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Terra do Pecado - Jose Saramago.pdf

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutandopor dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo

    nvel."

  • Jos Saramago

    TERRA DO PECADO

  • AVISO O autor um rapaz de vinte e quatro anos, calado, metido consigo, que ganha avida como praticante de escrita nos servios administrativos dos Hospitais Civisde Lisboa, depois de ter estado a trabalhar durante mais de um ano comoaprendiz de serralheria mecnica nas oficinas dos ditos hospitais. Tem poucoslivros em casa porque o ordenado pequeno, mas leu na Biblioteca Municipaldas Galveias, tempos atrs, tudo quanto a sua compreenso logrou alcanar.Ainda estava solteiro quando um caridoso colega da repartio, segundo-oficial,de apelido Figueiredo, lhe emprestou trezentos escudos para comprar os livrinhosda coleco Cadernos da Editorial Inqurito. A sua primeira estante foi umaprateleira interior do guarda-loua familiar. Neste ano de 1974 em que estamosnascer-lhe- uma filha, a quem medievalmente dar o nome de Violante, epublicar o romance que tem andado a escrever, esse a que chamou A Vivamas que vai aparecer luz do dia com um ttulo a que nunca se h-de acostumar.Como no tempo em que viveu na aldeia j havia plantado umas quantas rvores,pouco mais lhe resta para fazer na vida. Supe-se que escreveu este livro porquenuma antiga conversa entre amigos, daquelas que tm os adolescentes, falandouns com os outros do que gostariam de ser quando fossem grandes, disse quequeria ser escritor. Em mais novo o seu sonho era ser maquinista de caminho-de-ferro, e se no fosse por causa da miopia e da diminuta fortaleza fsica,imaginando que no perderia a coragem entretanto, teria ido para aviadormilitar. Acabou em manga-de-alpaca do ltimo grau da escala hierrquica e tocumpridor e pontual que hora de comear o servio j est sentado pequenamesa em que trabalha, ao lado da prensa das cpias. No sabe dizer como lheveio depois a ideia de escrever a histria de uma viva ribatejana, ele que deRibatejo saberia alguma coisa, mas de vivas nada, e menos ainda, se existe omenos que nada, de vivas novas e proprietrias de bens ao luar. Tambm nosabe explicar por que foi que escolheu a Parceria Antnio Maria Pereira quando,com notvel atrevimento, sem padrinhos, sem empenhos, sem recomendaes,se decidiu a procurar um editor para o seu livro. E ficar para sempre como umdos mistrios impenetrveis da sua vida haver-lhe escrito Manuel Rodrigues, daEditorial Minerva, dizendo ter recebido A Viva na sua casa por intermdio daLivraria Pax, de Braga, e que passasse ele pela Rua Luz Soriano, que era ondeestava a editora. Em momento nenhum ousou o autor perguntar a ManuelRodrigues por que aparecia a tal Pax metida no caso, quando a verdade que stinha enviado o livro Antnio Maria Pereira. Achou que no era prudente pedirexplicaes sorte e disps-se a ouvir as condies que o editor da Minervativesse para lhe propor. Em primeiro lugar, no haveria pagamento de direitos.Em segundo lugar, o ttulo do livro, sem atractivo comercial, deveria sersubstitudo. To pouco habituado estava o nosso autor a andar com tostes de

  • sobra no bolso e to agradecido a Manuel Rodrigues pela aventura arriscada emque se ia meter, que no discutiu os aspectos materiais de um contrato que nuncaveio a passar de simples acordo verbal. Quanto ao rejeitado ttulo, aindaconseguiu murmurar que iria tentar outro, mas o editor adiantou-se, que j otinha, que no pensasse mais. O romance chamar-se-ia Terra do Pecado.Aturdido pela vitria de ir ser publicado e pela derrota de ver trocado o nome aesse outro filho, o autor baixou a cabea e foi dali anunciar famlia e aosamigos que as portas da literatura portuguesa se tinham aberto para ele. Nopodia adivinhar que o livro terminaria a pouco lustrosa vida nas padiolas.Realmente, a julgar pela amostra, o futuro no ter muito para oferecer ao autorde A Viva.

    J. S.

  • I Um enjoativo cheiro a remdios adensava a atmosfera do quarto. Respirava-secom dificuldade. O ar, demasiadamente aquecido, mal penetrava nos pulmesdo doente, de cujo corpo se divisavam os contornos por baixo das cobertasdesalinhadas, donde se exalava um odor a febre que entontecia. Da sala do lado,amortecido pela espessura da porta fechada, vinha um surdo rumor de vozes. Odoente oscilava devagar a cabea sobre a almofada manchada de suor, numgesto de fadiga e de sofrimento. As vozes afastaram-se pouco a pouco. Embaixo, uma porta bateu e estropearam as patas dum cavalo. O rudo da areiaesmagada ao trotar do animal cresceu de sbito sob a janela do quarto e cessoulogo como se os cascos pisassem lama. Um co ladrou.Por detrs da porta ouviram-se passos cautelosos e medidos. O trinco dafechadura rangeu de leve, a porta abriu-se e deu passagem a uma mulher que seaproximou da cama. O doente, despertado da sua modorra inquieta, perguntou,num sobressalto:- Quem est a? - e depois, reparando: Ah, s tu! Onde est a senhora?- A senhora foi acompanhar o senhor doutor porta. No deve tardar...Respondeu-lhe um suspiro. O doente olhou com tristeza as longas mos, magras eamarelas como as mos duma velha.- Sempre verdade que estou muito mal, Benedita? E que, segundo todas asaparncias, no devo salvar-me desta?- Credo, senhor Ribeiro! Por que fala em morrer? No isso que diz o senhordoutor...- Meu irmo?...- Sim, senhor! E tambm o senhor doutor Viegas, que saiu agora. No deve terpassado ainda o porto da quinta. Deus Nosso Senhor o guarde de maus encontrosquando passar ao p do cemitrio, que ainda vai para as bandas dos Mouches!...O doente sorriu. Um sorriso vago, que lhe alegrou fugidiamente o rostoemagrecido e que lhe engelhou os lbios finos e secos. Passou a mo pela barbadensa, raiada de branco no queixo, e respondeu:- Benedita, Benedita, olha que no razovel falar de cemitrios a um doentegrave, que v com frequncia demasiada, atravs da janela do quarto, os murosde um dos tais!...Benedita desviou o rosto e enxugou duas lgrimas que lhe assomavam splpebras cansadas.- Choras?

  • - No posso ouvir falar nessas coisas, senhor Ribeiro. O senhor no pode morrer!- No posso morrer? Tonta!... Bem vs que posso... Todos ns podemos!Benedita tirou o leno da algibeira do avental e limpou, devagar, os olhoshmidos. Depois dirigiu-se para a cmoda, onde uma imagem da Virgemparecia mover-se na oscilao da luz das velas que a rodeavam, juntou as mose murmurou:- Ave, Maria, cheia de graa...O silncio caiu no quarto. Apenas o sussurro dos lbios de Benedita o interrompiano murmurar da orao. Do fundo do aposento saiu a voz do doente, um tantoenfraquecido e trmula:- Que bela f tu tens, Benedita! E essa a verdadeira crena, a que no discute, aque se conforma e acha em tudo a prpria explicao.- No entendo, senhor Ribeiro. Creio e nada mais...- Sim!... Crs e nada mais... No ouves passos?- Deve ser a senhora dona Maria Leonor.A porta descerrou-se lentamente e entrou MariaLeonor, vestida de escuro, com uma mantilha de renda negra sobre os cabelosclaros e brilhantes.- Ento, que disse o doutor Viegas?- Acha-te no mesmo estado, mas cr que melhorars dentro de pouco tempo.- Cr que melhorarei... Sim! Melhorarei, por certo.Maria Leonor encaminhou-se para a cama e sentou-se beira do doente. Osolhos dele, febris, procuraram os dela. Num enternecimento brusco, perguntou:- Tu choraste?- No, Manuel! Por que havia de chorar? No ests pior, daqui a algum tempoestars curado... Que motivos terei para chorar? A passarem-se as coisas comodizes, no tens, de facto, motivos...Benedita, que estivera absorta, acabando a orao, aproximou-se dos dois:- Vou ver se os meninos dormem, minha senhora.- Vim de l agora e estavam a dormir. Mas vai, vai...- Com licena!A porta fechou-se atrs de si. Percorreu um longo corredor mergulhado empenumbra, onde os passos, amortecidos pela alcatifa, soavam surdamente. Abriuuma porta grande e pesada, atravessou uma sala deserta e iluminada por duasgrandes manchas de luar no sobrado, onde se estendia uma cruz de sombra. Foi

  • at janela, abriu-a e olhou para fora. A lua fazia cintilar as rvores e as casasdispersas pela quinta. Do andar de baixo subia um rudo de vozes. No terreiroalongavam-se, como os cinco dedos da mo, as projeces luminosas das cincofrestas da cozinha.Benedita cerrou devagar as janelas e correu os ferrolhos dos caixilhos. Asapalpadelas, dirigiu-se a uma porta cujas frinchas deixavam passar fracos raiosde luz. Entrou.Em duas camas pequenas, lado a lado, dormiam duas crianas. Uma lmpadacolocada em cima de uma mesa baixa espalhava em redor a sua claridademortia e trmula. Benedita debruou-se a contemplar os dois adormecidos.Uma das crianas mexeu-se e, depois de deitar um dos braos para fora daroupa que a tapava, encolheu-se toda, suspirando, e continuou a dormir. Beneditasentou-se numa cadeira e ps-se a vigiar as crianas, envolvida pelo silncio quepesava sobre a casa. Embrulhou-se no xale que trazia nos ombros e,insensivelmente, foram-se-lhe as plpebras fechando, entorpecendo. Noadormeceu de todo, mas ficou imersa numa sonolncia mole, num torporagradvel, de que acordava a espaos para logo continuar. O seu desejo seria irdeitar-se. Mas, para qu? De um momento para o outro, teria de levantar-se,para atender o patro. To bom senhor, aquele! O nico que, no seu modo dever, poderia ter merecido a menina Maria Leonor, a quem agora, alis, j nochamava menina. Depois que a ama casara, costumara-se a chamar-lhe senhoradona Maria Leonor, e senhora dona Maria Leonor ficara para sempre. Bem quelhe custara a habituar-se, mas, enfim, no era ela uma senhora casada? A si, que ningum quisera para mulher e agora, com quarenta e dois anos, j no eratempo. Benedita sorria no meio do seu devanear, recordando o casamento dasenhora. Bela festa, como nunca vira outra! Depois da cerimnia, tinham partidoos trs para a Quinta Seca, que de seca s tinha o nome, actualmente. Nosprimeiros tempos, ambas tinham sofrido de saudades, mas o senhor ManuelRibeiro levara-as algumas vezes a Lisboa. Por fim, acabaram por no desejaraquelas viagens. Era to agradvel viver no campo, fora da balbrdia das ruasapinhadas de gente, que ambas j detestavam e temiam! Os anos passaram, eela tinha duas crianas para entreter e para adorar. No! Nada mais desejava.Era feliz. S h pouco tempo a doena do patro viera interromper a felicidadeda casa. Nem j os trabalhadores da quinta pareciam os mesmos. Todos os diasqueriam saber das melhoras do patro e, perante as respostas quase sempredesanimadoras, suspiravam, pesarosos. Era um raio duma doena... Nem omano do senhor, o senhor doutor Antnio Ribeiro, nem aquele outro mdico doParreiral, o doutor Viegas, atinavam com o remdio para a molstia. Doena toruim era ela, que o patro estava uma sombra do que fora antes. Talvez securasse, mas no seria, decerto, nunca mais, o mesmo homem que conseguirafazer daquele cho quase bravio, que herdara do pai, a mais formosa quinta dos

  • arredores. Benedita bem podia dizer que vira o milagre realizar-se diante dosseus olhos, ano a ano, estao a estao. E agora... O patro estava doente.Quisesse Deus que ele sarasse, e a sua presena bastaria para que aquelescampos no deixassem de ser o que eram! Mas se ele morria, que desastre,Senhor Deus! A quinta era o nico bem da famlia, e, sem o brao dum homema sustent-la, seria a pobreza. A senhora dona Maria Leonor era uma mulhercorajosa e firme, disso estava certa. Mas seria suficiente?Benedita despertou. Teve um ligeiro estremecimento ao reparar nas crianas querepousavam. Levantou os olhos para o relgio de parede que tiquetaqueavamonotonamente no quarto. Meia-noite e meia hora! Como se deixara assimamodorrar? No dormira, isso no, mas as plpebras pesavam-lhe imenso e acabea caa-lhe para o peito, atordoada. Tinha sono. Que faria a senhora quelahora? Velava o marido, decerto. Sorriu, triste, pensando que tambm gostaria develar o seu marido, se o tivesse. Nunca homem nenhum lhe dissera, porm, oque o senhor Manuel Ribeiro dizia senhora e que, por vezes, ouvia. Os quartoseram to prximos que os rudos mais fortes atravessavam as paredes e iamretinir-lhe nos ouvidos como risadas de troa. Deitada na sua estreita cama, ouviae sofria, em silncio, a pena de estar s. S, estaria toda a vida, com certeza. Eraapenas dois anos mais velha que o senhor. Poderia ser esposa dele, se Deus otivesse querido...Abanou a cabea com fora, expulsam o os ltimos restos do sonho. Ergueu osbraos retesados e espreguiou-se. Um quebranto delicioso invadiu-lhe osmembros. Reagindo, levantou-se da cadeira e, depois de olhar de novo ascrianas adormecidas, saiu do quarto, levando a lmpada que lhe derramava noavental uma luminosidade dourada.Bateu uma hora. Do andar de baixo j no vinha o rumor das vozes. Tinham idodeitar-se, os criados. A chuva percutia as vidraas: o Inverno nunca mais tinhafim. Parecia que o cu se desentranhava em gua e que fazia da terra um marde lama. Havia j algumas semanas que no se podia trabalhar na quinta.Benedita entrava no patamar da escada que descia ao rs-do-cho, quando, derepente, no fundo do corredor, no quarto dos patres, ouviu um grito. O corpotremeu-lhe como os vimes na corrente do rio. A porta do quarto abriu-se comviolncia. Maria Leonor saa, gritando, desgrenhada e com o horror vincado norosto. Das mos, subitamente sem fora, de Benedita, caiu a lmpada com umestrondo surdo, apagando-se ao rolar no sobrado. Maria Leonor caminhava pelocorredor fora, gemendo e gesticulando como louca. Tropeou e desabou, nocho, a soluar. Sobre a cmoda, as velas iluminavam ainda a imagem daVirgem branca. Ao fundo, na cama, o corpo imvel de Manuel Ribeiro, com umdos braos pendente, rojando o soalho. Na alma de Benedita qualquer coisa seafundou para sempre. Com uma longa vertigem, ficou no meio do quarto, quase

  • a desmaiar, os olhos presos no magro corpo estendido, arquejante, e precipitou-se sobre a cama desfeita, a gemer, amarfanhada pelo sofrimento, cega delgrimas.Dos seus lbios, trmulos e torcidos, saam palavras entrecortadas de soluos:- Manuel! Manuel!...Benedita aproximou-se da ama e deixou-se cair de joelhos junto dela. Choravabaixinho. Os seus olhos fitaram o rosto de Manuel Ribeiro, duma serenidadeabsoluta e indiferente, e desceram pelo brao at mo lvida que tocava otapete. Lentamente, baixou-se e beijou os dedos frios e inertes. Que importava?Agora ele j no era de ningum da Terra. Ningum tinha direitos sobre ele, ano ser Deus.Maria Leonor levantou-se de golpe e gritou, com desespero:- Meu Deus, meu Deus! O meu Manuel, por que mo mataste, Senhor?Caminhou deliberadamente para o oratrio e, com o brao direito, varreu asvelas, as imagens, os solitrios floridos, que se estilhaaram no cho. Benedita,estupefacta, levantou-se, e, apertando Maria Leonor nos braos, gritou:- Que faz, minha senhora? Sossegue, por amor de Deus!...Um tropel, vindo do lado da porta, fez-lhes voltar as cabeas aflitas. Os criados,tremendo de medo, tinham subido a correr as escadas, e estavam agora entre osumbrais da porta, mirando, com os olhos rasos de lgrimas, o corpo do patro.Entraram, um por um, contrafeitos.Dentre eles saiu o rudo dum soluo e, imediatamente, as lgrimas caram detodos os olhos. Rodearam o leito. Jernimo, o abego da quintal, levantou comrespeito o brao de Manuel Ribeiro e dep-lo sobre as cobertas, acariciando-lhe amo gelada com os dedos calejados e duros.

  • II O dia amanheceu cinzento e chuvoso. A terra, ensopada de lama, saturava-se dagua, que escorria pelas valas, formando riachos e inundando as culturas. A portada casa, abrigados debaixo da alpendrada, os trabalhadores olhavam a desolaodos campos desertos e espreitavam o cu, carregado e soturno, que se desfaziaem chuva. Do interior, vinha um cheiro pesado de coisas mortas, de floresemurchecidas. Todo o dia se passou no meio do temporal, que no findava, entrevultos escuros que entravam e saam, de olhos vermelhos, suspirando.O velho Jernimo, que velara o corpo de Manuel Ribeiro durante a noite inteira eque em todo o dia no arredara p de junto dele, saa agora, cansado,lacrimejante, as mos um pouco trmulas. Deixou-se cair em cima dum dosbancos de pedra que ladeavam a entrada e, com a cabea entre as palmas dasmos, comeou a chorar. Os outros aproximaram-se e ficaram olhando o velho.Ningum disse uma palavra sequer. Apenas o rudo da chuva no terrenoensopado e os soluos sufocados do abego se ouviam. Depois, um dos homensabeirou-se de Jernimo e disse, numa voz sumida:- Ento, senhor Jernimo, no chore! Deus Nosso Senhor quis levar o patroManuel e l devia ter as suas razes para isso...Jernimo ergueu a cabea embranquecida e replicou:- Cala-te, rapaz! Que percebes tu destas coisas?Um homem daqueles no devia morrer to novo. Seria melhor que Deus melevasse a mim, que j no fao falta. No, rapaz, Deus no justo!- Ests enganado, Jernimo! Deus que sabe o que faz. Ns que nocompreendemos que a sua vontade no pode prender-se com os nossosdesejos!...Ouvindo estas palavras, pronunciadas em tom grave e solene, todos se voltaram.Tiraram os chapus e os barretes ao reconhecerem o prior, que, debaixo dumchapu-de-chuva que escorria gua para cima da capa preta que vestia, osfitava.Jernimo abanou a cabea e respondeu:- O senhor prior deve ter razo! Tem razo, com certeza: basta ser quem !...Mas no um d de alma ver aquele homem, que foi a vida desta terra,estendido numa cama, inteiriado, morto?!... Acabou tudo para ele. Nunca maish-de perguntar-me, com aqueles modos que nunca vi noutra pessoa em toda aminha vida:Jernimo, ento como vo os homens? E a alegria que eu tinha quando lhedizia que estavam todos bons e contentes com o trabalho!...

  • - verdade, Jernimo, que o senhor Manuel Ribeiro, que Deus tenha em suasanta glria, era um homem de bem. Mas os homens de bem tambm morrem,como morrem os criminosos, os maus. E para que isto possa suceder assim, Deustem as suas razes. S ele sabe o que quer e por que o quer. E ns, mortais quesomos, nada temos a fazer seno conformar-nos com a sua vontade...Dizendo isto, o padre avanou por entre o grupo, abraou o abego, que tremia,abalado pelos soluos, e entrou em casa. Desembaraou-se da capa e do guarda-chuva e subiu lentamente a escada que levava ao andar superior. Deteve-se,comovido, quando chegou ao patamar. Mexendo distraidamente nuns blocos demadeira pintada, duas crianas encolhiam-se a um canto. No riam, e nos seusmodos o sacerdote notou um constrangimento indefinido. A atmosfera pesava-lhes nos ombros delicados e frgeis. A mais velha, um rapaz, ao ver o padre,correu para ele, pulando para lhe chegar aos ombros. A outra lanou-se atrs doirmo. O pastor baixou-se para a agarrar e, com os dois ao colo, sentiu aslgrimas correrem-lhe pelas faces, enquanto pensava: Deus deve ter razo... Euno sei, mas Deus deve ter razo... O rapazinho, atentando-lhe no rosto, perguntou, ansioso:- Que tem? Por que que est a chorar?O padre deps as crianas no cho e levou-as para o canto, dizendo:- No tenho nada, Dionsio, eu no estou a chorar!- Deixa-te estar aqui sossegado com a tua irm, que eu volto j...Limpando as lgrimas com as costas da mo, dirigiu-se para uma porta, queabriu. Encontrou-se numa sala obscura, onde um homem, sentado numa cadeirade balano, olhava, abstracto, para o campo, que se estendia diante da casa. Aorudo da porta, fechando-se, aquele teve um estremecimento e voltou a cabea.Vendo o padre, levantou-se e dirigiu-se-lhe, de braos abertos. Quedaram-se porlargo espao, abraados e mudos.Desprendendo-se, o sacerdote disse, depois:- Coragem, Antnio! E precisa coragem para suportar um desgosto destes!...quando mais esperanas havia de salv-lo, quando a pior crise estava passada.Nada fazia esperar isto! Nada, absolutamente nada!Encostou-se a uma mesa e, deixando cair os braos, desalentado, olhou para umaporta fechada e murmurou:- A Maria Leonor est ali, no quarto. No consegui convenc-la a sair um pouco.Insisti e ela mandou-me sair, imediatamente. Tive de vir... Est muitoperturbada, e eu mesmo sinto quase a razo a fugir-me. Veja se a acalma...Sentou-se na cadeira e suspirou. O padre respondeu em voz baixa:

  • - Sossega tambm, Antnio. No entres... Deus nos d foras para sofrer estaangstia!Colocou a mo sobre a tranqueta da porta e rodou-a, devagar. Junto da cama,aglomeravam-se os criados, de joelhos, rezando. Aos ps do caixo, onde tinhamj colocado o corpo de Manuel Ribeiro, Maria Leonor soluava. O espectculodo seu sofrimento quase produzia uma dor fsica.O sacerdote acercou-se, de mos postas. Benedita ergueu o rosto para ele e,depois, com os olhos fitos na face do amo, continuou a orao.A claridade das velas lutava com a escurido do quarto fechado, provocandouma meia luz impressionante e trgica, mais trgica que as prprias trevasabsolutas. O cheiro das flores murchas misturava-se com o odor da ceraqueimada e inundava o quarto de uma atmosfera densa, carregada deperturbaes.No corredor, uma criada desmaiou. Levaram-na, pressa, levantando um rudode ps arrastados, que fez voltar o rosto transtornado de Maria Leonor. Umdesejo furioso de expulsar toda a gente dali se apossou dela; apenas a voz darazo a impedia de gritar que a deixassem, at morrer tambm, aos ps docadver do marido.Nesse momento, entraram Jernimo e trs outros camponeses. Todos de cabeadescoberta e curvada caminharam para o padre, ao ouvido de quem o abegopronunciou algumas palavras em voz baixa. O prior acenou afirmativamente e,dirigindo-se a Maria Leonor, levantou-a. Jernimo fechou o caixo. MariaLeonor, aparvalhada, olhava para ele. Sbito, arrancou-se dos braos do padre,correu para Jernimo e tirou-lhe a Chave. Tentou abrir de novo a tampa doatade. Os seus dedos trmulos procuravam atabalhoadamente erguer o pesadomadeiro. A desesperaro, a impotncia, o desalento, perpassaram-lhe no rosto.Cambaleou, abrindo e fechando as mos no ar, e tombou no sobrado, desmaiada.Jernimo e os companheiros levantaram o caixo sobre os ombros eencaminharam-se para a porta. Benedita soergueu Maria Leonor, que, voltando asi, se levantava, forcejando por se manter de p. O padre amparou-a. Beneditapassou-lhe tambm um brao em volta da cintura e os trs seguiram, lentamente,os homens que conduziam o corpo de Manuel Ribeiro.Antnio, que abrira a porta da sala onde o padre o deixara, juntou-se-lhe,cabisbaixo. Os criados afastavam-se no corredor largo para o deixar passar.Jernimo e os trabalhadores vergavam sob o peso do atade e inclinaram-seassustadoramente ao comear a descer a escada.As crianas, no patamar, olhavam admiradas para o cortejo: os fatos escuros, aslgrimas, os suspiros abafados punham-lhes nas almas manchas de sombra efaziam-nas tremer, angustiadas. Uma criada correu para elas, e com o avental

  • aberto diante dos olhos tapou-lhes a viso desoladora. Maria Leonor, amparadapelo padre e por Benedita, nem nelas atentou. Os seus olhos iam atrs daquelacaixa comprida e estreita.Chegados ao rs-do-cho, os homens que suportavam o atade hesitaram ummomento. L fora, a chuva desabava em catadupas torrenciais, tamborilando nasvidraas e entrando pela porta aberta, soprada pelo vento. Os salpicos da guapunham calafrios nas faces congestionadas dos trabalhadores, encostados sombreiras da porta. Algum lembrou, timidamente, que seria melhor esperarque a chuva abrandasse um pouco. Baixaram o caixo sobre quatro cadeiras equedaram-se todos em volta, um tanto envergonhados com a conscincia vaga ehumilhante de que temiam molhar-se por causa do morto.A chuva redobrava de violncia. O cu tingia-se duma cor escura. Riscosluminosos comeavam a sulcar as nuvens e o som ribombante da trovoadapercebia-se ao longe. A espera prolongava-se e um sentimento de mal-estar esaturao apoderava-se de todos, quando Maria Leonor, que se mantivera calma,quebrou o silncio:- Vamos!Voltaram-se surpreendidos para ela, e Antnio observou:- Mas, Maria Leonor, esperemos mais algum tempo...A voz dela soou, novamente, agreste, dura, destacando as slabas:- Cala-te! Vamos embora, vamos embora!...Pronunciou estas palavras com um tom de voz semelhante ao som duma cordaretesada e vibrada, prestes a quebrar. A ltima palavra terminou num soluo.Novamente o caixo foi iado para os ombros dos trabalhadores. Saram para aalameda que corria em linha recta para o porto da quinta. A chuva encharcou-os no mesmo instante. Ao cair sobre a tampa do atade, produzia um rumorsurdo e contnuo de baquetas em pele de tambor e escorria depois pelas abas,indo pingar no cho enlameado, onde se sumia.Com lentido, o cortejo ps-se a caminho, passando debaixo das rvores queladeavam a estrada. As folhas largas recolhiam a chuva e deixavam-naescorregar em grossas gotas pelos troncos luzidios.Debaixo do arvoredo, o prstito atardava-se, desenrolando a longa fita de fatosescuros e rostos chorosos.Passava agora no largo porto escancarado. Para l, era um descampadoimenso, onde a chuva caa em lenis lquidos das nuvens baixas e cinzentas, quecorriam do Sul, fustigados por um vento gelado.Sob o guarda-chuva que Benedita sustentava, Maria Leonor seguia atrs do

  • caixo, indiferente ao temporal.Os seus lbios frios no emitiam o mais leve som.Olhava na sua frente as guarnies douradas do caixo, como se descobrissenelas motivos de interesse. Depois, demorou a vista, com uma atenoinconsciente, no correr de um fio de gua que ia embeber-se nos cabelos de umdos moos que caminhava diante de si.No campo em direco aldeia, endireitou o cortejo, chapinhando na lama quese agarrava s solas sofregamente como se a cada passada se abrisse o cho. Achuva diminua, quando chegaram s primeiras casas do lugar.Nas valetas empedradas corria a gua com um rumor gargarejante e agradvel.Aos postigos assomavam rostos femininos que acenavam tristemente,murmurando palavras de d, e se debruavam no parapeito, seguindo, com oolhar, a cauda do cortejo, que se arrastava na rua.Quando passaram em frente da igreja, onde os sinos tocavam a finados, a chuvacessou subitamente, e o vento frio, que arrastava as nuvens, deixou ver umanesga de cu de um azul molhado e cintilante, purssimo.Um feixe de luz desceu sobre os telhados, fazendo brilhar as telhas hmidas.Os quatro homens que conduziam o caixo, chegando ao fim da rua, cortaram esquerda e comearam a subir a ladeira que levava ao cemitrio.No arco da entrada, uma caveira de pedra, cruzada por duas tbias, abria asrbitas vazias com uma expresso de glida indiferena, espectadora, h dezenasde anos, da agonia daqueles rostos aflitos e da tristeza daqueles fatos escuros.Ao fundo da lea central erguia-se o muro branco, agora manchado dehumidade. No lado de fora cresciam oliveiras, que deitavam os ramos quasedespidos para dentro do cemitrio. Rente ao muro, era a cova onde ia sersepultado o corpo de Manuel Ribeiro. Os trabalhadores arriaram lentamente ocaixo sobre uma padiola e endireitaram-se, arquejantes, sentindo nos ombros ador vincada pela madeira. Lentas, grossas gotas de suor corriam nas facescrispadas pelo esforo. Jernimo encostara-se ao muro e limpava o suor com amanga da jaqueta.Fez-se um silncio pesado. O cu varria-se de nuvens naquele ponto e o azulmostrava-se agora esplendente e luminoso. A volta, em todo o horizonte,acastelavam-se sombras.O padre acercou-se da beira da cova, e fazendo os gestos do ritual sobre ocaixo, rezou o ofcio dos mortos. Na quietude do entardecer frio, as palavraslatinas soavam mansamente, murmuradas pelos lbios trmulos do sacerdote.Todas as cabeas se descobriram e em todas as bocas a tristeza e o desgostoacharam palavras. Um coro de murmrios e de soluos se levantou.

  • Do porto do cemitrio vieram uns passos arrastados conduzindo uma enxada. Ocoveiro acercou-se do buraco e, depois de ter deitado um olhar de revs aocaixo, medindo-lhe mentalmente o comprimento, comeou a alongar a covacom enxadadas firmes e certeiras. A terra caa no fundo com um rudoininterrupto ao mergulhar na gua acumulada l dentro. Um tufo de verdura foilevado, tambm, pelo gume da enxada. Cintilou como uma esmeralda viva, nomeio da gua barrenta.Maria Leonor, de cabea baixa, pensava quo longa se estava tornando a cova.Os seus olhos secos iam das mos peludas do coveiro para o trao brilhante daenxada. O homem resmoneava, fazendo rodar a ponta dum cigarro apagado,dum para o outro lado da boca, enquanto desfazia os torres que se soltavam sobo impulso do ferro.Depois duma ltima olhadela, o coveiro largou a enxada, batendo com as mos,para sacudir a terra e, endireitando o olhar para o padre, murmurou, enquantoescondia o cigarro:- Pronto, senhor prior!O sacerdote voltou-se para Jernimo, num convite mudo, que o abego atendeu,agarrando uma das pegas do caixo. Os outros trabalhadores baixaram-setambm, e a um tempo ergueram a pesada caixa que suspenderam sobre a cova.Passaram-lhe por baixo duas cordas e deixaram-na escorregar lentamente,raspando as paredes do buraco. De manso, pousaram-na no fundo coberto degua, e soltaram as laadas.Maria Leonor deixou o brao de Benedita e deu dois passos para a frente,debruando-se para a sepultura. Gemia baixinho, como se a dor no pudesse jexprimir-se em gritos. Curvou-se rapidamente e deixou-se cair de joelhos sobrea terra molhada e negra. Os seus dedos crisparam-se nos torres macios,esmagando-os um por um. As lgrimas desciam-lhe pelo rosto.O coveiro, abrindo as pernas sobre os lados da cova, comeou a ench-la. MariaLeonor, de novo, olhou-lhe as mos cabeludas e negras e, de repente, sem umgrito, sem uma palavra, atirou-se ao homem, mordendo-lhe os terra dedos, comfria. O coveiro soltou uma praga imunda e, dando um salto para trs, empurrou-a, fazendo-a cair no cho.Sobre o atade rolaram alguns torres.Aquela violncia rebentou o dique que sustinha o desespero de Maria Leonor. Eos muros do cemitrio repetiram, uma vez mais, os ecos cansados da desolao.

  • III O regresso foi penoso. Na carroa que a conduzia, Maria Leonor, deitada numacamada de palha hmida, chorava. O padre, curvado para ela, olhava-a comuma tristeza impotente. Quisera pronunciar as palavras balsmicas que consolamas magoas e secam as lgrimas, mas toda a sua piedade de sacerdote nada lheinspirava alm do silncio.Benedita, em cujo colo repousava a cabea de Maria Leonor, fixava a estradaapaticamente, enquanto acariciava os cabelos da ama. Pensava na trgica cenado cemitrio e, diante de si, saltando no cascalho da estrada, pareceu-lhe ver acaveira de pedra, caminhando sobre as duas tbias cruzadas. Esfregou os olhos,assustada, e a viso desapareceu. Agitada pelos solavancos do carro, sentiu ahumidade da palha infiltrar-se-lhe nos vestidos e arrepiar-lhe a pele. Olhou paraMaria Leonor e viu-a ofegante, com um tom rosado no rosto. A respirao saa-lhe sibilante dos lbios secos e gretados pelo frio e, a espaos, percorria-lhe ocorpo um longo arrepio.Benedita voltou-se para Antnio, que guiava, e exclamou, inquieta:- Pare, senhor doutor, pareiAntnio puxou as rdeas com violncia, fazendo encabritar o animal, querinchou, dorido. O padre perscrutou o rosto de Maria Leonor e disse:- Parece que no est bem!Antnio, curvando-se sobre o banco, tomou o pulso da cunhada e, pelo espao dealguns segundos, manteve-se silencioso e atento, enquanto o padre despia o longocapote e cobria o corpo de Maria Leonor:- Tem febre!... - murmurou.E logo voltando s rdeas, empunhou o chicote e fustigou os flancos do animal,que rompeu num trote rasgado pela estrada fora, fazendo saltar as rodas naspedras soltas do caminho. Benedita, apertando contra si o corpo de Maria Leonor,protegias dos saltos bruscos que lhe atiravam o tronco contra os taipais dacarroa,Correram assim todo o caminho at ao porto da quinta, que entraram, rasandoas grossas colunas de pedra. Estacaram diante da porta da casa. Subiram aescada apressadamente, carregando o corpo de Maria Leonor, perante o pasmodos criados que se aglomeravam nos degraus. Antnio, impaciente, empurrou-os:- Fora daqui, brutos! Deixem passar!... Tu, rapaz, salta j para a carroa que estl em baixo e vai chamar o senhor doutor Viegas. Depressa!No patamar, estavam ainda Dionsio e a irm. Ao verem a me amparada pelo

  • padre e por Benedita, comearam a chorar. No burburinho das vozes aflitas quese levantou, o choro das crianas soava ntido e comovente. Maria Leonorentreabriu os lbios e, olhando os filhos, que se lhe agarravam saia, murmurou:- Meus filhos, meus pobres filhos!...Levaram-na para dentro, Benedita e uma criada. Quando a encaminhavam paraum dos quartos de dormir da casa, Maria Leonor resistiu, tentando andar sozinha,e dirigiu-se para o seu prprio quarto. Entre os umbrais, parou. Benedita seguiu-a,ansiosa, vendo-a caminhar, agora, encostada parede, em direco cama,onde, sobre a alvura do travesseiro, descansava uma almofada.Maria Leonor franziu as sobrancelhas como se procurasse recordar qualquercoisa. Voltando-se para Benedita, perguntou, numa voz sumida, quase inaudvel:- Por que no puseram tambm a outra almofada?Soltou um grito de susto vendo a ama cair inanimada sobre o leito. Correu paraela e deitou-a. Maria Leonor tremia de frio. Benedita, auxiliada pela outra criada,cobriu-a, e sem se voltar para a companheira disse rapidamente:- Teresa, chama o senhor doutor Ribeiro! No te demores!Teresa saiu, apressada, e quase esbarrou porta da sala com Antnio, que vinhaentrando.- Senhor doutor, v ao quarto da senhora!... A Benedita acabou de deit-la, agoramesmo. Parece que est muito malzinha!...O rosto plido de Maria Leonor, emoldurado pelos cabelos loiros, desfeitos sobrea almofada, estava imvel. Apenas um leve tremor nas asas do nariz indicava arespirao dbil e fervente.Benedita tirou duma gaveta um frasco de sais, com que tentou fazer voltar a amaa si. Maria Leonor agitou-se entre os lenis, num arrepio lento, e abriu os olhos,esgazeados de espanto e incompreenso. Olhou para Antnio e tapoupudicamente com as mos o peito descoberto.O cunhado desviou o olhar e pediu uma toalha a Benedita, que, atarantada, abriae fechava gavetas, desmanchava roupas, desgrenhada e aflita. Depois, voltando-se para Maria Leonor, disse-lhe:- Leonor, senta-te na cama. Benedita, ajuda a ampar-la pelas costas. Assim...Desdobrou a toalha e encostou-a ao peito branco de Maria Leonor. Apoiou nele oouvido e mandou-a respirar profundamente. Franzindo a testa, preocupado,concentrava a ateno nos rumores que atravessavam o tecido e lhe iam ferir oouvido atento.Benedita sussurrou do outro lado:- Ento, senhor doutor?...

  • - Cala-te!Os fervores que percebia eram de mau agouro. Auscultou-a pelas costas e, denovo, as mesmas rugas de preocupao se lhe cavaram na testa.Nesse instante, um rodar de carroa se ouviu na alameda e parou debaixo dajanela. Algum saltou do carro, apressadamente,- Benedita, vai ver quem chegou! Deve ser o doutor Viegas...A criada foi janela ainda a tempo de ver entrar o mdico.- sim, senhor doutor! - respondeu.Antnio sentou-se na cadeira, aguardando.Um rudo de passos precedeu a entrada dum homem forte, de cabelos e bigodesgrisalhos, com uns culos de aros grossos de tartaruga, que lhe defendiam osolhos mopes.Antnio levantou-se, dizendo:- Como est, doutor? - e logo, mudando de tom, em voz baixa, para que MariaLeonor o no ouvisse: - Depois de um falecimento, uma doena. Aqui est aLeonor, que pelo que me parece, tem uma pneumonia em estdio evolutivo jmuito adiantado.Viegas acenou com a cabea e, distraidamente, olhou em volta, perguntando:- J saiu o funeral?Antnio, surpreendido pela pergunta, respondeu com inteno:- J sim, doutor! No sabia que o Manuel morreu?O mdico piscou os olhos, fitando o irmo de Manuel Ribeiro, e respondeu:- Sabia, sabia, sim, meu rapaz! Que que tu queres dizer com isso? Queres dizerque eu, velho amigo da casa, devia ter comparecido e acompanhar, ltimamorada, o Manuel? E que devia mostrar-me mais contristado e lacrimoso?Maria Leonor, que ouvia o dilogo, impassvel, como se no o compreendesse,continuou:- isto o que queres insinuar, no verdade? Pois bem, meu rapaz, eu cuidavade um vivo enquanto tu enterravas um morto. Querias que abandonasse o JooPernas, que tu no conheces, com certeza, com o ventre furado pela chifrada deum boi? Em matria de sentimento, ainda vou pelos vivos, por maior respeito quetenha pelos mortos. Compreendes? Ningum, nesta terra, sentiu o falecimento doManuel to profundamente como eu, mas o que eu no podia era deixar morrerum homem, s para acompanhar ao cemitrio um outro, fosse ele, at, meuirmo ou meu pai!Levantou-se e, olhando para Antnio, que o escutava em silncio, murmurou:

  • - Parece-me que no erraste o diagnstico! A Leonor tem, de facto, umapneumonia. E grave! E preciso trat-la, se no quisermos v-la morrertambm!...Debruando-se para Maria Leonor, afastou-lhe os cabelos da testa abrasada e,dando-lhe uma pequena palmada na face, disse:- Ora tu, Maria Leonor, que resolveste adoecer... M altura, no haja dvida...Bom, agora j aqui no sou preciso!... Volto para o Joo Pernas. Sabes o quedeves fazer, no verdade, Antnio? Eu voltarei amanh. Adeus!...Ao sair, passou por Benedita, que o olhava, suspeitosa. O mdico sorriu e,parando diante dela, ps as mos na cintura e perguntou-lhe, agradado:- Parece que viste o inimigo, Benedita?! Quantas vezes te tenho dito que no souto mau como me pinta o padre Cristiano?Benedita corou, envergonhada. Pensava, exactamente, que o doutor Viegas seriaum excelente corao se no fosse to brusco no dizer, ralhando por tudo e pornada, sem se preocupar com a idade ou a situao de quem o ouvia. Aindaagora, o que ele dissera ao senhor Antnio Ribeiro... Quanto ao senhor padreCristiano, no dizia ele mais do que toda a gente sabia: que na casa do Parreiralningum rezava o tero e que nunca os joelhos do mdico tinham sentido adureza fria das lajes da igreja. Os criados de Viegas rezavam pela mesmacartilha do patro. Uma peste! Deles costumava dizer o mdico que eramescravos a quem tinha dado carta de alforria.Benedita, sem responder, preparava-se para acompanhar Viegas porta, mas omdico, olhando para Antnio e Maria Leonor, disse:- No, no te incomodes, Benedita! Fica! Eu sei o caminho!... - e como se tivesseachado uma boa pilhria: - Eu sei o caminho! Heim, que te parece, Benedita?Achas que, realmente, sei o caminho? Levo o padre Cristiano e aproveito paralho perguntar...Saiu, apressado, para voltar da a momentos, chamando Benedita para ocorredor:- preciso cuidar daquelas crianas, agora, ouviste. De ambas, masprincipalmente o Dionsio... Nunca me pareceu muito forte.Enrolou-se no capote que trazia vestido e, depois dum aceno de despedida, partiu.No quarto, Maria Leonor descerrou as plpebras, e olhando com indiferenapara a criada, que regressara, perguntou:- Que tenho eu? Que veio c fazer o doutor Viegas?Antnio, que preparava umas ventosas, respondeu, sem se voltar:- No tens nada! Um pouco de febre, talvez... Isso passar com repouso e

  • tratamento adequado. Deves descansar! E, na realidade, ele agora est melhor,no certo?Antnio voltou-se, surpreendido. Maria Leonor, muito branca, cruzara as mossobre o peito e aguardava a resposta. Antnio titubeava, embaraado:- Mas, Leonor, tu... no...L fora, sobre o empedrado da valeta, caiu uma enxada, produzindo um somclaro de metal so e forte.Maria Leonor levou as mos cabea, apavorada, e sentando-se na cama olhouem volta, ansiosa. No queria acreditar no que estava pensando. Fitousucessivamente o cunhado e Benedita, e perguntou, tremente, medrosa daresposta:- O Manuel?... verdade que morreu? No sei, recordo-me de qualquer coisaque se passou hoje!... O que foi? Digam-me...Deteve-se. Atravs da janela e por entre a neblina do dia escuro que findava,avistou, ao longe, sobre o cabeo, as paredes brancas do cemitrio. O choque foibrutal. Como uma inundao, as recordaes submergiram-lhe o crebro,paralisaram-lhe a voz, fizeram-na tremer de horror. Estendeu os braos para afrente, quis repelir a viso trgica. A febre parecia aumentar nos seus olhos osmuros brancos, que avanavam na sua direco, caminhavam pelo campo,rompiam pela janela e sufocavam.Caiu sobre as almofadas, gemendo:- No, no, no!...

  • IV Durante longos dias, o temporal fustigou a regio. Todas as tempestades doUniverso pareciam ter ido localizar-se sobre a quinta deserta e os telhados dacasa e, mais longe, sobre a aldeia, acaapada e inerte, beira do caminho.Perseguindo-se, furiosas e incansveis, numa corrida veloz e desordenada, asnuvens, pardas, de reflexos metlicos e esbranquiados, roavam quase os ramosmais altos das rvores, esgalhadas pelo vento e desfolhadas pela chuva.Um raio caiu no palheiro da quinta e, durante a noite inteira, durante horaspavorosas, as chamas devoraram todo o casaro. Um archote gigantesco seelevou da terra, rubro e violento como o caos original, e foi incendiar as nuvensque lhe passavam por cima, soltando gotas de gua, cintilantes e rosadas, quecaam na fogueira imensa sem a apagar. Por aquelas longas horas, lentas enegras, com sulcos delirantes de fogo, os homens e as mulheres da quintalanaram mo de tudo que pudesse apagar o incndio. Enegrecidos, queimados,labutavam, exaustos e vacilantes, procurando salvar o celeiro, cujas paredes setisnavam j, tambm, com o fumo espesso da palha molhada que ardia sempre.Quando alvoreceu, apenas restavam de p as paredes mestras do palheiro, largase reforadas. Deixando, aqui e acol, os baldes e os cntaros, pelos caminhosenlameados e negros das fagulhas e dos ties que o fogo lanara ao ar e quecaam no cho com um chiar agudo e rpido, os homens encaminharam-se paraas malhadas, onde o abego dava, a cada um, meio copo de aguardente forte,que os reanimava, espantando o frio insidioso que lhes invadia os membroscansados.Estenderam-se, arquejando, nos molhos de palha lanados ao acaso ao compridodas paredes. Jernimo, de mos enfiadas nas algibeiras, encostado ombreira daporta, mirava, abanando desalentadamente a cabea, as runas negras, aindafumegantes, e mais longe, ao fundo, a casa, cujas janelas cerradas tinham um armelanclico e desesperado, na meia luz do amanhecer. Do nascente, vinha umaclaridade dum amarelo-rosado, que fazia brilhar os contornos torturados dasnuvens que se acastelavam no cu.De dentro, com as lufadas do ar em que pairava um cheiro a suor e a palha seca,saa o ressonar montono dos homens exaustos. Um ou outro levantava-se e,dirigindo-se ao pichel, emborcava mais um gole de aguardente. Pigarreava,voltava ao calor da palha, deixava-se cair de braos abertos, num espasmoangustiante de animal cansado.Por entre as filas dos adormecidos, Jernimo dirigiu-se para o fundo da casa e,duma manjedoura derrubada, tirou enormes mantas, grossas e felpudas, queestendeu sobre os trabalhadores. Um deles, ainda no completamente

  • adormecido, piscou os olhos inflamados e balbuciou:- Obrigado, mestre Jernimo!- Dorme, rapaz.O abego, lanando por cima dos ombros uma saca de serapilheira spera, saiu,sob a chuva, e encaminhou-se para casa. A uma criada que passava, saltandopara evitar as poas de gua, perguntou:- A senhora, rapariga?...A mulher estacou, equilibrando-se sobre uma pedra que emergia do lamaal, erespondeu:L est! Melhoras, nenhumas... Desde que o patro morreu, tem definhado dedia para dia. Diz a Benedita que ser um milagre se se salvar. Deus a oia...Interrompeu-se para saltar abaixo da pedra e, depois de raspar a lama dostamancos com a ponteira do guarda-chuva, continuou:- Parece que a casa est embruxada. Doenas, mortes, fogos, no h mal queno nos chegue!...Jernimo olhou distrado para a rapariga, que tagarelava sobre benzeduras eexorcismos e, continuando o caminho com um encolher de ombros indiferente,redarguiu:Est bem, est bem, rapariga! No digas parvoeiras...De longe, a criada ainda gesticulava, de guarda-chuva na mo. Jernimo,chegando porta, bateu de leve e entrou, depois de sacudir no poial as botascardadas. Benedita, que descia nesse momento a escada, perguntou:- Ento, o palheiro?- Ardeu todo. S ficaram as paredes e essas mesmas caem, com certeza. Serpreciso fazer outro, desde os alicerces at ao telhado.Calou-se. Parados diante um do outro, pensavam em coisas diferentes, que nono palheiro e no incndio. O pensamento de ambos estava num quarto da casa, aessa hora mergulhado numa penumbra doce e resignada, onde flutuava umcheiro mole e pegajoso de remdios.Benedita sentou-se pesadamente e disse, como se respondesse a uma pergunta:- A senhora est um nadinha melhor esta manh! Mas tem passado to mal...Jernimo ergueu a cabea quase branca e murmurou:- No h nada que no tenha acontecido nesta casa de h uns tempos a esta parte.- Sim!... - respondeu Benedita. - De h um ano para c. Desde que o senhorAntnio voltou do Porto.

  • - verdade. Parece que a m sorte veio com ele. Ms colheitas, Inverno ruim, amorte do patro, tudo...Benedita, desalentada, deixou cair as mos no regao e suspirou:- Tudo - depois, mudando de tom, perguntou: - E o que ir ser de ns, agora,senhor Jernimo?O abego encolheu os ombros e, tirando a saca, respondeu enquanto fitava nocho as manchas hmidas das suas botas:- Eu sei l, Benedita! Isto j no andava bem com a doena do patro. Agora, elemorreu, a senhora est doente, que queres que eu faa? uma casa perdida... Eolha que uma pena! Um brinquinho, este cho!Dizendo isto, limpou s escondidas uma lgrima que lhe molhara as plpebrasavermelhadas e continuou:- A no ser que o senhor Antnio...Benedita ergueu a cabea num gesto violento e ripostou:- Isso no, senhor Jernimo! Alguma coisa se h-de fazer sem o auxlio dosenhor Antnio Ribeiro! E demais, que podia ele fazer aqui? Um mdico...Fez um trejeito depreciativo, sacudindo os ombros.Jernimo olhou-a com ateno e murmurou como se falasse para si:- Parece que no gostas do senhor Antnio Ribeiro, Benedita. Porqu? Que mal tefez?A criada corou e, acenando precipitadamente a cabea, respondeu:Que ideia, senhor Jernimo! Por que no havia de gostar dele?- No sei, no sei! Talvez fosse impresso minha. Sim, deve ser isso, foiimpresso.Endireitou-se e, deitando um olhar a Benedita, que se atarefava na sala, disse-lhe:- Bem, adeus, Benedita! Se o tempo mudar, comeo hoje com a calda bordalesano batatal do Canto da Ponte. Se no mudar, ser mais um dia de costas direitas.Estimo as melhoras da senhora. Que Deus Nosso Senhor a guarde!- Adeus, senhor Jernimo! Recomende-me senhora Clementina.A porta fechou-se atrs do abego, cujos passos arrastados se ouviram ainda,durante algum tempo, l fora. Benedita tornou a subir a escada e entrou no quartoda ama.Maria Leonor, reclinada nas travesseiros, dormia. As cobertas, subidas at aosombros, apenas lhe deixavam ver o rosto emagrecido e febril. Os cabelos finos ecorredios caam-lhe aos lados das faces cavadas pela doena. Brilhavam-lhe

  • alguns fios brancos, que serpeavam em largas curvas, indo esconder-se sob opescoo levemente flectido, onde surgiam pequenas gotas de suor que, depois derolarem sobre a pele descorada, se iam embeber na dobra do lenol.Ao rudo dos passos de Benedita entreabriu os olhos e, encolhendo com vagar osombros lassos e pontiagudos, perguntou, numa voz lenta e preguiosa:- Que foi que sucedeu para a? Que vozes eram essas no terreiro, esta noite?A criada hesitou, mas logo, pensando que insignificante desgosto seria para aama o que se passara, comparando-o com os sucessos de h um ms, respondeucom indiferena, enquanto lhe ajeitava as almofadas:- Nada de importncia, minha senhora! Apenas o palheiro que ardeu... Caiu-lheum raio em cima.Maria Leonor levantou as sobrancelhas, enrugando a testa, e indagou:- Ardeu todo?- Todo... - e todo, pressurosa, acrescentou. - Mas no se incomode, minhasenhora! O Inverno est no fim e, daqui at ao que vem, haver tempo paraconstruir um palheiro igual ou ainda maior. O gado no h-de sentir a falta.- Sim, talvez no sinta. Olha, diz ao Jernimo que trate de mandar levantar,encostado ao celeiro, um alpendre para abrigar a palha que se h-de comprar atao outro Inverno, enquanto se no fizer o palheiro.Disse estas palavras com firmeza, numa voz calma e descansada, parandoapenas uma vez no meio da frase, para respirar fundamente. Benedita, inquieta,perguntou:- Est pior, minha senhora? Sente-se mal?Maria Leonor distendeu os lbios num sorriso e, apertando a mo de Benedita,pousada sobre a cama, respondeu:- No, sinto-me melhor, at! Tenho ainda aqui a pontada, mas de tal maneira quequase a no sinto...Com os olhos rasos de lgrimas, Benedita experimentou uma alegria toprofunda que ajoelhou ao lado da cama e se inclinou sobre as mos de MariaLeonor, que a acariciou em gestos lentos e cansados, olhando em frente acmoda onde os solitrios floridos guardavam de novo a imagem branca daVirgem.De fora, atravs das cortinas de casa, discretamente cerradas, entrava aclaridade doce da manh, que nascia detrs dos cerros do Oriente. Maria Leonor,afagando sempre Benedita, recordava outra manh, alguns anos antes, em que aluz tambm entrava assim, terna e suave, como se fosse dotada dumasensibilidade feminina, pelas cortinas corridas, iluminando o quarto silencioso,

  • onde pairava um vago perfume de flores de laranjeira. Recordava-se daquelamanh e assistia agora ao romper do dia, imvel, fraca, doente, com umaangstia desmedida na alma, uma dor intensa que lhe trazia lgrimas aos olhosardentes. Naquela cadeira, ao lado do lavatrio, vira ela o seu vu de noiva.Lembrava-se da alegria profunda que a inundara, quando, de repente, sentira apresena do marido adormecido, a seu lado.Em gradaes imperceptveis, a luz ia aclarando o quarto. Um feixe luminoso,doirado e brilhante, reflectido por alguma vidraa longnqua, fazia vibrar numaeuforia louca as partculas de p suspensas na atmosfera, e alastrava-se numaparede, enchendo o aposento dum tom de esplendor que se espalhava nassuperfcies polidas dos mveis, reproduzindo-se infinitamente, empalidecendo,devagar, medida que o Sol subia, branco e metlico.Maria Leonor suspirou e, atentando em Benedita, notou que ela adormecera, dejoelhos, ao lado da cama, a cabea pendida sobre as cobertas, num cansaocompleto que lhe vincava umas rugas fundas, que, partindo das asas do nariz,desciam at aos cantos da boca, descada e murcha. Abanou-a devagar. Beneditadespertou, sobressaltada, com uma expresso de susto nos olhos estremunhadose, passando as costas da mo direita pela boca, bocejou longamente e sorriu,fitando a ama. Maria Leonor riu tambm:- Como tu ests cansada, Benedita! Andas exausta! Vai descansar, vai, anda!...A criada endireitou-se, pondo as mos nos rins, e com uma careta de dor ergueu-se rapidamente, apoiando-se cabeceira do leito. Enquanto caminhava peloquarto, agora claro, ia arrumando os mveis, e respondia:- Tenho tempo, minha senhora! Tenho muito tempo para dormir, quando asenhora estiver curada. Se Deus quiser, no h-de tardar muito que eu durmauma noite de um sono. J h tanto tempo que no sei o que isso e...Calou-se bruscamente, perscrutando o rosto da ama para ver aquelas frasesimpensadas, aquele h tanto tempo, tinham acordado nela lembranaspenosas. Maria Leonor, porm, estava calma e seguia com os olhos atentos olidar de Benedita. Ia responder, quando umas pancadas suaves na porta lhedistraram a ateno. Quase a seguir, sem outro aviso e sem aguardar resposta, aporta entreabriu-se e uma cabea ornada duma toca muito branca espreitou paradentro, perguntando:- Est melhorzinha, minha senhora? Passou bem a noite? Olhe, o senhor doutorViegas est na sala. Pode entrar?Maria Leonor comps-se, apressada, na cama, deu um puxo aos lenis, passoua mo pelos cabelos despenteados e respondeu:- Manda entrar, Teresa, manda entrar!

  • A cabea desapareceu e, da a momentos, o doutor Viegas avanava, fazendo decaminho uma festa a Benedita, que recuou com um arreganho maldisposto.Apoiando-se nos colches, sobre as mos compactas e firmes, perguntou,mirando atentamente o rosto de Maria Leonor:- Ento, Leonor, que tal te sentes hoje?- Melhor! Muito melhor, senhor doutor!Os olhos de Benedita brilharam, alegres, ouvindo as palavras da ama. O mdicofranziu as sobrancelhas fortes e hirsutas e resmungou:- Melhor, melhor! Os doentes dizem-se sempre melhores quando se lhespergunta como esto. Como se os mdicos no existissem para verem essas taismelhoras...Aquela maneira de falar de Viegas exasperava Benedita, que observou:- Parece impossvel! Ento no foi o senhor doutor que perguntou se estavamelhor? vontade de falar!...Viegas voltou-se sorridente e respondeu:- Fui eu quem perguntou, evidentemente. No sou eu o mdico?Benedita deu-lhe as costas, furiosa, e pegando num pano sacudiu-o, violenta,sobre uma estatueta de Amor e Psich, que oscilou bruscamente e deslizou notampo polido do mvel. Deitou-lhe as mos e conseguiu det-la quase na queda.Olhou de soslaio para o mdico e, vendo-o atento a observar as suas manobras,corou e saiu do quarto, batendo os taces no soalho do corredor.Maria Leonor, que seguira a cena, distrada, disse para Viegas:- O doutor faz zangar a minha pobre Benedita...Viegas deu de ombros, bonacheiro, e redarguiu:- Que queres? Gosto de brincar. E a Benedita, com o seu ar de quem toma tudo asrio e detesta brincadeiras, desperta sempre o diabinho da boa disposio quetrago dentro de mim!Levantou-se, procurando uma toalha, e continuou:- Quando se chega minha idade, Maria Leonor, h dois caminhos a escolher. Oprimeiro, o mais seguido, o da contemplao passiva, da recordao dasalegrias passadas, disfarando a nossa incapacidade para as sentir de novo; ooutro, aquele que eu palmilho, o da alegria decidida e enrgica, tanto maisquanto mais raros e brancos vo sendo os cabelos da nossa cabea, a alegria queno vem do corao como a dos novos, mas sim a que produto dumadeterminao toda cerebral, a alegria que se impe porque vem donde menos seespera, dos velhos. O primeiro caminho a impotncia declarada de viver; osegundo a vontade tenaz de no ceder nunca, de aguentar a vida enquanto a

  • morte no chega...Um suspiro de Maria Leonor interrompeu-o. Atirou a toalha para um dosombros, puxou uma cadeira e, sentando-se, continuou, pausadamente:- Sei em que pensas, minha filha! O Manuel morreu. Tudo o que a vidarepresentava para ti, acabou. Com o corpo do Manuel, foram sepultadas tambmas tuas esperanas. S te resta a contemplao dolorosa dos seus retratos, orelembrar das suas palavras, a recordao do seu amor. Eis o que pensas, no verdade?Maria Leonor acenou afirmativamente e levou o leno aos olhos para reprimir aslgrimas.Viegas, sem se mover, continuou:- E, no entanto, tu ests enganada, Maria Leonor! Perante os dois caminhos,escolheste o da desolao, o da tristeza e da inutilidade. Confessas-te fraca paraolhar a vida de frente e recolhes-te na contemplao do teu passado feliz. Querestirar da o alimento espiritual dos teus dias futuros, sem veres que isso a tuamorte. Com vinte anos menos, s mais velha que eu, que escolhi o melhorcaminho. Eu podia ter, tambm, sucumbido a um golpe semelhante ao que tusofreste, podia passar a minha existncia inundado de pensamentos inteis,lembrando a minha mulher falecida. No o fiz, porm. Resolvi viver. Resolvideixar a minha morta em paz, pensar nela com uma saudade vaga e, apenas umpouco triste, dedicar um breve espao da minha vida amargura de a haverperdido. Ao princpio, custou-me. A felicidade to absorvente, habituamo-nostanto a ela que quando nos foge, quando no-la roubam, sentimo-nos incompletoscomo se uma parte essencial do nosso corpo tivesse desaparecido, deixando umachaga imensa e dolorosa, que no fecha e destila sempre o pus da nossadesventura. Mas como tudo isto vo, Maria Leonor! Como ns complicamos aextraordinria simplicidade da vida! Como ns atribumos ao simples correr dumelo da cadeia uma importncia to grande, minha filha! No fundo, apenas isto:o cessar de uma existncia, o apagar duma lmpada. Os laos do sangue, ohbito, que complicam esta sucesso, este passar do facho...Maria Leonor ouvia o mdico, imvel e serena, os olhos secos e brilhantes,recostada nos almofades, suspensa.Viegas olhou-a atentamente e, pegando-lhe numa das mos, de dedos longos,nodosos nas articulaes, apertou-a entre as suas, como a uma pomba gelada eentorpecida, e prosseguiu:No fundo, ouves, Leonor?, isto a vida e isto a morte. Nada mais. Nocompliquemos, portanto. preciso viver. Tens dois filhos que dependem de ti. Semorres, eles estaro condenados. No descarregues, ento, sobre os seus pobresombros o peso da tua desolao e da tua cobardia de viver. Ensina-lhes que

  • tiveram um pai honrado, que morreu, mas que revive em ti. Oh, Maria Leonor,se ns soubssemos o que de facto a vida, a sua natureza ntima, a suafinalidade, no teramos palavras para exprimir a nossa alegria, para exteriorizaio turbilho de prazer que a simples lembrana de que se vivo nos traria!Interrompeu-se e levantou-se da cadeira. Caminhou para a janela e, de moscruzadas atrs das costas, deixou-se ficar olhando longamente o Sol, que subia nocu muito azul, por detrs das nuvens transparentes.Maria Leonor baixara a cabea e chorava, tremendo toda, mas sentindo aomesmo tempo uma calma estranha, um sossego imenso invadirem-lhe o corpo.Viegas voltou da janela e, agarrando, de novo, na toalha que tinha atirado paracima de uma cadeira, acercou-se da cama. Auscultou Maria Leonor comateno e cuidado. Depois, puxou o cordo que pendia ao lado da cabeceira doleito. Aguardou durante alguns instantes, passeando no quarto, resmoneandopalavras ininteligveis e gesticulando como se falasse com algum. Maria Leonorseguia-o com um olhar inquieto. A porta abriu-se e entrou Benedita, que, ao ver aatitude do mdico, parou alarmada. Viegas sorriu, piscou os olhos para MariaLeonor e abeirou-se da criada:- Que me darias tu, pequena, se eu te desse uma notcia agradvel? Umadaquelas notcias de pular de alegria?! Por exemplo, que a senhora dona Leonorest quase curada?!Benedita, que franzira as sobrancelhas, maldisposta, quando o mdico comearaa falar, juntou as mos num xtase ao ouvi-lo pronunciar a ltima frase, ecomeou a balbuciar palavras sem nexo, trmula, exaltada, sentindo uma loucavontade de rir, de rir muito, gargalhada, acometida dum desejo infantil desaltar ao pescoo de Viegas e de o beijar, muitas vezes, at perder o flego.Nada disto fez, porm. As mos, que juntara, como para rezar, procuraram,vacilantes, uma cadeira, onde se apoiaram. Chorou.Viegas, que lhe seguira a transmutao da fisionomia, ao v-la comovida e achorar, bateu nervosamente com as mos uma na outra, sentindo-se tambmimpressionado, e comeou a falar em voz muito alta:- Ora esta! Benedita, ento o que isso? No chores, mulher. Mas... e continua!...Pequena, ento... Sossega! No te encostes a, tem cuidado!...Benedita afastou-se vivamente do mvel a que se encostara e, lembrando-se dacena da estatueta, no pde deixar de sorrir por entre as lgrimas:- No nada, senhor doutor. J passou.E voltando-se para Maria Leonor:- Minha rica senhora, que bom vai ser v-la curada! Como se sente agora?Maria Leonor, que olhava absorta para o mdico, respondeu:

  • - Sinto-me bem, Benedita. E to calma, to sossegada, como j h muito tempono estava...Dirigindo-se a Viegas, perguntou com uma voz que se esforava para tornarfirme:- Quando posso deixar esta cama?- Depois de uns quinze dias de bom repouso, podes levantar-te quando quiseres.Acentuou intencionalmente as ltimas palavras e repetiu:- Repara bem, Leonor, quando quiseres!...Despediu-se e saiu, fazendo um sinal a Benedita para que o seguisse. Nocorredor, manteve-se silencioso, mas, quando chegou ao patamar, virou-se paraa criada, ps-lhe uma das mos, fortes e duras, num brao e apertando-lho comafecto, disse:- A senhora deve-te a vida, Benedita!Os olhos da criada abriram-se, espantados de incompreenso, enquanto nacabea lhe passava a sbita ideia dum milagre, produzido pelas suas oraes,pelas rezas fervorosas que balbuciava, trmula de frio, nas longas noites de viglia cabeceira da ama.O mdico continuou:- Sim, a ti a quem a senhora deve a vida. As probabilidades de cura erammnimas. Os meus remdios apenas te ajudaram...Benedita, compreendendo, enfim, agarrou as mos do mdico e beijou-lhas.Enquanto o fazia, lembrou-se do dia em que beijara o anel dum bispo que visitaraa quinta. Sentiu um arrepio, como se estivesse cometendo um sacrilgio.Murmurou, por fim:- Oh, senhor doutor, por quem ! No sei como agradecer a sua bondade...- Muito simplesmente: ajudando-me a completar a cura. O corpo j est salvo.Precisamos agora de lhe curar o esprito, de lhe dar o gosto da vida, que elaperdeu com a morte do marido. Compreendes?- Sim, senhor doutor, percebo perfeitamente!Viegas retomou o seu ar bonacheiro e, despedindo-se com uma leve palmadana face de Benedita, desceu a escada e saiu.A criada, sozinha, juntou as mos repetidas vezes, olhou em redor da casa, comose procurasse qualquer coisa, e de repente desceu tambm a escada, pressa, eno andar de baixo, depois de atravessar vrias salas, irrompeu na cozinha, cheiados trabalhadores da lavoura, que tinham vindo ao almoo.- A senhora est boa! A senhora est curada!

  • Os criados, que tinham suspendido o que faziam quando da entrada violenta deBenedita, ouvindo aquelas exclamaes, entreolharam-se, sorrindo primeiro, elogo depois comearam todos a falar ao mesmo tempo, batendo com as colheresnos pratos de estanho, sentindo que no podiam j engolir um bocado sequer.Levantaram-se, rindo, galhofando, com grossas palmadas nas costas uns dosoutros, e saram. O Sol, j alto, brilhava, fulgurante como um disco de oiro, nocu lmpido, um cu de bom tempo, que mandava trabalhar e que lhes atiravasobre as cabeas morenas jorros de luz, que depois caam no cho como um marluminoso, estendido a perder de vista, um mar em que as vagas eram as colinas eos cerros que levantavam ao redor.Puseram as enxadas aos ombros e partiram, alegres, para o trabalho. A porta dacozinha, as mulheres viam-nos caminhar, perdendo-se pouco a pouco nas dobrasdo caminho, e acenavam-lhes largos adeuses.Depois, j outra vez dentro de casa, uma delas alvitrou, receosa, que fossem vera senhora. Benedita, ciumenta, tentou primeiro impedi-las, mas, reprimindo o seuegosmo, seguiu-as pelas grandes salas desertas e frescas, at ao quarto de MariaLeonor, que dormia. Despertada pelo rudo dos passos das criadas, Maria Leonorabriu os olhos, estremunhada, e teve, de sbito, a sensao aguda de que j viraantes aquela cena. Procurou lembrar-se, rebuscou confusamente na memria omomento, o dia, o facto, que no encontrava. Por fim abanou a cabea,afastando o pensamento importuno, e vendo as criadas cercarem-lhe a camaestendeu-lhes as mos, sorrindo. Logo todas murmuraram, satisfeitas:- Minha rica senhora!- Est curada!...- Como est magrinha!...- Ora, h-de enrijar agora, se Deus quiser...- Oxal!Depois, por entre o murmurar das ltimas frases, saram, olhando ainda paratrs, acenando timidamente, animadas pela satisfao de terem entrado noquarto da patroa e de ela lhes ter estendido as mos. Benedita ficou.Maria Leonor, enternecido, murmurava:- Como so boas!...- E como esto contentes, minha senhora! No calcula o que foi naquela cozinhaquando lhes disse que a senhora estava curada. Pareciam doidos, eles e elas. Oque ser, ento, quando a virem de p9 1...Interrompeu-se, ao ver entrar Teresa, vergada ao peso duma grande bandejarepleta de acepipes, onde fumegava uma enorme tigela de leite. Benedita olhoupara a ama, estupefacta, e voltando-se para a companheira perguntou:

  • - Mas que isto, Teresa? Que ideia foi esta?Teresa, enrolando e desenrolando, atarantada, um guardanapo, respondeu comos olhos baixos:- Foi a Joana, a cozinheira. Disse-me que, uma vez que a senhora estava curada,podia comer de tudo. E, ento, arranjou isto e mandou-me vir trazer senhora!...Benedita, indignada, encolhia os ombros, batia com a ponta do p no sobrado epreparava-se para expulsar do quarto a pobre Teresa e a bandeja, quando MariaLeonor, que sorria, divertida, acudiu:- Espera, Benedita, espera! Realmente sempre como qualquer coisa. Estou comapetite.Teresa deitou um olhar triunfante a Benedita e dispunha-se a servir a ama. Aoutra, porm, tirou-lhe a bandeja e, pondo-a na beira da cama, recomendou:- Mas, ento, minha senhora, beba s o leite! No coma nada do que aqueladoida da Joana a ps, que lhe poder fazer mal.- Pois sim. Beberei s o leite.Benedita olhou para Teresa e, ao v-la murcha e desesperada por ter sidoespoliada do prazer de servir a senhora, arrependeu-se do seu gesto e disse-lhemansamente:- Olha, Teresa, serve aqui a senhora, enquanto eu vou buscar uma toalhinha.Mas tem cuidado, no a queimes...Teresa aproximou-se, devagar, temendo um engano, mas ao ver que Beneditafalava srio sentiu tamanha alegria que, ao segurar a bandeja, lhe tremiam asmos e quase entornou o leite sobre a cama. Servir a senhora no seu quarto, fazero que s a Benedita podia fazer, enchia-a duma tal satisfao que tinha ganas desaltar! Conteve-se, no entanto, muito sisuda, e quando Benedita voltou com adesnecessria toalhinha, j se acalmara completamente e, com um ar todo cheiode gravidade e doura, dava o leite patroa.Depois de Maria Leonor ter bebido, Teresa levou a bandeja silenciosa-mente.Benedita cerrou as persianas das janelas e o quarto mergulhou numa penumbradoirada, que boleava as arestas dos mveis e multiplicava as sombras.Maria Leonor aconchegou-se na cama e, voltando-se para um lado, preparou-separa dormir.

  • V Nos bicos dos ps, Benedita atravessou o quarto e saiu fechando a porta atrs desi, cautelosamente. No silncio luminoso que envolvia a casa e entrava nas salas,os seus passos soavam claros e ntidos. Ia descer a escada, mas, fazendo umgesto de quem se lembra, de sbito, de qualquer coisa, retrocedeu. Ao atravessaruma sala, ouviu por detrs duma porta uns rumores abafados, donde brotavam,mais vivos, baques estrondosos e risinhos alegres e finos. Abriu a porta de repentee recuou, assustada, diante dum grande almofado, que voava pelos ares direito asi. Estendeu os braos para a frente e abriu as mos, tentando desviar a montanhade penas que lhe desabava em cima.Agarrou o almofado, e dando ao rosto e voz uma expresso indignadaexclamou:- Parece impossvel, meninos! Que desalinho que vai nesta casa! Esqueci-me devos vir levantar e entretiveram-se a jogar o soco com as almofadas. Olhem paraisto!Isto era um quadro encaixilhado, representando uma fonte com dois pombos abeber na bica cristalina, que pendia da parede, de cabea para baixo. Ospequenos, encostados um ao outro, com as mos comprometidamenteescondidas atrs das costas, olhavam de revs para o gesticular de Benedita, quediligenciava repor o quadro no seu lugar justo e equilibrado. A rapariga, com olbio inferior tremente do choro prestes a rebentar, encostava-se ao irmo, quefranzia as sobrancelhas finas e castanhas.Benedita voltou-se para ele e disse, tentando manter o tom zangado da voz:- Que a menina, que to pequenina, goste de brincar, v, mas que o meninoDionsio, um homenzinho, faa este arraial, que no bonito. O que diria amezinha se os visse assim?Enquanto falava, ia pensando que a patroa no se zangaria tanto quanto ela dizia,se visse a brincadeira dos filhos. O mesmo pensava Dionsio, com certeza,porque, dando um passo frente da irm, como se quisesse defend-la darabugice da criada, respondeu:- A mezinha no se zangava! - e logo continuou: - Ela est doente, no sezangava! Tu que ests zangada!...Benedita curvou-se e, passando os braos por baixo das pernas das crianas,levantou-as ao colo, apertou-as ternamente contra o peito, e disse:- Eu no estou zangada, estava a brincar... E a mezinha j est boa.Dionsio deu um salto em cima do brao da criada e, puxando-lhe o cabelo,exclamou:

  • - Verdade?Jlia batia palmas e pulava no outro brao de Benedita, que se atrapalhava parasegurar as duas crianas. Acabou por p-las no cho, derreada, e logo, um atrsdo outro, os dois irmos improvisaram uma marcha triunfal volta do quarto,erguendo sobre as cabeas um lenol enrolado e cantando uma cano compostanaquele momento, cujo motivo principal era a mam. Nas variaes, entrava aBenedita como desmancha-prazeres.Por essa altura, a desmancha-prazeres levava as mos cabea, atordoada coma gritaria, e implorava silncio:- Calem-se, meninos, calem-se! Olhem que a mezinha est a dormir e, se aacordam, piora!Ouvindo dizer que a me piorava, as crianas pararam e, deitando o lenol parao cho, acusaram-se mutuamente de todo aquele barulho:- Foste tu, Jlia!A pequena negava com veemncia, agitando os cabelos loiros, que lhe caam emcanudos at aos ombros:- No fui eu, no senhor! - e voltando-se para Benedita: - Pois no, Benedita?A criada sorriu e acabou dizendo:- No foi nenhum, pronto, se querem! e vo-se lavar, depressa, seno digo mam que fizeram esta algazarra!Os pequenos correram para os lavatrios, ao canto do quarto, e da a pouco agua escorria pelos pescoos finos e torneados, e salpicava o cho, molhando natrajectria as saias de Benedita, que ajudava, com as suas mos vigorosas, alavagem.Depois de lavados, a criada penteou-os rapidamente, no acedendo aos rogos deJlia, que exigia a marrafa mais bem feita. Dionsio descompunha a irm,chamando-lhe vaidosa e toleirona, beliscando-a.Saram. As crianas, agarradas s saias da criada, pulavam de pura alegria.Dionsio estacou de sbito, e voltou-se para Benedita, dizendo que queria ir ver amam. Que se ela estava boa, j podiam ir v-la. Benedita recusou, alegandoque a mezinha estava a descansar e que no deviam ir incomod-la. O pequenoresignou-se de mau humor e, largando a saia da criada, desceu sozinho para ors-do-cho. Jlia seguiu tambm atrs dele, com a cabecinha orgulhosalevantada, fingindo no reparar em Benedita que, ao v-los caminhar para aporta exterior, recomendou:- No, no saiam ainda! Querem ir para a quinta sem comer? Ora vo cozinhae digam Joana que lhes d o leite, girem!... Hoje no comem na sala.

  • Os pequenos olharam-se, indecisos, com vontade de desobedecer ordem, mas,como sentissem j nos estmagos um protestar de fome, voltaram atrs e foram cozinha.Joana, gorda e rubicunda, agitava-se no meio das panelas fumegantes. Ao verentrar as crianas, mostrou a dentadura num sorriso radioso e saudou-as, com avoz aflautada com que a natureza a dotara:- Bons dias, meus queridos meninos! Querem o leitinho, no ? Esperem umbocadinho. um instantinho enquanto aquenta.Encheu uma leiteira e, virando-se para Dionisio, quis saber:- Ento a mezinha j se levantou?O pequeno carregou a expresso e respondeu de mau modo:- No sei! A Benedita no nos deixou ir v-la. to m... Quando eu forcrescido. hei-de obrig-la a fazer o que eu quiser...Cuspiu para o lado e resmungou:- Peste!Joana, escandalizada, olhou para ele e perguntou, repreensiva:- menino, ento isso diz-se? Onde foi aprender isso?- Ora! Ouvi ao Manuel da Barca. Que mal tem?- feio, pois ento!...Jlia tinha ido para a porta da cozinha e seguia, com os olhos extasiados, umgrande bando de pombos, que voava muito alto, batendo as asas sob o esplendorda luz do Sol. Dionsio foi para junto da irm, e os dois, com os olhos muitoabertos e o pescoo torcido, seguiram atentamente as largas curvas que as avestraavam no espao.Joana tirou do lume o leite quente e chamou-os para dentro. Sentaram-se a umaponta da grande mesa da cozinha, onde raramente comiam. Repetiram o grandeprazer de contar as ndoas de vinho que alastravam na madeira e os buracos daspontas das navalhas que os trabalhadores ali espetavam enquanto comiam ebebiam. Depois de ingerido o leite, saltaram dos bancos altos e correram parafora, aos pulos, gritando quando escorregavam na terra molhada. O solreverberava nas poas de gua e secava os sulcos da lama vermelha do cho.Quando passaram no local onde estivera o palheiro que, ainda na vspera, tinhamvisto, grande e pesado, transudando a tentao esquisita das suas paredesenormes atulhadas de palha at s telhas, pararam, espantados, olhando comterror os muros enegrecidos, as traves carbonizadas, a grossa viga mestramostrando apenas uma ponta encravada num resto de parede.Um garotito descalo, que se aproximara, disse, perguntado por Dionsio, que

  • fora uma coisa que cara do cu que queimara o palheiro. Jlia olhou para cimae tornou a ver l muito alto o bando de pombos batendo as asas num movimentoconstante e incansvel. Ps-se nos bicos dos ps e segredou ao ouvido do irmo:- Oh, Nsio, teriam sido os pombos?O pequeno encolheu os ombros, atrapalhado, sentindo perigar o seu prestgiojunto da irm. Foi o garotito que, embora disso inconsciente, o salvou.Procurando outra informao para dar, acabou por dizer:- Foi de noite...Dionsio voltou-se para a irm, decidido, e rematou:- Ora a est! No foram os pombos, porque os pombos no voam noite!Jlia no se deu por suficientemente esclarecido e insistiu:- Ento, quem foi?O irmo fez um gesto de impacincia e retorquiu, pensando que a irm era umaperguntadora insuportvel:- No sei! Como queres que eu saiba, se estava a dormir?- Pergunta...Dionsio no encontrou melhor resposta que voltar as costas irm e ao palheiro,deitando de caminho um olhar furioso ao garoto descalo, causador inocentedaquele embarao. Jlia seguiu-o, de m vontade, virando-se para trs de vez emquando para mirar os restos do palheiro.Caminharam calados durante algum tempo, at que Jlia, incapaz de se conter,cortou o silncio para dizer que, com certeza, os ratos tinham morrido todos. Oirmo, contente por poder dar uma resposta definitiva, respondeu que lhe pareciaque sim, que s ela era capaz de fazer semelhantes perguntas. A pequena amuoue, quando Dionsio largou a correr atrs duma borboleta, no o seguiu. Masquando ele voltou, com os dedos manchados do p esbranquiado das asas doinsecto, que esmagara, zangou-se. Que mal tinha feito a borboleta? No podiacorrer atrs dela, sem a matar? E depois a Benedita que era a m?! Que visse,nunca a Benedita tinha matado uma borboleta, e muito menos branca.O irmo defendeu-se, dizendo que a criada, no Natal, tinha ajudado a matar oporco e que isso devia ser pior, porque o porco fizera muito barulho, enquanto aborboleta no dissera nada.Perante a lgica terrvel daquela resposta, Jlia calou-se e deixou o irmoavanar frente. Atravessaram um canto do pomar, onde tinham sido plantadaslaranjeiras, que se elevavam, direitas, no cho molhado e remexido. Por umpequeno porto engastado no muro saram para o campo aberto. Entre o matoserpeava at aldeia um carreirinho tmido, que, por vezes, se afogava nas poas

  • de gua que o interrompiam.Dados os primeiros passos, Dionsio, de sbito, deixou o carreiro lamacento eendireitou ao mato rasteiro. Jlia deixou-se ficar, batendo os ps para sacudi-losda lama, sem se atrever a seguir o irmo, que ia j longe, levado pelo entusiasmoda corrida, saltando as moitas baixas de tramagueira, atrs das quais desapareciapor instantes, para logo surgir mais alm. Olhou em redor, indecisa.Atrs de si, levantava-se um valado verdejante, com pequenas oliveiras deespao a espao. Para a frente, o campo sem fim, cintilante das gotas de guasuspensas das plantas baixas e das rvores, com grandes placas luminosas nosstios inundados. Jlia sentiu-se abandonada. A aldeia aglomerada em volta daigreja ficava-lhe direita. Para alm das ltimas casas, uma linha verde dechoupos esguios e de salgueiros atarracados denunciava o rio. Era para ali que oirmo corria, com certeza: havia l um barco quase apodrecido, ancorado, comas tbuas do casco verdosas e escorrendo humidade, onde passavam as manhs,vendo nadar na gua transparente os peixes pequenos e brilhantes que Dionsioteimava em pescar com uma linha que escondiam num buraco, entre duaspranchas desconjuntadas.Gritou. A voz, clara e fina, elevou-se no ar lmpido, voou por cima do mato edispersou-se na distncia. O irmo ia j muito longe para que a pudesse ouvir. Asua cabea loira brilhava ainda, mas ia desaparecer por detrs dos outeiros que,deste lado do rio, protegiam das cheias a aldeia e os campos.Jlia sentou-se sobre uma grossa raiz de oliveira, soluando amargamente peloabandono de Dionsio. No queria voltar para casa, mas o achar-se s, no meiodaquele deserto, assustava-a. Um golpe de vento, abanando os ramos da rvore,atirou-lhe para cima grossas gotas de gua, que a arrepiaram. Olhou tristementepara os sapatos enlameados, pensando que nessa altura j o irmo tinha chegadoao rio, subira pelo tronco inclinado do freixo cortado que pendia sobre o barco e,depois de se deixar cair dentro deste, metera a mo entre as duas pranchas etirara a linha e o anzol para pescar. Quem sabe, mesmo, se no teria j apanhadoum daqueles peixes mais bonitos, que nadavam devagar, com lentos movimentosda cauda, passando sob o barco, ocultando-se na sombra da quilha para aparecerdo outro lado, nadando sempre e mantendo-se, por vezes, imveis, contra a forada corrente?A esta ideia, levantou-se dum salto e, depois dum momento de indeciso, diantedo mato agressivo, onde cresciam numa abundncia ameaadora grandesmacios espinhosos, ensaiou os primeiros passos, reprimindo a dor que lhecausavam as hastes grossas e os picos agudos das plantas.No meio do campo, j as pernas esfoladas tinham um aspecto lamentvel. Mascontinuou a caminhar, puxando vigorosamente os ps, que se embaraavam nas

  • razes flor da terra.Chegando, enfim, s primeiras elevaes do terreno, nuas de vegetao, subiu-asdum flego e, l em cima, enquanto olhava o rio que deslizava ao fundo dopequeno vale, entre as rvores, esfregou as pernas doridas e arranhadas.Procurava o freixo inclinado onde estaria o desejado barco. Nunca tinha vindopor aquele stio e estava desorientada. Descobrindo, por fim, a rvore, desceu aribanceira a correr. Ao aproximar-se, diminuiu o passo e, p ante p, chegou aotronco rugoso do freixo. Os salgueiros que cobriam a margem no a deixavamver o barco; ouvia apenas o contnuo chape-chape da gua deslizando nas tbuassubmersas. Abraou-se ao tronco do freixo e, agarrando-se aos ramos, comeoua trepar. Passou por entre as longas ramadas dos salgueiros e, depois de afastaras ltimas que formavam, sua frente, uma cortina longa e verde, viu, em baixo,o barco. Ligada por uma corrente ferrugenta margem e amparada a umaestaca cravada no fundo do rio, a velha caadeira mantinha-se imvel.Deitado sobre a proa, e com os olhos fitos na profundidade, estava Dionsio. Nodera pela chegada da irm. Jlia, escarranchada no tronco, viu na gua lmpidaum peixe, branco e brilhante, nadar para o anzol. As pernas de Dionsioestenderam-se, nervosas, e os olhos arregalaram-se-lhe na nsia de verem opeixe abocar a armadilha, sacudir a linha desesperado para fugir e enterrar oanzol cada vez mais, nas guelras, at ser puxado para fora, estrebuchando.O peixe, porm, no se decidia. Nadava em volta do isco, batendo-lhe com acauda quando se afastava, mas voltando logo, mordiscando de leve, fazendooscilar a bia de cortia. Jlia, l em cima, impacientava-se. Queria saltar para obarco, mas o barulho da queda afugentaria o peixe e Dionsio ficaria zangado.Pensando nisto, achou que no era m partida fazer com que o peixe fugisse.No a tinha o irmo deixado ficar sozinha no mato?!Em baixo, o peixe continuava a mordiscar o isco sem se decidir a engoli-lo deuma vez. As pernas nuas de Dionsio tremiam de impacincia. Se a gua nofosse to clara, a pesca resultaria sempre. Mas ver os peixes no fundo, em voltado anzol, acabava por lhe fazer perder a cabea e obrigava-o a mexer-se,furioso.Depois duma volta lenta, o peixe aproximou-se do anzol, com todo o ar, ao queparecia, de ir aboc-lo. Imediatamente, Jlia deixou-se escorre ar do tronco edepois de ficar suspensa durante alguns segundos, oscilando sobre o barco,deixou-se cair. Sob o peso, a caadeira mergulhou um pouco, as velhas tbuasrangeram. O peixe fugiu.Sobressaltado, Dionsio voltou-se e, vendo a irm que olhava para ele,desafiadora, com o petulante queixinho erguido, as pernas feridas, o vestidomolhado e amarrotado, ia zangar-se, ralhar, mas ela antecipou-se:

  • - Deixaste-me sozinha e eu espantei-te o peixe! Estamos pagos.O irmo, silenciosamente, deu-lhe as costas e puxou a linha. Sentou-se na bordado barco e comeou a enrolar entre as palmas das mos uma bolinha de popara novo isco. As pontas dos ramos dos salgueiros, mergulhadas na gua,moviam-se alternadamente para cima e para baixo, ao sabor da aragem. Umguarda-rios, de asas azuis, passou, quase rasando a gua com o peito.Dionsio ps de parte a linha e o po e tirou do bolso um canivete. Debruou-sesobre a popa da caadeira, quase encostada margem, e cortou uma verdascadum dos salgueiros. Esgalhou-a toda, deixando ficar, apenas, na ponta, duasfolhas pequenas dum verde ferrugento e tenro, e deu-as, timidamente, irm.Era a paz. Sempre que iam ao rio, cortava um ramo para Jlia e, ao fazer omesmo agora, apresentava simblicas desculpas.Jlia, radiosa, agarrou a verdasca e ficou a olhar, embevecida, as duas folhas queo irmo deixara ficar. No meio delas, abrigavam-se duas outras, mais pequenas,quase brancas, enroladas sobre si mesmas, condenadas a no crescerem mais.Dionsio, entretanto, voltara ao isco e ao anzol. Estendeu-se outra vez na proa eatirou a linha gua, que se afastou em crculos cada vez maiores, at smargens, donde voltou em ondulaes espaadas, quase imperceptveis. Jliadeitou-se ao lado do irmo. No fundo do no, o isco de po era uma manchabranca que brilhava como uma jia. Uma nuvem passou debaixo do Sol e asguas tornaram-se sombrias. Jlia olhou para o cu, onde apenas aquela nuvempassava escurecendo cada vez mais o rio. De repente, a bia de cortiamergulhou, sacudida bruscamente. Dionsio, de um salto, ps-se de p e puxoupara fora a linha, que emergia aos estremees.A flor da gua surgiu a cabea branca dum peixe, que lutava, desesperadamente,para se manter no seu elemento. Um puxo mais e, descrevendo no ar um traobrilhante, o peixe caiu dentro do barco, saltando e batendo as barbatanas na guado fundo.Jlia pulava de contente e batia palmas, enquanto o irmo arrancava o anzol dasguelras do peixe, um barbo esguio e comprido que se lhe debatia entre os dedos.Dionsio, entusiasmado, preparava-se para atirar de novo a linha gua, quando,trazidas pelo vento, ouviu as doze badaladas do meio-dia, dadas pelo relgio datorre da igreja. Olhou, aborrecido, para a irm:- Temos de ir, Jlia.- Pois temos! A Benedita, se calhar, j anda nossa procura.- Vamos.Cortou uma forquilha dum ramo e suspendeu nela o peixe pelas guelras. Subirampara o freixo e, depois de se arranharem a descer a rvore, treparam novamente

  • a ribanceira, levando o barbo j morto, que roava a barbatana da cauda pelocho. Descendo at aldeia, ganharam a estrada que levava quinta. Deitarama correr pelo caminho fora, porfiando para chegar um antes do outro a uma dasrvores do caminho, depois a outra, rindo de alegria com o peixe suspenso,modo, as guelras rasgadas.Quando entraram o porto, viram ao fundo da alameda, junto da porta da casa,dois homens. Eram Jernimo e Antnio Ribeiro. Precipitaram-se sobre o tio.- Olhe, olhe, tio Antnio! Um peixe, um peixe!... Pescmos ns no rio!Benedita, que assomara porta, atrada pelo estrpito da chegada, levou as mos cabea e exclamou:- Ento os meninos foram para o rio? E todos esfolados, todos sujos!... Quebonito, sim senhores! A mezinha a perguntar pelos meninos e eu sem saber oque responder!Ao ouvirem dizer que a me tinha perguntado por eles, os dois irmos coraram ebaixaram a cabea sob a repreenso. Que parecia impossvel, a mezinha aindana cama e os meninos sem quererem saber dela! Perante tal acusao, Dionsiolargou o peixe e entrou em casa a correr, seguido pela irm, que se esforavapor no ficar atrs, para que o irmo no tivesse o prazer de chegar primeiro aop da me...

  • VI Apesar das prometedoras esperanas de Viegas, a convalescena de MariaLeonor foi longa. Vrias vezes quinze dias se passaram antes que ela, amparada,ensaiasse no quarto os seus primeiros e trmulos passos, vendo os mveisgirarem no quarto e o quarto com eles, sentindo a cabea rodopiar doidamente,tendo a humilhadora sensao de no poder mover o prprio corpo. Que deesforos lhe custou a satisfao do simples desejo de chegar janela paraestender as mos fracas e magras aos raios quentes do sol de Junho, que lheinundava o quarto, donde, com o lento regresso da sade, desaparecia opersistente cheiro das tisanas e dos xaropes a que o seu corpo fatigado devia avida!Estendida numa longa cadeira de verga, no terrao da casa virado ao poente,passou as doiradas manhs daquele Vero, que chegava quente e criador. Dali,ouvia, em baixo, o montono chiar dos carros de bois que passavam para a eira,onde os manguais subiam e desciam, fazendo saltar da espiga pulverizada o grode trigo j seco.E tardinha, quando o campo se enchia de sombras e o verde-escuro das rvoresse transmudava, pouco a pouco, em negro, levantava-se da sua cadeira junto dajanela do quarto de dormir, para onde ia repousar nas horas em que o calorapertava e, em passos incertos, atravessava o aposento e deixava-se cair,exausta, sobre a cama, com uma indefinida angstia a pesar-lhe no peito e umtremor de membros que a fazia desfalecer languidamente, afundar-se noscolches macios e brandos. No quarto, donde a luz do Sol ia fugindo, tocava,ento, a campainha, que soava, mansa, pelo corredor fora. Benedita vinha deit-la. Despia-se devagar, desejando vagamente cair no cho e deixar-se ficar ali,meio despida, sentindo sobre os ombros avanar a sombra da noite, v-los apenascomo uma mancha branca e indecisa, desaparecendo aos poucos.Experimentava com os ps nus a aspereza do tapete, quase a deitar-se nele,roando a pele nos grossos fios como num cilcio. E quando se deitava, sozinha noquarto, porque no consentia que Benedita a velasse, levantava os braos magrose, inconscientemente, ficava contemplando os sulcos esbranqui-ados quetraavam na escurido, abrindo e fechando as mos como se a quisesse apalpar.De todos os cantos do quarto surgiam, depois, formas confusas, que se moviam ecaminhavam para o leito, rolando sobre si mesmas e virando para ela sempre omesmo aspecto, listas negras sobre um fundo amarelo. Tudo isto setransformava, com rapidez, em cruzes que enchiam o quarto de alto a baixo edesabavam, silenciosamente, como fantasmas.De madrugada, acordava com um suor frio a humedecer-lhe a pele. E de novo,

  • de toda a parte, via aparecerem as manchas amarelas riscadas de negro, rolandoe subindo para os ps da cama, donde caam sobre os lenis como uma cascatasilenciosa. Era sempre o mesmo pesadelo. Quando as cruzes lhe caam sobre oestmago sufocava, como se estivesse sendo apertada entre gigantescas mos, esoltava um dbil grito amortecido pelos dentes furiosamente cerrados na dobrado lenol. Apalpava, ento, a cama ao seu lado e suspirava.Quando a manh nascia, clara e alegre, caa num sono profundo, imvel comouma pedra, com umas largas olheiras a sombrearem-lhe as faces, os cabelossoltos no travesseiro, destapada, fria, com o peito desnudado, onde uma gota desuor ainda brilhava. Era assim que Benedita a vinha encontrar todas as manhs.Vestia-a e ela recomeava a sua rotina de doente, recebendo o mdico, ouvindoo palestrar do cunhado, vendo brincar os filhos, dormitando sob a calmasilenciosa e quente da tarde, sem nimo para falar, preguiosamentedespenteada, enrolando e desenrolando nos dedos um anel dos cabelos.s vezes, lembrava-se das palavras de Viegas, recordava a calma que sentira aoouvi-lo e a vontade imensa de agir que elas lhe tinham despertado. Quando istosucedia, as mos crispavam-se-lhe nos braos da cadeira, como se quisesseexperimentar a rijeza dos msculos, mas logo as deixava cair no regao,indiferentes, esgotadas pelo esforo. Sentia em volta de si os cuidados deBenedita, o carinho dos filhos, a ateno do cunhado, que por vezes se esquecia aolh-la, abstracto, mas tudo isto confusamente, como num sonho.Viegas, quando a visitava, espantava-se com aquela insensibilidade, aquelaindiferena que se comprazia na contemplao dos objectos imveis, como selhes estudasse as formas ou a razo de ser da imobilidade. Desesperava-se com asua impotncia para arranc-la daquela apatia que a desgastava e perguntava a siprprio, perplexo, que estranhas foras a tinham salvo da doena e a atiravamagora para um estado quase embrutecido, sem chispa de esprito que a animasse.J se espalhava na quinta que a senhora no estava boa, que estavaembruxada. E havia quem garantisse que o raio que cara no palheiro fora o sinaldo demo para que ela entrasse naquelas aflies. Benedita zangava-se ao ouvirtais crendices murmuradas na cozinha, hora da ceia, entre as criadas, queinterrompiam o mastigar das migas para responder que a quem no acreditava que aquelas coisas sucediam. Teresa e Joana, timidamente, refutavam, punham-se ao lado de Benedita, mas as outras asfixiavam-nas com citaes de casosacontecidos a muita gente, com uma tal frequncia, em tal abundncia, que sediria que todos os seus conhecimentos estavam possessos de alminhas penadas oude demnios rabudos e escoicinhadores.Enquanto na cozinha as criadas discutiam a influncia do diabo e das bruxas nasmortais vidas humanas, Maria Leonor, no quarto, lutava, desespera-damente,com os seus pesadelos e os seus fantasmas. Quis uma luz consigo, mas mandou-a

  • tirar depois, porque as sombras dos mveis assustavam-na e, ento, levantava-se,de vela na mo, para alumiar todos os recantos sombrios, como se quisesseencher o quarto de luz. Logo que passava de um canto para o outro, o anteriorensombrava-se imediatamente, e ela dava voltas constantes ao aposento,alumiando aqui e ali, at a vela se gastar nos dedos. Ficava hirta, no meio doquarto escuro, vendo, de novo, avanarem do cho, do tecto, das paredes, asmanchas amarelas riscadas de negro, erguendo-se transformad