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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015)
Apague os Rastros: a relativização da privacidade a partir dos novos Termos e Políticas do Facebook.1
Marília Duque Estrada Soares Pereira2
PPGCOM ESPM - SP
Resumo
Esse artigo tem como objetivo analisar a atualização dos Termos e Políticas do Facebook que passaram a vigorar desde 1º de janeiro de 2015 a partir da perspectiva da etnografia digital, retomando sua discussão ética sobre privacidade, consentimento e sobre a obtenção e uso de dados na Internet. A partir dela, refletiremos sobre os limites entre público e privado e como essa fronteira é negociada ou imposta por uma corporação com fins lucrativos sob ameaça de exclusão de seus usuários.
Palavras-chave: ética; privacidade; etnografia; redes sociais; Facebook.
Introdução
Já que Facebook optou por incluir o software que permitirá a utilização da minha informação pessoal, eu digo o seguinte: no dia de hoje, 26 de novembro de 2014, em resposta às novas orientações do Facebook e com base nos artigos l. 111, 112 e 113 da Lei 9279/96, sobre propriedade intelectual, declaro que os meus direitos estão unidos a todos os meus dados pessoais, desenhos, pinturas, fotos, textos, etc., publicados no meu perfil. Para a utilização comercial, exige-se meu consentimento por escrito a qualquer momento. O mesmo se aplica a todas as páginas de que sou responsável. Os que leem este texto podem copiá-lo e colá-lo no seu mural do Facebook. Isso lhes permitirá a proteção dos direitos de autor. Por esta versão, digo para o Facebook que ele está estritamente proibido de divulgar, copiar, distribuir, difundir ou tomar qualquer outra ação contra mim com base neste perfil e/ou seu conteúdo. As ações acima referidas são aplicadas por igual aos trabalhadores, estudantes, agentes e/ou funcionários do Facebook. O conteúdo do perfil inclui informação privada. A violação da minha privacidade é punida por lei. O Facebook agora é uma entidade de capital aberto. Se você não publicou esta declaração pelo menos uma vez, estará tacitamente permitindo o uso de elementos como suas fotos, bem como a informação contida na atualização de seu perfil.
1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho GT 4 - Comunicação, Consumo e Institucionalidades do 5º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2015. 2 Graduada em Publicidade e Propaganda pela ECA-USP. Mestranda do PPGCOM ESPM.
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Bastou o Facebook publicar em 26 de novembro de 2014 que uma atualização
em seus "Termos e Políticas"3 de uso e privacidade passaria a vigorar a partir de 1º de
janeiro do ano seguinte para posts com o texto acima citado começarem a ser
“viralizados” na rede. A partir dele, propomos uma discussão sobre as fronteiras do
privado e do público nesta rede social, o que nos permitirá discorrer sobre acesso e
participação, até chegarmos à questão ética de obtenção de dados de terceiros através
do dispositivo para outros fins que não o percebido pelos seus usuários, uma
discussão que será transpassada para o campo da pesquisa científica como um dilema
que se impõe aos etnógrafos que estudam pessoas através de suas representações em
comunicações mediadas por computador.
Neste sentido, este artigo se propõe a comparar a relativização da
responsabilidade e ética na observação de interações em rede, a partir das práticas do
Facebook, tendo como metapontos os protocolos e discussões acerca das obrigações
do etnógrafo e dos direitos à privacidade e à deliberação sobre consentimentos
contextualizados assegurados aos atores sociais observados.
Sob o comando de um.
Quando decidiu alterar seus Termos e Políticas de Dados e Privacidade, o
Facebook atingiu um em cada sete habitantes do planeta, proporção de usuários desta
rede social, que totaliza 1,35 bilhões de usuários ativos mensalmente e 140 bilhões de
"amigos conectados" 4 . Direta ou indiretamente, esta atualização instaura uma
discussão sobre como será tratada uma produção por minuto de 510 comentários
postados, 293 mil atualizações de status e 136 mil publicações de novas fotos5. Uma
das principais mudanças trazidas pelo documento enviado a cada usuário-membro diz
3 https://www.facebook.com/about/terms-updates/?notif_t=data_policy_notice 4 http://www.mediabistro.com/alltwitter/100-social-media-stats_b33696 5 http://newsroom.fb.com/Key-Facts, http://www.internetworldstats.com/stats14.htm, http://www.quintly.com/blog/2013/04/facebook-country-stats-april-2013/, http://zephoria.com/social-media/top-15-valuable-facebook-statistics/, http://www.mediabistro.com/alltwitter/100-social-media-stats_b33696,
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respeito, entretanto, não àquilo que se publica diretamente no Facebook, mas ao
comportamento que se mantém ainda em esfera privada.
Com sua Política de Dados6 que entra em vigor, o Facebook passa a coletar,
armazenar e manipular não só as publicações de seus usuários, mas também as pistas
deixadas por eles, o modo como eles agem ao fazer uso do dispositivo. Isso significa
que não serão registradas apenas as interações efetivas com determinado conteúdo,
mas o caminho feito até ele e o tempo que se permanece conectado a ele. Neste
sentido, o Facebook passa a ter conhecimento até sobre o que o usuário decide não
concretizar como representação externada de si mesmo.
Desta forma, mesmo sem acionar um recurso que efetive uma ação, o que
seria contemplado pelas Noções Básicas de Privacidade7 ofertadas ao usuário, como
"seu poder de personalizar sua experiência", serão gerados dados, como preferências e
gostos. Sobre eles, o Facebook não pede consentimento nem deixa brechas. Essa
coleta se dá à margem do conhecimento e do consentimento contextual de seus
autores: "também coletamos informações sobre como você usa nossos Serviços, por
exemplo, os tipos de conteúdos que você vê ou com que se envolve e a frequência ou
duração de suas atividades"8.
A triagem desses dados servem a dois propósitos. O primeiro é para a
delimitação de com quais pessoas o usuário mantém laços fortes dentro de sua rede
social (RECUERO, 2014). Ou seja, com base nas apropriações e usos das ferramentas
do dispositivo feita pelo usuário, na representação que constrói de si e nos efeitos
intencionais que essas representações geram nos outros como interações, o Facebook
desenha uma rede emergente, cujo conteúdo será priorizado para cada um de seus
membros.
Grosso modo, essa tabulação é controlada por um algorítimo até 2011
chamado de EdgeRank, quando o Facebook incorporou mais de 100 mil variáveis
para tabular o que seria prioritário e visível no feed de notícias de cada usuário e
6 https://www.facebook.com/about/privacy/update 7 https://www.facebook.com/about/basics 8 Política de Dados do Facebook: https://www.facebook.com/about/privacy/update
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declarou o termo obsoleto9. Entretanto, ainda hoje, de acordo com a mesma fonte, os
três fatores de base originais permanecem: 1) Affinity (afinidade): trata basicamente
da conexão entre o usuário e o conteúdo analisado, chamado pelo Facebook de objeto.
Quanto mais o usuário interage com esse objeto/conteúdo maior é seu grau de
afinidade com ele. 2) Edge (peso): refere-se ao peso conferido aos diferentes tipos de
interação. Um comentário em mural tem maior peso que um "Curti" porque requer
mais esforço por parte do usuário. 3) Decay (tempo): diz respeito ao tempo decorrido
entre a criação de um objeto/conteúdo e a interação com ele.
Ainda na perspectiva de Recuero (2014), o Facebook interpreta com quem o
usuário mantém um laço apenas associativo e com quem estabelece um laço
relacional, estruturado por laços fortes, "que se caracterizam pela intimidade, pela
proximidade em criar e manter uma conexão entre duas pessoas" (RECUERO, 2014,
p. 41) Ou seja, não são priorizadas as informações de todos os amigos ou páginas
curtidas pelo usuário, mas aquelas com as quais o algorítmo interpreta que haja
interesse e envolvimento efetivos. Umas vez que define arbitrariamente sua ou suas
redes emergentes de acordo com a qualidade dos laços que mantém com os nós que
elege dentro de sua rede social, o Facebook interfere diretamente em sua manutenção,
contribuindo para que laços fortes se tornem ainda mais fortes, simplesmente por
privilegiar e dar visibilidade a esses pares de atores sociais. É o que o próprio
Facebook define em sua Política de Dados 10 , no item Como Usamos Essas
Informações como "conteúdos personalizados" em que se permite "fazer sugestões" e
"fornecer atalhos".
Isso nos conduz ao segundo propósito da Política de Dados atualizada pelo
Facebook. Com base nos dados comportamentais de navegação de seus usuários,
incluindo aqueles derivados do uso direto do Facebook (interações armazenadas no
Registro de Atividades de cada usuário) ou não (graças aos cookies inseridos no
computador do usuário), o dispositivo também gera conteúdo comercial
personalizado, sugere páginas e serviços e fornece atalhos até eles. Sob a justificativa
9 http://searchenginewatch.com/article/2291146/EdgeRank-is-Dead-Long-Live-Facebooks-EdgeRank-Algorithm 10 https://www.facebook.com/about/privacy/update
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de ofertar uma melhor experiência, o Facebook desloca esses dados para uma segunda
plateia (Goffman, 2001), capaz de munir anunciantes com os perfis necessários para o
oferecimento de publicidade dirigida, que contabiliza as seguintes informações: Quando temos informações de localização, nós a usamos para personalizar nosso Serviços para você e outras pessoas, por exemplo, ajudando (grifo nosso) você a fazer check-in e encontrar eventos ou ofertas locais em sua área ou contando a seus amigos que você está nos arredores". E mais: "usamos as informações que temos para melhorar nosso sistema de publicidade e medição, assim podemos mostrar anúncios relevantes a você dentro e fora de nossos serviços, além de medir a eficácia dos anúncios e serviços11.
Ser livre, ser privado, ter acesso.
Através da divulgação de suas Noções Básicas de Privacidade, o Facebook dá
a seu usuário a sensação de que ele tem controle sobre o que será compartilhado com
e pelo dispositivo e para quem esse conteúdo será visível. "Você está no comando.
Estamos aqui para ajudar você a ter a experiência que deseja (grifo nosso)"12.
Printscreen do comunicado de atualização da Política e Termos de uso do Facebook, disponível em
https://www.facebook.com/about/terms-updates/?notif_t=data_policy_notice
11 Política de Dados do Facebook: https://www.facebook.com/about/privacy/update 12 Noções Básicas de Privacidade do Facebook: https://www.facebook.com/about/basics/
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Esse convite, entretanto, é restrito apenas às categorias: 1) "o que as outras
pessoas veem sobre você"; 2) "como as outras pessoas interagem com você", e 3) "o
que você vê". O poder sobre a experiência concedido ao usuário restringe-se à
interface pública do dispositivo. E a despeito dos posts em protesto à nova política,
como o apresentado na abertura deste artigo, o Facebook retoma sua natureza de
companhia privada e apresenta de forma taxativa seus Termos de Serviço 13 ,
lembrando que trata-se da oferta de um serviço desenhado de acordo com os
interesses dos acionistas da corporação, restando ao usuário as opções de aceitar os
termos impostos ou excluir sua conta, em uma estratégia "take it ou leave it"14,
criticada por Nissenbaun (2011), em sua discussão sobre a necessidade de uma
abordagem contextualizada da privacidade online. No item 13, está escrito:
1) notificaremos você antes de fazer alterações nestes termos e lhe daremos a oportunidade de analisar e comentar os termos revisados antes de continuar a usar nossos Serviços, 2) se fizermos alterações em políticas, diretrizes ou outros termos mencionados ou incorporados nesta Declaração, poderemos apresentar um aviso na Página de Governança do Site, e 3) se você continuar a usar os Serviços do Facebook depois do aviso de alterações em nossos termos, políticas ou diretrizes, isso constituirá sua aceitação dos termos, políticas ou diretrizes alterados.
Para o usuário, parece-nos ocorrer uma confusão sobre a natureza privada do
Facebook. Acreditamos, sem base empírica, que isso possa se dar pelo acesso ao
serviço ser gratuito, pela sua abrangência global e pela "voz concedida ao usuário".
Desta forma, se a insatisfação fosse numericamente representativa, caberia ao
Facebook adaptar sua política. Entretanto, se o serviço é ofertado democraticamente,
as decisões sobre ele não estão abertas à discussão. Neste sentido, julgamos pertinente
a reflexão sobre acesso, interação e participação desenvolvida por Carpentier (2012).
O Facebook prevê acesso gratuito a qualquer pessoa que tenha um dispositivo
que rode o programa (desktop, tablet, celular) e uma conexão à internet (a cabo ou
wireless). Para se credenciar como membro, é necessário que se crie um perfil de
usuário com informações pessoais e que se aceite os Termos e Políticas da empresa
no que diz respeito a usos, dados, serviços e privacidade. Neste momento, confere-se
13 Termos de Serviço do Facebook: https://www.facebook.com/legal/terms/update 14 Pegar ou largar.
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ao usuário uma série de opções sobre quais informações disponibilizar em seu perfil.
Existem, entretanto, informações básicas obrigatórias e o compromisso de que sejam
verdadeiras, estando itens falsos sujeitos à penalidades previstas em contrato. Em
2014, por exemplo, perfis que usavam nomes diferentes dos de batismo foram
notificados sobre a necessidade de adequação. Transsexuais e drag queens foram os
principais grupos afetados e aqueles que não acataram ao alerta tiveram suas contas
bloqueadas e até excluídas15.
Além dessas escolhas, o Facebook dá ainda "liberdade" para o usuário escolher os
amigos que farão parte de sua rede social e, principalmente, decidir sobre para quem
suas representações de si serão visíveis e compartilhadas. Isso garante a interação
inaugurada pela Web 2.0 e a sensação de empoderamento, dando aos atores sociais
um papel de co-autores do conteúdo da rede, o qual, entretanto, não se consolida
como uma participação efetiva, senão como uma performance autoral circunstancial
frente ao uso das ferramentas, recursos e normas definidas pelos termos de uso do
serviço.
Para Carpentier (2012), a participação está relacionada com a co-criação
dessas ferramentas e recursos e, principalmente, com a decisão sobre suas normas,
funcionalidades, aplicações, desdobramentos e usos. Uma rede participativa, ao
contrário do que acontece de fato no Facebook, conferiria a seus membros voz efetiva
no desenho de suas políticas, uma posição de igualdade na esfera de sua produção,
incluindo a definição de seus regulamentos e usos que constituiriam a rede em sua
essência. O autor cita a definição de Paterman (1970 apud Carpentier, 2012) sobre
participação como influência ou mesmo igualdade de poder nas relações durante os
processos de tomada de decisão.
A imposição feita pelo Facebook no que concerne ao uso dos dados de seus
usuários, sejam os dados publicados por ele no dispositivo ou não, para fins
divergentes daqueles aos quais a rede se propõe (ao incorporar publicidade dirigida de
acordo com comportamento, por exemplo), traz à tona uma problemática ética muito
próxima da experimentada por qualquer etnógrafo cujo objeto de estudo esteja na 15 http://igay.ig.com.br/2014-07-17/facebook-apaga-perfis-de-trans-e-drag-queens-e-revolta-usuarias.html
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internet. É a partir das condutas éticas que se espera de um pesquisador que
seguiremos analisando a nova Política de Uso e Noções Básicas de Privacidade
inauguradas pelo Facebook.
Sobre a ética na obtenção e uso de dados na Internet.
Estaella e Ardevol (2007) refazem o percurso da evolução ética nas pesquisas
com seres humanos desde a Segunda Guerra Mundial até os estudos etnográficos na
internet, na tentativa de adaptar protocolos para as pesquisas mediadas por
computador, nas quais o objeto não é diretamente o sujeito, mas suas representações
publicadas em rede.
Neste sentido, sobre a necessidade de informar um usuário de que seus dados
serão observados e coletados para um outro fim, a pesquisa etnográfica neste caso, as
autoras diferenciam consentimento informado, consentimento implícito e
consentimento limitado, como negociações possíveis entre investigador e sujeito.
No consentimento informado, cabe ao pesquisador tornar explícito aos
envolvidos os propósitos e detalhes da pesquisa para o qual se solicita adesão. É
exatamente o que o Facebook simula fazer ao tornar de conhecimento de seus
usuários sua Política de Uso, Termos, Cookies e Noções Básicas de Privacidade. Com
uma diferença: neste caso, o consentimento para uso dos dados do usuário para fins
comerciais, explicitado na Política de Dados e que extrapola o propósito primeiro das
interações nesta rede social, é imposto como cláusula non-starter para uso dos
serviços. Não é dada ao usuário a possibilidade de escolher não compartilhar suas
informações, mesmo aquelas que não são tornadas públicas pelo dispositivo.
Em seus Termos de Serviço16, o Facebook é taxativo:
Esta Declaração de Direitos e Responsabilidades ('Declaração', 'Termos' ou 'DDR') é baseada nos Princípios do Facebook representa os termos de serviço que regem nosso relacionamento com os usuários e outras pessoas que interagem com o Facebook, bem como marcas, produtos e serviços do Facebook que não possuam termos separados ou que estejam vinculados a estes termos, que chamamos 'Serviços do Facebook', ou 'Serviços'. Ao usar ou acessar os Serviços do Facebook, você concorda com esta Declaração.
16 Termos de Serviço do Facebook: https://www.facebook.com/legal/terms/update
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O uso que o Facebook faz abertamente das informações de seus usuários
(interações e comportamentais) se estabelece, desta forma, menos como
consentimento informado e mais como consentimento implícito: ao usar o Facebook
como rede social, fica implícito o consentimento para a manipulação de dados e
rastros deixados na rede. Através do discurso de que "Você está no comando" e de
uma postura baseada na transparência em sua Política de Dados17, o Facebook
dissimula uma relação autoritária:
Nós esperamos que estas atualizações (da Política de Privacidade, da Política de Dados e dos Termos de Uso) melhorem a sua experiência. Proteger as informações das pessoas e fornecer controles de privacidade significativos é a base de tudo o que fazemos. Acreditamos que esses anúncios são um importante passo nessa direção.
O tom de diálogo esvazia-se veemente, entretanto, na cláusula Rescisão dos
Termos de Serviços18:
Se você violar o texto ou a essência desta Declaração, ou gerar possível risco ou exposição legal para nós, podemos deixar de fornecer todo ou parte do Facebook para você. Notificaremos você por e-mail ou na próxima vez que você tentar acessar sua conta. Você também pode excluir sua conta ou desativar seu aplicativo a qualquer momento. Em todos esses casos, esta Declaração perderá sua vigência, mas as seguintes disposições ainda serão aplicáveis: 2.2, 2.4, 3-5, 9.3 e 14-18.
Neste sentido, o que o Facebook viola é a conduta ética que prevê que todo
consentimento para pesquisas e obtenção de dados na internet passa a priori por um
consentimento limitado (ESTAELLA E ARDEVOL, 2007). Porque o consentimento
dado ao observador não necessariamente engloba todos os espaços, dinâmicas e
momentos do indivíduo ou grupo observados.
Nissenbaum (2011) apresenta ainda a necessidade de grandes player online
como o Facebook desenvolverem um consentimento contextualizado, negociado
pontualmente, levando-se em consideração as intenções e expectativas do usuário ao
fazer uso do dispositivo. Na proposta da autora, os termos de aceite do uso de serviços
de uma plataforma como esta deveriam ser informados organicamente e o destino dos
dados gerados por cada ação negociado pontualmente, principalmente quando
17 Política de Dados do Facebook: https://www.facebook.com/about/privacy/update 18 Termos de Serviço do Facebook: https://www.facebook.com/legal/terms/update
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coletados para fins que extrapolam a percepção e intencionalidade do membro da rede
social.
A despeito disto, o Facebook desenvolve um discurso de preservação da
privacidade e de empoderamento do usuário no que diz respeito às suas decisões
sobre o que e para quem serão publicadas suas representações, mas invade espaços
que extrapolam esse uso, impondo sua Política de Cookies que torna possível
monitorar comportamentos que deveriam estar protegidos na esfera privada, porque
ainda não compartilhados com e pelo dispositivo.
Alguns exemplos são explicitados na Política de Dados19, como:
1) coletamos informações quando você acessa ou usa sites e aplicativos de terceiros que utilizam nossos Serviços (por exemplo, oferecem nosso botão Curtir, Login do Facebook ou usam nossos serviços de medição e publicidade). Isso inclui informações sobre sites e aplicativos que você visita, seu uso dos nossos Serviços nestes sites e aplicativos, bem como informações que os desenvolvedores ou editores de publicações do aplicativo ou site fornecem para você ou para nós, 2) coletamos informações de ou sobre computadores, telefones e outros dispositivos em que você instala ou acessa nossos Serviços, dependendo das permissões concedidas, 3) se você usar nossos Serviços para compras ou transações financeiras (por exemplo, para comprar algo no Facebook, em um jogo ou fazer uma doação), nós coletaremos informações sobre a compra ou transação. Isso abrange suas informações de pagamento, como o número do seu cartão de crédito ou débito e outras informações do cartão, informações de conta e autenticação, além dos dados de faturamento, envio e contato, e 4) coletamos informações sobre as pessoas e grupos com que você se conecta e sobre como interage com eles, por exemplo, as pessoas com quem você mais se comunica ou os grupos com que gosta de compartilhar informações. Também coletamos informações que você fornece quando carrega, sincroniza ou importa estas informações (como uma agenda de contatos) de um dispositivo.
Ainda na discussão ética proposta por Estaella e Ardevol (2007), não caberia à
tecnologia ou ao dispositivo determinar os limites entre público e privado em um
espaço de interação. Sua demarcação dependeria da percepção dos usuários durante a
interação. Neste sentido, público e privado não permanecem como categorias
absolutas, mas contextuais, devendo ser interpretadas de acordo com a perspectiva do
grupo usuário. Recuero (2014), ao considerar os espaços de interação como lugares de
fala dos quais os sujeitos se apropriam para construir e externar sua identidade digital,
19 Política de Dados do Facebook: https://www.facebook.com/about/privacy/update
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reitera que "essas apropriações funcionam como uma presença do 'eu' no ciberespaço,
um espaço privado que é ao mesmo tempo público" (p.27).
Na perspectiva de uma observação não-participante, há ainda o embate entre
duas interpretações. Walther (2002 apud Estaella & Ardevol, 2007) considera que a
pesquisa na internet trata-se de uma pesquisa de arquivos tornados públicos. Não há
interação direta com o sujeito, mas com suas representações, com a produção e rastros
deixados por ele, o que dispensaria qualquer tipo de consentimento de sua parte. Já
King (1999 apud Estaella & Ardevol, 2007) contrapõe que, com base em indícios, os
integrantes de um grupo na internet (uma rede social, como o Facebook, por exemplo)
experimentam um sentimento de privacidade, independentemente de suas interações
se manterem públicas. Para eles, a evolução de um laço associativo para um laço
relacional (RECUERO, 2014), já configuraria um espaço à parte, com normas e
pactos definidos prioritariamente por seus integrantes.
Uma análise sobre a Política de Uso e Noções Básicas de Privacidade do
Facebook, em nosso entendimento, entretanto, não se situa no contexto dessa
discussão. Antes dela, elegemos importante refletir se a observação feita pelo
Facebook é ou não participante. Sob a justificativa de coleta de dados para melhoria
da experiência personalizada de cada usuário, o Facebook diz "às vezes, as pessoas
perguntam como suas informações são compartilhadas com os anunciantes. Nós
ajudamos os anunciantes a alcançarem as pessoas com anúncios relevantes sem dizer
para eles quem é você e, nesse aspecto, nada será alterado com essas atualizações"20.
Se o Facebook usa os dados do usuário para definir o que lhe será visível,
tanto no que diz respeito à publicidade, quanto ao que diz respeito a privilegiar
amigos ou informações com base no EdgeRank, sua observação, propomos, é
participante. Ele contribui e influencia para a dinâmica da rede social de cada um de
seus usuários, sugerindo amigos e produtos, restringindo o acesso àquelas
informações que o dispositivo julga irrelevantes para cada sujeito. A possibilidade de
ter uma experiência personalizada não é mais uma escolha, mas uma imposição,
20 Notificação atualização de Termos de Uso e Serviços: https://www.facebook.com/about/terms-updates/?notif_t=data_policy_notice
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baseada em dados que extrapolam o próprio universo de uso do Facebook e seus
serviços, alienando o sujeito de decidir individualmente sobre ela.
Breve discussão sobre a visibilidade do etnógrafo.
A problemática trazida pela nova Política de Uso e Noções Básicas de
Privacidade do Facebook permite ainda a discussão sobre a declaração da presença do
observador em estudos na Internet. A postura do Facebook é questionável porque ele
torna pública a decisão da corporação de apropriar-se de dados não compartilhados
explicitamente por seus usuários no e pelo dispositivo, deslocando-os para fins
comerciais, e impõe seu aceite como condição para uso de seus serviços. Ao fazê-lo,
entretanto, ele atende ao pressuposto ético de tornar essa relação minimamente
transparente, informando a seus usuários que estará presente e coletando informações
sempre que eles estiverem conectados.
Nissenbaum (2011) faz, entretanto, uma contraponto sobre os efeitos gerados
quando pessoas conectadas em rede têm o sentimento de ser monitoradas, como no
caso dos usuários do Facebook a partir da divulgação dos termos de uso, política de
cookies e gerenciamento de privacidade. Segundo a autora, se as pessoas esperam ser
monitoradas, se elas se antecipam ao fato de que as informações geradas por elas em
seus fluxos interativos serão compartilhadas "com terceiros, por dinheiro ou
favorecimento, elas tendem a tornarem-se mais vigilantes, alertas, circunspectas ou
não-cooperativas"(p.45).
Além desta postura defensiva, retomando a perspectiva de Goffman (2001) de
que toda a interação social é feita tal qual uma representação teatral com uma
finalidade e destinada a uma plateia específica, consideramos pertinente ainda uma
reflexão complementar sobre o impacto específico que a nova Política de Uso e
Noções Básicas de Privacidade podem trazer para a relação dialógica entre
observador e atores sociais em futuros estudos de etnografia em rede.
Com os novos recursos de gerenciamento de privacidade, o Facebook permite
o gerenciamento da visibilidade das publicações e interações de seus usuários. Isso
significa efetivamente a possibilidade de delimitação de interlocutores e plateias, seja
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015)
através da personalização de privacidade post a post, seja pela criação de listas
segmentadas.
Printscreen do tutorial Noções Básicas de privacidade, disponível em
https://www.facebook.com/about/basics/
Isso implica que, ao revelar sua presença, o etnógrafo corre o risco, a partir da
implementação dessas funcionalidades, que o sujeito observado passe a gerenciar as
suas representações na rede a fim de construir uma face única para o observador.
O gerenciamento dos conteúdos do que será visível para quem, inaugurado
pelas funcionalidades trazidas com as novas Noções Básicas de Privacidade,
permitiriam ao usuário apagar ou gerenciar representações e construir uma linha de
atuação única, para a pesquisa da qual faz parte, vista como um ritual de interação
com novas demandas de fachada, incluindo aspectos como deferimento e porte
(GOFFMAN, 2012). Daí a importância do observador perseguir o estabelecimento de
uma relação de confiança, capaz de amenizar a imposição do marco do investigador
(GUBER, 2004), em um diálogo reflexivo e inclusivo.
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Conclusão: a privacidade monitorada
O que você disser, não diga duas vezes.
Encontrando o seu pensamento em outra pessoa: negue-o. Quem não escreveu sua assinatura, quem não deixou retrato
Quem não estava presente, quem nada falou Como poderão apanhá-lo?
Apague os rastros!
(Bertold Brecht)
No contexto da Comunicação Mediada por Computador e da Sociedade em
Rede, o poema de Bertold Brecht perde seu viés crítico para assumir um caráter
utópico. Manter certos rastros ocultos não é mais uma possibilidade para 1 em cada 7
habitantes da Terra, proporção atual dos usuários do Facebook21. Todos os seus passos
são registrados, contabilizados e devolvidos a eles em forma de publicidade ou de
hierarquização das informações dos membros de suas redes sociais.
Esse contrato é estabelecido por uma relação de poder, estruturada em rede. O
poder de exclusão da rede aumenta de acordo com o incremento de seu valor e o
tamanho e relevância que a rede atinge (CASTELLS, 2010). É a ameaça de deixar de
fazer parte de uma das redes sociais mais expressivas da atualidade que coage os
usuários do Facebook a aderirem a suas regras. Essa ameaça de exclusão é o que
impulsiona a inclusão e a manutenção dos valores impostos a seus componentes pelo
grupo acionário, de acordo com seus interesses.
Nissenbaum (2011) aponta que a livre escolha de usuários de pagarem por
serviços como o ofertado pelo Facebook com sua privacidade é relativa e
questionável, quando se considera os danos e prejuízos sociais, comerciais e
financeiros potenciais causados pela não-associação à rede, deixando de configurar
uma escolha para assumir o status de necessidade.
A natureza de corporação privada do Facebook, respaudada pela força
alcançada pela rede, confere-lhe um poder unilateral, mascarado na oferta de um
empoderamento concedido a seus usuários no que diz respeito à privacidade do que é
publicado pelo dispositivo. "Concedemos a você o poder de compartilhar como parte
21 http://www.mediabistro.com/alltwitter/100-social-media-stats_b33696
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da nossa missão de tornar o mundo mais aberto e conectado"22. Sobre os rastros e
sobre o que não é compartilhado, não há, entretando, diálogo, nem negociação. Há
apenas a sentença conclusiva: "Se desativarmos sua conta, você não deverá criar outra
sem nossa permissão".
Referências Bibliográficas
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