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1 TERRA, GADO E ESCRAVO: FORTUNAS ESCRAVISTAS NOS CAMPOS GERAIS PARANAENSE, 1826-1850 Mariani Bandeira Cruz Oliveira RESUMO O presente trabalho propõe-se a discutir o escravismo nos Campos Gerais Paranaense, na primeira metade do século XIX, suas bases econômicas e socioculturais. A historiografia paranaense sobre a escravidão demonstra que, mesmo com percentual consideravelmente baixo, os escravos estiveram presentes nesse território desde o século XVII. E participaram intensamente do mundo do trabalho constituído nessa sociedade, pelo menos até meados do século XIX: ocupavam-se em atividades de colheita e beneficiamento do mate, na criação de gado, no cultivo de lavouras e no exercício de ocupações domésticas e ofícios diversos. Utiliza- se como corpo documental principal os inventários post-mortem de donos de escravos inventariados na Vila de Castro, nos anos de 1826 à 1850. Foram criadas fichas para catalogação dos dados dos bens materiais presentes na documentação e estabeleceu-se um perfil de fortunas. A hierarquia econômica por faixa de fortuna demonstrou que naquela sociedade a posse de escravos, a propriedade de terras e a propriedade de animais (muares, vacuns e cavalares) caracterizavam sobremaneira a região. E mais, a pesquisa demonstra que a mão de obra escrava foi componente estrutural da sociedade campeira, seja nas fazendas de engordas e/ou nas atividades tropeiras. Foi possível ainda caracterizar um total de 994 escravos, sendo 194 africanos (134 homens e 60 mulheres); 309 crioulos (178 homens e 131 mulheres), 06 indígenas (03 homens e 03 mulheres) e 485 não especificados. A média de escravos por inventariado na Vila de Castro, no período estudado concentrou-se em torno de 8 cativos por proprietários. Dessa feita, considera-se essa região significativa no que tange o universo escravista, além de revelar-se lócus de um escravismo bastante dinâmico no que refere-se às lidas campeiras. PALAVRAS-CHAVE: Escravismo. Riqueza. Sociedade campeira. Trabalho cativo. Vila de Castro. INTRODUÇÃO Os Campos Gerais paranaense ficaram conhecidos na historiografia pelos seus envolvimentos com as atividades de criação e engordas de animais. O desenvolvimento desta Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História e Regiões da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), Campus de Irati/PR. E-mail: [email protected]

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TERRA, GADO E ESCRAVO: FORTUNAS ESCRAVISTAS NOS CAMPOS GERAIS

PARANAENSE, 1826-1850

Mariani Bandeira Cruz Oliveira

RESUMO

O presente trabalho propõe-se a discutir o escravismo nos Campos Gerais Paranaense, na

primeira metade do século XIX, suas bases econômicas e socioculturais. A historiografia

paranaense sobre a escravidão demonstra que, mesmo com percentual consideravelmente

baixo, os escravos estiveram presentes nesse território desde o século XVII. E participaram

intensamente do mundo do trabalho constituído nessa sociedade, pelo menos até meados do

século XIX: ocupavam-se em atividades de colheita e beneficiamento do mate, na criação de

gado, no cultivo de lavouras e no exercício de ocupações domésticas e ofícios diversos. Utiliza-

se como corpo documental principal os inventários post-mortem de donos de escravos

inventariados na Vila de Castro, nos anos de 1826 à 1850. Foram criadas fichas para

catalogação dos dados dos bens materiais presentes na documentação e estabeleceu-se um perfil

de fortunas. A hierarquia econômica por faixa de fortuna demonstrou que naquela sociedade a

posse de escravos, a propriedade de terras e a propriedade de animais (muares, vacuns e

cavalares) caracterizavam sobremaneira a região. E mais, a pesquisa demonstra que a mão de

obra escrava foi componente estrutural da sociedade campeira, seja nas fazendas de engordas

e/ou nas atividades tropeiras. Foi possível ainda caracterizar um total de 994 escravos, sendo

194 africanos (134 homens e 60 mulheres); 309 crioulos (178 homens e 131 mulheres), 06

indígenas (03 homens e 03 mulheres) e 485 não especificados. A média de escravos por

inventariado na Vila de Castro, no período estudado concentrou-se em torno de 8 cativos por

proprietários. Dessa feita, considera-se essa região significativa no que tange o universo

escravista, além de revelar-se lócus de um escravismo bastante dinâmico no que refere-se às

lidas campeiras.

PALAVRAS-CHAVE: Escravismo. Riqueza. Sociedade campeira. Trabalho cativo. Vila de

Castro.

INTRODUÇÃO

Os Campos Gerais paranaense ficaram conhecidos na historiografia pelos seus

envolvimentos com as atividades de criação e engordas de animais. O desenvolvimento desta

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História e Regiões da Universidade Estadual do Centro-Oeste

(UNICENTRO), Campus de Irati/PR.

E-mail: [email protected]

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região se deu no início do século XVIII, baseado nas atividades do tropeirismo, nas posses de

grandes propriedades de terras, criação de animais, no trabalho livre e escravo.

Com a abertura do Caminho de Viamão1 entre os anos de 1728 e 1730 os Campos Gerais

Paranaense encontrava-se em meio a rota que ligava o Sul com Sudeste da colônia. E a posição

geográfica em que se situava em relação aos centros comerciais da colônia, fez com que se

constituísse num importante entroncamento e ponto de parada, de viajantes e tropeiros que

transitavam pela região. Desse modo, as localidades dos Campos Gerais “mais do que parada

[...] eram pontos de criação e de comércio, onde muitas pessoas fixaram moradia levando em

consideração a possibilidade de crescimento” (MARTINS, 2011, p.54).

A Vila de Castro estava, portanto, dentro deste processo. Desenvolveu-se ligada as

influências do tropeirismo que contribui com a formação de pequenos ranchos, os quais

consolidaram na ocupação dos espaços e constituição dos vilarejos ao longo do caminho das

Tropas. Conforme Ilton César Martins:

A localidade é a primeira região a ser habitada nos Campos Gerais basicamente por

conta do rio Iapó e suas cheias, que obrigava tropeiros de Curitiba, Viamão e de

Sorocaba, a repousar em suas margens, preferencialmente em sua margem esquerda,

onde podiam se pôr ao abrigo dos ataques de índios que habitavam a região”

(MARTINS, 2011, p.54).

Desde o século XVIII os Campos Gerais conviviam com o caminho de passagens de

viajantes e tropeiros que transitavam pela região. Vilas e povoados foram se formando ao longo

desse caminho, como é o caso de Castro.

Portanto, neste trabalho, procuramos pensar a sociedade castrense inserida no contexto

da primeira metade do século XIX, justamente quando as atividades da pecuária e do

tropeirismo já estavam consolidadas em todo o sul da América portuguesa.

VILA DE CASTRO: POVOAÇÃO E SOCIEDADE

A Vila de Castro faz parte da região que hoje conhecemos como Campos Gerais

Paranaense. A ocupação dessa área ocorreu pela distribuição da sesmaria2 no início do século

1 O Caminho de Viamão ligava a Província de São Pedro do Rio Grande, passando pelos Campos Gerais

paranaense, à Sorocaba no interior de São Paulo. Faz parte das muitas rotas e trilhas que foram criadas para

cruzarem do interior do Brasil aos centros comerciais da colônia e Império (MARTINS, 2011, p. 49). 2 Há um Alvará datado de 19/03/1704 em que Pedro Taques de Almeida, representante das principais famílias

paulistas, requeriam por sesmarias as terras nas proximidades do Rio Iapó, atualmente região dos Campos Gerais

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XVIII. As terras foram adquiridas especialmente por paulistas, habitantes de Curitiba e

Paranaguá (Pinto, 1992, p.75). As primeiras famílias que se instalaram na região exploraram os

campos naturais para a engorda e criação de animais.

Para o período de 1826-1850 que propomos estudar é interessante destacar que a Vila

de Castro pertencente a 5ª Comarca Paulista abrangia uma extensa área. Na qual se incluía as

freguesias de: Jaguariaíva, Ponta Grossa, Tibagi e Guarapuava. O desmembramento dessas

áreas ocorreu após e/ou no decorrer do nosso recorte temporal, ou seja, Guarapuava em 1849,

Ponta Grossa em 1864, Tibagi em 1872 e Jaguariaíva em 1876.

Quanto ao aspecto físico da povoação da vila castrense pode-se levar em conta o olhar

de Jean-Baptiste Debret que passou pela região na década de 1820 e apresentou um ambiente

urbano bastante rarefeito.

FOTO I

A cidade de Castro, de Jean Baptiste Debret (1829) FONTE: BANDEIRA, Julio e LAGO, Pedro Correia do.

Debret e o Brasil: Obra completa 1816-1831. Rio de janeiro: Capivara Editora, 2007, p.284.

do Paraná. Esse pedido foi concedido parte da área localizada na paragem chamada Iapó, nas proximidades do rio

Iapó (PINTO, 1992, p.42).

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Tomando como base a aquarela de Debret, temos a Vila de Castro no início do Século

XIX ainda pouco povoada, e isso, não é muito diferente das demais vilas paranaense, ou até

mesmo das espalhadas pelo interior brasileiro nesse período.

A vila castrense é representada com a Igreja ao centro e algumas casas em torno dessa.

O pintor destaca a presença de pessoas circulando pelas ruas - ainda em processo de formação

- e a presença dos homens montados nas tropas. A cidade de Castro de Debret é cercada pelos

campos verdes. Em meio a mata, é possível identificar uma estrada, que pelo destaque na obra,

poderia ser um caminho importante aos moradores castrenses no período. De modo geral,

podemos destacar na pintura uma valorização da cultura campeira na localidade. No período

não era possível uma definição precisa do que era urbano ou rural na Vila de Castro, ou seja,

existiam aspectos tênues entre um e outro.

Nos primeiros anos dos oitocentos os Campos Gerais era a região menos povoada no

território do Paraná. Para o ano de 1824, com base nas Listas Nominativas de Habitantes,

Cecília Maria Westphalen apresenta um total de 8.502 habitantes, correspondendo pouco mais

de 25% do total da população paranaense. E desses, 1.794 eram escravos. Já no censo de 1854

após a criação da Província do Paraná atingiu 22.187 habitantes nesse território. A população

cativa somava pouco mais de 23% do total dos habitantes dos Campos Gerais Paranaenses

(WESTPHALEN, 1997, p.35).

Com relação ao aumento populacional vale destacar que o que conhecemos como

Paraná, em 1824 contava com 32.887 habitantes, já em 1854 sua população quase dobrou,

atingindo 62.258 habitantes (WESTPHALEN, 1997, p.26). Esse cenário de crescimento

populacional não foi caso isolado para essas áreas, ou seja, a Província Paulista como um todo,

na primeira metade do século XIX, passava por um crescimento em sua população.

No início do século XIX os Campos Gerais Paranaenses passava por um alargamento

em suas fronteiras. Neste período tem-se a ocupação e povoamento de algumas áreas na região,

entre elas: Palmas e Guarapuava. O processo de povoamento destas áreas ocorreu a partir de

expedições ordenadas pela Coroa portuguesa.

Muitos homens, sozinhos e/ou acompanhados de sua família foram enviados a essas

terras. Conforme Franco Netto, as milícias destinadas a essa missão deveria ser formada pela

figura do soldado-povoador. Que além da atuação na defesa territorial fosse capaz de atuar nas

atividades de lavoura e criação de animais. Desse modo, “a família era um elemento

fundamental nesse processo, pois, sem a formação desses núcleos familiares, seria praticamente

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impossível a formação desses núcleos populacionais, bem como a consolidação e permanência

de tropas para tal fim” (FRANCO NETTO, 2007, p. 48).

Sabe-se que com o processo de povoamento dos Campos Gerais Paranaense formou-se

nas redondezas da Vila de Castro a formação de um grupo de fazendeiros que dedicavam a

engorda e criação de animais. As atividades desenvolvidas nessas propriedades contavam com

participação de livres e escravos. Conforme Cacilda Machado “o escravo era mão-de-obra

fundamental nas fazendas, e os grandes proprietários dos Campos Gerais eram geralmente

senhores de escravarias maiores do que os das terras curitibanas” (MACHADO, 2008, p.30).

Algumas dessas fazendas possuíam características específicas, como das unidades

absenteístas3, onde os proprietários não costumavam permanecer em suas fazendas, deixando-

as aos cuidados de capatazes de sua confiança, na maioria administradas pelos escravos.

Carlos Lima e Kátia Melo em investigações a partir das Listas Nominativas de

Habitantes, da primeira metade do século XIX observaram que diferentes unidades absenteístas

foram identificadas nos domicílios de Castro. A Fazenda Capão Alto, é uma delas, de propriedade

dos Padres Carmelitas, sua maior parte foi administrada por capatazes cativos. E nas listas nominativas

de 1835 aparece como a maior escravaria de Castro, contando com 99 escravos, no mínimo (LIMA e

MELO, 2004, p.140).

As investigações sobre o escravismo na área que irá abranger a Província do Paraná

demonstram que as regiões de predominância campeira, como é o caso dos Campos Gerais,

com suas atividades de pecuárias foram as possuidoras de maiores plantéis de escravos.

(PEREIRA, 1996, p.60; MACHADO, 2008, p.30; GUTIÉRREZ, 1986, p.151).

O universo oitocentista castrense era composto por diversos sujeitos, os quais constituíam a

sociedade do período. Muitos indivíduos conseguiram ao longo da vida acumular fortunas4 e

desfrutaram de uma vida razoável confortável, conforme as condições da época. Da mesma forma, que

muitas famílias contaram apenas com a sorte e a força de trabalho para garantir sua sobrevivência e dos

seus familiares. Desse modo, estamos diante de uma sociedade multifacetada: constituída por ricos

fazendeiros, detentores de poder econômico e político, cativos e assalariados, daqueles cujas

atividades supriam apenas as necessidades de subsistência e dos sitiantes (PINTO, 1992, p.04).

3 As unidades absenteístas são aquelas que “não contavam com a presença de seus donos, mas que também não

possuíam capatazes livres, assalariados, ficando a administração por conta dos próprios escravos. Os senhores às

vezes residiam em habitações urbanas” (LIMA e MELO, 2004, p.128). 4 Fortuna entendida como a posse de qualquer bem (MATTOSO, 1978).

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Entretanto, a história desta localidade nesse período é marcada por história de

fazendeiros, sitiantes, trabalhadores livres e escravos, tropeiros e viajantes, de sucessos e

insucessos, numa área de pastoreio que acolhia pessoas dos mais variados graus de riqueza.

A administração pública era comandada, na maior parte, pelos grandes fazendeiros e

proprietários de escravos. A localidade se configurava como o espaço da sociabilidade,

permitindo o encontro e desencontro de pessoas. As notícias da corte chegavam principalmente

via tropeiros e viajantes que passavam pela região.

A maior força de trabalho nos Campos Gerais paranaense situava-se no setor primário,

especialmente na agricultura e a pecuária. O setor econômico obtinha importância significativa

com as atividades de pecuária e tropeirismo. Conforme Franco Netto e Vial essas atividades

além de possibilitarem uma dinamicidade na economia, forneciam aos moradores dos Campos

Gerais e redondezas vantagens econômicas, pois “a economia encontrava suporte no

tropeirismo, onde várias atividades se sustentavam com o comércio e a prestação dos serviços

aos tropeiros que pelos Campos Gerais passavam” (FRANCO NETTO e VIAL, 2013, p.3).

FORTUNAS INVENTARIADAS NA VILA CASTRENSE

No Brasil o estudo das fortunas coloniais, a partir dos inventários post-mortem, tem sido

tema de diversos trabalhos acadêmicos. Essas pesquisas, em sua maioria, constatam a

importância de alguns ativos significativos na formação das fortunas coloniais: escravos, terras,

imóveis e dívidas ativas. O que muda, em alguns casos, é a ordem que cada ativo possui no

conjunto do patrimônio analisado.

Para analisarmos a composição das fortunas5 dos inventariados pesquisados recorremos,

sobretudo, ao modelo proposto por Kátia Mattoso (1992) quando analisou a riqueza na Bahia

do século XIX. Entretanto, nosso modelo de análise segue com devidas alterações. Segundo

João Fragoso (1998), o “estudo das fortunas é um dos meios para se identificar a lógica que

perpassa o processo de reprodução da sociedade” (FRAGOSO, 1998, p.334). A fortuna é,

portanto, de fundamental importância na compreensão do funcionamento destas sociedades.

A partir da análise das fontes classificamos o valor do patrimônio dos inventariados em

faixas de fortunas, que permitiu-nos traçar um perfil de suas riquezas, conforme quadro abaixo.

5 Fortuna entendida no sentido material, a posse de qualquer bem, independente se muito ou pouco. (MATTOSO,

Kátia. Bahia, século XIX: uma Província no Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p.608).

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QUADRO 01 – CLASSIFICAÇÃO DAS FORTUNAS DOS DONOS DE ESCRAVOS DA VILA DE

CASTRO, 1826-1850. (EM CONTOS DE RÉIS)

Faixas de fortunas Valor monte-mor

bruto

Número de

inventariados

%

PEQUENAS ATÉ 3:000$000 39 38,2

MÉDIAS 3:000$001 a

20:000$000

51 50

GRANDES ACIMA DE 20:000$001 12 11,8

TOTAL 102 100

FONTE: FÓRUM DA COMARCA DE CASTRO. Inventário de proprietários de escravos da Vila de Castro.

Caixas: 1826-1850. Castro.

De acordo com a classificação no quadro acima é possível observar que pouco mais de

38% dos inventariados pesquisados possuíam um patrimônio que não ultrapassava três contos

de réis. Metade dos inventariados encontrava-se na faixa média (3:000$001 a 20:000$000) e

somente doze dos inventariados contavam com patrimônio acima de 20 contos de réis.

Neste contexto, observa-se que alguns inventariados da Vila castrense conseguiram

acumular volumosas fortunas, já outros chegaram ao final da vida com poucos bens materiais.

MINIMAMENTE AFORTUNADOS

Ana Gertrudes do Sacramento faleceu em 1831 e deixou uma fortuna avaliada em

113$980 (cento e treze mil e novecentos e oitenta réis). Nomeou três herdeiros: “Antonio

(falecido); Maria Thereza, 50 anos, casada; Josefa de tal, também casada”. Não era

afortunada, apesar de possuir uma escrava. Tinha três vacas, um par de canastra velha, um catre

tecido de couro, uma mesa, um caldeirão de cobre e um tacho pequeno. Não há descrição de

casa ou moradia.

“Mulher pobre”, Ana Gertrudes, (possivelmente já viúva) não possuía propriedade de

terras. O tacho e o caldeirão serviam como ferramentas de trabalho? E as três vacas contribuíam

para o sustento da família? Afinal, onde morava Ana Gertrudes? Na documentação não informa

se seus herdeiros moravam com ela. Se Maria Thereza tinha 50 anos possivelmente Gertrudes

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era idosa e talvez não trabalhasse mais e dependesse da ajuda de sua escrava. As vacas

certamente forneciam leite (queijo) e bezerros. O caldeirão e o tacho fossem para cozinhar doce

(para vender?) provavelmente Rita é quem cozinhava.

Chama atenção nesses documentos a ausência de descrição de moradia de alguns nas

avaliações. E nos levam a alguns questionamentos: onde viviam esses “pobres” donos de

escravos, possuidores de animais e “sem moradia”? Residiam em propriedades de familiares ou

eram agregados?

Estamos diante de uma sociedade campeira, com posse de diversas fazendas, as quais

contavam com mão de obra livre e escrava. Cacilda Machado (2008) em estudo sobre a

população paranaense, do início do século XIX, especificamente São José dos Pinhais,

mencionou a presença de pessoas residindo como agregados em alguns domicílios dessa região,

especialmente nos chefiados por mulheres. Nesse caso, a presença de mais um membro

residindo no domicílio era considerado mais um benefício do que um fardo.

Na realidade, o número de pessoas na vida produtiva das propriedades tornava-se

interessante, principalmente dos mais empobrecidos, que dependiam muito da ajuda de

familiares no uso da terra e de bens em seu próprio proveito.

Em geral, conforme Cacilda Machado, os dados não trazem informações de vínculos

parentais, nem mesmo detalhes sobre as ocupações exercidas por esses agregados. Entretanto,

“possivelmente a maior parte deles trabalhavam na lavoura ou no serviço domestico, como, de

resto, o conjunto da população do lugar” (MACHADO, 2008, p. 117).

Desse modo, é possível que esses “pobres” donos de escravos, “sem moradia” viviam

prestando serviços em fazendas vizinhas, que contavam também com a mão de obra livre para

o auxílio das diversas atividades da fazenda.

Apesar da ausência nas fontes, pode-se inferir que para os sujeitos “pobres” viver como

agregados pode ter sido uma saída para driblar as dificuldades e conseguir sobreviver e, ainda

quem sabe, até a permissão de um lote de terra para nele cria um pequeno rebanho de gado,

como pode ter acontecido, por exemplo, com Ana Gertrudes do Sacramento mencionada acima.

Por outro lado, também não é destacada a possibilidade do inventariado que não possuía

morada de casa, ou propriedade de terra, mas era dono de escravos e animais, ocupar-se da

propriedade de pais ou sogros.

A permissão dos pais ou sogros à moradia e ao trabalho em suas terras era possível

devido ao tamanho das áreas, próprias ou alugadas, que excediam, em muito, as necessidades

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do casal. As referências à moradia ou ocupação de terras, por parte de filhos ou genros, não

eram absolutamente necessárias nos inventários.

Desse modo, o patrimônio material dos minimamente afortunados da Vila de Castro era

constituído principalmente pela posse de escravos, poucos animais, utensílios de trabalho e

alguns poucos móveis. Sendo a posse de escravos responsável pela maior fatia na soma de sua

fortuna.

FORTUNAS MÉDIAS

Os inventariados cujas fortunas classificamos nas faixas: médias (mais de 3:000$000

até 2:000$000), corresponderam a metade dos inventários pesquisados. E desses, mais de 50%

tiveram sua fortuna concentrada na propriedade escrava e de animais; em três inventários não

foram constatado bens de raiz; dois não possuíam animais; e um contava somente com a posse

de escravos e bens de raiz.

Identificamos nesta faixa de fortuna apenas dois proprietários de mão de obra cativa que

tiveram a maior parte de suas fortunas concentradas nos bens de raiz. Entre esses se encontra

Ana Gertrudes Maria do Espírito Santo6, inventariada no ano de 1846. Constaram entre os bens

arrolados a posse de 6 escravos, equivalendo 13,5% de sua fortuna; 14 cabeças de animais

(incluindo vacas, bois, cavalos, éguas, porcos e ovelhas) correspondendo a 6,5% de sua riqueza;

02 casas no espaço urbano da vila de Castro e 10 propriedades no espaço rural (incluindo sítios,

rincão, moinho e terras lavradias) equivalente a 73% de sua fortuna; e ainda, outros bens:

enxadas, arreios, machados, foices, facão, tachos, catres e talheres.

Ana Gertrudes Maria do Espírito Santo e seus escravos possivelmente tenham se

dedicados às atividades agrícolas. Consta em seu inventário a descrição de um plantio de milho

em duas de suas propriedades. Além disso, constatamos entre seus bens a presença de moinho

e tachos. Dessa forma, não é descartada a possibilidade da fabricação de farinha em suas

propriedades.

A partir da faixa média, observamos que os inventariados dispunham de maiores

quantidades de bens, especialmente no se refere aos trastes de uso domésticos, como por

exemplo, louças, porcelanas, entre outros. No entanto, a propriedade de escravos, os bens de

6 FÓRUM DA COMARCA DE CASTRO. Inventário de Ana Gertrudes Maria do Espírito Santo. Caixa: 1846.

Castro, 1846.

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raiz e os animais somam a maior parte de sua fortuna inventariada. O número médio de escravos

por proprietários concentrou em torno de 09 cativos por inventariados.

AFORTUNADOS

Os inventariados cujas fortunas foram classificadas na faixa grande corresponderam a

um total de 12 dos inventários pesquisados. É nesta que se encontram os maiores plantéis de

escravos.

Ao classificarmos o patrimônio desses inventariados observamos de certa forma, uma

distribuição percentual equilibrada entre as propriedades: escravos, raiz, animais e outros bens.

Entre os mais “afortunados”, os bens de raiz, posse escrava e animais continuaram sendo

ativos relevantes, porém os outros bens foram os que concentraram a maior parte de sua riqueza.

Os possuidores das maiores fortunas em Castro, no período estudado, foram também os

detentores dos maiores plantéis escravos. Entretanto, a concentração da riqueza não se

relacionava diretamente ao número de escravos. Encontramos indícios de envolvimento desses

inventariados com os negócios e vendas de animais, especialmente com os negociantes do

sudeste do império.

João Carneiro Lobo7 com uma fortuna avaliada em 156:395$460 (cento e cinqüenta e

seis contos, trezentos e noventa e cinco mil e quatrocentos reis) foi o mais abastado dos

inventariados da nossa pesquisa. Constaram entre os bens arrolados a posse de 53 escravos,

3.713 animais (incluindo vacas, cavalos, éguas e mulas) e mais de 16 propriedades de terras

(incluindo fazendas, invernadas, terras lavradias, senzalas e capões de matos), além de alguns

outros bens (como trastes de uso em animal: arreios e selas; enxadas, machados, roupas, objetos

de uso domésticos, algumas fazendas em tecidos, e entre outros).

João Carneiro Lobo possivelmente exerceu influência na região. A partir de seu

inventário foi possível constatar que manteve negócios também em outras regiões do império

português, principalmente no interior de São Paulo. Encontramos uma declaração feita pela

inventariante, Dona Ana Estevão Carneira, possivelmente sua viúva, que havia uma tropa de

bestas (éguas) que havia sido enviada a Feira de Sorocaba, junto com seu sócio Manoel José da

Trindade, a fim de ser vendida aos negociantes dessa região.

7 FÓRUM DA COMARCA DE CASTRO. Inventário de João Carneiro Lobo. Caixa: 1844. Castro, 1844.

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A posse de escravos, as propriedades de terras, o comércio, inclusive de animais

contribuíram para a consolidação das fortunas da elite escravista que se estabeleceram em

Castro ao longo do século XIX. Os movimentos e as alianças estabelecidas entre a sociedade

campeira castrense com os negociantes das demais áreas do império português promoveu uma

integração maior entre as regiões do império.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em conformidade com estudos recentes sobre o papel da escravidão no mercado interno

e na dinâmica da economia de abastecimento de outras regiões do Brasil, verificou-se que a

Região dos Campos Gerais Paranaense nas primeiras décadas do oitocentos relacionava-se com

as demais localidades e províncias com o mesmo tipo de atividades pecuarista, como Sorocaba,

sul de Minas Gerais e Rio Grande do Sul, não apenas pelos caminhos das tropas.

A média de escravos por proprietário na vila de Castro, no período de 1826 a 1850

ultrapassou 8 cativos por proprietário. Esses dados em comparação a outras regiões paranaense

são bem mais elevados. A mão de obra escrava na vila castrense, na primeira metade do século

XIX, foi, de fato, componente estrutural dessa sociedade, seja em ocupações nas fazendas de

subsistências, criação de gado, no cultivo de lavouras e/ou nas atividades tropeiras.

Os escravos corresponderam os maiores percentuais de bens entre os minimamente

afortunados e entre os menos afortunados. Na faixa alta constatamos certo equilíbrio entre os

ativos de suas fortunas, porém com concentração, especialmente no dinheiro líquido, trastes de

uso campeiro, pratas, ferramentas de trabalhos no campo e entre outros.

Os mais afortunados foram os responsáveis pelas maiores escravarias na Vila de Castro.

Dessa forma, pode-se enfatizar a importância desses três elementos: escravos, terra e animais,

para essa sociedade nesse período.

A soma dos bens dos inventariados revelou que a riqueza na vila de Castro concentrou-

se principalmente nas mãos dos grandes fazendeiros, negociantes de animais, possuidores de

extensas propriedades de terras e conseqüentemente da posse de escravos.

REFERÊNCIAS

BANDEIRA, Julio e LAGO, Pedro Correia do. Debret e o Brasil: Obra completa 1816-1831.

Rio de janeiro: Capivara Editora, 2007.

12

FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e riqueza na praça

mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

FRANCO NETTO, Fernando. População, escravidão e família em Guarapuava no século XIX.

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