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1 TERRITORIALIDADE E GENÊRO: MULHERES VAZANTEIRAS DO RIO SÃO FRANSCISCO 1 Maria Tereza Rocha 2 Dayana Martins Silveira 3 Dária Maria Martins Assis 4 Cláudia Luz de Oliveira 5 RESUMO A noção de território presente em comunidades tradicionais vazanteiras revela o grande sentimento de pertencer e identificar-se com a região, tendo como símbolo de coragem e resistência o rio São Francisco. Com isso, território também se constrói a partir das relações sociais existentes. Este artigo tem como objetivo compreender através da abordagem histórica e antropológica a territorialidade na comunidade quilombola de Bom Jardim da Prata, no município de São Francisco no Estado de Minas Gerais, dando ênfase na perspectiva das relações sociais de gênero, como se dão as diferentes formas de uso e apropriação do território entre homens e mulheres, observando diretamente como se constrói no processo de socialização, desde a infância, a demarcação desses espaços masculino e feminino, no interior da família e da unidade produtiva e mostrar de qual forma os comportamentos estariam colocados no âmbito cultural obedecendo a essa polaridade. ABSTRACT The notion of territory in this traditional communities vazanteiras shows the high sense of belonging and identify with the region and as a symbol of courage and endurance the River. Thus, territory is also built from the existing social relations. This article aims to understand through historical and anthropological approach to territorial community quilombola Bom Jardim da Prata, in São Francisco in Minas Gerais, emphasizing the perspective of gender relations, as we give the different forms use and appropriation of territory between men and women, as is built directly observing the process of socialization, since childhood, the demarcation of these spaces and females within the family and production unit and show which way the behavior would be placed in the cultural sphere obeying this polarity INTRODUÇÃO Este trabalho tem como objetivo pontuar algumas questões relacionadas à identidade e territorialidade no quilombo Bom Jardim da Prata, município de São Francisco, região norte de Minas Gerais, no intuito de contribuir com as pesquisas desenvolvidas no âmbito do projeto Opará 6 . Enfoco a especificidade das formas de 1 Traballho apresentado no VIII Congreso Latinoamericano de Sociología Rural, Porto de Galinhas, 2010 2 Departamento de Ciências Socias Universidade Estadual de Montes Claros 3 Departamento de Ciências SociaisUniversidade Estadual de Montes Claros 4 Graduanda de Ciências SociaisUniversidade Estadual de Montes Claros 5 Professora do Departamento de Ciências SociaisUniversidade Estadual de Montes Claros 6 Opará, significa rio-mar, nome dado ao rio São Francisco por seus primeiro habitantes, os indígenas.O projeto Opará se propõe a estudar a realidade de populações especificas, tendo como referência suas diversas categorias socioculturais ribeirinhos, beiradeiros, barranqueiros, vazanteiros, veredeiros, lavradores, pescadores, garimpeiros, carvoeiros, quilombolas, geralistas ou geraizeiros. O referido projeto pretende construir uma interpretação que articule uma visão ampla dos

TERRITORIALIDADE E GENÊRO: MULHERES VAZANTEIRAS DO RIO SÃO FRANSCISCO

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A noção de território presente em comunidades tradicionais vazanteiras revela o grande sentimento de pertencer e identificar-se com a região, tendo como símbolo de coragem e resistência o rio São Francisco. Com isso, território também se constrói a partir das relações sociais existentes. Este artigo tem como objetivo compreender através da abordagem histórica e antropológica a territorialidade na comunidade quilombola de Bom Jardim da Prata, no município de São Francisco no Estado de Minas Gerais, dando ênfase na perspectiva das relações sociais de gênero, como se dão as diferentes formas de uso e apropriação do território entre homens e mulheres, observando diretamente como se constrói no processo de socialização, desde a infância, a demarcação desses espaços masculino e feminino, no interior da família e da unidade produtiva e mostrar de qual forma os comportamentos estariam colocados no âmbito cultural obedecendo a essa polaridade.

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    TERRITORIALIDADE E GENRO: MULHERES VAZANTEIRAS DO

    RIO SO FRANSCISCO1

    Maria Tereza Rocha2 Dayana Martins Silveira3

    Dria Maria Martins Assis4 Cludia Luz de Oliveira5

    RESUMO

    A noo de territrio presente em comunidades tradicionais vazanteiras revela o grande sentimento de pertencer e identificar-se com a regio, tendo como smbolo de coragem e resistncia o rio So Francisco. Com isso, territrio tambm se constri a partir das relaes sociais existentes. Este artigo tem como objetivo compreender atravs da abordagem histrica e antropolgica a territorialidade na comunidade quilombola de Bom Jardim da Prata, no municpio de So Francisco no Estado de Minas Gerais, dando nfase na perspectiva das relaes sociais de gnero, como se do as diferentes formas de uso e apropriao do territrio entre homens e mulheres, observando diretamente como se constri no processo de socializao, desde a infncia, a demarcao desses espaos masculino e feminino, no interior da famlia e da unidade produtiva e mostrar de qual forma os comportamentos estariam colocados no mbito cultural obedecendo a essa polaridade. ABSTRACT

    The notion of territory in this traditional communities vazanteiras shows the high sense of belonging and identify with the region and as a symbol of courage and endurance the River. Thus, territory is also built from the existing social relations. This article aims to understand through historical and anthropological approach to territorial community quilombola Bom Jardim da Prata, in So Francisco in Minas Gerais, emphasizing the perspective of gender relations, as we give the different forms use and appropriation of territory between men and women, as is built directly observing the process of socialization, since childhood, the demarcation of these spaces and females within the family and production unit and show which way the behavior would be placed in the cultural sphere obeying this polarity

    INTRODUO Este trabalho tem como objetivo pontuar algumas questes relacionadas

    identidade e territorialidade no quilombo Bom Jardim da Prata, municpio de So

    Francisco, regio norte de Minas Gerais, no intuito de contribuir com as pesquisas

    desenvolvidas no mbito do projeto Opar6 . Enfoco a especificidade das formas de

    1 Traballho apresentado no VIII Congreso Latinoamericano de Sociologa Rural, Porto de Galinhas,

    2010 2 Departamento de Cincias Socias Universidade Estadual de Montes Claros

    3 Departamento de Cincias SociaisUniversidade Estadual de Montes Claros

    4 Graduanda de Cincias SociaisUniversidade Estadual de Montes Claros

    5 Professora do Departamento de Cincias SociaisUniversidade Estadual de Montes Claros

    6 Opar, significa rio-mar, nome dado ao rio So Francisco por seus primeiro habitantes, os

    indgenas.O projeto Opar se prope a estudar a realidade de populaes especificas, tendo como referncia suas diversas categorias socioculturais ribeirinhos, beiradeiros, barranqueiros, vazanteiros, veredeiros, lavradores, pescadores, garimpeiros, carvoeiros, quilombolas, geralistas ou geraizeiros. O referido projeto pretende construir uma interpretao que articule uma viso ampla dos

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    uso e apropriao do territrio por homens e mulheres vazanteiras nessa

    comunidade e a construo social dos espaos imbricadas nas relaes sociais de

    gnero.

    A comunidade de Bom jardim da Prata tem sua origem vinculada ao

    quilombo do Gurutuba, de onde vieram, a partir do sculo XIX, famlias fugidas das

    agitaes sociais decorrentes da violncia do cangao e da disputa de terras. A

    histria contada pelos mais velhos da comunidade traz o relato das perseguies,

    assassinatos e destruio de casas no Gurutuba, fazendo com que muitas famlias

    sassem em busca de paz e sossego. A margem esquerda do rio So Francisco era

    um lugar estratgico para a formao de uma nova vida, dado que era local de difcil

    acesso, com poucas trilhas, o que dificultava a entrada de brancos. E, por outro

    lado, lugar de natureza frtil, com gua em abundancia e vegetao diversificada,

    com ocorrncia de caatinga e cerrado com grande biodiversidade. Essas

    caractersticas faziam dali um lugar ideal para driblar a perseguio e estigmatizao

    de uma identidade dominante contra as populaes negras, constituindo uma

    barreira sustentada na invisibilidade social, o que permitiu a reproduo material e

    cultural do grupo, atravs de uma organizao baseada na liberdade em terras de

    ningum.

    A famlia Cordeiro do Rosrio que iniciou e povoou o quilombo de Bom

    Jardim da Prata, se originou do casamento do Sr. Isidoro e do Sr. Theodoro, pai e

    filho vindos do Gurutuba, com as duas irms D. Josefa e D. Dunsa. Nesse tempo,

    segundo os moradores, havia a presena de ndios que habitavam uma pequena

    parte do territrio, chamada Lagoa da Prata ou Barreira dos ndios.

    Hoje a comunidade quilombola de Bom Jardim da Prata formada por

    duzentas e cinqentas famlias que totalizam, aproximadamente, um mil duzentos e

    cinqenta habitantes, organizados em seis ncleos: Bom Jardim da Prata, Barra dos

    Caldeires, Lagoa da Prata (Barreira dos ndios), Lajeado (Lajedo), Porto Velho e

    Pinhozeiro. O quilombo fica a 15 km da sede do municpio de So Francisco,

    seguindo a estrada em direo a Serra das Araras. Depois de atravessar o rio de

    balsa, so mais 5 km at a comunidade.

    processos sociais em curso na regio norte de Minas Gerais. Processos esses que se conectam a outros de dimenso nacional que esto conferindo um novo desenho a sociedade civil brasileira, com o reconhecimento das chamadas novas etnias, assim denominadas pela referncia as etnias de origem centenria indgenas e quilombolas- j reconhecidas pela Constituio Federal de 1988.

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    A comunidade de Bom Jardim da Prata ser aqui abordada atravs da

    articulao entre identidade e territorialidade quilombola e vazanteira, o que confere

    especificidade s suas dinmicas internas e com a sociedade envolvente. O territrio

    visto como uma fonte de reproduo das relaes de reciprocidade o principal

    fator de diferenciao e identificao dos povos e comunidades tradicionais. Procuro

    estabelecer um dilogo entre as relaes sociais de gnero e as formas de

    apropriao do territrio, considerando que os espaos so construdos tambm no

    plano das idias, ou seja, a polarizao entre masculino e feminino um construto

    social que determina estruturas e posies diferenciadas na sociedade e que esto

    em permanente movimento de mudana sujeitas aos processos sociais em curso.

    TERRITRIO QUILOMBOLA E TERRITORIALIDADE VAZANTEIRA

    O processo de territorializao da comunidade de Bom Jardim da Prata, visto

    de forma geral, no se diferencia de outras comunidades tradicionais do norte de

    Minas e ser tratado aqui, atravs das interaes entre tempo e espao,

    evidenciando que o tempo modifica o espao e as percepes do mesmo.

    A noo de territrio presente em comunidades tradicionais revela o forte

    sentimento de pertencimento e identificao com um lugar, no caso aqui retratado,

    tendo o rio como smbolo de coragem e resistncia. Segundo De Paula e Brando

    (2004), pertencer a esse lugar e tom-lo como seu territrio significa manter laos de

    reciprocidade com o rio So Francisco.

    As comunidades vazanteiras so denominadas como tal por possurem um

    forte vnculo com o rio, que por sua vez estabelece uma forte influncia nas

    dinmicas sociais e na estrutura comunitria. Conforme Luz de Oliveira (2005, p.10):

    Vazanteiros so as populaes residentes nas reas inundveis das margens e ilhas do rio So Francisco, que se caracterizam por um modo de vida especfico, construdo a partir do manejo dos ecossistemas so - franciscanos, combinando, nos diversos ambientes que constituem o seu territrio, atividades de agricultura de vazante e sequeiro com a pesca, a criao animal e o extrativismo.

    Diegues e Arruda (2001) definem populaes tradicionais como grupos

    culturalmente diferenciados que ao longo do tempo vm reproduzindo seu modo

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    particular de vida e de relao com a natureza, traduzida num corpo de saberes

    tcnico e conhecimentos sobre os ciclos naturais e os ecossistemas locais de que se

    apropriam.

    Os relatos orais dos vazanteiros sobre sua prpria histria estabelece

    periodizaes relacionadas histria do rio. O tempo antigo, ou os tempos da

    fartura so narrados pelos moradores mais velhos de Bom Jardim como tempos

    bons: da terra solta, dos animais criados sem cercas, de muitas lagoas e do Velho

    Chico com gua limpa em abundncia. Na terra o que se plantava dava e tudo que

    eles precisavam faziam com as prprias mos - roupas, leo, farinha, sabo e

    outros. O esprito de comunidade que regia as relaes sociais, pois estes se

    pautavam na reciprocidade, parentesco, amizade e principalmente na liberdade.

    Com o passar do tempo chegam a Bom Jardim pessoas de fora, atradas

    pelas terras, dando incio ao tempo das fazendas, das terras cercadas. Esse tempo

    caracterizado pela perda das terras tradicionais que so cercadas e incorporadas

    s terras das fazendas pela ao de grileiros. Os moradores cada vez mais

    encurralados, tendo suas possibilidades de reproduo social e econmica cada vez

    mais restrita, passam a trabalhar para os fazendeiros locais, mais importante

    ressaltar que as relaes com os fazendeiros eram ditadas pelo compadrio. No

    tempo das fazendas as terras da comunidade foram em sua maior partes

    usurpadas e ainda so, mais a falta talvez de conhecimento e a relao de amizade

    e compadrio para com os fazendeiros, levavam estes a se submeterem a trabalhos

    em pssimas condies. Hoje em dia muitos fazendeiros reclamam da falta de

    interesse dos homens de Bom Jardim, para os trabalhos por eles oferecidos,

    segundo moradores, esses os apontam como preguiosos. Na verdade com as

    polticas pblicas oferecidas a essa populao, levou estes h no submeterem ao

    trabalho escravo nas fazendas.

    Com a criao da SUDENE, comea-se o processo de modernizao do

    campo, das cidades pequenas e mdias que fazem parte do Polgono das Secas, h

    nessa poca um grande xodo rural, e ampliasse a falta de emprego e de formas de

    sobrevivncia no campo. Comea-se a mecanizao no Campo, a maquina toma

    lugar do trabalho braal, assim em Bom Jardim tambm se evidencia conseqncias

    drsticas da ampliao das foras produtivas capitalistas. Na terra firme, onde nos

    tempos da fartura se criava tudo na solta, hoje as casas e o territrio, todos so

    cercados, isso atravs da presena dos de fora. O territrio concebido como o

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    espao, concreto e simbolicamente, apropriado por determinado grupo social, cheio

    de significaes. Diegues (1996) define o conceito de territrios das sociedades

    tradicionais:

    O territrio das sociedades tradicionais, distinto das sociedades urbanas industriais, descontnuo, marcado por vazios aparentes (terras em pousio, reas de esturio que so usadas para a pesca somente em algumas estaes do ano) e tem levado autoridades da conservao a declar-lo parte das unidades de conservao, porque no usado por ningum. (DIEGUES, 1996, p.84)

    Nesta populao o territrio recria laos coesos de significado e o seu direito

    regido por relaes de parentesco, amizade e compadrio, diferentemente do valor

    econmico dado pelas relaes capitalistas ao mesmo. Uma forma de observar isso

    contrapor em Bom Jardim, a vazante da terra firme, na primeira no existem

    cercas, o territrio dividido apenas por um pau no cho, as fronteiras no so bem

    demarcadas, uma vez que, quem planta ali so s os membros da comunidade. J

    quando nos dirigimos terra firme, est toda demarcada por cercas, uma vez que

    h a presena de estranhos, onde as relaes capitalistas so desenfreadas e os

    conflitos de territrio so frequentes.

    Enquanto caminhvamos indo de Bom Jardim ao Lajedo, Paula, mostrava

    todo o territrio que antes era do quilombo e agora est cercado por fazendas. Ou

    seja, as seis comunidades pertencentes ao quilombo, so distantes umas das

    outras, segundo Juarez todas essas possuem um lngua diferente, ou seja, um

    sotaque, e todo o territrio entorno destas, agora pertence aos fazendeiros e

    grileiros. Assim, a comunidade se encontra ilhada pelas fazendas, o espao imenso

    para a reproduo social, hoje se resume a pequenas poes de terra, que

    constituem cada comunidade, separadas pelos latifndios.

    Hoje as relaes como territrio modificou-se, mais ainda preserva-se certa

    caracterstica de antes, como as terras dadas. Seu Tim coloca que recentemente

    cedeu um pedao de terra a um compadre, para plantar e morar, mais reclama que

    seu compadre queria vender-la, segundo ele a terra no para ser vendida para

    servir de fonte e moradia, plantio e sustento do mesmo at a sua morte. Assim os

    laos de parentescos, compadrio, amizade so ainda fortes reguladores do territrio

    tradicional.

    Bom Jardim da Prata possui modos caractersticos das comunidades

    tradicionais vazanteiras - a vazante lugar de estrema importncia na reproduo

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    social comunitria. O rio So Francisco e seus ciclos so definidores das dinmicas

    sociais, sendo assim, os moradores constroem saberes e estratgias para lidarem

    com as mudanas ditadas pelo Velho Chico.

    O estudo de Luz de Oliveira (2005) aborda as diferentes territorialidades

    adotados por grupos sociais distintos. A autora tambm nos diz sobre as formas de

    apropriao do territrio pelos vazanteiros.

    As formas de apropriao do territrio, pelos vazanteiros, expressas atravs de estratgias de uso e manejo dos recursos naturais, formam um complexo sistema de explorao das potencialidades dos diversos ambientes classificados por eles como terra firme, rio e ilhas. (LUZ DE OLIVEIRA, 2005, p.89 grifos da autora)

    Os vazanteiros, que tm como caracterstica distintiva mobilidade do

    territrio em que habitam, devido dinmica das cheias e vazantes do rio,

    desenvolve, a partir da relao com o ambiente, um modo de vida caracterstica das

    populaes tradicionais. De Paula e Brando (2004, p. 126-127), falando sobre o So

    Francisco e as populaes que vivem em seu entorno, dizem:

    Um rio que um cenrio de vidas entrecortadas por guas, terras e onde se habita de formas diversas e que, na multiplicidade de relaes, interaes e utilizaes diferenciadas, faz os modos de vida diversos das gentes sertanejas e ribeirinhas.

    Assim, em Bom Jardim, a relao com natureza, com o meio ambiente,

    construda de maneira sustentvel, de estrito respeito pelo os espaos que tambm

    se tornam espaos socais. So criadas estratgias para a boa convivncia entre a

    natureza e o homem. O territrio recriado no imaginrio das pessoas e tambm

    estas recriam representaes de seres encantados como o do compadre dgua e

    me d gua. Em umas das conversas entre Juarez e Giovane, percebi que eles

    falavam de um ser encantado, mais tarde na casa de Comadre Bid, perguntei sobre

    o compadre, segundo ela o povo fala muito dele, mais nunca vi ele no. Dizem que

    um homem negro, que mora nas barrancas do rio, e que deixa as guas agitas pra

    derrubar os barcos. A o povo coloca fumo pra ele ficar calmo. noite perguntei a

    Juarez, ele ficou com medo e disse:

    Eu no gosto de contar essas coisas no, por que eu mexo muito com gua. Ele pode no gostar de alguma coisa que eu falar, por que tudo que a gente faz, ele sabe, eu no sei como, mais sabe. o seguinte ele bom, mais o seguinte, s vezes ele mal, o homem mexer com ele, mais se judia com ele, ele d um tiro na pessoa de

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    p. o seguinte, eu no gosto de contar esses trem no, por que, eu mexo muito com gua sabe, eu no gosto de mexer com esse lado. Eu respeito o lado dele, e graas a Deus! ele respeita o meu tambm, no me apareceu, nunca vez nada comigo. Ele conhece todo mundo que mora aqui na margem do rio. Se tiver gente estranha no rio, logo ele ta estranhando, mais que existe, existe!Aqui no tem outros no, tinha, mais ela desapareceu, nunca mais ningum viu. Ela uma mulher bonita, eu nunca vir no, mais o povo s via ela da cintura pra cima. D onde eu morava o povo via ela.

    Nessa entrevista, o medo que Juarez tem do Compadre d gua,

    evidenciado, por ser este um ser que habita o rio, e sendo aquele um excelente

    pescador, teme desagrad-lo. O territrio imaginado engloba seres e significaes

    que expressam relaes de respeito mtuas, que asseguram o usufruto coletivo dos

    recursos.

    A vazante e o rio so os principais espaos para essas pessoas, segundo

    Comadre Bid, o seu pai foi o primeiro a plantar na vazante que era reduzida a uma

    pequena ilha, ao passar do tempo com a vinda e a ida do rio modificando e

    agregando a estas outras faixas de terra que, a vazante tornou-se maior e hoje

    tem aproximadamente 200m de largura e 600m de comprimento e fica a 300m do

    barranco do rio So Francisco. Como a vazante cresceu, coloca Bid que seu pai

    foi cedendo terrenos aos outros moradores como por exemplo Seu Tim. Assim

    comea a apropriao desse espao, atravs de terras datas, e segundo Seu Tim

    pelo trabalho, o direito sobre a mesma estabelecido por negcios e doaes, e no

    h fronteiras bem demarcadas, apenas na mente das pessoas. O que interessante

    colocar, que todas as vezes que fui vazante, sempre ouvia as pessoas falarem

    vou pegar o milho de dona Bid, pra gente assar, pois o dela j est bom, mais

    essas prticas no so evidenciadas como roubo, mais normais na estrutura

    coletiva, o que representa ddiva, reciprocidade em que esses povos so

    envolvidos, o sentimento comum. Outro episodio, que chegando a casa depois da

    pesca Juarez, entrega a Paula sua mulher, os peixes, falando que tinha feito a

    partilha, ou seja, distribuindo os peixes nas casas em que passou no caminho. O

    peixe seria se observssemos no prisma capitalista uma propriedade privada

    adquirida pelo seu trabalho, mais no, estas pessoas vivem em uma comunidade

    envolvida por laos fortes e a reciprocidade que interliga as mesmas.

    O solo da vazante muda constantemente quando o rio desce, e so

    classificados em trs tipos, areia, misturado (areia e barro) e o barro, no segundo

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    planta-se geralmente melancias e no ultimo quase de tudo, abbora, milho, feijo,

    entre outros. Vera a ponta para o cho e fala ta vendo esse tanto de milho, o ano

    passado era um areiam s, e deu cada melaciona bitela. Os vazanteiros possuem

    um saber muito grande de vegetao, do solo, principalmente da vazante que todo

    ano muda. A populao mora em terra firme, mas o senhor Salvador com sua

    esposa Nair, todos os anos fazem um rancho na vazante depois da decida do rio,

    assim preciso montar e remontar o rancho levar e trazer os animais, alguns

    mveis, morar na ilha sem imergia um modo de est mais perto da plantao, uma

    forma de proteger contra as pragas, os passarinhos. O homem e a mulher

    vazanteira possuem um amor pela sua vazante, Vera fala seu Tim ama a sua

    vazante, tem dias que ele passa o dia todo l, vai de manha e volta tarde pra

    espanta os bichos. E quando ele briga com Dona Maria pra l que ele vai.

    O rio So Francisco lugar de trabalho e lazer, onde o homem pesca, a

    mulher lava roupas e vasilhas e as crianas tomam banho e se divertem. Mas, o rio

    era a principal fonte de alimento para o consumo domstico, tanto de peixe, quanto

    de gua. Hoje no se bebe mais a gua do Velho Chico, pois est muito poluda. A

    gua, ou melhor dizendo, a falta dgua a grande preocupao dos moradores

    dessa comunidade, nas margens do rio. O abastecimento dgua feito por um

    carro pipa que passa na comunidade trs vezes por semana.

    Na comunidade tambm se planta em terra firme, mas o ciclo de plantio

    diferenciado daquele da vazante, nesta acontece no ms de fevereiro e maro,

    assim que o nvel do rio baixa, e colhe-se nos meses de julho e agosto. Este ano

    (2009), durante o ms de abril, o rio subiu e levou o que havia sido plantado. Isso

    para eles normal, pois comearam a plantar cedo na vazante, depois das primeiras

    chuvas, pensando que no iria chover mais, no entanto a chuva voltou, levou tudo e

    eles tiveram que comear a plantar de novo. J na terra firme comeam a preparar a

    terra para plantio depois das primeiras chuvas, geralmente em novembro e

    dezembro, mas a roada acontece antes, em setembro ou outubro. Tambm na

    terra firme, o quintal onde se criam os amimais de pequeno porte e a manga

    onde so criados os animais de maior porte

    A classificao dos espaos no territrio e das espcies nativas e seus

    usos apresentada no quadro abaixo.

    Quadro 1: Espaos e espcies nativas de Bom Jardim da Prata*

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    Vegetaes e Espaos de Bom Jardim da Prata

    Espcies Nativas Usos

    Complexo Rio

    Rio Grande

    Surubim, Dourado, Piranha, Trara

    Pesca

    Complexo Ilha

    Vazante ou Lameiro Roa de feijo de arranque, milho,

    abboras, melancia, andu

    Co

    mp

    lexo T

    err

    a F

    irm

    e

    Lagoas Pesca

    Chapada Capim agreste, pequi, caigata e coquim

    Coleta de frutas, no se planta nada.

    Caatinga rvores grandes, com madeiras grossas. Terra frtil, onde tudo que se planta nasce, dependendo d gua.

    Roa de milho, feijo catador, mandioca,

    mamona; pastagens, coleta de frutas, plantas medicinais, madeira e

    lenha

    Carrasco um tipo de angico fino que no cresce.

    Pastagens, solta do gado, lenha.

    Tabuleiro tipo um charoscado, tipo uma chapada mais no , tipo de

    caatinga mais no , com mais ou menos paus tortos, mas no

    to grossos

    Capo Tipo de caatinga, um capo de mato, l tem o crrego, um pantanal e lagoa.

    Pequi, cabea de nego e murici.

    Mata pequizeiro grande

    Antigamente enchia dgua, lagoa. Mata

    fechada, onde hoje j no alaga mais.

    Lenha e, antigamente, lugar de lazer.

    FONTE: Maria Tereza Rocha, 2009

    * O quadro foi elaborado com base nas informaes de Juarez.

    Esses espaos no territrio so natural e socialmente produzidos e

    apropriados no processo de reproduo simblica dessa coletividade, assim como a

    casa, a rua, a igreja, e outros. A estrutura social regulada por instituies que

    mantm uma forte coeso dentro do grupo, instituies como a famlia e o

    casamento, entre outras. O casamento na comunidade de Bom Jardim

    endogmico e virilocal, ou seja, o casamento realizado com pessoas da mesma

    comunidade, sendo que a mulher passa a morar nas terras do seu marido. Havendo

    algumas excees como no caso de Paula que ao se casar com Juarez resolveram

    morar nas terras do pai dela, por ser a escola mais perto.

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    Por fim, a partir dessa forma especifica de identificao com um territrio

    comum, que ao mesmo tempo produz uma integrao social e cultural onde se

    desenrola a base mais forte de coeso social.

    MULHERES VAZANTEIRAS: ESPAOS E GNEROS

    Os tempos e espaos, tambm so percebidos diante da bipolaridade

    feminina e masculina, os espaos ao longo do tempo so modificados, modificando-

    se tambm as percepes dos sujeitos sociais, como as relaes entre os gneros.

    a posio hierrquica, as instituies sociais, inclusive a familiar, vo dando lugar a

    novos modelos estruturais de posio e prestgio.

    Segundo Dona Maria moradora antiga da comunidade, antigamente ela

    cuidava da casa, dos filhos e ainda trabalhava na colheita de mamona, as filhas

    mais velhas que muitas vezes ficavam responsveis pela casa, na ausncia da

    me e pelos irmos mais novos. A figura do marido era central na vida familiar,

    assim a instituio familiar era patriarcal, hierarquizada, o papel da mulher de certa

    forma nessa hierarquia se exercia subordinado ao do homem nas relaes de poder,

    ditados pela moral. Mais importante frisar que a mulher tinha um papel

    importantssimo na reproduo do grupo domstico, o seu trabalho de certa forma

    era complementar ao do homem, sendo a comunidade patrifocal. Segundo Dona

    Maria, era seu Tim, seu esposo, que ficava responsvel pela administrao da renda

    da casa, era ele que ia pra cidade, ia s feiras, uma vez que, esses espaos eram

    desconhecidos para as mulheres, que no se aventuravam por estes mundos, ou

    raras vezes s com a presena de seus maridos. O espao feminino se estendia

    entre a casa, a vazante, a plantao de mamona e a agricultura na terra firme. Os

    ambientes distantes eram s para os homens, grandes desbravadores, fortes - o

    rio adentro, cheio de perigos, agitaes, bichos, no era lugar de mulher, a no ser

    quando acompanhadas pelos seus guardies.

    As crianas comeavam cedo a trabalhar, muitas vezes nem estudavam,

    devido dificuldade do acesso a escola, que era distante. Cotidianamente as

    crianas e jovens que se aventuravam, deslocavam-se a p at a Escola Estadual

    Barreira dos ndios. Hoje h uma escola na comunidade, tambm existe a escola

    famlia agrcola no municpio, onde alguns jovens da comunidade estudam, mas so

    poucos devido falta de recurso familiar, pois para estudar deve-se pagar trinta

  • 11

    reais, um preo alto para famlias que muitas vezes s recebem os recursos do

    Programa Bolsa Famlia. Os jovens que vo para a escola, como Tain, filha de

    Paula e Juarez, permanecem quinze dias na escola e quinze dias na comunidade.

    O processo de polarizao de gnero era e ainda passando desde infncia,

    onde as meninas durante os seus seis a sete anos j praticam deveres domsticos

    mais leves, enquanto as menores brincam de lavar casa, de lavar roupinhas e de

    casinha. Os meninos, j se aventuram em lugares distantes as lagoas, a vazante, a

    manga, e assim influenciando os seus irmos mais novos, que quando no vo com

    eles, brincam de curralzinho, entre outros. Uma situao presenciada por mim,

    durante umas das minhas idas a campo, que evidenciaria perfeitamente isso, foi que

    num dia estvamos no quintal da casa de Dona Maria, onde se encontra quase todo

    grupo familiar, constitudo por Paula sua filha, Seu Tim, Vera sua cunhada, Andra e

    Vanessa filhas de Vera e de vez em quando seus filhos depois da realizao de

    suas tarefas na roa, na manga juntavam-se ao grupo. Nesse dia, comeava o

    processo produo da farinha de mandioca e da tapioca ou goma de mandioca,

    essa ultima para a fabricao do beij. No processo de fabricao da farinha e da

    tapioca, o primeiro passo descascar a mandioca, um processo rduo e cansativo.

    Nesse momento, Vanessa j nos seus setes anos de idade, participava do processo

    ativamente, mais no com a mesma agilidade que os adultos, j Andra prxima aos

    trs anos de idade, ao ver a me, av, o av, a tia e a irm, reproduz os mesmo

    gestos deste, com uma faca menor e sem ponta e com uma pequena mandioca,

    descasca-a. Assim se evidencia que esses valores, so passados no cotidiano, que

    as crianas recriam os hbitos dos adultos, e garantem a continuidade destes. J

    Giovane, com os seus dez a onze anos, ao passar ali, prefere contar os seus feitos

    enquanto pescava nas lagoas. Ento, a separao de tarefas dita femininas e

    masculinas, so repassadas desde infncia, contribuindo na continuao do modelo

    estrutural vigente.

    A mulher desenvolve o papel de guardi da tradio, ela que responsvel

    pelo processo de socializao das pessoas, principalmente as idosas, as avs-

    mulheres sbias e com experincia de vida - so quem ensinam os netos, os filhos,

    as prticas sociais desempenhadas na comunidade. Um fato que me chamou

    ateno e que demonstra a importncia das mulheres na socializao das crianas,

    foi que estando no quintal da casa de Dona Maria, presenciei um dialogo que enfoca

    muito bem isso, entre Dona Maria e sua neta Vanessa:

  • 12

    Dona Maria grita: Vanessa!Vanessa! Vanessa responde: O qu v.

    Dona Maria se dirige a Vanessa e fala: O qu no! senhora, quando voc responde pra mim, pra sua me, seu v senhora e senhor, agora quando fala pra seu primo, o qu. Foi assim que meus pais me ensinaram e assim que to te ensinando

    Brando (1998) mostra que o local de guardar ferramentas, o paiol so

    lugares de domnio masculino, enquanto o quintal e o forno caipira so territrio

    domstico das mulheres. Herdia (1979, p.154), em seu estudo com o campesinato

    marginal a plantation aucareira da Zona da Mata de Pernambuco, nos apresentam

    bem distintamente a ocupao de territrio baseado em gnero, como:

    A oposio casa-roado atualiza e refora, ao mesmo tempo, as esferas masculina e feminina, delimitando tambm a rea de atividades reconhecidas como trabalho daquelas que no o so. Esta categoria trabalho no apenas classifica as tarefas como tambm os prprios membros do grupo domstico, tanto em termos sexuais como de ciclo de vida

    Woortmann (1992, 1997) afirma que a diviso do trabalho por sexo - homens

    e mulheres se diferenciam e complementam nas atividades de capina e colheita. A

    roa e o pasto so ambientes masculinos, enquanto que a casa torna-se um

    ambiente feminino.

    Nas construes ideolgicas dos sitiantes existem dois circuitos de atividades, o masculino e o feminino. No plano mais amplo, tudo que diz respeito ao pasto e roa circuito masculino; o que diz respeito casa feminino (WOORTMANN, 1992, p. 134-135).

    Ela estrutura tambm concepes ideolgicas nas relaes de trabalho.

    Por outro lado, a palma plantada num semicrculo que separa o espao da casa quintal daquele da roa, opostos ideologicamente em sua relao com a construo de gnero, pois a casa quintal o domnio da mulher, e a roa, o domnio do homem (WOORTMANN, 1992, p.143).

    O ambiente ento apropriado de acordo com a diviso do trabalho, que

    ainda est muito ligado ao papel desempenhando pelo homem e pela mulher dentro

    da instituio familiar.

    A casa e a rua se opem no imaginrio brasileiro de vrias maneiras.7 A rua um domnio frio, do homem, que para nela vencer na vida deve agir de maneira fria, racional, equilibrada. A casa um lugar que deve ser quente. Nela deve haver calor

    7 DaMatta apud Woortmann, .

  • 13

    humano; a racionalidade fria deve ceder lugar afetividade quente, e mulher dona da casa compete imprimir tal clima (WOORTMANN, 1992, p.163 grifos da autora).

    A casa em Bom Jardim da Prata local exclusivamente feminino, a mulher

    que cuida dos afazeres domsticos - limpar, lavar, passar. O quintal propriamente

    feminino, mais tambm pode ser visto como territrio misto, apesar da maior

    presena feminina, que geralmente passa a maior parte do tempo cuidando deste.

    Uma vez que, neste que se encontram os animais de pequeno porte, galinha,

    cocas, porcos, plantas domsticas como p de pinha, de manga, at mesmo uma

    pequena plantao de milho e a horta. Com isso, esses tipos de tarefas ficam

    incumbidas s mulheres, talvez por serem tarefas menores, mais fracas. J os

    homens tambm circulam pelo quintal realizando tarefas mais pesadas, onde

    fabricam suas redes de pescas, batem o milho, matam o porco. Nas vazantes o

    roado tarefa masculina, j a mulher ajuda o marido, os irmos, a semear, colher,

    sendo estas no consideradas como trabalho. O roado a parte mais pesada em

    todo processo de cultivo das terras, queimar, limpar o mato bravo necessita de

    fora, geralmente atribuda ao homem. O rio um espao misto feminino e

    masculino, em se tratando da beira do rio, o rio de perto o lugar onde as

    mulheres executam trabalhos como lavar roupa, as vasilhas, e onde se toma banho,

    o rio tambm lugar de lazer. Mais j o rio de longe lugar masculino, onde os

    homens saem para pescar, raramente as mulheres lhe acompanham, por ser um

    lugar perigoso.

    Assim pode-se dizer que as tarefas de cunho feminino esto ligadas

    categoria fraca e as dos homens a pesada, pois so fortes viris, enquanto a

    mulher fraca e sensvel, assim se d s relaes entre gneros. Essa categoria

    fraca e forte, tambm passa a diferenciar os trabalhos femininos, a mulher forte

    aquela que cuida da casa, dos filhos e ainda da vazante e a fraca que a que

    no trabalha na vazante, no roado. Aquelas mulheres que desempenham tarefas

    de cunho mais pesadas, tarefas at mais masculina, como o trabalho na vazante,

    de certo que no me refiro s categoria ajuda, mais mulheres que realmente

    trabalham na vazante, muitas vezes na falta de seus maridos, essas so

    consideradas como fortes, Vera se refere a uma mulher que trabalhava na vazante,

    que agora devido s condies fsicas no pode mais, aquele era mulher forte,

  • 14

    trabalhava na vazante, ainda cuidava da casa, voc precisa de ver que mulher

    trabalhadeira.

    Para Diegues (1996), territrio tambm se constri a partir das relaes

    sociais existentes. Diante destes conceitos a forma de abordagem da pesquisa com

    enfoque em gnero vem apresentando uma leitura baseada em um arcabouo

    terico, onde, principalmente, as formas de trabalho, obedecendo polaridade

    masculina e feminina, que iro determinar a ocupao do territrio.

    Assim nos tempos atuais, com as constantes mudanas na estrutura social

    comunitria, devido ao maior contato com as relaes modernas de reproduo

    social, a mulher conseguiu uma ascenso na hierarquia social. Outra questo na

    qual, essa mudana esta relacionada e onde a comunidade sofre uma

    desestruturao social brusca, o trabalho sazonal, feito todo o ano pelos os

    homens da comunidade. A mulher geralmente a que mais sofre em relao a este,

    pois passa exercer uma jornada dupla, cuidar da casa, dos filhos, administrarem a

    renda e ainda cuidar da vazante. O trabalho sazonal na plantao de alho em So

    Gotardo feito todos os anos, primeiramente no ms de maro para a plantao do

    alho durante 45 dias e depois novamente num mesmo perodo de dias os homens

    retornam em julho para a colheita. Essa uma conseqncia da expropriao

    territorial e uma forma de reproduo camponesa, ou seja, o homem sai

    sazonalmente em dois perodos do ano, para viabilizar a reproduo de seu modo

    de vida tradicional, transitando por mundos diferentes - o trabalho escravizado, o

    utilitarismo, o mundo da reproduo do capital e o mundo da reciprocidade, do

    vinculo com o lugar e a coletividade.

    Hoje em dia, Andr no trabalha mais na colheita de alho em So Gotardo,

    pois est empregado na firma EMSA, mais relata que quando trabalhava, passava

    por muitas dificuldades, alm do trabalho escravo e sua mulher Vera tambm se

    desdobrava. Vera no seu cotidiano sem a presena do seu marido teve que assumir

    outra postura na estrutura familiar, ela passava agora, ser alm de me, dona de

    casa, a principal figura familiar, pois agora era pai, e tinha que cuidar da vazante, da

    roa na terra firme. Assim, levantava todos os dias bem cedo, fazia o caf, fazia os

    afazeres domsticos, deixava suas filhas com algum, Dona Maria sua sogra, ou

    com uma vizinha e ia pra vazante. Quando era tempo de roado, bota fogo, capinar,

    essa era ajudada pelos seus cunhados, ou seu marido pagava algum para exercer

    essas tarefas, agora plantar, abrir covas e colher eram tarefas que exercida com

  • 15

    grande presteza. Hoje como seu marido trabalha na firma o dia todo, Vera est mais

    tranquila, pois o tem perto de si, mais cuidar da casa, da vazante, dos filhos ainda e

    sua tarefa, mais o que visto novamente a presena da autoridade do pai, que

    ainda muito forte, talvez agora, as tarefas de Vera aumentaram, pois, alm de

    tudo, seus esforos tambm so para agradar e cuidar do marido.

    Outra mulher forte Dona Preselina, mais conhecida como Comadre Bid,

    mulher vazanteira, que exerce de maneira firme suas tarefas, plantar, colher, remar

    (tarefa que poucas mulheres fazem), cuidou e cuida de 10 filhos, alguns casados

    outros ainda crianas, alm disso, sofre tambm com a ida de seus filhos para o

    trabalho sazonal, e as suas filhas tambm com a ida de seus maridos. Vivas do

    serto!

    Nem todos tiveram a sorte de Andr, muitos so os que todos os anos

    trabalham na colheita de alho, sofrem com salrios baixos, grande jornada de

    trabalho, alm do conflito interno ocasionado pelo choque com outro mundo, de

    relaes de produo do capital, diferenciadas das exercidas no cotidiano grupal.

    Para Woortmann as diferenciaes de trabalho sero um fator determinante,

    onde a mulher tem seu papel focado numa questo de complementaridade ao

    sustento familiar no passado e atualmente como uma questo de dependncia ao

    homem. Como objeto de estudo a mulher vazanteira e o seu olhar sobre as vrias

    vertentes que se imbricam na qualificao de gneros.

    Mas em Bom Jardim, o trabalho feminino entre os vrios espaos,

    modificarou-se, pude notar que, o seu trabalho sempre foi uma forma de

    complementaridade de fundamental importncia ao sustendo familiar, a sua ajuda

    na vazante, hoje formando talvez uma categoria de trabalho, onde as mulheres

    vazanteiras passam a maior parte de seus dias, o cuidarem da casa, do quintal e os

    animais e as plantas que ali se encontram, serviram e servem como complemento

    ao trabalho do homem. Alm desse aspecto o que se evidencia em bom jardim

    independncia que vem ganhando a mulher em relao ao homem, elas adentraram

    espaos de trabalhos antes s percorridos pelos homens, algumas trabalham na

    cantina da EMSA, outras vo para vazante plantam e colhem sem a presena de

    seus maridos.

    Essas mudanas tambm evidenciam um conflito intergeraoes, os tempos de

    hoje, so diferentes dos de ontem, o que resume que, as mulheres de ontem foram

  • 16

    socializadas em padres diferentes dos de agora. Sentadas no quintal, se aproxima

    de ns duas mulheres da vilinha, lugar um pouco distante da comunidade, com uma

    bacia na cabea de roupa vindo do rio, Paula e sua me Dona Maria comentam:

    Paula fala: Meu Deus! Sair l do lugar distante pra lavar roupa no rio, nesse sol quente! Dona Maria responde: Sabe de uma coisa eu tenho saudades de lavar roupa no rio! Paula rebate: Por que a senhora no lava, ento ? Dona Maria termina a fala: Eu no lavo por causa da coluna, mais se no fosse eu lavava.

    Esse dilogo traduz uma mudana de percepo entre geraes, onde

    Paula na sua comodidade de ter gua do rio em casa, no necessita mais lavar

    roupa no rio, e no faz questo, pois no tem mais tempo na realizao dessas

    tarefas, sendo que lavar roupa em casa mais cmodo, gasta mesmo tempo e no

    necessita de descer e subir o barranco, com pesos na cabea. J Dona Maria

    lembra com saudades do tempo em que lavar roupa no rio era algo agradvel para

    as mulheres, e uma tarefa diria.

    Para McDowell (1999), Rose (1993) e Silva (2005) gnero um grupo de

    idias que uma cultura especfica constri em relao ao que ser homem e ao que

    ser mulher. Para Surez (2000), gnero um conceito acionado para distinguir e

    descrever categorias sociais, um instrumento para produzir efeitos na sociedade. A

    autora afirma que a palavra gnero, s se tornou forte depois de passar a designar a

    construo social da feminilidade e da masculinidade. Hoje o estudo de gnero vem

    demonstrar que o discurso de que a mulher um ser estritamente voltado pra

    sensibilidade e o homem voltado pra razo, um discurso baseado no senso

    comum de forma equivocada. Estruturar um conceito juntamente com o conceito de

    gnero falar sobre os processos culturais que determinam o que masculino e

    feminino dentro do grupo local estudado, analisando as mudanas relacionadas aos

    contextos.

    Hoje a situao em Bom Jardim da Prata, passou por grandes

    transformaes, as relaes de gnero se modificaram, a mulher est em uma

    posio diferenciada nas relaes de poder. Apesar de ainda manter certa

    subordinao ao seu marido, essas j no possuem um espao limitado, as

    mulheres se deslocam cidade sem a presena dos mesmos, elas cuidam do

    dinheiro, fazem feira e pagam as contas. As mulheres assumiram uma relevncia

  • 17

    maior dentro da comunidade, em todas as esferas sociais, culturais e econmicas.

    Por exemplo, na diretoria anterior da associao quilombola quem exercia a funo

    de presidente e vice-presidente eram mulheres - Gilmara e Paula - que ocupavam e

    ocupam posies de grande influencia na estrutura social.

    CONSIDERAES FINAIS Finalizo aqui tentando evidencia as dinmicas sociais e o processo que

    culminou nas constantes mudanas da estrutura social dessa comunidade.

    Primeiramente busquei incorporar procedimentos metodolgicos que permitisse

    chegar estrutura atual e observar quais os processos sociais e culturais,

    mecanismo de coeso, instituies, conflitos sociais, enfim, quais os fatores que

    levam h uma conscincia coletiva e da identidade, que se constri no presente

    etnogrfico e diacrnico. Em segundo, procuro na historia oral ou tempo sincrnico,

    o mesmo mecanismo, mais agora que evidenciaram as dinmicas sociais, culturais e

    econmicas que propiciaram mudanas nessa estrutura social.

    Portanto, a estrutura social vigente na comunidade de Bom Jardim da Prata

    digamos que contraditria, envolvendo aspecto do mundo urbano e do mundo

    tradicional. Ou seja, esta comunidade est envolvida num conflito de tenses

    ocasionadas pela disputa de agentes exgenos e agentes endgenas, em suas

    essncias, diferenciados. O mundo urbano, capitalista tem como base uma

    organizao expansionista e utilitarista, constituindo-se atravs de posies

    hegemnicas tanto de uma identidade dominante quanto econmica. J o mundo

    tradicional pautado em relaes territoriais especficas de respeito pela natureza,

    onde se tira o sustento da pesca, da agricultura, do extrativismo e da criao de

    animais e uma organizao vinculada ao parentesco, compadrio, amizade e troca.

    Por serem posies diferenciadas de representaes sociais ou de ver a si mesmo e

    ver o mundo, em Bom Jardim esses agentes impulsionam conflitos relativos a

    devidos campos da estrutura comunitria como o intergerao, de gnero, fundirios

    e ambientais, proporcionando mudanas passadas e futuras. Nas relaes entre

    gnero, houve a ampliao dos espaos femininos em todos os campos poltico,

    cultural, econmico e social, algumas mulheres hoje j reivindicam os seus direitos

    matrimonias recentemente na comunidade se teve uma tenso, uma mulher

    cobrando seus direitos aps o fim do casamento. A terra envolvida em conflitos

  • 18

    ambientais e rurais, rgos como IEF, entre outros e os fazendeiros so os

    principais agentes desses. Os jovens esto ligados a moda urbana e acham as

    praticas tradicionais bregas, os idosos sofrem vendo a cultura sendo descartadas

    pelos mais novos.

    Todo esse processo social que culminou nessa estrutura vigente, matria-

    prima de todo uma mudana e dinmica social, no se tem como afirma Leach

    (1995), estrutura esttica, assim todas as sociedades passam por modificaes

    atravs dos conflitos internos e do contado entre povos, processo normal. Mais o

    que se evidencia quando falamos em cultura ocidental, capitalista um

    etnocentrismo exacerbado, que procura absolvio de outras culturas com fins

    utilitaristas, pela fora seja no domnio fsico ou ideolgico. A mudana ento nessa

    comunidade se deu pela expanso capitalista, atravs das chegadas das fazendas,

    que levam consigo novos modos de se ver o mundo, bem no estabelecimento da

    dominao no plano fsico, no encurralamento desse povo e uma dominao no

    plano ideolgico, de aculturao e de incorporao de meios de comunicao e da

    diminuio das distancias. O mundo urbano adentra no mundo tradicional

    modificando alguns aspectos dessa, se estabelece ai um conflito dos modos

    tradicionais envolvendo sua sobrevivncia e dos modos urbanos em se impor como

    modo de vida dominante.

    Por fim, os conflitos sejam eles exgenos aqueles que se tencionam com o

    mundo de fora, ou os conflitos endgenos, aqueles que se desenrolam dentro da

    estrutura interna do quilombo, desencadeados por motivos internos, como brigas por

    heranas, foram essenciais para as transformaes ocorridas na comunidade.

    Assim, que o processo de territorializao pode ser considerado como um Fato

    Social Total, pois atravs das relaes entre homem e natureza, que se constitui

    como base em modos de vida especficos, simbolicamente construdos a partir

    desta, que uso e apropriao do espao em todos os seus ngulos, neste caso do

    gnero, e nos tempos e espaos, destri o vu que escondia e desmascara a

    estrutura social, dessa comunidade. Pois partindo de um eixo como o a

    territorizao em seu sentido amplo e da perspectiva de gnero, pode-se notar

    aspectos mais amplos, que encobrem toda a comunidade e suas dinmicas. O forte

    vinculo com ao territrio, faz com que, toda e qualquer mudana neste, seja pela sua

    perda, seja por tcnicas diferenciados de cultiva-lo, ou vrios outros motivos,

    evidenciam conseqncias e mudanas em outras instituies, em outras relaes

  • 19

    sociais. Pelo estudo do processo de apropriao e formao territorial, se constata o

    surgimento de outros agentes conflituosos, como o urbano, e assim lugares

    proibidos vo sendo pouco a pouco descobertos pelas mulheres. As transformaes

    e mudanas na estrutura social de Bom Jardim, esto ligadas ao processo de

    territorialidade em que est percorreu.

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