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Teoria da Constituição

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MARCELO ANDRADE CATTONI DE OLIVEIRA

Teoria da Constituição

1a edição

Belo Horizonte2012

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TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

1ª Edição – 2012 – Initia Via Editora

Copyright © desta edição [2012] INITIA VIA EDITORA LTDA ME

Rua dos Timbiras, nº 2250 – sl. 103-104Bairro Lourdes

Belo Horizonte, MG30140-061

www.initiavia.com

Arte da capa: Eduardo FurbinoRevisão: Amanda Bastos

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial deste livro ou de quaisquer umas de suas partes, por qualquer meio ou processo, sem a prévia autorização do Editor. Vedada a memorização e/ou recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em sistemas de processamento de dados. A violação dos direitos autorais é punível como crime e passível de indenizações diversas.

________________________________________________________________

Cattoni de Oliveira, Marcelo Andrade O48t Teoria da constituição / Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira. - Belo Horizonte : Initia Via, 2012. 268 p. ISBN: 978-85-64912-14-4

1. Direito constitucional. 2. Constituição. 3. Teoria do poder consti-tuinte. 4. Legitimidade. 5. Devido processo legal. 6. Controle jurisdi-cional. I. Título.

CDU: 342.4

________________________________________________________________ Juliana Moreira Pinto – Bibliotecária – CRB/6-1178

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Sobre o autor

Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

Mestre e Doutor em Direito Constitucional pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Estágio Pós-doutoral com Bolsa da CAPES em Teoria e Filosofia do Direito na Facoltà di Lettera ed Filoso-fia della Università degli studi di Roma III. Professor Associado II de Direito Constitucional e de Teoria da Constituição da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.

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Tempo e artista

Imagino o artista num anfiteatro Onde o tempo é a grande estrela

Vejo o tempo obrar a sua arte Tendo o mesmo artista como tela Modelando o artista ao seu feitio

O tempo, com seu lápis impreciso Põe-lhe rugas ao redor da boca

Como contrapesos de um sorriso Já vestindo a pele do artista

O tempo arrebata-lhe a garganta O velho cantor subindo ao palco

Apenas abre a voz, e o tempo canta Dança o tempo sem cessar, montando

O dorso do exausto bailarino Trêmulo, o ator recita um drama

Que ainda está por ser escrito No anfiteatro, sob o céu de estrelas

Um concerto eu imagino Onde, num relance, o tempo alcance a glória

E o artista, o infinito

Chico Buarque/1993

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Para Menelick de Carvalho Netto, meu professor e amigo.Para os meus alunos, razão de ser desta obra.

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Agradecimentos

Para Adamo Dias Alves e David Francisco Lopes Gomes, pela colaboração imprescindível na preparação e organização desta obra.

Para Adriana Campos, Alexandre de Castro Coura, Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia, Alfredo Copetti Neto, Álvaro Ricardo Souza Cruz, André Karam Trindade, Bernardo Gonçalves Alfredo Fernandes, Brunello Souza Stancioli, Cristiano Otávio Paixão Araujo Pinto, Daniela Muradas Reis, Emílio Peluso Neder Meyer, Felipe Daniel Amorim Machado, Flaviane de Magalhães Barros, Flávio Quinaud Pedron, Henriete Karam, Iara Menezes Lima, José Adércio Leite Sampaio, José Luiz Borges Horta, José Luiz Quadros de Magalhães, Juliana Neuenschwander Magalhães, Lenio Luiz Streck, Marcelo Campos Galuppo, Márcio Luís de Oliveira, María Fernanda Salcedo Repolês, Martonio Mont’Alverne Barreto Lima, Rodolfo Viana Pereira e Theresa Calvet de Magalhães, com amizade, admiração e gratidão.

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Sumário

Sobre o autor ................................................................................. 4Agradecimentos ............................................................................. 7Nota do Autor ............................................................................... 10Capítulo I: Estatuto científico da Teoria da Constituição ............. 11

1. A Filosofia como guardador de lugar da racionalidade científica e como intérprete mediador da modernidade cultural e da pluralidade do mundo da vida .................................................................................. 112 . A Filosofia Prática Pós-Metafísica: do uso pragmático, ético e moral da racionalidade prática linguisticamente concebida ......................... 143. Da Filosofia Moral à Filosofia do Direito .......................................... 154. Notas programáticas para uma justificação pós-metafísica da Filosofia do Direito como Filosofia do Direito Constitucional ............................. 195. A Teoria da Constituição como chave interpretativa do Direito Constitucional ...................................................................................... 216. Origens da Teoria da Constituição .................................................. 237. Campo problemático da Teoria da Constituição ............................ 258. Teoria da Constituição e giro linguístico ........................................ 319. Perspectivas da Teoria da Constituição ........................................... 3910. Considerações finais ....................................................................... 43Referências Bibliográficas .................................................................... 44

Capítulo II: Paradigmas jurídico-constitucionais e história do constitucionalismo ...................................................................... 49

1. Introdução ....................................................................................... 492. O conceito moderno de Direito e suas qualidades formais ........... 523. A relação complementar entre Direito positivo e Moral autônoma .. 544. Sobre a mediação entre soberania popular e direitos humanos ... 585. A relação entre autonomia pública e autonomia privada .............. 606. O exemplo das políticas feministas de equiparação ....................... 71Referências Bibliográficas ................................................................... 75

Capítulo III: A constituição entre o direito e a política: novas contribuições para a teoria do poder constituinte e o problema da fundação moderna da legitimidade ................................................... 78

1. Introdução ........................................................................................ 782. A “constituição” na antiguidade e no medievo ............................... 813. Revolução, poder e autoridade: o problema da perda do fundamento absoluto do poder político e as soluções distintas de ambos os lados do Atlântico ......................................................................................... 87

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4. As singularidades da Revolução Americana e seus principais legados para o Constitucionalismo Moderno ................................................ 1025. Distintas leituras da Teoria do Poder Constituinte ao longo dos dois últimos séculos .................................................................................. 1086. Considerações finais ....................................................................... 115Referências bibliográficas .................................................................. 119

Capítulo IV: Validade versus correção: a tese kelseniana da interpretação autêntica ............................................................. 122

1. Introdução ....................................................................................... 1222. O Desenvolvimento da tese da interpretação autêntica .............. 1232.1. A Primeira Edição da Teoria Pura do Direito (1934) .................. 1242. 2. A Edição em Língua Francesa de 1953 ....................................... 1292. 3. A Edição de 1960 ........................................................................ 1322. 4. Sintetizando as teses de Kelsen ................................................. 1373. A Teoria Pura do Direito em crise .................................................. 1413. 1. O Risco da Incoerência ............................................................... 1413. 2. A Insustentabilidade dos Pressupostos Teóricos ..................... 145Referências bibliográficas .................................................................. 150

Capítulo V: Dworkin: de que maneira o direito se assemelha à literatura? ................................................................................... 152

Referências Bibliográficas ................................................................. 182Capítulo VI: Devido processo legislativo e controle jurisdicional de constitucionalidade no brasil ............................................... 184

1. Introdução: a jurisdição constitucional é um poder constituinte permanente? ...................................................................................... 1842. Jurisdição constitucional na crise do estado social ..................... 1873. Justificação teorético-filosófica da jurisdição constitucional ...... 1904. Jurisdição constitucional no marco da Teoria do Direito Constitucional ................................................................................... 1925. Jurisdição constitucional brasileira ............................................. 2076. A inconstitucionalidade da lei federal no 9.868 em face do modelo constitucional brasileiro do controle de constitucionalidade ......... 219Referências Bibliográficas ................................................................. 229

Anexo 1 ........................................................................................ 232Anexo 2 ....................................................................................... 248Anexo 3 ........................................................................................ 253Anexo 4 ....................................................................................... 258Anexo 5 ....................................................................................... 260Anexo 6 ....................................................................................... 262Anexo 7 ........................................................................................ 263

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Nota do Autor

A presente obra é fruto de quase uma década lecionando Teoria da Constituição na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.

Ela é destinada aos alunos, mas também aos professores, sobretudo para aqueles que se iniciam, seja em seus estudos, seja na docência desta disciplina. Espero poder contribuir para seu aprendizado, experiência docente e reflexões.

Para esta obra concorreram muitos interlocutores e companheiros de jornada ao longo dos anos. A muitos quero agradecer expressamente.

Especialmente, agradeço a Adamo Dias Alves e David Francisco Lopes Gomes, que me auxiliaram na preparação e organização do texto para esta publicação.

Como já dito acima, esta obra é dedicada a Menelick de Carvalho Netto, meu professor e amigo, e aos meus alunos de ontem, de hoje e por vir.

Por fim, quero agradecer às editoras da Initia Via por compartilharem este sonho comigo.

Marcelo Andrade Cattoni de OliveiraBelo Horizonte, nos 25 anos

da Assembleia Nacional Constituinte.

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Capítulo I Estatuto científico da Teoria da

Constituição1

1. A Filosofia como guardador de lugar da racionalidade científica e como intérprete mediador da modernidade cultural e da pluralidade do mundo da vida

O presente capítulo parte do pressuposto segundo o qual “os grandes sistemas filosóficos da Modernidade” fra-cassaram tanto diante de críticas internas às correntes que deles se desenvolveram, como no caso do neokantismo e do neohegelianismo, quanto sucumbiram face à crítica ex-terna por parte da Hermenêutica Filosófica,2 da Filosofia Analítica,3 do Pragmatismo,4 do Desconstrutivismo5 e da Teoria dos Sistemas.6

A Filosofia, hoje, como bem afirma Jürgen Habermas, se quiser subsistir e reassumir devidamente a sua importân-cia cultural, deve renunciar à pretensão de permanecer no papel de “indicador de lugar para a ciência e de tribunal da

1 Para o Professor Marcelo Campos Galuppo.2 STRECK. Hermenêutica Jurídica e(m) crise, 2011.3 CALVET DE MAGALHÃES. Filosofia Analítica e Filosofia Política: A di-mensão pública da linguagem 2011.4 HABERMAS. Thuth and Justification, 2005.5 CORNELL; ROSENFELD; CARLSON. Deconstruction and the Possibility of Justice 1992. 6 DE GIORGI. Scienza del Diritto ed Legitimazione, 1998. LUHMANN; DE GIORGI. Teoria della Società, 1991. LUHMANN. Law as a Social System, 2004.

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12 • Estatuto Científico da Teoria da Constituição

cultura como um todo”,7 próprio a uma teoria do conheci-mento fundamentalista, papel, esse, assumido pela Filosofia (ou a ela atribuído) na virada do século XVIII para o século XIX, com a instauração propriamente dita de um “discurso filosófico da Modernidade”.8 No contexto atual de crise geral da Filosofia, isso também vale para a Filosofia do Direito.

Todavia, a crise da Filosofia não implica uma dissolu-ção desta em Literatura, muito menos uma perda da racio-nalidade ou mergulho sem volta na irracionalidade. Contra toda dissolução estetizante, a Filosofia, assim como a Ciên-cia, continua a se diferenciar da mera Literatura e a não se confundir com a Arte, em razão de seu discurso levantar “pretensões de verdade criticáveis”, que podem ser confron-tadas argumentativamente.9 Trata-se, na verdade, de uma crise de certas Filosofias (a da “Consciência” e a da “Histó-ria”) e de certa concepção absolutizada de racionalidade (fundada quer na transcendentalidade do sujeito racional, quer num sentido racional imanente à realidade histórica, ainda que em um sentido dialético).

Com isso, busca–se defender a necessidade de uma re-construção da racionalidade e da Filosofia que leve em con-sideração o giro linguístico, hermenêutico e pragmático.10

Todavia, as razões em se duvidar dos “grandes sistemas filosóficos da Modernidade” são o fato de que eles não são mais capazes de lidar construtivamente com a complexida-de social e cultural que se acentuou na Modernidade, inde-pendentemente das reflexões empreendidas pelos filósofos,

7 HABERMAS. A Filosofia como guardador de lugar e como intérprete. In: Consciência moral e Agir Comunicativo, 1989, p. 19. Ver, também, HABER-MAS. Pensamento Pós-Metafísico: Estudos Filosóficos, 1988.8 HABERMAS. O Discurso Filosófico da Modernidade, 1990.9 HABERMAS. Filosofia e Ciência como Literatura?. In: Pensamento Pós--Metafísico: Estudos Filosóficos, 1988.10 Sobre esse tema, ver OLIVEIRA. Reviravolta Lingüístico-Pragmática na Filosofia Contemporânea, 1996.

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à margem da própria Filosofia, no terreno do mundo da vida. Assim como no campo da Física a Teoria de Newton tornou--se limitada em face dos problemas colocados pela Teoria da Relatividade de Einstein e pela Física Quântica, a Filosofia da Consciência e a Filosofia da História foram negadas, em toda a sua radicalidade, pelo aumento gradual da complexi-dade da sociedade moderna, funcionalmente diferenciada e sem centro. Elas foram submetidas à crítica, quer por uma sociologia de cunho pós-parsoniano, quer pela nova antro-pologia e pela psicanálise, quer em razão do caráter herme-nêutico e, mais ainda, pragmático-linguístico, das formas de vida e da condição humanas no mundo. Tais formas de vida e condições humanas no mundo se desdobram numa acen-tuada autonomização da Arte, da Moralidade, do Direito e das estruturas de personalidade em face da pretensa “nova solidez” iluminista que buscou dissolver os “velhos sólidos”, como diria Bauman,11 legados por uma Idade Média erigida idealisticamente como o “Outro” da Modernidade.12

Defendemos, com Habermas, a concepção segundo a qual a Filosofia, assim como uma concepção comunicativa de racionalidade, reconstruída nos termos de uma “pragmá-tica linguístico-universal” (formal),13 leva, inclusive, à noção segundo a qual racionalidade e normatividade estão impli-cadas, mas não podem mais ser confundidas.

Nesse sentido, a Filosofia, num contexto pós-metafísico,14 deve assumir, no máximo, o papel de um “guardador de lu-gar” das ciências e o de intérprete mediador de uma produ-ção cultural que se fez autônoma em face do mundo da vida.15 11 BAUMAN. Modernidade Líquida, 2001, p. 9.12 LIBERA. A Filosofia Medieval, 1998. 13 HABERMAS. What is Universal Pragmatics?. In: On The Pragmatics of Communication, 1998.14 HABERMAS. Pensamento Pós-Metafísico: Estudos Filosóficos, 1988.15 HABERMAS. A Filosofia como guardador de lugar e como intérprete. In: Consciência moral e Agir Comunicativo, 1989, p. 30 e p. 33.

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Ela deve tomar como campo privilegiado de suas reflexões o da reconstrução das pretensões de validade subjacentes aos atos de linguagem que constituem a malha entreaberta de uma arriscada integração social sobre o pano de fundo de um mundo da vida plural, da crescente diferenciação sistê-mica e de uma acelerada modernidade cultural autônoma.16 Algo que, segundo Habermas, implica, sim, num interesse filosófico em “ver em nossas práticas de justificação sociais mais do que essas meras práticas”17.

2 . A Filosofia Prática Pós-Metafísica: do uso pragmático, ético e moral da racionalidade prática linguisticamente concebida

Como bem pretende mostrar Habermas,18 a concepção de racionalidade prática e racionalidade comunicativa estão im-plicadas, mas não coincidem. A racionalidade comunicativa está assim como que por “detrás” da racionalidade prática, mas também da racionalidade teórica e da racionalidade estética.

Quanto à Filosofia Prática, num nível de justificação normativa que não apela à força factual dos costumes tra-dicionais ou a verdades religiosas,19 cabe considerar as di-mensões da racionalidade prática, seguindo, aqui, ainda que criticamente, a tradição kantiana: um uso pragmático (ade-quação de meios a fins), um uso ético (referido a valores, a for-mas de vida e a questões de vida boa) e um uso propriamente

16 HABERMAS. What is Universal Pragmatics?In: On The Pragmatics of Communication, 1998.17 HABERMAS. A Filosofia como guardador de lugar e como intérprete, 1989, p. 34.18 HABERMAS. Del Uso Pragmático, Ético y Moral de la Razón Práctica. In: Aclaraciones a la Ética del Discurso, 2000, p. 109ss.19 HABERMAS. Pensamento Pós-Metafísico: Estudos Filosóficos, 1988. Ver, também, GALUPPO. Igualdade e diferença: Estado Democrático de Direito a partir do pensamento de Habermas, 2002.

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moral (referido ao ponto de vista da Justiça, da supremacia do correto e do justo sobre o bom e da imparcialidade e da uni-versalidade da validade moral em face do caráter particular, individual, grupal ou comunitário, da perspectiva ética).

Com isso, cabe, pois, reconstruir as várias dimensões que assume a “autonomia” na Modernidade,20 que ultrapas-sam e não podem ser reduzidas, quer à autorrealização ético--política (Republicanismo), quer à autodeterminação moral, ainda que coletivamente exercida (Kantismo), quer à escolha racional sob condições de razoabilidade (Liberalismo).21 Tal complexidade da concepção moderna de autonomia – livre--arbítrio, escolha racional, autorrealização ética, autodeter-minação moral, participação política – só é percebida em suas várias dimensões, como veremos, de uma perspectiva filosófi-co-jurídica propriamente dita,22 pois envolverá a questão cen-tral acerca de como coordenar legitimamente os diversos pla-nos de ação dos membros de uma comunidade política sob as condições sociais e culturais do pluralismo ético e das exigên-cias econômicas e de poder político modernas.23

3. Da Filosofia Moral à Filosofia do Direito

A Moralidade diz respeito ao “ponto de vista da justiça e da imparcialidade” e, como Moralidade pós-convencional,24 diferencia-se da perspectiva das questões éticas (de vida boa), embora não porque os valores éticos não sejam susce-tíveis a uma discussão racional: diferentemente das corren-

20 HABERMAS. Facticidad y Validez, 1998, p. 645.21 HABERMAS. Três Modelos Normativos de Democracia. In: La Inclusión del Outro. Estudios de Teoría Política, 1999, p. 231ss. CATTONI DE OLIVEI-RA. Devido Processo Legislativo, 2006, capítulos 2 e 3.22 HABERMAS, Jürgen. Del Uso Pragmático, Ético y Moral de la Razón Práctica. In: Aclaraciones a la Ética del Discurso, p. 125.23 HABERMAS. Facticidad y Validez, 1998.24 HABERMAS. Consciência Moral e Agir Comunicativo, 1989, p.153.

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16 • Estatuto Científico da Teoria da Constituição

tes ordoliberais, como é o caso do Libertarismo de Nozick,25 aqui se defende a possibilidade de se discutirem publica-mente questões relacionadas ao bem-estar, embora se com-preenda, diferentemente de uma postura utilitarista, que não se pode sacrificar direitos em nome de uma pretensa li-nha de maior vantagem coletiva.

Nesse sentido, moralmente válidas são as normas que possam merecer aceitabilidade racional, sem, contudo, desconsiderar o caráter histórico e limitado da capacida-de de previsão humana. A inserção de uma cláusula ceteris paribus no princípio moral de universalização se faz neces-sária, como mostra Klaus Günther.26 Quanto à viabilidade de tal Moralidade, é necessário considerar, com Habermas, certos déficits de cognição, de motivação e de operaciona-lidade.27 Isso porque a Moralidade exige tanto a capacidade de reconhecimento da validade moral das normas quanto a adequabilidade de um juízo moral em face de uma dada situação. Este processo envolve a necessidade de um senso de adequabilidade sob condições de grande indetermina-ção normativa, já que é necessário submeter as máximas de ação a um juízo de universalização, por um lado, e de adequabilidade, por outro – o que gera problemas cogni-tivos para o agir moralmente. Os problemas de motivação se referem àquilo a que Kant chamaria de “a boa vontade”,28 no sentido de que, embora se possa saber como agir moral-mente numa dada situação, é necessário saber se o agen-te terá a devida motivação de agir conforme ou não o que sabe ser o dever. Quanto a problemas de operacionalidade, o agir moral é restrito às possibilidades de cada agente; há

25 NOZICK. Anarquia, Estado e Utopia, 1991. 26 GÜNTHER. The Sense of Appropriateness, 1993, p. 35.27 HABERMAS. Facticidad y Validez, 1998, p.177ss.28 KANT. Fondements de la Métaphysique des Moeurs. In: Oeuvres Philoso-phiques, v. II, 1981, p. 250.

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questões humanitárias, por exemplo, que necessitariam de condições infraestruturais que ultrapassariam a capacida-de de agir individual ou coletivo.

Ao Direito cumpre preencher esses déficits próprios de uma Moralidade pós-convencional. Enquanto a Moralida-de é um “sistema simbólico”, “de conhecimento”, no dizer de Habermas, o Direito também é um “sistema de ação”. O Di-reito conta com uma infraestrutura institucional que o tor-na mais operativo, o que poderia ser analisado do ponto de vista de sua relação com o poder, no caso, “administrativo”. Por outro lado, a Moralidade abre ao Direito uma dimensão universalizante. Reconhece-se, assim, não uma relação de subordinação do Direito à Moralidade, mas de complemen-taridade e de co-originalidade.29

Nos termos da Teoria do Discurso, o princípio do discurso, segundo o qual “válidas são as normas a que todos os afetados possam assentir como participantes em discursos racionais”,30 aplica-se às normas morais como princípio moral de universa-lização (como “regra de argumentação”) e às normas jurídicas como princípio democrático (como princípio institucional). Ambos os princípios – compreendidos como standards norma-tivos, respectivamente, dos discursos de justificação moral e de garantia das condições institucionais de justificação das nor-mas jurídicas – são complementados por um princípio moral procedimental de adequabilidade e por um princípio jurídico processual de adequabilidade, no nível dos respectivos discur-sos de aplicação, seja moral ou seja jurídico31.

Nesse sentido, enquanto a Filosofia Moral possui como campo próprio de reflexão o assim chamado procedu-ral moral point of view, a Filosofia do Direito tem por tare-

29 HABERMAS. Facticidad y Validez, 1998, p.177ss. 30 Idem, p.172.31 Idem, p.174.

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18 • Estatuto Científico da Teoria da Constituição

fa a “clarificação” do procedural democratic point of view.32 Assim, pelo procedural moral point of view, sob o ponto de vista da Filosofia Moral, questiona-se “quando uma nor-ma é moralmente válida ou justa (justificada argumentati-vo-moralmente por seus afetados)?”e “quando uma norma moralmente válida (justa) é adequada (argumentativo-mo-ralmente) a uma situação concreta?”. Sob o âmbito do proce-dural democratic point of view, característico da Filosofia do Direito, investiga-se “quais as condições institucionais e ló-gico-argumentativas sob as quais uma norma jurídica é pro-duzida validamente?” e “quais as condições institucionais e lógico-argumentativas sob as quais se deve chegar a um juí-zo jurídico-normativo adequado a um caso concreto?”.

Tal divisão de trabalho, que não deve desconsiderar a relação complementar entre Direito e Moralidade, se dá a partir, justamente, da distinção entre argumentação de jus-tificação e de aplicação morais (regidas internamente pelo princípio moral e pelo princípio moral de adequabilidade) e argumentação de justificação e de aplicação jurídicas (insti-tucionalmente garantidas).33

32 HABERMAS; RAWLS. Débat sur la Justice Politique., 1997, p.48. HABER-MAS. Reconciliation Through The Public Use Of Reason: Remarks On John Rawls’s Political Liberalism. In: The Journal of Philosophy, 1995, p. 131. HA-BERMAS. Del Uso Pragmático, Ético y Moral de la Razón Práctica. In: Acla-raciones a la Ética del Discurso, 2000, p. 125. CATTONI DE OLIVEIRA. De-vido Processo Legislativo, 2006.33 CATTONI DE OLIVEIRA. Interpretação Jurídica, Processo e Tutela Juris-dicionais sob o Paradigma do Estado Democrático de Direito. In: Boletín Jurídico de la Universidad Europea de Madrid, 2001.

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4. Notas programáticas para uma justificação pós-metafísica da Filosofia do Direito como Filosofia do Direito Constitucional

O papel da Filosofia do Direito consiste fundamen-talmente na clarificação e na justificação pós-metafísica do procedural democratic point of view ou, em outros termos, na reconstrução34 da autocompreensão normativa do Estado Democrático de Direito, o que envolve a reflexão acerca da chamada tensão interna ao Direito moderno entre factici-dade (pretensão de coercibilidade) e validade (legitimidade democrática).35

A tensão interna ao Direito moderno entre facticidade e validade se reflete na dupla dimensão da validade jurídica e na chamada geração da legitimidade através da legalida-de. Por um lado, tem-se a pretensão democrática segundo a qual os destinatários das normas jurídicas devem ser seus próprios autores; e a pretensão de juízos jurídicos de aplica-ção imparcial das normas jurídicas (legitimidade). Por ou-tro, tem-se a pretensão de coercibilidade legítima do Direito (“vigência” e “efetividade” jurídicas).36

Destarte, o campo problemático da Filosofia do Direi-to, assim considerada, desdobra-se em:

1. uma reconstrução das condições institucionais de um processo legislativo democrático;

2. uma reconstrução de uma teoria da interpretação e da aplicação adequadas (imparciais) do Direito;

3. uma reconstrução do estatuto científico da Ciência do Direito como “guardador” e não como “indica-dor” de lugar.

34 Sobre a noção de reconstrução, ver CATTONI DE OLIVEIRA. Devido Pro-cesso Legislativo, 2006, p. 40.35 HABERMAS. Facticidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo, 1998.36 Idem, p. 90ss.

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20 • Estatuto Científico da Teoria da Constituição

A Filosofia do Direito, antes de tudo, é Filosofia e, como tal, mais uma vez, deve assumir, na seara do Direito, o seu papel de guardador de lugar da ciência (jurídica) e de mediador das questões (jurídico-normativas) que emergem do mundo da vida.

Mais uma vez, a reconstrução e a justificação dos direi-tos e das obrigações jurídicas, da autonomia jurídica, públi-ca e privada, de uma teoria da interpretação adequada e de uma aplicação imparcial do Direito, do estatuto científico da Ciência do Direito, e tantos outros temas correlacionáveis, ressurgem, assim, redefinidos, como problemas centrais da Filosofia do Direito.

Para tanto, sobre o pano de fundo das condições de complexidade e pluralismo da sociedade contemporânea, há de se exigir da Filosofia do Direito uma abertura mais que necessária à Filosofia Prática (Ética, Política, Social e Moral),

à Ciência do Direito e ao próprio Direito, a fim de que a Filosofia do Direito seja capaz de “controlar” os próprios riscos em que pode incorrer – de “perder o pé” da realidade dos processos políticos e sociais – ao pretender assumir um “enfoque normativamente orientado”.

Sob a emergência da atual crise paradigmática do Direi-to, que leva, mais uma vez, à necessidade da pergunta acerca de como considerar a relação entre Estado de Direito e De-mocracia, as questões jurídicas se apresentam fundamental-mente como questões constitucionais. Se antes era inegável a relação histórica entre Filosofia do Direito e Direito Consti-tucional – para isso, bastaria abrir uma página de Kant ou de Hegel, de Kelsen ou de Hart –, hoje se pode ir além e afirmar que a Filosofia do Direito é fundamentalmente uma Filosofia do Direito Constitucional, mesmo porque, atualmente, sob as condições de uma sociedade moderna avançada e que se fez

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não saber quais são e como hoje emergem as questões jurídi-cas, é desconsiderar a importância jurídica e não saber o que é Filosofia do Direito hoje.

5. A Teoria da Constituição como chave interpretativa do Direito Constitucional

Qual a consequência dessa compreensão da Filosofia do Direito como Filosofia do Direito Constitucional, para a Teoria do Direito? A de que a Teoria do Direito deve ser com-preendida fundamentalmente como Teoria da Constituição. Todavia, o que seria Teoria da Constituição hoje? Considera--se que a Teoria da Constituição cumpre um papel central, como chave interpretativa do Direito Constitucional Demo-crático e, por isso, de todo o demais Direito.

Cabe ressaltar, neste ponto, que a Ciência do Direito Constitucional, propriamente dita, é ramo da Dogmática Jurídica. Sua finalidade consiste no estudo teórico-prático, num nível operacional, do Direito Constitucional, epistê-mica e metodologicamente informado e conformado pelas reflexões teoréticas empreendidas no âmbito das chamadas teorias que estudam o político da perspectiva de sua institu-cionalização jurídico-social.

Nesse sentido é que, na atualidade, após o “giro her-menêutico-pragmático”,38 torna-se possível falar, inclusi-ve, no desenvolvimento de uma “Metódica Jurídico-Consti-tucional”, nos termos apresentados por Friedrich Müller,39 de uma “Hermenêutica Crítica” do Direito Constitucional, como a proposta por Ronald Dworkin;40 de uma “Teoria da

38 OLIVEIRA. Reviravolta Lingüístico-Pragmática na Filosofia Contemporâ-nea, 1996. HABERMAS. Thuth and Justification, 2005.39 MÜLLER. Discourse de la Méthode Juridique, 1996. Do mesmo autor, Mé-todos de Trabalho Do Direito Constitucional, 2000.40 DWORKIN. O Império do Direito, 1999.

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auto-reflexiva, só faz sentido uma questão acerca dos “funda-mentos do Direito” (sic) quando relacionada à justificação da constitucionalidade (democrática) do Direito.

A centralidade filosófico-jurídica do Direito Constitu-cional pode ser muito bem explicitada, e de forma privilegia-da, através da reconstrução das condições de legitimidade ou de justificação democrática de um controle jurisdicio-nal de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. Isso porque a discussão contemporânea acerca do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo cobra cada vez mais uma reflexão acerca dos pres-supostos de legitimidade do seu exercício e do seu caráter jurisdicional, em face, inclusive, do processo legislativo de-mocrático, assim como acerca do que seja uma interpretação constitucionalmente adequada do Direito, sob o paradigma do Estado Democrático de Direito.37 Desconsiderar isso é

37 A bibliografia nessa seara parece infindável. Basta pensar, por exemplo, nos trabalhos de Ronald Dworkin, Michel Rosenfeld, Robert Alexy, Friedri-ch Müller e Klaus Günther, assim como os de Jürgen Habermas e de John Rawls. Para uma proposta de Teoria Filosófica da Constituição e do Di-reito Constitucional, ver CARVALHO NETTO. Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. In: Revista de Direito Comparado, 1999, p. 473ss. CARVALHO NETTO. A contribuição do Direito Administrativo enfocado da ótica do administrado: para uma reflexão acerca dos fundamentos do controle de constitucionali-dade das Leis no Brasil. Um pequeno exercício de Teoria da Constituição. In: Revista Fórum Administrativo, 2001, p. 11ss. CARVALHO NETTO. A Re-visão Constitucional e a Cidadania: A legitimidade do Poder Constituinte que deu origem à Constituição da República Federativa de 1988 e as poten-cialidades do Poder Revisional nela previsto. In: Revista Fórum Administra-tivo, 2001, p. 882ss. CARVALHO NETTO. Teoria da Constituição: Os marcos de uma doutrina constitucional adequada ao constitucionalismo. In: Direi-tos Humanos e Direitos dos Cidadãos 2001, p. 63ss. CARVALHO NETTO. Controle de Constitucionalidade e Democracia. In:MAUÉS. Constituição e Democracia, 2001, p. 215ss.

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sociedade aberta de intérpretes da Constituição”, de Peter Häberle;41 de uma “Teoria da Argumentação Jurídica” dos Direitos Fundamentais, como exposta por Robert Alexy;42 de uma “argumentação de adequabilidade”, como avançado por Klaus Günther;43 de uma “Teoria da Constituição constitu-cionalmente adequada”, como a de Gomes Canotilho;44 ou de uma “Teoria da Constituição filosoficamente orientada”, como em Menelick de Carvalho Netto.45

6. Origens da Teoria da Constituição

Em sua famosa obra sobre a Constituição da Repú-blica de Weimar, Carl Schmitt46 reclamava a necessidade de um estudo sistemático acerca da Constituição,47 estudo 41 HÄBERLE. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intér-pretes da Constituição: Contribuição para a interpretação pluralista e pro-cedimental da Constituição, 1997.42 ALEXY. Teoría de los Derechos Fundamentales, 1993.43 GÜNTHER. The sense of approprieteness: Application Discourses in Mo-rality and Law, 1993.44 CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 1999.45 CARVALHO NETTO. Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. In: Revista de Direito Com-parado, 1999, p. 473ss. CARVALHO NETTO. A contribuição do Direito Admi-nistrativo enfocado da ótica do administrado: para uma reflexão acerca dos fundamentos do controle de constitucionalidade das Leis no Brasil. Um pe-queno exercício de Teoria da Constituição. In: Revista Fórum Administrativo, 2001, p. 11ss. CARVALHO NETTO. A Revisão Constitucional e a Cidadania: A legitimidade do Poder Constituinte que deu origem à Constituição da Re-pública Federativa de 1988 e as potencialidades do Poder Revisional nela pre-visto. In: Revista Fórum Administrativo, 2001, p. 882ss. CARVALHO NETTO. Teoria da Constituição: Os marcos de uma doutrina constitucional adequada ao constitucionalismo. In: Direitos Humanos e Direitos dos Cidadãos 2001, p. 63ss. CARVALHO NETTO. Controle de Constitucionalidade e Democracia. In: MAUÉS. Constituição e Democracia, 2001, p. 215ss.46 SCHMITT. Teoría de la Constitución. In: Revista de Direito privado, 1927, p. XXI.47 Schmitt elenca, na primeira parte do seu livro, os conceitos absoluto (todo uni-tário), relativo (pluralidade de leis particulares), ideal (em razão do conteúdo) e positivo de Constituição, “A Constituição como decisão de conjunto sobre o

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esse, nas palavras do autor, inexistente na Alemanha. Com-prometendo-se a realizar tal tarefa, Schmitt denominou-a Teoria da Constituição.

Mas por que Teoria da Constituição? Por que não Teo-ria do Estado, denominação já consagrada, no Direito Públi-co alemão, para o estudo dos aspectos relacionados ao campo problemático em que Schmitt gostaria de se deter?

Embora nesse momento, e daí em diante, fosse herdeira de problemáticas levantadas pela Teoria (e teorias) do Estado, a Teoria da Constituição proposta por Schmitt buscava justa-mente impor-se como disciplina que se diferenciaria e até se oporia, em maior ou menor medida, às teorias do Estado de-senvolvidas em torno das obras de Georg Jellinek48 e de Paul Laband49; de Hans Kelsen50 e sua teoria lógico-positivista; de Hermann Heller51 e sua teoria partidária do Constitucionalis-mo Social nascente; e dos enfoques assumidos pelas críticas marxistas e por outras correntes ideológico-jurídicas presen-tes no debate em torno do Processo Constituinte e dos primei-ros tempos de turbulenta vivência constitucional sob a Cons-tituição de 1919. Para isso, Schmitt propõe-se a desenvolver intuições que, para ele, já se encontrariam presentes na obra de Rudolf Smend,52 em seu integracionismo.

modo e a forma da unidade política”. Esse último é o que adota (Idem, p. 50). Sobre o conceito positivo de Constituição, ver Idem, p. 23ss. 48 JELLINEK. Teoría general del Estado, 1954.49 LABAND. Le droit public de l’Empire Allemand, 1901.50 KELSEN. Problemi fondamentali della Dottrina del Diritto Pubblico, 1997.51 HELLER. Teoría del Estado, 1987.52 Em sua Teoria da Constituição (SCHMITT. Teoría de la Constitución, 1927 p. XXIV), assim se manifestava Schmitt, acerca do livro de Smend (Constituição e Direito Constitucional): “[...]está anunciado um livro de Rudolf Smend sobre Teoria constitucional. Eu busquei no meu atual trabalho enfrentar suas ante-riores publicações e na confrontação experimentei a riqueza e grande fecundi-dade de seus pensamentos. Por isso, lamento de modo singular não conhecer e poder valorar a esperada exposição de Teoria Constitucional”.

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Mais do que uma mera questão quantitativa, de exten-são do campo das diversas disciplinas, estava em jogo, no mí-nimo, a tentativa de se realizar uma alteração profunda de perspectiva epistemológica, o enfoque problematizante típico da Teoria da Constituição.

Essa postura de ruptura, de superação do enfoque e dile-mas da chamada Teoria do Estado, caracterizará o desenvolvi-mento da Teoria da Constituição como disciplina autônoma, mesmo em autores que, a partir do segundo pós-guerra e an-tes disso, tais como Karl Loewenstein,53 irão divergir das con-cepções teorético-políticas schmittianas.

7. Campo problemático da Teoria da Constituição

Qual seria hoje, portanto, o campo problemático da Teoria da Constituição? O que, precisamente, a diferenciaria, por exemplo, da Teoria Geral do Direito Público, das análises francesas das Institutions Politiques e da Teoria do Estado?

Todas essas disciplinas possuem algo em comum: o es-tudo do político da perspectiva de sua institucionalização ju-rídico-social.

A Teoria Geral do Direito Público trata tal temática a partir de uma perspectiva interna, ou seja, desenvolve uma reflexão acerca de quais seriam os princípios jurídico-públi-cos reconhecidos pelas diversas ordens jurídicas e que estru-turariam o assim chamado Direito Público. Em outras pala-vras: a Teoria Geral do Direito Público pretende reconstruir conceitualmente os institutos constitucionais em suas carac-terísticas mais abstratas, genéricas e permanentes, abstraídas da rica diversidade do constitucionalismo histórico em que os mesmos se densificam, criando, assim, o que Santi Romano, na Itália, ou Pablo Lucas Verdú, na Espanha, chamariam de Direito Constitucional Geral.

53 LOEWENSTEIN. Teoría de Constitución, 1976.

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Todavia, a denominação Teoria Geral do Direito Públi-co não é isenta de problemas, pois, afinal, assenta-se sempre numa certa distinção entre esfera pública e esfera privada que, ao contrário de ser algo natural, embora por vezes naturali-zado, é construção histórico-social, podendo ser interpretada e compreendida através de diversos olhares paradigmáticos. Não se pode negar, por isso, que as preocupações de uma Teo-ria Geral do Direito Público ou a tentativa de delineamento de seu campo problemático pressupõem categorias tais como público e privado que, entendidas em termos de diferenciação social, são sempre carentes de sentido unívoco.

O estudo das Instituições Políticas, por seu turno, irá analisar a chamada “institucionalização do poder político” de modo externo, de uma perspectiva a partir da qual um obser-vador sociológico ou cientista político poderia descrever ou compreender a conformação das forças político-sociais pelo Direito Público, principalmente pelo Direito Constitucional. E mais, se esse Direito refletiria – e até que ponto – essas for-ças. A tentativa de superação da tensão entre um enfoque nor-mativo e um enfoque empírico se faria, aqui, presente. Embo-ra as teorias institucionalistas busquem absorver essa tensão, tal ponto de vista será um tanto temerário para o Direito Cons-titucional, devido ao risco sempre presente de se confundir, através desse enfoque, validade jurídico-normativa e facticida-de social, legitimidade com mera legitimação.

Quanto à distinção entre Teoria da Constituição e Teoria do Estado, cabe fazer considerações mais detidas. A Teoria do Estado – e isso não é um mero jogo de palavras – centra suas análises acerca da institucionalização jurídico-social do poder político no Estado. O Estado é compreendido como o núcleo de organização política da totalidade da sociedade. Todas as relações sociais teriam, assim, uma referência à estrutura do Estado, visto como ponto de convergência da vida social e das atividades humanas.

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Tal concepção, que poderemos chamar até certo ponto republicana, bastante tributária de Hegel, mas também de Aristóteles, tornou-se mais que problemática com o aumen-to cada vez maior de complexidade das sociedades moder-nas, com o crescente impacto do multiculturalismo, da glo-balização e dos desafios colocados pela formação de novos blocos econômicos e políticos, como é o caso da União Euro-peia.54 A anacronicidade desse enfoque torna-se ainda mais evidente ao se considerar o próprio desenvolvimento do ins-trumental teorético-analítico da sociologia contemporânea a partir de Talcott Parsons.55

Por um lado, não é mais possível compreender o Estado como a corporificação e a instância única de estabilização de uma identidade ética, de uma dada forma de vida e de certos padrões de vida boa (concepção ainda presente em Smend, Schmitt e mesmo em Loewenstein). Não há mais, pois, como restringir a esfera pública ao Estado, como atestam os chama-dos direitos fundamentais de terceira geração. O público deve ser visto hoje como uma dimensão bem mais complexa do que simplesmente a de um locus estatal – deve ser compreendido como dimensão discursiva de mobilização e expressão dos di-versos fluxos comunicativos, políticos, artísticos, científicos, enfim, culturais, o que, inclusive, requereu a profunda revisão por que passa toda a teoria jurídico-processual.56

54 HABERMAS. O Estado-Nação europeu frente aos desafios da globalização: O passado e o futuro da soberania e da cidadania. In: Revista Novos Estudos Cebrap, 1995. Sobre o impacto dessas questões no âmbito da Teoria do Estado, ver LUCAS VERDÚ. Curso de Derecho Político, 1974, v. 2, p. 34ss.55 Exemplos desse desenvolvimento em HABERMAS. Teoría de la Acción Co-municativa, 1987 e LUHMANN,; DE GIORGI,. Teoria della Società, 1991. So-bre o impacto da sociologia contemporânea no estudo do fenômeno estatal, ver CANOTILHO. Direito Constitucional, 1995, p.15-16; 17-18.56 Por exemplo, no Direito brasileiro, com o surgimento da Ação Civil Pú-blica (Lei Federal no 7.347/85), do Mandado de Segurança Coletivo (Consti-tuição da República, art.5o, LXX) e das novas ações coletivas do Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal no 8.078/90).

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A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas espe-cíficos [...] a esfera pública se reproduz através do agir comuni-cativo, implicando apenas o domínio de uma linguagem natural; ela está em sintonia com a compreensibilidade geral da prática comunicativa cotidiana [...]. A esfera pública constitui principal-mente uma estrutura comunicacional do agir orientado pelo en-tendimento, a qual tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo, não com as funções nem com os conteúdos da co-municação cotidiana.57

Até um passado bastante recente, a homogeneidade artificialmente levada a efeito pelo processo de formação do chamado Estado-Nação, que propiciara a constituição de uma identidade política, era vista como indispensável para a garantia e a manutenção de uma república de cidadãos livres. Hoje, a autoconsciência por parte de uma co-associação de cidadãos livres e iguais perante o Direito requer o reconheci-mento do pluralismo social e cultural.58 Assim, a autonomia pública dos cidadãos não pode mais fundar-se, como quer o Republicanismo,59 em razões puramente éticas, presumi-velmente compartilhadas. Contrariando autores como Carl Schmitt ou Charles Taylor60 e considerando a crise do Estado Social, do próprio Estado-Nação e o processo de unificação europeia como pano-de-fundo, Habermas afirma que “uma

57 HABERMAS. Direito e Democracia: Entre facticidade e validade, v.2 1997, p.92.58 HABERMAS. Una Costituzione per l’Europa? Osservazioni su Dieter Grimm. In: ZAGREBELSKY. Il Futuro della Costituzione, 1996.59 Sobre o Republicanismo, ver CATTONI DE OLIVEIRA. Devido Processo Legislativo, 2006, p. 83-9760 TAYLOR. As fontes do self: a construção da identidade moderna, 1997. Também, do mesmo autor, Argumentos Filosóficos, 2000. Sobre a influência de Taylor nas discussões sociológicas brasileiras, ver SOUZA. A moderniza-ção seletiva: Uma reinterpretação do dilema brasileiro, 2000.

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cultura política, construída sobre princípios constitucio-nais, não depende necessariamente de uma origem étnica, lingüística e cultural comum a todos os cidadãos.”61

O que não quer dizer que se possa desconsiderar a au-tonomia quanto a formas de vida ou a uma “cultura étnica”, desde que compatíveis com uma “cultura política liberal” (pluralista):

Uma cultura política liberal forma apenas o denominador comum de um patriotismo constitucional capaz de agudizar, não somente o sentido para a variedade, como também a integridade das dife-rentes e coexistentes formas de vida de uma sociedade multicul-tural.62

Em outras palavras, o desafio atual da universalização dos Direitos Fundamentais e da base de legitimidade das de-cisões políticas, inclusive em face da formação de Comunida-des de Direito,63 de base multicultural, está cobrando, mais uma vez, a devida distinção entre Direito e eticidade. O Direi-to deve fundar-se tão somente no princípio democrático, não mais compreendido como um mecanismo liberal de decisão majoritária ou a partir de uma pretensa “vontade geral” repu-blicana, mas como institucionalização de processos estrutura-dos por normas que garantam a possibilidade de participação discursiva dos cidadãos no processo de tomada de decisões.

As teorias políticas contemporâneas – e nisso reside a sua importância para a compreensão do Direito Constitu-cional vigente – estão colocando em xeque as bases filosó-ficas da tradicional Teoria do Estado – que nasceu e teve a sua primeira sistematização em torno do estudo dos Estados

61 HABERMAS. Direito e Democracia: Entre facticidade e validade, v. 2, 1997, p.289.62 Idem, p.28963 Acerca dessa denominação, um termo já usual na linguagem comunitária europeia, ver CARRERAS SERRA. Por una Constitución europea. In: Revista de Estudios Políticos, 1995, p. 207.

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monárquicos formadores do Império Alemão de 187064 – ao buscarem – fundamento em teorias sociais mais sofisticadas que procuram refletir acerca da hiperdiferenciação das so-ciedades complexas atuais.

Assim como não é mais possível se recorrer à tradição republicana e compreender a sociedade em termos de um todo societário que giraria em torno do Estado, tal como na famosa teoria dos três elementos estatais – – povo, territó-rio e poder soberano –, tampouco é possível se –,recorrer à tradição liberal65 e compreender a sociedade em termos me-ramente dualistas – concebendo Estado, de um lado, e so-ciedade civil, reduzida à esfera do mercado e da família, do outro. Com base numa teoria discursiva da democracia, urge se reconstruir tanto um conceito de esfera pública que não se reduza ao Estado, quanto um conceito de sociedade civil que não se reduza ao mercado e à família, em que os processos societários sejam encarados de modo mais amplo.

Quanto ao conceito de sociedade civil autônoma, cabe, inclusive, considerar que, em seu atual significado, ele não coincide com o de sociedade burguesa – que Hegel uma vez chamou de “sistema das necessidades”,66 do trabalho social 64 CARVALHO NETTO. A sanção no procedimento legislativo, 1992, p. 156ss.65 Sobre o Liberalismo, ver CATTONI DE OLIVEIRA. Devido Processo Legis-lativo, 2006, p. 83-97.66 Sobre o conceito hegeliano de sociedade civil como “sistema das necessi-dades”, ver as análises desenvolvidas em SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, 1996, p. 365ss. Segundo Salgado, em Hegel, “O ser para si existente que caracteriza a sociedade civil é o bourgeois, o indivíduo do ponto de vista das suas necessidades econômicas. Inversamente ao cidadão, o bourgeois é o indivíduo que na sociedade cuida dos seus interesses particulares, sem qual-quer consideração da ordem pública como um bem comum. Seu interesse é sempre oposto ao da comunidade e só aproveita à comunidade porque sua atividade está inserida num sistema de interdependência, pelo qual o que ele produz é socializado, ou seja, aproveita indiretamente à sociedade” (p. 365). “Assim, a sociedade civil estrutura-se segundo o jogo das necessidades reci-

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e do comércio de mercadorias numa economia de mercado – nem mais inclui a economia regulada pelo Direito Privado e dirigida através do trabalho, do capital e dos mercados de bens, como na época do surgimento do Marxismo.67 O núcleo insti-tucional da sociedade civil é hoje formado por grupos, movi-mentos, associações e organizações não estatais e não econô-micas, que conectam as estruturas de comunicação da esfera pública aos diversos componentes sociais do mundo da vida:

A sociedade civil compõe-se de movimentos, organizações e as-sociações, os quais captam os ecos dos problemas sociais que res-soam nas esferas privadas, condensam-nos e os transmitem, a se-guir, para a esfera pública. O núcleo da sociedade civil forma uma espécie de associação que institucionaliza os discursos capazes de solucionar problemas, transformando-os em questões de interes-se geral no quadro de esferas públicas.68

8. Teoria da Constituição e giro linguístico

Hoje, a Teoria da Constituição encontra mais desafios do que os colocados no passado. Tradicionalmente, os te-mas do Direito Constitucional têm sido percebidos e inter-pretados por teorias jurídicas especializadas em questões normativas, através da identificação de contrastes ou hiatos entre um Direito Constitucional que se pretende legítimo e realidades político-sociais e econômicas recalcitrantes – um ideal a ser buscado e uma crua realidade. Essa perspectiva,

procamente determinadas. Não há a convergência de todos para um mesmo interesse; obedece-se à regra da oferta e da procura e aos seus processos de compensação e acomodação de interesses” (p.367). Vale a pena contrastar o conceito hegeliano com a noção contemporânea de sociedade civil (COHEN; ARATO. Civil Society and Political Theory, 1994, p.345; HABERMAS. Direito e Democracia: Entre facticidade e validade, v. 2, 1997, p.99), adotada aqui, e que se segue.67 COHEN,; ARATO. Civil Society and Political Theory, 1994, p.345ss.68 HABERMAS. Direito e Democracia, v. 2, 1997, p.99.

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por perpetuar a chamada teoria dos dois mundos – o mun-do real e o mundo ideal, presente nas filosofias primeiras, preocupadas com uma fundamentação última para o conhe-cimento, para a Moralidade, para o Direito ou para as Artes – pouco contribui para uma compreensão mais sofisticada do Direito e da Constituição. Ela também mostra-se empiri-camente inoperante, diante de entraves e obstáculos a uma convivência constitucional e democrática, tantas vezes pre-sentes nos contextos sociais atuais – e não somente num país como o Brasil, com recorrentes momentos de inércia e de déficit de integração social, que pedem uma efetiva altera-ção de postura frente a eles.69

Menelick de Carvalho Netto vem destacando, ao lon-go de sua obra, a necessidade de superação do enfoque tra-dicionalmente dado ao tema da legitimidade e efetividade constitucionais, por exemplo, em Karl Loewenstein e em Biscaretti di Ruffia, e que também está presente em autores que defendem uma jurisprudência dos valores.

Tanto Loewenstein quanto Di Ruffia, ao tratarem da expansão do constitucionalismo moderno no pós-guerra, preocupam-se com o modo pelo qual princípios constitu-cionais, originalmente próprios aos Estados da Europa oci-dental (França e Inglaterra) e aos Estados Unidos da Amé-rica, seriam vivenciados no sul e no oriente, marcados por diferentes contextos socioeconômicos e culturais. Para eles, haveria um hiato constante entre o ideal constitucional (im-portado do norte ocidental) e a realidade político-social con-creta, posto que a própria realidade – quer meridional, quer

69 Nesse sentido, também, CARVALHO NETTO,. Teoria da Constituição: Os marcos de uma doutrina constitucional adequada ao constitucionalismo. In: Di-reitos Humanos e Direitos dos Cidadãos, 2001, p.41ss. Do mesmo autor, A Revi-são Constitucional e a cidadania: A legitimidade do Poder Constituinte que deu origem à Constituição da República Federativa de 1988 e as potencialidades do Poder Revisional nela previsto. In: Revista Fórum Administrativo, 2001, p. 882ss.

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oriental – poderia constituir um obstáculo quase intranspo-nível para a realização desses princípios. Todavia, Loewens-tein e Di Ruffia não estariam, em princípio, ao denunciar o que seria esse hiato entre sul e leste, propondo uma Teoria da Constituição ou uma Teoria Geral do Direito Público que não pudesse ser universal – ainda que considerassem as es-pecificidades do sul e do oriente, pois, por mais paradoxal que isso pudesse parecer, o critério normativo de referência para ambos permanecia sendo o constitucionalismo moder-no ocidental. Loewenstein e Biscaretti não são, nesse senti-do, Carl Schmitt, pois eles não têm qualquer dúvida quan-to à legítima função da Constituição e do Direito, própria do constitucionalismo moderno: a da garantia dos governa-dos em face dos governantes. Eles permanecem, assim, dife-rentemente de Schmitt, como representantes da tradição do constitucionalismo liberal e social.

O problema é que Loewenstein e Biscaretti não conse-guem perceber que o próprio modo com que colocam o pro-blema da legitimidade/efetividade constitucionais, o hiato entre ideal e real, contribui ainda mais para o agravamento daquilo que pretendem denunciar. Ou seja, ao idealizarem a realidade político-social dos países meridionais e orientais na forma quase-natural de um obstáculo intransponível, e ao sobrecarregarem os princípios constitucionais modernos, Loewenstein e Biscaretti desconsideram exatamente o cará-ter vivido, ou melhor, o caráter hermenêutico das práticas jurídicas cotidianas. O Direito, como afirma Ronald Dwor-kin, é uma prática social, interpretativa e argumentativa, de tal modo que não há como compreendê-la da perspectiva de um observador externo que não leva a sério o ponto de vista normativo dos implicados, das pretensões jurídicas levanta-das pelos próprios participantes dessa prática. A realidade social é uma construção dinâmica, hermenêutica, histórica

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e social, da qual o Direito faz parte. O Direito não está pai-rando estaticamente sobre uma sociedade estática. E, como tal, deve lidar, inclusive, com o risco próprio a ele mesmo de ser descumprido a todo e qualquer momento.

A noção de paradigma jurídico – introduzida por Ha-bermas, num diálogo, dentre outros, com a epistemologia pós-popperiana, sobretudo com Thomas Kuhn – pode de-sempenhar, nessa discussão, um importante papel. Uma re-construção paradigmática do Direito, como bem nos mostra Menelick de Carvalho Netto, possibilita reconhecer a existên-cia de um horizonte histórico de sentido, ainda que mutável, para a teoria do Direito e para a prática jurídica concreta, que pressupõe uma determinada “percepção” do contexto social do Direito, a fim de que se possa compreender em que pers-pectiva as questões jurídicas devem ser interpretadas, para que o Direito possa cumprir seu papel nos processos de integração social. Paradigmas do Direito constituem internamente a prá-tica e a teoria do Direito, orientando seus desdobramentos. O reconhecimento desses paradigmas exige a superação da for-ma tradicional de lidar com questões normativas, rompendo com a dicotomia real/ideal, assim como exige uma reflexão hermenêutica crítica em face de nós mesmos, que não pode desconsiderar as pretensões normativas concretamente arti-culadas pelos próprios envolvidos em questões jurídicas.

Com base numa Teoria Discursiva do Direito e da De-mocracia – que não se deixa vincular a um único ponto de vista disciplinar, mas, pelo contrário, permanece aberta a di-ferentes pontos de vista metodológicos (participante X obser-vador), a diferentes objetivos teóricos (explicação interpreta-tiva e análise conceitual X descrição e explicação empírica), a diferentes papéis sociais (do juiz, dos políticos, dos legis-ladores, dos clientes e dos cidadãos) e a diferentes atitudes pragmáticas de pesquisa (hermenêuticas, críticas, analíticas etc.), a fim de que uma abordagem normativa não perca o seu

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contato com a realidade, nem uma abordagem objetiva ex-clua qualquer aspecto normativo, mas permaneçam em ten-são70 – a perspectiva da Teoria do Direito e da Constituição que privilegia o aspecto normativo deverá passar por um giro reconstrutivo, se quiser levar a sério a tensão presente no Di-reito entre facticidade e validade, assim como o papel desem-penhado pelo Direito nos processos de integração social.

Ao se falar em tensão – e não em hiato, oposição, contra-dição ou até mesmo em dialética, entre norma ou ideal e fato ou realidade – estar-se-á abandonando a chamada teoria dos dois mundos, sem qualquer necessidade de se apelar para uma filosofia da história e seu teleologismo, vindos de onde quer que seja, quer de Hegel, quer de Marx: a realidade já é plena de idea-lidade, em razão dos próprios pressupostos linguísticos contra-factuais presentes em toda interação comunicativa; mas, nesse sentido, a transcendência é imanente, é intramundana.71

70 HABERMAS,. Direito e Democracia: Entre facticidade e validade, v. 1, 1997, p. 23.71 O meu caro colega Alexandre Travessoni Gomes erra ao compreender a “situação ideal de fala” em Habermas como uma espécie de sucedâneo do “reino dos fins” ou mesmo como uma “idéia reguladora” que “serve como guia para discursos empíricos” e “torna possível criticar resultados neles obtidos” (GOMES, TRAVESSONI; MERLE. A Moral e o Direito em Kant: ensaios analíticos., 2007, p. 69). Ora, a “situação ideal de fala” nada mais é, segundo Habermas, do que um “experimento de pensamento” [ein Ge-dankenexperiment], uma “ficção metodológica”, e representa, assim desti-tuída de toda e qualquer conotação essencialista, tão-somente uma proje-ção empreendida por meio da reconstrução dos pressupostos idealizantes, de caráter contrafactual, da racionalidade comunicativa, já presentes na facticidade dos processos sociais, subjacentes, portanto, a toda interação linguística voltada ao entendimento; aqui, pois, a transcendência é imanen-te, é intramundana. Em contraste com a projeção de ideais, à luz dos quais podemos identificar desvios, “os pressupostos idealizantes que nós já sem-pre temos de adotar, se pretendemos alcançar o entendimento mútuo, não envolvem qualquer tipo de correspondência ou de comparação entre idéia e realidade” [Brunkhorst]. Por outro lado, é legítimo usar tal projeção para um experimento de pensamento [Peters]. O mal-entendido essencialista é

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Na vida cotidiana, o entendimento mútuo entre sujeitos que agem comunicativamente se mede por pretensões de validade que – so-bre o maciço pano de fundo de um mundo da vida compartilha-do intersubjetivamente – levam a uma tomada de posição em ter-mos de sim/não. Tais pretensões de validade estão abertas à crítica e contêm, juntamente com o risco de dissenso, a possibilidade de um resgate discursivo. Neste sentido, o agir comunicativo refere-se a um processo de argumentação no qual os participantes justificam suas pretensões de validade perante um auditório idealmente sem fronteiras. Os participantes de uma argumentação partem da su-posição idealizadora de que, no espaço social e no tempo histórico, existe uma comunidade de comunicação sem fronteiras. E, segun-do uma formulação de Karl-Otto Apel, esses participantes têm que pressupor a possibilidade de uma comunidade ideal no interior de sua situação social real... Os pressupostos contrafactuais de que têm de partir os participantes na argumentação abrem, é claro, uma perspectiva que permite a eles [os participantes] transcender a inevitável provincialidade de seus contextos espaço-temporais, na ação e na experiência, ir além das práticas locais de justificação e, portanto, fazer justiça à significação [Sinn] das pretensões de validade transcendendo-contextos. Mas com as pretensões de va-

substituído por uma ficção metodológica elaborada para dispor de um pa-no-de-fundo sobre o qual o substrato de complexidade societária inevitável torna-se visível” (HABERMAS. Faktizität und Geltung, 1992, p. 392). Assim, toda a discussão empreendida em Travessoni/Merle revela-se ainda presa a uma metafísica dos dois mundos, típica de uma tradição filosófica que é an-terior ao linguistic turn. Ao lançar mão de dicotomias tais como “consenso empírico/consenso ideal”, “mundo real (empírico)/mundo ideal”, toda essa discussão se reduz a uma série de equívocos no que diz respeito à compreen-são do projeto filosófico habermasiano de uma pragmática formal e, assim, fracassa, perdendo todo o seu sentido, despendendo inutilmente um enor-me esforço que tem a intenção de pretensiosamente defender Habermas da descabida acusação de um “idealismo ingênuo”. Tal labuta demonstra, tam-bém, uma certa falta de background quanto ao estado da arte das discus-sões em torno do pensamento habermasiano e, naquilo que seria decisivo à argumentação, nem mesmo se dá ao trabalho de se remeter diretamente ao próprio Habermas. Estamos aqui, portanto, diante de um problema, no mínimo, hermenêutico-filosófico. Eis, assim, como em Travessoni/Merle não se compreendeu adequadamente sequer o sentido da própria tese, presente desde o título da obra teorético-jurídica de Habermas: a tensão – e não uma contraposição ou mesmo um hiato! – entre facticidade e validade.

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lidade transcendendo-contextos, eles próprios [os participantes] não são transportados para o mais além transcendente de um rei-no ideal de seres inteligíveis.72

Não se deve, pois, dar continuidade à forma tradicional de teorias constitucionais especializadas em questões norma-tivas que, por verem um hiato entre o Direito e a realidade, entre a “Constituição formal” e a “Constituição real”, mantêm--se cegas à tensão entre facticidade e validade. Uma renova-da Teoria da Constituição, ao assumir a tarefa fundamental de reconstruir, sob o paradigma procedimentalista do Estado Democrático de Direito, os diversos temas do Direito Consti-tucional, deverá manter-se aberta, a um só tempo:

a. a uma sociologia reconstrutiva, que busca identificar, com-preender e reconstruir os fragmentos e vestígios dos processos de racionalização social, cultural e subjetiva já presentes e em curso nas sociedades modernas, assim como identificar, com-preender e reconstruir os conteúdos jurídico-normativos que já se encontram inscritos, ainda que parcialmente, na factici-dade social dos processos político-sociais;

b. a uma filosofia prática pós-metafísica, cuja tarefa consiste no esclarecimento do ponto de vista moral e do processo de-mocrático, da análise das condições necessárias aos discursos e às negociações racionais:

Nessa perspectiva, as formas de comunicação da formação polí-tica da vontade no Estado de direito, de legislação e de jurispru-dência, aparecem como partes de um processo mais amplo de racionalização dos mundos da vida de sociedades modernas pres-sionadas pelos imperativos sistêmicos. Tal reconstrução coloca--nos nas mãos uma medida crítica que permite julgar as práticas de uma realidade constitucional intransparente.73

72 HABERMAS,. Between Facts and Norms, 1998, p. 322-323; Textos y con-textos 1996, p. 133-175; Más alla del Estado Nacional, 1997, p. 145-16673 HABERMAS. Direito e Democracia: Entre facticidade e validade, v. 1., 1997, p.22.

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No prefácio a Facticidade e validade, Habermas afirma, numa referência velada a Kant em O conflito das faculda-des, que “há muito a Filosofia do Direito vem deixando de ser coisa tão somente de filósofos”. A discussão atual demons-tra que, hoje, para “ser Filosofia”, a Filosofia deve, como afir-ma Habermas, abandonar seu papel de “indicador de lugar para as ciências” e de “tribunal supremo da cultura” e, neste caso, aprender com a Teoria e com a Ciência do Direito. Não se faz necessário abandonar sua pretensão de racionalidade, de verdade, de correção e de veracidade, afogando-se num “misticismo ressentido” como em Heidegger ou ceder cética ou cinicamente à política como em Rorty.

Assim, a Teoria do Discurso é uma das grandes possibi-lidades de resgate do papel da Filosofia na alta modernida-de, como “guardiã de lugar da racionalidade científica e in-térprete mediadora do mundo da vida.”74 Na medida em que pretende fazer jus à necessidade de reconstruir “as semen-tes de liberdade mergulhadas em nossas tradições” – como nos convida Menelick de Carvalho Netto, resgatando e ex-plicitando criticamente nossas próprias vivências constitu-cionais e democráticas –, uma Teoria Discursiva da Consti-tuição e do Direito inaugura um novo paradigma, capaz de lidar construtivamente com os problemas legados pela velha teoria constitucional, e pode contribuir decisivamente como chave interpretativa do Direito Constitucional, que sirva adequadamente de suporte para a perspectiva operacional de uma Dogmática Jurídica comprometida com o projeto constituinte/constitucional de um Estado Democrático de Direito entre nós.

74 HABERMAS. Direito e Democracia: Entre facticidade e validade, v. 1., 1997, p. 22.

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9. Perspectivas da Teoria da Constituição

Isso tudo leva a Teoria da Constituição a romper com uma abordagem unilateral – quer no sentido de – Teoria Geral do Direito Público, –, quer no de – Instituições Políticas – e a superar a abordagem e os enfoques tradicionais da Teoria do Estado – a saber, – Estado como centro da sociedade, socie-dade holisticamente compreendida em termos da dialética do todo e de suas partes.

A Teoria da Constituição deve assumir as seguintes perspectivas:a. a perspectiva interna ao Direito Constitucional ao possibili-tar uma dogmática geral (adequada) do Direito Constitucional;b. a perspectiva externa da relação entre facticidade social e autocompreensão do Estado Constitucional ao se consubs-tanciar em uma teoria pós-ontológica da Constituição.75

A perspectiva simultânea da tensão interna (a) e externa (b) ao Direito Constitucional, requer precisamente que a Teo-ria da Constituição se assuma como uma teoria crítico-reflexiva da Constituição, “problematizadora e explicitadora de pré-com-preensões” e de paradigmas acerca da sociedade, da Política e do Direito.76 Desse modo é que ela sempre apresentará uma di-mensão metateórica acerca dos seus próprios pressupostos teo-réticos, revelando-se uma metateoria da Constituição. Por isso mesmo, não se poderá ignorar sua dimensão pragmático-polí-tica, a requerer do operador jurídico que a assuma como uma teoria político-constitucional em sentido fraco.

a. Teoria da Constituição deve assumir a perspectiva do sis-tema jurídico-constitucional e analisar a tensão interna entre facticidade e validade – ou seja, entre positividade e legitimi-75 Ou seja, uma superação da “classificação ontológica da Constituição”, de-senvolvida por LOEWENSTEIN. Teoría de la Constitución, 1976.76 CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 1998, p. 1188.

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dade do Direito –, reconstruindo os princípios, as regras, os procedimentos, a compreensão, a justificação e a aplicação desses. Desta forma, resgataria a normatividade constitucio-nal e a função primordial do Direito moderno, presente no Direito Constitucional de modo ímpar, a função de integração social. Tal problema só pode ser enfrentado e solucionado pe-los próprios membros de uma sociedade, na medida em que instauram um processo no qual se engajam na busca coope-rativa de condições recorrentemente mais justas de vida. As questões propostas por esta sociedade acerca de sua autocom-preensão ético-política e de sua autodeterminação prático--moral, além de seus interesses pragmáticos, devem encontrar vazão, inclusive, na institucionalização de formas discursivas e de negociação no nível do Estado.

Pode-se reconstruir, assim, a compreensão normativa do Estado de Direito, do Estado Constitucional, como insti-tucionalização jurídica de canais de comunicação público-po-lítica acerca de razões éticas, morais, pragmáticas e de coe-rência jurídica. É precisamente esse fluxo comunicativo que conformará e informará o processo legislativo de justificação e o processo jurisdicional de aplicação imparcial do Direito de-mocraticamente fundado, bem como uma Administração Pú-blica descentralizada e participativa. Garante-se, desse modo, a abertura para uma esfera pública mais ampla, em que atuam os movimentos sociais em geral.77

Com isso, o conceito de Estado de Direito, como organi-zação política moderna, também não pode mais ser pensado a partir de um conceito naturalizado de nação ou de naciona-lidade, via cor, etnia, ancestrais comuns ou mesmo lugar de nascimento comuns (na tradicional distinção entre jus san-guinis e jus soli). O atual conceito de Estado de Direito deve partir de um conceito contemporâneo de cidadania, não mais

77 HABERMAS. Direito e Democracia: Entre facticidade e validade, v. 1, 1997, p.169ss; Idem, v.2, p.170ss.

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compreendida como condição daquele que seria membro na-tural de uma comunidade ética e política concreta, que com-partilharia um mesmo e único ideal de vida boa. Este conceito contemporâneo de cidadania deve ser percebido como sinôni-mo de titularidade de direitos reciprocamente reconhecidos e que se garantem através de uma institucionalização de pro-cedimentos capaz de possibilitar a formação democrática da vontade coletiva, a formação imparcial de juízos de aplicação jurídico-normativa e a execução de programas e de políticas públicas. Não se verifica, portanto, a imposição de um único modelo de vida boa, embora seja necessário garantir aos cida-dãos, no exercício de sua autonomia pública, a possibilidade de realização de um projeto cooperativo de fixação de condi-ções de vida recorrentemente mais justas.

b. A partir da perspectiva externa da tensão entre facticidade social e autocompreensão do Estado Constitucional, a Teo-ria da Constituição deve alterar seu enfoque interno ao Di-reito e complementá-lo através do diálogo com as teorias da sociedade e com as teorias políticas, a fim de que possa ultra-passar as abordagens tradicionais acerca da efetividade do Direito Constitucional – quer no sentido de uma classifica-ção ontológica da Constituição (Karl Loewenstein), quer no sentido da eficácia social das normas constitucionais (José Afonso da Silva)78. Nesse sentido:

De um lado, a teoria do direito, fundada no discurso, entende o Estado democrático de direito como a institucionalização de pro-cessos e pressupostos comunicacionais necessários para uma for-mação discursiva da opinião e da vontade, a qual possibilita, por seu turno, o exercício da autonomia política e a criação legítima do direito. De outro lado, a teoria da sociedade fundada na comu-nicação entende o sistema político estruturado segundo o Estado de direito como um sistema de ação entre outros. Este pode com-

78 Mas superar também as abordagens no sentido de um constitucionalismo simbólico (NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica, 2011).

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pensar os eventuais problemas de integração na sociedade global, colocando a formação institucionalizada da opinião e da vontade em contato com comunicações públicas informais, pois está in-serido nos contextos de um mundo da vida através de uma esfera pública ancorada numa sociedade civil. Finalmente, uma deter-minada compreensão do direito estabelece a relação entre a abor-dagem normativa e a empírica. Segundo essa concepção, a comu-nidade jurídica pode ser entendida como um medium através do qual as estruturas de reconhecimento concretizadas no agir co-municativo passam do nível das simples interações para o nível abstrato das relações organizadas. A rede tecida pelas comunica-ções jurídicas é capaz de envolver sociedades globais, por mais complexas que sejam79

A Teoria da Constituição, portanto, não pode perder a dimensão fundamental de teoria problematizante e explici-tadora de pré-compreensões e de paradigmas, pois:

Os paradigmas do direito permitem diagnosticar a situação e ser-vem de guia para a ação. Eles iluminam o horizonte de determi-nada sociedade, tendo em vista a realização do sistema de direi-tos. Nesta medida, sua função primordial consiste em abrir portas para o mundo. Paradigmas abrem perspectivas de interpretação nas quais é possível referir os princípios do Estado de direito ao contexto da sociedade como um todo. Eles lançam luz sobre as restrições e as possibilidades para a realização de direitos funda-mentais, os quais, enquanto princípios não saturados, necessitam de uma interpretação e de uma estruturação ulterior.80

Quanto a considerar uma dimensão pragmático-política da Teoria da Constituição, cumpre ressaltar, contudo, que não se deve assumir uma compreensão equivocada desse aspecto, pois não se trata, em hipótese alguma, de atribuir normativi-dade à teoria, transformando-a numa doutrina – o que resul-taria, com certeza, numa ruptura com um enfoque teorético--discursivo. O que aqui se busca salientar é que a Teoria da Constituição pode representar importante aporte para discus-

79 HABERMAS. Direito e Democracia: Entre facticidade e validade, v. 2, 1997 p.181.80 Idem, p.181.

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sões institucionais-instituintes, na medida em que se explo-re o caráter pragmático das reflexões teorético-constitucio-nais. Daí a necessidade de o operador jurídico assumi-la como uma teoria político-constitucional em sentido fraco: o teórico da Constituição não deve assumir a atitude performativa do doutrinador iluminado, a ditar soluções para uma massa de ignorantes, já que admitir isso seria, a essa altura de nossas reflexões, uma grande incoerência. Uma teoria político-cons-titucional pode fornecer ao jurista, no máximo, a perspectiva do operador do Direito comprometido com o desenvolvimen-to constitucional que, no seu papel de intelectual e não de es-pecialista, pode contribuir e participar das controvérsias polí-tico-constitucionais através das quais todos os co-associados jurídicos, inclusive ele, como cidadãos, podem refletir e defi-nir sua vida em comum.81

10. Considerações finais

O presente estudo, ao passo em que compreende crí-tico-reflexivamente o próprio estatuto científico das disci-plinas e teorias que buscou reconstruir, é um discurso me-tateórico, filosófico; portanto, um exercício de Teoria da Constituição (filosoficamente orientado) acerca da própria Teoria da Constituição.

Cabe, assim, reafirmar o caráter eminentemente filo-sófico-jurídico, no sentido aqui defendido, de toda a refle-xão desenvolvida, que ultrapassa uma teoria dogmática do Direito, ao buscar problematizar, interpretar e mediar ques-tões jurídicas que emergem do mundo da vida e que levam, inclusive, a rediscutir o próprio estatuto epistemológico da 81 Nesse sentido é que Canotilho fala, com base em Robert Alexy, de uma “teoria da constituição” e de um “constitucionalismo constitucionalmente adequado”(CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 1998, p. 1036).

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Teoria do Direito, à luz de uma Teoria da Constituição cons-titucionalmente adequada ao “Direito procedimentalizado do Estado Democrático de Direito”.82 Afinal, desconsiderar isso – bom que se repita – é não saber quais são e como hoje emergem as questões jurídicas, é desconsiderar a importân-cia jurídica e não saber o que é e para quê serve a Teoria do Direito ou a Filosofia do Direito hoje.

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Capítulo II Paradigmas jurídico-constitucionais

e história do constitucionalismo1

“A almejada relação interna entre direitos humanos e soberania popular consiste assim em que a exigência de institucionalização jurídica de uma prática civil do uso público das liberdades comu-nicativas seja cumprida justamente por meio dos direitos huma-nos. Direitos humanos que possibilitam o exercício da soberania

popular não se podem impingir de fora, como uma restrição.” Jürgen Habermas

1. Introdução

O presente capítulo toma como ponto de partida os principais argumentos desenvolvidos por Jürgen Habermas acerca da relação interna entre Estado de Direito e Demo-cracia, no capítulo dez de sua obra A inclusão do outro, data-da de 1996.2 Nesse texto, Habermas pretende expor os pon-tos centrais da tese já apresentada em Facticidade e Validade: a Teoria do Discurso do Direito e do Estado Democrático de Direito, de 1992,3 segundo a qual, “sob o signo de uma polí-

1 Para o Professor Cristiano Paixão.2 HABERMAS. Sobre a coesão interna entre Estado de Direito e democracia In: A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 285ss.3 Sigo, aqui, especialmente, a tradução para o castellano, de Manuel Jimé-nez Redondo, HABERMAS. Facticidad y validez: Sobre el Derecho y el Es-tado democrático de derecho en términos de teoría del derecho, 1998; e a tradução de William Rehg, para o inglês, Between fatcs and norms: contri-butions to a Discourse Thery of Law and Democracy 1996.

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tica completamente secularizada, o Estado de Direito não pode existir nem se manter sem democracia radical”.4 Em outras palavras, Habermas defende que, segundo uma re-construção5 dos princípios do Estado Democrático de Direi-to, à luz de uma compreensão procedimentalista do Direito, “os sujeitos privados não poderão gozar de iguais liberdades subjetivas se eles mesmos, no comum exercício de sua auto-nomia política, não se esclarecem sobre interesses justifica-dos e critérios e não se puserem de acordo sobre quais hão de ser os aspectos relevantes sob os quais o igual deverá ser tratado de forma igual e o desigual de forma desigual”.6

Em “Sobre a coesão interna entre Estado de Direito e Democracia”,7 Habermas afirma que, embora seja academi-camente comum falarmos ao mesmo tempo em Direito e Política, estamos também acostumados a tratar do Estado de Direito e da Democracia como objetos de disciplinas dife-rentes: a Ciência do Direito trata do Direito; a Ciência Políti-ca, da Democracia. Há, segundo Habermas, boas razões para isso, pois, apesar de todo o domínio político ser exercido sob a forma do Direito, há ordens jurídicas em que o exercício do poder político não se dá sob a forma do Estado de Direito, as-sim como há Estados de Direito em que o poder político não

4 HABERMAS. Facticidad y validez: Sobre el Estado democrático de dere-cho en términos de teoría del derecho, p. 61.5 Na explicação de Manuel Jiménez Redondo, uma teoria reconstrutiva “re-constrói a idealidade imanente à facticidade da realidade como aguilhão e elemento de tensão operante nessa mesma realidade” (Introducción. In: HABERMAS. Facticidad y validez: Sobre el Estado democrático de derecho en términos de teoría del derecho, p. 16). Sobre isso, ver CATTONI DE OLI-VEIRA. Devido processo legislativo, 2006, p. 65-67.6 HABERMAS. Facticidad y validez: Sobre el Estado democrático de dere-cho en términos de teoría del derecho, 1998, p. 61.7 HABERMAS. Sobre a coesão interna entre Estado de Direito e democracia. In: A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 285.

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se exerce democraticamente: “Em suma, há ordens jurídicas estatais sem instituições próprias a um Estado de direito, e há Estados de direito sem constituições democráticas”.8

Todavia, segundo Habermas, embora possa haver tais razões empíricas para um tratamento acadêmico do Estado de Direito e da democracia marcado pela divisão de trabalho entre Ciência do Direito e Ciência Política, isso não significa que possa haver, do ponto de vista normativo, Estado de Di-reito sem democracia.9

O objetivo de Habermas, nesse texto, é, portanto, de-monstrar a tese segundo a qual “não há Estado de Direito sem democracia”,10 e vice-versa, abordando a relação interna entre Estado de Direito e democracia sob alguns aspectos centrais. Segundo ele, tal relação resulta do próprio conceito moderno de Direito e da circunstância de que o Direito posi-tivo – histórico, contingente, modificável e coercitivo – não pode mais obter legitimidade recorrendo a um Direito na-tural, superior. Segundo Habermas, o Direito moderno legi-tima-se a partir da autonomia garantida igualmente a todo cidadão, sendo que autonomia pública e autonomia priva-da pressupõem-se mutuamente. Essa relação interna passa

8 HABERMAS. Sobre a coesão interna entre Estado de Direito e democracia. In: A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 286.9 Tal visão coloca em questão a tradicional visão acerca do poder constituin-te na tradição francesa. Sobre o tema, ver CARVALHO NETTO.A Revisão Constitucional e a Cidadania: A legitimidade do Poder Constituinte que deu origem à Constituição da República Federativa de 1988 e as potencia-lidades do Poder Revisional nela previsto. In: Revista Fórum Administra-tivo, 2001, p. 882ss.. CATTONI DE OLIVEIRA. Direito, política e filosofia, 2007, p. 57-76. CATTONI DE OLIVEIRA. Democracia sem espera e processo de constitucionalização: uma crítica aos discursos oficiais sobre a chama-da transição política brasileira. In: CATTONI DE OLIVEIRA; MACHADO. Constituição e Processo: a resposta do constitucionalismo à banalização do terror, 2009, p. 367-400.10 HABERMAS,. Facticidad y validez: Sobre el Estado democrático de dere-cho en términos de teoría del derecho, 1998, p. 61.

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a ter validade na dialética entre igualdade fática e jurídica, suscitada pelo paradigma jurídico do Estado Social, frente à compreensão liberal do Direito, e que, segundo Habermas – e isso é de suma importância – “hoje compele a uma auto-compreensão procedimentalista do Estado democrático de direito”.11 Essa autocompreensão procedimentalista, que se apresenta, portanto, como uma terceira compreensão pa-radigmática do Estado Democrático de Direito,12 é, por fim, explicada, a partir do exemplo da política feminista pela igualdade de direitos.

2. O conceito moderno de Direito e suas qualidades formais

Para Habermas, o Direito moderno caracteriza-se por ser positivo, ou seja, um Direito escrito que é histórico, con-tingente, modificável e coercitivo, por um lado, e, por outro, garantidor da liberdade.13 Há, segundo Habermas, uma rela-ção entre o caráter coercitivo e a modificabilidade do Direito positivo, por um lado, e um modo de positivação ou de es-tabelecimento do Direito que é capaz de gerar legitimidade, por outro.14 Se normas coercitivas remontam a decisões mo-dificáveis de um legislador político, essa circunstância liga--se à exigência de legitimação, segundo a qual esse Direito escrito deve garantir equitativamente a autonomia de todos

11 HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p.286.12 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez: Sobre el Estado democrático de derecho en términos de teoría del derecho, 1998, p. 59; p. 264; p. 292 e p. 293, bem como todo o capítulo 9. CATTONI DE OLIVEIRA. Tutela jurisdicional e Estado democrático de direito: por uma compreensão constitucionalmente adequada do mandado de injunção, 1998, p. 45-47. CATTONI DE OLIVEIRA. Direito constitucional 2002, p. 66; p. 81-84, p. 107-110. CATTONI DE OLI-VEIRA. Direito, política e filosofia, 2007, p. 11-24.13 HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: : estudos de teoria política, 2002, p. 286.14 Idem, p. 287.

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os sujeitos de direito. Segundo Habermas, o processo legis-lativo democrático deve ser suficiente para atender a tal exi-gência. E, nesse sentido, cria-se, pois, uma relação concei-tual ou interna entre Direito e democracia – e não apenas uma relação historicamente casual.15

Habermas lembra que, num primeiro momento, tal re-lação interna pode parecer uma espécie de “truque filosófico”.16 Todavia, tal relação interna está alicerçada em pressupostos da nossa própria práxis jurídica cotidiana. Isso porque, na própria validade jurídica, a facticidade da imposição do Di-reito por via estatal entrelaça-se com a força legitimadora de um processo legislativo que pretende ser racional, justamen-te, por fundamentar a liberdade.17 Em outros termos, isso se revela no modo ambíguo com que o próprio Direito se ende-reça aos seus destinatários e deles espera obediência: eles po-dem agir estrategicamente em face das consequências previ-síveis de uma possível violação das normas ou podem cumprir as normas por respeito aos resultados da formação comum da vontade que exige legitimidade para si. O conceito kantiano de legalidade já expressava, segundo Habermas, esse duplo sentido da validade jurídica: as normas jurídicas são a um só tempo “leis coercitivas” e “leis de liberdade”.18

Essa é, pois, a nossa própria compreensão do Direito moderno. Consideramos a validade jurídica de uma norma como “um equivalente da explicação para o fato de o Esta-do garantir ao mesmo tempo a efetiva imposição jurídica e a instituição legítima do direito”, ou, ainda nas palavras de Habermas, do Estado “garantir de um lado a legalidade do procedimento no sentido de uma observância média das

15 HABERMAS. A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p.287.16 Idem, p.287.17 Sobre isso, ver também CATTONI DE OLIVEIRA. Devido processo legis-lativo, 2006, p. 114-115.18 HABERMAS. A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 287.

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normas que em caso de necessidade pode ser até mesmo im-pingida através de sanções, e, de outro, a legitimidade das regras em si, da qual se espera que possibilite a todo o mo-mento um cumprimento das normas por respeito à lei”.19

É, então, que, segundo Habermas, surge a seguinte questão: como se deve fundamentar, afinal, a legitimidade de normas que podem ser alteradas pelo legislador a qual-quer momento?20

Enquanto se pôde recorrer a um Direito natural, quer re-ligioso, quer metafísico, pôde-se represar por meio da Moral o turbilhão da temporalidade que o Direito positivo atraía para si. Entretanto, mesmo que não se considere o pano de fundo de uma crescente dessacralização das imagens de mundo e de desintegração de eticidades ou formas de vida tradicionais, que um processo de modernização social e cultural tenha im-plicado, o Direito moderno, em razão do seu caráter formal, exime-se em todo caso de uma ingerência direta que advenha de uma “consciência moral remanescente”, pós-tradicional.21

3. A relação complementar entre Direito positivo e Moral autônoma

Nesse tópico, Habermas pretende, mais uma vez,22 di-ferenciar, por um lado, Direito e Moral, e, por outro, recons-truir a relação de co-originalidade e de complementaridade entre eles. Segundo Habermas, os direitos subjetivos com os quais se constroem ordens jurídicas modernas têm o sentido de desobrigar os sujeitos de direito em relação a mandamen-tos morais, na medida em que garantem espaço para o agir

19 HABERMAS. A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 287.20 Idem, p. 287.21 Idem, p. 288.22 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez: Sobre el Estado democrático de derecho en términos de teoría del derecho, 1998, capítulo 3, parte 2.

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de acordo com as preferências dos agentes.23 E é assim que, para Habermas, o Direito moderno faz valer o princípio se-gundo o qual “tudo o que não está proibido está permitido”.24

Enquanto na Moral há uma simetria entre direitos e de-veres, no Direito as obrigações resultam somente da restrição de liberdades subjetivas. Essa atribuição conceitual básica de privilégio aos direitos em relação aos deveres explica-se atra-vés dos conceitos de sujeito de direito e de comunidade jurídi-ca: uma comunidade jurídica, situada no tempo e no espaço, protege a integridade de seus integrantes exatamente na me-dida em que esses assumem o “status” de titulares de direitos subjetivos. Já o universo moral é sem limites no tempo histó-rico e no espaço social e se estende por sobre todas as pessoas e suas biografias, plenamente individuadas.25

A relação entre Direito e Moral, para Habermas, é de complementaridade e não de subordinação.26 Essa relação de complementaridade vale também para uma visão exten-sional. As matérias jurídicas são, ao mesmo tempo, mais restritas do que as questões moralmente relevantes, pois somente o comportamento exterior é acessível ao Direito, e mais amplas, já que o Direito, como meio de organização, não se refere apenas à regulamentação de conflitos interpes-soais, mas também ao cumprimento de programas políticos e a demarcações políticas de objetivos. Assim, as questões jurídicas tangenciam não apenas questões morais, mas tam-bém éticas e pragmáticas, bem como o acordo de interesses

23 HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 288.24 Idem, p.288.25 Idem, p. 288.26 Idem, p. 289. Para uma exposição mais detalhada, ver HABERMAS. Facti-cidad y validez: Sobre el Estado democrático de derecho en términos de te-oría del derecho, 1998, capítulo 3, parte 2. Sobre isso, ver, também, a recons-trução do pensamento de Habermas em CATTONI DE OLIVEIRA. Direito constitucional, 2002, p. 184.

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conflitantes.27 A pretensão de legitimidade das normas jurídi-cas apóia-se sobre vários tipos de razões e depende de uma rede ramificada de discursos e negociações, e não somente de dis-cursos morais.28 Assim, para Habermas, a ideia de Direito na-tural com padrões distintos de dignidade é desencaminhante.29

O Direito positivamente válido pode tirar das pessoas o ônus de grandes exigências motivacionais, cognitivas e or-ganizacionais que uma moral pós-tradicional exige dos agen-tes morais. Isso não libera o legislador e a jurisdição da preo-cupação com que o Direito permaneça em consonância com a Moral. Contudo, as regulamentações jurídicas são por demais concretas para serem legitimadas apenas pelo fato de não con-trariarem princípios morais. Se o Direito não pode obter legiti-midade de um Direito moral superior, de onde pode obtê-la?30

Para Habermas, como a Moral, o Direito deve defen-der a autonomia de todos os envolvidos e atingidos. E assim é que também o Direito deve comprovar sua legitimidade.31

Segundo Habermas,32 a positividade do Direito, porém, obriga a uma decomposição peculiar da autonomia, algo que não existe na Moral. Ou seja, enquanto a autonomia mo-ral é um conceito unitário – e se exerce através de discursos morais de justificação e de aplicação, internamente regidos, respectivamente, pelos princípios da universalização e da

27 HABERMAS. A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 289. So-bre a distinção entre questões éticas (“vida boa”) e morais (“justiça”), ver p. 243 e HABERMAS. Del uso ético, pragmático y moral de la razón práctica. In: Acla-raciones a la ética del discurso, 2000, p. 109ss. Sobre uma “impregnação ética do direito, ver HABERMAS. A luta por reconhecimento no Estado Democrático de Direito In. A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 243.28 Sobre isso, ver HABERMAS. Facticidad y validez: Sobre el Estado democrá-tico de derecho en términos de teoría del derecho, 1998, capítulo 4, parte 2.29 HABERMAS. A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 289.30 Idem, p. 289.31 Idem, p. 290.32 Idem, p. 290.

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adequabilidade33 –, a autonomia jurídica surge sob a dupla forma da autonomia pública – enquanto autores das nor-mas jurídicas – e da autonomia privada – enquanto destina-tários das normas jurídicas –, em razão da obrigatoriedade do Direito remontar não apenas a processos legislativos – institucionalizados constitucionalmente segundo o princí-pio democrático –, mas também a processos administrativos e jurisdicionais – que garantem as condições institucionais, respectivamente, para a realização de programas adminis-trativos e para discursos jurídicos de aplicação normativa.34

Todavia, segundo Habermas,35 esses dois momentos pre-cisam ser mediados para que uma autonomia não prejudique a outra. É preciso, então, demonstrar que a liberdade individual do sujeito privado e a liberdade pública do cidadão possibili-tam-se reciprocamente e que, portanto, os sujeitos de direito só podem ser autônomos à medida que lhes seja permitido, no exercício de sua autonomia política, compreender-se como co-autores dos direitos aos quais devem prestar obediência.36

33 HABERMAS. A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 11. HA-BERMAS. Facticidad y validez: Sobre el Estado democrático de derecho en térmi-nos de teoría del derecho, 1998, capítulo 3, parte 2, e Epílogo a la cuarta edición.34 HABERMAS. A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 290. HABERMAS. Facticidad y validez: Sobre el Estado democrático de derecho en términos de teoría del derecho, 1998, capítulo 3, parte 2, e Epílogo a la cuarta edición. Sobre isso, ver, também, CATTONI DE OLIVEIRA. Devido processo legislativo, 2006, p. 149. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andra-de. Direito Constitucional, 2002, p. 179. 35 HABERMAS. A inclusão do outro: : estudos de teoria política, 2002, p. 290.36 Idem, p. 290.

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4. Sobre a mediação entre soberania popular e direitos humanos

Assim, para Habermas,37 não é de se espantar que as teorias jusnaturalistas modernas tenham dado uma dupla resposta às questões de legitimação, por um lado, pela alu-são ao princípio da soberania popular e ao reconhecimento de direitos à comunicação e à participação que asseguram a autonomia pública dos cidadãos, e, por outro, pela referên-cia ao domínio das leis, garantido pelos direitos humanos ou direitos fundamentais clássicos que garantem a autonomia privada dos membros da sociedade civil.

Para Habermas,38 o Direito legitima-se como um meio para a garantia equânime da autonomia pública e da auto-nomia privada.

As tradições da filosofia política moderna, contudo, não conseguiram dirimir a tensão entre soberania popular e direitos humanos, entre “liberdade dos antigos” e “liberdade dos modernos”. Por um lado, o Republicanismo dá primazia à autonomia pública e, por outro, o Liberalismo dá primazia aos direitos humanos. Assim, por um lado, a autonomia po-lítica tomaria corpo na auto-organização de uma comunida-de que dá a si suas leis; e a autonomia privada, por outro, de-veria afigurar-se no domínio anônimo dessas mesmas leis.39 Tais compreensões levam Habermas a afirmar que: “Quando

37 Idem, p. 290.38 HABERMAS. A inclusão do outro: : estudos de teoria política, 2002, p. 291.39 Sobre isso, ver HABERMAS. Facticidad y validez: Sobre el Estado demo-crático de derecho en términos de teoría del derecho, 1998, capítulo 7, parte 2; HABERMAS. Três modelos normativos de democracia In: A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 269.; CATTONI DE OLIVEIRA. De-vido processo legislativo, 2006 p. 77-116. CATTONI DE OLIVEIRA. Direito, política e filosofia, 2007, p. 25-44.

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é esse o caminho traçado, então uma idéia só pode ter vali-dade à custa da outra. E a eqüiprimordialidade de ambas, in-tuitivamente elucidativa, não segue adiante”.40

Segundo Habermas,41 os direitos humanos não podem nem simplesmente ser impostos ao legislador político como uma restrição externa, nem se deixarem instrumentalizar como requisitos funcionais para seus fins político-legisla-tivos. É preciso, então, considerar o procedimento demo-crático a partir da Teoria do Discurso: sob as condições do pluralismo social e cultural, é o procedimento democrático que confere força legitimadora ao processo legislativo.42 Re-gulamentações que podem pretender legitimidade são jus-tamente as que podem contar com a concordância de pos-sivelmente todos os afetados enquanto participantes em discursos racionais, nos termos do “princípio do discurso”.43 Se discursos e negociações são o que constitui o espaço de formação da opinião e da vontade política racional, então, segundo Habermas,44 a suposição de racionalidade que deve embasar o processo democrático tem que se apoiar num ar-ranjo comunicativo segundo o qual tudo depende das condi-ções sob as quais se podem institucionalizar juridicamente

40 HABERMAS. A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p.291.41 Idem, p.291.42 HABERMAS. Facticidad y validez: Sobre el Estado democrático de derecho en términos de teoría del derecho, 1998. Para uma reconstrução do pensamento habermasiano, SALCEDO REPOLÊS. Habermas e a desobediência civil, 2003. 43 HABERMAS. A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 292. Para uma explicação mais aprofundada, ver Facticidad y validez: Sobre el Estado democrático de derecho en términos de teoría del derecho, 1998, p. 172. Sobre o princípio do discurso e sua concretização em princípio da mo-ralidade e em princípio da democracia, ver a análise precisa de SALCEDO REPOLÊS. Habermas e a desobediência civil, 2003, p.95.44 HABERMAS. A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 292. Ver, também, HABERMAS. Facticidad y validez: Sobre el Estado democráti-co de derecho en términos de teoría del derecho, 1998, p. 119-262. CATTONI DE OLIVEIRA. Direito, política e filosofia, 2007 p. 45-56.

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as formas de comunicação necessárias para a criação legítima do Direito.45 Assim, para Habermas, “A almejada coesão in-terna entre direitos humanos e soberania popular consiste as-sim em que a exigência de institucionalização jurídica de uma prática civil do uso público das liberdades comunicativas seja cumprida justamente por meio dos direitos humanos. Direi-tos humanos que possibilitam o exercício da soberania popu-lar não se podem impingir de fora, como uma restrição”.46

Todavia, Habermas afirma que, até este ponto, só se elucidaram os direitos políticos, mas não os clássicos direi-tos que garantem autonomia privada.47 Esses direitos pos-suem um valor intrínseco ou, ao menos, não se diluem num valor instrumental em prol da formação democrática da vontade. Para demonstrar isso é necessário, agora, precisar a tese segundo a qual os direitos humanos possibilitam a prá-xis de autodeterminação dos cidadãos.

5. A relação entre autonomia pública e autonomia privada

A concepção de autodeterminação jurídica exige que os destinatários do Direito possam ao mesmo tempo ver--se como seus autores. A ideia segundo a qual esses direitos

45 Sobre isso, ver a análise de SALCEDO REPOLÊS. Habermas e a desobe-diência civil, p. 118.46 HABERMAS. A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 292. Sobre as implicações desse pensamento no que se refere a uma justifi-cação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis, ver, HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez: Sobre el Estado democrático de derecho en términos de teoría del derecho, 1998, p. 311-362; e CATTONI DE OLIVEIRA. Devido processo legislativo, 2006, p. 165-198.47 HABERMAS. A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 292.

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são fatos morais, encontrados pelo constituinte e por ele positivados entra em contradição com a noção de autode-terminação.48

Todavia, não há como ignorar que não cabe mais aos cidadãos a livre escolha do “medium” através do qual eles mesmos podem tornar efetiva sua autonomia, no papel de co-legisladores: “No processo legislativo os cidadãos só po-dem tomar parte na condição de sujeitos de direito; não po-dem mais decidir sobre a linguagem de que se devem servir. A idéia democrática da autolegislação não tem opção senão validar-se a si mesma no ‘medium’ do direito”.49

Quando da institucionalização das condições para um processo legislativo democrático, sob a forma de direitos polí-ticos, é necessário que o código do direito já esteja à disposição. Para a criação desse código, do código ou forma jurídica mo-derna, é necessário criar o “status” de sujeitos de direitos que pertençam, enquanto titulares de direito subjetivos, a uma comunidade jurídica, pois, na modernidade, “[n]ão há direito algum sem a autonomia privada de sujeitos de direito”.50

Segundo Habermas,51 sem os direitos fundamentais que asseguram a autonomia privada dos cidadãos, não ha-veria o “medium” para a institucionalização jurídica das

48 Sobre isso, ver a resposta de Habermas a objeções de Frank Michelman em HABERMAS. Estado democrático de direito – uma amarração parado-xal de princípios contraditórios? In: Era das transições 2003, p. 165. Aqui, é preciso corrigir um erro material: “Para enfrentar essa objeção, prefiro [não] recorrer à objetividade de idéias morais últimas”. Comparar com a tradução para o inglês, de William Rehg: “I prefer not to meet this objec-tion by recourse to the transparent objectivity of ultimate moral insights” (HABERMAS. Constitutional Democracy: A paradoxical union of contradic-tory principles?. In: Political Theory, 2001, p. 774)49 HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 293.50 Idem, p. 293.51 Idem, p. 293.

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condições sob as quais os sujeitos de direito podem fazer uso da autonomia pública ao desempenharem seu papel de cidadãos.

Assim, a autonomia pública e a privada pressupõem-se mutuamente, sem que haja primazia de uma sobre a outra. “Os cidadãos só podem fazer um uso adequado de sua auto-nomia pública quando são independentes o bastante, em ra-zão de uma autonomia privada que esteja equanimente asse-gurada; mas também no fato de que só poderão chegar a uma regulamentação capaz de gerar consenso, se fizerem uso ade-quado de sua autonomia política enquanto cidadãos.”52

Segundo Habermas53, essa relação interna entre Esta-do de Direito e democracia foi encoberta pela concorrência dos paradigmas jurídicos - liberal e de bem-estar social – dominantes até hoje na história do constitucionalismo.

Cabe lembrar que o termo “paradigma” foi introduzi-do na discussão epistemológica contemporânea, com o sen-tido, p. ex., utilizado por Gomes Canotilho,54 ou seja, como “’consenso científico’ enraizado quanto às teorias, modelos e métodos de compreensão do mundo”, a partir do conceito concebido por Thomas Kuhn:

[...] paradigmas são realizações científicas universalmente reco-nhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e so-luções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência.55

Como bem expõe Giovanni Reale,

52 HABERMAS. A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 294. Sobre isso, ver, também, a claríssima passagem de HABERMAS. Acerca da legitimação com base nos direitos humanos In: A constelação pós-nacional, 2001, p. 147-149. 53 HABERMAS. A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 294.54 CANOTILHO. Direito constitucional, 1995, p. 6. 55 Acerca das consequências da utilização desse conceito em Kuhn, ver KUHN. A estrutura das revoluções científicas, 1994.

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Kuhn escolheu o termo “paradigma” [...] porque ele exprime de maneira eficaz o eixo de sustentação da nova epistemologia [...] Os “paradigmas” indicam as concepções e convicções que constituem os pontos firmes da ciência num dado momento, e que, no curso do arco do tempo, fornecem os modelos para a formulação dos problemas e das suas soluções para os cientistas que trabalham em determinados âmbitos de pesquisas. Escreve Kuhn: “Com a escolha desse termo, pretendi chamar a atenção para o fato de que alguns exemplos da prática científica efetiva reconhecidos como válidos – exemplos que compreendem globalmente leis, teorias, aplicações e instrumentos – fornecem modelos originadores de tradições de pesquisa científica particulares que possuem a sua coerência. [...]”O “paradigma” constitui uma verdadeira “unidade de medida” fundamental nas pesquisas científicas, porque, como já dissemos, constitui o critério segundo o qual se acolhem os pro-blemas, justamente enquanto problemas científicos, e se desen-volvem, conseqüentemente, as suas soluções. [...] O paradigma constitui uma verdadeira “atividade modeladora”, anterior e não redutível inteiramente às componentes lógicas, ou seja, às várias leis, regras e teorias, que podem ser abstraídas e deduzidas delas. Os cientistas não aprendem as leis e as regras abstratamente, mas junto com o paradigma, do qual, posteriormente, as abstraem [...] Os paradigmas podem ser anteriores, mais vinculantes e mais completos do que qualquer conjunto de regras de pesquisa que se possa inequivocamente abstrair deles. Nesse sentido, portanto, os paradigmas têm função reguladora nas ciências e são a verdadeira força dinâmica que determina o seu desenvolvimento.56

Ampliando e redefinindo, com Habermas, o conceito de paradigma, para o campo das ciências sociais e, no âmbi-to desse, para as reflexões acerca do Direito,

Um paradigma jurídico explica, com a ajuda de um modelo da so-ciedade contemporânea, como devem ser entendidos e tratados os princípios do Estado de Direito e dos direitos fundamentais, para que possam cumprir, no dado contexto, as funções que nor-mativamente lhes são atribuídas. Um “modelo social do direito” (Wieacher) representa algo assim como a teoria implícita que a sociedade tem do sistema jurídico, a imagem que este faz de seu

56 REALE. Para uma nova interpretação de Platão, 1991, p. 7-10.

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ambiente social. O paradigma jurídico indica, então, como no marco de tal modelo, podem ser entendidos e realizados os di-reitos fundamentais e os princípios do Estado de Direito. Os dois paradigmas jurídicos, que mais conseqüências tiveram na história do Direito moderno, e que ainda hoje competem entre si, são o do Direito formal burguês e do Direito materializado do Estado Social.57

Isto significa dizer que as compreensões jurídicas pa-radigmáticas de uma época, refletidas por ordens jurídicas concretas, referem-se a imagens implícitas que se tem da própria sociedade; um conhecimento de fundo, um back-ground, que confere às práticas de fazer e de aplicar o Direito uma perspectiva, orientando o projeto de realização de uma comunidade jurídica.

O paradigma liberal pressupõe uma sociedade econô-mica de mercado que se institucionaliza por meio do Direito Privado e vincula-se à expectativa de que se possa alcançar justiça social pela garantia de um “status” negativo, pela de-limitação de esferas de liberdade individuais.

Em outras palavras, a imagem de sociedade implícita ao paradigma liberal de Direito e de Estado é caracterizada pela divisão em sociedade civil e em sociedade política, re-presentados, respectivamente, pela esfera privada, ou seja, vida individual, família e mercado (trabalho e empresa ca-pitalista), e esfera pública, cidadania política, representação política e negócios de Estado.

Assim, sob o paradigma liberal, cabe ao Estado, atra-vés do Direito positivo, garantir certeza nas relações sociais, através da compatibilização dos interesses privados de cada um com o interesse de todos, mas deixar a felicidade ou a busca da felicidade nas mãos de cada indivíduo.

57 HABERMAS. Facticidad y validez: Sobre el Estado democrático de derecho en términos de teoría del derecho, 1998, p. 264. No mesmo sentido, ver p. 469.

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No nível da esfera privada, reconhecem-se direitos na-turais, vida, liberdade e propriedade. E no nível da esfera pú-blica, convencionam-se direitos perante o Estado e direitos à comunidade estatal: status de membro (nacionalidade), igualdade perante a lei, certeza e segurança jurídicas, tutela jurisdicional, segurança pública, direitos políticos, etc.

A Constituição é concebida, no dizer de Gomes Cano-tilho, como

[...] a ordenação sistemática e racional da comunidade política, plasmada num documento escrito, mediante o qual se garantem os direitos fundamentais e se organiza, de acordo com o princípio da divisão de poderes, o poder político.58

Assim, dirá o artigo 16, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789:

Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não tem em absoluto Constituição.

A Constituição é, então, compreendida como “ins-trumento de governo” (instrument of government), como o estatuto jurídico-político fundamental da organização da sociedade política, do Estado. É através da Constituição, compreendida como organização e limitação do poder polí-tico, que se juridifica o Estado, que, legitimado pelo Direito e pelo regime representativo, passa a ser concebido como Es-tado de Direito, como Estado Constitucional.

E um dos grandes princípios de organização política adotado pela Constituição do Estado de Direito é, portanto, o da separação de poderes, em que se atribui a órgãos (ou corps) estatais distintos diferentes poderes, dentro de um sistema de controles recíprocos.

58 CANOTILHO. Direito constitucional, 1995, p. 12.

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Assim, sob o paradigma do Estado Liberal, cabe ao Po-der Legislativo a supremacia, já que ele é quem elabora as leis, fontes supremas do Direito, obedecendo às limitações de não-fazer, presentes na Declaração de Direitos. Cabe ao Poder Judiciário dirimir conflitos interparticulares ou, con-forme o modelo constitucional, entre esses e a Administra-ção Pública, quando provocado, através dos procedimentos devidos, aplicando o Direito Material vigente de modo es-trito, através de processos lógico-dedutivos de subsunção do caso concreto às hipóteses normativas, sob os ditames da igualdade formal, estando sempre vinculados ao sentido li-teral, no máximo lógico, da lei, enfim, sendo a “boca da lei” (Montesquieu). E, enfim, cabe ao Poder Executivo imple-mentar o Direito, garantindo a certeza e a segurança jurídi-cas e sociais, internas e externas, na paz e na guerra. A rela-ção entre os três poderes deve dar-se através de um sistema de “freios e contrapesos”,59 “em que o poder limita o poder”, no exercício das “faculdades de impedir”.60

Como se caracterizaria, pois, o paradigma do Direito burguês? Qual a compreensão liberal do Direito? O Direito é uma ordem, um sistema fechado de regras, de programas condicionais, que tem por função estabilizar expectativas de comportamento temporal, social e materialmente generali-zadas, determinando os limites e, ao mesmo tempo, garan-tindo a esfera privada de cada indivíduo. Nesse sentido, Im-manuel Kant considera que

Uma ação é conforme ao Direito (Recht) quando permite, ou cuja máxima permite, à liberdade do arbítrio de cada um coexistir com a liberdade de todos segundo uma lei universal.61

59 MADISON. Freios e Contrapesos. In: HAMILTON; MADISON; JAY. O fede-ralista 1984, p. 417ss.60 Sobre as “faculdades de impedir”, bem como acerca das “faculdades de esta-tuir”, ver MONTESQUIEU. Do espírito das leis, 1979, p. 151. Para uma análise crí-tica, ver CARVALHO NETTO. A sanção no procedimento legislativo, 1992, p. 130.61 KANT. La metafísica de las costumbres, 1994, p. 39.

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É na forma de leis gerais e abstratas que todo sujeito recebe os mesmos direitos subjetivos: “O direito é a limita-ção da liberdade de cada um à condição da sua consonância com a liberdade de todos, enquanto esta é possível segundo uma lei universal”.62

Com a crise da sociedade liberal, com o surgimento de um capitalismo monopolista, com o aumento de demandas sociais e políticas, além da Primeira Guerra Mundial, uma verdadeira guerra entre as potências imperialistas europeias de impacto mundial, tem início a fase da história do Constitucionalismo que se convencionou chamar de Constitucionalismo Social.63

A sociedade do pós-Primeira Guerra, a “sociedade de massas”, para usar uma expressão consagrada pela sociologia do século XX, compreende-se dividida em sociedade civil e Estado. Não mais uma sociedade de indivíduos-proprietários privados, mas uma sociedade conflituosa, dividida em vários grupos, coletividades, classes, partidos e facções em disputa, cada qual buscando seus interesses. Não mais um Estado Li-beral “neutro”, distante dos conflitos sociais, mas um Estado que se assume como agente conformador da realidade social e que busca, inclusive, estabelecer formas de vida concretas, impondo pautas “públicas” de “vida boa”. O Estado Social, que surge após a Primeira Guerra e se firma após a Segunda, intervém na economia, através de ações diretas e indiretas; e visa garantir o capitalismo através de uma proposta de bem--estar (Welfare State) que implica uma manutenção artificial da livre concorrência e da livre iniciativa, assim como a com-pensação das desigualdades sociais através da prestação esta-tal de serviços e da concessão de direitos sociais.

62 KANT. Sobre a expressão corrente: isto pode ser correcto na teoria, mas nada vale na prática. In: A paz perpétua e outros opúsculos, 1995, p. 74.63BISCARETTI DI RUFFIA. Introducción al derecho constitucional compa-rado, 1998.

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Tal ruptura paradigmática vem redefinir os clássicos direitos de vida, liberdade, propriedade, segurança e igual-dade. É a chamada “materialização” (Weber) do Direito. O cidadão-proprietário do Estado Liberal passa a ser encara-do como o cliente de uma Administração Pública que ga-rante bens e serviços.

O Direito passa a ser interpretado como sistema de re-gras e de princípios consubstanciadores de valores funda-mentais (“ordem material de valores” no entendimento da Corte Constitucional Federal alemã), bem como de progra-mas de fins, realizáveis no “limite do possível” e a Constitui-ção é o estatuto jurídico-político fundamental do Estado e da sociedade: organiza e limita os poderes do Estado e é “me-dida material da sociedade” (Hesse). A Constituição pres-creve programas políticos, define procedimentos e estrutura competências – questões não só de controle de constitucio-nalidade da atividade legislativa, mas também de omissões legislativas inconstitucionais passam à tela de juízo, assim como a questão acerca da vinculação positiva e negativa do legislador às normas constitucionais.

Sob o paradigma do Estado Social, assim como os di-reitos fundamentais, o princípio da separação dos poderes é reinterpretado. Nesse contexto, caberia falar de funções do Estado e não em separação de poderes, já que não haveria propriamente uma atribuição de diferentes competências a órgãos distintos, mas sim a de funções a órgãos distintos que as exercem cooperativamente, na unidade da soberania es-tatal.64 Assim sendo, o Poder Executivo passa a ser dotado de instrumentos jurídicos, inclusive legislativos, de interven-ção direta e imediata na economia e na sociedade civil, em nome do “interesse coletivo, público, social ou nacional”. Ao Poder Legislativo, além da atividade legislativa, cabe o exer-cício de funções de fiscalização e de apreciação da atividade 64 Por exemplo, em CARRÉ DE MALBERG. Teoría general del Estado, 1948.

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da administração pública e da atuação econômica do Esta-do. Ao Poder Judiciário cabe, no exercício da função jurisdi-cional, aplicar o direito material vigente aos casos concretos submetidos à sua apreciação, de modo construtivo, buscan-do o sentido teleológico de um imenso ordenamento jurídi-co. Não se prendendo à literalidade da lei e à de uma enor-midade de regulamentos administrativos ou a uma possível intenção do legislador, deve enfrentar os desafios de um Di-reito lacunoso, cheio de antinomias. Tal função será exercida através de procedimentos que muitas vezes fogem ao ordi-nário, nos quais deve ser levada mais em conta a eficácia da prestação ou tutela do que propriamente a certeza jurídico--processual-formal: no Estado Social, cabe ao juiz, enfim, no exercício da função jurisdicional, uma tarefa densificadora e concretizadora do Direito, a fim de se garantir, sob o princí-pio da igualdade materializada, “a Justiça no caso concreto”.65

Nesses termos, o paradigma do Estado Social desenvol-veu-se a partir de uma crítica consistente a esta suposição: se a “liberdade de poder ter e poder adquirir” deve garantir jus-tiça social, é preciso haver uma igualdade do poder juridica-mente.66 Segundo Habermas,67 com a crescente desigualda-de das posições de poder econômico e de condições sociais, “desestabilizaram-se sempre mais os pressupostos factuais capazes de proporcionar que o uso das capacidades jurídicas distribuídas por igual ocorresse sob uma efetiva igualdade de chances”. Não deixou de ser necessário, pois, especificar o conteúdo das normas vigentes do Direito Privado, nem de se introduzirem direitos fundamentais de cunho social que

65 Acerca do papel assumido pelo Judiciário no Estado Social, ver a análise pe-netrante de CAPPELLETTI. Juízes legisladores? 1993.66 HABERMAS. A inclusão do outro : estudos de teoria política, 2002, p. 294.67 Idem, p. 294.

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embasassem as reivindicações de uma distribuição mais jus-ta da riqueza produzida e de uma defesa mais efetiva contra os riscos produzidos socialmente.

Todavia, nesse meio tempo, segundo Habermas, a ma-terialização (Weber) do Direito ocasionou as consequências secundárias e indesejadas de um paternalismo do Estado Social.68 Criticando, pois, o paradigma do Estado Social, Ha-bermas afirma que

[...] a almejada equiparação de situações de vida e posições de po-der não pode levar a um tipo de intervenções “normalizadoras” ou “padronizadoras” que acabem por limitar o espaço de atuação de seus prováveis beneficiários, no que se refere à concepção autôno-ma dos projetos de vida de cada um deles.69

Os dois paradigmas – liberal e social –, nos desdobra-mentos posteriores da “dialética entre a igualdade jurídica e factual”, revelaram-se igualmente comprometidos com a imagem produtivista de uma sociedade econômica capitalis-ta e industrial. Para Habermas,70 só há discordância entre es-ses dois paradigmas quanto a se poder garantir a autonomia privada diretamente mediante direitos de liberdade ou me-diante a outorga de benefícios sociais. “Em ambos os casos, todavia, perdeu-se de vista a coesão interna entre autonomia privada e pública.”71

68 HABERMAS. A inclusão do outro : estudos de teoria política, 2002, p. 294.69 Idem, p. 295.70 Idem, p. 295.71 Idem, p. 295.

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6. O exemplo das políticas feministas de equiparação72

Com a crescente crise de legitimação do Estado Social, poucos foram os momentos, em toda a história do Consti-tucionalismo e do Direito moderno, em que os regimes po-líticos e jurídicos passaram por tamanha transformação tal como a partir da década de 70, do século XX.

No esteio dos novos movimentos sociais, tais como o estudantil de 1968, o pacifista, o ecologista e os de luta pe-los direitos das minorias, além dos movimentos contracul-turais, que passam a eclodir a partir da segunda metade da década de 60, a “nova esquerda”, a chamada esquerda não--estalinista, a partir de duras críticas tanto ao Estado de Bem-Estar – denunciando os limites e o alcance das políticas públicas, as contradições entre capitalismo e democracia –, quanto ao Estado de socialismo real – a formação de uma burocracia autoritária, desligada das aspirações populares –, cunha a expressão Estado Democrático de Direito. O Estado Democrático de Direito passa a configurar uma alternativa de superação tanto do Estado de Bem-Estar quanto do Es-tado de socialismo real. Socialistas democráticos, democra-tas radicais e socialistas cristãos concebem, então, o Estado Democrático de Direito como uma organização política que possibilitaria a transição democrática ao socialismo.

A questão, pois, acerca dos paradigmas de Direito, de Estado e de Constituição, com a crise do Estado de Bem-Es-tar Social, torna-se reflexiva: um conhecimento de fundo passa a ser problematizado no nível do discurso.73

72 Para uma exposição mais aprofundada do que se segue, ver HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez: Sobre el Estado democrático de derecho en tér-minos de teoría del derecho, 1998, p. 492-512.73 HABERMAS. Between facts and norms: Contributions to a Discourse Thery of Law and Democracy, 1996, p. 390.

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Buscando sustentar a tese de que os sistemas jurídicos, que surgiram no final do século XX, nos Estados Sociais de democracias de massa, em virtude da reflexividade das ques-tões jurídicas, só poderiam ser adequadamente compreen-didos em termos procedimentais, assim Habermas caracte-riza, no capítulo 6 de sua obra, o que seria a Constituição do Estado Democrático de Direito:

Se sob as condições de um mais ou menos estabilizado compro-misso relativo ao Estado de Bem-Estar Social, quer-se sustentar não somente um Estado de Direito, mas também um Estado De-mocrático de Direito, e, assim, a idéia de auto-organização da co-munidade jurídica, então não se pode manter a visão liberal de Constituição como uma “ordem-quadro” que regule essencial-mente a relação entre administração e cidadãos. O poder econô-mico e a pressão social necessitam ser conformados pelos meios do Estado de Direito não menos do que o poder administrativo. Por outro lado, sob as condições do pluralismo societário e cul-tural, a Constituição deve também não ser concebida como uma ordem jurídica concreta que imponha aprioristicamente uma for-ma de vida total à sociedade. Ao contrário, a Constituição estabe-lece procedimentos políticos de acordo com os quais os cidadãos possam, com sucesso, no exercício de seu direito de autodetermi-nação, buscar realizar o projeto cooperativo de estabelecer jus-tas (i.e. relativamente mais justas) condições de vida. Somente as condições procedimentais da gênese democrática das leis assegu-ram a legitimidade do Direito.74

A partir das políticas feministas de equiparação é pos-sível demonstrar, segundo Habermas, que a política do Di-reito oscila desamparadamente entre o paradigma liberal e o social, e isso perdurará enquanto ela continuar limitada à garantia da autonomia privada e enquanto se continuar ofuscando a relação interna entre autonomia privada e au-tonomia pública:

74 HABERMAS. Between facts and norms: Contributions to a Discourse Thery of Law and Democracy, 1996, p. 263.

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Pois os sujeitos privados só podem chegar ao gozo de liberdades subjetivas, se eles mesmos, no exercício de sua autonomia de ci-dadãos do Estado, tiverem clareza quanto aos interesses e parâ-metros justos e puserem-se de acordo quanto a aspectos relevan-tes sob os quais se deve tratar com igualdade o que é igual, e com desigualdade o que é desigual. 75

A política liberal tomou por objetivo suprimir o aco-plamento existente entre conquista de “status” e identidade de gênero, para garantir à mulher igualdade de chances. Mas tão logo se logrou impor ao menos em parte a equiparação formal, evidenciou-se de forma dramática o tratamento de-sigual que de fato se destina às mulheres.76

Já a política do Estado Social, quer através do Direi-to do Trabalho, do Direito Previdenciário ou do Direito de Família, procurou reagir a tal situação de desigualdade com regulamentações especiais, referentes, por exemplo, à gravi-dez e à maternidade. Desde então, não apenas as exigências não atendidas tornaram-se objeto de crítica feminista, mas também as consequências ambivalentes dos programas so-ciais implementados com êxito, ou seja, o risco de desem-prego, de salários mais baixos, a feminilização da pobreza, o problema da criança etc.77

Segundo Habermas, há uma razão, do ponto de vista jurídico, para essa discriminação criada reflexivamente nas classificações amplamente generalizantes, aplicadas a situa-ções desfavorecedoras e a grupos desfavorecidos:

[...] essas classificações “errôneas” levam a intervenções “norma-lizadoras” ou “padronizadoras” na maneira de conduzir a vida, as quais permitem que a almejada compensação de danos acabe se convertendo em nova discriminação, ou seja, garantia de liberda-de converte-se em privação de liberdade.78

75 HABERMAS. A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 295.76 Idem, p. 296.77 HABERMAS. A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 296. Ver, também, a Tese de Doutoramento de MONTEIRO DE BARROS. A mu-lher e o direito do trabalho, 1995.78 HABERMAS. A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 296.

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Tal paternalismo, segundo nos lembra Habermas,79 é assumido de forma literal: o Legislativo e a Jurisdição contri-buem com o fortalecimento dos estereótipos de identidade de gênero já vigentes, ao orientarem-se segundo modelos de interpretação tradicionais.

A classificação dos papéis sexuais e das diferenças vinculadas aos sexos concerne a camadas elementares da autocompreensão cul-tural de uma sociedade. Só hoje o feminismo radical toma cons-ciência do caráter falível, merecedor de revisões e fundamental-mente controverso dessa autocompreensão. 80

Segundo Habermas,81 o movimento feminista tem de-fendido insistentemente que determinados enfoques da questão de gênero devem ser esclarecidos em meio à opinião pública, em controvérsias acerca da interpretação de carên-cias e critérios, a começar pelos enfoques sob os quais as di-ferenças entre experiências e situações de vida de homens e mulheres tornam-se relevantes para que o uso das liberda-des individuais possa ocorrer com igualdade de oportunida-des. Assim, a partir da luta pela igualdade de condições para as mulheres, é possível, segundo Habermas, mostrar a mu-dança urgente da compreensão paradigmática do direito. 82

79 HABERMAS. A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 296.80 Idem, p. 296. Ver, também, HABERMAS. “A luta pelo reconhecimento no Estado democrático de Direito” In: A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 235-239.81 Idem, p. 296.82 Idem, p. 296. Em Facticidad y validez: Sobre el Estado democrático de derecho en términos de teoría del derecho, Habermas esclarece, na página 264: “Com a interpretação que venho fazendo do Direito e da política, nos termos da Teoria do Discurso, minha intenção é apresentar contornos mais claros para um terceiro paradigma do Direito, que recapitule em si os outros dois [o liberal e o de bem-estar social]. Parto da hipótese, segundo a qual, o que mais se ajusta aos sistemas jurídicos, que em fins do século XX, vigoram nas democracias de massa, articulados no marco do Estado Social, é uma compreensão procedimental do Direito”.

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Segundo Jürgen Habermas: Em lugar da controvérsia sobre ser melhor assegurar a autonomia das pessoas do direito por meio de liberdades individuais para ha-ver concorrência entre os indivíduos em particular ou então me-diante reivindicações de benefícios outorgadas a clientes de um Estado de bem-estar social, surge agora uma concepção jurídica procedimentalista, segundo a qual o processo democrático pre-cisa assegurar ao mesmo tempo a autonomia privada e a públi-ca: os direitos subjetivos, cuja tarefa é garantir às mulheres um delineamento autônomo e privado para suas próprias vidas, não podem ser formulados de modo adequado sem que os próprios envolvidos articulem e fundamentem os aspectos relevantes para o tratamento igual ou desigual em casos típicos. Só se garante au-tonomia privada em igualdade de direitos quando isso se dá em conjunto com a intensificação da autonomia civil no âmbito do Estado.83

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83 HABERMAS. A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 297.

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Capítulo III A constituição entre o direito e a política:

novas contribuições para a teoria do poder constituinte e o problema da

fundação moderna da legitimidade1

1. Introdução

Um importante modo de se reconstruir o sentido e o al-cance de eventos históricos é o resgate da história de concei-tos que com eles surgiram ou que com eles tiveram sua signi-ficação redefinida. Nesse sentido é que é possível a Hannah Arendt afirmar que uma forma de se situarem tais eventos é buscando compreender quando um novo conceito a eles ligado surge ou quando um antigo termo passa a ser usado com uma nova significação.2

É esse o caso com o conceito de revolução. Sua signifi-cação moderna possui dia, hora e local de nascimento: avi-sado sobre a tomada da Bastilha, Luís XVI pergunta se aquilo seria uma revolta, ao que o Duque de La Rochefoucauld--Liancour responde que não, que não se tratava de uma re-volta, mas de uma revolução.

1 O presente capítulo foi escrito em co-autoria com David Francisco Lopes Gomes, a quem agradeço por autorizar esta publicação. 2 ARENDT. Da Revolução, 1988, p. 28-29.

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Exageros à parte, os acontecimentos de fins do século XVIII tanto se situam num contexto de alterações da noção de temporalidade histórica quanto contribuem para essas alterações. Revolução, sendo um conceito derivado do mo-vimento dos astros, significara até ali um movimento de re-torno necessário a um mesmo ponto de partida. A partir de então, passaria a significar um movimento de ida em direção a algo novo. De uma temporalidade cíclica passava-se a uma temporalidade linear e direcionada ao futuro. Essa mudan-ça não se resumia ao conceito de revolução. Outras palavras – como o próprio termo história, que, em alemão, passaria de Historie para Geschichte – contribuiriam para aquilo que Reinhart Koselleck chama de temporalização da história, processo que conduziria a uma forma de aceleração do tem-po histórico típica da Modernidade.3

Em meio a esse conjunto de alterações que caracteri-zam a passagem à Modernidade, podem ser situadas tam-bém as mudanças nos campos da autoridade das normas jurídicas e da legitimidade do poder político. Em outras pa-lavras, as mudanças no campo da relação entre o direito e a política. Essas mudanças, se bem que lhes antecedessem e que continuariam seu processo depois deles, encontram nos movimentos revolucionários do final do século XVIII sua ex-pressão mais forte e, por isso mesmo, mais dramática.

Assim, no intuito de abordar exatamente as transfor-mações pelas quais passa a relação entre o Direito e a Políti-ca com o advento dos tempos modernos, a discussão que no presente capítulo se propõe tem como referência dois even-tos que passariam à historiografia tradicional com o nome de Revoluções Liberais ou Revoluções Burguesas: a Revolu-ção Americana e a Revolução Francesa.

3 KOSELLECK. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos his-tóricos, 2006, p. 23.

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Todavia, até que ponto é possível dizer que ambas fo-ram revoluções? E, se foram, até que ponto foram liberais e burguesas? Pois, se para alguns historiadores modernos, e talvez para o próprio Marx, não seria estranho negar a exis-tência de uma Revolução Americana,4 para Arendt não seria igualmente sem propósito considerar a Revolução Francesa como uma revolução que teria fracassado ao não ser capaz de constituir um novo regime estável e apto a garantir a vi-vência da liberdade.5

Além disso, conquanto as ideias liberais estivessem presentes em ambos os lados do Atlântico, fato é que não estiveram sozinhas, nem dominaram em absoluto o espírito dos homens e mulheres daquela época. As ideias jacobinas, tão inspiradas em Jean-Jacques Rousseau e tão veemente-mente proferidas na boca e nos textos de Robespierre, ates-tam, em solo europeu, a presença forte de uma perspectiva não-liberal. Do outro lado do oceano, pode-se dizer o mes-mo, uma vez que, se o que ficou da revolução, para a tristeza de muitos, foi um espírito liberal e um novo modo de se pen-sar a política, não foi sempre dessa forma. A transição de um republicanismo cívico a um liberalismo relativamente insu-lar foi um processo longo e, de certo modo, doloroso, que se consolidaria num tempo muito maior do que aquele que se costuma atribuir à duração da revolução.6

Por fim, a burguesia não esteve como artista solo no palco revolucionário. Se não é de todo errado dizer que suas reivindicações saíram como as principais vitoriosas daqueles anos, daí não decorre a conclusão de que os burgueses te-nham sido os únicos atores daquela cena. Uma reconstrução mais adequada do período mostra que ambas as revoluções

4 ARENDT. Da Revolução, 1988, p. 20.5 ARENDT. Da Revolução, 1988.6 BAILYN. As Origens Ideológicas da Revolução Americana, 2003, p. 287-336.

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resultam de uma teia complicada de relações em que bur-gueses, nobres e camadas populares compõem, cada qual a seu modo, o quadro das ações políticas.

Qualquer que seja o caso, é no interior dessas revolu-ções que deve ser buscado o surgimento, de maneira mais enfática, de um novo modo de relacionar as normas jurídi-cas e o poder político. A seguir, apresentam-se algumas das questões enfrentadas e das discussões empreendidas no con-figurar dessa nova relação. Para tanto, inicia-se com um pa-norama geral sobre as concepções antiga e medieval acerca da “constituição”. Em seguida, parte-se para uma análise dos processos revolucionários americano e francês e das princi-pais questões neles levantadas: o problema do princípio, a fonte do poder e a autoridade da lei. Posteriormente, vol-tam-se as atenções à singularidade da Revolução Americana e ao surgimento, em seu contexto, do conceito moderno de constituição, como documento jurídico-político, dotado de supralegalidade e pressuposto do controle de constituciona-lidade das leis. Por fim, abordam-se diferentes leituras feitas da Teoria do Poder Constituinte ao longo de mais de dois sé-culos de tradições constitucionais, chegando-se à sua com-preensão contemporânea e ao legado desses mais de dois sé-culos ao Estado Democrático de Direito.

2. A “constituição” na antiguidade e no medievo

Talvez possa soar estranho, neste início de século XXI, que alguém se remeta à constituição como algo diferente de um documento escrito, datado e assinado no tempo históri-co, fundamento último, e mais ou menos tangível, de valida-de do ordenamento jurídico positivo e ponto de partida para o exercício legítimo do poder político. Não obstante, essa conceituação, principalmente em seus aspectos mais for-

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mais, não possui origens tão remotas. E se suas origens não são tão remotas, muito menos poderia haver um consenso a seu redor. Os ricos debates da República de Weimar,7 após a Primeira Grande Guerra, são prova mais do que suficiente do quanto poderiam ser superficiais e reducionistas concepções formalistas que não poucas vezes alcançam o direito consti-tucional e a teoria da constituição.

Por agora, porém, importa caminhar até um pouco mais atrás. Levando-se em conta a breve exposição acima sobre os problemas ligados à questão conceitual, e atentando também para a advertência de Fioravanti8 acerca do anacronismo de se tentarem atualizar doutrinas passadas à luz do Constitucio-nalismo Moderno ou de se buscarem naquelas as raízes des-te, cabe fazer uma pequena reconstrução das compreensões constitucionais da Antiguidade e do Medievo.

Em meados do século IV a.C., a polis grega não era mais o ambiente onde se havia realizado a intensa experiência po-lítica democrática que, não obstante as especificidades da época e o tempo desde então transcorrido, segue sendo lem-brada por muitos como o modelo ideal a ser reconstruído. A outra face de um processo de mercantilização do espaço pú-blico grego e de crescente predomínio das relações econômi-cas sobre a vivência política era exatamente uma crise desta última, marcada por discórdias e particularismos locais.9

Diante desse quadro, tem início o desenvolvimento de um pensamento voltado à compreensão e à tentativa de apontar soluções para o grande problema que então trans-parecia: a possibilidade de que aquele clima instável gerasse conflitos capazes de fazerem sucumbir as bases da polis.

7 JACOBSON; SCHLINK. A jurisprudence of Crisis, 2000.8 FIORAVANTI. Constitución: De la antiguedad a nuestros dias, 2001, p. 12.9 Idem, p. 15.

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É nesse sentido que se desenvolverá a reflexão de auto-res como Platão, Aristóteles e Políbio. Em que pesem as di-ferenças existentes entre eles10, é possível traçar linhas gerais que conduzem ao que teria sido a constituição para os anti-gos. Em face da crise que então mostrava seus contornos, o objetivo comum era a busca por uma forma de governo ideal, que garantisse a unidade e o desenvolvimento da comuni-dade política. Forma de governo, nesse contexto, não tem o significado com o qual modernamente é entendida. An-tes, a expressão compreende uma ordenação política e so-cial em que a comunidade e seus poderes públicos são vistos como indivisíveis e reflexivos entre si, um sistema de organi-zação e controle dos distintos componentes de uma socieda-de historicamente dada.11 À forma de governo que buscavam, a essa ordenação do todo social e de seu reflexo nos poderes públicos, dava-se o nome de politeía, passível de ser traduzi-da como constituição.

Fato é que a democracia, ao contrário do que pareceu, e ainda parece, aos olhos modernos, não era mais bem vista sob a ótica daquele tempo. Afinal, a forma democrática e sua ideia de igualdade representavam apenas a vitória de um dos segmentos sociais, com a exclusão dos outros dois. Ou seja, a constituição democrática era nada mais do que uma constituição dos vence-dores, fruto da violência e, por conseguinte, fadada ao declínio.

O mesmo se daria com toda constituição que pretendesse ser o eco do predomínio exclusivo de um dos três componentes principais que estruturavam a sociedade: tanto uma constitui-ção puramente monárquica quanto uma outra absolutamente aristocrática tendiam inegavelmente à mesma queda.

10 Aqui, não se abordarão as sutis, embora importantes, diferenças na argu-mentação de cada um desses autores. Para tanto, ver FIORAVANTI, Cons-titución: De la antiguedad a nuestros dias, 2001, p. 15-31, onde é possível perceber que o debate não se resume à Grécia, alcançando também Roma.11 Idem, p. 16-17

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Se a constituição dos vencedores, quaisquer que fos-sem eles, era marcada pela instabilidade e pela inafastável destinação ao fracasso, era necessário encontrar uma forma de governo que se caracterizasse pelo equilíbrio entre os di-versos elementos sociais. Uma constituição sem vencedores, que não seria fruto de nenhuma violência originária e, por con-sequência, poderia manter-se estável e duradoura no tempo.

Frente à necessidade de formular uma constituição cuja origem não era violenta, emerge o mito da patrios poli-teía, a constituição dos antepassados.12 Esta não possuía um início marcado no tempo histórico nem era fruto de violên-cia e unilateralidade. Ao contrário, havia sido consolidada progressiva e lentamente, caracterizando-se como compo-sitiva e plural. Referida a um passado imemorial, a patrios politeía equilibrava numa mesma estrutura social os compo-nentes monárquico, aristocrático e democrático, gozando de estabilidade e duração. Mais importante do que ser antiga, a constituição dos antigos trazia em si a virtude de ser uma constituição mista, sendo essa a forma de governo ideal que se procurava reconstruir.

Essa ideia de uma constituição mista permaneceria presente nos debates constitucionais da Idade Média, prin-cipalmente a partir do século XI,13 mas muita coisa seria al-terada em seu significado anterior. Lembrando-se da imensa diversidade que marca o Medievo e que torna difícil e, mais do que nunca, incompleto, qualquer tipo de estudo sobre esse período, podem-se, ainda assim, arriscar alguns comen-tários sobre o que seria uma constituição medieval.

Como dito, a característica mista da constituição se mantém, da mesma maneira como ela continua sendo en-tendida como autorrepresentação da sociedade e de seus componentes fundamentais. No entanto, se os antigos a

12 FIORAVANTI. Constitución: De la antiguedad a nuestros dias, 2001, p. 21-2213 Idem, p. 37.

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viam como uma ordem política ideal, a Idade Média a toma como uma ordem jurídica dada, não como algo a ser busca-do, mas sim preservado. Se a constituição mista dos antigos deveria legitimar a existência de fortes poderes públicos re-conhecidos como existentes no seio social, para a Idade Média ela possuía o papel fundamental de limitar intrinsecamente esses mesmos poderes. E, enquanto os antigos a buscavam como contraponto à crise trazida pelo recrudescimento da economia e das trocas comerciais, entendendo-a como fator de (re)fortalecimento do espaço político e da virtude cidadã, na Idade Média as relações econômicas e patrimoniais eram o ponto de apoio sobre o qual se sustentava a legitimidade da ordem jurídica dada que compreendia a constituição.14

Em síntese, para os antigos a constituição aparece como um projeto de disciplina social e política, praticamen-te desprovida de um sentido jurídico-normativo. Para os que sobre ela refletiram na Idade Média, embora mantivesse um caráter social e político, emergia com destaque seu teor nor-mativo, como ordem jurídica dada, compreendida pelo con-junto amplo de acordos e pactos, de natureza privada em sua maioria, internos à própria sociedade e destinados à manu-tenção da estrutura estamental vigente.

Apesar das diferenças entre as noções antigas e medie-vais acerca da constituição, o que fica claro é que ambas em muito se distanciam da concepção moderna, apresentada no início deste tópico. Embora a constituição mista medieval apresente uma certa natureza jurídica, isso em nada se apro-xima da ideia de norma positiva dotada de supralegalidade e os documentos escritos que podem ser encontrados, como a Magna Carta inglesa, de 1215, são meros pactos feudais.

14 FIORAVANTI. Constitución: De la antiguedad a nuestros dias, 2001, p. 37-38

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O conceito moderno de constituição somente emergi-ria no contexto das revoluções de fins do século XVIII. Mais precisamente, no âmbito dos debates coloniais, na América Inglesa, sobre as medidas impostas pela metrópole. E surgi-ria de um jeito inusitado, a partir de seu negativo.

Sendo o parlamento e o princípio do King in Parlia-ment entendidos como a institucionalização jurídico-polí-tica da estrutura mista da constituição, a lei que dele ema-nava era entendida como a própria constituição, de modo que era impossível aos ingleses uma construção conceitual do tipo “lei inconstitucional”.

Para os pensadores e políticos da América colonial era diferente. Entendendo a constituição como algo distinto e que estava de alguma forma acima da lei do parlamento, pu-deram julgar o ato impositivo de novos tributos, por parte desse mesmo parlamento, como “ilegal, inconstitucional e injusto”.15 Começava a se delinear uma nova compreensão do que era uma constituição.16 Seus contornos mais nítidos so-mente apareceriam nos anos posteriores à Revolução Ame-ricana e se consolidariam jurisprudencialmente ao longo do século XIX,17 como frutos de um conjunto complexo de fato-res, em parte abordado em seguida, por meio de um proces-so ainda mais complexo de modernização social e cultural.18

15 FIORAVANTI. Constitución: De la antiguedad a nuestros dias, 2001, p. 104.16 Para uma reconstrução acerca de como os colonos norte-americanos compreen-diam o conceito de constituição e a constituição mista inglesa anteriormente à revo-lução, ver BAILYN. As Origens Ideológicas da Revolução Americana, 2003, p. 78-88.17 Enquanto nos Estados Unidos a jurisprudência assumiria, no século XIX, um papel predominante na consolidação do conceito moderno de constituição, a tensão entre revolução e constituição atravessaria a Europa oitocentista. Tam-bém essa tensão, porém, que ora pendia para um lado, ora para o outro, contri-buiu, a seu modo, para a consolidação do conceito moderno de constituição. Ver DIPPEL, História do Constitucionalismo Moderno: Novas Perspectivas, 2007, p. 1-35. Essas questões ficarão mais claras na sequência do presente capítulo.18 Essa diferença entre os significados antigo e medieval, de um lado, e mo-derno, de outro, do termo constituição propiciou que distintos usos sociais da palavra convivessem em contextos de mudança das estruturas políticas e

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3. Revolução, poder e autoridade: o problema da perda do fundamento absoluto do poder político e as soluções distintas de ambos os lados do Atlântico

Os eventos políticos de fins do século XVIII têm sido exaustivamente estudados pela historiografia e por outras áreas do conhecimento. Certamente, aquele foi um período sem precedentes na história mundial. As significativas alte-rações da ordem social e política, o caráter de novidade apre-sentado pelos fatos e a dimensão que estes tomaram fizeram das últimas décadas do século XVIII um momento ímpar.

Entretanto, não ocorreram apenas alterações visíveis, explícitas, mais dramáticas e mais caras ao olhar do histo-riador.19 Mudanças também aconteceram num plano mais profundo, sob a superfície dos fatos, servindo-lhes, muitas vezes, de fundamento e motivo.

Enquanto uma nova estrutura jurídico-política estava sendo delineada, não era apenas o rei que dava lugar a um presidente ou a um diretório; não era apenas um Estado fe-deral que surgia com suas duas câmaras legislativas; não era apenas um documento escrito que se propunha a organizar o espaço político e a assegurar certos direitos individuais. Mais do que isso, o que estava em jogo era o próprio funda-mento da autoridade e do poder.

jurídicas. Dentro dessa lógica, no presente capítulo serão abordadas as dis-putas entre a metrópole inglesa e as colônias norte-americanas, bem como as aporias do Terceiro Estado diante da tarefa de criar uma nova Consti-tuição para a França. Porém, é possível verificar uma disputa semelhante acerca do significado da palavra constituição em solo luso-brasileiro, sobre-tudo durante os anos que vão desde pouco antes da Revolução do Porto até pouco depois tanto da constituição outorgada por Pedro I ao Brasil em 1824 quanto da carta constitucional igualmente elaborada por ele para Portugal em 1826. Para análise do tema, ver NEVES; NEVES, Constituição, 2009 e MIRANDA, O constitucionalismo liberal luso-brasileiro, 2001.19 ARENDT. Da Revolução, 1988, p. 114

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A partir da antiguidade romana, a trindade representa-da pela tradição, pela religião e pela autoridade20 havia sido capaz de fornecer legitimidade ao exercício do poder polí-tico. Tal trindade tomava como ponto de partida a funda-ção mítica de Roma e a tendência, já presente nesse ato fun-dante, à expansão de seus domínios. Todo ato político era referido àquela fundação e confirmado, legitimado, ou não, pela tríade dela emanada. Essa mesma concepção havia sido mantida após a queda do Império Romano do Ocidente e a ascensão da Igreja Católica.

Ao longo dos séculos, porém, aqueles três elementos haviam progressivamente perdido seu valor legitimante. No contexto moderno em que se desenvolvem as revoluções aqui abordadas, apenas a autoridade gozava ainda de certo prestígio. Contudo, mesmo esta, referida não mais à mítica fundação romana, mas a um momento transcendental em que pretensamente o próprio Deus assentava os alicerces do poder político secular, perdia seu potencial justificante.

De fato, o século XVIII encontrava-se diante do esface-lamento de uma construção conceitual milenar que até en-tão conformava, sem maiores problemas, as bases do domínio político ocidental. Nesse sentido, é possível entender as revo-luções que então tiveram lugar como um esforço para recriar essas fundações e novamente conceder legitimidade, estabili-dade e duração ao espaço político e a seus atos de poder.21

Portanto, numa dimensão profunda, o que ocorria sob o turbilhão de eventos marcados, em maior ou menor grau, pelo ar da novidade, era a busca por uma nova fonte tanto para a autoridade quanto para o poder. Essa busca dava-se em meio e através de uma alteração conceitual significati-

20 Para uma reconstrução da relação entre os três elementos da trindade ro-mana e, principalmente, para um estudo profundo do conceito de autorida-de, ver ARENDT, Entre o passado e o futuro, 2000, p. 127-187.21 Idem, p. 185.

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va, na qual conceitos, ainda marcados por traços medievais, ou ligados à Antiguidade Clássica, eram abandonados ou re-construídos, ao passo que outros eram elaborados.

Embora reunidos sob a citada epígrafe comum, “Revo-luções Liberais”, ou “Revoluções Burguesas”, os movimentos revolucionários de França e Estados Unidos (então 13 colô-nias inglesas na América) foram substancialmente distintos, quer pelas razões históricas que lhes serviram de origem, quer pelos desdobramentos que decorreram de cada um deles. De qualquer modo, não se pode negar um certo tom de coinci-dência, principalmente nos objetivos que buscavam cada uma das revoluções: a reestruturação dos alicerces políticos, com a consequente fundação de uma república, e a consolidação do espaço destinado à vivência de liberdades públicas.22

Começando pela Revolução Americana, esta somente pode ser entendida como um processo histórico complexo, estendido no tempo, que tem suas origens na fundação das 13 colônias e é marcado por uma tensão constante entre con-tinuidade e ruptura, entre conservação das tradições ingle-sas e inovação a partir das práticas coloniais.

Essa relação tensa perpassará toda a história colonial e uma mudança substancial em seu enfoque predominante, da continuidade à ruptura, será a principal responsável pela Declaração de Independência de 1776.23

22 ARENDT. Da Revolução, 1988, p. 13. Tais objetivos são assim descritos por Arendt, autora representante do pensamento político republicano. Cer-tamente, não seria difícil encontrar quem os descrevesse de outra maneira. Para um pensador liberal, por exemplo, talvez fossem mais bem colocados como a busca pela limitação do poder político e pela garantia de direitos fundamentais. De todo modo, seja em uma leitura republicana ou liberal, ou em uma terceira vertente que considere ambos os pontos-de-vista, per-manece a possibilidade de encontrar naqueles movimentos sócio-políticos importantes traços de semelhança.23 BAILYN. As Origens Ideológicas da Revolução Americana, 2003, p. 69-141. PINTO. A reação norte-americana aos atentados de 11 de setembro e seu impacto no constitucionalismo contemporâneo: Um estudo a partir da teo-

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Dessa maneira, se a common law era a referência do ponto de vista jurídico e as assembleias locais eram justifica-das pelo fato de que, na Inglaterra, havia um parlamento com igual função, aquele era lido seletivamente em solo colonial e estas, ainda que atuando como órgãos legislativos, não repro-duziam fielmente o parlamento inglês, até porque lhes faltava uma característica importante que o mesmo havia adquirido após a Revolução Gloriosa: o elemento de soberania.24

No entanto, tal reconstrução colonial das tradições in-glesas não parecia acontecer num plano consciente. Os co-lonos sentiam-se como verdadeiros súditos britânicos e jus-tificavam suas leis e instituições, mesmo no que tinham de distinto e inovador, com base naquilo que consideravam a mais esplêndida obra política de toda a História: a constitui-ção mista inglesa.25

Essa ausência de consciência sobre as alterações que de fato estavam a fazer é compreensível quando se tem em men-te que todo seu arcabouço conceitual era de origem inglesa.26 Se inicialmente lidavam apenas com os conceitos que a tra-dição britânica lhes legara, somente poderiam compreender o mundo através deles, o que tornava difícil verificar desvios que, embora acontecessem, não podiam ser representados discursivamente.

Disso resulta uma situação paradoxal: os habitantes da terra americana estavam ligados, concomitantemente, à conservação da tradição e à inovação da experimentação,

ria da diferenciação do direito, 2004.24 PINTO. A reação norte-americana aos atentados de 11 de setembro e seu impacto no constitucionalismo contemporâneo: Um estudo a partir da teo-ria da diferenciação do direito, 2004, p. 145-146.25 Idem, p. 103-112, 131.26 Idem, p. 129-146.

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enquanto se encontravam intelectualmente fechados num universo conceitual que não lhes permitia compreender ple-namente suas próprias práticas políticas.

Seguindo a discussão sobre o lastro conceitual colonial, vale notar que suas matrizes intelectuais não se limitavam às três fontes comumente lembradas: a Antiguidade Clássica, o Iluminismo e o Direito Consuetudinário Inglês. Além des-sas, havia uma outra, que parece ter sido a mais relevante sob o olhar da revolução.27 Trata-se de uma linha de pensa-mento político radical, denominada whig. Esta se encontra intimamente ligada aos acontecimentos da Revolução Glo-riosa, possuindo como características: a desconfiança em re-lação ao governo; a necessidade de vigilância em relação aos governantes; a defesa de reformas, numa tendência liberal--democrática; a defesa da ampliação das liberdades de im-prensa e de credo; e a oposição à manutenção de um exército permanente em tempos de paz.28

Entretanto, enquanto os whigs insistiam em denunciar a corrupção vigente na sociedade e na política inglesas e o re-gime autocrático que diziam ver instalar-se em seu governo, o clima geral era, ao contrário, de euforia e complacência ime-diatamente após os eventos de 1688/1689. Em tal contexto, ideias políticas radicais não gozariam de grande repercussão.29

27 BAILYN. As Origens Ideológicas da Revolução Americana, 2003, p. 41-67. PINTO. A reação norte-americana aos atentados de 11 de setembro e seu impacto no constitucionalismo contemporâneo: Um estudo a partir da teo-ria da diferenciação do direito, 2004, p. 135.28 PINTO. A reação norte-americana aos atentados de 11 de setembro e seu impacto no constitucionalismo contemporâneo: Um estudo a partir da teo-ria da diferenciação do direito, 2004, p. 139.29 BAILYN. As Origens Ideológicas da Revolução Americana, 2003, p. 60-65.

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Nas colônias da América, a situação era outra. Havia também uma espécie de euforia diante da Revolução Glo-riosa.30 Entretanto, a sociedade, de modo geral, não era mar-cada pela corrupção que dominara os britânicos como um todo. Havia conflitos reconhecidos entre assembleias legis-lativas e membros do poder executivo e, principalmente, havia problemas relacionados aos abusos dos governadores indicados pela Coroa Inglesa, abusos esses semelhantes aos que eram denunciados pelos whigs.31 Logo, embora rejeita-da na Inglaterra, sua linha de pensamento encontraria forte aceitação a oeste do Atlântico.

Aqui, elucida-se outro paradoxo, fortemente ligado ao primeiro: os colonos estavam apegados tanto a uma tradição conceitual que permitia a glorificação da Inglaterra e de suas instituições quanto a uma corrente de pensamento que cri-ticava aquilo em que ela se havia transformado em meados do século XVIII.32

De toda sorte, continuava predominando a matriz con-servadora e um possível desejo de se separar da metrópole era algo plenamente impensável àquela altura. A situação come-çaria a mudar na década de 1760. A Coroa inaugurava uma longa tentativa de reintegrar a América no círculo efetivo de seu domínio colonial e, com isso, reduzir seu grau de auto-nomia, transformando-a em fonte de lucros. A partir daí, te-ria início uma série de discussões, principalmente através de panfletos,33 nas quais, ainda que lenta, contraditória e indese-jadamente, tomar-se-ia consciência mais clara do que estava

30 PINTO. A reação norte-americana aos atentados de 11 de setembro e seu impacto no constitucionalismo contemporâneo: Um estudo a partir da teo-ria da diferenciação do direito, 2004, p. 107-130.31 BAILYN. As Origens Ideológicas da Revolução Americana, 2003, p. 65-67.32 PINTO. A reação norte-americana aos atentados de 11 de setembro e seu impacto no constitucionalismo contemporâneo: Um estudo a partir da teo-ria da diferenciação do direito, 2004, p. 140.33 BAILYN. As Origens Ideológicas da Revolução Americana, 2003, p. 23-39.

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ocorrendo no Reino Inglês e inverter-se-ia a relação entre as matrizes intelectuais que então vigoravam: aos poucos, deixa-va de predominar a exaltação da Inglaterra e ganhava força o pensamento crítico que buscava apontar suas faltas.

Isso não aconteceria, é claro, de maneira simples. Os colonos continuavam a se orgulhar de serem súditos ingle-ses e assim seguiriam até o momento da revolução, e mesmo após sua deflagração.34

As discussões em torno da postura da metrópole ti-veram início como mera contestação à imposição de tribu-tos. Não obstante, o que a princípio poderia ser apenas uma questão econômica trazia como fundo uma dimensão políti-ca das mais relevantes: se os habitantes da América colonial inglesa eram também súditos ingleses, não poderiam ser tri-butados por um parlamento no qual não tinham representa-ção, uma vez que distantes do solo inglês. A grande luta do período imediatamente anterior à revolução era, pois, pelo direito de participação no parlamento britânico, baseado no princípio da “não-taxação sem representação”.35

Na verdade, todo o problema girava em torno do con-ceito de representação.36 Para os ingleses, o parlamento bri-tânico representava a totalidade dos súditos do Reino, esti-vessem onde estivessem. Para os súditos do outro lado do Atlântico, não havia como estarem representados por al-guém distante do lugar e do meio social em que viviam.

34 PINTO. A reação norte-americana aos atentados de 11 de setembro e seu impacto no constitucionalismo contemporâneo: Um estudo a partir da teo-ria da diferenciação do direito, 2004, p. 129-146.35 BAILYN. As Origens Ideológicas da Revolução Americana, 2003, p. 101-141. PINTO. A reação norte-americana aos atentados de 11 de setembro e seu impacto no constitucionalismo contemporâneo: Um estudo a partir da teoria da diferenciação do direito, 2004, p. 118-124.36 PINTO. A reação norte-americana aos atentados de 11 de setembro e seu impacto no constitucionalismo contemporâneo: Um estudo a partir da teo-ria da diferenciação do direito, 2004, p. 118-119.

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Os debates não tinham nenhum tom radicalizante ou separatista. Pelo contrário, era mais uma vez partindo dos di-reitos e princípios consagrados pela tradição inglesa que seus seguidores, em território colonial, reivindicavam presença no parlamento. As reivindicações não seriam atendidas. Em sen-tido oposto, as medidas coercitivas aumentariam.

Pouco a pouco, desenvolvia-se cada vez mais uma or-ganização colonial numa postura defensiva, e, por isso, tam-bém combativa, tanto em caráter intelectual, quanto políti-co37 ou militar.38

Se é verdade que, quando do início do Segundo Con-gresso da Filadélfia, a hipótese de ruptura seguia sendo consi-derada radical e distante, isso não se manteria até seu final.39 A recusa do rei George III em receber as petições coloniais e a contratação de mercenários para seu exército que, então, se preparava para a guerra, teriam uma força simbólica impor-tante.40 A partir de então, compreendia-se que não existia um caminho de volta, que o retorno era impossível e que não havia como restabelecer as relações de paz e respeito com o Império Britânico. Numa alusão aos versos da Eneida de Virgílio,41 era como se se despertasse para o fato de que não era mais possí-vel fundar Roma de novo. Fazia-se preciso romper com o pas-sado e fundar uma nova Roma. Um indício claro nesse sentido é a publicação, ainda em 1776, do célebre panfleto intitulado Senso Comum, no qual Thomas Paine traça críticas ácidas à

37 PINTO. A reação norte-americana aos atentados de 11 de setembro e seu impacto no constitucionalismo contemporâneo: Um estudo a partir da teo-ria da diferenciação do direito, 2004,, p. 122.38 Idem, p. 127.39 Idem, p. 127-128.40 Idem, p. 141.41 ARENDT. Da Revolução, 1988, p. 164-171.

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Inglaterra, com uma defesa veemente da separação entre co-lônias e metrópole e a afirmação de que, na América, o sobe-rano era a lei, não um homem qualquer.42

Declarada a independência, novos problemas surgi-riam. Era necessário pensar as bases políticas do novo Esta-do. Contudo, sem se poder apegar a nenhum modelo óbvio, uma vez que o mais perfeito deles havia sido corrompido e se tornado fonte de tirania.43 Contudo, embora o modelo inglês não pudesse servir de parâmetro, o arcabouço conceitual dos colonos ainda estava demasiado atrelado às tradições britâ-nicas. Seria um processo árduo abandonar todo um quadro conceitual e lançar-se ao desconhecido e não-articulado dis-cursivamente, na busca pela construção da nova república.44

Um outro motivo tornava igualmente impossível a re-ferência ao modelo inglês. A estrutura política a que os colo-nos se haviam referido ao longo dos séculos de colonização caracterizava-se pela constituição mista que, como dito, cor-respondia à autorrepresentação de uma sociedade harmoni-camente composta por comuns, nobres e monarca, sem que houvesse jamais predomínio de um sobre os outros.45 Entre-tanto, essa constituição mista não existia mais nem mesmo no Reino Britânico. Quando se referiam jubilosos à Inglater-ra, o que tinham em mente era o que ela havia sido no século

42 PAINE. Senso Comum, 1979.43 PINTO. A reação norte-americana aos atentados de 11 de setembro e seu impacto no constitucionalismo contemporâneo: Um estudo a partir da teo-ria da diferenciação do direito, 2004, p. 143.44 Idem, p. 146.45 FIORAVANTI. Constitución: De la antiguedad a nuestros dias, 2001, p. 15-70.

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XVII e não o que era no século XVIII46. A tomada de cons-ciência acerca desse anacronismo certamente contribuiu significativamente para a decisão em favor da revolução.

Em seguida, serão mais uma vez abordadas a constitui-ção mista e a perda de sua referência social. Por agora, im-porta notar que, após a Declaração de Independência, esta-va-se diante de uma tarefa hercúlea: edificar um novo país, e sem um parâmetro que pudesse servir de ponto de partida.47

Isso apenas sob certo aspecto. É verdade que a estrutu-ra inglesa não poderia ser útil e que, historicamente, eram raros os exemplos que poderiam ajudar. Contudo, após a Declaração de 4 de julho de 1776, não foi propriamente um grande vazio o que se abriu. Rompido o vínculo com a anti-ga metrópole, a própria experiência, adquirida desde as fun-dações das primeiras colônias, emergiria, animada pela pro-posta da construção federalista, para apontar o caminho e não deixar que os novos Estados se perdessem em fragmen-tos desunidos e facilmente domináveis.

Nesse ponto, cabe deixar a Revolução Americana e abordar a Revolução Francesa.Ao contrário da Revolução Americana, a Revolução Francesa aconteceu no interior do próprio território em que se localizava o opressor. Além dis-so, a questão social – que tão cedo explodiu em seu seio – não lhe permitiu jamais ser apenas uma discussão política.48

É de conhecimento geral a forte tradição absolutista francesa. Após papas e bispos, o monarca havia encarnado, como em nenhum outro país, a ideia de um absoluto trans-cendente que justifica o poder terreno. A vontade real sem-pre foi, a um só tempo, origem do poder e fonte da lei.49

46 PINTO. A reação norte-americana aos atentados de 11 de setembro e seu impacto no constitucionalismo contemporâneo: Um estudo a partir da teo-ria da diferenciação do direito, 2004, p. 144-146.47 Idem, p. 128, 147.48 ARENDT. Da Revolução, 1988.49 Idem, p. 125.

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Quando o rei foi deposto e, mais que isso, a monar-quia perdeu seu lugar, os franceses depararam-se exatamen-te com o problema de como substituir aquele absoluto que carregava em si tanto a origem do poder quanto a autoridade da lei,50 problema semelhante, ressaltadas as diferenças con-textuais, ao que seria vivenciado na América após a ruptura com a Coroa Britânica.51

O problema da perda do absoluto apresentava-se prin-cipalmente quando da elaboração de novas constituições, em ambos os lados do oceano. Em momentos como esses, o que estava em jogo era a questão do princípio, o problema de como fundar um novo início que, não podendo apoiar-se em nada que lhe antecedera, fosse capaz de justificar a si mes-mo.52 Em terras francesas, isso ficou claro pelas dificuldades das assembleias constituintes em elaborarem constituições estáveis: como poderiam dar origem a constituições legíti-mas, que tendiam a se tornar duradouras no tempo, se elas mesmasnão tinham de onde derivar sua legitimidade?53

A solução encontrada na Europa para o problema do absoluto e do círculo vicioso em que se perdia todo novo iní-cio foi a Teoria do Poder Constituinte, elaborada por Eman-nuel Sieyès.54 Seguindo a tradição absolutista, o que Sieyès fez foi simplesmente substituir o monarca absoluto por um outro ente dotado de igual caráter: a Nação, entendida como um macro-sujeito, formado pela multidão do povo, despro-vido de qualquer organização legal e acima de qualquer lei.55 Assim como ocorria com os reis, dela deveriam derivar tanto a origem do poder quanto a autoridade legal.56 Como tota-50 ARENDT. Da Revolução, 1988, p. 123-131.51 Idem, p. 146-147.52 Idem, p. 129.53 Idem, p. 132.54 Idem, p. 130-131.55 SIEYÈS. A Constituinte Burguesa – O que é o Terceiro Estado? 2001, p. 45-58.56 ARENDT. Da Revolução, 1988, p. 130-132.

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lidade social, sutil e ideologicamente limitada por Sieyès ao Terceiro Estado, ela possuía o poder, capacidade de agir, e a autoridade, capacidade de justificar seus atos. Seu poder era ilimitado e sua vontade era a lei.57 Portanto, a ela cabia o po-der constituinte, distinto de todos os demais poderes e ori-gem de todos eles, chamados, então, poderes constituídos.

Não é difícil perceber que a Teoria do Poder Consti-tuinte surge, na França, como uma verdadeira tentativa de (re)fundação da autoridade política que se havia perdido no seio da Modernidade.58 Isto é, na impossibilidade de recor-rer à vontade suprema de um absoluto religiosamente trans-cendente que legitimasse o poder político e a autoridade das leis, a teoria do poder constituinte apresenta a Nação, um novo absoluto, igualmente transcendente, mas não mais re-ligioso em sentido estrito.

Os problemas que daí derivaram são conhecidos. Se a Nação estava acima de qualquer lei e se sua vontade era a própria lei, todas as vezes que alguém conseguisse chegar a um lugar social que lhe permitisse supostamente falar em nome dela sua vontade seria manipulada de acordo com os ímpetos e desejos de quem a dizia representar.59 Qualquer um que falasse em seu nome teria não só a possibilidade fá-tica de agir, mas também as condições necessárias para jus-tificar seus atos, fossem eles quais fossem. Os resultados de-sastrosos, consagrados pela historiografia tradicional, foram a existência de um estado de revolução permanente, entre 1789 e 1799, o fenômeno dos plebiscitos napoleônicos, tanto na época de Napoleão Bonaparte quanto na de Luis Napo-leão e, acima de tudo, a instauração de uma tradição de com-pleta instabilidade constitucional.

57 SIEYÈS. A Constituinte Burguesa – O que é o Terceiro Estado? 2001, p. 51.58 ARENDT. Entre o passado e o futuro, 2000, p. 185.59 ARENDT. Da Revolução, 1988, p. 130-131.

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Voltando ao outro lado do Atlântico, a solução fran-cesa não seria repetida, ou melhor, antecipada. Como dito, após a Declaração de Independência, os colonos depararam--se com uma espécie de vazio de modelo a seguir. Também eles tiveram que enfrentar o problema da perda do absoluto e de um círculo vicioso que pudesse se instaurar inevitavel-mente a partir do novo começo, do princípio, representado pela fundação das bases da República. E, nesse momento, a solução apareceu a partir da história e experiência coloniais.

Nos Estados americanos recém-fundados não foi de-senvolvida propriamente uma teoria do poder constituinte. Nesse sentido, é relevante que nos escritos federalistas – re-unidos sob o título de O Federalista60 e que, se não foram a mais importante das obras do período pós-revolução,61 cer-tamente marcaram-se pelo tom das discussões de então – as alusões mais sistemáticas ao poder constituinte sejam tão poucas, para não dizer raras.

Quando a América rompeu os laços com a metrópole, ela não foi, como a França, lançada em algo como um Estado de Natureza.62 Desde os primeiros atos da fundação das no-vas colônias, nos idos do século XVII, os colonos se haviam habituado à realização de pactos e promessas mútuas. Estes eram fruto de uma percepção singular de que a ação se rea-liza em concerto, de que dessa ação emerge o poder, e, final-mente, de que esse poder somente pode ser mantido através de compromissos recíprocos que o tornem capaz de seguir expandindo-se pela continuidade da própria ação.63

Dessa maneira, já no início de sua história, as colônias organizaram-se em corpos políticos que, embora pequenos, carregavam em si a origem do poder. Quando da ruptura

60 HAMILTON; JAY; MADISON. O Federalista 1959.61 BAILYN. As Origens Ideológicas da Revolução Americana, 2003, p. 293-294.62 ARENDT. Da Revolução, 1988, p. 132.63 Idem, p. 132-143.

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com a Europa Inglesa, aquela origem, tão comum à práti-ca colonial, mas ainda distante, talvez, de sua consciência conceitual, veio à tona como fonte legítima do poder políti-co dos novos Estados que estavam sendo formados. No mo-mento de elaboração da Constituição federal e de fundação da nova república, bastou apenas descer até os mais sim-plórios e pequenos corpos políticos formados pela força do compromisso mútuo e reconstruir, a partir deles, a origem de todo o poder da União.64

Ou seja, o poder constituinte na América não repou-sava num macro-sujeito não-constituído por nenhuma lei e não-organizado de maneira alguma, uma Nação soberana que tudo pode, menos deixar de ser Nação.65 Ao contrário, o poder constituinte residia nos corpos políticos constituídos e organizados pela força do acordo comum.

Entretanto, nem todos os problemas estavam resol-vidos. O poder realmente era algo que não gerava maiores questionamentos em solo norte-americano. Porém, en-quanto estavam sob a égide da Coroa Inglesa, eram as car-tas por ela emitidas que conferiam autoridade às decisões fáticas proferidas pelos corpos políticos locais. Agora, em-bora o poder estivesse assegurado, era essa autoridade que se perdia,66 pois de nada adiantava o poder de agir se não houvesse algo de certo modo duradouro e superior que justi-ficasse os frutos dessa ação.

Os colonos possuíam uma consciência singular de que o poder e a autoridade não deveriam derivar de uma mesma fonte, algo que faltara a Sieyès e à sua teoria do poder cons-tituinte. Sabiam que a existência fática das leis adviria do

64 Idem, p. 132-143.65 SIEYÈS. A Constituinte Burguesa – O que é o Terceiro Estado? 2001, p. 50, 55-56.66 ARENDT. Da Revolução, 1988, p. 143.

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poder das assembleias locais, mas a autoridade delas, o ele-mento que as fazia válidas e estáveis no tempo, deveria pro-ceder de uma outra fonte.67

Mas, mesmo nesse caso, não se voltaram a algo seme-lhante à Nação dos franceses. Ao contrário, recorreram à An-tiguidade, principalmente às concepções romanas acerca do papel da fundação de um novo corpo político. Conseguiram enxergar que no próprio ato de fundação repousava a autori-dade da nova república.68 Isso poderia ser atestado pela raiz latina da palavra “autoridade” (o verbo augere), que trazia em si as ideias de aumento e desenvolvimento.69 Ou seja, auto-ridade significava aquela expansão a que todo corpo político recém-fundado estava destinado, expansão que se dava tam-bém através da elaboração das leis, ficando claro que o ato de fundar carregava consigo a fonte da autoridade legal, da auto-ridade jurídico-política. Em outras palavras, todo principium traz consigo no seu começo o seu preceito,70 ou seja, o ato de fundação traz em si mesmo o sentido performativo de um preceito normativo e de sua abertura ao futuro; um novo co-meço carrega consigo a perspectiva do desenvolvimento a que se destina no tempo vindouro e toda ação que se volta a esse desenvolvimento posterior, inclusive a elaboração e a aplica-ção da lei, reveste-se da autoridade do ato fundante.

Guardadas as devidas diferenças em relação ao pensa-mento de Arendt, é possível aludir às palavras de Derrida, que, a partir de Walter Benjamin, afirmava (grifos do autor):

Uma fundação é uma promessa. Todo estabelecimento (Setzung) permite e promete, instala-se pondo e prometendo. E, mesmo que, de fato, uma promessa não seja mantida, a iterabilidade ins-

67 ARENDT. Da Revolução, 1988, p. 146-147.68 Idem, p. 156-171.69 Idem, p. 161.70 Idem, p. 170.

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creve a promessa de salvaguarda no instante mais irruptivo da fundação. Ela inscreve, assim, a possibilidade da repetição no co-ração do originário.71

O federalismo, com seu reconhecimento de corpos po-líticos locais e com sua tendência à expansão da federação, foi, assim, a resposta norte-americana para a perda da fonte tradicional da autoridade e do poder72 – isso sem os erros e percalços que acompanhariam a França por décadas.

4. As singularidades da Revolução Americana e seus principais legados para o Constitucionalismo Moderno

Por mais que a consciência singular de ser necessário não confundir a origem do poder e a fonte da autoridade te-nha sido relevante para a história do que viriam a ser os Es-tados Unidos da América, isso exige maiores considerações para se compreender os legados da Revolução Americana para o Constitucionalismo Moderno: a supremacia constitu-cional e a jurisdição constitucional.73

Os legados da Revolução Americana, à luz do Consti-tucionalismo Moderno, foram imensamente significativos, mas imprevistos por seus agentes.74 A ideia de uma norma superior a todas as outras, que, por isso, deve ser protegida pelo poder judiciário, não foi algo pré-estruturado conscien-temente por aqueles que declararam a independência, tendo sido temas que ficaram à margem das discussões constitu-cionais centrais daquele tempo.75

71 DERRIDA. Força de lei: o fundamento místico da autoridade, 2007, p. 89-90.72 ARENDT. Da Revolução, 1988, p. 132-143.73 PINTO. A reação norte-americana aos atentados de 11 de setembro e seu impacto no constitucionalismo contemporâneo: Um estudo a partir da teo-ria da diferenciação do direito, 2004, p. 148, 166-167.74 Idem, p. 146-148.75 Idem, p. 166-167.

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A teoria da diferenciação funcional da sociedade, de-senvolvida por Luhmann,76 pode lançar algumas luzes sobre o problema. Segundo o autor, o longo período revolucioná-rio, que não se limita apenas aos anos de 1776 a 1781,77 cor-responde a um momento de modernização social, de transi-ção de uma diferenciação social por estratos, típica da Idade Média, para uma diferenciação funcional. Isso explica, entre outras coisas, porquê a constituição mista não possuía mais seu potencial explicativo. Ela havia perdido seu referencial social, por significar a autorrepresentação de uma sociedade estratificada, dividida em estamentos – sociedade essa que, aos poucos, ia deixando de existir.

Segundo a diferenciação funcional, a sociedade passa a diferenciar-se não mais em segmentos definidos com referên-cia ao sangue, à riqueza ou à tradição. A diferenciação social se dá a partir de um processo de especialização, dando origem a diversos sistemas sociais, como o jurídico, o político etc.

Durante a Revolução Americana, quando a sociedade passava por uma mudança, iniciada séculos antes, de uma diferenciação por estratos para uma diferenciação funcional, os sistemas do Direito e da Política iam tornando-se especia-lizados em si mesmos e, portanto, distintos e distantes um do outro. Tomando como base essa perspectiva, pode-se en-tão entender a constituição moderna como uma aquisição evolutiva e como uma reação à radical separação entre Direi-to e Política que se verificava em curso. A constituição, a um só tempo, operaria o fechamento operacional dos sistemas do direito e da política e se apresentaria como um acopla-mento estrutural entre eles.

76 Idem, p. 165-197.77 BAILYN. As Origens Ideológicas da Revolução Americana, 2003.

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Isto é, a constituição seria tanto política quanto jurí-dica. Ela permitiria que o poder político oferecesse validade e efetividade às normas jurídicas, ao passo em que o direito ofereceria legitimidade à atividade política. Entretanto, para ser possível esse acoplamento, ela deveria permitir, de fato, o autofechamento de cada um dos sistemas, o que tornava ne-cessário que fosse dotada tanto de supremacia em relação às normas que lhe são inferiores quanto da impossibilidade de ser alterada pela dinâmica cotidiana das decisões políticas. A partir daqui, seria possível descrever, de uma perspectiva sistêmico-evolutiva, a supremacia constitucional.

Da supremacia constitucional decorreria o instituto do controle de constitucionalidade realizado pelo poder judi-ciário, como organização jurídica responsável por assegurar a necessária superioridade da constituição.

Mesmo assim, a teoria da diferenciação funcional da so-ciedade, a concepção da constituição como aquisição evoluti-va e como acoplamento estrutural entre os sistemas jurídico e político, não basta para explicar a estabilidade adquirida pela Constituição Federal Americana ao longo dos séculos.

Na França, também ocorria processo semelhante em termos de diferenciação social e isso não fez com que o postu-lado da rigidez constitucional pudesse emergir e se consolidar como acontecera em terra americana. Os institutos da supre-macia constitucional e do controle judicial de constituciona-lidade não são por si sós suficientes para uma adequada com-preensão da estabilidade constitucional que decorreu, como de nenhum outro processo político, da Revolução Americana.

O que distinguiu o processo revolucionário americano de todos os outros e permitiu a estabilidade de sua consti-tuição e de sua estrutura jurídico-política foi exatamente a concepção sobre o processo constituinte, sobre o poder e a autoridade e sobre a fonte e a origem de cada um destes – a

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certeza, por um lado, de que o poder existe apenas a partir de ações concertadas na sua pluralidade e que se preserva so-mente através de pactos materializados em corpos políticos e, por outro, de que a autoridade reside no ato de fundação e em sua tendência à expansão.78 Tudo isso só foi possível graças a uma conjugação de fatores na formação do contexto específico em que se daria a revolução.

Para além das matrizes intelectuais em que se apoia-ram, matrizes essas cuja escolha não apenas foi mais ou me-nos conformada pelo contexto como também ajudou a con-formá-lo, os revolucionários americanos podiam apoiar suas reivindicações na própria história compartilhada com a In-glaterra. A isso, somava-se uma perspectiva individualista que impedia de se retornar, por via daquela história, aos pri-vilégios feudais de uma sociedade estamental.

Essa junção de historicismo e de invidualismo na Revo-lução Americana79 não se deu sem que ambos passassem por uma contaminação recíproca. De todo modo, permitiram que a revolução assumisse um tom marcadamente garantista, isto é, de proteção de direitos, em face de toda pretensão sobera-na. Isso se torna mais claro tendo-se em mente contra quem os revolucionários se voltaram: o parlamento inglês, com sua pretensão de soberania que colocava em xeque a tradição in-glesa de equilíbrio e moderação no poder. Logo, a nova re-pública ergueu-se retomando essa tradição de equilíbrio, re-lendo-a para construir todo um quadro complexo de relações entre os poderes executivo, legislativo e judiciário.

Em face disso, a lembrança amarga dos abusos do par-lamento inglês propiciou o desenvolvimento de um sistema de proteção da constituição diante de possíveis abusos tam-bém a oeste do Atlântico. Se o que se criticara na imposição 78 ARENDT. Da Revolução, 1988, p. 113-171.79 FIORAVANTI. Los derechos fundamentales. Apuntes de Historia de las Constituciones, 2000, p. 75-95.

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de tributos era seu caráter inconstitucional, dando a enten-der que havia algo acima das leis do parlamento contra o quê estas não se podiam voltar, é exatamente esse algo acima, um corpo normativo dotado de supra-legalidade, que seria preciso afirmar e proteger.

Na França, não era possível qualquer apoio na história. O que esta tinha a mostrar era um conjunto de privilégios e vícios arraigados, permeando a sociedade como um todo. A alternativa era uma recusa total de qualquer perspectiva his-toricista. O individualismo também nortearia os revolucio-nários, mas apenas afirmar direitos de cunho individual não bastava para fazer frente ao Antigo Regime em todas as suas dimensões. Era necessária uma força capaz de destruir essas dimensões e de fundar, como que quase do nada, uma nova sociedade. Essa força seria representada pelo próprio Estado.

Ao invés de historicismo e de individualismo, os revo-lucionários franceses atuariam com uma junção entre indi-vidualismo e estatalismo.80 Aquele sempre correndo o ris-co de degenerar-se numa espécie de voluntarismo político avesso a qualquer institucionalização que pudesse trair a re-volução; este sempre correndo o risco de degenerar-se em puro arbítrio dos poderes estatais. Ambos, porém, recorren-do ao argumento da soberania para sustentar seu ponto de vista. A soberania do poder constituinte para o individualis-mo; a dos poderes constituídos para o estatalismo. Mas sem-pre a soberania, diante da qual – para além da desconfiança dos revolucionários franceses com os juízes que representa-vam resquícios ainda do absolutismo monárquico – rigidez constitucional e controle de constitucionalidade não pare-ciam fazer muito sentido.

80 FIORAVANTI. Los derechos fundamentales. Apuntes de Historia de las Constituciones, 2000, p. 56-74

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Sobre o processo constituinte, poder-se-ia, assim, afirmar que foi compreendido, na América, sempre ligado à ideia de rigidez constitucional. Diversamente, na Europa Francesa, o poder constituinte era associado apenas à sobe-rania absoluta da Nação. Neste exato ponto, reside talvez a maior diferença entre as revoluções e os constitucionalismos de França e Estados Unidos, ao menos no que aqui interes-sa: na primeira, o poder constituinte ligava-se a uma uni-dade política capaz de querer, chamada Nação; na segunda, esse poder aparece ligado a um conjunto inviolável de leis, chamado constituição. Na América, a constituição foi en-tendida tanto como expressão textual da ordem constituída quanto como ato de constituir uma nova república. Se para os franceses a constituição era apenas norma de restrição a um governo e não vinculava a Nação que a elaborara,81 para os americanos a constituição era um documento que expres-sava o ato de constituição de um novo Estado, de modo que não significava apenas limite ao poder, mas também condi-ção de possibilidade para seu exercício legítimo em prol da expansão dos alicerces da república. A constituição não so-mente restringia o governo, mas vinculava, unia, constituía o povo que a elaborara ao fundar o corpo político de que fazia parte.82

81 SIEYÈS. A Constituinte Burguesa – O que é o Terceiro Estado? 2001, p. 49.82 Ao se falar das singularidades da Revolução Americana e de seu legado para o Constitucionalismo Moderno, não se pretende esquecer as atroci-dades que marcaram a história dos Estados Unidos em relação aos direitos de minorias, sejam elas indígenas, negros, mulheres ou imigrantes. O que se pretende é enfatizar as peculiaridades de uma compreensão do processo constituinte e da constituição por ele produzida, peculiaridades essas que permitiram uma aprendizagem social ao longo da história norte-americana de maneira tal que as próprias demandas das minorias por inclusão pude-ram dar-se com base na constituição e naquilo que ela representa em ter-mos da fundação do país.

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5. Distintas leituras da Teoria do Poder Constituinte ao longo dos dois últimos séculos

Estavam lançadas, a partir do século XVIII, as bases políticas da Modernidade. O poder e a autoridade passariam a ser compreendidos com o viés que os determinara durante aquele período e a Teoria do Poder Constituinte seria relida por praticamente todos os autores que se debruçariam sobre questões constitucionais.

Carré de Malberg, na linha do juspositivismo francês do século XIX, negaria natureza jurídica ao poder consti-tuinte originário e trabalharia apenas com o poder consti-tuinte derivado, analisado dentro da lógica conceitual da teoria dos órgãos do Estado83.

Nas ricas discussões do entre-Guerras, Schmitt,84 coe-rente com suas posições teóricas, atribuiria um caráter exis-tencial e decisionista ao poder constituinte. Reconheceria a possibilidade tanto de um poder constituinte democráti-co quanto monárquico, que seriam igualmente legítimos de acordo com o princípio que vigesse na organização políti-ca da sociedade, respectivamente, princípio democrático ou princípio monárquico.

Mas talvez o que seja mais importante em seu pensa-mento é que ele não limitava a atuação do poder constituin-te ao momento de criação de uma constituição. Sua concep-ção de constituição a entendia não como conjunto de leis, às quais chamava leis constitucionais, nem como um siste-ma de garantias ou princípios de organização do poder. Para ele, a constituição correspondia à decisão fundamental de um povo sobre a forma de existência política de seu Estado. Era possível que as leis constitucionais trouxessem expres-

83 CARRÉ DE MALBERG. Teoria General del Estado, 1963.84 SCHMITT. Teoría de la Constitución, 1996.

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sos pontos importantes dessa decisão, mas era igualmente possível que omitissem outros ou assumissem uma posição de compromisso entre perspectivas distintas, postergando, portanto, a verdadeira decisão. Sua compreensão sobre po-der constituinte estaria relacionada a essa visão. Logo, todas as vezes que questões sobre as quais não houvesse sido ex-pressa a verdadeira decisão do povo emergissem à tona das discussões e colocassem em risco a existência do Estado, de-veria ser possível que o poder constituinte atuasse a fim de expressar referida decisão, ainda que contrariando a norma-tização presente nas leis constitucionais. É fácil perceber que a distinção entre poder constituinte e poderes constituídos deixa de fazer sentido a partir do momento em que aquele pode agir, sem maiores formalidades, a qualquer momento e a partir de discursos variáveis, o que leva à configuração de uma teoria altamente propícia a dogmas autoritários.

Seguindo no contexto do entre-Guerras, Heller85 assu-miria posição contrária à de Schmitt. Adepto do então nas-cente Constitucionalismo Social, sua principal crítica diria que não é possível que um povo não-organizado politicamen-te atue como poder constituinte. Isto é, não é possível uma conceituação meramente existencial e decisionista deste. O poder constituinte exigiria uma organização prévia dos indi-víduos, organização essa que permitiria a ação conjunta da qual ele então resultaria. Para Heller, somente se pode falar em poder constituinte quando a totalidade da organização so-cial decide e age de maneira unitária. Não há poder sem orga-nização anterior que permita a ação coordenada e destinada a um fim. Cabe notar a proximidade dessa noção com aquela que predominou durante a Revolução Americana.

85 HELLER. Teoria do Estado, 1968.

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Ainda nesse contexto, Smend86 apresentaria sua teo-ria integracionista da constituição e do Estado. Para ele, o Estado era entendido como um conjunto de processos dis-tintos de integração social a partir do qual o próprio Estado era a cada instante (re)atualizado e (re)afirmado. A consti-tuição corresponderia apenas a um molde normativo de de-terminados aspectos de integração social, mas nunca de to-dos eles. Como o relevante é que os processos de integração social, expressos ou não na constituição, permitam a (re)atualização permanente da totalidade estatal, pouco impor-taria se aquele molde normativo representado pela consti-tuição fosse desrespeitado em prol de tal integração. Sendo assim, o poder constituinte, embora não referido expressa-mente, aparece como algo latente na realidade social, cons-tantemente agindo na dinâmica social, podendo, a qualquer tempo, contrariar as disposições constitucionais, até mesmo sem o fazer mediante alteração de seus textos normativos. Novamente, perde sentido a distinção entre poder consti-tuinte e poderes constituídos. Mais uma vez, disso decorre uma perspectiva que gera imensa insegurança constitucio-nal e abre espaços para discursos e justificativas autoritárias.

Finalizando a análise de alguns dos expoentes do en-tre-Guerras, Kelsen discutiria o poder constituinte sob a óti-ca do quadro conceitual traçado em sua Teoria Pura do Di-reito.87 Dentro da distinção entre uma esfera do ser e outra do dever-ser, o direito aparece como representante desta úl-tima, consistindo numa ordem normativa e coativa de con-dutas humanas. Embora haja relações possíveis entre o ser e o dever-ser, do fato de algo dever-ser não se segue neces-sariamente que ele seja, assim como do fato de que algo seja não decorra que ele deva-ser. Em outras palavras, um dever--ser, uma norma, não encontra seu fundamento num ser,

86 SMEND. Constitución y Derecho Constitucional, 1985.87 KELSEN. Teoria Pura do Direito, 2003.

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um evento do mundo fenomênico. Somente um dever-ser pode dar origem, do ponto de vista da validade, a um outro dever-ser: uma norma somente encontra seu fundamento numa outra norma que lhe é anterior e superior do ponto de vista lógico. Contudo, se o fundamento de validade de uma norma repousa sempre em outra norma, não se pode negar que é necessário considerar, para sua existência, tanto sua positivação por um ato do ser quanto a manutenção de sua eficácia, também na esfera do ser. Logo, positivação e eficá-cia, embora não sejam fundamento de validade, cumprem a função de condição dessa mesma validade.

Seguindo o raciocínio, todas as vezes que se operasse a recondução de uma norma qualquer ao seu fundamento último de validade, à primeira das normas que lhe são su-periores, correr-se-ia o risco de um retorno ao infinito. Para evitar essa possibilidade, Kelsen formula o conceito de nor-ma fundamental. Essa norma não é posta, positivada, mas apenas pressuposta; não é querida, por nenhuma autorida-de, mas apenas pensada. Ela corresponde, portanto, a um pressuposto lógico-transcendental capaz de fornecer unida-de ao ordenamento jurídico e servir de fundamento último de validade a todas as normas que o compõem.

Passando ao poder constituinte, a questão se apresen-ta da seguinte maneira: o ato de positivação de uma nova constituição possui um sentido subjetivo, isto é, um senti-do para aqueles responsáveis pela realização do ato. Segun-do esse sentido subjetivo, aquele ato estaria estabelecendo uma nova constituição e uma nova ordem jurídica. Porém, como nenhum fato do ser pode servir de fundamento de va-lidade a algo do dever-ser, ou seja, a uma norma, o ato cons-tituinte permanece tendo o sentido de positivação de uma nova constituição e de fundação de uma nova ordem jurídi-ca apenas para os que o realizaram, a menos que uma nor-

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ma, superior à própria constituição, forneça o fundamento de validade desta e transforme o sentido subjetivo daquele ato constituinte num sentido objetivo. Como, do ponto de vista jurídico-positivo, nenhuma norma é superior à cons-tituição, a norma que lhe serve de fundamento de validade não pode ser uma norma posta, mas apenas pressuposta: a norma fundamental.

Dentro desse esquema conceitual, o poder constituin-te e o ato constituinte por ele exercido aparecem como pre-missa menor de um silogismo. Como premissa maior, há a norma fundamental, que diz que a constituição positivada pelo poder constituinte, através do ato constituinte, deve ser obedecida. A conclusão é que a constituição, por ter sido es-tabelecida pelo poder constituinte de acordo com a norma fundamental, é valida e deve ser obedecida. A norma funda-mental permanece como fundamento de validade da consti-tuição e de toda a nova ordem jurídica, ao passo que o poder constituinte e o ato constituinte, existentes na esfera do ser, mantêm-se como mera condição daquela validade.

Vale lembrar que a norma fundamental pressupos-ta não se encontra presente já no momento em que o poder constituinte é exercido. Caso se trate, por exemplo, de uma revolução cujo objetivo é substituir uma ordem constitucio-nal anterior, o ato constituinte poderá perfeitamente ser en-tendido como traição constitucional, caso a revolução venha a se frustrar. Um requisito essencial para que a norma fun-damental cumpra seu papel é que já haja uma constituição e um ordenamento jurídico vigentes, de forma que ela, a nor-ma fundamental, opera retroativamente e somente passa a fazer sentido num momento posterior ao exercício do poder constituinte em si, como maneira de legitimar o ato consti-tuinte que conseguiu estabelecer uma nova ordem jurídica coercitiva eficaz. Coerentemente com todo o propósito da

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teoria pura, em nenhum momento é discutida a maior ou menor legitimidade de um poder constituinte exercido de-mocrática ou autoritariamente.

Em outro contexto, Kelsen afirma que a questão de um governo autocrático ou democrático é apenas uma questão de adequação de meios a fins: se o fim a que se tem em men-te é o valor da liberdade, então certamente a democracia é a forma adequada de governo; mas se é outro o valor que configura o fim almejado, como a segurança, por exemplo, então a autocracia poderia vir a ser a forma política procura-da.88 Valendo-se da analogia, e embora tenha sido Kelsen um dos mais vorazes defensores da democracia no século XX, sua teoria – relativista, como ele mesmo assume – permite afirmar que o poder constituinte cairia na mesma situação, de modo que se tornaria possível a justificação de um poder constituinte monocrático, mediante a atribuição de uma va-loração mais elevada ao valor da segurança, da hierarquia ou outros semelhantes.

Loewenstein89 emergiria como um dos principais teóri-cos do Constitucionalismo no pós-Segunda Guerra. O con-texto era um dos mais ricos do ponto de vista constitucional, devido ao surgimento de inúmeras constituições em países recentemente libertados do Imperialismo e/ou de regimes ditatoriais. Embora Loewenstein afirmasse que a titularida-de do poder constituinte, num Estado constitucional e demo-crático, deveria pertencer ao povo, reconhecia que a realidade constitucional apresentava casos, não raros, de violação desse postulado, quando quem exerce o poder constituinte é um di-tador ou um conjunto pequeno de detentores do poder fático. Loewenstein mantém a distinção entre poder constituinte e poderes constituídos, principalmente entre poder constituin-te originário (poder constituinte em sentido estrito) e poder

88 KELSEN. Escritos sobre la democracia e el socialismo, 1988, p. 207-344.89 LOEWENSTEIN. Teoria de la Constitución, 1976.

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constituinte derivado (poder constituído, em verdade), afir-mando que também se tratando deste último é recomendável ser exercido da maneira mais democrática possível, a partir da participação de todos aqueles a quem ele chama detentores oficiais do poder (governo, parlamento, tribunais judiciais e eleitorado), cabendo, sempre, ao povo a decisão final.

Nos últimos anos, fica cada vez mais clara a exigência, própria à tradição do Constitucionalismo, de que um poder constituinte só seria legítimo se exercido democraticamente. Porém, embora não tenham sido poucos os que a tenham dis-cutido, sob as óticas mais diversas, ao longo dos últimos dois séculos, a Teoria do Poder Constituinte não se teria alterado substancialmente em relação à sua formulação original em Sieyès,90 padecendo a Revolução Americana e aquilo que nela aconteceu de um certo esquecimento ou incompreensão.

Recentemente, novos estudos têm buscado avançar no tema, tratando-lhe de maneira relativamente distinta daque-la como geralmente, de modo não poucas vezes simplista, é abordado. Começa-se a alcançar a compreensão, talvez já pre-sente na primeira das constituições modernas, a americana de 1787, de que aquilo que o poder constituinte elabora não é ape-nas um texto dotado de uma dificuldade maior para ser altera-do. Ele é responsável, na verdade, pela construção de um pro-jeto constituinte. Como todo projeto, também este se lança ao futuro carregado de expectativas, em parte presentes na cons-tituição, que serão ou não realizadas, de acordo com a confi-guração que vier a alcançar, no cotidiano das práticas sociais, a relação sempre tensa entre faticidade e validade.91 De toda sorte, o projeto constituinte lançado deve sempre estar aberto

90 CATTONI DE OLIVEIRA. Direito, Política e Filosofia, 2007, p. 57-58.91 CATTONI DE OLIVEIRA. Poder Constituinte e Patriostismo Constitucional: o projeto constituinte do Estado Democrático de Direito na teoria discursiva de Jürgen Habermas, 2006. HABERMAS. Era das transições, 2003, p. 153-173.

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à possibilidade de que as gerações futuras o (re)leiam, o (re)interpretem e até o alterem, dentro de uma perspectiva histó-rica que, por um lado, deve assegurar a rigidez constitucional e a distinção entre poder constituinte e poderes constituídos, mas, por outro, deve permitir que o projeto constituinte, re-pousado na autoridade da fundação da ordem constitucional estabelecida, atualize-se de acordo com as novas demandas e visões de mundo que surgirem.92

6. Considerações finais

Como se tentou mostrar até aqui, após o esfacelamen-to da tríade romana da tradição, da religião e da autoridade, a legitimidade do poder e das leis necessitava de novas ba-ses sobre as quais se apoiar. As revoluções de fins do século XVIII enfrentariam esse problema e, em face da necessidade de encontrar um absoluto que oferecesse as referidas bases e rompesse o círculo vicioso inerente aos novos começos, as perspectivas adotadas na América e na França seriam com-pletamente diferentes.

Na França, buscar-se-ia solucionar o problema a partir da Teoria do Poder Constituinte. Esta teria como eixo central a substituição do absoluto representado pelo monarca, divina-mente justificado, pelo absoluto corporificado na Nação, um macro-sujeito capaz de querer e de agir e no qual residiam, ao mesmo tempo, a origem do poder e a fonte das leis.93

Na América isso não ocorreria. Os problemas do ab-soluto e do princípio seriam resolvidos a partir da própria história colonial através do federalismo. Sabendo distinguir

92 CATTONI DE OLIVEIRA. Poder Constituinte e Patriostismo Constitucio-nal: o projeto constituinte do Estado Democrático de Direito na teoria dis-cursiva de Jürgen Habermas, 2006. HABERMAS. Era das transições, 2003, p. 153-173. ROSENFELD. A identidade do sujeito constitucional, 2003.93 ARENDT. Da Revolução, 1988, p. 123-131.

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entre a origem do poder e a fonte da autoridade, esta, a auto-ridade, residiria no ato fundante da nova república e na ten-dência à expansão inerente a toda fundação, enquanto aque-le, o poder, repousaria nos corpos políticos constituídos em âmbitos restritos desde os primeiros tempos da colonização, corpos políticos esses formados pelo compromisso mútuo, gerados pela ação concertada e capazes de preservar o poder que dela decorre.94

Ao longo dos séculos, não faltaram experiências e pro-posições teóricas distintas sobre o poder constituinte, a or-dem constitucional e o exercício do poder político.95Após dois séculos de Constitucionalismo, algumas afirmações pa-recem possíveis, embora, como sempre, passíveis de altera-ção pela força do tempo e pelo incremento que discussões futuras possam apresentar.

A titularidade do poder constituinte é hoje entendida como pertencente ao povo como instância plural de legiti-midade96 e não como massa homogênea de indivíduos. Sua natureza jurídica é reconhecida,97 bem como seu caráter de excepcionalidade,98 de modo a evitar uma repetição da ins-tabilidade presente no constitucionalismo francês de fins do século XVIII e de todo o século XIX. Embora não haja dúvi-das de que o poder constituinte não se limita, do ponto de

94 ARENDT. Da Revolução, 1988, p. 113-171.95 BARACHO. Teoria Geral do Poder Constituinte: O Projeto Constituinte de Uma República, 2004.96 CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2002, p. 71-72. QUADROS DE MAGALHÃES. Democracia e Poder Constituinte, 2004, p. 127-128. CARVALHO NETTO. A urgente revisão da teoria do poder constituinte: da impossibilidade da democracia possível, 2006.97 CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2002, p. 60-79. QUADROS DE MAGALHÃES. Democracia e Poder Constituinte, 2004, p. 125-126.98 QUADROS DE MAGALHÃES. Democracia e Poder Constituinte, 2004, p. 125-126.

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vista jurídico, pela ordem com a qual rompe, reconhece-se que ele não é plenamente ilimitado, havendo compromissos éticos, culturais e sociais que devem ser respeitados.99 A es-ses, cabe, mais do que nunca antes, acrescentar compromis-sos ambientais e bioéticos. Além disso, afirma-se a distinção entre poder constituinte originário, poder constituinte de-rivado e demais poderes constituídos, cabendo a estes dois últimos uma atuação apenas dentro das possibilidades tra-çadas por aquele primeiro.100

Por fim, vale referir-se ao legado do Constitucionalis-mo para o Estado Democrático de Direito. Em primeiro lu-gar, o reconhecimento apenas de liberdades privadas ou pú-blicas – assumindo uma dicotomia entre elas – não é capaz de garantir legitimidade e estabilidade políticas. As expe-riências constitucionais vistas como mera concessão de li-berdades privadas aos cidadãos mostraram franca propen-são a se transformarem em regimes ditatoriais e, em último estágio, a acabarem com aquelas liberdades inicialmente asseguradas. Por outro lado, a garantia somente de liberda-des públicas pode levar, em último estágio, aos abusos mais impensáveis sob o argumento da razão de Estado. Assim, impõe-se o reconhecimento da co-originalidade e da equi-primordialidade das autonomias privada e pública, numa relação de coesão interna.101

99 CATTONI DE OLIVEIRA. Poder Constituinte e Patriostismo Constitu-cional: o projeto constituinte do Estado Democrático de Direito na teoria discursiva de Jürgen Habermas, 2006. QUADROS DE MAGALHÃES. Demo-cracia e Poder Constituinte, 2004, p. 118.100 CATTONI DE OLIVEIRA. Poder Constituinte e Patriostismo Constitu-cional: o projeto constituinte do Estado Democrático de Direito na teoria discursiva de Jürgen Habermas, 2006.101 Idem, p. 81-86. HABERMAS. A inclusão do outro: Estudos de teoria po-lítica, 2002. P. 285-297. HABERMAS. Era das transições, 2003, p. 153-173.

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Em segundo lugar, a constituição não deve, nem pode, ser entendida como mero texto fechado, ao qual a realida-de social, política e jurídica corresponderia ou não. De igual maneira, o momento constituinte não deve ser compreendi-do como algo estático, que marca sua existência no tempo e se desfaz logo em seguida. Antes, tal momento deve ser en-tendido como processo que se prolonga no tempo, algo que, iniciado pelo poder constituinte originário do povo enquan-to instância plural, e somente por ele, tem continuidade nas práticas cotidianas em que cada cidadão e cada agrupamento social buscam constituir-se de acordo com os preceitos lan-çados no ato constituinte primário. Em sentido semelhante, a constituição somente pode ser vista como marco inicial de um projeto constituinte, projeto esse que igualmente se pro-longa no tempo e, no decorrer deste, deverá ser vivido como um processo de aprendizagem social.102

Se o problema maior com o qual tiveram de lidar os re-volucionários da Europa e da América do Norte foi o do ab-soluto, ou melhor, o da falta do absoluto, do absoluto como falta, cabe distinguir o que seria uma falta daquilo que seria mais bem entendido como uma ausência. Pois o Constitu-cionalismo Moderno – como Constitucionalismo Democrá-tico, e exatamente por ser democrático – não se pode mais traduzir como algo a que falta um fundamento último. Um soberano, um absoluto, não fazem falta ao Constitucionalis-mo. Diferentemente, a dimensão histórica típica deste exige que sua legitimidade seja compreendida como um vazio não mais passível de ser preenchido senão como uma ausência assimilada, ou seja, uma legitimidade que só se constrói, que

102 HABERMAS. Era das transições, 2003, p. 165, 153-173. CATTONI DE OLI-VEIRA. Poder Constituinte e Patriostismo Constitucional: o projeto consti-tuinte do Estado Democrático de Direito na teoria discursiva de Jürgen Ha-bermas, 2006. CATTONI DE OLIVEIRA. Direito, Política e Filosofia, 2007. ROSENFELD. A identidade do sujeito constitucional, 2003.

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só se pode construir, no por-vir do tempo histórico em que atores sociais plurais entram em cena no sentido da consolidação coti-diana do projeto constituinte inaugurado com a constituição.103

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Capítulo IV Validade versus correção: a tese

kelseniana da interpretação autêntica1

7. Sobre o que não podemos falar devemos (must) permanecer em silêncio

Ludwig Wittgenstein

[...] e este conceito [o de razão prática] é – como se mostrará – insustentável, pois a função da razão é conhecer e não querer, e o

estabelecimento de normas é um ato de vontade. Hans Kelsen

A tarefa de julgar, para que realize a função socialmente integrado-ra da ordem jurídica e a pretensão de legitimidade do Direito, deve

simultaneamente cumprir as condições de uma decisão consistente e da aceitabilidade racional.

Jürgen Habermas

1. Introdução

Este texto tem por objetivo realizar um estudo sobre as reflexões em torno da problemática da interpretação ju-rídica desenvolvidas por aquele que, sem dúvida, foi um dos juristas de maior importância para o Direito no século XX:

1 Para a Professora Elza Maria Miranda Afonso.

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Hans Kelsen. Nenhum jurista teve, nos últimos cem anos, maior destaque do que ele. Há como discordar de Kelsen, mas não há como desconhecê-lo.

A expressão “interpretação autêntica” não está presente na primeira edição da Teoria Pura do Direito, nem em um esquecido texto de Kelsen sobre a interpretação, publicado no princípio da dé-cada de 30, na Internationale Zeitschrift für Theorie des Rechts.2 Ela passa a ser usada na edição em língua francesa do mesmo livro que, como o próprio Kelsen diz, em seu prefácio, não é uma simples tra-dução, mas um aperfeiçoamento da obra.3 No capítulo dez, sobre a interpretação, Kelsen faz alguns aditamentos e modificações im-portantes no sentido de esclarecer o seu ponto de vista.É na edição de 1960 da Teoria Pura do Direito que o capítulo, agora oitavo, vai surgir totalmente reestruturado e com grandes alterações.

Essas alterações, como veremos, são bem mais do que formais, pois (1) o conceito de interpretação autêntica vai so-frer um alargamento que, em última análise, (2) terá posto em evidência a insustentabilidade dos pressupostos teóricos de Kelsen, inclusive perante o paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito, (3) sem falar na ameaça à própria coerência interna de sua teoria.

Os textos objeto de estudo serão, principalmente, os das edições de 1934, de 1953 e de 1960 da Teoria Pura do Direito.4

2. O Desenvolvimento da tese da interpretação autêntica

7. Sobre o que não podemos falar devemos (must) permanecer em silêncio

Ludwig Wittgenstein

2 KELSEN. Sobre a teoria da interpretação, 1997, p. 31-43.3 KELSEN. Théorie pure de droit. Introduction a la science du droit, 1953.. Préface d’auteur: “J’ai ainsi été amené à préciser divers points qui n’étaient pas suffisamment clairs et avaient donné lieu à des malentendus [...] Le présent ouvrage ne pouvait donc pas être une simple traduction de celui que j’avait publié en 1934. Il s’en distingue par de nombreuses adjonctions et modifications”.4 KELSEN. Teoria geral do direito e do estado, 1992. KELSEN. Théorie pure de droit. In-troduction a la science du droit, 1953. KELSEN. Teoria pura do direito, 1987.

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2.1. A Primeira Edição da Teoria Pura do Direito (1934)

Nesta edição, em que Kelsen, antes de tudo, “busca cri-ticamente traçar os limites e as possibilidades do conheci-mento da Ciência do Direito”, o já citado artigo, publicado na Internationale Zeitschrift für Theorie des Rechts, é prati-camente reproduzido no seu capítulo VI.

O capítulo VI apresenta-se dividido em onze tópicos, sendo que os três últimos são reservados ao estudo das cha-madas lacunas do Direito. As principais teses levantadas por Kelsen serão apresentadas a seguir, sendo que a questão es-pecífica acerca das lacunas não será objeto de estudo. Segun-do Kelsen, o problema da interpretação está relacionado ao problema da caracterização do Direito. A teoria kelseniana da interpretação pressupõe uma teoria do ordenamento ju-rídico segundo a qual o Direito é um sistema de normas es-truturado hierarquicamente (grifos meus):

A interpretação é uma atividade intelectual que acompanha o pro-cesso de criação do Direito enquanto este se move de um nível mais alto da estrutura hierárquica ao nível mais baixo governado por aquele nível mais alto. No caso modelo, que é o de interpretação das leis, a questão a ser respondida é como, na aplicação de uma norma geral (a lei) a um caso concreto, alguém chega à norma individual correspondente (uma decisão judicial ou um ato administrativo). Há, contudo, interpretação da constituição, na medida em que a constituição é para ser aplicada no processo legislativo, ou na edição de regulamentos de emergência ou outros decretos fundados direta-mente na constituição – ou seja, na medida em que a constituição é para ser aplicada a um nível inferior da hierarquia. E há também in-terpretação de normas individuais – de decisões judiciais, diretivas administrativas, negócios jurídicos, etc. Há, em suma, interpretação de todas as normas jurídicas na medida em que elas são para ser apli-cadas – isto é, na medida em que o processo de criação e aplicação do Direito se move de um nível do sistema jurídico a outro.5

5 KELSEN. Introduction to the problems of legal theory. A transtation of the first edition of Reine Rechtslehre or Pure theory of law, 1992, p. 77.

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A relação entre o nível superior e o nível inferior do sis-tema jurídico – entre a constituição e a lei, ou entre a lei e a decisão judicial – não é uma relação de determinação ou de vinculação formal (quanto ao processo de criação da norma inferior) e material (quanto ao conteúdo da norma inferior) completa. Nas palavras de Kelsen:

A determinação, todavia, nunca é completa. A norma superior não pode ser determinante acerca de todos os detalhes do ato que a põe em prática. Deve restar sempre um espaço de discricionariedade, às vezes maior, às vezes menor, já que a norma superior, em relação ao ato que a aplica (um ato de criação normativa ou simples implemen-tação), tem simplesmente o caráter de uma moldura a ser preenchi-da pelo ato.6

Por mais que a norma superior busque vincular formal e materialmente o modo de sua aplicação ou, em outras palavras, da produção de uma norma inferior com base nessa norma su-perior, ela terá de deixar vários detalhes fora do seu alcance:

Se o órgão A emite um comando para que o órgão B prenda o sujeito C, o órgão B tem de decidir, segundo seu próprio critério, quando, onde e como realizará a ordem de prisão; decisões, essas, que de-pendem de circunstâncias externas que A não previu e, em grande parte, não podia prever.7

Disso, diz Kelsen, resulta a afirmação segundo a qual todo ato jurídico de aplicação de uma norma é somente em parte determinado por essa norma. Tal indeterminação pode dizer respeito tanto às condições materiais do fato quanto às consequências condicionadas, isto é, ao “por quê” e ao “quê” do ato prescrito. A indeterminação pode ser diretamente in-tentada, seja parte da intenção da autoridade na edição da

6 KELSEN. Introduction to the problems of legal theory. A transtation of the first edition of Reine Rechtslehre or Pure theory of law, 1992,, p.78. 7 Idem, p.78.

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norma superior, ou pode ser não intencional, seja parte das consequências das propriedades da norma a ser aplicada pelo ato em questão.

Assim, no primeiro caso, a edição de uma norma geral sempre se processa (de acordo com sua natureza) pressu-pondo-se que a norma individual editada na aplicação da norma geral continuará o processo de determinação, que constitui a ordenação hierárquica de normas jurídicas.

No segundo caso, antes de tudo, há a ambiguidade de uma palavra, ou frase, através da qual a norma se expressa; o sentido linguístico da norma não é inequívoco, e aqueles que aplicam a norma se depararão com várias possíveis leituras. Uma situação como essa ocorre quando o órgão, aplicando a norma, crê que a discrepância entre as expressões linguísticas da norma e a vontade da autoridade que editou a norma pode ser presumida, enquanto que a questão acerca de como a von-tade da autoridade é descoberta pode ser deixada completa-mente em aberto. Em todo caso, onde a expressão linguística da norma possa ser presumida como não correspondendo à vontade daquele que a editou, deve haver a possibilidade de se indagar acerca de tal vontade, apelando-se a fontes outras que não a própria expressão linguística. Finalmente, segundo Kelsen, uma indeterminação não intencional do ato jurídico prescrito pode resultar do fato de duas normas pretenderem ser simultaneamente válidas – ambas contidas em uma e mes-ma lei – e contradizerem-se total ou parcialmente. “Em todos esses casos de indeterminação, intentada ou não intenta, do nível inferior”, diz Kelsen, “várias possibilidades de aplicação da norma superior se apresentam”.8A norma a ser aplicada, continua Kelsen, “é simplesmente um quadro, uma moldura, no qual várias possibilidades de aplicação são dadas, e todo ato que esteja contido neste quadro, que em algum sentido

8 KELSEN. Introduction to the problems of legal theory. A transtation of the first edition of Reine Rechtslehre or Pure theory of law, 1992, p. 80.

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possível preencha tal quadro, estará em conformidade com a norma”.9A norma é uma moldura, contendo várias possibili-dades de aplicação.

Mas, segundo o autor da Teoria Pura do Direito, da perspectiva do Direito positivo, não há, porém, critério com base no qual uma das possibilidades contidas na moldura da norma a ser aplicada possa ser favorecida em relação às outras possibilidades. Do ponto de vista do Direito positivo, não há simplesmente um método de acordo com o qual so-mente uma das várias leituras de uma norma possa ser dis-tinguida como “a correta” – presumindo-se que as várias lei-turas da significação da norma sejam possíveis no contexto de todas as outras normas da lei ou do sistema jurídico. To-dos os métodos desenvolvidos pela “jurisprudência tradicio-nal”, segundo Kelsen, levariam a um possível resultado, nun-ca a um único resultado correto.

Retomemos a epígrafe de Wittgenstein: “sobre o que não podemos falar devemos (must) permanecer em silên-cio”. Segundo Kelsen, a concepção presente na jurisprudência tradicional de que a indeterminação do ato jurídico prescrito pela norma aplicada pode ser superada pelo simples conheci-mento do Direito existente é uma autocontradição em face da pressuposição de que pode haver interpretação, pois, se pode haver uma interpretação de uma norma, então, a questão de qual seria a escolha “correta” entre as possibilidades dadas dentro de uma moldura da norma é dificilmente a questão da cognição direcionada ao Direito positivo; é um problema não de Teoria do Direito, mas de Política do Direito.

A tarefa de obter da lei a decisão judicial correta ou o ato adminis-trativo correto é essencialmente a mesma tarefa de criar a lei corre-ta nos quadros da constituição. Assim como não se pode obter leis corretas a partir da constituição mediante interpretação, assim tam-

9 KELSEN. Introduction to the problems of legal theory. A transtation of the first edition of Reine Rechtslehre or Pure theory of law, 1992, p.80.

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bém não se pode obter decisões judiciais a partir da lei mediante interpretação. Há, certamente, uma diferença entre esses dois ca-sos, mas ela é somente quantitativa e não qualitativa, e consiste simplesmente no fato de que o legislador está menos vinculado materialmente do que o juiz, ou seja, o legislador desfruta de uma maior independência na criação da lei. Mas mesmo o juiz cria di-reito, mesmo ele é relativamente independente. Precisamente por essa razão, é uma função volitiva chegar à norma individual no processo de aplicação de uma lei, desde que a moldura da norma geral seja preenchida por meio desse.10

Os comentários “teóricos”, que buscam supostamente assistir a atividade de aplicação do Direito, na visão kelsenia-na, são políticos, pois buscam, através de suas sugestões, in-fluenciar o legislador, as cortes ou os órgãos administrativos.

Na aplicação de uma lei, pode haver, ainda, lugar para uma atividade cognitiva para além da descoberta da moldu-ra na qual o ato de aplicação está confinado. Entretanto, isso não é conhecimento do Direito positivo, mas cognição de outras normas, as quais podem agora fazer o seu caminho no processo de criação jurídica, normas, nomeadamente, da moral, de justiça – julgamentos de valor social usualmente caracterizados com frases de efeito tais como “bem-estar do povo”, “interesse público”, “progresso” etc.

Contudo, do ponto de vista do Direito positivo, não se pode dizer acerca da validade ou do modo como essas nor-mas podem ser identificadas. Do ponto de vista do Direito positivo, a autoridade chamada a atuar é livre para o fazer de acordo com sua própria discricionariedade, a menos que o próprio Direito positivo autorize, ele mesmo, normas me-tajurídicas. Todavia, assim o fazendo, tais normas se torna-riam normas de Direito positivo.

10 KELSEN. Introduction to the problems of legal theory. A transtation of the first edi-tion of Reine Rechtslehre or Pure theory of law, 1992, p.83.

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Portanto, para a Teoria Pura do Direito, normas jurídi-cas não podem ser criadas por simples atos de cognição. O Direito não pode, segundo tal teoria, ser imaginado como um sistema fixo que governa todos os aspectos do comporta-mento humano, em particular, da atividade dos órgãos apli-cadores do Direito. A certeza jurídica é uma ilusão que não pode ser mantida pela Teoria Pura do Direito, embora possa reconhecer-se o valor político daquela.

2. 2. A Edição em Língua Francesa de 1953

No presente tópico, buscaremos expor as principais di-ferenças entre a edição francesa da Teoria Pura do Direito, de 1953, e a edição de 1934, quanto ao problema geral da inter-pretação. Já tivemos a oportunidade de observar que justa-mente nesta edição, que pretende ser um aperfeiçoamento daquela de 1934, é que Kelsen introduz a expressão “inter-pretação autêntica” para designar a interpretação realizada pelos órgãos de aplicação do Direito, ao mesmo tempo dis-tinguindo esta da realizada pela Ciência do Direito.

O capítulo dez da Théorie Pure du Droit, que trata da interpretação, apresenta-se dividido em sete tópicos, sendo que o último, mais longo, é dedicado às “lacunas do Direito”.

O ponto 32 corresponde ao ponto 1, o 33, 34 e 35 ao 2, o 36 ao 3, o 37 ao 4, o 38 ao 5, o 39 ao 6 e o 40, 41 e 42 ao 7, respectivamente, da edição de 1934 e da edição em língua francesa de 1953.

As maiores diferenças entre esta edição e a de 1934 en-contram-se nos pontos 5 e 6.

Em 1934, Kelsen denuncia o caráter político dos co-mentários “teóricos” que consideram possível fixar a “única decisão correta ou justa” através de simples atos de cognição e apenas delineia as tarefas da Teoria do Direito em face do

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processo de aplicação jurídica. Já em 1953, a divisão dos cam-pos da interpretação realizada pela Ciência do Direito e da interpretação realizada pelos órgãos aplicadores do Direito está bastante clara:

Um comentário científico deve se limitar a indicar as interpretações possíveis de uma norma. Ele não pode decidir que uma entre elas é a única correta ou a única justa. Essa decisão é um ato de vontade que cabe exclusivamente ao órgão que tem a competência de aplicar a norma em se criando uma nova.11

Ou seja, cabe à Ciência do Direito apenas traçar o qua-dro das interpretações possíveis. Isso é conhecer o Direito. Já ao órgão competente cabe decidir qual das interpretações possíveis será a escolhida no processo de aplicação da norma superior em se produzindo a norma inferior. Isso é aplicar/produzir o Direito. E continua Kelsen, precisando mais ain-da sua tese (grifos meus):

Ora, o jurista que descreve o Direito não é uma autoridade jurídica. Sua tarefa é a de conhecer o Direito. A ele não cabe nem criar, nem aplicar o Direito por um ato de vontade. Sua interpretação do Direito não tem caráter obrigatório, enquanto que, em criando uma norma inferior, o órgão competente dá à norma superior uma interpretação que tem força de lei. Essa interpretação é autêntica na medida em que a norma inferior é válida. Emprega-se habitualmente o termo interpretação autêntica no caso em que uma norma tivesse expres-samente e exclusivamente por função interpretar uma outra norma, mas uma interpretação contida numa norma que tem também uma outra função não é menos autêntica e obrigatória. 12

Enquanto ao jurista não cabe mais que descrever o Di-reito, traçando-lhe o quadro das interpretações possíveis, ao órgão competente, em criando uma norma com base na nor-ma aplicanda e no quadro por ela fixado, cabe determinar qual das interpretações possíveis é a obrigatória. Em deter-minando através de um ato de vontade juridicamente auto-

11 KELSEN. Théorie pure de droit. Introduction a la science du droit, 1953, p. 140.12 Idem, p. 141.

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rizado qual dentre as interpretações possíveis é a obrigató-ria, em criando uma norma que é válida por ser fundada na norma superior, tal interpretação que realiza é chamada de interpretação autêntica.

E as razões com base nas quais o órgão competente de-cide por esta ou aquela interpretação, desde que interpreta-ção possível, ou seja, desde que contida no quadro da norma aplicanda, embora existam, são irrelevantes do ponto de vista do Direito positivo e, portanto, da Teoria do Direito positivo:

Quando uma norma inferior é criada sobre a base de uma norma superior e no quadro por ela fixado, quer se trate de uma lei fun-dada sobre a constituição, ou de uma decisão judiciária fundada sobre a lei, é claro que o órgão criador da norma inferior não tem somente de levar em conta a norma superior, mas também outras normas não jurídicas relevantes da moral, da justiça, ou daquilo que se chama bem público, interesse do Estado, o progresso. Se se situe do ponto de vista do Direito positivo, não se pode dizer nada acerca da validade de tais normas, nem sobre a maneira de constatar sua existência. Tudo que se pode dizer é que elas não são normas jurídicas e que a criação da norma inferior é deixada à li-vre apreciação do órgão competente na medida em que ela não é determinada pela norma superior.13

E repetindo a posição já assumida em 1934, Kelsen ter-mina dizendo que a situação seria diferente se o próprio Di-reito positivo prescrevesse a aplicação de uma norma moral ou de uma outra norma metajurídica. Mas, em assim o fazen-do, tal prescrição teria por efeito transformar a norma me-tajurídica em jurídica, o que nada acrescentaria ao afirmado acima. Ao aplicar tal norma, o órgão competente, embora determinado, p. ex., quanto a um “conteúdo moral”, ainda gozaria de discricionariedade, estando livre para determinar o que seria justamente “o” conteúdo moral da norma.

13 KELSEN. Théorie pure de droit. Introduction a la science du droit, 1953, p. 141.

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Concluindo sua dissertação acerca das questões gerais da interpretação, Kelsen, mais uma vez, reafirma sua crítica, presente, como vimos, já na edição de 1934, à jurisprudência tradicional:

Quando o sentido de uma norma é equívoco, há, segundo a teoria tradicional, uma única interpretação correta e um método científico que permite estabelecer tal interpretação em todos os casos. O Di-reito seria assim uma ordem fixa determinante de modo inequívoco da conduta dos homens e em particular a dos tribunais e a dos ou-tros órgãos encarregados de aplicar o Direito. Isso garantiria, senão uma segurança econômica, ao menos uma segurança jurídica. Uma tal idéia é, todavia, ilusória, e a Teoria Pura do Direito, que se esfor-ça, qui s’adonne à seule recherche de la verité, é obrigada a destruir tal ilusão, apesar dos efeitos bastante úteis que ela possa ter no do-mínio da política.14

2. 3. A Edição de 1960

Em 1960, o capítulo que trata da interpretação aparece modificado em sua estrutura e em seu conteúdo. Esse capí-tulo, de número oito, apresenta-se dividido em três partes, sendo que não há uma correspondência precisa entre essas partes e os tópicos das outras edições. O texto, inclusive, é mais longo, e a discussão sobre o problema das lacunas do Direito é incorporado no capítulo cinco, que trata da “Dinâ-mica Jurídica”, isto é, da teoria kelseniana do ordenamento jurídico, não restando, aqui, pouco mais de duas linhas.

A distinção entre interpretação autêntica e não-autênti-ca surge desde o princípio do capítulo. Essas são introduzidas como sendo, respectivamente, “a interpretação do Direito rea-lizada pelo órgão que o aplica e a interpretação do Direito que não é realizada por órgão jurídico mas por uma pessoa privada e, especialmente, pela ciência jurídica”.15

14 KELSEN. Théorie pure de droit. Introduction a la science du droit, 1953, p. 142.15 Idem, p. 364.

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Nessas duas interpretações, que devem ser, segundo Kelsen, distinguidas claramente uma da outra, estão a essên-cia da interpretação e o eixo em torno do qual girará toda a ar-gumentação:

Quando o Direito é aplicado por um órgão jurídico, este preci-sa fixar o sentido das normas que vai aplicar, tem de interpretar estas normas. A interpretação é, portanto, uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do Direito no seu progre-dir de um escalão superior para um escalão inferior. Mas também os indivíduos, que têm não de aplicar, mas de observar o Direito, observando ou praticando a conduta que evita a sanção, precisam compreender e, portanto, determinar o sentido das normas jurí-dicas que por eles hão de ser observadas. E, finalmente, também a ciência jurídica, quando descreve um Direito positivo, tem de interpretar as normas deste. 16

Com essa diferenciação, Kelsen inicia sua análise a partir da interpretação autênticae apresenta, como nas ou-tras edições, os casos de indeterminação do ato de aplica-ção do Direito, a intentada e a não-intentada pela autorida-de que edita a norma, critica a “jurisprudência tradicional” quanto às pretensões metodológicas desta e caracteriza o Direito a aplicar como uma moldura dentro da qual há vá-rias interpretações possíveis.

Entretanto, a grande diferença está no ponto 2, “A in-terpretação como ato de conhecimento ou como de vonta-de”, em relação aos pontos 5 e 6 de 1953 e 38 e 39 de 1934, que possuíam o mesmo título.

Kelsen começa criticando a ideia, segundo ele, subja-cente à “teoria tradicional da interpretação”, de que a interpre-tação realizada pelos órgãos aplicadores do Direito seria uma atividade meramente de cognição do Direito preexistente, que levaria à determinação da “única interpretação correta”.

16 KELSEN. Teoria pura do direito, 1987, p. 363.

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Para Kelsen, mais que uma atividade de cognição, que somente levaria à descrição das interpretações possíveis, a interpretação que acompanha a aplicação da norma superior e a produção da norma inferior é um ato de vontade. É atra-vés de um ato de vontade que o órgão autorizado fixa qual dentre as interpretações possíveis da norma superior é a que terá curso na produção da norma inferior.

Para além da necessária fixação da moldura dentro da qual se tem de manter o ato a pôr, repete Kelsen posição assu-mida nas edições anteriores, pode ter ainda lugar uma ativi-dade cognoscitiva do órgão aplicador do Direito, mas não do Direito positivo e sim acerca de outras normas, como as mo-rais ou de justiça, bem como de juízos sociais de valor desig-nados “bem comum”, “interesse do Estado”, “progresso” etc., que, do ponto de vista do Direito positivo, nada se pode dizer acerca da sua validade ou verificabilidade. Se o Direito dele-gasse tais normas metajurídicas, essas se transformariam em Direito positivo – e a questão permaneceria a mesma.

Então, Kelsen conclui, acrescentando ao texto de 1953 algumas observações, acerca da interpretação autêntica:

Se queremos caracterizar não apenas a interpretação da lei pelos tribunais ou pelas autoridades administrativas, mas, de modo in-teiramente geral, a interpretação jurídica realizada pelos órgãos aplicadores do Direito, devemos dizer: na aplicação do Direito por um órgão jurídico, a interpretação cognoscitiva (obtida por uma operação de conhecimento) do Direito a aplicar combina-se com um ato de vontade em que o órgão aplicador do Direito efe-tua uma escolha entre as possibilidades reveladas através daquela mesma interpretação cognoscitiva. Com este ato, ou é produzida uma norma de escalão inferior, ou é executado um ato de coerção estatuído na norma jurídica aplicanda.

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Através deste ato de vontade se distingue a interpretação jurídica feita pelo órgão aplicador do Direito de toda e qual-quer outra interpretação, especialmente da interpretação le-vada a cabo pela ciência jurídica.

A interpretação feita pelo órgão aplicador do Direito é sempre au-têntica. Ela cria Direito. Na verdade, só se fala de interpretação au-têntica quando esta interpretação assume a forma de uma lei ou de um tratado de Direito Internacional e tem caráter geral, quer dizer, cria Direito não apenas para um caso concreto mas para todos os ca-sos iguais, ou seja, quando o ato designado como interpretação au-têntica representa a produção de uma norma geral. Mas autêntica, isto é, criadora de Direito, é a interpretação feita através de um órgão aplicador do Direito ainda quando cria Direito apenas para um caso concreto, quer dizer, quando esse órgão apenas crie uma norma in-dividual ou executa uma sanção.17

Até aqui, nada de novo, a não ser a atenção que Kelsen chama para a diferença entre aplicação do Direito como pro-dução de uma norma inferior e aplicação do Direito como execução de um ato de coerção estatuído na norma jurídi-ca aplicanda e para a possibilidade de interpretação autênti-ca através da edição de um tratado. Tais diferenças não pos-suem o mesmo peso que a constante na afirmação seguinte, esta, sim, não presente nas edições anteriores da Teoria Pura do Direito (grifos meus):

A propósito é importante notar que, pela via da interpretação autên-tica, quer dizer, da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar, não somente se realiza uma das possibilidades reveladas pela interpretação cognoscitiva da mesma norma, como também se pode produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a norma a aplicar representa.18

E explica o autor da Teoria Pura do Direito:

17 KELSEN. Teoria pura do direito, 1987, p. 369.18 Idem, p. 369.

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Através de uma interpretação autêntica deste tipo pode criar-se Di-reito, não só no caso em que a interpretação tem caráter geral, em que, portanto, existe interpretação autêntica no sentido usual da palavra, mas também no caso em que é produzida uma norma jurí-dica individual através de um órgão aplicador do Direito, desde que o ato deste órgão já não possa ser anulado, desde que ele tenha tran-sitado em julgado. É fato bem conhecido que, pela via de uma in-terpretação autêntica deste tipo, é muitas vezes criado direito novo – especialmente pelos tribunais de última instância.19

Finalizando o capítulo, no ponto 3, Kelsen caracteriza a interpretação realizada pela Ciência do Direito. A tese cen-tral, presente na edição de 1953, é a de que a interpretação científica não passa de interpretação cognoscitiva:

A interpretação científica é pura determinação cognoscitiva do sen-tido das normas jurídicas.A interpretação jurídico-científica não pode fazer outra coisa senão estabelecer as possíveis significações de uma norma jurídica. Como conhecimento do seu objeto, ela não pode tomar qualquer decisão entre as possibilidades por si mesma reveladas, mas tem de deixar tal decisão ao órgão que, segundo a ordem jurídica, é competente para aplicar o Direito.20

De resto, uma interpretação realizada pela Ciência do Direito poderia mostrar à autoridade legislativa

[...] quão longe está a sua obra de satisfazer à exigência técnico-jurí-dica de uma formulação de normas jurídicas o mais possível inequí-vocas ou, pelo menos, de uma formulação feita de tal maneira que a inevitável pluralidade de significações seja reduzida a um mínimo e, assim, se obtenha o maior grau possível de segurança jurídica.21

19 KELSEN. Teoria pura do direito, 1987, p. 370.20 Idem, p. 370.21 Idem, p. 371.

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Portanto, na edição de 1960, o conceito de “interpreta-ção autêntica” vai sofrer um alargamento que, como se bus-cará mostrar, irá relevar toda a insustentabilidade dos pres-supostos teóricos kelsenianos, bem como colocará em risco a própria coerência interna da sua teoria.

Kelsen chama de interpretação autêntica a interpre-tação jurídica realizada pelo órgão jurídico que dá curso a uma das interpretações possíveis reveladas pela interpreta-ção cognoscitiva da norma aplicanda, através de um ato de vontade, e, com esse ato, ou é produzida uma norma de es-calão inferior ou é executado um ato de coerção estatuído na norma que é aplicada. Mas também chama de interpretação autêntica a produção de uma norma que se situe completa-mente fora da moldura, revelada pela interpretação cognosci-tiva, que a norma a aplicar representa, não só no caso em que a interpretação tem caráter geral, mas também no caso em que é produzida uma norma jurídica individual através de um órgão aplicador do Direito, desde que o ato deste órgão já não possa ser anulado, desde que ele tenha transitado em julgado.

Também há o refinamento do seu conceito de inter-pretação não-autêntica: essa tanto é a realizada pelos indi-víduos que têm de observar as normas – e nesse processo a escolha que façam das interpretações possíveis não é vincu-lante para os órgãos jurídicos autorizados a aplicar tais nor-mas – , quanto a realizada pela Ciência do Direito – que não passa de interpretação cognoscitiva dos possíveis sentidos das normas jurídicas.

2. 4. Sintetizando as teses de Kelsen

Do que foi analisado, podem-se sintetizar as teses de Kelsen acerca da interpretação da seguinte maneira:

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1 – A interpretação das normas jurídicas é necessária tanto à aplicação quanto à observância de tais normas;

2 – O ato de aplicação do Direito é em parte determinado, em parte indeterminado pelo Direito;

3 – Tal indeterminação pode dizer respeito tanto ao fato con-dicionante como à consequência condicionada juridicamente;

4 – A indeterminação pode ser intentada pela autoridade que estabeleceu a norma a aplicar ou resultar, não inten-cionalmente, da própria constituição da norma jurídica que deve ser aplicada;

5 – A indeterminação do ato de aplicação pode ser conse-quência não intencional em razão da pluralidade de signifi-cações de uma palavra ou palavras através das quais a norma se exprime, o sentido verbal da norma não é unívoco; ou, o mesmo, quando o órgão que aplica a norma crê poder pre-sumir que entre a expressão verbal da norma e a vontade da autoridade legislativa, que há de se exprimir através daquela expressão, existe uma discrepância; e, ainda, a indetermina-ção do ato a pôr pode ser também a consequência do fato de duas normas, que pretendem valer simultaneamente – por-que, p. ex., estão contidas numa e mesma lei – se contradize-rem total ou parcialmente;

6 – Em todos estes casos, de indeterminação intencional ou não, do escalão inferior, oferecem-se várias possibilidades à aplicação jurídica. O ato jurídico que efetiva ou executa a norma pode ser conformado de maneira a corresponder a uma ou outra das várias significações verbais da mesma nor-ma, de maneira a corresponder à vontade do legislador – a determinar de qualquer forma que seja – ou, então, à expres-são por ele escolhida, de forma a corresponder a uma ou a outra das duas normas que se contradizem ou de forma a

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decidir como se as duas normas em contradição se anulas-sem mutuamente. O Direito a aplicar forma uma moldura ou quadro dentro do qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro desse quadro ou moldura, que preencha essa moldura em qualquer sentido possível;

7 – Se, em princípio, por interpretação se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o re-sultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilida-des que dentro desta moldura existem;

8 – Não há método que possa determinar uma única inter-pretação para uma norma a aplicar, todos podem conduzir apenas a interpretações possíveis;

9 – A necessidade de interpretação resulta justamente do fato de a norma a aplicar ou o sistema de normas deixarem várias possibilidades em aberto, não conterem qualquer de-cisão acerca das soluções possíveis, mas deixarem tal decisão a um ato de produção normativa que ainda vai ser posto. Fa-lar em única interpretação, definível apenas por uma ativi-dade de cognição do Direito positivo preexistente, é contra-riar o próprio pressuposto da interpretação;

10 – A questão de se saber qual dentre as interpretações pos-síveis deverá ter curso não é um problema de Teoria do Di-reito, mas de Política do Direito;

11 – Dito isso, há dois tipos de interpretação: a autêntica e a não-autêntica;

12 – A primeira é realizada pelos órgãos jurídicos autorizados a aplicar e a produzir normas jurídicas, bem como a executar atos de coerção estatuídos juridicamente;

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13 – A segunda é realizada pelos indivíduos que têm de ob-servar as normas jurídicas e pela Ciência do Direito;

14 – Na interpretação autêntica, a interpretação cognoscitiva, obtida por uma operação de conhecimento do Direito a aplicar, combina-se com um ato de vontade em que o órgão aplicador do Direito efetua uma escolha entre as possibilidades reveladas através da mesma interpretação cognoscitiva. E com esse ato ou é produzida uma norma de escalão inferior ou é executado um ato de coerção estatuído pela norma aplicanda;

15 – A partir de 1960, Kelsen passa a admitir que, pela via da interpretação autêntica, não somente se realiza uma das possibilidades reveladas pela interpretação cognoscitiva da norma a aplicar, como também se pode produzir uma norma geral ou individual, conforme o caso, que se situe comple-tamente fora da moldura que a norma a aplicar representa;

16 – A interpretação não-autêntica é realizada pelos indiví-duos que têm de interpretar uma norma para observá-la, ou seja, têm de efetuar uma escolha dentre as interpretações possíveis. Contudo, tal escolha não é autêntica, posto que não vincula os órgãos aplica dores do Direito;

17 – A interpretação realizada pela Ciência do Direito tam-bém é não-autêntica, já que é pura cognição do Direito, ou seja, cabe à Ciência do Direito apenas revelar cientificamen-te os significados possíveis, traçando a moldura ou quadro das interpretações possíveis das normas jurídicas.

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3. A Teoria Pura do Direito em crise

[...] e este conceito é [o de razão prática] – como se mostrará – insustentável, pois a função da razão é conhecer e não querer, e o

estabelecimento de normas é um ato de vontade. Hans Kelsen

A tarefa de julgar, para que realize a função socialmente integrado-ra da ordem jurídica e a pretensão de legitimidade do Direito, deve

simultaneamente cumprir as condições de uma decisão consistente e da aceitabilidade racional.

Jürgen Habermas

Neste tópico, cabe fazer as críticas que consideramos – mais que pertinentes – necessárias.Na introdução deste texto, dissemos que o conceito de interpretação autêntica, alargado, como vimos, em 1960, em última análise, terá pos-to em evidência toda a insustentabilidade dos pressupostos teóricos de Kelsen, inclusive perante o paradigma constitu-cional do Estado Democrático de Direito, sem falar na amea-ça à própria coerência interna de sua teoria.

3. 1. O Risco da Incoerência

Começaremos pela última afirmação: por que o alar-gamento do conceito de interpretação autêntica coloca em risco a coerência interna da Teoria Pura do Direito?

Porque aceitar como sendo interpretação do Direito, sob o ponto de vista de uma teoria do Direito, de uma ciên-cia que descreve normas jurídicas e a dinâmica dessas nor-mas jurídicas, a possibilidade de produção de uma norma de escalão inferior ou a realização de um ato coercitivo que se processem fora do quadro de interpretações possíveis de

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uma norma superior aplicanda é, no mínimo, romper com o postulado metodológico da separação entre Teoria e Socio-logia do Direito, entre “ciência normativa” e “ciência causal”.

Sim, a aplicação jurídica passaria a ser tratada, simples-mente, como uma questão de eficácia do Direito, ou seja, da aplicação ou não das normas jurídicas, e não mais como uma questão de validade do Direito, isto é, de como a aplicação do Direito, segundo o próprio Direito, deve dar-se; uma confusão entre o nível do “ser” e o nível do “dever-ser” que a Teoria Pura tanto procurou evitar.22

Vejamos como isso fica claro, por exemplo, nesta passa-gem de Teoria Geral das Normas, sobre o “princípio da coisa julgada”, que corresponde à posição assumida por Kelsen na Teoria Pura de 1960 (grifos meus):

Visto que toda validade de uma norma jurídica individual tem de ser fundamentada, a Ciência do Direito precisa formular, numa alterna-tiva, a proposição jurídica que descreve a norma jurídica geral que deve ser aplicada pelo tribunal, e precisamente de modo que o órgão legal não apenas seja autorizado para ordenar a execução de um ato de coação determinado numa norma jurídica geral como também para ordenar um outro ato de coação que pareça correspondente àquele; ou para ordenar a execução de um ato de coação pertinente a um caso, mesmo que nenhuma norma jurídica geral preveja um ato de coação para tal caso; até mesmo para ordenar, na hipótese de uma conduta constatada pelo tribunal, a não-fixação de um ato de coação (para absolver o criminoso, rejeitar a ação civil), se bem que valha uma norma geral que preveja um ato de coação destinado a uma tal ocorrência.23

22 Sobre isso ver, por exemplo, KELSEN, 1987, p. 4: “A norma que empresta ao ato o significado de um ato jurídico (ou antijurídico) é ela produzida por um ato jurídico, que, por sua vez, recebe a sua significação jurídica de outra nor-ma. O que faz com que um fato constitua uma execução judicial de sentença de condenação à pena capital e não um homicídio, essa qualidade – que não pode ser captada pelos sentidos – somente surge através desta operação men-tal: confronto com o código penal e com o código de processo penal.”23 KELSEN. Teoria geral das normas, 1986, p. 318.

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E continua Kelsen:Poder-se-ia também argumentar que, em conseqüência do princí-pio da coisa julgada, toda decisão judicial, também uma não-corres-pondente às normas jurídicas gerais, materialmente determinadas, pode entrar em vigor, e conduzir a um resultado que é o mesmo que uma autorização jurídico-positiva ao juiz para decidir casos concre-tos segundo seu arbítrio e especialmente segundo um princípio por ele tido como justo. Sim, existe, aqui, a diferença de que se valem normas jurídicas gerais, cujo sentido é o de que elas devem ser apli-cadas pelos tribunais, na maioria dos casos, os tribunais aplicam efe-tivamente essas normas, e que decisões judiciais, que não correspon-dam a essas normas, só excepcionalmente entram em vigor.24

Não se pode concluir, sob o ponto de vista da teoria do Direito, que, se valem normas jurídicas gerais, na maioria dos casos, os tribunais aplicam efetivamente essas normas. Isso é uma questão, repetimos, acerca da eficácia do Direito e não acerca da validade da decisão judicial. A sentença pos-ta por um ato de vontade do juiz encontra seu fundamento de validade na normativa legal, na medida em que tal ato de vontade pode ser interpretado através da lei como tendo o sentido objetivo de uma norma jurídica individual, uma sen-tença judicial. Se não, não é sentença judicial. Aqui, a norma da coisa julgada funcionaria como um mecanismo de fecha-mento operacional do ordenamento jurídico que possibili-taria a permanência nesse de uma decisão inválida (do pon-to de vista do observador científico), na medida que essa já não poderia mais ser impugnada pelos procedimentos juri-dicamente previstos e anulada por autoridade juridicamente autorizada, cuja interpretação autêntica devesse prevalecer sobre a interpretação autêntica da autoridade judicial que expediu tal decisão. Aliás, teria sido muito mais coerente se Kelsen tivesse mantido essa posição e não tivesse passado a

24 KELSEN. Teoria pura do direito, 1987, p.319. Ver o texto já citado da p. 369, da Teoria Pura, de 1987.

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admitir, em 1960, a possibilidade de interpretação autêntica fora do quadro das interpretações possíveis. Se tivesse man-tido, por exemplo, o seguinte ponto de vista defendido em Teoria Geral do Direito e do Estado:

A “inconstitucionalidade” ou “ilegalidade” de uma norma que, por um motivo ou outro, tem de ser pressuposta como válida significa, assim, ou a possibilidade de esta ser anulada (do modo ordinário se for uma decisão judicial, de outro modo, que não o ordinário, se for um estatuto), ou a possibilidade de ser nula. Sua nulidade significa a negação da sua existência pela cognição jurídica. Não pode ocorrer qualquer contradição entre duas normas de diferentes níveis da or-dem jurídica. A unidade da ordem jurídica nunca pode ser ameaça-da por qualquer contradição entre uma norma superior e uma nor-ma inferior na hierarquia do Direito.25

Tal posição, de 1960, como resta claro, corre o risco de admitir uma inversão da pirâmide normativa, ao deixar, em última análise, a questão de o que seja o Direito nas mãos de um Tribunal superior ou do legislativo infraconstitucional. O que significaria que o Direito só determina a atividade de apli-cação e produção normativa na medida em que os órgãos de cúpula assim o quisessem. Numa linguagem realista, “o Direi-to seria aquilo que em última instância a autoridade suprema, quer seja o próprio legislativo, quer seja uma Corte Constitu-cional ou um Tribunal superior, dissesse que ele é”. Não resta-ria nem a ressalva, feita no início da Teoria Pura de que:

25 KELSEN. Teoria geral do direito e do estado, 1992, p. 163. Ver, também, a posição defendida em KELSEN. Théorie pure de droit. Introduction a la science du droit, 1953, p. 141, e já mencionado quando do seu estudo: “Or le juriste qui décrit le droit n’est pas une autorité juridique. Sa tâche est de connaître le droit. Il ne lui appartient ni de le créer, ni de l’appliquer par un acte de volonté. Son interprétation du droit n’a pas de caractère obligatoire, tandis qu’en créant une norme inférieure l’organe compétent donne de la norme supérieure une interprétation qui a force de loi. Cette interprétation est authentique dans la mesure où la norme inférieure est valable”.

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A circunstância de o “dever-ser” constituir também o sentido objeti-vo do ato exprime que a conduta a que o ato intencionalmente se di-rige é considerada como obrigatória (devida), não apenas do ponto de vista do indivíduo que põe o ato, mas também do ponto de vista de um terceiro desinteressado.26

Simplesmente, tal teoria da interpretação autêntica, presente em 1960, é incompatível com a teoria do ordenamen-to jurídico desenvolvida até então por Kelsen, a menos que se admitisse que ele tenha assumido uma posição tão realista no sentido de acabar, em última análise, por considerar o Direito como um sistema escalonado de autorizações em branco que nada garantiria quanto à coerência formal e material das de-cisões em face de si mesmo, o que seria, mais uma vez, uma ruptura com postulados juspositivistas e uma abertura fatal ao realismo jurídico, em que a questão sobre a validade das decisões estaria reduzida à questão acerca da eficácia do Direi-to, numa confusão entre “ser” e “dever-ser”. Ou, então, quem sabe, as distinções entre ser e dever-ser e entre teoria e socio-logia não seriam assim tão óbvias,27 nem mesmo para a Teoria Pura do Direito, como Kelsen quis pressupor?

3. 2. A Insustentabilidade dos Pressupostos Teóricos

Quanto à afirmação acerca da insustentabilidade dos pressupostos teóricos kelsenianos, partiremos das seguintes indagações:

• Quanto à assertiva segundo a qual pela via da inter-pretação autêntica, quer dizer, da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar, não somente se realiza uma das possibilidades reve-ladas pela interpretação cognoscitiva da mesma nor-

26 KELSEN. Teoria pura do direito, 1987, p. 8.27 KELSEN. Teoria pura do direito, 1987, p. 6: “A distinção entre ser e dever-ser não po-der ser mais aprofundada. É um dado imediato da nossa consciência”.

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ma, como também se pode produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a nor-ma a aplicar representa, quem garante – a Ciência do Direito garante? – se de fato o órgão jurídico produ-ziu uma norma que se situa completamente fora da moldura que a norma a aplicar representa?

• Ou quem sabe não foi o cientista do Direito que não foi capaz de descrever todo o quadro das interpreta-ções possíveis?

• Se, para Kelsen, não haveria um método capaz de por si só determinar a interpretação “correta ou jus-ta”, qual seria o método para se traçar o quadro ou moldura das interpretações possíveis de uma norma jurídica?

• É realmente possível traçar “o” quadro ou moldura das interpretações possíveis de uma norma jurídica?

Essas questões põem em xeque os fundamentos da teo-ria da interpretação kelseniana.

Kelsen considera que a fixação do quadro ou moldura das interpretações possíveis de uma norma jurídica, como vi-mos, é uma atividade típica da Ciência do Direito e que tal ati-vidade é meramente cognoscitiva, “uma operação de conheci-mento”, diria ele.

Entretanto, Kelsen pouco ou nada diz acerca dessa “ope-ração de conhecimento”. Consistiria ela numa interpretação literal ou gramatical ou, para utilizar uma expressão usada por Norberto Bobbio,28 uma interpretação do “meio léxico”, com-binada com uma “interpretação sistemática”, como o texto da página 367, da Teoria Pura do Direito, de 1960, faz supor?

Não há absolutamente qualquer método – capaz de ser classifi-cado como de Direito positivo – segundo o qual, das várias signi-ficações verbais de uma norma, apenas uma possa ser destacada

28 BOBBIO. O positivismo jurídico. Lições de Filosofia do Direito, 1995, p. 214.

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como correta – desde que, naturalmente, se trate de várias signi-ficações possíveis: possíveis no confronto de todas as outras nor-mas da lei ou da ordem jurídica.

Por um lado, isso nos levaria a ter de realizar um traba-lho digno de Hércules, já que teríamos de ser capazes, não so-mente enquanto cientistas a quem cabe descrever as normas, mas também enquanto cidadãos que devem observar e ór-gãos jurídicos que devem aplicar normas jurídicas contingen-cialmente produzidas, de comparar todas as significações ou sentidos possíveis de uma norma com todas as significações ou sentidos possíveis de todas as possíveis normas do orde-namento jurídico. Só mesmo uma teoria epistemologicamen-te fundada no positivismo seria capaz de postular uma tese como esta. Isso é humanamente impossível.

É humanamente impossível porque não é possível pre-ver nem todas as interpretações nem todos os desenvolvi-mentos que serão dados no futuro ao Direito. Para isso, seria necessário ter uma consciência supra-histórica do Direito, e ninguém, devido à nossa própria condição de seres históri-cos, seria capaz disso.

Toda interpretação – é preciso aprender com a Herme-nêutica Filosófica – assim como toda atividade humana, dá--se num contexto histórico, pressupõe modos de olhar, sob o pano de fundo de tradições29 e, para usar uma expressão de Habermas, de mundos da vida, que simplesmente não po-dem ser colocados entre parêntesis, através de uma ativida-de de distanciamento ou abstração, porque o ser humano não pode abstrair de si mesmo, não pode fugir à sua condi-ção de ser de linguagem; “tradições” e “mundos da vida” são condições de possibilidade para a interpretação, são condi-ções para o entendimento.

29 GADAMER. Verdad y método. Fundamentos de una hermenéutica filosófica, 1991, p. 331ss.

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Frente a isso, a atividade de interpretação jurídica não se dá porque a linguagem através da qual a norma se expressa é ambígua ou obscura ou porque aquele que editou a norma as-sim o quis. Toda comunicação implica interpretação, não no sentido de que seja preciso desvendar um pretenso verdadei-ro sentido, ou seja, aquele sentido que o emissor quis ou in-tentou expressar, mas porque interpretar implica atribuir sen-tido, atribuir significações, compreender o que se comunica, sobre o pano de fundo de tradições e mundos da vida plurais.

Não há um método ou métodos capazes de revelar a verdade de uma norma jurídica – e nisso concordamos com Kelsen. Mas também não há métodos capazes de revelar ou descrever o quadro de verdades objetivas, a-históricas e des-contextualizadas, pois nenhum método é instrumento neutro capaz de superar a sua própria condição de obra humana, his-tórica, datada, contextual.

O que é preciso, então, para se interpretarem cientifi-camente as normas jurídicas, é problematizar essas pré-com-preensões advindas de tradições compartilhadas ou não, à luz de reconstruções paradigmáticas do Direito presentes na pró-pria História. Portanto, não há como falar das interpretações possíveis, mas somente de interpretações possíveis, segundo este ou aquele paradigma de Direito, refletido pela própria or-dem jurídica em questão.30

Por outro lado, há, também, um grande equívoco em se manter a tese da discricionariedade do aplicador do Direito, tal como presente nas edições anteriores da Teoria Pura do

30 HABERMAS. Between facts and norms. Contributions to a discourse theory of democracy and law, 1996, p. 194ss.

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Direito, porque ela se assenta num engano, que leva a con-fundir a perspectiva da atividade legislativa com a perspecti-va da atividade jurisdicional.31

Na verdade, o juiz não tem discricionariedade. Da perspec-tiva do juiz, aplicar o Direito é aplicá-lo a um caso concreto, caso, esse, como todo evento histórico, um evento único, irrepetível.

Não é que não haja várias interpretações possíveis para o Direito, ou, em termos mais precisos, várias normas válidas que, em princípio, poderiam vir a regular um caso, mas é que para interpretar o Direito – para aplicá-lo – é necessário levar em consideração, e isso é justamente o que Kelsen não faz, o caso concreto como constitutivo do processo de interpreta-ção do Direito. Que várias interpretações sejam possíveis ou que várias normas sejam válidas, isso não quer dizer que to-das elas sejam adequadas ao caso concreto.32 A reconstrução do caso concreto, argumentativamente realizada através e nos limites do processo jurisdicional, deve ser tomada como parte integrante do próprio processo de reconstrução ou determi-nação da norma a aplicar. Afinal, o processo jurisdicional im-plica uma série de atos que, realizados em contraditório en-tre as partes,33 prepara o provimento jurisdicional. Não é sem

31 GÜNTHER. The sense of appropriateness. Application discourses on mora-lity and law, 1993, p. 5. As teses de Günther, ainda que nos termos haberma-sianos da crítica à “teoria da argumentação jurídica como caso especial da argumentação moral” (ver HABERMAS. Between facts and norms. Contri-butions to a discourse theory of democracy and law, 1996, p. 233ss), acerca da distinção entre “discursos de justificação de normas jurídicas”, desenvol-vidos na perspectiva argumentativa do processo legislativo democrático, e “discursos de aplicação de normas jurídicas”, desenvolvidos na perspectiva argumentativa do processo jurisdicional de aplicação imparcial do Direito, constituem o marco teórico das críticas desenvolvidas no presente estudo.32 DWORKIN. Taking rights seriously, 1978, p. 14 e seguintes, desenvolve toda uma crítica às teses positivistas de H. L. A. Hart, entre elas à tese da discricionariedade do juiz que, sem dúvida, serviu também de base para as críticas desenvolvidas aqui à tese kelseniana da interpretação autêntica. Num outro sentido, embora extrema-mente interessante, ver JOUANJAN. Preséntation du traducteur. In: MULLER. Dis-course de la méthode juridique, 1996, p. 7ss..33 GONÇALVES. Técnica processual e teoria do processo, 1992, p. 102ss.

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motivo o fato de que ordens jurídicas que refletem o paradig-ma constitucional do Estado Democrático de Direito deter-minem, sob pena de nulidade, que as decisões jurisdicionais sejam fundamentadas.34

Diferentemente de Kelsen, para quem o conceito de ra-zão prática “é insustentável, pois a função da razão é conhe-cer e não querer, e o estabelecimento de normas é um ato de vontade”,35 o Direito, sob o paradigma constitucional do Es-tado Democrático de Direito, não é indiferente às razões nor-mativas pelas quais um juiz ou tribunal toma suas decisões: “A tarefa de julgar, para que realize a função socialmente in-tegradora da ordem jurídica e a pretensão de legitimidade do Direito, deve simultaneamente cumprir as condições de uma decisão consistente e da aceitabilidade racional”.36

Ou seja, por um lado, requerem-se decisões que possam ser consistentemente tomadas no quadro do Direito vigente, por outro, requerem-se decisões consistentes não apenas com o tratamento anterior de casos análogos e com o sistema de normas vigente, mas que sejam racionalmente fundadas nos fatos da questão, de tal modo que os cidadãos possam aceitá--las como decisões racionais.

Concluindo, é a reconstrução da situação de aplicação, em termos argumentativos determinados pelo próprio Direito Processual, que possibilita a determinação de qual, dentre as normas válidas, deve ser aplicada.

Referências bibliográficas

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34 Tal é o caso da Ordem Constitucional Brasileira, art. 93, IX, da Constituição da Re-pública Brasileira.35 KELSEN. Teoria pura do direito, 1987, p. 208.36 HABERMAS. Between facts and norms. Contributions to a discourse theory of de-mocracy and law, 1996, p. 198.

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Capítulo V Dworkin: de que maneira o direito se

assemelha à literatura?1

Segundo Ronald Dworkin, há uma única resposta cor-reta para os casos difíceis e não apenas respostas diferentes.2 Casos difíceis seriam, na discussão anglo-americana, situa-ções de aplicação em que não haveria uma regra específica ou clara a reger, em princípio, um caso concreto submetido à apreciação judicial.3

A tese da única resposta correta é inovadora e foi apre-sentada pela primeira vez nos anos 1970,4 tendo sido de-senvolvida posteriormente.5 Fundamentalmente, a tese da única resposta correta não trata de afirmar que, semantica-mente, qualquer juiz chegaria a uma mesma resposta, nem mesmo há uma exigência para se chegar, ainda que aproxi-madamente, a uma solução ideal.

A tese da única resposta correta é, sobretudo, uma questão de postura ou atitude, definidas como interpretati-vas e autorreflexivas, críticas, construtivas e fraternas, em

1 Para os Professores Alfredo Copetti Neto, André Karam Trindade, Roberta Gubert, Lenio Streck e Henriete Karam. 2 DWORKIN. O império do Direito, 1999. DWORKIN. Uma questão de prin-cípio, 2000.3 DWORKIN. De que maneira o direito se assemelha à literatura. In: Uma questão de princípio, 2000, pp. 175-2164 DWORKIN. Taking rights seriously, 1978.5 DWORKIN. O império do Direito, 1999. DWORKIN. Uma questão de prin-cípio, 2000.

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face do Direito como integridade, dos direitos individuais compreendidos como trunfos na discussão política e do exercício da jurisdição por aquele exigida; uma questão que, para Dworkin, não é metafísica, mas moral e jurídica.

Dworkin, assim, contrapõe-se primeiramente à tradi-ção positivista, segundo a qual, em face de casos difíceis, só haveria como tomar decisões diversas, cabendo ao juiz es-colher discricionariamente aquela a ser tomada. Entretanto, Dworkin também se contrapõe à tradição realista que advo-ga uma teoria do direito sem direitos, segundo a qual as de-cisões em nada se ligariam ao passado de uma comunidade jurídica, mas tão-somente a um futuro a ser projetado politi-camente a cada nova decisão passível apenas de legitimação a posteriori.

A tese da única resposta correta pressupõe, por um lado, uma reconstrução acerca do que é o Direito de uma socieda-de democrático-cooperativa (partnership democracy) com-preendida como comunidade de princípios: Dworkin, contra o positivismo, afirma que o Direito não se reduz a um conjun-to de regras convencionalmente estabelecidas no passado a serem, quando muito, meramente reproduzidas no presente pelo juiz, e, contra o realismo, que o Direito não se dissolve em diretrizes políticas ou em meras convicções políticas pes-soais do juiz a serem legitimadas em razão de sua eficácia óti-ma. Por outro lado, a tese da única resposta correta pressupõe uma reconstrução acerca de como interpretar o Direito: para além do dilema positivista e realista entre descobrir ou inven-tar uma decisão, Dworkin defende que o raciocínio jurídico é um exercício de interpretação construtiva, de que o Direito constitui a melhor justificação do conjunto das práticas ju-rídicas, a narrativa que faz de tais práticas as melhores pos-síveis. A tese da única resposta correta pressupõe, portanto,

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154 • Dworkin: de que maneira o direito se assemelha à literatura?

uma ruptura tanto com o paradigma positivista de Ciência e Teoria do Direito, quanto uma ruptura com o próprio paradig-ma positivista do Direito, que se esgotaram.

Dworkin parte, inicialmente, como fio condutor para sua exposição, de uma crítica à versão apresentada por Her-bert Hart do positivismo jurídico, crítica essa que se sofisti-cou ao longo dos anos.

Segundo Hart,6 o Direito é uma união de regras pri-márias e secundárias que se diferenciam das demais regras sociais com base num critério último de validade, a regra de reconhecimento, convencionalmente pressuposta por uma comunidade jurídica específica.7 Para Hart, o Direito possui uma linguagem própria inscrita nas práticas sociais e, como toda linguagem, possui regras sobre o uso e a significação dos seus termos. Todavia, como toda linguagem, a lingua-gem jurídica não seria capaz de prever e, portanto, de regu-lar, todas as possibilidades do seu uso. A linguagem jurídica, como a linguagem ordinária, possuiria, para Hart, uma tex-tura aberta. Na hipótese de não haver uma regra que preveja o tratamento a ser dado a um caso concreto objeto de apre-ciação judicial, entre assumir uma atitude formalista e uma atitude cética em relação ao Direito deve-se, segundo Hart, reconhecer ao juiz, em tais casos, o poder discricionário de escolher indiferentemente –, entre possíveis decisões váli-das – a decisão a ser tomada. Assim, a argumentação judicial se daria como se uma das partes envolvidas tivesse ou não o direito de vencer a controvérsia, mas, na verdade, o juiz cria-

6 HART. The concept of law, 1961.7 LAGES. Processo e jurisdição no marco do modelo constitucional do processo e o caráter jurisdicional democrático do processo de controle concentrado no Estado democrático de Direito. In: CATTONI DE OLIVEIRA. Jurisdição e her-menêutica constitucional no Estado Democrático de Direito, 2004, p.469-515.

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ria uma solução, apenas limitado pelo já convencionado no passado, legal ou jurisprudencialmente, e a aplicaria retroa-tivamente ao caso.

A tese da discricionariedade judicial é correlata, se-gundo Dworkin, à compreensão de que o Direito é um con-junto de regras, estabelecidas no passado, por convenções explícitas ou implícitas, que seriam, assim, coextensivas ao Direito. E pressupõe, pois, uma compreensão de como se deve entender e conhecer o próprio Direito.

Nesses termos, o dualismo metodológico, que consis-tiria em descrever a prática jurídica da perspectiva interna daqueles que aceitam uma regra e da perspectiva externa da-queles que meramente se submetem às regras, a partir do qual Hart considera possível compreender o Direito de uma sociedade, bem como o fundamento das obrigações jurídi-cas por ela aceito – por exemplo, a importante distinção, só acessível internamente, entre “ser obrigado” (being obliged) e “ter uma obrigação” (having an obligation) – não seria ca-paz para Dworkin de possibilitar adequadamente a com-preensão do que essas práticas significam para os próprios implicados.

Os paradigmas de Ciência e de Filosofia do Direito próprios do positivismo jurídico, em que objetividade é si-nônimo de neutralidade e de distanciamento, seriam, para Dworkin, um entrave não somente para se tomar a sério os elementos específicos dos casos concretos e as pretensões jurídicas concretamente articuladas, mas seriam também um entrave para reconhecer outros standards normativos, os princípios e as diretrizes políticas (policies), para além das regras jurídicas (normas explícitas ou implicitamente con-vencionadas no passado) cujo sentido, inclusive, só pode ser adequadamente justificado à luz desses princípios, subja-centes à prática jurídica, que, em relação de prevalência e de

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156 • Dworkin: de que maneira o direito se assemelha à literatura?

prioridade em face das diretrizes políticas adotadas ao longo do tempo, constituem o projeto de construção de uma co-munidade fraterna, de cidadãos livres e iguais.

Só aquele que se coloca na perspectiva dos participan-tes envolvidos em questões jurídicas é capaz de adotar a pos-tura hermenêutica adequada a compreender tais questões.

Não há como compreender sem se comprometer criti-camente com uma prática jurídica que diz respeito a todos os que vivem sob o império do Direito.

Por mais que o positivismo jurídico não queira apre-sentar-se como uma teoria normativa, a oferecer uma justi-ficação interpretativa, não há como sustentar tal pretensão de neutralidade, pois toda descrição nunca é mera descri-ção, mas implica uma tomada de posição no mundo em face do que pretende descrever. Por isso, Dworkin afirma que, na tradição anglo-americana, a teoria dominante sobre o que seja o Direito (o positivismo) e a teoria dominante sobre o que o Direito deve ser (o utilitarismo), ambas tributárias, por exemplo, de um autor como Bentham, são faces de uma mesma moeda.

Para apresentar a tese da única resposta correta, Dwor-kin cria inicialmente um juiz imaginário, o juiz Hércules, dotado de capacidade e sensibilidade sobre-humanas de res-gatar principiologicamente toda a história institucional do Direito, de modo a considerar adequadamente as pretensões jurídicas levantadas nos casos concretos que lhe são subme-tidos à apreciação.

A figura do juiz Hércules e a própria tese que ela ilus-tra deram motivo a muitas controvérsias, em razão da in-compreensão de muitos autores do que tal figura metafori-camente representa. É famosa a crítica daqueles que, como

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Michelman,8 apontaram um suposto isolamento de Hércu-les e uma presumida desconsideração, por Dworkin, do ca-ráter coletivo e dialógico das construções jurisprudenciais.

Já na década de 1980, Dworkin sofisticará a perspecti-va de exposição da tese da única resposta correta. Para isso, lançará mão, não apenas da figura de Hércules, mas então da chamada metáfora do romance em cadeia (chain meta-phor). A metáfora do romance em cadeia ilustra exatamente todo um processo de aprendizado social subjacente ao Di-reito compreendido como prática social interpretativa e ar-gumentativa, um processo capaz de corrigir a si mesmo e que se dá ao longo de uma história institucional, reconstruí-da de forma reflexiva à luz dos princípios jurídicos de mora-lidade política, que dão sentido a essa história.

Fica cada vez mais claro, assim, a partir desse período, que, para Dworkin, a tese da única resposta correta deve ser compreendida de modo adequado e plausível do ponto de vista interpretativo-construtivo do Direito como integridade. Nesse sentido, retomemos as palavras de Vera Karam de Chueiri:

A resposta certa não é algo dado, mas construído argumentativa-mente. A sua elaboração sugere a analogia da prática jurídica com o exercício literário, consubstanciando a idéia da chain of law, a qual constituir-se-á no turning point para a consideração do direi-to como um conceito interpretativo.9

Esse momento decisivo de construção para a concep-ção dworkiniana do Direito como integridade é representado pelo artigo publicado originalmente em setembro de 1982, em Critical inquiry, e reeditado em 1985, como capítulo 6 da obra Uma questão de princípio.10 Nesse capítulo, intitulado 8 MICHELMAN. Justification and the justifiability of law in a contradictory world. In: PENNOCK; CHAPMAN. Nomos XXVIII. Justification, 1986. p. 76.9 CHUEIRI. Filosofia do direito e modernidade: Dworkin e a possibilidade de um discurso instituinte de direitos, 1995, p. 68.10 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 217-254.

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158 • Dworkin: de que maneira o direito se assemelha à literatura?

De que maneira o Direito se assemelha à literatura, Dworkin irá sustentar a tese de que a prática jurídica é “um exercí-cio de interpretação, não apenas quando juristas interpre-tam documentos ou leis específicas, mas de modo geral”.11 Para ele, “o Direito, assim concebido, é profunda e inteira-mente político”.12 Contudo, se o Direito, por ser uma prá-tica interpretativa, é, assim, político, não em termos mera-mente pessoais ou partidários, e uma crítica do Direito que não compreenda adequadamente esse seu caráter político e não o diferencie de preferências políticas pessoais apresen-tará “uma compreensão pobre e uma orientação mais po-bre ainda”.13 Duas propostas de Dworkin nortearão toda a sua exposição: a primeira é que “poderemos melhorar nossa compreensão do Direito comparando a interpretação jurídi-ca com a interpretação em outros campos do conhecimento, especialmente a literatura”14; a segunda é que o Direito, ade-quadamente compreendido, “propiciará um entendimento melhor do que é a interpretação em geral”.15

Assim, segundo Dworkin,16 o problema central para a jurisprudência analítica é o de como compreender o sentido atribuído às proposições jurídicas, ou seja, os “vários enun-ciados formulados por juristas ao descrever o que é o Direito com relação a uma certa questão”.17 Mas, afinal, de que tra-tam esses enunciados? Quais seriam os critérios com base nos quais se poderia afirmar que um enunciado é verdadei-

11 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 217.12 Idem, p. 217.13 Idem, p. 217.14 Idem, p. 217.15 Idem, p. 217.16 Idem, p. 217.17 Idem, p. 217.

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ro ou falso?.18 Segundo o autor,19 os positivistas acreditam que uma proposição jurídica somente poderia ser conside-rada verdadeira se fosse fruto de um evento legislativo, pois o Direito seria aquilo previsto pelas convenções jurídicas no passado. Por exemplo:

Se o legislativo de Illinois aprova as palavras “nenhum testamento será válido sem três testemunhas”, a proposição de Direito, de que um testamento de Illinois precisa de três testemunhas, parece ser verdadeira apenas devido a esse evento histórico.20

Entretanto, embora essa afirmação possa, em princí-pio, funcionar razoavelmente bem em casos mais simples, esse tipo de análise falha em casos mais difíceis, o que tam-bém não quer dizer que mesmo no caso dos testamentos a interpretação dos positivistas seja válida. Para ilustrar os problemas que podem surgir nos chamados casos difíceis, Dworkin se refere hipoteticamente a uma proposição jurídi-ca que afirma ser constitucional uma determinada ação afir-mativa cuja constitucionalidade ainda não tenha sido exa-minada pelos tribunais.21 Segundo ele:

Se isso é verdade, não pode ser por causa do texto da Constitui-ção nem de decisões anteriores dos tribunais, porque juristas ra-zoáveis, que sabem exatamente o que diz a Constituição e o que fizeram os tribunais, ainda assim podem discordar quanto a ser ou não verdade.22

Essa proposição, por exemplo, poderia ser considerada verdadeira, segundo duas possibilidades.23 Primeiro, supon-do-se que o enunciado da ação afirmativa não apresenta uma proposição descritiva, mas expressa o que o falante prefere

18 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 218.19 Idem, p. 218.20 Idem, p. 218.21 Idem, p. 218.22 Idem, p. 218.23 Idem, p. 219.

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160 • Dworkin: de que maneira o direito se assemelha à literatura?

em termos de uma política pessoal; ou, segundo, supondo--se que os enunciados controvertidos são tentativas de des-crever um direito objetivo (ou até mesmo natural), de modo a se ligar a uma verdade moral também objetiva, em vez de histórica. Todavia, para Dworkin, nenhuma dessas possibi-lidades seria plausível, pois afirmar que uma ação afirmati-va, mesmo não julgada pelos tribunais, seria constitucional continuaria sendo uma afirmação que pretende descrever o Direito “como ele é”, não como deveria ser, de acordo com uma dada teoria moral. Para Dworkin, há, todavia, uma al-ternativa melhor:

As proposições de Direito não são meras descrições da história jurídica, de maneira inequívoca, nem são simples valorativas, em algum sentido dissociadas da história jurídica. São interpretativas da história jurídica, que combina elementos tanto da descrição quando da valoração, sendo porém diferente de ambas.24

Essa alternativa, segundo Dworkin,25 poderá parecer adequada, ao menos num primeiro momento, para vários juristas e filósofos do Direito. Muitos destes costumam dizer que “o Direito é uma questão de interpretação”, mas a partir de uma concepção de interpretação muito diferente da apre-sentada por Dworkin. Para esses juristas,

[...] quando uma lei (ou a Constituição) é obscura em algum pon-to, porque algum termo crucial é impreciso ou uma sentença é ambígua, os juristas dizem que a lei deve ser interpretada, e apli-cam o que chamam “técnicas de interpretação da lei”.26

Dessa forma, esses juristas compreendem a interpre-tação como técnica de análise jurídica. Segundo Dworkin,27 a maioria deles presume que a interpretação consistiria, as-sim, em descobrir a intenção ou a vontade dos legisladores 24 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 219.25 Idem, p. 219.26 Idem, p. 219.27 Idem, p. 219.

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ao terem usado as palavras que usaram, concepção essa que também não é estranha ao common law.28 Muitos reconhe-cem, entretanto, que nem sempre seria possível alcançar essa intenção. E é, inclusive, por isso que outros juristas (os rea-listas) adotariam uma atitude mais cética, ao afirmarem que, quando alguém se refere a uma pretensa intenção ou vontade, isso é “apenas uma cortina de fumaça atrás da qual eles im-põem sua própria visão acerca do que a lei deveria ter sido”.29

Segundo Dworkin,30 contudo, a idéia da interpretação não pode servir como descri-ção geral da natureza ou veracidade das proposições de Direito, a menos que seja separada dessas associações com o significado ou intenção do falante.

Não se trata, aqui, de mais uma vez apresentar o que simplesmente seria uma nova versão da concepção positivis-ta, segundo a qual as proposições jurídicas seriam descrições de decisões tomadas no passado.

Se a interpretação deve formar a base de uma teoria diferente e mais plausível a respeito de proposições de Direito, devemos desenvolver uma descrição mais abrangente do que é interpretação.31

Isso significa, segundo Dworkin,32 que os juristas não devem tratar a interpretação jurídica como uma atividade especial. “Devemos estudar a interpretação como uma ati-vidade geral, como um modo de conhecimento, atentando para outros contextos dessa atividade” .33

28 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 220.29 Idem, p. 220.30 Idem, p. 220.31 Idem, p. 220.32 Idem, p. 220.33 Idem, p. 220.

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Nesse sentido, Dworkin considera que seria bom se os juristas estudassem a interpretação literária e outras for-mas de interpretação artística,34 exatamente em razão dos debates e das divisões profundas entre os críticos literários e artísticos acerca do que seja interpretação. “Nem todas as discussões na crítica literária são edificantes ou mesmo compreensíveis”, afirma Dworkin,35 “mas na literatura foram defendidas muito mais teorias da interpretação que no Di-reito, inclusive teorias que contestam a distinção categórica entre descrição e valoração, que debilitou a teoria jurídica”.

Segundo Dworkin,36 para que possamos nos beneficiar de uma comparação entre a interpretação literária e a jurídi-ca, é preciso ver a primeira numa determinada perspectiva. Assim, o que interessa ao autor não é tanto o que os estudio-sos de literatura chamam de descobrir o sentido de um texto, perguntando-se sobre o que um autor quis ou não dizer com o uso de determinada palavra ou expressão, mas as teses que apresentem algum tipo de interpretação do sentido de uma obra como um todo.37 Essas teses podem às vezes assumir a forma de afirmações sobre as personagens e sobre eventos na estória por detrás da estória. Ou, mais comumente, ofe-recem hipóteses mais diretas sobre o objeto, o tema, o senti-do ou tom do texto como um todo.38 Dworkin, aqui, refere--se a possíveis interpretações do Hamlet, de Shakespeare.39 Essas afirmações interpretativas, segundo Dworkin, podem ter um propósito prático: servir, por exemplo, a um diretor que esteja remontando uma nova encenação de uma peça. Ou podem ter uma importância mais geral, servindo para se

34 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 221.35 Idem, p. 221.36 Idem, p. 221.37 Idem, p. 221.38 Idem, p. 221-222.39 Idem, p. 221-222.

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compreenderem melhor partes importantes de nosso am-biente cultural.40 Embora possa surgir aqui uma dificuldade quanto ao sentido pretendido pelo falante a essa ou aquela palavra ou expressão, tais afirmações interpretativas dizem respeito ao objeto ou sentido da obra como um todo, não ao sentido de uma expressão em particular.41

Segundo Dworkin, os críticos divergem sobre o modo de responder a questões como essas. O que interessa a ele não é tanto tomar partido nessa discussão, mas tentar ab-sorver as discordâncias numa descrição suficientemente ge-ral daquilo sobre o que discordam. A proposta de Dworkin, a sua hipótese estética, que, segundo ele, poderia até parecer “banal”, é a seguinte:

A interpretação de uma obra literária tenta mostrar que maneira de ler (ou de falar, dirigir ou representar) o texto revela-o como a melhor obra de arte. Diferentes teorias ou escolas de interpreta-ção discordam quanto a essa hipótese, pois pressupõem teorias normativas significativamente diferentes sobre o que é literatura, para que serve e o que faz uma obra de literatura ser melhor que outra.42

Essa afirmação pode não encontrar aceitação entre mui-tos estudiosos, para quem Dworkin estaria confundindo in-terpretação e crítica literária ou porque, de toda forma, seria relativista e, assim, um exemplo de ceticismo que nega qual-quer possibilidade de interpretação.43 Esclarece Dworkin que sua hipótese estética poderia parecer a muitos como apenas mais uma formulação, muito em voga, segundo a qual

[...] a interpretação cria uma obra de arte e representa apenas a sanção de uma certa comunidade de críticos; existem somente in-terpretações e nenhuma interpretação melhor de qualquer poe-ma, romance ou peça.44

40 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 222.41 Idem, p. 222.42 Idem, p. 222.43 Idem, p. 222.44 Idem, p. 222.

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Frente aos céticos, a hipótese estética de Dworkin não é descabida, fraca ou relativista como pode parecer inicialmente:45

A interpretação de um texto tenta mostrá-lo como a melhor obra de arte que ele pode ser, e o pronome acentua a diferença entre explicar uma obra e transformá-la em outra. Talvez Shakespeare pudesse ter escrito uma peça melhor com base nas fontes que uti-lizou para Hamlet e, nessa peça melhor, o herói teria sido um ho-mem de ação mais vigoroso. Não decorre daí, porém, que Hamlet, a peça que ele escreveu, seja realmente como essa outra peça. Na-turalmente, uma teoria da interpretação deve conter uma subteo-ria sobre a identidade de uma obra de arte para ser capaz de dis-tinguir entre interpretar e modificar uma obra (Qualquer teoria útil da identidade será controvertida, de modo que esse é um caso evidente no qual as discordâncias na interpretação dependerão de discordâncias gerais quanto à teoria estética).46

Em busca de estabelecer uma restrição, algumas teo-rias contemporâneas de interpretação farão uso de um texto canônico: em nome da identidade do texto, todas as palavras devem ser consideradas e nenhuma substituição pode ser realizada, a fim de tornar o texto uma obra de arte melhor.47 Entretanto, uma estória pode manter-se a mesma, ainda que se troquem as palavras no momento de contá-la, como é o caso de uma piada, que pode ser contada de diferentes for-mas, nenhuma delas canônica. Portanto, “o estilo de inter-pretação de qualquer crítico será sensível às suas convicções teóricas acerca da natureza de um texto canônico e das evi-dências que o corroboram”.48 Também, para Dworkin:

Um estilo interpretativo também será sensível às opiniões do in-térprete a respeito da coerência ou da integridade na arte. Uma interpretação não pode tornar uma obra de arte superior se trata

45 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 222.46 Idem, p. 223.47 Idem, p. 223.48 Idem, p. 223.

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grande parte do texto como irrelevante, ou boa parte dos incidentes como acidentes, ou boa parte do tropo ou estilo como desarticula-do e respondendo apenas a padrões autônomos das belas-artes.49

O que significa dizer que não decorre da hipótese es-tética que, como um romance filosófico seria esteticamente mais valioso do que uma estória de mistério, um romance de Agatha Christie seja, na verdade, um tratado sobre o sig-nificado da morte, por exemplo. Essa interpretação de Aga-tha Christie poderia fazer, de um bom texto de mistério, um pobre tratado de filosofia, numa interpretação desastrosa.50

Todavia, segundo Dworkin,51 muitos críticos poderão divergir quanto a o que considerar como integridade, qual tipo de unidade seria ou não relevante. Buscando responder a isso, diversas escolas de interpretação surgirão ou desapa-recerão. Entretanto, as principais diferenças entre as escolas de interpretação são menos sutis, porque não tocam nesses aspectos quase formais da arte, mas “na função e no propó-sito da arte amplamente concebidos”.52

As teorias da arte “não existem isoladamente da filoso-fia, da psicologia, da sociologia e da cosmologia”.53 Mas isso não quer dizer que a hipótese estética de Dworkin presume que todos os que interpretam a literatura tenham uma teo-ria estética plenamente desenvolvida e consciente ou devam assumir ou defender essa ou aquela escola de interpretação:

Na minha opinião, os melhores críticos negam que a literatura te-nha uma única função ou propósito. Um romance ou peça podem ser valiosos em inúmeros sentidos, alguns dos quais descobrimos lendo, olhando ou escutando, não mediante uma reflexão abstra-ta de como deve ser e para que deve servir a boa arte.54

49 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 223.50 Idem, p. 224.51 Idem, p. 224.52 Idem, p. 225.53 Idem, p. 225.54 Idem, p. 225.

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Por outro lado, qualquer um que interpreta uma obra de arte vale-se de certas convicções de caráter teórico sobre identidade e outras propriedades da arte, como também de opiniões explicitamente normativas sobre o que é bom ar-tisticamente. “Ambos os tipos de convicções figuram no jul-gamento de que uma certa maneira de ler um texto torna-o melhor do que outra”.55 Essas convicções podem ser inarticu-ladas ou tácitas, mas nem por isso menos genuínas.

Todavia, nada do que Dworkin afirmou poderia ainda to-car a objeção maior que ele já previra, a de que a sua hipótese estética seria trivial.56 Diferentes teorias da arte seriam geradas por diferentes teorias da interpretação. Em outras palavras:

Como as opiniões das pessoas sobre o que constitui a boa arte são inerentemente subjetivas, a hipótese estética abandona a esperan-ça de resgatar a objetividade na interpretação, exceto, talvez, entre os que sustentam a mesma teoria da arte, o que não é muito útil.57

Para Dworkin,58 não haveria dúvida de que a hipótese estética é “banal”, no sentido de que ela tem de ser abstrata para oferecer uma descrição daquilo sobre o que uma ampla variedade de teorias discorda. Mas isso talvez não a torne as-sim tão fraca. A consequência é que as teorias acadêmicas de interpretação deixam de ser compreendidas como análises da própria ideia de interpretação e passam a ser vistas como candidatas à melhor resposta para a questão substantiva co-locada pela interpretação. “A interpretação torna-se um con-ceito de quais teorias diferentes são concepções rivais”.59 No mais, “a hipótese nega as profundas distinções que alguns

55 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 226.56 Idem, p. 226.57 Idem, p. 227.58 Idem, p. 227.59 Idem, p. 227.

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estudiosos cultivam”, a diferença entre interpretação como descrição do “real significado da arte” e crítica como avalia-ção do seu sucesso ou importância:

Não há mais uma distinção categórica entre a interpretação, con-cebida como algo que revela o real significado de uma obra de arte, e a crítica, concebida como avaliação de seu sucesso ou im-portância. Ainda resta uma distinção, pois sempre existe uma di-ferença entre dizer quão boa pode se tornar uma obra e dizer quão boa ela é. Mas convicções valorativas sobre a arte figuram em am-bos os julgamentos.60

Nesse ponto de suas reflexões, Dworkin passa a enfren-tar o problema da objetividade que, segundo ele, é algo dife-rente. Segundo o autor,61 permanece sem resposta “a questão de se é acertado considerar os principais juízos que fazemos sobre arte como verdadeiros ou falsos, válidos ou inválidos”. A questão da objetividade não concerne apenas a uma teoria estética, mas é tema de debates mais gerais na Ética e na Fi-losofia da Linguagem. Dworkin62 assume que não é possível “demonstrar” se uma afirmação estética é verdadeira ou falsa:

Não se pode oferecer nenhum argumento a favor de alguma inter-pretação que seja, com certeza, do agrado de todos, ou pelo me-nos de todos com experiência e formação naquela forma de arte.63

Se a demonstrabilidade desses juízos é condição para o que alguns críticos consideram como objetividade, então se podem tomar os juízos estéticos como subjetivos. Toda-via, isso não significa que não se possa considerar uma teoria normativa sobre a arte como melhor que outra, ou que não seja possível produzir uma teoria melhor do que as pensadas até hoje. Assim, Dworkin64 rejeita a posição de Hirsch, se-

60 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 227.61 Idem, p. 227.62 Idem, p. 227.63 Idem, p. 228.64 Idem, p. 228.

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gundo a qual somente se poderia tornar objetiva a interpre-tação e válidas as interpretações particulares. Isso, na visão de Dworkin, seria um equívoco:

A interpretação é um empreendimento, uma instituição pública, e é errado supor, a priori, que as proposições centrais a qualquer empreendimento público devam ser passíveis de validação. Tam-bém é errado estabelecer muitos pressupostos a respeito de como deve ser a validade em tais empreendimentos – se a validade re-quer a possibilidade de demonstrabilidade, por exemplo.65

O que se deve fazer é estudar uma série de atividades em que pessoas acreditam ter boas razões para afirmarem algo considerado válido, e não partir de um ponto de vista individual. Segundo Dworkin,66 “podemos, então, julgar os padrões que as pessoas aceitam, na prática, para pensar que têm razões desse tipo”.

A questão da “reversibilidade” – uma teoria da arte de-penderia de uma teoria da interpretação e vice-versa – tam-pouco seria um argumento contra a hipótese estética:67

Meu objetivo é exatamente demonstrar que a ligação é recíproca, de modo que qualquer um chamado a defender uma abordagem particular de interpretação seria forçado a valer-se de aspectos mais gerais de uma teoria da arte, quer ele o percebesse, quer não.68

O argumento cético de que a “interpretação cria o tex-to”, então, fracassa, pois o que pode ser considerado como obra de arte deve harmonizar-se com o que se considera como ato de interpretação de uma obra de arte, assim como um objeto físico deve adequar-se a uma teoria do conheci-mento apenas se o inverso também for válido.69

65 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 228.66 Idem, p. 228.67 Idem, p. 228.68 Idem, p. 229.69 Idem, p. 229.

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Para Dworkin,70 o principal teste para a hipótese esté-tica estaria no seu poder explicativo e, especialmente, no seu poder crítico. Isso porque as teorias estéticas não podem ser vistas como análises independentes do que significa interpre-tar algo. Elas tomam por base teorias normativas sobre a arte, de modo que também são vulneráveis às críticas que podem ser formuladas contra a teoria normativa em que se baseiam.

Algumas dessas teorias pressupõem que o valioso numa obra de arte é determinado pela intenção do autor. E, assim, que a arte deve ser compreendida como uma comunicação do tipo falante/público. Para os intencionalistas, uma teoria da interpretação não seria uma descrição do que é valioso numa obra, mas do que ela significa. E, para se descrever a signi-ficação de uma obra de arte, deve-se considerar, em sentido estrito e restrito, as intenções do autor. Por isso, uma teoria intencionalista acredita ser uma melhor teoria da interpreta-ção e não uma hipótese estética. Isso porque essa teoria não se preocuparia em oferecer a melhor interpretação de uma obra, mas uma interpretação que possa ser considerada objetiva.

Todavia, a teoria intencionalista não se pode furtar a dois questionamentos: 1) é possível descobrir o que o autor realmente pretendia? 2) isso é realmente importante? Para os intencionalistas é fundamental saber, pelo menos aproxi-madamente, o que Shakespeare, por exemplo, pensava so-bre Hamlet – o personagem teria sido imaginado pelo autor como um louco ou como alguém que apenas fingia? – para se poder chegar a uma conclusão sobre a peça. É por isso que os intencionalistas tomam como elemento central à interpreta-ção o estado de espírito do autor. Entretanto, o que a tese in-tencionalista pressupõe é que o valor ou sentido da arte é vin-culado ao que o autor pretendia. Logo, vinculada a uma teoria

70 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 229.

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normativa – no mínimo controversa – e não a uma observação neutra.71 Assim, mesmo a tese intencionalista ainda pode ser compreendida como mais uma hipótese estética.

Além disso, segundo Dworkin, uma segunda objeção à crítica que apresenta em face das teorias intencionalistas pode, no seguinte sentido, revelar-se bastante interessante:

Os intencionalistas tornam central à interpretação o estado de es-pírito do autor. Mas compreendem erroneamente, até onde sei, certas complexidades desse estado de espírito em particular, ig-noram como interagem as intenções para uma obra e as opiniões sobre ela. Tendo em mente uma experiência familiar a qualquer um que crie alguma coisa, de repentinamente perceber algo ‘nela’ que antes não sabia que estava lá. Às vezes, isso se expressa (a meu ver não muito bem) no clichê do autor, de que seus personagens parecem ter inteligência própria.72

Dworkin73 exemplifica com o caso do livro A mulher do tenente francês, de John Fowles – no qual o autor teria mu-dado de ideia sobre sua estória na metade da obra; mas que também poderia tê-lo feito, anos depois, após ver o filme ou ler o roteiro. O intencionalista acredita que se deve escolher aqui entre duas opções: o autor repentinamente descobre que tinha uma intenção subconsciente ou mudou de inten-ção depois. Mas nenhuma dessas opções é satisfatória.

No primeiro caso, explicações psicanalíticas se mos-tram incapazes de resolver problemas desse tipo, pois não podem apoiar-se em provas (empíricas), como os próprios psicanalistas exigem. O que acontece é que as ideias sobre os personagens derivam não de confrontações sobre o eu an-terior do autor, mas da própria obra que ele criou. Também não podemos compreender a mudança como uma inten-

71 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 231.72 Idem, p. 231.73 Idem, p. 232.

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ção nova e distinta. Como Dworkin74 afirma, não se trata de uma opinião sobre que tipo de personagem criar, mas sobre o personagem que o autor já criou. Também não se trata de uma observação voltada para o que os outros irão compreen-der do livro. O que acontece, então, é que a mudança no tex-to parte de uma análise do próprio texto já escrito, que tra-tou seus personagens como se reais fossem. Assim, o autor teve de interpretar sua própria obra, não descobrir o que se ocultava nas profundezas de seu subconsciente. Se uma ou-tra alteração acontece ao ver o filme pronto, não se trata de uma nova intenção, mas de uma nova interpretação da obra.

Os intencionalistas, então, desconsideram que um au-tor pode separar o que escreveu de suas intenções e crenças, tratando-as como objetos em si. Por isso, o autor pode com-preender que novas conclusões são possíveis, que seu livro pode ser lido de modo mais coerente.

Suponho que considerar algo que se produziu como um romance, um poema ou uma pintura, em vez de um conjunto de proposições ou sinais, depende de considerá-lo como algo que pode ser separado e interpretado no sentido que descrevi. De qualquer modo, é assim que os próprios autores consideram o que fizeram. As intenções dos autores não são simplesmente conjuntivas, como as de alguém que vai ao mercado com uma lista de compras, mas estruturadas, de modo que as mais concretas delas, como as intenções sobre os motivos de um personagem particular em um romance, dependem de opiniões interpretativas cujo acerto varia com o que é produzido e que podem ser alteradas de tempos em tempos.75

Talvez fosse até possível, segundo ele, isolar as opi-niões de um autor fruto de um momento específico, mas, mesmo que esse conjunto particular de opiniões fosse con-siderado como “intenções”, estar-se-ia ignorando outros ní-veis de intenções, como a intenção de criar uma obra que não seja assim determinada, justamente por ser uma obra

74 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 233.75 Idem, p. 234.

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de arte. É por isso que os intencionalistas baseiam o valor de uma obra de arte numa visão restritiva das possíveis inten-ções de um autor.76

A partir da reflexão que foi desenvolvida até aqui, é im-portante ter em mente que não há uma separação estanque entre o papel do artista na criação de uma obra de arte e o do crítico que posteriormente a interpreta. Ao criar, o artista interpreta a obra e, ao interpretar, o crítico também cria.77 Isso não significa cair no ceticismo de afirmar que não há di-ferença entre o crítico e o artista.

O artista não pode criar nada sem interpretar enquanto cria; como pretende criar arte, deve pelo menos possuir uma teoria tá-cita de por que aquilo produz é arte e por que é uma obra de arte melhor graças a este e não àquele golpe de pincel, da pena ou do cinzel. O crítico, por sua vez, cria quando interpreta; pois embora seja limitado pelo fato da obra, definido nas partes mais formais e acadêmicas de sua teoria da arte, seu senso artístico mais prático está comprometido com a responsabilidade de decidir qual ma-neira de ver, ler ou compreender aquela obra a mostra como arte melhor. Contudo, há uma diferença entre interpretar quando se cria e criar quando se interpreta e, portanto, uma diferença reco-nhecível entre o artista e o crítico.78

Dworkin intenta, assim, usar a interpretação literária como modelo para o método central da análise jurídica. Para isso, busca mostrar como até mesmo a distinção entre artista e crítico pode ser derrubada em certas circunstâncias.79 As-sim é que ele lança mão da metáfora do romance em cadeia,80 assim apresentada:

76 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 235.77 Idem, p. 235.78 Idem, p. 235.79 Idem, p. 235.80 CHUEIRI. Filosofia do direito e modernidade: Dworkin e a possibilidade de um discurso instituinte de direitos, 1995, p. 96-108.

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Suponha que um grupo de romancistas seja contratado para um determinado projeto e que jogue dados para definir a ordem do jogo. O de número mais baixo escreve o capítulo de abertura de um romance, que ele depois manda para o número seguinte, o qual acrescenta um capítulo, com a compreensão de que está es-crevendo um capítulo a esse romance, não começando outro e, depois, manda os dois capítulos para o número seguinte, e assim por diante. Ora, cada romancista, a não ser o primeiro, tem a du-pla responsabilidade de interpretar e criar, pois precisa ler tudo o que foi feito antes para estabelecer, no sentido interpretativista, o que é o romance criado até então. Deve decidir como os persona-gens são “realmente”; que motivos os orientam; qual é o tema ou o propósito do romance em desenvolvimento; até que ponto algum recurso ou figura literária, conscientemente ou inconscientemen-te usado, contribui para estes, e se deve ser ampliado, refinado, aparado ou rejeitado para impelir o romance em uma direção e não em outra. Isso deve ser interpretação em um estilo não subor-dinado à intenção porque, pelo menos para todos os romancistas após o segundo, não há um único autor cujas intenções qualquer intérprete possa, pelas regras do projeto, considerar como decisi-vas.81

Mesmo o primeiro romancista terá a responsabilida-de de interpretar até certo ponto, como qualquer autor, não apenas a obra em elaboração, mas o gênero em que propõe escrever. E o que se espera nesse exercício literário é que o romance seja escrito como um texto único, integrado, e não simplesmente como uma série de contos independentes que somente têm em comum os nomes dos personagens.

Para Dworkin,82 a decisão de casos difíceis é mais ou menos como “esse estranho exercício literário”. Tal similitu-de é mais evidente quando os juízes examinam e decidem casos do common law, em que nenhuma lei ocupa uma po-sição central na questão jurídica e a argumentação jurídica

81 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 235-237.82 Idem, 237.

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gira em torno de quais regras ou princípios estariam “subja-centes” às decisões tomadas no passado, por outros juízes, sobre casos semelhantes.

Cada juiz, então, é como um romancista na corrente. Ele deve ler tudo o que outros juízes escreveram no passado, não apenas para descobrir o que disseram, ou seu estado de espírito quando o dis-seram, mas para chegar a uma opinião sobre o que esses juízes fizeram coletivamente, da maneira como cada um de nossos ro-mancistas formou uma opinião sobre o romance escrito até en-tão. Qualquer juiz obrigado a decidir uma demanda descobrirá, se olhar nos livros adequados, registro de muitos casos plausi-velmente similares, decididos há décadas ou mesmo séculos por muitos outros juízes, de estilos e filosofias judiciais e políticas di-ferentes, em períodos nos quais o processo e as convenções judi-ciais eram diferentes. Ao decidir o novo caso, cada juiz deve con-siderar-se como parceiro de um complexo empreendimento em cadeia, do qual essas inúmeras decisões, estruturas, convenções e práticas são a história; é seu trabalho continuar essa história no futuro por meio do que ele faz agora. Ele deve interpretar o que aconteceu antes porque tem a responsabilidade de levar adiante a incumbência que tem em mãos e não partir em alguma nova dire-ção. Portanto, deve determinar, segundo seu próprio julgamento, o motivo das decisões anteriores, qual realmente é, tomado como um todo, o propósito ou tema da prática até então.83

Mas qual seria, então, o objeto de discordância de quem faz objeções à melhor interpretação do precedente ju-rídico? Na interpretação artística, para ver a obra à sua me-lhor luz, deve-se levar em conta tanto características formais – de identidade, de coerência e de integridade – como carac-terísticas substantivas de valor artístico. Ambas as dimen-sões também estão presentes na interpretação jurídica.84

Uma interpretação plausível da prática jurídica também deve, de modo semelhante, passar por um teste de duas dimensões: deve ajustar-se a essa prática e demonstrar sua finalidade ou valor. Mas

83 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 238.84 Idem, p. 239.

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finalidade ou valor, aqui, não pode significar valor artístico, por-que o Direito, ao contrário da literatura, não é um empreendi-mento artístico. O Direito é um empreendimento político, cuja fi-nalidade geral, se é que tem alguma, é coordenar o esforço social e individual, ou resolver disputas sociais e individuais, ou assegurar a justiça entre os cidadãos e entre eles e seu governo, ou alguma combinação dessas alternativas. (Essa caracterização é, ela pró-pria, uma interpretação, é claro, mas permissível agora por ser re-lativamente neutra). Assim, uma interpretação de qualquer ramo do Direito, como o dos acidentes, deve demonstrar seu valor em termos políticos, demonstrando o melhor princípio ou política a que serve.85

Essa descrição geral da interpretação jurídica não é uma licença para que cada juiz descubra na história institu-cional o que ele quiser nela encontrar. Em outras palavras, o juiz deve interpretar a história institucional e não inventar uma história melhor. Assim, num primeiro momento, sua interpretação deve ajustar-se (fit itself) a essa história. Há aqui um limite, o que não quer dizer que, para Dworkin,86 haja alguma fórmula para se saber se uma interpretação é adequada ou se se ajusta satisfatoriamente a essa história ou não. Assim:

Quando uma lei, Constituição ou outro documento jurídico é parte da história doutrinal, a intenção do falante desempenhará um papel. Mas a escolha de qual dos vários sentidos, fundamen-talmente diferentes, da intenção do falante ou do legislador é o sentido adequado, não pode ser remetida à intenção de ninguém, devendo ser decidida, por quem quer que tome a decisão, como uma questão de teoria política.87

Nenhuma sequência de decisões, contudo, é isenta de apresentar contraexemplos que sugiram direções diferentes. Por isso, exige-se o desenvolvimento de uma doutrina do

85 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 239.86 Idem, p. 240.87 Idem, p. 240.

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erro no julgamento dos casos anteriores. Todavia, essa su-posta “flexibilidade” não destrói a distinção entre interpre-tação e decisões novas sobre o que o Direito deve ser.88

O senso de qualquer juiz acerca da finalidade ou função do Direi-to, do qual dependerá cada aspecto de sua abordagem da interpre-tação, incluirá ou implicará alguma concepção da integridade e coerência do Direito como instituição, e essa concepção irá tutelar e limitar sua teoria operacional de ajuste – isto é, suas convicções sobre em que medida uma interpretação deve ajustar-se ao Direi-to anterior, sobre qual delas, e de que maneira (o paralelo com a interpretação literária também é válido aqui).89

Todavia, assim como duas leituras diferentes de um poema podem encontrar apoio no texto para demonstrar sua unidade e coerência, a teoria de ajuste de qualquer juiz pode chegar, em princípio, a interpretações diferentes.

A distinção entre casos controversos e fáceis no Direito talvez seja justamente a distinção entre casos em que se consegue isso e casos em que não se consegue uma interpretação única. Dois princípios podem, cada um, encontrar apoio suficiente nas várias decisões do passado para satisfazer qualquer teoria plausível de adequação.90

Assim como considerações substantivas acerca do mé-rito artístico podem desempenhar um papel decisivo diante de duas leituras possíveis de um poema, que encontrariam apoio ou se ajustariam ao texto, o papel da teoria política substantiva será o mesmo no caso da interpretação do Direi-to, na dimensão da sua justificação.

Os juízes desenvolvem uma abordagem particular da interpreta-ção jurídica, formando e aperfeiçoando uma teoria política sensí-vel a essas questões, de que dependerá a interpretação em casos específicos, e chamam isso de sua filosofia jurídica. Ela inclui-rá características estruturais, que elaborem a exigência geral de

88 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 241.89 Idem, p. 241.90 Idem, p. 241.

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que uma interpretação se ajuste à história doutrinal, e afirmações substantivas sobre os objetivos sociais e os princípios de justiça. A opinião de um juiz sobre a melhor interpretação será, portanto, a conseqüência de convenções que outros juízes não precisam com-partilhar... Se insistirmos em um grau elevado de neutralidade na nossa descrição da interpretação jurídica, portanto, não podemos tornar nossa descrição da natureza da interpretação jurídica mui-to mais concreta do que a fiz.91

Objeções poderiam ser feitas à tese de que “a inter-pretação jurídica é essencialmente política”.92 É preciso considerar a distinção entre subjetividade e objetividade na interpretação do Direito, para que se possa escapar dos ar-gumentos levantados, tanto pelos convencionalistas – que esperam simplesmente encontrá-lo na história –, quanto pelos adeptos do pragmatismo – que acreditam que o Di-reito é algo meramente criado por juízes de maneira indivi-dualista, conforme critérios pessoais.93 Frente à literatura, o Direito não apresenta nenhuma vantagem quanto à questão da objetividade, de modo a alcançar a melhor interpretação. Como anteriormente afirmado, trata-se antes de um proble-ma geral de bases filosóficas que permite o desenvolvimento de níveis de concepção do Direito e, assim, da conclusão por um tipo de interpretação tido como certo.94

91 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 241-242.92 Idem, p. 242.93 PEDRON. Sobre a semelhança entre interpretação jurídica e interpreta-ção literária em Ronald Dworkin. In: Revista da Faculdade Mineira de Direi-to, 2005, p. 134-136. LAGES. Processo e jurisdição no marco do modelo cons-titucional do processo e o caráter jurisdicional democrático do processo de controle concentrado no Estado democrático de Direito. In: CATTONI DE OLIVEIRA. Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado Democráti-co de Direito, 2004, p. 488-495.94 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 243.

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Todavia, mais uma questão deve ser analisada: a hipó-tese política sobre a interpretação jurídica desenvolvida por Dworkin é realmente contrária ao argumento da intenção do autor? Para os intencionalistas, o Direito seria o conjunto de significações pretendido pelos diversos atores do processo jurídico em sentido amplo, mas eles poderiam afirmar que a hipótese estética de Dworkin não é contrária à tese da in-tenção do autor, já que a interpretação dos legisladores, bem como dos juízes, pode representar a melhor teoria política.95 Por isso é que a questão deve ser posta sob outra perspectiva, tal como compreende Dworkin:

Se a presente objeção é realmente uma objeção à argumentação desenvolvida até aqui, ela deve ser compreendida de modo dife-rente, como propondo, por exemplo, que o próprio “significado” da interpretação no Direito exige que apenas essas intenções ofi-ciais sejam consideradas ou que, pelo menos, haja um firme con-senso entre juristas nesse sentido.96

Entretanto, considerando-se pertinente tal crítica e admitindo-se que ofereça uma base sólida, ela teria de se voltar para um texto jurídico canônico. Todavia, assim será possível concluir que a intenção do legislador é complexa, tal como a de um romancista. Dworkin, então, apresenta o seguinte exemplo:

Suponha que um constituinte vote a favor de uma cláusula que garante a igualdade de tratamento, sem distinção de raça, em questões que afetam interesses fundamentais das pessoas; mas ele pensa que a educação não é uma questão de interesse funda-mental e, portanto, não acredita que a cláusula torna inconstitu-cionais escolas segregadas.97

95 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 243.96 Idem, p. 243.97 Idem, p. 244.

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Duas intenções poderiam ser identificadas: uma abstrata e outra concreta – proibir discriminação no que é de interesse fundamental - e não proibir escolas segregadas. Pode-se ver que tais intenções são a mesma, embora descrita de duas maneiras diferentes. Qual descrição dessa mesma intenção será tomada como canônica para uma teoria da intenção legislativa?

Se aceitarmos a primeira descrição, então um juiz que deseja se-guir as intenções do constituinte, mas acredita que a educação é uma questão de interesse fundamental, irá considerar a segrega-ção inconstitucional. Se aceitarmos a segunda, não o fará. A esco-lha entre as duas descrições não pode ser feita mediante nenhuma reflexão adicional sobre o que uma intenção realmente é. Deve ser feita decidindo-se que uma descrição é mais adequada ou com base em outros fundamentos abertamente políticos.98

Cabe, pois, lembrar que a teoria intencionalista se mostra por demais pobre. Se fossem examinadas todas as decisões judiciais sobre uma determinada matéria, talvez se pudesse chegar a explicações de ordem psicológica, eco-nômica ou social que levaram o juiz a pensar o que de fato pensou. Todavia, o resultado da pesquisa seria diferente para cada juiz anterior e uma ordem só apareceria por meio da inclusão de alguma espécie de sumário estatístico.99 Tudo isso ainda não apresentaria utilidade para um juiz decidir no presente um caso semelhante, uma informação similar para um romancista participante da cadeia imaginária. Ain-da aqui se exigiria um novo exercício de interpretação que não seria nem uma pesquisa histórica pura, nem uma ideia completamente nova de como as coisas deveriam ser.100

98 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 244.99 PEDRON. Sobre a semelhança entre interpretação jurídica e interpreta-ção literária em Ronald Dworkin. In: Revista da Faculdade Mineira de Di-reito, 2005, p. 136.100 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 245.

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Uma saída seria a seleção de um juiz em particular ou de um pequeno grupo de magistrados situados no passado. Caberia perguntar que regra esse juiz ou grupo pretendeu fixar para o futuro. Mas, ao fazer isso, um intencionalista es-taria tratando os juízes como legisladores.

Mesmo assim, no fim das contas, não evitaria os problemas espe-ciais da prestação jurisdicional no common law, porque o juiz que assim interpretasse teria de supor-se com o direito de examinar apenas as intenções do juiz ou juízes anteriores que selecionou, e não poderia supor tal coisa, a menos que acreditasse que o que juízes na sua posição deveriam fazer era fruto da prática judicial como um todo.101

Dworkin,102 assim, considera que, a partir de suas afir-mações sobre o papel da política na interpretação jurídica, podem-se encontrar opiniões de cunho liberal, radical ou conservador sobre como a Constituição e as leis deveriam ser e, ainda, como elas são, o que, de fato, acontece.

Um exemplo é a interpretação da cláusula de igual pro-teção da Constituição norte-americana, que não pode ser se-parada de uma teoria sobre a igualdade política e sobre até que ponto essa igualdade é exigida. “A história do último meio século do Direito constitucional é, em grande parte, uma investigação exatamente dessas questões de moralida-de política”.103 E é por isso que, segundo Dworkin,104 juristas conservadores argumentam a favor de supostas ideias liga-das às intenções do autor e acusam os demais de estarem in-ventando o Direito.

Mas trata-se de uma vociferação com o intuito de ocultar o papel que suas próprias convicções políticas desempenham na sua esco-lha do estilo interpretativo, e os grandes debates jurídicos quanto

101 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 246.102 Idem, p. 246.103 Idem, p. 246.104 Idem, p. 246.

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à cláusula da igualdade de direitos teriam sido mais esclarecedo-res se fosse mais amplamente reconhecido que valer-se de uma teoria política não é uma corrupção da interpretação, mas parte do que significa interpretação.105

Qual seria, então, o papel da política no desenvolvi-mento de determinada interpretação? Segundo Dworkin,106 um autor como Stanley Fish acredita que, na literatura, as disputas são mais “políticas” do que lógicas: uma luta dos professores por domínio. Contudo, essas observações são externas, pois se referem a causas de ascensão de uma ou de outra abordagem da literatura.

Dworkin107 está comprometido com um olhar inter-no, ou seja, “ao invés de se discutir a política da interpreta-ção, um debate sobre a política na interpretação”.108 Em ou-tros termos, significa perguntar sobre os limites para o uso de princípios de moralidade política a favor da interpretação particular de uma obra ou de uma abordagem geral da inter-pretação artística.

Mas se nossas convicções a respeito dessas questões políticas es-pecíficas contam na decisão de até que ponto um romance, uma peça ou um poema são bons, então devem contar também na de-cisão de qual interpretação é a melhor, entre várias interpretações particulares dessas obras. Ou assim deve ser se meu argumento for fundamentado.109

Para Dworkin, pode-se explorar a ligação entre teoria estética e política. Assim como uma teoria da arte tende a al-guma tese epistemológica, alguma concepção sobre as rela-

105 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 247.106 Idem, p. 247.107 Idem, p. 247.108 PEDRON. Sobre a semelhança entre interpretação jurídica e interpretação lite-rária em Ronald Dworkin. In: Revista da Faculdade Mineira de Direito, 2005, p. 137.109 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 148.

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ções válidas entre experiência, autoconsciência e percepção ou formação de valores, uma teoria abrangente de justiça so-cial também se relacionará a questões como essas:

O liberalismo, por exemplo, que atribui grande importância à autonomia, pode depender de uma imagem específica do papel que os juízos de valor desempenham na vida das pessoas; pode depender da tese de que as convicções das pessoas sobre o valor são crenças, abertas à argumentação e revisão, não simplesmente dados da personalidade, determinados por causas genéticas e so-ciais. E qualquer teoria política que confira um lugar importante à igualdade também exige suposições a respeito dos limites das pessoas, pois deve distinguir entre tratar as pessoas como iguais e transformá-las em pessoas diferentes.1

Nesse sentido, o autor conclui seu texto propondo uma investigação sobre se existiriam certas bases filosóficas com-partilhadas por teorias estéticas e políticas. Segundo ele,2 questões e problemas comuns não garantiriam isso. Como pensador liberal, ele se pergunta, por exemplo, se não seria o caso de fazer remontar o liberalismo a uma base epistemo-lógica distinta de outras concepções e então refletir se essa base poderia ser transportada para a teoria estética, levando a um estilo interpretativo distinto.3 Para Dworkin, contudo, não há garantia de que um projeto como esse teria sucesso, embora desde já ele entenda que “política, arte e Direito es-tão unidos, de algum modo, na filosofia”.4

Referências Bibliográficas

CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e modernidade: Dworkin e a possibilidade de um discurso instituinte de direitos. Curitiba: J M, 1995.

1 DWORKIN. Uma questão de princípio, 2000, p. 148.2 Idem, p. 248.3 Idem, p. 249.4 Idem, p. 249.

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Capítulo VI Devido processo legislativo e controle jurisdicional de

constitucionalidade no brasil1

1. Introdução: a jurisdição constitucional é um poder constituinte permanente?

Em fins de novembro de 2000, em seminário organi-zado pela Procuradoria da República em Minas Gerais,2 foi proposta a questão de se no marco do Estado Democrático de Direito seria adequado caracterizar a “Jurisdição Cons-titucional como Poder Constituinte permanente”, quando do exercício do controle de constitucionalidade e na garan-tia dos direitos fundamentais, refletindo preocupação que se torna pertinente com a inserção, no Direito Constitucio-nal brasileiro, dos dispositivos das Leis Federais no 9.868/99 e no 9.882/99, que pretendem descaracterizar o controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos, buscan-do transformar o Supremo Tribunal Federal num arremedo de Corte Constitucional europeia.

A pergunta acerca de um possível caráter constituinte permanente da jurisdição constitucional, assim como a pro-mulgação das Leis no 9.868/99 e no 9.882/99, deita raízes

1 Para os Professores Álvaro Ricardo Souza Cruz e José Adércio Leite Sampaio.2 Seminário Hermenêutica e Jurisdição Constitucional, Procuradoria da Re-pública em Minas Gerais, nov. de 2000.

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mais profundas sobre quais seriam, afinal, sob o Estado De-mocrático de Direito, os pressupostos metodológicos e de le-gitimidade do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis, no Direito Constitucional brasileiro.

De uma perspectiva analítica, o que ora se inquire pode ser problematizado, no mínimo, a partir de três pontos de vis-ta: primeiramente, do ponto de vista teorético-histórico e so-ciológico, o que nos leva a situar a jurisdição constitucional na crise do Estado Social; segundo, do ponto de vista teoréti-co-filosófico, o que nos possibilitará avançar uma justificação teorético-filosófica da jurisdição constitucional; e, terceiro, do ponto de vista teórico-dogmático, em que examinaremos a jurisdição constitucional brasileira, especificamente na sua tarefa de realizar o controle de constitucionalidade.

Este capítulo está dividido em cinco partes. Na primeira, procuraremos tratar a questão colocada de um ponto de vis-ta teorético-histórico e sociológico, buscando caracterizar a jurisdição constitucional no marco da crise do Estado Social.

Na segunda, procuraremos reconstruir, de um ponto de vista teorético-filosófico, a partir da Teoria Discursiva do Direito e do Estado Democrático de Direito,3 uma justifica-ção para a jurisdição constitucional que, a um só tempo, su-pera tanto os problemas advindos de sua compreensão sob o paradigma do Estado Social, quanto às suas idealizações empreendidas no contexto das tradições políticas liberal e republicana. Nesse sentido, a jurisdição constitucional, no exercício do controle jurisdicional de constitucionalidade constitucionalmente adequado, deve estar referida ao devido processo legislativo, bem como à garantia das condições ju-rídicas que o asseguram, a garantia do exercício dos direitos fundamentais, consagradores das autonomias pública e pri-vada dos cidadãos, em um Estado Democrático de Direito.

3 HABERMAS. Facticidad y validez Sobre el Estado democrático de derecho en términos de teoría del derecho 1998.

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Na terceira, discutiremos o problema da reinterpreta-ção da jurisdição constitucional de um ponto de vista teó-rico-dogmático. Trataremos, então, de dilemas do Direito Constitucional e Processual brasileiros.

Na quarta parte, pressupondo discussões até então avançadas, daremos continuidade4 a uma compreensão constitucionalmente adequada da jurisdição constitucional, da “jurisdição em matéria constitucional”, no Brasil.

Por fim, num quinto momento, faremos apontamentos críticos à tentativa inconstitucional de concentração do con-trole jurisdicional de constitucionalidade das leis que se pre-tende com a Lei no 9.868/99,5 a título de considerações finais.

Ao tratar do devido processo legislativo e do controle jurisdicional de constitucionalidade, assim como ao denun-ciar a inconstitucionalidade da Lei Federal no 9.868/99 (o que valeria também para a Lei Federal no 9.882/99), preten-demos, também, desafiar e afastar-nos de duas posturas po-lítico-doutrinárias presentes no atual debate constitucional brasileiro, apresentando explicitamente uma compreensão alternativa a elas, mas constitucionalmente adequada ao pa-radigma do Estado Democrático de Direito, compreendido em termos teorético-discursivos.

A primeira delas é a “postura derrotista”, sustentada por juristas de escol, como Celso Antônio Bandeira de Mello e Fábio Konder Comparato,6 que veem frustrados os “ideais não realizados” da Constituição brasileira de 1988, o que a

4 CATTONI DE OLIVEIRA. Devido processo legislativo, 2000. CATTONI DE OLIVEIRA. Direito processual constitucional, 2001.5 A Lei Federal no 9.882/99, que regulamenta a chamada arguição de preceito fundamental, não será, por agora, objeto específico de nossas considerações.6 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Funerais da Constituição de 1988. In: FIOCCA; GRAU. Debate sobre a Constituição de 1988, 2001, p. 35 - 47.; COMPARATO. Réquiem para uma Constituição. In: FIOCCA; GRAU. De-bate sobre a Constituição de 1988, 2001.

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leva soturnamente a celebrar um réquiem para o projeto constitucional brasileiro. Essa postura desesperada deveria, num giro paradigmático, levantar-se do leito mortuário e ir à luta, tendo como armas uma nova concepção do Direito Constitucional, perpassado pelas tensões entre facticidade social e autocompreensão normativa do constitucionalismo democrático, e abandonar uma Teoria “idealista” da Consti-tuição, a fim de enfrentar a segunda postura, a da “jurispru-dência dos valores”, já questionada em seu país de origem e tantas vezes banalizada no Brasil.

Essa segunda postura busca em autores alemães baliza-dos, como Robert Alexy e outros, uma compreensão “materia-lizante” ou “axiologizante” da Constituição e do Direito, colo-nizando-o politicamente, ao utilizar-se de um instrumental teórico extremamente sofisticado para lançar a Constituição contra si mesma, pervertendo-lhe o sentido normativo que lhe é próprio, assim favorecendo interesses políticos que se cho-cam com o projeto constitucional democrático de 1988, na me-dida em que contribuem para perpetuar práticas e tradições au-toritárias incompatíveis com o Estado Democrático de Direito.

A Constituição da República de 1988, mais do que derro-gada, reformada ou distorcida,deve ser interpretada, aplicada e vivenciada de modo adequado, deve ser levada a sério e defen-dida, se quisermos contribuir, como juristas, e construir, como cidadãos, uma sociedade livre, justa e solidária no Brasil.

2. Jurisdição constitucional na crise do estado social

Do ponto de vista teorético-histórico e sociológico, pode-se analisar a jurisdição constitucional no contexto da crise do Estado Social. No marco do paradigma do Estado Social, a jurisdição constitucional, independentemente do sistema jurídico concreto, assumiu o papel de um legislador

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concorrente ou ao menos subsidiário, na sua forma negativa ou positiva, no sentido da realização de uma suposta “ordem concreta de valores”, subjacente à ordem constitucional, que desenvolveria as convicções axiológicas, tidas como majori-tárias – para não dizer homogêneas – na sociedade.

Assim, a jurisdição constitucional teria o papel de corri-gir ou até mesmo de antecipar-se ao Poder Legislativo, com-preendendo o Direito no sentido da realização do que a na-ção corporificada no Estado entendesse como o bem-comum, materializado através de determinadas condições sociais e possibilidades políticas definidas no interior das burocracias. Nesse sentido, as normas constitucionais deveriam ser pon-deradas a cada aplicação, enquanto consagradoras de bens e de valores a serem otimizados em face dos casos concretos. Questões tais como “segurança nacional”, “paz” e até mesmo “liberdade” e “igualdade” teriam de ser elaboradas segundo uma argumentação que pudesse explicitar o projeto de autor-realização de uma comunidade concreta de cidadãos que bus-casse o que é melhor para si, interpretando suas necessidades e potencialidades à luz de uma substância ético-cultural pró-pria, a ser assumida e transformada de potência em ato, de ge-ração em geração. Aqui, a jurisdição constitucional assumiria o lugar de um poder constituinte permanente de desenvolvi-mento de valores pressupostos à Constituição, limitando, di-rigindo e antecipando-se ao Poder Legislativo.7

Partindo-se, com razão, de uma imagem de socieda-de descentrada, em que vários “deuses” e “demônios” – para usar uma metáfora weberiana – convivem e concorrem para o florescimento humano, essa visão paradigmática da juris-dição constitucional é inconcebível, uma vez que é excessi-vamente materializada e realizadora de modelos-padrão de bem-estar.A tudo isso, acrescenta-se o déficit democrático 7 CATTONI DE OLIVEIRA. Devido processo legislativo, 2000.

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de uma jurisdição cujos titulares não foram sequer eleitos pelos cidadãos e que assume o papel de um superpoder que interpreta a pretensa “vontade” ou “intenção” fundadora da-queles que legislativamente burilaram o Texto Constitucional.

Instala-se, nesse sentido, uma disputa entre uma juris-dição de especialistas e um legislativo suposto representan-te do pensamento político majoritário de uma sociedade de massas. Afinal, quem teria razão, quanto à autorrealização da identidade cívica do corpo de cidadãos, o Legislativo ou um tribunal especializado (ou todo o Judiciário), na defini-ção do melhor para uma dada sociedade?

Os movimentos de desobediência civil,8 quer pelo de-sarmamento, pela crítica a um sistema caduco de educação ou pela proteção do meio ambiente, vão procurar questionar decisões que buscam legitimar o uso de tropas fora do ter-ritório nacional, guerras imperialistas não declaradas, ações repressivas e violadoras dos direitos humanos, ou projetos econômicos não ecológicos desenvolvidos por qualquer go-verno ou corporação latino-americanos, norte-americanos ou europeus, reclamando a falta de participação democrá-tica e evidenciando a contradição entre um capitalismo sel-vagem e um regime político neocorporativo, distanciado e pouco permeável aos anseios da sociedade civil.

8 SALCEDO REPOLÊS. Pode a desobediência civil ser justificada sem se apelar para uma fundamentação última? In: Seminário de Filosofia Política – A fundação e a democracia, 1997.

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3. Justificação teorético-filosófica da jurisdição constitucional

Apresentaremos, agora, a perspectiva filosófica, de um ponto de vista “reconstrutivo”.9 Qual seria a justificativa da jurisdição constitucional?Duas tradições do pensamento político democrático moderno pretendem apresentar res-postas diferentes para tal indagação.

A perspectiva liberal, que remonta a John Locke, con-sidera que a jurisdição constitucional deve impor limites à atividade legislativa no sentido de garantir a razoabilidade das decisões políticas, procurando garantir condições equâ-nimes de negociação entre as diversas tendências políticas, a fim de, por um lado, fazer transparecer a posição política majoritária e, por outro, garantir os direitos fundamentais enquanto direitos individuais.

A posição republicana, que remonta a Jean-Jacques Rousseau, se vê na jurisdição constitucional alguma fun-ção, encara-a como pedagógica, no sentido da condução de uma educação/correção ética que assegure a realização dos valores supostamente subjacentes às normas constitucio-nais, em face de uma cidadania imatura, radicalizando a postura do bem-estar social.10

A postura filosófica aqui adotada pretende partir de pressupostos diferentes.

Embora não tenha o mesmo receio liberal quanto à po-lítica, descarta o fundamento republicano único para a de-mocracia (o fundamento ético homogêneo) e pretende en-

9 Segundo Manuel Jiménez Redondo, uma teoria que procede em termos re-construtivos “reconstruye la idealidad inmanente a la facticidad de la rea-lidad como aguijón y elemento de tensión operante en esa misma realidad” (In HABERMAS. Facticidad y validez Sobre el Estado democrático de dere-cho en términos de teoría del derecho 1998, p. 13).10 CATTONI DE OLIVEIRA. Devido processo legislativo, 2000.

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carar o pluralismo axiológico e cultural como uma questão central para as sociedades contemporâneas, sem, contudo, renunciar à dimensão dialógica da política deliberativa.

Ela adota, assim, uma Teoria Discursiva da Democracia e do Direito,11 em que a perspectiva procedimental ultrapas-sa tanto a política como luta de interesses, como pressupõe o liberalismo, quanto a política enquanto autorrealização éti-ca, como quer o republicanismo cívico.

Ela entende que a política se baseia em razões de dife-rentes espectros, éticos, morais e pragmáticos, em que o peso dessas razões se resolve procedimentalmente e não a partir da imagem de um corpo efetivamente unido de cidadãos, como quer o republicanismo, ou de um sistema político encarado à luz da economia de mercado, como quer o liberalismo. A participação democrática é discursiva e se garante através da permeabilidade do sistema político à opinião pública livre, pressupondo-se o controle público dos meios de comunica-ção formadores de pontos de vista políticos.

A tese aqui defendida é a de que a jurisdição consti-tucional, no exercício do controle de constitucionalidade, deve garantir o devido processo legislativo, o devido processo constitucional e os direitos fundamentais, no sentido de que constitucionalismo e democracia não são concorrentes, mas faces de uma mesma moeda: os direitos fundamentais são garantias de institucionalização de um processo legislativo democrático, fundado na autonomia jurídica, pública e pri-vada, e realizador da pretensão jurídico-moderna segundo a qual os destinatários das normas são seus próprios autores.12

11 HABERMAS. Facticidad y validez Sobre el Estado democrático de derecho en términos de teoría del derecho, 1998.12 CATTONI DE OLIVEIRA. Devido processo legislativo, 2000.

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Dessa forma, embora a democracia exija uma juris-dição constitucional ofensiva, no sentido da tutela jurídica de direitos constitucionais garantidores de um processo le-gislativo democrático, a jurisdição constitucional não deve nem precisa ser uma guardiã republicana de pretensos valo-res ético-políticos tidos como homogêneos ou majoritários na sociedade, como, de fato, se comportou a jurisdição cons-titucional sob o paradigma do Estado Social.13

4. Jurisdição constitucional no marco da Teoria do Direito Constitucional

Como deve ser tratada a questão do ponto de vista de uma Teoria do Direito? Consideramos que a Teoria do Direito possui uma dimensão operacional, enquanto “chave interpre-tativa” do Direito, no caso do Direito Constitucional vigente.14 Então nos voltamos para o Direito Constitucional brasileiro, no sentido de uma interpretação/operacionalização constitu-cionalmente adequada dos dispositivos normativos pátrios.

O tema da jurisdição constitucional torna-se muito importante num país como o Brasil, com recorrentes mo-mentos de inércia e de déficit de integração social, que são tradicionalmente percebidos e interpretados por teorias ju-rídicas especializadas em questões normativas como con-trastes ou hiatos entre um Direito Constitucional que se pretende legítimo e realidades político-sociais e econômicas recalcitrantes, um ideal a ser buscado e uma crua realidade. Em momentos de grande agitação política, tal postura pode traduzir-se no mais autêntico dos protestos:

13 HABERMAS. Facticidad y validez Sobre el Estado democrático de dere-cho en términos de teoría del derecho, 1998.14 CATTONI DE OLIVEIRA. Devido processo legislativo, 2000. CATTONI DE OLIVEIRA. Direito processual constitucional, 2001.

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Não sejamos ridículos. A Constituição de 1988 não está mais em vigor. É pura perda de tempo discutir se a conjunção “e” significa “ou”, se o “caput” de um artigo dita o sentido do parágrafo ou se o inciso tem precedência sobre a alínea. A Constituição é hoje o que a Presidência quer que ela seja, sabendo-se que todas as vontades do Planalto são confirmadas pelo Judiciário.As Ordenações Filipinas, que vigoraram entre nós por muito tem-po, cominavam dois tipos de pena capital: a morte natural e a es-piritual. A primeira atingia o corpo; a segunda, a alma. O exco-mungado continuava a viver, mas só fisicamente: sua alma fora executada pela autoridade episcopal, com a ajuda do braço secu-lar do Estado.Algo semelhante aconteceu com nossa Carta. Ela continua a exis-tir materialmente, seus exemplares podem ser adquiridos nas li-vrarias (na seção das obras de ficção, naturalmente), suas disposi-ções são invocadas pelos profissionais do Direito no característico estilo “boca de foro”. Mas é um corpo sem alma. Hitler, afinal, não precisou revogar a Constituição de Weimar para instaurar na civi-lizada Alemanha a barbárie nazista: simplesmente relegou às tra-ças aquele “pedaço de papel”.A única razão de ser de uma Constituição é proteger a pessoa hu-mana contra o abuso de poder dos governantes. Se ela é incapaz disso, porque o governo dita a interpretação de suas normas ou as revoga sem maiores formalidades, seria mais decente mudar a de-nominação – “o Presidente da República, ouvido o Congresso Na-cional e consultado o Supremo Tribunal Federal, resolve: a Cons-tituição da República Federativa do Brasil passa a denominar-se regimento interno do governo”.15

Entretanto, conquanto Fábio Konder Comparato tenha sido capaz, numa perspectiva normativa, de apreender da for-ma mais clara o sentimento difuso da atual situação constitu-cional brasileira, vivenciada por todos nós, conducente ao pe-rigo de um verdadeiro processo de anomia e de desintegração social, é preciso buscar apreender algo mais, algo que apenas um enfoque reconstrutivo nos permitirá ver, precisamente para que possamos fazer jus à complexidade da questão, pois

15 COMPARATO. Uma morte espiritual, 1998. COMPARATO. Réquiem para uma Constituição. In: FIOCCA; GRAU. Debate sobre a Constituição de 1988, 2001.

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não se trata apenas de uma suposta dualidade entre o ideal constitucional e a realidade sócio-política; há toda uma idea-lidade já presente na facticidade dos processos políticos e so-ciais que deverá ser tematizada através deste ensaio.

Com certeza, as tentativas bem sucedidas de viabiliza-ção de políticas governamentais através de reformas juridi-camente discutíveis da Constituição e da legislação. o uso abusivo e descontrolado de medidas provisórias16 que está acarretando uma verdadeira redução do processo legislativo a uma função meramente legitimadora de políticas gover-namentais; e a omissão do Supremo Tribunal Federal quan-to ao controle dos atos processuais legislativos, com base em uma compreensão, inadequada ao paradigma do Esta-do Democrático de Direito, dos limites de sua legitimida-de política para exercer um controle judicial mais efetivo do processo legislativo, reduzindo este último a uma dimensão eminentemente político-deliberativa, desprovida de caráter de juridicidade.17 Tudo isso, ainda somado às propostas que por ora se apresentam de se proceder a uma “revisão global” da Constituição à margem da própria Constituição, termina por fomentar o sistemático desrespeito às normas constitu-cionais e regimentais, e a colocar em risco não somente os direitos das minorias parlamentares, mas a própria preten-são de legitimidade e de operacionalidade da ordem demo-crático-constitucional, o que afeta a todos os cidadãos, na sua autonomia pública e privada.

16 Para uma discussão acerca do instituto da Medida Provisória, ver CLÈVE. Atividade legislativa do poder executivo no Estado contemporâneo e na Constituição de 1988, 1993, p. 150.17 Acerca da redução, empreendida pelo Supremo Tribunal Federal, do processo legislativo a uma dimensão eminentemente política, desprovida de juridicidade, ver CARVALHO NETTO. A sanção no procedimento legislativo, 1992.

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Elementos que certamente fomentam o sistemático desrespeito às normas constitucionais e regimentais, e a co-locar em risco não somente os direitos das minorias parla-mentares, mas a própria pretensão de legitimidade e de ope-racionalidade da ordem democrático-constitucional, o que afetando todos os cidadãos, na sua autonomia pública e pri-vadasão: as tentativas bem sucedidas de viabilização de po-líticas governamentais através de reformas juridicamente discutíveis da Constituição e da legislação; o uso abusivo e descontrolado de medidas provisórias que está acarretando uma verdadeira redução do processo legislativo a uma fun-ção meramente legitimadora de políticas governamentais; a omissão do Supremo Tribunal Federal quanto ao contro-le dos atos processuais legislativos, com base em uma com-preensão, inadequada ao paradigma do Estado Democrático de Direito, dos limites de sua legitimidade política para exer-cer um controle judicial mais efetivo do processo legislati-vo, reduzindo este último a uma dimensão eminentemente político-deliberativa, desprovida de caráter de juridicidade; propostas que por ora se apresentam como “revisão global” da Constituição à margem da própria Constituição.

O desrespeito institucionalizado ao que se poderia cha-mar de devido processo legislativo e constitucional, ao contrá-rio de um pensamento governista que vê em tais atos apenas a “vitória da vontade da maioria democrática do povo brasilei-ro”, pode colocar em risco o próprio regime democrático ga-rantidor da autonomia pública e privada dos cidadãos.

Estar-se-ia diante de uma situação em que se poderia chegar à perda da universalidade do código jurídico e à per-da da relação de reciprocidade, de reconhecimento mútuo, pressupostos ao status civitatis. Os direitos fundamentais não se apresentariam efetivamente à disposição dos indiví-duos e dos grupos sociais que, cada vez mais excluídos, te-

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riam sempre seus direitos, ao contrário de protegidos, viola-dos.18 Sob um enfoque que pretende denunciar um caráter meramente simbólico da Constituição,19 as normas constitu-cionais manifestar-se-iam, para a grande maioria da popula-ção, meramente como um limite à liberdade, e os direitos de participação política, assim como o acesso à justiça, perma-neceriam tão-somente no papel. Em contrapartida, grupos superintegrados, que constituiriam a menor parte da popu-lação, estes sim disporiam, e de modo exclusivo, da Consti-tuição, no sentido de que a inconstitucionalidade dos atos de “seus” políticos, peritos e milicianos não se tornaria ob-jeto de questionamentos no nível institucional e, portanto, não seria tematizada, no sentido forte do termo. Uma Cons-tituição simbólica, assim, não seria capaz de manter o códi-go direito/não-direito, próprio do sistema jurídico, diante do metacódigo inclusão/exclusão, minando a sociedade a partir da sua própria base democrática.20

No que se refere, especificamente, à problemática acerca do controle jurisdicional de constitucionalidade e de regularidade do processo legislativo, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal brasileiro, há pelo menos vinte anos, tem oscilado entre um formalismo jurídico e uma des-juridicização das questões de regularidade regimental do processo legislativo.

O formalismo jurídico se revela no modo de apreciação da validade jurídica dos atos processuais legislativos (uma questão tida como meramente formal), isolando-os e sepa-rando-os da cadeia procedimental a que pertencem. A desju-ridicização das questões acerca da regularidade regimental do processo legislativo é realizada com base num sistemá-

18 MÜLLER. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia, 1998, p. 95.19 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica, 1994.20 MÜLLER. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia, 1998, p. 96.

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tico alargamento por parte do Supremo Tribunal do que se deve compreender como sendo “matéria interna corporis” ao Legislativo: as questões acerca da regularidade regimen-tal não seriam passíveis, em sua maioria, de verificação por parte do Judiciário, porque a interpretação e a aplicação do Regimento Interno das Casas Parlamentares fariam parte da reserva de competência exclusiva das mesmas.

Um caso clássico de formalismo jurídico, e que mere-ceu a crítica arguta de Menelick de Carvalho Netto,21 é o do modo com que o Supremo Tribunal Federal trata de ques-tões que se referem a vícios de iniciativa legislativa. Contra-riando entendimento jurisprudencial já assentado na antiga Súmula no 5, o Supremo Tribunal, passa a assumir, a partir da Representação de Inconstitucionalidade no 890/1974, a posi-ção segundo a qual o descumprimento de normas constitu-cionais que estabelecem a iniciativa legislativa exclusiva do Chefe do Poder Executivo por parte de parlamentares ma-cularia de forma insanável o processo legislativo e, assim, a lei dele resultante, ainda que, através da sanção, o Chefe de Estado e de Governo aquiescesse com a propositura da lei.22

Tal entendimento jurisprudencial não considera nem a iniciativa nem a sanção como atos jurídicos que fazem par-te de fases diferentes de uma mesma série procedimental, estruturada por uma forma específica de interconexão cons-titucional e regimentalmente prefigurada, cuja validade e eficácia devem ser analisadas a partir da unidade de cada pro-cedimento legislativo (princípio da unicidade do procedi-mento) e com referência à finalidade específica desse último, ou seja, da perspectiva da preparação (ou do fazer-se) de um determinado provimento legislativo (princípio da economia procedimental, combinado com o princípio da continuidade

21 CARVALHO NETTO. A sanção no procedimento legislativo, 1992, p. 264.22 Idem, p. 273ss.

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ou da dependência funcional da série procedimental).23 As-sim, é que a iniciativa legislativa e a apresentação de emen-das a projetos de lei – que também se encontra na fase de propositura – têm por finalidade instaurar o procedimento e a sanção, assim como a aprovação do projeto de lei nas Casas do Congresso, que também está na fase de aperfeiçoamento e constituição da lei, tem por finalidade constituir ou perfazer a lei. É assim que, seguindo o entendimento de Menelick de Carvalho Netto, cabe concluir que:

[...] em um Estado de sistema presidencial de governo, no qual se concentram monocraticamente, na figura do Chefe de Esta-do, as funções de Chefe de Estado e de Governo, cientificamente, por força do princípio da unicidade e da economia procedimen-tal, e tendo-se em vista a vinculação direta, imediata e principal reservada à sanção do Chefe de Estado, no tipo de procedimen-to legislativo caracterizado pelo próprio instituto, frente ao ca-ráter estruturalmente indireto, mediato e secundário de que se reveste a iniciativa no procedimento legislativo, outra não pode-ria ser a conclusão do que a da sanabilidade do vício. O ato total daí resultante revela-se como perfeitamente idôneo precisamente por contar com a aquiescência daquele a quem competia iniciá--lo, no momento mesmo da constituição. Idoneidade de tal for-ma confirmada pela reconstrução do percurso no qual se realizam os elementos singulares da série, que repugnaria ao princípio da unidade e da economia procedimental solução contrária. Não se justificaria supor que seria duplicar, repetir toda a série procedi-mental, reiterar as mesmas atividades, se não obstante o defeito,

23 Acerca dos princípios da unicidade, da economia e da continuidade pro-cedimentais, ver CARVALHO NETTO. A sanção no procedimento legislati-vo, 1992, p.239-240. Consideramos adequado compreender esses princípios a partir da posição doutrinária de Elio Fazzalari e Aroldo Plínio Gonçalves, tendo-se em vista o “princípio do contraditório” ( GONÇALVES. Técnica processual e teoria do processo, 1992.) e a compreensão por eles apresenta-da de procedimento. Assim, teremos o “princípio da finalidade” e o “princí-pio da ausência de prejuízo” (GONÇALVES. Nulidades no processo, 1993.), para o caso da análise da validade e da eficácia dos atos do próprio processo (“procedimento realizado em contraditório”) legislativo, guardadas as espe-cificidades deste em relação ao processo jurisdicional.

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o ato persiste substancialmente idôneo enquanto instrumento de realização dos fins colimados. Daí resulta a perfeita sanabilidade do vício em exame.24

O formalismo jurídico não é nada inofensivo. Nesse caso, como mostra o Professor Menelick, contribuiu para uma redução do processo legislativo a um mero rito legiti-mador de decisões já tomadas no interior das burocracias do Estado ditatorial, sob o pano de fundo de uma compreensão autoritária da representação política.25

A questão do alargamento da noção de o que seja “ma-téria interna corporis” não é menos séria. Esse alargamento se revela através de posições jurisprudenciais do Supremo Tribunal Federal segundo as quais a interpretação e aplica-ção do Regimento Interno das Casas Parlamentares seriam procedimentos que se resolveriam, privativamente, no inte-rior das próprias Casas. Nesse sentido, o controle judicial de regularidade do processo legislativo só poderia ser exercido se imediatamente referido a requisitos procedimentais previstos diretamente pelo texto constitucional (como no caso do dis-posto nos §1o, do art. 47, da Constituição de 1967/69, e §4o, do art. 60, da Constituição de 1988), e não simplesmente com base nos referidos Regimentos, como afirmado, em 1980, no MS no 20.257-DF e, assim, repetidas vezes, por exemplo, nos MS no 21.642-5-DF e MS no 21.648-4-DF (DJ, 19/09/1997). Esse é, também, o entendimento jurisprudencial confirmado pela decisão, do Supremo Tribunal Federal, no MS no 22.503-DF, de 06/06/1997, cuja ementa do acórdão é a seguinte:

EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA IMPETRADO CON-TRA ATO DO PRESIDENTE DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, RELATIVO À TRAMITAÇÃO DE EMENDA CONSTITUCIONAL. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO DE DIVERSAS NORMAS DO RE-GIMENTO INTERNO E DO ART. 60, §5o, DA CONSTITUIÇÃO

24 CARVALHO NETTO. A sanção no procedimento legislativo, 1992, p. 249-250.25 Idem, p. 289-290.

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FEDERAL. PRELIMINAR: IMPETRAÇÃO NÃO CONHECIDA QUANTO AOS FUNDAMENTOS REGIMENTAIS, POR SE TRA-TAR DE MATÉRIA INTERNA CORPORIS QUE SÓ PODE ENCON-TRAR SOLUÇÃO NO ÂMBITO DO PODER LEGISLATIVO, NÃO SUJEITA À APRECIAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO; CONHECI-MENTO QUANTO AO FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL.MÉRITO: REAPRESENTAÇÃO, NA MESMA SESSÃO LEGISLATI-VA, DE PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL DO PODER EXECUTIVO, QUE MODIFICA O SISTEMA DE PREVIDÊNCIA SOCIAL, ESTABELECE NORMAS DE TRANSIÇÃO E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS. (PEC N. 33-A, DE 1995) (grifo do autor).

Vale destacar que, segundo o Supremo Tribunal Fede-ral, é somente nos casos de descumprimento direto de nor-mas constitucionais referentes às formalidades do processo legislativo que os parlamentares teriam legitimação para im-petrar mandados de segurança contra atos processuais legis-lativos que imediatamente descumprissem a Constituição, porque lhes assistiria um direito público subjetivo, “enquan-to co-partícipes do procedimento de elaboração das normas estatais” (para usar as palavras do Min. Celso de Mello, no MS n.21.642-5-DF), de não terem de votar projetos de lei ou propostas de emenda que julguem inconstitucionais.

De qualquer forma, colocada nesses termos, pelo Su-premo Tribunal, a questão acerca da irregularidade e da in-constitucionalidade da tramitação de um projeto de lei ou de uma proposta de emenda constitucional acabaria sendo reduzida a um interesse particular e exclusivo dos deputa-dos e senadores, enquanto “condições para o exercício de sua [sic] atividade parlamentar”, e jamais referida à produção da lei como afeta à cidadania em geral.

Esse entendimento jurisprudencial vem sendo, inclu-sive, reafirmado pelo mesmo Tribunal, no julgamento de mandados de segurança impetrados por parlamentares, que têm por objeto impugnar irregularidades presentes nas tra-mitações das recentes propostas de Emenda à Constituição.

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É assim que, nos termos do voto do Relator Ministro Mau-rício Correa, no já referido MS no 22.503-DF, de 06/06/1997, decide o Supremo Tribunal Federal (grifos nossos):

Impugnação de ato do Presidente da Câmara dos Deputados que submeteu à discussão e votação emenda aglutinativa, com alega-ção de que, além de ofender ao parágrafo único do art. 43 e ao §3o do art. 118, estava prejudicada nos termos do inc. VI do art. 163, e que deveria ter sido declarada prejudicada, a teor do que dispõe o no 1 do inc. I do art. 17, todos do Regimento Interno, lesado o di-reito dos impetrantes de terem assegurados os princípios da legali-dade e da moralidade durante o processo de elaboração legislativa. A alegação, contrariada pelas informações, de impedimento do relator – matéria de fato – e de que a emenda aglutinadora inova e aproveita matéria prejudicada e rejeitada, para reputá-la inad-missível de apreciação, é questão interna corporis do Poder Legis-lativo, não sujeita à reapreciação pelo Poder Judiciário. Mandado de segurança não conhecido nesta parte. Entretanto, ainda que a inicial não se refira ao §5o do art. 60 da Constituição, ela menciona dispositivo regimental com mesma regra; assim interpretada, che-ga-se à conclusão que nela há ínsita uma questão constitucional, esta, sim, sujeita ao controle jurisdicional. Mandado de Segurança conhecido quanto à alegação de impossibilidade de matéria cons-tante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada poder ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa.

Afinal o que são irregularidades e inconstitucionalida-des do processo legislativo? Vícios meramente formais? Por que o Supremo Tribunal Federal continua reafirmando um caráter ou um interesse meramente corporativo dos parla-mentares, ao apreciar questões de regularidade e inconstitu-cionalidade de atos processuais legislativos?

Ao contrário do que sustenta o entendimento juris-prudencial do Supremo Tribunal Federal, esses requisitos formais são, de uma perspectiva normativa, condições pro-cessuais que devem garantir um processo legislativo demo-crático, ou seja, a institucionalização jurídica de formas dis-cursivas e negociais que, sob as condições de complexidade

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da sociedade atual, devem garantir o exercício da autono-mia jurídica - pública e privada – dos cidadãos. O que está em questão é a própria cidadania em geral e não o direito de minorias parlamentares ou as devidas condições para a atividade legislativa de um parlamentar “X” ou “Y”. Não se deve, inclusive, tratar o exercício de um mandato represen-tativo como uma questão privada, ainda que sob o rótulo de “direito público subjetivo” do parlamentar individualmente considerado, já que os parlamentares, na verdade, exercem função pública de representação política; e é precisamente o exercício necessariamente público, no mínimo coletivo ou partidário, dessa função, que se poderia encontrar em risco. Trata-se da defesa da garantia do pluralismo no processo de produção legislativa, da defesa da própria democracia como respeito às regras do jogo, da possibilidade de que a minoria de hoje possa vir a se tornar a maioria de amanhã.

No Brasil, essas posições assumidas pelo Supremo Tri-bunal Federal, competente, “em via principal” e “em via re-cursal”, para controlar a constitucionalidade da atuação (e da não atuação) dos órgãos de cúpula do Estado, revelada por um entendimento jurisprudencial inadequado ao paradig-ma do Estado Democrático de Direito, têm levado, de uma perspectiva não somente normativa, mas também objetiva, ao surgimento de verdadeiras ilhas corporativas de discricio-nariedade, o que estará resultando numa quase total ausên-cia de parâmetros normativos, abrindo espaço, dessa forma, para um exercício cada vez mais arbitrário do poder político. Estaria faltando à jurisprudência do Supremo Tribunal Fe-deral a coerência, por um lado, e o senso de adequabilidade, por outro, necessários para a realização daquilo que Ronald Dworkin chama “Integridade” e que é própria de um efetivo Estado Constitucional.26

26 HABERMAS. Direito e democracia: entre facticidade e validade, p. 176.

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Podemos afirmar, portanto, que nessas decisões judi-ciais o que estaria em jogo seria a própria sobrevivência do Estado de Direito entre nós.

Análises do ponto de vista da Sociologia Jurídica, no Brasil, têm procurado mostrar, de uma perspectiva “objetiva”, como decisões arbitrárias desestabilizam tanto um sistema político organizado constitucionalmente, quando um Direito que necessita do aparato estatal para garantir expectativas ge-neralizadas de comportamento (a certeza nas relações).27

Tal questão levanta o problema do chamado déficit de legitimidade e de operacionalidade de um Poder Judicial con-trolador das decisões do legislativo eleito por uma vontade popular/nacional majoritária, que não poderia ser reduzido ao problema de uma pretensa falta de legitimidade de título. Pois, da quantidade à qualidade:

À medida que a constituição não é mais “querida” [gewollt] en-quanto vinculante em extensão tão ampla, i.e., não é praticada, ela mesma se submete com a sua pretensão de vigência à reserva da “vigência’ do metacódigo, da superestrutura de inclusão/exclusão. Com isso a inclusão abrange o próprio ordenamento constitucio-nal e jurídico, sem que a universalidade do seu conceito de norma e sem uma pretensão realizável de vigência não pode ser reconhecida como ordenamento normativo moderno. A constituição reduz-se à ferramenta ocasional dos superintegrados. Ela não foi “pensada” para os subintegrados: não pode mais constituir.28

Todavia, a fim de não perdermos a perspectiva recons-trutiva, é necessário não nos prendermos, unilateralmen-te, nem à perspectiva normativa da Teoria do Direito, nem à perspectiva realista ou objetiva da Sociologia Jurídica. Cabe assinalar, com Friedrich Müller, que a positivação jurídico-

27 É o que pode ser concluído, a partir das análises empreendidas do ponto de vista da Sociologia Jurídica, por, dentre outros, José Eduardo Faria, Boa-ventura de Sousa Santos, José Reinaldo de Lima Lopes e Celso Campilon-goem FARIA. Direito e justiça: a função social do Judiciário, 1997.28 MÜLLER. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia, 1998, p. 99.

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-moderna como “textificação é faca de dois gumes”,29 porque ela pode ser compreendida como desvirtuada no sentido de um “constitucionalismo simbólico”,30 mas também pode ser levada a sério, ou, nas palavras desse jurista alemão, “ao pé da letra”.

Afinal, o texto da Constituição brasileira de 1988 não somente fala de exclusão, mas se pronuncia contra ela, prin-cipalmente nos Títulos que tratam dos princípios e dos di-reitos fundamentais,31 podendo revelar, portanto, diferente-mente de um contraste entre ideal e real, inclusão e exclusão, uma tensão entre texto e contexto.

Numa leitura reconstrutiva, pode-se, inclusive, virar o texto constitucional contra a exclusão que, ao contrário de se ancorar numa lei natural, permanece vinculada à pré--compreensão social e política, não problematizada, dos in-térpretes em geral (todos aqueles que vivenciam a Constitui-ção) e dos juristas em especial (constitucionalismo apenas simbólico, apenas nominalista).

29 MÜLLER. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia, 1998, p. 102.30 Para uma análise do fenômeno do “constitucionalismo simbólico”, ver NEVES. A constitucionalização simbólica, 1994. Para uma reflexão acerca de um caráter prospectivo, promocional, dos textos “simbólicos”, bem como dos seus “efeitos sociais latentes”, sobretudo, da perspectiva de uma tendência à desneutrali-zação do Judiciário, no sentido do paradigma jurídico do bem-estar social, ver MÜLLER. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia, 1998, p. 26.31 Como afirma HABERMAS. Direito e democracia: entre facticidade e va-lidade. 1997. v. 2. p. 123-124, em relação às Constituições que surgem após períodos de convulsão política, “diferindo do direito formulado ou desenvol-vido por juristas profissionais, o teor e o estilo dos direitos fundamentais re-velam enfaticamente a vontade de pessoas privadas que reagem a experiên-cias concretas de repressão e de ataque aos direitos humanos. Na maioria dos artigos referentes aos direitos humanos, ressoa o eco de uma injustiça sofrida, a qual passa a ser negada, por assim dizer, palavra por palavra”. Essa passagem de Direito e democracia: entre facticidade e validade poderia ser perfeitamente ilustrada pela Constituição de 1988.

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Ao contrário, portanto, de se manter, de forma unilate-ral, tanto o enfoque teorético-normativo da Teoria tradicional do Direito, quanto o enfoque tantas vezes céptico e objetivan-te, realista, da Sociologia Jurídica, é preciso explorar as ten-sões presentes nas práticas jurídicas cotidianas e reconstruir, de forma adequada ao paradigma do Estado Democrático de Direito, os fragmentos de uma racionalidade normativa já presentes e vigentes nas próprias realidades sociais e políticas.

Sem uma pré-compreensão da exclusão, por um lado, e sem a pré-compreensão de um consequente constitucio-nalismo simbólico daí decorrente, os textos de normas cons-titucionais que excluem a discriminação e a exclusão prova-velmente não teriam sido incluídos de forma tão veemente na Constituição de 1988 (por exemplo, os textos dos artigos. 1o, 2oº, 5o, §1o e §2o).

Quanto mais se romper com a retórica do constituciona-lismo simbólico e com as tradições de exclusão advindas de um passado que ainda se faz presente, tanto mais o próprio sistema político deverá, ainda que a longo prazo, passar a se compreen-der e a ser compreendido em termos constitucionais.

Tal ruptura pode encontrar curso, a todo momento e sem nenhum caráter de excepcionalidade, através dos pro-cessos jurídico-políticos, de justificação e de aplicação nor-mativos, prefigurados constitucionalmente, se compreendi-dos de modo adequado ao paradigma jurídico-democrático, como garantia da possibilidade de problematização e expli-citação dos pressupostos paradigmáticos – liberais e de bem--estar social, por exemplo – que tomaram curso na história, não somente institucional, do Direito brasileiro.

Esse encaminhamento discursivo não exclui. Ao con-trário, só pode ganhar impulso caso se integre aos movimen-tos sociais, já presentes, de fortalecimento da sociedade civil

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e se ceder à pressão pela maior abertura dos canais institu-cionais de decisão do centro do sistema político às redes pe-riféricas da esfera público-política.32

Nesse processo, a Teoria da Constituição e a Teoria do Processo, enquanto teorias discursivas e reconstrutivas, filo-soficamente orientadas, poderão assumir explicitamente o papel mediador, reflexivo, para a práxis, de toda teoria.

É nesse sentido que Menelick de Carvalho Netto adver-te para as dificuldades dessa empreitada, não somente teo-rética, que, embora “premida e vacilante”, deve ser realizada:

São épocas difíceis para o constitucionalista aquelas em que o sentimento de Constituição, para usar a expressão divulgada por Pablo Lucas Verdú, é aniquilado não só pela continuidade e pre-valência de práticas constitucionais típicas da ordem autocráti-ca anterior, como pela tentativa permanente de alteração formal da Constituição, seja pela via revisional, seja através de emendas. Práticas e tentativas essas que, alcancem ou não o fim menor a que visavam, resultem ou não na alteração pretendida, terminam sempre por ferir a aura de supremacia de que se deve revestir a Constituição para que seja capaz de legitimar, de validar, o Estado e o demais Direito que nela se assentam. Instaura-se, assim, uma situação que tende a desvelar o paradoxo de o Direito moderno fundar a si próprio [...]. Situação também paradoxal em que os próprios órgãos legitimados pela Constituição voltam-se contra a sua base de legitimidade para devorá-la, revelando a face brutal da privatização do público, do poder estatal instrumentalizado, reduzido a mero prêmio do eleito, visto como “as batatas” a que faz jus o vencedor, no dizer de Machado. É o sentimento de ano-mia que passa a campear solto, vigoroso, alimentando-se a fartar das dificuldades que encontramos em recuperar as sementes de liberdade, mergulhadas em nossas tradições.33

32 A bibliografia brasileira acerca dos chamados “novos movimentos so-ciais”, que se caracterizam pelo modo não-corporativo de reivindicação po-lítica, vem ampliando-se cada vez mais. Como exemplo, STÉLIDE. A refor-ma agrária e a luta do MST, 1997.33 CARVALHO NETTO. Prefácio a CATTONI DE OLIVEIRA. Tutela Jurisdi-cional e Estado Democrático de Direito: Por uma compreensão constitucio-nalmente adequada do Mandado de Injunção, 1998.

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Recuperar o que o Professor Menelick chamou, poetica-mente, de “as sementes de liberdade, mergulhadas em nossas tradições”, buscando explorar-lhes as potencialidades já atuais, é, justamente, o que um enfoque reconstrutivo pretende realizar.

É, portanto, sob o pano de fundo dessas questões que colocamos o problema da necessidade de se reinterpretar a tarefa da jurisdição constitucional brasileira, em face do Di-reito Constitucional vigente, buscando, inclusive, superar o enfoque tradicional que, ao traçar uma dicotomia entre “Di-reito” e “realidade”, nada contribui, ao contrário, aprofunda os problemas de integração social que devemos enfrentar.

5. Jurisdição constitucional brasileira

Como reconstruir adequadamente, pois, o papel da ju-risdição constitucional, “jurisdição em matéria constitucio-nal”, no Brasil?

Partindo de uma compreensão da Constituição, sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, como a regu-lação de processos que visam garantir o exercício da auto-nomia jurídica, numa perspectiva que supera tanto o para-digma liberal, quanto o paradigma de bem-estar social, de Constituição e de autonomia, poderemos reconstruir a tare-fa da jurisdição constitucional como primordialmente refe-rida ao exame e à garantia de realização das condições pro-cedimentais, das formas comunicativas e negociais, para um exercício discursivo da autonomia política.

Os direitos fundamentais exprimem essas condições, possibilitam um consenso racional, ou, ao menos, um pro-cesso equânime de negociação acerca da institucionalização das normas do agir, tornando possível a gênese democrática

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do Direito. Através da participação discursiva no processo legislativo democrático, os destinatários das normas jurídi-cas são os autores das mesmas.

Tal referência às condições procedimentais do proces-so legislativo democrático não faz da jurisdição constitu-cional um poder legislativo, ainda que negativo, tampouco a tornará um guardião republicano de um processo político restrito a questões ético-culturais, como numa leitura repu-blicana do paradigma do Estado Social.

Procuraremos, agora, delinear, em termos analíticos, como deve ser compreendido o papel da jurisdição constitu-cional no controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo, no marco da Constituição da República brasileira, sob o Estado Democrático de Direito. Buscaremos caracterizar, em linhas gerais, o controle juris-dicional de constitucionalidade das leis e do processo legis-lativo, em via principal e em via incidental, como atividade de aplicação jurídico-normativa.

A tarefa geral da jurisdição constitucional é a de garan-tia das condições processuais para o exercício da autonomia pública e da autonomia privada dos co-associados jurídicos, no sentido da interdependência e da equiprimordialidade delas, especialmente, no controle jurisdicional de constitu-cionalidade das leis e do processo legislativo, no marco da Constituição da República brasileira, sob o paradigma do Es-tado Democrático de Direito,. Essa tarefa densifica-se nas seguintes perspectivas:

• garantia do devido processo legislativo democrático; ou seja, democracia e abertura nos discursos legisla-tivos de justificação das normas jurídicas do agir. Sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, a ju-risdição constitucional deve referir-se primeiramente aos pressupostos comunicativos e às condições pro-

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cessuais para uma gênese democrática do Direito. Tal perspectiva não poderá reduzir-se a uma leitura mera-mente instrumental do processo legislativo, como su-gerem os enfoques liberais da política, pois há que se levar explicitamente em conta o caráter normativo dos princípios constitucionais que justificam a legitimi-dade desse processo. Mas esses princípios não podem nem necessitam ser interpretados como valores con-cretos de uma dada tradição ético-política, como suge-rem alguns republicanos, a partir de uma teoria subs-tantiva dos direitos fundamentais ou de uma teoria do devido processo substantivo.

• garantia do devido processo constitucional; ou seja, imparcialidade e adequabilidade nos discursos de apli-cação jurídica em geral. Nessa perspectiva, a jurisdição constitucional deve garantir, de forma constitucional-mente adequada, a participação ou a representação, nos processos ordinários cíveis, penais e nos processos especiais de garantia de direitos constitucionais e de controle jurisdicional de constitucionalidade, dos pos-síveis afetados por cada decisão, através de uma inter-pretação construtiva que compreenda o próprio pro-cesso jurisdicional como garantia das condições para o exercício da autonomia jurídica dos cidadãos. Ao pos-sibilitar a garantia dos direitos fundamentais proces-suais jurisdicionais, nos próprios processos de controle jurisdicional de constitucionalidade, em via inciden-tal ou principal, a jurisdição em matéria constitucional também garantirá as condições para o exercício da au-tonomia jurídica dos cidadãos, pela aplicação a si mes-ma do princípio do devido processo legal, compreendi-do, aqui, como modelo constitucional do processo.

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Desse modo é que a garantia dos direitos fundamen-tais, da autonomia política, capacidade para uma escolha ra-cional e autorrealização ética – que se ramifica no “uso pú-blico das liberdades comunicativas” e no “uso privado das liberdades subjetivas” – e a garantia do direito das gerações futuras ao exercício da autonomia jurídica repousam e são desenvolvimentos das duas garantias constitucionais pro-cessuais básicas acima elencadas.

Como a atuação da jurisdição constitucional deve re-ferir-se às condições procedimentais do processo legislativo constitucionalmente estruturado, de acordo com o qual os cidadãos, no exercício de seu direito de autodeterminação, podem realizar o projeto cooperativo de estabelecer condi-ções recorrentemente mais justas de vida, essa atuação deve justamente assegurar o sistema de direitos que apresentam tais condições procedimentais e que, assim, garantem as au-tonomias pública e privada dos cidadãos, não somente pe-rante o poder administrativo do Estado, mas também em face do poder social e econômico.

Vista da perspectiva da garantia do direito das gerações futuras ao exercício da autonomia jurídica, a tarefa da ju-risdição em matéria constitucional envolve a própria ques-tão acerca do futuro da democracia entre nós, assim como a relação entre a Constituição e o tempo, o que envolve a re-construção, por exemplo, de um “princípio constitucional da reversibilidade dos entendimentos jurisprudenciais sub-jacentes às decisões”, ao lado de um “princípio da não-es-cravidão voluntária”, como corolários do princípio democrá-tico. Tais princípios devem estruturar os processos formais e informais de mudança constitucional. Nesse sentido, no que se refere aos processos formais, cabe dizer que a jurisdi-ção constitucional, no exercício do controle jurisdicional de constitucionalidade do processo legislativo de reforma cons-

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titucional, deve garantir as condições procedimentais de um processo democrático de reforma, no tempo, das interpre-tações subjacentes às decisões políticas e jurídicas funda-mentais, acerca de o que deva ser o juridicamente correto, possibilitando às gerações futuras a apropriação reflexiva das tradições político-constitucionais, no sentido de que a Constituição deverá ser sempre considerada como um pro-jeto em aberto, numa Democracia.

Por outro lado, a garantia de um processo legislativo democrático de reforma constitucional deve impedir que os dispositivos constitucionais sejam objeto de alteração atra-vés do exercício de um poder constituinte derivado distan-ciado das fontes de legitimidade situadas nos fóruns de uma esfera pública política que não se reduz ao Estado. O que leva a que mais uma vez se retome, explícita e radicalmente, a pergunta pelos fundamentos democráticos e pluralistas do constitucionalismo, relacionados à própria pretensão de legi-timidade do Direito moderno e dos vínculos constitucionais.

Todavia, isso não pode fazer da jurisdição constitucio-nal, como já assinalado anteriormente, uma guardiã republi-cana do processo político e da cidadania, que a transforma-ria numa espécie de poder constituinte permanente.

Uma interpretação do processo político fundada numa compreensão procedimental do Direito e da política não deve conceber a política deliberativa como um processo es-tabilizador de identidades ético-culturais, muito menos re-duzir o Direito a uma Ética consuetudinariamente herdada. A formação democrática da vontade e da opinião, ao contrá-rio do que pressupõe a tradição republicana do pensamento político, não tira sua força legitimadora da convergência de convicções e de razões éticas, mas dos pressupostos comuni-

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cativos e dos processos que possibilitam o aporte de razões e de interesses de amplo espectro, de tal modo a selecionar os melhores argumentos.

A autonomia pública, assim como o Direito, não pode ser assimilada a uma concepção ética, o que fundamenta, segundo Habermas, o fato de a Teoria do Discurso não precisar reservar o modo da política deliberativa a condições excepcionais.34

Assim, a jurisdição constitucional, com base numa compreensão procedimentalista da Constituição, não tem que buscar sua legitimidade em tais condições excepcionais. Ela pode permanecer no quadro de sua autoridade para apli-car o Direito, na certeza de que o processo democrático, que ela deve proteger, não precisa ser descrito como um estado de exceção. Temos, para isso, de livrar o conceito de política de-liberativa de conotações excessivas, impostas por uma concep-ção republicana do processo político, que colocariam a jurisdi-ção constitucional sob permanente pressão. Concordando com Habermas, ela “não pode assumir o papel de um regente que toma o lugar de um sucessor menor de idade ao trono”.35

No quadro traçado da jurisdição constitucional, será possível compreender o controle jurisdicional de constitucio-nalidade das leis e do processo legislativo, no Brasil – tanto em via incidental quanto em via principal – como atividades processualmente institucionalizadas de aplicação do Direito: o controle jurisdicional de constitucionalidade não deverá ser exercido da perspectiva de um legislador negativo ou positivo.

34 Segundo HABERMAS. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. 1. 1997, p. 345: “A tradição republicana sugere um tal excepcionalismo, uma vez que liga a prática política dos [cidadãos] ao ethos de uma comu-nidade naturalmente integrada. A política correta só pode ser feita por [ci-dadãos] virtuosos”.35 HABERMAS. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. 1. 1997, p. 347.

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O controle por via incidental inicia-se com vistas à re-solução de casos individuais e, por isso, limita-se à aplicação de normas constitucionais, afastando-se do sentido incons-titucional dos dispositivos normativos. Desse modo, sua caracterização como atividade de aplicação do Direito não deve levantar grandes questionamentos em relação à sua na-tureza. Ao possibilitar a garantia dos direitos fundamentais, reafirma as condições do exercício das autonomias pública e privada pelos cidadãos e, nesse sentido, o controle juris-dicional de constitucionalidade por via incidental também pode ser reconstruído tendo-se por referência a dinâmica do processo de elaboração democrática do Direito.

Já o controle jurisdicional de constitucionalidade por via principal, que tantas questões vem suscitando ao longo dos anos, para ser reconstruído no quadro traçado da juris-dição constitucional democrática deve diretamente referir--se às condições procedimentais para a realização do pro-cesso democrático e das formas deliberativas da formação política da opinião e da vontade. Tais condições, por sua vez, referem-se ao exercício discursivo da autonomia pública que viabiliza o processo legislativo democrático, através do qual os próprios cidadãos são os autores de seus próprios direitos e deveres, na dinâmica da gênese legítima do Direito.

E de que modo se relacionam o controle por via inciden-tal e o controle por via principal? Em princípio, essa questão ganha concretude ao ser respondida no quadro de uma ordem jurídica específica, e que consagra os dois modos de controle.

No Direito brasileiro, o controle por via incidental deve ser compreendido como modo ordinário, assim como o con-trole por via principal deve ser compreendido como modo es-pecial, de controle jurisdicional de constitucionalidade, não somente por razões históricas, jurisprudencialmente assen-tadas, mas em função da sistemática do controle jurisdicio-

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nal de constitucionalidade das leis e do processo legislativo, no quadro da Constituição da República. Tal compreensão seria a única que possibilitaria uma visão não excludente ou não incompatível dos dois modos de controle.

As conseqüências de se caracterizar o controle por via incidental como modo ordinário e o controle por via principal como modo especial são, fundamentalmente, as seguintes:

1. A normativa do controle em via incidental se aplica subsidiariamente ao controle em via principal;

2. O controle em via incidental e o controle em via principal são complementares.

Tais afirmações podem ser exemplificadas ao analisar-mos os efeitos e a natureza das decisões jurisdicionais to-madas em sede de um e do outro modo de controle. Aqui, pretendemos afastar uma série de mal-entendidos, à luz de o que viemos considerando uma compreensão da jurisdição constitucional, no marco do Estado Democrático de Direito.

Tradicionalmente, os autores europeus e norte-ameri-canos têm tomado posições diversas ao caracterizar os efei-tos e a natureza das decisões jurisdicionais constitucionais. Isso está bastante relacionado ao modo como fundamental-mente concebem a jurisdição constitucional, quer como ati-vidade de aplicação do Direito, ainda que construtiva, quer como legislador negativo ou até como legislador positivo, concorrente ou, ao menos, subsidiário.

As posições são, fundamentalmente, três:36

1. as decisões têm sempre caráter declaratório, atin-gindo quer as partes, quer a todos, dependendo de como a questão é suscitada, e sempre em caráter retroativo;

36 Acerca de tais posições, ver também BARACHO JÚNIOR. Efeitos do pro-nunciamento judicial de inconstitucionalidade no tempo. In: Cadernos da Pós-Graduação (Teoria Geral do Processo Civil), 1995, p.25.

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2. as decisões têm sempre caráter constitutivo, atin-gindo quer as partes, quer a todos, por um lado, po-dendo, por outro, retroagir ou não, conforme o Di-reito vigente;

3. o caráter e os efeitos da decisão estão relacionados ao modo de controle, se por via incidental, se por via principal.

As duas primeiras posições são as que tentam conciliar, de alguma forma, os dois modos de controle, e, por isso, em princípio, são candidatas em razão do seu caráter sistemáti-co. A terceira, por estabelecer uma relação de concorrência ou até de oposição entre os dois modos de controle, perde em sistemática; mas ao final, poderá ser descartada em razão de outros argumentos.

A primeira posição é tradicionalmente exposta em ter-mos individualistas, enquanto a segunda, em termos estata-listas. tal posição afirma que a norma inconstitucional é uma contradição em termos e que, portanto, pode ser reconheci-da por qualquer um como inválida e nula, no sentido de que ninguém está submetido a um comando inconstitucional.

A segunda considera que tão somente os órgãos estatais competentes e autorizados para tanto podem pronunciar-se a respeito da inconstitucionalidade de uma norma e fazê-la cessar de gerar efeitos, ou seja, de anulá-la. Mesmo a nulidade, para a doutrina que defende a natureza constitutiva da deci-são jurisdicional, seria apenas o grau mais alto de anulabilida-de, de uma anulação a operar efeitos retroativos.37

A teoria que chamaremos estatalista pode ser analisa-da a partir de uma crítica à sua maior representante, a teoria kelseniana. Essa seria estatalista porque está fundada, antes de tudo, num positivismo jurídico que, ao contrário do que muitas vezes se afirma acerca da obra kelseniana, adequa-se

37 Esta é a posição, por exemplo, de KELSEN. Teoria pura do direito, 1987, p. 293-294.

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ao paradigma do Estado Social, na medida em que instru-mentaliza, através da noção de interpretação autêntica ou autorizada, a discricionariedade necessária ao desenvolvi-mento de políticas governamentais de impacto, cujo mérito nunca poderia ser conhecido pela Ciência do Direito.38 Hans Kelsen restringe, assim, a comunidade de intérpretes autori-zados da Constituição aos órgãos jurídicos, não a estenden-do a todo o público de cidadãos, o que o leva a não diferen-ciar aquele que nega a força vinculante do comando por não reconhecer a sua objetividade, ou seja, o seu fundamento de validade, do mero criminoso, que desobedece à norma sem apresentar razões plausíveis, já que todos os dois assim se comportariam por sua conta e risco.39

Ao assim conceber o processo de interpretação e apli-cação do Direito, como uma questão de decisão juridicamen-te institucionalizada, de produção discricionária do Direito, Hans Kelsen inverte a lógica do controle de constituciona-lidade, privilegiando, mais que uma pretensão de validade dos comandos estatais, uma compreensão da dinâmica ju-rídica incompatível com o Estado Democrático de Direito que, fundado numa compreensão procedimentalista do Di-reito e da Política, não parte de um modelo fechado das nor-mas jurídicas, mas aberto e principiológico.

A primeira posição pode sustentar-se no marco do Esta-do Democrático de Direito e, portanto, no da Constituição da República brasileira? Acredita-se que sim, desde que supera-do o seu caráter individualista e um tanto quanto privatista.

Se, no marco do Estado Liberal, a nulidade ou nulidade absoluta de um comando inconstitucional é sanção que opera de pleno direito, em razão de um vício grave, de ordem públi-

38 Sobre isso, ver CATTONI DE OLIVEIRA. Direito processual constitucional, 2001, p. 29; CATTONI DE OLIVEIRA. Direito processual constitucional, 2001; MAGAL-HÃES. Sobre a interpretação jurídica. Revista de Direito Comparado, 1999.39 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, 1987, p. 293.

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ca, é compreensível a concepção segundo a qual a decisão ju-dicial seria meramente declaratória, de reconhecimento por parte de um juiz ou tribunal de um estado de coisas já existen-te anteriormente à sua apreciação, assim como seria possível fundar a desobediência a esse comando em termos individua-listas: quem se sentisse lesado que procurasse defender-se.

Todavia, tal compreensão é muito ingênua, diante da refle-xividade cobrada pelo paradigma jurídico do Estado Democráti-co de Direito. Ainda assim, é preciso reconstruir os argumentos de modo a fortalecer a primeira posição, em face, inclusive, da necessidade democrática de se fazer frente à segunda posição.

Afinal, o que significaria nulidade de pleno direito, no quadro traçado da jurisdição constitucional, no exercício do controle jurisdicional de constitucionalidade, sob o paradig-ma do Estado Democrático de Direito?

É fundamental a relação que se estabelece entre socie-dade aberta de intérpretes da Constituição (Häberle) e Esta-do Democrático de Direito. Como já avançado, sob o Estado Democrático de Direito, a jurisdição constitucional, no exer-cício do controle jurisdicional de constitucionalidade, deve voltar sua atuação para a garantia das condições procedi-mentais do exercício da autonomia por parte dos cidadãos e, com isso, garantir as condições para a realização do processo democrático, mas sem assumir a postura de um guardião da virtude, com base em fundamentos ético-culturais ou me-ramente político-pragmáticos. O controle jurisdicional de constitucionalidade não pode ser tratado como uma questão de Estado. É no contexto de uma esfera pública política de cidadãos os quais, no exercício de seus direitos fundamen-tais, aprofundam o seu sentimento de Constituição e de De-mocracia, que a jurisdição constitucional deve ser exercida.

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Com base nesse paradigma jurídico-democrático é que se pode dizer que todos os cidadãos têm o direito, desde que discursivamente fundados, de desobedecer a um comando normativo que considerem inconstitucional. Só assim pode-rá ser compreendida, hoje, a expressão nulidade de pleno di-reito, declarada judicialmente, fruto de um processo de re-conhecimento público que, tendo por base a sociedade civil, gera influência política através dos diversos espaços públicos e transforma-se em poder político, ao ganhar os canais insti-tucionais no interior do Poder Judiciário.

Como pode ser compreendida a afirmação segundo a qual a natureza da decisão jurisdicional é declaratória e não constitutiva? Ela é o reconhecimento formal ou a formali-zação de uma opinião pública segundo a qual as razões para desobedecer demonstraram-se constitucionalmente funda-das. Quando não forem, os desobedientes civis não deverão ser tratados como criminosos, até mesmo porque, um dia, em razão da própria dinâmica da interpretação constitucio-nal, a posição deles pode democraticamente vir a prevalecer.

A decisão é de eficácia retroativa, ou seja, vem forma-lizar, institucionalizar, o reconhecimento público da invali-dade da norma que se deu na esfera pública informal ou até mesmo no plano da Administração Pública.

Tal perspectiva pode ser válida para as decisões jurisdi-cionais tomadas através do controle por via principal, desde que, por um lado, seja repensado o conceito processual de par-tes, assim como o de legitimação processual.40 Os legitimados pela Constituição, em seu art. 103, representam a cidadania.

A extensão da incidência dos efeitos retroativos sobre os atos singulares praticados com base em comando incons-titucional deve ser analisada caso a caso, segundo a lógica argumentativa dos discursos de aplicação jurídica. Para isso, 40 GONÇALVES. Técnica processual e teoria do processo, 1992.

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seria adequado, por um lado, procurar tratar a “ação dire-ta de inconstitucionalidade” no quadro geral das chamadas “ações civis coletivas” e, por outro, reconhecer, como vere-mos, a inconstitucionalidade da Lei Federal no 9.868/99.

Como o processo jurisdicional da ação direta de incons-titucionalidade é especial em face do processo jurisdicional do controle incidental, este, sim, é o ordinário, possível de ser realizado, em princípio, em face de qualquer demanda, por qualquer juiz ou tribunal, por provocação das partes ou mesmo ex officio. Enquanto tal, aquilo que a Constituição, em primeiro lugar, e o Código de Defesa do Consumidor combinado com a Lei da Ação Civil Pública, em segundo lu-gar, não excepcionam, quanto aos legitimados para a propo-situra, quanto ao modo processual e quanto aos atingidos pela coisa julgada, vale para a ação direta de inconstitucio-nalidade, como vimos, o que vale para o controle incidental. A ação direta de inconstitucionalidade é uma ação coletiva, proposta, como a ação civil pública, por representantes da cidadania em geral.

Após a análise das duas primeiras posições, a tercei-ra fica prejudicada, pelo fato de buscar conciliar duas con-cepções que partem de paradigmas jurídicos diferentes, o que em nada contribui para uma compreensão adequada do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo.

6. A inconstitucionalidade da lei federal no 9.868 em face do modelo constitucional brasileiro do controle de constitucionalidade

Em 10 de novembro de 1999, foi promulgada a Lei Fe-deral no 9.868, que “Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal”.

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Tal Lei, que só recentemente vem merecendo a atenção dos magistrados, dos membros do Ministério Público e de doutrinadores pátrios, introduz uma série de inovações no sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, alte-rando-lhe, profundamente, a feição, principalmente no que se refere aos efeitos temporais das decisões do Supremo Tri-bunal Federal, em sede do controle por via principal.

Essas inovações, com certeza, merecem não somente a atenção dos operadores jurídicos, mas também a da cidada-nia em geral, em razão das consequências nefastas advindas dos princípios subjacentes à sua adoção.

O art. 27, da referida Lei, dispõe:Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e ten-do em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional inte-resse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de 2/3 (dois terços) de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só terá eficácia a partir do trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Como se pode depreender da análise desse dispositivo, a Lei Federal no 9.868/99 visa atribuir ao Supremo Tribunal a competência para determinar, com força vinculante e efi-cácia orga omnes (nos termos do parágrafo único do seu art. 28), o momento em que suas decisões, em sede do controle por via principal, entrarão em vigor (art. 27). Assim, o Tri-bunal poderia determinar os efeitos temporais de suas deci-sões, definindo a partir de quando uma lei ou ato normativo inconstitucional perderia sua eficácia, se após o trânsito em julgado da decisão, ou até mesmo no momento que se jul-gar conveniente, “tendo em vista razões de segurança jurí-dica ou de excepcional interesse social”. Como muito bem denuncia Ivo Dantas:

Imaginemos um exemplo: determinada Medida Provisória cria um novo tributo (como o fez com a Contribuição Previdenciária dos Inativos) e o Supremo Tribunal Federal a entende eivada de

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inconstitucional. Contudo, em razão de necessidade de caixa, in-vocada como excepcional interesse social, poderá dizer a Corte, por maioria de dois terços de seus membros, que mesmo sendo inconstitucional, poderá ser cobrada por mais 5 (cinco) anos, por exemplo. Ou então, que em relação aos anos em que foi cobrada a situação ficará imutável, pois que a decisão só terá eficácia a partir de seu trânsito em julgado.41

Consequência mínima disso é que, mesmo declarados inconstitucionais um ato normativo ou uma lei, o Supremo Tribunal Federal poderia exigir o seu cumprimento pelos de-mais órgãos do Poder Judiciário, pelo Poder Executivo e pela cidadania em geral.

Sabemos que não somente por razões históricas, mas também sistemáticas, a tradição da jurisprudência constitu-cional brasileira é a de que, mesmo em sede de ação direta, os efeitos temporais da decisão que declara a inconstitucio-nalidade de lei ou de ato normativo são retroativos. Como vimos, segundo esse entendimento constitucionalmente adequado ao modelo brasileiro de controle de constitucio-nalidade, a lei ou o ato normativo inconstitucional é uma contradição em termos, pois todo ato de vontade, emanado do Legislativo ou do Executivo, que fere, formal ou material-mente, a Constituição, carece de seu fundamento de valida-de e, por isso, embora exista como ato de vontade, não existe como lei ou ato normativo, como ato dotado de normativi-dade, de obrigatoriedade.

Nesse sentido, um ato inconstitucional nunca vincu-lou o Judiciário e a Administração e, muito menos, os cida-dãos, que têm o direito fundamental de não se submeterem a comandos inconstitucionais.

41 DANTAS. O valor da Constituição, 2001.

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Mesmo após a introdução da via principal de controle, a jurisprudência considera a que o sistema permanece emi-nentemente difuso (procedimento ordinário de controle), devendo o processo e o julgamento da ação direta submete-rem-se aos princípios assentados jurisprudencialmente.

Todavia, desde a República Velha, vozes já se levanta-vam contra o sistema difuso e, num nível pragmático, bus-cavam alertar para o que seria o risco de decisões contradi-tórias, na medida em que as decisões judiciais brasileiras, diferentemente das norte-americanas, não possuiriam “efei-to vinculante”, nem fariam precedente obrigatório.

Progressivamente, foram inseridos mecanismos que te-riam a finalidade de suprir o que seria uma deficiência do sis-tema brasileiro, a começar pela possibilidade do Senado reti-rar do quadro uma lei declarada inconstitucional, em última instância, pelo Supremo Tribunal, até a introdução do contro-le por via principal e, agora, a atribuição de efeito vinculante às decisões desse Tribunal em matéria constitucional.

Cada vez mais, à retórica das “decisões contraditó-rias” acrescentam-se outros argumentos “metodológicos” e “pragmáticos” acerca do controle de constitucionalidade. Primeiramente, argumenta-se, com base, sobretudo em Kel-sen, que não se pode sustentar a tese da nulidade absoluta ou de pleno direito da lei inconstitucional; o Direito moder-no é caracterizado por sanções organizadas que não se apli-cam automaticamente, não se podendo confundir o vício da inconstitucionalidade com a sanção de nulidade.

As consequências tiradas dessas afirmações seriam, primeiramente, a de que não haveria nenhuma questão de princípio que se pudesse reconhecer a fim de se concluir que uma decisão que anule uma norma inconstitucional o faria sempre com caráter retroativo. A lei é presumida constitucio-nal até que órgão competente, exercendo o papel de “legisla-

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dor negativo”, a considere inconstitucional e a anule. Segun-do, seria o Direito Positivo que definiria o aspecto temporal dos efeitos da decisão ou, na ausência de norma expressa, o próprio órgão, discricionariamente. E, terceiro, caberia tão--somente ao órgão competente anular a lei, centralizando a autorização para aplicar a sanção, não concedendo aos ci-dadãos um direito à desobediência: como vimos, em termos kelseniamos, quem não cumprir uma lei por considerá-la in-constitucional, assim o faria por sua conta e risco, já que o órgão competente poderia considerar a lei constitucional.

Além dos argumentos metodológicos e da já tradi-cional retórica das decisões contraditórias, acrescentaram--se outros de caráter pragmático. O esquema tradicional do controle não se adaptaria às necessidades do Estado Social. Seria necessário modular os efeitos temporais da decisão constitucional em razão dos novos fins e tarefas assumidos pelo Estado. A técnica da declaração de inconstitucionalida-de não seria adequada a um sistema jurídico que estabele-cesse programas a serem progressivamente implementados ou que possibilitassem a sua aplicação em diversos graus. Ou seja, a própria distinção constitucionalidade/inconstitu-cionalidade deveria, assim, ser revista, pois não consideraria situações intermediárias, tais como as de “omissões parciais do legislador”.42 Esse argumento, inclusive, é explicitamen-te apresentado pela Comissão especial que redigiu o ante-projeto que mais tarde veio a servir de base para a Lei Fede-ral no 9.868/99.43

42 MENDES; MARTINS. Controle concentrado de constitucionalidade, 2001.. À luz de uma concepção “construtiva” da interpretação constitucio-nal, esse argumento não procede: o caso seria de aplicar o princípio cons-titucional da igualdade e não simplesmente o de declarar, negando tutela jurisdicional adequada, uma omissão parcial. 43 MENDES,1999, apêndice.

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Uma vez que já tratamos, anteriormente, da questão acerca da justificação do controle de constitucionalidade, assim como acerca da caracterização constitucionalmente adequada dos efeitos temporais das decisões jurisdicionais em matéria constitucional no Brasil, poderemos analisar o que poderá significar, para o sistema jurídico brasilei-ro, a inclusão dos dispositivos previstos pela Lei Federal no 9.868/99, assim como a questão acerca de se esses dispositi-vos são constitucionais, à luz de uma compreensão constitu-cionalmente adequada do controle de constitucionalidade.

A inclusão de tais dispositivos representa a tentativa de uma alteração do sistema de controle jurisdicional de consti-tucionalidade das leis e de atos normativos que fere o modelo constitucionalmente previsto e coloca em risco o caráter de supralegalidade da Constituição, o que leva Ivo Dantas a afir-mar criticamente que “não temos dúvida em afirmar que esta-mos diante do Fim da Supralegalidade Constitucional, princí-pio que sempre caracterizou as Constituições Escritas.44

Ao atribuir ao Supremo Tribunal Federal a compe-tência para modular os efeitos de suas decisões, em sede do controle por via principal, admitindo a eficácia ex nunc; ao atribuir natureza constitutiva à decisão, assim como a possi-bilidade de que esta passaria a gerar efeitos quando o Tribu-nal assim o determinar (art. 27, da Lei Federal no 9.868/99); ou, então, a competência para conceder medida de natureza antecipatória (dita “cautelar”), em sede de ação declaratória de constitucionalidade (Emenda Constitucional no 3/93, art. 1o), “consistente na determinação de que os juízes e Tribu-nais suspendam o julgamento dos processos que envolvam a aplicação da lei ou do ato normativo objeto da ação até seu julgamento definitivo” (art. 21, da Lei Federal no 9.868/99), a

44 DANTAS. O valor da Constituição, 2001.

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Lei Federal no 9.868/99 fere uma interpretação constitucio-nalmente adequada de uma série de dispositivos constitu-cionais, dentre eles:

1. o princípio do Estado Democrático de Direito, fixa-do no art. 1o;

2. a aplicação imediata dos direitos fundamentais, §1o, art. 5o;

3. a imutabilidade dos princípios constitucionais, no que concerne aos direitos fundamentais e ao pro-cesso especial de reforma da Constituição, art. 5o, § 1o e §2o; art. 60, §4o;

4. o sistema ordinário de controle jurisdicional di-fuso da constitucionalidade (art. 97 e art. 102, III, a, b e c, da Constituição da República) que atribui competência a todo juiz ou tribunal para deixar de aplicar a lei inconstitucional, assim como o direito que dele decorre de o cidadão se recusar a cumprir a lei inconstitucional, assegurando-se-lhe, em úl-tima instância, a possibilidade de interpor recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal contra decisão judicial que se apresente contrária à Cons-tituição, nos termos do art. 102, III, a.

Como bem assinalava anteriormente, Gilmar Ferreira Mendes, em sua Tese de Doutorado,

Tanto o poder do juiz de negar aplicação à lei inconstitucional quanto a faculdade assegurada ao indivíduo de negar observância à lei inconstitucional demonstram que o constituinte pressupôs a nulidade da lei inconstitucional. Nessa medida, é imperativo con-cordar com a orientação do STF que parece reconhecer hierarquia constitucional ao postulado da nulidade da lei incompatível com a Constituição.45

45 MENDES. Jurisdição constitucional, 1999, p. 256.

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Por fim, cabe analisar um argumento que vem sendo apresentado por defensores da constitucionalidade da Lei Federal n. 9.868/99, fundado numa determinada compreen-são dos princípios constitucionais, desenvolvida por autores vinculados à chamada jurisprudência dos valores.

Essa posição não nega a hierarquia constitucional do princípio da nulidade da lei inconstitucional, mas acredita que, sendo os princípios “mandados de otimização”, esses terão sua aplicação sujeita a um princípio de ponderação, segundo o qual os princípios se diferenciariam das regras justamente porque, ao lado de questões de validade, haveria questões de peso, podendo, portanto, ser aplicados em di-ferentes graus, segundo circunstâncias fáticas e jurídicas.46

Assim, uma vez que também se reconhecesse status constitucional às razões de segurança jurídica e de relevante interesse social, o princípio da nulidade da lei inconstitu-cional incorreria numa operação de sopeso, que envolveria tais razões, e teria a sua aplicação afastada se, em face de um processo específico de controle concentrado, tais razões en-contrassem maior relevância do que a simples declaração de nulidade, com efeitos ex tunc.

A questão é que essa posição não considera o caráter especificamente deontológico dos princípios constitucio-nais. Os princípios, enquanto normas, diferenciam-se dos valores justamente porque estabelecem um vínculo de obri-gatoriedade e não de preferência ou de conveniência. Princí-pios estabelecem o que é devido e não o que é preferível. En-quanto tal, possuem um código binário e não gradual, não podendo ser cumpridos em maior ou menor extensão.47

46 ALEXY. Teoría de los derechos fundamentales, 2001, p. 81.47 HABERMAS. Facticidad y validez Sobre el Estado democrático de dere-cho en términos de teoría del derecho 1998, p. 326.

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Outro problema dessa concepção é o de confundir a perspectiva argumentativa do processo jurisdicional com a perspectiva argumentativa do processo legislativo. Enquan-to nesse último se colocam questões que venham, justamen-te, a justificar a validade das normas, naquele se coloca a questão acerca da adequabilidade de uma norma à solução de um caso concreto. Dizer que os princípios se distinguem das regras por eles colocarem, em seu processo de aplica-ção, questões de ponderação ao lado de questões de valida-de, que lhe possibilitam um cumprimento gradual, nada diz acerca da sua adequabilidade.48

Ao final, ao se reduzir o Direito a valores que, por sua natureza, não são homogêneos numa mesma sociedade, au-menta-se o risco da irracionalidade do processo jurisdicional de controle, transformando-o uma instância político-legis-lativa que se sobressairia ao próprio legislador democrático. Instaurar-se-ia, desse modo, uma ditadura de “boas inten-ções éticas e políticas” que desrespeitaria a cidadania e o le-gislativo, à medida que os reduziria a meros tutelados do Tri-bunal de cúpula, no caso do Supremo Tribunal Federal ou, no caso alemão, da Corte Constitucional Federal.

Como veementemente afirmado, embora a tarefa de garantir as condições processuais para o exercício das auto-nomias pública e privada dos cidadãos necessite de uma ju-risdição constitucional ofensiva, nos casos em que se deve impor o processo democrático e a forma deliberativa da for-mação política da opinião e da vontade, isso não pode fa-zer da jurisdição constitucional uma guardiã republicana do processo político e da cidadania. Uma interpretação do pro-cesso político, que seja adequada à complexidade das socie-dades atuais, não pode reduzir a política a um processo de

48 Mais uma vez, atotam-se os preceitos de Habermas e Günther. Sobre isso, ver CATTONI DE OLIVEIRA. Direito processual constitucional, 2001, p. 139.

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autorrealização ética, muito menos reduzir a Constituição a uma ordem concreta de valores. A formação democrática da vontade e da opinião, ao contrário do que pressupõe a tradi-ção republicana, não tira sua força legitimadora da conver-gência de convicções e de razões éticas, mas dos pressupos-tos comunicativos e dos processos de justificação normativa que possibilitam o aporte de razões e interesses de amplo es-pectro, de tal modo a possibilitar a seleção dos melhores ar-gumentos. A autonomia pública, assim como o Direito, não pode ser reduzida a uma autorrealização ética, o que justi-fica, segundo Habermas, o fato de a Teoria do Discurso não precisar revestir o processo político de condições excepcio-nais de “consciência e de virtude cívicas”.49 Assim, a jurisdi-ção constitucional não tem, portanto, que buscar sua legiti-midade em condições excepcionais. Ela pode permanecer no quadro de sua autoridade para aplicar o Direito, na certeza de que o processo democrático – que ela deve proteger – não precisa ser descrito como um estado de exceção.

É um imperativo reconhecer, portanto, a inconstitu-cionalidade da Lei Federal no 9.868/99, que pretende des-caracterizar o controle difuso, ao buscar alterar o artigo 482 do Código de Processo Civil (art. 29, da Lei Federal no 9.868/99), assim como inviabilizá-lo por força do seu referi-do art. 21 (que estaria fundado no art. 1o, da inconstitucional Emenda Constitucional no 3/93), e por intentar transformar as decisões em ação direta de inconstitucionalidade perante

49 A crítica se destina diretamente tanto a Bruce Ackerman e seu modelo dualista de democracia, quanto a Frank Michelman e sua caracterização do papel da Suprema Corte norte-americana, mas pode estender-se ao re-publicanismo em geral. Assim, afirma HABERMAS. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1997,, v. 1, p. 345, que: “A tradição republicana sugere um tal excepcionalismo, uma vez que liga a prática política dos civis ao ethos de uma comunidade naturalmente integrada. A política correta só pode ser feita por [cidadãos] virtuosos.”

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o Supremo Tribunal Federal num meio espúrio de suspen-são da ordem constitucional, ao pretender atribuir ao STF o poder de restringir o conteúdo e de fixar os efeitos tem-porais de suas decisões, flagrantemente invertendo a hierar-quia das fontes do Direito, ao poder determinar, à cidadania, à Administração Pública e aos demais juízes e tribunais, a obediência a leis e atos normativos declarados inconstitu-cionais pelo próprio Tribunal, com base em “razões [?] de segurança jurídica ou de excepcional interesse social” (art. 27, da Lei no 9.868/99).

Cabe concluir, enfim, com a seguinte advertência: se, do ponto de vista da reconstrução teorético-histórica e so-ciológica se pode dizer que a jurisdição constitucional, no marco do paradigma do Estado Social, tenha agido como le-gislador concorrente ou ao menos subsidiário, tal compreen-são não é correta, quer do ponto de vista teorético-filosófico adequado ao paradigma do Estado Democrático de Direito, aqui adotado, quer de um ponto de vista teórico-dogmático adequado ao Direito Constitucional brasileiro.

Assim, o exercício da jurisdição em matéria consti-tucional, com destaque para o controle concentrado, sob o risco de afetar a democracia, o pluralismo e os direitos fun-damentais, não deve assumir, do ponto de vista argumenta-tivo da aplicação jurídica no Estado Democrático de Direito, uma posição de poder legislativo, concorrente ou subsidiá-rio, e muito menos de poder constituinte permanente.

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Anexo 1

Principais teses desenvolvidas no capítulo Estatuto científico da Teoria da Constituição

Tópico 1 – A Filosofia como guardador de lugar da racionalidade científica e como intérprete mediador da modernidade cultural e da pluralidade do mundo da vida

Objetivo: Reafirmar as bases filosóficas da Teoria da Constituição.

Concepção Filosófica destacada: Filosofia do Direito Constitucional num diálogo com a Teoria Discursiva do Direi-to e do Estado Democrático de Direito, de Jürgen Habermas.

A Filosofia do Direito deve renunciar à pretensão de permanecer no papel de “indicador de lugar para a ciência e de tribunal da cultura como um todo”, próprio a uma teoria do conhecimento fundamentalista.

Os grandes sistemas filosóficos da Modernidade, pró-prios dos fins do século XVIII e XIX, sucumbiram frente às críticas externas por parte:

• da Hermenêutica Filosófica;• do Pragmatismo;• do Desconstrutivismo;• da Teoria dos Sistemas.A Filosofia, assim como a Ciência, continua a se diferen-

ciar da mera Literatura e a não se confundir com a Arte, em razão de seu discurso levantar “pretensões de verdade criticá-veis”, que podem ser confrontadas argumentativamente.

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Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira • 233

As razões para se duvidar dos “grandes sistemas filosó-ficos da Modernidade” são o fato de que eles não são mais ca-pazes de lidar construtivamente com a complexidade social e cultural que se acentuou na Modernidade independente-mente das reflexões empreendidas pelos filósofos, à margem da própria Filosofia, no terreno do mundo da vida.

A Filosofia da Consciência e a Filosofia da História fo-ram negadas, em toda a sua radicalidade, pelo aumento cada vez maior de complexidade da sociedade moderna.

Defende-se a concepção segundo a qual a Filosofia, as-sim como uma concepção comunicativa de racionalidade, reconstruída nos termos de uma “pragmática linguístico--universal” (formal), leva, inclusive, à noção segundo a qual racionalidade e normatividade estão implicadas mas não po-dem mais ser confundidas. Desta maneira:

• a Filosofia, num contexto pós-metafísico, deve as-sumir, no máximo, o papel de um “guardador de lu-gar” das ciências e o de intérprete mediador de uma produção cultural que se fez autônoma em face do mundo da vida.

• a Filosofia, num contexto pós-metafísico, deve to-mar como campo privilegiado de suas reflexões o da reconstrução das pretensões de validade subja-centes aos atos de linguagem que constituem a ma-lha entreaberta de uma ariscada integração social, sobre o pano de fundo de um mundo da vida plural, da crescente diferenciação sistêmica e de uma ace-lerada modernidade cultural autônoma.

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234 • Anexo 1

Tópico 2 – A Filosofia Prática Pós-Metafísica: Do uso pragmático, ético e moral da racionalidade prática linguisticamente concebida.

Racionalidade prática e racionalidade comunicativa não coincidem, apesar de estarem implicadas.

A racionalidade comunicativa se faz presente tanto ao lidarmos com a racionalidade prática, quanto com a estética e a racionalidade teórica.

À Filosofia Prática, num nível pós-metafísico de justifi-cação, cabe considerar as dimensões da racionalidade prática, seguindo, aqui, ainda que criticamente, a tradição kantiana:

• um uso pragmático (adequação de meios a fins); • um uso ético (referido a valores, a formas de vida e

a questões de vida boa);• um uso propriamente moral (referido ao ponto de

vista da Justiça, da supremacia do correto, do justo, sobre o bom e da imparcialidade e da universalida-de da validade moral em face do caráter particular, individual, grupal ou comunitário, da perspectiva ética).

É imperioso reconstruir as várias dimensões que assu-me a “autonomia” na Modernidade, que ultrapassam e não podem ser reduzidas:

• quer à autorrealização ético-política (Republicanismo); • quer à autodeterminação moral, ainda que coleti-

vamente exercida (Kantismo); • quer à escolha racional sob condições de razoabili-

dade (Liberalismo).

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Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira • 235

Tal complexidade da concepção moderna de autono-mia – livre-artítrio, escolha racional, autorrealização ética, autodeterminação moral, participação política – só é perce-bida em suas várias dimensões, como vimos, de uma pers-pectiva filosófico-jurídica propriamente dita.

Tópico 3 – Da Filosofia Moral à Filosofia do Direito

A Moralidade diz respeito ao “ponto de vista da justiça e da imparcialidade” e, como Moralidade pós-convencional (Kohlberg), diferencia-se da perspectiva das questões éticas (de vida boa), não porque os valores éticos não sejam susce-tíveis a uma discussão racional. Diferentemente das corren-tes ordoliberais, como é o caso do Libertarismo de Nozick, aqui se defende a possibilidade de discutir publicamente questões relacionadas ao bem-estar, embora se compreen-da, diferentemente de uma postura utilitarista, que não se podem sacrificar direitos em nome de uma pretensa linha de maior vantagem coletiva.

Moralmente válidas são as normas que possam mere-cer aceitabilidade racional universal, sem, contudo, descon-siderar o caráter histórico e limitado da capacidade de pre-visão humana.

Quanto à viabilidade de tal Moralidade, é necessário considerar, com Habermas, certos déficits de cognição, de motivação e de operacionalidade.

O Direito vem, de certa forma, preencher esses déficits próprios de uma Moralidade pós-convencional.

Enquanto a Moralidade é um “sistema simbólico”, “de conhecimento”, o Direito também é um “sistema de ação”.

O Direito conta com uma infra-estrutura institucional que o torna mais operativo, o que poderia ser analisado do pon-to de vista de sua relação com o poder, no caso, “administrativo”.

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236 • Anexo 1

A Moralidade abre ao Direito uma dimensão univer-salizante.

Reconhece-se, assim, não uma relação de subordina-ção do Direito à Moralidade, mas de complementaridade e de co-originalidade.

Filosofia Moral Filosofia do Direito

Possui como campo próprio de reflexão o assim chamado “procedural moral point of view”

Tem por tarefa a clarificação do “procedural democratic point of view”

Pergunta-se: “quando uma norma é moralmente válida ou justa (justificada argumentativo-moralmente por seus afetados?”

Pergunta-se: “quais as condições institucionais e lógico-argumentativas sob as quais uma norma jurídica é produzida validamente”?

Pergunta-se: “quando uma norma moralmente válida (justa) é adequada (argumentativo-moralmente) a uma situação concreta?”.

Pergunta-se: “quais as condições institucionais e lógico-argumentativas sob as quais se deve chegar a um juízo jurídico-normativo adequado a um caso concreto?”.

Argumentação de justificação e de aplicação morais (regidas internamente pelo princípio moral e pelo princípio moral de adequabilidade)

Argumentação de justificação e de aplicação jurídicas (institucionalmente garantidas).

Tópico 4 – Notas programáticas para uma justificação pós-metafísica da Filosofia do Direito como Filosofia do Direito Constitucional

O papel da Filosofia do Direito consiste fundamen-talmente na reconstrução da autocompreensão normativa do Estado Democrático de Direito, o que envolve a reflexão

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Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira • 237

acerca da chamada tensão interna ao Direito moderno entre facticidade (pretensão de coercibilidade) e validade (legiti-midade democrática).

A tensão interna ao Direito moderno entre facticidade e validade se reflete:

• na dupla dimensão da validade jurídica;• na chamada geração da legitimidade através da le-

galidade. • por um lado, a pretensão democrática segundo a

qual os destinatários das normas jurídicas devem ser seus próprios autores e a pretensão de juízos ju-rídicos de aplicação imparcial das normas jurídicas (legitimidade);

• por outro, a pretensão de coercibilidade legítima do Direito (“vigência” e “efetividade” jurídicas).

O campo problemático da Filosofia do Direito, assim considerada, desdobra-se:

• numa reconstrução das condições institucionais de um processo legislativo democrático;

• numa reconstrução de uma Teoria da Interpretação e da aplicação adequadas (imparciais) do Direito;

• numa reconstrução do estatuto científico da Ciên-cia do Direito como “guardador” e não como “indi-cador” de lugar.

• Sobre o pano de fundo das condições de comple-xidade e pluralismo da sociedade contemporânea, há de se exigir da Filosofia do Direito uma abertura mais que necessária:

• à Filosofia Prática (Ética, Política, Social e Moral); • à Ciência do Direito e ao próprio Direito, a fim de

que a Filosofia do Direito seja capaz de administrar os riscos próprios, que pode incorrer, de tornar-se

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238 • Anexo 1

infensa à realidade dos processos políticos e sociais, ao pretender assumir um “enfoque normativamen-te orientado”.

Sob a emergência da atual crise paradigmática do Di-reito, que leva, mais uma vez, à necessidade da pergunta acerca de como considerar a relação entre Estado de Direito e Democracia, as questões jurídicas se apresentam funda-mentalmente como questões constitucionais.

A Filosofia do Direito é fundamentalmente uma Filo-sofia do Direito Constitucional, até mesmo porque hoje, sob as condições de uma sociedade moderna avançada e que se fez autorreflexiva, só faz sentido uma pergunta acerca dos “fundamentos do Direito” (sic) como pergunta acerca da jus-tificação da constitucionalidade (democrática) do Direito.

Tópico 5 – A Teoria da Constituição como chave interpretativa do Direito Constitucional

Filosofia do Direito equivale a Filosofia do Direito Constitucional e Teoria do Direito deve ser compreendida fundamentalmente como Teoria da Constituição.

Não confundir o aspecto crítico, reflexivo e problematizan-te da Teoria da Constituição com a dogmática constitucional.

A Teoria da Constituição cumpre um papel central, como chave interpretativa do Direito Constitucional Demo-crático e, por isso, de todo Direito.

Tópico 6 – Origens da Teoria da Constituição

Necessidade de superação do enfoque e dos dilemas da Teoria do Estado;

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Necessidade de autonomia da análise constitucional – percepção presente em Carl Schmitt frente às análises pró-prias da Teoria do Estado de Laband, Kelsen e Jellinek.

Tentativa de se realizar uma alteração profunda de pers-pectiva epistemológica, o enfoque problematizante típico da Teoria da Constituição.

Tópico 7 – Campo problemático da Teoria da Constituição

Qual seria hoje, portanto, o campo problemático da Teoria da Constituição?

O que, precisamente, a diferenciaria, por exemplo, da Teoria Geral do Direito Público, das análises francesas das Institutions Politiques e da Teoria do Estado?

Todas essas disciplinas possuem algo em comum: o es-tudo do político da perspectiva de sua institucionalização ju-rídico-social.

Teoria Geral do Direito Público

Trata tal temática a partir de uma perspectiva interna, ou seja, desenvolve uma reflexão acerca de quais seriam os princí-pios jurídico-públicos reconhecidos pelas diversas ordens ju-rídicas e que estruturariam o assim chamado Direito Público.

Pretende reconstruir conceitualmente os institutos constitucionais em suas características mais abstratas, genéri-cas e permanentes, abstraídas da rica diversidade do constitu-cionalismo histórico em que os mesmos se densificam.

Cria o Direito Constitucional Geral.

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240 • Anexo 1

Problema: assenta-se sempre numa certa distinção entre esfera pública e esfera privada que, ao contrário de ser algo na-tural, embora por vezes naturalizado, é construção histórico--social, podendo ser interpretada e compreendida através de diversos olhares paradigmáticos.

Instituições Políticas

Analisa a chamada institucionalização do poder político de modo externo, de uma perspectiva a partir da qual um ob-servador sociológico ou cientista político poderia descrever ou compreender a conformação das forças político-sociais pelo Direito Público, principalmente pelo Direito Constitucional.

A tentativa de superação da tensão entre um enfoque normativo e um enfoque empírico se faria, aqui, presente.

Problema: é temerário para o Direito Constitucional, de-vido ao risco sempre presente de se confundir, através desse enfoque, validade jurídico-normativa e facticidade social, le-gitimidade com mera legitimação.

Teoria do Estado

Centra suas análises, acerca da institucionalização jurí-dico-social do poder político, no Estado.

O Estado é compreendido como o núcleo de organiza-ção política da totalidade da sociedade.

Todas as relações sociais teriam, assim, uma referência à estrutura do Estado, visto como ponto de convergência da vida social e das atividades humanas.

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Problema: tornou-se mais que problemática com o au-mento cada vez maior de complexidade das sociedades moder-nas, com o crescente impacto do multiculturalismo, da globa-lização e dos desafios colocados pela formação de novos blocos econômicos e políticos, como é o caso da União Europeia.

Problema: a anacronicidade desse enfoque torna-se ain-da mais evidente se levarmos em conta o próprio desenvolvi-mento do instrumental teorético-análitico da sociologia con-temporânea a partir de Talcott Parsons.

Problema: não é mais possível compreender o Estado como a corporificação e a instância única de estabilização de uma identidade ética, de uma dada forma de vida e de certos padrões de vida boa (concepção ainda presente em Smend, Schmitt e mesmo em Loewenstein).

Problema: não há mais, pois, como restringir a esfera pública ao Estado, como atestam os chamados direitos funda-mentais de terceira geração.

Problema: o público tem que ser visto hoje como uma di-mensão bem mais complexa do que simplesmente a de um ló-cus estatal, e sim como dimensão discursiva de mobilização e ex-pressão dos diversos fluxos comunicativos, políticos, artísticos, científicos, enfim, culturais; o que, inclusive, requereu a profun-da revisão por que passa toda a teoria jurídico-processual.

Problema: a autoconsciência por parte de uma co-asso-ciação de cidadãos livres e iguais perante o Direito requer o reconhecimento do pluralismo social e cultural o que é incom-patível com a homogeneidade própria do Estado-Nação, ainda presente em diversos teóricos do Estado atuais.

Problema: não há mais como recorrer à tradição liberal e compreender a sociedade em termos meramente dualistas, Estado, de um lado, sociedade civil, reduzida à esfera do mer-cado e da família, do outro. Com base numa teoria discursiva da democracia, há que se reconstruir, por um lado, tanto um

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242 • Anexo 1

conceito de esfera pública que não se reduza ao Estado, quan-to, por outro lado, um conceito de sociedade civil que não se reduza ao mercado e à família, em que os processos societários sejam encarados de modo mais amplo.

Em outras palavras, o desafio atual da universalização dos Direitos Fundamentais e da base de legitimidade das de-cisões políticas, inclusive em face da formação de Comunida-des de Direito, de base multicultural, está cobrando, mais uma vez, a devida distinção entre Direito e Ética.

O Direito deve fundar-se tão somente no princípio de-mocrático, não mais compreendido como um mecanismo li-beral de decisão majoritária ou a partir de uma pretensa “von-tade geral” republicana, mas como institucionalização de processos estruturados por normas que garantam a possibi-lidade de participação discursiva dos cidadãos no processo de tomada de decisões.

Tópico 8 – Teoria da Constituição e giro linguístico.

Concepção a ser abandonada: • tradicionalmente, os temas do Direito Constitucio-

nal têm sido percebidos e interpretados por teorias jurídicas especializadas em questões normativas, através da identificação de contrastes ou hiatos entre um Direito Constitucional que se pretende legítimo e realidades político-sociais e econômicas recalci-trantes, um ideal a ser buscado e uma crua realidade. Essa perspectivaperpetua a chamada teoria dos dois mundos, o mundo real e o mundo ideal.

• o problema desta visão tradicional é não conseguir perceber que o próprio modo como propõem o pro-blema da legitimidade/efetividade constitucionais, o hiato entre ideal e real, contribui ainda mais para

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o agravamento daquilo que se pretende denunciar. Ou seja, ao idealizarem tanto a realidade político--social dos países meridionais e orientais na for-ma quase-natural de um obstáculo intransponível, quanto ao sobrecarregarem os princípios constitu-cionais modernos, desconsideram exatamente o caráter vivido, ou melhor, o caráter hermenêutico das práticas jurídicas cotidianas.

Concepção proposta: • o Direito, como afirma Ronald Dworkin, é uma prá-

tica social, interpretativa e argumentativa, de tal modo que não há como compreendê-la da perspec-tiva de um observador externo que não considera o ponto de vista normativo dos implicados, das pre-tensões jurídicas levantas pelos próprios partici-pantes dessa prática;

• a realidade social é uma construção dinâmica, her-menêutica, histórica, social, da qual o Direito faz parte;

• o Direito não está pairando estaticamente sobre uma sociedade estática. E, como tal, deve lidar, in-clusive, com o risco próprio de ele mesmo de ser descumprido a todo e qualquer momento;

• uma reconstrução paradigmática do Direito possibi-lita reconhecer a existência de um horizonte histó-rico de sentido, ainda que mutável, para a teoria do Direito e para a prática jurídica concreta, que pres-supõe uma determinada “percepção” do contexto social do Direito, a fim de que se possa compreender em que perspectiva as questões jurídicas devem ser interpretadas, para que o Direito possa cumprir seu papel nos processos de integração social;

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244 • Anexo 1

• paradigmas do Direito constituem internamente a prática e a teoria do Direito, orientando seus des-dobramentos;

• o reconhecimento desses paradigmas exige a supe-ração da forma tradicional de lidar com questões normativas, rompendo com a dicotomia real/ideal, assim como exige uma reflexão hermenêutica crítica em face de nós mesmos, que não pode desconsiderar as pretensões normativas concretamente articula-das pelos próprios envolvidos em questões jurídicas;

• com base numa Teoria Discursiva do Direito e da Democracia, que não se deixa vincular a um único ponto de vista disciplinar, mas, pelo contrário, per-manece aberta a diferentes pontos de vista meto-dológicos (participante versus observador), a dife-rentes objetivos teóricos (explicação interpretativa e análise conceitual versus descrição e explicação empírica), a diferentes papéis sociais (do juiz, dos políticos, dos legisladores, dos clientes e dos cida-dãos) e a diferentes atitudes pragmáticas de pes-quisa (hermenêuticas, críticas, analíticas et.);

• esta perspectiva apontada tem por finalidade que uma abordagem normativa não perca o seu contato com a realidade, nem uma abordagem objetiva ex-clua qualquer aspecto normativo, mas permaneçam em tensão, a perspectiva da Teoria do Direito e da Constituição que privilegia o aspecto normativo de-verá passar por um giro reconstrutivo, se quiser levar a sério a tensão presente no Direito entre facticidade e validade, assim como o papel desempenhado pelo Direito nos processos de integração social.

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Deve-se abandonar a perspectiva tradicional de uma Constituição real e uma Constituição formal que é cega à tensão entre facticidade e validade e, neste ponto, percebe--se um hiato.

Uma renovada Teoria da Constituição deverá manter--se aberta, a um só tempo:

a. a uma sociologia reconstrutiva, que busca identi-ficar, compreender e reconstruir os fragmentos e vestígios dos processos de racionalização social, cultural e subjetiva já presentes e em curso nas so-ciedades modernas, assim como identificar, com-preender e reconstruir os conteúdos jurídico-nor-mativos que já se encontram inscritos, ainda que parcialmente, na facticidade social dos processos político-sociais;

b. a uma filosofia prática pós-metafísica, cuja tarefa consiste no esclarecimento do ponto de vista mo-ral e do processo democrático, da análise das con-dições necessárias aos discursos e às negociações racionais.

Tópico 9 – Dimensões da Teoria da Constituição

A Teoria da Constituição deve assumir as seguintes perspectivas:

a. a perspectiva interna ao Direito Constitucional ao possibilitar uma “dogmática geral (adequada) do Direito Constitucional” (Lucas Verdú);

b. a perspectiva externa da relação entre facticidade social e autocompreensão do Estado Constitucio-nal ao se consubstanciar em uma teoria pós-onto-lógica da Constituição.

A perspectiva simultânea da tensão interna (a) e exter-na (b) ao Direito Constitucional, requer precisamente que a Teoria da Constituição se assuma como uma teoria crítico-

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246 • Anexo 1

-reflexiva da Constituição, “problematizadora e explicitado-ra de pré-compreensões” (Canotilho) e de paradigmas acer-ca da sociedade, da política e do Direito.

A Teoria da Constituição deve assumir a perspectiva do sistema jurídico-constitucional e analisar a tensão interna en-tre facticidade e validade, ou seja, entre positividade e legiti-midade do Direito, reconstruindo os princípios, as regras, os procedimentos, a compreensão, a justificação e a aplicação desses, resgatando a normatividade constitucional e a função primordial do Direito moderno, presente no Direito Consti-tucional de modo ímpar: a função de integração social, numa sociedade em que tal problema só pode ser enfrentado e so-lucionado pelos seus próprios membros, na medida em que instauram um processo em que se engajam na busca coope-rativa de condições recorrentemente mais justas de vida, no qual questões acerca de sua autocompreensão ético-política e de sua autodeterminação prático-moral, além de seus interes-ses pragmáticos, devem encontrar vazão, mediante, inclusive, a institucionalização de formas discursivas e de negociação no nível do Estado.

Da perspectiva externa da tensão entre facticidade so-cial e autocompreensão do Estado Constitucional, a Teoria da Constituição deve alterar seu enfoque interno ao Direito e complementá-lo através do diálogo com as teorias da socie-dade e com as teorias políticas, a fim de que possa ultrapas-sar as abordagens tradicionais acerca da efetividade do Direito Constitucional, quer no sentido de uma classificação ontoló-gica da Constituição (Karl Loewenstein), quer no sentido da eficácia social das normas constitucionais (José Afonso da Sil-va), algo de fundamental importância não somente em países como o nosso de pouca tradição democrática e constitucional.

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A Teoria da Constituição pode representar importante aporte para discussões institucionais-instituintes, na medida em que se explore o caráter pragmático das reflexões teoréti-co-constitucionais.

Portanto, há a necessidade de o operador jurídico assu-mi-la como uma teoria político-constitucional em sentido fra-co: o teórico da Constituição não deve assumir a atitude per-formativa do doutrinador iluminado, a ditar soluções para uma massa de ignorantes, já que admitir isso seria, a essa altura de nossas reflexões, uma grande incoerência.

Uma teoria político-constitucional pode fornecer ao ju-rista, no máximo, a perspectiva do operador do Direito com-prometido com o desenvolvimento constitucional que, no seu papel de intelectual e não de especialista, pode contribuir e participar das controvérsias político-constitucionais através das quais todos os co-associados jurídicos, inclusive ele, como cidadãos, podem refletir e definir sua vida em comum.

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Anexo 2

A) Quadro comparativo de Direito Pré-Moderno e Direito Moderno

Direito Pré-Moderno Direito Moderno• Sociedade estamental

• Privilégios, prerrogativas, de-veres e obrigações atribuídos às pessoas enquanto membros de determinado estamento.

• Status ou condição definidos em razão do lugar de nascimento.

• Direito é coisa-devida.

• Para cada estamento, uma or-dem normativa. Pluralismo de fontes jurídicas

• Os pilares do Direito pré-moderno:

a) Direito costumeiro – funda-mento de legitimidade: tradição;

b) Direito canônico – fundamento de legitimidade: religião;

c) Direito do príncipe – fundamen-to de legitimidade: autoridade;

• Em que a e b formam o chamado Direito Natural tradicional;

• Sociedade funcionalmente dife-renciada.

• Autonomização das esferas nor-mativas: religião, direito e moral. Ética reflexiva.

• Direito – características “for-mais”: positivado (expressão de deliberação pública), histórico, modificável, contingente e coer-citivo, ao mesmo tempo que ga-rantidor das liberdades.

• Relação entre a modificabilida-de/coercitibilidade do direito po-sitivo e o modo de positivação ca-paz de gerar legitimidade: se as normas coercitivas remontam a decisões modificáveis do legisla-dor político, liga-se a isso a exi-gência de legitimação segundo a qual este direito deve não apenas garantir iguais direitos de liber-dade privada, mas também de liberdade política, de tal modo que os destinatários das normas possam reconhecer-se como seus co-autores. O processo legislati-vo deve cumprir essa exigência.

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Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira • 249

B) Quadro Comparativo: Paradigma de Direito e de Estado.

Paradigma de Direito e de Estado (1)

Soci

edad

e

Direito Formal burguês do Esta-

do Liberal

Direito materia-lizado do Estado

Social

Compreensão pro-cedimental do Es-tado Democrático

de Direito

• Dividida em indivíduos que nascem livres e iguais.

• Esfera privada: privacidade, família, mer-cado (trabalho e empresa). Sociedade civil como sistema das necessida-des (Marx).

• Esfera pública: Sociedade política. Fóruns oficiais do Estado.

• Dividida em grupos, classes, categorias e co-letividades com valores, necessi-dades e interes-ses diferentes e/ou conflitantes.

• Redefinição das esferas pública e privada. Família, trabalho e empresa possuem um caráter público e uma função social.

• Os processos de individuação e de socialização são interdepen-dentes, de tal modo que não se podem redu-zir os conflitos sociais a interin-dividuais ou a coletivos.

• O público é mais amplo que o estatal. E o privado maior do que o mer-cado.

• Sociedade civil formada por grupos, movimentos e organizações que visam à formação e à mobilização da opinião pública.

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250 • Anexo 2

Paradigma de Direito e de Estado (2)

Dir

eito

Direito Formal burguês do Estado

Liberal

Direito materializa-do do Estado Social

Compreensão procedimental do Estado Democrático de Direito

• Sistema fechado, estruturalmente unitário, coerente e completo de regras claras e precisas, capazes de prever suas hipóteses de aplicação.

• Direito Privado como direito natural.

• Direito público como convenção.

• Garantia de certeza e de segurança.

• Limite racional do exercício dos poderes públicos e compatibiliza-ção das liberda-des individuais.

• Constituição como estatuto jurídico do Estado.

• Sistema fechado, funcionalmente unitário, coerente e completo de regras, políticas, valores e finalidades. Publicização do Direito.

• Reconhecimento do caráter convencional de todo Direito. Direito como instrumento do Estado.

• Constituição como estatuto jurídico-político do Estado e da sociedade.

• Constituição como medida material da sociedade.

• Constituição como ordem concreta de valores.

• Constituição programática.

• Sistema aberto, dinamicamente constituído de regras, princípios e políticas.

• Direito como garantia de direitos.

• Constituição como ga-rantia da equiprimordia-lidade das autonomias pública e privada.

• Constituição como pro-cesso público de aprendi-zado de longa duração.

• A Constituição não pode ser reduzida a um mero instrumento jurídico-político (EL), mas também não pode ser vista como medida material da sociedade (ES).

• A Constituição como garantia da relação interna entre ED e democracia.

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Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira • 251

Paradigma de Direito e de Estado (3)

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Direito Formal burguês do Estado

Liberal

Direito materializado do

Estado Social

Compreensão procedimental do

Estado Democrático de Direito

• Direitos individuais de defesa da esfera privada contra a pública.

• Direitos a prestações negativas do Estado.

• Liberdade: fazer tudo o que as leis não proíbam ou o que não prejudique a outrem.

• Igualdade perante a lei.

• Defesa da propriedade privada.

• Segurança da ordem pública. Cidadão- proprietário.

• Materialização dos direitos e reconhecimento do caráter social de todo direito.

• Direitos a prestações positivas do Estado.

• Dependência dos direitos em face das políticas sociais, econômicas e culturais.

• Reserva do possível e programaticidade.

• Liberdade dependente de condições materiais.

• Igualdade material ou de oportunidades.

• Políticas de redistribuição. Propriedade condicionada à função social.

• Segurança como seguridade social.

• Cidadão-cliente do Estado. Cidadão-trabalhador.

• Relação interna entre autonomia pública e privada.

• Indivisibilidade e interdependência entre os direitos fundamentais.

• Direitos fundamentais como constitutivos da democracia.

• A medida da igualdade e da diferença deve ser definida com a participação dos destinatários das políticas nos processos deliberativos.

• Políticas de redistribuição estão vinculadas à luta por reconhecimento.

• Cidadão-participante dos processos público-deliberativos.

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252 • Anexo 2

Paradigma de Direito e de Estado (4)

Esta

do

Direito Formal burguês do Estado

Liberal

Direito materializado do Estado Social

Compreensão procedimental do Estado Democrático de Direito

• Estado de Direito como racionalização do poder político.

• Princípio da sepa-ração dos poderes como forma de li-mitação recíproca dos poderes estatais e do Estado em face da sociedade.

• Estado garantidor da ordem pública.

• Legislativo: estabe-lecimento de leis gerais e abstratas.

• Executivo: admi-nistração pública, aplicação da lei ex oficio, garantia da ordem pública.

• Judiciário: vincula-ção estrita à lei.

• Devido processo formal: princípio da inércia, do juiz natural, do pedido, tutelas repressivas, sentenças declara-tórias, formalismo, coisa das partes.

• Estado como regu-lador, controlador e interventor político--econômico e social.

• Estado garantidor do bem-estar social.

• Estado prestador de bens e de serviços.

• Redefinição do prin-cípio da separação de poderes em fun-ções do Estado.

• Deslocamento de competências legisla-tivas para o Executivo.

• Leis-quadro, dele-gações legislativas, medidas provisórias e decretos-leis.

• Fiscalização legislati-va da administração.

• Comissões parla-mentares.

• Papel concretizador da jurisdição.

• Devido processo material: direção judicial, tutelas de urgência, senten-ças autoexecutivas, instrumentalismo, coletivização de demandas, escopos metajurídicos do processo.

• Estado como a institu-cionalização de canais de participação e de delibe-ração pública.

• Redefinição da separação de poderes.

• Centralidade do processo legislativo democrático.

• Administração pública dialógica ou participativa.

• Co-responsabilidade so-cial na garantia de direitos e no processo de planeja-mento, gestão e execução de políticas públicas.

• Judiciário e aplicação principiológica do di-reito.

• Controle judicial de polí-ticas públicas.

• Devido processo e ga-rantia de decisão parti-cipada.

• Co-originalidade entre processo individual e co-letivo.

• Redefinição da sobera-nia estatal e da soberania popular: os compromis-sos internacionais com os direitos humanos e o reconhecimento do plu-ralismo social e cultural razoável (Rawls).

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Anexo 3

Quadro comparativo dos sentidos de Constituição na História

Perí

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cons

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Ant

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Sentidos atribuídos à Constituição

• Contexto de crise da Pólis.• O objetivo comum era a busca por uma forma de gover-

no ideal, que garantisse a unidade e o desenvolvimento da comunidade política.

• Forma de governo, nesse contexto, não tem o significa-do com o qual modernamente é entendida. Antes, a ex-pressão compreendia uma ordenação política e social em que a comunidade e seus poderes públicos eram vis-tos como indivisíveis e reflexivos entre si, um sistema de organização e controle dos distintos componentes de uma sociedade historicamente dada (Fiovaranti).

• À forma de governo que buscavam, a essa ordenação do todo social e de seu reflexo nos poderes públicos, dava--se o nome de politeía, passível de ser traduzida como constituição.

• Sentido pejorativo atribuído à forma de governo demo-crática

• Governos marcados pela violência e exclusão na parti-cipação política.

• Emerge o mito da patrios politeía, a constituição dos an-tepassados (Fiovaranti) consolidada progressiva e, len-tamente, caracterizando-se como compositiva, plural e equilibrava numa mesma estrutura social os compo-nentes monárquico, aristocrático e democrático, gozan-do de estabilidade e duração.

• Mais importante do que ser antiga, a constituição dos antigos trazia em si a virtude de ser uma constituição mista, sendo essa a forma de governo ideal que se pro-curava reconstruir.

• A constituição aparece como um projeto de disciplina social e política, praticamente desprovida de um senti-do jurídico-normativo.

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254 • Anexo 3

Perí

odo

de lo

nga

dura

ção

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Idad

e M

édia

• A estrutura da constituição mista é preservada, mas apresenta novos sentidos.

• Continua sendo entendida como autorrepresentação da sociedade e de seus componentes fundamentais.

• Idade Média a toma como uma ordem jurídica dada, não como algo a ser buscado, mas sim preservado.

• A Constituição possuía o papel fundamental de limi-tar intrinsecamente os poderes públicos reconhecidos como existentes no meio social.

• Na Idade Média, as relações econômicas e patrimoniais eram o ponto de apoio sobre o qual se sustentava a le-gitimidade da ordem jurídica dada que compreendia a constituição.

• Na Constituição Medieval, emerge com destaque seu teor normativo, como ordem jurídica dada, compreen-dida pelo conjunto amplo de acordos e pactos, de na-tureza privada, em sua maioria, internos à própria sociedade e destinados à manutenção da estrutura es-tamental vigente.

Era

Mod

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• Supremacia Constitucional.• Jurisdição Constitucional.• Teoria do Poder Constituinte.• Documento solene contendo os direitos fundamentais

do cidadão.• Controle de Constitucionalidade.• Rigidez Constitucional.

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Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira • 255

Quadro comparativo da Teoria do Poder Constituinte

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Compreensão do Poder Constituinte (1)

Sieyès substitui o monarca absoluto por um outro ente dotado de igual caráter: a Nação, entendida como um macro-sujeito, formado pela multidão do povo, desprovido de qualquer organização legal e acima de qualquer lei. Assim como ocorria com os reis, dela deveriam derivar tanto a origem do poder quanto a autoridade legal (Arendt). Como totalidade social, sutil e ideologicamente li-mitada por Sieyès ao Terceiro Estado, ela possuía o poder, capacidade de agir, e a autoridade, capacidade de justificar seus atos. Seu poder era ilimitado e sua vontade era a lei (Sieyès). Portanto, a ela cabia o poder constituinte, distinto de todos os demais poderes e origem de todos eles, chamados, então, poderes constituídos.O poder constituinte surge, na França, como uma verdadeira tentativa de (re)fundação da autoridade política que se havia perdido no seio da Modernidade (Arendt). Isto é, na impossibilidade de recorrer à vontade suprema de um ab-soluto religiosamente transcendente que legitimasse o poder político e a auto-ridade das leis, a teoria do poder constituinte apresenta a Nação, um novo ab-soluto, igualmente transcendente, mas não mais religioso em sentido estrito.

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O poder constituinte na América não repousava num macrossujeito não cons-tituído por lei alguma nem organizado de maneira alguma, uma Nação sobe-rana que tudo pode, menos deixar de ser Nação (Sieyès). Ao contrário, o poder constituinte residia nos corpos políticos constituídos e organizados pela força do acordo comum.Os colonos possuíam uma consciência singular de que o poder e a autorida-de não deveriam derivar de uma mesma fonte, algo que faltara a Sieyès e à sua teoria do poder constituinte. Sabiam que a existência fática das leis adviria do poder das assembleias locais, mas a autoridade delas, o elemento que as fazia válidas e estáveis no tempo, deveria proceder de uma outra fonte (Arendt).Os “Pais Fundadores” recorreram à Antiguidade, principalmente às concep-ções romanas acerca do papel da fundação de um novo corpo político. Con-seguiram enxergar que, no próprio ato de fundação, repousava a autoridade da nova república (Arendt). Isso poderia ser atestado pela raiz latina da pa-lavra “autoridade” (o verbo augere), que trazia em si as ideias de aumento e desenvolvimento (Arendt). Ou seja, autoridade significava aquela expansão a que todo corpo político recém-fundado estava destinado, expansão que se dava também através da elaboração das leis, ficando claro que o ato de fundar carre-gava consigo a fonte da autoridade legal, da autoridade jurídico-política.

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256 • Anexo 3C

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rg Compreensão do Poder Constituinte (2)

Na linha do juspositivismo francês do século XIX, o autor negaria natureza jurídica ao poder constituinte originário e trabalharia apenas com o poder constituinte derivado, analisado dentro da lógica conceitual da teoria dos órgãos do Estado.

Car

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Atribuiria um caráter existencial e decisionista ao poder constituinte. Reconheceria a possibilidade tanto de um poder constituinte democráti-co quanto monárquico, que seriam igualmente legítimos de acordo com o princípio vigente na organização política da sociedade, respectivamente, princípio democrático ou princípio monárquico.Não limitava a atuação do poder constituinte ao momento de criação de uma constituição. Sua concepção de constituição a entendia não como conjunto de leis, às quais chamava leis constitucionais, nem como um sis-tema de garantias ou princípios de organização do poder. Para ele, a cons-tituição correspondia à decisão fundamental de um povo sobre a forma de existência política de seu Estado.

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Não é possível que um povo não-organizado politicamente atue como po-der constituinte. Isto é, não é possível uma conceituação meramente exis-tencial e decisionista deste. O poder constituinte exigiria uma organização prévia dos indivíduos, or-ganização essa que permitiria a ação conjunta da qual ele então resultaria. Somente se pode falar em poder constituinte quando a totalidade da orga-nização social decide e age de maneira unitária.

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O poder constituinte, embora não referido expressamente, aparece como algo latente na realidade social, constantemente agindo na dinâmica so-cial, podendo, a qualquer tempo, contrariar as disposições constitucio-nais, até mesmo sem o fazer mediante alteração de seus textos normativos. Perde sentido a distinção entre poder constituinte e poderes constituídos. Mais uma vez, disso decorre uma perspectiva que gera imensa insegurança constitucional e abre espaços para discursos e justificativas autoritárias.

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Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira • 257C

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n Compreensão do Poder Constituinte (3)

O poder constituinte e o ato constituinte por ele exercido aparecem como premissa menor de um silogismo. Como premissa maior, há a nor-ma fundamental, que diz que a constituição positivada pelo poder cons-tituinte, através do ato constituinte, deve ser obedecida. A conclusão é de que a constituição, por ter sido estabelecida pelo poder constituinte de acordo com a norma fundamental, é valida e deve ser obedecida. A norma fundamental permanece como fundamento de validade da constituição e de toda a nova ordem jurídica, ao passo que o poder cons-tituinte e o ato constituinte, existentes na esfera do ser, mantêm-se como mera condição daquela validade.

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n Mantém a distinção entre poder constituinte e poderes constituídos, principalmente entre poder constituinte originário (poder constituin-te em sentido estrito) e poder constituinte derivado (poder constituído, em verdade), afirmando que, também se tratando deste último, é reco-mendável ser exercido da maneira mais democrática possível, a partir da participação de todos aqueles a quem ele chama detentores oficiais do poder (governo, parlamento, tribunais judiciais e eleitorado), cabendo sempre ao povo a decisão final.

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A titularidade do poder constituinte é hoje entendida como pertencente ao povo como instância plural de legitimidade (Canotilho;; Quadros De Magalhães; Cacralho Netto e não como massa homogênea de indivíduos. Sua natureza jurídica é reconhecida (Canotilho; Quadros De Magalhães), bem como seu caráter de excepcionalidade (Quadros de Magalhães), de modo a evitar uma repetição da instabilidade presente no constituciona-lismo francês de fins do século XVIII e de todo o século XIX. Embora não haja dúvidas de que o poder constituinte não se limita, do ponto de vista jurídico, pela ordem com a qual rompe, reconhece--se que ele não é plenamente ilimitado, havendo compromissos éticos, culturais e sociais que devem ser respeitados (Cattoni de Oliveira; Qua-dros de Magalhães). A esses, cabe, mais do que nunca antes, acrescentar compromissos ambientais e bioéticos. Afirma-se a distinção entre poder constituinte originário, poder consti-tuinte derivado e demais poderes constituídos, cabendo a estes dois úl-timos uma atuação apenas dentro das possibilidades traçadas por aque-le primeiro (Cattoni de Oliveira).

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Anexo 4

Quadro comparativo das Concepções de Interpretação à luz dos paradigmas constitucionais

Concepções de Interpretação à luz dos paradigmas constitucionais

Paradigma Liberal Paradigma Social Paradigma Procedimental

Interpretar é descobrir, é determinar o sentido dos textos normativos.

Interpretar é decidir sobre o sentido dos textos nor-mativos.

Interpretar é atribuir sen-tido normativo a textos e a equivalentes a textos. As-sim, a interpretação dos casos à luz do Direito e do Direito à luz dos casos se dá sobre o pano de fundo de pré-compreensões e de paradigmas em disputa.

Partindo-se do pressu-posto da racionalidade do legislador ou do próprio Direito, visto como um sistema unitário, coeren-te e completo de regras capazes de prever suas hi-póteses de aplicação: a) a interpretação é uma atividade de conhecimento; b) a interpretação é uma atividade excepcional que se torna necessária apenas em casos de aparentes an-tinomias ou de lacunas; c) a aplicação é uma ativi-dade silogística, vinculada ao direito pré-existente.

Partindo-se do pressupos-to segundo o qual o legisla-tivo não é capaz de prever todas as hipóteses de apli-cação, reconhece-se um poder discricionário aos aplicadores para decidir em face de situações de re-lativa indeterminação:a) a interpretação é uma ati-vidade cognitivo-volitiva;b) a interpretação é uma ati-vidade necessária à aplicação;c) a aplicação é uma ativi-dade decisória, de produ-ção normativa, e de caráter discricionário (apenas em parte vinculada).

Parte-se do pressuposto segundo o qual a histó-ria institucional do Direi-to deve ser reconstruída à luz dos princípios jurídi-cos que dão sentido a essa história. Ou seja, para além de um conjunto de regras, o Direito é um em-preendimento político, cujo sentido é atribuído pelos princípios normati-vos.

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Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira • 259

O aplicador se utiliza das regras e métodos para so-lucionar todo e qualquer caso (afinal, o que não é proibido é permitido).

As regras e os métodos de interpretação só são capa-zes de levar o aplicador a possibilidades de decisão. Quem decide é o aplicador dentre essas possibilidades (ao menos em princípio).

A compreensão dos textos normativos à luz dos ca-sos e vice-versa é um pro-cesso circular e não lógi-co-dedutivo.O Direito é uma práti-ca social, hermenêutica e argumentativa que não apenas limita, mas que constitui internamente o sentido normativo dessas práticas sociais.

Concepções de Interpretação à luz dos paradigmas constitucionais

Paradigma Liberal Paradigma Social Paradigma Procedimental

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Anexo 5

As críticas de Dworkin ao positivismo jurídico

Positivismo Jurídico Crítica de Ronald Dworkin

O Direito é um conjunto de re-gras aplicáveis às hipóteses que elas mesmas pré-estabelecem.

Para além das regras, há outros padrões normativos (princípios e diretrizes políticas).

Há um critério objetivo que di-ferencia as regras jurídicas das demais regras sociais. As regras estão fundadas em convenções expressas ou implícitas à história institucional do Direito.

Há uma relação de complementa-ridade e de interação entre Direito e Moralidade.

As regras são co-extensivas ao Direito, exaurindo todo o Direito.

Há um Direito além das regras.

Obrigações e direitos a elas corre-lacionados pressupõem o pré-es-tabelecimento dessas regras.

Direitos e obrigações pressu-põem uma leitura principiológica do Direito.

Os juízes estão em princípio vin-culados à tradição, à legislação e aos precedentes. Casos difíceis são solucionados atribuindo-se um poder discricionário aos juízes. Há apenas respostas diferentes.

Há uma única resposta correta mesmo nos casos difíceis.A interpretação é construtiva e exige: a) adequação ao Direito; b) Justificação em princípios.Exigência de adequabilidade das decisões aos casos concretos.

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261 • Estatuto Científico da Teoria da Constituição

Críticas de Dworkin ao Utilitarismo ético-político

Utilitarismo ético-político Igualitarismo liberal de Dworkin

• É justo o que é útil à maioria (social e econômica) da sociedade.

• O Direito tem por finalidade a instrumentalização política do bem coletivo majoritário, ainda que em detrimento das minorias.

• Realismo jurídico – as decisões se legitimam em razão do impacto social, econômico e político.

• Eficiência econômica – concorrência de interesses. Para a proteção de “direitos” e para a exigência de “obrigações” – cálculo custo/benefício.

• Direito fundamental ao igual respeito e consideração.

• Argumentos de princípio versus Argumentos de políticas.

• Os direitos são trunfos na argumentação jurídica e política.

• Autodeterminação moral dos indivíduos.

• Integridade vesus Eficiência.

• Democracia constitucional e comunidade de princípios – leitura moral da constituição; concepção cooperativa de democracia e; duplo caráter das normas constitucionais.

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262 • Estatuto Científico da Teoria da Constituição  Anexo 6

Comparativo:   Sistemas   Austríacos   e   Estadunidense   do   Controle   de   Constitucionalidade

 

Sistemas  

Político   Jurídico  Modelo  1  

EUA  

Critério  difuso  

Natureza  da  decisão:  declaratória  

E8icácia  da  decisão  

"inter  partes"   "ex  tunc"    

Modelo  2  

Áustria  (1921)  

Critério  concetrado  modo  direto  

Natureza  da  decisão:  constitutiva  

E8icácia  da  decisão  

"erga  omnes"   "ex  nunc"  

Áustria  (1929)  

Critério  concentrado  modo  misto  

Natureza  da  decisão:  constitutiva  

E8icácia  da  decisão  

"inter  partes"  

"ex  tunc"  

"erga  omnes"  

"ex  nunc"  

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Anexo 7 - Estudo Dirigido

Capítulo 1

1 – O que marca, desde o início, o enfoque específico da Teo-ria da Constituição, em face da Teoria Geral do Direito Pú-blico, das Instituições Políticas e da Teoria Geral do Estado?

2 – Em que sentido se afirma que a Teoria da Constituição é “chave interpretativa” do Direito Constitucional? Quais são, portanto, as dimensões atuais da Teoria da Constituição?

3 – Como uma “teoria discursiva da constituição” trata a questão “normatividade/realidade”?

4 – Quais críticas podem ser feitas à chamada “classificação ontológica das constituições”, proposta por Karl Loewenstein, do ponto de vista de uma teoria discursiva da constituição?

Capítulo 2

1 – Caracterize a chamada “dupla validade do Direito moder-no”. Quais são os problemas de legitimidade com que esse Direito se relaciona?

2 – Em que sentido Direito e moralidade modernos se di-ferenciam e se relacionam? Por que não se pode reduzir a questão da legitimidade do Direito a uma justificação moral das normas jurídicas?

3 – Disserte sobre os conceitos de “paradigma científico” (Thomas Kuhn) e de “paradigma jurídico” (Jürgen Haber-mas). Qual a importância desses conceitos para a Teoria Ge-ral do Direito Público e para a Teoria da Constituição?

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264 • Anexo 7

4 – Caracterize, em linhas gerais, o processo de modernização social do Direito, fazendo um contraponto entre as visões pa-radigmáticas do Direito pré-moderno e do Direito moderno.

5 – Em que sentido os direitos fundamentais foram, mais do que alargados, redefinidos, na passagem do paradigma do Es-tado Liberal para o paradigma do Estado Social? Em linhas gerais, reconstrua paradigmaticamente os direitos de liberda-de e de igualdade no Estado Liberal e no Estado Social.

6 – Em que sentido se pode compreender a mediação entre soberania popular e direitos humanos, bem como a relação entre autonomia pública e autonomia privada, da perspectiva do paradigma procedimentalista do Estado Democrático de Direito, em cotraposição aos paradigmas anteriores, tomando como exemplo as “políticas feministas de equiparação”?

Capítulo 3

1 – Em que sentido poder-se-ia falar em constituição antiga e constituição medieval?

2 – Quando e como teria emergido o conceito moderno de constituição? O que diferenciaria a partir de então a consti-tuição propriamente moderna das constituições anteriores?

3 – O que de mais profundo estava em jogo nas chamadas mudanças do final do século XVIII?

4 – Como era tradicionalmente compreendido o problema do fundamento da autoridade e do poder até a Idade Moderna?

5 – Trace uma comparação entre a Revolução Americana e a Revolução Francesa, sobretudo quanto ao modo como, nos dois lados do Atlântico, se buscou lidar com o problema mo-derno da perda de fundamento da autoridade e do poder.

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Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira • 265

6 – Quais seriam as singularidades da Revolução Americana e seus principais legados para o Constitucionalismo moderno?

7 – Reconstrua, em linhas gerais, as distintas leituras que, a partir do século XIX e XX, se fizeram da Teoria do Poder Constituinte.

8 – Após dois séculos de constitucionalismo, quais afirmações poderiam ser feitas acerca do chamado poder constituinte?

Capítulo 4

1 – Em que sentido se pode afirmar que a interpretação seria uma atividade cognitiva excepcional no marco do chamado positivismo jurídico clássico? Qual a concepção do Direito e de aplicação do Direito são pressupostas pelo positivismo do século XIX?

2 – Quais as críticas centrais de Kelsen às concepções positi-vistas clássicas de ordenamento jurídico, de interpretação e de aplicação do Direito?

3 – O que é interpretação para Kelsen? Em que sentido Kel-sen distingue questões de validade e de correção?

4 – Em que sentido se pode afirmar que para Kelsen o proble-ma da correção das decisões jurídicas é político e não jurídico? Quais críticas podem ser feitas a Kelsen, tendo-se em vista o paradigma de Ciência e de Direito pressupostos à sua obra?

Capítulo 5

1 – Como Dworkin diferencia uma concepção do Direito como regras e uma concepção do Direito fundado em princípios?

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266 • Anexo 7

2 – Como Dworkin diferencia argumentos de princípio e ar-gumento de política? Por que essa distinção é importante, tanto da perspectiva de uma legislação consistente do ponto de vista constitucional, quanto da garantia jurisdicional de direitos fundamentais?

3 – Por que, para Dworkin, a tese positivista da discriciona-riedade judicial nos “casos difíceis” pressupõe uma concep-ção do Direito como conjunto fechado ou elenco de regras, em princípio aplicáveis tão-somente às hipóteses que essas mesmas preveem? Em que sentido, para Dworkin, há “uma única resposta correta” nos casos difíceis?

4 – Como Dworkin lança mão da figura do “juiz Hércules” para caracterizar o ponto de vista da imparcialidade como adequabilidade ao caso concreto, no processo de aplicação do Direito à luz de princípios?

5 – Como Dworkin lança mão da chamada metáfora do “ro-mance em cadeia” para expor a sua tese do Direito como in-tegridade, na perspectiva do processo jurisdicional?

Capítulo 6

1 – Qual seria o papel da Jurisdição constitucional no marco do Estado Social? Quais são as críticas a essa visão paradig-mática da jurisdição constitucional?

2 – Quais seriam as justificações filosóficas, no marco das tradições do pensamento político democrático moderno, da jurisdição constitucional? Quais críticas se apresentam a elas, a partir de uma terceira proposta? Caracterize essa ter-ceira proposta.

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Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira • 267

3 – Quais críticas se apresentam ao controle jurisdicional de constitucionalidade no Brasil, da perspectiva “normativa” própria da Teoria do Direito e da Constituição? E da pers-pectiva “realista” da Sociologia Jurídica? Quais críticas po-dem ser feitas, numa perspectiva “reconstrutiva”, à unilate-ralidade dessas duas perspectivas?

4 – Qual seria a tarefa geral da jurisdição constitucional, es-pecialmente, no controle de constitucionalidade, no marco da Constituição brasileira, sob o paradigma procedimenta-lista do Estado Democrático de Direito? Em linhas gerais, como devem ser, pois, compreendidos tanto o controle por via incidental quanto o por via principal?

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