção e a vida para sempre” (Sl 133.1,3).

Espiritualidade, nesta perspectiva, é o encontro com o Outro (Deus) por meio do outro (próximo).

Quando e como passa a existir a comunidade?Existe comunidade quando sou convidado a partilhar a minha

vida com outras pessoas, a partir do evento do Cristo Ressurreto. Eugene Peterson (2007, p. 269) afi rma que a ressurreição é ponto de partida da comunidade do Espírito Santo. A ressurreição e ascensão de Cristo ao Pai conduziram aquele grupo de discípulos à reunião em

Fonte: Depositphotos

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Jerusalém; e Lucas afi rma que eles perseverarem unânimes em oração, com as mulheres e com os irmãos de Jesus (At 1.13-14).

Após a descida do Espírito Santo, o discurso de Pedro e a conversão e batismo de milhares de pessoas, nós vemos agora uma

comunidade do Espírito, também perseverando em oração, no ensino dos apóstolos e no partir do pão. A oração simboliza essa incessante busca comunitária pela vontade e presença de Deus; o ensino apostólico representa o compromisso com a Palavra e com o crescimento na fé; e o partir do pão aponta para a comunhão com Cristo em comunidade.

Logo, o relato de Atos prossegue dizendo que “todos os creram estavam juntos e tinham tudo em comum”; partilhavam seus bens e acolhiam aos necessitados; louvavam a Deus e contavam com a simpatia do povo. E,

enquanto tudo isso ocorria, o Senhor acrescentava, dia a dia, os que iam sendo salvos (At 2.42-47, 4.32).

Então, Peterson parece estar certo. Todos estavam juntos porque algo os juntou, e este algo foi a ação do Espírito movida pela ressurreição do Senhor. Sem a ressurreição não há vida e nem esperança; pela ressurreição o Espírito passa atuar entre os discípulos, e cria a comunidade cristã. A comunhão, portanto, não é algo que se promove artifi cialmente, mas é fruto da ação do Espírito. E o louvor a Deus brota da mutualidade, o “nós” é mais importante que o “eu”, porque o “eu” não existe sem o “nós”.

É um (lamentável) sinal dos tempos que hoje nos foquemos tanto no “eu” (individual) e menos no “nós” (coletivo); a igreja deixa de ser comunidade do Espírito quando ela passa a existir para satisfazer uma “ditadura do eu”: eu sou abençoado, eu sou amado, eu sou próspero, eu fui chamado, o Senhor guia o meu ministério, Deus me cura, me salva, me liberta, me, me, me... Tá cansado? Então imagina Deus...

Fonte: Depositphotos

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A comunidade do Espírito e seus líderes em Atos não estão preocupados criando estratégias para fazer a igreja crescer. Mas ela crescia como nunca, em meio à completa ausência de qualquer plano pretensioso de crescimento. O crescimento se dá em um processo integral natural (apropriando-me aqui das clássicas categorias de Orlando Costas): quanto mais a comunidade perseverava e crescia na comunhão e no ensino (crescimento conceitual e orgânico),

mais isto a impelia a se acercar e a acolher às necessidades do entorno (crescimento diaconal), e a contar com a simpatia do povo. E “enquanto tudo isso ocorria”, o Senhor acrescentava dia a dia mais pessoas à comunidade dos salvos (crescimento numérico).

Então, quando vemos a explosão de crescimento na igreja

evangélica hoje, devemos nos perguntar não tanto sobre métodos, estratégias ou números, mas no quê e no como está crescendo (qualidade). De nada adianta uma igreja grande no tamanho, mas pequena na maturidade cristã.

Anotações__________________________________________

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Fonte: Depositphotos

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Certa vez recebi um email de um aluno, que me perguntava: É teologicamente correto dizer que a igreja é um tipo de sociedade ou comunidade alternativa? Eis minha resposta:

Sem dúvida, em minha compreensão isso não só está teologicamente “correto”, como historicamente tem marcado a vida da igreja-comunidade do reino, daquela que não se rende aos ditames do institucionalismo; sempre que ela resolve ser fiel ao seu chamado de sinalizar o reino no mundo, ela se constitui como uma “sociedade alternativa”, não no modo hippie “paz e amor” dos anos 70, ou no sentido de que seria uma “ilha” apartada do resto, onde podemos nos alienar do mundo, mas enquanto se mantém como ponto de esperança bem no meio do mundo. 

Ali nossos conflitos não são diminuídos porque somos cristãos – como afirma essa versão sofisticada da teologia da prosperidade, anti-crise e sofrimento. Pelo contrário, eles aumentam, à medida que não vivemos de acordo com os termos do mundo e sim do reino, como o próprio Jesus advertiu aos discípulos (João 15), para que não se admirassem se o mundo os odiasse; é que eles não vivem segundo os meandros do mundo, nem os obedecem; se vivessem de acordo com tais termos, o mundo os amaria e os aprovaria. E, veja bem, tudo isso acontece porque estamos no mundo, porque Deus amou o mundo, e porque nos chama a proclamar a reconciliação em nossa vida no mundo.

Penso, assim, que a comunidade deveria ser idealmente a alternativa do Espírito para os cansados, feridos oprimidos  e sobrecarregados do mundo; ser agente profético de denúncia à corrupção e injustiça, sob que forma elas apareçam; ser agente de transformação integral. Por outro lado, sempre que a igreja deixa, por alguma razão, de exercer esse papel, o Espírito, inadvertidamente, não deixa de agir. Isso significa que o Espírito cria a comunidade, mas não é monopólio dela.

Não é Ele quem acompanha os movimentos (e patacoadas) da igreja, mas é exatamente o contrário, a igreja que, como comunidade dos carismas, deve acompanhar o sopro do Espírito, onde quer que ele esteja soprando, e ouvir a sua voz, ainda que não saiba dizer de onde vem e nem para onde vai (cf. Jo 3.8).

No fim das contas, o que interessa não é tanto “para onde”, mas “com Quem” vamos. Vamos com o Espírito!

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Como a comunidade pode melhorar minha espiritualidade?

Primeiro: a comunidade me aproxima do sentido mais profundo de quem eu sou e de quem Deus é.

A comunidade me “engravida de Deus”, de muitas formas: quando adoramos, servimos, escutamos a Palavra, debatemos, ensinamos e somos ensinados, consolamos e somos consolados, confrontamos e somos confrontados, quando carregamos os fardos uns dos outros e quando nos corrigimos mutuamente em amor.

A comunidade me aproxima mais da vontade do Senhor: quando lemos, interpretamos e partilhamos a Palavra e construímos uma hermenêutica comunitária. E como precisamos mais disso, especialmente num contexto autoritário e centrado na palavra de “um” em detrimento da “visão de muitos”.

A comunidade me faz mais humano, pela proximidade com os outros, seus pecados e virtudes e com as minhas próprias. É comunidade de santos-pecadores. E chega um tempo, como lembra Peterson (2007, p. 165), em que é “mais difícil aturar os santos do que os pecadores”. E tem horas que a gente acaba preferindo a companhia de gente de fora da comunidade, que parece ser tão menos complicada. Só que logo a gente sente falta, e percebe que as nossas preferências não necessariamente condizem com as de Cristo.

A comunhão precisa viver as decepções óbvias da convivência, para que ela cresça como uma comunhão entre seres humanos pecadores, mas salvos pela Graça, e não entre anjos ou semideuses. Nas palavras de Dietrich Bonhoeff er (2006, p. 17):

Somente a comunhão que passa pela grande decepção, com seus maus e desagradáveis aspectos, começa a ser o que ela deve ser diante de Deus, começa a apossar-se na fé da promessa recebida. Quanto mais cedo a pessoa e a comunidade passarem por esta decepção, tanto melhor para ambas. Uma comunhão que não suporte e não sobreviva a uma tal decepção, que se agarre a seu ideal quando ele é

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para ser destruído, perde na mesma hora a promessa de comunhão duradoura, e se desmanchará mais cedo ou mais tarde. (...) A pessoa que ama mais seu sonho de uma comunhão cristã do que a própria comunhão cristã, destruirá qualquer comunhão cristã, mesmo que pessoalmente essa pessoa seja honesta, séria e abnegada.

Segundo: a comunidade melhora minha espiritualidade à medida que oportuniza a mútua correção.

Quem tenta viver sua fé fora da comunidade, pode até sofrer menos, mas também progride menos. Fora da comunidade (comunidade digo, e não templo), somos como que senhores de nosso próprio destino, mas não temos com quem contar no momento em que precisamos que a nossa rota seja corrigida. Tendemos a estagnar.

No tocante ao amor fraternal, Paulo se dirige a comunidade de Tessalônica, dizendo (mais ou menos) estas palavras: “Não há necessidade de falar muito, pois vocês já foram bem instruídos quanto a se amar mutuamente; mais do que isso, vocês já estão vivendo isso intensamente, entre os irmãos e irmãs da comunidade. Mas, auto lá! Continuem progredindo; corram como se ainda nada tivessem alcançado. Não tomem esses momentos de fraternidade e mutualidade que há entre vocês como motivo para se orgulharem de si mesmos” (Paráfrase de 1Ts 4.9-10).

Isso deve nos levar a entender a comunhão de amor como um compromisso progressivo, inacabado e em permanente construção, que se dá em e não fora da comunidade.

Neste sentido, é tarefa de todos, pastores ou leigos, homens e mulheres, encontrar “mentores espirituais” na comunidade. Alguém com que você possa partilhar suas dores e alegrias, que possa te ajudar a recuperar a visão quando ela se perde por alguma razão, que possa te abraçar e se compadecer contigo em meio a um grande sofrimento, mas que também seja capaz de apontar seus pecados quando você não mais os enxerga ou reconhece e convidar ao arrependimento.

Este encontro passa pelo reconhecimento de que, por mais ou menos que saibamos, todos carecemos de “guias” espirituais, gente que nos ajude a atravessar o caminho:

Não há como ser peregrino solitário neste caminho. Precisamos desesperadamente de orientação, de direção dentro dele. Hoje, confesso, minha alma necessita mais do que nunca entregar-se a alguém que já conheça e tenha

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experimentado muito mais intensamente os altos e baixos desse caminhar, os atalhos a ser evitados, a direção certa nas muitas encruzilhadas, os momentos iluminados do caminho, bem como a ‘noite escura da alma’, quando as sombras nos convidam a desistir (PEDREIRA, 2005, p. 305).

Nesse sentido, o mentor precisa ser um mestre na acepção da Palavra, que, a exemplo de Cristo, sabe ouvir, dar lugar à partilha, à fala do outro – mesmo que essa fala seja de lamúria confusa – acolher, ser solidário e simplesmente estar ao lado do outro. O mestre não é somente mestre por sua postura austera de quem ministra ou faz um monólogo, mas, sobretudo, por sua presença, que pode ser silenciosa, que muitas vezes faz mais perguntas do que se preocupa em responder logo e despedir “em paz” (e com a consciência tranqüilizada) o discípulo, sua cobaia passiva.

Assim, um mentor é quem pode me ajudar a me conhecer melhor na comunidade, é quem, nas palavras de James Houston (2003, p. 141), me ajuda a “desmascarar certos traços de auto-ilusão e a sondar meu interior mais profundamente do que eu talvez estivesse disposto a fazer voluntariamente”.

Que implicações essa perspectiva de uma espiritualidade comunitária pode trazer?

Tentarei apresentar aqui algumas implicações a partir de três níveis: vida pessoal, vida comunitária, vida em sociedade.

Vida pessoal. Parto aqui de mais uma afirmação de Bonhoeffer (2006, p. 58-59), quando ele diz que: “A pessoa que não suporta a comunhão deve tomar cuidado com a solidão... O contrário também é verdadeiro: a pessoa que não se encontra na comunhão deve tomar cuidado com a solidão”. A implicação, portanto, é: cultivar a solidão ou solitude (estar a sós com Deus), mas não deixar que ela se transforme em individualismo e uma estrada à auto-suficiência; e cultivar a comunhão (estar com o outro), mas não permitir que ela se transforme em “koinonite” (doença), e nos feche para o mundo ao nosso redor (sectarismo).

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Vida comunitária. É preciso fi rmar um compromisso com a nossa comunidade de fé: de amá-la, sustentá-la em oração e fi nanceiramente, e de servir “na força que Deus supre” e conforme a diversidade de dons. Comprometer-se é amar o outro, é pagar o preço de ter de lidar não somente com as alegrias, mas com as decepções próprias de qualquer relacionamento. A Bíblia é repleta de histórias assim, de pessoas que ferem umas as outras, de comunidades que perdem o fi o da meada, mas também da persistência divina, que deve inspirar a nossa persistência em superar as difi culdades no temor de Deus e avançar.

Vida em sociedade. Vivemos num tempo em que as pessoas anseiam por comunidade, pois ela é sinônima de segurança. Como podemos atrair essas pessoas? Não apenas falando bem da comunidade ou da sua igreja, mas vivendo de modo que nossa própria vivência fale mais alto – pelo testemunho público. Sendo abertos e inclusivos, como foi Jesus, seja para conversar com a Samaritana à beira do poço, ou com o Nicodemos na calada da noite. Como diz Eugene Peterson (2007, p. 265), “Jesus não parece muito seletivo na escolha dos fi lhos que ele deixa entrar em sua cozinha para ajudar a preparar as refeições”. E assim precisa ser conosco...

Jesus quando roga ao Pai em sua oração sacerdotal, o faz não somente pelos que são “seus”, mas também por aqueles que ainda não são dele, mas que um dia virão a crer em seu nome por intermédio da Palavra. Isto inclui judeus, gregos, romanos, homens, mulheres, senhores e escravos, patrões e empregados, gente de todo tipo de classe, Gênero, cor e etnia, etc., a fi m de que o mundo, toda a terra habitada, creia em seu nome. “Rogo”, disse ele: “... para

que todos sejam um, Pai, como tu estás em mim e eu em ti. Que eles também estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17.21). Que assim seja!

Fonte: Depositphotos

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Conclusão

Nesta unidade, vimos que a comunidade cristã não é um mero acaso da história, nem é fruto de iniciativas artificiais ou táticas institucionais humanas, mas é forjada pelo Espírito de Cristo, conforme o caráter divino (trinitário) de comunhão eterna. A comunidade nos ajuda a descobrir então o melhor sentido de quem Deus é, e também de quem somos e para que existimos. Porque o Espírito forja a comunidade, não significa que ela seja perfeita. Não, a comunidade é de seres humanos, por isso é imperfeita e ainda marcada pelo pecado. Por outro lado, é ela quem também proporciona a mútua correção e, com isso, a possibilidade de superação das situações em que o pecado age, rumando para o crescimento na fé. Dessa forma, pode-se dizer que se a fé não depende da comunidade para existir, ela sim depende para crescer, amadurecer e dar frutos. Por isso, no começo o Senhor disse: “É bem melhor serem dois ao invés de um”, dois no riso, dois no pranto, na vitória ou na derrota.

Referências bibliográficas

BONHOEFFER, Dietrich. Vida em comunhão. 6ª ed. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2006.HOUSTON, James. Mentoria espiritual. Rio de Janeiro: Textus, 2003PEDREIRA, Eduardo Rosa. Comunhão com o Santo na comunhão com os santos. In: BOMILCAR, Nelson (Org.). O melhor da espiritualidade brasileira. São Paulo: Mundo Cristão, 2005.PETERSON, Eugene. A maldição do Cristo genérico. A banalização de Jesus na espiritualidade atual. São Paulo: Mundo Cristão, 2007.

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Teologia e Prática da Espiritualidade

Unidade 16: Espiritualidade e sexualidade (I)

Introdução

Como vimos até aqui, este curso faz uma abordagem de vários tópicos da espiritualidade, desde os mais trabalhados e constantemente endereçados pela literatura cristã a nosso dispor, até outros praticamente ignorados. Dentre os desta última categoria, está o tema da sexualidade. Aparentemente, para muitos cristãos, é um tema que nem entra na agenda de nossas discussões eclesiais sobre a fé, muito menos teria algo a ver com espiritualidade. Isto, pois, como procuro explicar nestas duas unidades, compreendemos muito mal o tema, bem como os sub-temas com ele relacionados, tais como “corpo” e “espírito”, por exemplo. Logo, desenvolvemos uma visão dualista e esquizofrênica de espiritualidade, que separa aquilo que Deus juntou, que diz ser ruim aquilo que Ele declarou bom. De que maneira superar essa drástica perspectiva em nosso modo cristão de compreensão? Eis o que pretendo discutir aqui.

Objetivos

1. Reconhecer o lugar da sexualidade em nossa espiritualidade.

2. Compreender melhor as noções de “corpo”, “alma”, “carne” e “espírito” na visão cristã.

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Espiritualidade: humanizar ou espiritualizar?

Quero aqui fazer uma abordagem ao tema desta aula por uma via que poderíamos chamar de humanizadora. E por humanizadora aqui estou entendendo uma forma de pensar e agir que promove e viabiliza a vida e o bem-estar do ser humano, e não aquela que o reifi ca e que tem mais a ver com o projeto humanista. Nem toda via humanizadora é cristã, mas, neste caso, é possível pensar que, sendo cristã, deve ser humanizadora e encarnacional.

No campo da espiritualidade, tem a ver com a busca – que endereço em meu livro: Humanos, graças a Deus! (2013) – por uma espiritualidade encarnada, isto é, que não preconiza um improvável

êxodo do espírito (sopro de vida) e do “espiritual” da matéria humana, isto é, da carne – aqui no sentido veterotestamentário, como “sensibilidade da criatura” (SEGUNDO, 1987, p. 85). Com efeito, a defesa básica aqui será de uma perspectiva teológica em que não mais se possam desconectar a espiritualidade

da sexualidade, pois ambas são parte da vida do ser humano e em seu corpo estão integradas. Daí, a espiritualidade “encarnada” pode ser entendida como o modo de vida do ser que, corporal e sexuado, encontra-se no caminho da transformação proposta no Evangelho, que passa pela “encarnação da experiência de Cristo na história e nas atividades cotidianas” (GALILEA, 1982, p. 15).

Antes de tudo, começo relembrando que espiritualidade, para mim, tem a ver com um modo de ser, pensar e agir daquele ser que nasceu de novo, nasceu do Espírito, e agora é “espírito” (ser novo vivente). Isto não signifi ca que se desencarnou ou desumanizou. Pelo contrário, ele/a se re-humanizou no Espírito, nasceu de novo, é novo humano. Jesus, em seu diálogo com o fariseu Nicodemos no Evangelho de João, disse que: “A não ser que alguém se submeta a essa criação original, a criação na qual ‘o vento pairava por sobre as águas’,

Jonathan Menezes

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o invisível movendo o visível, um batismo para a nova vida, não lhe será possível entrar no reino de Deus”, e que “a pessoa que tem um nascimento interior é formada por algo que você não pode ver nem tocar – o Espírito – e se torna espírito vivo” (Jo 3.5-6 – Tradução A Mensagem).

No começo de toda vida espiritual, portanto, está a experiência de criação de um novo ser pelo Espírito, ser este que não mais se rende à sua própria vontade, mas à vontade do Pai, revelada em sua Palavra e encarnada na Pessoa de Jesus Cristo.

Na prática, porém, “espiritualidade” é um tema muito mal-elaborado e também muito mal-compreendido. Nossa forma

de compreender e elaborar nossas “espiritualidades” é marcadamente cultural. E nossa matriz cultural de concepção da espiritualidade ainda, salvo exceções, é platônica e dualista. O platonismo (ou o neoplatonismo) fez um grande estrago na visão (teológica) cristã (o que inclui a espiritualidade); isto, pois negou a corporalidade (como dimensão essencial humana), a materialidade, nos afastando desse mundo para um plano ideal, transcendente ou futuro. A inevitável associação da palavra com um mundo à parte, para o qual migramos, de tempos em tempos, em busca de enlevo e paz na alma, fez com que essa espiritualidade perdesse qualquer contato mais signifi cativo com a situação vivida. Daí provém muitas das críticas a alguns modelos de espiritualidade como sendo “alienantes”, “desencarnados”, sem repercussão na vida e sem conexão com a missão. Daí a necessidade de superar

nossos dualismos e esquizofrenias platonizantes.Essa superação, porém, segundo certa interpretação, seria

algo improvável, pois o próprio Paulo havia gerado um dualismo

MarioneteFonte:Wikimedia Commons

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permanente à fé. Há uma confusão, nesse caso, entre dualidade e dualismo. Dualidade é a convivência inevitável entre dois elementos distintos, dois modos de existência ou orientação da vida – como o de Carne e de Espírito. O dualismo, aqui entendido, indica uma polarização entre dois elementos – bem e mal, matéria e alma, o que gera uma esquizofrenia, pois a pessoa vive no corpo, mas é ensinada que mais importante é a alma; seu ser é corporal, mas o espiritual pertence à dimensão do transcendente, onde somente o espírito ou a alma são elevados. Ao corpo é relegado o status de habitat do pecado – especialmente os ligados à luxúria.

O equívoco desta percepção está não apenas de subtrair a materialidade da espiritualidade, mas em atribuir responsabilidade pelo pecado – ou a lei que habita em nossos membros, como diria Paulo (Rm 7) – somente à corporalidade. É um equívoco,

pois o entendimento paulino de carne provavelmente advém da compreensão do AT, que engloba o ser humano como um todo-indivisível. Segundo José Comblin (1990, p. 77), em Paulo “carne” não signifi ca apenas o corpo como que distinto da alma, mas “o homem todo na sua fraqueza, mortalidade, tentação de pecado. Assim, a carne está mais no intelecto e na vontade que na matéria”. Ser “carne” e ser “espírito”, nesse aspecto, são modos coexistentes, embora distintos, de vida. O primeiro é o modo de quem busca

sufi ciência em si, e o segundo que encontra a sufi ciência em Cristo.

Como esclarece Gottfried Brakemeier (2002, p. 118),Se o ser humano, à parte da fé, é integralmente carnal, com inclusão de

seu espírito, o corpo já não mais pode ser o exclusivo culpado do pecado. Não se pode incriminá-lo de segurar a pessoa nas esferas inferiores do pecado e de impedir a ascensão a Deus. O pecado é ‘ato coletivo’ de todas as faculdades humanas, com destaque à vontade, ao coração, ao espírito.

Jeremias (capítulo 17) foi quem disse que o pecado de Judá estava gravado no coração com ponta de diamante. A palavra aqui

Gottfried Brakemeier

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usada diz respeito a uma ofensa, não verbal, mas “gravada” no coração (centro da vontade e decisão do ser). Tem uma dimensão

espiritual, mas aqui é identifi cado com coisas muito concretas no povo de Israel (idolatria, injustiça, impiedade). Como se Deus estivesse dizendo: “Para onde você vai, olha ou toca, fi ca ali um rastro do teu pecado. Se as tuas ações não o refl etem, seu coração já o faz”. Então isso afeta a integralidade de nosso ser; não somente uma parte ou área da vida, como os dualistas insistem em querer nos fazer crer. Como ressalta Comblin (1990, p. 77), “no evangelho cristão tudo no homem é corporal,

tudo é espiritual, tudo é alma. Não há nada fora do corpo. Pois o espírito está também no corpo, ele é o corpo humano como orientado sob a moção de Deus”.

Leslie Newbigin (Apud. BOSCH, 1979, p. 13) chamou a visão dualista de espiritualidade de Pilgrim’s Progress Model (o modelo do peregrino), cujo ponto de partida é de não-envolvimento e escape do mundo. Já David Bosch chamou esse tipo de espiritualidade de espiritualidade monofi sista – pois o Cristo dessa espiritualidade é de

uma natureza só, a divina. Ele prossegue dizendo que

Levou muitos e muitos séculos para que chegássemos à conclusão que o homem não pode ser dividido em uma psyche (alma) e uma soma (corpo), que muita doença envolve tanto uma quanto a outra. Embora tenhamos achado que fi zemos um progresso realmente tremendo descrevendo certas doenças

como ‘psicossomáticas’, este mundo duplo revelou que não fomos bem-sucedidos em superar nosso pensamento dicotômico. Tampouco fomos bem-sucedidos em vencer essa dicotomia em nossa teologia (BOSCH, 1979, p. 16).

Ouvimos de alguns que não se pode nem “humanizar”, nem “espiritualizar” as coisas – cacoetes do discurso evangélico que

Bishop Leslie Newbigin

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denotam nossa compreensão média de espiritualidade, ainda dualista, pois separa o humano do espiritual e o espiritual do humano – o mesmo se poderia dizer da santidade.

Mas quem é o santo? Não é um anjo ou ser espiritual ou elevado que se desumanizou. Antes, é um ser humano que encarnou a vida de Deus, e que tornou concreta a obediência ao Deus da vida.

Então, sem novidades nisso, nossa espiritualidade continua desprezando a imanência e estigmatizando o corpo – embora toda a eletricidade, as fortes emoções, as fruições e pirações espirituais ela sinta no corpo. Os desejos, os ímpetos e as paixões, porém, prosseguem debaixo de muita desconfi ança.

Conclusão

Resultado disso tudo, em suma, é que a sensualidade só é licita no universo das sensações espirituais, mas não no da sexualidade. Neste ínterim, a espiritualidade não pode se desenvolver na mesma casa em que dormita a sexualidade, por isso ou transportamos a espiritualidade para outro lugar – se no corpo ou fora do corpo, Deus o sabe – ou fazemos de tudo para manter adormecidos os estímulos à sexualidade, tentando anulá-la no ser. Temos, assim, de um lado, uma sexualidade desespiritualizada (neologismo) e uma espiritualidade assexuada e, como tal, desencarnada. O problema disso tudo é, de

novo, que continuamos criando gente mais esquizofrênica, doente e mal resolvida, com rostos envernizados num ambiente altamente hipócrita de negação, culpa, sublimação e vigilância. E as pessoas vão fi ngindo que são felizes com seus casamentos sexualmente mornos, com seus namoros monitorados (até certo ponto), com suas escapadas culposas, e com a sua escolha por esperar o momento certo e o príncipe ou princesa encantados que Deus reservou, dentre tantos/as pretendentes Carlos Eduardo Calvani

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no mundo, exclusivamente para elas. Como bem analisa Carlos Eduardo Calvani (2010, p. 131),

Sem dúvida alguma, a herança platônica no cristianismo, associada ao terror pela sexualidade, às frustrações sexuais de muitos teólogos patrísticos e à rigorosa e infeliz moral puritana, acarrateram muitos problemas de ordem sexual para as pessoas. somos tão melindrosos nesse assunto que certamente muitos podem ter se escandalizado ao perceber que a Bíblia trata desse tema com bastante naturalidade. Isso é sinal de que há algo doentio em nós e que ainda nos oprime em relação à sexualidade.

Uma espiritualidade sadia começa com o entendimento de que o maior pecado talvez seja o de desnaturalizar, segmentar, segregar

ou esquartejar aquilo que o Criador fez para que se mantivesse unido e declarou como sendo bom e natural. Nossa mentalidade religiosa ou teológica é tão viciada nos preconceitos culturais que somos capazes de aconselhar a pessoa (ou digamos, um casal) para que ore à beira da cama antes do coito nupcial, mas torcemos o nariz e somos moralmente judiciosos quando alguém narra a história de outro alguém que se sentiu excitado (com “tesão”) na igreja durante o louvor ou a pregação. Isso

é esquizofrenia hipócrita e desumanizante, caros/as companheiros/as. E o resultado está bem diante de nós, dentro de nossos simples ou suntuosos templos! Como remediar esta situação? Eu gostaria de sugerir duas coisas na próxima unidade: (a) que rompamos com o dualismo que separa sexualidade e espiritualidade; (b) que abracemos a condição humana na perspectiva com que o próprio Deus a abraçou em Jesus.

Fonte: Depositphotos

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Teologia e Prática da Espiritualidade142

Referências bibliográficas

BOSCH, David. A spirituality of the road. Scottdale: Herald Press, 1979.BRAKEMEIER, Gottfried. O ser humano em busca de identidade. Contribuições para uma antropologia teológica. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 2002.CALVANI, Carlos Eduardo. Cântico dos Cânticos – notas erótico-exegéticas para estudo em comunidades cristãs. In: CALVANI, Carlos Eduardo (Org.). Bíblia e sexualidade: abordagem teológica, pastoral e bíblica. São Paulo: Fonte Editorial, 2010.COMBLIN, José. Antropologia cristã. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1990.GALILEA, Segundo. Renovação e espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 1982.MENEZES, Jonathan. Humanos, graças a Deus! Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2013.SEGUNDO, Juan Luis. Teologia aberta para o leigo adulto. Vol. 2: Graça e condição humana. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 1987.

Anotações__________________________________________

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Teologia e Prática da EspiritualidadeUnidade 17:

Espiritualidade e sexualidade (II)

Introdução

Prosseguindo com a reflexão da última unidade, nesta devemos atentar para a relação entre os temas da teologia, espiritualidade e sexualidade. Você já deve ter percebido que eles estão mais relacionados do que antes imaginava, não? A questão é: por que fazemos tão pouco essa relação? Qual é a razão pela qual nossos líderes e comunidades têm se disposto tão medíocremente (quando o fazem) a discutir esse assunto? Meu palpite tem sido o de que nossa compreensão do tema é fraca; nossa visão da sexualidade e da vida humana (no corpo) é desumanizadora. Ou seja, a razão é mais cultural que teológica – ainda que assuma contornos teológico-doutronários. Como sair desse imbróglio? É o que você deve estar se perguntando. Não tenho respostas prontas pra isso. O que assumi como tarefa pedagógica e pastoral é não ter receio de endereçar o tema – na academia, na sociedade e especialmente na igreja – custe o que custar. A pergunta é: quem está disposto ao mesmo? Espero que você saia destas unidades encorajado a debater o tema com sua comunidade, amigos, irmãos, família e assim por diante.

Objetivos

1. Identificar caminhos possíveis de intersecção entre espiritualidade, sexualidade e teologia;

2. Desenvolver uma nova compreensão de sexualidade e espiritualidade a partir de uma visão humanizadora.

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Repensando nossa visão sobre a sexualidade

No livro Deus sexo, Rob Bell propõe uma síntese interessante sobre a interação entre espiritualidade e sexualidade. Quando levamos

em consideração a indivisibilidade prática – e menos a divisibilidade teológico-doutrinaria – do ser humano, torna-se natural e obvia esta conexão, pois elas estão juntas, queiramos ou não. Então, pensar teologicamente, agir pastoralmente e viver integramente a partir de tal junção torna-se um meio de corrigir rotas esquizofrênicas.

Primeiro, porque as histórias da Bíblia convergem para a “conexão”, de um Deus que a todo o momento deseja relacionar-se com seu povo e sua criação, mas cuja intenção nem sempre é genuinamente correspondida.

Isso, devido aos muitos obstáculos criados pelo ser humano, que o conduziram ora a um relacionamento superfi cial com Deus, de barganha, legalismo e expectativas, ora a uma rejeição prática, à medida que se assentiu ao convite tentador da serpente para ser “como Deus”, declarando, assim, sua (nossa) independência.

Segundo, porque as pessoas de nosso tempo estão cada vez mais “antenadas” a tudo que acontece ao seu redor, e cada vez menos capazes de contrair experiências duradouras e profundas, vivendo, portanto, uma história sem raízes, relacionamentos descartáveis, vidas que não se conectam a outras vidas.

A posição de Bell, todavia, é sufi cientemente clara: você pode, de diferentes maneiras (e o sexo é uma delas), “estar” com um número variado de pessoas e não permanecer conectado a nenhuma; de igual modo, pode-se ter uma gama apreciável de performances rituais e “espirituais” para Deus ou até gabaritar na prova de conhecimentos bíblicos, sabendo a Bíblia “de

Rob Bell

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cabo à rabo”, e não saber absolutamente nada sobre Deus, visto que Deus é amor, e está muito mais interessado na intensidade de nosso amor que na quantidade de nosso conhecimento, sendo o verdadeiro saber – dádiva Divina – qualidade inerente daquele que ama, conforme Deus ama (ágape).

E o amor pressupõe conexão e profundidade. E o sexo com amor é o prazer que conecta, liberta e completa os amantes para serem um do outro e um para o outro. Não foi assim que Deus designou no princípio? Da costela do homem, Deus havia criado a mulher. Eles não apenas tinham a mesma natureza (húmus – pó – humano), mas haviam sido criados para viver em permanente conexão entre si, e com seu Criador. “Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne” (Gn 2.24).

O sexo é uma dessas bonitas e benditas expressões da sexualidade. Duas pessoas diferentes e especiais se unem; seus corpos se tocam, se interpenetram; de duas carnes, uma só se faz. E a conexão não está apenas nos corpos que se juntam, mas nas almas que se encontram (onde está o corpo está a alma). Assim, pode-se dizer como a mulher no Cântico dos Cânticos: “Eu sou do meu amado, e o meu amado é meu”. E assim se completa o desejo do Senhor: pela realização do ser humano, como mais fina expressão de seu amor e presença Nele e com Ele. Logo, esse amor não pode ser algo abstrato ou virtual, como um beijo que se manda pelo Skype ou uma mensagem pelo Facebook. Mas é a presença de Deus reverberando em nós, através de relacionamentos vivos e reais entre pessoas de carne e osso; é o Deus-concoso-aqui-já-sempre.

O pecado, portanto, não habita na sexualidade ou no sexo em si, nem em nada que lhe diga respeito. Ele habita, sim, no ser indivisível. Enquanto o ser estiver corrompido, todas as suas relações também estarão. O amor, por sua vez, é o “vínculo da perfeição”, como diria João. Onde houver amor, haverá o sólido convite e possibilidade para que vivamos a plenitude de Deus com alegria, gozo e liberdade, como expressa a célebre frase de Agostinho: “Ame e faze o que quiseres”. Sem amor nada somos e tudo o que fazemos torna-se sem sentido, parte de uma precária provisoriedade. Ademais, penso que se Deus nos fez sexuados para que, na prática, fugíssemos de nossa sexualidade, esse Deus só pode ser sádico ou um louco.

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Um caminho: abraçar a condição humana

As considerações até aqui feitas são óbvias, básicas e elementares ao pensamento cristão sobre o tema. Mas o óbvio e o básico há muito têm sido negados na prática histórica das igrejas. Penso que o fi lósofo cristão Sorën Kierkegaard há um século e meio, em 1844, compreendeu muito bem o problema do cristianismo com a sexualidade, de modo geral, e com o sexo em particular, quando escreveu:

Todo o problema da importância da sexualidade nos mais diversos domínios tem sido, até o presente, insufi cientemente tratado e, sobretudo, raras vezes no tom justo. Produzir gracejos a este respeito não passa de uma arte bem miserável; fazer de censor é demasiado fácil; extrair daqui sermões, passando por cima da difi culdade, não é menos doentio; mas falar sobre o problema de maneira verdadeiramente humana, eis o que constitui toda uma arte.

Uma arte que os cristãos do século XXI - sobretudo os da igreja brasileira - de modo geral ainda não aprenderam. Para

tanto, precisaríamos levar em consideração a multiplicidade de fatores que envolvem o ser humano, para analisar o sexo não da forma míope e legalista com que há muito temos feito, e sim sob múltiplos pontos de vista. O problema é que buscamos o conhecimento como redenção, paz perpétua, e não como confl ito. Por isso, caímos nos risco de dizer “sexo é...”; “isso não é...”; “isso é pecado”, “aquilo é absoluto”, e assim por diante.

Penso que o sexo foi criado por Deus para ser benção. E ser benção implica ser concebido num contexto de amor e responsabilidade, afi nal de contas “tornar-se uma só carne” não é algo banal, embora em nosso mundo tenha se tornado. O que me encabula demais é que a igreja transformou a sexualidade em sua “pedra de toque” (que, aliás, ninguém pode tocar); ela tem as interpretações corretas e as vias certas a se seguir. Nada pode sair desse eixo, muito menos cabe questionamento. E assim, vamos transformando em maldição aquilo

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que Deus declarou como sendo benção. Cortamos as verdades de Deus do tamanho de nossa mente teológica auto-suficiente e assim perdemos a dimensão de honestidade intelectual, que deveria ser tão cara a qualquer cristão. Tão focados nos costumes e nos dogmas, nos omitimos de nos acercar da realidade e respondê-la com relevância.

Não deveríamos, por exemplo, ser cínicos ao ponto de ficar dizendo “sexo é bom”, do nosso confortável mundo matrimonial, e olhar para os jovens e dizer “mas você não pode, viu”. É como colocar um pote de sorvete, com tudo o que se tem direito, em frente a uma criança, dizer “hum, está muito gostoso”, para em seguida afirmar: “Ah, mas você não pode, porque ainda não tem idade pra comer essas coisas”. É torturante, desonesto e uma negação da vida. Diálogos honestos e conscientes, tanto da realidade, quanto da complexidade que envolve o tema, são necessários. Falar do tema de uma maneira verdadeiramente humana, como diz Kierkegaard, é necessário.

Mas, para falar de maneira humana, é preciso amar e aceitar a humana condição – onde vige tanto a luz quanto as trevas, tanto a porção simbólica quanto a porção diabólica. Pois, como lembra Galilea, o que não pode ser assumido não pode ser redimido. Cristo assumiu nossa condição para, só então, poder redimi-la. E é precisamente aqui que, de acordo com Galilea (1979, p. 23), reside a originalidade e autenticidade da espiritualidade cristã:

Em que seguimos um Deus que assumiu a condição humana, que teve uma história como a nossa, que viveu nossas experiências, que fez opções, que se entregou a uma causa, pela qual sofreu, experimentou êxitos, alegrias e fracassos, pela qual entregou sua vida, esse homem, Jesus de Nazaré, igual a nós menos no pecado, no qual habitava a plenitude de Deus, é o modelo de nosso seguimento.

Abraçar nossa condição é uma forma de humanização da espiritualidade cristã, pois nela somos convocados a assumir jubilosamente quem somos, como e para quê fomos criados, reconhecendo também o desvio em que vige a fraqueza e a deficiência que nos são inerentes. Uma humanidade mais divina (espiritual) e mais humana ao mesmo tempo é aquela que não teme suas obvias deficiências, mas as reconhece; é aquela em que a vacância ou o esvaziamento de poder (humano) é um convite ao poder divino e a um divino caminhar, em que não apenas trilhamos por caminhos, mas

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criamos caminhos onde já não há mais caminho. E esta é uma atitude tremendamente libertadora, pois abandonamos o controle, a ânsia por poder e por dominação, para encontrar o livre caminho do amor.

Outra vez cito Galilea (1983, p. 195):Nós nos humanizamos na medida em que deixamos que Deus seja Deus,

amor gratuito, não passível de manipulação e, por isso mesmo, capaz de deixar o homem ser plenamente homem, também livre e não passível de manipulação.

Conclusão

Finalmente, andar com Deus é o modo mais eficaz e sublime de se humanizar e de se obter dignidade humana. Pois não são nossos recursos, trabalho e inteligência, ou nossas identidades periféricas e de gueto (ser evangélico, ser negro, ser gay, etc.) que nos “dignificam”, mas é a graça que nos dignifica e que dá sentido à vida.

De igual modo, o espírito de gratidão e de gratuidade nos dignifica, à medida que representam a admissão de que fora de Deus não temos mais que uma mera ilusão de realização, enquanto em Deus nos realizamos em simplesmente sermos aceitos como seus filhos e filhas. É na obtenção dessa dignidade em especial que nos capacita para, e legitima a, luta pela dignidade de nossos irmãos e irmãs de caminhada na vida, como um processo recebido, gestado e orientado em e para Deus e sua justiça, vontade e glória.

Referências bibliográficas

GALILEA, Segundo. Seguir a Cristo. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 1979._______. O caminho da espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 1983.

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Unidade 18: Espiritualidade, os pródigos e a juventude.

Introdução

Chegamos à última unidade deste curso. Você perceberá que a forma de escrita e metodologia nela utilizadas são um pouco diferentes das demais. Utilizei a forma narrativa, pois seu ponto de partida e chegada, cuja temática principal é “espiritualidade e juventude”, é a Parábola do Filho Pródigo. Um pré-requesito, portanto, é: antes mesmo de ler o conteúdo da aula, releia e medite sobre Lucas 15.11-32. Dessa forma, o foco do texto será, num primeiro momento, recontar e explorar criativamente a história; num segundo momento, oferecer algumas imagens e percepções interessantes que ela nos traz em particular e; por fim, como releitura, dar um recado específico para a juventude atual à luz das implicações dessa história. Minha expectativa é que você perceba como essa história entrelaça os temas da juventude e da espiritualidade e como ela pode nos ajudar a reencantar nosso modo de olhar para a juventude atual a partir do modo de olhar de Deus.

Objetivos

1. Refletir sobre a relação entre espiritualidade e juventude tendo como ponto de partida a narrativa da Parábola do Filho Pródigo.

2. Identificar, a partir de elementos da narrativa e da atualidade desafios e oportunidades que temos de compreensão e abordagem à juventude atual.

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Preâmbulo

Certa vez, um grupo de religiosos – ou de gente que se considerava bastante justa – viu um de seus mestres acompanhado de uma galera que eles consideravam ter uma “reputação duvidosa”. E vocês sabem o quanto gente religiosa costuma se preocupar com reputação. Então, começaram a fofocar entre eles sobre o absurdo daquela situação. Fico imaginando a fala deles: – “Onde já se viu, este que se diz um dos nossos, andando com aqueles pecadores como se fossem bons e velhos amigos!”. – “Realmente” – disse outro concordando – “como

alguém pode ser considerado ‘justo’ se tem comunhão com gente injusta, impura, que vive uma vida perdida e sem rédeas? É como diz o ditado: diga-me com quem andas e eu te direi quem és”.

Ouvindo atento àquela conversa, mas sem responder às acusações ou se preocupar com os rótulos que recebera só de aparência, aquele homem, um perito em contar histórias, resolveu emendar umas duas ou três parábolas, que falavam de “perdição” – assunto, aliás, que não saía da agenda daquele grupo, afi nal gente que se acha justa demais se preocupa tanto em arbitrar sobre o fato de uma pessoa ser perdida, que se esquece de espalhar a

boa-nova de ser achado – mas também, voltando às histórias, falavam de reencontro, perdão e celebração. Uma me chama a atenção em especial, que gostaria de retratar aqui.

A história recontada...

É a história de um pai que tinha dois fi lhos. Curiosamente ou não – já começo observando – a mãe não aparece. Consideremos a hipótese de que essa mãe pode ter morrido cedo, deixando marido e fi lhos. Só uma possibilidade, pode haver outras. O pai então, um fazendeiro bem-sucedido e rico da região, teve que assumir os dois papéis, sendo mãe e pai, algo que certamente soaria estranho a

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qualquer um de seus contemporâneos.Falando dos filhos. O mais velho era um daqueles tipos

dedicados, trabalhador responsável, fazia tudo direitinho e gostava de ver tudo nos conformes. Perfeccionista que era, quase nunca faltava na escola e era o primeiro de sua turma. Cedo mostrou interesse em ajudar o pai a tocar os negócios da fazenda, mas fez questão de trabalhar duro para mostrar serviço e comprometimento.

O mais novo era o oposto de seu irmão, o típico “ovelha negra” da família. Irreverente, extrovertido, criativo – se focava mais em pessoas que em tarefas – encantado pela música, tinha um “fraco” evidente por mulheres, nunca fez questão de ser o melhor nos estudos, mas sempre dava um jeito de tirar a nota necessária pra “passar raspando”. Ao contrário de seu irmão, nunca demonstrou grande interesse pelos negócios da família. Seu irmão e empregados mais chegados o viam como um “bon vivant” (alguém que vive a vida pra valer), “cabeça de vento”; por vezes era possível ver o mais velho indignado quando pegava o caçula saindo mais cedo do batente só pra contemplar o cair da tarde da varanda ao som de boa música, poesia, vinho e diversão com os amigos até altas horas. Embora reprovasse veementemente o comportamento desregrado do irmão, em seu íntimo, silenciosamente, nutria certa inveja da vida que ele levava...

O pai procurava entender e lidar com o jeitão e as aptidões de ambos, cuidando meio que à distância, tentando possibilitar a vocação de seus filhos, sem frustrar-lhes a liberdade, mas obviamente preocupado com o futuro dos dois, especialmente com o do caçula, que era quem menos dava margem pra intervenção do pai. Certo dia ele lhe deu um susto. Primeiro, quando fez um inusitado pedido: queria antecipadamente a parte que lhe cabia na herança que um dia receberia. O pai, tentando ser generoso e justo ao mesmo tempo, embora desolado e aflito com o significado daquele ato, o atendeu. Dividiu a herança em partes iguais entre os dois filhos. Dias depois vieram o susto e a desolação maiores: repentinamente o filho mais novo surgiu com a ideia de deixar a casa do pai.

O que efetivamente aconteceu e ele partiu para um país distante. Enquanto em casa, vivia com a sensação de que estava desperdiçando a vida, de que havia muito pra ver; quando partiu, foi com um único

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desejo em mente: aproveitar a vida! E quem o condenaria por isto? Não é este o imperativo da juventude? Não estava ele se adequando à sabedoria de Eclesiastes (11.9), que diz: “Jovem, aproveite ao máximo a juventude...”?

Por que a juventude? Talvez porque seja uma fase em que mais avulta a pretensão a auto-sufi ciência do ser humano. Pense em um jovem adolescente, descobrindo um universo de coisas novas sobre si, sobre o mundo... Mas pense também em um jovem adulto, entre seus 25-35 anos, sentindo-se dono de sua vida, vivendo como se aquele vigor fosse durar para sempre, gozando de sua própria produção, como quem faz tudo acontecer por si mesmo. O que ele poderia querer com o Criador?

Mas, a dura realidade (ou a boa notícia, exceto para a geração “Peter Pan” da vida) é que ninguém será jovem para sempre. A juventude e a primavera da vida são vaidade (passageiras/ transitórias/ passam como um vento), diz o questionador de Eclesiastes. Então o conselho é: “Aproveite o máximo dessa vida, viva intensamente, siga os impulsos do teu coração. Mas saiba que não vai passar batido, e você vai prestar contas ao Criador sobre cada pedacinho do que viveu” (ver Ec 11.9-10). Vejam que o autor de Eclesiastes não é contra o prazer e a felicidade. Não é contra aproveitar a vida – afi nal, Ele é o inventor e mantenedor disso tudo, não é? A questão me parece ser a de como

aproveitamos a vida? E sem uma relação de amor ao Criador e tudo o que Ele fez, resta perguntar: o que fi ca disso tudo que temos vivido?

O problema é que havia (e sempre há) muito prazer pra se sentir para possibilidades sempre limitadas de satisfação. A tragédia do homem, lembrando o que disse um sábio padre francês (Michel Quoist), é que ele é limitado em seus meios e ilimitado em seus desejos. Mesmo

sabendo que nada – fora de Deus – pode nos realizar por completo na vida, nós decidimos nos jogar em busca de mais realização, mas nunca estamos e nunca estaremos plenamente saciados. E foi isso que o fi lho fez: consumiu, aproveitou, curtiu a vida “adoidado”, experimentou os

Michel Quoist

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extremos, e, sem se dar conta, torrou toda a grana que tinha. O seu muito virou bem pouco diante da imensidão de possibilidades e das escolhas que fez.

Logo veio uma fome que atingiu toda a região onde ele se encontrava. E ele não havia se preparado pra aquilo. Sem dinheiro, sem teto, sem abastecimento e sem emprego, ele teve que trabalhar pesado – coisa que até então não conhecia, pois nunca tinha feito na casa do pai – tomando conta de porcos. De repente se viu tão esfomeado que já estava até desejando saborear a iguaria comida pelos porcos. Mas nem aquilo podia ter. Foi quando se deu conta do absurdo daquela situação. Resolveu voltar, pedir perdão ao pai, assumir sua transgressão e esperar pela misericórdia de, pelo menos, poder ser achado como mais um entre nos empregados da fazenda do pai.

Alguns dias depois, estava o pai sentado na fazenda de sua casa, exatamente pensando em seu filho, sangrando a dor da distância, corroído pela saudade, aturdido por imaginar que o filho estava perdido, ou quem sabe morto. Fechou os olhos por um momento o cochilou. Acordou com uma revoada de pássaros e a ventania e, na estrada, para além do portão da fazenda, ainda distante, avistou o maltrapilho filho caminhando, ou melhor, cambaleando, de volta pra casa. O coração do velho disparou. Ele não quis esperar, já tinha esperado demais, e saiu correndo ao encontro do filho e, chegando, o abraçou e o beijou. O filho, sem entender muito bem o calor daquela recepção, tentou começar o discurso de retratação que havia preparado. O pai cobrindo-o de beijos e ele, por sua vez, tentando das explicações!

Sem ouvir o que ele dizia, ainda coberto de euforia, o pai gritou aos seus empregados e ordenou: – “Venham, tragam roupas e o vistam. Coloquem o anel da família no seu dedo e calçado em seus pés. Apanhem o melhor e mais gordo carneiro e o assem. Nós teremos festa! É tempo de celebrar! Meu filho está aqui – dado como morto, agora vive! Dado como perdido, agora foi encontrado!”. E foi a maior festança... O que acontece no Skol Beat não chega nem perto da alegria que havia ali.

Mas não nos esqueçamos que havia outro filho, que tinha permanecido em casa. Ele voltava do campo naquele dia, cansado do trabalho. Se aproximando da casa, percebeu um movimento incomum na parte dos fundos, música, gente falando e rindo alto. Logo foi informado que o pai oferecia uma festa em comemoração ao retorno

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de seu irmão pródigo, a quem dava por totalmente perdido. Quando se deu conta, já estava revoltado e, é claro, recusou participar da festa.

O pai, atento a tudo, sentindo a ausência do outro filho, foi atrás dele e tentou conversar. Mas seu primogênito não o ouvia. Só conseguia sentir mais raiva, até que disse: – “Olha pai, por quantos anos eu permaneci aqui te servindo, nunca te dando uma dor de cabeça sequer, e você jamais ofereceu uma festa dessas pra mim e meus amigos?!”. O pai ficou em silêncio por alguns segundos, demonstrando tristeza com aquelas palavras. Mas logo, com misericórdia e paciência, típicas de pai, ele olhou para o filho e disse:

– “Filhinho, você não entende! Você está comigo esse tempo todo e tudo o que é meu é seu também. Mas esse é um momento único, maravilhoso, e temos que festejar! Porque seu irmão estava morto, mas reviveu! Estava perdido, mas foi achado!”. Duvido que ambos tenham voltado para a festa naquele dia...

Imagens e percepções da história...

Essa história é uma das mais impactantes e que melhor resumem o espírito do Evangelho, e o espírito de Jesus Cristo: é a história do amor do Pai nos encontrando onde quer que seja em qual seja a condição em que nos achemos. E nos abraça com um amor que não se pode medir, substituir ou comparar!

Algumas imagens ou representações dessa história me chamam a atenção.

1. A imagem de Jesus, rodeado por gente perdidaAqui vemos a motivação da história: as pessoas com quem

Jesus andava – as ovelhas perdidas de seu aprisco – e o consequente escândalo dos fariseus. Ou seja, a razão de ser da missão de Jesus, era motivo de escândalo para a religião de seus pais. E me pergunto: será que não continua sendo? Quero dizer, será que em grande parte a vocação do nazareno, viva pelo Espírito, não continua sendo uma pedra no sapato para algumas “formas elementares da vida religiosa” (Durkheim) no presente século?

Mas, conhecendo o Evangelho e o que ele revela sobre nós, seres humanos, percebemos que o “X” da questão é precisamente o inverso: não é saber, apontar ou identificar os perdidos da história. A questão é saber quem não é, ou quem nunca foi, perdido...

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Então, antes de tudo, percebe-se que esta é uma história para ninguém em específico e para todo mundo em geral; pois, em alguma dimensão da vida, todo mundo é pródigo (parafraseando Gerson Borges). E é aos pródigos, aos maltrapilhos, aos pobres de espírito, aos pequeninos que o Senhor, paradoxalmente, escolheu convidar para o banquete do reino. Em outras palavras, o que Jesus estava fazendo enquanto andava com aquelas pessoas não é em nada incoerente com o que ele anunciou a vida toda. Tomemos dois exemplos, um de João e outro de Lucas:

“Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai; e dou a minha vida pelas ovelhas. Tenho outras ovelhas que não são deste aprisco. É necessário que eu as conduza também. Elas ouvirão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor” (João 10.14-16 – NVI).

“Naquela hora Jesus, exultando no Espírito Santo, disse: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas dos sábios e cultos e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, pois assim foi do teu agrado” (Lc 10.21 – NVI).

2. A imagem dos dois filhos perdidosPrimeiro, o filho mais jovem. Este era o filho evidentemente

perdido. Por muito tempo se ocultou que ele não era o único. Interpretações mais recentes mostram que o mais velho também estava perdido a seu modo. O mais novo, porém, toma uma decisão impulsiva que tem por trás uma nada estranha filosofia: “Há uma só vida para se viver e não há tempo a perder”.

Baseado em Eclesiastes, capítulo 12, realmente não há. Por isso ele usa a palavra “antes”. Antes do quê? Antes que chegue o inevitável momento da vida em que (o que segue é uma paráfrase dos versos 2-7):

... Não tenhamos mais prazer

... A luz da vida perca seu brilho e seja tomada por uma escuridão sem fim, e nossos olhos já não vejam mais

... Na velhice, nossos corpos já não nos sirvam como antes

... Não tenhamos mais força, e até mesmo aquilo que é relativamente fraco (como um gafanhoto) seja peso para nós

... Que toda aquela potência de antes se transforme em impotência e fragilidade

... E nossos amigos e família comecem a fazer planos para nosso funeral, e os “zés” e “marias” velório da vida comecem a chorar pela

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nossa partida “desta para melhor” (ou pior, quem sabe?).Eclesiastes refere-se aqui, portanto, ao tempo em que ainda

somos jovens, temos vida e vigor de sobra, para que vivamos a vida honrando ao Criador já, sem deixar para amanhã. É bom ressaltar que a velhice aqui é uma metáfora da decadência, do fi m. Alguns têm essa experiência bem antes da velhice. Um acidente ou uma doença podem provocar isso. E como teremos vivido? Então, o que há para viver, o que é possível viver – ou o que o Criador espera que a gente viva – que se decida viver hoje, de preferência já, porque o amanhã não existe ainda e nem sabemos se existirá (para cada um dos viventes). Como já disse o poeta Renato Russo, “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã, porque se você parar pra pensar, na verdade não

há”. O que há depois de hoje? Ora, o amanhã. A pergunta é: para quem?

Dessa forma, o tempo que temos, é o tempo da oportunidade, é hoje. O problema é que essa fi losofi a é traduzida numa valorização excessiva daquilo que, na vida, não nos oferece nada de mais profundo e não nos leva a lugar algum. Então, a questão não é deixar de aproveitar a vida, e sim como aproveitar a vida? O que é melhor levar em consideração? O Pregador é muito claro nesse sentido: leve em alta consideração o Criador, antes que venham os maus dias e neles não

haja mais vida pra se viver.Por isso, é importantíssima no fi lho mais jovem a atitude de

reconhecimento, também crucial a todos nós, em que se admite: “Estou perdido”! Sem isso, não há encontro possível. Quem nunca se sentiu perdido na vida não pode reconhecer a alegria e a satisfação de ser encontrado... É preciso honestidade para se identifi car com o fi lho mais novo, como fez Henri Nouwen (1997, p. 48) quando declarou: “Sou o fi lho pródigo toda vez que busco amor incondicional onde não pode ser encontrado”.

Segundo, falando do mais velho, essa é uma alegria que ele não foi capaz de conhecer. Sua imagem me remete diretamente aqueles religiosos a quem Jesus se dirige nesta parábola: de austeridade, segurança, pureza. De quem decidiu fi car na casa do pai, servindo-o,

Fonte: Depositphotos

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dando sua vida por isso, fazendo o seu melhor. É um exemplo de que é possível estar presente e ainda assim distante. De que é possível até saber muita coisa sobre Deus, sem sequer nunca tê-lo experimentado, em espírito e em verdade. Esse é o drama dessa geração, segundo Marcelo Gualberto (2005, p. 232):

A maioria desta geração segue a Jesus de longe; conhece alguma coisa a respeito de Deus, que está com o coração aberto para o espiritual, mas não conhece a Deus pessoalmente como Senhor e Salvador. A relação estabelecida com Deus é principalmente utilitarista: salvação, sim, mas Salvador, não. Por isso, faz sentido dizer que se trata de uma geração que também tem na espiritualidade um fator de fracasso.

Se fosse analisar sinceramente, na atual circunstância de minha vida, como esta geração, eu diria que estou bem mais próximo do mais velho que do mais jovem... Deus o sabe.

3. A imagem do pai, perdido de amor por seus filhosO que mais tem me chamado a atenção, ao reler esta parábola

ultimamente, é que não somente os dois filhos são as figuras vulneráveis e perdidas da história. O pai também é. Não da maneira dos filhos, é claro; o pai é “perdido de amor”. É essa imagem de Deus que a parábola me revela: a imagem de um Deus de amor, que também se encontra “perdido” em busca de seus filhos perdidos e não descansa até que, finalmente, os encontre. Um Deus que nos ama com um amor incondicional, incansável, imponderável, às vezes tolo, insano e nada justo aos nossos olhos.

Aposto que todos nós já tivemos o sentimento de irmão mais velho, dizendo: – “Eu estou esse tempo todo aqui, ralando, me esforçando pra não pisar na bola, e nunca recebi nada ‘extra’ por isso, enquanto esse meu irmão ferra com tudo, enfia o pé na jaca feio, e ainda é recebido com festa! Simplesmente não é justo!”. Agora eu pergunto: quem disse que o amor é justo? Se o amor fosse justo, como imaginamos que deva ser, o que seria de nós? Como qualquer um de nós poderia receber e dar amor?

É para esse tipo de loucura que Deus está nos chamando, para amar conforme um tipo de amor que o mundo desconhece, que é motivo de espanto, escândalo, e até mesmo frustração. É um amor que não força, não se apossa, agarra ou empurra; é um amor que liberta da obrigação do amor, para a possibilidade do amor. Possibilidade de

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abraçar ou de rejeitar. Por isso amar às vezes dói, por isso nos deixa vulneráveis. Mas ainda é esse amor que nos identifi ca como fi lhos de Deus.

“Filhinhos, não amemos de palavra nem de boca, mas em ação e em verdade. Assim saberemos que somos da verdade; e tranqüilizaremos o nosso coração diante dele quando o nosso coração nos condenar. Porque Deus é maior do que o nosso coração e sabe todas as coisas” (I Jo 3.18-20 – NVI).

Se nossa consciência nos acusa, se nosso coração nos condena, como o do pródigo, lembremos: Deus, o Pai de amor, é maior que nosso coração, e sabe o que é melhor pra mim e pra você...

Recado para a juventude: o Pai quer celebrar!

O cristão não é, pelo menos em tese, um seguidor de leis e códigos morais, e que tem a Bíblia como sua “regra de fé” ou de qualquer outra coisa. Até porque, regra se obedece ou não; ninguém se debruça sobre regras, faz esforço de crítica e discernimento, busca

iluminação através delas ou as trata com reverência. Não. O cristão vive pela fé, sustentado pela e na graça de Deus e em busca de discernimento mediante a escuta: do clamor das necessidades de seu contexto imediato e da voz do Espírito. No que diz respeito à juventude, precisamos nos arrepender e reconhecer que, como

igreja, temos sido negligentes tanto em nossa tarefa de discernimento e compreensão – quem sabe porque nos aferramos demais às “regras”, velhas ou novas – como de acolhimento de suas demandas. Pelo contrário, nos acomodamos cegamente com manutenção, repetição e preservação, evitando a todo custo riscos de qualquer natureza.

Subestimamos nossa juventude, seja quando a rotulamos e marginalizamos como “perdida”, “rebelde” ou “desinteressada”, seja quando abraçamos a causa de arrebanhá-la oferecendo, numa versão subcultural da “sociedade do espetáculo”, menos alimento e mais

Fonte: Depositphotos

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entretenimento. Não é à toa que muitos – refi ro-me aos que não se encaixam no esquema “pão, circo e salvação” – sintam arrepios só de ouvir falar a palavra “Igreja”, ou quando se dão conta de que tem alguém querendo “pregar para eles”. Parafraseando José Comblin, essas ovelhas perdidas do aprisco (da igreja, não necessariamente de Deus) não se mantêm longe dela por razões de distância ou falta de comunicação – até porque, muitas igrejas têm feito “direitinho” a lição de casa de comunicação na era cibernética; se afastam simplesmente porque preferem desse jeito, porque sabem que a igreja tem feito, há um bom tempo, um grande esforço de frustração de suas aspirações

à liberdade, salvo exceções (COMBLIN, 1996, p. 78). Com medo dos riscos da (vivência da e teologia sobre) liberdade, esquecemos quase completamente de seu lugar fundamental no evangelho como uma vocação.

Tem faltado tanto aos jovens “de dentro” do aprisco, como aos alheios à igreja, gente que comunique mais, com intencionalidade e sem fi car “pisando em ovos”, a boa notícia de que o Pai não é contra a vida, contra a festa ou a se aproveitar o dia. Pelo contrário, o Pai

quer ter a chance de poder celebrar a vida conosco como convidado de honra, sem enchê-la de mais peso, castigo ou obrigações, mas oferecendo uma nova noção de compromisso, que tem a ver com vida e não com escravidão. Falta gente com a revelação encarnada e presente para esses jovens de um Deus gracioso, que os convida para uma caminhada de alegria e liberdade no espaço largo de sua casa, que mais que um lugar, é uma condição de existência e relacionamento na qual possam entregar seus corpos, muitas vezes marcados e feridos por nossas escolhas e pela dureza de suas curtas vidas, para serem por Ele sarados e restaurados integralmente. Como lembra Nouwen (1997, p. 123), “a comemoração faz parte do Reino de Deus. Deus não só oferece perdão, reconciliação e cura, como deseja que aqueles a quem esses dons são conferidos o recebam como uma fonte de alegria”.

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Teologia e Prática da Espiritualidade160

Que possamos anunciar para a juventude de nosso tempo a boa notícia de que o Pai quer celebrar e comemorar a vida com eles/as, e que o Pai nos auxilie e impulsione a abraçar nossa vocação como pais e mães de filhos biológicos, adotivos ou na fé. Pessoas a quem Deus ama, filhos a quem Ele nos dá o privilégio de co-amar-gerar.

Para aprofundar...

A volta do filho pródigo, de Henri Nouwen (1997).A espiritualidade pode ser vista, nesta obra prima de Henri

Nouwen, baseada na parábola de Lucas e na obra de arte do pintor Rembrandt, que levam o mesmo nome, como uma constante busca de reconciliação do Divino com o humano; como resultado de um retorno para casa, para os braços ternos do Pai. O Pai, na visão do autor, não é agressivo, nem opressor ou arbitrário, mas compassivo e solidário com a forma humana de ser, tendo paciência paterna de esperar pelo retorno do filho pra casa, uma espera semelhante a do horizonte pelo pôr-do-sol todas as tardes; seja o que for, aconteça o que acontecer, ele estará lá, no mesmo “lugar” de sempre, esperando ansiosamente pelo retorno do amado. Enquanto houver sopro de vida, haverá possibilidade para o arrependimento.

Referências bibliográficas

COMBLIN, José. Cristãos rumo ao século XXI: nova caminhada de libertação. São Paulo: Paulus, 1996.________. Vocação para a liberdade. São Paulo: Paulus, 1998. GUALBERTO, Marcelo. Juventude evangélica: religiosa no discurso, mas incrédula na prática. In: BOMILCAR, Nelson (Org.). O melhor da espiritualidade brasileira. São Paulo: Mundo Cristão, 2005.NOUWEN, Henri. A volta do filho pródigo. São Paulo: Paulinas, 1997.