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1 TERRA, TRABALHO E PRODUÇÃO: PERSPECTIVAS E DESAFIOS EM UM ASSENTAMENTO DE REFORMA AGRÁRIA Carla Verônica de Lima Duque PUC-SP [email protected] Resumo A pesquisa buscou analisar a realidade de um Assentamento de reforma agrária, denominado Dom Orione, situado na cidade de Betim-MG, tendo por foco a agricultura familiar. A abordagem teórica abrangeu concepções de diversos autores sobre temas específicos: agricultura familiar, família, tendo como quadro geral a exclusão social e a construção da cidadania para os Assentados. A partir deste quadro analítico, foram levantadas questões que nortearam a temática abordada: os fatores de sucesso e insucesso do Assentamento; as possibilidades da agricultura familiar contribuir, de forma efetiva, na renda dos Assentados e a existência, ou não, de políticas sociais. Palavras-chave: Agricultura familiar. Família. Assentamento de reforma agrária, Construção da cidadania. Introdução Desde um passado longínquo, é sabido que a situação fundiária no Brasil é uma questão pendente, na qual sempre foram observados conflitos pela posse de terras e das organizações dos trabalhadores na luta pela própria sobrevivência. Segundo Chiavenato (1996), a distribuição de terras nunca foi eqüitativa, sendo que, com o passar dos anos, esta situação pouco mudou, apesar do aumento de assentamentos agrícolas nas últimas décadas. O fio condutor deste trabalho está relacionado à busca pela sobrevivência de uma parcela da população que se encontra excluída socialmente, os assentados de reforma agrária. Por intermédio dos movimentos sociais, lutam por uma alternativa de integração na sociedade através da prática da agricultura familiar.O assentamento Dom Orione, foi criado em 28 de novembro de 1997, em uma área ao sul do município da cidade de Betim, sendo hoje constituído por 39 (trinta e nove) famílias em uma extensão total de 216,1298 hectares. Na visão de Zhouri, Laschefski, e Pereira (2005), a questão da desigualdade na distribuição de renda e a dificuldade de se resolver os conflitos, são fatores que mostram a diferença de forças dos atores do processo. Esta situação retrata que, mesmo havendo um discurso da participação, as tomadas de decisões quanto ao uso e ocupação do solo ocorrem de cima para baixo, o que vem a propiciar o favorecimento de pequenos

TERRA, TRABALHO E PRODUÇÃO: PERSPECTIVAS E … · desenvolvimento desigual no espaço agrário. ... terra, a família e o trabalho, no qual ele cita que: O importante, contudo,

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TERRA, TRABALHO E PRODUÇÃO: PERSPECTIVAS E DESAFIOS

EM UM ASSENTAMENTO DE REFORMA AGRÁRIA

Carla Verônica de Lima Duque

PUC-SP [email protected]

Resumo A pesquisa buscou analisar a realidade de um Assentamento de reforma agrária, denominado Dom Orione, situado na cidade de Betim-MG, tendo por foco a agricultura familiar. A abordagem teórica abrangeu concepções de diversos autores sobre temas específicos: agricultura familiar, família, tendo como quadro geral a exclusão social e a construção da cidadania para os Assentados. A partir deste quadro analítico, foram levantadas questões que nortearam a temática abordada: os fatores de sucesso e insucesso do Assentamento; as possibilidades da agricultura familiar contribuir, de forma efetiva, na renda dos Assentados e a existência, ou não, de políticas sociais. Palavras-chave: Agricultura familiar. Família. Assentamento de reforma agrária, Construção da cidadania. Introdução

Desde um passado longínquo, é sabido que a situação fundiária no Brasil é uma questão

pendente, na qual sempre foram observados conflitos pela posse de terras e das

organizações dos trabalhadores na luta pela própria sobrevivência. Segundo Chiavenato

(1996), a distribuição de terras nunca foi eqüitativa, sendo que, com o passar dos anos,

esta situação pouco mudou, apesar do aumento de assentamentos agrícolas nas últimas

décadas.

O fio condutor deste trabalho está relacionado à busca pela sobrevivência de uma

parcela da população que se encontra excluída socialmente, os assentados de reforma

agrária. Por intermédio dos movimentos sociais, lutam por uma alternativa de

integração na sociedade através da prática da agricultura familiar.O assentamento Dom

Orione, foi criado em 28 de novembro de 1997, em uma área ao sul do município da

cidade de Betim, sendo hoje constituído por 39 (trinta e nove) famílias em uma extensão

total de 216,1298 hectares.

Na visão de Zhouri, Laschefski, e Pereira (2005), a questão da desigualdade na

distribuição de renda e a dificuldade de se resolver os conflitos, são fatores que mostram

a diferença de forças dos atores do processo. Esta situação retrata que, mesmo havendo

um discurso da participação, as tomadas de decisões quanto ao uso e ocupação do solo

ocorrem de cima para baixo, o que vem a propiciar o favorecimento de pequenos

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segmentos da sociedade, em função do controle econômico e político que estes

desempenham (ZHOURI et al., 2005).

Nesta perspectiva, cabe refletir sobre as questões que envolvem o meio rural. Há uma

série de fatores envolvidos no processo que impedem a concretização de projetos de

reforma agrária. Passando por matrizes políticas e econômicas, tais fatores recaem sobre

a esfera social, dificultando e atrasando a efetivação de projetos que visam dar

condições dignas de vida para a maioria da população carente e que depende da terra

para sobreviver.

Diante deste quadro, a prática da agricultura familiar nos assentamentos de reforma

agrária têm sido vista como fator de suma importância tanto para a integração social,

possibilitando emprego e renda, como via de sustento para essas famílias, abrindo

caminho para possíveis saídas. Ainda assim, favorece a sociedade com a geração de

alimentos, aumentando o sentimento de cidadania de um grupo até então excluído.

Percebe-se a agricultura familiar – como categoria social do campo brasileiro e ao longo

de sua trajetória histórica – tem conseguido manter-se, transformar-se, quando

necessário, e reproduzir-se socialmente, suportando as fortes pressões externas do

mundo capitalista moderno, buscando uma possível proposta favorável de vida.

Os fundamentos teóricos a agricultura familiar como porta para inclusão social

Para buscarmos respostas acerca das novas perspectivas nos assentamentos agrários,

teremos que analisar algumas considerações sobre agricultura familiar. Encontrar um

conceito exato é uma tarefa difícil diante deste enfoque. O conceito de agricultura

familiar, por exemplo, sofreu e vem sofrendo várias evoluções, transformando e

tomando novos sentidos para se adaptar ao novo modelo agrário vigente. Citaremos

diferentes definições, abordagens e interpretações referentes ao papel econômico e

social do trabalho familiar, procurando entender sua trajetória histórica.

Segundo Baudel Wanderley (2000) “[...] pela primeira vez na história, a agricultura

familiar foi oficialmente reconhecida como um ator social”. A autora destaca a

importância da agricultura familiar, dentro de um contexto social, como uma categoria

significativa nas atividades do campo.

No cenário brasileiro, durante muitos séculos, as grandes propriedades de terra se

estabeleceram em torno da representação da agricultura camponesa, calcada na

exploração e na dominação da propriedade com mão-de-obra escrava. Este processo

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histórico referente ao modelo original do campesinato é traduzido por Baudel

Wanderley como: [...] as particularidades dos processos sociais mais gerais, da própria história da agricultura brasileira, especialmente: o seu quadro colonial, que se perpetuou, como uma herança, após a independência nacional; à dominação econômica, social e política da grande propriedade; marca da escravidão e a existência de uma enorme fronteira de terras livres [...]. (BAUDEL WANDERLEY, 1997, p. 22)

Estes fatores mencionados retratam pressões, constituídas no seio das relações sociais

de trabalho e da produção brasileira, que firmaram as grandes barreiras para um

desenvolvimento desigual no espaço agrário. Para Baudel Wanderley (1999), ao se

considerar o campesinato, é necessário entendermos que este é apenas uma

particularidade da agricultura familiar, pois esta aborda uma gama variada de situações

específicas.

Em sua visão, o termo campesinato retrata uma das etapas da agricultura familiar. Ela

ressalta que o agricultor familiar moderno “[...] guarda ainda muitos de seus traços

camponeses, tanto porque ainda tem que enfrentar os velhos problemas, nunca

resolvidos, como porque, fragilizado, nas condições da modernização brasileira,

continua a contar, na maioria dos casos, com suas próprias forças”. (BAUDEL

WANDERLEY, 1999, p. 52)

Percebe-se que a autora faz um paralelo e uma crítica evolutiva e histórica entre o

agricultor familiar moderno e o camponês, ou seja, aponta o primeiro sem as condições

de acesso à modernização, retrocedendo à posição do segundo. Na visão de Baudel

Wanderley (1999), o agricultor familiar moderno não se descaracteriza dos traços do

camponês, mas conserva a tradição camponesa para se adequar às novas realidades da

sociedade. A autora sugere um conceito de agricultura familiar fundamentada na

propriedade, trabalho e família, diante das abordagens nos aspectos sociais pela qual:

[...] a família ao mesmo tempo em que é proprietária dos meios de produção, assume a força de trabalho no estabelecimento produtivo. O caráter familiar não é mero detalhe, pois o fato de uma estrutura produtiva associar família, trabalho e produção tem conseqüências fundamentais para a forma como ela se organiza econômica, social, cultural e subjetivamente. (BAUDEL WANDERLEY, 1999, p. 23)

Moreira (1999) faz uma distinção entre agricultura familiar, ocorrida com pequenos

agricultores que já possuem a terra como espaço de produção, e a prática da agricultura

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familiar nos assentamentos agrários no contexto dos procedimentos sociais. Para o

autor,

[...] enquanto a primeira noção refere-se a formas sociais já constituídas, portanto integradas e sujeitas à lógica competitiva desta integração; a outra noção mostra que nos assentamentos rurais está associada ao processo social e político de acesso à terra e de constituição de novas formas sociais de organização produtiva e de integração social. (MOREIRA,1999, p. 157)

Na perspectiva econômica, cultural e política, o que Moreira (1999) pontua é que a

agricultura familiar abre várias possibilidades, não só para o pequeno produtor, mas

também, para um segmento social que se encontra em um processo diferenciado, que

são os assentados rurais. O autor ressalta ainda que “assentamentos rurais abrem novos

espaços para uma possível integração mercantil para desempregados e assalariados e

filhos agricultores”. (MOREIRA,1999, p.176)

Na visão de Moreira, nos assentamentos rurais existem caminhos e formas sociais de

produção que viabilizam o enfrentamento de crises diante de problemas conjunturais.

Em suas palavras, nestes espaços, “[...] formas cooperadas, associadas ou coletivas

podem apontar alguns caminhos que garantam maior estabilidade e resistência”

(MOREIRA, 1999, p. 176). Para o autor, os assentados têm caminhos abertos, como

seres sociais, que seriam o trabalho para a família e as perspectivas de melhoria de vida,

mas que, entretanto, não estariam isentos de riscos.

Ao analisar a agricultura familiar e suas formas e espaço, Moreira conclui que esta

apresenta “um espaço difuso e mutante” e explica:

[...] este espaço se caracteriza pela vivência de uma autonomia relativa, com diferenciações regionais e internas, e pela vivência de diferentes formas de integração social mais direta, da vivência cotidiana, da busca de identidade e do exercício da intersubjetividade. (MOREIRA, 1999, p. 179)

O que se percebe, diante da teoria do autor, é que a agricultura familiar abre espaços de

possibilidades no tocante à geração de renda, emprego e condições sociais satisfatórias,

mas, também fica claro que há muitos enfrentamentos e desafios para trilhar, até se

alcançar estes caminhos, que são de muitas incertezas.

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Família como elemento essencial para se pensar a terra

Diante deste contexto, alguns autores assinalam determinadas linhas de pensamento

referentes ao conceito de família. Wanderley (2010), em sua obra Educação popular:

metamorfoses e veredas aponta a família como “um espaço de profundas

transformações”. Em suas análises, ele faz referência à família, levando em

consideração as mudanças estruturais e históricas ocorridas diante das vivências do

grupo familiar. Para o autor esta também é vista como a “[...] base da natureza humana

[...]”, onde os membros se deparam com a “[...] descoberta de si mesmo e do outro [...]”,

sem perder as particularidades de cada cultura. (WANDERLEY, 2010, p.89)

É salientado pelo autor o termo “comunidades”, dando prosseguimento no marco

família, sendo apontado por ele como um significado dotado de “inúmeros sentidos”.

Assim, o autor cita a “comunidade familiar (pais, filhos, parentes), comunidade de

vizinhança, comunidade internacional, comunidade afetiva etc”. Partindo-se da

sociologia, as comunidades na esfera rural foram as mais pesquisadas, perante uma

evolução histórica, pois estas assinalavam, “[...] o viver junto, confiança, amizade,

trabalho conjunto”. (WANDERLEY, 2010, p. 92)

Nos estudos sobre a família rural, Klass Woortmann analisa três matrizes que se

estabelecem nas populações camponesas, dentro de uma divisão de hierarquia que são: a

terra, a família e o trabalho, no qual ele cita que:

O importante, contudo, não é que sejam comuns – pois elas estão presentes, também, em culturas urbanas – mas que sejam nucleantes e, sobretudo, relacionadas, isto é, uma não existe sem a outra. Nas culturas camponesas, não se pensa a terra sem pensar em família e o trabalho, assim como não se pensa o trabalho sem pensar a terra e a família. Por outro lado, essas categorias se vinculam estreitamente a valores e princípios organizatórios centrais, como a honra e a hierarquia (WOORTMANN, 1990, p. 23)

Em suas colocações, Woortmann (1990) mostra a dimensão dos três elementos

principais – terra, família e trabalho – tomando como base a organização e os valores do

grupo, levando em conta as relações sociais, partindo da premissa que um elemento está

conectado ao outro diante uma ordem moral como “honra e hierarquia”.

Almeida (1986) faz uma análise fundamentada na família, com o título: Redescobrindo

a família rural. Em uma primeira apreciação, o autor menciona o sentido de família

como sendo “[...] as pessoas que pertencem a uma unidade doméstica. São os que

compartilham uma casa e uma cozinha; e que (como ocorre em áreas rurais) trabalham

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conjuntamente (grupo doméstico)”. Ainda reduzindo a escala de pensamento e dando

seqüência, o autor pondera que “[...] o grupo doméstico para ser família, constitua-se de

parentes”. Ele faz uma alusão ao significado de parentes, incidindo assim em que as

“[...] pessoas ligadas, por uma linguagem de filiação e casamento”. (ALMEIDA, 1986)

Diante das colocações dos autores percebe-se que os conceitos de família tomam

significados complementares, de acordo com determinados grupos, e se adaptam as

lógicas familiares como entendimento da reprodução e organização social, a partir das

relações e laços familiares.

Cidadania um desafio a ser alcançado

No contexto destas comunidades rurais, com objetivos comuns ali instalados pelo

grupo, não podemos deixar de mencionar a busca da cidadania destes indivíduos –

calcada na luta pela terra para sobreviver. Essa é uma luta pela garantia do acesso aos

bens sociais, pela liberdade de ir e vir, pelo direito de expressão, pela liberdade de

consciência, enfim, por uma incessante busca pela melhoria da qualidade de vida.

Demo (1995) e Acselrad (2001) definem a cidadania como um elemento essencial do

desenvolvimento. O primeiro aponta também para o fato de que a cidadania pode ser

conceituada como “[...] competência humana de fazer-se sujeito, para fazer história

própria e coletivamente organizada”. (DEMO, 1995, p.1)

Para Marshall (1967), a definição clássica de cidadania perpassa por três princípios de

direitos: civis, políticos e sociais. Para o autor, o cidadão pleno seria aquele que pudesse

gozar dos três princípios. Os direitos civis são os que asseguram a liberdade de ir e vir,

direito à propriedade, liberdade de pensamento, igualdade, direitos fundamentais à vida,

ou seja, a garantia da liberdade individual. Os direitos políticos traduzem-se na garantia

da participação direta ou representativa no governo, ou seja, a garantia do direito de

voto. Vale complementar que os direitos políticos dependem dos direitos civis, no

tocante à liberdade de opinião. Já os direitos sociais, que asseguram a vida em

sociedade, são os que garantem a participação cidadã na vida coletiva: direito à

educação e à saúde, acesso ao trabalho, ao salário justo, à aposentadoria e a outros

serviços sociais, ou seja, sua essência está baseada na justiça social.

Para reforçar as idéias de acesso a direitos, Wanderley (2004) aponta:

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Classicamente, uma análise muito difundida foi a exposta por Marshall (1967), que mostra qual foi o processo de sua conquista nos últimos três séculos. Ele utilizou, como fio condutor desse movimento, a luta incessante entre a concepção de igualdade – vista como algo universal e constitutiva da noção de cidadania– e as desigualdades inerentes à implantação, à constituição e ao funcionamento do capitalismo. São os conflitos gerados entre a igualdade pretendida e as desigualdades trazidas pelo modo de produção capitalista que distinguem o surgimento dos diferentes direitos em cada século. Vale lembrar que muitos direitos e liberdades foram conquistados pelos trabalhadores e setores sociais oprimidos, com enorme resistência das classes e grupos dominantes. (WANDERLEY, 2004, p. 128)

Seguindo os pressupostos de cidadania e, diante das propostas de superação da exclusão

social, no Brasil, como em qualquer sociedade capitalista, infelizmente os direitos de

cidadania estão centrados no predomínio do direito privado sobre o direito público, ou

seja, nos direitos essenciais à acumulação de capital. Mesmo considerando as conquistas

sociais, muitas vezes, elas são ameaçadas pelos interesses das classes dominantes, como

se estas classes fossem únicas e exclusivas.

Em outra vertente relacionada à cidadania, Dagnino (1994) aponta para “uma nova

noção de cidadania”. Segundo a autora é preciso salientar alguns pontos: o primeiro

seria a cidadania e seu elo com os diversos movimentos sociais urbanos, entre outros, e

no tocante à conquista por direitos, “[...] tanto direito à igualdade como o direito à

diferença” (DAGNINO, 1994, p. 104); em um segundo ponto é ressaltada a emergência

de uma construção de democracia mais ampla e aprofundada. Estes dois pontos

culminam em um terceiro item considerado pela autora como fundamental, dentro da

visão de cidadania: “[...] o fato de que ela organiza uma estratégia de construção

democrática, de transformação social, que afirma um nexo constitutivo entre as

dimensões da cultura e da política”, ou seja, “a construção e difusão de uma cultura

democrática”. (DAGNINO, 1994, p. 104)

Nos pressupostos de Dagnino (1994), a cultura democrática no Brasil possui grande

relevância, pois é pautada nos pilares das desigualdades econômicas que recaem sobre

um ordenamento social, tais como fome e a miséria. Para a autora, há também uma

estrutura social desigual, concebida no que ela denomina de “autoritarismo social”

apoiado na cultura do país, seguindo os parâmetros de classe, raça, gênero, que

reforçam diferentes categorias de indivíduos distribuídas em seus referentes lugares

sociais.

Segundo Dagnino o autoritarismo social produz “[...] formas de sociabilidade e uma

cultura autoritária de exclusão que subjaz ao conjunto das práticas sociais e reproduz a

desigualdade nas relações sociais em todos os seus níveis” (DAGNINO, 1994, p. 105).

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Ainda para a autora, a eliminação do autoritarismo social seria o caminho essencial para

a concretização da democratização da sociedade.

Dagnino (1994) faz alusão à cidadania como estratégia política, levando em

consideração o seu processo histórico, pois, para ela, não existe um conceito único de

cidadania, mais sim, uma realidade e evolução de conflitos reais vivenciados pela

sociedade, em um período histórico, traduzidos e determinados pela ação política. A

autora chega à definição de uma nova cidadania, a partir do “direito a ter direito”,

ressaltando uma lógica política e econômica contrária aos pressupostos liberais.

A nova cidadania requer (e até é pensada como sendo esse processo) a constituição de sujeitos sociais ativos, definindo o que eles consideram ser os seus direitos e lutando pelo seu reconhecimento. Nesse sentido, ela é uma estratégia dos não cidadãos, dos excluídos, uma cidadania “de baixo para cima”. (DAGNINO,1994, p. 108)

Em nossa sociedade existem ainda múltiplos espaços sociais nos quais exercer direito é

um privilégio ainda de poucos, perante uma sociedade capitalista e conservadora, em

que o capital é ainda um dos principais meios de exclusão da sociedade contemporânea.

A cidadania, envolvendo direitos humanos, tais como liberdade de se organizar e de se

expressar, segurança, dignidade, continuará a ser um privilégio de poucos, reproduzindo

a tradição do país de privilegiar poucos em detrimento de muitos, ou será capaz de

emancipar os sujeitos sociais como um todo?

Percebemos, então, diante dos conceitos de cidadania, que os segmentos sociais em

questão, os pequenos camponeses, que lutam por um pedaço de terra para

sobrevivência, não se incluem no conceito amplo de cidadania, no qual, o cidadão

completo seria aquele dotado dos direitos civis, políticos e sociais.

Metodologia

Para cumprir os objetivos iniciais de salientar o exercício da cidadania a partir da prática

de agricultura familiar foi adotada a pesquisa qualitativa. Levantamento bibliográfico

também abarcou assuntos relacionados ao tema, tais como: reforma agrária, cidadania,

inclusão social, agricultura familiar, assentamentos, participações sociais, entre outros.

Foi realizada coleta de levantamento de dados secundários através de visitas a órgãos

ligados ao Assentamento Dom Orione com o objetivo de buscar informações, pesquisas

e documentos já existentes. Estes dados coletados foram organizados e analisados,

servindo de base teórica para a pesquisa.

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Para obtenção de dados primários, houve uma pesquisa exploratória (observação de

campo) a partir do levantamento de dados e informações a respeito do Assentamento em

questão.

Foi aplicado de forma aleatória um formulário fechado em uma amostra de 26 (vinte e

seis) famílias, numa população de 39 (trinta e nove) existentes, com o objetivo de

compreender a dinâmica espacial dos assentados como um todo. Os dados obtidos no

formulário foram tabulados, analisados e interpretados, juntamente com as outras

informações levantadas, sendo feita uma correlação das informações.

Também foram realizadas entrevistas qualitativas semi-estruturadas, com perguntas

abertas aos dois líderes comunitários da Associação do Assentamento. Estas entrevistas

serviram para verificar o ponto de vista destes líderes.Complementam a estratégia

metodológica visitas às áreas e observações de campo, para melhor inteirar-se da

realidade local e estabelecer contato com conversas mais informais com as lideranças

políticas e sociais comunitárias, através de observação direta, documentada

fotograficamente.

Análise dos dados a busca pela inclusão e os desafios e perspectivas

Para uma maior abrangência dos pontos ressaltados na pesquisa e dando continuidade

aos dados da caracterização da amostragem, conforme metodologia da pesquisa

partimos de alguns eixos de análises, tomando como ponto de partida as falas dos

entrevistados. Dentre eles se destacam: A prática da agricultura familiar e sua inclusão

social; O trabalho familiar e a interação entre os membros; As políticas públicas e

sociais.

Em relação à agricultura familiar, esta hoje se mostra em um patamar de muita

importância de oportunidades e possibilidades como é confirmada neste depoimento do

entrevistado “A”, no qual é exposto o seguinte:

A agricultura familiar, ela é importante [...] Ela tá sendo hoje protagonista. No seu contexto ela vem se firmando, ela é transformadora, ela consegue buscar essa transformação, dar visibilidade [...] é se não fosse hoje os dados que agente tem do IBGE que saiu, hoje agricultura familiar na geração de alimentos,como emprego e renda né e produção de alimento para cesta básica do nosso povo brasileiro.Então eu vejo a agricultura familiar tanto do agricultor familiar tradicional, como aquele que não tinha terra, que através desse assentado, também passou a ser um agricultor familiar porém no caráter de assentado de reforma agrária,ele também ajuda a produzir,ajuda a contribuir prá te buscar a tirar as diferenças, as desigualdades que nós temos

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no país. Porque o grande empreendedor, eles produzem em escala e muitas das vezes a questão da monocultura, né[...] Enquanto que nós agricultores familiares produzimos de um a tudo. (Entrevistado A)

Esta fala vem ao encontro da colocação de Moreira (1999), onde este mostra que a

agricultura familiar abre oportunidades para o pequeno produtor e, principalmente, para

os assentados, propiciando novas formas de inserção para a geração de renda, para o

trabalho, para a família e esperança de melhores condições sociais de vida.

Para as famílias, de um modo geral, a prática da agricultura familiar no Assentamento é

sentida como um alicerce de sustentação, como uma grande conquista, segurança,

possibilidades. Complementando o pensamento, o entrevistado “A”, ainda reforça que a

agricultura familiar,

[...] cria espaço e possibilidades e condições de renda? Sem sombra de dúvida[...]não sou eu quem falo isso é o governo que fala, que 70% dos produtos e da geração de mão-de-obra no campo é da agricultura familiar[...].Para a segurança alimentar a agricultura familiar é importante não só para produzir alimentos para subsistência, como para geração de emprego e renda. Levantamento de algum assentamento ontem e hoje, tem qualidade de vida. É vida digna, luz elétrica, casa, eles tem outra perspectiva de vida. (Entrevistado A).

Baudel Wanderley (2000) enfatiza a agricultura familiar e sua importância em um

contexto social. Ao aproximarmos do cenário do Dom Orione, é possível percebermos

que, hoje, as famílias, estão construindo e trilhando suas conquistas passo a passo no

âmbito social.

No que se refere à organização do Assentamento Dom Orione, mesmo havendo

especificidade do grupo familiar, estas lutam por um ideal. Almejam a construção da

cidadania, por meio de uma resignificação e reconstrução do espaço de vivência e

sobrevivência ali instalado, e, principalmente, uma recolocação na sociedade com o

direito a um pedaço de terra para se plantar, morar e acima de tudo viver com dignidade.

Esse quadro é retratado pelo entrevistado “A”,

Se você pegar o Dom Orione, que tem 39 ( trinta e nove) famílias, mais se você multiplicar [...] direto e indireto vão dar mais de 100 (cem) pessoas, são 100(cem) pessoas que não estão aí mais na rua pedindo serviço,emprego, né[...]. Se você dá um pedaço de terra e você trabalha com essas pessoas, ela já vai começar a criar, construir dentro daquele conjunto familiar a sua dignidade. Pêra aí! Hoje eu não sou mais um trabalhador sem terra, um desvalido, hoje eu posso produzir [...]. Então é a partir desse começo é que ele vai crescer- tudo é pequeno. Então nós queremos começar é assim também [...] devagar, é com os pés no chão. Nosso crescimento tem que ser com uma sustentabilidade. (Entrevistado A)

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Tomando como base a teoria de princípios de direitos de Marshall (1997), civis,

políticos e sociais, os quais perfazem o cidadão pleno, percebemos que no depoimento

do entrevistado “A”, ao apontar a qualidade de vida digna do assentado inserido na

agricultura familiar, aponta também para a conquista de alguns direitos, mesmo que não

seja uma cidadania integral, mas ainda sim lutando para tal.

Sendo assim, a comunidade Dom Orione já está alcançando determinados direitos que

seriam: a vida digna, direito à educação, moradia, luz elétrica, trabalho, renda, sustento

de sua família, como é colocado por Marshall (1967).

A luta por um ideal e a construção da cidadania

Em relação ao processo de cidadania, segundo o relato do líder “A”, o Assentamento

Dom Orione foi escolhido “[...] pra fazer lançamento da Caravana da Cidadania”. Isto

mostra que este modelo vem se aproximando da construção da cidadania e também

como um espaço de sucesso, tomando como base a agricultura familiar.

Na visão do líder “B”, é enfatizado que mesmo com muita luta, a comunidade está

saindo na frente, com base na agricultura familiar, além de ressaltar que esta agricultura

é boa não só para os assentados da reforma agrária e pequenos agricultores, mas

também para o país como um todo. Em seu depoimento ele ressalta:

Oh! A gente sente aqui que tá no céu, porque é um lugar que é nosso [...] tenho minha casinha aqui [...] isso é tudo prá nós, mais se você for pensar [...] que teve muita luta por trás também disso [...]. No início do Assentamento teve ajuda, teve muita luta, a gente pôde pegar os empréstimos, [...] a associação pegou empréstimos do PRONAF [...] isso ajudou muito prá gente começar arrancar. (Entrevistado B)

Este ainda menciona que a realidade de se viver em assentamento não é fácil, mas há

uma construção do dia-a-dia para a vida ficar melhor. Ele pondera que, mesmo sendo

um assentamento de reforma agrária, as famílias se respeitam, não havendo conflitos

sérios como em outros assentamentos. Mas, como líder, ele se sente na obrigação de

correr atrás de apoios políticos, parcerias com entidades, buscando conquistas e

procurando soluções para os problemas da comunidade Dom Orione. O entrevistado

“B” ressalta que:

[...] a realidade aqui é dura, a gente trabalha na terra aí, trabalhando o tempo todo, mexendo de sol a sol [...] a realidade do Assentamento é a realidade do

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trabalhador mesmo! Cada um sabe fazer né... e tenta fazer o que sabe, o povo tá rompendo! (Entrevistado B)

O posicionamento do entrevistado “B” vem ao encontro da teoria de Demo (2008), na

qual é dito que o sujeito pode exercer a “construção do destino”, alcançando uma

“autonomia coerente”. Em sua fala, o entrevistado “B” se enquadra nestes preceitos, a

partir do momento que lidera a comunidade em busca de um arranjo e um ordenamento

social. O relato abaixo, do entrevistado “B”, reforça a teoria de que essa comunidade

esteja galgando uma autonomia coerente:

A gente se sente cada vez melhor [...] cada vez a gente dá mais estrutura pros nossos filhos [...] cada vez as coisas anda melhor [...] então assim a gente sente cada vez mais na cidadania [...] isso é muito bom prá nós [...] a gente não tem do que reclamar, não é? [...] nós tá agarrado na terra, isso é bom prá todos nós, então os filhos da gente gosta daqui, gosta do lugar que o pai gosta [...] gosta do lugar que é nosso! (Entrevistado B)

Em relação à cidadania, Dagnino (1994) refere-se a uma nova cidadania – “direito a ter

direito” – e à conquista do cidadão ocorrida “de baixo para cima”. Esta situação pode

ser percebida na fala do informante “A”:

[...] é por isso que nós existimos, é por isso que nós somos uma entidade de classe organizada que nós estamos aí par e passo para defender essa nossa categoria. [...] todo ano, nós temos um evento de massa em Brasília, chamado o grito da terra [...] nada mais é que clausulas e reivindicações que a gente apresenta pro governo, esse ano nós tivemos 223 itens e se hoje muita gente [...] recebe recursos do PRONAF partiu de lutas nossas. (Entrevistado A)

Compreende-se neste trecho que as conquistas, hoje, perpassam pelas pressões e

reivindicações exercidas pelos próprios trabalhadores e entidades afins, ou seja, de

baixo para cima, que lutam por direitos, conquistas e dignidade do pequeno agricultor

familiar, seja ele, o assentado ou o tradicional.

Nós não queremos tomar o lugar de ninguém, por isso nós defendemos a reforma agrária [...] é um elemento transformador porque, mesmo que você não consiga gerar dinheiro, mais pelo menos alimento você combate a miséria tá! É muito mais sério, gritante [...], você vê uma família numa periferia que não tem emprego, que não tem escola, que não tem saúde, que não tem nada, que às vezes entra no mundo de droga e outras coisas né! (Entrevistado A)

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Dando prosseguimento, o depoimento acima evidencia uma busca destes sujeitos em se

transformarem em sujeitos sociais. Na visão de Wanderley (1992), este menciona o

sujeito livre, construtor do seu espaço e que almeja os seus direitos.

A terra é vista pelas famílias como aquisição de rendimentos para sobrevivência dos

membros pelo trabalho familiar. Acredita-se também que a terra é um local de habitação

e trabalho por meio da agricultura familiar. Apreendem a terra, como uma forma de

aumentar a renda familiar, principalmente aqueles que hoje são aposentados, e como um

retorno às origens rurais. A terra para estas famílias tem múltiplos significados que

levam estas a estarem recolocadas na sociedade. O relato do entrevistado “A”, abaixo,

explicita esta situação,

[...] pergunta aquelas famílias que estão ali assentadas [...] quase dentro de uma periferia de uma cidade grande, se elas querem largar aquilo e trabalhar na Fiat Automóveis? Elas não querem! [...], a perspectiva de futuro delas é muito mais do que vender a sua força de trabalho [...], quem produz alimento, gera emprego e renda, elas tem uma perspectiva, [...] um leque muito maior. (Entrevistado A)

Interações importantes entre a terra, família e trabalho

A família também se torna um elemento importante para se entender as relações

internas do trabalho no Dom Orione. Ao perguntarmos ao entrevistado “C” qual era o

significado de família para ele, este respondeu que: “Éh! A família aqui prá nós é tudo!

Porque é juntando o esforço, que a gente chega lá na frente. [...] nossa base é a família,

não tem outro jeito não!”

Observa-se na fala do entrevistado “C”, que o conceito de família tem um significado

profundo de valor, sustentação, união, organização, participação e sucesso do trabalho.

A Associação da Rapadura no Dom Orione retrata bem como funciona o trabalho em

família, pois tanto os pais como os filhos trabalham dentro de uma organização familiar,

onde as tarefas são divididas.

Assim, dando continuidade aos estudos e considerando a família rural, Klass

Woortmann (1990) pondera as três matrizes: terra, família e trabalho que também vem

ao encontro do elo familiar. O Entrevistado “C” completa sua fala:

A Associação tem base na família. [...] para trabalhar com a família a gente tem que estar junto e forte, se não for assim não tem jeito de sair lá na frente não [...]. Você tá vendo aí a rapadurinha é trabalho coletivo, é assim que a gente consegue. [...] os filhos estão ajudando e a família tá junto, não tem outra forma que não seja a família ajudar nesse lado. (Entrevistado C)

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No Assentamento Dom Orione, a família vem dotada de inúmeros sentidos. De acordo

com a teoria de Wanderley (2010), nas falas dos entrevistados, percebemos que estes

sentem a família como um somatório de forças, dentro da Associação da Rapadura.

Estes sentimentos evidenciam esperança de sucesso e bons negócios, com uma

perspectiva de um maior número de famílias se associando e o fortalecimento dos

próprios laços de amizade entre elas. O entrevistado “C” diz:

Oh! Associação nossa, a base tem que ser com a família. [...] é com trabalho em família que a gente consegue. [...] Então nós trabalha igual, eu te falei, a família ajuda, meus meninos ajudam demais. Cada família tem sua organização, então fica fácil de trabalhar. (Entrevistado C)

No Dom Orione terra, família e trabalho, são três elementos de ordem do dia, pois é por

meio destes que as famílias assentadas se estruturam socialmente. O entrevistado “B”

diz: “É a família... o que a gente tem. A gente é da terra. [...] o que eu acho que foi mais

interessante aqui é que povo nosso é muito humilde, gosta muito de trabalhar, né! É um

povo que gosta da terra mesmo”.

Diante das colocações de Almeida (1986) e ao apropriar-se dos conceitos sobre família

no Dom Orione, compreende-se que há aproximações entre as lógicas de organização

familiar, ou seja, os filhos, os pais – família nuclear –, e às vezes, alguns parentes

trabalhando em conjunto dentro de uma unidade de produção. A fala do entrevistado

“C” demonstra o trabalho executado em família:

Então a Associação [da rapadura] que é aqui do Assentamento, mais a terra que tá resolvendo a nossa vida. Olha! Eu vou falar uma coisa prá senhora, meus três meninos, todos acabou o 2º grau e foi à terra que deu condições aqui prá gente hoje. Nós somos trabalhador, se você passa 4:30 da manhã, 5:00 horas da manhã, a gente já tá trabalhando aqui [no galpão onde se fabrica a rapadura] [...] ta vendo minha menina aí? É família. (Entrevistado C)

São famílias envolvidas desde o plantio da cana-de-açúcar, corte, transporte até o

galpão, a retirada do caldo da cana, ou seja, a garapa, o aquecimento da mesma no fogo,

o colocar em formas e, posteriormente, a retirada das formas e depois de pronta a

rapadura, a parte da embalagem. Todas estas tarefas são feitas e divididas pelas famílias

envolvidas na Associação, sendo que em todos estes procedimentos, percebe-se um

envolvimento familiar na divisão do trabalho.

Levando em consideração o uso da terra, as relações de trabalho familiar e a interação

entre os membros dentro do Assentamento Dom Orione, o líder do Assentamento

15

mencionou que ainda há muitas coisas para se melhorar dentro da comunidade, tais

como: recursos de um modo geral, uma maior cooperação envolvendo mais famílias,

apesar de já haver um canal seguro de comercialização dos produtos cultivados, que

hoje, graças às políticas públicas do governo, está sendo disponibilizado por meio da

Compra Direta da Agricultura Familiar – CDAF do Programa de Aquisição de

Alimentos - PAA.

Hoje o Assentamento se estrutura em torno das 39 (trinta e nove) famílias, entre as

quais estão as que plantam hortaliças e outras que plantam cereais. Também há duas

Associações: uma Associação Geral, de que todas as 39 (trinta e nove) famílias fazem

parte, na qual são discutidas as necessidades e, posteriormente, tomadas as decisões por

meio de reuniões periódicas; e uma segunda Associação que conta com um grupo

composto por 6 (seis) famílias que trabalham coletivamente no plantio da cana-de-

açúcar e na produção de rapadura.

Ao mencionar a compra direta via Prefeitura de Betim, o entrevistado “B” comenta que

antes era muito difícil a venda dos produtos e que isto está sendo amenizado atualmente.

Em seu depoimento ele aponta alguns aspectos que implicam dificuldades da venda dos

produtos:

Oh! Esse eu te falo, olha! Ficar na mão do atravessador é muito complicado, vende barato e não tem a garantia que vai receber [...]. O que está ajudando nós aí [...] é esse programa [...] essa lei nova da venda direta [...] se a Prefeitura tem que comprar, ela tem que dá preferência pra nós [...] tá na Lei, tá escrito [...] por isso que nós montou essa Associação nova, pra gente conseguir é organizar [...] a venda direta. ( Entrevistado B)

Este interpreta que no passado muitas famílias tiveram prejuízos, inclusive ele mesmo,

com a venda de produtos, pois vendia a mercadoria e não recebia. Ressalta que aquelas

famílias que, às vezes, conseguem uma parceria padronizada com um grande

atravessador, ainda têm certo lucro, como ocorre com algumas famílias que produzem

hortaliças.

Pode-se observar que em relação à organização social, o grupo que cultiva hortaliças

tem um diferencial de produção, pois, produz em grande quantidade e é mais bem

estruturado, no tocante a maquinários. Inclusive, algumas famílias deste grupo já

possuem trator, caminhão, apresentando uma infra-estrutura da propriedade mais

solidificada, o que acaba propiciando uma maior geração de renda.

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Conforme conversas durante a pesquisa de campo, as famílias que plantam hortaliças já

cultivavam nas terras do Assentamento Dom Orione, antes mesmo delas se

transformarem em um assentamento de reforma agrária, o que pode caracterizar um

fator de sucesso para as famílias.

Ainda no tocante às diferenciações da produção e comercialização, perguntamos ao

grupo das famílias que cultivam cereais, como eram as vendas, ou seja, o escoamento

do produto. Um dos informantes respondeu que: “[escoamento da mercadoria] Ter [até

que] tem, é muito fraco... tem época que dá prá gente vender, já tem época que não. Eu

já perdi aproximadamente quase 4 ou 5 caminhões de mandioca. [Os atravessadores]

eles pagam barato demais”.

Retomando a fala dos entrevistados, quando indagamos ao entrevistado “B”, sobre a

prática do trabalho coletivo e a formação das associações, este respondeu que uma

associação se faz necessária para organização das pessoas. O entrevistado “B” comenta

que a Associação da Produção da Rapadura está tomando um novo rumo, pois, depois

da repercussão do projeto da compra direta via merenda escolar, creches e outras

entidades afins, houve novas perspectivas de aumentar a produção e, principalmente, a

participação de outras famílias na Associação.

Dentro desta realidade, a Associação da Produção da Rapadura passou a ser

denominada de Associação da Rapadura e Derivados, em que famílias que cultivam

outros produtos, extraídos da terra como a própria hortaliça, a mandioca, etc., poderão

se associar, o que aumentará a produção, a diversificação dos produtos e ao mesmo

tempo, a cooperação entre as famílias. O informante “C” comenta que:

[...] tudo que é derivado da terra nos vamos poder vender.[...] é isso aí, sabe aqueles meninos da verdura? Até eles já procurou nós aqui, eles vão juntar na Associação nova. [...] E a Associação tá crescendo, tá com força e o povo tá procurando nós... tá vendo que esta[associação] é uma boa solução”. (Entrevistado C)

Este quadro de mudança na Associação da Rapadura está em processo de efetivação,

ponto este observado durante as pesquisas de campo. Esta mudança se fez necessária,

devido a uma exigência da Prefeitura que determina que, para vender os produtos via

compra direta, o pequeno produtor precisa fazer parte de alguma associação e que este

produto que será vendido deverá sair da terra. Este relata que:

Pelo movimento que a gente vê [...], quem tá agrupado tá melhor [...] consegue romper, [...] o povo tá vindo [...] tá procurando, você sabe é assim

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que a gente consegue vender, quem tá querendo trabalhar nós vamos por na associação [a nova]. (Entrevistado B)

Ainda sobre a questão da Associação na Comunidade Dom Orione, indagamos ao

entrevistado “B”, se o nível de associação, participação e interação comunitária entre as

famílias era satisfatório sob sua ótica. Segundo sua visão, o entrevistado “B” pontuou

que:

Oh! Posso falar assim do nosso dia a dia aqui né! Quando nós estamos em grupo às coisas funciona melhor, né! [...] na hora que a gente junta prá fazer, a gente sai lá na frente [...] então esse que é o sucesso que nós vamos ter! E se a gente tiver junto, com essa associação nossa,a nova [...] a gente tá vendo isso! ( Entrevistado B)

Para o entrevistado “B”, o sucesso do Assentamento poderá vir a se concretizar atrelado

ao sucesso da associação, o que este traduziu em suas palavras como sendo a questão da

“confiança” que está conseguindo mostrar para as famílias. E ainda ressalta que em

relação à entrada de outros membros na associação: “o povo tá vindo”.

O informante “B” aponta que está trabalhando e mostrando para comunidade que as

coisas são possíveis, desde que as famílias acreditem e, acima de tudo confiem no

trabalho e na interação entre os membros, e acrescenta: “tem um ou outro aí que tem a

cabeça diferente”.

O entrevistado “B”, ainda menciona que o grupo da rapadura tem trabalhado muito e, se

hoje, este grupo tem uma perspectiva melhor como associação, é porque estão

trabalhando coletivamente. Em seu depoimento ele diz: “[...] se vê que é aí que os

negócios começa a dá certo [...]”.

Fernandes (1995) menciona as associações voluntárias afirmando que: “[...] as pessoas

se juntam, voluntariamente em pequenos ou grandes grupos para perseguir um objetivo

comum”. (FERNANDES, 1995, p.19)

Na visão do entrevistado “A”, em um assentamento com a prática da agricultura

familiar é primordial que ocorra a coletividade, o associativismo e mesmo o

cooperativismo, ressaltando que ninguém vive isolado, ainda diz: “Sempre entendi que

ninguém vive isolado, sozinho, ilha ela não vai prá frente, no máximo uma ilha acaba”.

Portanto, o que se percebe no Dom Orione é que estão havendo muitas tentativas de se

trabalhar no coletivo.

Compreende-se que a mentalidade de se trabalhar de forma coletiva e a ação de

cooperação do grupo ainda não atingiram todas as famílias de um modo geral. Mas há

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aqueles que pensam que a Associação é uma forma de mostrar que vale a pena trabalhar

dessa forma, ou seja, coletivamente. O entrevistado “C” mostra, em seu depoimento, o

diferencial de se trabalhar em uma associação dizendo:

Aqui no Dom Orione, a gente tá junto, [...] unido, tá rompendo. No início foi muito difícil, [...] é muito trabalho, muita dificuldade, mas tá todo mundo caminhando, cada família tem que ver o que eles sabem fazer para tirar da terra [...] e das famílias juntas que a gente enxerga a Associação. A gente vai conseguir organizar as coisas prá aproveitar essas leis do governo, os benefícios, a gente tem certeza que esse é o caminho. [...] Nós estamos aberto para receber quem quiser trabalhar. (Entrevistado C)

Estes grupos formados em associações procuram saídas para problemas em comum,

embora possam ter nos grupos princípios particulares. Diante dos conceitos expostos,

percebe-se que a participação em conjunto pode ser maior que a participação individual,

como a superação de barreiras da comunidade pela agricultura familiar.

As políticas públicas e os desafios

Em relação às políticas sociais e suportes financeiros para o Dom Orione, sabemos que

embora haja vários programas de governo voltados para agricultura familiar em

assentamentos de reforma agrária e pequenos agricultores familiares, estes ainda não

são suficientes em sua totalidade. No caso do Assentamento Dom Orione, mesmo

havendo incentivos, indagamos ao entrevistado “A” sobre a importância da

concretização de um assentamento, tomando como base a política do Estado e as

parcerias dos dirigentes com o governo. Em seu relato é explicitado que:

O Estado precisa degustar melhor a questão da Reforma agrária, [...] de fato falar que apóia, não um apoio da boca prá fora, [...]. A gente sabe que quando ele quer uma coisa ele faz. [...] O Estado precisa de mudar esta mentalidade, é um recado que eu dou. [...] Os governantes precisam mudar esta mentalidade, não basta falar que sou a favor da reforma agrária. Eles têm que de fato com atitudes, mostrar que a reforma é uma saída, né! É para resolver a questão do desenvolvimento rural sustentável, produção, essa coisa toda. (Entrevistado A)

Quanto às parcerias, o entrevistado “A”, ressaltou que: “O governo tem que fazer o

papel dele [...], agora nós, enquanto entidade de classe, sociedade organizada, é que

temos que fazer nossas intervenções, mobilizações, pressões, reivindicações, esse o

nosso papel”. Este ainda menciona que: “[...] governo/Estado precisa estar mais

19

participativo, mais do nosso lado. [...] Entender algumas lideranças aí, porque nós

precisamos destas parcerias, destas autoridades que têm o poder nas mãos”.

Para finalizarmos a parte das entrevistas, perguntamos ao entrevistado “A”, quais eram

as perspectivas para o Dom Orione, este respondeu que:

Crescer, multiplicar, trabalhar, vender alimentos de qualidade ali no mercado, estar abastecendo [...]. O Dom Orione, pode ser prá nós uma vitrine de um assentamento que está dando certo, e que vai mostrar muita coisa boa prá gente[...] tem todos os ingredientes necessários!É como fazer um bolo! Está tudo na mesa. (Entrevistado A)

Considerações finais

Deparamo-nos com um tema extenso, complexo e, que suscita múltiplas questões.

Foi possível verificar que, como qualquer experiência mais profunda de um

assentamento de reforma agrária, as dificuldades estão presentes, mas as conquistas

também vigoram. A partir desta premissa, dentre os principais desafios enfrentados

dentro do Assentamento ressaltados pelas famílias, foram destacados as dificuldades de

comercialização dos produtos e o pouco apoio dos governos. Estas observaram que o

apoio governamental existe, mas que o acesso e a agilidade para se obter tal suporte são

dificultados devido às burocracias, exigências e trâmites para se ter tais acessos,

somados à própria desinformação de como proceder para obtenção dos mesmos, por

parte de algumas famílias.

Hoje, várias famílias desta comunidade já estão colhendo os frutos destas conquistas,

como moradia, emprego, renda e a própria subsistência, aquisições retiradas da terra.

Outra questão é a formação de novos valores nas tentativas de novas práticas sociais,

sendo que estas famílias, atualmente, se sentem inseridas com dignidade na sociedade,

mesmo que algumas ainda não tenham atingido todos os padrões desejados, de acordo

com os dados coletados.

Perante as análises da pesquisa, merece destaque a prática da agricultura familiar que

vem contribuindo de forma efetiva na renda dos assentados do Dom Orione, embora

ainda tenha uma parcela de famílias no Assentamento que não atingiram um nível

satisfatório de produção. Fica evidente que as famílias tiram o sustento e alcançam uma

renda suficiente por meio do trabalho com a agricultura familiar, e com as lógicas

produtivas apoiadas no seio da família, o que demonstra uma organização deste

trabalho.

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Esta prática na Comunidade Dom Orione, hoje, vem atingindo alguns objetivos sociais

esperados, oferecendo alternativas e possibilidades perante as necessidades dessa

parcela da população carente a qual analisamos. Neste sentido, a agricultura familiar

aplicada no Assentamento, somada à renda desses assentados, vem propiciando a

formação de cidadãos ativos, pelo crescimento da consciência e da prática.

Todavia, vale mencionar que para se chegar a uma cidadania, para que se tenha uma

vida realmente mais plena, precisa-se de uma formação política e, no geral, o que se

percebe é que essa visão não é compartilhada por todo o grupo de assentados. Estes têm

uma formação mais prática de como melhorar o plantio, como comercializar os

produtos, faltando-lhes uma visão política. Ainda nesse segmento, no que diz respeito

ao exercício da cidadania plena, a Comunidade Dom Orione ainda não conseguiu atingi-

la, pois os assentados não obtiveram acesso a todos os direitos.

Diante do exposto, a Comunidade Dom Orione apresenta uma baixa qualificação

política como um todo, o que vem atrapalhar o grupo a atingir maiores reivindicações

de direitos, dificultando o caminho das conquistas sociais, negociações com órgãos

externos, entre outros. Frente às dificuldades enfrentadas, os membros da comunidade

se apóiam na associação geral e, principalmente, no líder que coordena e gerencia os

problemas do Assentamento. Portanto, o que pode ser passível de ocorrer dentro do

Assentamento é que a comunidade acaba transferindo, para o dirigente da Associação,

as respostas e soluções dos problemas que deveriam ser decididas coletivamente.

Apesar da existência de programas governamentais e órgãos para cuidar dos

assentamentos de reforma agrária, estes ainda não conseguiram atingir em sua totalidade

uma excelência em termos de reforma agrária na íntegra. Em especial, no Dom Orione,

torna-se perceptível o apoio e o suporte financeiro dos órgãos governamentais em

instâncias municipais, estaduais e federais voltados para manutenção da comunidade.

Cabe aqui uma colocação deste estudo, no sentido de que, além do suporte financeiro

disponibilizado, é preciso um acompanhamento sistemático e aprofundado dos mesmos,

pois o Assentamento é dotado de uma multiplicidade de realidades sociais que

acompanham cada família, e, nem sempre, a realidade e a necessidade de uma família

podem ser como as de tantas outras que vivem nele. Percebemos que determinadas

ações políticas que são aplicadas pelo governo estão ligadas a algumas políticas

transitórias, como é o caso da atuação da Prefeitura de Betim em sua gestão atual, a qual

tem dado muito incentivo para o desenvolvimento do Assentamento Dom Orione como

é salientado pela comunidade.

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Enfim, chegamos ao final de um trabalho, que poderá ser, na verdade, apenas um

caminho para muitas outras pesquisas, na busca de respostas com vistas aos

desdobramentos prováveis da Comunidade Dom Orione.

Encontrar os caminhos, buscar a compreensão e a realidade vivida dos assentados de

reforma agrária, é desvendar uma complexidade do dia-a-dia de cada família, a partir

dos espaços de vivências, suas perspectivas e desafios, e, acima de tudo, é perceber a

construção de uma cidadania, passo a passo ancorada nos elementos terra, trabalho e

família, dentro do universo da agricultura familiar.

Eu [Entrevistado “A”] gosto de falar assim, pelo olhar do meu retrovisor da vida, [...] não vou ter vergonha de olhar meu passado, [vou ter] orgulho. Olha isso que era ontem, [assentados] que não tinha um pedaço de terra, olha nossos filhos estudados, trabalhando! Tá todo mundo aqui, isso é maravilhoso né! Que fique [o Assentamento]! Que Betim cresça! Que Belo Horizonte cresça! Mas que esse Assentamento fique respeitado prá mostrar pra sociedade que isso é possível, que isso não é imaginário [...] acho que isso tudo é positivo, é importante. (Entrevistado “A”)

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