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Por uma Teoria Fundamental da Constituição: enfoque fenomenológico. Willis Santiago Guerra Filho * A proposta aqui avançada, de que se deve reconhecer a existência de uma nova matéria jurídica, a “Teoria Fundamental da Constituição”, advém de uma série de constatações, fenomenológicas, dentre as quais merecem destaque as seguintes: 1 º ) As situações jurídicas subjetivas que correspondem à matéria, da Teoria Fundamental da Constituição, no direito objetivo, a saber, os direitos fundamentais, apesar de sua natureza constitucional, transbordam os limites desse campo do Direito, irradiando seus efeitos e concretizando-se em todas as matérias jurídicas, sejam do direito público, sejam do direito privado, donde se poder afirmar que a Teoria Fundamental da Constituição trata de matéria que melhor se caracterizaria como pertencente àquele campo intermediário entre o * Professor Titular do Centro de Ciências Jurídicas e Políticas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO – cedido para a Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, UnB). Professor Titular de Filosofia do Centro de Ciências Humanas da Universidade Estadual do Ceará (UECE - licenciado). Professor de Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Professor de Filosofia Política do Curso de Mestrado em Direito do Centro Universitário da Fundação Instituto de Ensino para Osasco (SP), e de Teoria da Ciência do Direito do Curso de Mestrado em Direito da Universidade Candido Mendes (RJ). ). Concursado para lecionar a matéria nos cursos de graduação e pós-graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), Especialista em Filosofia (UFC), Mestre em Direito (PUC-SP), Doutor em Ciência do Direito (Universidade de Bielefeld, Alemanha), Livre-Docente em Filosofia do Direito (UFC), Pós-Doutorado em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ). 1

Teoria Fundamental Da Constituição

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análise da Carta Maior

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  • Por uma Teoria Fundamental da Constituio:

    enfoque fenomenolgico.

    Willis Santiago Guerra Filho*

    A proposta aqui avanada, de que se deve reconhecer a existncia

    de uma nova matria jurdica, a Teoria Fundamental da Constituio, advm de

    uma srie de constataes, fenomenolgicas, dentre as quais merecem destaque

    as seguintes:

    1) As situaes jurdicas subjetivas que correspondem matria, da

    Teoria Fundamental da Constituio, no direito objetivo, a saber, os direitos

    fundamentais, apesar de sua natureza constitucional, transbordam os limites

    desse campo do Direito, irradiando seus efeitos e concretizando-se em todas as

    matrias jurdicas, sejam do direito pblico, sejam do direito privado, donde se

    poder afirmar que a Teoria Fundamental da Constituio trata de matria que

    melhor se caracterizaria como pertencente quele campo intermedirio entre o

    * Professor Titular do Centro de Cincias Jurdicas e Polticas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO cedido para a Faculdade de Direito da Universidade de Braslia, UnB). Professor Titular de Filosofia do Centro de Cincias Humanas da Universidade Estadual do Cear (UECE - licenciado). Professor de Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP), Professor de Filosofia Poltica do Curso de Mestrado em Direito do Centro Universitrio da Fundao Instituto de Ensino para Osasco (SP), e de Teoria da Cincia do Direito do Curso de Mestrado em Direito da Universidade Candido Mendes (RJ). ). Concursado para lecionar a matria nos cursos de graduao e ps-graduao (Mestrado e Doutorado) em Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Cear (UFC), Especialista em Filosofia (UFC), Mestre em Direito (PUC-SP), Doutor em Cincia do Direito (Universidade de Bielefeld, Alemanha), Livre-Docente em Filosofia do Direito (UFC), Ps-Doutorado em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ).

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  • Direito Pblico e o Direito Privado, que se vem denominando, recentemente, de

    Direito Difuso. O prprio Direito Constitucional, para realizar aquilo que

    tradicionalmente lhe mais prprio, que a organizao jurdica do Estado,

    precisa pautar-se pelas determinaes dos direitos fundamentais.

    2) O objeto da Teoria Fundamental da Constituio se situa,

    igualmente, para alm da dicotomia entre o Direito Material e o Direito Processual,

    visto que nele se situam no somente os direitos fundamentais em um sentido

    estrito, como tambm as garantias fundamentais, direitos fundamentais em

    sentido amplo, em geral de natureza processual, tendo por escopo a

    imprescindvel tutela e efetivao dos primeiros. assim que, da perspectiva

    jusfundamental, aes, princpios processuais e garantias objetivas da jurisdio

    podem revelar uma dimenso subjetiva, justificando-se melhor enquanto projees

    de situaes jurdicas subjetivas de direitos fundamentais.

    3o) Uma outra dicotomia, agora de natureza jusfilosfica, que vem a

    ser dialeticamente superada pela postulao da Teoria Fundamental da

    Constituio, aquela entre Direito Natural, ou jusnaturalismo, e Direito Positivo,

    ou juspositivismo, uma vez que no Direito fundamental positivam-se e se tornam

    direito objetivo pautas valorativas universalizveis, com as quais se busca

    fundamentar, do modo mais racional e justo possvel, o Direito.

    4) Por fim, mas no menos importante ao contrrio -, merece

    reconhecimento da Teoria Fundamental da Constituio por haver uma norma de

    2

  • direito fundamental, identificada no mbito de uma teoria dos direitos

    fundamentais, com caractersticas que a distinguem de normas jurdicas em geral,

    decorrentes basicamente de sua natureza principiolgica. O tratamento

    metodologicamente adequado dos problemas atinentes aplicao dessas

    normas de direito fundamental vem resultando em uma verdadeira revoluo no

    campo da hermenutica e da epistemologia jurdica e, logo, no paradigma da

    cincia do direito -, em um sentido superador do formalismo ainda vigente, por

    uma perspectiva processual, sim, mas no formalista, por amparada na filosofia

    fenomenolgica.

    Passemos ao desenvolvimento de cada uma desses pontos.

    1. Os direitos humanos e os direitos fundamentais, no plano do

    direito posto, positivo vm adquirindo uma configurao cada vez mais

    consentnea com os ideais projetados pelas revolues polticas da modernidade,

    to bem representados pela trade liberdade, igualdade e fraternidade.

    Atualmente, j se pode perceber com clareza a interdependncia destes valores

    fundamentais: sem a reduo de desigualdades, no h liberdade possvel para o

    conjunto dos seres humanos, e sem fraternidade ou melhor, solidariedade,

    para sermos mais, realistas, visto que a fraternidade s vezes no existe sequer

    entre verdadeiros irmos -, sem o reconhecimento de nossa mtua dependncia,

    no s como indivduos, mas como naes e espcies naturais tambm

    dependemos do ambiente natural -, no atinamos para o sentido da busca de

    liberdade e igualdade. Da que, como defendem MORIN & KERN,1 temos de nos 1 Terra-Ptria. 3 ed., trad.: PAULO NEVES, Porto Alegre, Sulina, 2000, p. 186, passim.

    3

  • assumir como partcipes de uma comunidade de destino, que envolve todo o

    planeta que habitamos, se aspiramos no s correo tica, mas prpria

    salvao, individual e coletiva, no podendo haver uma sem a outra.

    Pode-se dizer que o Direito, nessa conjuntura, h de assentar-se em

    uma ordem constitucional que, em sendo aquela prpria de um Estado

    Democrtico, impe deveres de solidariedade aos que compem uma comunidade

    poltica, a fim de minorar os efeitos nefastos da desigualdade entre eles em

    relao sua liberdade e ao respeito dignidade humana. A dignidade humana

    ofendida, por exemplo, quando um sujeito tratado como objeto por outro sujeito.

    A dignidade humana implica em tratar desigualmente os desiguais (isonomia

    comutativa) assim como tambm implica na igualdade de todos perante a lei

    (isonomia distributiva).

    Considerando a ordem constitucional do tipo antes mencionado

    como formada, substancialmente, por princpios, tem-se que o princpio

    fundamental do Estado de Direito decorre da dignidade humana, assim como dele

    decorre o princpio da legalidade. Tal princpio consubstancia uma garantia

    fundamental, promovendo a certeza nas relaes jurdicas e, com isso, a paz

    social. Tambm o princpio fundamental do Estado Democrtico decorre da

    dignidade humana, sendo de se considerar um princpio de legitimidade. O

    respeito dignidade humana requer, por fim, o respeito do ser humano enquanto

    indivduo, partcipe de diversas coletividades, inclusive aquela maior, enquanto

    espcie planetria, natural e social.

    4

  • Para resolver o grande dilema que aflige os que operam com o

    Direito no mbito do Estado Democrtico contemporneo, representado pela

    atualidade de conflitos entre princpios constitucionais, aos quais se deve igual

    obedincia, por ser a mesma a posio que ocupam na hierarquia normativa,

    que se preconiza o recurso a um princpio dos princpios, que representa algo

    assim como a principialidade dos princpios, enquanto sua relatividade mtua.

    Trata-se do princpio da proporcionalidade,2 tal como concebido no campo jurdico

    na tradio germnica, como um princpio, tambm, de relatividade

    (verhltnismig), o qual determina a busca de uma soluo de compromisso, respeitando-se mais, em determinada situao, um dos princpios em conflito, e

    procurando desrespeitar o mnimo ao(s) outro(s), sem jamais lhe(s) faltar

    minimamente com o respeito, isto , ferindo-lhes o ncleo essencial, onde se

    encontra entronizado o valor da dignidade humana, princpio fundamental e axial

    do contemporneo Estado Democrtico. O princpio da proporcionalidade, embora

    2 O tema do princpio da proporcionalidade vem sendo objeto de elaboraes sucessivas, que so tambm em parte coincidentes, em WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, Ensaios de Teoria Constitucional, Fortaleza: Imprensa Universitria da UFC, 1989, pp. 47 ss.; id., Teoria Processual da Constituio, 2a. ed., So Paulo: IBDC/Celso Bastos Ed., 2002, pp. 75 ss., 185 ss., passim; id., Processo Constitucional e Direitos Fundamentais, cit., pp. 83 ss., e em diversos artigos, publicados no Brasil e no exterior. De ltimo, WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, O princpio da proporcionalidade em Direito constitucional e em Direito privado no Brasil, in: Aspectos Controvertidos do novo Cdigo Civil. Escritos em homenagem ao Min. JOS CARLOS MOREIRA ALVES, ARRUDA ALVIM, JOAQUIM PORTES DE CERQUEIRA CSAR e ROBERTO ROSAS (orgs.), So Paulo: RT, 2003, pp. 583/596; Sobre o princpio da proporcionalidade, in: Dos Princpios Constitucionais. Consideraes em torno das normas principiolgicas da Constituio, GEORGE SALOMO LEITE (org.), So Paulo: Malheiros, 2003, pp. 237/253. Princpio da Proporcionalidade e Devido Processo legal, in: Interpretao Constitucional, Virglio Afonso da Silva (org.), So Paulo: Malheiros, 2005, pp. 25/269; id., A Garantia Fundamental da Proporcionalidade em sua Projeo no Novo Cdigo Civil Brasileiro, in: Reflexos do novo Cdigo Civil no Direito Processual, FREDIE DIDIER JR. e RODRIGO MAZZEI (orgs.), Salvador: JusPODIUM, 2006, pp. 73/89.

    5

  • no esteja explicitado de forma individualizada em nosso ordenamento jurdico,

    assim como o da dignidade da pessoa humana (art. 1o., inc. III, CR), uma

    exigncia inafastvel da prpria frmula poltica adotada por nosso constituinte, a

    do Estado Democrtico de Direito, pois sem a sua utilizao no se concebe

    como bem realizar o mandamento bsico dessa frmula, de respeito simultneo

    dos interesses individuais, coletivos e pblicos, o que nos remete ao Princpio

    Constitucional da Proporcionalidade.

    A exata compreenso do significado do princpio da

    proporcionalidade requer uma transformao do prprio modo de se conceber a

    tarefa da cincia jurdica, como diversa da mera interpretao e aplicao de

    normas jurdicas com a estrutura de regras.3 As regras trazem a descrio de

    dada situao, formada por um fato ou uma espcie (a fattispecie a que se

    referem os italianos) deles, enquanto nos princpios h uma referncia direta a

    valores. Da se dizer que as regras se fundamentam nos princpios, os quais no

    fundamentariam diretamente nenhuma ao, dependendo para isso da

    intermediao de uma (ou mais) regra(s) concretizadora(s). Princpios, portanto,

    tm um grau incomensuravelmente mais alto de generalidade (referente classe

    de indivduos que a norma se aplica) e abstrao (referente espcie de fato a

    que a norma se aplica) do que a mais geral e abstrata das regras. Por isso,

    tambm, poder-se dizer com maior facilidade, diante de um acontecimento, ao

    qual uma regra se reporta, se essa regra foi observada ou se foi infringida, e,

    nesse caso, como se poderia ter evitado sua violao. J os princpios trazem

    3 Nesse sentido, MANFRED STELZER, Das Wesensgehaltsargument und der Grundsatz der Verhltnismigkeit, Wien/New York: Springer, 1991, p. 22.

    6

  • nsitas determinaes de otimizao (Optimierungsgebote, na expresso de

    ROBERT ALEXY),4 isto , um mandamento de que sejam cumpridos na medida

    das possibilidades, fticas e jurdicas, que se oferecem concretamente - o que j

    nos remete, de imediato, ao princpio da proporcionalidade, por ele ser a prpria

    expresso deste mandamento e contemplar tal idia de gradao no cumprimento

    de um princpio, a incluindo-se o prprio princpio da proporcionalidade, que

    tambm no se pode acatar em termos definitivos, de tudo ou nada, como as

    regras.

    E, finalmente, enquanto o conflito de regras resulta em uma

    antinomia, a ser resolvida pela perda de validade de uma das regras em conflito,

    ainda que em um determinado caso concreto, deixando-se de cumpri-la para

    cumprir a outra, que se entende ser a correta, as colises entre princpios resultam

    apenas em que se privilegie o acatamento de um, sem que isso implique no

    desrespeito completo do outro. J na hiptese de choque entre regra e princpio,

    evidente que o princpio deva prevalecer, embora a, na verdade, ele prevalece,

    em determinada situao concreta, sobre o princpio em que a regra se baseia - a

    rigor, portanto, no h coliso direta entre regra(s) e princpio(s).

    O trao distintivo entre regras e princpios, por ltimo referido, aponta

    para uma caracterstica desses, j mencionada, que de se destacar: sua

    relatividade. No h princpio do qual se possa pretender seja acatado de forma

    absoluta, em toda e qualquer hiptese, pois uma tal obedincia unilateral e

    irrestrita a uma determinada pauta valorativa - digamos, individual - termina por 4 Theorie der Grundrechte, Baden-Baden: Nomos, 1985, pp. 75 e s.

    7

  • infringir uma outra - por exemplo, coletiva. Da se dizer que h uma necessidade

    lgica e, at, axiolgica, de se postular um princpio de relatividade

    (Verhltnismigkeitsprinzip), que o princpio da proporcionalidade, para que se possa respeitar normas, como os princpios, tendentes a colidir, quando se

    opera concretamente com o Direito.5

    A marca distintiva do pensamento jurdico contemporneo, que se

    faz notar em autores como JOSEF ESSER e RONALD DWORKIN, antes do j

    referido ROBERT ALEXY, repousa precisamente na nfase dada ao emprego de

    princpios jurdicos, positivados no ordenamento jurdico, quer explicitamente - em

    geral, na constituio -, quer atravs de normas onde se manifestam de forma

    implcita, quando do tratamento dos problemas jurdicos. Com isso, d-se por

    superado um resqucio de legalismo que permaneceu no positivismo normativista

    de KELSEN, HART e outros, para quem as normas do direito positivo se

    reduziriam ao que hoje se chama "regras" (rules, Regeln) na teoria jurdica anglo-

    saxnica e germnica, isto , normas que permitem realizar uma subsuno dos

    fatos por elas regulados (operative facts, Sachverhalte), imputando-lhes ou

    cometendo-lhes a sano cabvel. Princpios, por sua vez, se encontram em um

    nvel superior de abstrao, sendo igualmente hierarquicamente superiores,

    dentro da compreenso do ordenamento jurdico como uma pirmide normativa"

    (Stufenbau), e se eles no permitem uma subsuno direta de fatos, isso se d

    indiretamente, colocando regras sob o seu "raio de abrangncia. Ao contrrio

    5 Cf. ALEXY, ob. cit., p. 100, 143 e s., passim; WILLIS S. GUERRA FILHO, Ensaios de Teoria Constitucional, Fortaleza: Imprensa Universitria da UFC, 1989, pp. 47, 69 e s., passim; id., Teoria Processual da Constituio, 2a. ed., So Paulo: IBDC/Celso Bastos Ed., 2002, pp. 75 ss., 185 ss. e id., Processo Constitucional e Direitos Fundamentais, 4a. ed., So Paulo: RCS, 2003, pp. 83 ss.

    8

  • dessas, tambm, se verifica que os princpios podem se contradizer, sem que isso

    faa qualquer um deles perder a sua validade jurdica e ser derrogado.

    exatamente numa situao em que h conflito entre princpios, ou entre eles e

    regras, que o princpio da proporcionalidade (em sentido estrito ou prprio) mostra

    sua grande significao, pois pode ser usado como critrio para solucionar da

    melhor forma o conflito, otimizando a medida em que se acata um e desatende o

    outro. Esse papel lhe cai muito bem pela circunstncia peculiarssima de se tratar

    de um princpio extremamente formal e, a diferena dos demais, no haver um

    outro que seja o seu oposto em vigor, em um ordenamento jurdico digno desse

    nome, ou seja, democraticamente legitimado.6

    Para bem atinar no alcance do princpio da proporcionalidade faz-se

    necessrio referir o seu contedo - e ele, diferena dos princpios que se situam

    em seu mesmo nvel, de mais alta abstrao, no to-somente formal,

    revelando-se plenamente apenas quando se h de decidir sobre a

    constitucionalidade de alguma situao jurdica ou ato normativo, no mbito

    prprio do processo constitucional. Esse seu aspecto concretizador, inclusive, j

    fez com que se referisse a ele como uma proposio jurdica, qual, como ocorre

    com normas que so regras, se pode subsumir fatos jurdicos diretamente. No

    se confunda, porm, a proposio jurdica com a norma de que ela a

    representao, como j KELSEN, na segunda (e definitiva) edio de sua Teoria

    Pura do Direito, registrara, reservando para a proposio um lugar no campo das

    6 Sobre a funo legitimadora do princpio da proporcionalidade cf. RICARDO LOBO TORRES, A Legitimao dos Direitos Humanos e os Princpios da Ponderao e da Razoabilidade, in: Id. (org.), A Legitimao dos Direitos Humanos, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 397 ss., esp. pp. 432 ss.

    9

  • idias, da cincia, e para a norma um lugar no campo da ao, da poltica,

    enquanto sentido de um ato de vontade conformadora de outra(s), por associada a

    uma sano.

    O princpio da proporcionalidade, entendido como um mandamento de

    otimizao do respeito mximo a todo direito fundamental, em situao de conflito

    com outro(s), na medida do jurdico e faticamente possvel, tem um contedo que,

    na doutrina e jurisprudncia alems,7 repartido em trs princpios ou

    proposies parciais (Teilgrundstze): princpio da proporcionalidade em

    sentido estrito ou mxima do sopesamento (Abwgungsgebot), princpio da

    adequao e princpio da exigibilidade ou mxima do meio mais suave (Gebot

    des mildesten Mittels).

    O princpio da proporcionalidade em sentido estrito determina que se

    estabelea uma correspondncia entre o fim a ser alcanado por uma disposio

    normativa e o meio empregado, que seja juridicamente a melhor possvel. Isso

    significa, acima de tudo, que no se fira o contedo essencial (Wesensgehalt)

    de direito fundamental, com o desrespeito intolervel da dignidade humana, bem

    como que, mesmo em havendo desvantagens para, digamos, o interesse de

    7 Cf. BVerfGE 23, 133 (= Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, vol. 23, p. 133). Em deciso anterior, o Verhltnissmigkeitsprinzip j fora apresentado como resultante "no fundo, da essncia dos prprios direitos fundamentais", acrescentando, de forma assimilvel referida formulao clssica de SVAREZ, que se teria a uma "expresso do anseio geral de liberdade dos cidados frente ao Estado, em face do poder pblico, que s pode vir a ser limitada se isso for exigido para proteo de interesses pblicos. BVerfGE 19, 348/349.Uma reconstruo detalhada do caminho percorrido na doutrina pelo princpio ora estudado encontra-se na monografia de LOTHAR HIRSCHBERG, Der Grundsatz der Verhaltnismigkeit, Gttingen:Tese, 1981.

    10

  • pessoas, individual ou coletivamente consideradas, acarretadas pela disposio

    normativa em apreo, as vantagens que traz para interesses de outra ordem

    superam aquelas desvantagens.

    Os demais subprincpios, como se pode denominar as proposies

    normativas derivadas do princpio da proporcionalidade (em sentido amplo), so

    ditos da adequao e da exigibilidade ou indispensabilidade (Erforderlichkeit). O

    primeiro determina que, dentro do faticamente possvel, se preste o meio

    escolhido para atingir o fim estabelecido, mostrando-se, assim, adequado. Alm

    disso, pelo segundo, esse meio deve se mostrar exigvel, o que significa no

    haver outro, igualmente eficaz, e menos danoso a direitos fundamentais.

    Dessa circunstncia, de ter seu contedo formado por subprincpios,

    passvel de subsumirem fato e questes jurdicas, no se pode, contudo, vir a

    considerar o princpio da proporcionalidade mera regra, ao invs de verdadeiro

    princpio, como recentemente se afirmou entre ns,8 pois no poderia ser uma

    regra o princpio que a prpria expresso da peculiaridade maior deste ltimo

    tipo de norma em relao primeira, o tipo mais comum de normas jurdicas,

    peculiaridade esta que RONALD DWORKIN refere como a dimenso de peso

    (dimension of weight) dos princpios,9 e ALEXY como a ponderao

    8 Cf. VIRGLIO AFONSO DA SILVA, O Proporcional e o Razovel, in: Revista dos Tribunais, vol. 798, 2002, p. 26. Irretorquvel, por outro lado, neste trabalho, a distino entre os princpios da proporcionalidade e razoabilidade, a qual constitui seu objeto central.9 Cf. Taking Rights Seriously, Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1978, p. 26 ss.

    11

  • (Abwgung) justamente o que se contrape subsuno nas regras.10 E

    tambm, pragmaticamente, caso a norma que consagra o princpio da

    proporcionalidade no fosse verdadeiramente um princpio, mas sim uma regra,

    no poderamos consider-la inerente ao regime e princpios adotados na

    Constituio brasileira de 1988, deduzindo-a do sistema constitucional vigente

    aqui, como em vrias outras naes, da idia de Estado democrtico de Direito,

    posto que no h regra jurdica que seja implcita, mas to-somente os direitos (e

    garantias) fundamentais, consagrados em princpios igualmente fundamentais

    ou, mesmo, fundantes , a exemplo deste princpio de proporcionalidade, objeto

    da presente exposio.

    Quanto a saber donde se deriva o princpio da proporcionalidade, se

    do princpio estruturante do Estado de Direito, ou daquele da dignidade da pessoa

    humana, que se vincula ao outro princpio estruturante de nossa ordem

    10 O fato de ALEXY, na famosa pgina 100 da edio original da Theorie der Grundrechte, com apoio o professor de Direito Constitucional na Universidade de Heidelberg, HAVERKATE, referir possibilidade dos subprincpios da proporcionalidade permitirem, tal como regras jurdicas, a subsuno, no implica, ipso facto, como pretende VIRGLIO AFONSO DA SILVA, loc. ult. cit., ser o princpio da proporcionalidade uma regra, pois o contedo de uma regra a descrio (e previso) de um fato, acompanhada da prescrio de sua conseqncia jurdica, e no outra regra. Tambm, pelo princpio lgico da navalha de OCKHAM, pelo qual no se deve multiplicar desnecessariamente os termos, sem que haja entes diversos a serem nomeados por eles, tambm no pensamos que deixe de haver sinonmia entre o princpio da proporcionalidade em sentido estrito e a proibio de excesso de ao, por implicar o princpio tambm em uma proibio de (excesso) de omisso (Untermaverbot). Em apoio de nossos posicionamentos veio, recentemente, FRANCISCO FERNANDES DE ARAJO, em Princpio da Proporcionalidade: significado e aplicao prtica, Campinas: Copola, 2002. Vale ainda registrar que no acatamos o posicionamento de ALEXY na obra mencionada a incio desta nota, quando no fixa um limite para a restrio dos direitos fundamentais, ao se realizar a ponderao, em situao de coliso entre eles, bastando que dessa restrio decorra benefcio ao(s) outro(s) direito(s) conflitante(s). Nossa posio vai no sentido de que em hiptese alguma a restrio pode chegar ao ponto de fulminar o ncleo essencial intangvel de qualquer direito fundamental, abolindo o respeito dignidade humana.V. tb. infra, texto referente nota 12.

    12

  • constitucional e, logo, de toda a ordem jurdica - , que o Princpio Democrtico,

    adotamos o posicionamento que vincula o princpio da proporcionalidade

    Clusula do Devido Processo Legal (Constituio da Repblica Federativa do

    Brasil, art. 5., inc. LIV), com o que se evita este falso dilema, pois para se ter um

    Estado de Direito com respeito dignidade humana, isto , que seja tambm

    democrtico, pressupe-se uma compatibilizao de legalidade (Estado de Direito)

    com legitimidade (Democracia), obtida, em ltima instncia, pela aplicao, no

    mbito de processos judiciais, administrativos e outros, precisamente, do princpio

    da proporcionalidade. certo que a idia subjacente "proporcionalidade",

    Verhltnissmigkeit, noo dotada atualmente de um sentido tcnico no direito

    pblico e teoria do direito germnicos, ou seja, a de uma limitao do poder estatal

    em benefcio da garantia de integridade fsica e moral dos que lhe esto sub-

    rogados, confunde-se em sua origem, como fcil perceber com o nascimento do

    moderno Estado de direito, respaldado em uma constituio, em um documento

    formalizador do propsito de se manter o equilbrio entre os diversos poderes que

    formam o Estado e o respeito mtuo entre este e aqueles indivduos a ele

    submetidos, a quem so reconhecidos certos direitos fundamentais inalienveis.11

    A questo que assim se coloca, de como melhor fundamentar a

    inscrio de um princpio de proporcionalidade no plano constitucional, se,

    deduzindo-o da opo por um Estado de Direito ou ento, dos prprios direitos

    fundamentais, inerentes a este Estado, enquanto Estado Democrtico de Direito,

    assume relevncia mais doutrinria, j que na prtica, como evidencia reiterada

    11 Da se referir ao princpio PAULO BONAVIDES como antiqssimo. Cf. Curso de Direito Constitucional, 5. Ed., So Paulo: Malheiros, 1994, p. 362.

    13

  • jurisprudncia do Tribunal Constitucional, na Alemanha, no resta dvida quanto

    sua insero na "base" do ordenamento jurdico, como se pode referir de maneira

    figurada constituio. Alm disso, nosso princpio aparece relacionado quele

    que se pode considerar o problema maior a ser resolvido com a adoo de um

    regime constitucional pelo Estado, nomeadamente, o do relacionamento entre ele,

    a comunidade a ele submetida e os indivduos que a compem, a ser regulado de

    forma eqitativamente vantajosa para todas as partes.12 Para que o Estado, em

    sua atividade, atenda aos interesses da maioria, respeitando os direitos individuais

    fundamentais, se faz necessrio no s a existncia de normas para pautar essa

    atividade e que, em certos casos, nem mesmo a vontade de uma maioria pode

    derrogar (Estado de Direito), como tambm h de se reconhecer e lanar mo de

    um princpio regulativo para se ponderar at que ponto se vai dar preferncia ao

    todo ou s partes (Princpio da Proporcionalidade), o que tambm no pode ir

    alm de um certo limite, para no retirar o mnimo necessrio a uma existncia

    humana digna de ser chamada assim.13

    12 Tal problema se mostrar vinculado ao conceito essencial de direito fornecido na abordagem fenomenolgica proposta por LLAMBAS E AZEVEDO, referida infra, n. 4, in fine.13 Na constituio alem, tendo em vista esse fato, consagra o art. 19, 2a parte, o princpio segundo o qual os direitos fundamentais jamais devem ser ofendidos em sua essncia (Wesensgehaltsgarantie). Exatamente dessa norma que autores como LERCHE e DRIG deduzem, a contrario sensu, a consagrao do princpio da proporcionalidade pelo direito constitucional, pois ela implica na aceitao de ofensa a direito fundamental "at um certo ponto", donde a necessidade de um princpio para estabelecer o limite que no se deve ultrapassar. Cf. BVerfGE 34, 238; DRIG, em Der Grundsatz von der Menschenwrde. Entwurf eines praktikablen Wertsystems der Grundrechte aus Art. 1, Abs. I, in Verbindung mit Art. 19. Abs. II, des Grundgesetzes, in: Archiv fr ffentliches Recht, n. 81, 1956, pp. 117 ss., PETER LERCHE, berma- und Verfassungsrecht Zur Bindung des Gesetzqebers an die Grundstze der Verhltnissmigkeit und Erforderlichkeit, Heidelberg: Mller, 1961.

    14

  • Essas consideraes permitem concluir claramente pela existncia

    de um contedo intangvel dos direitos fundamentais, que no pode ceder sob

    forma alguma. Esse ncleo vem a ser o denominado mnimo existencial, ou seja,

    aquele conjunto de situaes que caracterizam o ponto limite a partir do qual no

    se pode avanar sem ofender a dignidade do homem, sem reduz-lo a meio.

    A dignidade da pessoa humana, por conseguinte, presta-se ao

    mesmo tempo para limitar direitos fundamentais na medida em que buscando

    sua maior efetivao que, no caso concreto, um princpio que os veicule pode ter

    sua aplicao restringida em favor de outro , como tambm para coibir restries

    excessivas,14 por meio da configurao do mnimo existencial.

    2. mudana de funo das constituies e do prprio Estado, que

    afinal de contas por elas instaurado, na poca contempornea, resultante da

    forma como historicamente se desenvolveram as sociedades em que aparecem,

    correspondem tambm, como no podia deixar de ser, modificaes radicais no

    plano jurdico. As normas jurdicas que passam a ser necessrias no possuem

    mais o mesmo carter condicional de antes, com um sentido retrospectivo, quando

    destinavam-se basicamente a estabelecer uma certa conduta, de acordo com um

    padro, em geral fixado antes essas normas e no, a partir delas, propriamente. A

    isso era acrescentado o sancionamento, em princpio negativo i.e., uma

    conseqncia desagradvel a ser inflingido pelo Estado, na hiptese de haver

    um descumprimento da prescrio normativa. A regulao que no presente

    14 Nesse sentido, INGO SARLET menciona a dupla funo da dignidade da pessoa humana, em Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituio Federal de 1988, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 119 -120.

    15

  • requisitada ao Direito assume um carter finalstico, e um sentido prospectivo,

    pois, para enfrentar a imprevisibilidade das situaes a serem reguladas ao que

    no se presta o esquema simples de subsuno de fatos a uma previso legal

    abstrata anterior, precisa-se de normas que determinem objetivos a serem

    alcanados futuramente, sob as circunstncias que ento se apresentem.

    Em vista disto, tem-se salientado bastante ultimamente a distino

    entre normas jurdicas que so formuladas como regras e aquelas que assumem a

    forma de um princpio. As primeiras possuem a estrutura lgica que

    tradicionalmente se atribui s normas do Direito, com a descrio (ou tipificao)

    de um fato, ao que se acrescenta a sua qualificao prescritiva, amparada em

    uma sano (ou na ausncia dela, no caso da qualificao como fato permitido).

    J os princpios fundamentais, igualmente dotados de validade positiva e de um

    modo geral estabelecidos na constituio, no se reportam a um fato especfico,

    que se possa precisar com facilidade a ocorrncia, extraindo a conseqncia

    prevista normativamente. Eles devem ser entendidos como indicadores de uma

    opo pelo favorecimento de determinado valor, a ser levada em conta na

    apreciao jurdica de uma infinidade de fatos e situaes possveis, juntamente

    com outras tantas opes dessas, outros princpios igualmente adotados, que em

    determinado caso concreto podem se conflitar uns com os outros, quando j no

    so mesmo, in abstracto, antinmicos entre si.

    Os princpios jurdicos fundamentais, dotados tambm de dimenso

    tica e poltica, apontam a direo que se deve seguir para tratar de qualquer

    16

  • ocorrncia de acordo com o Direito em vigor, caso ele no contenha uma regra

    que a refira ou que a discipline suficientemente. A aplicao desses princpios,

    contudo, envolve um esforo muito maior do que a aplicao de regras, onde uma

    vez verificada a identidade do fato ocorrido com aquele previsto por alguma delas,

    no resta mais o que fazer, para se saber o tratamento que lhe dispensado pelo

    direito. J para aplicar as regras, preciso haver um procedimento, para que se

    comprove a ocorrncia dos fatos sob os quais elas havero de incidir. A

    necessidade de se ter um procedimento tornar-se ainda mais aguda quando se

    trata da aplicao de princpios, pois a a discusso gira menos em torno de fatos

    do que de valores, o que requer um cuidado muito maior para se chegar a uma

    deciso fundamentada objetivamente.

    Em sendo assim, de se esperar que, na medida em que aumenta a

    freqncia com que se recorre a princpios para soluo de problemas jurdicos,

    cresce tambm a importncia daquele ramo do direito ocupado em disciplinar os

    procedimentos, sem os quais no se chega a um resultado aceitvel, ao utilizar

    um meio to pouco preciso e vago de ordenao da conduta, como so os

    princpios. Isso significa tambm que a determinao do que conforme ao Direito

    passa a depender cada vez mais da situao concreta em que aparece esse

    problema, o que beneficia formas de pensamento pragmticas, voltadas para

    orientar a ao daqueles envolvidos na tomada de uma deciso. Procedimentos

    so sries de atos ordenados com a finalidade de propiciar a soluo de questes

    cuja dificuldade e/ou importncia requer uma extenso do lapso temporal, para

    que se considerem aspectos e implicaes possveis. Dentre os procedimentos

    17

  • regulados pelo Direito, podem-se destacar aqueles que envolvem a participao e

    a influncia de vrios sujeitos na formao do ato final decisrio, reservando-lhes

    a denominao tcnica de processo.

    3. De uma perspectiva estrutural, partindo daquela distino, j

    corriqueira, entre normas jurdicas que so regras daquelas que so princpios,

    distino essa elaborada em sede de teoria do direito a partir de trabalhos de

    autores contemporneos como KARL LARENZ, JOSEF ESSER, RONALD

    DWORKIN e ROBERT ALEXY, pode-se, ento, afirmar, que normas

    substancialmente constitucionais tm a estrutura de princpios, com a qual se

    consagra, explcita ou implicitamente, valores, no plano positivo do direito,

    conferindo-lhes, assim, natureza dentica diferenciada daquela que possuem

    enquanto determinaes absolutas, como o so, em uma ordem tica, religiosa ou

    ideolgica qualquer, os valores. Assim, no modelo mais sofisticado de figurao

    da ordem jurdica, proposto por ALEXY em sua Teoria dos Direitos

    Fundamentais, distingui-se trs nveis, a saber, o dos princpios, o das regras e o

    dos procedimentos. neste ltimo nvel em que os interesses e bens da vida,

    traduzidos em valores, vm a ser consagrados positivamente enquanto princpios,

    e qualificadores, ainda que em graus diversos de generalidade e abstrao, dos

    fatos previstos normativamente pelas regras, resultam vertidos em novas normas,

    aptas a incidirem em determinadas situaes concretas, conformando-as

    juridicamente.

    18

  • Assim sendo, considerando serem os direitos fundamentais o

    contedo essencial de uma Constituio como, a exemplo da que temos

    atualmente, as que se apresentam para fundar um Estado Democrtico de Direito,

    contedo este ao qual se agrega a condizente organizao institucional do Estado

    e da sociedade civil, para que se tenha, tudo somado, a Constituio em sentido

    substancial, ento tem-se que as garantias constitucionais integrariam a

    Constituio em sentido processual. So essas garantias tanto aquelas ditas

    garantias fundamentais, por garantirem direitos igualmente fundamentais, seja do

    ponto de vista formal, seja daquele substancial, como tambm as chamadas

    garantias institucionais, aquelas denominadas na doutrina alem, em uma

    terminologia que remonta a CARL SCHMITT, Einrichtungsgarantien, as de

    ordem pblica (institutionelle Garantien), e as garantias de instituies

    (Institutsgarantien), da ordem privada, a exemplo da famlia, do ensino, da

    imprensa etc.

    Nossa compreenso do quanto o Estado Democrtico de Direito

    depende de procedimentos, no s legislativos e eleitorais, mas especialmente

    aqueles judiciais, para que se d sua realizao, aumenta na medida em que

    precisemos melhor o contedo dessa frmula poltica.

    Historicamente, poder-se-ia localizar o seu surgimento nas

    sociedades europias recm-sadas da catstrofe da II Guerra Mundial, que

    representou a falncia tanto do modelo liberal de Estado de Direito, como tambm

    das frmulas polticas autoritrias que se apresentaram como alternativa. Se em

    19

  • um primeiro momento observou-se um prestgio de um modelo social e, mesmo,

    socialista de Estado, a frmula do Estado Democrtico se firma a partir de uma

    revalorizao dos clssicos direitos individuais de liberdade, que se entende no

    poderem jamais ser demasiadamente sacrificados, em nome da realizao de

    direitos sociais. O Estado Democrtico de Direito, ento, representa uma forma de

    superao dialtica da anttese entre os modelos liberal e social ou socialista de

    Estado. Nessa perspectiva, tem-se a influente obra de ELAZ DAZ, Estado de

    Derecho y sociedad democrtica, bem como a monografia, bem anterior, j

    clssica na literatura poltica e constitucional em nosso Pas, de Mestre PAULO

    BONAVIDES, Do Estado Liberal ao Estado Social.

    Em sendo assim, tem-se o compromisso bsico do Estado

    Democrtico de Direito na harmonizao de interesses que se situam em trs

    esferas fundamentais: a esfera pblica, ocupada pelo Estado, a esfera privada, em

    que se situa o indivduo, e um segmento intermedirio, a esfera coletiva, em que

    se tem os interesses de indivduos enquanto membros de determinados grupos,

    formados para a consecuo de objetivos econmicos, polticos, culturais ou

    outros.

    H quem veja na projeo atual desses grupos, no campo poltico e

    social, como um dos traos caractersticos da ps-modernidade, quando ento as

    aes mais significativas se deveriam a esses novos sujeitos coletivos, e no a

    sujeitos individuais ou queles integrados na organizao poltica estatal.

    Indubitavelmente, o problema bsico a ser solucionado por qualquer constituio

    20

  • poltica contempornea no pode mais ser captado em toda sua extenso por

    aquela formulao clssica, onde se tinha um problema de delimitao do poder

    estatal frente ao cidado individualmente considerado. Hoje entidades coletivas

    demandam igualmente um disciplinamento de sua atividade poltica e econmica,

    de modo a que possam satisfazer o interesse coletivo que as anima,

    compatibilizando-o com interesses de natureza individual e pblica, com base em

    um princpio de proporcionalidade, que se procurou indicar aqui propriedades

    tericas - e prticas capazes de torna-lo uma espcie de ponto de Arquimedes

    para alavancar o Estado Democrtico de Direito. Nos estudos que realizamos

    anteriormente, evidenciou-se, por exemplo, que aquele princpio pode ser

    considerado algo assim como o princpio dos princpios, de husserliana memria,

    uma vez que a ele, em ltima instncia, que se recorre para resolver, em casos

    difceis (hard cases), o conflito entre diversos valores e interesses, expressos em

    outros princpios fundamentais da ordem jurdica. Isso porque o princpio da

    proporcionalidade capaz de dar um salto hierrquico (hierarchical loop), ao

    ser extrado do ponto mais alto da pirmide normativa para ir at a sua base,

    onde se verificam os conflitos concretos, validando as normas individuais ali

    produzidas, na forma de decises administrativas, judiciais etc. Essa forma de

    validao tpica, permitindo atribuir um significado diferente a um mesmo

    conjunto de normas, a depender da situao a que so aplicadas. esse o tipo de

    validao requerida nas sociedades hipercomplexas da ps-modernidade ou, se

    preferirmos, para evitar o desgaste desse significante, o ps-moderno, podemos

    falar em sociedades hipermodernas, ou em uma s sociedade hipermoderna, a

    sociedade mundial, a sociedade da comunicao em rede. Nela se misturam

    21

  • criao (legislao) e aplicao (jurisdio e administrao) do Direito, tornando a

    linearidade do esquema de validao kelseneano pela referncia estrutura

    hierarquicamente escalonada do ordenamento jurdico em circularidade, com o

    embricamento de diversas hierarquias normativas, as tangled hierarchies da

    teoria sistmica. Concretamente, isso significa que assim como uma norma ao ser

    aplicada mostra-se vlida pela remisso a princpios superiores, esculpidos na

    Constituio, esses princpios validam-se por serem referidos na aplicao

    daquelas normas. o princpio da proporcionalidade, portanto, que permite

    realizar o que os norte-americanos chamam balancing de interesses e bens. A

    mesma idia de sopesamento, ponderao, expressa pela Abwgung dos

    alemes. E isso porque, para solucionar as colises entre interesses diversos de

    certas coletividades entre si e com interesses individuais ou estatais, to variadas

    e imprevisveis em sua ocorrncia, no h como se amparar em uma

    regulamentao prvia exaustiva, donde a dependncia incontornvel de

    procedimentos para fazer incidir o princpio da proporcionalidade, regulando o

    conflito de princpios, para atingir, assim, as solues esperadas.

    Compreende-se, ento, como o centro de decises politicamente

    relevantes, no Estado Democrtico contemporneo, sofre um sensvel

    deslocamento do Legislativo e Executivo em direo ao Judicirio. O processo

    judicial que se instaura mediante a propositura de determinadas aes,

    especialmente aquelas de natureza coletiva e/ou de dimenso constitucional -

    ao popular, ao civil pblica, mandado de injuno etc. - torna-se um

    instrumento privilegiado de participao poltica e exerccio permanente da

    22

  • cidadania, com vista necessria transformao social emancipatria. A Teoria

    Fundamental da Constituio aqui proposta levanta a pretenso de servir como

    instrumento cognitivo para essa transformao, enquanto Teoria jurdica emanada

    do Direito Constitucional do Estado Democrtico que, enquanto fundamental, de

    todo o Direito, desde que adequado a esta frmula poltica de vigncia

    insupervel: donde ser fundamental, ao invs de geral, pois se, por um lado,

    uma teoria ou geral ou no teoria propriamente, de outro lado, no possvel

    uma teoria do Direito em geral, de todo e qualquer um.

    4. A constituio vista por PETER HBERLE, em estudo j

    clssico, como processo, aberto para a participao pluralstica dos

    representantes das mais diversas interpretaes. A concepo da ordem

    constitucional como um processo, no qual se inserem os defensores de

    interpretaes diversas no momento de concretiz-la, e no como ordem j

    estabelecida, vem se mostrando como uma nova orientao em filosofia do direito,

    mais consentnea com o modo atual de se conceber o prprio conhecimento, de

    bases cientficas. que estas bases foram abaladas e substitudas pelas

    revolues que superaram na matemtica e na fsica o modo tradicional de

    figurao do espao, remontando geometria euclidiana, refinada pela analtica

    cartesiana e corroborada pelos resultados obtidos de sua aplicao no estudo da

    natureza, desde COPRNICO at culminar em NEWTON, passando por

    GALILEU, o que suscitou a conhecida formulao de THOMAS KUHN, sobre a

    substituio de paradigmas cientficos.

    23

  • Aqui, vem referida uma noo de importncia capital na

    epistemologia contempornea: aquela de paradigma, cunhada por THOMAS S.

    KUHN, em sua obra A Estrutura das Revolues Cientficas, de 1962. O

    paradigma de uma cincia pode ser definido, primeiramente, como o conjunto de

    valores expressos em regras, tcita ou explicitamente acordadas entre os

    membros da comunidade cientfica, para serem seguidas por aqueles que

    esperam ver os resultados de suas pesquisas - e eles prprios - levados em conta

    por essa comunidade, como contribuio ao desenvolvimento cientfico. Alm

    disso, integra o paradigma uma determinada concepo geral sobre a natureza

    dos fenmenos estudados por dada cincia, bem como sobre os mtodos e

    conceitos mais adequados para estud-los - em suma: uma teoria cientfica

    aplicada com sucesso, paradigmaticamente. Por essa caracterizao, percebe-se

    a conotao normativa que tem a noo de paradigma, donde se explica o fato,

    apontado por KUHN, de que os paradigmas, tal como outras ordens normativas,

    entrem em crise, rompam-se por meio de revolues, quando no se consegue,

    a partir deles, explicar certas anomalias, o que ocasiona sua substituio por

    algum outro. O exemplo tpico o da substituio, na fsica, no paradigma

    mecanicista de COPRNICO, GALILEU, GIORDANO BRUNO, NEWTON etc., por

    aquele relativista de ALBERT EINSTEIN, MAX PLANCK, NIELS BOHR, WERNER

    HEISENBERG etc.

    Da ter EDMUND HUSSERL, de sua perspectiva fenomenolgica,

    alertado para o carter restritivo do conhecimento obtido pelo formalismo

    cientfico, apesar de sua indubitvel eficcia, consubstanciando-se em ameaa ao

    24

  • mundo comum da vida (Lebenswelt), assim como BACHELARD, ao mesmo

    tempo em que, refletindo sobre a nova cientificidade oriunda dos avanos da fsica

    relativstica e quntica, apontava o seu carter aproximativo, em um processo

    inesgotvel de acercamento das descobertas, alertando, tambm, para a

    necessidade de se complementar os rigores do mtodo cientfico com a liberdade

    criativa da imaginao potica. essa nova cincia, processual e, por isso

    tambm, aberta, que se nos afigura homloga concepo aqui esposada, sobre

    a importncia de se reconhecer um sentido tambm processual constituio,

    para que assim ela se preste, cada vez mais, a ser o fundamento adequado, por

    dinmico ao invs de esttico, para uma ordem jurdica que se faz e refaz a cada

    dia, com a possibilidade de ir-se aperfeioando enquanto instrumento de incluso

    dos que a ela se sujeitam, permanecendo sujeitos dotados da dignidade de seres

    auto-conscientes.

    de todo conveniente o emprego de novas categorias em estudos

    que levam em conta a complexidade da realidade estudada, considerando que a

    mesma no existe para ns independentemente de nossa observao dela. S

    assim poderemos, igualmente, enfrentar melhor as questes ticas e jurdicas com

    que nos defrontamos em um mundo que a cincia vem, ao mesmo tempo,

    revelando e tornando mais complexo. Isso quer dizer, em termos sucintos, que se

    postula dever ser este um instrumento de promoo do aperfeioamento

    democrtico do poder e do saber. H, portanto, desta perspectiva aqui defendida,

    uma epistemologia que favorece a adoo de valores mais condizentes com o

    pluralismo democrtico, frmula poltica mais respeitosa dignidade dos seres

    25

  • humanos, tendo tal epistemologia sua adoo favorecida, no campo jurdico, por

    uma concepo terico-fundamental da constituio e, logo, tambm do Direito

    que nela se baseia -, assim como o desenvolvimento deste Direito fomentado

    por semelhante teoria de cincia jurdica.

    Em seu ltimo grande esforo filosfico, dedicado ao estudo do que

    denominou Crise das Cincias - ou da prpria Humanidade europias,

    HUSSERL enfatiza o papel do mundo da vida (Lebenswelt), enquanto conceito

    que se tem do mundo antes dele se tornar um campo de investigao da cincia

    moderna. a esse conceito que, ao final de sua longa e profcua trajetria de

    pensamento, Husserl vai recorrer para nos dar acesso ao campo mais prprio da

    filosofia, a saber, a subjetividade transcendental, onde se assentam as condies

    de validao de todo conhecimento, inclusive aquele de ordem matemtica, lgica

    e, em geral, cientfica. Isso no deixa de ser desconcertante, porque esta

    Lebenswelt o campo em que predominam as opinies comumente

    compartilhadas, a doxa, e, logo, o campo propcio ao desenvolvimento de saberes

    de corte dogmtico. certo que nunca houve da parte de HUSSERL uma postura

    depreciativa quanto ao que, no 26 das Ideen (Idias para uma Fenomenologia

    Pura e uma Filosofia Fenomenolgica), denomina de cincias da atitude

    dogmtica, assim considerando a todas as cincias, por se entregarem, sem

    maiores consideraes crticas ou epistemolgicas, investigao de seu objeto,

    enquanto atitude especificamente filosfica caberia a investigao dos

    pressupostos, validade e condies de possibilidade do conhecimento produzido

    despreocupadamente pelas cincias do primeiro tipo, as cincias tout court.

    26

  • Da se poder afirmar que no teria mudado, com o passar do tempo,

    o sentido do projeto fundacionista original da filosofia husserliana, enquanto

    filosofia que no apenas se d os prprios fundamentos, como tambm permite

    que se fundamente todas as cincias positivas, assim consideradas, sobretudo,

    aquelas naturais. Tal projeto inseparvel do intuicionismo adotado por

    HUSSERL, j em seus primrdios como matemtico, sob a influncia de seu

    professor, WEIERSTRASS, e de LEJ BROUWER, sendo direcionado

    exclusivamente aos conceitos das cincias, exposto nos estudos de filosofia da

    aritmtica e de lgica, tanto nas Investigaes Lgicas como em Ideen,

    especialmente no terceiro livro (Ideen III, in Husserliana, vol. V). O referido

    projeto se desdobra em duas etapas, sendo a primeira negativa, de crtica ao

    simbolismo e transformao alienante das cincias em mera tcnica, e a

    segunda, positiva, por voltada clarificao dos conceitos dessas cincias, a fim

    de fundament-las devidamente, sendo essa a tarefa a ser cumprida por

    HUSSERL com o recurso ao conceito de Lebenswelt, na dcada de 1930. Aqui

    vale recordar a doutrina husserliana do conceito, elaborada desde o perodo da

    filosofia da aritmtica, sob a influncia de seu mestre em filosofia, FRANZ

    BRENTANO.

    E se isso assim no campo das cincias naturais, mais grave ainda

    nos parece a situao no campo dos estudos jurdicos, onde nem sequer se

    costuma levantar a pretenso de fazer um trabalho cientfico, ostentando os

    profissionais dessa rea, com um certo orgulho, a etiqueta de operadores

    jurdicos, sem se dar conta do modo objetivante como concebem o Direito, tal

    27

  • como se fora uma mquina com a qual se opera, quando, se assim o fora, seriam

    eles as peas dessa engrenagem produtora de um pseudo-saber, de carter

    disciplinador.

    Para HUSSERL, no h nessa produo de saber contedo cognitivo

    algum, pois conhecimento, para ele, evidncia, verdade, criadas a partir da

    intuio, inteira e completamente entendida, o que se perde ao ser rompido o elo

    com o domnio dos objetos sobre o qual deveramos ser informados. Com isso,

    no se pergunta como as mltiplas validades pr-lgicas esto fundadas e so

    fundamentadas em relao s verdades lgico-tericas. O real primeiro a

    intuio subjetiva e relativa da vida pr-cientfica a doxa, que tida assim, como

    enganosa, para a vida cientfica, mas no para aquela pr-cientfica, em que um

    bom campo de verificao, donde se dever valorizar o direito originrio dessas

    evidncias, antes desprezadas. Da, pode-se buscar a conexo essencial entre as

    cincias (naturais) e o mundo pr-cientfico, com suas evidncias originrias,

    quando tambm aquelas cincias so formaes humanas, que habitam em

    unidade concreta no mundo da vida. Disso decorre a necessidade das cincias e

    da lgica perderem sua autonomia, ao serem reconduzidas a esta Lebenswelt,

    reportando a episteme doxa e subjetividade transcendental, onde se pode

    captar as estruturas desse nosso mundo, determinveis pelo fenomenlogo, uma

    vez determinada as condies de possibilidade do conhecimento donde a

    transcendentalidade do sujeito.

    O que aventamos, ento, especificamente, com a presente proposta,

    de estudo crtico do Direito, que se examine mais detidamente a projeo, no

    28

  • mbito da cincia dogmtico-jurdico, especialmente naquele modelo, ainda

    predominante, de corte positivista e formalista, da crtica intuicionista feita pelo

    ltimo HUSSERL ao modo como se lhe apresentava o quadro das cincias e da

    cultura ocidentais, no perodo de entreguerras, do sculo XX, sendo neste mesmo

    perodo em que se digladiavam diferentes concepes do direito e da cincia

    adequada a seu estudo, tendo como epicentro a proposta de Hans Kelsen.

    assim que PAUL AMSELEK, em Mthode phnomnologique et Thorie du Droit

    (1964), propugnar explicitamente ser KELSEN e sua Teoria Pura de se

    considerar um precursor da fenomenologia jurdica, o que ser repelido pelo

    prprio KELSEN, em longa resenha crtica da obra.15

    Algo semelhante ocorre em contribuies sul-americanas, como

    aquelas dos argentinos CARLOS COSSIO e integrantes de sua escola, da Teoria

    Egolgica do Direito, ou, mesmo, curiosamente, no pensamento daquele que seria

    seu opositor, poltico e cientfico, fundador da importante Escola Analtica

    Argentina, AMBRSIO GIOJA. No Brasil, algo semelhante se verifica, com a

    recepo da fenomenologia pelo culturalismo de MIGUEL REALE, em So Paulo,

    e tambm pelo logicismo semitico de LOURIVAL VILANOVA, em Recife, bem

    como pelo egologismo de MACHADO NETO, na Bahia. Mais recentemente, de

    se mencionar contribuies fenomenolgicas para o estudo do direito feitas por

    AQUILES CRTES GUIMARES, do Rio de Janeiro. J o uruguaio JUAN

    LLAMBAS DE AZEVEDO, com seu opsculo Eidtica y Aportica del Derecho, de

    1940, realizou esforo dotado de originalidade, donde ter sido brindado com justa

    15 Cf. KELSEN, Una teoria fenomenologica del diritto, Npoles: E.S.I., 1990.

    29

  • divulgao de seu trabalho, j em 1948, no volume Latin-American Legal

    Philopophy, publicado em Harvard. LLAMBAS procura captar a essncia (eidos)

    do direito no modo como ele se d no direito objetivo e coletivo, havendo, segundo

    ele, aquele direito que se d objetiva e solitariamente, em sua singularidade, como

    preferimos referir a esse fundamental e ainda pouco explorado aspecto do

    fenmeno jurdico. A definio essencial do direito como objeto coletivo, a que

    chega a investigao de LLAMBAS, a seguinte: Sistema bilateral e retributivo

    de disposies posta pelo homem para regular a conduta social de um crculo de

    pessoas e como meio de realizar os valores da comunidade. Como objeto

    solitrio, o tema da investigao eidtica o que nos afeta individual e

    pessoalmente como sendo direito, concentrando-se o autor no estudo do que

    denomina disposio jurdica, entendida como conceito superador daquela

    conhecida dicotomia kelseniana entre norma jurdica (Rechtsnorm) e proposio

    normativa (Rechtssatz). Conjugando os dois aspectos fundamentais do direito,

    nosso A. vai iniciar a parte de sua obra dedicada aportica, enquanto

    investigao de problemas apresentados pelo direito positivo, tido como mediao

    entre os valores da comunidade e a conduta humana, com a seguinte definio:

    O direito um sistema de disposies a servio dos valores da comunidade,

    postulando uma relao de meio e fim entre direito e valores, que entendemos

    deva ser buscada tendo como diretriz um princpio de proporcionalidade. Tal

    relao, contudo, encarada por LLAMBAS como um problema, e do tipo

    aportico, ou seja, sem sada, bastando que se considere ser a justia um

    desses valores, com toda a variedade de concepes que h a respeito, para que

    se perceba o que ele denomina aporia de justificao. O A. conclui

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  • descortinando um complexo de aporias, por trs do que se abre um mundo de

    princpios, de valores, uma pluralidade de valores individuais e comunitrios,

    entre os quais haveria de ser determinada a autonomia de uma esfera jurdica.

    Nesse ponto, em que conclui seu trabalho, referindo que no podemos dizer aqui

    termina, mas sim aqui comea a filosofia do direito, efetivamente, nos vemos

    confrontado com o tema da atualidade nesse nosso campo de estudos, algo que

    vem demonstrado, por exemplo, pelos esforos hercleos de autores

    contemporneos, e com propostas concorrentes, como so JRGEN HABERMAS

    e NIKLAS LUHMANN, ambos reconhecidamente influenciados pela

    fenomenologia, com contribuies tericas fundamentais para a compreenso do

    direito e da Constituio, com especial ateno para a dimenso processual de

    ambos, como aqui tambm se est propondo.16

    16 Cf., em geral, de nossa autoria, estudos feitos anteriormente sobre a temtica aqui abordada enfeixados em Teoria Processual da Constituio, So Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional/Celso Bastos Ed., 2a. ed., 2002, e A Filosofia do Direito (aplicada ao Direito Processual e Teoria da Constituio, 2 ed., So Paulo: Atlas, esp. o captulo sobre fenomenologia do processo.

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    Willis Santiago Guerra Filho*