Upload
thete-rocha
View
8
Download
2
Embed Size (px)
DESCRIPTION
A noção de território presente em comunidades tradicionais vazanteiras revela o grande sentimento de pertencer e identificar-se com a região, tendo como símbolo de coragem e resistência o rio São Francisco. Com isso, território também se constrói a partir das relações sociais existentes. Este artigo tem como objetivo compreender através da abordagem histórica e antropológica a territorialidade na comunidade quilombola de Bom Jardim da Prata, no município de São Francisco no Estado de Minas Gerais, dando ênfase na perspectiva das relações sociais de gênero, como se dão as diferentes formas de uso e apropriação do território entre homens e mulheres, observando diretamente como se constrói no processo de socialização, desde a infância, a demarcação desses espaços masculino e feminino, no interior da família e da unidade produtiva e mostrar de qual forma os comportamentos estariam colocados no âmbito cultural obedecendo a essa polaridade.
Citation preview
1
TERRITORIALIDADE E GENRO: MULHERES VAZANTEIRAS DO
RIO SO FRANSCISCO1
Maria Tereza Rocha2 Dayana Martins Silveira3
Dria Maria Martins Assis4 Cludia Luz de Oliveira5
RESUMO
A noo de territrio presente em comunidades tradicionais vazanteiras revela o grande sentimento de pertencer e identificar-se com a regio, tendo como smbolo de coragem e resistncia o rio So Francisco. Com isso, territrio tambm se constri a partir das relaes sociais existentes. Este artigo tem como objetivo compreender atravs da abordagem histrica e antropolgica a territorialidade na comunidade quilombola de Bom Jardim da Prata, no municpio de So Francisco no Estado de Minas Gerais, dando nfase na perspectiva das relaes sociais de gnero, como se do as diferentes formas de uso e apropriao do territrio entre homens e mulheres, observando diretamente como se constri no processo de socializao, desde a infncia, a demarcao desses espaos masculino e feminino, no interior da famlia e da unidade produtiva e mostrar de qual forma os comportamentos estariam colocados no mbito cultural obedecendo a essa polaridade. ABSTRACT
The notion of territory in this traditional communities vazanteiras shows the high sense of belonging and identify with the region and as a symbol of courage and endurance the River. Thus, territory is also built from the existing social relations. This article aims to understand through historical and anthropological approach to territorial community quilombola Bom Jardim da Prata, in So Francisco in Minas Gerais, emphasizing the perspective of gender relations, as we give the different forms use and appropriation of territory between men and women, as is built directly observing the process of socialization, since childhood, the demarcation of these spaces and females within the family and production unit and show which way the behavior would be placed in the cultural sphere obeying this polarity
INTRODUO Este trabalho tem como objetivo pontuar algumas questes relacionadas
identidade e territorialidade no quilombo Bom Jardim da Prata, municpio de So
Francisco, regio norte de Minas Gerais, no intuito de contribuir com as pesquisas
desenvolvidas no mbito do projeto Opar6 . Enfoco a especificidade das formas de
1 Traballho apresentado no VIII Congreso Latinoamericano de Sociologa Rural, Porto de Galinhas,
2010 2 Departamento de Cincias Socias Universidade Estadual de Montes Claros
3 Departamento de Cincias SociaisUniversidade Estadual de Montes Claros
4 Graduanda de Cincias SociaisUniversidade Estadual de Montes Claros
5 Professora do Departamento de Cincias SociaisUniversidade Estadual de Montes Claros
6 Opar, significa rio-mar, nome dado ao rio So Francisco por seus primeiro habitantes, os
indgenas.O projeto Opar se prope a estudar a realidade de populaes especificas, tendo como referncia suas diversas categorias socioculturais ribeirinhos, beiradeiros, barranqueiros, vazanteiros, veredeiros, lavradores, pescadores, garimpeiros, carvoeiros, quilombolas, geralistas ou geraizeiros. O referido projeto pretende construir uma interpretao que articule uma viso ampla dos
2
uso e apropriao do territrio por homens e mulheres vazanteiras nessa
comunidade e a construo social dos espaos imbricadas nas relaes sociais de
gnero.
A comunidade de Bom jardim da Prata tem sua origem vinculada ao
quilombo do Gurutuba, de onde vieram, a partir do sculo XIX, famlias fugidas das
agitaes sociais decorrentes da violncia do cangao e da disputa de terras. A
histria contada pelos mais velhos da comunidade traz o relato das perseguies,
assassinatos e destruio de casas no Gurutuba, fazendo com que muitas famlias
sassem em busca de paz e sossego. A margem esquerda do rio So Francisco era
um lugar estratgico para a formao de uma nova vida, dado que era local de difcil
acesso, com poucas trilhas, o que dificultava a entrada de brancos. E, por outro
lado, lugar de natureza frtil, com gua em abundancia e vegetao diversificada,
com ocorrncia de caatinga e cerrado com grande biodiversidade. Essas
caractersticas faziam dali um lugar ideal para driblar a perseguio e estigmatizao
de uma identidade dominante contra as populaes negras, constituindo uma
barreira sustentada na invisibilidade social, o que permitiu a reproduo material e
cultural do grupo, atravs de uma organizao baseada na liberdade em terras de
ningum.
A famlia Cordeiro do Rosrio que iniciou e povoou o quilombo de Bom
Jardim da Prata, se originou do casamento do Sr. Isidoro e do Sr. Theodoro, pai e
filho vindos do Gurutuba, com as duas irms D. Josefa e D. Dunsa. Nesse tempo,
segundo os moradores, havia a presena de ndios que habitavam uma pequena
parte do territrio, chamada Lagoa da Prata ou Barreira dos ndios.
Hoje a comunidade quilombola de Bom Jardim da Prata formada por
duzentas e cinqentas famlias que totalizam, aproximadamente, um mil duzentos e
cinqenta habitantes, organizados em seis ncleos: Bom Jardim da Prata, Barra dos
Caldeires, Lagoa da Prata (Barreira dos ndios), Lajeado (Lajedo), Porto Velho e
Pinhozeiro. O quilombo fica a 15 km da sede do municpio de So Francisco,
seguindo a estrada em direo a Serra das Araras. Depois de atravessar o rio de
balsa, so mais 5 km at a comunidade.
processos sociais em curso na regio norte de Minas Gerais. Processos esses que se conectam a outros de dimenso nacional que esto conferindo um novo desenho a sociedade civil brasileira, com o reconhecimento das chamadas novas etnias, assim denominadas pela referncia as etnias de origem centenria indgenas e quilombolas- j reconhecidas pela Constituio Federal de 1988.
3
A comunidade de Bom Jardim da Prata ser aqui abordada atravs da
articulao entre identidade e territorialidade quilombola e vazanteira, o que confere
especificidade s suas dinmicas internas e com a sociedade envolvente. O territrio
visto como uma fonte de reproduo das relaes de reciprocidade o principal
fator de diferenciao e identificao dos povos e comunidades tradicionais. Procuro
estabelecer um dilogo entre as relaes sociais de gnero e as formas de
apropriao do territrio, considerando que os espaos so construdos tambm no
plano das idias, ou seja, a polarizao entre masculino e feminino um construto
social que determina estruturas e posies diferenciadas na sociedade e que esto
em permanente movimento de mudana sujeitas aos processos sociais em curso.
TERRITRIO QUILOMBOLA E TERRITORIALIDADE VAZANTEIRA
O processo de territorializao da comunidade de Bom Jardim da Prata, visto
de forma geral, no se diferencia de outras comunidades tradicionais do norte de
Minas e ser tratado aqui, atravs das interaes entre tempo e espao,
evidenciando que o tempo modifica o espao e as percepes do mesmo.
A noo de territrio presente em comunidades tradicionais revela o forte
sentimento de pertencimento e identificao com um lugar, no caso aqui retratado,
tendo o rio como smbolo de coragem e resistncia. Segundo De Paula e Brando
(2004), pertencer a esse lugar e tom-lo como seu territrio significa manter laos de
reciprocidade com o rio So Francisco.
As comunidades vazanteiras so denominadas como tal por possurem um
forte vnculo com o rio, que por sua vez estabelece uma forte influncia nas
dinmicas sociais e na estrutura comunitria. Conforme Luz de Oliveira (2005, p.10):
Vazanteiros so as populaes residentes nas reas inundveis das margens e ilhas do rio So Francisco, que se caracterizam por um modo de vida especfico, construdo a partir do manejo dos ecossistemas so - franciscanos, combinando, nos diversos ambientes que constituem o seu territrio, atividades de agricultura de vazante e sequeiro com a pesca, a criao animal e o extrativismo.
Diegues e Arruda (2001) definem populaes tradicionais como grupos
culturalmente diferenciados que ao longo do tempo vm reproduzindo seu modo
4
particular de vida e de relao com a natureza, traduzida num corpo de saberes
tcnico e conhecimentos sobre os ciclos naturais e os ecossistemas locais de que se
apropriam.
Os relatos orais dos vazanteiros sobre sua prpria histria estabelece
periodizaes relacionadas histria do rio. O tempo antigo, ou os tempos da
fartura so narrados pelos moradores mais velhos de Bom Jardim como tempos
bons: da terra solta, dos animais criados sem cercas, de muitas lagoas e do Velho
Chico com gua limpa em abundncia. Na terra o que se plantava dava e tudo que
eles precisavam faziam com as prprias mos - roupas, leo, farinha, sabo e
outros. O esprito de comunidade que regia as relaes sociais, pois estes se
pautavam na reciprocidade, parentesco, amizade e principalmente na liberdade.
Com o passar do tempo chegam a Bom Jardim pessoas de fora, atradas
pelas terras, dando incio ao tempo das fazendas, das terras cercadas. Esse tempo
caracterizado pela perda das terras tradicionais que so cercadas e incorporadas
s terras das fazendas pela ao de grileiros. Os moradores cada vez mais
encurralados, tendo suas possibilidades de reproduo social e econmica cada vez
mais restrita, passam a trabalhar para os fazendeiros locais, mais importante
ressaltar que as relaes com os fazendeiros eram ditadas pelo compadrio. No
tempo das fazendas as terras da comunidade foram em sua maior partes
usurpadas e ainda so, mais a falta talvez de conhecimento e a relao de amizade
e compadrio para com os fazendeiros, levavam estes a se submeterem a trabalhos
em pssimas condies. Hoje em dia muitos fazendeiros reclamam da falta de
interesse dos homens de Bom Jardim, para os trabalhos por eles oferecidos,
segundo moradores, esses os apontam como preguiosos. Na verdade com as
polticas pblicas oferecidas a essa populao, levou estes h no submeterem ao
trabalho escravo nas fazendas.
Com a criao da SUDENE, comea-se o processo de modernizao do
campo, das cidades pequenas e mdias que fazem parte do Polgono das Secas, h
nessa poca um grande xodo rural, e ampliasse a falta de emprego e de formas de
sobrevivncia no campo. Comea-se a mecanizao no Campo, a maquina toma
lugar do trabalho braal, assim em Bom Jardim tambm se evidencia conseqncias
drsticas da ampliao das foras produtivas capitalistas. Na terra firme, onde nos
tempos da fartura se criava tudo na solta, hoje as casas e o territrio, todos so
cercados, isso atravs da presena dos de fora. O territrio concebido como o
5
espao, concreto e simbolicamente, apropriado por determinado grupo social, cheio
de significaes. Diegues (1996) define o conceito de territrios das sociedades
tradicionais:
O territrio das sociedades tradicionais, distinto das sociedades urbanas industriais, descontnuo, marcado por vazios aparentes (terras em pousio, reas de esturio que so usadas para a pesca somente em algumas estaes do ano) e tem levado autoridades da conservao a declar-lo parte das unidades de conservao, porque no usado por ningum. (DIEGUES, 1996, p.84)
Nesta populao o territrio recria laos coesos de significado e o seu direito
regido por relaes de parentesco, amizade e compadrio, diferentemente do valor
econmico dado pelas relaes capitalistas ao mesmo. Uma forma de observar isso
contrapor em Bom Jardim, a vazante da terra firme, na primeira no existem
cercas, o territrio dividido apenas por um pau no cho, as fronteiras no so bem
demarcadas, uma vez que, quem planta ali so s os membros da comunidade. J
quando nos dirigimos terra firme, est toda demarcada por cercas, uma vez que
h a presena de estranhos, onde as relaes capitalistas so desenfreadas e os
conflitos de territrio so frequentes.
Enquanto caminhvamos indo de Bom Jardim ao Lajedo, Paula, mostrava
todo o territrio que antes era do quilombo e agora est cercado por fazendas. Ou
seja, as seis comunidades pertencentes ao quilombo, so distantes umas das
outras, segundo Juarez todas essas possuem um lngua diferente, ou seja, um
sotaque, e todo o territrio entorno destas, agora pertence aos fazendeiros e
grileiros. Assim, a comunidade se encontra ilhada pelas fazendas, o espao imenso
para a reproduo social, hoje se resume a pequenas poes de terra, que
constituem cada comunidade, separadas pelos latifndios.
Hoje as relaes como territrio modificou-se, mais ainda preserva-se certa
caracterstica de antes, como as terras dadas. Seu Tim coloca que recentemente
cedeu um pedao de terra a um compadre, para plantar e morar, mais reclama que
seu compadre queria vender-la, segundo ele a terra no para ser vendida para
servir de fonte e moradia, plantio e sustento do mesmo at a sua morte. Assim os
laos de parentescos, compadrio, amizade so ainda fortes reguladores do territrio
tradicional.
Bom Jardim da Prata possui modos caractersticos das comunidades
tradicionais vazanteiras - a vazante lugar de estrema importncia na reproduo
6
social comunitria. O rio So Francisco e seus ciclos so definidores das dinmicas
sociais, sendo assim, os moradores constroem saberes e estratgias para lidarem
com as mudanas ditadas pelo Velho Chico.
O estudo de Luz de Oliveira (2005) aborda as diferentes territorialidades
adotados por grupos sociais distintos. A autora tambm nos diz sobre as formas de
apropriao do territrio pelos vazanteiros.
As formas de apropriao do territrio, pelos vazanteiros, expressas atravs de estratgias de uso e manejo dos recursos naturais, formam um complexo sistema de explorao das potencialidades dos diversos ambientes classificados por eles como terra firme, rio e ilhas. (LUZ DE OLIVEIRA, 2005, p.89 grifos da autora)
Os vazanteiros, que tm como caracterstica distintiva mobilidade do
territrio em que habitam, devido dinmica das cheias e vazantes do rio,
desenvolve, a partir da relao com o ambiente, um modo de vida caracterstica das
populaes tradicionais. De Paula e Brando (2004, p. 126-127), falando sobre o So
Francisco e as populaes que vivem em seu entorno, dizem:
Um rio que um cenrio de vidas entrecortadas por guas, terras e onde se habita de formas diversas e que, na multiplicidade de relaes, interaes e utilizaes diferenciadas, faz os modos de vida diversos das gentes sertanejas e ribeirinhas.
Assim, em Bom Jardim, a relao com natureza, com o meio ambiente,
construda de maneira sustentvel, de estrito respeito pelo os espaos que tambm
se tornam espaos socais. So criadas estratgias para a boa convivncia entre a
natureza e o homem. O territrio recriado no imaginrio das pessoas e tambm
estas recriam representaes de seres encantados como o do compadre dgua e
me d gua. Em umas das conversas entre Juarez e Giovane, percebi que eles
falavam de um ser encantado, mais tarde na casa de Comadre Bid, perguntei sobre
o compadre, segundo ela o povo fala muito dele, mais nunca vi ele no. Dizem que
um homem negro, que mora nas barrancas do rio, e que deixa as guas agitas pra
derrubar os barcos. A o povo coloca fumo pra ele ficar calmo. noite perguntei a
Juarez, ele ficou com medo e disse:
Eu no gosto de contar essas coisas no, por que eu mexo muito com gua. Ele pode no gostar de alguma coisa que eu falar, por que tudo que a gente faz, ele sabe, eu no sei como, mais sabe. o seguinte ele bom, mais o seguinte, s vezes ele mal, o homem mexer com ele, mais se judia com ele, ele d um tiro na pessoa de
7
p. o seguinte, eu no gosto de contar esses trem no, por que, eu mexo muito com gua sabe, eu no gosto de mexer com esse lado. Eu respeito o lado dele, e graas a Deus! ele respeita o meu tambm, no me apareceu, nunca vez nada comigo. Ele conhece todo mundo que mora aqui na margem do rio. Se tiver gente estranha no rio, logo ele ta estranhando, mais que existe, existe!Aqui no tem outros no, tinha, mais ela desapareceu, nunca mais ningum viu. Ela uma mulher bonita, eu nunca vir no, mais o povo s via ela da cintura pra cima. D onde eu morava o povo via ela.
Nessa entrevista, o medo que Juarez tem do Compadre d gua,
evidenciado, por ser este um ser que habita o rio, e sendo aquele um excelente
pescador, teme desagrad-lo. O territrio imaginado engloba seres e significaes
que expressam relaes de respeito mtuas, que asseguram o usufruto coletivo dos
recursos.
A vazante e o rio so os principais espaos para essas pessoas, segundo
Comadre Bid, o seu pai foi o primeiro a plantar na vazante que era reduzida a uma
pequena ilha, ao passar do tempo com a vinda e a ida do rio modificando e
agregando a estas outras faixas de terra que, a vazante tornou-se maior e hoje
tem aproximadamente 200m de largura e 600m de comprimento e fica a 300m do
barranco do rio So Francisco. Como a vazante cresceu, coloca Bid que seu pai
foi cedendo terrenos aos outros moradores como por exemplo Seu Tim. Assim
comea a apropriao desse espao, atravs de terras datas, e segundo Seu Tim
pelo trabalho, o direito sobre a mesma estabelecido por negcios e doaes, e no
h fronteiras bem demarcadas, apenas na mente das pessoas. O que interessante
colocar, que todas as vezes que fui vazante, sempre ouvia as pessoas falarem
vou pegar o milho de dona Bid, pra gente assar, pois o dela j est bom, mais
essas prticas no so evidenciadas como roubo, mais normais na estrutura
coletiva, o que representa ddiva, reciprocidade em que esses povos so
envolvidos, o sentimento comum. Outro episodio, que chegando a casa depois da
pesca Juarez, entrega a Paula sua mulher, os peixes, falando que tinha feito a
partilha, ou seja, distribuindo os peixes nas casas em que passou no caminho. O
peixe seria se observssemos no prisma capitalista uma propriedade privada
adquirida pelo seu trabalho, mais no, estas pessoas vivem em uma comunidade
envolvida por laos fortes e a reciprocidade que interliga as mesmas.
O solo da vazante muda constantemente quando o rio desce, e so
classificados em trs tipos, areia, misturado (areia e barro) e o barro, no segundo
8
planta-se geralmente melancias e no ultimo quase de tudo, abbora, milho, feijo,
entre outros. Vera a ponta para o cho e fala ta vendo esse tanto de milho, o ano
passado era um areiam s, e deu cada melaciona bitela. Os vazanteiros possuem
um saber muito grande de vegetao, do solo, principalmente da vazante que todo
ano muda. A populao mora em terra firme, mas o senhor Salvador com sua
esposa Nair, todos os anos fazem um rancho na vazante depois da decida do rio,
assim preciso montar e remontar o rancho levar e trazer os animais, alguns
mveis, morar na ilha sem imergia um modo de est mais perto da plantao, uma
forma de proteger contra as pragas, os passarinhos. O homem e a mulher
vazanteira possuem um amor pela sua vazante, Vera fala seu Tim ama a sua
vazante, tem dias que ele passa o dia todo l, vai de manha e volta tarde pra
espanta os bichos. E quando ele briga com Dona Maria pra l que ele vai.
O rio So Francisco lugar de trabalho e lazer, onde o homem pesca, a
mulher lava roupas e vasilhas e as crianas tomam banho e se divertem. Mas, o rio
era a principal fonte de alimento para o consumo domstico, tanto de peixe, quanto
de gua. Hoje no se bebe mais a gua do Velho Chico, pois est muito poluda. A
gua, ou melhor dizendo, a falta dgua a grande preocupao dos moradores
dessa comunidade, nas margens do rio. O abastecimento dgua feito por um
carro pipa que passa na comunidade trs vezes por semana.
Na comunidade tambm se planta em terra firme, mas o ciclo de plantio
diferenciado daquele da vazante, nesta acontece no ms de fevereiro e maro,
assim que o nvel do rio baixa, e colhe-se nos meses de julho e agosto. Este ano
(2009), durante o ms de abril, o rio subiu e levou o que havia sido plantado. Isso
para eles normal, pois comearam a plantar cedo na vazante, depois das primeiras
chuvas, pensando que no iria chover mais, no entanto a chuva voltou, levou tudo e
eles tiveram que comear a plantar de novo. J na terra firme comeam a preparar a
terra para plantio depois das primeiras chuvas, geralmente em novembro e
dezembro, mas a roada acontece antes, em setembro ou outubro. Tambm na
terra firme, o quintal onde se criam os amimais de pequeno porte e a manga
onde so criados os animais de maior porte
A classificao dos espaos no territrio e das espcies nativas e seus
usos apresentada no quadro abaixo.
Quadro 1: Espaos e espcies nativas de Bom Jardim da Prata*
9
Vegetaes e Espaos de Bom Jardim da Prata
Espcies Nativas Usos
Complexo Rio
Rio Grande
Surubim, Dourado, Piranha, Trara
Pesca
Complexo Ilha
Vazante ou Lameiro Roa de feijo de arranque, milho,
abboras, melancia, andu
Co
mp
lexo T
err
a F
irm
e
Lagoas Pesca
Chapada Capim agreste, pequi, caigata e coquim
Coleta de frutas, no se planta nada.
Caatinga rvores grandes, com madeiras grossas. Terra frtil, onde tudo que se planta nasce, dependendo d gua.
Roa de milho, feijo catador, mandioca,
mamona; pastagens, coleta de frutas, plantas medicinais, madeira e
lenha
Carrasco um tipo de angico fino que no cresce.
Pastagens, solta do gado, lenha.
Tabuleiro tipo um charoscado, tipo uma chapada mais no , tipo de
caatinga mais no , com mais ou menos paus tortos, mas no
to grossos
Capo Tipo de caatinga, um capo de mato, l tem o crrego, um pantanal e lagoa.
Pequi, cabea de nego e murici.
Mata pequizeiro grande
Antigamente enchia dgua, lagoa. Mata
fechada, onde hoje j no alaga mais.
Lenha e, antigamente, lugar de lazer.
FONTE: Maria Tereza Rocha, 2009
* O quadro foi elaborado com base nas informaes de Juarez.
Esses espaos no territrio so natural e socialmente produzidos e
apropriados no processo de reproduo simblica dessa coletividade, assim como a
casa, a rua, a igreja, e outros. A estrutura social regulada por instituies que
mantm uma forte coeso dentro do grupo, instituies como a famlia e o
casamento, entre outras. O casamento na comunidade de Bom Jardim
endogmico e virilocal, ou seja, o casamento realizado com pessoas da mesma
comunidade, sendo que a mulher passa a morar nas terras do seu marido. Havendo
algumas excees como no caso de Paula que ao se casar com Juarez resolveram
morar nas terras do pai dela, por ser a escola mais perto.
10
Por fim, a partir dessa forma especifica de identificao com um territrio
comum, que ao mesmo tempo produz uma integrao social e cultural onde se
desenrola a base mais forte de coeso social.
MULHERES VAZANTEIRAS: ESPAOS E GNEROS
Os tempos e espaos, tambm so percebidos diante da bipolaridade
feminina e masculina, os espaos ao longo do tempo so modificados, modificando-
se tambm as percepes dos sujeitos sociais, como as relaes entre os gneros.
a posio hierrquica, as instituies sociais, inclusive a familiar, vo dando lugar a
novos modelos estruturais de posio e prestgio.
Segundo Dona Maria moradora antiga da comunidade, antigamente ela
cuidava da casa, dos filhos e ainda trabalhava na colheita de mamona, as filhas
mais velhas que muitas vezes ficavam responsveis pela casa, na ausncia da
me e pelos irmos mais novos. A figura do marido era central na vida familiar,
assim a instituio familiar era patriarcal, hierarquizada, o papel da mulher de certa
forma nessa hierarquia se exercia subordinado ao do homem nas relaes de poder,
ditados pela moral. Mais importante frisar que a mulher tinha um papel
importantssimo na reproduo do grupo domstico, o seu trabalho de certa forma
era complementar ao do homem, sendo a comunidade patrifocal. Segundo Dona
Maria, era seu Tim, seu esposo, que ficava responsvel pela administrao da renda
da casa, era ele que ia pra cidade, ia s feiras, uma vez que, esses espaos eram
desconhecidos para as mulheres, que no se aventuravam por estes mundos, ou
raras vezes s com a presena de seus maridos. O espao feminino se estendia
entre a casa, a vazante, a plantao de mamona e a agricultura na terra firme. Os
ambientes distantes eram s para os homens, grandes desbravadores, fortes - o
rio adentro, cheio de perigos, agitaes, bichos, no era lugar de mulher, a no ser
quando acompanhadas pelos seus guardies.
As crianas comeavam cedo a trabalhar, muitas vezes nem estudavam,
devido dificuldade do acesso a escola, que era distante. Cotidianamente as
crianas e jovens que se aventuravam, deslocavam-se a p at a Escola Estadual
Barreira dos ndios. Hoje h uma escola na comunidade, tambm existe a escola
famlia agrcola no municpio, onde alguns jovens da comunidade estudam, mas so
poucos devido falta de recurso familiar, pois para estudar deve-se pagar trinta
11
reais, um preo alto para famlias que muitas vezes s recebem os recursos do
Programa Bolsa Famlia. Os jovens que vo para a escola, como Tain, filha de
Paula e Juarez, permanecem quinze dias na escola e quinze dias na comunidade.
O processo de polarizao de gnero era e ainda passando desde infncia,
onde as meninas durante os seus seis a sete anos j praticam deveres domsticos
mais leves, enquanto as menores brincam de lavar casa, de lavar roupinhas e de
casinha. Os meninos, j se aventuram em lugares distantes as lagoas, a vazante, a
manga, e assim influenciando os seus irmos mais novos, que quando no vo com
eles, brincam de curralzinho, entre outros. Uma situao presenciada por mim,
durante umas das minhas idas a campo, que evidenciaria perfeitamente isso, foi que
num dia estvamos no quintal da casa de Dona Maria, onde se encontra quase todo
grupo familiar, constitudo por Paula sua filha, Seu Tim, Vera sua cunhada, Andra e
Vanessa filhas de Vera e de vez em quando seus filhos depois da realizao de
suas tarefas na roa, na manga juntavam-se ao grupo. Nesse dia, comeava o
processo produo da farinha de mandioca e da tapioca ou goma de mandioca,
essa ultima para a fabricao do beij. No processo de fabricao da farinha e da
tapioca, o primeiro passo descascar a mandioca, um processo rduo e cansativo.
Nesse momento, Vanessa j nos seus setes anos de idade, participava do processo
ativamente, mais no com a mesma agilidade que os adultos, j Andra prxima aos
trs anos de idade, ao ver a me, av, o av, a tia e a irm, reproduz os mesmo
gestos deste, com uma faca menor e sem ponta e com uma pequena mandioca,
descasca-a. Assim se evidencia que esses valores, so passados no cotidiano, que
as crianas recriam os hbitos dos adultos, e garantem a continuidade destes. J
Giovane, com os seus dez a onze anos, ao passar ali, prefere contar os seus feitos
enquanto pescava nas lagoas. Ento, a separao de tarefas dita femininas e
masculinas, so repassadas desde infncia, contribuindo na continuao do modelo
estrutural vigente.
A mulher desenvolve o papel de guardi da tradio, ela que responsvel
pelo processo de socializao das pessoas, principalmente as idosas, as avs-
mulheres sbias e com experincia de vida - so quem ensinam os netos, os filhos,
as prticas sociais desempenhadas na comunidade. Um fato que me chamou
ateno e que demonstra a importncia das mulheres na socializao das crianas,
foi que estando no quintal da casa de Dona Maria, presenciei um dialogo que enfoca
muito bem isso, entre Dona Maria e sua neta Vanessa:
12
Dona Maria grita: Vanessa!Vanessa! Vanessa responde: O qu v.
Dona Maria se dirige a Vanessa e fala: O qu no! senhora, quando voc responde pra mim, pra sua me, seu v senhora e senhor, agora quando fala pra seu primo, o qu. Foi assim que meus pais me ensinaram e assim que to te ensinando
Brando (1998) mostra que o local de guardar ferramentas, o paiol so
lugares de domnio masculino, enquanto o quintal e o forno caipira so territrio
domstico das mulheres. Herdia (1979, p.154), em seu estudo com o campesinato
marginal a plantation aucareira da Zona da Mata de Pernambuco, nos apresentam
bem distintamente a ocupao de territrio baseado em gnero, como:
A oposio casa-roado atualiza e refora, ao mesmo tempo, as esferas masculina e feminina, delimitando tambm a rea de atividades reconhecidas como trabalho daquelas que no o so. Esta categoria trabalho no apenas classifica as tarefas como tambm os prprios membros do grupo domstico, tanto em termos sexuais como de ciclo de vida
Woortmann (1992, 1997) afirma que a diviso do trabalho por sexo - homens
e mulheres se diferenciam e complementam nas atividades de capina e colheita. A
roa e o pasto so ambientes masculinos, enquanto que a casa torna-se um
ambiente feminino.
Nas construes ideolgicas dos sitiantes existem dois circuitos de atividades, o masculino e o feminino. No plano mais amplo, tudo que diz respeito ao pasto e roa circuito masculino; o que diz respeito casa feminino (WOORTMANN, 1992, p. 134-135).
Ela estrutura tambm concepes ideolgicas nas relaes de trabalho.
Por outro lado, a palma plantada num semicrculo que separa o espao da casa quintal daquele da roa, opostos ideologicamente em sua relao com a construo de gnero, pois a casa quintal o domnio da mulher, e a roa, o domnio do homem (WOORTMANN, 1992, p.143).
O ambiente ento apropriado de acordo com a diviso do trabalho, que
ainda est muito ligado ao papel desempenhando pelo homem e pela mulher dentro
da instituio familiar.
A casa e a rua se opem no imaginrio brasileiro de vrias maneiras.7 A rua um domnio frio, do homem, que para nela vencer na vida deve agir de maneira fria, racional, equilibrada. A casa um lugar que deve ser quente. Nela deve haver calor
7 DaMatta apud Woortmann, .
13
humano; a racionalidade fria deve ceder lugar afetividade quente, e mulher dona da casa compete imprimir tal clima (WOORTMANN, 1992, p.163 grifos da autora).
A casa em Bom Jardim da Prata local exclusivamente feminino, a mulher
que cuida dos afazeres domsticos - limpar, lavar, passar. O quintal propriamente
feminino, mais tambm pode ser visto como territrio misto, apesar da maior
presena feminina, que geralmente passa a maior parte do tempo cuidando deste.
Uma vez que, neste que se encontram os animais de pequeno porte, galinha,
cocas, porcos, plantas domsticas como p de pinha, de manga, at mesmo uma
pequena plantao de milho e a horta. Com isso, esses tipos de tarefas ficam
incumbidas s mulheres, talvez por serem tarefas menores, mais fracas. J os
homens tambm circulam pelo quintal realizando tarefas mais pesadas, onde
fabricam suas redes de pescas, batem o milho, matam o porco. Nas vazantes o
roado tarefa masculina, j a mulher ajuda o marido, os irmos, a semear, colher,
sendo estas no consideradas como trabalho. O roado a parte mais pesada em
todo processo de cultivo das terras, queimar, limpar o mato bravo necessita de
fora, geralmente atribuda ao homem. O rio um espao misto feminino e
masculino, em se tratando da beira do rio, o rio de perto o lugar onde as
mulheres executam trabalhos como lavar roupa, as vasilhas, e onde se toma banho,
o rio tambm lugar de lazer. Mais j o rio de longe lugar masculino, onde os
homens saem para pescar, raramente as mulheres lhe acompanham, por ser um
lugar perigoso.
Assim pode-se dizer que as tarefas de cunho feminino esto ligadas
categoria fraca e as dos homens a pesada, pois so fortes viris, enquanto a
mulher fraca e sensvel, assim se d s relaes entre gneros. Essa categoria
fraca e forte, tambm passa a diferenciar os trabalhos femininos, a mulher forte
aquela que cuida da casa, dos filhos e ainda da vazante e a fraca que a que
no trabalha na vazante, no roado. Aquelas mulheres que desempenham tarefas
de cunho mais pesadas, tarefas at mais masculina, como o trabalho na vazante,
de certo que no me refiro s categoria ajuda, mais mulheres que realmente
trabalham na vazante, muitas vezes na falta de seus maridos, essas so
consideradas como fortes, Vera se refere a uma mulher que trabalhava na vazante,
que agora devido s condies fsicas no pode mais, aquele era mulher forte,
14
trabalhava na vazante, ainda cuidava da casa, voc precisa de ver que mulher
trabalhadeira.
Para Diegues (1996), territrio tambm se constri a partir das relaes
sociais existentes. Diante destes conceitos a forma de abordagem da pesquisa com
enfoque em gnero vem apresentando uma leitura baseada em um arcabouo
terico, onde, principalmente, as formas de trabalho, obedecendo polaridade
masculina e feminina, que iro determinar a ocupao do territrio.
Assim nos tempos atuais, com as constantes mudanas na estrutura social
comunitria, devido ao maior contato com as relaes modernas de reproduo
social, a mulher conseguiu uma ascenso na hierarquia social. Outra questo na
qual, essa mudana esta relacionada e onde a comunidade sofre uma
desestruturao social brusca, o trabalho sazonal, feito todo o ano pelos os
homens da comunidade. A mulher geralmente a que mais sofre em relao a este,
pois passa exercer uma jornada dupla, cuidar da casa, dos filhos, administrarem a
renda e ainda cuidar da vazante. O trabalho sazonal na plantao de alho em So
Gotardo feito todos os anos, primeiramente no ms de maro para a plantao do
alho durante 45 dias e depois novamente num mesmo perodo de dias os homens
retornam em julho para a colheita. Essa uma conseqncia da expropriao
territorial e uma forma de reproduo camponesa, ou seja, o homem sai
sazonalmente em dois perodos do ano, para viabilizar a reproduo de seu modo
de vida tradicional, transitando por mundos diferentes - o trabalho escravizado, o
utilitarismo, o mundo da reproduo do capital e o mundo da reciprocidade, do
vinculo com o lugar e a coletividade.
Hoje em dia, Andr no trabalha mais na colheita de alho em So Gotardo,
pois est empregado na firma EMSA, mais relata que quando trabalhava, passava
por muitas dificuldades, alm do trabalho escravo e sua mulher Vera tambm se
desdobrava. Vera no seu cotidiano sem a presena do seu marido teve que assumir
outra postura na estrutura familiar, ela passava agora, ser alm de me, dona de
casa, a principal figura familiar, pois agora era pai, e tinha que cuidar da vazante, da
roa na terra firme. Assim, levantava todos os dias bem cedo, fazia o caf, fazia os
afazeres domsticos, deixava suas filhas com algum, Dona Maria sua sogra, ou
com uma vizinha e ia pra vazante. Quando era tempo de roado, bota fogo, capinar,
essa era ajudada pelos seus cunhados, ou seu marido pagava algum para exercer
essas tarefas, agora plantar, abrir covas e colher eram tarefas que exercida com
15
grande presteza. Hoje como seu marido trabalha na firma o dia todo, Vera est mais
tranquila, pois o tem perto de si, mais cuidar da casa, da vazante, dos filhos ainda e
sua tarefa, mais o que visto novamente a presena da autoridade do pai, que
ainda muito forte, talvez agora, as tarefas de Vera aumentaram, pois, alm de
tudo, seus esforos tambm so para agradar e cuidar do marido.
Outra mulher forte Dona Preselina, mais conhecida como Comadre Bid,
mulher vazanteira, que exerce de maneira firme suas tarefas, plantar, colher, remar
(tarefa que poucas mulheres fazem), cuidou e cuida de 10 filhos, alguns casados
outros ainda crianas, alm disso, sofre tambm com a ida de seus filhos para o
trabalho sazonal, e as suas filhas tambm com a ida de seus maridos. Vivas do
serto!
Nem todos tiveram a sorte de Andr, muitos so os que todos os anos
trabalham na colheita de alho, sofrem com salrios baixos, grande jornada de
trabalho, alm do conflito interno ocasionado pelo choque com outro mundo, de
relaes de produo do capital, diferenciadas das exercidas no cotidiano grupal.
Para Woortmann as diferenciaes de trabalho sero um fator determinante,
onde a mulher tem seu papel focado numa questo de complementaridade ao
sustento familiar no passado e atualmente como uma questo de dependncia ao
homem. Como objeto de estudo a mulher vazanteira e o seu olhar sobre as vrias
vertentes que se imbricam na qualificao de gneros.
Mas em Bom Jardim, o trabalho feminino entre os vrios espaos,
modificarou-se, pude notar que, o seu trabalho sempre foi uma forma de
complementaridade de fundamental importncia ao sustendo familiar, a sua ajuda
na vazante, hoje formando talvez uma categoria de trabalho, onde as mulheres
vazanteiras passam a maior parte de seus dias, o cuidarem da casa, do quintal e os
animais e as plantas que ali se encontram, serviram e servem como complemento
ao trabalho do homem. Alm desse aspecto o que se evidencia em bom jardim
independncia que vem ganhando a mulher em relao ao homem, elas adentraram
espaos de trabalhos antes s percorridos pelos homens, algumas trabalham na
cantina da EMSA, outras vo para vazante plantam e colhem sem a presena de
seus maridos.
Essas mudanas tambm evidenciam um conflito intergeraoes, os tempos de
hoje, so diferentes dos de ontem, o que resume que, as mulheres de ontem foram
16
socializadas em padres diferentes dos de agora. Sentadas no quintal, se aproxima
de ns duas mulheres da vilinha, lugar um pouco distante da comunidade, com uma
bacia na cabea de roupa vindo do rio, Paula e sua me Dona Maria comentam:
Paula fala: Meu Deus! Sair l do lugar distante pra lavar roupa no rio, nesse sol quente! Dona Maria responde: Sabe de uma coisa eu tenho saudades de lavar roupa no rio! Paula rebate: Por que a senhora no lava, ento ? Dona Maria termina a fala: Eu no lavo por causa da coluna, mais se no fosse eu lavava.
Esse dilogo traduz uma mudana de percepo entre geraes, onde
Paula na sua comodidade de ter gua do rio em casa, no necessita mais lavar
roupa no rio, e no faz questo, pois no tem mais tempo na realizao dessas
tarefas, sendo que lavar roupa em casa mais cmodo, gasta mesmo tempo e no
necessita de descer e subir o barranco, com pesos na cabea. J Dona Maria
lembra com saudades do tempo em que lavar roupa no rio era algo agradvel para
as mulheres, e uma tarefa diria.
Para McDowell (1999), Rose (1993) e Silva (2005) gnero um grupo de
idias que uma cultura especfica constri em relao ao que ser homem e ao que
ser mulher. Para Surez (2000), gnero um conceito acionado para distinguir e
descrever categorias sociais, um instrumento para produzir efeitos na sociedade. A
autora afirma que a palavra gnero, s se tornou forte depois de passar a designar a
construo social da feminilidade e da masculinidade. Hoje o estudo de gnero vem
demonstrar que o discurso de que a mulher um ser estritamente voltado pra
sensibilidade e o homem voltado pra razo, um discurso baseado no senso
comum de forma equivocada. Estruturar um conceito juntamente com o conceito de
gnero falar sobre os processos culturais que determinam o que masculino e
feminino dentro do grupo local estudado, analisando as mudanas relacionadas aos
contextos.
Hoje a situao em Bom Jardim da Prata, passou por grandes
transformaes, as relaes de gnero se modificaram, a mulher est em uma
posio diferenciada nas relaes de poder. Apesar de ainda manter certa
subordinao ao seu marido, essas j no possuem um espao limitado, as
mulheres se deslocam cidade sem a presena dos mesmos, elas cuidam do
dinheiro, fazem feira e pagam as contas. As mulheres assumiram uma relevncia
17
maior dentro da comunidade, em todas as esferas sociais, culturais e econmicas.
Por exemplo, na diretoria anterior da associao quilombola quem exercia a funo
de presidente e vice-presidente eram mulheres - Gilmara e Paula - que ocupavam e
ocupam posies de grande influencia na estrutura social.
CONSIDERAES FINAIS Finalizo aqui tentando evidencia as dinmicas sociais e o processo que
culminou nas constantes mudanas da estrutura social dessa comunidade.
Primeiramente busquei incorporar procedimentos metodolgicos que permitisse
chegar estrutura atual e observar quais os processos sociais e culturais,
mecanismo de coeso, instituies, conflitos sociais, enfim, quais os fatores que
levam h uma conscincia coletiva e da identidade, que se constri no presente
etnogrfico e diacrnico. Em segundo, procuro na historia oral ou tempo sincrnico,
o mesmo mecanismo, mais agora que evidenciaram as dinmicas sociais, culturais e
econmicas que propiciaram mudanas nessa estrutura social.
Portanto, a estrutura social vigente na comunidade de Bom Jardim da Prata
digamos que contraditria, envolvendo aspecto do mundo urbano e do mundo
tradicional. Ou seja, esta comunidade est envolvida num conflito de tenses
ocasionadas pela disputa de agentes exgenos e agentes endgenas, em suas
essncias, diferenciados. O mundo urbano, capitalista tem como base uma
organizao expansionista e utilitarista, constituindo-se atravs de posies
hegemnicas tanto de uma identidade dominante quanto econmica. J o mundo
tradicional pautado em relaes territoriais especficas de respeito pela natureza,
onde se tira o sustento da pesca, da agricultura, do extrativismo e da criao de
animais e uma organizao vinculada ao parentesco, compadrio, amizade e troca.
Por serem posies diferenciadas de representaes sociais ou de ver a si mesmo e
ver o mundo, em Bom Jardim esses agentes impulsionam conflitos relativos a
devidos campos da estrutura comunitria como o intergerao, de gnero, fundirios
e ambientais, proporcionando mudanas passadas e futuras. Nas relaes entre
gnero, houve a ampliao dos espaos femininos em todos os campos poltico,
cultural, econmico e social, algumas mulheres hoje j reivindicam os seus direitos
matrimonias recentemente na comunidade se teve uma tenso, uma mulher
cobrando seus direitos aps o fim do casamento. A terra envolvida em conflitos
18
ambientais e rurais, rgos como IEF, entre outros e os fazendeiros so os
principais agentes desses. Os jovens esto ligados a moda urbana e acham as
praticas tradicionais bregas, os idosos sofrem vendo a cultura sendo descartadas
pelos mais novos.
Todo esse processo social que culminou nessa estrutura vigente, matria-
prima de todo uma mudana e dinmica social, no se tem como afirma Leach
(1995), estrutura esttica, assim todas as sociedades passam por modificaes
atravs dos conflitos internos e do contado entre povos, processo normal. Mais o
que se evidencia quando falamos em cultura ocidental, capitalista um
etnocentrismo exacerbado, que procura absolvio de outras culturas com fins
utilitaristas, pela fora seja no domnio fsico ou ideolgico. A mudana ento nessa
comunidade se deu pela expanso capitalista, atravs das chegadas das fazendas,
que levam consigo novos modos de se ver o mundo, bem no estabelecimento da
dominao no plano fsico, no encurralamento desse povo e uma dominao no
plano ideolgico, de aculturao e de incorporao de meios de comunicao e da
diminuio das distancias. O mundo urbano adentra no mundo tradicional
modificando alguns aspectos dessa, se estabelece ai um conflito dos modos
tradicionais envolvendo sua sobrevivncia e dos modos urbanos em se impor como
modo de vida dominante.
Por fim, os conflitos sejam eles exgenos aqueles que se tencionam com o
mundo de fora, ou os conflitos endgenos, aqueles que se desenrolam dentro da
estrutura interna do quilombo, desencadeados por motivos internos, como brigas por
heranas, foram essenciais para as transformaes ocorridas na comunidade.
Assim, que o processo de territorializao pode ser considerado como um Fato
Social Total, pois atravs das relaes entre homem e natureza, que se constitui
como base em modos de vida especficos, simbolicamente construdos a partir
desta, que uso e apropriao do espao em todos os seus ngulos, neste caso do
gnero, e nos tempos e espaos, destri o vu que escondia e desmascara a
estrutura social, dessa comunidade. Pois partindo de um eixo como o a
territorizao em seu sentido amplo e da perspectiva de gnero, pode-se notar
aspectos mais amplos, que encobrem toda a comunidade e suas dinmicas. O forte
vinculo com ao territrio, faz com que, toda e qualquer mudana neste, seja pela sua
perda, seja por tcnicas diferenciados de cultiva-lo, ou vrios outros motivos,
evidenciam conseqncias e mudanas em outras instituies, em outras relaes
19
sociais. Pelo estudo do processo de apropriao e formao territorial, se constata o
surgimento de outros agentes conflituosos, como o urbano, e assim lugares
proibidos vo sendo pouco a pouco descobertos pelas mulheres. As transformaes
e mudanas na estrutura social de Bom Jardim, esto ligadas ao processo de
territorialidade em que est percorreu.
REFERNCIAS BRANDO. Carlos Rodrigues. Cenrios e momentos da vida camponesa: trs dias de caderno de campo em uma pesquisa no Pretos baixos de Bairro dos Pretos em Joanpolis, So Paulo. In: NIEYMEYER, Ana Maria, GODOI, Emilia P. de (org). Alm dos territrios: para um dialogo entre a etnografia indgena, os estudos rurais e os estudos urbanos. Campinas: Mercado das Letras, 1998. ________________________. Tempo e Espao na Comunidade Rural: a visita de um antroplogo Geografia. Texto elaborado para a Palestra de Abertura do II Encontro de Grupos de Pesquisa Agricultura e Desenvolvimento Regional e Transformaes Socioespaciais CD dos Anais. Uberlndia: Instituto de Geografia, Universidade Federal de Uberlndia, 2006. BOURDIEU, Pierre. A iluso biogrfica. In: FERREIRA, Marieta de; M.AMADO, Janana. Usos e Abusos da Histria Oral. 7 ed. Fundao Getlio Vargas, Rio de Janeiro: 2006. CEDEFES-Centro de Documentao Eloy Ferreira da Silva. Comunidades Quilombolas de Minas Gerais no Sculo XXI Histria e resistncia. Belo Horizonte: Autntica-CEDEFES, 2008. COSTA, Joo Batista de Almeida. Do tempo da Fatura dos Crioulos ao tempo de Penria dos morenos: Identidade atravs de rito em Brejo dos Crioulos (MG). Braslia: Unb- Departamento de Antrpologia, 1999. Dissertao de Mestrado. DE PAULA, Andra M.N.R; BRANDO, Carlos R. Travessia no serto dos Gerais: Tradio e Modernidade nas Margens do So Francisco. In: FEITOSA, M.A. ZUBA, A.G. JUNIOR, Cleps Joo. Debaixo da Lona: tendncias e desafios regionais. Ed. UCG, Goinia: 2006.
DIEGUES, A.C. As Populaes Tradicionais: Conceitos e Ambigidades. In: DIEGUES, A.C. O Mito moderno da natureza intocada. 5ed. Hucitec, So Paulo: 2004.
DIEGUES, A.C.; ARRUDA, Rinaldo S.V. Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. Braslia: Ministrio de Meio Ambiente, 2001. GARCIA JR, Afrnio; GARCIA, Marie France; HEREDIA, Beatriz Maria Alsia de. O lugar da mulher em unidades domesticas camponesas. In: AGUIAR, Neuma. (Org). Mulheres na Fora de Trabalho na Amrica Latina. Ed. Vozes, Petrpolis, 1984.
20
HEREDIA, Beatriz Maria Alsia de. A Morada da Vida: trabalho familiar de pequenos produtores do Nordeste do Brasil. Paz e Terra, Rio de Janeiro: 1979. LEACH, E. R. Sistemas polticos da Alta Birmnia: um estudo da estrutura social kachin. So Paulo: Ed. da USP, 1995. LUZ DE OLIVEIRA, Claudia. Os Vazanteiros do Rio So Francisco: um estudo sobre populaes tradicionais e territorialidade no Norte de Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG. Dissertao de Mestrado, 2005.
MAUSS,M.Ensaio sobre a ddiva: forma e ao da troca nas sociedades arcaicas.In: Sociologia e Antropologia. So Paulo: Cosa & Naify, 2003.
MCDOWELL, L. Gender, Identity and Place. Understanding Feminist Geographies. University of Minnesota Press, Minneapolis: 1999. R. M. Maclever e Charles H. Page. Society: Na Introductory Analysis. Macmillan, Londres, 1955. ROSE, G. Feminism & Geography. The limits of Geographical Knowledge. Polity Press, Cambridge: 1993.
SILVA. J. M. Anlise do espao sob a perspectiva do gnero: Um desafio para a Geografia Cultural brasileira. In: CORRA, R.L; ROSENDAHL, Z. (org) Geografia: Temas sobre Cultura e Espao. Rio de Janeiro: UERJ, 2005.
SUREZ, Mireya Gnero: uma palavra para deconstruir idias e um conceito emprico e analtico. Texto elaborado para o I Encontro de intercambio de experincias do Fundo do gnero no Brasil, Braslia maio de 2000. WOORTMANN, E.F. Da complementaridade dependncia: espao, tempo e gnero em comunidades pesqueiras do nordeste. In: Revista brasileira de Cincias Sociais. n 18, v.7, p. 41-61, 1992 .